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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Cyntia Gomes Calhado

Intensidades da imagem: experiência estética no cinema


– análises críticas a partir de Walter Salles

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2018

Cyntia Gomes Calhado

Intensidades da imagem: experiência estética no cinema


– análises críticas a partir de Walter Salles

Tese apresentada à banca


examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de DOUTOR em
Comunicação e Semiótica, na área de
concentração Signo e Significação
nos Processos Comunicacionais, sob
orientação da Profa. Dra. Christine
Pires Nelson de Mello.

SÃO PAULO

2018




Cyntia Gomes Calhado

Intensidades da imagem: experiência estética no cinema


– análises críticas a partir de Walter Salles

Tese apresentada à banca examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de DOUTOR em Comunicação e
Semiótica, na área de concentração Signo e
Significação nos Processos
Comunicacionais, sob orientação da Profa.
Dra. Christine Pires Nelson de Mello.

Aprovada em:

Banca examinadora

______________________________________________________

______________________________________________________

______________________________________________________

______________________________________________________

______________________________________________________

Ao mestre Walter Salles, por ter me ensinado


com imagens a potência política dos afetos.

Esta pesquisa foi realizada com o apoio de


uma bolsa de doutorado concedida pelo CNPq
(processo no. 165049/2015-4).

AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Christine Mello, pela orientação dedicada e zelosa,


pela delicadeza, pela generosidade em partilhar seus
conhecimentos, pela convivência durante esses anos e por ter
acreditado em mim e nesta pesquisa.

Ao Prof. Dr. Cristian Borges e à Profa. Dra. Jane de Almeida,


pelas sábias observações durante a banca de qualificação, que me
ajudaram a aprimorar o trabalho, a ampliar as referências
bibliográficas e a repensar de forma decisiva a estrutura da tese e
seus objetivos.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq), pela bolsa de doutorado concedida e pelo
apoio financeiro para a realização desta pesquisa.

À PUC, ao Programa de Comunicação e Semiótica, à Cida.

Ao Prof. Dr. Renato Pucci Junior pela atenção e auxílio na


realização do projeto de pesquisa.

Aos pesquisadores e amigos da Sociedade Brasileira de Estudos de


Cinema e Audiovisual (SOCINE), em especial Sancler Ebert, pelas
trocas.

Ao alunos, professores e coordenadores do curso de Rádio e TV do


FIAM-FAAM.

Aos professores e amigos do Jornalismo da PUC, Prof. Dr. Silvio


Mieli, Desirèe Luíse, Elisângela Fernandes e Sarah Fernandes.

Aos amigos do Programa de Comunicação e Semiótica, Alexandre


Sbabo, Andrea Lombardi, Felipe Neves, Juliana Garzillo, Larissa
Macêdo, Letícia Capanema, Lucas Lespier, Luciano Abe, Maria
Cecília Carboni, Pablo Villavicencio, Patricia Nechar, pela
cumplicidade e risadas.

Aos amigos do grupo de estudos eXtremidades: redes audiovisuais,


cinema, performance e arte contemporânea.

A Antônio José Silva pela formação, exemplo de resistência e


inspiração na docência.

À Vanessa Iurif pela amizade.

A Theo e Nina pela companhia durante a escrita.

A Daniel pelo incentivo e apoio.

A Luís Villaça pelo afeto e companheirismo.

A meus pais, Carlos e Sandra, avós, Lydia e Stella, e irmã Tays,


por tudo.

RESUMO

Esta pesquisa realiza uma análise do fenômeno das intensidades da imagem
em suas relações com a narrativa como acontecimento no cinema de Walter
Salles pela perspectiva da experiência estética. Assinalamos como problema
de pesquisa a seguinte questão: Podemos compreender intensidades da
imagem como acontecimentos narrativos no cinema, por sua potência de
ampliar a experiência no cinema contemporâneo? A hipótese de pesquisa é
que intensidades da imagem mobilizam afetos no espectador por meio de
acionamentos em sua sensibilidade háptica e que suas ocorrências podem ser
lidas como acontecimentos narrativos por sua capacidade de ampliar a
experiência sensória. O corpus da pesquisa compreende os seguintes longas-
metragens ficcionais falados em língua portuguesa e produzidos para
exibição cinematográfica: Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado
(2002) e Linha de Passe (2008, codireção Daniela Thomas). A análise segue
a abordagem figural no sentido proposto por Philippe Dubois, assim como a
leitura das extremidades de Christine Mello (2008) para uma aproximação
das obras pelos seus procedimentos poéticos, por entendermos que esta
produção audiovisual acontece no signo das extremidades. A abordagem
teórica ampara-se na leitura que André Parente faz dos processos narrativos-
imagéticos, resultado da crítica a Gilles Deleuze, no conceito de dramaturgia
plástica de Jacques Rancière e na perspectiva de experiência estética de John
Dewey. A pesquisa ainda propõe diálogos com autores da teoria crítica das
mídias, como Arlindo Machado e Christine Mello. Metodologicamente,
trata-se de pesquisa bibliográfica. A relevância da pesquisa está em
contribuir para os estudos sobre a experiência do cinema na
contemporaneidade.

Palavras-chave: Intensidades da imagem. Experiência estética. Cinema


contemporâneo. Walter Salles. Narrativa como acontecimento.









ABSTRACT

This research analyses the phenomenon of the intensities of the image in
their relations with the narrative as event in the cinema of Walter Salles by
the perspective of the aesthetic experience. We point out as a research
problem the following question: Can intensities of the image be understood
as narrative events in cinema, by their potential to broaden the experience in
contemporary cinema? The research hypothesis is that the intensities of the
image mobilize affections on spectators through activations in their haptic
sensibility and their occurrences can be seen as narrative events by their
capacity to broaden the sensory experience. The research corpus includes the
following fictional feature films spoken in Portuguese and made for cinema
exhibition: Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2002) and Linha
de Passe (2008, co-directed by Daniela Thomas). The analysis follows the
figural approach in the sense proposed by Philippe Dubois, as well as the
perspective of the extremities of Christine Mello (2008) to observe the
productions in their poetic procedures, because we understand that this
audiovisual production takes place in the sign of the extremities. The
theoretical approach is based on the narrative-imagetic procedures seen by
André Parente, result of the critical analysis of Gilles Deleuze, on the
concept of plastic dramaturgy of Jacques Rancière and on the perspective of
aesthetic experience of John Dewey. The research proposes dialogues with
authors of the critical theory of the media, such as Arlindo Machado and
Christine Mello. Methodologically, it is a bibliographic research. The
relevance of this research lies on its contribution to the studies on cinema
experience in contemporaneity.

Palavras-chave: Image intensities. Aesthetic experience. Contemporary


cinema. Walter Salles. Narrative events.















LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Frame do filme Central do Brasil 35


Figura 2 - Frame do filme Central do Brasil 38
Figura 3 - Frame do filme Central do Brasil 38
Figura 4 - Frame do filme Central do Brasil 39
Figura 5 - Frame do filme Central do Brasil 39
Figura 6 - Frame do filme Central do Brasil 40
Figura 7 - Frame do filme Central do Brasil 41
Figura 8 - Frame do filme Central do Brasil 41
Figura 9 - Frame do filme Central do Brasil 42
Figura 10 - Frame do filme Central do Brasil 42
Figura 11 - Frame do filme Central do Brasil 43
Figura 12 - Frame do filme Central do Brasil 43
Figura 13 - Frame do filme Central do Brasil 44
Figura 14 - Frame do filme Central do Brasil 44
Figura 15 - Frame do filme Abril Despedaçado 46
Figura 16 - Frame do filme Abril Despedaçado 48
Figura 17 - Frame do filme Abril Despedaçado 48
Figura 18 - Frame do filme Abril Despedaçado 51
Figura 19 - Frame do filme Abril Despedaçado 51
Figura 20 - Frame do filme Abril Despedaçado 52
Figura 21 - Frame do filme Abril Despedaçado 52
Figura 22 - Frame do filme Abril Despedaçado 53
Figura 23 - Frame do filme Abril Despedaçado 54
Figura 24 - Frame do filme Abril Despedaçado 54
Figura 25 - Frame do filme Abril Despedaçado 55
Figura 26 - Frame do filme Abril Despedaçado 55
Figura 27 - Frame do filme Abril Despedaçado 56
Figura 28 - Frame do filme Abril Despedaçado 57
Figura 29 - Frame do filme Abril Despedaçado 57




Figura 30 - Frame do filme Linha de Passe 59
Figura 31 - Frame do filme Linha de Passe 60
Figura 32 - Frame do filme Linha de Passe 61
Figura 33 - Frame do filme Linha de Passe 61
Figura 34 - Frame do filme Linha de Passe 62
Figura 35 - Frame do filme Linha de Passe 62
Figura 36 - Frame do filme Linha de Passe 63
Figura 37 - Frame do filme Linha de Passe 63
Figura 38 - Frame do filme Linha de Passe 64
Figura 39 - Frame do filme Linha de Passe 65
Figura 40 - Frame do filme Linha de Passe 65
Figura 41 - Frame do filme Linha de Passe 65
Figura 42 - Frame do filme Linha de Passe 66
Figura 43 - Frame do filme Linha de Passe 66
Figura 44 - Frame do filme Linha de Passe 67
Figura 45 - Frame do filme Linha de Passe 67





SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 – Narrativa audiovisual como acontecimento em suas relações com a
experiência estética da imagem...................................................................................... 22
1.1 Da dramaturgia ficcional à dramaturgia plástica.......................................................... 22
1.2 Atos narrativos de presentificação .................................................................................. 26
1.2.1 Figural ..................................................................................................................................................... 29
1.3 Ativação da sensibilidade háptica na experiência estética ............................................ 31
CAPÍTULO 2 – Análises críticas a partir de Walter Salles ........................................ 35
2.1 Central do Brasil e a narrativa como acontecimento ..................................................... 35
2.1.1 Análise da cena da romaria de Central do Brasil ..................................................................... 36
2.2 Abril Despedaçado e as plasticidades espaciais da imagem cinematográfica ............... 45
2.2.1 Figural em Abril Despedaçado ....................................................................................................... 46
2.2.2 Experiência de formas e cores em espaço bidimensional ...................................................... 47
2.2.3 Círculo como motivo plástico condutor ...................................................................................... 50
2.2.4 Experiência da intensidade do movimento ................................................................................. 51
2.3 Linha de Passe e os procedimentos fotográficos no cinema .......................................... 59
CAPÍTULO 3 – Intensidades da imagem no cinema contemporâneo ....................... 70
3.1. Vídeo como acontecimento na narrativa de Walter Salles........................................... 70
3.2. Extremidades da imagem no cinema.............................................................................. 80
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 88
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 95


13

INTRODUÇÃO

Meu percurso acadêmico teve início, em 2005, com a graduação em Comunicação


Social, habilitação em Jornalismo, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Em 2006, desenvolvi um projeto de iniciação científica vinculado ao
grupo de pesquisa Jovens Urbanos, do Departamento de Antropologia da PUC-SP, sob
orientação da Profa. Dra. Rosamaria Luiza de Melo Rocha, e com auxílio de bolsa CNPq.
Além de contribuir para minha formação como jornalista, já que eu tinha a atribuição de
produzir conteúdo para o site do grupo – um veículo de divulgação científica –, a
experiência me aproximou da carreira acadêmica e foi importante para minha formação
como pesquisadora.
O interesse pelo estudo dos procedimentos audiovisuais em filmes brasileiros
contemporâneos surgiu durante a elaboração de meu Trabalho de Conclusão de Curso da
graduação em Jornalismo, concluído em 2008. Orientada pela Profa. Raquel Balsalobre, a
pesquisa deu origem ao site Caleidoscópio (http://www.cinecaleidoscopio.com.br), que
traz ensaios sobre filmes nacionais contemporâneos, além de artigos sobre aspectos da
produção, distribuição, circulação de filmes, leis de incentivo cultural e história do
cinema brasileiro.
Após a conclusão da graduação, realizei cursos para complementar minha
formação na área de audiovisual. Entre eles, o curso livre Cinema: História e Linguagem
(2008) ministrado pelo crítico Inácio Araújo e os cursos de extensão universitária Cinema
e Televisão: História e Linguagem (2009) na PUC-SP e Cinema Contemporâneo na
América Latina (2010) no Memorial da América Latina.
A investigação dos procedimentos audiovisuais no cinema brasileiro
contemporâneo ganhou corpo e se aprofundou em minha dissertação de mestrado O
dualismo cidade e campo em Central do Brasil: uma análise da reelaboração da
identidade nacional à luz das teorias pós-modernas, realizada no Programa de Estudos
Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr.
Arlindo Ribeiro Machado Neto. Concluída em 2013 com auxílio da bolsa CAPES, a



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pesquisa traçou pontos de contato entre o longa Central do Brasil e a estética pós-
moderna. Identificou-se no objeto a profusão de citações com inversão de sentido que
funcionam como marcas de distanciamento anti-ilusionistas, o recurso da sobrecarga
(estetismo pronunciado), a centralidade do procedimento da metalinguagem, a negação
da dicotomia erigida pelo modernismo entre alta cultura e cultura de massa – o Great
Divide teorizado por Andreas Huyssen (1986) –, além de seu hibridismo estilístico, já que
o filme mescla drama social, melodrama, aspectos documentais e road movie. A análise
também demonstrou que Central do Brasil abarca diversas características da estética
maneirista.
Atuei profissionalmente, do início da graduação até o final do mestrado, como
repórter, com passagens por diversos veículos, entre eles o site Guia da Semana,
publicações das editoras Abril e Lazuli, além de ter tido experiências como crítica de
cinema. Não só meus trabalhos mais relevantes como repórter se concentram na área
cultural, como minha trajetória nos estudos em audiovisual, e mais especificamente na
análise fílmica, se inicia pelo jornalismo cultural. O período de 2005 a 2013, em que eu
acompanhava de perto a cobertura jornalística e a crítica de cinema realizadas no Brasil,
foi marcante para o desenvolvimento de meus interesses de pesquisa. Salvo algumas
exceções e os casos de publicidade, aprendi que, para um filme brasileiro suscitar debate
na mídia, ele precisa reunir um público expressivo ou ser premiado em festivais. No
primeiro caso, isso faz com que ele ganhe relevância social, no segundo, relevância
artística, o que justifica a cobertura.
Considerando as precárias dinâmicas do setor cultural no Brasil, que verificam-se
no cinema na dificuldade de acesso ao produto cultural pelo público, seja por razões
econômicas ou de acesso à informação, em instabilidades crônicas no fomento e
circulação do filme nacional, entre inúmeras outras, o jornalismo cultural ainda cumpre
um papel na formação de público para o filme brasileiro. Neste cenário, me chamavam a
atenção os filmes (normalmente ficcionais) que conseguiam ser vistos por uma parcela da
população, a ponto de motivarem algum tipo de discussão pública, de caráter social ou
audiovisual. Esses filmes são chamados vulgarmente nos estudos de audiovisual
brasileiros de “filmes comerciais”, termo que sempre achei irônico, dadas as condições
para se ganhar dinheiro com cinema no Brasil. Me interessava compreender, do ponto de


15

vista dos procedimentos audiovisuais, quais estratégias comunicacionais e de
engajamento estavam sendo mobilizadas por aqueles filmes para que a experiência
estética se realizasse.
Entre os filmes com esse perfil que haviam sido lançados por volta daquele
período, os de maior destaque foram Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002) e
Tropa de Elite (2007). Estes três longas tiveram grande cobertura de mídia, público
expressivo, premiações internacionais e grande circulação no mercado estrangeiro. Optei
no mestrado por estudar Central do Brasil, pois o cineasta Walter Salles apresentava uma
carreira mais consistente no cinema do que Fernando Meirelles e José Padilha. Ele já
tinha realizado vários longas metragens, o que me permitia identificar recorrências
temáticas e estilísticas. Além disso, meu acompanhamento de suas entrevistas, da análise
de seus filmes e de sua atuação como produtor audiovisual, por meio da Videofilmes, me
fazia crer que existia nele um desejo de fortalecer o tipo de cinema que me interessava
como pesquisadora: aquele com repercussão na sociedade brasileira.
Após a conclusão do mestrado, em 2014, iniciei minha atuação como professora
em cursos de Comunicação Social e Audiovisual do FIAM-FAAM Centro Universitário.
A experiência como docente em diversas disciplinas impulsionou minhas investigações
nos campos do cinema, da televisão e do vídeo. Neste período, buscando ampliar meus
conhecimentos em artes visuais, realizei o curso História da Arte do crítico Rodrigo
Naves. Também assisti a diversas aulas como ouvinte oferecidas pelo Programa de Pós-
Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA, USP, para ampliar meus
conhecimentos em teoria de cinema e audiovisual.
Retornei ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
da PUC-SP, em 2015, para desenvolver esta pesquisa de doutorado, sob orientação da
Profa. Dra. Christine Pires Nelson de Mello e com auxílio da bolsa CNPq. Essa
investigação propõe a extensão da pesquisa de mestrado, buscando observar no campo da
experiência estética como o fenômeno das intensidades da imagem pode ser
compreendido como um tipo de acontecimento narrativo, a partir do cinema de Walter
Salles. O intuito é contribuir para estudos sobre como as imagens podem ampliar a
experiência sensória. Também em 2015, passei a integrar o grupo de estudos
eXtremidades: Redes audiovisuais, Cinema, Performance e Arte contemporânea,



16

coordenado pela Profa. Dra. Christine Pires Nelson de Mello. O contato com a
abordagem das extremidades de Christine Mello foi importante para posicionar o objeto
de estudo em um lugar descentralizado na história do cinema, buscando uma visão que
desconstrói as linhas clássicas dos estudos de audiovisual no Brasil. O contato com o
livro Extremidades do vídeo (2008a), de Christine Mello, abriu caminho para a inserção,
na pesquisa, de teorias oriundas do mundo da comunicação e da arte que se distanciavam
de formatações clássicas do cinema, o que foi central para o encaminhamento desta
pesquisa.
Esta tese também tem influência do pensamento do Prof. Dr. Philippe Dubois que,
em passagem pelo Brasil, em 2016 ministrou os cursos As plasticidades espaciais da
imagem cinematográfica: transparência (backprojection), sobreimpressão e splitscreen,
na ECA, USP, e Cinema e Fotografia no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc
São Paulo, aos quais tive a oportunidade de assistir.

Walter Salles

O diretor e produtor audiovisual Walter Salles (Rio de Janeiro, RJ, 1956) faz parte da
renovação do ambiente cultural brasileiro pós-redemocratização. Apesar de ser conhecido
principalmente por sua atuação como cineasta, pela qual obteve repercussão internacional,
sua trajetória de mais de trinta anos no audiovisual teve início na televisão. Realizou
publicidade, programas e documentários, sendo um dos pioneiros nas produtoras de vídeo
independentes que surgiram nos anos 1980. A partir dos anos 1990, dedica-se
primordialmente ao cinema.
Cineasta em atividade, Walter Salles realizou, até 2018, dez longas-metragens2, sendo
três deles codirigidos por Daniela Thomas. Central do Brasil (1998) foi o filme que o
projetou dentro e fora do país. O longa é um dos marcos da Retomada3 e foi premiado com o


2
Jia Zhangke, um homem de Fenyang (2014), Na Estrada (2012), Linha de Passe (2008), Água Negra (2005),
Diários de Motocicleta (2004), Abril Despedaçado (2002), O Primeiro Dia (1999, codireção Daniela
Thomas), Central do Brasil (1998), Terra Estrangeira (1995, codireção Daniela Thomas) e A Grande Arte
(1991).
3
Período de restabelecimento da produção cinematográfica nacional impulsionado pela criação da Lei
Rouanet (1991) e Lei do Audiovisual (1993). Apesar de uma definição exata da data padecer de certa
arbitrariedade, autores como Lúcia Nagib (2002) e Luiz Oricchio (2003) consideram que a Retomada foi de
1995 a 2002 e 2005, respectivamente.


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Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1998. O corpus desta pesquisa inclui, ainda, seus
outros dois longas-metragens ficcionais falados em língua portuguesa e produzidos para
exibição cinematográfica: Abril Despedaçado (2002) e Linha de Passe (2008, codireção
Daniela Thomas).
O último trabalho de Walter Salles para o cinema, até o presente momento, é o
documentário Jia Zhangke, um homem de Fenyang (2014), exibido no Festival de Berlim de
2015, sobre o importante cineasta do novo cinema chinês, diretor de Plataforma (2000), Em
Busca da Vida (2006), As Montanhas se Separam (2015), entre outros. O longa foi lançado
juntamente com o livro O Mundo de Jia Zhangke (CosacNaify), escrito pelo crítico de cinema
francês Jean-Michel Frodon e coorganizado por ele e Walter Salles.
No conjunto de seus trabalhos, Walter Salles articula um plano de visibilidade sobre a
experiência contemporânea relacionada às identidades locais, impactos da globalização e o
desamparo. Vale a pena nos determos um pouco sobre a singularidade do desamparo entre os
afetos e suas relações com o acontecimento e a narrativa. O psicanalista Mário Costa Pereira
(2008) afirma que a obra de Freud confere uma evolução teórica ao desamparo, no sentido de

colocá-lo para além de uma simples regressão a uma fase em que o pequeno ser
humano encontrava-se completamente incapaz de sobreviver por seus próprios
meios, de encontrá-lo além das figuras aterrorizantes do superego, para conferir-lhe
um estatuto de dimensão da vida psíquica que indica os limites e as condições de
possibilidade do próprio processo de simbolização (2008, p. 127).

O caráter traumático do desamparo para Freud está ligado à nossa insuficiência para
compreender a grandeza de uma situação de perigo ou de excitação. Em última análise, o
desamparo se relaciona com o descompasso entre a magnitude de um evento e nossa
capacidade de representação sob a forma de um objeto, estando ligado à ideia de desmesura,
de ausência de capacidade de medida4. Em sua leitura do pensamento freudiano, o filósofo
Vladimir Safatle (2016, p. 53) dirá que o desamparo implica sempre o reconhecimento de
uma impotência, pois provoca a suspensão, ainda que momentânea, da capacidade de ação,


4
Interessante observar como estes fenômenos se manifestam nos filmes catástrofe. A esse respeito conferir:
MONTEIRO, Lúcia. L’imminence de la catastrophe au cinéma. Films de barrage, films sismiques.
Thèse de doctorat d’études cinématographiques et audiovisuelles, Université Sorbonne Nouvelle, 2014.



18

representação e previsão. Segundo Safatle, a situação traumática de desamparo indica uma
experiência temporal específica de indeterminação, pois: “Contrariamente ao medo, ou
mesmo à esperança, o desamparo não projeta um horizonte de expectativas que permite aos
instantes temporais ganharem a forma da continuidade assegurada pela projeção do
acontecimento futuro” (ibid. p. 52).
Estando este tema ligado aos debates contemporâneos a respeito das dinâmicas de
reconhecimento social, a filósofa Judith Butler chama atenção para o fato de as relações de
encontro com a alteridade envolverem processos de despossessão e desamparo pelo Outro.
Tal despossessão revela uma vulnerabilidade estrutural aos encontros e uma opacidade a mim
mesmo daquilo que me leva a vincular-me a outros, pois “somos despossuídos de nós
mesmos em virtude de alguma forma de contato com o outro” (ATHANASIOU; BUTLER,
2013, p. 3).
O desamparo é então compreendido como condição para o desenvolvimento de certa
coragem afirmativa diante da violência da natureza despossessiva das relações intersubjetivas
e pela irredutibilidade da contingência como forma fundamental do acontecimento. A
coragem viria de uma aposta na possibilidade de conversão da violência em processo de
mudança de estado. Já que, para Safatle (2016, p. 56), as formas de despossessão ligadas à
insegurança ontológica são modos de libertação.
O teórico de cinema brasileiro Ismail Xavier (2003) chama a atenção para o fato de o
motivo do “encontro inesperado” ser recorrente em roteiros de longas brasileiros dos anos
1990 e 2000 que tematizam questões sociais. Xavier cita três filmes dirigidos por Walter
Salles, Central do Brasil, Terra Estrangeira e O Primeiro Dia, além de produções de outros
diretores, como Os Matadores (Beto Brant, 1997), Como Nascem os Anjos (Murilo Salles,
1996), entre outros, como exemplos de uma tendência de abordagem dramática que “enfatiza
encontros individuais, singularidades e tende a deixar de lado formas narrativas mais
diretamente preocupadas com a exposição de forças histórico-sociais que condicionam a ação
humana”5 (p. 61, tradução nossa). Apesar da propensão a não problematizar politicamente as
complexidades da vida social contemporânea, essas produções elaboram diagnósticos sociais
a partir da configuração de forças relacionadas ao motivo do “encontro inesperado”, que


5
“emphasize individual encounters, singularities, tending to leave aside narrative forms more directly
concerned with the exposure of the social-historical forces that condition human action.”


19

Xavier atribui como aspecto importante no cinema dos anos 1990 e 2000, não só brasileiro.
Mesmo que individualmente esses filmes tendam a optar por abordagens psicológicas ou
moralistas de questões políticas e sociais, o conjunto da produção faz referência à psicologia
de indivíduos permeados por uma sensação de impotência diante de estruturas de poder que
parecem fora de alcance (ibid.).
Podemos observar no roteiro dos filmes analisados neste estudo, Central do Brasil,
Abril Despedaçado e Linha de Passe, que a ocorrência do “encontro inesperado”, lido aqui
como o contato dos personagens com situações de alteridade, é acompanhada por
intensidades no plano da imagem. Nossa análise busca evidenciar que as intensidades são um
dos modos de acontecimento narrativo no cinema, pois a elaboração plástica destas imagens
destoa da construção imagética até então apresentada pelo filme.
A escolha de concentrar a análise em acontecimentos narrativos segue a proposta de
realizar uma leitura não totalizante dos filmes do corpus. Analisaremos pequenos trechos dos
filmes, momentos específicos do trabalho, instantes singulares de planos que, por quebrarem
a lógica até então seguida pela narrativa, têm o poder de ressignificar a experiência
cinematográfica. Estes ruídos, pequenas desestabilizações na imagem em movimento são aqui
lidos como extremidades da imagem cinematográfica no cinema contemporâneo, seguindo a
abordagem das extremidades, criada por Christine Mello em Extremidades do vídeo (2008a).
Esta leitura se contrapõe a visões que buscam as especificidades de determinado meio, como
o cinema ou o vídeo, e privilegia as interconexões entre eles. A análise crítica realizada a
partir desta noção baseia-se nos procedimentos de desconstrução, contaminação e
compartilhamento.
Os acontecimentos narrativos têm como característica uma ênfase no aspecto figural
da imagem. Deste modo, iremos fazer uma análise figural de cenas de Central do Brasil,
Abril Despedaçado e Linha de Passe, filmes que têm sido pensados primordialmente no
campo representacional, para identificar as ocorrências da narrativa como acontecimento
neles.
A narrativa como acontecimento é um estudo de André Parente (2013). No entanto, o
que nos interessa aqui é compreender como o fenômeno estético das intensidades da imagem
pode criar acontecimentos narrativos. Para falarmos disso, desenvolveremos aqui três
aspectos em torno da narrativa audiovisual como acontecimento em suas relações com a



20

experiência estética. O primeiro deles é o plano da dramaturgia ficcional em relação à
dramaturgia plástica, de acordo com o filósofo Jacques Rancière. O segundo trata de atos
narrativos de presentificação a partir das reflexões de André Parente e da teórica de literatura,
cinema e estética Marie-Claire Ropars-Wuilleumier. E o terceiro diz respeito ao plano da
sensibilidade háptica, a partir da leitura do filósofo John Dewey.
A investigação de acontecimentos (também chamados eventos) fílmicos que quebram
o fluxo narrativo recebe outras abordagens. A partir da ideia de permanência e atualização em
filmes atuais do regime de atrações – termo de Tom Gunning e André Gaudreault6 para
designar um certo tipo de endereçamento sensorial ao espectador promovido pelo Primeiro
Cinema –, Scott Bukatman (2006) afirma que esses eventos fílmicos característicos das
atrações interrompem, pela força excessiva das performances dos corpos nas telas, o tecido
narrativo, estando muitas vezes marcados por efeitos cinemáticos de slowmotion e ênfases de
iluminação e cores. Para o autor, essa força reside no excesso ligado à ordem espetacular do
instante, já que as performances dos corpos são passagens e eventos no fílmico, e que, por
isso, constituem um tênue equilíbrio entre a potência domesticadora da narrativa e o prazer
disruptivo e puramente visual da atração.
De sua análise, nos interessa salientar a afirmação a respeito de os eventos fílmicos
virem acompanhados de efeitos cinemáticos de slowmotion e ênfases de iluminação e cores,
algo que também verifico. Porém, enquanto Bukatman atribui à força disruptiva a
performance dos corpos nas telas, defendo que o acontecimento narrativo é uma performance
da imagem enquanto tal.
Outros pesquisadores brasileiros têm se debruçado sobre novos modos de narrar no
cinema contemporâneo. É o caso de Erly Vieira Jr. (2012), que defende a existência de um
realismo sensório, considerado como uma das características centrais do chamado cinema de
fluxo, vertente transnacional do cinema a partir do final dos anos 1990, composta por
realizadores como Hou Hsiao-Hsien, Apichatpong Weerasethakul, Claire Denis, Gus Van
Sant, Lucrecia Martel e Naomi Kawase, caracterizada por uma experiência estética
fortemente calcada no sensorial. Ele utiliza o termo “realismo sensório” para designar um


6
Termo que surge nos artigos “The cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-garde”, de
Tom Gunning, publicado em Wide Angle e “Le cinema des primiers temps: un defi à l’histoire du
cinema?”, de André Gaudreault e Tom Gunning, publicado no periódico japonês Gendai Shiso – Revue de
la pensée d’ajourd’hui, ambos em 1986.


21

outro tipo de contrato sensorial, que opera no âmbito de uma investigação sutil e
microscópica do cotidiano, numa espécie de “real em tom menor”, de poética sussurada,
situado na esfera do comum e do ordinário.
Outra visada interessante para a narrativa no cinema contemporâneo é realizada por
Mariana Baltar (2016). Ela propõe uma ideia de permanência e atualização em filmes atuais
do regime de atrações. Para a pesquisadora, filmes atuais que apresentam inserts, entendidos
como eventos performáticos de corpos que interrompem o fluxo narrativo, convocariam um
certo engajamento afetivo de ordem sensorial e sentimental. Essa abordagem segue a de Scott
Bukatman, mencionada anteriormente, atribuindo grande foco aos corpos filmados.
O interesse do presente estudo está em observar os novos modos de experiência
estética no cinema de grande público, que apresenta dinâmicas diferentes das do cinema de
fluxo, mais ligado à experimentação. A narrativa como acontecimento nos filmes Central do
Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe constitui momentos de exceção, já que eles
permanecem, em grande medida, no registro da representação. Esses instantes promovem
fissuras no tecido narrativo, são momentos em que o tempo se constitui como escritura e,
então, podemos observar ocorrências das intensidades da imagem.



22

CAPÍTULO 1 – Narrativa audiovisual como acontecimento em


suas relações com a experiência estética da imagem

1.1 Da dramaturgia ficcional à dramaturgia plástica

Como os conceitos de dramaturgia ficcional e dramaturgia plástica estão


intimamente ligados na obra do filósofo Jacques Rancière aos regimes representativo e
estético, respectivamente, será necessária uma pequena digressão em que explicaremos os
regimes artísticos históricos estabelecidos pelo autor.
Com o objetivo de fornecer parâmetros de compreensão da arte, Rancière institui
três regimes artísticos históricos: o ético, mais relacionado à antiguidade, o
representativo, ao renascimento, e o estético, à modernidade. Em A Partilha do Sensível,
o autor discute os três regimes, mas, de um modo geral, é possível afirmar que o regime
ético, no conjunto de sua obra, não tem a mesma importância em relação à discussão
sobre a passagem do regime representativo para o regime estético, porque ainda não
encontramos ali propriamente um processo de identificação da arte como tal, mas apenas
um regime que regula o conteúdo de verdade de certas imagens (2014, p. 27). A
delimitação do que se entende no ocidente por arte foi realizada pelo regime
representativo.
No regime representativo, a arte sai do plano das artes mecânicas – que
pressupunham uma atividade voltada para a prática e não para a “estética” – e passa às
artes liberais, em cuja categoria os humanistas italianos colocaram a pintura e a
escultura, dando-lhes nova estatura na hierarquia social em relação ao trabalho artesanal
(2012, pp. 29-30).
À passagem do regime representativo para o regime estético, Rancière chama de
“revolução estética”, o que significa simplesmente a produção de uma equivalência
sensível contra as hierarquias do regime representativo. O regime estético pode ser
entendido como a democracia em matéria de arte (2011, p. 17).
A noção de regime estético é a maneira a partir da qual Rancière compreende a
arte no Ocidente desde o século XVIII. Ela é caracterizada pela ruptura com as


23

hierarquias estabelecidas pelo regime representativo, identificando a obra de arte em sua
singularidade, fora de qualquer gênero ou tema que lhe seria próprio. No Prelúdio de
Aisthesis, pode-se ler:

O termo Aisthesis designa o modo de experiência segundo o qual, há dois


séculos, percebemos coisas muito diversas por suas técnicas de produção e
suas destinações como pertencendo conjuntamente à arte. Não se trata da
'recepção' das obras de arte. Trata-se do tecido de experiência sensível dentro
do qual elas são produzidas. Estas são condições completamente materiais –
lugares de performance e exposição, formas de circulação e de reprodução –,
mas também modos de percepção e os regimes de emoção, categorias que as
identificam, modelos de pensamento que as classificam e interpretam. Estas
condições tornam possíveis que palavras, formas, movimentos, ritmos sejam
sentidos e pensados como a arte. (Rancière, 2011, p. 10)

O regime estético também define os regimes de emoção e os modelos de


pensamento, posicionando, no primeiro caso, a arte como pertencente à esfera da
sensibilidade, o que engendra uma forma de pensar diferente daquelas comandadas
unicamente pela razão – a ciência e a filosofia – e incorpora a intuição e a criatividade
como elementos a serem considerados na formação do conhecimento. A estética liberta o
sensível do acordo que o prende a determinadas regras, como acontece no regime
representativo, o que não significa que com isso ele tenha se tornado o sensorial, ou seja,
uma pura informação ou um puro estímulo produzido pelo sentido. O sensível, ao
contrário, já chega prefigurado pelo sentido, que, engendrando uma relação entre o dito e
o não-dito, o visível e o invisível, é distribuído possibilitando a interpretação, a avaliação,
em suma, o debate em torno dele.
O regime representativo corresponde à esfera das belas-letras e das belas-artes,
que definem as normas de composição e estabelecem as diferenças, respectivamente,
entre os gêneros literários e artísticos: trata-se de definir, no primeiro caso, as regras de
verossimilhança que estruturam a narrativa, cujo objeto central é a ação que produz as
relações causais até chegar a um desenlace final e, no segundo, as regras da composição
artística baseadas na norma do corpo proporcionalmente constituído, cuja totalidade
orgânica é alcançada pela relação harmônica entre as partes e entre as partes e o todo.
Na primeira cena de Aisthesis (2011, pp. 19-40), Rancière analisa uma passagem
de História da arte na antiguidade de Winckelmann, em que é feito o elogio de uma
estátua mutilada. Rancière quer mostrar que ali encontra-se a base para a concepção do



24

regime estético, que consiste em romper com a totalidade orgânica e instaurar o horizonte
da fragmentação que mudou a percepção e construção do sentido da obra arte, como
ocorreu no caso do princípio da montagem cinematográfica.
No que toca ao problema da narrativa literária, dá-se o mesmo processo, uma vez
que a ação também aponta para uma unidade entre princípio, meio e fim por meio da
estrutura conflito, ação e desenlace. À ordem causal representativa, opõe-se, na literatura
no século XIX, uma tendência descritiva que, tal como Rancière aponta no livro O Fio
perdido, deve ser entendida como

[…] a ruptura da ordem representativa e do que estava no seu cerne, a


hierarquia da ação. E esta ruptura está ligada ao que está no centro das intrigas
romanescas do século XX: a descoberta de uma capacidade inédita dos homens
e das mulheres do povo de aceder a formas de experiência que lhes eram até
então recusadas. (2014b, p. 20)

Na descrição, por exemplo, dos objetos de uma cozinha, Rancière observa uma
igualdade sensível que supera o privilégio da ação na narrativa tradicional, uma
igualdade de fragmentos e sensações. Não se busca mais estabelecer uma lógica causal,
em que as partes concorrem para constituir um todo orgânico, mas sim que elas tenham
uma importância equivalente na construção do sentido.
Daí o pensador francês considerar que junto com a literatura, o cinema, ao se
firmar como o puro jogo entre movimento e luz, encarnava, nos seus primórdios, a
promessa do regime estético:

a arte nova das formas visuais em movimento opõe-se à arte da representação,


ou seja, a arte fundada na reprodução passiva de um dado pré-existente. Ele é
performance sem mediação, sem modelo copiado nem texto interpretado, sem
oposição de uma parte passiva e de uma parte ativa. (2011, p. 228)

O regime representativo separou as artes segundo gêneros, o que tornou possível a


criação de regras para o estabelecimento de uma hierarquia entre elas. No regime
estético, por sua vez, diluem-se as fronteiras entre as artes, que se tornam equivalentes e
passíveis de diálogo. Em segundo lugar, trata-se de pensar que o regime representativo
produziu uma hierarquia com relação aos temas que são e não são dignos de serem
representados. No novo regime de fruição instaurado pelo regime estético, surge uma


25

indiferença em relação ao que deve ser tratado. Assim, qualquer tema passa a ser digno
de abordagem.
Por fim, há a questão de saber a quem se dirige determinada obra. Tanto no
regime ético quanto no representativo há uma delimitação do público que pode ou não
fruir a obra de arte. O exemplo é a distinção que Aristóteles faz da tragédia como uma
expressão para os “homens livres” ao passo que a comédia seria a expressão popular. A
partir do regime estético, a obra de arte passa a ser compreendida como um conjunto de
indeterminações que suscita um processo comunicativo do qual nem sequer o autor tem a
palavra final sobre o seu sentido.
Saindo de uma visão histórica da arte e entrando no campo da teoria e crítica,
Rancière aponta que a dramaturgia própria ao regime representativo é a ficcional, e a do
regime estético, a plástica. Apesar de ele vincular os conceitos de dramaturgia ficcional e
dramaturgia plástica a períodos históricos privilegiados, o filósofo mostra que a
dramaturgia ficcional também está presente no regime estético e que estas noções podem
se sobrepor em uma mesma obra. É o caso da análise que ele faz de filmes do
neorrealismo italiano:

Quando Pina, em Roma, cidade aberta (Roma, cittá aperta), escapa de uma
fileira de soldados, que a deveriam ter detido, para se precipitar atrás do
caminhão que leva seu noivo, numa corrida que começa à maneira do
movimento burlesco, para terminar em queda mortal, esse movimento excede,
ao mesmo tempo, o visível da situação narrativa e a expressão do amor. Assim
como a queda no vazio que encerra a corrida errante de Edmund, em
Alemanha, ano zero (Germania anno zero), excede qualquer (não) reação à
ruína material e moral da Alemanha de 1945. Esse movimento faz coincidir
uma dramaturgia ficcional e uma dramaturgia plástica. (Rancière, 2013, p. 18)

Pensando as relações entre a dramaturgia ficcional e a plástica, vistas por ele


como resultado de uma “dramaturgia complexa”, mas desta vez analisando cenas de
filmes do cineasta francês Robert Bresson, Rancière dirá que “A beleza dessas sequências
vem da contradição que o visível traz ao significado narrativo” (2013, p. 18). O que, para
ele, demonstra que a arte da era estética surge depois e desfaz os encadeamentos da arte
representativa (ibid. p. 14).



26

Sendo a dramaturgia estética uma perspectiva crítica, ela pode ser identificada em
qualquer tipo de filme7. Rancière aponta que esse trabalho de extração de uma fábula de
outra, que ele chama de desfiguração, realizado no cinema por Jean Epstein, Deleuze e
Godard, já era praticado pelos críticos de arte do século XIX:

[…] quando extraíam das cenas religiosas de Rubens, das cenas burguesas de
Rembrandt, ou das naturezas-mortas de Chardin, a mesma dramaturgia, em que
o gesto da pintura e a aventura da matéria pictórica eram postos no primeiro
plano, relegando para o plano de fundo o conteúdo figurativo dos quadros.
(ibid. p. 13)

1.2 Atos narrativos de presentificação

Analisaremos a narrativa como acontecimento do ponto de vista do cinema


narrativo no intuito de demonstrar como esse fenômeno introduz uma fissura ou um
desdobramento nas imagens, nos enunciados, nas ações, nos personagens, nos narradores
e nas narrativas produzidas, afetando as imagens, sons e suas relações, criando atos
narrativos de presentificação que não representam ou comunicam um acontecimento,
mas restituem o efeito vivo dos fatos e das falas, restituem suas presenças.
Para isso, recorreremos à visão de André Parente dos processos narrativo-
imagéticos, resultado da crítica a Deleuze. Em sua tese de doutorado, orientada por
Deleuze e publicada no Brasil com o título Narrativa e modernidade: os cinemas não-
narrativos do pós-guerra (2000), Parente pensa os signos da arte sem os reduzir ao
significante e aos processos de significação (representação). O autor busca teorizar a
narrativa cinematográfica sem reduzi-la aos modelos linguísticos e narratológicos
subjacentes às semiologias do cinema e da literatura. Por trás desse modelo, há a ideia de
que a narrativa é representação. No caso do cinema, segundo a semiologia, é a narrativa,
e apenas ela, que nos permite distinguir as unidades (sintagmas) e articulações que eles
expressam nas relações espaçotemporais. A abordagem semiológica implica colocar entre
parênteses os aspectos sensíveis da imagem, em particular o movimento e o tempo,
limitando a imagem a um processo de representação narrativa. O esforço de Parente está

7
Cf. Rancière, A Fábula cinematográfica, p. 11: “os críticos e os cinéfilos que compõem uma obra de
formas plásticas puras sobre o corpo de uma ficção comercial”.


27

em pensar a imagem e a narrativa como acontecimentos que não se confundem com suas
atualizações em estruturas linguísticas (relação significado/significante, significação,
representação de universos originários).
O trabalho de Parente tornou-se referência no campo dos estudos da narratividade
no cinema do pós-guerra. Em 1995, o autor da teoria crítica das mídias Raymond Bellour
em sua conferência de abertura no colóquio O Cinema Segundo Deleuze, faz referência à
essa tese, dizendo que Parente critica Deleuze para mostrar que “a narrativa
cinematográfica, assim como as imagens e enunciados que a compõem, são o resultado
de processos narrativos-imagéticos” (2013, p. 10). Apoiando-se sobre a ideia de “voz
narrativa” em Blanchot e valendo-se do conceito deleuziano de acontecimento, Parente
afirma que “os processos imagéticos discernidos por Deleuze são consubstanciais com os
processos narrativos que condicionam o relato, as imagens e os enunciados que o
compõem” (ibid., p. 10), superando a antinomia postulada pelo filósofo francês.
Em sua reflexão, Parente se debruça sobre os dois modos de subjetivação
presentes no pensamento deleuziano das imagens cinematográficas – imagem-movimento
e imagem-tempo. Segundo Deleuze (2013a), os cinco processos imagéticos responsáveis
pela formação das imagens cinematográficas são, por um lado, a especificação, a
diferenciação e a integração das imagens-movimento e, por outro, a ordenação e a
seriação das imagens-tempo. A imagem-movimento é aquela relacionada ao esquema
sensório-motor, que se especifica em imagem-percepção (o que se vê), imagem-afecção
(o que se sente), imagem-ação (o que se faz) etc. A imagem-movimento se encadeia
conforme o esquema sensório-motor e, ao fazê-lo, integra-se em um todo, mas está
constantemente se diferenciando em objetos, atos e formas de realidade. Normalmente
identificada ao cinema clássico, a imagem-movimento estabelece relações do homem
com o mundo, que vão variar segundo a forma como cada cineasta as conceber.
Já a imagem-tempo, condicionada por processos narrativos de temporalização e
relacionada à narrativa não verídica, distingue-se pela qualidade intrínseca daquilo que
vem a ser na imagem (seriação) e pela coexistência de relações de tempo na imagem
(ordenação). Na narrativa não verídica, o acontecimento não se confunde com sua
realização espaço-temporal.



28

A série (qualidade) e a ordem (coexistência) do tempo rompem com o tempo
cronológico, linear, e promovem outros modos de narração e de narrativa no
cinema. Se, na narrativa verídica, composta de imagens-movimento, tudo
remete a um, na narrativa falsificante da imagem-tempo, existe uma
multiplicidade irredutível que afeta o cinema. (Ibid., p. 267)

Marie-Claire Ropars-Wuilleumier foi a teórica que chamou a atenção para o fato


de que o cinema do pós-guerra tinha se transformado de arte do movimento em arte do
tempo. Para ela, o tempo estava se tornando o personagem principal do cinema e, deste
modo, ele se constituiria como uma escritura, tendo em vista que era necessário ler a
imagem.

Aos olhos do espectador, o tempo é percebido como vivido, à medida que a


representação deixa de ser o suporte de uma ação imediatamente interpretável:
aparecem então as diversas maneiras próprias ao tempo de passar sobre os
seres, conforme as diversas maneiras próprias aos seres de passar no tempo.
(ROPARS-WUILLEUMIER, 1970, p. 132)

De acordo com a autora, no cinema moderno, muda-se de uma estética dramática


para uma narrativa; de uma estética da representação para uma da escritura; de uma
sucessão para uma duração; de uma história para uma narrativa. Ou, para empregar os
termos de Jacques Rancière (2013, p. 18) migra-se do regime representativo (com sua
dramaturgia ficcional) a um regime estético (com sua dramaturgia plástica).
A partir dos processos imagéticos responsáveis pela formação das imagens
cinematográficas estabelecidos por Deleuze (integração, diferenciação, especificação,
ordenação e seriação), Parente acrescenta que o processo de especificação se produz
somente quando existe uma história, que “se manifesta em um campo de tensões e forças,
conforme a distribuição de objetos, obstáculos, meios e desvios que afetam as relações
sujeito/objeto” (2013, p. 263). Para o autor, os processos imagéticos da imagem-
movimento estabelecidos por Deleuze correspondem aos processos de toda narrativa
verídica, sendo esta imagética ou não. Na narrativa verídica, o acontecimento que
constitui a narrativa é apresentado como preexistente a ela, ou seja, ela é apresentada
como se tivesse sido, em um dado momento, presente.
Diferentemente de Deleuze, Parente acredita que os processos de temporalização
são, ao mesmo tempo, imagéticos e narrativos. O que quer dizer que as imagens-tempo
não são primeiras em relação às operações de temporalização narrativas, mas é a narração


29

temporalizante que condiciona tanto as imagens-tempo quanto a narrativa não verídica.
Mesmo que a imagem-tempo suponha homens, situações, histórias, ações, ela supera as
relações sensório-motoras que eles mantêm.

Não há meio de fundar o tempo da imagem, que não se confunde com o


presente abstrato do que é “representado” na imagem (objetos, ações, formas
de realidade e suas relações sensório-motoras), se introduzirmos nela uma
fissura, por meio da qual a narração se desdobra e se torna contemporânea da
ação que descreve. A imagem deve se duplicar ou se abrir em um movimento
infinito que a faça sair da consciência daquele que a percebe ou que age. Essa
operação supõe uma conduta particular de memória, de narração, que se pode
denominar, de acordo com Pierre Janet, de “presentificação”. (Ibid., p. 268)

Ele segue a explicação afirmando que o ato narrativo de presentificação é de


outra natureza e não se confunde com a narração ou com a narrativa de uma ação
presente ou passada. Para Parente, a narrativa como acontecimento só pode existir no
cinema quando se produz um desdobramento no filme por meio do qual a imagem
exprime e afirma o tempo.
Desse modo, a narrativa como acontecimento intensifica a experiência
cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do espectador se identificam. O tempo é
percebido como vivido, e cria-se uma relação entre o espaço da imagem e o espectador.
Para compreendermos o modo como a narrativa como acontecimento se
presentifica podemos pensar na imagem como imagem-espaço, compreendida segundo
Philippe Dubois (2012) como uma articulação entre o espaço na imagem – espaço
representado, figurado, diegético, objetivo – e o espaço da imagem – espaço literal,
figural, da própria imagem –, que é o espaço vivido, do qual o espectador,
fenomenologicamente, tem experiência durante a projeção.

1.2.1 Figural

É longa a tradição a que o termo figural remete nas reflexões sobre a figura e a
figuração, sendo utilizado tanto no campo da linguagem e discurso quanto nas artes
plásticas. Philippe Dubois, no texto “La question des Figures à travers les champs du
savoir: le savoir de la lexicologie: note sur Figura d’Erich Auerbach”, discorre sobre suas



30

diversas acepções. No início do séc. XIX, o historiador da arte francês Elie Faure8
escrevia seu famoso texto sobre “A Cineplástica”, o filósofo Jean-François Lyotard9
publicou Discurso, Figura em 1971, e posteriormente o termo teve contribuições de
outros historiadores da arte como Georges Didi Huberman10, de filósofos como Deleuze
(2007), se configurando em um tipo de análise fílmica praticada por diversos teóricos e
autores contemporâneos na área de audiovisual11.
O interesse desta abordagem para os estudos de audiovisual estaria em um olhar
para as imagens não como representação, mas como presença. O figural sendo um
acontecimento da imagem, uma presença intensiva de sua materialidade.
Nesta pesquisa, adotaremos a sistematização de análise figural proposta por
Philippe Dubois (2012). Alguns termos próprios da análise figural que iremos utilizar e
precisam ser distinguidos são figurativo, figurado, figurável e figural. Da ordem da
figuração visual, figurativo é o que procede da mímese, do trabalho de semelhança, é o
motivo que designa um referente. Da ordem da representação, figurado é o que procede
da construção de um sentido secundário (simbólico, alegórico ou outro); é o produto de
uma operação semântica. O figurado não remete ao motivo (à referência figurativa), mas
à metáfora (portanto, no sentido justamente chamado figurado). Figurável designa a
figuração em potencial; o que não teve acesso à figuração, mas espera por isso. Desta
forma, coloca em questão as condições de aparição e de existência (virtual) da imagem.
Já o termo figural, que, para o autor, está no cerne da plasticidade no cinema, é tudo o
que subsiste em uma imagem quando se retira dela o figurativo (isto é, o motivo
referencial, sua parte iconográfica) e o figurado (a parte retórica). Segundo o próprio
autor,

Processus sempre em devir, o Figural é, portanto, um acontecimento da


imagem, isto é, ele surge sob o modo da fulgurância, revela uma ruptura no
tecido da representação, procede por alteração ou alteridade, e engendra efeitos
imanentes de presença intensiva da matéria. (Ibid., p. 113)


8
FAURE, Elie. “De la Cinéplastique” (1922). Disponível em:
http://classiques.uqac.ca/classiques/Faure_Elie/fonction_cinema/cinemaplastique/Faure_cineplastique.pdf
9
LYOTARD, Jean-François. Discours, Figures. Paris: Klincksieck, 1971.
10
DIDI-HUBERMAN, Georges. Fra Angelico: Dissemblance et Figuration. Paris: Flammarion, 1990.
11
Cf. em L’Analyse figurale de films. De Boeck-Université, col. Arts & cinéma, 2002.


31

Defenderemos que a ênfase na experiência estética das plasticidades da imagem é
um aspecto de desconstrução da imagem cinematográfica pós-vídeo. Com isso, não
queremos dizer que antes do vídeo o cinema não elaborava aspectos figurais da imagem,
mas sim que a partir do impacto do vídeo no audiovisual esse procedimento se
intensifica. Isso se dá devido ao fato de que o vídeo instaura uma mudança nos hábitos
perceptivos dos espectadores, em que o efeito de transparência da imagem dá lugar a uma
percepção dela como produção do visível, como um efeito de mediação (MACHADO,
2011, p. 190).

1.3 Ativação da sensibilidade háptica na experiência estética

Do ponto de vista do pragmatismo, o filósofo americano John Dewey (2010) trará


contribuições importantes sobre a “arte como experiência”. Para o autor, o termo
experiência vai designar a interação constante e necessária estabelecida entre um
organismo e o ambiente, sendo, sobretudo, uma característica físico-natural. A
experiência para Dewey está implicada nas condições e nas dimensões concretas da
relação do indivíduo com o ambiente e, consequentemente, não pode ser caracterizada
por outro aspecto exclusivamente.
Dewey chama atenção para a diferença entre a experiência contínua e uma
experiência singular (grifo do autor). Na primeira, coisas acontecem, uma substitui outra
e somos como que levados pela corrente de um rio, “porque a interação do ser vivo com
as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver” (2010, p. 109). Já a
segunda apresenta “uma unidade que lhe confere seu nome – aquela refeição, aquela
tempestade, aquele rompimento de amizade” (ibid. p. 112). Como a experiência é fruto
da interação, o autor indica que esta última pode ser rotineira, mera repetição, submissa a
convenções práticas e procedimentos intelectuais e, consequentemente, dispersa,
fragmentada. No entanto, quando a interação integra as várias capacidades humanas, ela
pode mobilizá-las livremente, promovendo uma experiência integral, forte, de rara
intensidade.
O filósofo aponta ainda para a importância do “objeto” ou da “obra” da interação,
da qual a experiência é o resultado. Segundo ele, o “objeto” ou a “obra” deve apelar ao



32

sujeito, deve mobilizá-lo de modo a estimular sua percepção estética. A esse respeito,
César Guimarães e Bruno Leal afirmam que:

A ‘experiência’ exige a mobilização sensorial e fisiológica do corpo humano;


ela é uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de percepção e,
portanto, envolve interpretação, repertório, padrões; existe sempre em função
de um ‘objeto’, cuja materialidade, condições de aparição e de circunscrição
histórica e social não são indiferentes. Se a ‘experiência’ é assim cotidiana e
relacional, ela não deixa de ser tensionada pela indiferença e pela intensidade.
(GUIMARÃES; LEAL, 2007, p. 06)

Ao se referir às qualidades sensoriais, tato, paladar, visão e audição, Dewey dirá


que elas têm qualidades estéticas que não se manifestam isoladamente, como entidades
simples e separadas, mas em suas ligações, em sua interação. Nem mesmo as cores só se
relacionam com cores e sons com sons, como na explicação a seguir:

Em um quadro, as cores são apresentadas como sendo do céu, nuvens, rios,


pedras, grama, joias, seda e assim por diante. Nem mesmo o olhar
artificialmente treinado para ver a cor como cor, separada das coisas que as
cores qualificam, consegue isolar as ressonâncias e transferências de valor
decorrentes desses objetos. (2010, p. 239)

Isto se dá pois “a ação de qualquer dos sentidos inclui atitudes e predisposições


que se devem ao organismo inteiro” (ibid. p. 240). Essa afirmação é particularmente
interessante no que tange aos estudos de cinema e audiovisual, devido à centralidade e
isolamento em que a visão é colocada nas análises fílmicas.

Não é apenas o aparelho visual, mas o organismo inteiro, que interage com o
meio em todos os seus atos […]. O olho, o ouvido ou seja lá o [sentido] que for
é apenas o canal pelo qual a resposta total ocorre. Uma cor vista é sempre
qualificada por reações implícitas de muitos órgãos, tanto os do sistema
simpático quanto os do tato. É um funil para toda a energia investida, e não sua
fonte. As cores são suntuosas e ricas simplesmente porque nelas está
profundamente implicada uma ressonância orgânica total. (grifo do autor, ibid.
p. 240)

A implicação disso para a experiência cinematográfica é que nela as qualidades


ópticas são indissociáveis das táteis e afetivas, devido à tendência intrínseca dos sentidos
de se expandirem. Já que, para Dewey, “qualquer qualidade sensorial, por suas conexões
orgânicas, tende a se espalhar e a se fundir” (ibid., p. 146), ativando experiências


33

anteriores. A singularidade da experiência estética está, portanto, no fato de que o
organismo que reage na produção do objeto experimentado apresenta tendências de
observação, desejo e emoção moldados por experiências anteriores. O papel do artista na
modulação de qualidades que acionam excitação afetiva, seja de serenidade ou
pungência, deste ponto de vista, é explicado por Dewey por meio de uma citação de
Albert Barnes12:

Há em nossa mente, em solução, um vasto número de atitudes afetivas, de


sentimentos prontos a serem reavivados quando chega o estímulo adequado, e,
mais do que qualquer outra coisa, são essas formas, esse resíduo da
experiência, que, mais plenas e mas ricas do que na mente do homem comum,
constituem o capital do artista. O que é chamado de magia do artista reside em
sua capacidade de transferir esses valores de um campo da experiência para
outro, de ligá-los aos objetos de nossa vida comum e, por meio desse
discernimento criativo, tornar esses objetos pungentes e momentosos.
(BARNES, 1928, Apud DEWEY, 2010, p. 234)

Ser afetado por uma imagem cinematográfica diz respeito, deste ponto de vista, ao
modo como o material de uma experiência passada, que se transpõe para as atitudes do
presente, funciona em conexão com o material fornecido pelos sentidos, gerando um
aumento e individualização da experiência atual. “O alcance de uma obra de arte é
medido pelo número e variedade de elementos de experiências passadas que são
organicamente absorvidos na percepção do aqui e agora.” (DEWEY, p. 241).
Dos muitos modos que uma experiência cinematográfica pode nos afetar,
ressaltamos, neste estudo, os acionamentos do corpo do espectador pela imagem; ou mais
especificamente, da sua sensibilidade háptica, que designa a capacidade tátil do corpo de
entrar em contato com o ambiente por meio de afetações indiretas nas fibras nervosas,
tecidos da pele, músculos e pelos (SANTAELLA, 2005, pp. 77-78). Relacionada à
sensação de pressão, textura, vibração, essa sensibilidade possibilita uma forma intensiva
de sensorialização do corpo no espaço.
Podemos falar também em visualidade háptica, entendida segundo Laura Marks
(2000) como o modo como certas imagens podem ativar o tato, a partir da memória
cultural e sensória de cada espectador, por meio da valorização de texturas de objetos


12
BARNES, Albert. The Art in Painting, 2. ed. rev. Nova Iorque: Harcourt, Brace and Co., 1928, p. 31.



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normalmente filmados de perto. Desse modo, a sensibilidade háptica está ligada à
capacidade que as imagens possuem de ampliar a experiência sensória.


35

CAPÍTULO 2 – Análises críticas a partir de Walter Salles




Neste capítulo realizaremos análises críticas de sequências de três longas-
metragens que compõem o corpus do presente estudo: Central do Brasil, Abril
Despedaçado e Linha de Passe. O critério para seleção dos trechos foi a presença de
atravessamentos das intensidades da imagem na narrativa audiovisual, momentos em que
as imagens e sons se tornam mais plásticos, corpóreos. Em Central do Brasil,
observaremos a cena da romaria. Em Abril Despedaçado, analisaremos três sequências: a
de abertura do filme, a em que o personagem Tonho assassina o irmão da família rival e a
em que Tonho gira Clara em uma corda indiana. Já em Linha de Passe, a cena estudada é
a de uma festa que acontece na casa de um dos amigos do personagem Bruno.

2.1 Central do Brasil e a narrativa como acontecimento

Figura 1 – Monóculo com foto.

No texto “As virtualidades da narrativa cinematográfica” (2013), André Parente


apresenta uma crítica interna ao sistema-cinema criado pelo teórico francês Gilles
Deleuze, especialmente às relações entre o virtual e a narrativa, instância entendida por
Deleuze como condicionada à imagem. Parente defende que não existe oposição entre
imagem e narrativa, e sim entre concepções diferentes desses dois conceitos: uma afirma



36

que ambos são sistemas de representação e outra que são acontecimentos. Ele busca
mostrar que a narrativa também é acontecimento, e não apenas representação.
Analisaremos a cena da romaria do longa-metragem Central do Brasil (1998) de
Walter Salles a partir do conceito de acontecimento de Parente. Para além de seus
aspectos representacionais tradicionalmente estudados, pretendemos demonstrar que a
narrativa do filme também se configura como acontecimento em planos dotados de maior
plasticidade.

2.1.1 Análise da cena da romaria de Central do Brasil

Podemos verificar o estatuto da narrativa como acontecimento no filme Central


do Brasil. Nessa produção, uma narrativa não verídica apresenta a história de Dora,
professora aposentada, cujo trabalho é escrever cartas para analfabetos na estação de trem
do Rio de Janeiro que dá título ao longa. Ela resolve acompanhar o garoto Josué em uma
viagem para Bom Jesus do Norte, Pernambuco, em busca do pai, depois que a mãe do
menino morre atropelada nos arredores da estação. O argumento do filme tem diversos
pontos de contato com o roteiro de Alice nas Cidades (Wim Wenders, 1974).
Apesar de Central permanecer, em grande medida, no registro da representação,
podemos notar fissuras em sua narrativa, momentos em que o tempo se constitui como
escritura e, então, podemos observar ocorrências da narrativa como acontecimento.
Em diversas passagens do filme, observamos momentos de suspensão do estatuto
da representação, mas uma delas é particularmente interessante, pois coincide com o
ponto de virada da narrativa. Trata-se da cena da romaria no Nordeste, que tecnicamente
é marcada pelo virtuosismo de sua fotografia, conhecida pelo fato de grande parte da
fonte de iluminação ser proveniente de velas.
Caracterizada como uma personagem cínica, Dora aos poucos vai revelando sua
bondade como consequência de sua aproximação com Josué. Esse arco dramático de
ressensibilização tem como ápice o transe religioso da personagem em meio a fogos de
artifício, velas e ladainhas da romaria, que culmina no desmaio de Dora na Casa dos
Milagres, espécie de templo em que religiosos acendem velas e deixam imagens de
familiares aos santos. O termo ressensibilização é utilizado pelo diretor (em entrevista a


37

BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 17.) para explicar essa mudança na trajetória
da personagem. Interessante observar sua escolha lexical, já que o termo sensibilização
também é empregado em referência ao processo de formação de imagens na película
fotoquímica. Veremos, em seguida, que esse aspecto da materialidade do cinema está
presente na cena como um índice metalinguístico.
Lúcia Nagib (2006, p. 74) identifica essa sequência como uma citação de Glauber
Rocha às avessas. Se, nos filmes do cinemanovista, o transe religioso assumia o sentido
de crítica à alienação, no longa de Salles, produz o “milagre da revelação”. A opção
lexical de Nagib pela palavra revelação a respeito do cinema de Walter Salles tampouco
nos parece casual, já que a poética do cineasta inclui a visão do cinema como revelação ‒
um pensamento defendido pelo teórico francês André Bazin, que associava o realismo
cinematográfico à noção espiritual de “revelação”, fruto da concepção de uma ligação
ontológica entre a película e o objeto representado. “O cinema torna-se um sacramento;
um altar onde uma espécie de transubstanciação toma lugar” (STAM, 2010, p. 95). A
abordagem de Bazin caminha na direção do conceito de arte defendido por Walter
Benjamin em seu famoso texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”,
publicado em 1935. O autor observa que se atribui à arte um valor de culto e, dessa
forma, ela ocupa o lugar de uma prática ritualística nas sociedades secularizadas.
Após essa breve contextualização, realizaremos análise fílmica desse trecho do
longa, com o objetivo de identificar nele atos narrativos de presentificação. A cena inicia-
se no registro da representação: Dora corre atrás de Josué, que se perdeu na multidão de
romeiros, e acaba entrando na Casa dos Milagres. A luz e a imagem são o leitmotiv
(motivo condutor) dessa cena, como podemos ver nos frames abaixo.



38

Figura 2 – No início da cena, nota-se a ênfase nos pontos de luz das velas dos romeiros, e o templo ao
fundo.

Figura 3 – Bem iluminada, a imagem da Virgem Maria com o menino Jesus ocupa o centro do plano.


39

Figura 4 – Plano aproximado da imagem da Virgem Maria com o menino Jesus e pontos de luz ao fundo.

Figura 5 – Dentro da Casa dos Milagres, inúmeras fotografias tornam-se visíveis pela iluminação de velas.

Um aspecto importante desse trecho do filme, como mencionamos, é seu caráter


metalinguístico. Nagib considera que o foco na materialidade da imagem, conferida pelas
fotografias em Central do Brasil, seria uma herança de Wim Wenders:

A fotografia, ícone por excelência, segundo Peirce, graças a seu elo físico com
a natureza, é presença constante nos filmes de Wim Wenders, pelas quais os
personagens pretendem, sem jamais conseguir, obter a prova do real. (2006, p.
74)



40

São as velas que iluminam a romaria noturna, e é graças a elas que Dora pode ver
as imagens religiosas e as fotografias nas paredes da Casa dos Milagres. Dessa forma,
Salles cria visualmente uma metáfora do dispositivo cinema: uma sala escura em que a
luz projetada revela imagens que sensibilizam a retina (e a visão de mundo, em última
análise) do espectador. É interessante apontar que o cineasta articula conscientemente
esta relação luz-cinema-cena romaria e, inclusive, a traz a público em entrevista após a
premiação do filme no Festival de Berlim, em 1998. Em suas palavras: “Que mais filmes
brasileiros surjam, e que eles sejam, como na romaria de Central, abençoados pela luz
que mais alumeia” (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 40).
Voltando à análise da cena, temos um plano subjetivo da personagem que está
prestes a desmaiar: é uma imagem desfocada simulando o efeito de uma visão turva. Em
seguida, seu rosto é tocado por diversas fotos 3x4, cujo formato remete à película
cinematográfica.

Figura 6 – O plano subjetivo de Dora na Casa dos Milagres contém diversas fotos 3x4.


41

Figura 7 – Plano subjetivo de Dora mais aproximado e desfocado.

Figura 8 – Plano subjetivo de Dora.



42

Figura 9 – Contraplano do rosto de Dora sendo tocado pelas fotos 3x4.

Intercalam-se, então, planos de fogos de artifício em que a luz desenvolve


trajetória circular, e planos subjetivos da personagem desmaiando, em que a câmera
também realiza movimento circular.

Figura 10 – Plano de fogos de artifício. Destaque para a luz desenvolvendo trajetória circular e pontos de
luz ao fundo.


43

Figura 11 – Plano de fogos de artifício na romaria.

Utiliza-se novamente o recurso da montagem paralela para relacionar planos da


personagem desmaiada no chão a planos de mais fogos de artifício. A cena termina em
um plano aproximado de uma imagem da Virgem Maria com o menino Jesus pendurada
em um estandarte, seguida por um fade out. Os frames abaixo ilustram esse percurso.

Figura 12 – Plano de fogos de artifício. Destaque para a plasticidade da luz.



44

Figura 13 – Plano de Dora desmaiada.

Figura 14 – Plano aproximado de imagem da Virgem Maria com o menino Jesus em estandarte e pontos de
luz ao redor.

O plano subjetivo, que traz uma imagem desfocada, prepara a quebra no registro
da representação nessa cena. O regime da narrativa como acontecimento é instaurado
pelo plano dos fogos de artifício, em que a luz desenvolve trajetória circular. Isso
acontece porque a imagem do círculo de luz, dotada de grande plasticidade, promove
uma pausa na categoria do tempo como um presente abstrato do que é “representado” ‒
objetos, ações, formas de realidade e suas relações sensório-motoras ‒ e funda outra
temporalidade, enfatizando o aspecto da imagem como escritura. Nesse instante, o efeito
de transparência é reduzido drasticamente em detrimento de uma percepção dela como


45

produção do visível, como um efeito de mediação. Portanto, podemos observar nesse
plano uma ocorrência da narrativa como acontecimento, já que ele não comunica um
acontecimento, mas restitui o efeito vivo da luz e, por decorrência, da experiência
cinematográfica, presentificando essa experiência para o espectador.
Buscamos demonstrar, por meio da cena da romaria, que o filme Central do
Brasil apresenta, simultaneamente, dois modos de narração: o representacional e o dos
atos de presentificação. Além disso, propomos que o plano em que predomina a
plasticidade da luz em formato circular possa ser lido como aquele que instaura a
narrativa como acontecimento na cena, de acordo com a concepção de Parente.
Esse plano, visto como um ato de presentificação, introduz uma fissura na
representação das ações até então colocadas, promovendo um desdobramento nas
imagens. A dobra instaurada pelo acontecimento narrativo abre uma multiplicidade de
relações possíveis entre os espectadores e essa imagem fílmica. Uma perspectiva de
leitura que apresentamos para essa cena é a metalinguística. Desse ponto de vista, o
sentido que se produz é o do cinema como um dispositivo capaz de sensibilizar os
espectadores e transformar seus modos de ver o mundo a partir de um pensamento desta
arte como revelação.
Além do campo da hermenêutica, a narrativa como acontecimento intensifica a
experiência cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do espectador se identificam. O
tempo é, assim, percebido como vivido, e cria-se uma relação entre a luz projetada ‒ o
princípio do dispositivo cinematográfico ‒ e o espectador.

2.2 Abril Despedaçado e as plasticidades espaciais da imagem cinematográfica




46

Figura 15 – Retrato pintado.

A ênfase na experiência estética das plasticidades espaciais da imagem é um


aspecto de desconstrução da imagem cinematográfica pós-vídeo. Para verificar de que
modo procedimentos audiovisuais associados à perda do efeito de tridimensionalidade e à
desfiguração produzem acontecimentos de imagem, entre eles, experiências de cores,
formas e texturas, iremos fazer uma análise figural de cenas do longa-metragem Abril
despedaçado, que tem sido pensado primordialmente no campo representacional. A
análise das três cenas que faremos a seguir busca identificar os aspectos figurais da
imagem, relacionando-os com os planos narrativo e retórico do filme, já que, no projeto
poético de Walter Salles, esses aspectos estão em articulação permanente.

2.2.1 Figural em Abril Despedaçado

Abril Despedaçado narra a rivalidade entre duas famílias, cujos membros juram
vingança e travam duelos que se perpetuam ao longo de gerações, em um ciclo sem fim
de matança. Trata-se de uma adaptação livre do romance homônimo do escritor Ismail
Kadaré (Gjirokastër, Albânia, 1936) para o sertão nordestino dos anos 1910. Em pesquisa
realizada pela produção do longa (BUTCHER; MÜLLER, 2002), verificou-se que, na
ocupação do território do Sertão do Inhamuns, microrregião do Ceará, vários crimes de
sangue foram motivados por vendetas semelhantes às descritas por Kadaré.


47

Na adaptação, Tonho (Rodrigo Santoro), filho do meio da família Breves, é
impelido pelo pai (José Dumont) a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima da luta
ancestral entre famílias pela posse da terra. Se cumprir sua missão, Tonho terá sua vida
partida em duas: os vinte anos que ele já viveu, e o pouco tempo que lhe restará, já que
passará a ser perseguido por um membro da família rival, como dita o código de vingança
da região. Angustiado pela perspectiva da morte, e instigado por seu irmão menor, Pacu
(Ravi Ramos Lacerda), Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição.
Nas pausas da rotina do extenuante trabalho no decadente engenho familiar de cana-de-
açúcar, vemos o personagem em situações de conflito de ideias e sentimentos. O
surgimento de um pequeno circo itinerante na região muda essa dinâmica. Os momentos
de convívio com a dupla circense, especialmente com a trapezista Clara, trazem poesia e
lirismo à vida de Tonho.
Apesar de Abril Despedaçado permanecer, em grande medida, no campo do
figurativo, da representação, podemos notar fissuras em sua narrativa, momentos em que
o figural se impõe. Selecionamos três cenas nas quais esse fenômeno pode ser observado.
Na primeira, o figural é obtido por um procedimento de fotografia. A baixa
iluminação e a profundidade de campo reduzida da cena geram a perda do efeito de
tridimensionalidade do espaço diegético, e a ênfase plástica recai sobre a experiência das
formas e cores. Na segunda, trata-se de um travelling que acompanha a corrida de Tonho
atrás de um dos filhos da família rival para matá-lo. A sequência, que se passa em uma
vegetação árida, apresenta o efeito de desfiguração, conferindo à imagem uma textura
áspera. Na terceira, Tonho gira a trapezista Clara em uma corda e, pelo procedimento de
aceleração da imagem, temos novo episódio de desfiguração, que produz experiências de
formas, cores e texturas na imagem.

2.2.2 Experiência de formas e cores em espaço bidimensional

A primeira cena que analisaremos é a da abertura do filme. Após um letreiro em


fundo preto que localiza a narrativa no aspecto espaçotemporal (“Sertão brasileiro,
1910”), vemos a silhueta de uma pessoa com chapéu de couro andando à noite em meio a



48

uma vegetação árida e céu da cor azul royal. A cena é composta por dois planos médios
montados em campo/contracampo, com a primeira tomada do personagem de frente e a
segunda de costas. A cena tem baixa iluminação e pouca profundidade de campo; o foco
está no personagem e o fundo é desfocado.

Figura 16 – Ênfase plástica da primeira cena do filme recai sobre formas, linhas e cores no espaço
bidimensional.

Figura 17 – Contracampo do plano anterior.

Pela banda sonora, descobrimos tratar-se de uma criança. Seu andar é pontuado
pelo som do pé no chão e há uma música instrumental. Em voz off, Pacu, irmão mais
novo da família Breves, apresenta-se. A locução enfatiza o sotaque regional e os desvios
da norma culta. O narrador fala sobre a existência de duas histórias, sendo que ele não
consegue se lembrar de uma delas por causa da outra que ocupa sua mente: a história de


49

sua família. Uma mistura de elementos realistas e fabulares, em uma sequência que dá o
tom que irá permear o restante da obra.
Um espectador menos atento provavelmente não notará nada de especial nessa
abertura. Os aspectos formais que apontaremos também podem passar despercebidos
mesmo aos críticos de cinema e analistas acadêmicos acostumados a pensar o cinema de
Walter Salles apenas do ponto de vista realista. Porém, um olhar atento aos aspectos
figurais da imagem revela que há na sequência uma fissura na representação da ação que
promove um desdobramento na imagem.
O primeiro elemento que salta aos olhos é a indefinição das feições do
personagem. Devido à baixa iluminação da cena, vemos apenas sua silhueta em preto. Ou
seja, o personagem se apresenta como forma, não como figura. O mesmo acontece com a
vegetação, que se dá a ver por meio de linhas pretas que decoram o fundo azul. Em
seguida, chama atenção o azul royal do céu, tonalidade artificial obtida em processo de
pós-produção, que contrasta com os parâmetros realistas que o filme parece seguir. As
escolhas cromáticas no restante do filme reiteram esse artificialismo, o que nos faz crer
que seja deliberado.
Outro aspecto importante nesta leitura figural é a elaboração espacial da cena.
Apesar da imagem cinematográfica ser bidimensional, sabe-se que o esforço para a
manutenção da tridimensionalidade do espaço diegético é condição fundamental para o
ilusionismo requerido pela narração. A cena em questão promove uma suspensão do
efeito de tridimensionalidade por meio da profundidade de campo reduzida. Desta forma,
a imagem-espaço, em sua materialidade, revela-se ao espectador.
Ao observarmos a cena nos atendo aos aspectos plásticos apontados,
especialmente à baixa profundidade de campo, à forma preta em primeiro plano e às
linhas pretas no fundo azul, teremos uma experiência estética de formas e cores no
espaço bidimensional da imagem. Considerando que o cinema é tido como a arte do
tempo e do movimento, podemos pensar que as soluções plásticas dessa cena visam
aproximar a experiência cinematográfica das sensações mais frequentemente exploradas
pelas artes visuais.



50

2.2.3 Círculo como motivo plástico condutor

São diversos os contrastes explorados em Abril Despedaçado. Do ponto de vista


narrativo, observam-se as polarizações entre arcaico e moderno, desejo e submissão,
destino e liberdade. Do ponto de vista formal, as cores vermelha e azul, a reta e o círculo,
imobilidade e movimento, realismo e fábula. Um dos motivos plásticos principais do
filme é o círculo, utilizado como solução formal para a lógica opressora da vendeta entre
famílias. A apresentação figurativa privilegiada dessa forma é a bolandeira – tipo de
engenho comum no século XX – utilizada pela família Breves para a produção de
rapadura. Privilegiada, pois, assim como um eixo, ela norteará as demais variações
plásticas dessa forma ao longo do filme. Sua configuração lembra um relógio de
ponteiros ou as engrenagens de um instrumento de tortura medieval.
A segunda cena de Abril Despedaçado, em que as plasticidades da imagem
cinematográfica se presentificam, retrata a corrida de Tonho atrás de um dos filhos da
família rival para cobrar o sangue do irmão morto. As disputas por território que
vitimizam indistintamente os filhos homens das duas famílias são elaboradas no plano
formal pelo procedimento da desfiguração dos personagens na paisagem. Esse elo trágico
dos personagens com o espaço geográfico que os esvazia de suas identidades se faz ver
plasticamente.
A passagem inicia-se com um travelling da esquerda para a direita, que segue os
personagens em uma vegetação árida. Porém, curiosamente e sem justificativa narrativa
aparente, a direção do movimento dos personagens se inverte, e passamos para um
travelling da direita para a esquerda. Portanto, mesmo correndo em linha reta, essa
mudança de direção do movimento faz com que os personagens acabem voltando ao
ponto inicial. Desta forma, atribui-se a essa corrida para a morte a circularidade da lógica
da vingança familiar. Por correrem em paralelo e serem filmados de lado, os corpos dos
personagens se sobrepõem momentaneamente, em outra elaboração formal da ideia de
um mesmo destino trágico que os une. De beleza plástica notável, a aceleração da cena
promove ainda a desfiguração progressiva dos personagens, cujos contornos se
confundem com a textura áspera e os tons terrosos da imagem.


51

Figura 18 – Travelling da esquerda para a direita.

Figura 19 – Travelling da direita para a esquerda, após inversão da direção do movimento.

2.2.4 Experiência da intensidade do movimento

Por criar uma possibilidade de liberdade, o amor entre Tonho e Clara representa
uma quebra do ciclo de vingança ao qual o personagem está submetido. Apesar de haver
uma cena de sexo entre os personagens na parte final do longa, o momento em que Tonho
gira a trapezista Clara na corda indiana é a verdadeira cena de amor do filme, segundo
Walter Salles (BUTCHER; MÜLLER, 2002, p. 180). A passagem é uma referência à
trapezista Marion de Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders (STRECKER, 2010, p.
115), personagem que exprime a fragilidade da vida por meio de seus movimentos
acrobáticos delicados.



52

Nessa cena de Abril Despedaçado, a estrutura circular se repete, mas desta vez
subvertendo o sentido opressor da bolandeira, e propondo o círculo como sonho e utopia.
Essa sequência, tecnicamente uma das mais difíceis do filme, contou com uma equipe de
maquinistas portugueses. Para os objetivos desta análise, nos concentraremos na
descrição de seis planos da cena (P1, P2, P3, P4, P5, P6), que são aqueles em que Clara
aparece girando. O primeiro (P1) é um plano geral de Clara na corda para situar
espacialmente o espectador.

Figura 20 – Plano geral de Clara na corda indiana (P1).

Depois, temos uma variação mais aproximada desse plano (P2).

Figura 21 – Variação aproximada (P2).


53

E, novamente, uma variação mais aproximada (P3), em que o efeito de
desfiguração começa a ser percebido.

Figura 22 – Variação mais aproximada em que a desfiguração se torna aparente (P3).

A desfiguração se intensifica no plano mais aproximado da cena (P4). Os três


próximos frames ilustram alguns dos diversos ângulos do corpo de Clara recortados pelo
enquadramento, em efeito caleidoscópio. Importante salientar, na concepção técnica desta
sequência, a parceria da direção de arte com a direção de fotografia. A escolha de um
vestido de renda para o figurino de Clara favorece a formação de texturas na imagem em
um plano aproximado.
Transpondo o pensamento de Deleuze (2007) sobre a desfiguração/deformação
nas artes visuais para o contexto cinematográfico em questão, diríamos que esse plano
abre mão da figuração e das formas para fazer ver a força e a intensidade do movimento.
Para Deleuze, a tarefa da arte, seja ela qual for, é captar forças, tornar visíveis as
forças invisíveis, ou, na formulação do pintor Paul Klee, “não apresentar o visível, mas
tornar visível” (p. 62). Por isso, Deleuze diz que nenhuma arte é figurativa, mesmo
utilizando figuras. No esforço de captar forças, os artistas se deparam com outro
problema, o da decomposição e da recomposição dos efeitos da profundidade, das cores e
do movimento. Ele chama a atenção para o fato do movimento ser “um efeito que remete
ao mesmo tempo a uma força única que o produz e a uma multiplicidade de elementos
decomponíveis e recomponíveis sob essa força” (p. 63). É por isso que a apresentação do



54

movimento envolve procedimentos de deformação na figura, no corpo. Sobre o
procedimento de deformação, ele afirma que

Quando uma força se exerce […] ela não dá origem a uma forma abstrata, […]
ao contrário, ela faz dessa uma zona de indiscernibilidade comum a várias
formas, irredutíveis a qualquer uma delas, e as linhas de força que ela faz passar
escapam de toda forma por sua própria nitidez, por sua precisão deformante.
(DELEUZE, 2007, pp. 64-65)

Figura 23 – Rastros de ângulos do corpo de Clara recortados pelo enquadramento (P4).

Figura 24 – Variação de P4.


55

Figura 25 – Variação de P4.

Em seguida, temos uma vista em contraplongée (angulação em que a câmera


filma o objeto de baixo para cima) em que Tonho divide o quadro com Clara.

Figura 26 – Em contraplongée, Clara gira e Tonho observa seu movimento (P5).

Finalmente, surge o plano considerado o de mais difícil realização do filme, que


corresponde ao clímax dessa cena, da narrativa como um todo e, inclusive, comporta a
acepção sexual do termo, já que, como apontamos, a cena pode ser lida como uma
metáfora do ato amoroso13. Nele, a câmera é presa à corda, um pouco acima da posição
da atriz, com a lente voltada para baixo. O azul claro do céu dá lugar aos tons terrosos do
chão nessa plongée (vista de cima para baixo) dos rastros de Clara. Essa configuração
espacial cria uma inversão da lei da gravidade, já que a personagem parece flutuar.


13
Esse sentido é enfatizado pela fala de Clara, “Roda mais, Tonho. Mais. Mais. Roda mais”, seguida de
uma longa risada, enquanto se escuta a respiração ofegante de Tonho.



56

Inversão formal que potencializa o sentido narrativo de quebra da lei familiar
anteriormente apontada.
A imagem como acontecimento se impõe em diferentes texturas, formas
espiraladas e gradação de tons terrosos, do marrom ao bege. Grande parte de sua força e
lirismo é consequência da solução técnica da cena. O fato da câmera-corpo estar presa na
corda faz com que seu movimento seja impulsionado pela mesma força que move a
atriz/personagem Clara, que diegeticamente corresponde à força de Tonho. Como as
imagens captadas são afetadas por essa força, elas apresentam a inscrição do tempo na
imagem. O resultado dessa operação, ao mesmo tempo técnica, plástica, poética e
narrativa, é um momento de grande lirismo. Esse plano condensa a visão poética de
Salles de que, na experiência cinematográfica, técnica, plasticidade da imagem e
narrativa são forças indissociáveis.

Figura 27 – Em P6, câmera em plongée se movimenta junto com a atriz, criando uma relação entre a força
que impulsiona o movimento e as imagens captadas.

O efeito de montagem em fusão dos planos P6 e P7 reforça esse sentido por meio
da sobreposição de imagens.


57

Figura 28 – Efeito de montagem em fusão P6-P7.

Por fim, temos um plano (P7) que é uma versão de P3 com o céu azul escuro,
representando o sol poente, para indicar a passagem do tempo.

Figura 29 – O céu azul escuro em P7 indica a passagem do tempo.

A análise figural de três cenas do longa Abril Despedaçado buscou evidenciar


diferentes modos de exploração das plasticidades espaciais da imagem cinematográfica
no filme. Vimos como a primeira cena promove experiências estéticas de formas e cores
evidenciando a bidimensionalidade da imagem.
No segundo caso, após a identificação do círculo como motivo plástico principal
do filme, utilizado como solução formal para a lógica opressora da vendeta entre
famílias, analisamos como uma corrida em linha reta produz uma impressão de
circularidade por uma inversão da direção do movimento dos personagens, filmados em



58

travelling. Verificou-se também como os efeitos de sobreposicão dos corpos dos
personagens, sua progressiva desfiguração e indistinção na textura áspera da imagem
contribuem para identificá-los como vítimas da lógica trágica da vingança entre famílias.
Já na terceira cena procuramos mostrar como a estrutura circular se repete, porém
com uma leitura reelaborada, segundo a qual a carga opressiva da bolandeira dá lugar ao
círculo como sonho e utopia. A lei da gravidade suspensa no plano em plongée, que
funciona como metáfora do ato amoroso, afirma a potência libertadora do afeto. As
diferentes texturas, formas espiraladas e gradação de tons terrosos são rastros da inscrição
do tempo na imagem nessa experiência de movimento intensivo.
A análise procurou demonstrar o efeito vídeo como uma extremidade da imagem
cinematográfica. Ele pode ser notado na desconstrução da relação ilusionista com a
imagem, em que a narrativa representacional sustenta um determinado estatuto de
realismo. O cinema pós-vídeo propõe, então, uma experiência estética da narrativa como
acontecimento, criando zonas fronteiriças entre as plasticidades da imagem e a narrativa.
Desta forma, observa-se a contaminação de procedimentos poéticos entre essas duas
formas artísticas, como a perda do efeito de tridimensionalidade e a desfiguração. Já o
compartilhamento pode ser percebido na opção pela manutenção dos estatutos
representacionais e narrativos aliada a momentos de quebra desses regimes, em que o
figural ganha proeminência.
Nesse sentido, vale a pena fazer um resgate histórico e lembrar a busca dos
pintores de paisagem moderna descrita por Nelson Brissac Peixoto (2004). Para ele, o
domínio das nuvens na pintura marca um questionamento do dispositivo perspectivo
clássico, libertando o pintor dos critérios habituais de identificação, semelhança e
significação: “Se Cézanne tem uma dívida, não é com a paisagem como motivo realista
ou como organização de formas. É com ‘alguma coisa’ que lhe pode vir aos olhos, uma
qualidade de cromatismo, um timbre colorido” (p. 146).
Desta forma, a possibilidade de experimentar diretamente o acontecimento torna-
se a investigação dos pintores de paisagem modernos, em detrimento do controle das
formas.

Procurar a realidade sem ter outro guia senão a natureza na impressão imediata,
sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a


59

perspectiva ou o quadro. É esse mundo primordial que se quer pintar [...]. A
hierarquia clássica dos componentes da pintura – desenho, depois cor – é
invertida. (ibid. pp. 143, 147)

Da mesma forma que nas artes visuais a figuração dá lugar ao “motivo” (para
Cézanne), à figura (para Deleuze), defendemos que esse fenômeno pode ser observado no
cinema contemporâneo. Certos cineastas partem de uma realidade já imagética para
capturar forças, explorar tatilidades, sensorialidades, intensidades. A narrativa como
acontecimento sendo esse instante de crise e contaminação que promove outro regime de
fruição, mais corpóreo.

2.3 Linha de Passe e os procedimentos fotográficos no cinema

Figura 30 – Foto 3x4 para reconhecimento da identidade.

Linha de passe designa a troca de passes entre os jogadores de um time sem que a
bola seja interceptada pelo adversário. O título do filme que analisaremos e sua estrutura
dramática se valem desse jargão do futebol para narrar a história de uma família da
Cidade Líder, bairro periférico da zona leste de São Paulo. A mãe e os quatro filhos
procuram equilibrar sobrevivência e manutenção dos valores, sem desistir da realização
dos sonhos. Reginaldo, o caçula, tenta obstinadamente encontrar o pai. Aspirante a
jogador de futebol, Dario 14 vê, aos dezoito anos, suas possibilidades no esporte se


14
Este personagem é interpretado por Vinícius de Oliveira, ator que protagonizou Central do Brasil.



60

fechando. Dinho é um frentista que busca refúgio na religião. Dênis, o irmão mais velho
que ganha a vida como motoboy, flerta com a criminalidade enquanto se esforça para
manter o filho, fruto de uma gravidez não planejada. A família é chefiada por Cleuza,
empregada doméstica, grávida do quinto filho.
A sequência que investigaremos trata de uma festa que acontece logo após Dario
participar de um campeonato de futebol no condomínio em que sua mãe trabalha. O filho
da patroa de Cleuza, Bruno, convida-o para um jogo amador com seus amigos, sabendo
de suas habilidades profissionais. As opções fílmicas desse trecho buscam ressaltar que a
diferença de classe marca o encontro entre o universo de Dario e o de Bruno. Regada a
drogas e álcool, essa festa, realizada na casa de um dos amigos de Bruno, um imóvel
chique, com piscina, tem como contraponto outra festa desse mesmo filme, organizada na
casa de Dario em comemoração aos seus dezoito anos.
Essa diferença de classe que marca as experiências de um jovem da periferia e um
da elite é trabalhada na composição fotográfica das cenas. O contraste de luz e sombra
caracteriza as duas festas, porém, enquanto na de Dario a luz é amarelada, na do amigo
de Bruno, a luz é branca e superexposta. Dessa forma, o excesso e a carência de luz são a
elaboração plástica da desigualdade social vivida pelos personagens.
A sequência da festa do amigo de Bruno é dividida em três momentos. No
primeiro, o clima é de animação leve, os personagens começam a dançar, beber e tomar
uma mistura de drogas que estava sendo preparada. Como vemos nos frames abaixo, a
cena se inicia desfocada, com a forma de duas personagens femininas dançando, e nota-
se o contraste de luz e sombra.


61

Figura 31 – A sequência inicia desfocada, com a forma de duas personagens dançando. Nota-se o contraste
de luz e sombra.

Figura 32 – Um pequeno movimento de câmera enquadra uma tela na parede, cujo tema é uma ilusão
anamórfica. Aqui temos a cenografia antecipando o acontecimento de imagem que virá a seguir.

O segundo momento corresponde ao pico de intensidade da sequência. Na banda


sonora, a música eletrônica alta embala uma frenética dança dos personagens. É quando
observamos o acontecimento de imagem – graças a um procedimento que detalharemos
posteriormente –, e as anamorfoses15 estão mais pronunciadas.


15
Arlindo Machado (1993) explica que o termo anamorfose surge no século XVII para designar uma
técnica, já praticada no século anterior, de perverter os cânones da perspectiva geométrica do Renascimento.
Com o passar do tempo, o termo passa a fazer referência a qualquer distorção do modelo realista, segundo
o entendimento renascentista, de representação figurativa. De uma técnica, passou a uma poética de
abstração, um mecanismo de produção de ilusão de ótica e uma filosofia de falsificação da realidade.



62

Figura 33 – Nesse trecho da sequência, observamos o acontecimento de imagem. Ênfase nas anamorfoses.

Figura 34 – Outro quadro de anamorfose.

Figura 35 – Destaque para a textura e para o procedimento fotográfico que marca a inscrição do tempo na
imagem.


63

Figura 36 – Variação do quadro acima.

Figura 37 – Elaboração plástica da desigualdade social trabalhada no roteiro, a forma do personagem


Dario é marcada pelo contraste de luz e sombra.



64

Figura 38 – Resultado plástico do procedimento fotográfico: distorção da luz em sentido circular.

No terceiro momento, o ritmo começa a desacelerar, e um tom contemplativo


ganha espaço. Vemos Dario ir à cozinha para beber água e, em seguida, seu olhar voyeur
se perde na dança erotizada dos casais na sala. A superexposição da luz é mais
pronunciada quando Dario entra na cozinha; nesse trecho os diversos reflexos da luz
também são explorados. O procedimento fotográfico dessa sequência, concebido e
realizado por Mauro Pinheiro Jr., incluiu uma alteração na correia da câmera, que
diferente de seu funcionamento tradicional, expôs o negativo enquanto ele estava em
movimento. Como o negativo distorce a imagem em situações de superexposição da luz,
o resultado deste processo é a ampliação dos diversos pontos de iluminação da cena e a
distorção da luz em sentido circular. Esse recurso cria rastros do movimento da luz na
imagem, gerando diversos tipos de anamorfoses.


65

Figura 39 – Cena de Dario na cozinha, em que a superexposição da luz é marcante.

Figura 40 – Versão distorcida do quadro acima.



66

Figura 41 – Plano subjetivo de Dario, em que vemos os casais dançando. À direita do quadro, observa-se a
intensificação do reflexo da luz no vidro na mesa.

Figura 42 – No contracampo da cena acima, a ampliação do reflexo da luz na garrafa também chama a
atenção.

Figura 43 – Contraste de luz e sombra na imagem do casal dançando.


67

Figura 44 – Destaque para a textura e o procedimento audiovisual que promove a inscrição do tempo na
imagem.

Figura 45 – Detalhe do efeito de ampliação do reflexo da luz em um copo.

Analogamente à sequência da Casa dos Milagres do filme Central do Brasil, o


contato de Dario com a alteridade, elaborado plasticamente pela intensidade da luz, tem
como consequência uma experiência de morte e renascimento para o personagem. Ele se
dá conta, pela primeira vez, de que o sonho de se tornar jogador de futebol poderia se
realizar caso ele pertencesse a outra classe social. Assim como Dora, Dario desmaia após
ser sensibilizado pela luz. Essa experiência cinematográfica, ao mesmo tempo imagética
e narrativa, produz novas formas de subjetividade tanto nos personagens como nos
espectadores.



68

Porém, enquanto Dora vivia uma espécie de transe religioso, Dario está sob o
efeito de drogas. Esse estado de consciência alterado é utilizado como pretexto para outra
elaboração plástica das imagens que se apresenta simultaneamente aos efeitos
fotográficos apontados. Trata-se de um acontecimento de quebra do movimento fluido
dos quadros fílmicos, mais evidente no segundo trecho da sequência. Ele é obtido por
meio da filmagem de alguns planos com velocidade alterada para seis e doze frames por
segundo. Sabe-se que o dispositivo cinematográfico funda-se na ilusão de movimento
gerada pela apresentação sequencial de quadros estáticos. Ao explorar o efeito de salto
entre as imagens, em que se percebem os quadros estáticos, esse trecho do filme promove
uma experiência de desconstrução do dispositivo cinematográfico. Esse fenômeno marca
uma das ocorrências da narrativa como acontecimento em Linha de Passe.
Apesar de esse filme permanecer, em grande medida, no registro da
representação, podemos notar fissuras, momentos em que o tempo se constitui como
escritura e, então, instaura-se a narrativa como acontecimento. O segundo momento da
sequência da festa quebra o registro da representação. O regime da narrativa como
acontecimento é instaurado pelo procedimento de quebra do movimento fluido dos
quadros fílmicos. Isso acontece porque a percepção dos quadros fixos promove uma
pausa na categoria do tempo, como um presente abstrato do que é “representado” –
objetos, ações, formas de realidade e suas relações sensório-motoras –, e funda outra
temporalidade, enfatizando o aspecto da imagem como escritura.
A grande plasticidade da luz nesses quadros, fruto das elaborações fotográficas
mencionadas, passa a constituir o interesse principal da experiência estética da cena.
Nesse instante, o efeito de transparência é reduzido drasticamente em detrimento de uma
percepção da imagem como produção do visível, como um efeito de mediação. Portanto,
podemos observar nesse trecho uma ocorrência da narrativa como acontecimento, já que
ele não comunica um evento, mas restitui o efeito vivo da luz e, por decorrência, da
experiência cinematográfica, presentificando essa experiência para o espectador.
Um modo de leitura que propomos para essa sequência é: como o contato com a
alteridade, mediado pela experiência cinematográfica, pode produzir novas formas de
subjetividade. Isso ocorre devido ao procedimento audiovisual fotográfico descrito, que


69

cria zonas fronteiriças entre as plasticidades da imagem e a narrativa. Esta relação tem a
potência de produzir novos modos de subjetividade.



70

CAPÍTULO 3 – Intensidades da imagem no cinema


contemporâneo

Neste capítulo observaremos como as intensidades da imagem no cinema podem


ser lidas como um ponto de extremidade da experiência cinematográfica na
contemporaneidade. Para isso, recorreremos à abordagem das extremidades de Christine
Mello (2017, 2008a).

3.1. Vídeo como acontecimento na narrativa de Walter Salles

Se é de caráter duvidoso afirmar que a realização cinematográfica possa ter sido,


em algum momento, inocente, sem dúvida, na contemporaneidade, é impensável
conceber qualquer exercício de encenação que não leve em conta seu lugar na história das
formas. Os cineastas são, em sua maioria, profissionais com sólida formação intelectual,
oriundos das universidades. Os públicos, por sua vez, são cada vez mais conscientes. E
eles têm à disposição na internet um banco de dados audiovisual que supera, em volume e
diversidade, qualquer cinemateca. Com seu centenário, o cinema apresenta uma
linguagem e circuito estruturados – com seus gêneros, técnicas, parque exibidor e
festivais. Ao mesmo tempo em que busca espaço e a reinvenção de suas formas na
relação com seus pares audiovisuais - a televisão e o vídeo.
Esse contexto que acabamos de descrever começa a tomar forma por volta dos
anos de 1980, década na qual Walter Salles dá início a sua produção. Neste momento, a
ideia de uma “morte do cinema” era sentida por diversos realizadores. O documentário
Quarto 666 (1982) de Wim Wenders utiliza esta atmosfera como mote, reunindo
cineastas como Werner Herzog, Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Steven
Spielberg, entre outros, para responder à pergunta: o cinema é uma linguagem em vias de
desaparecimento, uma arte que está morrendo? A discussão encontrou eco na academia,
Philippe Dubois (2011), Arlindo Machado (2011) e Raymond Bellour (2012) foram
alguns dos teóricos que analisaram o tema.
Neste período, Arlindo Machado observa que a popularização da imagem
eletrônica por meio da televisão e dos meios eletrônicos em geral mudava os hábitos


71

perceptivos dos espectadores em relação a uma ontologia da imagem (2011, p. 190).
Ocorre que, na passagem da imagem fotoquímica para a eletrônica, o efeito de
transparência da imagem foi reduzido drasticamente em benefício de uma percepção dela
como produção do visível, como um efeito de mediação (MACHADO, 2011, p. 190).
Prosseguindo seu raciocínio, Machado afirma que a imagem fotoquímica –
consistente, estável e realista – projetada de modo a produzir a sensação de movimento
dá continuidade ao modelo de imagem construído no Renascimento, marcado pela
reprodução mimética do visível. Essas características técnicas favoreceram a vinculação
do cinema à função de representação, assim como à função narrativa, já que esse tipo de
imagem é ideal para a manutenção do ilusionismo necessário ao processo narrativo. Em
oposição, a maleabilidade da imagem eletrônica, diz o autor, a faz mais suscetível às
transformações e anamorfoses, estando mais próxima, portanto, da distorção,
desintegração e abstração das formas e da instabilidade dos enunciados.
Não buscamos com isso criar uma dicotomia entre esses dois tipos de imagem,
nem endossar uma visão essencialista de que toda imagem fotoquímica visa à
transparência16 e toda imagem eletrônica à opacidade. Entendemos que essas diferenças
estão ligadas aos modos de fruição, a tipos de experiências estéticas favorecidas por essas
imagens. Apesar de o cinema experimental problematizar a ilusão de transparência da
imagem fotoquímica desde os primórdios do cinema, acreditamos que a disseminação da
imagem eletrônica populariza essa desconstrução, operando uma mudança nos hábitos
perceptivos dos espectadores.
Gilles Deleuze, em “Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem”, texto
de 1986, relaciona as três funções da imagem cinematográfica definidas pelo crítico de
cinema francês Serge Daney em A rampa (2007) a seus conceitos de imagem-movimento
e imagem-tempo. Se a imagem-movimento pode ser expressa na questão “o que há para
ver por trás da imagem?” e a imagem-tempo na questão “o que há para ver na imagem?”,
o teórico aponta para a insuficiência desses conceitos para lidar com os filmes que
surgiam nos anos 1970 e 1980. Ele defende, em diálogo com Daney, a existência de um
terceiro estado da imagem, que ele define como:

16
Conceitos de Ismail Xavier (2005), transparência se refere à operação cinematográfica em que o
dispositivo é ocultado em favor de um ganho maior de ilusionismo; já a situação de opacidade seria quando
o dispositivo é revelado, gerando maior distanciamento e crítica.



72

[…] quando não há mais nada para ver por trás dela [da imagem], quando não
há mais muita coisa para ver nela ou dentro dela, mas quando a sempre
imagem desliza sobre uma imagem preexistente, pressuposta quando “o fundo
da imagem é sempre já uma imagem”, indefinidamente, e que é isto que é
preciso ver. […] a tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual…), nem
um quadro-plano (no qual…), mas uma mesa de informação sobre a qual as
imagens deslizam como “dados”. (DELEUZE, 2013, pp. 101-102, grifo do
autor).

A constatação sobre esse novo estado da imagem é compartilhada por outros


autores, como aqueles relacionados à teoria crítica das mídias, como Philippe Dubois
(2011, pp. 181-182), que considera o pós-vídeo uma nova fase histórica do cinema, “em
que os efeitos (estéticos) do vídeo estão de tal modo integrados ao filme que […] o
cinema contemporâneo teria se transformado, globalmente, em um ‘efeito vídeo’”.
Buscamos defender, em diálogo com estes autores, que a poética de Salles é
marcada pelo advento do vídeo e seus impactos no campo do audiovisual. Em sua
produção propriamente videográfica, como o documentário Krajcberg – O Poeta dos
Vestígios (TV Manchete, 1987), Salles explora uma temporalidade distendida, planos
abertos e produção sofisticada, trazendo aspectos da experiência estética cinematográfica
para a televisão. Em sua produção para o cinema, a influência do vídeo não é tão
evidente, pois acreditamos que ela se apresenta enquanto um fenômeno maior, uma
desconstrução que o vídeo traz ao audiovisual como um todo.
Como mencionamos acima, lemos o impacto do vídeo no audiovisual em seu
papel de promover uma mudança nos modos de fruição da imagem, que podem ser
verificados em uma valorização de seu aspecto espacial, literal, figural, da imagem em si,
em detrimento de uma visão da imagem como representação de um estado de coisas que
lhe é externo. Propomos, aqui, seguindo o pensamento de Arlindo Machado e Christine
Mello, que um dos desvios que o vídeo produz no cinema é uma alteração na experiência
estética com a imagem. Detalharemos esses aspectos a seguir.
A ressignificação que o vídeo oferece à experiência cinematográfica pode ser
analisada por meio dos procedimentos de desconstrução, contaminação e
compartilhamento, que são a base da leitura das extremidades desenvolvida por Christine
Mello (2008a). Trata-se de uma abordagem crítica que dá visibilidade a procedimentos


73

criativos híbridos e descentralizados, que propiciam a interconexão entre diferentes
linguagens.
O interesse por esta abordagem se relaciona com o local em que Salles se insere
no cinema brasileiro. Visto como um cineasta internacional que propõe uma imagem
globalizante e afetuosa do sertão, a produção de Salles situa-se nas bordas do que seria
uma imagem canônica de Brasil: aquela apresentada por Glauber Rocha e os
cinemanovistas. A este respeito, o pesquisador Fernando Mascarello (2006) vai afirmar
que há uma “continuidade do glauberianismo como cânone estético-teórico nos estudos
brasileiros de cinema” (2006, p. 129). É a partir de um território descentralizado que
Walter Salles busca ressignificar as visões de país e a imagem cinematográfica.
Segundo Mello, o procedimento da desconstrução envolve práticas de
desmontagem de um significado para se obter outro: evoca a negação do próprio meio e a
necessidade de expansão de seus limites criativos. “A corrente desconstrutiva pretende
que a apreensão da realidade se dê pela experiência sensória, sendo o processo de
descoberta nela dimensionado como campo de testagem e experimentalismo”, afirma a
autora (2017, p. 14). Neste sentido, há um interesse em observar a experiência com a
imagem em seu aspecto de presença e em suas relações com o corpo do espectador, suas
potências de acionamento sensório. Este modo de leitura se baseia em um entendimento
de que os aspectos da imagem como representação e produção de sentido são
hegemônicos no contexto do audiovisual.
Sendo assim, buscamos chamar a atenção para o fato de que uma das
possibilidades de perceber as figuras do vídeo no cinema contemporâneo está na
desconstrução que determinadas sequências de filmes promovem no estabelecimento de
uma relação ilusionista com a imagem. Nestas sequências, há uma suspensão da narrativa
representacional, que sustenta, no cinema, um determinado estatuto de realismo, em favor
do convite a uma experiência estética da narrativa como acontecimento. Estes pequenos
instantes dos filmes, quando vivenciados na relação com as demais partes dos longas aqui
analisados, de característica predominantemente representacional, têm o interesse de
intensificar a experiência cinematográfica, por seu apelo ao corpo do espectador. Isto
porque a ênfase nos aspectos plásticos presente nestas sequências contribui para o
acionamento do sentido háptico humano.



74

Estas ocorrências são lidas aqui como pontas extremas dos longas-metragens
analisados, por sua capacidade de ressignificar a experiência com a imagem no cinema na
contemporaneidade.
Já o procedimento da contaminação, de acordo com Mello, diz respeito a
estratégias criativas que se associam a outros campos artísticos, afetando as linguagens
em diálogo. Diversos procedimentos audiovisuais utilizados no cinema contemporâneo
podem ser considerados apropriações de estratégias videográficas. Philippe Dubois
(2011, pp. 181-182) cita como exemplo desta tendência o retorno da câmera lenta e da
imagem congelada; a revalorização da sobreimpressão; o gosto pela imagem dividida,
multiplicada, incrustada; as deformações ópticas ou cromáticas; a insistente referência
visual às outras artes e à própria história do cinema.
Por fim, a abordagem das extremidades identifica o procedimento do
compartilhamento como aquele relacionado às transformações na produção, recepção e
distribuição audiovisuais. Aqui, é importante chamar a atenção para o fato de que o
contexto de produção dos três longas que compõem o corpus deste estudo – dois deles
lançados nos anos 2000 e um deles em 1998 – é marcado pelo advento do cinema digital.
A substituição progressiva do uso da película como suporte técnico de gravação
dos filmes para o suporte digital trouxe uma série de mudanças à indústria
cinematográfica. Houve as transformações de ordem técnica, como o surgimento de
novas câmeras e a necessidade de adequação das salas de cinema, mas também existiram
reorganizações nos modos de produção, destacando os procedimentos de registro e
edição. O desenvolvimento de sensores nas câmeras digitais no mesmo formato e
tamanho de um filme com 35mm proporcionou uma reorganização dos fluxos de trabalho
e as produções puderam ser realizadas a custos muito menores do que aqueles praticados
com o suporte fotoquímico. Esta mudança tecnológica impulsionou, na cadeia
cinematográfica, uma substituição do uso do suporte fotoquímico pelo digital. Isto não
quer dizer que ainda hoje não se realizem filmes em película, mas estamos observando
aqui uma transformação tecnológica da indústria do cinema em geral.
Além da transformação do suporte de filmagem, outro fator teve um enorme
impacto nos modos de fruição e circulação de conteúdos audiovisuais neste período. No
Brasil, os anos 2000 foram marcados pela disseminação da internet, por meio da


75

popularização da banda larga. A possibilidade de se fazer downloads de filmes, o
surgimento de serviços de streaming e o compartilhamento de vídeos pelas redes sociais
são apenas alguns dos inúmeros fenômenos audiovisuais que as redes digitais
propiciaram. Em suma, os anos 2000 foram um período de profunda reorganização na
produção, recepção e distribuição audiovisual.
Considerando que o escopo desta tese é a experiência cinematográfica, nos
debruçaremos sobre os impactos da substituição, na cadeia do audiovisual, da película
pelo digital nos modos de fruição da imagem. Com as câmeras digitais, pela primeira vez,
a produção de uma imagem de altíssima qualidade, comparável àquela da película, se
tornava acessível à população com certo poder aquisitivo. Este fato abalou o lugar de
prestígio e distinção que a imagem cinematográfica ocupava até então. Houve, entre
muitos cineastas atuantes neste período, um resgate e afirmação da materialidade da
imagem de caráter analógico, que se manifestava de diversos modos. A opção por filmar
em película sendo um deles.
A imagem numérica também trouxe um aumento considerável das possibilidades
de manipulação e construção da imagem em comparação com a imagem fotoquímica. Por
esta razão, a popularização desta nova imagem técnica abalou uma das bases que
sustentavam a relação ilusionista com a imagem associada à experiência cinematográfica:
a vinculação entre o suporte fotoquímico e a realidade filmada.
Neste contexto, podemos compreender as intensidades da imagem no cinema
narrativo como uma forma de aumentar o engajamento dos espectadores para o cinema.
Por meio de contatos com a materialidade da imagem, ênfase em suas texturas e
granulações, a experiência cinematográfica se torna mais corpórea, convocando a um
engajamento afetivo de ordem sensorial e sentimental.
A relação corpórea com a imagem a que nos referimos se dá por meio de
acionamentos na sensibilidade háptica daquele que interage com ela. Cada tipo de suporte
da imagem (fotoquímico, eletrônico ou numérico) propiciará contatos físicos distintos
com o espectador. Uma vez que varie a natureza técnica do suporte, o registro da luz nele
se dará de diferentes modos. Ou seja, a materialidade da imagem influi na experiência
estética. Imagens fotoquímicas, eletrônicas ou numéricas acionam o corpo dos



76

espectadores diferentemente, já que a experiência estética com a materialidade da
imagem se efetua sensorialmente.
O contato com as imagens por meio da percepção física de sua textura depende do
acionamento de alguns procedimentos audiovisuais. São eles os responsáveis por
promover acontecimentos de imagem, sendo as intensidades da imagem um de seus tipos.
O advento do vídeo favoreceu este tipo de experiência, pois aumentou a pluralidade de
texturas imagéticas no campo do audiovisual. Basta pensarmos na textura gerada pelas
varreduras de uma imagem videográfica, no ruído provocado pela granulação em preto e
branco de uma imagem de televisão sem sinal ou nas barras de cores (color bars) de um
canal sem transmissão.
O cinema, mesmo aquele encontrado no circuito das salas convencionais, se
apropria destas texturas amplamente. No campo do chamado cinema de autor, o austríaco
Michel Haneke e o canadense David Cronenberg são alguns dos realizadores que
exploram de forma inventiva as características das diferentes imagens técnicas. O filme
Caché (Haneke, 2005), premiado pela direção no Festival de Cannes no ano de seu
lançamento, pode ser lido como um filme sobre o impacto do advento do vídeo no
audiovisual. A história explora as reações de um casal de classe média parisiense ao
receber vídeos anônimos com imagens da porta de sua casa, filmadas com câmera parada.
Os personagens se sentem ameaçados e acreditam estar sofrendo perseguição.
No decorrer deste longa somos expostos a tomadas que reproduzem a mesma
aparência das imagens registradas por câmeras de vigilância (câmera estática e plano
sequência), incluindo cenas em que vemos o efeito de uma rebobinagem tal como as
realizadas em fitas de VHS. Este mesmo efeito está presente em Violência Gratuita
(Haneke, 2007), um filme sobre a relação sádica que a audiência estabelece com imagens
de violência. Nesta produção, uma família em férias é surpreendida por dois jovens
psicopatas. Eles mantêm a mulher, o marido e o filho como reféns, submetendo-os a um
jogo de perversão, violência e humilhações.
Em Happy End (2017), Haneke problematiza a autoria das imagens na era do
digital: o longa começa com três vídeos curtos feitos por celular - os selfies - filmados na
vertical, intercalados por créditos do filme. A narrativa desta produção gira em torno dos
conflitos pessoais dos membros de uma família de empreiteiros em Calais, na França, que


77

tenta evitar ações judiciais dos empregados que foram vítimas de um desmoronamento. A
sequência inicial explora também a textura granulada da imagem de baixa definição do
celular em relação às imagens de alta definição cinematográficas do restante do filme.
Além disso, brinca com a imagem vertical do selfie e o quadro horizontal do cinema.
O jovem cineasta canadense Xavier Dolan explorou recurso semelhante em
Mommy (2014), vencedor do prêmio do júri do Festival de Cannes de 2014. Em uma das
sequências deste filme, que emula a estética de um videoclipe, vemos, ao som da música
Wonderwall do Oasis, os personagens em uma janela de proporção 1:1. A narrativa
aborda a conturbada relação de Steve, um adolescente portador de TDAH (Transtorno de
Déficit de Atenção com Hiperatividade), com sua mãe e uma vizinha, que acaba se
tornando sua professora particular. No meio da sequência, o garoto empurra a lateral do
quadro e, como consequência de seu gesto, a proporção da janela muda, aumentando-a
para 1.85 : 1. Vale dizer que as proporções de tela (aspect ratio) mais usuais encontradas
no circuito de cinema comercial são de 1.33: 1 e 1.85 : 1. Este acontecimento de imagem
é utilizado como elaboração formal para o instante de liberdade vivido por Steve
narrativamente. O procedimento de ampliação da janela faz com que ela passe de um
quadrado (do formato das imagens do Instagram, por exemplo) para um retângulo,
aumentando o campo visual dos espectadores e as perspectivas do personagem.
Nos anos de 1980, o cineasta David Cronenberg aborda os impactos da televisão e
do vídeo na sociedade em Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1983). Trata-se de uma
ficção científica que, por meio de um enredo metafórico, pensa a relação física dos
humanos com televisores de tubo de raios catódicos, fitas VHS e aparelhos de
videocassete. Há sequências de penetração física destes objetos nos personagens e vice-
versa.
O brasileiro Walter Salles incorpora a imagem televisiva desde Terra Estrangeira
(codireção Daniela Thomas, 1995), um marco do período da Retomada. Neste filme de
ficção, o único que aborda diretamente o governo Collor, há a reprodução da transmissão
do anúncio do confisco das poupanças realizada pela então ministra Zélia Cardoso. Esta
imagem, um acontecimento histórico da TV ao vivo, é apresentada em um preto e branco
granulado, fruto da baixa definição, contrastando com a fotografia do restante do filme.



78

Em Central do Brasil, também assistimos a uma transmissão televisiva, desta vez
trata-se de uma propaganda de um programa popular do SBT, o Topa Tudo por Dinheiro.
Mas, neste filme, o pensamento sobre as imagens técnicas está presente principalmente
na plasticidade de algumas sequências. Retomando a análise da cena da romaria,
realizada no segundo capítulo, gostaríamos de aprofundar um aspecto de nossa leitura,
apresentando uma reflexão sobre as imagens técnicas, de caráter analógico e digital17.
Como descrevemos, a fonte de luz principal desta cena é de velas dos romeiros e, em
seguida, de fogos de artifício. Além disso, temos a Casa dos Milagres como uma
metáfora do cinema: uma sala escura em que as diversas imagens, incluindo fotografias,
são vistas graças à iluminação de velas. Uma análise das plasticidades da imagem desta
cena, organizadas por sua decupagem, nos faz ver um caminho da luz do analógico (luz
proveniente do fogo das velas) para o digital (fogos de artifício).
Mencionamos anteriormente que a textura das imagens fotoquímicas nos gera
uma sensação de realismo, assim como a textura das imagens eletrônicas favorecem um
contato mais direto com a materialidade da imagem devido a suas características de
distorção e abstração das formas. A textura da imagem digital, por sua vez, nos remete à
artificialidade. Isto acontece, pois a plasticidade de cada tipo de imagem técnica é
resultado de seus processos próprios de formação. Desta forma, a aparência da imagem
digital é marcada por processos de formação que envolvem codificação e decodificação
numéricas.
Além disso, as inúmeras possibilidades de manipulação na pós-produção que a
imagem digital permite, fazem com que os elementos e objetos da realidade captados pela
câmera sejam submetidos a novos procedimentos criativos e de escrita realizados por
profissionais de outras áreas, como o design gráfico. Uma imagem digital permite a
criação de cores, texturas, perspectivas e realidades independentes daquelas registradas
na captação, portanto, artificiais. O momento da gravação das imagens se torna, então,
menos decisivo em relação a uma filmagem em película. A imagem fotoquímica retém
mais a presença do corpo e de seu movimento, assim como os acontecimentos da
filmagem. Desta forma, a imagem digital é ideal para filmes que precisam de efeitos
especiais, que utilizam computação gráfica para baratear custos de produção, como

17
Gostaria de agradecer à pesquisadora Lúcia Monteiro por esta sugestão de leitura.


79

gravações em cenários difíceis ou que exigem a criação de mundos fantásticos, e na
realização de animações, por exemplo. Na imagem digital, como tudo se torna um dado
numérico, uma informação digital, a possibilidade de manipulação destas informações
aumenta, isto traz como característica uma perda de seu aspecto indicial.
A este respeito, vale a pena trazermos um exemplo de manipulação da imagem
fotoquímica de uma cena analisada no segundo capítulo. A cena inicial de Abril
Despedaçado é realizada por meio do efeito de noite americana. Trata-se de um efeito
fotográfico, e não digital, em que uma cena noturna é filmada à luz do dia de modo com
que ela pareça ter sido filmada à noite. Esta técnica evita o uso de iluminação artificial.
Caso a cor do céu desta mesma cena tivesse sido obtida por processos digitais, a textura
da imagem seria diferente. O mesmo acontece na cena da festa de Linha de Passe. Os
acontecimentos de imagem daquela sequência são frutos de procedimentos analógicos, de
caráter fotográfico. Por esta razão, a inscrição da luz nos quadros pode ser um
acontecimento de imagem, pois trata-se do registro de um processo fotoquímico, fruto do
contato da película com determinada intensidade da luz no set.
Os espectadores estabelecem relações afetivas com os suportes. A geração a qual
eles pertencem pode influenciar o tipo de experiência estética com o mesmo suporte. Um
exemplo disso está nos vídeos caseiros feitos em Super 8mm e VHS que, devido à baixa
definição, imprimem granulações específicas nas imagens geradas. Pelo fato destes
suportes terem sido acessíveis para uso doméstico no passado, quando vemos hoje
imagens em VHS ou Super 8mm sentimos nostalgia, são imagens que nos evocam um
tipo de afetividade típica dos encontros familiares, imagens da memória.
O documentarista João Moreira Salles vai se valer deste tipo de relação que
estabelecemos com as imagens de baixa definição na elaboração da narrativa visual de
Santiago (2007) e de No Intenso Agora (2017). Em Santiago, o documentarista revisita
sua história, e a do país, por meio das lembranças do mordomo que trabalhou para sua
família por 30 anos. A narrativa visual é composta por imagens em preto e branco,
basicamente entrevistas feitas com Santiago em sua casa e tomadas da casa da Gávea em
que a família Salles viveu. O único trecho em que a família Salles aparece no filme pode
ser lido como um acontecimento narrativo, pois ele apresenta uma interrupção no registro



80

imagético até então visto, ao inserir um vídeo curtíssimo em Super 8mm, colorido e sem
som.
Um uso muito inventivo das imagens de baixa definição é encontrado em alguns
filmes de horror contemporâneos. A Bruxa de Blair (Daniel Myrick e Eduardo Sánchez,
1999) tornou-se um marco deste gênero graças a sua narrativa visual. O filme mescla
imagens de vídeo, coloridas, filmadas em câmera na mão, com imagens preto e branco
em formato 16mm. Trata-se de um mockumentary, um falso documentário sobre três
jovens que vão para a Floresta de Black Hills nos Estados Unidos atrás da lenda local da
Bruxa de Blair e desaparecem. Este falso documentário é realizado com imagens
produzidas por estes jovens encontradas após seu desaparecimento, o que faz com que o
filme também flerte com o subgênero found footage (vídeos encontrados). Neste caso, as
imagens de baixa definição filmadas no estilo de uma gravação amadora - tremidas e sem
seguir as regras da decupagem cinematográfica - são incorporadas para trazer maior
verossimilhança.
Esta tese pretende demonstrar alguns dos efeitos do vídeo na experiência
cinematográfica contemporânea. Os exemplos de contaminação do vídeo na narrativa
cinematográfica sendo compreendidos como acontecimentos de imagem.

3.2. Extremidades da imagem no cinema

O acontecimento narrativo na cena da festa do amigo de Bruno em Linha de


Passe encontra análogos na filmografia de Salles. É o caso de instantes da sequência da
romaria do filme Central do Brasil, em que a personagem Dora desmaia ao ser
sensibilizada pela luz, proveniente de velas e posteriormente de fogos de artifício, que
desenham o quadro fílmico em trajetória circular, criando círculos de luz. Enquanto Dario
está sob o efeito de drogas, o estado de consciência alterado de Dora é atribuído a um
transe religioso. Já em Abril Despedaçado, encontramos outro exemplo desse mesmo
procedimento no momento em que Tonho gira a trapezista Clara na corda indiana,
sequência que pode ser lida como uma metáfora do ato amoroso. Em momentos de
determinados planos, a inscrição do tempo na imagem se faz presente por meio de rastros


81

de diferentes texturas, formas espiraladas e gradação de tons terrosos promovendo uma
experiência de movimento intensivo.
O procedimento de ênfase nos aspectos plásticos da imagem (cor, iluminação,
textura, definição) coincide com momentos de alteridade narrativos, promovendo zonas
fronteiriças entre as plasticidades da imagem e a narrativa. Essas três cenas mencionadas,
dos filmes Linha de Passe, Central do Brasil e Abril Despedaçado, têm em comum o fato
de:

1- coincidirem com o ápice do arco dramático dos personagens em questão (Dario,


Dora e Tonho);
2- por essa razão, também serem pontos de virada do roteiro;
3- os personagens se encontram em estado de consciência alterado;
4- apresentarem música grandiloquente e pouca ou nenhuma fala;
5- serem momentos catárticos.

É pelo fato de as imagens intensas serem utilizadas para ressaltar aspectos


narrativos, na obra de Walter Salles, que os pontos de virada do roteiro coincidem com as
cenas em que há ocorrências da narrativa como acontecimento.
Constatamos, neste exame das sequências, algumas questões importantes do
ponto de vista da realização cinematogrática. A plasticidade das cenas intensas nos três
filmes analisados é fruto de procedimentos fotográficos. Na cadeia cinematográfica, o
diretor de fotografia é o responsável pela concepção fotográfica dos filmes.
Normalmente, ele atua em parceria com o diretor de arte para definir os aspectos
propriamente plásticos da imagem, a narrativa visual. Isto tem um impacto nos modos
como tradicionalmente se observa a autoria do cinema centrada na figura do diretor. A
partir deste ponto de vista, os diretores de fotografia Walter Carvalho (Central do Brasil
e Abril Despedaçado) e Mauro Pinheiro Jr. (Linha de Passe) adquirem um papel de
relevo na construção da experiência estética nos longas aqui analisados.
Elencaremos a seguir os procedimentos fotográficos realizados nas cenas intensas
dos filmes analisados. Em Central temos uma cena filmada em externa, trata-se do
registro de uma romaria marcada pelo virtuosismo de sua fotografia, conhecida pelo fato



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de grande parte da fonte de iluminação ser proveniente de velas. Além deste aspecto,
temos uma decupagem organizada em torno dos motivos plásticos da luz e das imagens.
Em montagem paralela, somos expostos a planos de Dora intercalados a planos de
desenhos de luz variados.
Em Abril temos a cena em que Clara gira em uma corda indiana. Nela, a câmera é
presa à corda, um pouco acima da posição da atriz, com a lente voltada para baixo.
Grande parte de sua força é consequência da solução técnica da cena. O fato de a câmera-
corpo estar presa na corda faz com que seu movimento seja impulsionado pela mesma
força que move a atriz/personagem Clara, que diegeticamente corresponde à força de
Tonho. Como as imagens captadas são afetadas por essa força, elas apresentam a
inscrição do tempo na imagem.
Já em Linha de Passe, como mencionamos, temos uma cena de festa.
Tecnicamente, uma alteração na correia da câmera, que modifica seu funcionamento
tradicional, expôs o negativo enquanto ele estava em movimento. Como o negativo
distorce a imagem em situações de superexposição da luz, o resultado deste processo é a
ampliação dos diversos pontos de iluminação da cena e a distorção da luz em sentido
circular. A plasticidade da imagem organiza-se então em contrastes de luz e sombra,
superexposição e reflexos da luz. Acompanhando isso, temos um acontecimento de
quebra do movimento fluido dos quadros fílmicos, graças à filmagem de alguns planos
com velocidade alterada para seis e doze frames por segundo.
A relação destes procedimentos fotográficos, e das imagens que eles geram, com
a narrativa contada, em cada um dos três filmes, resulta em significados simbólicos a
respeito do cinema, como explicamos. Aqui é importante pensarmos o contexto de uso
das performances de imagem na obra deste cineasta em relação a outros tipos de cinema.
Já dissemos que as imagens intensas na obra de Walter Salles são utilizadas com fins de
engajamento emocional do espectador. A parcimônia do uso deste recurso na narrativa
fílmica busca, no nosso entender, manter uma experiência cinematográfica baseada no
ilusionismo narrativo. Este aspecto distingue este cinema do cinema de fluxo, de filmes
de narrativa sensorial, entre outras tendências fílmicas contemporâneas.
Gostaríamos de defender, neste momento, algumas ideias a respeito da poética
deste cineasta a partir das análises fílmicas realizadas e da abordagem do contexto


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audiovisual de produção destas obras, considerando que esta pesquisa dá prosseguimento
aos resultados da dissertação de mestrado sobre a obra de Walter Salles.
Nossa reflexão partirá dos impactos para a experiência estética da substituição
material do suporte da imagem cinematográfica do analógico para o digital. Para além
das transformações técnicas já mencionadas, os cineastas que produziam por volta dos
anos 2000 lidavam com uma mudança na ontologia da imagem. Alguns deles elaboraram
estas questões em seus filmes. Sobre este aspecto, vale uma digressão. Os cineastas
contemporâneos de prestígio, reconhecidos em premiações de festivais internacionais de
ponta e que têm seus filmes em circulação no mercado estrangeiro, acompanham e
contribuem com as discussões teóricas sobre a imagem, dentro de seu contexto de
atuação cinematográfica, por meio de seus filmes.
O contexto de atuação cinematográfica de um cineasta, que vai organizar sua
produção em um nicho de mercado, envolve opções que giram em torno dos objetivos
deste realizador. O alcance destes objetivos depende de condições materiais de produção
e circulação do longa-metragem no mercado local. Neste quesito, lidamos com as
fragilidades na formação cultural da população brasileira, com um circuito de exibição
que privilegia o filme estrangeiro e uma elitização crescente do acesso ao cinema. No
caso de Walter Salles, temos outro fator histórico impactando sua obra, o período da
Retomada do cinema brasileiro. Esta influência se verifica, em seus filmes, em uma
afirmação da identidade e do cinema nacional, que estava ameaçado com a extinção dos
mecanismos de fomento públicos a este setor pelo governo Collor.
Considerando este cenário, selecionamos os três longas-metragens do cineasta
falados em língua portuguesa, concebidos para o mercado cinematográfico brasileiro, por
acreditarmos que neles podemos verificar estratégias de comunicação deste diretor com o
público brasileiro. Como Walter Salles também busca uma internacionalização de seu
cinema, estes filmes analisados contêm elementos que dialogam com longas de
filmografias de outras nacionalidades que circulam em festivais. A abordagem de
problemas sociais da realidade local é um deles, associada a procedimentos estéticos
globais, tais como uma narrativa de impacto. Por elaborar questões da realidade nacional,
é importante para este realizador preservar uma relação ilusionista com a imagem, ainda
que recorrendo a procedimentos que suspendam esta relação em prol de momentos de



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experiência mais sensória com a imagem. Devido a estes fatores mencionados, podemos
considerar a obra de Walter Salles como um dos exemplos de cinema narrativo que
promove uma experiência estética intensa, do ponto de vista da relação corpórea com a
imagem.
Retomando a questão da substituição da película pelo digital e seus impactos na
experiência cinematográfica, gostaríamos de aprofundar alguns aspectos citados
anteriormente. Por volta dos anos 2000, os cineastas precisavam lidar com o fato de que a
mudança do suporte analógico para o digital impactou os modos como os espectadores se
relacionam com a imagem. A relação analógica entre a imagem e o objeto filmado, que
caracteriza o processo fotoquímico de formação de imagens na película, favorece a
crença, por parte dos espectadores, da função representacional do cinema. Parte da teoria
do cinema, especialmente a corrente realista, se baseia nesta relação física, material, entre
a película e a natureza, para afirmar que a imagem seria um índice deste encontro, deste
acontecimento, adquirindo um status de prova do real. Não seria esta a relação que ainda
justifica a presença de nossas fotos no documento de identidade? E o que diríamos das
imagens de vigilância, utilizadas como prova para incriminar no âmbito jurídico?
O teórico francês André Bazin é um dos que associavam o realismo
cinematográfico à noção espiritual de “revelação”, fruto da concepção de uma ligação
ontológica entre a película e o objeto representado. Os cineastas que abordam realidades
sociais em sua obra, em uma chave representacional, como é o caso de Walter Salles,
serão os mais impactados com o surgimento do digital, já que surge, entre o público
médio, uma suspensão do pacto de realidade com a imagem. A imaterialidade do suporte
digital e seus processos de codificação numérica de formação da imagem colocam esta
crença em cheque. A democratização das câmeras, no digital, também contribui para uma
popularização do ato de criar imagens e aproximação do público médio dos
procedimentos técnicos desta área.
Estes aspectos mencionados dificultaram, do ponto de vista dos cineastas, a
construção de uma relação de realismo com a imagem de modo que surgiu, no período,
uma retomada nostálgica de momentos marcantes desta relação, como o neorrealismo
italiano, o Cinema Novo brasileiro, entre outros. Os diretores utilizaram o procedimento
de citação como um dos modos de atualizar os afetos relacionados à memória daquelas


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imagens. Central do Brasil tem um diálogo com o cinema de Wim Wenders (Nagib,
2006). Central do Brasil e Abril Despedaçado têm inúmeras referências a filmes do
Cinema Novo. Já Linha de Passe é uma releitura de Rocco e Seus Irmãos (Luchino
Visconti, 1960). Os três filmes apresentam referências a obras marcantes da história do
cinema. Além disso, diegeticamente os filmes de Walter Salles fazem referência a
diversos tipos de imagens, expondo o desenvolvimento de técnicas de registro de
imagens e suportes de períodos históricos e regiões variadas, tais como: retratos pintados,
fotografias, monóculos, citações a quadros da história da arte (ex: a Pietá invertida em
Central depois da cena da romaria) etc.
Na ocasião do lançamento de Central do Brasil, em entrevista do diretor (WS)
para os críticos Carlos Alberto Mattos (CAM), José Carlos Avellar (JCA) e Ivana Bentes
(IB), este uso das imagens é explicitado.

CAM – O que você conhecia do Nordeste?


WS – Eu tinha, evidentemente, uma memória visual…
IB - Deus e o Diabo…
WS – Num primeiro momento uma memória visual que nós todos temos, a
herança cinemanovista. (Bentes; Mattos; Avellar, 1998, pp. 7-40).

Se, como diz o crítico de cinema francês Serge Daney a respeito das imagens do
cinema contemporâneo, “o fundo da imagem é sempre já uma imagem. Uma imagem de
cinema.” (2007, p. 233), vejamos como a colocação de José Carlos Avellar é elucidativa
a respeito da apropriação da história do cinema brasileiro realizada por Walter Salles.

JCA – É curioso que em nossa conversa estejamos todo o tempo falando de uma
geografia real. Sinto o filme um pouco mais ligado a uma geografia
cinematográfica. (…) O Sertão aqui é um pouco menos o Sertão mesmo e um
pouco mais o Sertão representação cinematográfica do Brasil, é o Nordeste, ou
Nordestes, como diz o Walter, enquanto imagem expressiva.
WS – Exatamente.
JCA – Na verdade não é entrar no Sertão, mas pegar do Sertão o que existe de
imagem dele enquanto expressão cinematográfica. Eu penso no filme como uma
viagem ao Cinema Novo, mais do que uma viagem ao Sertão. (Bentes; Mattos;
Avellar, 1998, pp. 7-40).

Em entrevistas posteriores aos prêmios de Urso de Ouro de melhor filme


concedido a Central e Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro, na



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edição de 1998 do Festival de Berlim, Walter retoma o modo de construção narrativa
baseada em imagens precedentes.

Um filme nunca existe sozinho. Traz consigo a memória viva de toda uma
cinematografia. No caso de Central do Brasil, o desejo de dialogar com uma
tradição cinematográfica da qual todos nós devemos nos orgulhar é explícito,
assim como é implícita a vontade de comunicação com o jovem cinema
brasileiro (…). Os prêmios para o filme são, portanto, para o cinema brasileiro
como um todo…(ibid.).

Em outro trecho da entrevista, Salles justifica uma sequência do filme - em que os


personagens tiram uma fotografia que é colocada posteriormente em um monóculo, em
uma barraca com a imagem de Padre Cícero - utilizando um argumento de citação, trata-
se de uma vontade de homenagear o cineasta Wim Wenders.

IV – Aliás pensando na cultura oral do nordeste, no ter que ditar as cartas. Um


registro fotográfico, no monóculo: não é estranho numa região em que os
registros são precários?
WS – Eu preciso confessar pra você, a questão do monóculo é uma questão mais
wimwendersziana do que nordestina. (…) Os lugares onde a possibilidade da
migração é muito presente suscitam a necessidade de fixação pictórica das
pessoas que partiram. Se você entra numa casa nordestina, (…) você encontra
um número impressionante de retratos e imagens que permitem a lembrança
daqueles que partiram. A questão da imagem não é decorativa (…). Constitui-se
numa memória, numa necessidade intrínseca quase que de sobrevivência. Uma
forma de resistir é lembrar a pessoa que se foi (ibid.).

Existe uma possibilidade dupla de leitura do trecho acima citado. A explicação


que o cineasta realiza da importância da imagem no Nordeste pode ser expandida, tendo
em vista o conteúdo de suas demais falas durante a entrevista. Podemos pensar seu
discurso em relação à problemática da imagem no período da crise do cinema dos anos
1980, consequência dos impactos do vídeo e da televisão. As diversas inserções na
narrativa do filme de citações ao Cinema Novo, a Wenders, além da presença de
fotografias, imagens da iconografia cristã, referências à história das artes visuais, quadros
e do dispositivo ótico do monóculo, poderiam ser lidas como um ato de resistência, de
preservação da memória do cinema, de sua história, de seus mestres: Uma forma de
resistir é lembrar a pessoa que se foi.
Além disso, todas estas referências à imagem podem ser interpretadas como
ocorrências de performances da imagem no tecido fílmico, pois elas colocam o


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espectador em contato com a materialidade da imagem. A utilização variada de
procedimentos de performance da imagem e a parcimônia de seu uso no decorrer dos
filmes mantêm a narrativa representacional, ao mesmo tempo que proporciona uma
experiência estética contemporânea no cinema.



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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese propõe compreender como o fenômeno estético das intensidades da


imagem pode criar acontecimentos narrativos. Para tal, no primeiro capítulo observamos
três aspectos em torno da narrativa audiovisual como acontecimento em suas relações
com a experiência estética. O primeiro deles aborda a dramaturgia ficcional e a
dramaturgia plástica, de acordo com o filósofo Jacques Rancière (2013).
Vimos que o pensador francês trata estas noções como perspectivas críticas,
podendo, portanto, ser identificadas em qualquer tipo de filme e, inclusive, coincidirem
em uma mesma obra, o que seria resultado de uma dramaturgia complexa. Em suas
análises cinematográficas, o autor chama a atenção para o fato de que a dramaturgia
plástica opõe-se à representação, ou seja, à mera reprodução passiva de um dado pré-
existente. Ela é performance sem mediação, sem modelo copiado, nem texto interpretado,
“puro jogo entre movimento e luz”.
Na dramaturgia plástica, o conteúdo figurativo é deixado em segundo plano, em
prol da “aventura da matéria pictórica”. A experiência estética, neste caso, resulta da
contradição que o visível traz ao significado narrativo, desfazendo os encadeamentos da
dramaturgia representativa, baseada em regras de verossimilhança e centrada na ação que
produz as relações causais até chegar a um desenlace final e em regras da composição
artística alicerçadas em relações harmônicas entre as partes e entre as partes e o todo.
Em seguida, nos debruçamos sobre os atos narrativos de presentificação, um
segundo aspecto em torno da narrativa audiovisual como acontecimento, a partir das
reflexões de André Parente e da teórica de literatura, cinema e estética Marie-Claire
Ropars-Wuilleumier.
Em seu estudo sobre narrativa como acontecimento, Parente (2011) pensa a
imagem e a narrativa como acontecimentos que não se confundem com suas atualizações
em estruturas linguísticas (relação significado/significante, significação, representação de
universos originários). Deste modo, como pudemos observar, o autor se opõe à
abordagem semiológica que coloca em suspenso os aspectos sensíveis da imagem, em


89

particular o movimento e o tempo, limitando a imagem a um processo de representação
narrativa.
Para Parente, o ato narrativo de presentificação não se confunde com a narração
ou com a narrativa de uma ação presente ou passada, e existe no cinema quando se
produz um desdobramento no filme por meio do qual a imagem exprime e afirma o
tempo. Neste tipo de operação narrativa, mesmo que a imagem suponha homens,
situações, histórias, ações, ela supera as relações sensório-motoras que eles mantêm.
A reflexão de Parente segue a de Marie-Claire Ropars-Wuilleumier (1970),
teórica que chamou a atenção para o fato de que o tempo estava se tornando o
personagem principal do cinema no pós-guerra e, deste modo, ele se constituiria como
uma escritura, uma vez que era necessário ler a imagem. Trouxemos o pensamento da
autora segundo o qual, no cinema moderno, esta arte tinha se transformado de arte do
movimento em arte do tempo, o que implicou em diversas mudanças: de uma estética
dramática para uma narrativa; de uma estética da representação para uma da escritura; de
uma sucessão para uma duração; de uma história para uma narrativa. Ou, para empregar
os termos de Jacques Rancière (2013, p. 18) migra-se do regime representativo (com sua
dramaturgia ficcional) a um regime estético (com sua dramaturgia plástica).
Buscamos dialogar com o pensamento destes autores para analisar a narrativa
como acontecimento do ponto de vista do cinema narrativo no intuito de demonstrar
como esse fenômeno introduz uma fissura ou um desdobramento nas imagens, nos
enunciados, nas ações, nos personagens, nos narradores e nas narrativas produzidas,
afetando as imagens, sons e suas relações, criando atos narrativos de presentificação que
não representam ou comunicam um acontecimento, mas restituem o efeito vivo dos fatos
e das falas, restituem suas presenças.
Desse modo, acreditamos que a narrativa como acontecimento intensifica a
experiência cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do espectador se identificam. O
tempo é percebido como vivido, e cria-se uma relação entre o espaço da imagem e o
espectador.
Para identificar as ocorrências da narrativa como acontecimento nos filmes do
corpus, adotamos a análise figural como metodologia de análise fílmica, a partir da
sistematização proposta por Philippe Dubois (2012). O interesse desta abordagem para os



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estudos de audiovisual estaria em um olhar para as imagens não como representação, mas
como presença. O figural sendo um acontecimento da imagem, uma presença intensiva de
sua materialidade.
Ainda no primeiro capítulo, apresentamos uma terceira visão em torno da
narrativa audiovisual como acontecimento, que diz respeito ao plano da sensibilidade
háptica, a partir da leitura do filósofo John Dewey (2010). Buscamos suas contribuições
no campo da arte como experiência para demonstrar que as imagens não se relacionam
apenas à visão humana. O pensamento deste autor nos mostra que os sentidos, tato,
paladar, olfato, visão e audição, estão interconectados e operam por ressonância. O
estímulo ambiental é captado por um sentido, no caso da imagem, pelo aparelho visual,
mas “uma cor vista é sempre qualificada por reações implícitas de muitos órgãos, tanto os
do sistema simpático quanto os do tato (ibid. p. 240)”.
Para os interesses de nossa pesquisa, buscamos ressaltar na experiência
cinematográfica os acionamentos promovidos pela imagem no corpo do espectador. Nos
detivemos, neste aspecto, nas relações entre a imagem e a sensibilidade háptica,
entendida como a capacidade tátil do corpo de entrar em contato com o ambiente por
meio de afetações indiretas nas fibras nervosas, tecidos da pele, músculos e pelos
(SANTAELLA, 2005, pp. 77-78). Por estar ligada à sensação de pressão, textura e
vibração, essa sensibilidade possibilita uma forma intensiva de sensorialização do corpo
no espaço.
Salientamos também, no pensamento de Dewey, o fato de que as experiências
variam em intensidade, podendo ser rotineiras ou marcantes. Isto ocorre pois as
qualidades sensoriais presentes em determinado objeto artístico, nos atendo às
preocupações deste estudo, ativam experiências anteriores, atitudes afetivas e
sentimentos. Cabe ao realizador, neste caso, produzir imagens que estimulem o corpo do
espectador, a partir de sua memória cultural e sensória.
Este entendimento é particularmente importante para este estudo, pois, a partir
dele, pudemos verificar tipos de procedimentos audiovisuais acionados pelos realizadores
nos filmes do corpus com o objetivo de promover uma experiência cinematográfica
intensa. Aqui vale mencionar que designamos como realizadores todos os profissionais
envolvidos na criação das imagens cinematográficas, não apenas o(s) diretor(es) do filme.


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Já o segundo capítulo desta tese é dedicado às análises críticas de sequências dos
longas-metragens Central do Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe. Como
mencionamos, a escolha dos trechos foi baseada na presença de atravessamentos das
intensidades da imagem na narrativa audiovisual, momentos em que as imagens e sons se
tornam mais plásticos, corpóreos.
Em Central do Brasil, examinamos a cena da romaria no Nordeste, que trata-se
do ponto de virada da narrativa. A seleção desta sequência se justifica pelo fato de ela ser
tecnicamente marcada pelo virtuosismo de sua fotografia, conhecida pelo fato de grande
parte da fonte de iluminação ser proveniente de velas, além de apresentar jogos de luz
realizados com fogos de artifício e uma profusão de imagens diegéticas, fotos 3x4 e
imagens de santos. A análise desta sequência identificou os dois modos de narração
cinematográficos apontados por Parente: o representacional e atos de presentificação.
Apontamos que o plano em que predomina a plasticidade da luz em formato circular
instaura a narrativa como acontecimento na cena.
A partir destas constatações, desenvolvemos dois caminhos de leitura. O primeiro
deles diz respeito às implicações narrativas promovidas pelo atravessamento do
acontecimento imagético. Por alguns instantes, deixamos de perceber as ações e dramas
dos personagens e somos convidados a uma experiência simbólica, de caráter
metalinguístico. Desse ponto de vista, o sentido que se produz é o do cinema como um
dispositivo capaz de sensibilizar os espectadores e transformar seus modos de ver o
mundo a partir de um pensamento desta arte como revelação.
Num segundo momento, chamamos a atenção para as implicações deste
acontecimento imagético na relação sensorial da imagem com o corpo dos espectadores.
Vimos que, como o tempo da imagem e o do espectador se identificam nestas
ocorrências, se estabelece um contato entre a materialidade da imagem cinematográfica –
luz projetada – e o espectador. Além disso, por estas cenas enfatizarem os aspectos
plásticos da imagem, elas contêm estímulos sensórios que favorecem o acionamento do
sistema háptico, se configurando assim como momentos de intensidade para a
experiência cinematográfica.
Em Abril Despedaçado, analisamos três sequências: a de abertura do filme, a em
que o personagem Tonho assassina o irmão da família rival e a em que Tonho gira Clara



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em uma corda indiana. Neste segundo filme, o foco da análise foram os diferentes tipos
de elaborações plásticas encontrados nos acontecimentos de imagem. Verificamos como
procedimentos audiovisuais associados à perda do efeito de tridimensionalidade e à
desfiguração produzem experiências de cores, formas e texturas.
Na primeira cena, graças a um procedimento de fotografia – baixa iluminação e
profundidade de campo reduzida – observamos a perda do efeito de tridimensionalidade
do espaço diegético, e como a ênfase plástica recai sobre a experiência das formas e
cores.
No segundo caso, uma sequência que acompanha a corrida de Tonho atrás de um
dos filhos da família rival para matá-lo, há uma sobreposição do corpo dos personagens à
vegetação árida, que promove o efeito de desfiguração dos corpos na tela e indistinção
entre fundo e figura. Este procedimento confere à imagem uma textura áspera.
Identificamos também como esta corrida em linha reta produz impressão de circularidade
por uma inversão da direção do movimento dos personagens, filmados em travelling.
Consideramos este modo de filmar a cena como uma das ocorrências do círculo como
motivo plástico principal do filme, utilizado como solução formal para a lógica opressora
da vendeta entre famílias.
Na terceira cena, em que Tonho gira a trapezista Clara em uma corda, verificamos
como o procedimento de aceleração da imagem gera um novo episódio de desfiguração.
A unidade do corpo de Clara é perdida e vivenciamos experiências de formas, cores e
texturas na imagem. As diferentes texturas, formas espiraladas e gradação de tons
terrosos são rastros da inscrição do tempo na imagem nessa experiência de movimento
intensivo. Procuramos mostrar também como a estrutura circular se repete, porém com
uma leitura reelaborada, segundo a qual a carga opressiva da bolandeira dá lugar ao
círculo como sonho e utopia. A lei da gravidade suspensa no plano em plongée, que
funciona como metáfora do ato amoroso, afirma a potência libertadora do afeto.
Já em Linha de Passe, a cena estudada é a de uma festa que acontece na casa de
um dos amigos do personagem Bruno. O objetivo desta análise é ressaltar a importância
dos procedimentos fotográficos para uma experiência cinematográfica intensa.
Narrativamente, esta sequência aborda como a diferença de classe marca a vida de um
jovem da periferia e um da elite. Esta relação de alteridade é elaborada plasticamente por


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meio de uma concepção fotográfica baseada em contrastes de luz e sombra. A grande
plasticidade da luz nesses quadros, fruto das elaborações fotográficas mencionadas, passa
a constituir o interesse principal da experiência estética da cena.
Buscamos apontar também uma possibilidade de leitura metalinguística para esta
cena. Assim como na romaria do filme Central do Brasil, o contato com intensidades de
luz promove uma experiência de morte e renascimento para o personagem. Por meio
deste acontecimento de imagem, os espectadores também vivem uma relação de
alteridade capaz de gerar novas formas de subjetividade. Observamos, portanto, uma
afirmação das potencialidades da experiência cinematográfica.
A respeito deste trecho, ressaltamos também o fato de ele apresentar um
procedimento de desconstrução do dispositivo cinematográfico. A suspensão da ilusão de
movimento fluido dos quadros fílmicos no segundo momento da festa promove uma
experiência de salto entre as imagens, em que se percebem os quadros estáticos. Esse
fenômeno marca uma das ocorrências da narrativa como acontecimento em Linha de
Passe.
O terceiro capítulo desta tese é dedicado às intensidades da imagem no cinema.
Compreendemos este fenômeno como um ponto de extremidade da experiência
cinematográfica na contemporaneidade, seguindo a abordagem das extremidades de
Christine Mello (2017, 2008a).
Desta forma, por meio de procedimentos audiovisuais como os de desfiguração,
perda do efeito de tridimensionalidade e ênfase nas texturas da imagem, os
acontecimentos narrativos acionam o sistema perceptivo tátil dos espectadores,
minimizando o apelo majoritariamente escópico, visual, associado ao cinema. É
importante frisar que estes procedimentos apontados são usualmente concebidos e
realizados pelos departamentos de arte e fotografia da cadeia cinematográfica: aqueles
encarregados da concepção propriamente visual da obra. A análise demonstrou que estes
procedimentos surgem em momentos importantes do roteiro dos filmes do corpus e vêm
acompanhados de sonoplastia marcante: o acúmulo de estímulos marca a experiência
estética marcante.
Estes acontecimentos se apresentam como intensidades da imagem, pois capturam
plasticamente forças, sensorialidades, tatilidades, configurando presentificações da



94

imagem cinematográfica. São momentos de ênfase na experiência sensória em que o
corpo do espectador é atravessado pelo espaço-tempo da imagem. Pontos de extremidade
que reorganizam a narrativa como um todo.
É interessante notar como a presença da narrativa como acontecimento em filmes
para grande público parece apontar para um esgotamento da experiência estética no
cinema contemporâneo a partir de modelos linguísticos em que os processos imagéticos
se reduziriam ao significante e aos processos de significação (representação de um estado
de coisas). Com esses novos modos de narrar, os cineastas estariam mais interessados
pelos aspectos sensíveis da vida, convidando o espectador a observar o que não se deixa
facilmente fixar e compreender.
Dessa forma, entendemos a narrativa como acontecimento na obra de Salles como
uma das estratégias de engajamento de público pela mobilização dos afetos. Poderíamos
elencar outras estratégias utilizadas, como a sobrecarga dramatúrgica – em oposição à
rarefação narrativa do cinema de fluxo – e um estilo grandiloquente, muitas vezes
melodramático. Nesses instantes, o apelo racional requerido pela narrativa é suspenso em
detrimento de um envolvimento sensório. Isso faz com que os instantes da narrativa como
acontecimento, entendidos como performances de imagem, se apresentem como ruídos,
desestabilizando um modo de experiência estética baseada na representação que seus
filmes em princípio convocariam.


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