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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA FLÁVIA BALDIVIEZO CÁCERES

O REALISMO FANTÁSTICO NOS VIDEOCLIPES DO ÁLBUM AFTER HOURS

GUARULHOS
2021
ANA FLÁVIA BALDIVIEZO CÁCERES

O REALISMO FANTÁSTICO NOS VIDEOCLIPES DO ÁLBUM AFTER HOURS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Bacharel em História da Arte

Orientadora: Prof.ª Dra. Marina Soler Jorge

GUARULHOS
2021
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais no
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
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autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação
intelectual, desde que citada a fonte.

Cáceres, Ana Flávia Baldiviezo.

O Realismo Fantástico nos videoclipes do álbum After Hours /Ana Flávia Baldiviezo Cáceres,
Guarulhos, 2021. 57 f.

Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História da Arte). –


Guarulhos: Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Orientadora: Prof.ª Dra. Marina Soler Jorge.

Título em Inglês: Fantastic Realism in the music videos of the album After Hours.

1.Realismo Fantástico. 2. Videoclipe. 3.TheWeeknd. 4.Cinema.


ANA FLAVIA BALDIVIEZO CÁCERES

O REALISMO FANTÁSTICO NOS VIDEOCLIPES DO ÁLBUM AFTER HOURS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Bacharel em História da Arte

Orientadora: Prof.ª Dra. Marina Soler Jorge

Aprovada em: 23 de agosto de 2021

_________________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Marina Soler Jorge
Universidade Federal de São Paulo
Dedico aos meus pais, avós e em especial meu tio Willy.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais Ernesto e Marianela por sempre me apoiarem em todas as
minhas escolhas e por batalharem muito para dar o melhor a seus filhos e netas, me dando muito
orgulho de ser filha de imigrantes, peruano e boliviana.
Agradeço à minha orientadora Marina Soler e aos professores da UNIFESP pelos
ensinamentos durante minha graduação.
Agradeço a todos meus amigos que fiz durante esses anos, a cada conversa e conselho
feitos pelo trajeto na estrada Dutra.
Muito obrigado ao meu amigo Hélio Romano que sempre foi paciente ao ler todos meus
textos durante essa jornada, além de sempre me incentivar a não desistir dos estudos.
Agradeço a todas as funcionárias do restaurante universitário que sempre nos recebeu
com afeto depois de um dia exaustivo.
RESUMO

Este trabalho busca analisar quais características são fundamentais para reconhecermos
o gênero do realismo fantástico nos videoclipes. Para identificar essas características, foi levada
em consideração a influência do gênero na indústria do cinema, particularmente em Viagem À
Lua (1902) de George Méliès, O Gabinete Do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene, e O Farol
(2019) de Robert Eggers. Foram estudados também os teóricos Tzvetan Todorov e David Roas,
e o filósofo Jean Paul Sartre. Através dos elementos apontados pelos estudiosos, foram
analisados videoclipes do álbum After Hours (2020) do cantor canadense The Weeknd. Houve
uma descrição de cada videoclipe e, em seguida, foram expostos os elementos pelo qual esses
videoclipes pertencem ao gênero realismo fantástico.

Palavras chaves: Realismo fantástico, Videoclipes, The Weeknd, Cinema.


ABSTRACT

This work seeks to analyze which are the fundamental characteristics to recognize
elements of the fantastic realism genre on music videos. In order to identify those
characteristics, was taken into account the influence of the genre in the movie industry,
particularly in A Trip To The Moon (1902) by George Méliès, The Cabinet Of Dr. Caligari
(1920) by Robert Wiene, and The Lighthouse (2019) by Robert Eggers, and the tie between
movies and music videos. Were also studied the works of the theorists Tzvetan Todorov and
David Roas, and the philosopher Jean Paul Sartre. Through the elements pointed out by the
scholars, were analysed music videos from the album After Hours (2020) by the Canadian
musician The Weeknd. A description about each music video was made and, then, were
exposed the elements that make those music videos belonging to the Fantastic Realism genre.

Keywords: Fantastic Realism, Music Video, The Weeknd


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Cena do filme Viagem a Lua (1902): Lua com feições humanas ...................... 15
Figura 2 - Cena do filme: O Gabinete do Doutor Caligari (1920): Cenário cinema
expressionista .......................................................................................................................... 16
Figura 3 - Cenas do filme: O Gabinete do Doutor Caligari (1920) e Edward Mãos de
Tesoura (1991): Edward e Cesare ......................................................................................... 17
Figura 4 - Cenas dos filmes: O Gabinete do Doutor Caligari (1920) e Batman: O
Retorno - Doutor Caligari e Pinguim ................................................................................... 17
Figura 5 - Sereia ...................................................................................................................... 20
Figura 6 - Wake com conchas e chifre coral ........................................................................ 21
Figura 7 - Theodoor Rombouts. s/d. Prometeus. 154 x 222,5 ............................................. 22
Figura 8 - Winslow semelhante à Prometheus ..................................................................... 22
Figura 9 - Videoclipe Bohemian Rhapsody (1975) .............................................................. 26
Figura 10 - Peter Gabriel em Claymotion no videoclipe Sledgehammer (1976) .............. 27
Figura 11 - The Weeknd dentro do cassino.......................................................................... 28
Figura 12 - Cena de Raoul Duke dentro do cassino do filme Medo e delírio (1998) ........ 29
Figura 13 - The Weeknd e amigo entrando no Cassino ...................................................... 29
Figura 14 - Raoul Duke e seu amigo Dr.Gonzo entrando no cassino ................................ 30
Figura 15 - The Weeknd consumindo substância psicoativa.............................................. 30
Figura 16 - Olhos de anfíbio .................................................................................................. 31
Figura 17 - Pele de Anfíbio .................................................................................................... 31
Figura 18 - Cartaz do filme Medo e Delírio ......................................................................... 32
Figura 19 - Rosto distorcido semelhante ao cartaz Medo e Delírio ................................... 33
Figura 20 - Cena de Levitação ............................................................................................... 34
Figura 21 - Luzes vermelhas sinalizando cenas de briga .................................................... 34
Figura 22 - Luzes vermelhas sinalizando dor ...................................................................... 35
Figura 23 - Transformação no rosto ..................................................................................... 36
Figura 24 - Personagem espantada ....................................................................................... 37
Figura 25 - The Weeknd deitado no deserto ........................................................................ 37
Figura 26 - The Weeknd deitado no deserto, mas agora feito em animação .................... 38
Figura 27 - Cena do videoclipe Starboy (2016) - The Weeknd ft. Daft Punk ................... 39
Figura 28 - Cena de Snow Child (2020) ................................................................................ 39
Figura 29 - Cena do programa Jimmy Kimmel Live! ......................................................... 40
Figura 30 - Cena da apresentação no programa Jimmy Kimmel Live! ............................ 41
Figura 31 - Cena do programa Jimmy Kimmel Live! no curta-metragem After Hours 41
Figura 32 - Luzes vermelhas sinalizando o cantor e o espectador ..................................... 42
Figura 33 - The Weeknd é arrastado após as luzes vermelhas ........................................... 43
Figura 34 - Cena elevador ...................................................................................................... 44
Figura 35 - Close da faca, semelhante ao filme Psicose (1960) ........................................... 45
Figura 36 - Silhueta semelhante ao filme Psicose (1961) ..................................................... 45
Figura 37 - Cena do filme: Psicose (1961) ............................................................................ 46
Figura 38 - Cenário vermelho do videoclipe In Your Eyes................................................. 47
Figura 39 - Cena do elevador com sangue do filme: O Iluminado (1980) ......................... 47
Figura 40 - Personagem dança com a cabeça do cantor ..................................................... 48
Figura 41 - Personagens encontram a cabeça do cantor na estrada .................................. 50
Figura 42 - Personagens tentando costurar a cabeça do cantor em outro corpo ............. 50
Figura 43 - Personagem com a arma apontada para o cantor ........................................... 52
Figura 44 - The Weeknd aponta a arma para própria cabeça ........................................... 52
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10

2 O REALISMO FANTÁSTICO NA LITERATURA.................................................... 11

3 O REALISMO FANTÁSTICO NO CINEMA ............................................................. 14

4 VIDEOCLIPE .................................................................................................................. 23

5 ALBUM AFTER HOURS .............................................................................................. 27

5.1 Heartless ........................................................................................................................................28

5.2 Blinding Lights ..............................................................................................................................33

5.3 Until I Bleed Out ...........................................................................................................................35

5.4 Snow Child.....................................................................................................................................38

5.5 Blinding Lights (Live on Jimmy Kimmel Live!) ........................................................................39

5.6 After Hours- Short Film ...............................................................................................................41

5.7 In Your Eyes ..................................................................................................................................44

5.8 Too Late .........................................................................................................................................49

5.9 Save Your Tears ............................................................................................................................51

6 O REALISMO FANTÁSTICO EM AFTER HOURS ................................................. 52

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 55

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 56
10

1 INTRODUÇÃO

Os videoclipes sempre me despertaram muito interesse, principalmente quando assisti, na


infância e adolescência, aos programas DISK MTV e TOP 10, transmitidos pelo canal MTV.
Anos mais tarde, ao entrar na faculdade, tive a matéria História do videoclipe no campo
audiovisual, ministrada pelo Prof Dr. Rodrigo Barreto, e a partir disso, ficou claro o potencial
que o videoclipe possui para ser o objeto de estudo desta monografia. Na disciplina nos foi
apresentado o surgimento dessa arte audiovisual, destacando como atualmente é uma
ferramenta essencial para cantores e bandas divulgarem para o mundo seu trabalho. Além da
discussão sobre o videoclipe como um mecanismo de divulgação, também vimos as inúmeras
possibilidades de criações e leituras sobre essa expressão artística, e foi a partir desse ponto que
busquei desenvolver o trabalho de conclusão de curso.
Para a escolha do tema optei pelo realismo fantástico, gênero mais conhecido na
literatura e ao pesquisar sobre esse gênero, vi a possibilidade de encontrar videoclipes que
demonstrem as mesmas características, e decidi que este seria o tema a ser desenvolvido.
Inicialmente busquei apontar três teóricos que nos apresentam aspectos fundamentais para
identificarmos o realismo fantástico: Tzvetan Todorov, David Roas e o filósofo Jean Paul
Sartre. A partir das distinções feitas pelos estudiosos, mostrei como esse gênero se faz presente
na história do cinema e como por meio dele vemos influências na cultura contemporânea. Ao
identificar filmes que possuem características que constituem o realismo fantástico, fiz a mesma
análise com os videoclipes do álbum After Hours (2020) do cantor canadense The Weeknd.
Descrevi os sete videoclipes, um curtam metragem e uma apresentação televisiva integrantes
do projeto, apontando alguns elementos sobrenaturais na narrativa e, principalmente, buscando
destacar como os personagens reagem diante de situações extraordinárias.
11

2 O REALISMO FANTÁSTICO NA LITERATURA

Influenciada pelo romantismo e pelo gótico, a narrativa fantástica surge entre os séculos
XVIII e XIX, tendo como principal característica a ruptura da nossa realidade por meio de
elementos sobrenaturais. No entanto, não são apenas os acontecimentos extraordinários ou a
presença de estranhas criaturas que definem o realismo fantástico, visto que esse gênero carrega
diversos traços definidos por estudiosos que veremos a seguir.
Um dos mais citados ao se pesquisar sobre a literatura fantástica tradicional foi o teórico
búlgaro Tzvetan Todorov, que buscou estruturar aspectos do tema. Sua obra A Introdução à
literatura fantástica (1970), aponta que “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser
que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2008 p.16). Todorov nos demonstra a todo momento que leitores e
personagens devem ser hesitantes entre acreditar ou não no que foi narrado. É necessário haver
uma ambiguidade entre os dois mundos, como visto na obra de Cazzote, O diabo apaixonado,
citado como exemplo pelo próprio Todorov:

Alvaro o protagonista de O diabo apaixonado de Cazotte, vive há vários meses


com um ser, de sexo feminino que, segundo suspeita, é um espírito maligno:
o diabo ou algum de seus seguidores. Seu modo de aparição indica às claras
que se trata de um representante do outro mundo; mas seu comportamento
especificamente humano (e, mais ainda, feminino), ofensas reais que recebe
parecem, pelo contrário, demonstrar que se trata de uma mulher, e de uma
mulher apaixonada. (TOROROV, 2008 p. 15)

Essa dúvida deve se instalar para o fantástico existir, pois caso contrário, entramos em
um dos dois gêneros: maravilhoso (aceitação da narrativa sobrenatural, sem hesitações) ou o
estranho (acontecimentos sobrenaturais podem ser explicados pelas leis da nossa realidade).
De maneira diferente, o teórico contemporâneo David Roas, no seu livro A ameaça do
fantástico (2014), aponta que o estudo de Todorov acaba sendo muito restrito, porque exclui
outras narrativas nas quais há possibilidade da dúvida e da vacilação. Para Roas a vacilação não
deve ser uma característica absoluta para o fantástico:

[...]podemos concluir que a vacilação não pode ser aceita como único traço
definitivo do gênero [...] minha definição inclui tanto as narrativas em que a
evidência do fantástico não está sujeita a discussão, quanto aquelas em que a
ambiguidade é insolúvel, já que todas postulam uma mesma ideia: irrupção do
sobrenatural no mundo real e, sobretudo, a impossibilidade de explicá-lo de
forma razoável. (ROAS, 2014, p.43)
12

Nos seus estudos sobre o realismo tradicional, o autor espanhol diz ser necessário
existirem transgressões das leis naturais e, assim, utiliza quatro conceitos para reflexão sobre o
realismo fantástico: a realidade, o impossível, o medo e a linguagem.
Quando abordada a realidade, o escritor se atenta ao período Racionalista, refletindo
sobre como nessa época outras realidades foram aceitas. Através da filosofia, ciência e
tecnologia, novas descobertas foram feitas e aspectos de estabilidade da sociedade alterados,
fazendo com que o fantástico se desenvolvesse. Nesse período o romântico gótico apresenta
outro lado da realidade, como Camarini afirma: “os românticos, sem repelir as conquistas da
ciência e sem deixar de considerar o racional, valorizaram a intuição e a imaginação; aboliram
as fronteiras entre o interior e o exterior, o irreal e o real, o sono e a vigília, a magia e a ciência”.
(CAMARINI, 2014, p. 166).
O fantástico faz com que os ambientes que antes pareciam seguros se tornem instáveis:
“a narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito
pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real” (ROAS,
2014, p. 31). Através dessa insegurança vemos o segundo conceito do autor, o impossível, pois
é através da vulnerabilidade que o conflito entre o real e impossível surgem, algo essencial para
o fantástico tradicional.
A inquietação causada pelo efeito fantástico relaciona-se com o terceiro conceito do
autor, o medo. Roas pontua-o por ser uma emoção que causa surpresa e apreensão, que perpassa
o real e irreal. Segundo o próprio, por meio desse sentimento o fantástico consegue apresentar
da melhor maneira a perda do contato com o compreensível. O autor também diferencia o medo
físico (sensação de morte) e o metafísico (o sentimento que passa pelo personagem e reverbera
no leitor.) Também são apontados sinônimos para o conceito de medo, dependendo da sua
utilização (terror, horror, desconcerto, angústia, inquietação).
Ao discorrer sobre a linguagem utilizada nessa narrativa, o quarto conceito, Roas diz
ser indispensável a abordagem do real no universo diegético, para que exista aproximação entre
esses dois mundos:
Assim, a construção do texto fantástico estaria guiada, paradoxalmente, por uma
“motivação realista”, ou seja, é preciso que desperte o “efeito de real”, nas palavras
de Barthes (1968); o fantástico seria, então, um modo narrativo que emprega o código
realista, de preferência em sua mais absoluta cotidianidade, mas supondo uma
transgressão desse código (CAMARINI, 2014, p.174)

Ao observar a fala do autor sobre a necessidade de empregar o código realista para


perpetuar o fantástico, Roas aponta a necessidade de sabermos o contexto sociocultural da
narrativa, visto que é por meio dessas informações que temos ideias dos diversos modelos de
13

realidades possíveis. Dessa forma, ele também pontua o fantástico como uma estética
multidisciplinar, não se atendo apenas no campo da literatura, podendo ser visto no cinema,
música, teatro, games ou qualquer outra manifestação artística que proponha a reflexão do real
e irreal.
Enquanto Todorov e Roas abordam o realismo fantástico tradicional, o filósofo Jean-
Paul Sartre trata do fantástico contemporâneo, desenvolvido durante o século XX. O autor, em
seu ensaio Aminadab, ou fantástico considerado como uma linguagem, nos apresenta o
fantástico como rompimento das fronteiras entre os mundos real e não real; ou seja, quando o
elemento fantástico adentra o universo natural, ele acaba também se tornando natural. Ao
realizar essa quebra nas polarizações, Sartre remove a aplicabilidade da teoria da
hesitação/vacilação de Todorov. O autor aponta também que o realismo contemporâneo
investiga a condição humana, e não se atenta tanto aos acontecimentos extraordinários
apontados por Todorov e Roas. Portanto, Sartre ao observar o homem como principal elemento
no fantástico contemporâneo, enfatiza:

Não o homem das religiões e do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela


metade, mas o homem-dado, o homem-natureza, o homem sociedade, aquele que
reverencia um carro fúnebre que passa, que se barbeia na janela, que se ajoelha nas
igrejas, que marcha em compasso atrás de uma bandeira. Esse ser é um microcosmo,
é o mundo, toda a natureza: é somente nele que se mostrará toda a natureza enfeitiçada
(LOBO apud SARTRE, 2012, p. 110).

Franz Kafka é um ótimo exemplo para descrever o fantástico contemporâneo. Em uma


de suas obras mais famosas, A Metamorfose (1912), o autor demonstra o que é o realismo
contemporâneo, fazendo ao mesmo tempo uma crítica à sociedade capitalista, esmiuçando desta
forma a condição humana, pois apesar do personagem principal se transformar num inseto, este
fato extraordinário não é o centro da história. Na história, seguimos o protagonista Gregor
Samsa, um trabalhador comum que não ama seu trabalho, mas que consegue, com este, o
sustento de sua família. Quando se encontra transformado num inseto da noite para o dia, perde
totalmente seu valor para as outras pessoas, não só por não ter mais a aparência de um homem,
mas também por não conseguir mais ser provedor do lar, mesmo ainda conservando os mesmos
sentimentos humanos de antes. Dessa maneira, o escritor tcheco nos expõe os reais interesses
do capitalismo dentro da sociedade contemporânea, que dá mais valor ao capital e à força de
trabalho em si do que às emoções dos trabalhadores.
14

3 O REALISMO FANTÁSTICO NO CINEMA

A literatura fantástica nos impressiona através da narrativa escrita, nos descrevendo o


real e não real e se utilizando de criaturas estranhas ou acontecimentos inesperados inseridos
no mundo que conhecemos. Porém, como bem lembrado por Roas, o realismo fantástico não é
está presente apenas na literatura, mas também em diversas artes, como no cinema.
O cinema é com certeza uma das artes que melhor consegue nos transportar para lugares
muitas vezes inimagináveis, e ver o fantástico sair do papel direto para as telas nos trás outra
percepção. As filmagens intensificam os sentimentos do espectador, como o medo, o
estranhamento, a inquietação, a surpresa, a felicidade ou qualquer outro sentimento que surja
naquele momento. Suas imagens, por sua vez, nos impressionam, principalmente quando
pensamos nas possibilidades visuais que podem ser criadas a partir da leitura de livros, e que
são concretizadas na tela. A relação entre cinema e literatura, portanto, é bastante comum. Basta
pensarmos nas adaptações ou filmes baseados em obras literárias, como por exemplo o filme A
Viagem à Lua (1902) do diretor francês George Méliès. Considerado o primeiro filme de ficção
científica do cinema, tem como inspiração os romances Da Terra à Lua (1865) de Julio Verne
e Os primeiros homens na Lua (1901) de H. G. Wells.
A obra de Méliès foi um marco na época por conta de sua temática, que expõe o sonho
do homem de chegar à Lua e também as possibilidades de avanço da ciência:

O filme ia ao encontro das expectativas de novas conquistas científicas que


marcaram o início do século XX. Esperava-se uma crescente evolução no
campo da ciência, dando continuidade às iniciadas no século anterior. A
conquista do espaço sempre foi para a humanidade um dos seus grandes
objetivos, mas especialmente naquela época, em face das alterações sofridas
pela astronomia no século XIX- de uma ciência voltada principalmente para
os planetas e seus movimentos, para uma ciência dinâmica que visava ao
universo estelar e a física dos corpos nele existentes.
(HEIZIER e GONZALES, 2010, p. 65)

Além do tema, os efeitos especiais do filme também se destacaram. O cineasta francês


aplicou a técnica de stop motion em uma das cenas mais icônicas do cinema, a Lua com feições
humanas sendo atingida pelo foguete.
15

Figura 1 - Cena do filme Viagem a Lua (1902): Lua com feições humanas

Fonte: Blogspot 1

Esta imagem tão conhecida apresenta características do fantástico, pois trata-se de um


elemento real (Lua) que possui características não comuns nela (olhos e boca) sendo atingidos
pelo foguete causando estranhamento no espectador. As ideias inovadoras de Méliès,
classificadas como fantásticas, têm influências claras da experiência como mágico e ilusionista
do cineasta, fazendo com que sua visão imagética caminhe mais longe e classifique o cineasta
como aquele que trouxe o fantástico para o cinema.

Méliès poderia ser chamado já em seu período em atividade como aquele que
trouxe o fantástico e a fantasia para o cinema, sendo historicamente
reconhecido como o “primeiro diretor de ficção científica''. (RIBEIRO apud
TURNER, 2016, p.18)

Anos mais tarde em 1914 inicia a Primeira Guerra Mundial, e é com seu término em
1918 que surge o cinema expressionista alemão. Seu surgimento ocorre com a Alemanha
arrasada e pessimista após sua derrota, e é por influência desses sentimentos que as
características sobre esse movimento foram criadas. Temas como morte, angústia e conflitos

1
Disponível em: http://sobreroteiroseroteiristas.blogspot.com/2015/10/o-roteiro-de-viagem-lua-de-george-
melies.html. Acesso em: 27 jun. 2021
16

psicológicos estavam presentes. Além dessa temática, outros aspectos importantes são os
elementos estéticos utilizados, como a luz e sombra bastante marcados, que criam um alto
contraste entre preto e branco, e os cenários que lembram o palco teatral, mas se utilizando de
uma profundidade de campo que não ocorria em A Viagem à Lua.

Figura 2- Cenário cinema expressionista: O Gabinete do Doutor Caligari (1920):

Fonte: PSTU2

O cinema expressionista também se aproxima da estética gótica, além dos aspectos


românticos que aparecem no agravamento dramático dos sentimentos dos personagens. A
escolha desses elementos estéticos, surgem principalmente por conta de atores e diretores terem
origem no teatro. O produtor e diretor Max Reinhardt foi responsável por formar muitos desses
profissionais, que dos palcos migraram para o cinema.
Um dos filmes mais importantes não apenas para o expressionismo alemão, mas
também para o cinema universal e as diversas linguagens artísticas, é o filme O gabinete do Dr.
Caligari (1920) do diretor Robert Wiene. A obra de Wiene é referência do expressionismo por
seu conceito imagético, tão influente que gerou o termo caligarismo. Obras ligadas ao termo
apresentam cenários distorcidos, ângulos incomuns, artificialidade, sombras, sentimento de
perigo e atmosfera onírica. Vemos influência dessa estética em personagens da cultura pop,

2
Disponível em: https://www.pstu.org.br/o-gabinete-do-dr-caligari-o-centenario-de-um-classico/ Acesso em: 27
jun. 2021
17

como Edward Mãos de Tesoura (1990) ou o personagem Pinguim do filme Batman: O retorno
(1992).

Figura 3 - Cenas do filme: O Gabinete do Doutor Caligari (1920) e Edward Mãos de Tesoura
(1991): Edward e Cesare

Fonte: Moda de Subculturas3

Figura 4 - Cenas dos filmes: O Gabinete do Doutor Caligari (1920) e Batman: O Retorno-
Doutor Caligari e Pinguim

Fonte: PSTU4

Para entender com mais clareza O Gabinete do Doutor Caligari, é necessário contar
brevemente sobre o enredo para compreender melhor seus elementos fantásticos.

3
Disponível em: http://www.modadesubculturas.com.br/2015/07/os-25-anos-de-edward-maos-de-tesoura.html
Acesso em: 27 jun. 2021
4
Disponível em: https://www.pstu.org.br/o-gabinete-do-dr-caligari-o-centenario-de-um-classico/ Acesso em: 27
jun. 2021
18

O filme se inicia com dois homens sentados no banco de um jardim. O mais velho
começa a conversa afirmando a existência de espíritos. Após sua fala surge uma mulher
chamada Jane, com aparência fantasmagórica, que passa na frente dos dois homens. Logo em
seguida o jovem chamado Francis diz que aquela mulher é sua prometida, e que com ela viveu
uma estranha história na cidade de Holstenwall. Nesse momento ocorre um flashback, algo
novo para o universo cinematográfico da época, e Francis começa a narrar o que havia ocorrido.
Na história, Francis e seu amigo Alan vão conferir a apresentação de um hipnotizador chamado
Caligari e o sonâmbulo Cesare, que pode prever o futuro. Alan, curioso, pergunta ao
sonâmbulo sobre seu futuro e a resposta é que em breve Alan estará morto. No dia seguinte
Alan é encontrado morto, e Francis passa a suspeitar da dupla pelo assassinato do amigo, e
denuncia o caso para polícia. A polícia passa a investigar o doutor, porém não encontra nada
suspeito. Pouco tempo depois Caligari manda Cesare matar Jane, noiva de Francis, porém o
sonâmbulo não mata a moça, tentando sequestrá-la. Perseguido pelos vizinhos que escutam os
gritos de Jane, o sonâmbulo deixa-a escapar. Nesse mesmo momento do sequestro, Francis e a
polícia vigiavam Caligari, entretanto o doutor colocou um boneco parecido com Cesare para
parecer que dormia no gabinete, enganando assim Francis e os policiais. Após a descoberta,
Caligari foge e é seguido por Francis, e na fuga o doutor entra num hospício e é revelado que o
diretor do hospício era o próprio Caligari. Francis se junta com os outros doutores e descobrem
que o diretor tem obsessão pela história de outro homem chamado Caligari, um místico do
século XI que utilizava sonâmbulos para cometer assassinatos, ao ponto de utilizar seu nome.
Pouco depois os médicos levam até Caligari o corpo de Cesare, que enlouquece com o que vê
e é posto numa camisa de forças. Nesse momento acreditamos que tudo tenha se resolvido com
a prisão de Caligari, mas não é o que acontece, pois ocorre um Plot Twist. A cena volta para
aquela do início com Francis e o homem mais velho conversando. Os dois personagens se
levantam e se retiram, e vemos que eles estão no hospício, onde se encontram Cesare, Jane e
Caligari. Porém, o doutor tem a aparência menos assustadora do que na história contada por
Francis. Quando Francis encontra o doutor, tenta atacá-lo e diz enfurecido que todos o chamam
de louco. Francis é colocado numa camisa de força e aquele homem que ele acreditava ser
Caligari, diz que agora sabe como curar seu paciente, pois já entende seu problema.
O filme O gabinete do Doutor Caligari carrega diversos aspectos do fantástico,
principalmente quando pensamos sobre a hesitação apontada por Todorov. O autor diz que a
hesitação é necessária para os personagens e leitores (neste caso espectadores) para que o
fantástico aconteça. Esta hesitação acontece logo no início, quando o personagem mais velho
que conversa com Francis afirma a existência de espíritos. Quando isso acontece, o espectador
19

acredita que ocorrerá a presença de espíritos, porém em nenhum momento o filme mostra essas
aparições, ou seja, o espectador é deixado numa suspensão durante o filme inteiro, pois
acreditamos nesse acontecimento como possível. Essas hesitações ocorrem em outros
momentos também, como na quase solução do assassinato de Alan, em que prendem doutor
Caligari, e na reviravolta em que descobrimos que Francis era paciente do hospício e tudo o
que nos foi narrado pode ter sido alucinação do rapaz. Por fim, a cena final que o diretor/Caligari
afirma que agora sabe exatamente como curar Francis nos deixa hesitantes sobre acreditar ou
não na fala do personagem, visto que a solução não é dita, e a face do diretor, apesar de não
amedrontadora como nos foi mostrado no decorrer da história, continua misteriosa.
As dúvidas deixadas no filme nos apontam ao que foi dito anteriormente por Roas, em
que o fantástico surge quando os ambientes seguros se tornam lugares instáveis, e O gabinete
do Doutor Caligari faz justamente isso do início ao fim. Roas também nos apontou sobre o
conceito de medo, que cabe na obra de Wiene pois o sentimento medo causa instabilidade no
mundo real.
A influência de instabilidade entre real e não-real nesses filmes centenários permanecem
também nas produções de cinema atuais, como no filme O Farol (2019) do diretor Robert
Eggers, que tem como inspiração o conto inacabado "The Lighthouse" do escritor Edgar Allan
Poe. O filme retrata o início do século XX, quando o velho faroleiro Thomas Wake (Willem
Dafoe) e seu ajudante Ephraim Winslow (Robert Pattison) trabalham no farol localizado numa
pequena ilha da Nova Inglaterra. O Farol apresenta a solidão desses dois personagens que
vivem em diversos momentos de aflição, causados pelos estranhos comportamentos de Wake e
também pelas superstições e lendas que ocorrem no local. O sentimento de solidão vem
acompanhado com assombro e estranheza, enfatizados pela estética visual e sonora. O filme se
inicia com o som grave emitido pelo farol, repetido ao longo da história, somado às imagens
melancólicas em preto e branco. A escolha do cenário também contribuiu para as sensações
aqui mencionadas, pois se imaginar em um espaço rodeado pela imensidão do mar, onde não
se tem nenhum controle, é assustador. O personagem que mais se afetou com as estranhezas do
lugar é Winslow, visto que é novato na profissão, e não conhece os percalços possíveis já
vividos pelo experiente Wake. A inexperiência de Winslow leva a confusão do que real e não
real, como por exemplo na primeira aparição da sereia. Winslow a encontra num local rochoso
distante da praia, coberta por algas. Quando ele a encontra, ela solta um grito estridente,
assustando o rapaz.
20

Figura 5 - Sereia

Outras cenas também podem ser caracterizadas como realismo fantástico, como na cena
em que Wake e Winslow começam a brigar, e em meio à briga, Winslow olha para o chefe,
mas ao invés deste, vê outro homem no lugar, o verdadeiro Thomas Winslow, que foi deixado
para morrer e teve sua identidade roubada por ele. Em outro momento da briga, ele revê a sereia
e fica parado, então surgem tentáculos e o seguram pelo pescoço. Em seguida, no lugar da sereia
ele vê Wake rindo, porém sua aparência está diferente, sua roupa possui conchas e em sua testa
surge uma espécie de chifre coral.
21

Figura 6 - Wake com conchas e chifre coral

O Farol não apenas nos aponta os comportamentos humanos diante de um espaço


claustrofóbico e solitário, mas também as referências da mitologia grega foram utilizadas para
a produção. Os personagens apresentam características de figuras gregas, sendo Thomas Wake
representação de Proteus e Ephraim Winslow como Prometeus. Proteu é filho de Poseidon e
tem o dom da profecia; no filme Wake prevê a morte do seu ajudante, e cita Proteu e declama
sobre a miséria que cai sobre aqueles que procuram saber mais do que deveriam, e que deve
haver limitações sobre o que nos é oferecido pela vida. Nesse caso Wake fala sobre o farol que
é restrito a apenas ele e que Winslow deve entender que aquela luz que ele tanto almeja, não
será dada a mais ninguém e caso ele tente alcançá-la graves consequências serão tomadas. A
partir dessa fala ocorre exatamente o que Wake havia dito, Winslow chega até a luz do farol,
porém como igual o titã Prometeu sofre as consequências, do qual fica preso em uma rocha
enquanto é devorado por pássaros, no caso do personagem são gaivotas que são os elementos
que desencadeiam os transtornos já no início do filme.
22

Figura 7 - Theodoor Rombouts. s/d. Prometeus. 154 cm x 222,5 cm

Fonte: Museu Real de Belas-Artes da Bélgica5

Figura 8- Winslow semelhante à Prometheus

O Farol através das imagens, da sonoplastia, da cenografia e da dramaturgia, nos


apresenta o conflito de dois personagens que iniciam suas divergências de maneira verbal até
chegar numa relação visceral. Nele, observamos a condição humana apontada por Sartre, como
o fundamental para existência do realismo fantástico, pois a existência de criaturas ou

5
Disponível em: https://www.fine-arts-museum.be/nl/de-collectie/theodoor-rombouts-
prometheus?letter=r&artist=rombouts-theodoor- . Acesso em: 29 jun. 2021
23

acontecimentos anormais dentro do nosso mundo real, servem como mecanismo para notarmos
a real essência do ser humano, e é isso que acontece no Farol.
Os três filmes citados surgem trazendo nas telas o mundo fantástico, criado a partir de
experimentações audiovisuais e referências que se mantém na história do cinema. Essa
experimentação também podemos ver em outro fenômeno audiovisual, o videoclipe.

4 VIDEOCLIPE

É nos anos 80 que os videoclipes ganham popularidade, especialmente com o surgimento da


Music Television (MTV) em 1981, e por conta desse destaque, surgem questionamentos sobre
esse novo gênero audiovisual.
O evento The New Music Seminar 6(1984) foi uma amostra de como esse formato de
divulgação da música se tornou tema para discussão, polarizando opiniões. A cantora Madonna,
por exemplo, foi uma das principais defensoras da utilização dos videoclipes. Um dos seus
principais argumentos é a facilitação de acesso à música, já que parte do público não tinha a
possibilidade de frequentar um show ao vivo, tornando essa uma nova maneira de consumo,
além também de trazer novos fãs. Por outro lado, o músico John Oates aponta a dificuldade que
músicos teriam em realizar videoclipes, visto que agora além de tocar instrumentos e cantar,
também ganharam uma nova função: ser ator.
Atualmente, o ponto de vista de Oates nos causa estranheza, principalmente por conta
da associação natural que fazemos entre música e videoclipe, o que é notado especialmente nos
artistas pop.
A cantora Lady Gaga lançou em 2020 o single e videoclipe Stupid Love. Através desse
lançamento, expectativas sobre o trabalho da cantora foram criadas, principalmente quando
observamos o trajeto musical percorrido por Gaga nos últimos anos, tendo passado por gêneros
não tão aclamados pela maioria do seu público, como country e jazz. Stupid Love faz parte do
álbum Chromatica, lançado no mesmo ano, o que para alguns marcou o retorno da cantora ao
universo pop, contendo batidas do pop eletrônico, clipes coreografados, figurinos chamativos,
além de trazer como convidados os cantores Elton John, Ariana Grande e o grupo coreano Black
Pink. Dessa forma, os videoclipes além de serem um meio de divulgação do novo trabalho
artístico, também funcionam para criação e perpetuação da imagem do artista:

6
New Music Seminar é um festival e conferência de música que ocorre em Nova Iorque, Estados Unidos.
24

Desde o início dos anos 1980, os videoclipes funcionam como vitrines para
cantores e bandas, divulgando não apenas trabalhos musicais (canções,
álbuns, shows etc.), mas ainda servindo, para os artistas, como ferramentas
para a construção de sua imagem, algo marcadamente nutrido pelas suas
diferentes vinculações ou filiações extra-musicais (moda, política, artes
plásticas, dança, cinema etc.) (BARRETO, 2009, p.26)

Enquanto mecanismo de divulgação e construção da imagem do artista ou banda, o


videoclipe também está sempre aberto às experimentações possíveis. Isso ocorre porque, “o
videoclipe é um formato enxuto e concentrado, de curta duração, de custos relativamente
modestos se comparados com os de um filme ou de um programa de televisão e com um amplo
potencial de distribuição” (MACHADO, 2001 p.174).
Para além da realização mais viável do videoclipe, é também importante se atentar à
versatilidade dos artistas que produzem esses trabalhos, pois diversos deles percorrem áreas
como cinema, televisão, publicidade, artes plásticas, entre outros. O diretor francês Jean-
Baptiste Mondino é um bom exemplo quando se trata do artista que percorre diversas áreas da
artes. De acordo com Barreto (2009, p.79), Mondino carrega experiências como DJ e
publicitário, o que contribuiria para a construção de sua carreira no meio audiovisual, além de
realizar seu próprio videoclipe, La Danse des Mots7, que demonstra elementos característicos
do diretor.
Dentro do espírito pioneiro característico do diretor, esse trabalho antecipou
alguns recursos, convenções e estratégias utilizadas posteriormente em outros
videoclipes, a exemplo do vínculo entre a velocidade de edição e mudanças
de enquadramento com o ritmo musical, da multiplicidade de participantes,
cenários e performances, da inclusão de efeitos gráficos e da atmosfera lúdica
e aparentemente descomprometida (BARRETO, 2009 p. 80)

Outro exemplo é Chris Cunningham, artista plástico que trabalhou com influências variadas
como publicidade, videoarte e efeitos especiais em suas produções audiovisuais. Desde o início
da carreira Cunningham demonstrava interesse por estruturas robóticas, o que pode ser
observado em suas esculturas. Vemos isso reverberado no famoso clipe All Is Full Of Love
(1999) da cantora Bjork, que têm robôs com face humana que relacionam-se sexualmente. Isto
posto, é notável que experiências anteriores em outras áreas tenham construído o repertório
desses diretores, e também como o videoclipe possibilitou novas articulações de linguagem no
campo audiovisual.

7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZwXI7MBaJtE . Acesso em 29 jun. 2021.
25

No texto Reinvenção do videoclipe de Arlindo Machado, o autor nos mostra como o


videoclipe deixou de ser apenas um vídeo promocional para cantores e bandas, e se tornou uma
expressão artística que requer cada vez mais atenção. Machado aponta que o videoclipe propõe
“mentalidades inventivas, capaz de dar continuidade ou novas consequências a atitudes
experimentais inauguradas com o cinema de vanguarda dos anos 20, o cinema experimental
dos anos 50-60 e a videoarte dos anos 60-70” (MACHADO, 2001, p.173).
Quando observamos a construção do videoclipe, entendemos ser um gênero aberto a
experimentações, como visto anteriormente nos casos nos quais os diretores ocuparam espaços
em demais áreas da arte e utilizaram dessas experiências para a produção videoclíptica. Essas
experimentações são claras quando tratamos da narrativa do videoclipe, na qual é primordial
uma linearidade de acontecimentos, e também na qual sua construção visual não precisa
necessariamente estar em acordo com a letra da música. Claudiane Carvalho nos aponta que a
narratividade do videoclipe não está necessariamente nas narrativas tradicionais vistas na
televisão e cinema, e sim ligadas aos ritmos musical e imagético. Porém, Carvalho deixa claro
que a classificação de videoclipes apenas como narrativas não lineares torna-se problemática,
dado que o grau de variabilidade do gênero é extenso, e podemos ver tramas lineares em
diversas produções. O cantor The Weeknd, por exemplo, como parte da divulgação do álbum
After Hours (2020), lançou os clipes sequências Heartless, Blinding Lights, Until I bleed out,
In your eyes, Too late e Save Your Tears, além de um curta-metragem e de aparições na
televisão, que mesclam o enredo do videoclipe dentro dos programas de televisão da vida real.
Nos videoclipes, curta-metragem e apresentações televisivas, a narrativa linear se faz clara
principalmente pelo figurino do cantor, mantendo a mesma vestimenta nos vídeos, e pela
trajetória do protagonista, mostrando as consequências dos atos feitos anteriormente.
Um fator importantíssimo também para a narrativa do videoclipe é a performance do
artista, pois através dela podemos ter uma breve ideia do que o clipe vai tratar. Barreto nos
aponta quatro tipos de performances: performance artificiosa, performance expressiva,
performance naturalizada e performance imersiva.
A performance artificiosa é definida por apresentações que utilizam do canto,
coreografia, humor, além de números artísticos diversos. Esse tipo de performance busca
mostrar a versatilidade do artista musical, além de apresentar momentos não realistas e não
narrativos, pois utiliza de efeitos de pós-produção.
A performance expressiva demonstra a intensidade emocional, levando em conta a letra
da canção para a criação do estilo do videoclipe. Essa performance é dividida em dois
subgrupos, sendo eles o enfático e o contido. No enfático são levadas em conta as expressões
26

corporais e faciais ao máximo, já que é através delas que o artista demonstra sua total emoção
ao público. Já no contido a expressão é mais comedida, na qual a expressividade acontece aos
poucos e o cantor é apresentado num enquadramento mais fechado.
A performance naturalizada demanda familiaridade entre artista e público. São
destacadas ações naturais da banda ou cantor, sem artifícios na execução, o que é definido por
Barreto como “simples e discreto” (low profile). Podemos ver nessa performance situações do
cotidiano, ou também apresentações ao vivo.
Por fim, na performance imersiva, o performer não está em primeiro plano no
videoclipe, aqui muitas vezes são utilizados clipes abstratos, animados e pictóricos. Dentro
dessa categoria são comuns as músicas instrumentais e algumas vezes podem conter samplers
de cantores convidados.
Nota-se que os videoclipes possuem abertura para novas experimentações, dando
diversas possibilidades para o artista mostrar como esse fenômeno pode ser multifacetado.
Podemos observar isso principalmente quando vemos como os videoclipes mudaram no
decorrer dos anos, como exemplo Bohemian Rhapsody 8(1975) da banda inglesa Queen. No
videoclipe da banda, vemos dois cenários, no primeiro vimos silhuetas e os integrantes em coro,
que mais tarde retorna com os rostos dos músicos multiplicados, dando potência no coro de
vozes que se destaca nesse grande sucesso. No segundo cenário os integrantes estão
performando como em um show, assim ocorre uma intercalação entre esses dois cenários.

Figura 9 - Videoclipe Bohemian Rhapsody (1975)

8
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fJ9rUzIMcZQ. Acesso em 1 jul. 2021
27

Anos mais tarde, em 1976, Peter Gabriel lança a premiada música Sledgehammer9, na
qual vemos o videoclipe apresentado de outra forma, principalmente nos materiais utilizados
para sua realização. O clipe é feito com animação stop-motion em claymotion10 e pixilation
11
por Aardan Animation e a dupla Brothers Quay. Em Sledgehammer temos uma criatividade
inovadora, em que além de nos mostrar outras possibilidades para sua construção, também
apresentou referências das artes plásticas como Giuseppe Arcimboldo e Jackson Pollock.
principalmente nos apresentou a exploração imagética que perpetuam o êxito do artista.

Figura 10- Peter Gabriel em Claymotion no videoclipe Sledgehammer (1976)

Ao observar esses videoclipes, percebemos como existem diversificações na temática


dos vídeos e nos materiais utilizados. Em Bohemian Rhapsody vemos por meio da performance
expressiva a ópera rock que provavelmente narra a história do vocalista Freddie Mercury. E em
Sledgehammer temos uma narrativa sexual pela performance artificiosa que nos apresentou a
exploração imagética para o vídeo que perpetua o êxito do artista.

5 ALBUM AFTER HOURS

Fica claro que os videoclipes possuem diversas possibilidades para sua criação, e o
álbum After Hours do músico canadense Abel Tesfaye, vulgo The Weeknd, conseguiu nos

9
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OJWJE0x7T4Q . Acesso em 1 jul. 2021
10
Técnica de animação feita com massinha de modelar
11
técnica de stop motion na qual a pessoa é fotografada quadro a quadro, resultando em animação
28

mostrar através do realismo fantástico uma dessas formas. After Hours é lançado em 2020, pelas
gravadoras Republic e XO. O músico utilizou das batidas dos anos 80 e do R&B para as canções
e usou como referência o cinema para produção dos videoclipes desse álbum pop tão aclamado.
After Hours possui 14 faixas e entre elas, sete se tornaram videoclipes. O álbum tem como tema
os acontecimentos na vida do próprio artista, mostrando a utilização excessiva de drogas, álcool
e o sentimento de solidão. Os videoclipes lançados possuem uma sequência narrativa, nas quais
não apenas ficam na gama dos videoclipes, mas também se tornam presentes em programas
televisivos do mundo real. Para falarmos melhor sobre o realismo fantástico presente no
trabalho de Abel Tesfaye, inicialmente será descrito sobre cada videoclipe, e em seguida será
apontado como o realismo fantástico se fez presente nessa produção audiovisual.

5.1 Heartless12

Heartless é o primeiro single e videoclipe do álbum After Hours, com direção de Anton
Tammi. O protagonista do videoclipe é o próprio músico, que junto com seu amigo aproveitam
a noite em Las Vegas. Logo de início percebemos referências do cinema, com o filme Medo e
Delírio (1998), não apenas pelo cenário, mas também pelo tema, a partir do qual ambos os
personagens utilizam drogas de maneira excessiva e principalmente as consequências que sua
utilização resulta.

Figura 11- The Weeknd dentro do cassino

12
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1DpH-icPpl0& . Acesso em 3 jul. 2021.
29

Figura 12 - Cena de Raoul Duke dentro do cassino do filme Medo e delírio (1998)

Figura 13 - The Weeknd e amigo entrando no Cassino


30

Figura 14 - Raoul Duke e seu amigo Dr.Gonzo entrando no cassino

Vemos alternância entre dois cenários, o primeiro a cidade de Las Vegas, que temos o
exagero das luzes dos cassinos, e o segundo a parte interior do cassino. E apesar do cenário ser
a cidade conhecida pelas diversas casas de jogos, o foco é como a mente dos personagens
reagem diante do consumo de álcool e drogas em um lugar tão movimentado. O vídeo mostra
esses efeitos através de rápidas imagens de momentos de curtição do artista, que altera quando
o cantor decide consumir uma substância psicoativa encontrada na pele de um anfíbio.

Figura 15 - The Weeknd consumindo substância psicoativa


31

É após esse feito que o músico para por alterações em seu corpo, que se aproximam com das
características do animal, através dos olhos e pele. Quando ocorre as alterações no corpo do
personagem, ele se mostra surpreso e assustado, visto que naquele momento não consegue
distinguir entre o real e irreal, aspecto fundamental para reconhecermos o realismo fantástico.

Figura 16- Olhos de anfíbio

Figura 17 - Pele de Anfíbio


32

Próximo do término do videoclipe o músico surge correndo e parece estar fugindo de algo, pois
nessa corrida ele a todo momento olha para trás, encerrando com sua imagem refletida e
distorcida, que remete ao cartaz de Medo e Delírio

Figura 18 - Cartaz do filme Medo e Delírio13

Fonte: Lab111

13
Disponível em: https://www.lab111.nl/movie/fear-and-loathing-in-las-vegas/ . Acesso em 5 jul. 2021.
33

Figura 19 - Rosto distorcido semelhante ao cartaz Medo e Delírio

5.2 Blinding Lights14

O segundo videoclipe lançado é Blinding Lights com direção também de Anton Tammi.
Nesse segundo lançamento percebemos que se trata da continuação de Heartless, pois o figurino
do cantor e o cenário permanecem os mesmos. Em Blinding Lights o artista não está mais
acompanhado pelo amigo, ele agora se encontra sozinho na maior parte do tempo, que vai de
acordo com letra da canção, em que o compositor enfatiza a solidão sentida na cidade do
pecado.
No início do videoclipe vemos o cantor ferido, porém o motivo não é dado naquele
momento, é só mais tarde que entendemos que aqueles machucados são causados por dois
homens que aparecem depois. Além desses dois homens, também surge uma mulher, que canta
apenas para o cantor em um bar. A aparição da moça parece deixar The Weeknd hipnotizado,
e é nesse momento que ocorre um acontecimento não comum do mundo real, pois a personagem
consegue trazer o cantor para próximo por meio da levitação.

14
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4NRXx6U8ABQ . Acesso em 5 jul. 2021.
34

Figura 20 – Cena de Levitação

Nas cenas ainda são mantidos os efeitos causados pelos alucinógenos e para dar esse
entendimento, vemos o protagonista andando de carro em alta velocidade e também as luzes
em determinado momento estão mais intensas e ofuscantes. Em Blinding Lights as luzes são o
elemento fundamental, pois torna-se uma marcação para acontecimentos mais brutos na cena,
no caso a luz vermelha cumpre esse papel somada ao bar e o terno do protagonista que possui
a mesma cor. As luzes vermelhas servem como alerta para o espectador, aqui elas surgem no
momento em que The Weeknd apanha dos dois homens. Essas luzes também irão aparecer nos
demais clipes com a mesma função.

Figura 21 - Luzes vermelhas sinalizando cenas de briga


35

Figura 22 -Luzes vermelhas sinalizando dor

Quando The Weeknd é ferido é retomada a cena do clipe anterior, em que ele corre pelas
ruas de Las Vegas como se estivesse fugindo. No decorrer do clipe, também vemos o cantor
dançando de modo alegre, em que se mistura com o sentimento de solidão ou dor dito na canção
e observado igualmente nas imagens. Essa mescla de sentidos do protagonista mostra sua
intensidade emocional que aumenta mais ainda por conta da utilização de drogas e bebidas. Isso
nos demonstra performance expressiva, pois é levado em conta a letra da música e as expressões
corporais e faciais feitas pelo protagonista são enfáticas

5.3 Until I Bleed Out15

Diferente dos dois primeiros videoclipes, Until I Bleed Out tem direção do selo XO.
Aqui o cenário não é mais o mesmo, porém temos ainda o mesmo figurino e o cantor permanece
com os ferimentos no rosto. O videoclipe inicia com imagens distorcidas do cantor que ficam
girando e que aos poucos ficam nítidas. Com a imagem mais clara entendemos que ele está em
uma festa, entretanto o sorriso que antes aparecia em Blinding Lights não existe mais. Na letra
da canção é abordado como o cantor não quer mais manter esse ritmo frenético causada pelas
substâncias que consome, dessa forma é repetido o verso "I keep telling myself I don't need it
anymore". Nesse vídeoclipe o cantor aparece rodeado de pessoas e o clima do ambiente é

15
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i58MNnk6BhY. Acesso em 8 jul. 2021.
36

festivo, entretanto o cantor não parece querer fazer parte daquilo, tanto que aparece
desnorteado. Essa confusão mental fica mais intensa através do ambiente que não para de girar,
além das pessoas que o impedem de sair daquela do local. Como em Heartless e Blinding
Lights, ocorre algo não esperado no mundo real, em que os olhos do protagonista mudam de
cor, e em seu rosto surgem protuberâncias que se movimentam. Quando acontece essas
alterações corporais no artista, apenas uma pessoa da festa percebe e quando nota essas
transformações seu rosto aparece espantado. Já para o final do clipe, The Weeknd consegue
sair da festa e surge deitado no meio de um deserto, rodeado por algumas luzes.

Figura 23 - Transformação no rosto


37

Figura 24 - Personagem espantada

Figura 25 – The Weeknd deitado no deserto


38

5.4 Snow Child16

Snow Child é um videoclipe feito em animação, com direção de Arthell Isom. O começo
do videoclipe inicia com a cena final de Until I Bleed Out, em que vemos o cantor deitado no
deserto.

Figura 26 - The Weeknd deitado no deserto, mas agora feito em animação

No videoclipe, são colocadas referências de trabalhos feitos anteriormente por The


Weeknd, como os álbuns House of Ballons (2011), Starboy (2016) e My Dear Melancholy
(2018) e o próprio After Hours (2020). Snowchild portanto, nos apresenta cada fase da carreira
do músico, e isso nos lembra o que foi dito por Barreto, em que os videoclipes não apenas
servem como meio de vitrine para expor o trabalho do músico, mas também servem como
ferramenta para observamos como foi feita a construção da imagem do artista durante o decorrer
de sua carreira.

16
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G0JKdFjWkLA. Acesso em 9 jul. 2021.
39

Figura 27 - Cena do videoclipe Starboy (2016) - The Weeknd ft. Daft Punk

Figura 28- Cena de Snow Child (2020)

5.5 Blinding Lights no programa Jimmy Kimmel Live!17

Quando falamos sobre o realismo fantástico devemos ter em mente que qualquer
acontecimento fora do normal deve ocorrer em relação ao nosso mundo real. A apresentação
de The Weeknd no programa de televisão Jimmy Kimmel Live, faz com que a narrativa criada

17
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VJYpyC1SNPc . Acesso em 9 jul. 2021.
40

dentro do videoclipe se aproxime mais ainda do espectador, principalmente por utilizar dessa
apresentação para o curta-metragem que anuncia a estreia do álbum After Hours, ou seja a
barreira entre real e ficção são ultrapassadas.
A apresentação no programa estadunidense ocorreu da forma como já conhecemos
todos os programas com plateia, em que o artista é brevemente apresentado junto do seu novo
álbum e logo em seguida ele realiza sua apresentação. E apesar desse vídeo não ser classificado
como videoclipe, ele faz parte da narrativa criada para os outros clipes do mesmo álbum. Aqui
vemos a performance expressiva, em que o cantor demonstra intensidade emocional, criando
laço entre artista e plateia.

Figura 29- Cena do programa Jimmy Kimmel Live!


41

Figura 30 - Cena da apresentação no programa Jimmy Kimmel Live!

5.6 After Hours- Short Film18

Como falado anteriormente, a gravação do programa Jimmy Kimmel Live, foi utilizada
para realização do curta-metragem dirigido por Anton Tammi, de estreia do álbum After Hours.
O programa aparece no início do vídeo com a platéia aplaudindo o cantor e o apresentador
agradecendo sua presença.

Figura 31 - Cena do programa Jimmy Kimmel Live! no curta-metragem After Hours

18
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oq9AgxHvGjw&t=231s . Acesso em 12 jul. 2021.
42

Em seguida The Weeknd percorre pelos corredores do estúdio que logo ficam com as
luzes vermelhas. Nesse trajeto até a saída, o humor do cantor vai se alterando, no final da
apresentação ele aparece sorridente e quando chega na saída do local aparece desorientado e
triste. O cantor começa a caminhar em direção ao metrô e a trilha sonora do curta-metragem
são algumas canções do álbum. Com sua chegada na estação do metrô ele parece chorar e gritar,
porém não temos o som desses áudios que externam esses sentimentos, entretanto esse
sentimento de desespero do cantor é externado pelas mesmas luzes vermelhas que serviram de
alerta para quando ocorrer algo fora do normal.

Figura 32 - Luzes vermelhas sinalizando o cantor e o espectador


43

Figura 33 - The Weeknd é arrastado após as luzes vermelhas

É logo após o surgimento da luz vermelha que o cantor é derrubado e arrastado pela estação de
metrô. As cenas se misturam entre o cantor sendo arrastado e o metrô que passa rapidamente,
criando a sensação de descontrole e confusão mental para o artista e espectador. Depois do
momento conturbado, a cena altera para uma mulher e homem que conversam enquanto sobem
a escada rolante da estação de metrô, em direção ao elevador. Quando a porta do elevador se
abre para os dois entrarem, vemos The Weeknd aparentemente calmo aguardando a entrada da
dupla. Entretanto quando a porta está para fechar vemos o cantor olhar para o rapaz e seguida
escutamos sons de gritos com o elevador já fechado. O videoclipe termina com a tela vermelha
que pisca rapidamente e é nesse momento que ficamos apreensivos, pois é a luz vermelha que
nos alerta sobre episódios improváveis, e dessa vez a luz acontece de maneira mais intensa,
além também dos gritos ocorridos no elevador em que não sabemos no que sucedeu. Os gritos,
o ambiente e a trilha sonora com tons agudos que lembram filmes de terror, trazem o elemento
medo para a cena, pontuada por Roas como um sentimento que consegue apresentar o fantástico
da melhor forma possível, pois perpassa entre o real e irreal.
44

Figura 34 - Cena elevador

5.7 In Your Eyes19

Com direção de Anton Tammi, In your Eyes inicia com a cena do elevador do curta-
metragem After Hours, em que agora descobrimos como os gritos foram ocasionados. Quando
o elevador se fecha vemos por um espelho que The Weeknd carrega em suas mãos uma faca e
em seguida ataca o rapaz. A moça que estava junto deles, consegue fugir do ataque do cantor e
sai correndo pelas ruas da cidade, feito igual The Weeknd em Heartless. No videoclipe vemos
mais referências cinematográficas, como o filme, Psicose (1960). A cena semelhante com o
filme surge com a fuga da moça, da qual é perseguida pelo cantor que porta uma faca, o objeto
cortante recebe closes igual o filme Psicose. Além desta cena, vemos o cantor na escada com
as luzes baixas em que apenas conseguimos ver sua silhueta que é similar a sombra de Norman
Bates.

19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dqRZDebPIGs . Acesso em 12 jul. 2021
45

Figura 35 – Close da faca, semelhante ao filme Psicose (1960)

Figura 36 - Silhueta semelhante ao filme Psicose (1961)


46

Figura 37 - Cena do filme: Psicose (1961)

A segunda referência é do filme O Iluminado (1980), em que surgem as luzes vermelhas


que já vimos nos videoclipes anteriores e que serviram de alerta aos espectadores. Aqui as luzes
estão mais presentes, fazendo com que em alguns momentos a imagem fique completamente
vermelha, igualmente na cena em que o protagonista Jack Torrance (Jack Nicholson), conversa
com sua esposa Wendy (Shelly Duvall), em que decidem sobre o que fariam com seu filho
Danny (Danny Loyd). Na cena do filme, quando Torrance conversa com sua esposa ele a
aterroriza e nesse momento a clássica imagem do elevador que jorra sangue aparece
rapidamente, porém o local surge com a imagem um pouco embaçada e completamente
vermelha, igual ao corredor onde a mulher de In Your Eyes percorre para escapar do cantor.
Não é apenas o cenário que se assemelha com O iluminado, visto que ambos os personagens
do videoclipe e filme aterrorizam outra pessoa.
47

Figura 38- Cenário vermelho do videoclipe In Your Eyes

Figura 39 - Cena do elevador com sangue do filme: O Iluminado (1980)

A cena seguinte de In Your Eyes, é a personagem tentando escapar do cantor. Ela entra
em uma espécie de balada e no cenário temos ainda as luzes vermelhas que em alguns
momentos se mesclam com luzes brancas, nessa intercalação de luzes ocorre blackouts e deixa
48

a personagem insegura no seu esconderijo, pois perde o cantor rapidamente de vista. A


personagem fica pouco tempo na balada e sai do local em direção a uma caixa de vidro, e que
encontra um machado. Ela pega o objeto para se defender de qualquer ataque que venha do seu
perseguidor. É nesse momento que ocorre o inesperado, comparado aos videoclipes do mesmo
álbum, pois a música para e vemos uma cena que se assemelham com filmes de terror, da qual
a pessoa perseguida está em um local com pouca iluminação e se esconde com algum tipo de
arma para se defender. Enquanto ela caminha pelos corredores ela sente uma presença e lá está
o cantor, e a primeira atitude que a mulher toma é decepar a cabeça do protagonista com o
machado. Com esse acontecimento, somos surpreendidos, pois trata-se da morte do personagem
principal e a partir disso concluímos que aquele pode ser o último videoclipe do álbum After
Hours ou que com a morte do personagem, o clipe poderia se encerrar de forma clichê.
Entretanto, a mulher que assassina o protagonista volta para a balada e dança com a cabeça do
seu perseguidor, que exibe como um troféu. Essa situação no videoclipe causa bastante
estranheza, pois os comportamentos dos personagens parecem que foram trocados, o cantor que
antes parecia ameaçador e amedrontador se torna vulnerável e a moça agora carrega a conduta
do protagonista. In Your Eyes, apesar de mostrar a morte do protagonista, consegue deixar em
suspenso o que poderá acontecer com a personagem que acabara de assassinar o cantor ou quais
as possibilidades que poderiam ser tomadas nos demais videoclipes.

Figura 40 - Personagem dança com a cabeça do cantor


49

5.8 Too Late20

Too Late tem direção da dupla Cliquamundo e diferente dos videoclipes anteriores o
cenário não é o mesmo, aqui ao contrário das luzes vermelhas que iluminavam a escuridão,
temos a claridade que predomina. O videoclipe inicia com a imagem de uma cidade, em que
aos poucos a câmera dá zoom em um carro que desce uma rua. Ao mesmo tempo que a câmera
focaliza no carro, escutamos duas mulheres conversando sobre uma cirurgia que realizaram,
que em seguida vemos a imagem das duas personagens que aparecem com ataduras no rosto.
O jeito das duas mulheres nos lembra as personagens do filme cômico As Branquelas (2004),
em que são apresentadas de maneira caricata as socialites estadunidenses, em que a hierarquia
desse grupo é baseada na situação econômica e na estética corporal dos indivíduos.
Ao observarmos essas duas novas personagens não esperamos que The Weeknd surja,
visto que elas são distintas dos demais personagens que vimos anteriormente e além também
que no videoclipe In Your Eyes, o cantor havia sido assassinado. Entretanto, enquanto as duas
andam de carro, percebem que têm algo em seu caminho e quando vão verificar do que se trata,
veem a cabeça do cantor no meio da estrada. Quando percebem que tratava-se da cabeça de
uma pessoa, ambas não se apavoram com a situação, elas naturalizam aquele momento, que
lembra um pouco a personagem que assassinou The Weeknd, pois também naturalizou em certo
momento a morte do protagonista. Porém, o modo que as socialites naturalizam difere muito da
personagem de In Your Eyes, pois as duas levam a cabeça para mansão delas e praticam de
tudo.
A cena seguinte elas resolvem chamar um stripper e acabam assassinando o rapaz, esse
momento causa mais desconforto e instabilidade para o espectador, pois ao decorrer do
videoclipe acontecem situações que pareciam improváveis ao nosso mundo real e também a
narrativa que o trabalho do artista propõe. A situação do assassinato do stripper é talvez a mais
absurda que vemos, pois elas utilizam o corpo do stripper para encaixar na cabeça do The
Weeknd, ou seja, tentam construir alguém com o padrão desse grupo específico que nos é
apresentado. O videoclipe se encerra mostrando a mansão da dupla e na frente da casa passa
uma mulher passeando com seu cachorro, mostrando, portanto, como se nada tivesse acontecido
naquele local.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wh8DT09QCHI . Acesso em 15 de jul. 2021.
50

Figura 41 - Personagens encontram a cabeça do cantor na estrada

Figura 42 - Personagens tentando costurar a cabeça do cantor em outro corpo


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5.9 Save Your Tears21

Também dirigido por Cliquamundo, Save Your Tears nos surpreende com o retorno do
cantor, porém ele aparece completamente transformado, seu rosto está quase irreconhecível por
conta das cirurgias plásticas. No videoclipe não tem nenhum recorte de uma cena exata do
videoclipe anterior, porém se torna impossível não relacionar com Too Late, pois as socialites
também utilizam de maneira exagerada os procedimentos estéticos. Com o retorno do
protagonista que estava morto, temos a impressão de que o ato de transplantar o corpo de outro
homem na cabeça do The Weeknd funcionou, e isso fica mais forte por conta das diversas
cirurgias que vemos no músico. Esse acontecimento com certeza é uma condição sobrenatural,
que é presente no realismo fantástico, pois surpreende o espectador que não esperava o retorno
do cantor.
A imagem inicial do videoclipe é um baixo sendo tocado, e que aos poucos mostram os
demais músicos até chegar na imagem do cantor. A partir disso entendemos que se trata de uma
apresentação que ele realiza, entretanto a plateia presente não é comum, pois não reagem com
sua performance e além disso todos utilizam máscara, incluindo também os músicos que o
acompanham. Com o decorrer do videoclipe surge uma moça que é a única que não utiliza a
máscara, The Weeknd vai em sua direção, puxa ela para acompanhá-lo. Na performance a
câmera mostra que o cantor carrega uma arma atrás das costas e enquanto ele canta para a
mulher, ocorre um blackout, e quando as luzes são acesas ele faz com que a mulher segure a
arma e aponte para a cabeça dele, ela grita assustada com a situação e a cena altera. Na cena
seguinte vemos novamente as luzes vermelhas que formam a silhueta do cantor, ele permanece
com arma e começa a dançar que nem dançava pelas ruas no videoclipe Blinding Lights. O clipe
encerra com o cantor apontando novamente a arma na sua cabeça e quando ele dispara saem
confetes do cano do revólver e é esse é o único momento que vemos a plateia se manifestar,
soltando som de espanto e em seguida aplaudem The Weeknd.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XXYlFuWEuKI . Acesso em 20 de jul. 2021
52

Figura 43 - Personagem com a arma apontada para o cantor

Figura 44 - The Weeknd aponta a arma para própria cabeça

6 O REALISMO FANTÁSTICO EM AFTER HOURS

De acordo com Todorov, o realismo fantástico acontece quando a dúvida se instala


diante do real, ou como ele chama, a vacilação sentida pelo personagem e pelo leitor. Para o
escritor, é necessária a dúvida sobre os acontecimentos fantásticos que ocorrem no universo
real, ou seja, sempre devemos ser hesitantes sobre crer ou não. Já para Roas, o realismo
fantástico não deve ser apenas definido pela dúvida, visto que o gênero trata-se da irrupção do
sobrenatural no mundo real. Portanto duvidar, acreditar ou não acreditar também são válidas
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para o realismo fantástico acontecer. Sartre já nos mostra outro viés sobre o assunto, pois sua
atenção não está apenas em estranhas criaturas que percorrem o universo real, mas também no
que considera o elemento central do fantástico: o homem inserido na sociedade. O intuito de
Sartre é observar a essência humana frente a acontecimentos sobrenaturais, e é nesse viés que
os videoclipes do álbum After Hours se encaixam.
Sabemos que a principal referência para criação das músicas são acontecimentos da
vida de Abel Makkonen Tesfaye. Quando então são transmitidos pelo meio audiovisual, esses
acontecimentos ganham outra perspectiva. No videoclipe de Heartless, o primeiro dentro da
narrativa de After Hours, vemos o músico utilizando drogas e bebidas de maneira
descontrolada, chegando a quase se transformar em um anfíbio. Esse elemento extraordinário
deve ser analisado para a compreensão das consequências geradas a partir das ações do
personagem, mas também além disso: ao falar sobre a utilização de substâncias legais ou ilegais,
colocamos em debate os impactos sociais causados pela sua utilização. Esses impactos são
apontados nas letras do músico, como em Until I Bleed Out, em que cantor diz não querer mais
fazer uso das substâncias: "Well, I don't wanna touch the sky no more/I just wanna feel the
ground when I'm coming down/It's been way too long/And I don't even wanna get high no
more/I just want it out of my life". Ao entrar neste debate social sobre a utilização das drogas,
temos a polarização de opiniões. Um lado postula a droga como perigo à saúde pessoal e
coletiva, além de sua vinculação com a criminalidade e a violência que surge a partir desta, e
que a solução está na punição de acordo com a lei. Já o outro lado considera que com a proibição
os danos são maiores tanto na saúde como no tráfico, visto por exemplo no período da Lei Seca
norte americana, quando o consumo de bebidas alcoólicas foi proibido nos Estados Unidos, o
que gerou o aumento de produção ilegal de álcool e de seu consumo.
O modo que The Weeknd expõe as consequências que lhe foram causadas pelo uso de
álcool e substâncias ilícitas ao longo dos videoclipes nos causa diversos sentimentos. No início
ficamos empolgados ao ver o cantor curtir a noite com seu amigo, porém aos poucos vemos
como seu comportamento se altera de acordo com os acontecimentos. As mudanças em seu
humor são percebidas a partir da velocidade e mudanças da imagem e música, que sempre
conversam entre si. A combinação entre imagem e música, quando vista no cinema, é chamada
de música empática, o que quer dizer que "a música exprime diretamente a sua participação na
emoção da cena, dando o ritmo, o tom e o fraseado adaptados, isto é evidentemente em função
dos códigos culturais da tristeza, da alegria, da emoção do movimento" (CHION, 2011, p.14).
Nesse caso de Chion, sabemos que a música é criada a partir da imagem. No caso dos
videoclipes a ordem se altera: as imagens são criadas a partir da música, mas ainda assim foram
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utilizados sons não pertencentes às músicas do cantor. No curta-metragem de estreia do álbum,


por exemplo, a música transmite apreensão e, aos poucos, sensação de velocidade, que muda
de acordo com as emoções do protagonista e transmite maior movimento nas ações da imagem.
Outro exemplo acontece no videoclipe de In Your Eyes. No momento em que a mulher carrega
um machado e se esconde do músico, escutamos a própria música In Your Eyes numa versão
mais aguda, método recorrentemente utilizado em filmes de terror, como no filme Dead Silence
(2007). Há também momentos que a música diminui de velocidade, e são acrescentados ruídos
do próprio local onde acontece a ação.
Já sabemos que Sartre observa o comportamento humano diante dos acontecimentos
fantásticos no mundo real. Além disso, temos outra característica também apontada pelo
filósofo, que é a maneira como esses eventos extraordinários ganham naturalidade para os
personagens. Vimos ao decorrer dos videoclipes como os personagens apresentados reagiram
de modo natural diante de episódios considerados absurdos. A primeira situação de naturalidade
é com a personagem do videoclipe ''In Your Eyes'' que decapita o cantor e logo em seguida
dança com a sua cabeça. A segunda situação são as personagens de Too Late, que pegam a
cabeça do cantor, levam para a mansão e utilizam dela para satisfazê-las sexualmente. Essa
situação em específico aborda o tema da hiperssexualização do homem negro, pois as
personagens não ligam para o que houve com aquele homem que encontraram na estrada, se
importando apenas com o prazer físico que podem conseguir com ele. Too Late também expõe
como a sociedade sempre está em busca do corpo perfeito, o que reverbera no último videoclipe,
Save your tears, no qual cantor surge com o rosto completamente mudado, em decorrência da
cirurgia plástica. Este clipe também não apenas aborda a maneira como a sociedade
contemporânea busca se encaixar em determinados padrões estéticos, mas, para alguns pode
talvez ser visto como uma resposta ao Grammy 2021, pois o álbum After Hours, apesar de tão
aclamado pelo público e pela crítica, não foi indicado em nenhuma categoria. O videoclipe Save
Your Tears se assemelha a uma premiação, mas a plateia não se manifesta, e o protagonista
realiza de tudo para que haja uma resposta por parte do público presente. Essa ideia de que o
videoclipe pode ser uma resposta a premiação se dá principalmente por conta de uma cena em
que o cantor joga um troféu para o público. O silêncio da plateia na maior parte do videoclipe
corresponde à ausência de manifestação de alguns artistas e da própria instituição no decorrer
dos anos em relação à postura racista da premiação. Ao falar sobre o assunto, o músico aponta
como o Grammy é taxativo quando trata-se de músico negros, pois os colocam apenas na
categoria R&B ou Rap, sendo que nem todos se sentem contemplados por esse gênero musical,
sendo o próprio The Weeknd um exemplo disso.
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No realismo fantástico vemos circunstâncias irreais acontecendo no mundo que


conhecemos, e os videoclipes de After Hours trabalham isso de modo crescente durante a
narrativa. Como já foi dito, o artista buscou neste trabalho expor as diversas situações que viveu,
e escolheu falar sobre essas situações de maneira extraordinária, utilizando-se de quebras da
realidade e referências ao cinema, o que torna o trabalho ambicioso e impressionante, e que se
encontra totalmente condizente com a linguagem do videoclipe como a conhecemos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos no presente trabalho que o realismo fantástico propõe a quebra de uma lógica
natural, através de elementos sobrenaturais no mundo real. Isso é observado na literatura
clássica apontada por Todorov, que propõe a dúvida permanente entre acreditar ou não acreditar
nesses eventos irreais. Já Roas, busca não ser categórico, visto que o acreditar ou não acreditar
não desvalida o realismo fantástico. O filósofo Sartre, entretanto, não coloca como elemento
central os seres extraordinários, pois ele investiga a condição humana, utilizando o homem
como principal elemento no fantástico contemporâneo.
Foi observado que o realismo fantástico se faz presente em diversas manifestações
artísticas, iniciando pela literatura até adentrar no audiovisual. Na literatura temos Gregor
Samsa, trabalhador exaurido que se transforma num inseto e vê sua vida completamente
sufocada pela sua metamorfose e pelo capitalismo opressor. No cinema vimos esse gênero
através do Mèllies, que apresentou o desejo do ser humano de chegar à Lua e lá se encontrar
com seres extraterrestres. Ainda nas telas do cinema, temos o expressionismo alemão que,
através de seus cenários e personagens únicos, transformou a linguagem cinematográfica e
deixou referências até hoje. Nas produções atuais assistimos O Farol, que nos apresenta o
conflito entre dois homens de maneira visceral, que estão presentes num cenário completamente
caótico e solitário. O cinema, por meio de suas imagens e sons, nos permitiu observar
possibilidades de construção dos elementos fantásticos, e essas possibilidades e construções
reverberam até hoje nos videoclipes.
Os videoclipes, apesar de serem enxutos, conseguem nos revelar de maneira incrível os
diferentes recursos para sua criação, e os videoclipes do álbum After Hours do cantor The
Weeknd, resultam dessas possibilidades. Seu trabalho audiovisual possui uma narrativa linear,
na qual o realismo fantástico ocorre de modo gradativo. A idealização de After Hours teve como
referência a própria história de vida do cantor. Esse fato faz com que o trabalho ganhe mais
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aproximação do público, além de ser a base para o desenvolvimento dos elementos fantásticos,
visto que o universo real é necessário para o gênero existir. As características fantásticas nos
sete videoclipes do músico surgem principalmente pelo viés de Sartre, pois o artista expôs a
essência do homem por meio de situações absurdas, mostrando uma luta constante pela
sobrevivência.
Por fim, The Weeknd nos mostrou, com sua música pop e videoclipes, como o realismo
fantástico nos transporta para cenários nunca antes imaginados e como essa expressividade
artística audiovisual sempre está aberta a experimentações.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Rodrigo Ribeiro. Parceiros no clipe: a atuação e os estilos autorais de diretores e


artistas musicais no campo do videoclipe a partir das colaborações Mondino/Madonna e
Gondry/Björk. 2009. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação e
Cultura Contemporânea- Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2009.

CAMARINI, Ana Luiza Silva. David Roas: em busca dos limites do real. A literatura
fantástica: caminhos teóricos. Araraquara: Cultura Acadêmica Editora, 2014. p. 165-176.

CARVALHO, Claudiane de Oliveira. Narratividade e Videoclipe : interação entre música e


imagem nas três versões audiovisuais da canção “One” do U2. 2006 . Dissertação apresentada
ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas Dissertaçã o-
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2006.

CHION, Michel. Projeções do som sobre a imagem. In: A Audiovisão: Som e Imagem no
Cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2008.

FEAR, David. Drunken Sailors and Movie Stars: Robert Eggers on Making ‘The
Lighthouse. Disponível em < https://www.rollingstone.com/movies/movie-features/robert-
eggers-the-lighthouse-interview-898545/. Acesso em: 29 de junho 2021.
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HEIZER, Alda Lucia; GONZALEZ, Marcos. Factum e Fatum. In: FIGUEIREDO, B. G. e


SILVEIRA, A. J. T. (Ed.) História da Ciência no Cinema 3: a ciência aos olhos de Julio Verne
e Georges Méliès. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. p.59-68.

MACHADO, Arlindo. A Reinvenção do Videoclipe. In: A Televisão Levada a Sério. São


Paulo: Senac, 2001.

RIBEIRO, Rafael Santos. Produto: Viagem ao mundo dos sons. 2016.Trabalho de Conclusão
de Curso –Universidade de Brasília- Faculdade de Comunicação, Brasília, DF, 2016.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 2007.

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