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RIO DE JANEIRO
2011
VIVIAN MARTINS CACCURI DE ARAUJO
RIO DE JANEIRO
2011
VIVIAN MARTINS CACCURI DE ARAUJO
Comissão Julgadora
________________________
Prof.Dr. Rodolfo Caesar,Escola de Música, UFRJ
________________________
Prof.Dr. Samuel Araújo, Escola de Música, UFRJ
________________________
Prof. Dr. Felipe Scovino, Escola de Belas Artes, UFRJ
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não seria possível sem o apoio do meu orientador Prof. Dr. Rodolfo
Caesar. Agradeço sua paciência e ponderação necessárias para realizar um trabalho multi-
disciplinar. Agradeço aos meus colegas da Escola de Música - UFRJ e UERJ, Gabriela
Marcondes, Marcelo Carneiro de Lima, Leandra Lambert e Joana Bergman pela troca, cafés e
discussões.
Obrigada à CAPES e à Escola de Música por viabilizar a dedicação de tempo
necessária para a pesquisa.
Devo agradecer aos professores Eve Aschheim, Bruno Carvalho e Robert Kaplowitz
com os quais tive aulas e conversas fundamentais durante meus meses nos Estados Unidos.
Lisette Lagnado foi quem gentilmente me alertou sobre o Programa Hélio Oiticica, no
qual pude mergulhar nos arquivos do artista.
Agradeço a todos os meus amigos, em especial Pedro Victor Brandão, Maíra das
Neves, Joana Varon, Saulo Laudares, Franz Manata, Alessandra Bergamaschi, Moana Mayall,
Nick Gray, Daniel Toledo e Carolina Sá Carvalho.
À minha irmã, aos meus pais e avós, pelo entusiasmo e compreensão.
A Ronaldo, pelo amor e apoio indescritíveis.
Resumo
Ouvindo as Artes Visuais investiga a sonoridade nas artes plásticas através do trabalho
dos artistas Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Hélio Oiticica e Chelpa Ferro. Parte-se da
prerrogativa de que qualquer posicionamento ou proposta que envolve o som ou ideias de som
nas artes plásticas encontra-se com um regime onde o silêncio possui grande importância
histórica nas práticas estéticas. Dessa maneira, esta pesquisa examina trabalhos, textos,
situações históricas, contextos técnicos, sociais e artísticos que motivaram os artistas plásticos
a dirigir questões à dimensão audível. Tendo como ponto de confluência principal entre as
atividades dos artistas a cidade do Rio de Janeiro pós-Kubitschek, o trabalho examina a
relação dos artistas com a música em diversos aspectos: o encontro com a prática musical em
um contexto cultural específico, as ações dos artistas plásticos no estúdio de gravação
fonográfica e o uso da sonoridade como forma crítica de espacialidade. Constatou-se que
nessas práticas, os modos de fazer das artes plásticas e da música passam a operar de forma
conjunta e indissociável, e que existe continuidade de procedimentos estéticos específicos
entre diferentes gerações de artistas.
Listening to Brazilian Art investigates sound in the visual arts through the work of
artists Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Hélio Oiticica and Chelpa Ferro. It starts from a
position that any proposal involving sound in the arts meets a regime where silence has great
historical significance for aesthetic practices. Thus, this research investigates works, texts,
historical situations, technical, social and artistic contexts that had motivated artists to address
issues to the audible dimension. Having post-Kubitschek Rio de Janeiro as the main
confluence point among the activities of those artists, we examined their relationship with
musical practices in specific cultural contexts, artistic actions in the recording studio and the
use of sound as a critical form of spatiality. In these practices, the visual and musical ways of
making operate together and indivisibly, and that there is continuity of specific aesthetic
procedures along different generations of artists.
Fig.1: Foto de Piet Mondrian em seu estúdio em Paris, Nov. 2, 1933, com um agradecimento
a Mies Elout no verso. Foto: Coleção Elout-Drabbe. (“Mies, muitas lembranças cordiais a
você e Paul, de Piet”)
Fig. 2: Primeira aquarela abstrata de Wassily Kandinsky, Sem Título, 1910. 49.6 x 64.8 cm.
Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris, França.
Fig. 3: Robert Morris, Sem Título, 1965-71.Tate Collection, Londres, Reino Unido. Foto:
ARS, NY and DACS, London 2002.
Fig.4: Hélio Oiticica, Módulo para o para-quadr,o 1956, Óleo sobre compensado, 400 x 280
mm, Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS,
London 2002.
Fig.5: Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958, Guache sobre papel cartão, 550 x 640 mm,
Coleção de Ernesto e Cecilia Poma, Miami. Foto: ARS, NY and DACS, London 2002.
Fig.6: Hélio Oiticica, Relevo Espacial (amarelo), 1960, emulsão de óleo sobre madeira,
Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS, London
2002.
Fig. 7: Piet Mondrian, Composition No. III Blanc-Jaune, 1935-42; Óleo sobre tela, 101 x 51
cm; Coleção Christie's, New York.
Fig. 8: Hélio Oiticica, Maqueta para Projeto Cães de Caça, 1961, Emulsão de óleo sobre
madeira; areia 1615 x 1610 x 295 mm, Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de
Janeiro.
Fig.10: Hélio Oiticica, P07 Parangolé Capa 04 'Clark', 1964-65, Tinta; tela; burlap; vinil,
1310 x 985 x 60 mm , César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro.
Figura 12: Caetano Veloso vestindo Parangolé Cape 04, 1964, Rio de Janeiro. Foto:
Andreas Valentim.
Figura 13: Capa do album Chelpa Ferro II, 2004, Rio de janeiro: Ping Pong, 1CD, stereo.
Figura 14: Chelpa Ferro, Cogumelo Ohms, 2004, pratos de bateria, motores, mãeo-francesa,
amplificadores, som. Rio de janeiro, foto: Luiz Zerbini.
Figura 15: Chelpa Ferro, Acusma, 2010, vasos de cerâmica, amplificadores, falantes, dvd.
São Paulo: Paralela 2010, Licei de Artes e Ofícios, foto: Ding Musa
5
Figura 16: Waltercio Caldas, Anda Uma Coisa no Ar, 2002, mesa de aço, vidro, quartzo,
taças de cristal, carvão. Vila Velha: Museu Vale, 2010. foto: Caroline K.
Figura 17: Waltercio Caldas, Thelonious Monk, 1998, pele de coelho, aço inox, acrílico,
granito, 2010. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud.
Figura 18: Cildo Meireles, Eureka/Blindhotland, 1970-75, rede de pesca, esferas, balança,
trilha sonora. Londres: TATE Collection/American Fund, 2004.
Figura 19: Cildo Meireles, Malhas da Liberdade, 1976-2008, peças de plástico. Londres:
Turbine Hall, TATE Modern, 2008. Foto: Tim Spear.
Figura 20: Cildo Meireles, Mebs/Caraxia, 1971, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 7in. Foto: a
autora, 2010.
Figura 21: Lygia Clark, Caminhando, 1964, frame de vídeo de trabalho participativo.
Figura 22: Cildo Meireles, Sal Sem Carne, 1974, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 12in. Foto: still
do documentário Cildo, direção: Gustavo Moura.
INTRODUÇÃO 4
1 DEBATES PRELIMINARES: o silêncio e a sonoridade das artes plásticas 10
1.1 Regime representativo e regime não-figurativo 11
1.2 Práticas no espaço público e no tempo da vida cotidiana 16
Introdução
Aquilo que pode ser ouvido nas artes plásticas certamente se estende além da simples
presença de material sonoro em instalações, objetos ou propostas por meio de gravações,
amplificações ou ruídos materiais. A sonoridade nas artes plásticas pode transformar a
vivência do tempo presente por não residir somente na vibração dos tímpanos; ela pode ser
imaginada, silenciada, pode mover um corpo, pode sintetizar ideias, provocar encontros e
sobreposições de espaços, discursos, pode transformar estruturas, sistemas: ela se recusa a se
dirigir exclusividade ao ouvido. E é agindo nessa impossibilidade de se ater ao som como um
problema em si mesmo, atuando na qualidade crítica do tempo e da vivência espacial que
propõe, que a amplitude artística da sonoridade é exercitada e colocada à prova nos trabalhos
de Hélio Oiticica (1937-1980), Cildo Meireles (1948 -), Waltercio Caldas (1946 -) e Chelpa
Ferro1.
Essa amplitude está muito além de qualquer campanha pela indissociabilidade dos
sentidos. O fato de que os sentidos não são separados não é nada mais do que algo consciente
no trabalho desses artistas, não se necessita da arte como uma recolagem do sensível. Dessa
maneira, quando não se examina suas propostas como formas de reunir um aparelho sensível
fragmentado, a incursão desses artistas na dimensão audível pode ser entendida de forma
muito mais densa e relativa, ou seja, engendrada tanto em seus processos artísticos individuais
quanto nos contextos culturais e históricos que as receberam ou motivaram.
Tendo em vista que esses são artistas plásticos e que estão atuando em um campo
cultural onde a visão é o sentido privilegiado, qualquer proposta ou trabalho acabado estará
inevitavelmente lidando com a situação histórica de que o olho se tornou “mais pesado ou
mais quente”2 que os outros sentidos nos mecanismos da teoria (crítica, estética) e da
memória (história da arte). O espaço restrito que a dimensão audível ocupa nesses
mecanismos dá às propostas ou discursos que envolvem a musicalidade/sonoridade uma
qualidade diferenciada e política. Qualquer ação artística na dimensão audível imediatamente
se distingue na oposição em relação ao visual – uma oposição historicamente reiterada na
separação Ocidental das artes3 - e por esse motivo se intensifica a necessidade de atribuir
razões artísticas e históricas para tal uso nas artes plásticas. A compreensão sobre esse
posicionamento crítico do artista, veremos, é favorecida pela dialética entre sua própria
1
Grupo formado em 1995, membros: Barrão (1959 - ), Luiz Zerbini (1959 - ) e Sérgio Mekler (1963 - )
2
KAHN, 2002, s.n.
3
WEISS, 2008, p.23
5
trajetória e os textos que a crítica e a história da arte brasileira produziram sobre algumas
dessas explorações na sonoridade e na musicalidade. Nesse sentido, Waltercio Caldas com
seu disco compacto A Entrada na Gruta de Maquiné (1980), poderá revelar mais sobre a
interação que a crítica e a história da arte estabelecem com a prática estética que deseja
ampliar-se no além-olho: na reiteração do regime silencioso do olhar na teoria, ou seja, no
texto, muito pode deixar de ser ouvido na experiência real com o trabalho de arte.
Por outro lado, a incursão dos artistas plásticos da dimensão audível inevitavelmente
endereça problemas à música; “música” aqui, é posta no sentido mais amplo possível: sua
performance, seus elementos composicionais, sua indústria, seus meios de difusão sonora e
simbólica, sua vitalidade, sua função em um determinado segmento cultural, seus debates
históricos, sua coloquialidade ou institucionalização. Em primeiro lugar, isso se dá pelo fato
da música, devido à mesma cisão sensível que acompanhou o movimento de especialização
das artes ocidentais na Modernidade, deter boa parte das ferramentas estéticas, técnicas e
lingüísticas correntes na relação com o sonoro. Em segundo lugar, uma dimensão
compartilhada entre artes plásticas e música pode emergir já que os próprios artistas muitas
vezes se dirigem deliberadamente ao terreno musical em algumas de suas propostas. Hélio
Oiticica diz em 1979: “Oq faço é Música”. Como interpretar tal afirmação vinda de um artista
plástico? Em que medida a metáfora ou a própria sonoridade de um artista visual serve como
um elemento reflexivo, crítico ou transformador para as duas linguagens artísticas?4
Os quatro artistas sobre os quais se debruça Ouvindo as Artes Visuais possuem
trajetórias que podem revelar alguns desses pontos de encontro que se distribuem ao longo da
década de sessenta à atualidade. Quando se interessam em mergulhar no sistema música, em
suas indústrias, estruturas e convenções, esses artistas tomam de assalto estúdios fonográficos
para suas experimentações e ideias (Mebs/Caraxia, 1971 e Sal Sem Carne, 1974 de Cildo
Meireles, A Entrada na Gruta de Maquiné, 1980 de Waltercio Caldas) se apropriam dos
símbolos e ídolos da música popular (CC5 Hendrixwar/Cosmococa, 1973 de Hélio Oiticica e
Neville de Almeida, Moby Dick, 2001 de Chelpa Ferro), fazem da infra-estrutura musical um
terreno de reconfiguração sensível permanente tendo como pano de fundo para essas ações
tanto a vitalidade que rege toda expressão musical quanto os padrões, dinâmicas e políticas
4
Realizado no mesmo ano da declaração de Oiticica, Arte dos Sons mostra outra direção crítica dessas
aproximações: “Artista dos sons, ou artista sonoplástico, pode ser todo aquele que queira ou tenha que entrar no
circuito tradicional estruturando num percurso que começa nas exigências do mercado musical, passa pela
censura estética da ordem dos músicos do Brasil, pela censura principalmente dita, e termina na consciência de
cada um. A classe dos artistas sonoplásticos, que ora se imagina, não tem estatutos e nem se esforça por tê-los,
por não querer regulamentar uma atividade artistica que, por definição, encontra-se além do delimitável por
regras práticas." Cf. (CAESAR, 1979)
6
otimista (Abertura política, 1975-85) que permitirá que os espaços públicos adquiram uma
nova vitalidade. Sem o cerceamento opressor no espaço público, outros tipo de lugares de
encontro entre artistas de diversos segmentos foram possíveis, como visto na realização do
primeiro Circo Voador na Praia do Arporador em 1982, os Encontros com a nova música dos
anos 80 no Parque da Catacumba (Fundação Rio10) e a criação do primeiro CEP 20.000 no
Teatro Sérgio Porto em 1990.
Chelpa Ferro começa a construir suas instalações e objetos dos quais grande parte são
geradores de som a partir de 1997. Esse é um período de substituição da infra-estrutura de
gravação digital ainda baseado em fita magnética (por ex, o ADAT) pela virtualidade das
estações de áudio digitais como o Protools e Logic. Acompanhando essas mudanças dentro
do estúdio fonográfico, o fenômeno de substituição e descarte de soundsystems domésticos já
havia tomado grandes proporções já que o CD passara a ser a mídia principal no consumo de
música no início da década de noventa. As montanhas empoeiradas do antigo hardware de
áudio analógico imprime uma nova estética da obsolescência sonora, na qual Chelpa Ferro
pode agir com suas montagens, não deixando, veremos, de levar adiante alguns
procedimentos e programas que Hélio Oiticica iniciara no Morro da Mangueira, tal como o
Merz dos Parangolés.
Douglas Kahn comenta que “não há simplesmente nada envolvido no trabalho com a
sonoridade que promete algo especial, exceto talvez por um maior grau de licença, uma maior
sensação de possibilidade, e uma maior capacidade em simular e representar as ideias,
imagens, cenas e sistemas de existência”11. Kahn acredita que na mesma medida que o som
não é uma promessa de ruptura nas artes plásticas, não existem motivos para silenciá-lo nos
mecanismos da memória e contextualização histórica. No entanto, para que ele se faça
audível, é necessário tanto desviar-se das concepções fragmentadas do sensível quanto
estabelecer dimensões estéticas e lingüísticas compartilhadas entre as artes plásticas e a
música. Nesse sentido, Ouvindo as Artes Visuais é uma tática de pensamento sobre esse
recorte muito específico e limitado da produção das artes plásticas brasileiras: Waltercio
Caldas, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Hélio Oiticica darão pistas sobre onde reside e como
se transformou a condição de ouvir.
10
Inicia-‐se
pelo
INAP
/ Funarte, com primeiro evento organizado por Paulo Sérgio Duarte em 1980 “Arte dos
sons – imagem: princípio do tímpano profano”, concerto de Rodolfo Caesar e Aluísio Arcela Junior.
(REINALDIM, 2010, p.120)
11
KAHN, 2002, s.n.
1 DEBATES PRELIMINARES
O silêncio e a sonoridade das artes plásticas
10
12
RANCIÈRE, 2004, p. 15
11
A expressão plástica, assim como a poética, abrange na época moderna outros meios de expressão, ou
melhor, usa elementos ligados a outros meios de expressão e são frequentes as analogias estabelecidas
entre tais meios. Já Kandinsky em 1909 estabelecia bases para a pintura comparando-a à música e usando
o termo “sonoridade” p.ex. para definir e distinguir o sentido interior de cada cor nas suas diversas
qualidades. Essa foi, na verdade, a primeira relação importante a ser estabelecida entre a pintura e outro
meio de expressão como a música. Com a evolução e a transformação estonteantes verificadas nos 50
anos seguintes, não era de se admirar que a pintura fosse usar meios até então jamais cogitados dentro de
sua categoria. Aparentemente o que rege esse fenômeno seria a vontade de invenção e insatisfação dos
artistas em relação aos materiais e processos formais tradicionais; num sentido profundo porém, creio que
o principal fator que o determinou foi a busca do abstrato, a vontade de abolir a figuração, a aspiração a
um novo sentido de espaço, tempo, estrutura, etc. (OITICICA, doc. No. 0182.62 p. 1)
Oiticica se encontra com uma via musical ou sonora dentro de um modernismo que
era cúmplice do regime silencioso (talvez essa seja uma compreensão alternativa para a
peculiaridade da abstração de Kandinsky). Nesse momento, Oiticica e os outros artistas ativos
no movimento neo-concreto já haviam descoberto uma “nova realidade espacial”, uma
realidade que extravasava a mídia bidimensional pelo fator do tempo. O tempo subjetivo era
gerado no que a cor e a estrutura não estavam mais presas à superfície da pintura: Bichos de
Lygia Clark e Bilaterais de Hélio Oiticica as fizeram sair do quadro para o espaço, e nessa
transição, o tempo torna-se um terreno onde o discurso vivo pode se desenvolver. O tempo era
uma abertura para a duração subjetiva, a vivência do espectador no trabalho e se algum ato
13
RANCIÈRE, 2004, p.16
12
constitutivo de sua estrutura ou das relações que ela estabelece com o entorno14. O termo do
teatro nas artes plásticas estava, no começo da segunda metade do séc XX, dentro de uma
ampla discussão que ficou conhecida em 1967 pela reação crítica do historiador norte-
americano Michael Fried aos textos e obras de artistas minimalistas, em especial Donald Judd
e Robert Morris (fig.3), os quais chamava de “literais”. Art & Objecthood de Fried, além de
uma tentativa de manter valores “autenticamente modernistas”15tratava também de outros
aspectos da teatralidade como a participação física do observador no caso de obras
escultóricas de grande tamanho ou amplo espaço ocupado. O observador, segundo Fried, teria
de se distanciar de uma obra minimalista, tomar posição ou caminhar para participar de uma
“situação” formal proposta pelo artista e nessa relação, a ação do espaço e tempo
degenerariam a qualidade presente (presentness, instantaneousness, objecthood) da obra de
arte. O que preocupava Fried era justamente que as obras de arte “se aceitassem como parte
14
KRAUSS, 1977, p. 201
15
FRIED, 1967, In: HARRISON et al; 1993, p.828
14
de um conjunto de experiências maior”16, em outras palavras, que a obra de arte habitasse uma
posição ambígua em relação à sua própria objetividade devido à importância do tempo e
deslocamento do corpo do espectador. Assim, o medo de Fried residia no poder desse
conjunto maior de experiências de corroer o estado de “suspensão” (presentness) no qual arte,
segundo ele, deveria habitar, estabelecendo uma perigosa distância entre a prática estética e a
instituição, descrito pelo crítico como “valores autenticamente modernistas”.
Era dando continuidade ao projeto da pureza da abstração de Clement Greenberg
que Fried colocou-se na posição de combater o que apontava como sendo teatral nas novas
vanguardas dos anos sessenta, um julgamento de valor que Krauss na década de setenta já não
defende, demonstrando alguns efeitos positivos de táticas assumidamente teatrais de artistas
como Yvonne Rainer, Robert Morris e Robert Rauschenberg para o desenvolvimento da
escultura17. Não obstante, a música serviu a Greenberg em 1940 como a forma de arte que
oferecia o melhor modelo de pureza:
Mas somente quando o interesse das vanguardas [visuais] pela música as levou a considerá-la como um
método de arte e não como um tipo de efeito é que as vanguardas encontraram o que estavam procurando.
Foi quando se descobriu que a vantagem da música estava principalmente no fato de que era uma arte
"abstrata", uma arte de "forma pura". A música era assim, porque era incapaz, objetivamente, de
comunicar algo mais do que uma sensação, e porque essa sensação não poderia ser concebida em outros
termos que não os do sentido através do qual ela entrou na consciência. [...] Os efeitos da música são os
efeitos, essencialmente, da forma pura, os da pintura e da poesia são muitas vezes acidentais à natureza
formal destas artes. Somente aceitando o exemplo da música e definindo cada uma das outras artes
apenas nos termos do sentido ou faculdade que percebem seus efeitos e excluindo de cada arte tudo o que
é compreensível em termos de qualquer outro sentido ou faculdade, que as artes não-musicais alcançarão
a "pureza" e auto-suficiência que elas desejavam; que desejavam, isto é, contanto que fossem artes de
vanguarda. A ênfase, portanto, deve ser sobre o físico, o sensorial. A influência corruptora da Literatura
somente é percebida quando os sentidos são negligenciados. A última confusão das artes foi o resultado
de uma concepção equivocada da música como a única arte imediatamente sensual. Mas as outras artes
também podem ser sensuais, se elas olhassem para a música, não para imitar os seus efeitos, mas para
pegar emprestados os seus princípios como uma arte "pura", como uma arte que é abstrata, pois é quase
nada, exceto sensual. (GREENBERG, 1940, p. 38)
práticas estéticas deveriam tomá-la como exemplo18. Nesse sentido, o discurso de Hélio
Oiticica vai de encontro às considerações de Greenberg, pois para o artista plástico a
musicalidade desempenha na pintura sua qualidade metafísica da experiência do tempo e da
“pluri-dimensionalidade”. Assim, Oiticica já estava propondo uma contaminação da música
nas artes plásticas, desviando-se ao mesmo tempo do que Greenberg chama de Literatura
(regime representativo). Em Ouvindo as Artes Visuais defende-se que foi pela via da
musicalidade que o artista trilhou o acesso à realidade extra-instituição: a favela (ver capítulo
1).
Farei aqui uma distinção entre o espaço (espace) e local (lieu) que delimita um campo. Um lugar (lieu) é
a ordem (de qualquer tipo) de acordo com a qual os elementos são distribuídos em relações de
coexistência. Isso assim exclui a possibilidade de duas coisas estarem no mesmo local (lugar). [...] Um
lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Um
espaço existe quando se leva em conta vetores de direção, velocidades, e variáveis de tempo. Assim, o
espaço é composto de cruzamentos de elementos móveis. É de certa forma comandado pelo conjunto dos
movimentos implantado dentro dele. O espaço ocorre quando o efeito produzido pelas operações que o
orientam, situam, temporalizam e o fazem funcionar em uma unidade polivalente de programas
conflituais e proximidades contratuais.[...] Em suma, o espaço é o lugar praticado.” (CERTEAU, 1984,
p.117)
para gerar novos espaços de ação, utopias (em Sal Sem Carne, a coexistência do Brasil
português e do Brasil indígena em uma mesma hierarquia auditiva, ambos são ouvidos, ambos
discursam) ou de reflexão. O tempo onde o espaço desses discos se desenvolve pressupõe a
vida quotidiana: as mídias de áudio, objetos de apreço e uso pessoal, são construídas dentro
de padrões industriais arraigados aos formatos comerciais de difusão/distribuição, estão
ligados essencialmente ao ritmo da subjetividade na vida urbana contemporânea20. Se são
discos, serão experimentados no sabor cotidiano, apesar de decisões institucionais que
queiram dispô-los em exposições, arquivos, etc. (a própria biblioteca do MoMA que possui
Sal Sem Carne e Mebs/Caraxia de Cildo Meireles tem dentro dela uma área específica para a
audição dos discos separada das salas públicas, sugerindo um espaço privado).
Se o “conjunto maior de experiências” de uma obra de arte passa por essas
significações históricas do espaço e pelo deslocamento político que a prática contemporânea
propõe (um movimento de saída da instituição da arte para o tecido do espaço público ou o
tempo da vida cotidiana), este trabalho desvia de categorias - como sound art, arte sonora,
audio art e outras21. Esse desvio é necessário pois essas categorias emulam por meio da teoria
um espaço crítico/institucional que tem por projeto viabilizar uma “nova escrita
compartilhada”, uma nova escrita que agora se manifesta pelo “som”, a despeito das
conquistas de artistas que expandiram as possibilidades de atuação estética para fora da
instituição, em outras palavras, conseguiram estabelecer posicionamentos alternativos e
consideravelmente dinâmicos/transitórios entre a instituição e a prática artística, em
comparação às relações que se estabeleciam no Modernismo22. Um exemplo da importância
do lugar institucional para a experiência da sound art, são as críticas sobre a (in)adequação
arquitetônica ou acústica do espaço do museu e da galeria de arte:
A questão é, a sound art vem da valorização do meio ambiente total dos sons, tanto os desejados quanto
não desejados. Claro, o dilema é que sua apresentação deveria, em teoria, se esforçar para evitar que sons
estranhos entrem no espaço. Michael J. Schumacher apontou que galerias de arte não fazem nenhuma
questão de se certificar de que outros sons não serão ouvidos (telefones tocando, etc), mas a Diapason
[dirigida por Schumacher] faz. Do mesmo modo, obras de sound art são melhor experimentadas em
exposições individuais; exposições coletivas podem produzir cacofonia [...] Houve algumas experiências
em "casas sônicas", e este talvez seja o futuro da sound art – um prédio com várias salas, cada uma
ocupada por uma obra de som diferente, talvez todas pelo mesmo artista ou por vários (LICHT, 2007,
p.116)
19
Conceito para a produção de “forma histórica” como um projeto de compreensão em (BRITO, 1996, p. 143).
20
STERNE, 2005, Disponível em : <http://www.skor.nl/article-2853-en.html>
21
Cf. LICHT, 2007.
22
Sobre o problema das interações entre artista e instituição no Modernismo, os ensaios de Clement Greenberg
sobre Duchamp (1940, p.122-133) mapeiam pontos importantes como autoria, intenção e contexto. Hal Foster
(1996, p. 306) discorre sobre algumas práticas artísticas da década de noventa que agiam junto à instituição.
17
Está implícito nesses relatos que a criação de uma escrita compartilhada para o som
nas artes plásticas está orientada para a fundação de novos espaços institucionais e políticas
estéticas, uma finalidade que não cabe no escopo deste trabalho.
Noções de musicalidade como uma vitalidade diferenciada na prática das artes
plásticas permeiam o exame dos trabalhos dos quatro artistas. Essa vitalidade no entanto, não
está calcada em um sistema musical específico, abrindo-se para relativizações e posições
estéticas e culturais dinâmicas seguindo Blackin (1973):
Estou ciente de que muitas plateias antes e depois da composição da sinfonia A Surpresa de Haydn não
ouvem atentamente à música, e que, numa sociedade que inventou a notação musical, a música poderia
ser proferida hereditariamente por uma elite, sem nenhuma necessidade de ouvintes. Mas se assumirmos
uma visão de mundo na música, e se levarmos em conta situações sociais nas tradições musicais que não
possuem notação, torna-se claro que a criação e a performance da maior parte das músicas é gerada
sobretudo pela capacidade humana de descobrir padrões de som e de identificá-los em ocasiões
posteriores. Sem processos biológicos de percepção auditiva, e sem um acordo cultural entre pelo menos
alguns seres humanos sobre o que é percebido auditivamente, não se pode ter música ou comunicação
musical. [...] Em sociedades onde a música não é escrita, a escuta informada e precisa é tão importante
como uma medida de capacidade musical, quanto é a performance, porque é o único meio de garantir a
continuidade da tradição musical. A música é um produto do comportamento dos grupos humanos, seja
formal ou informal: é som humanamente organizado. E, apesar de diferentes sociedades tenderem a ter
ideias diferentes sobre o que consideram como música, todas as definições são baseadas em um consenso
de opinião sobre os princípios nos quais os sons da música devem ser organizados. Nenhum consenso
pode existir até que haja uma base de experiência comum, e se ao menos que pessoas diferentes forem
capazes de ouvir e reconhecer [os mesmos] padrões nos sons que chegam a seus ouvidos. (BLACKIN,
1973, p.9)
Compreende-se que, apesar deste trabalho não se ater a distinções entre sistemas de
musicalidade, o conflito entre diferentes compreensões ou práticas musicais, seja em um viés
histórico ou em um contexto sócio-cultural é um importante fator de debate e
desenvolvimento cultural e estético. Em vez de entender tais conflitos como impasses,
situações para as quais devam se procurar soluções ou negociações, a atenção é concentrada
nos paradoxos, dissensos e impossibilidades e ao que esses podem apontar. A razão para isso
é metodológica: um ruído específico pode emergir como evidência do dissenso entre práticas
estéticas que possuem diferentes princípios fundamentais24. Se nos distanciamos dos
paradoxos e focamos em soluções, não se ouve o ruído.
Douglas Kahn compreende que o ruído que é feito por artistas não só pode ser uma
evidência de um dissenso entre sistemas estéticos, como também é uma ideia de ruído, ou
seja, nele estão contidas ou implicadas formas de transgressão, projeção de ideais, abuso,
etc25. O ruído é portanto significativo. Ao contrário de Blackin, para o qual a musicalidade é
uma condição que desconhece distinções culturais de diferentes sociedades, a definição de
ruído de Kahn está atrelada especificamente às atividades das vanguardas artísticas do séc
XX. Nesse esquema também se reconhece o papel ruidoso da inserção de novas tecnologias
nas práticas artísticas, por exemplo, as possibilidades de criação que surgem junto com o
desenvolvimento da gravação de áudio no começo do século XX não são imediatamente
aceitas dentro da tradição ou prática estética que a recebe26. Musicalidade e ruído aqui
portanto não são dois eixos opostos, mas duas condições sob as quais o artista pode atuar na
dimensão audível, não impedindo que ambas atuem simultaneamente em uma mesma
proposição.
24
Cf. ATTALI, 1985, p.34
25
KAHN, 1999, p.20
26
Cf. KAHN, 1999, p.123-157
2 HÉLIO OITICICA
musicalidade de 1955 a 1964
20
Hélio Oiticica em Ouvindo as Artes Visuais tem uma função especial. Sua trajetória
artística não foi particularmente dirigida ao ouvido, a musicalidade não se faz presente como
sonoridade em seus trabalhos. Quem busca o “som” de Hélio Oiticica somente o encontrará
na apropriação que ele faz de canções e discos ou sob “formas inapreensíveis”: a energia dos
corpos vestidos em Parangolés, a sugestiva presença de uma TV no fim do labirinto do
penetrável Tropicália ou de um pequeno piano em Rhodislândia, a sutileza de uma canção de
Ângela Maria, materiais que roçam e se amassam dentro dos Ninhos. Com muito esforço e
grande risco de falha as Héliotapes, poderiam ser consideradas sonoridade: são fitas-cassetes
com gravações de entrevistas que o artista plástico fez especificamente com o poeta Haroldo
de Campos e Gilberto Gil em 1971. Dada a importância do conteúdo verbal dessas cassetes e
o caráter de documento, as Héliotapes estão mais próximas dos textos e cartas de Oiticica,
que de seus trabalhos propriamente ditos.
Oiticica é especial para esse trabalho pois sua trajetória mostra como incorpora a
musicalidade como um agente ativo em seu pensamento criativo, em seus trabalhos e teoria.
A musicalidade é para ele uma espécie de vitalidade diferenciada que assumirá diversas
formas ao longo de sua trajetória artística, e, no curso da metamorfose dessa vitalidade, seus
trabalhos tornam-se reflexos de como ela é aplicada, de onde foi absorvida, com quem é
discutida. Por esse motivo, fronteiras entre trabalho artístico, vida e texto serão aqui
irrelevantes, insignificantes, já que a musicalidade ou o cultivo de sua vida musical, não as
reconheceu.
É aos dezoito anos (novembro de 1955) que o artista plástico produz seu primeiro
registro sobre essa sensibilidade, um relato absolutamente íntimo sobre música :
A música tem o poder de me acalmar em horas de desespero. É preciso ir além, evoluir até o absoluto,
onde formas e cores não mais se oponham umas às outras. Já comecei, mas este começo nada é um
consagração ao grande todo da pintura, as verdadeiras alturas não atingidas nem por sentimentos nem por
emoção. É preciso sobrepujar o mundo agonizante em que vivo. (OITICICA, doc. No.0282.55, p. 1
AHO/PHO)
Esse trecho já evidencia um detalhe importante e que será significativo nesse capítulo:
a primeira frase abriga as outras como um teto. A música atenua a angústia de ir até o
“absoluto” e é entendido que a música pode ser uma aliada nos grandes objetivos artísticos
que o jovem Hélio já se coloca. Um aliado que antes era íntimo, que estava confundido dentro
dos escritos emocionais de Oiticica (o artista no mesmo ano comenta a beleza da música de
21
Debussy usando metáforas), a música passa a fazer parte de um discurso afirmativo - beirando
o político - do artista no fim da década de 70, um ano antes de sua morte:
“Descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a síntese da consequência da
descoberta do corpo: por isso o ROCK p. ex. Se tornou o mais importante para minha posta em cheque
dos problemas chave da criação (o SAMBA em q me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no
início dos anos 60: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro): o
ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q sintetiza no novo conceito de
MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES
são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK!:
a menos q queiram os artistas ditos plásticos continuar remoendo as velhas soluções pré-descoberta do
corpo ao infinito: e não é o q está acontecendo de certa forma?: não seria a essa síntese MÚSICA p
totalidade plástica a q teriam conduzido experiências tão diversas e radicalmente ricas na arte da primeira
metade do século quanto as de MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI? E porque é q a
experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD?: (OITICICA, 1979, s.n.)
É preciso esclarecer como que essa afirmação, além de seu aparente “extremismo”,
está à serviço de um projeto e é significativa para o então estado do trabalho de Oiticica.
Waly Salomão, amigo e participante de diversos trabalhos de Oiticica, argumenta que o artista
queria com essa exclamação “anular especulações escolásticas [...] da relação de seu trabalho
com a música de passadas eras e situar o que lhe interessa no recorte exato, excitante, intenso
e ruidoso do seu tempo metamorfoseado.”.
Esse texto compreenderá a atividade de Oiticica do início de sua carreira até a subida
ao morro em 1964. Essa trajetória, veremos, foi determinante para que sua relação com o
rock, com os tropicalistas e com o experimentalismo de John Cage criasse um lugar de ação
“desintelectualizada”, em outras palavras, que Hélio levasse seu aprendizado formal em
pintura para uma dimensão não-estetizante.
Assim, são objetivos deste capítulo 1) evitar “especulações” e ater-se somente à
natureza da musicalidade tratada por Hélio em seus textos 2) reconstituir as condições que
permitiram que a excitação e a intensidade musicais levassem o artista a um movimento de
“desintelectualização”, à “descoberta do corpo”.
É particularmente fascinante e desafiador mergulhar no universo e história de Hélio
Oiticica, pois mesmo seu movimento de “desintelectualização” é acompanhado pelo próprio
por meio de uma teorização consistente que retrata seu encontro com o samba e o que ficou
nele incorporado das inúmeras experiências que teve na Estação Primeira de Mangueira.
Qualquer interpretação do período de tempo que é comprimido pelos dois textos acima
apresentados, deve levar em conta esses paradoxos sendo flexível e relativa. Talvez, na
dualidade música/artes plásticas conseguiremos não solucionar, mas contornar a extensão
desses paradoxos.
22
A carta póstuma que Lygia Clark escreve a Piet Mondrian em 1959 é talvez um dos
símbolos mais difundidos nos textos sobre as artes plásticas no Brasil de como o pintor
holandês exerceu influências e gerou debates no Brasil desde que o construtivismo começou a
se formar no país. Durante a década de cinqüenta, sob o otimismo expansionista e
modernizador do governo Kubitschek, os artistas brasileiros construtivistas viam em
Mondrian uma referência principal em suas discussões nas quais pretendiam levar adiante
diversas de suas prerrogativas sobre o neo-plasticismo, bem como desenvolver questões que
consideravam não-resolvidas27. Um registro da importância dessa referência entre o fim da
década de cinqüenta e começo da década de sessenta, são as sete edições que o Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro dedicou ao legado do neo-plasticismo e aos
manifestos do grupo holandês no qual Piet Mondrian atuava, o Dej Stijl28.
A carta de Lygia Clark de certo modo atualiza esses debates, surpreendendo pelo tom
intimista no qual se dirige ao artista holandês sobre seus conflitos entre o grupo neo-concreto
e as ideias às quais “é fiel”. Nela, Mondrian não é um autor de dogmas estéticos ou ideias
utópicas, é ao contrário referido como artista, como indivíduo. A carta é também significativa
no sentido em que foi escrita no mesmo ano da publicação do Manifesto Neo-Concreto(1959)
de Ferreira Gullar e na iminência do surgimento da Teoria no Não-Objeto (1960), que
sustentariam as ações neo-concretas, nas quais agiam ela própria e Hélio Oiticica:
Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras
vindas em que a própria vida “construída” seria uma realidade plástica…Talvez isto te salvasse da tua
própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas
para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode
sentir como é importante esse desenvolvimento interior [...] então ele jamais poderá atingir sua plenitude
como a rosa que se abre dentro de seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e
feliz…(CLARK, 1959, p. 46)
27
RAMIREZ, 2007, p.31
28
Ibid., p. 57
23
Figura 4: Hélio Oiticica, Módulo para o para-quadro 1956, Óleo sobre compensado, 400 x 280 mm,
César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro
plástica se construísse não por significados ou conotações, mas por relações internas
estabelecidas no espaço do quadro32. É importante lembrar que as prerrogativas de Mondrian
eram exaustivamente descritas e explicadas teoricamente em textos publicados como livros,
ou artigos em revistas européias, sendo as publicações de Dej Stijl e Bauhaus as principais. Se
por um lado isso garantiu que seu pensamento teórico se disseminasse mundo afora, gerou-se
também uma disparidade entre a interpretação de sua obra e de sua teoria; algo sobre o qual
os neoconcretos já tinham um posicionamento claro: o trabalho deveria sempre prevalecer
sobre a teorização.
Pelos avanços que faria em suas próximas séries (Sêco(s) de 1956, Metaesquemas de
1957-58) ficaria ainda mais aparente o afastamento de Oiticica com relação a Mondrian.
Persistia nelas o uso de tonalidades de uma mesma cor, a sobreposição de grids diagonais às
32
“Mondrian é quem percebe o sentido mais revolucionário do cubismo e lhe dá continuidade. Compreende que
a nova pintura, proposta naqueles planos puros, requer uma atitude radical, um recomeço. Mondrian limpa a tela,
retira dela todos os vestígios do objeto, não apenas a sua figura, mas também a cor, a matéria e o espaço que
constituíam o universo da representação: sobra-lhe a tela em branco. Sobre ela o pintor não representará mais o
objeto: ela é o espaço onde o mundo se harmonizará segundo os dois movimentos básicos da horizontal e da
vertical. Com a eliminação do objeto representado, a tela – como presença material – torna-se o novo objeto da
pintura. Ao pintor cabe organizá-la, mas também dar-lhe uma transcendência que a subtraia à obscuridade do
objeto material.” (GULLAR, 1960, p.521)
25
Figura 5: Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958, Guache sobre papel cartão, 550 x 640 mm,
Amilcar de Castro (que se libertam da base e da massa). Esse avanço formal no trabalho de
Hélio Oiticica no entanto, não aconteceria sem que o artista discutisse suas próprias ações
nessa série de trabalhos, sob a noção de “cor tempo”:
Com o sentido de cor tempo tornou-se imprescindível a transformação da estrutura. Já não era possível a
utilização do plano, antigo elemento de representação, mesmo que virtualizado, pelo seu sentido “a
priori”, de uma superfície a ser pintada. A estrutura gira então no espaço, passando ela também a ser
temporal: estrutura – tempo. Aqui a cor e a estrutura são inseparáveis assim como o espaço e o tempo,
dando-se, na obra, a fusão desses quatro elementos, que para mim são dimensões de um único fenômeno.
(OITICICA, doc n.0015.sd, p. 1 AHO/PHO)
O que Oiticica quer com a cor tempo em Relevos Espaciais é dar-lhe independência de
uma função representativa. Aqui talvez não deveríamos pensar somente a partir do ato de
criação, da expressão criativa, mas também em como se desenvolve a recepção da cor no
observador e como o tempo pode transformá-la. Essa era uma preocupação permanente de
Oiticica, e com ela criticou as expectativas clássicas acerca da experiência da pintura no texto
Cor Tempo e Estrutura, das quais a que estava mais consistentemente combatendo era a
ameaça de se abrir, na atitude contemplativa entre sujeito e obra, uma dualidade inevitável à
natureza analítica desse espaço. Para o artista, nessa dualidade clássica estabelecia-se um
ponto estático de receptividade no qual o espectador olharia para dentro da tela buscando
valores de infinitude, buscando a “forma ideal” e imutável. Para ele, o modernismo de
Mondrian, Malièvitch, Klee e Kandinsky se provou tanto um agente transformador dessas
atitudes quanto um sintoma de que o homem moderno não estaria mais no século XX
buscando por resoluções de suas contradições a partir de formas idealizadas de espaço37.
O valor do tempo para Hélio Oiticica, em parte calcado na filosofia de Bergson38 em
Matéria e Memória (a durée), estaria assim trabalhando no sentido da integração absoluta
entre obra e espectador e na inserção completa da cor na realidade, como algo concreto, não-
representativo.
O tempo no qual nos vemos agir, e no qual é útil que devamos ver a nós mesmos, é uma duração cujos
elementos são indissociáveis e justapostos. A duração na qual agimos é uma duração na qual nossos
estados se derretem uns nos outros. É dentro disso que devemos tentar nos substituir pelo pensamento, no
caso excepcional e único quando especulamos sobre a natureza íntima da ação, isto é, quando estamos a
discutir a liberdade humana [...] Pode, então, ser possível, em certa medida, transcender o espaço sem sair
da extensão, e aqui nós realmente devemos ter um retorno ao imediato, uma vez que realmente
percebemos a extensão, ao passo que o espaço é apenas concebido, - sendo uma espécie de diagrama
mental. (BERGSON, 1911, p. 243)
37
OITICICA, doc.No. 0182.62, p.10, AHO/PHO
38
OITICICA, doc.No.0015.sd, AHO/PHO
28
Figuar 6: Hélio Oiticica, Relevo Espacial (amarelo), 1960, emulsão de óleo sobre madeira, Coleção de César
and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS, London 2002.
A pintura neo-plástica e a música neo-plástica terão, assim, a mesma expressão plástica. No futuro, ainda
será possível uma outra arte: uma arte situada entre a pintura e a música. Uma vez expressada por cor e
não-cor, será a pintura, mas porque as cores e não-cores serão mostradas no tempo e não no espaço, ela
irá se aproximar da música. Mas porque o tempo e o espaço são apenas expressões diferentes da mesma
coisa, na concepção neo-plástica de música, ela é plástica (i.e. expressão no espaço), e a “plástica”
(pintura) é possível no tempo. Assim, planos retangulares de cor e não-cor podem ser projetados
separadamente e sucessivamente. Os planos e sua composição não podem ser tirados diretamente da
pintura neo-plástica, já que sua expressão no tempo (como na música) tem necessidades diferentes. A
mesma imagem estética deve ser criada por um uso diferente dos meios plásticos e por outro tipo de
composição. Para nós assimilarmos essa imagem estética pela abstração, provavelmente será necessário
atingir um estágio de evolução abstrata, mesmo para além do que foi exigido pela pintura neo-plástica e
música: a verdadeira unidade do "físico-espiritual". (MONDRIAN, 1922a, p.163)
Eis que pelo caminho da música e por inspiração no Futurismo de Luigi Russolo,
Mondrian calculou as conseqüências da incursão do tempo na pintura (é de se admirar como
47
“A bas l’harmonie traditionelle!”, texto Mondrian de 1924 enviado para o editor do jornal romano Noi e
nunca publicado, era segundo Harry Holtzmann dirigido aos Futuristas.
48
MONDRIAN, 1922, In: HOLTZMANN, 1986, p. 156
31
o entusiasmo pelo som da guerra, a negociação entre guerra e música49, tiveram grande
participação nesse movimento teórico de Mondrian). Mas o que isso nos diz sobre Hélio
Oiticica? Talvez que ele tenha dado mais atenção aos ensaios onde Mondrian prenuncia as
conseqüências da integração entre pintura, arquitetura e cidade50, já que comenta em um de
seus trechos de diário no Natal de 1959, atribuindo uma qualidade “profética” às palavras de
49
KAHN, 1999, p 59.
50
Cf. MONDRIAN, 1922; Id., 1926, In:HOLTZMANN, 1986
32
integração completa entre pintura, arquitetura e escultura, “apontando para o fim da arte como
uma coisa separada do entorno ambiente, que é na verdade a realidade plástica”51.
No entanto, algo sobre o neo-plasticismo ainda descontenta Oiticica. Em 1960,
Mondrian para ele é ainda um artista que “em última análise, é ainda representativo; poder-se-
ia dizer que a sua é uma metafísica da representação; toca portanto o ponto crucial da
transformação, porém não o ultrapassa, pois não inclui o “tempo” na gênese das suas obras.”52
Somente o tempo traria continuidade real ao movimento que se iniciou no Cubismo e se
desenvolveu no neo-plasticismo; essa era uma opinião consensual de Lygia Clark e Oiticica53.
São questões que percorrem seu trabalho nas primeiras ocupações efetivas da cor no espaço,
pressupondo a duração da experiência subjetiva, a vivência: assim constrói Núcleos e os
primeiros Penetráveis.
Talvez a extrema teorização e pouca prática de Mondrian na questão da música neo-
plástica tenha ajudado para que Oiticica nesse momento não tenha comentado sobre ela ou
sequer a conhecido – algo condizente com a postura neo-concreta, ou seja que prefere a
prática à intelectualização excessiva. Porém, na mesma medida em que Oiticica critica
Mondrian em sua concepção “estática” de espaço em diversas anotações, busca nele uma
volta à “raiz” do pensamento neo-plástico54 com o objetivo de romper definitivamente com a
representação e possibilitar a vivência, ou integração espectador-obra. A “raiz” de Mondrian,
que é muitas vezes descrita por Oiticica como “vitalidade pura”, está também presente e
descrita em Neo-Plasticismo: Sua Realização na Música e no Teatro do Futuro sob a forma
de “unidade físico-espiritual”. Esse é o objetivo máximo do Neo-plasticismo, a resolução da
dualidade entre o material e o espiritual. Saberemos agora que a integração físico-espiritual,
tanto para Mondrian quanto para Oiticica, inevitavelmente passa pelo tempo:
Havia aí uma relação do que ele [Kandinsky] chamava espiritual; a musicalidade é interior, não
objetividade, essência. É a estrutura interna da pintura, a sua pureza suprema, seu esteio espiritual, o
começo também da sua corporificação. A matéria é impenetrável, opaca, o artista lhe dá forma e vida
interior, mais, ou menos universal, antropomórfica ou espiritual (Kandinsky), geral, épica e clássica, a
forma do pensamento da época. Quanto mais universal, menos expressa o artista a sua pequenês
individual, suas maneiras, mas essa universalidade é não dogmática, não vem de fora, mas do cósmico de
dentro, a identificação do cosmos com o homem, no seu interior. Não era o outro o horror de Mondrian
pelo individualismo exacerbado do artista e a sua vontade do universal. Mondrian achou para sí
constantes universais plásticas para expressar essa concepção universal que tinha da pintura (horizontal-
vertical, cores primárias, etc), mas os que lhe seguiram as tomaram como dogma, e o que era universal
voltou a se tornar novamente relativo e até para expressar sentimentos individuais (pessoais),
esteriotipações, automatismos, etc. A arte derivada de Mondrian, (chamada “abstrato-geométrica” e
51
OITICICA, doc. No.0182.59 p.5 AHO/PHO
52
OITICICA, doc. No.0182.60 p.1 AHO/PHO
53
Cf. OITICICA, 1962 e CLARK, 1996.
54
MANIFESTO NEOCONCRETO, 1959, p.10
33
Essa anotação de junho de 1960 intitulada Inter-relação das Artes mostra uma nova
inclinação estética de Hélio Oiticica: a musicalidade da pintura de Kandinsky. Oiticica é
consciente de que essa musicalidade não está “transposta” para a pintura, não é uma
representação de temas musicais que Kandinsky executa. Ela se estabelece a partir de
“relações intrínsecas” da “sonoridade da cor” e sua relação com a linha, o plano e ponto, e
isso, para Oiticica, vai em direção ao não-objeto, “é o verdadeiro elemento de não-objetivação
da sua pintura”, “altamente transcendental”. Mais importante que isso, a musicalidade de
Kandinsky se torna para Oiticica uma força estética contrária à perda da espontaneidade que
detectou no legado de Mondrian. Em seu entendimento, “Wassily Kandinsky através da sua
experiência, pode e deve ser considerado o pai de todas as evoluções posteriores da arte
abstrata, mesmo, [está] hoje convencido, da de Mondrian.”55:
De acordo com Celso Favaretto a influência kandinskiana vai se fazer visível em 1961
com o Projeto Cães de Caça. Exposto pela primeira vez como maquete em Novembro
daquele ano no MAM-Rio, o projeto de penetrável ganha um texto de Mário Pedrosa que o
descreve como “’obras’ onde se entra empurrando ou fazendo girar paredes, subindo escadas
ou contornando placas e painéis, caminhando, como num labirinto, para... encarar cores,
sentir o reflexo de cores, pisar cores, viver cores.” Como um de seus primeiros penetráveis
projetados para serem construídos como jardins, Projeto Cães de Caça dá independência à
cor no espaço, como coisa real apreensível pelo deslocamento do espectador-visitante:
“assim, superando os desenvolvimentos construtivos modernos, a cor deixa de agir apenas por
contrastes de tonalidades puras, propondo-se como estrutura e duração”56
55
OITICICA, doc.No. 0182.62, p.1, AHO/PHO
56
FAVARETTO, 1992, p.77
34
Figura 8: Hélio Oiticica, Maqueta para Projeto Cães de Caça, 1961, Emulsão de óleo sobre madeira; areia
1615 x 1610 x 295 mm
É preciso dar a grande ordem à cor, ao mesmo tempo que vem a grande ordem dos espaços
arquitetônicos. A cor, no seu sentido de estrutura, apenas pode ser vislumbrada. A grande ordem nascerá
da vontade interior em diálogo com a cor, pura, em estado estrutural; é um instante especial que, ao se
repetir, criará essa ordem; são instantes raros. A cor tem que se estruturar assim como o som na música; é
veículo da própria cosmicidade do criador em diálogo com o seu elemento; o elemento primordial do
músico é o som; do pintor a cor; não a cor alusiva, “vista”; é a cor estrutura, cósmica. (OITICICA, doc.
No. 0182.60, p. 4-5 AHO/PHO)
57
OITICICA, doc.No.0182.61, p. 08, AHO/PHO
35
Até o período do Projeto Cães de Caça, Hélio, que já havia feito grandes avanços
principalmente em relação ao caráter coletivista e ambiental que se via agora em seu trabalho,
ainda não havia criado uma via estética efetiva para que a cor, como queria, se tornasse
espontânea. A experiência da cor em suas maquetes ainda estava sendo construída por meio
de planos retangulares, no sentido construtivo ou mesmo neo-plástico. Nessas maquetes ainda
não se percebia a “organicidade”, “força criadora” a “invenção espontânea” que já em 1960 o
artista vislumbrava58. A “crise do retângulo”, “crise da estrutura total” para Lygia Clark era
um sinônimo de esgotamento:
Estou mais do que convencida sobre a crise do plano (retângulo) – Mondrian, o maior de todos, fez com o
retângulo o que Picasso fizera da figura. Esgotou-o de vez. Só que pela própria época a crise deslanchada
por Mondrian é mil vezes mais séria e maior que a deslanchada por Picasso. É a crise da estrutura – não
estrutura formal como sempre houve mas estrutura total - é o retângulo que já não satisfaz como meio de
expressão. Basta ele ser colocado na parede que ele estabelece automaticamente o diálogo sujeito/objeto
(representação) pela sua própria posição – este pessoal jovem está na mesma relação dos jovens após-
guerra – (cujos valores caíram por completo). Daí nasce a meu ver o ato somente imediato – todos te dão
a possibilidade de atuar na obra (mas o seu gesto é completamente destituído de expressividade. É o
brinquedo [...] (CLARK, 1996, p.17)
Em 1964, o artista caminhava para uma crise ainda maior que se manifestaria em
diversas ordens59, algumas se exacerbariam ainda mais em razão do Golpe Militar. É sobre as
ordens dessa crise que trataremos nessa segunda parte, onde Hélio Oiticica já havia
incorporado o tempo subjetivo (vivência) em seus trabalhos.
58
OITICICA, doc.No. 0182.60, p.6, AHO/PHO
59
VIANNA, 2000, p.5
36
Piet Mondrian visitava anualmente a Holanda, seu país de origem, depois de ter se
mudado em 1912 a Paris. A Holanda era então um país conservador que em 1926 criava
projetos para banir o Charleston, dança que acompanhava o recém-chegado jazz dos Estados
Unidos, considerada pelas autoridades “sensual demais”60. Mondrian, um artista que tinha
necessidade do ambiente urbano e “sua energia”, um freqüentador ávido do bar - os clubes
noturnos onde se ouvia o jazz em Paris - ao saber dos planos do governo, afirmou à revista
holandesa Der Telegraaf que a proibição do Charleston seria “um motivo para nunca mais
voltar” ao país61.
Era o jazz e a pintura neo-plástica que Mondrian via como “expressões de uma nova
vida”, como escreve em O Jazz e o Neo-Plástico (“De jazz en de Neo-Plastiek”) em 1927:
[O Jazz e o Neo-Plástico] expressam ao mesmo tempo a alegria e a seriedade que estão ausentes em
grande parte da nossa esgotada cultura. Eles aparecem simultaneamente com movimentos em várias
esferas que estão tentando romper com a forma individual e a emoção subjetiva: não aparecem mais como
"beleza" mas como "vida" possível através do ritmo puro, que expressa unidade por não ser fechado.
(MONDRIAN, 1927, p. 217)
Eles opõem a alegria à seriedade, eles põe um sorriso quando dançam e ficam sérios quando vão
trabalhar. No bar, a felicidade e a seriedade são uma só. O equilíbrio existe, pois tudo é subsumido pelo
ritmo. Não há vazio, nem tédio: o ritmo preenche tudo sem criar uma nova opressão – ele não se torna
forma. Nenhuma ligação com o que é antigo permanece, pois no bar só o Charleston é visto e ouvido. A
estrutura, a iluminação, a publicidade - mesmo em seus desequilíbrios - servem para completar o ritmo do
jazz. Toda feiúra é transcendida pelo jazz e pela luz. Mesmo a sensualidade é transcendida. Livre de
limitar forma, a sensualidade se abre. O mesmo acontece com a espiritualidade. Os dois opostos têm a
mesma ação em cada uma de suas esferas. A sensualidade aprofundada ao extremo é espiritualidade,
espiritualidade consciente se expressa sensualmente. (OITICICA, doc. No. 0253.66, p. 4-5 AHO/PHO)
Figura 9: Piet Mondrian. Broadway Boogie-Woogie. 1942-43. Óleo sobre tela, 127x127cm.
Charleston, as dançarinas, o bar, as garrafas de bebida e copos “que estão imóveis nas
prateleiras mas se movem em cor, som e luz”. O ambiente do bar de jazz “não provocava
nenhuma emoção particular” e Mondrian podia comprová-lo pela ausência de linhas sinuosas
da dança do Charleston. Mondrian não se prendia a qualquer escrutínio formal do jazz, que
considerava “livre de convenções”, “livre da opressão da forma”. Admirava sim – com sua
estima universalista - a possibilidade de existência de algo como o jazz no mundo, algo para
ele de enorme significado cultural: o jazz era um sinal de que a cultura moderna estava
“progressivamente livrando a vida da opressão da matéria”.
61
von MAUR, 1980, p.289
38
[...] você [Mondrian,] já sabe do grupo neo-concreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é
penoso[...]. No momento em que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver. Era a
62
HOLTZMANN, 1986, p. 2
39
tomada de consciência de um tempo-espaço, realidade nova, universal como expressão[...] Hoje a maioria
dos elementos do grupo se esquecem dessa afinidade (o mais importante) e querem imprimir sentido
menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa
tentativa de dar continuidade superficial a este movimento. (CLARK, 1959, p.48 )
Pela necessidade que via em definir seu projeto artístico individual em relação aos
outros neo-concretos, Lygia Clark justifica porque não crê na utopia neo-plástica. Está contida
em sua fala a consciência de que é impossível dissociar a descoberta da vivência (o tempo
subjetivo na experiência da obra de arte) da realidade material, uma realidade inevitavelmente
forjada por uma situação histórica e por ordens sociais (“o coletivo só existe na razão desta
desordem de ordem prática e social”). Nesse momento, Lygia Clark não está se referindo à
realidade de desigualdade e subdesenvolvimento do país. O descompasso que via na recente
atitude de alguns membros do grupo neo-concreto tinha um sentido mais “ético” para com a
“nova realidade espacial”: “Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar
no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra...”63. A “nova
realidade espacial” se encontrava justamente na vivência, no tempo subjetivo. Não ser fiel a
ela, na visão de Lygia Clark, seria o fim de uma “identidade imprescindível” para o
movimento neo-concreto.
Essa consciência sobre o descompasso ético da vanguarda vai assumir dimensões cada
vez mais políticas para Oiticica após 1964, e sintetiza-se na forma de uma pergunta no
Esquema Geral da Nova Objetividade: “[...] como, num país subdesenvolvido, explicar o
aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como uma alienação sintomática, mas
como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Como situar aí a atividade do artista?”.
Nesse momento – 1967, quando fora escrito O Esquema – o tempo subjetivo e a vivência nas
obras de Hélio já estavam inseridos em um contexto de opressão e cerceamento ideológico,
contexto que, por um compromisso “de ordem ético-individual”, deveria ser rebatido por
propostas “experimentais”, “não-acabadas”, “abertas”. Levando sempre adiante as
proposições de Ferreira Gullar de que o artista deveria ser um “modificador de
consciências”64, é em 1966 que essa nova ética é organizada sob o Programa Ambiental:
Já afirmei e torno a lembrar aqui: o meu programa ambiental a que chamo de maneira geral Parangolé,
não pretende estabelecer uma “nova moral” ou coisa semelhante [...] Deste modo estão como que
justificadas todas as revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais
socialmente organizadas (revoluções, por ex.) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como é
chamado aquele que se revolta, rouba e mata). [...] O princípio decisivo seria o seguinte: a vitalidade,
individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar de subdesenvolvimento e caos –
desse caos vietnamesco é que nascerá o futuro, não do conformismo e do otarismo. Só derrubando
63
CLARK, 1959, p. 46
64
OITICICA, 1967, p.165
40
furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade. (OITICICA, doc. No. 0253.66,
p. 4-5 AHO/PHO)
No texto do Esquema Geral da Nova Objetividade (1967), Hélio comenta algumas das
transformações pelas quais passa em 1964 e que iniciam os processos de fundação do
experimental e da antiarte:
Nesse período 1964-65 se processaram essas transformações gerais, de um conceito puramente estrutural
(se bem que complexo, abarcando ordens diversas e que já se introduziram no campo táctil-sensorial em
contraposição ao puramente visual, nos meus Bólides vidros e caixas, a partir de 1963), para a introdução
dialética realista, e a aproximação participante. Isto não só se processou com Cordeiro em São Paulo,
como de maneira fulminante nas obras de Lygia Clark e nas minhas aqui no Rio. Na de Clark com a
démarche mais crítica de sua obra: a da descoberta, por ela, de que o processo criativo se daria no sentido
de uma imanência em oposição ao antigo baseado na transcendência, surgindo daí o Caminhando,
descoberta fundamental de onde se desenvolveu todo o atual processo da artista que culminou numa
“descoberta do corpo”, para uma “reconstituição do corpo”, através de estruturas supra e infra-sensoriais,
e do ato na participação coletiva [...]. Ponto principal que nos interessa citar: o sentido que nasceu com o
Parangolé de uma participação coletiva (vestir capas e dançar), participação dialético-social e poética
(Parangolé poético e social de protesto, com Gerchman), participação lúdica (jogos, ambientações,
apropriações) e o principal motor: o da proposição de uma “volta ao mito”. (OITICICA, 1967, p.159)
65
Cf. VIANNA, 2000.
66
BRITO, 1999 apud. VIANNA, 2000, p.7
41
Mangueira, celeiro de uma cultura popular densa e organizada em torno da quadra da Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira. Protótipo do Morro do Rio, a Mangueira e seus logradouros cantados
pelo nosso cancioneiro popular: Pindura Saia, Santo Antônio, Chalé, Olaria, Candelária, Telégrafo,
Sossego, Buraco Quente. Para Hélio representou a descoberta do corpo tornado dança e de outros modos
de comportamento. Mas [Hélio] não prendia seu giro só à Mangueira, sua área compreendia arrepios e
rodopios também em outras “jurisdições”: Tuiuti, Central do Brasil, Praça Mauá, Estácio, São Carlos,
Lapa, Cancela, Quinta da Boa Vista e suburbia em geral. Pontes. Estação de trem zona norte-subúrbio.
Reaquisição das cores e encantos do mundo […] Liambas ou diambas em profusão de flautas e charos.
Expansão da consciência. Carpe Diem frenético que é o sinal indicador del sentimiento tragico de la vida.
Quadra de ensaio ainda na Companhia de Cerâmica Brasileira de Roberto Paulino antes da construção da
sede atual, o Palácio do Samba. Becos, vielas, terrenos baldios, beiras de ribanceiras. As janelas, as portas
e as bocas quentes da percepção. Embalos malucos e a predominância da concepção maniqueísta do
mundo dividido entre otários e malandros. Mas que hoje podemos compreender sob a ótica do
movimento da cidadania como esboço trágico-dilacerado de uma ponte em direção à área menosprezada
do Rio que Zuenir Ventura escrutinou como Cidade partida. Cidades separadas e desiguais dentro da
“mesma” cidade. Esquoizóides e desiguais saídas: ou suficiência arrogante-paranóica ou se transfundir no
outro. (SALOMÃO, 1996, p. 36)
Desde o início, fora abordado a questão da favela de pontos de vista radicalmente diferentes. Em um
extremo, e inicialmente o mais influente, situavam-se aqueles que apontam para as favelas, não só como
pragas estéticas, mas também como ninhos de criminalidade, vício, ignorância e barbárie. Nas primeiras
décadas da favela, esta associação foi feita com mais frequência por jornalistas ávidos em provocar a
curiosidade dos leitores sobre os rústicos assentamentos que cresciam no centro "civilizado" do Rio.
Entre esses estava Benjamim Costallat, que descreveu a "favela que [ele] viu" no início de 1920 como "o
morro do crime”,"um lugar fora da lei, um local de violência misteriosa e brutalmente sedutora”. Era,
observou Costallat, um lugar sem lei, onde "a terra pertence a um e a todos", "uma cidade dentro da
cidade", onde ninguém se casava, ninguém pagava impostos, e onde derramamento de sangue era o
remédio para todos os crimes e conflitos. O morro também era, segundo Costallat, um lugar de pobreza
terrível, caótica, de cultura exótica com traços africanos e, acima de tudo, do samba - que, mais do que
uma forma musical, era uma felicidade transcendente e teimosa face à privações indescritíveis. Costallat e
outros viram no samba uma alegria admirável, "um exemplo maravilhoso para aqueles que têm tudo e
ainda não estão satisfeitos"; desse fascínio crescem as raízes que levaram o samba à frente da cultura
brasileira. (FISCHER, 2006, p. 72)
realidade material e ordem social da favela, era talvez como um sumo dessas condições e um
veículo de alegria transcendente76. Esse fascínio que descreve Costallat, o “mistério do
samba”77 atingiu Hélio Oiticica no corpo: o ritmo fora irresistível para ele. Como adiantou
Waly Salomão, seu corpo foi “tornado dança” quando começa a frequentar a Estação
Primeira de Mangueira:
Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso
particular o samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual,
de necessidade de uma livre expressão, que já me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva
intelectualização. [...] A improvisação reina aqui no lugar da coreografia organizada; em verdade quanto
mais livre a improvisação melhor; há como que uma imersão no ritmo, uma identificação vital completa
do gesto, do ato com o ritmo, uma fluência onde o intelecto permanece como que obscurecido por uma
força mítica interna, individual e coletiva (em verdade não se pode aí estabelecer a separação). As
imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do ícone, estático e característico das artes
ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial -> está aí
apontada a direção da descoberta da imanência. (OITICICA, doc. 0120.65, p.1 AHO/PHO)
Se para o artista são “imanentes” o samba e os gestos de sua dança, são por
evidenciarem experiências ao mesmo tempo individuais e coletivas: “a dança ‘dionisíaca’ que
nasce do ritmo interior do coletivo” é o interesse do artista no “ato total de vida”.
A menção da qualidade do equilíbrio que Hélio faz em A Dança na Minha
Experiência sugere que Mondrian ainda está em suas referências, ainda que em uma
perspectiva crítica. Retomando aqui a função do equilíbrio para Mondrian, ele era um
objetivo da estética neo-plástica para se atingir o universal, e somente seria conseguido
através da resolução da dualidade físico-espiritual. Interessante é perceber como a qualidade
imanente do samba está no lugar do universal que Mondrian enxergava e ouvia no jazz: em
seu novo posicionamento ético, Oiticica valoriza o ato individual – o ato plástico - é nele onde
se manifesta a “vitalidade pura”. Ao contrário da dança do Charleston na visão de Mondrian,
não se subtrai a emoção da dança do samba pois ela tem parte no jogo da improvisação e na
evidência desse ato expressivo.
O ritmo equilibrado na música neo-plástica, caracterizado simplesmente por
sequências de eventos sonoros de características opostas (intensidade alta ou baixa, tom grave
ou agudo), que seguidos, neutralizariam uns aos outros, era a evidência do ritmo universal
para Mondrian. Pois Hélio afirma: “o ato total de vida” passa pelo “desequilíbrio para o
equilíbrio do ser”. O ritmo para Hélio funciona como um elemento agregador dessas
vitalidades individuais: ele dá uma forma aberta ao coletivo (não compartilham os passistas
76
A música pode funcionar como um “canalizador da violência.” (ATTALI, 1986, p. 27)
77
Cf. VIANNA, 1996.
44
de um mesmo ritmo?), ele é o fator “cósmico”, revelador dessa imanência sem impor
coreografias ou ordenações inibidoras do ato individual: “cada qual cria seu samba com
improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que o fazem seguindo modelos não
sabem o que seja o samba ou sambar”78. O ritmo dá organização à “desordem” da
improvisação.
O sentido construtivo79 está presente também na confecção das capas dos Parangolés.
Mas como vimos, nesse novo contexto – fora dos imperativos do sistema das artes plásticas,
fora da metrópole ordenada, dentro da favela, dentro da musicalidade do samba – esse sentido
vai se concretizar sob novas formas (materiais, estruturas, cores) e ser posto em ação com
uma vitalidade musical que pouco havia participado do construtivismo visual brasileiro80.
Assim, as capas também incorporarão a realidade material do morro. A perspectiva
das artes plástica que Hélio trouxe para a operação de construção dos Parangolés fora o
caráter experimental de Kurt Schwitters, chamado por ele de Merz que consistia na coleta de
materiais que o artista encontrava quando caminhando por Berlim na década de vinte81. Com
esses objetos encontrados, o artista faria uma “colagem psicológica” não-figurativa. O
princípio não-figurativo do Merz seria incorporado ao Parangolé:
As fachadas dos abrigos das favelas são fragmentadas formalmente, mas o interior dessas construções
precárias é unitário, constituído, no mais das vezes, de uma peça única, que se divide à noite em pequenos
compartimentos, com a ajuda de cortinas em tecidos ou em plástico (às vezes, cortinas de banheiro), para
preservar a intimidade dos casais que ali dormem. São esses materiais as cortinas internas que vamos
encontrar nos Parangolés, como se Oiticica tivesse escolhido o mais íntimo dos materiais usados para
representar com maior pertinência ideia de abrigo. Ele retoma os fragmentos de tecidos e de plásticos do
interior dos barracos para fazer as capas. (BERENSTEIN, 2004, p.35)
O problema da cor tempo - redefinido ao do longo percurso que a pintura fez até a
“descoberta do corpo” – atingiu aqui o seu ponto máximo: a cor estava posta em ação em uma
estrutura animada pelo próprio participante. É de se prestar atenção que nas cadências, giros e
vôos das camadas das capas Parangolé estava incorporada a cinética da dança do samba;
surge a vivência-total, o tempo subjetivo gerado pelo próprio movimento do corpo:
78
OITICICA, 2009, p. 54
79
LAGNADO, 2007a, s.n.
80
Segundo Vianna (1996, p.102) houve diversos encontros significativos entre poetas modernos como Blaise
Cendrars e sambistas como Donga. O samba já na década de dez desperta o interesse de compositores eruditos
como Darius Milhaud.
45
O Parangolé não era assim uma coisa para ser posta no corpo para ser exibida, a experiência da pessoa
que veste, para a pessoa que está fora vendo a outra se vestir, ou das que vestem simultaneamente, são
multiexperiências, não se trata assim do corpo como suporte da obra, pelo contrário, é a total
incorporação. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo....eu chamo de in-corporação.
(OITICICA, 2009, p.229)
Hélio Oiticica estava encontrando uma saída para a “crise do retângulo”, a crise da
ortogonalidade. Não foi a descoberta da cor tempo que a solucionaria: o museu ainda
impunha o distanciamento físico entre obra e espectador. O carnaval, ao contrário, oferecia
possibilidades expressivas de integração entre corpo e estrutura: nos Parangolés, esses se
confundem, entram no regime da “dialética realista”, pois a capa provoca o movimento do
corpo e esse por sua vez gera fenômenos de cor para quem assiste à ação. Era o processo de
“transmutação expressivo-corporal”, a via desiquilibrada de sintonizar a realidade da matéria
à realidade do espírito.
Figura 10: Hélio Oiticica, P07 Parangolé Capa 04 'Clark', 1964-65, Tinta; tela; burlap; vinil, 1310 x 985 x
60 mm , César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro.
47
83
OITICICA, 1968 apud. FAVARETTO,1992, p. 104
48
3 CHELPA FERRO
O Merz, o estúdio e o estado de invenção
49
No Brasil, existem alguns lugares não tão ermos onde as artes plásticas incorporam a
sonoridade e os símbolos da música popular. Neles é preciso estar atento: não são como os
espaços periféricos ou anteriores ao que Cildo Meireles chama de Brasil português84 em seu
LP Sal sem Carne, o Brasil pré ou extra-urbanização, onde atividades não precisariam ser
chamadas de “artísticas” para promover uma experiência onde em um mesmo território se
encontram a música, a visualidade, a dança85. Esses lugares onde as artes plásticas incorporam
o samba e o rock’n’roll já supõem a ideia e a divisão das artes na modernidade, eles se
formam nas dinâmicas culturais da metrópole.
Um desses lugares é o “barraco que Hélio Oiticica armou no MAM”86, inaugurado em
1965 quando levou um cortejo de sambistas vestidos em Parangolés ao Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro na abertura da exposição Opinião 65. Acompanhado de vários
passistas da Estação Primeira de Mangueira, eles dançavam e tocavam instrumentos de
percussão87. Previsivelmente fora expulso do museu pela equipe de segurança, mas o ato de
invadir musicalmente uma instituição oficial do modernismo brasileiro já mostrava de forma
mais do que simbólica (a festa continuou no jardim do MAM88) como era inevitável a
contaminação do samba e do rock’n’roll nas artes plásticas pelo que Oiticica chamaria em
1967 de “descoberta do corpo”89, característica para ele inseparável às duas expressões
musicais.
A consciência do papel da musicalidade na experiência artística terão uma importância
determinante no trabalho de Oiticica após os Parangolés (1964). A apropriação de imagens e
material sonoro da música popular se intensificarão em suas propostas principalmente durante
seu exílio voluntário em Londres em 1969 e do período em Nova Iorque entre 1970 e 78: oito
anos após o episódio do Opinião 65, o artista cria com Neville D’Almeida o CC5
Hendrixwar/Cosmococa Programa-in-Progress, um ambiente ocupado
84
MEIRELES, 2009, p. 259
85
Nesse sentido, as pinturas de Jean Baptiste Debret, Joueur d'Uruncungo (Tocador de Berimbau), 1826; (Dia
de Entrudo, Funeral de Filho de Rei Negro, Jogadores de Capoeira, etc) retratam como a população de escravos
africanos e afro-brasileiros ocupava o espaço público com a música (e inseparável dela, a dança), a capoeira, e as
cerimônias religiosas.
86
SALOMÃO, 1996, p.57
87
Cf. VIANNA, 1995, p.1 e SALOMÃO, 1996, p.34
88
BERENSTEIN, 2003, p.37
50
Figura 11: Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, Cosmococa 5 Hendrix War, 1973, Nova Iorque.
com redes de descanso, música de Jimi Hendrix e projeções de fotografias do guitarrista com
a intervenção dos desenhos de cocaína de D’Almeida. Como em seus Penetráveis, o público
participava ocupando esse lugar que foi construído para ativá-los sensorialmente. Ali deitam
nas redes, ouvem a música do guitarrista e assistem às projeções de slides: os participantes da
Cosmococa são como elos entre imagem, som e corpo. Eis aqui mais uma proposição de
“antiarte” de Hélio Oiticica, o Quase-cinema90, um lugar para a dissolução das separações
entre imagem, platéia, narrativa e sensorialidade.
Na década de sessenta, em uma sala da Rex Gallery & Sons - um lugar neodadaísta da
cidade de São Paulo fundado por Nelson Leirner (1932 - ), Wesley Duke Lee (1931- 2011),
90
LAGNADO, 2007b, p.27
51
Geraldo de Barros (1923 - 1998)91- a popularidade do rock’n’roll instiga Leirner por sua
capacidade de construir ídolos e ícones. Voltar atenção iêiêiê da Jovem Guarda era algo
alinhado com o que o Grupo Rex propunha em sua galeria “aquém da crítica e do mercado”: o
humor e a ironia eram veículos pelos quais esses artistas conseguiam revelar as estratégias e
trâmites institucionais do sistema de arte. Em 1966, Leirner faz nessa galeria a Adoração ou
Altar a Roberto Carlos, uma instalação de dois ambientes (uma catraca de entrada e o altar
propriamente dito, separados por uma cortina), onde o cantor é retratado de forma religiosa,
canonizado como um santo. A ironia é tratada de forma ainda mais kitsch com lâmpadas neon
que contornam a imagem do cantor, o veludo vermelho das cortinas e o amarelo-ovo da
catraca. Não existe música ou mesmo alusão ao som da Jovem Guarda, sobrando para o
visitante somente o mudo ícone do “rei da juventude”.
Mesmo que com essas propostas os artistas estivessem empreendendo seu pensamento
criativo tendo o rock como matéria, como sensorialidade/subversão, ou mesmo revelando
seus clichês e a repetição mercadológica no qual está engendrado, o rock neles é como um
sistema de representação, um amplo conjunto de símbolos dos quais o artista pode se
apropriar. Ao mesmo tempo, o samba para Oiticica está muito menos distanciado: é o ritmo
que está incorporado em sua dança, é o elemento espiritual para o “ato de vida total” e é com
as pessoas do samba que decidiu ocupar os territórios “oficiais” da arte em 1965:
Hélio escolheu a via da superação do etnocentrismo. O outro não é uma abstração desencarnada, com o
qual é imperativa a união para construir uma futura sociedade utópica, como do redentorismo marxista. O
outro é um corpo de carne y hueso que opera uma transmutação do próprio corpo do Hélio tornando-se
sensível ao sensível. [O PARANGOLÉ foi] vestido por Mosquito (mascote do PARANGOLÉ), Nildo,
Jerônimo, Tineca, Robertinho da Mangueira, Santa Tereza, Paulo Ramos, Vera Lúcia, Carlinhos
Pandeiro-de-Ouro, Pedralto da Lacraia, Canhão, Lilico, Nininha Xoxoba. (SALOMÃO, 1996, p. 37)
Mas é com outras premissas que no Rio de Janeiro quatro artistas brasileiros
contemporâneos se apropriarão do corpo do rock e do samba - seus instrumentos, seus cabos,
alto-falantes, suas mídias – e sua sonoridade - ritmos, vibrações, timbres, efeitos. Pelos
trabalhos de Chelpa Ferro, o som do rock sai do espaço fonográfico, se desencaixa de suas
imagens, se desprende se seus ídolos; o samba, por sua vez, liberta-se do corpo humano para
ocupar os espaços de museus e galerias com sua própria estrutura física e seu som.
Narrar a partir de um conjunto de trabalhos muito particulares, porém, pode
simplificar a complexa relação que artistas plásticos teceram com a música no Brasil,
especialmente a partir na década de sessenta. A subida de Hélio Oiticica ao Morro da
91
Cf. LEIRNER; et al, 2002.
52
A trajetória de Hélio Oiticica após 1964 é talvez uma das mais representativas para
abordar as aproximações das artes plásticas com a música popular no Brasil. Assim como
José Celso Martinez, Glauber Rocha, Lygia Clark e Rogério Duarte, o artista já estava
inserido no começo da década de sessenta em diferentes contextos artísticos e intelectuais
onde se discutia as bases da ideia de “tropicália”, muito antes que o tropicalismo musical
ganhasse algum destaque midiático92. Fora Oiticica que pela primeira vez utilizou a palavra
Tropicália. Entre 1966 e 67 como conceito de um desenvolvimento de Penetrável que surge
dentro de seu Programa Ambiental, Tropicália era um Penetrável que já havia incorporado a
“nova ética realista” e a proposição “antiarte” que Hélio desenvolvera com os Parangolés na
Mangueira93.
Após a apropriação do nome do penetrável de Oiticica por Caetano Veloso94, os
músicos baianos levarão adiante a ideia de “tropicália” como um desenvolvimento musical,
chamado posteriormente de tropicalismo. Não obstante, o artista plástico questionaria os fins
para os quais interessaria a formação de um ismo – o que comunicava claramente a intenção
de se formar um movimento de vanguarda - sob o conceito que inventara:
Em 4 de março de 1968 (apenas um mês após o artigo [A Cruzada Tropicalista] de Nelson Motta), Hélio
Oiticica seria o primeiro nome supostamente ligado ao movimento a expor sua contrariedade e a
diferenciação entre tropicália e tropicalismo. Ele desfia, em um texto intitulado apenas “Tropicália”, as
inquietações que os abusos modistas usando o nome de sua criação – que virou título de uma música de
Caetano Veloso e do álbum coletivo do grupo de músicos e compositores ligados posteriormente ao ismo
– lhe causavam. [...] Oiticica, apesar da grande amizade que desenvolve com os músicos baianos e os
poetas concretos ao longo de 1968, sempre manteve uma visão bem particular sobre suas obras. O uso
desenfreado do termo “tropicalismo”, sem nenhum resquício dos princípios que balizaram a longa
concepção da obra Tropicália (“quem fala em tropicalismo apanha diretamente a imagem para o
consumo”), levou o artista plástico a praticamente assumir uma postura inicial antitropicalismo. Na
defesa de suas posições radicais sustentadas em diversas outras declarações da época, eram justamente o
rápido triunfo dos músicos baianos e paulistas em relação à sociedade de massas e seus desdobramentos
populares e comerciais que Oiticica atacava e do que desconfiava. Essa intencionalidade comercial e
midiática dos músicos tropicalistas – uma ação ligada aos dilemas da música popular – contribuiu
decisivamente para o modismo criticado por Oiticica. (COELHO, 2010, p. 122)
92
COELHO, 2010, p.125
93
Cf. OITICICA, doc.No.0253.66
53
Figura 12: Caetano Veloso vestindo Parangolé Cape 04, 1964, Rio de Janeiro.
cidade intensifica seu contato com o rock, algo que se tornará ainda mais consistente nos oito
anos que Oiticica passará em Nova Iorque entre 1970 e 78100.
Com a abertura política da década de oitenta, a geografia muda: os propósitos da
antiarte se aquietam, restaura-se a atitude artística de “voltar-se para o interior”101
fortalecendo novamente o papel do artista individual que quer quebrar com a História da Arte
de Vanguarda Brasileira102.
Os lugares e circunstâncias onde música e artes plásticas se encontram muda
consideravelmente. Mudanças no mercado fonográfico e fábricas locais permitiram que um
volume muito maior de lançamentos internacionais circulasse no país103. Em uma onda de
superação das bandas de rock progressivo do final da década de 70 geralmente vinculadas à
juventude conservadora (Módulo Mil, A Bolha, Analfabitles, O Terço), há o boom do rock
nacional com bandas como Paralamas do Sucesso, Blitz, Kid Abelha, Marina Lima, Titãs,
Legião Urbana, Lobão e Barão Vermelho, que segundo André Midani, foram a saída para a
crise que assolava os estúdios fonográficos desde 1980104. Essas serão trilhas sonoras que
alimentaram o que Heloisa Buarque de Hollanda chama de “desmontagem da ditadura”, o tom
era libertário, propunha-se remontar o indivíduo. A juventude dessa nova década queria viver
a democracia em um espírito atualizado do desbunde105da contra-cultura da década anterior:
esse agora perpassaria os bens de consumo, o pop, a moda, a despedida do imperativo de criar
utopias e glórias póstumas na arte106 e na música popular. Há impacto dessa mudança também
nas artes plásticas:
Ao contrário do experimentalismo e dos exercícios conceituais dos anos 70, os novos artistas, para a
desolação da crítica, voltavam, com o maior empenho, para o trabalho com as técnicas tradicionais do
desenho e da pintura, procuravam como compromisso as imagens contundentes e vibrantes da indústria
cultural e desprezavam as preocupações formais ‘desnecessárias’, segundo eles. Longe dos projetos de
questionamento e resistência da geração anterior, esta, procura, através de obras vendáveis, seduzir o
mercado para poder não perturbar o sistema e não ser perturbado por ele. Segundo Marcos Lontra, a festa
da geração 80 onde a presença do público era uma constante, na verdade correspondia ao clima eufórico
de um país que saía da ditadura em pleno namoro com a prática democrática. O mercado e as galerias
comerciais até então imunes aos talentos emergentes não conseguem resistir a essa movimentação toda e
investem francamente nos novos artistas. (BUARQUE, 1991, s.n)
100
OITICICA, doc.No. 0092.78, p.4
101
POINSET apud MORAIS, 1984, p.224
102
GUINLE, 1984, p.233
103
MIDANI, 2008, p. 177
104
Ibid, p. 201
105
“Deriva da circulação do modelo hippie na cultura jovem dos grandes centros urbanos, sendo relacionado ao
consumo de drogas, à crença mística orientalista e ao ideal do ‘pé na estrada’” (COELHO, 2010, p.217)
106
MORAIS, 1984, p. 226. Algumas canções de sucesso da época sugerem esse espírito: “Eu vejo a vida mais
clara e farta”. LULU SANTOS (1984). Tempos Modernos ; “Meus heróis morreram de overdose”. CAZUZA
(1988), Ideologia; “Mas Vital comprou a moto e passou a se sentir total”. PARALAMAS DO SUCESSO(1984),
Vital e Sua Moto.
56
É nessa circunstância onde dois dos membros de Chelpa Ferro, Barrão e Luiz Zerbini,
iniciam suas carreiras nas artes plásticas no Rio de Janeiro. A cidade nessa década também
acabou propiciando encontros de artistas de diversas linguagens como o teatro, a música, a
dança e as artes plásticas com eventos como o Circo Voador no verão de 1982, realizado na
praia do Arpoador pelo produtor Perfeito Fortuna. Nesse lugar, os músicos do novo rock
brasileiro que pouco tinha das ideias tropicalistas das duas décadas anteriores, encontravam a
geração 80 de artistas plásticos, atores de novas companhias de teatro como Asdrúbal Trouxe
o Trombone e escritores como Fausto Fawcett e Ricardo Chacal.
Chacal foi o responsável por reunir Chelpa Ferro pela primeira vez como “banda” em
1995 - não em um contexto de artes ou de música, mas para um evento de poesia. Longe da
galeria e do museu, no palco do teatro Sérgio Porto, Barrão, Zerbini, Sergio Mekler e Chico
Neves fizeram sua primeira performance no CEP 20.000, o Centro de Experimentação
Poética, um dos eventos de poesia (ou com a desculpa da poesia para se expandir para
praticamente todas as linguagens artísticas) mais conhecidos e celebrados pela comunidade
artística do Rio de Janeiro. O ambiente experimental e propositivo do CEP 20.000 acolheu as
vontades do grupo de fazer o que estivessem “a fim de fazer [...], sem preocupação que isso
tenha coerência com o que fizemos semana passada.”107
As atividades da “semana passada” do Chelpa Ferro podem ser inúmeras, de pintar um
quadro a editar um filme de cinema, diversa é a formação dos quatro membros. Barrão
trabalha no início de sua carreira com esculturas feitas de máquinas “que se acoplam umas às
outras, e entram em regimes deleuzianos-favelados de funcionamento”108 e atualmente aplica
seu raciocínio de bricolagem na louça e porcelana; Zerbini, é paulista e vive desde a década
de 80 no Rio de Janeiro onde se estabelece como artista trabalhando principalmente com a
pintura; Sérgio Mekler é editor de cinema e TV que montou muitas das produções
audiovisuais brasileiras mais relevantes desde a segunda metade da década de noventa e
Chico Neves109 é produtor musical, iniciando em 1978 sua carreira que teve produções de
sucesso na música popular brasileira, como álbuns dos Paralamas do Sucesso, Jorge Mautner,
Skank e Arnaldo Antunes.
A proximidade profissional que Chico Neves possui com o som, a composição e a
performance musical, possui um caráter mais emocional e aficcionado110 com Barrão, Luiz
107
Depoimento de Barrão no documentário Chelpa Ferro (cf. NADER, 2009)
108
VIANNA, 1998, p.34
109
Chico Neves deixou o grupo em 2001.
110
No sentido do ouvinte emocional de ADORNO (1976, p.8)
57
Zerbini e Sérgio Mekler que cultivam hábitos de consumo de discos, shows e hardware
sonoro (instrumentos e osciladores de frequência customizados). Essa relação afetiva com o
som orienta o estado de invenção do trabalho de Chelpa Ferro.
Como apontaram Hermano Vianna e Moacir dos Anjos, todos os membros do Chelpa
Ferro lidam com procedimentos de fragmentação, edição e assemblagem, evidenciando
através deles um interesse pelo o que é impreciso e transitório111. Não é surpresa que o som ou
a “vontade de tocar” sobre a qual Barrão fala no documentário Chelpa Ferro112 serve tanto em
suas performance quanto em seus objetos como uma plataforma de negociação entre essas
diferentes habilidades e modos de pensar dos membros do grupo.
É a partir dessas circunstâncias que encontros musicais se fazem freqüentes entre
artistas de diferentes campos e formações, e inclusive no Brasil, como por exemplo a banda
sem nome de Waltercio Caldas, o artista plástico Tunga e o vídeo-artista e fotógrafo Artur
Omar. Durante os primeiros anos da década de oitenta, Waltercio e Artur Omar tocavam
sintetizadores e seu som eletrônico era acompanhado pelos curiosos gongos e outros
instrumentos percussivos de membrana ou metálicos de Tunga. O grupo nunca tocou em
público e os improvisos e criações musicais eram para os três somente uma experiência
particular, ainda que, como contou Waltercio, achassem que estavam fazendo “a música do
século XXIII”.
Nos Estados Unidos, na época paralela à abertura democrática no Brasil, o pós-punk e
a no-wave113 amadureciam em Nova Iorque. Muitos grupos musicais experimentais surgiram a
partir da união de artistas não-músicos como escritores, artistas visuais, atores e diretores de
vídeo e cinema. Agindo como um articulador entre diferentes atividades e realidades da
cidade de Nova Iorque (as galerias do Chelsea, o hip-hop do Harlem, a boemia dos artistas
plásticos que viviam no anteriormente arruinado Lower-East Side, os clubes Mudd e Club 57)
quando o circuito no-wave já estava bem estabelecido, estava o pintor Jean-Michel Basquiat.
Em 1981, o artista cria a banda Gray com o poeta canadense Wayne Clifford, o artista
plástico e fotógrafo Nick Taylor, e os diretores de cinema, escritores e músicos Michael
Holman e Vincent Gallo, que é também ator. A no-wave criou um ambiente propício para que
as faixas ruidosas e inacabadas de Gray em seu único disco Drum Mode e suas performances
pudessem agir sem o peso do pioneirismo e com liberdade estética quase obrigatória, já que
esse contexto, impulsionado no fim da década de setenta por bandas como Contortions,
111
Cf. DOS ANJOS, 2008 e VIANNA, 1998
112
Cf. NADER, Carlos, 2009, documentário Chelpa Ferro
113
REYNOLDS, 2006, p.139
58
Teenage Jesus and the Jerks, Mars e DNA, tinha como ideal criar uma atitude tabula rasa na
qual todas as noções e regras aceitas de musicalidade fossem expurgadas. Não poderia
tampouco acontecer uma reunião de não-músicos para a performance musical em uma cena
mais criteriosa, que exigisse qualquer nível de erudição tradicional para que os artistas
conseguissem algum espaço de atuação.
As circunstâncias nas quais Chelpa Ferro nasce são tão favoráveis para a
experimentação musical e sonora quanto as de Gray. Promovendo o encontro de artistas pelos
meios artísticos “imateriais” como o som e a poesia, o multidisciplinar CEP 20.000, fundado
em 1990 pelos poetas Guilherme Zarvos e Ricardo Chacal, já nasce fortalecido por um
segmento da geração de artistas brasileiros da década de oitenta que se sentia à vontade em
atuar em diferentes linguagens como teatro, música, literatura e artes visuais. É então, a partir
de freqüências, ruídos, vibrações, distorções, pancadas, notas, bips e palavras que a pulsão
sonora das performances do Chelpa Ferro encarnarão o mundo material.
gesto humano. Seu ritmo evoca lembranças do samba talvez em seu andamento e seus
timbres, que passeiam pelo som de caixa, de um atabaque ou de um tamborim. No entanto,
não deixa de ser uma lembrança rítmica duvidosa já que esse ritmo não “evolui”, a emoção é
contida ou impedida pelas engrenagens da máquina e a expectativa do ritmo do samba se
suspende. Cria-se então uma textura, um padrão rústico, que na apresentação da Autópsia da
Cigarra Gigante em 2008, foi acompanhada por Barrão, Zerbini e Sérgio Mekler cada um
com um trompete. Com os instrumentos, tocavam notas longas e dissonantes que eram
sobrepostas com a ajuda de delays e efeitos de reverberação, criando um ambiente festivo e
carnavalesco ao mesmo tempo que distante, dissipando energia demais para soar nostálgico
ou para se circunscrever em algum tempo do passado.
Samba sintetiza uma qualidade que está presente em boa parte dos trabalhos do
Chelpa Ferro: um processo quase intuitivo que “anima” a matéria e os objetos por suas
propriedades ou potenciais sonoros, nunca escondendo o estado de invenção114, sempre
deixando visível e acessível a alegria da descoberta e da combinação imprevista. Talvez a sua
característica “favelada” emana de como as soluções não são rebocadas, não são escondidas,
sendo a necessidade e a intuição seu próprio acabamento. Eis que o Samba é som dando vida
à matéria, e não um mero mecanismo utilizando a matéria para fazer música ou ruído.
Mas existe uma história, uma motivação que impulsionou o Chelpa Ferro em 1997 -
ainda se reunindo somente para performances – a começar a construir objetos e instalações
como Samba, e esse percurso passa novamente pelos espaços virtuais da gravação fonográfica
e pela mudança fundamental que a infra-estrutura digital provocará nas práticas estéticas.
Nesse ano, o grupo se apresenta novamente no CEP 20.000 com uma base de vinte
minutos composta pelo produtor musical (e então ainda membro do grupo) Chico Neves e
catorze pessoas convidadas para tocar guitarra, sendo somente metade delas guitarristas com
experiência. O produtor, interessado em potencializar e enriquecer as sonoridades que o grupo
poderia produzir ao vivo, propôs aos três que gravassem um disco, e assim no mesmo ano
produzem seu primeiro álbum, o Chelpa Ferro I.
Com ele, no entanto, acabaram criando para eles próprios outro desafio: as faixas do
álbum não podiam ser tocadas ao vivo. As colagens, ritmos e rápidas edições sonoras do
álbum foram gravadas no ADAT, uma tecnologia digital que começa a ser introduzida nos
estúdios na década de 90, que permite não só a gravação simultânea de diversas trilhas de som
(ou “pistas”) mas pela primeira vez uma grande precisão de sincronia e localização de um
60
Figura 13: Capa do album Chelpa Ferro II, 2004, Rio de janeiro: Ping Pong , 1CD, stereo
ponto exato na gravação, um sample, a um custo relativamente baixo. Isso significa que
outras possibilidades de edição e até mesmo concepção de uma faixa musical estavam
disponíveis já que o sampling e o remix não precisavam mais depender de um processo que
era antes quase artesanal. Chelpa Ferro I é também em certa medida “pós-protools”115, já que
também foi em parte produzido no software de edição de áudio Pro Tools que permite a
visualização gráfica de cada pista de som, tendo nele além de ferramentas de programação,
até funcionalidades para uma limitada gestualidade para comandar efeitos e filtros digitais ao
longo de uma faixa116. Assim, o álbum está curiosamente circunscrito na transição de
tecnologias pela qual a gravação e edição de áudio passaram na década de 90, um fato
114
Termo mencionado por Oiticica para explicar a inseparabilidade entre ideia e objeto nos Paragolés
(OITICICA, 2009, p. 227)
115
VIANNA, 1998, p.35
61
lembrado por Sergio Mekler, quando conta que o Pro Tools foi adquirido justamente na
segunda metade da produção do álbum, quando boa parte do material já havia sido gravada
nas fitas digitais do ADAT.
Existe em todo Chelpa Ferro I o encontro de sons de fontes acústicas ou elétricas
como percussão (com os mais insólitos materiais), voz, metais, baixo e guitarra, com samples,
loops e alguns sons estritamente eletrônicos ou sintetizados. Porém, a estrutura das faixas é
toda composta no sampler e software, é neles onde a mixagem – a inteligência e combinação
entre o sons – se dá.
Como apresentar esses sons? Como levá-los à performance? É possível que esse
dilema ronde muitos dos artistas que utilizam a edição como principal ferramenta de
composição, mas são questões que levaram a algumas propostas que somente um grupo com
três artistas visuais poderia levar à cabo: criando objetos que pudessem conter ou provocar
esses sons. E foi no lançamento do primeiro disco do Chelpa Ferro na galeria do Paço
Imperial no Rio de Janeiro, que eles foram expostos pela primeira vez.
Diversos objetos e instalações foram produzidos para essa exposição, como Paraíba,
uma gaiola de periquitos microfonada que amplifica o canto dos bichos com efeitos de delay e
reverb, como a mesa de telefones que tocavam trechos do disco, ou Onda Quadrada, com a
qual, novamente, o ping-pong reaparece no trabalho de artistas brasileiros.
Suspenso, calado e óptico com Waltercio Caldas, imaginário e invisível com Nelson
Leirner, o ping-pong de Onda Quadrada é físico, podemos ver energia e movimento:
dezesseis alto-falantes deitados no chão emitem uma frequência baixíssima e constante,
proveniente de um oscilador capaz de movimentar seus diafragmas de maneira que as bolas
de ping-pong colocadas em cima deles, pulem e provoquem mais sons.
116
O trabalho “Liverbeatlespool” de Cildo Meireles (2004) nasce da possibilidade de visualização gráfica de
diversas faixas musicais. Cf. MEIRELES, 2008, p.289.
62
No que Chelpa Ferro insere e deixa visível a energia agindo na matéria e nos objetos, se
torna quase sem propósito trazer para o texto termos como visão e audição, uma vez que a
consequência do movimento de seus trabalhos, da energia operando em sua matéria, do
contato físico que se pode entender visualmente, são inevitavelmente barulhentos. Neles
vemos o som sendo produzido, vemos a consequência sonora da matéria em movimento.
Como Eureka/Blindhotland de Cildo Meireles, Chelpa Ferro só deixa margem para qualquer
cisão entre os sentidos acontecer espontaneamente na experiência do visitante e não as impõe
no próprio trabalho.
É que existe algo próprio do rock’n’roll que evoca uma experiência que tende a ser
sensorialmente total e recusa criar abismos entre escuta e visão (alguém isola as qualidades
“visuais” de um baterista? Para quê?). O que Hélio Oiticica descreveu como “descoberta do
corpo”, Seth Kim-Cohen, utilizou termos semióticos para identificar a interação entre os
elementos puramente sonoros ou extra-composicionais do rock, seus efeitos, espacialidades e
tratamentos típicos, mas também suas propriedades inaudíveis, como por exemplo, seus
instrumentos como objetos, como marcas, como seu aparato físico. Moby Dick, um trabalho
de 2006, trata dessa qualidade quando traz para dentro da galeria uma imensa bateria, tão
prolixa que chega a ser desproposital, uma extrapolação do tamanho convencional do
instrumento que mostra um certo senso de humor. Não existem baquetas disponíveis, não se
trata de uma obra participativa: a grande estrutura está ali somente para ser observada,
contemplada silenciosamente como coisa.
Segundo o curador e crítico Agnaldo Farias, o titulo Moby Dick foi apropriado de uma
conhecida faixa do álbum Led Zeppelin II117, na qual o baterista James Bonham executa um
solo que se tornou referência no imaginário rock’n’roll. Seguido de uma breve introdução da
banda em estrutura de blues, o solo de Bonham ao vivo não durava menos que seis minutos,
podendo chegar a meia-hora, tempo que o resto da banda até deixava o baterista sozinho no
palco.
O quanto a bateria de Bonham reflete sua personalidade, que só podemos conhecer através de um véu de
rumores e anedotas? Essa pergunta continua em aberto, especialmente com essa banda, onde a
personalidade, mito e performance se confundem. [...] Mas Bonham como baterista, sua força física e sua
relativa falta de sofisticação técnica indicam algo primordial agindo neste homem e nos sons que ele
produziu. Apesar de ser um baterista experiente, seu trabalho é mais essencialmente caracterizado pelo
seu poder quase irrestrito, por sua capacidade de bater na pele do tambor com força suficiente para
impulsionar e controlar as ondas sonoras em seu crânio com a convicção de um urso esmagando um
carro. [...] Bonham não toca nem mesmo com o "coração", porque o coração implica excesso e paixão.
Bonham não se arrebata, pelo menos nas gravações, sua emoção nunca transborda. (DAVIS, 2006, p.
155)
117
E essa, composta a partir do romance do escritor norte-americano Herman Melville, Moby Dick (1851).
63
Davis descreve os sons produzidos por Bonham em Led Zeppelin IV como uma mistura
de irracionalidade bestial com a contenção emocional de uma máquina, o que é em certa
medida refletido no tamanho e estrutura da bateria de Chelpa Ferro. O recurso empregado
pelo grupo de citação/apropriação de um ícone musical em um objeto silencioso é comparável
ao que fez Waltercio Caldas com Thelonious Monk, mas ao contrário de Caldas, Chelpa Ferro
se distancia da delicadeza da abstração, trazendo à mente do observador uma potência física
ligada inevitavelmente ao masculino e ao excesso - no que esses podem tornar-se brutos - e
para os que têm no repertório a tal música de Led Zeppelin, a duração temporal do solo de
Bonham transmutado em uma estrutura palpável e expansiva. Improvável é olhar para essa
bateria sem que ela repercuta seus sons na imaginação.
Moby Dick esteve na mesma performance onde Samba foi acompanhado pelas notas de
trompete dos três membros do grupo (2008). Elevando-se comicamente do porão do palco
para espaço cênico com ajuda mecânica, a bateria, quando finalmente aparece, está coberta de
incensos acesos. O perfume e a fumaça chegam à plateia. Samples eletrônicos de percussão,
batidas e bateria começam a ser tocados pelo grupo com controladores MIDI como uma
espécie de trilha sonora. Essas batidas vão se multiplicando enquanto a gigante Moby Dick
encara o público do teatro com uma imobilidade que não é exatamente ameaçadora como quer
o crescendo do som sampleado; afinal, ela é somente um receptor e não a própria força
bruta118. É nessa direção que a performance Pilha de 2001, reúne dez bateristas em uma
mesma sala com holofotes pulsantes, para que toquem ao mesmo tempo até que cada fração
de segundo seja ocupado irracionalmente com ataques de bateria. Essa performance, de
alguma maneira apresenta a força do corpo masculino que se esconde alguns anos depois em
Moby Dick.
Há contudo no trabalho de Chelpa Ferro, outros meios para fazer uma bateria soar,
meios que não envolvem a energia dos músculos. A potência humana que era necessária -
ainda que de forma imaginada - para que Moby Dick se completasse na percepção como um
objeto capaz de emitir sons percutidos, dá lugar à precisão da máquina. E não é uma precisão
precária como a de Samba: motores temporizados friccionam pratos de bateria com um
movimento cíclico e preciso.
Trata-se de Cogumelo Ohms, feita em 2005 e exposta pela primeira vez na Galeria
Vermelho em São Paulo. A instalação é construída com aproximadamente duas dezenas de
pratos de bateria de tamanhos próximos, mas marcas e moldes variados. Esses são montados
118
A performance foi realizada pela primeira vez no festival Videobrasil em São Paulo: SESC SP, 2005.
64
com a parte côncava para cima usando como base alto-falantes de tamanho próximo aos
pratos, mas com seus diafragmas virados para o piso. Hastes em um mecanismo temporizado
giram em rotação, friccionando-se às bordas dos pratos e produzindo um som de
características muito diferentes às que se costuma obter desse instrumento de percussão.
Como não são mais percutidos com a ajuda da baqueta, mas sim friccionados quando a
máquina decide que as hastes devem fazer seu movimento cíclico, a relação entre o ataque (o
impacto da baqueta no prato) e o decaimento de seu som se suaviza e se alonga em função da
programação temporal do mecanismo.
Convencionalmente, o som do prato de bateria pontua o rock. Por conta de sua
capacidade de produzir agudos, picos de freqüências altas, é comum que ele termine ou
comece frases de uma canção. Em Moby Dick de Led Zeppelin por exemplo, na estrutura de
blues que a banda constrói para introduzir os solos de Jimmy Page e James Bonham, o prato
inicia o primeiro compasso. É tocado para indicar toda mudança de acorde do tema - sempre
ao início do compasso - e para indicar o fim de um ciclo.
É de se esperar que não exista qualquer lembrança de ritmo convencional em Cogumelo
Ohms. Se existe ritmo além da rotação das hastes nos pratos, ele é formado na temporização
dos motores. Repetidos e dispostos no piso como um jardim, os cogumelos emitem também
uma frequência grave nos alto-falantes que somada ao som agudo e metálico dos pratos, traz
uma qualidade meditativa, um drone119.
Percebendo como os objetos cogumelos são repetidos e como sua sonoridade é cíclica,
não seria descabido aproximar Cogumelo Ohms de um comentário sobre o minimalismo nas
artes plásticas já que compartilham de alguns elementos: uma estrutura modular distribuída
espacialmente formando uma “situação” que deixa à mostra seu processo temporal ou de
construção. O visitante da instalação inevitavelmente se desloca por ela com interesse quando
se dá conta de que é possível experimentar novas sensações sonoras se estiver em movimento,
seja com o corpo ou com os ouvidos. Isso acontece pois pelo artifício da repetição, o
cogumelo em si - torna-se menos importante como objeto:
Enquanto o trabalho deve ser autônomo no sentido de ser uma unidade auto-suficiente para a formação da
gestalt, do todo indivisível e insolúvel, os principais termos estéticos estão dependentes neste objeto
autônomo e existem como variáveis não-fixas que encontram sua definição específica nos pontos de vista
de espaço e de luz particulares ao espectador. Somente um aspecto do trabalho é imediato: a gestalt. A
experiência do trabalho se dá necessariamente no tempo. A intenção é diametralmente oposta ao Cubismo
com sua preocupação nas vistas simultâneas em um mesmo plano. [...] O objeto sensual, resplandecente
por suas relações internas comprimidas, teve de ser rejeitado. Mas que tantas considerações tenham de ser
119
“Quando o timbre é alterado sem mudança de altura, o resultado necessariamente deve ser algum tipo de
drone e o foco de interesse está nas mudanças discretas e/ou contínuas de timbre.” (ERICKSON, 1975, p.126)
65
consideradas para que o trabalho mantenha seu lugar como um termo da situação expandida, isso não
indica uma falta de interesse no objeto em si. No entanto, as preocupações agora se voltam para conseguir
mais controle e/ou cooperação da situação como um todo. O controle é necessário se as variáveis de
objeto, luz, espaço e corpo tiverem de funcionar. O objeto em si não se tornou menos importante. Ele
meramente se tornou menos importante para ele próprio. (MORRIS, 1966, p. 819 )
Figura 14: Cogumelo Ohms, 2004, pratos de bateria, motores, mãeo-francesa, amplificadores, som. Rio de
janeiro, foto: Luiz Zerbini.
Para Morris, o grid, ou esquema ortogonal, é a forma mais simples de organizar uma
série de módulos de ângulo reto. Além da “menos inerte e menos orgânica” por distribuir de
forma homogênea um conjunto de sólidos de ângulo reto no espaço euclidiano, e
consequentemente a pressão da gravidade que através deles atua no plano. Por esses motivos,
o artista crê que a grade seja uma das sintaxes fundamentais das “premissas culturais da
construção”, uma continuidade do valor universal neo-plástico de Mondrian. Já para Richard
Sennett que investiga a grade e a ortogonalidade como forma estruturante das cidades
modernas, e em especial as norte-americanas, o grid é neutralizante, uma forma de negar a
complexidade da geografia122.
Na subsequente história do urbanismo ocidental, a grade tem sido de uso especial para começar um novo
espaço ou na renovação de espaços existentes devastados por catástrofes. Todos os projetos de
reconstrução de Londres após o Grande Incêndio de 1666, de Robert Kooke, John Evelyn, e Christopher
Wren, fizeram uso da forma de grade romana; esses esquemas influenciaram americanos como William
Penn a conceber a construção de uma cidade a partir do zero. A América [do Norte] do século dezenove
parece ser uma nação inteira de cidades criadas sob os princípios do campo militar romano, e o exemplo
americano das “cidades instantâneas” por sua vez, influenciou a construção de novas cidades em outras
partes do mundo. Nenhum design físico, no entanto, dita um significado permanente. Grades, como
qualquer design, podem se tornar o que uma sociedade em particular quiser que ela representar. Se os
romanos viam a grade como um design de grande carga emocional, os americanos foram os primeiros a
usá-lo para um propósito diferente: para negar que a complexidade e a diferença existissem no ambiente.
A grade tem sido usada em tempos modernos como um plano que neutralizou o ambiente. Ela é um signo
protestante para a cidade neutra [...] (SENNETT, 1992, p. 47)
Depois de considerar que as aproximações que grid têm com objetivos de tornar o
tecido urbano neutro ou a escultura homogênea, Cogumelo Ohms, mesmo mecânico e
temporizado, extravasa o quadriculado minimalista já que se distribui sensualmente no
espaço. O som grave dos amplificadores de Cogumelo Ohms, sempre presente no espaço
mesmo quando sua programação escolhe friccionar um ou dois pratos por vez, cria a sensação
de chão, de todo, sem inibir novas possibilidades de ouvir à instalação já que ela aceita a
intimidade na disposição dos cogumelos e na diferença sutil dos pratos de bateria e
amplificadores. A vivência tem espaço para se desenvolver.
O som da instalação está arraigado em sua própria intimidade, é uma sonoridade que
não quer neutralizar o espaço mesmo porque o prato como usado no rock, é tocado para
elevar bruscamente a quantidade de agudos nos ouvidos, incitando o ouvinte com energia
sonora e de forma passional. Pratos, no rock são tocados com baquetas para produzir picos.
Em Cogumelo Ohms, são friccionados para produzir ondas, planaltos. E se por trás do grid
122
SENNETT, 1992, p.52
68
Talvez porque Chelpa Ferro seja favelado123 que ele tenha montado uma estrutura serial
com curvas e morros em Cogumelo Ohms. Só que não se pode deixar seus materiais e
soluções impermanentes se sobreporem à geometria de seus mecanismos e sistemas, a
racionalidade das engrenagens. Elas operam juntas. Jungle Jam (2006) está nessa direção
porque é muito como Cogumelo Ohms em sua temporização do contato físico, mas no lugar
dos címbalos e hastes, são usados sacos plásticos presos a mixers (eletrodoméstico)
atarraxados na parede, fazendo o plástico friccioná-la quando giram. Esses módulos são
distribuídos em mais de uma sala no espaço expositivo, e assim, quando o controlador
determina que toquem, o som dos sacos plásticos invade o espaço, tornando audível um
mesmo padrão de som em diferentes modulações provocadas pela arquitetura do lugar.
Em obras como Samba, Cogumelo Ohms e Jungle Jam, vemos a atividade material, a
energia que opera na matéria de maneira a produzir som. Foi a trajetória de Chelpa Ferro que
levou o som que era produzido em suas primeiras performances no meio da década de
noventa e editado digitalmente em seu primeiro disco, para o Merz desses objetos e
instalações mais recentes.
Chelpa Ferro II, o segundo disco do grupo gravado em 2004, é produzido por Berna
Ceppas a partir de um material sonoro misto. Gravações de ruídos animais (grilos e porcos,
sons de sintetizadores analógicos customizados tocados pelos membros do grupo, batidas
eletrônicas e a participação de músicos como Domenico Lancelotti sugerem que a
performance está nesse álbum acontecendo menos na plataforma digital do software de edição
e mais na própria dinâmica do estúdio.
No entanto, será no próximo álbum onde a sonoridade será gerada a partir da
performance extra-software. Em Chelpa Ferro III, os próprios objetos – acompanhados de
músicos – são as fontes de som para a gravação do disco. Quando ficam invisíveis, oferecem
apenas sua dimensão audível e levando em consideração que o som que ouvimos pelo disco
não é o mesmo que reverberava no espaço expositivo, e que esse som está agora longe da
visão no espaço da gravação fonográfica, os trabalhos soarão acusmaticamente.
123
VIANNA, 1998, p.34
69
Figura 15: Chelpa Ferro, Acusma, 2010, vasos de cerâmica, amplificadores, falantes, dvd. São Paulo:
Paralela 2010, Licei de Artes e Ofícios, foto: Ding Musa
femininas pronunciando números repetidamente. Cada número é dito por mais de uma pessoa
e em uma tonalidade diferente, sendo que cada auto-falante corresponde a uma voz específica.
A espacialidade que é dada na distribuição dos alto-falantes, unida ao ritmo e à mudança de
tom na pronunciação dos números, cria uma topologia sonora que pode se planificar quando
um mesmo número dito por uma mesma pessoa em loop. Em Chelpa Ferro III, essa pequena
topologia sonora é atravessada pelos bumbos, pratos, e caixas de San Juan (o músico foi
também participantes da performance Pilha em 2001), que acompanha a energia da repetição
das vozes.
Acusma, como On-Off Poltergeist ( com a qual o ex-membro Chico Neves fez remixes,
processamentos e edições), são casos particulares da proposta de Chelpa Ferro III pois não
são trabalhos que produzem sua própria sonoridade a partir do contato físico, em vez disso,
Acusma utiliza a gravação das vozes e On-Off Poltergeist o som da TV analógica.
No disco, os trabalhos que têm a característica de produzir a própria sonoridade – a
saber, Samba, acompanhado pelas guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá, Jungle Jam, pelo
baixo de Berna Ceppas e ruídos eletrônicos de Kassim, e Microfônico pelo o cello de Jacques
Morelembaum - estão “atrás da cortina” da gravação fonográfica. Tornam-se uma textura
71
ambiguamente sonora e visual, uma imagem acústica, pois ainda é possível sentir seus
materiais e o ritmo do contato físico que a eles é dado. Os sons desses trabalhos são mantidos
na gravação como são quando estão expostos na galeria, o que lhes mantém a performance
com a qual o espectador experimenta as propostas de Merz e montagens.
Sem que a música acabe e deixe o silêncio ocupar os ouvidos quando a agulha da
vitrola toca o sulco vazio, o sulco dos intervalos entre as canções, esse disco possui uma
forma incomum para sua única faixa. Trata-se de A Entrada na Gruta de Maquiné, disco
compacto de Waltercio Caldas e Sérgio Araujo de 1980. Quando se observa a face “A” desse
disco, não se vêem trilhas, faixas ou intervalos – mas sim um anel solitário gravado que pela
ausência dos pontilhados característicos da superfície musical do vinil, levanta suspeitas de
que é absolutamente silenciosa. A suspeita se concretiza: nada, ou quase nada por meio dele
se ouve. A agulha que toca o anel, toca o silêncio gravado.
E a agulha que desliza nesse anel vazio de sons não percorre a espiral que percorreria
em um disco convencional, mas sim um único trilho – um anel – e está presa em um único
lugar no tempo que a superfície do vinil ofereceria ao ouvinte. Essa forma tira qualquer
movimento de abertura do braço da vitrola em função da duração do disco.
Virando esse disco que até agora não chegou a lugar algum, não começou, nem
terminou ou sequer tocou um som fora a própria textura da mídia, a textura musical retorna:
nessa face está gravada a composição eletro-acústica 3 Músicas de Sérgio Araujo, co-autor
do disco-objeto. A colaboração entre o artista e o compositor está também na arte da capa de
A Entrada. Nela propuseram uma troca: o lado correspondente à composição de Araújo seria
ilustrada por Waltercio e vice-versa. Sérgio, para a capa da face de Waltercio, propôs que
fosse colado um anel de papelão de rolo de fita adesiva, fazendo uma espécie de moldura para
o corte circular que exibe a etiqueta do disco. Waltercio conta que esse material é dificilmente
encontrado ainda separado da fita adesiva, o que o levou a organizar reuniões com a empresa
3M para que cedessem parte dos rolos de papelão para a produção da capa das quatrocentas
cópias de A Entrada. Caldas também pensou em incorporar um objeto tridimensional para
ilustrar a face correspondente a 3 Músicas de Sérgio Araujo. A rolha que é parte do objeto
“Garrafas com Rolha” de 1973, foi feita na escala do furo central do disco e ali enfiada como
se o tampasse, (na verdade, só é possível tirar o disco da capa se ele for “destampado”). O
adesivo dessa face é uma fotografia de Garrafas com Rolha, trabalho de 1975, que envolve a
pequena rolha justamente no lugar onde a rolha original estaria.
A gruta que deu título ao compacto de Waltercio e Sérgio, é um sítio geológico no
município de Cordisburgo(MG). A gruta de Maquiné chamou atenção do artista justamente
pela desproporção entre sua entrada – uma rachadura baixa e estreita na rocha – e seu interior,
catedraticamente amplo. Segundo Waltercio, as dimensões desproporcionais da gruta
74
contribuem em seu disco para uma “produção de lugar”, como se atendo-se a um breve
instante circular fosse possível vislumbrar a entrada em um outro lugar129.
A Entrada seria então, dentro da especificidade de sua mídia, um objeto capaz de gerar
campo ou espaço já que suspende o desenvolvimento do tempo do disco, algo que poderia
reconfigurar o hábito perceptivo de escutar à gravação como um registro de andamento ou
duração. Assim, no tempo suspenso, a percepção, segundo o artista, é dragada para o campo.
Outras características desproporcionais de A Entrada podem ser identificadas no paradoxo
entre o formato do disco – compacto que tem duração média de doze minutos – e sua
gravação vazia e em formato de anel, que poderia tocar sem nunca dar registro de seu
andamento ou enfim acabar. Falhas, riscos e poeira seriam no entanto, atalhos pelos quais a
escuta conseguiria registrar o período da repetição. A rigor, A Entrada na Gruta de Maquiné
só é infinito até o completo desgaste da agulha ou do próprio vinil.
elementos se projetem de forma difusa no chão. No plano dessas sombras se forma uma
articulação muito diferente daquela que se constrói imediatamente em cima da mesa de vidro.
As estruturas metálicas, devido ao ângulo de projeção da luz, se planificam na forma da letra
“H” eliminando a tensão de progressão que essas estruturam desempenham no plano
tridimensional. Equilibra-se assim – entre sombra e objeto - uma certa vontade da forma de
Anda uma Coisa no Ar de avançar o olhar do carvão em direção às taças.
Figura 16: Waltercio Caldas, Anda Uma Coisa no Ar, 2002, mesa de aço, vidro, quartzo, taças de cristal,
carvão. Vila Velha: Museu Vale, 2010. foto: Caroline K.
no instante mesmo em que o contemplamos. Pois como é possível visualizar a transformação de milhões
de anos do carvão ao cristal? Só uma imagem mental é capaz de ultrapassar tal distância e apresentá-la
numa sala de exposições. A obra, já dissemos antes, é um aparelho de relativização de distâncias.
(VENANCIO FILHO, In: CALDAS, 2010, p.47)
Ainda que carvão e quartzo sejam duas matérias distintas, Paulo Venâncio Filho deixa
evidente que está incorporado em Anda uma Coisa do Ar o sentido de tempo. Essa abertura
para temporalidade no entanto, é diferente da ideia kandinskiana de Oiticica na qual está
arraigada a musicalidade da cor.
Nesse ponto são percebidos dois recursos críticos comuns nos textos sobre Waltercio
Caldas, prenunciados aqui pelas observações de Paulo Venâncio Filho e Sônia Salzstein, que
podem orientar um mapeamento da sonoridade em diversos trabalhos do artista. O primeiro
desses aspectos é o “estado de imagem”, conceito criado pelo próprio Waltercio e uma das
características formais pela qual permitiu Paulo Venâncio Filho perceber o sentido de tempo
em Anda uma Coisa no Ar e Sônia Salzstein, o seu “cinetismo”. O segundo é o silêncio,
utilizado em muitos textos sobre a obra do artista como o “outro lado do vazio” e qualificando
a temporalidade que está implícita em obras como Anda uma Coisa no Ar: estará o tempo
desses trabalhos desligado da sonoridade?
Não poderíamos dizer que muitas das esculturas do artista são acentuações do silêncio? Elas não tratam
sua invisibilidade como trasparência? Uma transparência que é também processo de trabalho. Essa
interpretação pode ser extendida para outras peças esculturais que revelam aquele outro lado do ar, como
Rilke designou a música, como Vox, Timbre ou Inn, ou mesmo Jazz mirror (2003), no entanto nós
gostaríamos de enfatizar Thelonious Monk (1998) como uma referência emblemática nesse aspecto, onde
o valor assimétrico das notas do pianista sui generis do bebop aparece acentuado em seus valores como
intervalos, como se a música fosse espaço em movimento. (NAVAS, 2004, p.65)
77
. As pequenas etiquetas, semelhantes aos dessa peça, mas com nomes escritos de
Rodchenko, Kafka, Tarsila do Amaral, Galileu-Galilei, Matisse, Goeldi, Heráclito, no entanto,
já haviam surgido na produção de Waltercio ocupando um lugar diferente ao de legendar e
indicar referências de uma metáfora unicamente formal.
Figura 17: Waltercio Caldas, Thelonious Monk, 1998, pele de coelho, aço inox, acrílico, granito, 2010. São
Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud.
câmara anecóica, tão silenciosa quanto tecnologicamente possível em 1951, para descobrir que se ouve
dois sons de nossa própria fabricação não-intencional (a operação sistemática dos nervos, a circulação do
sangue), a situação que este claramente se encontra não é objetiva (silêncio-som), mas sim subjetiva (sons
apenas), os intencionais e os outros (chamados de “silêncio”) não intencionais. (CAGE, 1961, p.12)
Cage, em sua afirmação (que é em parte relato pois de fato entrou em uma câmara
anecóica135), apresenta uma noção de silêncio dependente de sua condição subjetiva, pois, na
vida existe somente uma condição possível: sons apenas. O silêncio é possível somente em
uma condição “impura”, dentro dessa faixa da ausência de sons intencionais. Segundo Paulo
Sérgio Duarte, no entanto, houve um momento onde um tipo de silêncio ainda era possível
nas salas de exposição:
Na obra de Waltercio Caldas, a reconstrução do prazer do olhar passa, por isso mesmo, pela integração do
silêncio e pela forma enigmática. […] Antigamente, por princípio, toda obra de arte se calava. Mas será
que precisamos lembrar certas obras cinéticas, seus motores e seus mecanismos, para saber que o ruído do
mundo, há muito, invadiu de fato as salas de exposição? Faz mais barulho, ainda, a invasão brutal dos
ícones da sociedade de consumo, incorporados cinicamente ou mesmo tratados criticamente.[…] Por isso,
a obra de Waltercio restaura o direito ao silêncio. Tal como o vazio expressivo, esse silêncio – que era
comum a toda obra de arte – se estabelece como um mais-silêncio. Quando se quebra e sua fala se
manifesta, ela é baixa, no máximo sussurra a solidão, sem lamento ou melancolia, como nas naturezas-
mortas de Morandi. Antes satisfeito com essa condição de existência, o silêncio, ou a fala baixa, se
apresenta como um “estado de imagem”, para usar uma expressão do próprio artista. Conquistado ao
longo do processo de construção da obra, o silêncio torna-se tanto mais denso quanto mais o trabalho se
vai despregando de qualquer retórico embutida, quanto mais se torna independente de referências
externas e impulsiona uma inteligência puramente ótica . (DUARTE, 2000, p.85)
O silêncio do qual trata Paulo Sérgio Duarte está ligado a regimes diferentes daquele
do silêncio tecnológico, possível no interior de uma câmara anecoica. O silêncio que descreve
Paulo Sérgio Duarte é a afirmação de uma prática estética (“Por isso, a obra de Waltercio
restaura o direito ao silêncio.”). Está essencialmente ligado ao “prazer de olhar”, além de
servir muitas vezes de metonímia para o recurso do “estado de imagem” (o silêncio é o estado
de imagem) de Waltercio Caldas e analogia para o vazio (“Tal como o vazio expressivo, esse
silêncio...”). Tal silêncio é a condição perceptiva do regime da não-figuração que emerge no
Modernismo, contrapondo-se aos atos discursivos que eram possíveis na mimese do espaço
tridimensional da pintura representativa.
O silêncio como analogia do vazio reaparece no texto A Consciência do Intervalo de
Agnaldo Farias, aqui, mais próximo à ideia de pausa musical:
É uma profunda consciência das possibilidades do intervalo entre as coisas o aspecto diferencial da obra
de Waltercio Caldas. Pode-se chamá-lo de pausa, silêncio, ôco, parênteses, vazio. Cada objeto serve de
ponto, onde o olho se atraca para se lançar na prospecção do invisível e voltar com novas notícias do que
parece ser a expansão do raciocínio escultórico. (FARIAS, 1996, p.76)
80
O silêncio-pausa de Farias, assim como fez Ilse Kuijken (“Essas esculturas estão em
seu espaço como o ar na música”136) encontra seu lugar numa espécie de ritmo criado pelo
raciocínio formal de Caldas. O ritmo escultórico do artista foi também ouvido por Paulo
Venâncio Filho:
[...] Simples como o silêncio mais baixo onde se ouve os infrasons do silêncio. E o silêncio vem de todos
os lados em precisos ataques de sintonia. Um silêncio de aço, simplesmente. Desta forma lacunar é sólida
na sua frequência mais extrema. Pois só inúmeras camadas de vazio podem auto-sustentar uma
desocupação do total espaço (Jorge Oteiza) para desvelar e oferecer o espaço. Ele então se faz vivo e
pulsante, em síncopes desritmadas e articuladas. Fica a expectativa de algo que demora, uma espera,
suspense natural. (VENÂNCIO FILHO, 2008, p.49)
Paulo Venâncio Filho cria uma possibilidade paradoxal para o silêncio, um silêncio
cujos “infrasons” podem ser ouvidos em “ataques de sintonia”, novamente dentro da alusão
ao vazio, mas que aqui assume um caráter impuro e musical, ainda que reafirme o controle do
artista sobre a matéria silenciosa com a precisão que se assemelha à leitura de uma partitura.
Entretanto, na exposição “Gravuras e Desenhos” no Gabinete de Arte Raquel Arnaud
em 1995, as obras de Waltercio Caldas não estão caladas. Uma metáfora sonora foi feita pelo
crítico Lorenzo Mammi:
A ciência acústica conhece um fenômeno chamado som de combinação, ou terceiro som. Se duas notas de
alturas diferentes, mas relativamente próximas, são tocadas simultaneamente, suas freqüências entram em
choque e produzem uma terceira nota claramente audível, equivalente à diferença entre elas. Embora
tenha sido descoberto no século XVIII, até hoje não se sabe se o terceiro som é uma realidade física ou
uma reação neurológica. Por analogia, poderíamos pensar nos trabalhos de Waltercio Caldas como
objetos de combinação, ou terceiros objetos. Neles há grande proximidade, e portanto choque, entre
projeto da obra e sua presença física.[…] Como duas oscilações próximas mas diferentes que entram em
fase, pensamento e matéria criam assim uma perturbação, uma vibração secundária, que não pode ser
reconduzida, embora seja, com toda evidência, um reflexo delas. A substância do trabalho de Waltercio
está justamente nessa vibração, algo que não é corpo nem idéia, algo que não enxergamos na obra, mas
que podemos intuir através de, ou graças a ela. Onde está a obra, nesse caso? Não apostaríamos em sua
realidade física, tampouco em seu caráter de mera ilusão dos sentidos. (MAMMI, 1995, s.n.)
4.2.3 Ping-Ping
135
KAHN,
136
In: KUIJKEN, 1992.
81
A ideia da notação musical e Thelonious Monk ressurgem nos textos de Paulo Sérgio
Duarte sobre a instalação Ping-Ping, originalmente uma intervenção de 1980 na vitrine da
galeria Saramenha, remontada em sua individual Salas e Abismos, no MAM em 2010:
Muitos trabalhos de Waltercio têm um quê das boas improvisações do bebop: as notas são sugeridas, não
se encontram por inteiro na execução, sua reconstrução é parte da experiência do olhar. Ping-Ping é uma
partitura onde o “intérprete” é mero executante, não tendo nada a acrescentar. O olhar percorre as
“notas”, onde todos os elementos estão dados. […] Permanece, ao lado da transparência, o silêncio,
elemento de Ping-Ping, parte constitutiva de seu enredo, que percorre a galeria sem se oferecer como
trama sensível. (DUARTE, 1980, p.36)
Utilizando uma mesa de pingue-pongue em posição vertical, frente aos olhos como
uma tela, Ping-Ping faz mais do que desconstruir a forma da mesa do esporte: a rede flutua
entre os olhos e o plano verde, acompanhado por uma raquete furada exatamente no diâmetro
da bola, flutua também a própria bola e mais próximo do observador, um óculos escuro
opaco. Como em Anda uma Coisa no Ar, depara-se com a sugestão de temporalidade
novamente, mas com a menção da instantaneidade do jogo e por consequência, da suspensão
de seu ruído137.
Paulo Sérgio Duarte menciona em sua introdução ter reconhecido que foi omitido o
papel do silêncio desse trabalho, “já tão presente na obra do artista desde seu início138. O
silêncio aqui é aliado da transparência ótica, evidenciado segundo o crítico no corte da
raquete, na oposição em relação à cegueira sugerida pelo óculos opaco e na flutuação dos
elementos no vazio do espaço da instalação, cegueira também descrita pelo próprio artista139.
Duarte não deixa de mencionar, no entanto, outra obra que faz uso dos elementos do pingue-
pongue e de suas características sonoras: A Mesa e Seus Pertences de Nelson Leirner. “Um
jogo de pingue-pongue numa exposição, com a óbvia trilha sonora é mais que prosaico, é
banal[...]”140. A Mesa e Seus Pertences, exposta em 2002 na 25ª Bienal Internacional de São
Paulo, dispunha em uma sala uma mesa de pingue-pongue feita de acrílico transparente. Três
mil bolinhas e duzentos e cinqüenta raquetes permaneciam enclausuradas dentro de caixas
também de acrílico, nas paredes desta sala. O espaço, sonorizado com uma gravação do ruído
de uma partida do jogo. “Que é ai que eu faço uma partida imaginária. Você não vê nada, mas
o jogo está acontecendo"141.
137
DUARTE, 1980, p. 36
138
Idem.
139
NAME, 2010, s.n.
140
DUARTE, 1980, p. 36
141
Cf. LEIRNER et al., 2002.
82
Parece que existe uma tradição de o artista fazer disco assim como ele realiza também filmes. Mas a
questão não é a história do disco, mas do processo industrial. O artista utiliza-se do disco como uma das
possibilidades da linguagem. No meu caso, houve também a questão da montagem industrial, quando
visitei uma linha de produção. O meu interesse foi criar uma ironia. A produção industrial expele
quantidade. Ao fazer esse disco minha ideia era a de provocar, em relação à indústria, sua própria dúvida.
Como se a indústria se perguntasse sobre si mesma. A questão desse disco não é a de um artista plástico
fazendo-o. É também a de um música que realiza um trabalho de arte. O disco trabalha nessa tensão. A
questão de ouvir ou de ver. Ele pretende romper com os limites do visível e do audível. (Waltercio
Caldas em entrevista In:COUTINHO, 1981, s.n.)
Uma rede pode ser destruída por ruídos que a atacam e a transformam, se o códigos estabelecidos forem
incapazes de os normalizar e reprimir. Ainda que a nova ordem não esteja contida na estrutura da antiga,
ela não é um produto do acaso. Ela é criada pela substituição de antigas diferenças por novas. O ruído é a
fonte dessas mutações nos códigos estruturais. A despeito da morte que ele contém, o ruído traz em si
142
COUTINHO, 1981, s.n.
83
uma ordem, traz em si informação nova. […] A presença de ruído faz sentido, traz significado. Faz
possível a criação de uma nova ordem em outro nível de organização, de um novo código em outra rede.
(ATTALI, 1985, p. 33)
Figura 18: Cildo Meireles, Eureka/Blindhotland, 1970-75, rede de pesca, esferas, balança, trilha sonora.
Londres: TATE Collection/American Fund, 2004.
88
No dia 24 de outubro de 2010 o vão dos pilotis do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro estava cheio e barulhento: ali pessoas comemoravam seis domingos especiais do ano
de 1971. Esses domingos de quatro década atrás eram dedicados ao lazer nas áreas livres do
museu com as propostas do curador Frederico Morais, que organizou diversas atividades
criativas abertas ao público.
Especiais o bastante para que fossem celebrados depois de tantos anos e mudanças
políticas (e um incêndio, que destruiu boa parte do acervo do museu em 1979), os “novos”
Domingos da Criação aconteceriam em três domingos seguidos do mês de outubro nas
mesmas áreas onde foram primeiramente realizados na década de 70, e o primeiro evento
comemorativo - o domingo do qual Cildo Meireles participou - propunha: Encontros do lado
de fora: som, palavra e ruídos.
Muitas pessoas que foram ao MAM nesse evento procuravam “a obra do Cildo” -
chamado por ele de Cigarra - e circulavam no espaço atrás da assistente que tinha com ela,
145
MEIRELES, 2008, p.68
89
mil cigarras feitas em liga metálica que seriam distribuídas ao público naquela tarde. Um
objeto de menos de dez centímetros, a pequena cigarra quando apertada faz um clic gostoso.
Como é muito fácil clicar muitas vezes seguidas, o objeto nos dá um prazer de brinquedo,
tanto na sensação do clique na mão quanto seu som; um clique não muito agudo que faz
querer repetir o movimento compulsivamente. O clic em si, porém, não diz muito sobre o que
pode acontecer quando essa ação se torna coletiva e espacialmente distribuída.
E foi o que se pôde presenciar: nesse dia, o clic-clic se espalhou em todo vão do
museu e seus jardins. Em toda a área ocupada por pessoas eram ouvidos clics próximos ou
distantes, sobrepostos, articulados, seguidos, simultâneos, ritmados ou esparsos. Eram curtos
os intervalos de tempo onde um clique não era ouvido. O sistema de som trazido pelo artista
carioca Paulo Vivácqua para seu happening Remanifestos era constantemente usado pelo
público da mostra para amplificar suas falas e também as cigarras, o que trazia mais uma
camada sonora de pequenos estalos, agora passando pelo diafragma do microfone.
Onipresente nos ouvidos, algo, por outro lado, era raro de se ver: as próprias cigarras.
Dava para vê-las rapidamente quando alguém levava alguma ao microfone ou quando um ou
outro participante mostrava seu objeto quando clicava. Vez ou outra, ouvi pessoas
perguntando “o que é esse barulho?”, já que não identificavam da onde vinha. Uma mimese
feliz: as cigarras de Cildo insistiam em se camuflar na dimensão monumental do museu da
mesma maneira que as reais fazem na natureza; que, quando disparam a cantar, dificilmente
são vistas ainda que se possa ouvi-las nitidamente. E a diferença grande entre o ruído da
cigarra real – um glissando longo e estridente - e o clique da cigarra do artista, só reforça uma
ligação mimética não por suas qualidades sonoras, mas pela invisibilidade necessária à sua
presença acústica, coletiva e onipresente. Dessa maneira, a subtração do objeto na visão e a
sua multiplicação pela área aberta do museu ofereceram um outro tipo de percepção espacial:
a percepção do espaço auditivo146 dos jardins e vão do MAM. É porém através do público -
seu corpo, sua ação - que esse espaço se configura:
O som é produzido e inflexionado, não só pela materialidade do espaço, mas pela presença de outros, por
um corpo ali, outra acolá, e outro ali. Assim, o evento acústico é também social: na multiplicação e
expansão do espaço, o som gera necessariamente uma multiplicidade de "pontos de vista" acústicos,
acrescentando operações de sociabilidade ao evento acústico[...] O som já é sempre um evento público,
146
Carpenter e McLuhan em Acosutic Space (1960) descreveram o termo espaço auditivo como não tendo
“nenhum ponto de foco favorecido. É uma esfera sem fronteiras fixas, o espaço feito pela coisa em si, não o
espaço que contém a coisa. Não é o espaço pictórico, em caixotes, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas
próprias dimensões, momento a momento. Ele não tem limites fixos, é indiferente ao fundo. [...]”. A discussão
sobre o espaço auditivo teve grande desenvolvimento no campo da música eletroacústica, que, rejeitando
qualquer redução e abstração como as de Acoustic Space, empreendeu esforços artísticos e linguísticos para
expandir as possibilidades e capacidades estéticas da escuta. Cf. SMALLEY, 2007 e CAESAR, 1997.
90
no que ele se move de uma única fonte e logo chega a vários destinos. [...] A escuta é, portanto, uma
forma de participação na experiência conjunta de um evento sonoro, mesmo que banal. (LaBELLE, 2010,
p.X)
Janeiro, mudança que seria somente concluída na década de sessenta. O museu, do ponto de
vista arquitetônico, complementaria o aterro como uma plataforma de contemplação150 dando
visão à Baía de Guanabara e alongando-se horizontalmente junto ao parque. A suspensão que
possibilitou seu vão livre, além de deixar que o museu se integre ao paisagismo de Burle
Marx e dê visão total à Baía, serve de abrigo para atividades culturais - como as de Domingos
da Criação - sem impedir uma fluida circulação pelos jardins e interior do museu.
Reidy, por meio desse vão livre, responde a uma das doutrinas de Le Corbusieur que é
na verdade um dilema: o que fazer com o lazer? Os princípios do arquiteto e urbanista francês
151
para sua cidade “do futuro”, a utopia realizável, chamada de Cité Radieuse , incluem a
questão do lazer como uma pergunta e até mesmo um empecilho para o grau de
racionalização urbanística que propunha. O lazer para o jovem Le Corbusier se torna um
problema, e portanto uma atividade racionalizável, compartimentável, um dado social
controlável como outro qualquer, já que a rua, como conhecemos, deverá ser morta em sua
cidade radiante. Com letras maiúsculas, Le Corbusieur declara morte à rua em seu conjunto
de doutrinas:
Mas a era do automóvel chegou. E seria inútil para mim dizer o que isso significa: vocês só têm que ir
para a rua para ver por si próprios. A biologia humana está agora de braços com uma nova velocidade.
Nossas pernas (movimentos alternados), foi substituído pelo (movimento contínuo) de rodas, o nosso
traseiro corre em quatro rodas, o cavalo tornou-se uma unidade de potência. Em vez de um cavalo, temos
5 - ou 10 - ou 15 - ou 40 cavalos-vapor que nos levam, não ao dobro da velocidade que foi antes, mas, às
vezes, dez, vinte vezes, em quarenta vezes que a velocidade! ! E então? Nossas autoridades urbanas
acham que tudo vai se resolver no final. Não vai. Nada vai se resolver. Temos que construir novas
cidades. (LE CORBUSIEUR, 1929, p.120)
pessoas que a habitam: a imaterialidade do som é o meio mais imediato e veloz para
percebermos a afetividade entre elas.
Mas o diálogo com a arquitetura modernista ainda não cria uma perspectiva temporal
que nos ajuda a localizar e compreender Cigarras historicamente, vê-la além de seus jogos de
escuta. Podemos seguir para outro contexto: o espaço público na agenda histórica do MAM.
O tema é vasto e merecedor de muitos capítulos, o que me põe a fazer um exame mais pontual
sobre como as prerrogativas fundadoras do museu foram articuladas especificamente pelo
crítico, historiador e curador Frederico Morais tanto em Domingos da Criação quanto no
evento que o precedeu, Arte no Aterro.
exercício da criatividade livre na práxis das artes plásticas. Se não se impunha a necessidade
da intermediação de um artista ou de uma concepção prévia de um acontecimento, o evento
praticava o preceito (popularizado por meio de Joseph Beuys) de que “todo homem é artista”
dando espaço a organizações espontâneas e reapropriações de objetos, e criação com
materiais e espaços. Sob temas abrangentes como “Domingos do Papel ”, “Tecido do
Domingo ” e “Domingo por um Fio”, “Som do Domingo”, “Corpo a Corpo do Domingo”,
Domingos da Criação assim se aproximava mais à vontade educativa do que aos objetivos de
uma exposição ou mostra. O público era numeroso, havia necessidade de liberdade e por
outras ideias de lazer que não aquelas inseridas em uma rotina pragmática, criadas somente
para tornar os dias de trabalho suportáveis, para citar novamente Hélio Oiticica155.
Após quatro décadas, em 2010, o evento é celebrado novamente no museu. Sem ter a
opressão à espreita, a opressão à qual APOCALIPOPÓTESE fazia oposição, Cigarra foi
recebida pelo público de tal maneira que lhe permitiu se espalhar amplamente pelo espaço,
permitiu que sua sonoridade se tornasse coletiva, densa e espontânea o bastante para
podermos escutá-la como um índice da ocupação de pessoas no prédio do MAM. Assim, sua
sonoridade também reflete um desvio fundamental que Cildo Meireles provocou no eixo que
geralmente sustenta um evento sonoro no espaço público moderno o som que vem “de um
para muitos”, um esquema que se desenvolve pelo surgimento e consolidação da indústria
cultural 156. Um comentário de Roland Barthes em seu texto A Escuta escrito na década de 70,
poderia ter sido feito sobre o que ocorreu com Cigarras em 2010:
Daí surge um movimento: os lugares de discurso estão cada vez menos protegidos pela instituição. […] se
acredita que, para liberar a escuta, basta alguém falar por si - ao passo que uma escuta livre é
essencialmente uma escuta que circula, que permuta, que desagrega, pela sua mobilidade, a rede fixa das
funções da fala: não é possível imaginar uma sociedade livre, se concordamos a priori em preservar
dentro dela os antigos modos de escutar: os do crente, do discípulo, e do paciente. (BARTHES, 1977,
p.259)
Figura 19: Cildo Meireles, Malhas da Liberdade, 1976-2008, peças de plástico. Londres: Turbine Hall,
TATE Modern, 2008. Foto: Tim Spear.
95
lugares de emissão, fazendo o som se propagar de muitos para muitos e em muitas outras
configurações sempre temporárias. Cigarras assim dá continuidade ao APOCALIPOPÓTESE
e o atualiza em um contexto político democrático.
Pegar. Até agora se pegou em uma esfera e uma cigarra de brinquedo. Pegá-las só
fazia sentido porque existia espaço à volta para arremessar as bolas e escutar os clics da
cigarra. Viu-se que o que é tátil de Eureka/Blindhotland e Cigarra é também sonoro, é corpo-
escuta-espaço. É da mão para o mundo, para o outro que dá o som de volta para os ouvidos.
O que acontece porém, quando não se tem mais nada o que pegar com a mão? Quando
só se tem algo a ouvir? E para ouvi-lo, ninguém mais é necessário, uma vitrola já executa
todo o trabalho? Um disco. Mesmo A Entrada na Gruta de Maquiné tem apelo tátil com seus
dois objetos – o rolo de durex e a pequena rolha – e seu vinil liso, mostrando silêncio. Mas
não é o que acontece com Mebs/Caraxia:
[...] A ideia era fazer uma escultura sonora. [...] Um lado chamava-se “mebs” por causa da fita de
Moebius; o outro lado era uma espiral, e para o título dessa espiral, eu resolvi usar a união de duas
palavras referentes a estruturas espiraladas: caracol e galáxia. Daí o nome “caraxia”. [...] Mebs/Caraxia é
160
MORRIS, 1966, p.820
97
o registro de freqüências sendo alteradas. Durante a gravação, eu tinha um gráfico e ficava seguindo-o.
Estabelecemos um eixo e então a frequência ficava acima ou abaixo dele. Então, nós fomos reconstruindo
aquele gráfico: a ideia era literalmente fazer gráficos sonoros. Como o gráfico lidava com a frequência e o
tempo, eu tinha dois eixos. (MEIRELES, 2009, p.249)
A escolha das figuras tomadas como enunciados de origem nesta translação deve-se ao fato de elas não
possuírem lados identificáveis e de não ser possível determinar aonde começam ou terminam, o que
impede que sejam descritas por uma geometria ancorada na tri-dimensionalidade. Apresentadas como
ruído somente, a incompatibilidade entre tais figuras e o homogêneo espaço euclidiano torna-se ainda
mais manifesta. (DOS ANJOS, 2008, In:MEIRELES, 2008, p.10)
O trabalho do artista, que além de lidar com essa inadequação evidente das figuras
unidimensionais no espaço geométrico, praticou uma espécie de tradução com o oscilador:
seus gráficos, seus números tornariam-se som. Por isso se torna inevitável responder à
161
São estudados na Matemática da Topologia (cf. ADLER, 1976)
98
Figura 20: Cildo Meireles, Mebs/Caraxia, 1971, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 7in. Foto: a autora, 2010.
uma sala. Cildo conseguiu criar esse desenvolvimento sonoro utilizando um procedimento de
composição próprio.
O glissando, que é um deslize contínuo de um tom para outro, é realmente a estrutura
musical mais adequada para criar a impressão “unidimensional” em Mebs/Caraxia, como se
estivéssemos deslizando com os ouvidos na borda única da fita de Moebius. O glissando, uma
forma que se desenvolveu na música ocidental no século XX, é a mais simples das linhas,
sempre na iminência de se tornar melodia162, e nas palavras do compositor Edgar Varèse, é “o
desenho de uma linha descrevendo a gradação infinita da natureza”163.
Chamar glissandos e pulsos de escultura, porém, é quase uma analogia do próprio
artista, já que a visão e a audição reconhecem formas e desenvolvimentos no espaço de
maneiras muito diferentes, como Rodolfo Caesar percebeu ouvindo a faixa Caraxia:
Duas espirais que se cruzam no meio de suas trajetórias, uma vinda de cima para baixo, outra no sentido
inverso. No papel o olho vê que as linhas se cruzam, aceitando o óbvio que aqueles trajetos têm como
função a continuação após o cruzamento. No escuro o ouvido não pensa assim. Ouvimos dois glissandi
simultâneos, um vindo do alto (agudos) e outro de baixo (graves). Quando as duas linhas se aproximam, a
convergência é prevista, mas em seguida o cruzamento é duvidoso. Não podemos afirmar que as linhas
tenham se cruzado, assim como não podemos jurar pelo contrário, isto é, que cada uma volta para seu
ponto inicial. Ou podemos pensar ambas as soluções. (CAESAR, 1987, p.53)
Vemos aqui que uma linha como é percebida na dimensão da visualidade assume
outro comportamento espacial quando traduzida para a escuta. Porque então continuar
chamando Mebs/Caraxia de escultura? Foi uma escolha do artista, que buscou o que é
atraente para o ouvido na ideia de escultura criando uma nova ponte cognitiva entre sua
fisicalidade, seu apelo tátil, e a virtualidade do som gravado. Para garantir que essa conexão
se estabeleça na experiência de ouvir o disco, porém, Cildo Meireles tinha de chamar
Mebs/Caraxia de escultura sonora, entregar essa informação ao ouvinte. Nesse sentido, o
disco é também uma estratégia conceitualista já que existe uma prerrogativa ao objeto, uma
proposta ou conceito que é informado antes da experiência do observador/ouvinte, um acordo
verbal entre ele e o artista, mediado exclusivamente pelo próprio trabalho.
É assim, estabelecendo novas conexões cognitivas com os sentidos que esse disco, a
despeito de sua característica conceitual, não se distancia de Eureka/Blindhotland, e pode ser
tátil, ainda que as mãos não estejam tateando nada. Criando o elo entre a dimensão da
materialidade do disco e da virtualidade do som, a agulha é a peça que verdadeiramente
“pega” o disco, decodifica-o pelo toque. E é negando o espaço euclidiano, gerando um espaço
162
KAHN, 1999, p.83
163
Ibid. p.85
100
sem arestas, topológico, que a escultura sonora Mebs/Caraxia cria suas próprias dimensões:
visível (o objeto disco), virtual (sua gravação), tátil (o toque da agulha), sonora (seu som).
Um fato curioso e que ilustra a “palpabilidade virtual” desse disco é que mesmo
ajudada pelo técnico de som, o processo de gravação quebrou várias agulhas por conta das
frequências pouco comuns ao padrões dos estúdios164. Que escultura imaterial é essa que
consegue quebrar uma agulha? Será que o glissando se recusava a se espremer dentro da linha
contínua do vinil? (lembrando Waltercio Caldas e a reforma que teve de fazer nas máquinas
para gravar sua Entrada na Gruta de Maquiné... os artistas plásticos no estúdio só causam
problemas?) E depois de pronto o disco Mebs/Caraxia, a ideia de fricção material continuou a
atrair o artista:
164
MEIRELES, 2009, p.250
101
Em determinado momento, comecei a me interessar em experimentar os materiais. Então a ideia era usar
disco de madeira, barro, cerâmica, aço ou mesmo lixas redondas substituindo o vinil. Era o disco
agredindo o próprio aparelho de som. Eram discos que só tocariam uma vez, porque a agulha precisaria
ser sempre trocada. A agulha retransmitindo o som do atrito era o que me interessava naquele momento.
(MEIRELES, 2009, p. 250)
Essa ideia depois permeia outro trabalho, Tres Sonidos (1977). São dois pares de luvas
com folhas de lixa de metal colados nas palmas. Um par tem lixas finas, outro, grossas.
Vestindo as luvas, é possível provocar três tipos de som: das combinações lixa fina + lixa
fina, lixa grossa + lixa grossa e lixa fina + lixa grossa165. Ainda que não mediado por uma
vitrola, o contato que provoca os sons de Tres Sonidos não é tão diferente da ideia de uma
agulha tocando um disco. É interessante pensar nesse trabalho como uma espécie de
reprodução fonográfica primitiva ou braçal já que revela para os ouvidos a textura de uma
superfície. A aflição da fricção é inevitável, mas pela ação do corpo e da força, o registro pré-
existente da lixa deixa de ser oculto ou silencioso, ainda que completamente abstrato.
Uma outra noção de espaço emerge em Sal Sem Carne de 1975, o segundo disco do
artista que começou a ser produzido simultaneamente a Eureka/Blindhotland. O LP Sal Sem
Carne parece trazer para a dimensão política a crítica ao espaço euclidiano que Mebs/Caraxia
faz por meio da abstração, operando agora por meio de símbolos e narrativas históricas que
demarcam as divisões ou intersecções dos espaços do Brasil indígena e do Brasil português.
Sal Sem Carne provoca por meio do som o encontro de diferentes territórios e suas políticas,
por meio dos discursos de indivíduos ou instituições.
Cildo afirma em diversas entrevistas que mencionam seu segundo disco, que teve
como símbolo dessa oposição territorial o massacre de indígenas no Tocantins na década de
40 (conhecido historicamente como o Massacre dos Índios Krahô), que chegou na década de
40 ao conhecimento do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no Rio de Janeiro166, onde
trabalhava o pai do artista, o indigenista Francisco Meireles. Segundo o depoimento de Cildo,
a denúncia de um pastor protestante havia chegado à capital após uma série de tentativas de
fazendeiros do Centro-Oeste em exterminar os Krahô em disputas por terra. Os arquivos
online do ISA, o Instituto Sócio-Ambiental, de fato relatam que Mundico Soares, desde a
década de 30 herdeiro de três grandes fazendas da região, é citado como responsável pelo
165
FERNÁNDEZ, 2006, p. 302
166
CORREIA, Jorge C. O Índio Krahô, a Terra e o Direito Indígena. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, 2002.
102
assassinato de vinte e seis índios krahô e um sertanejo na década de 40. Cildo conta também
que seu pai trabalhou na conversão do inquérito administrativo do conflito por terras em um
inquérito policial, assim que a tragédia finalmente veio à tona no Rio de Janeiro. O inquérito
levou Mundico Soares à prisão por cinco anos pela morte dos Krahô e do sertanejo.
O disco foi produzido a partir do material sonoro que Cildo coletou de diversas fontes
que considerou representativas desse conflito histórico, inclusive no próprio Tocantins167. Na
mesma região do conflito, Cildo gravou entrevistas com moradores não-índios, aos quais
perguntava sobre suas impressões sobre a vida e o sujeito indígenas. É possível ouvir no LP o
próprio artista perguntando aos moradores que respondiam com entre outras opiniões, “O
índio é forte”, o “índio não crê em Deus”, “o índio come carne sem sal”. Essas falas são
perpassadas por diversos outros discursos e sons que podem ser manipulados pelo próprio
ouvinte em seu aparelho de áudio, já que no disco foi usado um recurso de mixagem que
permite o controle dos níveis do canal esquerdo e direito.
O disco é constituído por 8 canais: quatro ligadas à cultura branca-portuguesa e quatro ligados à cultura
indígena. Um dos oito canais, ligado à cultura branca, é exatamente a contagem da rádio-relógio, que dura
50 minutos, e marca o eixo do trabalho. Há no trabalho a gravação da festa do Divino Padre Eterno, em
Trindade, e uma gravação, que é uma espécie de terceira margem do rio, num acampamento em São
Cotolengo, que é uma das duas ou três maiores romarias do Brasil. Tenho guardado na memória as
pessoas caminhando em frente à casa da minha avó, nas décadas de 1950 e 60. Elas passavam rezando,
caminhando de joelhos, “pagando promessas”, carregando objetos e seguindo a romaria. Além disso, há
no disco uma entrevista com o Zé Nem, o índio Xerente, cuja história se remete ao Zero Cruzeiro, uma
outra entrevista com um sertanista, que trabalhou com o meu tio Chico e Apoena (meu primo) e
finalmente uma terceira entrevista com os índios kaiapós. O disco foi feito de uma forma onde num dos
canais há a possibilidade de se mixar/regular o discurso dos “brancos” e dos “indígenas”. Toda a captação
dos sons foi feita na Brasil: a rádio-relógio no Rio de Janeiro e o resto em Goiás. (MEIRELES, 2009, p.
259)
Figura 22: Cildo Meireles, Sal Sem Carne, 1974, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 12in. Foto: still do documentário
Cildo, direção: Gustavo Moura.
córrego do Barro Preto em Trindade (GO). O achado e o objeto despertam desde então a
devoção de habitantes da região e de fiéis de todo país. Porém, segundo o organizador da
procissão Amir Salomão Jacob, somente após 60 anos de romarias regulares que houve a
presença de representantes da Igreja nesses eventos e na construção do Santuário do Divino
Pai Eterno (1912), que dali quase um século receberia finalmente o título de basílica menor
pelo Papa Bento XVI (2006)168. Nisso reside sua ambigüidade histórica, um fenômeno
religioso que emergiu às margens das instituições oficiais do Vaticano e simboliza no
deslocamento da multidão fiéis no território que considera “sagrado”, a fusão da crença
popular com o texto religioso.
Se a breve descrição do artista pouco esclarece como o Massacre dos Índios Krahô é
problematizado como fato histórico no disco, o mesmo levanta questões sobre como a
167
Segundo Melatti (1967, p.4), a região do conflito se localiza no município de Babaçulândia - TO.
104
A virada etnográfica na arte contemporânea é também direcionada por desenvolvimentos internos a uma
genealogia mínima da arte dos últimos 35 anos. Esses desenvolvimentos constituem uma sequência de
investigações: primeiro relativas aos materiais constitutivos do meio artístico, depois, sobre suas
condições espaciais de percepção e, então, das bases corpóreas dessa percepção – mudanças marcas pela
arte minimalista no começo dos anos 60 até a arte conceitual, da performance do corpo e a arte site-
specific, já no início da década de 1970. Assim, a instituição de arte não pôde mais ser descrita só em
termos espaciais (estúdio, galerias, museu, etc...), pois era também uma rede discursiva de diferentes
práticas e instituições, outras subjetividades e comunidades.[...] Obviamente a crise das descrições
restritivas da arte e do artista, identidade e comunidade, foi pressionada outrossim por movimentos
sociais (direitos civis, feminismos variados, políticas estranhas, multiculturalismo) da mesma forma que
os desenvolvimentos teóricos[...] Portanto, a arte deslocou-se para o campo ampliado da cultura, espaço
esse pensado pela pesquisa antropológica. (FOSTER, 1996, p.305)
É então por meios desses recursos, referências indiretas e na maioria das vezes orais
que o trabalho não se comporta como um relato histórico, sendo justamente essa
inconsistência de situações que reforça sua condição simbólica – ou como Rancière prefere
em Política da Arte, sua condição solitária e indiferente:
A arte não produz conhecimentos ou representações para a política. Ela produz ficções ou dissensos,
agenciamentos de relações de regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação política,
mas no seio de sua própria política, isto é, antes de mais nada no seio desse duplo movimento que, por um
lado, a conduz para sua própria supressão, de outro, aprisiona a política da arte na sua solidão. Ela os
produz ocupando essas formas de recorte do espaço sensível comum e de redistribuição das relações entre
o ativo e o passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os espaços-tempos do teatro
ou da projeção, do museu ou da página lida. Ela produz, assim, formas de reconfiguração da experiência
que são o terreno sobre o qual podem se elaborar formas de subjetivação políticas que, por sua vez,
reconfiguram a experiência comum e suscitam novos dissensos artísticos. (RANCIÈRE, 2005, p.8)
A condição solitária e indiferente é segundo Rancière, o que garante que a arte, como
a política, possa produzir suas ficções. Ficções aqui são “construções de uma nova relação
entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum”. Em
outras palavras, a condição simbólica é o que garante que os dissensos, (como os que residem
entre os territórios do Brasil indígena e Brasil português), possam se estabelecer na dimensão
sensível171, nesse caso, a dimensão auditiva. Se segundo Ranciére, não é o papel da arte uma
ação ou transformação como a própria política faria, pode-se no entanto investir no papel
transformador das ficções que ela pode criar. Cildo Meireles optou por esse caminho.
Assim, não é determinante que o Massacre dos Krahô seja evocado como um ato
discursivo para que a obra cumpra o que se propõe. O artista buscou justamente as referências
auditivas que se sustentam sem sabermos de sua construção histórica, ou seja, o artista buscou
uma universalidade sonora no conflito do Tocantins, símbolos que podem ser usados para
traçar um panorama mais amplo: as interações do Brasil português e do Brasil indígena. Sal
Sem Carne posiciona o ouvinte onde estaria o encontro desses vetores. O Massacre dos Índios
Krahô é o fato que, na dimensão da informação oral do artista, assombra o ouvinte durante
essa experiência como um espectro; se compreende a tragédia não ao remontar as condições
específicas que a tornaram possível, mas em sua inevitabilidade histórica. Nesse sentido, a
tragédia é ao mesmo tempo um pressuposto e um desdobramento simbólico das oposições
fundamentais apresentadas entre o branco e o indígena por meio do som. O ouvinte
participante é posicionado em Sal Sem Carne como uma expectativa utópica de conversação
entre os dois mundos sonoros. É ali permitido ao ouvinte vislumbrar a utopia deste debate por
meio da escuta e manipular com ela, sua possibilidade.
107
Digamos que eu chame de espaço todos os mecanismos da vida. O espaço não é apenas o lugar onde as
pessoas estão, mas algo ativo e envolvente. O espaço, como imagino, exclui a possibilidade da existência
de um observador isento, que domina o mundo com o seu olhar. Ele implica a participação. Toda a minha
atuação como trabalhador da arte está orientada para essa ideia: a de que não existe um observador, mas
um sujeito que está no meio de um processo de pensamento, que deve acompanhar esse processo, vivê-lo,
manipulá-lo, e não somente observá-lo. O que seria impossível, aliás. A hipótese de trabalho da arte
tradicional – a arte como objeto de pura contemplação – é evidentemente equivocada. (MEIRELES,
2009, p.26 )
lugar172. Muito deve-se ao fato de que os participantes estão ouvindo ativamente nesses quatro
trabalhos: foi McLuhann que tão seguramente falou que o espaço auditivo “não é o espaço
pictórico, encaixotado, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas próprias dimensões
momento a momento”. Fora da caixa, propagando-se no espaço, o som gera “múltiplos pontos
de vista”. Movediço como deve ser, o espaço auditivo emancipa rompendo com a segurança
do olhar e entrecruzando contextos e situações que no mundo palpável, não se encontrariam.
172
DOS ANJOS, in: MEIRELES, C., 2008, p.5
Considerações finais
Se o artista plástico traz algum problema ao estúdio fonográfico quando ali entra com
suas ideias, esse problema está essencialmente ligado na diferença entre os modos de fazer
das artes plásticas – arraigado à noções de autoria individual, à plasticidade do trabalho
artesanal ou à liberdade dos procedimentos de apropriação – e da indústria fonográfica, onde
regem regulamentações de autoria coletiva (compositor, intérpretes, produtor, proprietário do
fonograma, etc.) a serialidade da produção industrial e o pragmatismo que o mercado impõe
nas dinâmicas de produção e distribuição. Ainda assim, modos de fazer – mesmo o da
indústria fonográfica – são dinâmicos. Os três álbuns de Chelpa Ferro evidenciam esse fato no
que registram sonoramente as mudanças de estrutura pela qual o estúdio fonográfico passa na
virada digital da década de noventa.
Planos futuros do grupo se concentram na criação de um selo musical próprio pelo
qual poderão lançar seus próximos álbuns, assim como de outros artistas. Essa é uma
evidência de que na atualidade é possível uma apropriação total do sistema fonográfico, já
que o maior acesso aos mecanismos de produção pode redimensionar a distribuição de cópias
para uma escala muito menor que a abrangência expansiva da indústria fonográfica. Como os
estúdios e selos independentes permitem que a produção se volte a um nicho cultural
específico, a liberdade de experimentação é não só maior, como se torna uma prática estética
desses produtores (cf. Chelpa Ferro III, 2011.). Dessa maneira, artistas que geram ideias de
ruído formulam consequentemente ideias de indústria, ou seja, exercitam possibilidades de
existência desse ruído no mundo, cultura e vida cotidiana. Nesse sentido, Mebs/Caraxia, 1971
e Sal Sem Carne, 1975 de Cildo Meireles e A Entrada na Gruta de Maquiné, 1980 de
Waltercio Caldas são propostas visionária por já repensarem a dialética entre infra-estrutura e
forma em uma época onde os modos industriais não eram acessíveis ou facilmente replicados
da maneira que são com a tecnologia digital. Para produzir a ideias de álbum desses artistas,
foi necessária uma modificação física dentro da estrutura industrial (cf. A Entrada na Gruta de
Maquiné e Mebs/Caraxia), assim como um desvio na rotina serial da gravação.
Se não houve uma efetiva inserção desses álbuns diferenciados no mercado
fonográfico, o que permitiria que eles se reproduzissem lado a lado aos álbuns comuns,
relativizando-se de forma ainda mais contrastante, foi por ainda se dirigirem ao campo das
artes plásticas: A Entrada na Gruta de Maquiné foi lançado na galeria de arte Saramenha em
1980, Mebs/Caraxia e Sal Sem Carne são parte de coleções como MoMA Library em Nova
110
Iorque e o leilão de uma cópia do último foi agenciado por Phillips, de Pury & Company173
por quinze mil libras. São álbuns de tiragem limitada, uma escassez que embora se deva ao
caráter experimental dessas produções, também serve aos propósitos do mercado de arte e à
valorização histórica (no sentido arqueológico) e artística dos objetos.
Ao mesmo tempo que essas propostas executam modificações temporárias no modo
de fazer da indústria fonográfica, iniciar esse texto com a trajetória de Hélio Oiticica
evidencia como o artista modifica, através da música, os modos de fazer específicos das artes
plásticas de então. Isso quer dizer que o caminho de Oiticica para o morro, muito motivado
pela musicalidade que se desenvolvia em seu trabalho com a pintura, desafiou axiomas e
regras das “escritas compartilhadas” que segundo o artista, comediam a criatividade e a
possibilidade do ato expressivo individual. Se a musicalidade foi um veículo para essa tomada
de consciência, para essa chegada em lugar alternativo no qual o artista poderia atuar, foi por
levar as práticas das artes plásticas ao espaço público e para o tempo da vida cotidiana.
A indistinção hierárquica do artista quanto a tradições musicais e a inexistência de
opiniões desenvolvimentistas sobre a música, inegavelmente orientou o percurso de Hélio
Oiticica pelo interior dos territórios dos que estavam à margem de qualquer tipo de ordenação
oficial, seja cultural, urbana, legal ou material. A incorporação dessa outra cidade se dá pela
dança, e essa por meio dos Parangolés, participa criticamente possibilidade da realidade
plástica. Os Parangolés culminam uma possibilidade de sintonia entre a dimensão material e
espiritual desejada por Mondrian: a realidade plástica não poderia estar flutuando sobre os
paradoxos da realidade material e política do país. Como previa Lygia Clark, era somente da
adversidade que ela poderia emergir.
Cildo Meireles age nessa abertura para o “conjunto maior de experiências” que um
trabalho ou proposta de artes plásticas passa a oferecer na década de setenta. Assumindo uma
atitude compartilhada com outros artistas desse período que abandonaram discussões
epistemológicas (como foi o caso do fim da polêmica de Oiticica sobre o nome tropicalismo
adotado pelos músicos baianos), e exercitando possibilidades e formas de liberdade, Cildo
Meireles pratica formas de descontrole sobre obras e propostas. A hipótese da participação
torna-se tão importante quanto a vivência: ela determina a dimensão ou extensão da proposta
(o “minimalismo lúdico” de Malhas da Liberdade, 1976-2008, e Cigarras, 2010), a
173
Cf.
<http://www.phillipsdepury.com/auctions/lot-‐detail/CILDO-‐
MEIRELES/UK010410/207/9/1/12/detail.aspx>
111
contribuição dessas ações reside justamente em não desejar construir lugares seguros para a
experiência artística, pois demonstram em sua sonoridade e musicalidade que mesmo o lugar
que se pretende monumental ou definitivo, não deixa de coexistir com aquele que é
desordenado, está fatalmente aberto a um trânsito desarmônico de debates, avaliações e
possibilidades.
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VIANNA, Hermano (2000). Hélio Oiticica como mediador cultural entre asfalto e morro.
In: Seminário Mediação e Cidadania na Sociedade Brasileria, Rio de Janeiro: PPGAS,
Museu Nacional da UFRJ, 2000. Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/
banco/helio-oiticica-como-mediador-entre-asfalto-e-morro>. Acesso em 26 de julho
de 2010.
__________ (1998). Chelpa Ferro. Revista Poliester, vol 7, n.24, Cidade do México. Inverno
de 1998/99; p.32-37.
ZANINI, Walter (1953). Lothar Charoux. In: BANDEIRA, João (org.). Arte Concreta
Paulista: documentos. São Paulo: Cosac&Naify, Centro Universitário Maria Antônia
da USP, 2002.
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Filmografia
CHELPA Ferro. Direção: Carlos Nader, Concepção: Solange Farkas, Produção: Já Filmes e
Associação Cultural Videobrasil. São Paulo: Videobrasil Coleção de Autores, 2009,
(52min), 1 DVD.
CILDO. Direção: Gustavo Moura. Produção: Guilherme Coelho, Maurício Andrade Ramos e
Antonio Dias Leite. Rio de Janeiro: Produtora Matizar, 2009, (78min), 1 DVD.
CILDO Meireles. Direção: Wilson Coutinho, Produção: Luiz Alberto L. Lira. Rio de
Janeiro: independente, 1979, (11min), son., cor e PB, 35mm.
HÉLIO Oiticica. Direção: Ivan Cardoso, Produção: Fernando Carvalho e Ivan Cardoso, Rio
de Janeiro: Super 8 Produtora Cinematográfica Ltda., 1979, (13min), son., cor e PB,
35mm.
Documentos Sonoros
CAESAR, Rodolfo. A Arte dos Sons. Rio de Janeiro: ________, 1979, 1 disco sonoro.
Analog 33 1/3 rpm : 12in, estéreo.
CHELPA FERRO. Chelpa Ferro I. Rio de Janeiro: Uni Records, 1999. 1 CD.
CHELPA FERRO. Chelpa Ferro II. Rio de Janeiro: Ping Pong, 2004, 1 CD.
CHELPA FERRO. Chelpa Ferro III. Rio de Janeiro: ________, 2011, 1 CD.
LED ZEPPELIN. Moby Dick. In: Led Zeppelin II. Londres: Atlantic, 1969. 1 disco sonoro,
33 1/3 rpm : 12 in, estéreo, Lado 2, faixa 4, (4min25s)
MEIRELES, Cildo. Sal Sem Carne. Rio de Janeiro: LP-CM-003 Pesquisa, 1975. 1 disco
sonoro. Analog, 33 1/3 rpm : 12 in, estéreo.
MONK, Thelonious. Solo Monk. Nova Iorque: Columbia, 1965. 1 disco sonoro, 33 1/3rpm:
12 in, estéreo.
Disponíveis em
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/dsp_home.cfm>
Acesso: janeiro de 2011
_______________. (1962) HO 0182.62.
Projeto
Cães
de
Caça.
Rio
de
Janeiro
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