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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

VIVIAN MARTINS CACCURI DE ARAUJO

OUVINDO AS ARTES VISUAIS:


Sonoridades de Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Hélio Oiticica

RIO DE JANEIRO
2011
VIVIAN MARTINS CACCURI DE ARAUJO

OUVINDO AS ARTES VISUAIS:


Sonoridades de Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Hélio Oiticica

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Música, Escola de Música,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, para
obtenção do título de Mestre em Música.

Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Caesar

RIO DE JANEIRO
2011
VIVIAN MARTINS CACCURI DE ARAUJO

OUVINDO AS ARTES VISUAIS:


Sonoridades de Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Hélio Oiticica

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Música, Escola de Música,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, para
obtenção do título de Mestre em Música.

Comissão Julgadora

________________________
Prof.Dr. Rodolfo Caesar,Escola de Música, UFRJ

________________________
Prof.Dr. Samuel Araújo, Escola de Música, UFRJ

________________________
Prof. Dr. Felipe Scovino, Escola de Belas Artes, UFRJ
AGRADECIMENTOS

Este trabalho não seria possível sem o apoio do meu orientador Prof. Dr. Rodolfo
Caesar. Agradeço sua paciência e ponderação necessárias para realizar um trabalho multi-
disciplinar. Agradeço aos meus colegas da Escola de Música - UFRJ e UERJ, Gabriela
Marcondes, Marcelo Carneiro de Lima, Leandra Lambert e Joana Bergman pela troca, cafés e
discussões.
Obrigada à CAPES e à Escola de Música por viabilizar a dedicação de tempo
necessária para a pesquisa.
Devo agradecer aos professores Eve Aschheim, Bruno Carvalho e Robert Kaplowitz
com os quais tive aulas e conversas fundamentais durante meus meses nos Estados Unidos.
Lisette Lagnado foi quem gentilmente me alertou sobre o Programa Hélio Oiticica, no
qual pude mergulhar nos arquivos do artista.
Agradeço a todos os meus amigos, em especial Pedro Victor Brandão, Maíra das
Neves, Joana Varon, Saulo Laudares, Franz Manata, Alessandra Bergamaschi, Moana Mayall,
Nick Gray, Daniel Toledo e Carolina Sá Carvalho.
À minha irmã, aos meus pais e avós, pelo entusiasmo e compreensão.
A Ronaldo, pelo amor e apoio indescritíveis.
Resumo

Ouvindo as Artes Visuais investiga a sonoridade nas artes plásticas através do trabalho
dos artistas Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Hélio Oiticica e Chelpa Ferro. Parte-se da
prerrogativa de que qualquer posicionamento ou proposta que envolve o som ou ideias de som
nas artes plásticas encontra-se com um regime onde o silêncio possui grande importância
histórica nas práticas estéticas. Dessa maneira, esta pesquisa examina trabalhos, textos,
situações históricas, contextos técnicos, sociais e artísticos que motivaram os artistas plásticos
a dirigir questões à dimensão audível. Tendo como ponto de confluência principal entre as
atividades dos artistas a cidade do Rio de Janeiro pós-Kubitschek, o trabalho examina a
relação dos artistas com a música em diversos aspectos: o encontro com a prática musical em
um contexto cultural específico, as ações dos artistas plásticos no estúdio de gravação
fonográfica e o uso da sonoridade como forma crítica de espacialidade. Constatou-se que
nessas práticas, os modos de fazer das artes plásticas e da música passam a operar de forma
conjunta e indissociável, e que existe continuidade de procedimentos estéticos específicos
entre diferentes gerações de artistas.

Palavras chave: Sonoridade, Artes Plásticas, Música.


Abstract

Listening to Brazilian Art investigates sound in the visual arts through the work of
artists Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Hélio Oiticica and Chelpa Ferro. It starts from a
position that any proposal involving sound in the arts meets a regime where silence has great
historical significance for aesthetic practices. Thus, this research investigates works, texts,
historical situations, technical, social and artistic contexts that had motivated artists to address
issues to the audible dimension. Having post-Kubitschek Rio de Janeiro as the main
confluence point among the activities of those artists, we examined their relationship with
musical practices in specific cultural contexts, artistic actions in the recording studio and the
use of sound as a critical form of spatiality. In these practices, the visual and musical ways of
making operate together and indivisibly, and that there is continuity of specific aesthetic
procedures along different generations of artists.

Key words: Sound, Visual Arts, Music.


Lista de Figuras

Fig.1: Foto de Piet Mondrian em seu estúdio em Paris, Nov. 2, 1933, com um agradecimento
a Mies Elout no verso. Foto: Coleção Elout-Drabbe. (“Mies, muitas lembranças cordiais a
você e Paul, de Piet”)  

Fig. 2: Primeira aquarela abstrata de Wassily Kandinsky, Sem Título, 1910. 49.6 x 64.8 cm.
Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris, França.

Fig. 3: Robert Morris, Sem Título, 1965-71.Tate Collection, Londres, Reino Unido. Foto:
ARS, NY and DACS, London 2002.

Fig.4: Hélio Oiticica, Módulo para o para-quadr,o 1956, Óleo sobre compensado, 400 x 280
mm, Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS,
London 2002.

Fig.5: Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958, Guache sobre papel cartão, 550 x 640 mm,
Coleção de Ernesto e Cecilia Poma, Miami. Foto: ARS, NY and DACS, London 2002.

Fig.6: Hélio Oiticica, Relevo Espacial (amarelo), 1960, emulsão de óleo sobre madeira,
Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS, London
2002.

Fig. 7: Piet Mondrian, Composition No. III Blanc-Jaune, 1935-42; Óleo sobre tela, 101 x 51
cm; Coleção Christie's, New York.

Fig. 8: Hélio Oiticica, Maqueta para Projeto Cães de Caça, 1961, Emulsão de óleo sobre
madeira; areia 1615 x 1610 x 295 mm, Coleção de César and Claudio Oiticica, Rio de
Janeiro.

Fig.9: Piet Mondrian. Broadway Boogie-Woogie. 1942-43. Oil on canvas, 50 x 50"(127x127


cm). The Museum of Modern Art, New York. Doado anonimamente.

Fig.10: Hélio Oiticica, P07 Parangolé Capa 04 'Clark', 1964-65, Tinta; tela; burlap; vinil,
1310 x 985 x 60 mm , César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro.

Figura 11: Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, CC5 Cosmococa/HendrixWar Programa-in-


Progress, 1973, Nova Iorque.

Figura 12: Caetano Veloso vestindo Parangolé Cape 04, 1964, Rio de Janeiro. Foto:
Andreas Valentim.

Figura 13: Capa do album Chelpa Ferro II, 2004, Rio de janeiro: Ping Pong, 1CD, stereo.

Figura 14: Chelpa Ferro, Cogumelo Ohms, 2004, pratos de bateria, motores, mãeo-francesa,
amplificadores, som. Rio de janeiro, foto: Luiz Zerbini.

Figura 15: Chelpa Ferro, Acusma, 2010, vasos de cerâmica, amplificadores, falantes, dvd.
São Paulo: Paralela 2010, Licei de Artes e Ofícios, foto: Ding Musa
  5  

Figura 16: Waltercio Caldas, Anda Uma Coisa no Ar, 2002, mesa de aço, vidro, quartzo,
taças de cristal, carvão. Vila Velha: Museu Vale, 2010. foto: Caroline K.

Figura 17: Waltercio Caldas, Thelonious Monk, 1998, pele de coelho, aço inox, acrílico,
granito, 2010. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud.

Figura 18: Cildo Meireles, Eureka/Blindhotland, 1970-75, rede de pesca, esferas, balança,
trilha sonora. Londres: TATE Collection/American Fund, 2004.

Figura 19: Cildo Meireles, Malhas da Liberdade, 1976-2008, peças de plástico. Londres:
Turbine Hall, TATE Modern, 2008. Foto: Tim Spear.

Figura 20: Cildo Meireles, Mebs/Caraxia, 1971, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 7in. Foto: a
autora, 2010.

Figura 21: Lygia Clark, Caminhando, 1964, frame de vídeo de trabalho participativo.

Figura 22: Cildo Meireles, Sal Sem Carne, 1974, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 12in. Foto: still
do documentário Cildo, direção: Gustavo Moura.
INTRODUÇÃO 4
1 DEBATES PRELIMINARES: o silêncio e a sonoridade das artes plásticas 10
1.1 Regime representativo e regime não-figurativo 11
1.2 Práticas no espaço público e no tempo da vida cotidiana 16
 

2 HÉLIO OITICICA: musicalidade de 1955 a 1964 19


2.1 O quê de Mondrian que levou Oiticica ao samba 22
2.1.1 Entre a pintura e a música neoplástica 28
2.2 1964, O Encontro com a Mangueira 35
2.2.1 Mondrian, o jazz e a espontaneidade 36
2.2.2 O morro e a virada da vivência 38
2.3 Universal ou imanente 40
2.3.1 A matéria da vitalidade: Parangolés 44
2.3.2 A raiz do pensamento de Mondrian 45
 
 

3 CHELPA FERRO: o Merz, o estúdio e o estado de invenção 48


3.1 Invasões e furtos: artes plásticas e o imaginário da música popular 49
3.1.1 Tropicália e a Abertura Democrática 52
3.2 A vitalidade nas coisas 58
3.2.1 Ritmistas: simbolismo e estética do rock 61
3.2.2 Acusmática e pulso 68
3.2.3 Estética da obsolescência 71
 
 

4 WALTERCIO CALDAS: o museu, a vitrola e o regime silencioso 72


4.1 Velocidades e Suspensões em Anda Uma Coisa no Ar 74
4.2 O silêncio crítico 76
4.2.1 A menção do jazz 76
4.2.2 A estranha evidência do silêncio 78
4.2.3 Ping-ping 80
4.3 Modificando a indústria fonográfica 82
 
 

5 CILDO MEIRELES: além-olho 85


5.1 Clic-clic: Cigarras no MAM-Rio 88
5.1.1 Affonso Eduardo Reidy e a antiga ideia de rua 90
5.1.2 A hipótese da participação 92
5.1.3 Minimalismo lúdico 95
5.2 O disco compacto Mebs/Caraxia, 1971 96
5.2.1 Glissando como som topológico 97
5.2.2 Tres sonidos 100
5.3 Índios e Padres: Sal sem Carne, 1974 101
5.3.1 Referencialidade e a virada etnográfica 103
5.4 Descompartimentação dos sentidos 107
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 113


  4  

Introdução

Aquilo que pode ser ouvido nas artes plásticas certamente se estende além da simples
presença de material sonoro em instalações, objetos ou propostas por meio de gravações,
amplificações ou ruídos materiais. A sonoridade nas artes plásticas pode transformar a
vivência do tempo presente por não residir somente na vibração dos tímpanos; ela pode ser
imaginada, silenciada, pode mover um corpo, pode sintetizar ideias, provocar encontros e
sobreposições de espaços, discursos, pode transformar estruturas, sistemas: ela se recusa a se
dirigir exclusividade ao ouvido. E é agindo nessa impossibilidade de se ater ao som como um
problema em si mesmo, atuando na qualidade crítica do tempo e da vivência espacial que
propõe, que a amplitude artística da sonoridade é exercitada e colocada à prova nos trabalhos
de Hélio Oiticica (1937-1980), Cildo Meireles (1948 -), Waltercio Caldas (1946 -) e Chelpa
Ferro1.
Essa amplitude está muito além de qualquer campanha pela indissociabilidade dos
sentidos. O fato de que os sentidos não são separados não é nada mais do que algo consciente
no trabalho desses artistas, não se necessita da arte como uma recolagem do sensível. Dessa
maneira, quando não se examina suas propostas como formas de reunir um aparelho sensível
fragmentado, a incursão desses artistas na dimensão audível pode ser entendida de forma
muito mais densa e relativa, ou seja, engendrada tanto em seus processos artísticos individuais
quanto nos contextos culturais e históricos que as receberam ou motivaram.
Tendo em vista que esses são artistas plásticos e que estão atuando em um campo
cultural onde a visão é o sentido privilegiado, qualquer proposta ou trabalho acabado estará
inevitavelmente lidando com a situação histórica de que o olho se tornou “mais pesado ou
mais quente”2 que os outros sentidos nos mecanismos da teoria (crítica, estética) e da
memória (história da arte). O espaço restrito que a dimensão audível ocupa nesses
mecanismos dá às propostas ou discursos que envolvem a musicalidade/sonoridade uma
qualidade diferenciada e política. Qualquer ação artística na dimensão audível imediatamente
se distingue na oposição em relação ao visual – uma oposição historicamente reiterada na
separação Ocidental das artes3 - e por esse motivo se intensifica a necessidade de atribuir
razões artísticas e históricas para tal uso nas artes plásticas. A compreensão sobre esse
posicionamento crítico do artista, veremos, é favorecida pela dialética entre sua própria
                                                                                                               
1
Grupo formado em 1995, membros: Barrão (1959 - ), Luiz Zerbini (1959 - ) e Sérgio Mekler (1963 - )
2
KAHN, 2002, s.n.
3
WEISS, 2008, p.23
  5  

trajetória e os textos que a crítica e a história da arte brasileira produziram sobre algumas
dessas explorações na sonoridade e na musicalidade. Nesse sentido, Waltercio Caldas com
seu disco compacto A Entrada na Gruta de Maquiné (1980), poderá revelar mais sobre a
interação que a crítica e a história da arte estabelecem com a prática estética que deseja
ampliar-se no além-olho: na reiteração do regime silencioso do olhar na teoria, ou seja, no
texto, muito pode deixar de ser ouvido na experiência real com o trabalho de arte.
Por outro lado, a incursão dos artistas plásticos da dimensão audível inevitavelmente
endereça problemas à música; “música” aqui, é posta no sentido mais amplo possível: sua
performance, seus elementos composicionais, sua indústria, seus meios de difusão sonora e
simbólica, sua vitalidade, sua função em um determinado segmento cultural, seus debates
históricos, sua coloquialidade ou institucionalização. Em primeiro lugar, isso se dá pelo fato
da música, devido à mesma cisão sensível que acompanhou o movimento de especialização
das artes ocidentais na Modernidade, deter boa parte das ferramentas estéticas, técnicas e
lingüísticas correntes na relação com o sonoro. Em segundo lugar, uma dimensão
compartilhada entre artes plásticas e música pode emergir já que os próprios artistas muitas
vezes se dirigem deliberadamente ao terreno musical em algumas de suas propostas. Hélio
Oiticica diz em 1979: “Oq faço é Música”. Como interpretar tal afirmação vinda de um artista
plástico? Em que medida a metáfora ou a própria sonoridade de um artista visual serve como
um elemento reflexivo, crítico ou transformador para as duas linguagens artísticas?4
Os quatro artistas sobre os quais se debruça Ouvindo as Artes Visuais possuem
trajetórias que podem revelar alguns desses pontos de encontro que se distribuem ao longo da
década de sessenta à atualidade. Quando se interessam em mergulhar no sistema música, em
suas indústrias, estruturas e convenções, esses artistas tomam de assalto estúdios fonográficos
para suas experimentações e ideias (Mebs/Caraxia, 1971 e Sal Sem Carne, 1974 de Cildo
Meireles, A Entrada na Gruta de Maquiné, 1980 de Waltercio Caldas) se apropriam dos
símbolos e ídolos da música popular (CC5 Hendrixwar/Cosmococa, 1973 de Hélio Oiticica e
Neville de Almeida, Moby Dick, 2001 de Chelpa Ferro), fazem da infra-estrutura musical um
terreno de reconfiguração sensível permanente tendo como pano de fundo para essas ações
tanto a vitalidade que rege toda expressão musical quanto os padrões, dinâmicas e políticas
                                                                                                               
4
Realizado no mesmo ano da declaração de Oiticica, Arte dos Sons mostra outra direção crítica dessas
aproximações: “Artista dos sons, ou artista sonoplástico, pode ser todo aquele que queira ou tenha que entrar no
circuito tradicional estruturando num percurso que começa nas exigências do mercado musical, passa pela
censura estética da ordem dos músicos do Brasil, pela censura principalmente dita, e termina na consciência de
cada um. A classe dos artistas sonoplásticos, que ora se imagina, não tem estatutos e nem se esforça por tê-los,
por não querer regulamentar uma atividade artistica que, por definição, encontra-se além do delimitável por
regras práticas." Cf. (CAESAR, 1979)
  6  

estéticas da indústria fonográfica. Quando empreendem uma investigação plástica do som,


colocam por exemplo, a arquitetura modernista para revelar criticamente características
estruturais de seus espaços de sociabilidade e lazer (Cigarras, 2010 de Cildo Meireles),
utilizam procedimentos semi-mecânicos para revelar o íntimo de uma estrutura ou um ritmo
material possível entre objetos que de outra forma não se encontrariam (Samba, 2001, de
Chelpa Ferro), ou inventam métodos próprios de composição ou representação sonora (álbuns
de Chelpa Ferro, Mebs/Caraxia, 1971 de Cildo Meireles)
Com exceção de Chelpa Ferro, cujos trabalhos são predominantemente ressonantes
(embora os membros desenvolvam atividades em outras linguagens artísticas), as ações e
discursos desses artistas frente à sonoridade e musicalidade são ocasiões especiais em sua
produção. Waltercio Caldas por exemplo, possui somente um disco gravado (A Entrada na
Gruta de Maquine, 1980) e faz menção a músicos e estruturas musicais em uma pequena
parte de seu conjunto de esculturas. Cildo Meireles gravou três discos (Mebs/Caraxia, 1971,
Sal Sem Carne, 1975, e Rio/Oyr, 2011) e fez em torno de uma dezena de instalações e
propostas que incorporam a sonoridade como um elemento constitutivo (Cigarras de 2010,
Babel de 2001, Eureka/Blindhotland de 1970-75, Através de 1983-89, Marulho de 1997,
Fontes de 1992, Liverbeatlespool de 2004, e outros). Hélio Oiticica possui uma trajetória que
será reveladora no sentido em que mostra como a musicalidade exerceu diferentes funções e
importâncias durante diversos períodos de sua vida, a ponto de motivar trabalhos onde a
sonoridade é um dos espaços de experiência principais como CC5 Cosmococa/HendrixWar
Programa-in-Progress e Projetos Cães de Caça. Se essas incursões à dimensão audível são
exceções no trabalho dos quatro artistas, elas imediatamente sintetizam ideias ou processos
que não poderiam ser realizados de outra maneira, o que lhes atribui uma condição especial,
valiosa para um trabalho de motivação histórica.
Essas ações estão distribuídas ao longo de cinco décadas tendo a cidade Rio de Janeiro
como ponto de confluência, tanto em seu circuito de artes plásticas (museus como o MAM,
Paço Imperial, galerias de arte, grupos de discussão de arte, publicações), quanto em outros
territórios que esses quatro artistas trilharam no processo de trabalho. Esses lugares dirão
muito sobre a extensão simbólica que o trabalho sonoro desempenha em relação a seus
trabalhos visuais: o morro e a escola de samba da Mangueira, estúdios fonográficos, eventos
de poesia, Praia do Arpoador, emissoras de rádio, fábricas de fita-adesiva, a rua.
Assim, o primeiro capítulo trata em boa parte da transição que Oiticica fez do espaço
institucionalizado das artes plásticas para a comunidade do samba da favela da Mangueira em
1964. A musicalidade indissociável à dança, ao carnaval e ao próprio tecido social e material
  7  

do morro, impulsionou um reposicionamento ético do artista. É o mesmo movimento de uma


virada fundamental em seu trabalho que, a partir da incorporação do samba que o levou à
“descoberta do corpo”, passa a levar adiante o projeto de “total integração da arte à vida”,
somente possível a partir de propostas fundamentalmente participativas que refutam
separações entre trabalho, espectador, espaço, artista, tempo, etc. Isso quer dizer que as
discussões que já estavam contidas nos textos de Ferreira Gullar5, sobre a utopia da “realidade
plástica” de Piet Mondrian (1917-1943) (cujo ritmo e sonoridade seria dado pelo encontro do
jazz com a música orquestral), tomarão uma outra dimensão ética na atuação do artista com os
Parangolés no Morro da Mangueira.
Os Parangolés (1965-78), construídos e experimentados em um momento de
crescente violência e opressão política, inauguram o período do Programa Ambiental, um
conjunto de posicionamentos artísticos e políticos sob os quais Hélio Oiticica negará a
imposição de padrões estéticos e o levará a manifestações artísticas totais que se utilizam se
todos os meios disponíveis sem discriminação (“cor, palavra, luz, ação, construção, etc”6). A
mais proeminente delas é Tropicália (1967), um ambiente cujo nome inspirou uma canção de
Caetano Veloso (Tropicália, 1968), que depois daria nome ao movimento musical
tropicalista7. As relações que viriam entre o artista plástico e os músicos baianos – inclusive
em seu período de exílio em Londres (1969) podem ser interpretadas como um sintoma de
uma crescente e intensa relação que artistas de diferentes linguagens estabeleceriam a partir
da década de setenta8, o que também significava que existirá uma porosidade maior inclusive
na circulação de artistas plásticos em outros ambientes técnicos como o cinema e o estúdio
fonográfico. Os discos de vinil Cildo Meireles e Waltercio Caldas – produzidos nesse período
- são exemplos do encontro do que Jacques Rancière em Le Partage du sensible chama de
diferentes “práticas estéticas” ou “modos de fazer”9: o das artes plásticas (artesanal,
intelectual) e o da indústria fonográfica (serial, tecnológico). Esses trabalhos em vinil podem
revelar aspectos do impacto da estrutura fonográfica sobre o sensível e o fazer dos artistas de
então.
Nesse sentido veremos como Chelpa Ferro, cujos membros começam suas carreiras na
década de oitenta, são favorecidos tanto por essa maior capacidade de circulação do artista
plástico no ambiente técnico de outras linguagens artísticas quanto por uma situação política
                                                                                                               
5
Respecivamente GULLAR, F. Manifesto Neo-Concreto (1959) e Id. Teoria do Não-Objeto(1960).
6
OITICICA, doc.No.0253.66, p.2 AHO/PHO
7
Id. doc.No.0128.68 AHO/PHO
8
COELHO, 2010, p. 123
9
RANCIÈRE, 2004, p. 13
  8  

otimista (Abertura política, 1975-85) que permitirá que os espaços públicos adquiram uma
nova vitalidade. Sem o cerceamento opressor no espaço público, outros tipo de lugares de
encontro entre artistas de diversos segmentos foram possíveis, como visto na realização do
primeiro Circo Voador na Praia do Arporador em 1982, os Encontros com a nova música dos
anos 80 no Parque da Catacumba (Fundação Rio10) e a criação do primeiro CEP 20.000 no
Teatro Sérgio Porto em 1990.
Chelpa Ferro começa a construir suas instalações e objetos dos quais grande parte são
geradores de som a partir de 1997. Esse é um período de substituição da infra-estrutura de
gravação digital ainda baseado em fita magnética (por ex, o ADAT) pela virtualidade das
estações de áudio digitais como o Protools e Logic. Acompanhando essas mudanças dentro
do estúdio fonográfico, o fenômeno de substituição e descarte de soundsystems domésticos já
havia tomado grandes proporções já que o CD passara a ser a mídia principal no consumo de
música no início da década de noventa. As montanhas empoeiradas do antigo hardware de
áudio analógico imprime uma nova estética da obsolescência sonora, na qual Chelpa Ferro
pode agir com suas montagens, não deixando, veremos, de levar adiante alguns
procedimentos e programas que Hélio Oiticica iniciara no Morro da Mangueira, tal como o
Merz dos Parangolés.
Douglas Kahn comenta que “não há simplesmente nada envolvido no trabalho com a
sonoridade que promete algo especial, exceto talvez por um maior grau de licença, uma maior
sensação de possibilidade, e uma maior capacidade em simular e representar as ideias,
imagens, cenas e sistemas de existência”11. Kahn acredita que na mesma medida que o som
não é uma promessa de ruptura nas artes plásticas, não existem motivos para silenciá-lo nos
mecanismos da memória e contextualização histórica. No entanto, para que ele se faça
audível, é necessário tanto desviar-se das concepções fragmentadas do sensível quanto
estabelecer dimensões estéticas e lingüísticas compartilhadas entre as artes plásticas e a
música. Nesse sentido, Ouvindo as Artes Visuais é uma tática de pensamento sobre esse
recorte muito específico e limitado da produção das artes plásticas brasileiras: Waltercio
Caldas, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Hélio Oiticica darão pistas sobre onde reside e como
se transformou a condição de ouvir.
                                                                                                               
10  Inicia-­‐se  pelo  INAP
/ Funarte, com primeiro evento organizado por Paulo Sérgio Duarte em 1980 “Arte dos
sons – imagem: princípio do tímpano profano”, concerto de Rodolfo Caesar e Aluísio Arcela Junior.
(REINALDIM, 2010, p.120)  
11
KAHN, 2002, s.n.
1 DEBATES PRELIMINARES
O silêncio e a sonoridade das artes plásticas
  10  

1 Debates preliminares: o silêncio e a sonoridade das artes plásticas


1.1 Regime representativo e regime não-figurativo

Se o silêncio pode dar forma à ameaça, imobilidade, morte, repressão e suspense na


literatura e no cinema, certamente o silêncio, ao contrário de um possível inimigo, foi um
fator determinante para que um novo regime estético surgisse nas artes plásticas no séc XX.
Jacques Rancière atribui o surgimento desse regime silencioso nas artes visuais em oposição
ao desenvolvimento do espaço tridimensional na Renascença: no simulacro do espaço
tridimensional se valorizava “o ato do discurso vivo, o momento decisivo da ação e
significado”, na poética clássica havia uma “relação de correspondência à distância entre
discurso e pintura, entre o dizível e o visível, o que dava à ‘imitação’ seu próprio espaço
específico”12. O regime da arte representativa ainda não deixa de obedecer a uma série de
axiomas e princípios dinâmicos que definem hierarquias de formas, gêneros, sujeitos e
discursos apropriados para a mimese.

Figura 1: Piet Mondrian em seu estúdio em Paris, 1933.

                                                                                                               
12
RANCIÈRE, 2004, p. 15
  11  

A ascensão da abstração na arte durante o Modernismo veio para devolver à pintura a


sua própria “mídia”: a bidimensionalidade da tela. No triunfo dessa reconquista, acentuava-se
o contraste que a característica muda da superfície da tela estabelecia com o “vivo” e o ato de
seu discurso13. Ao contrário de uma leitura frívola sobre a dimensão do discurso silencioso da
abstração, Rancière aponta sua função política em seu momento de ascensão. Pela abstração
eram possíveis “novas formas de vida”, ou ainda, a abstração se engendrava em um momento
onde haviam movimentos de reconfiguração fundamental dos objetos (Bauhaus, Dej Stijl, etc)
e cidades (Le Citée Radieuse de Le Corbusier, os planos urbanísticos de Donat-Alfred Agache
para o Rio de Janeiro, etc), junto à proliferação da tipografia, posters, etc. Assim se
necessitava de “uma nova ideia de superfície pictórica como uma superfície de escrita
compartilhada”. Para permitir “novas formas de vida” devia-se afastar do historicismo dos
axiomas e princípios do regime representativo.
É interessante equiparar essas argumentação sobre os regimes estéticos da
representação versus abstração com um escrito de Hélio Oiticica em 1962:

A expressão plástica, assim como a poética, abrange na época moderna outros meios de expressão, ou
melhor, usa elementos ligados a outros meios de expressão e são frequentes as analogias estabelecidas
entre tais meios. Já Kandinsky em 1909 estabelecia bases para a pintura comparando-a à música e usando
o termo “sonoridade” p.ex. para definir e distinguir o sentido interior de cada cor nas suas diversas
qualidades. Essa foi, na verdade, a primeira relação importante a ser estabelecida entre a pintura e outro
meio de expressão como a música. Com a evolução e a transformação estonteantes verificadas nos 50
anos seguintes, não era de se admirar que a pintura fosse usar meios até então jamais cogitados dentro de
sua categoria. Aparentemente o que rege esse fenômeno seria a vontade de invenção e insatisfação dos
artistas em relação aos materiais e processos formais tradicionais; num sentido profundo porém, creio que
o principal fator que o determinou foi a busca do abstrato, a vontade de abolir a figuração, a aspiração a
um novo sentido de espaço, tempo, estrutura, etc. (OITICICA, doc. No. 0182.62 p. 1)

Oiticica se encontra com uma via musical ou sonora dentro de um modernismo que
era cúmplice do regime silencioso (talvez essa seja uma compreensão alternativa para a
peculiaridade da abstração de Kandinsky). Nesse momento, Oiticica e os outros artistas ativos
no movimento neo-concreto já haviam descoberto uma “nova realidade espacial”, uma
realidade que extravasava a mídia bidimensional pelo fator do tempo. O tempo subjetivo era
gerado no que a cor e a estrutura não estavam mais presas à superfície da pintura: Bichos de
Lygia Clark e Bilaterais de Hélio Oiticica as fizeram sair do quadro para o espaço, e nessa
transição, o tempo torna-se um terreno onde o discurso vivo pode se desenvolver. O tempo era
uma abertura para a duração subjetiva, a vivência do espectador no trabalho e se algum ato
                                                                                                               
13
RANCIÈRE, 2004, p.16
  12  

Figura 2: Wassily Kandinsky, Sem Título, 1910. Primeira aquarela abstrata.

discursivo ali se manifestasse, a abstração da cor e a negação da representação o afastariam da


mímese.
Como no entanto garantir que na experiência temporal da cor, a representação não
insistisse retornar por meio de conotações, emoções? É aqui que entra a musicalidade
kandinskiana. A aproximação com a música que fizera Kandinsky tratar a cor como sono-
ridade e trazer através dela a “pluri-dimensionalidade”, era para Oiticica um meio de libertar a
cor, libertar a experiência estética, o “ato expressivo”, sem no entanto voltar à figuração e a
simulação do espaço tridimensional.
O silêncio é uma condição dinâmica e relativa, como Cage já havia argumentado no
relato de sua experiência no interior de uma câmara anecóica ou quando afirma que o silêncio
tornou-se o som do trânsito dos automóveis (cf.capítulo 4). Mas será toda crítica ao silêncio,
toda tentativa de qualificar o tempo na experiência do trabalho de arte, endereçada aos
problemas modernistas do espaço bidimensional? O que está implicado em uma experiência
contemporânea da sonoridade nas artes plásticas?
“Teatralidade” fora o recurso crítico sob o qual Rosalind Krauss em 1975 avaliou
desenvolvimentos específicos da escultura que incorporam o tempo como um elemento
  13  

Figura 3: Robert Morris, Sem Título, 1965-71.

constitutivo de sua estrutura ou das relações que ela estabelece com o entorno14. O termo do
teatro nas artes plásticas estava, no começo da segunda metade do séc XX, dentro de uma
ampla discussão que ficou conhecida em 1967 pela reação crítica do historiador norte-
americano Michael Fried aos textos e obras de artistas minimalistas, em especial Donald Judd
e Robert Morris (fig.3), os quais chamava de “literais”. Art & Objecthood de Fried, além de
uma tentativa de manter valores “autenticamente modernistas”15tratava também de outros
aspectos da teatralidade como a participação física do observador no caso de obras
escultóricas de grande tamanho ou amplo espaço ocupado. O observador, segundo Fried, teria
de se distanciar de uma obra minimalista, tomar posição ou caminhar para participar de uma
“situação” formal proposta pelo artista e nessa relação, a ação do espaço e tempo
degenerariam a qualidade presente (presentness, instantaneousness, objecthood) da obra de
arte. O que preocupava Fried era justamente que as obras de arte “se aceitassem como parte
                                                                                                               
14
KRAUSS, 1977, p. 201
15
FRIED, 1967, In: HARRISON et al; 1993, p.828
  14  

de um conjunto de experiências maior”16, em outras palavras, que a obra de arte habitasse uma
posição ambígua em relação à sua própria objetividade devido à importância do tempo e
deslocamento do corpo do espectador. Assim, o medo de Fried residia no poder desse
conjunto maior de experiências de corroer o estado de “suspensão” (presentness) no qual arte,
segundo ele, deveria habitar, estabelecendo uma perigosa distância entre a prática estética e a
instituição, descrito pelo crítico como “valores autenticamente modernistas”.
Era dando continuidade ao projeto da pureza da abstração de Clement Greenberg
que Fried colocou-se na posição de combater o que apontava como sendo teatral nas novas
vanguardas dos anos sessenta, um julgamento de valor que Krauss na década de setenta já não
defende, demonstrando alguns efeitos positivos de táticas assumidamente teatrais de artistas
como Yvonne Rainer, Robert Morris e Robert Rauschenberg para o desenvolvimento da
escultura17. Não obstante, a música serviu a Greenberg em 1940 como a forma de arte que
oferecia o melhor modelo de pureza:

Mas somente quando o interesse das vanguardas [visuais] pela música as levou a considerá-la como um
método de arte e não como um tipo de efeito é que as vanguardas encontraram o que estavam procurando.
Foi quando se descobriu que a vantagem da música estava principalmente no fato de que era uma arte
"abstrata", uma arte de "forma pura". A música era assim, porque era incapaz, objetivamente, de
comunicar algo mais do que uma sensação, e porque essa sensação não poderia ser concebida em outros
termos que não os do sentido através do qual ela entrou na consciência. [...] Os efeitos da música são os
efeitos, essencialmente, da forma pura, os da pintura e da poesia são muitas vezes acidentais à natureza
formal destas artes. Somente aceitando o exemplo da música e definindo cada uma das outras artes
apenas nos termos do sentido ou faculdade que percebem seus efeitos e excluindo de cada arte tudo o que
é compreensível em termos de qualquer outro sentido ou faculdade, que as artes não-musicais alcançarão
a "pureza" e auto-suficiência que elas desejavam; que desejavam, isto é, contanto que fossem artes de
vanguarda. A ênfase, portanto, deve ser sobre o físico, o sensorial. A influência corruptora da Literatura
somente é percebida quando os sentidos são negligenciados. A última confusão das artes foi o resultado
de uma concepção equivocada da música como a única arte imediatamente sensual. Mas as outras artes
também podem ser sensuais, se elas olhassem para a música, não para imitar os seus efeitos, mas para
pegar emprestados os seus princípios como uma arte "pura", como uma arte que é abstrata, pois é quase
nada, exceto sensual. (GREENBERG, 1940, p. 38)

Novamente se reconhece aqui o embate entre o regime representativo versus regime


abstrato, do qual Greenberg, um dos maiores defensores da abstração no séc XX, destaca a
capacidade sensorial de uma arte para ele verdadeiramente pura. Greenberg está defendendo
uma separação clara entre as artes e atribuindo um sentido específico a cada uma delas: como
considera que a música se endereça exclusivamente à audição e a partir dessa exclusividade
pode desenvolver “formas puras” capazes de produzir uma “sensualidade imediata”, as outras
                                                                                                               
16
KIM-COHEN, 2009, p. 57
17
KRAUSS, 1977, p. 242
  15  

práticas estéticas deveriam tomá-la como exemplo18. Nesse sentido, o discurso de Hélio
Oiticica vai de encontro às considerações de Greenberg, pois para o artista plástico a
musicalidade desempenha na pintura sua qualidade metafísica da experiência do tempo e da
“pluri-dimensionalidade”. Assim, Oiticica já estava propondo uma contaminação da música
nas artes plásticas, desviando-se ao mesmo tempo do que Greenberg chama de Literatura
(regime representativo). Em Ouvindo as Artes Visuais defende-se que foi pela via da
musicalidade que o artista trilhou o acesso à realidade extra-instituição: a favela (ver capítulo
1).

1.2 Práticas no espaço público e no tempo da vida quotidiana

Algumas táticas de pensamento19 de Ouvindo as Artes Visuais estão dirigidas


especificamente ao “conjunto maior de experiências” que um trabalho de arte pode oferecer
além de seu valor de presentness ou objecthood.
Nesse sentido, as práticas contemporâneas que incorporam e se manifestam pelo
“voltar-se a si mesmo” (POINSET apud MORAIS, 1984, p.224) no caso da pintura da década
de oitenta, pela experiência de “voltar-se ao mundo” (OITICICA, doc.No.   0192.66, p.2) ou
por estabelecer um “lugar possível” (FOSTER, 1996, p.302), não se desprendem das políticas
sensíveis que as permitem ou recebem. Um exemplo claro dessa indissociabilidade é a
importância dos lugares onde essas propostas atuam. Pode-se aplicar a diferenciação que
Certeau estabelece entre espaço e lugar nas cidades em Practices of Everyday Life:

Farei aqui uma distinção entre o espaço (espace) e local (lieu) que delimita um campo. Um lugar (lieu) é
a ordem (de qualquer tipo) de acordo com a qual os elementos são distribuídos em relações de
coexistência. Isso assim exclui a possibilidade de duas coisas estarem no mesmo local (lugar). [...] Um
lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Um
espaço existe quando se leva em conta vetores de direção, velocidades, e variáveis de tempo. Assim, o
espaço é composto de cruzamentos de elementos móveis. É de certa forma comandado pelo conjunto dos
movimentos implantado dentro dele. O espaço ocorre quando o efeito produzido pelas operações que o
orientam, situam, temporalizam e o fazem funcionar em uma unidade polivalente de programas
conflituais e proximidades contratuais.[...] Em suma, o espaço é o lugar praticado.” (CERTEAU, 1984,
p.117)

Os discos de Waltercio Caldas e Cildo Meireles estão claramente atuando de forma


crítica nessa distinção quando colocam o lugar – ou a virtualidade da gravação fonográfica –
                                                                                                               
18
É possível que Greenberg esteja argumentando dentro de termos de Hanslick : “No ato de escutar puramente,
nós apreciamos a música em si e não pensamos em trazer nenhuma matéria externa. Mas a tendência de permitir
que nossos sentimentos sejam despertados implica algo estranho à música. Uma atividade exclusiva do intelecto
que resulta da contemplação do belo não envolve a estética, mas uma relação lógica, enquanto uma ação
predominante sobre os sentimentos nos leva [...] a uma relação patológica.” (HANSLICK, 1835, p. 21)
  16  

para gerar novos espaços de ação, utopias (em Sal Sem Carne, a coexistência do Brasil
português e do Brasil indígena em uma mesma hierarquia auditiva, ambos são ouvidos, ambos
discursam) ou de reflexão. O tempo onde o espaço desses discos se desenvolve pressupõe a
vida quotidiana: as mídias de áudio, objetos de apreço e uso pessoal, são construídas dentro
de padrões industriais arraigados aos formatos comerciais de difusão/distribuição, estão
ligados essencialmente ao ritmo da subjetividade na vida urbana contemporânea20. Se são
discos, serão experimentados no sabor cotidiano, apesar de decisões institucionais que
queiram dispô-los em exposições, arquivos, etc. (a própria biblioteca do MoMA que possui
Sal Sem Carne e Mebs/Caraxia de Cildo Meireles tem dentro dela uma área específica para a
audição dos discos separada das salas públicas, sugerindo um espaço privado).
Se o “conjunto maior de experiências” de uma obra de arte passa por essas
significações históricas do espaço e pelo deslocamento político que a prática contemporânea
propõe (um movimento de saída da instituição da arte para o tecido do espaço público ou o
tempo da vida cotidiana), este trabalho desvia de categorias - como sound art, arte sonora,
audio art e outras21. Esse desvio é necessário pois essas categorias emulam por meio da teoria
um espaço crítico/institucional que tem por projeto viabilizar uma “nova escrita
compartilhada”, uma nova escrita que agora se manifesta pelo “som”, a despeito das
conquistas de artistas que expandiram as possibilidades de atuação estética para fora da
instituição, em outras palavras, conseguiram estabelecer posicionamentos alternativos e
consideravelmente dinâmicos/transitórios entre a instituição e a prática artística, em
comparação às relações que se estabeleciam no Modernismo22. Um exemplo da importância
do lugar institucional para a experiência da sound art, são as críticas sobre a (in)adequação
arquitetônica ou acústica do espaço do museu e da galeria de arte:

A questão é, a sound art vem da valorização do meio ambiente total dos sons, tanto os desejados quanto
não desejados. Claro, o dilema é que sua apresentação deveria, em teoria, se esforçar para evitar que sons
estranhos entrem no espaço. Michael J. Schumacher apontou que galerias de arte não fazem nenhuma
questão de se certificar de que outros sons não serão ouvidos (telefones tocando, etc), mas a Diapason
[dirigida por Schumacher] faz. Do mesmo modo, obras de sound art são melhor experimentadas em
exposições individuais; exposições coletivas podem produzir cacofonia [...] Houve algumas experiências
em "casas sônicas", e este talvez seja o futuro da sound art – um prédio com várias salas, cada uma
ocupada por uma obra de som diferente, talvez todas pelo mesmo artista ou por vários (LICHT, 2007,
p.116)  

                                                                                                               
19
Conceito para a produção de “forma histórica” como um projeto de compreensão em (BRITO, 1996, p. 143).
20
STERNE, 2005, Disponível em : <http://www.skor.nl/article-2853-en.html>
21
Cf. LICHT, 2007.
22
Sobre o problema das interações entre artista e instituição no Modernismo, os ensaios de Clement Greenberg
sobre Duchamp (1940, p.122-133) mapeiam pontos importantes como autoria, intenção e contexto. Hal Foster
(1996, p. 306) discorre sobre algumas práticas artísticas da década de noventa que agiam junto à instituição.
  17  

Está implícito nesses relatos que a criação de uma escrita compartilhada para o som
nas artes plásticas está orientada para a fundação de novos espaços institucionais e políticas
estéticas, uma finalidade que não cabe no escopo deste trabalho.
Noções de musicalidade como uma vitalidade diferenciada na prática das artes
plásticas permeiam o exame dos trabalhos dos quatro artistas. Essa vitalidade no entanto, não
está calcada em um sistema musical específico, abrindo-se para relativizações e posições
estéticas e culturais dinâmicas seguindo Blackin (1973):

Estou ciente de que muitas plateias antes e depois da composição da sinfonia A Surpresa de Haydn não
ouvem atentamente à música, e que, numa sociedade que inventou a notação musical, a música poderia
ser proferida hereditariamente por uma elite, sem nenhuma necessidade de ouvintes. Mas se assumirmos
uma visão de mundo na música, e se levarmos em conta situações sociais nas tradições musicais que não
possuem notação, torna-se claro que a criação e a performance da maior parte das músicas é gerada
sobretudo pela capacidade humana de descobrir padrões de som e de identificá-los em ocasiões
posteriores. Sem processos biológicos de percepção auditiva, e sem um acordo cultural entre pelo menos
alguns seres humanos sobre o que é percebido auditivamente, não se pode ter música ou comunicação
musical. [...] Em sociedades onde a música não é escrita, a escuta informada e precisa é tão importante
como uma medida de capacidade musical, quanto é a performance, porque é o único meio de garantir a
continuidade da tradição musical. A música é um produto do comportamento dos grupos humanos, seja
formal ou informal: é som humanamente organizado. E, apesar de diferentes sociedades tenderem a ter
ideias diferentes sobre o que consideram como música, todas as definições são baseadas em um consenso
de opinião sobre os princípios nos quais os sons da música devem ser organizados. Nenhum consenso
pode existir até que haja uma base de experiência comum, e se ao menos que pessoas diferentes forem
capazes de ouvir e reconhecer [os mesmos] padrões nos sons que chegam a seus ouvidos. (BLACKIN,
1973, p.9)

A argumentação de Blackin sobre a percepção sonora serve à natureza deste trabalho


compreendendo que um dos principais objetivos deste é encontrar caminhos para dimensões
compartilhadas entre os modos de fazer das artes plásticas e da música, caminhos que os
artistas aqui analisados puderam apontar ou mapear. Em uma observação superficial das
propostas desses artistas, não há um consenso sobre um sistema de musicalidade específico ao
qual se dirigem: Hélio Oiticica elogia Debussy23 e ao mesmo tempo se torna passista da
Estação Primeira de Mangueira, Waltercio Caldas cita Thelonious Monk no título e superfície
de uma escultura (Thelonious Monk, 1998), Chelpa Ferro utiliza timbres do rock (Cogumelo
Ohms, 2005; Moby Dick, 2006) e do samba (Samba, 2001), Cildo Meireles compõe com um
oscilador de freqüências (Mebs/Caraxia, 1970). Assim, não se restringe em Ouvindo as Artes
Visuais a musicalidade à uma cultura ou tradição específica, não deixando de voltar atenção
teórica e análises mais detalhadas sobre naturezas particulares de musicalidade que podem ser
caras ao estudos de contextos, práticas e intenções artísticas.
                                                                                                               
23
OITICICA, doc.No.0302.54 AHO/PHO
  18  

Compreende-se que, apesar deste trabalho não se ater a distinções entre sistemas de
musicalidade, o conflito entre diferentes compreensões ou práticas musicais, seja em um viés
histórico ou em um contexto sócio-cultural é um importante fator de debate e
desenvolvimento cultural e estético. Em vez de entender tais conflitos como impasses,
situações para as quais devam se procurar soluções ou negociações, a atenção é concentrada
nos paradoxos, dissensos e impossibilidades e ao que esses podem apontar. A razão para isso
é metodológica: um ruído específico pode emergir como evidência do dissenso entre práticas
estéticas que possuem diferentes princípios fundamentais24. Se nos distanciamos dos
paradoxos e focamos em soluções, não se ouve o ruído.
Douglas Kahn compreende que o ruído que é feito por artistas não só pode ser uma
evidência de um dissenso entre sistemas estéticos, como também é uma ideia de ruído, ou
seja, nele estão contidas ou implicadas formas de transgressão, projeção de ideais, abuso,
etc25. O ruído é portanto significativo. Ao contrário de Blackin, para o qual a musicalidade é
uma condição que desconhece distinções culturais de diferentes sociedades, a definição de
ruído de Kahn está atrelada especificamente às atividades das vanguardas artísticas do séc
XX. Nesse esquema também se reconhece o papel ruidoso da inserção de novas tecnologias
nas práticas artísticas, por exemplo, as possibilidades de criação que surgem junto com o
desenvolvimento da gravação de áudio no começo do século XX não são imediatamente
aceitas dentro da tradição ou prática estética que a recebe26. Musicalidade e ruído aqui
portanto não são dois eixos opostos, mas duas condições sob as quais o artista pode atuar na
dimensão audível, não impedindo que ambas atuem simultaneamente em uma mesma
proposição.

                                                                                                               
24
Cf. ATTALI, 1985, p.34
25
KAHN, 1999, p.20
26
Cf. KAHN, 1999, p.123-157
2 HÉLIO OITICICA
musicalidade de 1955 a 1964
  20  

2 Hélio Oiticica: musicalidade de 1955 a 1964

Hélio Oiticica em Ouvindo as Artes Visuais tem uma função especial. Sua trajetória
artística não foi particularmente dirigida ao ouvido, a musicalidade não se faz presente como
sonoridade em seus trabalhos. Quem busca o “som” de Hélio Oiticica somente o encontrará
na apropriação que ele faz de canções e discos ou sob “formas inapreensíveis”: a energia dos
corpos vestidos em Parangolés, a sugestiva presença de uma TV no fim do labirinto do
penetrável Tropicália ou de um pequeno piano em Rhodislândia, a sutileza de uma canção de
Ângela Maria, materiais que roçam e se amassam dentro dos Ninhos. Com muito esforço e
grande risco de falha as Héliotapes, poderiam ser consideradas sonoridade: são fitas-cassetes
com gravações de entrevistas que o artista plástico fez especificamente com o poeta Haroldo
de Campos e Gilberto Gil em 1971. Dada a importância do conteúdo verbal dessas cassetes e
o caráter de documento, as Héliotapes estão mais próximas dos textos e cartas de Oiticica,
que de seus trabalhos propriamente ditos.
Oiticica é especial para esse trabalho pois sua trajetória mostra como incorpora a
musicalidade como um agente ativo em seu pensamento criativo, em seus trabalhos e teoria.
A musicalidade é para ele uma espécie de vitalidade diferenciada que assumirá diversas
formas ao longo de sua trajetória artística, e, no curso da metamorfose dessa vitalidade, seus
trabalhos tornam-se reflexos de como ela é aplicada, de onde foi absorvida, com quem é
discutida. Por esse motivo, fronteiras entre trabalho artístico, vida e texto serão aqui
irrelevantes, insignificantes, já que a musicalidade ou o cultivo de sua vida musical, não as
reconheceu.
É aos dezoito anos (novembro de 1955) que o artista plástico produz seu primeiro
registro sobre essa sensibilidade, um relato absolutamente íntimo sobre música :

A música tem o poder de me acalmar em horas de desespero. É preciso ir além, evoluir até o absoluto,
onde formas e cores não mais se oponham umas às outras. Já comecei, mas este começo nada é um
consagração ao grande todo da pintura, as verdadeiras alturas não atingidas nem por sentimentos nem por
emoção. É preciso sobrepujar o mundo agonizante em que vivo. (OITICICA, doc. No.0282.55, p. 1
AHO/PHO)

Esse trecho já evidencia um detalhe importante e que será significativo nesse capítulo:
a primeira frase abriga as outras como um teto. A música atenua a angústia de ir até o
“absoluto” e é entendido que a música pode ser uma aliada nos grandes objetivos artísticos
que o jovem Hélio já se coloca. Um aliado que antes era íntimo, que estava confundido dentro
dos escritos emocionais de Oiticica (o artista no mesmo ano comenta a beleza da música de
  21  

Debussy usando metáforas), a música passa a fazer parte de um discurso afirmativo - beirando
o político - do artista no fim da década de 70, um ano antes de sua morte:

“Descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a síntese da consequência da
descoberta do corpo: por isso o ROCK p. ex. Se tornou o mais importante para minha posta em cheque
dos problemas chave da criação (o SAMBA em q me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no
início dos anos 60: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro): o
ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q sintetiza no novo conceito de
MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES
são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK!:
a menos q queiram os artistas ditos plásticos continuar remoendo as velhas soluções pré-descoberta do
corpo ao infinito: e não é o q está acontecendo de certa forma?: não seria a essa síntese MÚSICA p
totalidade plástica a q teriam conduzido experiências tão diversas e radicalmente ricas na arte da primeira
metade do século quanto as de MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI? E porque é q a
experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD?: (OITICICA, 1979, s.n.)

É preciso esclarecer como que essa afirmação, além de seu aparente “extremismo”,
está à serviço de um projeto e é significativa para o então estado do trabalho de Oiticica.
Waly Salomão, amigo e participante de diversos trabalhos de Oiticica, argumenta que o artista
queria com essa exclamação “anular especulações escolásticas [...] da relação de seu trabalho
com a música de passadas eras e situar o que lhe interessa no recorte exato, excitante, intenso
e ruidoso do seu tempo metamorfoseado.”.
Esse texto compreenderá a atividade de Oiticica do início de sua carreira até a subida
ao morro em 1964. Essa trajetória, veremos, foi determinante para que sua relação com o
rock, com os tropicalistas e com o experimentalismo de John Cage criasse um lugar de ação
“desintelectualizada”, em outras palavras, que Hélio levasse seu aprendizado formal em
pintura para uma dimensão não-estetizante.
Assim, são objetivos deste capítulo 1) evitar “especulações” e ater-se somente à
natureza da musicalidade tratada por Hélio em seus textos 2) reconstituir as condições que
permitiram que a excitação e a intensidade musicais levassem o artista a um movimento de
“desintelectualização”, à “descoberta do corpo”.
É particularmente fascinante e desafiador mergulhar no universo e história de Hélio
Oiticica, pois mesmo seu movimento de “desintelectualização” é acompanhado pelo próprio
por meio de uma teorização consistente que retrata seu encontro com o samba e o que ficou
nele incorporado das inúmeras experiências que teve na Estação Primeira de Mangueira.
Qualquer interpretação do período de tempo que é comprimido pelos dois textos acima
apresentados, deve levar em conta esses paradoxos sendo flexível e relativa. Talvez, na
dualidade música/artes plásticas conseguiremos não solucionar, mas contornar a extensão
desses paradoxos.
  22  

Assim, para cumprir os dois principais objetivos citados, a incursão à musicalidade de


Hélio Oiticica terá a companhia de Piet Mondrian (Holanda, 1872 – 1944), pintor formulador
do neo-plasticismo e uma das referências mais presentes na trajetória de Oiticica desse
período.

2.1 O quê de Mondrian que levou Hélio ao samba

A carta póstuma que Lygia Clark escreve a Piet Mondrian em 1959 é talvez um dos
símbolos mais difundidos nos textos sobre as artes plásticas no Brasil de como o pintor
holandês exerceu influências e gerou debates no Brasil desde que o construtivismo começou a
se formar no país. Durante a década de cinqüenta, sob o otimismo expansionista e
modernizador do governo Kubitschek, os artistas brasileiros construtivistas viam em
Mondrian uma referência principal em suas discussões nas quais pretendiam levar adiante
diversas de suas prerrogativas sobre o neo-plasticismo, bem como desenvolver questões que
consideravam não-resolvidas27. Um registro da importância dessa referência entre o fim da
década de cinqüenta e começo da década de sessenta, são as sete edições que o Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro dedicou ao legado do neo-plasticismo e aos
manifestos do grupo holandês no qual Piet Mondrian atuava, o Dej Stijl28.
A carta de Lygia Clark de certo modo atualiza esses debates, surpreendendo pelo tom
intimista no qual se dirige ao artista holandês sobre seus conflitos entre o grupo neo-concreto
e as ideias às quais “é fiel”. Nela, Mondrian não é um autor de dogmas estéticos ou ideias
utópicas, é ao contrário referido como artista, como indivíduo. A carta é também significativa
no sentido em que foi escrita no mesmo ano da publicação do Manifesto Neo-Concreto(1959)
de Ferreira Gullar e na iminência do surgimento da Teoria no Não-Objeto (1960), que
sustentariam as ações neo-concretas, nas quais agiam ela própria e Hélio Oiticica:

Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras
vindas em que a própria vida “construída” seria uma realidade plástica…Talvez isto te salvasse da tua
própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas
para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode
sentir como é importante esse desenvolvimento interior [...] então ele jamais poderá atingir sua plenitude
como a rosa que se abre dentro de seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e
feliz…(CLARK, 1959, p. 46)

                                                                                                               
27
RAMIREZ, 2007, p.31
28
Ibid., p. 57
  23  

Qual seria a importância da utopia plástica de Mondrian para Oiticica, levando em


consideração que a carta de Lygia Clark e a fundação das bases das proposições neo-
concretas em 1959 são concomitantes com uma visível transição que o artista faz – através da
cor – do quadro para o espaço ambiental? O que estava contido no neo-plasticismo que pode
ter estimulado a vontade de sua superação? É pela observação dos trabalhos realizados entre
1955 e 1964, assim como a leitura das críticas que Oiticica dirige às prerrogativas do neo-
plasticismo que conseguiremos revelar um pouco mais sobre o papel de Mondrian nessa
transição seminal, e o que isso diz em relação ao papel de sua sensibilidade musical.
O primeiro contato documentado entre o Oiticica e as pinturas do holandês datam de
1953, quando a família Oiticica viaja a São Paulo para a II Bienal Internacional de São Paulo,
para cuja organização teve grande importância o crítico, curador e teórico Mário Pedrosa29.
Pedrosa, uma figura que transitava entre São Paulo e Rio de Janeiro, participava do grupo
liderado por Ivan Serpa (1923-1973), professor de pintura do jovem Oiticica no Parque Lage
a partir de 1953. O Grupo Frente, do qual também eram membros Aluizio Carvão (1920-
2001), Lygia Clark (1920-1988), Décio Vieira (1922 – 1988), Carlos Val (1937- ), João José
da Silva Costa (1931- ), Vicent Ibberson (19--) e Lygia Pape (1927-2004), receberia Hélio
Oiticica como membro em 1955 em sua segunda exposição realizada no recém-fundado
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Junto a Oiticica, unem-se seu irmão César
Oiticica (1939 -), Abraham Palatinik (1928 -), Rubem Ludolf (1932-2010), Elisa Martins da
Silveira (1912-2001) e Emil Baruch (1920- ).
Se existe qualquer dimensão que conecta nesse momento o jovem Hélio Oiticica ao
neo-plasticismo, ela está no problema da estrutura e principalmente, da cor. Suas primeiras
pinturas de guache sobre cartão em 1955 já revelavam uma atitude neo-plástica30: o uso de
cores primárias criando planos não-delineados, a presente composição estruturada pelo grid
que estabelecia eixos verticais e horizontais distribuídos por toda a tela. No entanto, no ano
seguinte já se vêem tonalidades entre as cores primárias em suas pinturas (Sem Título(s) de
1956, Módulo para o Para-Quadro, Desenvolvimento Rítmico partindo do 11), algo que vai
de encontro com uma das direções principais do neo-plasticismo, pois era pelo uso exclusivo
das cores primárias que se extraiam todos os “individualismos” dando espaço à expressão da
cor como “a serena emoção do universal”31, a cor-como-cor, possibilitando que a cor neo-
                                                                                                               
29
FIGUEIREDO et al, 2007, p. 346
30
FAVARETTO, 1992, p. 51
31
MONDRIAN, 1917, in: HOLTZMANN, 1986, p.27-70
  24  

Figura 4: Hélio Oiticica, Módulo para o para-quadro 1956, Óleo sobre compensado, 400 x 280 mm,
César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro

plástica se construísse não por significados ou conotações, mas por relações internas
estabelecidas no espaço do quadro32. É importante lembrar que as prerrogativas de Mondrian
eram exaustivamente descritas e explicadas teoricamente em textos publicados como livros,
ou artigos em revistas européias, sendo as publicações de Dej Stijl e Bauhaus as principais. Se
por um lado isso garantiu que seu pensamento teórico se disseminasse mundo afora, gerou-se
também uma disparidade entre a interpretação de sua obra e de sua teoria; algo sobre o qual
os neoconcretos já tinham um posicionamento claro: o trabalho deveria sempre prevalecer
sobre a teorização.
Pelos avanços que faria em suas próximas séries (Sêco(s) de 1956, Metaesquemas de
1957-58) ficaria ainda mais aparente o afastamento de Oiticica com relação a Mondrian.
Persistia nelas o uso de tonalidades de uma mesma cor, a sobreposição de grids diagonais às
                                                                                                               
32
“Mondrian é quem percebe o sentido mais revolucionário do cubismo e lhe dá continuidade. Compreende que
a nova pintura, proposta naqueles planos puros, requer uma atitude radical, um recomeço. Mondrian limpa a tela,
retira dela todos os vestígios do objeto, não apenas a sua figura, mas também a cor, a matéria e o espaço que
constituíam o universo da representação: sobra-lhe a tela em branco. Sobre ela o pintor não representará mais o
objeto: ela é o espaço onde o mundo se harmonizará segundo os dois movimentos básicos da horizontal e da
vertical. Com a eliminação do objeto representado, a tela – como presença material – torna-se o novo objeto da
pintura. Ao pintor cabe organizá-la, mas também dar-lhe uma transcendência que a subtraia à obscuridade do
objeto material.” (GULLAR, 1960, p.521)
  25  

Figura 5: Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958, Guache sobre papel cartão, 550 x 640 mm,

de eixo horizontal-vertical ou mesmo a rejeição desafiadora que alguns Metaesquemas de


1958 faziam ao grid clássico: neles, diagonais muito próximas ao ângulo reto injetavam a
sensação de instabilidade, jogo e movimento (fig.5). Esse debate que acontecia até os
Metaesquemas no espaço do quadro, tomaria outras dimensões a partir de 1959.
É nesse ano quando Ferreira Gullar junto ao Grupo Frente sintetiza seu conjunto de
proposições no Manifesto Neo-Concreto:

Propomos uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos demais movimentos afins, na


base de suas conquistas de expressão e dando prevalência à obra sobre a teoria. Se pretendermos entender
a pintura de Mondrian pelas suas teorias, seremos obrigados a escolher entre as duas. Ou bem a profecia
de uma total integração da arte na vida cotidiana parece-nos possível e vemos na obra de Mondrian os
primeiros passos nesse sentido ou essa integração nos parece cada vez mais remota e a sua obra se nos
mostra frustrada. Ou bem a vertical e a horizontal são mesmo os ritmos fundamentais do universo e a
obra de Mondrian é a aplicação desse princípio universal ou o princípio é falho e sua obra se revela
fundada sobre uma ilusão. Mas a verdade é que a obra de Mondrian aí está, viva e fecunda, acima dessas
contradições teóricas. De nada nos servirá ver em Mondrian o destrutor da superfície, do plano e da linha,
se não atentamos para o novo espaço que essa destruição construiu. (GULLAR, 1959, p.10)
  26  

O Manifesto Neo-Concreto fora escrito pela rejeição da ideia de “limitar a arte à


expressão de uma realidade teórica”, assim fazendo oposição ao racionalismo e à visão
cientificista da arte – algo que localizavam especificamente nas manifestações do concretismo
paulista33 - favorecendo em vez disso uma expressão “cósmico-orgânica” que permitiria o
acesso ao novo espaço expressivo que a nova arte seria capaz de produzir, em como descreve
Mari Carmem Ramirez, “um nível amplificado de experiência”. É preciso no entanto enfatizar
que Gullar em seu manifesto seleciona o que exatamente do legado de Mondrian que serviria
a essa nova visão: não sua teoria, mas sua obra e sua visão profética de total integração da arte
à vida, a criação de uma “realidade-plástica”34. Mas mantenhamos no horizonte o leve
pessimismo da carta de Lygia Clark – justificado por ela pela pressão de uma “desordem entre
a ordem social e prática” - com relação à utopia de Mondrian, pois ele nos será útil para
argumentar como Oiticica praticou seu próprio movimento de desintectualização, seu trajeto
pessoal no desprendimento das teorias e o encontro com o samba.
Foi nesse “novo espaço expressivo “ que entre 1959 e 1960, Oiticica desenvolve a
série Relevos Espaciais, planos de cor que não se limitam ao espaço retangular da tela,
expandem-se para fora de seu flatness, criando, pela cor, suas próprias estruturas complexas.
Neles, “estrutura e cor nascem simultaneamente”35. Relevos Espaciais já ensaia uma possível
transição para o espaço pelas diagonais que querem escapar à forma retangular da tela, e pela
maneira incomum de exibi-las, penduradas para que flutuassem no espaço. As tonalidades de
uma mesma cor reaparecem aqui de outra forma: os planos são pintados em diferentes
tonalidades (fig.6), o que inevitavelmente faz com que seja necessário o movimento do
espectador no espaço para a apreensão da totalidade da cor. Nela, portanto, está intrínseca
uma duração da experiência.
Ferreira Gullar identificou na Teoria do Não-Objeto (1960) que haveria de fato na
produção neo-concreta um “ponto comum entre a escultura e a pintura”36, como identificado
por ele nos quadros de Lygia Clark (que se libertam do espaço do quadro) e as esculturas de
                                                                                                               
33
Um exemplo de como Mondrian era interpretado pelo concretismo paulista, é o texto do historiador Walter
Zanini sobre o pintor austro-brasileiro Lothar Charoux, membro de grande importância do Grupo Ruptura:
“Mundo Mecânico: O que levou [Lothat Charoux] mais depressa à pintura desprendida da objetividade, foi,
segundo ele, a inspiração que lhe trouxe as coisas mecânicas – o entusiasmo pelas ‘linhas exatas das máquinas,
cada qual com sua razão de ser’. ‘Nada entendo da técnica moderna’, afirma Charoux. Mas olha-a como se faz
ante um belo quadro. Acha-a detestável sob o ponto de vista da manualidade, mas sauda-a como uma
complementação necessária do homem. O namoro pelas belezas geométricas dos instrumentos e das invenções
concebidas com espírito novo, atuaram em seu espírito tanto quanto anteriormente, Van Gogh e também Braque,
Léger e Klee. Hoje esse gusto evoluiu para Mondrian.” (ZANINI, 1953, p.34)
34
GULLAR, 1959, p.10
35
OITICICA, doc.No.0017.59. p. 2, AHO/PHO
36
GULLAR, 1960, p. 522
  27  

Amilcar de Castro (que se libertam da base e da massa). Esse avanço formal no trabalho de
Hélio Oiticica no entanto, não aconteceria sem que o artista discutisse suas próprias ações
nessa série de trabalhos, sob a noção de “cor tempo”:

Com o sentido de cor tempo tornou-se imprescindível a transformação da estrutura. Já não era possível a
utilização do plano, antigo elemento de representação, mesmo que virtualizado, pelo seu sentido “a
priori”, de uma superfície a ser pintada. A estrutura gira então no espaço, passando ela também a ser
temporal: estrutura – tempo. Aqui a cor e a estrutura são inseparáveis assim como o espaço e o tempo,
dando-se, na obra, a fusão desses quatro elementos, que para mim são dimensões de um único fenômeno.
(OITICICA, doc n.0015.sd, p. 1 AHO/PHO)

O que Oiticica quer com a cor tempo em Relevos Espaciais é dar-lhe independência de
uma função representativa. Aqui talvez não deveríamos pensar somente a partir do ato de
criação, da expressão criativa, mas também em como se desenvolve a recepção da cor no
observador e como o tempo pode transformá-la. Essa era uma preocupação permanente de
Oiticica, e com ela criticou as expectativas clássicas acerca da experiência da pintura no texto
Cor Tempo e Estrutura, das quais a que estava mais consistentemente combatendo era a
ameaça de se abrir, na atitude contemplativa entre sujeito e obra, uma dualidade inevitável à
natureza analítica desse espaço. Para o artista, nessa dualidade clássica estabelecia-se um
ponto estático de receptividade no qual o espectador olharia para dentro da tela buscando
valores de infinitude, buscando a “forma ideal” e imutável. Para ele, o modernismo de
Mondrian, Malièvitch, Klee e Kandinsky se provou tanto um agente transformador dessas
atitudes quanto um sintoma de que o homem moderno não estaria mais no século XX
buscando por resoluções de suas contradições a partir de formas idealizadas de espaço37.
O valor do tempo para Hélio Oiticica, em parte calcado na filosofia de Bergson38 em
Matéria e Memória (a durée), estaria assim trabalhando no sentido da integração absoluta
entre obra e espectador e na inserção completa da cor na realidade, como algo concreto, não-
representativo.

O tempo no qual nos vemos agir, e no qual é útil que devamos ver a nós mesmos, é uma duração cujos
elementos são indissociáveis e justapostos. A duração na qual agimos é uma duração na qual nossos
estados se derretem uns nos outros. É dentro disso que devemos tentar nos substituir pelo pensamento, no
caso excepcional e único quando especulamos sobre a natureza íntima da ação, isto é, quando estamos a
discutir a liberdade humana [...] Pode, então, ser possível, em certa medida, transcender o espaço sem sair
da extensão, e aqui nós realmente devemos ter um retorno ao imediato, uma vez que realmente
percebemos a extensão, ao passo que o espaço é apenas concebido, - sendo uma espécie de diagrama
mental. (BERGSON, 1911, p. 243)

                                                                                                               
37
OITICICA, doc.No. 0182.62, p.10, AHO/PHO
38
OITICICA, doc.No.0015.sd, AHO/PHO
  28  

Figuar 6: Hélio Oiticica, Relevo Espacial (amarelo), 1960, emulsão de óleo sobre madeira, Coleção de César
and Claudio Oiticica, Rio de Janeiro. Foto: ARS, NY and DACS, London 2002.

O tempo no entanto, tampouco deveria ser tratado analiticamente: é um tempo


psicológico, ou vivência, responsável por liberar subjetividade no ambiente39. Hélio Oiticica
menciona que isso o aproxima da “vitalidade pura”40 de Mondrian, já que diante da cor tempo
o homem “acha seu tempo vital”. É assim que a duração começa a degenerar a ideia de
objeto.

2.1.1 Entre a pintura e a música neo-plástica

Antes de discorrer sobre como o desenvolvimento artístico de Hélio Oiticica


aproxima-se do tempo para ocupar o espaço, será útil descrever como Piet Mondrian havia
formulado possibilidades do tempo integrar-se à experiência das artes plásticas.
Três anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, Mondrian assiste a um concerto
futurista no Théâtre dês Champs-Elysées em Paris. O evento fora publicamente repudiado
                                                                                                               
39
RAMIREZ, 2007, p. 50
  29  

pelos dadaístas devido ao entusiasmo que os Intonarumori, máquinas de ruído do pintor-


compositor Luigi Russolo, expressavam pela guerra41. Os sons bélicos produzidos por
martelos, disparadores, trovoadores, apitos e ladrões do futurista impressionaram Mondrian a
ponto de escrever uma cuidadosa crítica sobre o concerto42 (De Bruiteurs Futuristes Italiens’
en ‘Het’ niuewe in de muziek), onde o pintor não deixaria de expressar seu descontentamento
na persistente concepção tradicional de música que Russolo praticava: todo esse barulho
estava em função das formas de harmonia, ritmo, melodia e contraponto conhecidas e
emulando o movimento de intérpretes quando obedeciam às mesmas leis de execução comum
como os violinos, violoncelos, flautas, oboés e outros instrumentos da orquestra tradicional43.
Isso não bastava a Mondrian. De certo modo o misto de entusiasmo e insatisfação com
os ruídos futuristas o levaram a escrever sua própria proposta, a música neo-plástica. Neo-
Plasticismo: Sua Realização na Música e no Teatro do Futuro (Het Neo-Plasticisme [De
Nieuwe Beelding] en zijn (hare) realiseering in de muziek”) de 1922, fora a única publicação
na qual o pintor ensaia uma possibilidade sonora para a expressão do Neo-plasticismo, ainda
que não houvesse em nenhum momento tentado executar musicalmente o que propunha44.
Nesse ensaio, Mondrian parte do ideal de que como a pintura, a música deveria ser
“plástica”, em outras palavras, não-representativa. O som deveria ser “som-como-som”
despido de individualismos como gestualidade ou conotações. Para isso, deveria promover
uma conciliação entre uma dualidade fundamental: som e ruído. Por som, Mondrian
compreendia simplesmente “tons”, o tom seria o equivalente à cor na pintura. Por ruído, que
equivalia aos brancos, cinzas e pretos, não são claras as direções dadas pelo pintor, com
exceção de que deverá ser um ruído “percussivo” e que substituirá o “silêncio da antiga arte”,
“porque o silêncio não produz nenhuma imagem”45. Som e ruído seriam controlados por
“novos instrumentos”, um aparato elétrico, em uma “composição de relações equilibradas”46.
O que não poderia acontecer, era justamente o que o havia desagradado nas composições dos
                                                                                                               
40
OITICICA, doc.No. 0015.sd, p. 3, AHO/PHO
41
HOLTZMANN, et al,1986, p. 48
42
MONDRIAN, 1921, In: HOLTZMANN, 1986, p.148-155
43
CAROL-BÈRARD, 1929. In: KAHN, 1999, p.130
44
KAHN, 1999, p. 108
45
MONDRIAN, 1922, In: HOLTZMANN, 1986, p.161
46
Segundo Karin von Maur em Mondrian and Music (1980, p. 288), a amizade com o compositor e pianista
Daniel Ruyneman motivou o pintor a conceber essa possibilidade estética para a renovação musical. Segundo
Maur, Ruyneman praticava experimentos musicais similares às descrições sobre os “extremos” de Mondrian.
  30  

bruiteurs: a continuidade das ideias clássicas da música europeia e da hegemonia dos


materiais que requerem o gesto do intérprete47.
Mondrian, era enfático nessa questão quando acusava a música clássica de se
constituir em um sistema “predominantemente individualista”, no sentido em que nele o
intérprete teria “liberdade completa” para enfatizar ou diminuir sons específicos, impedindo
que o universal se expressasse pela sonoridade. Para que a música se tornasse
verdadeiramente plástica, acreditava, “a intuição pura precisa ser manifestada diretamente por
uma visão estética clara, provinda do que o homem tem de universal”.
Assim, sua proposta era que a música caminhasse para a abstração: a composição,
assim como a pintura, deveria ser pensada a partir da proximidade dos extremos (cor e não-
cor, som e ruído) com o objetivo de obter relações de equilíbrio em relação à duração e
intensidade sonora. Dessa maneira, pela aproximação dos opostos é que se poderia tomar
distância das formas da natureza. Para Mondrian, era somente negando a mimese das formas
naturais que se chegaria a valores universais, por isso, via a possibilidade da emergência da
música neo-plástica na oposição entre a dinâmica do jazz e os materiais da orquestra
tradicional48.
Mas seu texto, como muitos outros, caminha para um final de teor profético: para
Mondrian a música e a pintura neo-plásticas serão no futuro uma mesma manifestação. Deve-
se levar em conta o teor utópico e ensaísta de seus vislumbres antes de pensar em seus termos
como dimensões comuns possíveis entre as artes plásticas e a música:

A pintura neo-plástica e a música neo-plástica terão, assim, a mesma expressão plástica. No futuro, ainda
será possível uma outra arte: uma arte situada entre a pintura e a música. Uma vez expressada por cor e
não-cor, será a pintura, mas porque as cores e não-cores serão mostradas no tempo e não no espaço, ela
irá se aproximar da música. Mas porque o tempo e o espaço são apenas expressões diferentes da mesma
coisa, na concepção neo-plástica de música, ela é plástica (i.e. expressão no espaço), e a “plástica”
(pintura) é possível no tempo. Assim, planos retangulares de cor e não-cor podem ser projetados
separadamente e sucessivamente. Os planos e sua composição não podem ser tirados diretamente da
pintura neo-plástica, já que sua expressão no tempo (como na música) tem necessidades diferentes. A
mesma imagem estética deve ser criada por um uso diferente dos meios plásticos e por outro tipo de
composição. Para nós assimilarmos essa imagem estética pela abstração, provavelmente será necessário
atingir um estágio de evolução abstrata, mesmo para além do que foi exigido pela pintura neo-plástica e
música: a verdadeira unidade do "físico-espiritual". (MONDRIAN, 1922a, p.163)

Eis que pelo caminho da música e por inspiração no Futurismo de Luigi Russolo,
Mondrian calculou as conseqüências da incursão do tempo na pintura (é de se admirar como
                                                                                                               
47
“A bas l’harmonie traditionelle!”, texto Mondrian de 1924 enviado para o editor do jornal romano Noi e
nunca publicado, era segundo Harry Holtzmann dirigido aos Futuristas.
48
MONDRIAN, 1922, In: HOLTZMANN, 1986, p. 156
  31  

Figura 7: Piet Mondrian, Composition No. III Blanc-Jaune


1935-42; Oil on canvas, 101 x 51 cm; Christie's, New York

o entusiasmo pelo som da guerra, a negociação entre guerra e música49, tiveram grande
participação nesse movimento teórico de Mondrian). Mas o que isso nos diz sobre Hélio
Oiticica? Talvez que ele tenha dado mais atenção aos ensaios onde Mondrian prenuncia as
conseqüências da integração entre pintura, arquitetura e cidade50, já que comenta em um de
seus trechos de diário no Natal de 1959, atribuindo uma qualidade “profética” às palavras de
                                                                                                               
49
KAHN, 1999, p 59.
50
Cf. MONDRIAN, 1922; Id., 1926, In:HOLTZMANN, 1986
  32  

integração completa entre pintura, arquitetura e escultura, “apontando para o fim da arte como
uma coisa separada do entorno ambiente, que é na verdade a realidade plástica”51.
No entanto, algo sobre o neo-plasticismo ainda descontenta Oiticica. Em 1960,
Mondrian para ele é ainda um artista que “em última análise, é ainda representativo; poder-se-
ia dizer que a sua é uma metafísica da representação; toca portanto o ponto crucial da
transformação, porém não o ultrapassa, pois não inclui o “tempo” na gênese das suas obras.”52
Somente o tempo traria continuidade real ao movimento que se iniciou no Cubismo e se
desenvolveu no neo-plasticismo; essa era uma opinião consensual de Lygia Clark e Oiticica53.
São questões que percorrem seu trabalho nas primeiras ocupações efetivas da cor no espaço,
pressupondo a duração da experiência subjetiva, a vivência: assim constrói Núcleos e os
primeiros Penetráveis.
Talvez a extrema teorização e pouca prática de Mondrian na questão da música neo-
plástica tenha ajudado para que Oiticica nesse momento não tenha comentado sobre ela ou
sequer a conhecido – algo condizente com a postura neo-concreta, ou seja que prefere a
prática à intelectualização excessiva. Porém, na mesma medida em que Oiticica critica
Mondrian em sua concepção “estática” de espaço em diversas anotações, busca nele uma
volta à “raiz” do pensamento neo-plástico54 com o objetivo de romper definitivamente com a
representação e possibilitar a vivência, ou integração espectador-obra. A “raiz” de Mondrian,
que é muitas vezes descrita por Oiticica como “vitalidade pura”, está também presente e
descrita em Neo-Plasticismo: Sua Realização na Música e no Teatro do Futuro sob a forma
de “unidade físico-espiritual”. Esse é o objetivo máximo do Neo-plasticismo, a resolução da
dualidade entre o material e o espiritual. Saberemos agora que a integração físico-espiritual,
tanto para Mondrian quanto para Oiticica, inevitavelmente passa pelo tempo:

Havia aí uma relação do que ele [Kandinsky] chamava espiritual; a musicalidade é interior, não
objetividade, essência. É a estrutura interna da pintura, a sua pureza suprema, seu esteio espiritual, o
começo também da sua corporificação. A matéria é impenetrável, opaca, o artista lhe dá forma e vida
interior, mais, ou menos universal, antropomórfica ou espiritual (Kandinsky), geral, épica e clássica, a
forma do pensamento da época. Quanto mais universal, menos expressa o artista a sua pequenês
individual, suas maneiras, mas essa universalidade é não dogmática, não vem de fora, mas do cósmico de
dentro, a identificação do cosmos com o homem, no seu interior. Não era o outro o horror de Mondrian
pelo individualismo exacerbado do artista e a sua vontade do universal. Mondrian achou para sí
constantes universais plásticas para expressar essa concepção universal que tinha da pintura (horizontal-
vertical, cores primárias, etc), mas os que lhe seguiram as tomaram como dogma, e o que era universal
voltou a se tornar novamente relativo e até para expressar sentimentos individuais (pessoais),
esteriotipações, automatismos, etc. A arte derivada de Mondrian, (chamada “abstrato-geométrica” e
                                                                                                               
51
OITICICA, doc. No.0182.59 p.5 AHO/PHO
52
OITICICA, doc. No.0182.60 p.1 AHO/PHO
53
Cf. OITICICA, 1962 e CLARK, 1996.
54
MANIFESTO NEOCONCRETO, 1959, p.10
  33  

“concreta”) passou a carecer tanto de universalidade como de organicidade, de força criadora, de


invenção espontânea. Essa foi a maior perda: espontaneidade. (OITICICA, doc. No. 0182.60, p. 4-5
AHO/PHO)

Essa anotação de junho de 1960 intitulada Inter-relação das Artes mostra uma nova
inclinação estética de Hélio Oiticica: a musicalidade da pintura de Kandinsky. Oiticica é
consciente de que essa musicalidade não está “transposta” para a pintura, não é uma
representação de temas musicais que Kandinsky executa. Ela se estabelece a partir de
“relações intrínsecas” da “sonoridade da cor” e sua relação com a linha, o plano e ponto, e
isso, para Oiticica, vai em direção ao não-objeto, “é o verdadeiro elemento de não-objetivação
da sua pintura”, “altamente transcendental”. Mais importante que isso, a musicalidade de
Kandinsky se torna para Oiticica uma força estética contrária à perda da espontaneidade que
detectou no legado de Mondrian. Em seu entendimento, “Wassily Kandinsky através da sua
experiência, pode e deve ser considerado o pai de todas as evoluções posteriores da arte
abstrata, mesmo, [está] hoje convencido, da de Mondrian.”55:

Ao contrário de Mondrian, que reduziria o espaço à horizontal-vertical, e o movimento à justaposição dos


planos com as linhas e a diferença da cor nessa estrutura horizontal-vertical, Kandinsky abarca o espaço
em todas as direções (para ele a horizontal-vertical seria a estatização e o enquistamento do movimento.
O espaço kandinskiano se dá num perpétuo movimento, onde oticamente não pode o olho parar pois a
estrutura o empurra de um ponto a outro da tela. (OITICICA, doc.No.0182.62, p.6, AHO/PHO)

De acordo com Celso Favaretto a influência kandinskiana vai se fazer visível em 1961
com o Projeto Cães de Caça. Exposto pela primeira vez como maquete em Novembro
daquele ano no MAM-Rio, o projeto de penetrável ganha um texto de Mário Pedrosa que o
descreve como “’obras’ onde se entra empurrando ou fazendo girar paredes, subindo escadas
ou contornando placas e painéis, caminhando, como num labirinto, para... encarar cores,
sentir o reflexo de cores, pisar cores, viver cores.” Como um de seus primeiros penetráveis
projetados para serem construídos como jardins, Projeto Cães de Caça dá independência à
cor no espaço, como coisa real apreensível pelo deslocamento do espectador-visitante:
“assim, superando os desenvolvimentos construtivos modernos, a cor deixa de agir apenas por
contrastes de tonalidades puras, propondo-se como estrutura e duração”56

                                                                                                               
55
OITICICA, doc.No. 0182.62, p.1, AHO/PHO
56
FAVARETTO, 1992, p.77
  34  

Figura 8: Hélio Oiticica, Maqueta para Projeto Cães de Caça, 1961, Emulsão de óleo sobre madeira; areia
1615 x 1610 x 295 mm

Com as maquetes dos Penetráveis começa-se então a pensar também na questão do


lazer, ou seja, em uma qualidade diferenciada de tempo vivido (talvez um passo além da
vivência), já que sua natureza quasi-arquitetônica permite diversas intensidades e modalidades
de experiência coletiva. Diante dessas possibilidades, Hélio gostaria inclusive que se
realizassem concertos ao ar livre dentro do penetrável do Projeto Cães de Caça, ao qual
também se integravam o Poema Enterrado de Ferreira Gullar e o Teatro integral de Reynaldo
Jardim, em busca de uma “reintegração do espaço e das vivências cotidianas nessa outra
ordem espaço-temporal e estética, mas, o que é mais importante, como uma sublimação
humana.”57 Cor e som, sob termos kandinskianos já estavam operando no pensamento de
Oiticica em 1960 como uma mesma “grande ordem”:

É preciso dar a grande ordem à cor, ao mesmo tempo que vem a grande ordem dos espaços
arquitetônicos. A cor, no seu sentido de estrutura, apenas pode ser vislumbrada. A grande ordem nascerá
da vontade interior em diálogo com a cor, pura, em estado estrutural; é um instante especial que, ao se
repetir, criará essa ordem; são instantes raros. A cor tem que se estruturar assim como o som na música; é
veículo da própria cosmicidade do criador em diálogo com o seu elemento; o elemento primordial do
músico é o som; do pintor a cor; não a cor alusiva, “vista”; é a cor estrutura, cósmica. (OITICICA, doc.
No. 0182.60, p. 4-5 AHO/PHO)

                                                                                                               
57
OITICICA, doc.No.0182.61, p. 08, AHO/PHO
  35  

É interessante perceber como em nenhum momento Hélio Oiticica especifica sobre


quais sons está se referindo, qual de fato é esta música, ou que tipo de concerto gostaria que
acontecesse entre as paredes de Projeto Cães de Caça. “Som”, “concerto” e “música” são
categorias que beiram o abstrato. Aparentemente, ela não tinha a obrigação estética neo-
plasticista de exprimir pela sonoridade, o “universal”. Ao contrário, para Oiticica a música é
um ideal significativo em seu caráter metafísico: é o próprio tempo, é uma analogia para como
tratar a experiência da cor no espaço, é sinônimo de “sublimação humana”, do “cósmico”. Se
pensarmos nas prerrogativas de Gullar no Manifesto Neo-concreto e na Teoria do não–objeto,
a música seria um caminho para a não-objetivação. O que Hélio Oiticica se refere por
musicalidade, no entanto, logo se mostrará algo extremamente dinâmico, não estando isolado
na imobilidade das teorias.

2.2 1964 – O encontro com a Mangueira

Até o período do Projeto Cães de Caça, Hélio, que já havia feito grandes avanços
principalmente em relação ao caráter coletivista e ambiental que se via agora em seu trabalho,
ainda não havia criado uma via estética efetiva para que a cor, como queria, se tornasse
espontânea. A experiência da cor em suas maquetes ainda estava sendo construída por meio
de planos retangulares, no sentido construtivo ou mesmo neo-plástico. Nessas maquetes ainda
não se percebia a “organicidade”, “força criadora” a “invenção espontânea” que já em 1960 o
artista vislumbrava58. A “crise do retângulo”, “crise da estrutura total” para Lygia Clark era
um sinônimo de esgotamento:

Estou mais do que convencida sobre a crise do plano (retângulo) – Mondrian, o maior de todos, fez com o
retângulo o que Picasso fizera da figura. Esgotou-o de vez. Só que pela própria época a crise deslanchada
por Mondrian é mil vezes mais séria e maior que a deslanchada por Picasso. É a crise da estrutura – não
estrutura formal como sempre houve mas estrutura total - é o retângulo que já não satisfaz como meio de
expressão. Basta ele ser colocado na parede que ele estabelece automaticamente o diálogo sujeito/objeto
(representação) pela sua própria posição – este pessoal jovem está na mesma relação dos jovens após-
guerra – (cujos valores caíram por completo). Daí nasce a meu ver o ato somente imediato – todos te dão
a possibilidade de atuar na obra (mas o seu gesto é completamente destituído de expressividade. É o
brinquedo [...] (CLARK, 1996, p.17)

Em 1964, o artista caminhava para uma crise ainda maior que se manifestaria em
diversas ordens59, algumas se exacerbariam ainda mais em razão do Golpe Militar. É sobre as
ordens dessa crise que trataremos nessa segunda parte, onde Hélio Oiticica já havia
incorporado o tempo subjetivo (vivência) em seus trabalhos.
                                                                                                               
58
OITICICA, doc.No. 0182.60, p.6, AHO/PHO
59
VIANNA, 2000, p.5
  36  

2.2.1 Mondrian, o jazz e a espontaneidade

Piet Mondrian visitava anualmente a Holanda, seu país de origem, depois de ter se
mudado em 1912 a Paris. A Holanda era então um país conservador que em 1926 criava
projetos para banir o Charleston, dança que acompanhava o recém-chegado jazz dos Estados
Unidos, considerada pelas autoridades “sensual demais”60. Mondrian, um artista que tinha
necessidade do ambiente urbano e “sua energia”, um freqüentador ávido do bar - os clubes
noturnos onde se ouvia o jazz em Paris - ao saber dos planos do governo, afirmou à revista
holandesa Der Telegraaf que a proibição do Charleston seria “um motivo para nunca mais
voltar” ao país61.
Era o jazz e a pintura neo-plástica que Mondrian via como “expressões de uma nova
vida”, como escreve em O Jazz e o Neo-Plástico (“De jazz en de Neo-Plastiek”) em 1927:

[O Jazz e o Neo-Plástico] expressam ao mesmo tempo a alegria e a seriedade que estão ausentes em
grande parte da nossa esgotada cultura. Eles aparecem simultaneamente com movimentos em várias
esferas que estão tentando romper com a forma individual e a emoção subjetiva: não aparecem mais como
"beleza" mas como "vida" possível através do ritmo puro, que expressa unidade por não ser fechado.
(MONDRIAN, 1927, p. 217)

Mesmo em seu artigo anterior sobre música Neo-Plasticismo: Sua Realização na


Música e no Teatro do Futuro, Mondrian já via no jazz o potencial da música puramente
plástica. O elemento no qual agora o texto mergulha é o ritmo: é por ele que se manifestará o
“universal”. Cosmopolita, o artista reconhece que a metrópole possui um “ritmo aberto”, “ela
oferece a ilusão do ritmo universal”, no entanto ele não é equilibrado como deveria ser a
realidade plástica: o ritmo da cidade expressa a opressão do trabalho, visual e auditivamente.
Assim, não haveria um antídoto mais libertador que o jazz:

Eles opõem a alegria à seriedade, eles põe um sorriso quando dançam e ficam sérios quando vão
trabalhar. No bar, a felicidade e a seriedade são uma só. O equilíbrio existe, pois tudo é subsumido pelo
ritmo. Não há vazio, nem tédio: o ritmo preenche tudo sem criar uma nova opressão – ele não se torna
forma. Nenhuma ligação com o que é antigo permanece, pois no bar só o Charleston é visto e ouvido. A
estrutura, a iluminação, a publicidade - mesmo em seus desequilíbrios - servem para completar o ritmo do
jazz. Toda feiúra é transcendida pelo jazz e pela luz. Mesmo a sensualidade é transcendida. Livre de
limitar forma, a sensualidade se abre. O mesmo acontece com a espiritualidade. Os dois opostos têm a
mesma ação em cada uma de suas esferas. A sensualidade aprofundada ao extremo é espiritualidade,
espiritualidade consciente se expressa sensualmente. (OITICICA, doc. No. 0253.66, p. 4-5 AHO/PHO)

Os elementos do universal neo-plástico foram codificados do jazz por Mondrian


através do ritmo. O jazz, entenda-se, não era somente a música, mas todo o ambiente: o
                                                                                                               
60
HOLTZMANN, 1986, p.217
  37  

Figura 9: Piet Mondrian. Broadway Boogie-Woogie. 1942-43. Óleo sobre tela, 127x127cm.  

Charleston, as dançarinas, o bar, as garrafas de bebida e copos “que estão imóveis nas
prateleiras mas se movem em cor, som e luz”. O ambiente do bar de jazz “não provocava
nenhuma emoção particular” e Mondrian podia comprová-lo pela ausência de linhas sinuosas
da dança do Charleston. Mondrian não se prendia a qualquer escrutínio formal do jazz, que
considerava “livre de convenções”, “livre da opressão da forma”. Admirava sim – com sua
estima universalista - a possibilidade de existência de algo como o jazz no mundo, algo para
ele de enorme significado cultural: o jazz era um sinal de que a cultura moderna estava
“progressivamente livrando a vida da opressão da matéria”.
                                                                                                               
61
von MAUR, 1980, p.289
  38  

É de se imaginar o entusiasmo de Mondrian quando em sua primeira noite na


mudança para Nova Iorque em 1940, é apresentado por Harry Holtzmann à música do piano
boogie-woogie de Albert Ammons, Pete Johnson e Meade Lux Lewis (Holtzmann conta que
Mondrian imediatamente bateu palmas e gritava “Enormous! Enormous!”62). O gênero de
blues daria nome à duas de suas últimas pinturas: Victory Boogie-Woogie e Broadway
Boogie-Woogie que conclui em 1943.
Revistas por Clement Greenberg em sua coluna no jornal The Nation quando são
compradas pelo MoMA no mesmo ano, as pinturas são para o crítico um salto radical no
trabalho do artista: o ritmo - primeira característica da pintura apontada no texto - vem de seus
pequenos retângulos que criam um xadrez, um ritmo stacatto, “significando jazz”. Sobre as
cores, Greenberg comete um erro que é revisto pelo mesmo na coluna da semana seguinte: as
não-cores branco, cinza e preto nas quais foram pintadas alguns dos pequenos retângulos
acompanhados daqueles efetivamente coloridos, foram confundidas pelo crítico como
tonalidades de amarelo e roxo, o que significaria que Mondrian estaria quebrando um de seus
princípios fundamentais: a universalidade da cor primária. Apesar disso, o grande “triunfo” da
pintura para Greenberg, é como o pintor conseguiu combinar o ritmo de seu frenético grid
com um grande senso de equilíbrio. Fica nessas pinturas revelado que o que Mondrian destila
da experiência sensual do jazz e do boogie-woogie, até nos últimos trabalhos de sua vida, é
persistentemente reorganizado em seus princípios estéticos nos quais o equilíbrio no sentido
da neutralidade define todos os eixos de expressão.

2.2.2 O morro e a virada da vivência

Nesse momento, precisamos recuperar o pessimismo da carta de Lygia Clark quando


se refere à utopia da realidade plástica de Mondrian: “pois eu, meu amigo, não sonho [em
uma realidade plástica] porque não acredito. Não por excesso de realismo mas para mim o
coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social”. É necessário relembrar
que essa carta não foi escrita a Mondrian. A artista escreveu a carta a si própria, como uma
anotação em seu diário. Assim, Lygia Clark teatraliza essa situação utilizando Mondrian
como um referente para definir melhor suas ações dentro do neo-concretismo:

[...] você [Mondrian,] já sabe do grupo neo-concreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é
penoso[...]. No momento em que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver. Era a
                                                                                                               
62
HOLTZMANN, 1986, p. 2
  39  

tomada de consciência de um tempo-espaço, realidade nova, universal como expressão[...] Hoje a maioria
dos elementos do grupo se esquecem dessa afinidade (o mais importante) e querem imprimir sentido
menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa
tentativa de dar continuidade superficial a este movimento. (CLARK, 1959, p.48 )

Pela necessidade que via em definir seu projeto artístico individual em relação aos
outros neo-concretos, Lygia Clark justifica porque não crê na utopia neo-plástica. Está contida
em sua fala a consciência de que é impossível dissociar a descoberta da vivência (o tempo
subjetivo na experiência da obra de arte) da realidade material, uma realidade inevitavelmente
forjada por uma situação histórica e por ordens sociais (“o coletivo só existe na razão desta
desordem de ordem prática e social”). Nesse momento, Lygia Clark não está se referindo à
realidade de desigualdade e subdesenvolvimento do país. O descompasso que via na recente
atitude de alguns membros do grupo neo-concreto tinha um sentido mais “ético” para com a
“nova realidade espacial”: “Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar
no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra...”63. A “nova
realidade espacial” se encontrava justamente na vivência, no tempo subjetivo. Não ser fiel a
ela, na visão de Lygia Clark, seria o fim de uma “identidade imprescindível” para o
movimento neo-concreto.
Essa consciência sobre o descompasso ético da vanguarda vai assumir dimensões cada
vez mais políticas para Oiticica após 1964, e sintetiza-se na forma de uma pergunta no
Esquema Geral da Nova Objetividade: “[...] como, num país subdesenvolvido, explicar o
aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como uma alienação sintomática, mas
como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Como situar aí a atividade do artista?”.
Nesse momento – 1967, quando fora escrito O Esquema – o tempo subjetivo e a vivência nas
obras de Hélio já estavam inseridos em um contexto de opressão e cerceamento ideológico,
contexto que, por um compromisso “de ordem ético-individual”, deveria ser rebatido por
propostas “experimentais”, “não-acabadas”, “abertas”. Levando sempre adiante as
proposições de Ferreira Gullar de que o artista deveria ser um “modificador de
consciências”64, é em 1966 que essa nova ética é organizada sob o Programa Ambiental:

Já afirmei e torno a lembrar aqui: o meu programa ambiental a que chamo de maneira geral Parangolé,
não pretende estabelecer uma “nova moral” ou coisa semelhante [...] Deste modo estão como que
justificadas todas as revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais
socialmente organizadas (revoluções, por ex.) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como é
chamado aquele que se revolta, rouba e mata). [...] O princípio decisivo seria o seguinte: a vitalidade,
individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar de subdesenvolvimento e caos –
desse caos vietnamesco é que nascerá o futuro, não do conformismo e do otarismo. Só derrubando
                                                                                                               
63
CLARK, 1959, p. 46
64
OITICICA, 1967, p.165
  40  

furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade. (OITICICA, doc. No. 0253.66,
p. 4-5 AHO/PHO)

O encontro com o samba teve grande responsabilidade na virada política da vivência.


Subir o morro e ali propor trabalhos experimentais, como os Bólides e os Parangolés,
significam que as regras do museu, as vias da História da Arte não mais se aplicariam: se o
artista trazia consigo seu aprendizado formal desses sistemas, eles se chocarão contra as
dimensões materiais/imateriais de um novo universo estético: a favela, o carnaval e o samba.
Nesse encontro, estava o começo da antiarte de Hélio Oiticica: o começo do exercício do
Parangolé dando “mão forte” às “revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos”.
Isso não significa que irá abandonar os termos das artes plásticas, como disse Hermano
Vianna, Oiticica era um “mediador cultural entre asfalto e morro”65, a existência da vanguarda
era para ele um fator decisivo no desenvolvimento do país66. Assim, vê-se em suas anotações
e nos relatos de Waly Salomão (Qual é o Parangolé) que sua presença ativa na comunidade
da Mangueira como passista e as amizades que ali fizera são tão dedicadas quanto os
trabalhos práticos e teóricos que se voltam às “Artes Plásticas”. Assim, como afirmou Celso
Favaretto, na experiência dos Parangolés “o inconformismo social compôs-se com o
inconformismo estético, na experiência da marginalidade”.

2.3 Universal ou imanente

No texto do Esquema Geral da Nova Objetividade (1967), Hélio comenta algumas das
transformações pelas quais passa em 1964 e que iniciam os processos de fundação do
experimental e da antiarte:

Nesse período 1964-65 se processaram essas transformações gerais, de um conceito puramente estrutural
(se bem que complexo, abarcando ordens diversas e que já se introduziram no campo táctil-sensorial em
contraposição ao puramente visual, nos meus Bólides vidros e caixas, a partir de 1963), para a introdução
dialética realista, e a aproximação participante. Isto não só se processou com Cordeiro em São Paulo,
como de maneira fulminante nas obras de Lygia Clark e nas minhas aqui no Rio. Na de Clark com a
démarche mais crítica de sua obra: a da descoberta, por ela, de que o processo criativo se daria no sentido
de uma imanência em oposição ao antigo baseado na transcendência, surgindo daí o Caminhando,
descoberta fundamental de onde se desenvolveu todo o atual processo da artista que culminou numa
“descoberta do corpo”, para uma “reconstituição do corpo”, através de estruturas supra e infra-sensoriais,
e do ato na participação coletiva [...]. Ponto principal que nos interessa citar: o sentido que nasceu com o
Parangolé de uma participação coletiva (vestir capas e dançar), participação dialético-social e poética
(Parangolé poético e social de protesto, com Gerchman), participação lúdica (jogos, ambientações,
apropriações) e o principal motor: o da proposição de uma “volta ao mito”. (OITICICA, 1967, p.159)

                                                                                                               
65
Cf. VIANNA, 2000.
66
BRITO, 1999 apud. VIANNA, 2000, p.7
  41  

A “introdução da dialética realista” era para Hélio a “volta ao mundo”, “um


ressurgimento de um interesse pelas coisas, pelos problemas humanos, pela vida em última
análise.”67 Mas foi preciso um “descondicionamento” para que esse interesse ressurgisse.
Antes que esse descondicionamento tomasse as proporções políticas/míticas descritas
por Hélio na descoberta dos Parangolés, ele foi antes de mais nada, um descondicionamento
geográfico. É pela influência de outro artista, o escultor Jackson Ribeiro que Hélio passará a
vivenciar outros espaços, “cidades dentro da cidade”, a favela, a antítese da sua “vida
burguesa” ou o que Mário Pedrosa chamou de “torre de marfim de seu ateliê”. Sua incursão
começa pelo Morro da Mangueira, onde Jackson Ribeiro tinha amigos e de onde recolhia
“elementos pré-fabricados tirados do ferro velho”68 para suas esculturas. O deslocamento para
fora da “Zona Sul” era considerável:

Mangueira, celeiro de uma cultura popular densa e organizada em torno da quadra da Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira. Protótipo do Morro do Rio, a Mangueira e seus logradouros cantados
pelo nosso cancioneiro popular: Pindura Saia, Santo Antônio, Chalé, Olaria, Candelária, Telégrafo,
Sossego, Buraco Quente. Para Hélio representou a descoberta do corpo tornado dança e de outros modos
de comportamento. Mas [Hélio] não prendia seu giro só à Mangueira, sua área compreendia arrepios e
rodopios também em outras “jurisdições”: Tuiuti, Central do Brasil, Praça Mauá, Estácio, São Carlos,
Lapa, Cancela, Quinta da Boa Vista e suburbia em geral. Pontes. Estação de trem zona norte-subúrbio.
Reaquisição das cores e encantos do mundo […] Liambas ou diambas em profusão de flautas e charos.
Expansão da consciência. Carpe Diem frenético que é o sinal indicador del sentimiento tragico de la vida.
Quadra de ensaio ainda na Companhia de Cerâmica Brasileira de Roberto Paulino antes da construção da
sede atual, o Palácio do Samba. Becos, vielas, terrenos baldios, beiras de ribanceiras. As janelas, as portas
e as bocas quentes da percepção. Embalos malucos e a predominância da concepção maniqueísta do
mundo dividido entre otários e malandros. Mas que hoje podemos compreender sob a ótica do
movimento da cidadania como esboço trágico-dilacerado de uma ponte em direção à área menosprezada
do Rio que Zuenir Ventura escrutinou como Cidade partida. Cidades separadas e desiguais dentro da
“mesma” cidade. Esquoizóides e desiguais saídas: ou suficiência arrogante-paranóica ou se transfundir no
outro. (SALOMÃO, 1996, p. 36)

O relato do poeta Waly Salomão recria no imaginário a nova geografia e os novos


personagens urbanos que circundariam o artista a partir de 1964, mencionando a centralidade
da Estação Primeira de Mangueira nessa experiência. Waly narra que Hélio “intuiu logo que o
morro era o diferencial que ele queria após atravessar o deserto do mundo sem objetos de
Malevitch”, contando a ele uma vez, que seria “impossível entender inteiramente o alcance e
desdobramentos do ‘corpo coletivo’ que Lygia Clark propunha” sem a sua subida ao morro,
sem experimentar uma “vitalidade demolidora” de preconceitos, esteriotipações e noções de
“lugar social”, sem derrubar o “mapa” mental pelo qual o artista via o esquema da favela de
“uma altura superior”. São por isso particularmente significativos para somar ao relato de
                                                                                                               
67
OITICICA, 1967, p.165.
68
OITICICA, doc.No. 0158.68, p. 1, AHO/PHO
  42  

Salomão, os comentários de Brodwyn Fischer69 sobre a descrição que o polêmico jornalista


Benjamin Costallat faz das favelas da região central do Rio de Janeiro ainda na década de
vinte. O jornalista descreve o princípio das condições sócio-culturais do ambiente que
receberá o artista em 1964, condições que o levarão a uma “posição crítica universal
permanente”70 e formarão o espaço de atuação estética que permitirá o desenvolvimento dos
Parangolés71.

Desde o início, fora abordado a questão da favela de pontos de vista radicalmente diferentes. Em um
extremo, e inicialmente o mais influente, situavam-se aqueles que apontam para as favelas, não só como
pragas estéticas, mas também como ninhos de criminalidade, vício, ignorância e barbárie. Nas primeiras
décadas da favela, esta associação foi feita com mais frequência por jornalistas ávidos em provocar a
curiosidade dos leitores sobre os rústicos assentamentos que cresciam no centro "civilizado" do Rio.
Entre esses estava Benjamim Costallat, que descreveu a "favela que [ele] viu" no início de 1920 como "o
morro do crime”,"um lugar fora da lei, um local de violência misteriosa e brutalmente sedutora”. Era,
observou Costallat, um lugar sem lei, onde "a terra pertence a um e a todos", "uma cidade dentro da
cidade", onde ninguém se casava, ninguém pagava impostos, e onde derramamento de sangue era o
remédio para todos os crimes e conflitos. O morro também era, segundo Costallat, um lugar de pobreza
terrível, caótica, de cultura exótica com traços africanos e, acima de tudo, do samba - que, mais do que
uma forma musical, era uma felicidade transcendente e teimosa face à privações indescritíveis. Costallat e
outros viram no samba uma alegria admirável, "um exemplo maravilhoso para aqueles que têm tudo e
ainda não estão satisfeitos"; desse fascínio crescem as raízes que levaram o samba à frente da cultura
brasileira. (FISCHER, 2006, p. 72)

Esse trecho apresenta as características do paradoxo que Fischer identifica na cidade


do Rio de Janeiro a partir das conseqüências das reformas urbanísticas/imobiliárias de Pereira
Passos: com a expulsão de famílias, demolição de cortiços e chegadas de migrantes, a
população pobre na década de vinte é forçada a ficar à margem da legalidade e do tecido
“oficial” da metrópole. Para Fischer, na metade da década de 60, esse paradoxo já se via
como um fator estruturante do tecido urbano do Rio de Janeiro72.
Na favela fora onde Hélio Oiticica entrou em contato com a realidade da matéria73, e
como seria inevitável no Morro da Mangueira, não havia mais o que separasse a nova
realidade material do artista, dos códigos e hierarquias que regiam a favela de então, regras
que na maioria das vezes sequer tangenciavam a “legalidade” do asfalto74. A formação
acústica do samba75, como sugere o depoimento de Costallat, estava imbricada entre a
                                                                                                               
69
FISCHER, 2006, p. 72
70
FAVARETTO, 1992, p.116
71
O “deslocamento social” não causou, evidentemente, o Parangolé, mas disparou os processos requeridos pelo
dispositivo “vivência-total Parangolé” (FAVARETTO, 1992, p. 116)
72
FISCHER, 2006, p.18
73
RAMIREZ, 2007, p.65
74
O artista dá diversas declarações sobre o uso de drogas, “fumo da Mangueira” e produz diversos trabalhos que
atravessam as fronteiras entre arte e crime (VIANNA, 2000, p.20)
75
Cf. ARAÚJO, 1992.
  43  

realidade material e ordem social da favela, era talvez como um sumo dessas condições e um
veículo de alegria transcendente76. Esse fascínio que descreve Costallat, o “mistério do
samba”77 atingiu Hélio Oiticica no corpo: o ritmo fora irresistível para ele. Como adiantou
Waly Salomão, seu corpo foi “tornado dança” quando começa a frequentar a Estação
Primeira de Mangueira:

Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso
particular o samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual,
de necessidade de uma livre expressão, que já me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva
intelectualização. [...] A improvisação reina aqui no lugar da coreografia organizada; em verdade quanto
mais livre a improvisação melhor; há como que uma imersão no ritmo, uma identificação vital completa
do gesto, do ato com o ritmo, uma fluência onde o intelecto permanece como que obscurecido por uma
força mítica interna, individual e coletiva (em verdade não se pode aí estabelecer a separação). As
imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do ícone, estático e característico das artes
ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial -> está aí
apontada a direção da descoberta da imanência. (OITICICA, doc. 0120.65, p.1 AHO/PHO)

Se para o artista são “imanentes” o samba e os gestos de sua dança, são por
evidenciarem experiências ao mesmo tempo individuais e coletivas: “a dança ‘dionisíaca’ que
nasce do ritmo interior do coletivo” é o interesse do artista no “ato total de vida”.
A menção da qualidade do equilíbrio que Hélio faz em A Dança na Minha
Experiência sugere que Mondrian ainda está em suas referências, ainda que em uma
perspectiva crítica. Retomando aqui a função do equilíbrio para Mondrian, ele era um
objetivo da estética neo-plástica para se atingir o universal, e somente seria conseguido
através da resolução da dualidade físico-espiritual. Interessante é perceber como a qualidade
imanente do samba está no lugar do universal que Mondrian enxergava e ouvia no jazz: em
seu novo posicionamento ético, Oiticica valoriza o ato individual – o ato plástico - é nele onde
se manifesta a “vitalidade pura”. Ao contrário da dança do Charleston na visão de Mondrian,
não se subtrai a emoção da dança do samba pois ela tem parte no jogo da improvisação e na
evidência desse ato expressivo.
O ritmo equilibrado na música neo-plástica, caracterizado simplesmente por
sequências de eventos sonoros de características opostas (intensidade alta ou baixa, tom grave
ou agudo), que seguidos, neutralizariam uns aos outros, era a evidência do ritmo universal
para Mondrian. Pois Hélio afirma: “o ato total de vida” passa pelo “desequilíbrio para o
equilíbrio do ser”. O ritmo para Hélio funciona como um elemento agregador dessas
vitalidades individuais: ele dá uma forma aberta ao coletivo (não compartilham os passistas
                                                                                                               
76
A música pode funcionar como um “canalizador da violência.” (ATTALI, 1986, p. 27)
77
Cf. VIANNA, 1996.
  44  

de um mesmo ritmo?), ele é o fator “cósmico”, revelador dessa imanência sem impor
coreografias ou ordenações inibidoras do ato individual: “cada qual cria seu samba com
improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que o fazem seguindo modelos não
sabem o que seja o samba ou sambar”78. O ritmo dá organização à “desordem” da
improvisação.

2.3.1 A matéria da vitalidade

O sentido construtivo79 está presente também na confecção das capas dos Parangolés.
Mas como vimos, nesse novo contexto – fora dos imperativos do sistema das artes plásticas,
fora da metrópole ordenada, dentro da favela, dentro da musicalidade do samba – esse sentido
vai se concretizar sob novas formas (materiais, estruturas, cores) e ser posto em ação com
uma vitalidade musical que pouco havia participado do construtivismo visual brasileiro80.
Assim, as capas também incorporarão a realidade material do morro. A perspectiva
das artes plástica que Hélio trouxe para a operação de construção dos Parangolés fora o
caráter experimental de Kurt Schwitters, chamado por ele de Merz que consistia na coleta de
materiais que o artista encontrava quando caminhando por Berlim na década de vinte81. Com
esses objetos encontrados, o artista faria uma “colagem psicológica” não-figurativa. O
princípio não-figurativo do Merz seria incorporado ao Parangolé:

As fachadas dos abrigos das favelas são fragmentadas formalmente, mas o interior dessas construções
precárias é unitário, constituído, no mais das vezes, de uma peça única, que se divide à noite em pequenos
compartimentos, com a ajuda de cortinas em tecidos ou em plástico (às vezes, cortinas de banheiro), para
preservar a intimidade dos casais que ali dormem. São esses materiais as cortinas internas que vamos
encontrar nos Parangolés, como se Oiticica tivesse escolhido o mais íntimo dos materiais usados para
representar com maior pertinência ideia de abrigo. Ele retoma os fragmentos de tecidos e de plásticos do
interior dos barracos para fazer as capas. (BERENSTEIN, 2004, p.35)

O problema da cor tempo - redefinido ao do longo percurso que a pintura fez até a
“descoberta do corpo” – atingiu aqui o seu ponto máximo: a cor estava posta em ação em uma
estrutura animada pelo próprio participante. É de se prestar atenção que nas cadências, giros e
vôos das camadas das capas Parangolé estava incorporada a cinética da dança do samba;
surge a vivência-total, o tempo subjetivo gerado pelo próprio movimento do corpo:
                                                                                                               
78
OITICICA, 2009, p. 54
79
LAGNADO, 2007a, s.n.
80
Segundo Vianna (1996, p.102) houve diversos encontros significativos entre poetas modernos como Blaise
Cendrars e sambistas como Donga. O samba já na década de dez desperta o interesse de compositores eruditos
como Darius Milhaud.
  45  

O Parangolé não era assim uma coisa para ser posta no corpo para ser exibida, a experiência da pessoa
que veste, para a pessoa que está fora vendo a outra se vestir, ou das que vestem simultaneamente, são
multiexperiências, não se trata assim do corpo como suporte da obra, pelo contrário, é a total
incorporação. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo....eu chamo de in-corporação.
(OITICICA, 2009, p.229)

Hélio Oiticica estava encontrando uma saída para a “crise do retângulo”, a crise da
ortogonalidade. Não foi a descoberta da cor tempo que a solucionaria: o museu ainda
impunha o distanciamento físico entre obra e espectador. O carnaval, ao contrário, oferecia
possibilidades expressivas de integração entre corpo e estrutura: nos Parangolés, esses se
confundem, entram no regime da “dialética realista”, pois a capa provoca o movimento do
corpo e esse por sua vez gera fenômenos de cor para quem assiste à ação. Era o processo de
“transmutação expressivo-corporal”, a via desiquilibrada de sintonizar a realidade da matéria
à realidade do espírito.

2.3.2 A raiz do pensamento de Mondrian

Se para Hélio Oiticica e Ferreira Gullar o pensamento de Mondrian possui uma


“raiz”82 que lhes interessavam, na mesma medida o imperativo das cores primárias, do eixo
ortogonal, a obrigação do equilíbrio no sentido de obter neutralidade, foram, na opinião deles,
interpretados de maneira dogmática e mecânica no trabalho dos construtivistas paulistas. Foi
Lygia Clark em sua carta póstuma que atentara para o impasse ético de simplesmente aceitar a
teorização da arte e afastar-se da experiência real. Havia uma “desordem de ordem prática e
social” que impedia que um desenvolvimento puramente formal das propostas de Mondrian
conseguisse uma justificativa convincente nas mãos das vanguardas brasileiras.
Hélio Oiticica - em toda sua trajetória pré e pós-samba - parece propagar o que Lygia
Clark havia percebido em 1959: o desequilíbrio, algo que vivenciou na favela nas suas
dimensões físicas e imateriais, operaria por meio dos Parangolés para o “equilíbrio do ser”,
para experiência da “vivência total”.
Foi fundamental a perspectiva de Kandinsky para que Hélio passasse a criticar o
equilíbrio dos ângulos retos como um princípio espiritual, pois na dimensão da pintura
abstrata de Kandinsky, Hélio encontrava “múltiplos pontos-de-fuga” (mais de uma
perspectiva operando na visão), “estruturas pluri-dimensionais” e a “sonoridade da cor” que
                                                                                                               
81
Cf. SCHULZ, 2010.  
82
FAVARETTO, 1992, p.53
  46  

Figura 10: Hélio Oiticica, P07 Parangolé Capa 04 'Clark', 1964-65, Tinta; tela; burlap; vinil, 1310 x 985 x
60 mm , César and Claudio Oiticica Collection, Rio de Janeiro.  
  47  

distanciava a pintura da objetificação e deixava que a cor se manifestasse como um fenômeno


mais imediato, menos mediado por significados, um acontecimento “corporal”. Assim,
somente pela metáfora entre cor e som pôde Hélio desenvolver a noção de cor tempo.
Mas fora na subida ao morro e o encontro com o samba quando de fato Hélio se
distancia da ortogonalidade e passa a atribuir uma qualidade ética à participação e à cor em
ação: não há maneiras de propor uma realidade plástica se afastando dos paradoxos
históricos, sociais, etc. Hélio mostrou que é preciso habitar o paradoxo. É preciso reunir os
extremos não no sentido de neutralizá-los, mas de encontrar formas inesperadas e não-
impositivas de equilíbrio. A música do samba foi o veículo para isso.
Formava-se assim um novo caminho para a arte construtiva: Hélio fez com o ritmo da
cor e da abstração se abrisse e se interpelasse aos ritmos musicais e arquitetônicos dos que
estão à margem da ordenação da metrópole, dos que não vivem sob grids e ângulos retos
impostos no desenho urbanístico. Se Hélio consegue revalorizar o ato expressivo para revelar
a qualidade imanente da improvisação, deixando que a musicalidade do samba regesse a cor
e a estrutura do Parangolé, com isso mostrou que haviam caminhos mais emancipatórios nas
artes plásticas que o construtivismo pragmático. A possibilidade dessa emancipação estava na
descoberta do corpo, “antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte
total de sensorialidade.”83

                                                                                                               
83
OITICICA, 1968 apud. FAVARETTO,1992, p. 104
  48  

3 CHELPA FERRO
O Merz, o estúdio e o estado de invenção
 
  49  

3 Chelpa Ferro: o Merz, o estúdio e o estado de invenção


3.1 Invasões e furtos: artes plásticas e o imaginário da música popular

No Brasil, existem alguns lugares não tão ermos onde as artes plásticas incorporam a
sonoridade e os símbolos da música popular. Neles é preciso estar atento: não são como os
espaços periféricos ou anteriores ao que Cildo Meireles chama de Brasil português84 em seu
LP Sal sem Carne, o Brasil pré ou extra-urbanização, onde atividades não precisariam ser
chamadas de “artísticas” para promover uma experiência onde em um mesmo território se
encontram a música, a visualidade, a dança85. Esses lugares onde as artes plásticas incorporam
o samba e o rock’n’roll já supõem a ideia e a divisão das artes na modernidade, eles se
formam nas dinâmicas culturais da metrópole.
Um desses lugares é o “barraco que Hélio Oiticica armou no MAM”86, inaugurado em
1965 quando levou um cortejo de sambistas vestidos em Parangolés ao Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro na abertura da exposição Opinião 65. Acompanhado de vários
passistas da Estação Primeira de Mangueira, eles dançavam e tocavam instrumentos de
percussão87. Previsivelmente fora expulso do museu pela equipe de segurança, mas o ato de
invadir musicalmente uma instituição oficial do modernismo brasileiro já mostrava de forma
mais do que simbólica (a festa continuou no jardim do MAM88) como era inevitável a
contaminação do samba e do rock’n’roll nas artes plásticas pelo que Oiticica chamaria em
1967 de “descoberta do corpo”89, característica para ele inseparável às duas expressões
musicais.
A consciência do papel da musicalidade na experiência artística terão uma importância
determinante no trabalho de Oiticica após os Parangolés (1964). A apropriação de imagens e
material sonoro da música popular se intensificarão em suas propostas principalmente durante
seu exílio voluntário em Londres em 1969 e do período em Nova Iorque entre 1970 e 78: oito
anos após o episódio do Opinião 65, o artista cria com Neville D’Almeida o CC5
Hendrixwar/Cosmococa Programa-in-Progress, um ambiente ocupado

                                                                                                               
84
MEIRELES, 2009, p. 259
85
Nesse sentido, as pinturas de Jean Baptiste Debret, Joueur d'Uruncungo (Tocador de Berimbau), 1826; (Dia
de Entrudo, Funeral de Filho de Rei Negro, Jogadores de Capoeira, etc) retratam como a população de escravos
africanos e afro-brasileiros ocupava o espaço público com a música (e inseparável dela, a dança), a capoeira, e as
cerimônias religiosas.
86
SALOMÃO, 1996, p.57
87
Cf. VIANNA, 1995, p.1 e SALOMÃO, 1996, p.34
88
BERENSTEIN, 2003, p.37
  50  

Figura 11: Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, Cosmococa 5 Hendrix War, 1973, Nova Iorque.

com redes de descanso, música de Jimi Hendrix e projeções de fotografias do guitarrista com
a intervenção dos desenhos de cocaína de D’Almeida. Como em seus Penetráveis, o público
participava ocupando esse lugar que foi construído para ativá-los sensorialmente. Ali deitam
nas redes, ouvem a música do guitarrista e assistem às projeções de slides: os participantes da
Cosmococa são como elos entre imagem, som e corpo. Eis aqui mais uma proposição de
“antiarte” de Hélio Oiticica, o Quase-cinema90, um lugar para a dissolução das separações
entre imagem, platéia, narrativa e sensorialidade.
Na década de sessenta, em uma sala da Rex Gallery & Sons - um lugar neodadaísta da
cidade de São Paulo fundado por Nelson Leirner (1932 - ), Wesley Duke Lee (1931- 2011),
                                                                                                               
90
LAGNADO, 2007b, p.27
  51  

Geraldo de Barros (1923 - 1998)91- a popularidade do rock’n’roll instiga Leirner por sua
capacidade de construir ídolos e ícones. Voltar atenção iêiêiê da Jovem Guarda era algo
alinhado com o que o Grupo Rex propunha em sua galeria “aquém da crítica e do mercado”: o
humor e a ironia eram veículos pelos quais esses artistas conseguiam revelar as estratégias e
trâmites institucionais do sistema de arte. Em 1966, Leirner faz nessa galeria a Adoração ou
Altar a Roberto Carlos, uma instalação de dois ambientes (uma catraca de entrada e o altar
propriamente dito, separados por uma cortina), onde o cantor é retratado de forma religiosa,
canonizado como um santo. A ironia é tratada de forma ainda mais kitsch com lâmpadas neon
que contornam a imagem do cantor, o veludo vermelho das cortinas e o amarelo-ovo da
catraca. Não existe música ou mesmo alusão ao som da Jovem Guarda, sobrando para o
visitante somente o mudo ícone do “rei da juventude”.
Mesmo que com essas propostas os artistas estivessem empreendendo seu pensamento
criativo tendo o rock como matéria, como sensorialidade/subversão, ou mesmo revelando
seus clichês e a repetição mercadológica no qual está engendrado, o rock neles é como um
sistema de representação, um amplo conjunto de símbolos dos quais o artista pode se
apropriar. Ao mesmo tempo, o samba para Oiticica está muito menos distanciado: é o ritmo
que está incorporado em sua dança, é o elemento espiritual para o “ato de vida total” e é com
as pessoas do samba que decidiu ocupar os territórios “oficiais” da arte em 1965:

Hélio escolheu a via da superação do etnocentrismo. O outro não é uma abstração desencarnada, com o
qual é imperativa a união para construir uma futura sociedade utópica, como do redentorismo marxista. O
outro é um corpo de carne y hueso que opera uma transmutação do próprio corpo do Hélio tornando-se
sensível ao sensível. [O PARANGOLÉ foi] vestido por Mosquito (mascote do PARANGOLÉ), Nildo,
Jerônimo, Tineca, Robertinho da Mangueira, Santa Tereza, Paulo Ramos, Vera Lúcia, Carlinhos
Pandeiro-de-Ouro, Pedralto da Lacraia, Canhão, Lilico, Nininha Xoxoba. (SALOMÃO, 1996, p. 37)

Mas é com outras premissas que no Rio de Janeiro quatro artistas brasileiros
contemporâneos se apropriarão do corpo do rock e do samba - seus instrumentos, seus cabos,
alto-falantes, suas mídias – e sua sonoridade - ritmos, vibrações, timbres, efeitos. Pelos
trabalhos de Chelpa Ferro, o som do rock sai do espaço fonográfico, se desencaixa de suas
imagens, se desprende se seus ídolos; o samba, por sua vez, liberta-se do corpo humano para
ocupar os espaços de museus e galerias com sua própria estrutura física e seu som.
Narrar a partir de um conjunto de trabalhos muito particulares, porém, pode
simplificar a complexa relação que artistas plásticos teceram com a música no Brasil,
especialmente a partir na década de sessenta. A subida de Hélio Oiticica ao Morro da
                                                                                                               
91
Cf. LEIRNER; et al, 2002.
  52  

Mangueira era somente um prenúncio de como diferentes artes interagiriam na segunda


metade da década: música, cinema, teatro, poesia, artes plásticas e dança abririam poros por
onde artistas poderiam circular e dar contribuições em outras linguagens. As fronteiras não
mais serão tão bem definidas como aqueles que buscam tradições puras gostariam.

3.1.1 Tropicália e a abertura democrática

A trajetória de Hélio Oiticica após 1964 é talvez uma das mais representativas para
abordar as aproximações das artes plásticas com a música popular no Brasil. Assim como
José Celso Martinez, Glauber Rocha, Lygia Clark e Rogério Duarte, o artista já estava
inserido no começo da década de sessenta em diferentes contextos artísticos e intelectuais
onde se discutia as bases da ideia de “tropicália”, muito antes que o tropicalismo musical
ganhasse algum destaque midiático92. Fora Oiticica que pela primeira vez utilizou a palavra
Tropicália. Entre 1966 e 67 como conceito de um desenvolvimento de Penetrável que surge
dentro de seu Programa Ambiental, Tropicália era um Penetrável que já havia incorporado a
“nova ética realista” e a proposição “antiarte” que Hélio desenvolvera com os Parangolés na
Mangueira93.
Após a apropriação do nome do penetrável de Oiticica por Caetano Veloso94, os
músicos baianos levarão adiante a ideia de “tropicália” como um desenvolvimento musical,
chamado posteriormente de tropicalismo. Não obstante, o artista plástico questionaria os fins
para os quais interessaria a formação de um ismo – o que comunicava claramente a intenção
de se formar um movimento de vanguarda - sob o conceito que inventara:

Em 4 de março de 1968 (apenas um mês após o artigo [A Cruzada Tropicalista] de Nelson Motta), Hélio
Oiticica seria o primeiro nome supostamente ligado ao movimento a expor sua contrariedade e a
diferenciação entre tropicália e tropicalismo. Ele desfia, em um texto intitulado apenas “Tropicália”, as
inquietações que os abusos modistas usando o nome de sua criação – que virou título de uma música de
Caetano Veloso e do álbum coletivo do grupo de músicos e compositores ligados posteriormente ao ismo
– lhe causavam. [...] Oiticica, apesar da grande amizade que desenvolve com os músicos baianos e os
poetas concretos ao longo de 1968, sempre manteve uma visão bem particular sobre suas obras. O uso
desenfreado do termo “tropicalismo”, sem nenhum resquício dos princípios que balizaram a longa
concepção da obra Tropicália (“quem fala em tropicalismo apanha diretamente a imagem para o
consumo”), levou o artista plástico a praticamente assumir uma postura inicial antitropicalismo. Na
defesa de suas posições radicais sustentadas em diversas outras declarações da época, eram justamente o
rápido triunfo dos músicos baianos e paulistas em relação à sociedade de massas e seus desdobramentos
populares e comerciais que Oiticica atacava e do que desconfiava. Essa intencionalidade comercial e
midiática dos músicos tropicalistas – uma ação ligada aos dilemas da música popular – contribuiu
decisivamente para o modismo criticado por Oiticica. (COELHO, 2010, p. 122)

                                                                                                               
92
COELHO, 2010, p.125
93
Cf. OITICICA, doc.No.0253.66
  53  

Segundo Coelho, o ano de 1968 (mesmo ano de APOCALIPOTEÓSE, a vinda de John


Cage ao Brasil e o AI-5), foi determinante para que Hélio Oiticica mudasse sua atitude hostil
aos modismos do tropicalismo musical, declarando publicamente a influência dos músicos em
seu trabalho e escrevendo ensaios sobre esse conchavo artístico no ano seguinte quando se
muda para Londres. Os anos de chumbo da ditadura brasileira que se seguiram só fizeram
reforçar as relações entre Oiticica e os tropicalistas musicais (fig.12), o que é claramente
percebido na quantidade de documentos, ensaios, gravações em áudio (as Héliotapes) que o
artista produziu entre 68 e o começo da década de setenta com a participação dos artistas
baianos95. Não havia mais como alimentar discórdias epistemológicas frente a ameaça real do
governo militar, assim, começavam a criar ações em conjunto. Um exemplo é quando a
bandeira de Oiticica com o lema “Seja Marginal, Seja Herói” foi estendida ao fundo no palco
de uma apresentação dos tropicalistas em 1968 no clube Sucata no Rio de Janeiro96. O próprio
Caetano Veloso97 reconhece como a ação visava incitar os militares, e foi o que se deu: o
agente do DOPS, Carlos Mello denunciou a bandeira de Oiticica e o cerco aos artistas se
acirra a partir de então98.
Como afirma Frederico Morais em Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da
“Obra” ser artista na década de setenta era ser um guerrilheiro, e sua arte uma espécie de
emboscada que propõe situações ou se apropria de objetos e eventos sobre os quais não pode
exercer continuamente formas de controle, assim, sob as muitas restrições opressoras da
censura e da violência do Estado, questionava-se continuamente o que era a “instituição da
arte”99. Nesse sentido, Hélio Oiticica trabalhava nesse período sob uma nova ética que
chamava de antiarte, era o que Mário Pedrosa definiria como arte pós-moderna. Para Morais,
a antiarte se manifestava de maneira heterogênea no Brasil, compartilhando pelo menos uma
característica: a sugestão, ou anúncio de que a obra como coisa acabada, havia morrido.
Morais crê que Caminhando de Lygia Clark simbolizava o que acontecia na década de
setenta: o conceitiualismo desmaterializando a obra em ideias e conceitos, a “arte proposital”
que permitiria propostas de ação no espaço público ou institucional, a arte corporal que
propõe um “retorno aos ritmos vitais do homem”.
                                                                                                               
94
BRETT, 2007, p.30
95
Documentos listados no Programa Hélio Oiticica [Itaú Cultural]: TROPICÁLIA TIME SERIES 3 / CAETANO
VELOSO (doc.No.0353/69 ), GILBERTO GIL (doc.No. 0216/71O), Tropicália Time Series 4/ Gilberto Gil
(doc.No.0360/69), TROPICALIA : the IMAGE PROBLEM surpassed by that of a SYNTHESIS (doc.No.
0350/69), Música popular brasileira (doc.No. 0135/68), Gilberto Gil [Héliotapes](doc.No. 0500/71)
96
DUNN, 2001, p.142
97  VELOSO, 2007, s.n.  
98
DUNN, 2001, p.144
  54  

Figura 12: Caetano Veloso vestindo Parangolé Cape 04, 1964, Rio de Janeiro.

Três trabalhos analisados em Ouvindo as Artes Visuais mostram aspectos dessas


táticas: o disco Sal sem Carne (1974) de Cildo Meireles continua – na dimensão da gravação
fonográfica - as propostas questionadoras que estão postas de maneira afirmativa em Inserção
em Circuitos Ideológicos (1970); também de Cildo Meireles, Malhas da Liberdade (1976-
2008) que é um trabalho análogo a Cigarras (2010) (ver capítulo 4); a presença da droga e do
rock em Cosmococa de Hélio Oiticica tão pouco pode ser destacada do contexto político que
levou o artista em 1969 ao exílio voluntário em Londres junto aos tropicalistas baianos. A
                                                                                                               
99
MORAIS, 1970, p.171
  55  

cidade intensifica seu contato com o rock, algo que se tornará ainda mais consistente nos oito
anos que Oiticica passará em Nova Iorque entre 1970 e 78100.
Com a abertura política da década de oitenta, a geografia muda: os propósitos da
antiarte se aquietam, restaura-se a atitude artística de “voltar-se para o interior”101
fortalecendo novamente o papel do artista individual que quer quebrar com a História da Arte
de Vanguarda Brasileira102.
Os lugares e circunstâncias onde música e artes plásticas se encontram muda
consideravelmente. Mudanças no mercado fonográfico e fábricas locais permitiram que um
volume muito maior de lançamentos internacionais circulasse no país103. Em uma onda de
superação das bandas de rock progressivo do final da década de 70 geralmente vinculadas à
juventude conservadora (Módulo Mil, A Bolha, Analfabitles, O Terço), há o boom do rock
nacional com bandas como Paralamas do Sucesso, Blitz, Kid Abelha, Marina Lima, Titãs,
Legião Urbana, Lobão e Barão Vermelho, que segundo André Midani, foram a saída para a
crise que assolava os estúdios fonográficos desde 1980104. Essas serão trilhas sonoras que
alimentaram o que Heloisa Buarque de Hollanda chama de “desmontagem da ditadura”, o tom
era libertário, propunha-se remontar o indivíduo. A juventude dessa nova década queria viver
a democracia em um espírito atualizado do desbunde105da contra-cultura da década anterior:
esse agora perpassaria os bens de consumo, o pop, a moda, a despedida do imperativo de criar
utopias e glórias póstumas na arte106 e na música popular. Há impacto dessa mudança também
nas artes plásticas:

Ao contrário do experimentalismo e dos exercícios conceituais dos anos 70, os novos artistas, para a
desolação da crítica, voltavam, com o maior empenho, para o trabalho com as técnicas tradicionais do
desenho e da pintura, procuravam como compromisso as imagens contundentes e vibrantes da indústria
cultural e desprezavam as preocupações formais ‘desnecessárias’, segundo eles. Longe dos projetos de
questionamento e resistência da geração anterior, esta, procura, através de obras vendáveis, seduzir o
mercado para poder não perturbar o sistema e não ser perturbado por ele. Segundo Marcos Lontra, a festa
da geração 80 onde a presença do público era uma constante, na verdade correspondia ao clima eufórico
de um país que saía da ditadura em pleno namoro com a prática democrática. O mercado e as galerias
comerciais até então imunes aos talentos emergentes não conseguem resistir a essa movimentação toda e
investem francamente nos novos artistas. (BUARQUE, 1991, s.n)
                                                                                                               
100
OITICICA, doc.No. 0092.78, p.4
101
POINSET apud MORAIS, 1984, p.224
102
GUINLE, 1984, p.233
103
MIDANI, 2008, p. 177
104
Ibid, p. 201
105
“Deriva da circulação do modelo hippie na cultura jovem dos grandes centros urbanos, sendo relacionado ao
consumo de drogas, à crença mística orientalista e ao ideal do ‘pé na estrada’” (COELHO, 2010, p.217)
106
MORAIS, 1984, p. 226. Algumas canções de sucesso da época sugerem esse espírito: “Eu vejo a vida mais
clara e farta”. LULU SANTOS (1984). Tempos Modernos ; “Meus heróis morreram de overdose”. CAZUZA
(1988), Ideologia; “Mas Vital comprou a moto e passou a se sentir total”. PARALAMAS DO SUCESSO(1984),
Vital e Sua Moto.
  56  

É nessa circunstância onde dois dos membros de Chelpa Ferro, Barrão e Luiz Zerbini,
iniciam suas carreiras nas artes plásticas no Rio de Janeiro. A cidade nessa década também
acabou propiciando encontros de artistas de diversas linguagens como o teatro, a música, a
dança e as artes plásticas com eventos como o Circo Voador no verão de 1982, realizado na
praia do Arpoador pelo produtor Perfeito Fortuna. Nesse lugar, os músicos do novo rock
brasileiro que pouco tinha das ideias tropicalistas das duas décadas anteriores, encontravam a
geração 80 de artistas plásticos, atores de novas companhias de teatro como Asdrúbal Trouxe
o Trombone e escritores como Fausto Fawcett e Ricardo Chacal.
Chacal foi o responsável por reunir Chelpa Ferro pela primeira vez como “banda” em
1995 - não em um contexto de artes ou de música, mas para um evento de poesia. Longe da
galeria e do museu, no palco do teatro Sérgio Porto, Barrão, Zerbini, Sergio Mekler e Chico
Neves fizeram sua primeira performance no CEP 20.000, o Centro de Experimentação
Poética, um dos eventos de poesia (ou com a desculpa da poesia para se expandir para
praticamente todas as linguagens artísticas) mais conhecidos e celebrados pela comunidade
artística do Rio de Janeiro. O ambiente experimental e propositivo do CEP 20.000 acolheu as
vontades do grupo de fazer o que estivessem “a fim de fazer [...], sem preocupação que isso
tenha coerência com o que fizemos semana passada.”107
As atividades da “semana passada” do Chelpa Ferro podem ser inúmeras, de pintar um
quadro a editar um filme de cinema, diversa é a formação dos quatro membros. Barrão
trabalha no início de sua carreira com esculturas feitas de máquinas “que se acoplam umas às
outras, e entram em regimes deleuzianos-favelados de funcionamento”108 e atualmente aplica
seu raciocínio de bricolagem na louça e porcelana; Zerbini, é paulista e vive desde a década
de 80 no Rio de Janeiro onde se estabelece como artista trabalhando principalmente com a
pintura; Sérgio Mekler é editor de cinema e TV que montou muitas das produções
audiovisuais brasileiras mais relevantes desde a segunda metade da década de noventa e
Chico Neves109 é produtor musical, iniciando em 1978 sua carreira que teve produções de
sucesso na música popular brasileira, como álbuns dos Paralamas do Sucesso, Jorge Mautner,
Skank e Arnaldo Antunes.
A proximidade profissional que Chico Neves possui com o som, a composição e a
performance musical, possui um caráter mais emocional e aficcionado110 com Barrão, Luiz
                                                                                                               
107
Depoimento de Barrão no documentário Chelpa Ferro (cf. NADER, 2009)
108
VIANNA, 1998, p.34
109
Chico Neves deixou o grupo em 2001.
110
No sentido do ouvinte emocional de ADORNO (1976, p.8)
  57  

Zerbini e Sérgio Mekler que cultivam hábitos de consumo de discos, shows e hardware
sonoro (instrumentos e osciladores de frequência customizados). Essa relação afetiva com o
som orienta o estado de invenção do trabalho de Chelpa Ferro.
Como apontaram Hermano Vianna e Moacir dos Anjos, todos os membros do Chelpa
Ferro lidam com procedimentos de fragmentação, edição e assemblagem, evidenciando
através deles um interesse pelo o que é impreciso e transitório111. Não é surpresa que o som ou
a “vontade de tocar” sobre a qual Barrão fala no documentário Chelpa Ferro112 serve tanto em
suas performance quanto em seus objetos como uma plataforma de negociação entre essas
diferentes habilidades e modos de pensar dos membros do grupo.
É a partir dessas circunstâncias que encontros musicais se fazem freqüentes entre
artistas de diferentes campos e formações, e inclusive no Brasil, como por exemplo a banda
sem nome de Waltercio Caldas, o artista plástico Tunga e o vídeo-artista e fotógrafo Artur
Omar. Durante os primeiros anos da década de oitenta, Waltercio e Artur Omar tocavam
sintetizadores e seu som eletrônico era acompanhado pelos curiosos gongos e outros
instrumentos percussivos de membrana ou metálicos de Tunga. O grupo nunca tocou em
público e os improvisos e criações musicais eram para os três somente uma experiência
particular, ainda que, como contou Waltercio, achassem que estavam fazendo “a música do
século XXIII”.
Nos Estados Unidos, na época paralela à abertura democrática no Brasil, o pós-punk e
a no-wave113 amadureciam em Nova Iorque. Muitos grupos musicais experimentais surgiram a
partir da união de artistas não-músicos como escritores, artistas visuais, atores e diretores de
vídeo e cinema. Agindo como um articulador entre diferentes atividades e realidades da
cidade de Nova Iorque (as galerias do Chelsea, o hip-hop do Harlem, a boemia dos artistas
plásticos que viviam no anteriormente arruinado Lower-East Side, os clubes Mudd e Club 57)
quando o circuito no-wave já estava bem estabelecido, estava o pintor Jean-Michel Basquiat.
Em 1981, o artista cria a banda Gray com o poeta canadense Wayne Clifford, o artista
plástico e fotógrafo Nick Taylor, e os diretores de cinema, escritores e músicos Michael
Holman e Vincent Gallo, que é também ator. A no-wave criou um ambiente propício para que
as faixas ruidosas e inacabadas de Gray em seu único disco Drum Mode e suas performances
pudessem agir sem o peso do pioneirismo e com liberdade estética quase obrigatória, já que
esse contexto, impulsionado no fim da década de setenta por bandas como Contortions,
                                                                                                               
111
Cf. DOS ANJOS, 2008 e VIANNA, 1998
112
Cf. NADER, Carlos, 2009, documentário Chelpa Ferro
113
REYNOLDS, 2006, p.139
  58  

Teenage Jesus and the Jerks, Mars e DNA, tinha como ideal criar uma atitude tabula rasa na
qual todas as noções e regras aceitas de musicalidade fossem expurgadas. Não poderia
tampouco acontecer uma reunião de não-músicos para a performance musical em uma cena
mais criteriosa, que exigisse qualquer nível de erudição tradicional para que os artistas
conseguissem algum espaço de atuação.
As circunstâncias nas quais Chelpa Ferro nasce são tão favoráveis para a
experimentação musical e sonora quanto as de Gray. Promovendo o encontro de artistas pelos
meios artísticos “imateriais” como o som e a poesia, o multidisciplinar CEP 20.000, fundado
em 1990 pelos poetas Guilherme Zarvos e Ricardo Chacal, já nasce fortalecido por um
segmento da geração de artistas brasileiros da década de oitenta que se sentia à vontade em
atuar em diferentes linguagens como teatro, música, literatura e artes visuais. É então, a partir
de freqüências, ruídos, vibrações, distorções, pancadas, notas, bips e palavras que a pulsão
sonora das performances do Chelpa Ferro encarnarão o mundo material.

3.2 A vitalidade nas coisas

Uma máquina de costura Singer é colocada na beirada de uma mesa retangular. Na


outra beirada, é afixado um molinete de pesca, a peça da vara de pesca que gira para encolher
ou lançar a linha. Entre a Singer e o molinete, no centro da mesa, é posta uma caixa, o tambor
mais agudo normalmente usado na bateria de rock, ou pendurado no pescoço de ritmistas de
samba e percussionistas de axé. Um fio frouxo de arame, liga a roldana do molinete de pesca
ao cabeçote da Singer (que também gira), de modo que a barriga do fio deite sobre a pele do
tambor. Quando a máquina de costura é ligada, o fio gira rápido percutindo no tambor e esse
andamento pode ser controlado pelas próprias opções de velocidade da máquina Singer. O
ritmo é regular, mas não as batidas que às vezes falham, ou são leves demais, ou se duplicam
já que a roldana do molinete de pesca e o cabeçote da Singer têm diâmetros diferentes criando
ondulações imprevisíveis no fio. Um certo swing. Mas desse mecanismo todo não ouvimos só
o tambor, mas também as engrenagens da Singer e o molinete girando, graças a três
microfones visíveis que conseguem captar as três fontes de som.
Este trabalho se chama Samba, pela primeira vez exibido na exposição O Galerista
como Curador em 2001, na Casa das Rosas em São Paulo. Samba é traiçoeiro: uma máquina
que quer ter ginga, uma gambiarra que quer ser precisa. Se existe qualquer sensação
antropomorfa em seu som ou qualquer impressão anti-mecânica dirigindo o ritmo do Samba,
devem muito a como a intensidade do toque do arame no tambor varia, soando quase como
  59  

gesto humano. Seu ritmo evoca lembranças do samba talvez em seu andamento e seus
timbres, que passeiam pelo som de caixa, de um atabaque ou de um tamborim. No entanto,
não deixa de ser uma lembrança rítmica duvidosa já que esse ritmo não “evolui”, a emoção é
contida ou impedida pelas engrenagens da máquina e a expectativa do ritmo do samba se
suspende. Cria-se então uma textura, um padrão rústico, que na apresentação da Autópsia da
Cigarra Gigante em 2008, foi acompanhada por Barrão, Zerbini e Sérgio Mekler cada um
com um trompete. Com os instrumentos, tocavam notas longas e dissonantes que eram
sobrepostas com a ajuda de delays e efeitos de reverberação, criando um ambiente festivo e
carnavalesco ao mesmo tempo que distante, dissipando energia demais para soar nostálgico
ou para se circunscrever em algum tempo do passado.
Samba sintetiza uma qualidade que está presente em boa parte dos trabalhos do
Chelpa Ferro: um processo quase intuitivo que “anima” a matéria e os objetos por suas
propriedades ou potenciais sonoros, nunca escondendo o estado de invenção114, sempre
deixando visível e acessível a alegria da descoberta e da combinação imprevista. Talvez a sua
característica “favelada” emana de como as soluções não são rebocadas, não são escondidas,
sendo a necessidade e a intuição seu próprio acabamento. Eis que o Samba é som dando vida
à matéria, e não um mero mecanismo utilizando a matéria para fazer música ou ruído.
Mas existe uma história, uma motivação que impulsionou o Chelpa Ferro em 1997 -
ainda se reunindo somente para performances – a começar a construir objetos e instalações
como Samba, e esse percurso passa novamente pelos espaços virtuais da gravação fonográfica
e pela mudança fundamental que a infra-estrutura digital provocará nas práticas estéticas.
Nesse ano, o grupo se apresenta novamente no CEP 20.000 com uma base de vinte
minutos composta pelo produtor musical (e então ainda membro do grupo) Chico Neves e
catorze pessoas convidadas para tocar guitarra, sendo somente metade delas guitarristas com
experiência. O produtor, interessado em potencializar e enriquecer as sonoridades que o grupo
poderia produzir ao vivo, propôs aos três que gravassem um disco, e assim no mesmo ano
produzem seu primeiro álbum, o Chelpa Ferro I.
Com ele, no entanto, acabaram criando para eles próprios outro desafio: as faixas do
álbum não podiam ser tocadas ao vivo. As colagens, ritmos e rápidas edições sonoras do
álbum foram gravadas no ADAT, uma tecnologia digital que começa a ser introduzida nos
estúdios na década de 90, que permite não só a gravação simultânea de diversas trilhas de som
(ou “pistas”) mas pela primeira vez uma grande precisão de sincronia e localização de um
  60  

Figura 13: Capa do album Chelpa Ferro II, 2004, Rio de janeiro: Ping Pong , 1CD, stereo

ponto exato na gravação, um sample, a um custo relativamente baixo. Isso significa que
outras possibilidades de edição e até mesmo concepção de uma faixa musical estavam
disponíveis já que o sampling e o remix não precisavam mais depender de um processo que
era antes quase artesanal. Chelpa Ferro I é também em certa medida “pós-protools”115, já que
também foi em parte produzido no software de edição de áudio Pro Tools que permite a
visualização gráfica de cada pista de som, tendo nele além de ferramentas de programação,
até funcionalidades para uma limitada gestualidade para comandar efeitos e filtros digitais ao
longo de uma faixa116. Assim, o álbum está curiosamente circunscrito na transição de
tecnologias pela qual a gravação e edição de áudio passaram na década de 90, um fato
                                                                                                               
114
Termo mencionado por Oiticica para explicar a inseparabilidade entre ideia e objeto nos Paragolés
(OITICICA, 2009, p. 227)
115
VIANNA, 1998, p.35
  61  

lembrado por Sergio Mekler, quando conta que o Pro Tools foi adquirido justamente na
segunda metade da produção do álbum, quando boa parte do material já havia sido gravada
nas fitas digitais do ADAT.
Existe em todo Chelpa Ferro I o encontro de sons de fontes acústicas ou elétricas
como percussão (com os mais insólitos materiais), voz, metais, baixo e guitarra, com samples,
loops e alguns sons estritamente eletrônicos ou sintetizados. Porém, a estrutura das faixas é
toda composta no sampler e software, é neles onde a mixagem – a inteligência e combinação
entre o sons – se dá.
Como apresentar esses sons? Como levá-los à performance? É possível que esse
dilema ronde muitos dos artistas que utilizam a edição como principal ferramenta de
composição, mas são questões que levaram a algumas propostas que somente um grupo com
três artistas visuais poderia levar à cabo: criando objetos que pudessem conter ou provocar
esses sons. E foi no lançamento do primeiro disco do Chelpa Ferro na galeria do Paço
Imperial no Rio de Janeiro, que eles foram expostos pela primeira vez.
Diversos objetos e instalações foram produzidos para essa exposição, como Paraíba,
uma gaiola de periquitos microfonada que amplifica o canto dos bichos com efeitos de delay e
reverb, como a mesa de telefones que tocavam trechos do disco, ou Onda Quadrada, com a
qual, novamente, o ping-pong reaparece no trabalho de artistas brasileiros.
Suspenso, calado e óptico com Waltercio Caldas, imaginário e invisível com Nelson
Leirner, o ping-pong de Onda Quadrada é físico, podemos ver energia e movimento:
dezesseis alto-falantes deitados no chão emitem uma frequência baixíssima e constante,
proveniente de um oscilador capaz de movimentar seus diafragmas de maneira que as bolas
de ping-pong colocadas em cima deles, pulem e provoquem mais sons.

3.2.1 Ritmistas: simbolismo e estética do rock

[...] O rock’n’roll inventou um vocabulário de escolhas de produção, de como os materiais são


produzidos, capturados, tratados, combinados e transmitidos. Esta semiótica inclui elementos sonoros e
efeitos como reverb, vocais duplicados, distorção, gravações de bateria com captação próxima ou em sala
ampla e escolhas de material de sample. Também inclui elementos inaudíveis. A preferência da banda por
marcas de instrumentos e estilos (Fender vs. Gibson, kit de bateria pequeno vs. pedal duplo), gênero e
característica étnica, e todas as suas escolhas de moda significam sua relação com as tradições e
convenções das quais ela participa. [...] A adaptação rock’n’oll para a amplificação, gravação, e a
distribuição eletronicamente auxiliada no rádio e no vinil, alteraram a ontologia básica da experiência da
escuta. (KIM-COHEN, In The Blink of an Ear)

                                                                                                               
116
O trabalho “Liverbeatlespool” de Cildo Meireles (2004) nasce da possibilidade de visualização gráfica de
diversas faixas musicais. Cf. MEIRELES, 2008, p.289.
  62  

No que Chelpa Ferro insere e deixa visível a energia agindo na matéria e nos objetos, se
torna quase sem propósito trazer para o texto termos como visão e audição, uma vez que a
consequência do movimento de seus trabalhos, da energia operando em sua matéria, do
contato físico que se pode entender visualmente, são inevitavelmente barulhentos. Neles
vemos o som sendo produzido, vemos a consequência sonora da matéria em movimento.
Como Eureka/Blindhotland de Cildo Meireles, Chelpa Ferro só deixa margem para qualquer
cisão entre os sentidos acontecer espontaneamente na experiência do visitante e não as impõe
no próprio trabalho.
É que existe algo próprio do rock’n’roll que evoca uma experiência que tende a ser
sensorialmente total e recusa criar abismos entre escuta e visão (alguém isola as qualidades
“visuais” de um baterista? Para quê?). O que Hélio Oiticica descreveu como “descoberta do
corpo”, Seth Kim-Cohen, utilizou termos semióticos para identificar a interação entre os
elementos puramente sonoros ou extra-composicionais do rock, seus efeitos, espacialidades e
tratamentos típicos, mas também suas propriedades inaudíveis, como por exemplo, seus
instrumentos como objetos, como marcas, como seu aparato físico. Moby Dick, um trabalho
de 2006, trata dessa qualidade quando traz para dentro da galeria uma imensa bateria, tão
prolixa que chega a ser desproposital, uma extrapolação do tamanho convencional do
instrumento que mostra um certo senso de humor. Não existem baquetas disponíveis, não se
trata de uma obra participativa: a grande estrutura está ali somente para ser observada,
contemplada silenciosamente como coisa.
Segundo o curador e crítico Agnaldo Farias, o titulo Moby Dick foi apropriado de uma
conhecida faixa do álbum Led Zeppelin II117, na qual o baterista James Bonham executa um
solo que se tornou referência no imaginário rock’n’roll. Seguido de uma breve introdução da
banda em estrutura de blues, o solo de Bonham ao vivo não durava menos que seis minutos,
podendo chegar a meia-hora, tempo que o resto da banda até deixava o baterista sozinho no
palco.
O quanto a bateria de Bonham reflete sua personalidade, que só podemos conhecer através de um véu de
rumores e anedotas? Essa pergunta continua em aberto, especialmente com essa banda, onde a
personalidade, mito e performance se confundem. [...] Mas Bonham como baterista, sua força física e sua
relativa falta de sofisticação técnica indicam algo primordial agindo neste homem e nos sons que ele
produziu. Apesar de ser um baterista experiente, seu trabalho é mais essencialmente caracterizado pelo
seu poder quase irrestrito, por sua capacidade de bater na pele do tambor com força suficiente para
impulsionar e controlar as ondas sonoras em seu crânio com a convicção de um urso esmagando um
carro. [...] Bonham não toca nem mesmo com o "coração", porque o coração implica excesso e paixão.
Bonham não se arrebata, pelo menos nas gravações, sua emoção nunca transborda. (DAVIS, 2006, p.
155)

                                                                                                               
117
E essa, composta a partir do romance do escritor norte-americano Herman Melville, Moby Dick (1851).
  63  

Davis descreve os sons produzidos por Bonham em Led Zeppelin IV como uma mistura
de irracionalidade bestial com a contenção emocional de uma máquina, o que é em certa
medida refletido no tamanho e estrutura da bateria de Chelpa Ferro. O recurso empregado
pelo grupo de citação/apropriação de um ícone musical em um objeto silencioso é comparável
ao que fez Waltercio Caldas com Thelonious Monk, mas ao contrário de Caldas, Chelpa Ferro
se distancia da delicadeza da abstração, trazendo à mente do observador uma potência física
ligada inevitavelmente ao masculino e ao excesso - no que esses podem tornar-se brutos - e
para os que têm no repertório a tal música de Led Zeppelin, a duração temporal do solo de
Bonham transmutado em uma estrutura palpável e expansiva. Improvável é olhar para essa
bateria sem que ela repercuta seus sons na imaginação.
Moby Dick esteve na mesma performance onde Samba foi acompanhado pelas notas de
trompete dos três membros do grupo (2008). Elevando-se comicamente do porão do palco
para espaço cênico com ajuda mecânica, a bateria, quando finalmente aparece, está coberta de
incensos acesos. O perfume e a fumaça chegam à plateia. Samples eletrônicos de percussão,
batidas e bateria começam a ser tocados pelo grupo com controladores MIDI como uma
espécie de trilha sonora. Essas batidas vão se multiplicando enquanto a gigante Moby Dick
encara o público do teatro com uma imobilidade que não é exatamente ameaçadora como quer
o crescendo do som sampleado; afinal, ela é somente um receptor e não a própria força
bruta118. É nessa direção que a performance Pilha de 2001, reúne dez bateristas em uma
mesma sala com holofotes pulsantes, para que toquem ao mesmo tempo até que cada fração
de segundo seja ocupado irracionalmente com ataques de bateria. Essa performance, de
alguma maneira apresenta a força do corpo masculino que se esconde alguns anos depois em
Moby Dick.
Há contudo no trabalho de Chelpa Ferro, outros meios para fazer uma bateria soar,
meios que não envolvem a energia dos músculos. A potência humana que era necessária -
ainda que de forma imaginada - para que Moby Dick se completasse na percepção como um
objeto capaz de emitir sons percutidos, dá lugar à precisão da máquina. E não é uma precisão
precária como a de Samba: motores temporizados friccionam pratos de bateria com um
movimento cíclico e preciso.
Trata-se de Cogumelo Ohms, feita em 2005 e exposta pela primeira vez na Galeria
Vermelho em São Paulo. A instalação é construída com aproximadamente duas dezenas de
pratos de bateria de tamanhos próximos, mas marcas e moldes variados. Esses são montados
                                                                                                               
118
A performance foi realizada pela primeira vez no festival Videobrasil em São Paulo: SESC SP, 2005.
  64  

com a parte côncava para cima usando como base alto-falantes de tamanho próximo aos
pratos, mas com seus diafragmas virados para o piso. Hastes em um mecanismo temporizado
giram em rotação, friccionando-se às bordas dos pratos e produzindo um som de
características muito diferentes às que se costuma obter desse instrumento de percussão.
Como não são mais percutidos com a ajuda da baqueta, mas sim friccionados quando a
máquina decide que as hastes devem fazer seu movimento cíclico, a relação entre o ataque (o
impacto da baqueta no prato) e o decaimento de seu som se suaviza e se alonga em função da
programação temporal do mecanismo.
Convencionalmente, o som do prato de bateria pontua o rock. Por conta de sua
capacidade de produzir agudos, picos de freqüências altas, é comum que ele termine ou
comece frases de uma canção. Em Moby Dick de Led Zeppelin por exemplo, na estrutura de
blues que a banda constrói para introduzir os solos de Jimmy Page e James Bonham, o prato
inicia o primeiro compasso. É tocado para indicar toda mudança de acorde do tema - sempre
ao início do compasso - e para indicar o fim de um ciclo.
É de se esperar que não exista qualquer lembrança de ritmo convencional em Cogumelo
Ohms. Se existe ritmo além da rotação das hastes nos pratos, ele é formado na temporização
dos motores. Repetidos e dispostos no piso como um jardim, os cogumelos emitem também
uma frequência grave nos alto-falantes que somada ao som agudo e metálico dos pratos, traz
uma qualidade meditativa, um drone119.
Percebendo como os objetos cogumelos são repetidos e como sua sonoridade é cíclica,
não seria descabido aproximar Cogumelo Ohms de um comentário sobre o minimalismo nas
artes plásticas já que compartilham de alguns elementos: uma estrutura modular distribuída
espacialmente formando uma “situação” que deixa à mostra seu processo temporal ou de
construção. O visitante da instalação inevitavelmente se desloca por ela com interesse quando
se dá conta de que é possível experimentar novas sensações sonoras se estiver em movimento,
seja com o corpo ou com os ouvidos. Isso acontece pois pelo artifício da repetição, o
cogumelo em si - torna-se menos importante como objeto:

Enquanto o trabalho deve ser autônomo no sentido de ser uma unidade auto-suficiente para a formação da
gestalt, do todo indivisível e insolúvel, os principais termos estéticos estão dependentes neste objeto
autônomo e existem como variáveis não-fixas que encontram sua definição específica nos pontos de vista
de espaço e de luz particulares ao espectador. Somente um aspecto do trabalho é imediato: a gestalt. A
experiência do trabalho se dá necessariamente no tempo. A intenção é diametralmente oposta ao Cubismo
com sua preocupação nas vistas simultâneas em um mesmo plano. [...] O objeto sensual, resplandecente
por suas relações internas comprimidas, teve de ser rejeitado. Mas que tantas considerações tenham de ser
                                                                                                               
119
“Quando o timbre é alterado sem mudança de altura, o resultado necessariamente deve ser algum tipo de
drone e o foco de interesse está nas mudanças discretas e/ou contínuas de timbre.” (ERICKSON, 1975, p.126)
  65  

consideradas para que o trabalho mantenha seu lugar como um termo da situação expandida, isso não
indica uma falta de interesse no objeto em si. No entanto, as preocupações agora se voltam para conseguir
mais controle e/ou cooperação da situação como um todo. O controle é necessário se as variáveis de
objeto, luz, espaço e corpo tiverem de funcionar. O objeto em si não se tornou menos importante. Ele
meramente se tornou menos importante para ele próprio. (MORRIS, 1966, p. 819 )

O artista norte-americano Robert Morris, em um dos principais textos sobre o


minimalismo (1966, Notes on Sculpture 1-3), explica que a repetição das formas simples é
que é capaz, como escultura, de criar “fortes sensações de gestalt”. Isso porque a forma
simples possui um potencial maior de se auto-completar na percepção, e se, além de utilizar
uma forma simples na escultura, o artista ainda repeti-la no espaço, o observador vai ao
mesmo tempo multiplicar os ângulos de visão de um mesmo objeto e ter uma experiência de
“resistência” contra a separação perceptiva das partes. É por isso que o tempo é o que aglutina
as partes idênticas de uma obra minimalista. Deslocando-nos pelo espaço geramos o tempo
onde apreendemos a situação proposta pelo trabalho120. Assim, a forma serial pretende dar ao
visitante novos e constantes fluxos de estímulos sensíveis, sem que ele perca a sensação de
totalidade do trabalho121. Seria assim a ideia de tempo despido da subjetividade que os neo-
concretos buscavam, o contrário da vivência, uma aproximação mais literal e pragmática do
universalismo de Mondrian.
Chelpa Ferro parece se apropriar ou comentar a repetição minimalista em Cogumelo
Ohms, com a mesma desenvoltura com a qual se apropria do solo de bateria de Led Zepellin
para a montagem da imensa Moby Dick. Pelo som, comenta-se pop e minimalismo. Mas se
temos a capacidade de apontar de que se trata de um “comentário” e não um revival, é porque
o trabalho compactua com o aspecto mais indesejado pelos minimalistas da década de 60: a
intimidade. O íntimo ou o particular era tudo que os minimalistas nas artes visuais queriam
eliminar: discutia-se a escala ideal de um módulo para se ter valores de totalidade
(wholeness), o detalhe deveria ser enfaticamente eliminado, tudo isso para gerar o espaço
literal entre as partes por onde o corpo do visitante poderia se deslocar sem obstáculos
perceptivos. Mais importante ainda, e para afastar qualquer possibilidade de se quebrar o
                                                                                                               
120
KIM-COHEN (2009, p.69) sugere que o fator do tempo no minimalismo das artes plásticas poderia ser
analisado dentro da ideia de musicalidade.
121
O termo “minimalismo” fora trazido das artes visuais para a música para designar o estilo musical que se
desenvolvia por compositores como Terry Riley, La Monte Young, Philip Glass e Steve Reich na década de
setenta (POTTER, 2000, p.1)
  66  

Figura 14: Cogumelo Ohms, 2004, pratos de bateria, motores, mãeo-francesa, amplificadores, som. Rio de
janeiro, foto: Luiz Zerbini.

wholeness, era a forma de grade ortogonal, o quadriculado (grid) no qual os módulos


deveriam estar dispostos.
  67  

Para Morris, o grid, ou esquema ortogonal, é a forma mais simples de organizar uma
série de módulos de ângulo reto. Além da “menos inerte e menos orgânica” por distribuir de
forma homogênea um conjunto de sólidos de ângulo reto no espaço euclidiano, e
consequentemente a pressão da gravidade que através deles atua no plano. Por esses motivos,
o artista crê que a grade seja uma das sintaxes fundamentais das “premissas culturais da
construção”, uma continuidade do valor universal neo-plástico de Mondrian. Já para Richard
Sennett que investiga a grade e a ortogonalidade como forma estruturante das cidades
modernas, e em especial as norte-americanas, o grid é neutralizante, uma forma de negar a
complexidade da geografia122.

Na subsequente história do urbanismo ocidental, a grade tem sido de uso especial para começar um novo
espaço ou na renovação de espaços existentes devastados por catástrofes. Todos os projetos de
reconstrução de Londres após o Grande Incêndio de 1666, de Robert Kooke, John Evelyn, e Christopher
Wren, fizeram uso da forma de grade romana; esses esquemas influenciaram americanos como William
Penn a conceber a construção de uma cidade a partir do zero. A América [do Norte] do século dezenove
parece ser uma nação inteira de cidades criadas sob os princípios do campo militar romano, e o exemplo
americano das “cidades instantâneas” por sua vez, influenciou a construção de novas cidades em outras
partes do mundo. Nenhum design físico, no entanto, dita um significado permanente. Grades, como
qualquer design, podem se tornar o que uma sociedade em particular quiser que ela representar. Se os
romanos viam a grade como um design de grande carga emocional, os americanos foram os primeiros a
usá-lo para um propósito diferente: para negar que a complexidade e a diferença existissem no ambiente.
A grade tem sido usada em tempos modernos como um plano que neutralizou o ambiente. Ela é um signo
protestante para a cidade neutra [...] (SENNETT, 1992, p. 47)

Depois de considerar que as aproximações que grid têm com objetivos de tornar o
tecido urbano neutro ou a escultura homogênea, Cogumelo Ohms, mesmo mecânico e
temporizado, extravasa o quadriculado minimalista já que se distribui sensualmente no
espaço. O som grave dos amplificadores de Cogumelo Ohms, sempre presente no espaço
mesmo quando sua programação escolhe friccionar um ou dois pratos por vez, cria a sensação
de chão, de todo, sem inibir novas possibilidades de ouvir à instalação já que ela aceita a
intimidade na disposição dos cogumelos e na diferença sutil dos pratos de bateria e
amplificadores. A vivência tem espaço para se desenvolver.
O som da instalação está arraigado em sua própria intimidade, é uma sonoridade que
não quer neutralizar o espaço mesmo porque o prato como usado no rock, é tocado para
elevar bruscamente a quantidade de agudos nos ouvidos, incitando o ouvinte com energia
sonora e de forma passional. Pratos, no rock são tocados com baquetas para produzir picos.
Em Cogumelo Ohms, são friccionados para produzir ondas, planaltos. E se por trás do grid
                                                                                                               
122
SENNETT, 1992, p.52
  68  

existem projetos de uniformização da experiência no espaço e da geografia, Chelpa Ferro se


apropria do quadriculado para propagar relevos.

3.2.2 Acusmática e pulso

Talvez porque Chelpa Ferro seja favelado123 que ele tenha montado uma estrutura serial
com curvas e morros em Cogumelo Ohms. Só que não se pode deixar seus materiais e
soluções impermanentes se sobreporem à geometria de seus mecanismos e sistemas, a
racionalidade das engrenagens. Elas operam juntas. Jungle Jam (2006) está nessa direção
porque é muito como Cogumelo Ohms em sua temporização do contato físico, mas no lugar
dos címbalos e hastes, são usados sacos plásticos presos a mixers (eletrodoméstico)
atarraxados na parede, fazendo o plástico friccioná-la quando giram. Esses módulos são
distribuídos em mais de uma sala no espaço expositivo, e assim, quando o controlador
determina que toquem, o som dos sacos plásticos invade o espaço, tornando audível um
mesmo padrão de som em diferentes modulações provocadas pela arquitetura do lugar.
Em obras como Samba, Cogumelo Ohms e Jungle Jam, vemos a atividade material, a
energia que opera na matéria de maneira a produzir som. Foi a trajetória de Chelpa Ferro que
levou o som que era produzido em suas primeiras performances no meio da década de
noventa e editado digitalmente em seu primeiro disco, para o Merz desses objetos e
instalações mais recentes.
Chelpa Ferro II, o segundo disco do grupo gravado em 2004, é produzido por Berna
Ceppas a partir de um material sonoro misto. Gravações de ruídos animais (grilos e porcos,
sons de sintetizadores analógicos customizados tocados pelos membros do grupo, batidas
eletrônicas e a participação de músicos como Domenico Lancelotti sugerem que a
performance está nesse álbum acontecendo menos na plataforma digital do software de edição
e mais na própria dinâmica do estúdio.
No entanto, será no próximo álbum onde a sonoridade será gerada a partir da
performance extra-software. Em Chelpa Ferro III, os próprios objetos – acompanhados de
músicos – são as fontes de som para a gravação do disco. Quando ficam invisíveis, oferecem
apenas sua dimensão audível e levando em consideração que o som que ouvimos pelo disco
não é o mesmo que reverberava no espaço expositivo, e que esse som está agora longe da
visão no espaço da gravação fonográfica, os trabalhos soarão acusmaticamente.
                                                                                                               
123
VIANNA, 1998, p.34
  69  

A palavra acusmática faz referência ao séquito de aprendizes de Pitágoras (570 a.c. a


490 a.c.)124 que no método do filósofo deveria ouvir às suas palestras sem olhá-lo para melhor
apreender seu conhecimento125. Uma cortina o esconderia. Esse termo foi atualizado pelo
compositor francês Pierre Schaeffer durante o desenvolvimento da música concreta entre as
décadas de quarenta e sessenta para descrever um tipo específico de escuta, uma escuta que
desconhece a fonte geradora de som. Schaeffer, nos estúdios radiofônicos que o auxiliaram na
elaboração da música concreta fez uso das conexões entre a tecnologia de gravação e a
experiência acusmática do som126. Isso não necessariamente quer dizer que o auto-falante
poderia se comportar como a “cortina” de Pitágoras, afinal é causal o rompimento da ligação
entre o som gravado emitido pelo auto-falante e o objeto causador desse som. O aspecto da
acusmática que atraia Schaeffer era que essa condição servia na descoberta de “corpos
produtores de som e maneiras de colocá-los em vibração, gravando os sons obtidos,
manipulando estas gravações, escutando-as”127 para e experimentando estruturações”. A
acusmática era um método sensível que poderia levar, como afirma Palombini, a escuta do
som concreto à abstração musical a partir desses procedimentos que tratavam a sonoridade
quase como uma matéria plástica.
Chelpa Ferro III faz livres interpretações dos procedimentos schaefferianos. O som de
Acusma (2009), por exemplo, é acompanhado pela bateria do percussionista Stephane San
Juan, que improvisa a partir das vozes que compõe esse trabalho. Acusma é uma das poucas
instalações de Chelpa Ferro que utilizam o som gravado; nela, alto-falantes são colocados
dentro de vasos de cerâmica de formatos diferentes distribuídos no espaço, em um esquema
estrutural similar ao de Cogumelo Ohms128. Os alto-falantes emitem vozes masculinas e
                                                                                                               
124
PYTHAGORAS, In: Standford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em
<http://plato.stanford.edu/entries/pythagoras/#PosSouPyt>
125
PALOMBINI, 1999, s.n.
126
KANE, 2007, p.17
127  PALOMBINI,  1999,  s.n.  
128
Para a exposição de Acusma na galeria Progetti, Tunga escreveu o texto/poema Entram pelas orelhas, saem
pelos olhos: […] Apenas buracos e ocos, recheados. Não há mais vazios, não há mais buracos. Não há mais
ocos./ Somos um só almiscarado, vitríolo, tangente, úmido, espantoso.../ Também, só que no sentido inverso,
imerso na arquitetura vejo uma série de ocos. Vasos ocos./ Armou-se um estratagema, um equipamento ou
dispositivo que os transforma, os traduz./ Este dispositivo clareia os vasos de luz,/ luz invisível./ Vemos os vasos
embora transparentes. Entram pelas orelhas e saem pelos olhos. Saem cheios de tanta coisa que não cabem nos
ocos, cheio de tanta coisa que já não cabem no buraco. Não há mais oco, não há mais buraco. Tudo está cheio.”
  70  

Figura 15: Chelpa Ferro, Acusma, 2010, vasos de cerâmica, amplificadores, falantes, dvd. São Paulo:
Paralela 2010, Licei de Artes e Ofícios, foto: Ding Musa

femininas pronunciando números repetidamente. Cada número é dito por mais de uma pessoa
e em uma tonalidade diferente, sendo que cada auto-falante corresponde a uma voz específica.
A espacialidade que é dada na distribuição dos alto-falantes, unida ao ritmo e à mudança de
tom na pronunciação dos números, cria uma topologia sonora que pode se planificar quando
um mesmo número dito por uma mesma pessoa em loop. Em Chelpa Ferro III, essa pequena
topologia sonora é atravessada pelos bumbos, pratos, e caixas de San Juan (o músico foi
também participantes da performance Pilha em 2001), que acompanha a energia da repetição
das vozes.
Acusma, como On-Off Poltergeist ( com a qual o ex-membro Chico Neves fez remixes,
processamentos e edições), são casos particulares da proposta de Chelpa Ferro III pois não
são trabalhos que produzem sua própria sonoridade a partir do contato físico, em vez disso,
Acusma utiliza a gravação das vozes e On-Off Poltergeist o som da TV analógica.
No disco, os trabalhos que têm a característica de produzir a própria sonoridade – a
saber, Samba, acompanhado pelas guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá, Jungle Jam, pelo
baixo de Berna Ceppas e ruídos eletrônicos de Kassim, e Microfônico pelo o cello de Jacques
Morelembaum - estão “atrás da cortina” da gravação fonográfica. Tornam-se uma textura
  71  

ambiguamente sonora e visual, uma imagem acústica, pois ainda é possível sentir seus
materiais e o ritmo do contato físico que a eles é dado. Os sons desses trabalhos são mantidos
na gravação como são quando estão expostos na galeria, o que lhes mantém a performance
com a qual o espectador experimenta as propostas de Merz e montagens.

3.2.3 Estética da obsolescência

Os três discos de Chelpa Ferro são materiais relevantes para analisar o


desenvolvimento artístico do grupo pois sintetizam os procedimentos, materiais e propostas
que estavam em curso no período de produção. Chelpa Ferro I, o álbum que motiva o início
da criação de objetos, está circunscrito na mudanças de hardware de gravação pela qual os
estúdios fonográficos brasileiros passam na década de noventa; uma situação tecnológica que,
como foi descrito, se imprime inevitavelmente no conteúdo produzido. Com a introdução das
estações de trabalho virtuais como o Protools, é previsível que exista um período de
experimentação com as ferramentas para que se compreenda seus limites e comportamentos.
Curiosamente o primeiro álbum, por sua virtualidade que acabou restringindo a
performance ao vivo, levou o grupo a explorar a sonoridade como uma nova realidade
material. Chelpa Ferro se aproveita assim da situação de contínua substituição de hardware
que é imposta pelas mudanças de padrões industriais e formatos de áudio e age sob o
imaginário do acúmulo e do descarte, com procedimentos de Merz. Para fazer Ciclotron
(2001) por exemplo, foram usados um amplificador, um oscilador de frequência, um alto-
falante e uma cuba de vidro com café colocada sobre o falante; a vibração do oscilador assim
desenha padrões no líquido.
É significativo que as montagens entre materiais e processos com o objetivo de obter
com elas sonoridades, só entrariam no estúdio fonográfico como fontes sonoras, como
performances em si, em um momento onde a estrutura do estúdio já é predominantemente
digital e onde os operadores dessa estrutura já incorporaram as rotinas e ferramentas que são
naturais desse ambiente. Dessa maneira Chelpa Ferro I e Chelpa Ferro III mostram diferentes
entusiasmos e distanciamentos com os quais os artistas atuam no registro ou na criação de um
ruído significativo.
4 WALTERCIO CALDAS
O museu, o a vitrola e o regime silencioso
  73  

4 Waltercio Caldas: O museu, a vitrola e o regime silencioso

Sem que a música acabe e deixe o silêncio ocupar os ouvidos quando a agulha da
vitrola toca o sulco vazio, o sulco dos intervalos entre as canções, esse disco possui uma
forma incomum para sua única faixa. Trata-se de A Entrada na Gruta de Maquiné, disco
compacto de Waltercio Caldas e Sérgio Araujo de 1980. Quando se observa a face “A” desse
disco, não se vêem trilhas, faixas ou intervalos – mas sim um anel solitário gravado que pela
ausência dos pontilhados característicos da superfície musical do vinil, levanta suspeitas de
que é absolutamente silenciosa. A suspeita se concretiza: nada, ou quase nada por meio dele
se ouve. A agulha que toca o anel, toca o silêncio gravado.
E a agulha que desliza nesse anel vazio de sons não percorre a espiral que percorreria
em um disco convencional, mas sim um único trilho – um anel – e está presa em um único
lugar no tempo que a superfície do vinil ofereceria ao ouvinte. Essa forma tira qualquer
movimento de abertura do braço da vitrola em função da duração do disco.
Virando esse disco que até agora não chegou a lugar algum, não começou, nem
terminou ou sequer tocou um som fora a própria textura da mídia, a textura musical retorna:
nessa face está gravada a composição eletro-acústica 3 Músicas de Sérgio Araujo, co-autor
do disco-objeto. A colaboração entre o artista e o compositor está também na arte da capa de
A Entrada. Nela propuseram uma troca: o lado correspondente à composição de Araújo seria
ilustrada por Waltercio e vice-versa. Sérgio, para a capa da face de Waltercio, propôs que
fosse colado um anel de papelão de rolo de fita adesiva, fazendo uma espécie de moldura para
o corte circular que exibe a etiqueta do disco. Waltercio conta que esse material é dificilmente
encontrado ainda separado da fita adesiva, o que o levou a organizar reuniões com a empresa
3M para que cedessem parte dos rolos de papelão para a produção da capa das quatrocentas
cópias de A Entrada. Caldas também pensou em incorporar um objeto tridimensional para
ilustrar a face correspondente a 3 Músicas de Sérgio Araujo. A rolha que é parte do objeto
“Garrafas com Rolha” de 1973, foi feita na escala do furo central do disco e ali enfiada como
se o tampasse, (na verdade, só é possível tirar o disco da capa se ele for “destampado”). O
adesivo dessa face é uma fotografia de Garrafas com Rolha, trabalho de 1975, que envolve a
pequena rolha justamente no lugar onde a rolha original estaria.
A gruta que deu título ao compacto de Waltercio e Sérgio, é um sítio geológico no
município de Cordisburgo(MG). A gruta de Maquiné chamou atenção do artista justamente
pela desproporção entre sua entrada – uma rachadura baixa e estreita na rocha – e seu interior,
catedraticamente amplo. Segundo Waltercio, as dimensões desproporcionais da gruta
  74  

contribuem em seu disco para uma “produção de lugar”, como se atendo-se a um breve
instante circular fosse possível vislumbrar a entrada em um outro lugar129.
A Entrada seria então, dentro da especificidade de sua mídia, um objeto capaz de gerar
campo ou espaço já que suspende o desenvolvimento do tempo do disco, algo que poderia
reconfigurar o hábito perceptivo de escutar à gravação como um registro de andamento ou
duração. Assim, no tempo suspenso, a percepção, segundo o artista, é dragada para o campo.
Outras características desproporcionais de A Entrada podem ser identificadas no paradoxo
entre o formato do disco – compacto que tem duração média de doze minutos – e sua
gravação vazia e em formato de anel, que poderia tocar sem nunca dar registro de seu
andamento ou enfim acabar. Falhas, riscos e poeira seriam no entanto, atalhos pelos quais a
escuta conseguiria registrar o período da repetição. A rigor, A Entrada na Gruta de Maquiné
só é infinito até o completo desgaste da agulha ou do próprio vinil.

4.1 Velocidades e suspensões

A Entrada na Gruta de Maquiné leva adiante a exploração dos limites entre


representação e abstração, um atributo recorrente na obra de Waltercio Caldas130. Anda uma
Coisa no Ar, 2002, é talvez um dos exemplo mais objetivos (chamada até de “emblemática”
pelo crítico Paulo Venâncio Filho) que nos apresenta uma possibilidade de aparição do
“estado de imagem”, uma condição intermediária do objeto que – flutuando entre a realidade
e seu “nome” – deixa o espectador vislumbrar a estranheza do momento do pré-
reconhecimento, um momento antes da identificação do que é aquele objeto.
Em uma longa mesa de aço e tampo de vidro, estão dispostos – nesta ordem - pedras
de carvão, pedras de quartzo transparente e taças de cristal; a maioria dessas possuindo duas
hastes também de cristal que aparentam atravessar o corpo vazio de sua copa. Entre cada
conjunto existem estruturas metálicas (em forma de “S”, porém em ângulos retos) que
parecem querer apontar das pedras de carvão em direção às taças, guiando nosso olhar
principalmente por essa direção. A mesa é iluminada verticalmente, o que faz com que esses
                                                                                                               
130
Caldas afirma em entrevista “O que estou tentando dizer beira a abstração, mas é exatamente nessa região
nebulosa que reside meu interesse, num momento antes dos nomes. Me explico: antes de sua identificação os
objetos parecem flutuar algum tempo em seu aspecto apenas, em sua primeira impressão, e é nesse momento
fugaz que apresentam sua maior capacidade significativa, pois no momento seguinte, já identificado e nomeado,
só nos restará… revê-lo. O que eu quero dizer é que este instante sem nome é o momento poético dos objetos.
[…] Minha “missão impossível” preferida é tentar fazer com que essa promessa de presença resista o maior
tempo possível nos objetos, como se estivéssemos vendo coisas que ainda não são, e no entanto, estão ali,
paradoxalmente visíveis, como peles de presença.” (RIBEIRO et al, 2006, p.19)
  75  

elementos se projetem de forma difusa no chão. No plano dessas sombras se forma uma
articulação muito diferente daquela que se constrói imediatamente em cima da mesa de vidro.
As estruturas metálicas, devido ao ângulo de projeção da luz, se planificam na forma da letra
“H” eliminando a tensão de progressão que essas estruturam desempenham no plano
tridimensional. Equilibra-se assim – entre sombra e objeto - uma certa vontade da forma de
Anda uma Coisa no Ar de avançar o olhar do carvão em direção às taças.

Figura 16: Waltercio Caldas, Anda Uma Coisa no Ar, 2002, mesa de aço, vidro, quartzo, taças de cristal,
carvão. Vila Velha: Museu Vale, 2010. foto: Caroline K.

É possível perceber que o cinetismo131 de Anda uma Coisa no Ar se desenvolve tanto


na transformação da aparente tensão provocada pelas estruturas de aço no plano
tridimensional que neutralizam-se em suas sombras, como na inter-relação dos conjuntos
carvão, cristal e taça:
Os pedaços de carvão suspensos na transparência, flutuando sobre o vidro seguem na direção do cristal. O
trabalho é imóvel, mas condensa uma rapidez incomensurável, a velocidade mais extrema está presente
                                                                                                               
131
“[…] Cinetismo, em vez disso, é certa qualidade sutil do movimento que apenas as superfícies mais
impalpáveis (como as sombras ou a convexidade dos menores fragmentos de uma taça quebrada) são capazes de
registrar.”(SALZTEIN in: CALDAS, 2010, p.108)
  76  

no instante mesmo em que o contemplamos. Pois como é possível visualizar a transformação de milhões
de anos do carvão ao cristal? Só uma imagem mental é capaz de ultrapassar tal distância e apresentá-la
numa sala de exposições. A obra, já dissemos antes, é um aparelho de relativização de distâncias.
(VENANCIO FILHO, In: CALDAS, 2010, p.47)

Ainda que carvão e quartzo sejam duas matérias distintas, Paulo Venâncio Filho deixa
evidente que está incorporado em Anda uma Coisa do Ar o sentido de tempo. Essa abertura
para temporalidade no entanto, é diferente da ideia kandinskiana de Oiticica na qual está
arraigada a musicalidade da cor.
Nesse ponto são percebidos dois recursos críticos comuns nos textos sobre Waltercio
Caldas, prenunciados aqui pelas observações de Paulo Venâncio Filho e Sônia Salzstein, que
podem orientar um mapeamento da sonoridade em diversos trabalhos do artista. O primeiro
desses aspectos é o “estado de imagem”, conceito criado pelo próprio Waltercio e uma das
características formais pela qual permitiu Paulo Venâncio Filho perceber o sentido de tempo
em Anda uma Coisa no Ar e Sônia Salzstein, o seu “cinetismo”. O segundo é o silêncio,
utilizado em muitos textos sobre a obra do artista como o “outro lado do vazio” e qualificando
a temporalidade que está implícita em obras como Anda uma Coisa no Ar: estará o tempo
desses trabalhos desligado da sonoridade?

4.2 O silêncio crítico


4.2.1 A menção do jazz
Além de servir ao artista como vitalidade e ritmo (veja capítulo 2), o jazz pode
incorporar às artes plásticas também por meio de metáforas, como o que ocorre com uma
escultura do artista de 1998 que utiliza aço inoxidável, vidro, rocha e lã. Aqui o jazz não soa:
Thelonious Monk faz o aço inoxidável tocar o calor da pele de coelho, pontuado-o com três
pequenas chapas como etiquetas com a gravação: “THELONIOUS MONK”. Alfredo
Montejo Navas no artigo Plástica Sonora Brasileña a considera um exemplo do uso do
“silêncio como matéria”, percebendo-a também como uma espécie de ilustração das
harmonias dissonantes que costumam ser identificadas com o estilo do pianista:

Não poderíamos dizer que muitas das esculturas do artista são acentuações do silêncio? Elas não tratam
sua invisibilidade como trasparência? Uma transparência que é também processo de trabalho. Essa
interpretação pode ser extendida para outras peças esculturais que revelam aquele outro lado do ar, como
Rilke designou a música, como Vox, Timbre ou Inn, ou mesmo Jazz mirror (2003), no entanto nós
gostaríamos de enfatizar Thelonious Monk (1998) como uma referência emblemática nesse aspecto, onde
o valor assimétrico das notas do pianista sui generis do bebop aparece acentuado em seus valores como
intervalos, como se a música fosse espaço em movimento. (NAVAS, 2004, p.65)
  77  

. As pequenas etiquetas, semelhantes aos dessa peça, mas com nomes escritos de
Rodchenko, Kafka, Tarsila do Amaral, Galileu-Galilei, Matisse, Goeldi, Heráclito, no entanto,
já haviam surgido na produção de Waltercio ocupando um lugar diferente ao de legendar e
indicar referências de uma metáfora unicamente formal.

Figura 17: Waltercio Caldas, Thelonious Monk, 1998, pele de coelho, aço inox, acrílico, granito, 2010. São
Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud.

A recusa afirmativa do trabalho de Waltercio às referências, dados e temas que não


sejam seus próprios problemas formais, sugere que a presença de Thelonious Monk em uma
de suas esculturas pretende trazer à tona a “perplexidade do objeto”132. Por isso, para evitar
                                                                                                               
132
VENÂNCIO FILHO, 2008, p. 46
  78  

uma percepção ilustrativa das dissonâncias de Monk no objeto de Waltercio Caldas, é


interessante ouvir o discurso do artista, que diz querer buscar o “momento antes dos nomes”
nos objetos. Essa seria sua “missão impossível”, o objeto ainda sem nome, e este, seu
momento poético e desconhecido133, alongado a temporalidade de suas esculturas. Thelonious
Monk, o músico, poderia desempenhar na obra de Waltercio um papel anterior ao de seu
nome e de referências e memórias concretas de sua música, como se fosse transposto ou
transformado em uma função derivada das características de suas sonoridades e que não está
necessariamente conectada a elas ou quer comentá-las. Circunda assim entre a abstração e a
representação, entre silêncio e discurso. Transforma-se em uma espécie de fonema134.
Thelonious Monk, a escultura, desvia da metáfora na medida em que deseja o descolamento
entre músico e música, e leva o substrato dessa separação ao encontro do aço e à pele de
coelho.
O espectador que observa o objeto já conhecendo a música de Thelonious Monk, não
necessariamente o reescuta pelos olhos através de Caldas, mas são convidados por esse objeto
a remexer memórias perceptivas mais anteriores aos nomes, memórias incorporadas,
musicais, físicas, raramente silenciosas.

4.2.2 A estranha evidência do silêncio

“A experiência sonora que eu prefiro a todas as outras é a experiência do silêncio. E o


silêncio em quase todo lugar do mundo agora é o trânsito.”. O silêncio que nessa afirmação de
John Cage é sujeito à contaminação (além de uma condição dinâmica, pois aceita sua
transformação em som de trânsito) aparece como um sinônimo para o vazio e o puro em
diversos textos sobre a obra de Waltercio Caldas. Nesses não há menção a A Entrada na
Gruta de Maquiné.
Compreender essas metáforas e à que servem implica considerar o caráter utópico do
silêncio, que para o ouvido humano, é uma experiência perceptiva que a rigor nunca se
vivencia:
Pois, quando, depois de convencer a si mesmo por ignorância, que o som tem um claramente definido
oposto, o silêncio, desde que a duração é a única característica do som que é mensurável em termos de
silêncio, pois qualquer estrutura válida envolvendo sons e silêncios deve basear-se, não da forma
ocidentalmente tradicional, sobre a freqüência, mas justamente sobre a duração, a pessoa entra numa
                                                                                                               
133
RIBEIRO et al, 2006, p.19
134
WEISS, 2008, trata justamente das operações miméticas entre linguagem e sonoridade. Entre diversos
questionamentos do artigo se destaca a hipótese de que a diferença entre mímese e abstração é uma aporia
estética comum a todas as artes, e por meio dessa diferença aconteceriam transposições formais entre diferentes
formas de arte, como por exemplo, artes plásticas e música.
  79  

câmara anecóica, tão silenciosa quanto tecnologicamente possível em 1951, para descobrir que se ouve
dois sons de nossa própria fabricação não-intencional (a operação sistemática dos nervos, a circulação do
sangue), a situação que este claramente se encontra não é objetiva (silêncio-som), mas sim subjetiva (sons
apenas), os intencionais e os outros (chamados de “silêncio”) não intencionais. (CAGE, 1961, p.12)

Cage, em sua afirmação (que é em parte relato pois de fato entrou em uma câmara
anecóica135), apresenta uma noção de silêncio dependente de sua condição subjetiva, pois, na
vida existe somente uma condição possível: sons apenas. O silêncio é possível somente em
uma condição “impura”, dentro dessa faixa da ausência de sons intencionais. Segundo Paulo
Sérgio Duarte, no entanto, houve um momento onde um tipo de silêncio ainda era possível
nas salas de exposição:

Na obra de Waltercio Caldas, a reconstrução do prazer do olhar passa, por isso mesmo, pela integração do
silêncio e pela forma enigmática. […] Antigamente, por princípio, toda obra de arte se calava. Mas será
que precisamos lembrar certas obras cinéticas, seus motores e seus mecanismos, para saber que o ruído do
mundo, há muito, invadiu de fato as salas de exposição? Faz mais barulho, ainda, a invasão brutal dos
ícones da sociedade de consumo, incorporados cinicamente ou mesmo tratados criticamente.[…] Por isso,
a obra de Waltercio restaura o direito ao silêncio. Tal como o vazio expressivo, esse silêncio – que era
comum a toda obra de arte – se estabelece como um mais-silêncio. Quando se quebra e sua fala se
manifesta, ela é baixa, no máximo sussurra a solidão, sem lamento ou melancolia, como nas naturezas-
mortas de Morandi. Antes satisfeito com essa condição de existência, o silêncio, ou a fala baixa, se
apresenta como um “estado de imagem”, para usar uma expressão do próprio artista. Conquistado ao
longo do processo de construção da obra, o silêncio torna-se tanto mais denso quanto mais o trabalho se
vai despregando de qualquer retórico embutida, quanto mais se torna independente de referências
externas e impulsiona uma inteligência puramente ótica . (DUARTE, 2000, p.85)

O silêncio do qual trata Paulo Sérgio Duarte está ligado a regimes diferentes daquele
do silêncio tecnológico, possível no interior de uma câmara anecoica. O silêncio que descreve
Paulo Sérgio Duarte é a afirmação de uma prática estética (“Por isso, a obra de Waltercio
restaura o direito ao silêncio.”). Está essencialmente ligado ao “prazer de olhar”, além de
servir muitas vezes de metonímia para o recurso do “estado de imagem” (o silêncio é o estado
de imagem) de Waltercio Caldas e analogia para o vazio (“Tal como o vazio expressivo, esse
silêncio...”). Tal silêncio é a condição perceptiva do regime da não-figuração que emerge no
Modernismo, contrapondo-se aos atos discursivos que eram possíveis na mimese do espaço
tridimensional da pintura representativa.
O silêncio como analogia do vazio reaparece no texto A Consciência do Intervalo de
Agnaldo Farias, aqui, mais próximo à ideia de pausa musical:

É uma profunda consciência das possibilidades do intervalo entre as coisas o aspecto diferencial da obra
de Waltercio Caldas. Pode-se chamá-lo de pausa, silêncio, ôco, parênteses, vazio. Cada objeto serve de
ponto, onde o olho se atraca para se lançar na prospecção do invisível e voltar com novas notícias do que
parece ser a expansão do raciocínio escultórico. (FARIAS, 1996, p.76)
  80  

O silêncio-pausa de Farias, assim como fez Ilse Kuijken (“Essas esculturas estão em
seu espaço como o ar na música”136) encontra seu lugar numa espécie de ritmo criado pelo
raciocínio formal de Caldas. O ritmo escultórico do artista foi também ouvido por Paulo
Venâncio Filho:

[...] Simples como o silêncio mais baixo onde se ouve os infrasons do silêncio. E o silêncio vem de todos
os lados em precisos ataques de sintonia. Um silêncio de aço, simplesmente. Desta forma lacunar é sólida
na sua frequência mais extrema. Pois só inúmeras camadas de vazio podem auto-sustentar uma
desocupação do total espaço (Jorge Oteiza) para desvelar e oferecer o espaço. Ele então se faz vivo e
pulsante, em síncopes desritmadas e articuladas. Fica a expectativa de algo que demora, uma espera,
suspense natural. (VENÂNCIO FILHO, 2008, p.49)

Paulo Venâncio Filho cria uma possibilidade paradoxal para o silêncio, um silêncio
cujos “infrasons” podem ser ouvidos em “ataques de sintonia”, novamente dentro da alusão
ao vazio, mas que aqui assume um caráter impuro e musical, ainda que reafirme o controle do
artista sobre a matéria silenciosa com a precisão que se assemelha à leitura de uma partitura.
Entretanto, na exposição “Gravuras e Desenhos” no Gabinete de Arte Raquel Arnaud
em 1995, as obras de Waltercio Caldas não estão caladas. Uma metáfora sonora foi feita pelo
crítico Lorenzo Mammi:

A ciência acústica conhece um fenômeno chamado som de combinação, ou terceiro som. Se duas notas de
alturas diferentes, mas relativamente próximas, são tocadas simultaneamente, suas freqüências entram em
choque e produzem uma terceira nota claramente audível, equivalente à diferença entre elas. Embora
tenha sido descoberto no século XVIII, até hoje não se sabe se o terceiro som é uma realidade física ou
uma reação neurológica. Por analogia, poderíamos pensar nos trabalhos de Waltercio Caldas como
objetos de combinação, ou terceiros objetos. Neles há grande proximidade, e portanto choque, entre
projeto da obra e sua presença física.[…] Como duas oscilações próximas mas diferentes que entram em
fase, pensamento e matéria criam assim uma perturbação, uma vibração secundária, que não pode ser
reconduzida, embora seja, com toda evidência, um reflexo delas. A substância do trabalho de Waltercio
está justamente nessa vibração, algo que não é corpo nem idéia, algo que não enxergamos na obra, mas
que podemos intuir através de, ou graças a ela. Onde está a obra, nesse caso? Não apostaríamos em sua
realidade física, tampouco em seu caráter de mera ilusão dos sentidos. (MAMMI, 1995, s.n.)

Como uma espécie de substrato, o fenômeno do som de combinação é uma metáfora


para o produto do choque entre matéria e pensamento, segundo Mammi. Se essa metáfora
sugere a conciliação físico-espiritual do neo-plasticismo, a metáfora devia os atos discursivo
sda representação (ou melodia) escolhendo não a musicalidade, mas um fenômeno acústico
para explicar a aparição do “estado de imagem” nos objetos de Caldas.

4.2.3 Ping-Ping

                                                                                                               
135
KAHN,
136
In: KUIJKEN, 1992.
  81  

A ideia da notação musical e Thelonious Monk ressurgem nos textos de Paulo Sérgio
Duarte sobre a instalação Ping-Ping, originalmente uma intervenção de 1980 na vitrine da
galeria Saramenha, remontada em sua individual Salas e Abismos, no MAM em 2010:

Muitos trabalhos de Waltercio têm um quê das boas improvisações do bebop: as notas são sugeridas, não
se encontram por inteiro na execução, sua reconstrução é parte da experiência do olhar. Ping-Ping é uma
partitura onde o “intérprete” é mero executante, não tendo nada a acrescentar. O olhar percorre as
“notas”, onde todos os elementos estão dados. […] Permanece, ao lado da transparência, o silêncio,
elemento de Ping-Ping, parte constitutiva de seu enredo, que percorre a galeria sem se oferecer como
trama sensível. (DUARTE, 1980, p.36)

Utilizando uma mesa de pingue-pongue em posição vertical, frente aos olhos como
uma tela, Ping-Ping faz mais do que desconstruir a forma da mesa do esporte: a rede flutua
entre os olhos e o plano verde, acompanhado por uma raquete furada exatamente no diâmetro
da bola, flutua também a própria bola e mais próximo do observador, um óculos escuro
opaco. Como em Anda uma Coisa no Ar, depara-se com a sugestão de temporalidade
novamente, mas com a menção da instantaneidade do jogo e por consequência, da suspensão
de seu ruído137.
Paulo Sérgio Duarte menciona em sua introdução ter reconhecido que foi omitido o
papel do silêncio desse trabalho, “já tão presente na obra do artista desde seu início138. O
silêncio aqui é aliado da transparência ótica, evidenciado segundo o crítico no corte da
raquete, na oposição em relação à cegueira sugerida pelo óculos opaco e na flutuação dos
elementos no vazio do espaço da instalação, cegueira também descrita pelo próprio artista139.
Duarte não deixa de mencionar, no entanto, outra obra que faz uso dos elementos do pingue-
pongue e de suas características sonoras: A Mesa e Seus Pertences de Nelson Leirner. “Um
jogo de pingue-pongue numa exposição, com a óbvia trilha sonora é mais que prosaico, é
banal[...]”140. A Mesa e Seus Pertences, exposta em 2002 na 25ª Bienal Internacional de São
Paulo, dispunha em uma sala uma mesa de pingue-pongue feita de acrílico transparente. Três
mil bolinhas e duzentos e cinqüenta raquetes permaneciam enclausuradas dentro de caixas
também de acrílico, nas paredes desta sala. O espaço, sonorizado com uma gravação do ruído
de uma partida do jogo. “Que é ai que eu faço uma partida imaginária. Você não vê nada, mas
o jogo está acontecendo"141.
                                                                                                               
137
DUARTE, 1980, p. 36
138
Idem.
139
NAME, 2010, s.n.
140
DUARTE, 1980, p. 36
141
Cf. LEIRNER et al., 2002.
  82  

Aparentemente, a descrição de Leirner faz também menção à cegueira e sua ênfase


através da presença da sonoridade do jogo de pingue-pongue, no entanto, apresenta uma
alternativa à suspensão silenciosa realizada por Waltercio Caldas. Não se está sugerindo aqui
que houve um diálogo diretamente dirigido entre os artistas, mas é no entanto necessário
destacar a afirmação de Paulo Sérgio Duarte sobre a banalidade do recurso utilizado por
Nelson Leirner, onde, tal banalidade se concentra, segundo o crítico, na presença do som
gravado, trazendo à tona novamente a necessidade que Fried vê em desocupar a obra de arte
de discursos, narrativas e literalidade.

4.3 Modificando a indústria fonográfica

Parece que existe uma tradição de o artista fazer disco assim como ele realiza também filmes. Mas a
questão não é a história do disco, mas do processo industrial. O artista utiliza-se do disco como uma das
possibilidades da linguagem. No meu caso, houve também a questão da montagem industrial, quando
visitei uma linha de produção. O meu interesse foi criar uma ironia. A produção industrial expele
quantidade. Ao fazer esse disco minha ideia era a de provocar, em relação à indústria, sua própria dúvida.
Como se a indústria se perguntasse sobre si mesma. A questão desse disco não é a de um artista plástico
fazendo-o. É também a de um música que realiza um trabalho de arte. O disco trabalha nessa tensão. A
questão de ouvir ou de ver. Ele pretende romper com os limites do visível e do audível. (Waltercio
Caldas em entrevista In:COUTINHO, 1981, s.n.)

Na entrevista que deu a Wilson Coutinho na matéria, publicada em 1982 no Jornal do


Brasil, Waltercio Caldas traz à luz um outro aspecto de seu disco compacto que repousa além
do silêncio de sua mídia e na forma pouco convencional de sua gravação: sua origem na
indústria fonográfica. Como veremos em Mebs/Caraxia e Sal Sem Carne de Cildo Meireles, o
artista posiciona-se criticamente dentro do ambiente de produção de seu objeto sonoro, o
ambiente industrial.
Coutinho narra que foi preciso reprogramar o sistema, modificá-lo, para que o
compacto fosse produzido142. O aparato dessa indústria, ainda que para uma pequena tiragem,
converteu-se de modo a acomodar uma ideia externa e que pouco atende às logísticas
estabelecidas então, na produção e venda da música gravada. Não estaria Waltercio, assim,
em sua A Entrada da Gruta de Maquiné, além do silêncio, provocando o ruído?
Esse ruído não seria o barulho do mundo, aquele que não entra em uma câmera
anecóica. Mas o ruído institucional que pode nascer a partir de uma ideia de ruído:

Uma rede pode ser destruída por ruídos que a atacam e a transformam, se o códigos estabelecidos forem
incapazes de os normalizar e reprimir. Ainda que a nova ordem não esteja contida na estrutura da antiga,
ela não é um produto do acaso. Ela é criada pela substituição de antigas diferenças por novas. O ruído é a
fonte dessas mutações nos códigos estruturais. A despeito da morte que ele contém, o ruído traz em si
                                                                                                               
142
COUTINHO, 1981, s.n.
  83  

uma ordem, traz em si informação nova. […] A presença de ruído faz sentido, traz significado. Faz
possível a criação de uma nova ordem em outro nível de organização, de um novo código em outra rede.
(ATTALI, 1985, p. 33)

Para Attali, a o regime da música gravada - as políticas da indústria fonográfica -


encontrou em sua história, meios de silenciar o ruído transformador e neutralizar sua ameaça
em diferentes instâncias. Em sua dimensão estética, a gravação elimina o risco da
performance e do erro – o ruído – o que leva ao esquecimento da “energia da performance”,
sua anterior conexão com a vida cotidiana e seus riscos. Na instância de sua distribuição e sua
presença na sociedade, a música gravada silencia pela homogeneização auditiva que promove,
sua infiltração na vida pública e privada como “um monólogo da instituição”, pois é somente
possível e construída por meio de uma centralização de poder que seleciona e manipula o que
será gravado, produzido em escala de massa e reproduzido à exaustão. O ruído, poderia ser
entre tantas outras coisas, o que escapa ao “mundo administrado”.
Dentro da noção do ruído institucional, a ironia de Waltercio se sintetiza na intenção
de silêncio, pois esta se torna ruído no momento em que deve ser concretizada, por meios
pouco convencionais, em um ambiente de rígida organização. O aparato industrial,
idealmente à salvo de erros e desvios em suas inúmeras padronizações de formato, contamina-
se – ainda que de maneira temporária - com o ruído silencioso de Waltercio Caldas, que o
obriga à reprogramação.
Apesar de Attali afirmar que o silenciamento almejado pela indústria fonográfica só
pode ser compreendido em sua integralidade se levarmos em conta a cadeia do mercado
fonográfico inteira, que passa pela gravação, sua distribuição, compra e inserção no mundo
público e privado – A Entrada na Gruta de Maquiné, na pequena abertura que se formou na
indústria (em seu cerne, seu aparato), colocou em dúvida sua ilusão de segunda natureza143.
Nas palavras de Attali: ”Isso faz a sociedade repetitiva ser mais fácil de se analisar que a
sociedade que a precedeu: impondo silêncio por meio da música, ela fala por si.”144
Se for levado em conta que o Compacto Simples foi possível na colaboração entre
músico e artista plástico em um momento da situação cultural do Rio de Janeiro que favorecia
o encontro de artistas de diferentes linguagens (a união musical de Caldas com Tunga e Artur
Omar é um exemplo), surgem outras posições da obra frente ao regime silencioso das artes
plásticas não-figurativas. Em primeiro lugar, a colaboração entre Caldas e Araújo
                                                                                                               
143
“O artista trabalha sobre essa [segunda] natureza. Mas coloca-a em dúvida. Esse processo não é
representacional. A indústria tem um vínculo com uma suposta veracidade. Ele se pretende se fundar como
verdade.” (Waltercio Caldas em entrevista In: COUNTINHO, 1981, s.n)
144
ATTALI, 1985, p.127
  84  

automaticamente dilui as separações greenbergianas bem-definidas entre as práticas estéticas


da música e das artes plásticas. Em segundo lugar, ainda que a vitrola que toque A Entrada
propague o silêncio feito por um artista, esse silêncio vai de encontro com o barulho do
mundo. Não pretende solucionar o ruído ou comentá-lo, oferece ao contrário, a possibilidade
do regime silencioso se tornar removível do museu, se dissipar no mundo e assim confundir
os dois lugares.
5 CILDO MEIRELES
Além-olho
 
  86  

5 Cildo Meireles: além-olho

Este espaço se forma de maneira pensada, foi cuidadosamente construído. É um


quadrado grande o bastante para mais de dez pessoas, cercado por uma grande rede de pesca
avermelhada que cai do alto como uma cortina, mas permitindo ver além dela. Aqui pode-se
conversar enquanto pegamos essas bolas pretas do chão... são pesadas mas conseguimos
agarrá-las firme. Calar a conversa só faz deixar aparecer um diálogo mais muscular
arremessando as esferas, deixando que caiam, pulem, rolem para longe para alguma outra
pessoa devolver para qualquer outro canto (fig.18).
Ouve-se as esferas caindo, cada uma com seu barulho que muda na maneira em que
são jogadas; dependendo da força, esse som pode ficar mais grave e intenso. Outros barulhos
soam também, que não vêm dos arremessos. Percebemos que vêm das mesmas bolas, é uma
gravação. Uma escuta mais cuidadosa dessas outras esferas revela que elas caem em uma
velocidade anormal. Como pode uma bola demorar tanto a cair e rolar? E essas que caem
rápido, logo rolam, e enganam a percepção em como deveriam cair e depois rolar? Umas
caem mais perto, outras bem longe, às vezes se confundem com as bolas de verdade.
O movimento no espaço pode ser influenciado por essas esferas que não estão
visíveis, o que leva a questionar se o totem com uma balança de medida, no meio desse
espaço, pode explicar o porquê. Em um prato da balança está uma esfera, noutro, três. A
balança mostra que, apesar da diferença de quantidade os dois pratos têm exatamente o
mesmo peso. Então cada bola tem um peso... Não que nossos corpos não tenham percebido
isso antes, afinal, os músculos informam, comunicam coisas. A balança, aqui no meio, só
decodificou pelo número o que poderia ser descoberto pelo braço.
Quem quis mostrar essa relatividade dos pesos na força muscular e nos ouvidos,
desestabilizar um pouco o teimoso senso de gravidade, o fez concebendo um campo
dinâmico, e pressupondo que ali aconteceriam coisas que eventualmente o extrapolariam
(quem irá dizer o que sentir e como experimentar?). Eureka/Blindhotland (1970-75) tem os
sons de suas próprias esferas gravados de diversas maneiras: com o microfone próximo ou
distante, com sua velocidade manipulada para soar mais rápida ou mais lenta. Essa maneira
múltipla de ouvir um mesmo evento sonoro impede que o visitante forme um centro de
gravidade em sua própria escuta, assim evitando uma atitude contemplativa ou puramente
cerebral: quem entra ali, participa - e pelo menos - não extrairá algo somente pelos olhos.
  87  

Figura 18: Cildo Meireles, Eureka/Blindhotland, 1970-75, rede de pesca, esferas, balança, trilha sonora.
Londres: TATE Collection/American Fund, 2004.
  88  

O olho. Cildo Meireles não quer separá-lo do corpo em Eureka/Blindhotland, quando


o coloca em “segundo plano”, “simplesmente para tomar conhecimento e unificar aquele
‘campo’”145:
Porque o olho também é corpo. Mas a história do olho foi tão excessivamente manipulada, que não sei
qual a possibilidade de execução de um trabalho democrático em arte, levando em conta só o olho. Eu
acho que o olho é importante, importantíssimo, mas enquanto se estiver trabalhando tem-se que estar
pensando em coisas além do olho, simplesmente. (MEIRELES, 2008, p.64 )

Eureka/Blindhotland não “leva em conta” outros sentidos além da visão. Não é


concebida no também (“é visual e também sonoro e também tátil...”). A instalação é, como a
experiência do corpo no mundo físico, essencialmente tudo isso sem separações, sejam elas
estéticas, culturais ou funcionais. Mas isso não pode ser dito de maneira tão óbvia. Não é
óbvio o fato de que Cildo Meireles não compartimenta os sentidos e depois cria ligações
estéticas entre eles. Mesmo porque Cildo Meireles claramente faz um julgamento de valor do
além-olho, vê nele uma noção “mais democrática” de arte esse posicionamento será
fundamental em muitos de seus trabalhos. A partir daqui, portanto, deve-se buscar a
característica emancipadora da dimensão audível, sem colocá-la em uma caixa separada no
aparelho sensível.

5.1 Clic-clic: Cigarras no MAM-Rio

No dia 24 de outubro de 2010 o vão dos pilotis do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro estava cheio e barulhento: ali pessoas comemoravam seis domingos especiais do ano
de 1971. Esses domingos de quatro década atrás eram dedicados ao lazer nas áreas livres do
museu com as propostas do curador Frederico Morais, que organizou diversas atividades
criativas abertas ao público.
Especiais o bastante para que fossem celebrados depois de tantos anos e mudanças
políticas (e um incêndio, que destruiu boa parte do acervo do museu em 1979), os “novos”
Domingos da Criação aconteceriam em três domingos seguidos do mês de outubro nas
mesmas áreas onde foram primeiramente realizados na década de 70, e o primeiro evento
comemorativo - o domingo do qual Cildo Meireles participou - propunha: Encontros do lado
de fora: som, palavra e ruídos.
Muitas pessoas que foram ao MAM nesse evento procuravam “a obra do Cildo” -
chamado por ele de Cigarra - e circulavam no espaço atrás da assistente que tinha com ela,
                                                                                                               
145
MEIRELES, 2008, p.68
  89  

mil cigarras feitas em liga metálica que seriam distribuídas ao público naquela tarde. Um
objeto de menos de dez centímetros, a pequena cigarra quando apertada faz um clic gostoso.
Como é muito fácil clicar muitas vezes seguidas, o objeto nos dá um prazer de brinquedo,
tanto na sensação do clique na mão quanto seu som; um clique não muito agudo que faz
querer repetir o movimento compulsivamente. O clic em si, porém, não diz muito sobre o que
pode acontecer quando essa ação se torna coletiva e espacialmente distribuída.
E foi o que se pôde presenciar: nesse dia, o clic-clic se espalhou em todo vão do
museu e seus jardins. Em toda a área ocupada por pessoas eram ouvidos clics próximos ou
distantes, sobrepostos, articulados, seguidos, simultâneos, ritmados ou esparsos. Eram curtos
os intervalos de tempo onde um clique não era ouvido. O sistema de som trazido pelo artista
carioca Paulo Vivácqua para seu happening Remanifestos era constantemente usado pelo
público da mostra para amplificar suas falas e também as cigarras, o que trazia mais uma
camada sonora de pequenos estalos, agora passando pelo diafragma do microfone.
Onipresente nos ouvidos, algo, por outro lado, era raro de se ver: as próprias cigarras.
Dava para vê-las rapidamente quando alguém levava alguma ao microfone ou quando um ou
outro participante mostrava seu objeto quando clicava. Vez ou outra, ouvi pessoas
perguntando “o que é esse barulho?”, já que não identificavam da onde vinha. Uma mimese
feliz: as cigarras de Cildo insistiam em se camuflar na dimensão monumental do museu da
mesma maneira que as reais fazem na natureza; que, quando disparam a cantar, dificilmente
são vistas ainda que se possa ouvi-las nitidamente. E a diferença grande entre o ruído da
cigarra real – um glissando longo e estridente - e o clique da cigarra do artista, só reforça uma
ligação mimética não por suas qualidades sonoras, mas pela invisibilidade necessária à sua
presença acústica, coletiva e onipresente. Dessa maneira, a subtração do objeto na visão e a
sua multiplicação pela área aberta do museu ofereceram um outro tipo de percepção espacial:
a percepção do espaço auditivo146 dos jardins e vão do MAM. É porém através do público -
seu corpo, sua ação - que esse espaço se configura:

O som é produzido e inflexionado, não só pela materialidade do espaço, mas pela presença de outros, por
um corpo ali, outra acolá, e outro ali. Assim, o evento acústico é também social: na multiplicação e
expansão do espaço, o som gera necessariamente uma multiplicidade de "pontos de vista" acústicos,
acrescentando operações de sociabilidade ao evento acústico[...] O som já é sempre um evento público,
                                                                                                               
146
Carpenter e McLuhan em Acosutic Space (1960) descreveram o termo espaço auditivo como não tendo
“nenhum ponto de foco favorecido. É uma esfera sem fronteiras fixas, o espaço feito pela coisa em si, não o
espaço que contém a coisa. Não é o espaço pictórico, em caixotes, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas
próprias dimensões, momento a momento. Ele não tem limites fixos, é indiferente ao fundo. [...]”. A discussão
sobre o espaço auditivo teve grande desenvolvimento no campo da música eletroacústica, que, rejeitando
qualquer redução e abstração como as de Acoustic Space, empreendeu esforços artísticos e linguísticos para
expandir as possibilidades e capacidades estéticas da escuta. Cf. SMALLEY, 2007 e CAESAR, 1997.
  90  

no que ele se move de uma única fonte e logo chega a vários destinos. [...] A escuta é, portanto, uma
forma de participação na experiência conjunta de um evento sonoro, mesmo que banal. (LaBELLE, 2010,
p.X)

A experiência social de Cigarras é diferente da descrição de Brandon LaBelle no


sentido em que nela existem muitas e não uma única fonte sonora, além de inúmeras
possibilidades de combinações entre as fontes (os próprios participantes) no espaço. Porque é
necessariamente a partir da audição e de uma resposta a um chamado sonoro no espaço – um
mínimo clic - que um participante de Cigarras pode desencadear reações em um grupo, que
pode influenciar outro grupo, que por sua vez faz uma pessoa clicar sua cigarra, e assim por
diante. Essa forma sistêmica imprevisível de Cigarra é quase impossível de se mapear já que
também é capaz de incorporar as mais arbitrárias influências como o clima, situação da
cidade, acontecimentos políticos, etc.
Esse fluxo de alta absorção e participação é movediço o bastante para inibir a vontade
de descrever seu desenvolvimento sonoro no espaço de forma fixa, como talvez aconteceria se
pensássemos em Cigarra em termos musicais ou paisagísticos147. É possível pensar nesse
trabalho em outro sentido, examinando como ele posiciona o indivíduo e o grupo no espaço
público: esses jogos de escuta148 são fundamentalmente mediados pelo espaço construído e
por como ele é ocupado pelo público. Se considerarmos que as relações humanas na cidade (o
encontro, a sociabilidade, a qualidade e duração das relações) e o espaço público se afetam
mutuamente149, temos um indício de que as relações que foram possíveis entre os participantes
de Cigarras, tiveram alguma, senão influência direta do espaço modernista do MAM. Assim,
compreendendo Cigarras como uma proposta que leva as pessoas a uma relação afetiva com
seu entorno, fica mais evidente seu diálogo com o projeto arquitetônico de Affonso Eduardo
Reidy.

5.1.1 Affonso Eduardo Reidy e a antiga ideia de rua

Após mudar de duas sedes provisórias (salas no Banco Boavista e depois no


Ministério da Educação e Saúde ) o MAM foi finalmente construído na praia de Santa Luzia
em 1958. O edifício integrava um projeto maior: a construção do Parque do Flamengo, uma
reforma urbanística fundamental que projetou uma nova paisagem para a cidade do Rio de
                                                                                                               
147
“Paisagem Sonora: termo de R. Murray Schaefer pelo qual poderia se analisar o “barulho do mundo”, está
nele implícito o distanciamento pictórico entre sujeito e paisagem. Cf. SCHAEFER, 1977.
148
“Jogos de Escuta” foi título de um programa de eventos e palestras, organizado no Barracão Maravilha,
CAPACETE e Espaço Imaginário na cidade do Rio de Janeiro em 2010. Usarei esse conceito para definir a
dinâmica de escuta e ação de Cigarras.
  91  

Janeiro, mudança que seria somente concluída na década de sessenta. O museu, do ponto de
vista arquitetônico, complementaria o aterro como uma plataforma de contemplação150 dando
visão à Baía de Guanabara e alongando-se horizontalmente junto ao parque. A suspensão que
possibilitou seu vão livre, além de deixar que o museu se integre ao paisagismo de Burle
Marx e dê visão total à Baía, serve de abrigo para atividades culturais - como as de Domingos
da Criação - sem impedir uma fluida circulação pelos jardins e interior do museu.
Reidy, por meio desse vão livre, responde a uma das doutrinas de Le Corbusieur que é
na verdade um dilema: o que fazer com o lazer? Os princípios do arquiteto e urbanista francês
151
para sua cidade “do futuro”, a utopia realizável, chamada de Cité Radieuse , incluem a
questão do lazer como uma pergunta e até mesmo um empecilho para o grau de
racionalização urbanística que propunha. O lazer para o jovem Le Corbusier se torna um
problema, e portanto uma atividade racionalizável, compartimentável, um dado social
controlável como outro qualquer, já que a rua, como conhecemos, deverá ser morta em sua
cidade radiante. Com letras maiúsculas, Le Corbusieur declara morte à rua em seu conjunto
de doutrinas:

Mas a era do automóvel chegou. E seria inútil para mim dizer o que isso significa: vocês só têm que ir
para a rua para ver por si próprios. A biologia humana está agora de braços com uma nova velocidade.
Nossas pernas (movimentos alternados), foi substituído pelo (movimento contínuo) de rodas, o nosso
traseiro corre em quatro rodas, o cavalo tornou-se uma unidade de potência. Em vez de um cavalo, temos
5 - ou 10 - ou 15 - ou 40 cavalos-vapor que nos levam, não ao dobro da velocidade que foi antes, mas, às
vezes, dez, vinte vezes, em quarenta vezes que a velocidade! ! E então? Nossas autoridades urbanas
acham que tudo vai se resolver no final. Não vai. Nada vai se resolver. Temos que construir novas
cidades. (LE CORBUSIEUR, 1929, p.120)

Ocupando a área de lazer modernista, uma construção remotamente cúmplice das


missões estético-funcionalistas de eliminar a “antiga” ideia de rua em prol da nova
velocidade, Cigarras se comporta como um índice da utilização social do lugar construído: o
som é ali um termômetro crítico da sociabilidade que esse espaço permite. É crítico, já que a
arquitetura do Museu de Arte Moderna é também inseparável do discurso político que o
fundou: um museu que, aproveitando sua localização em um espaço público projetado para
ser vigorosamente amplo e democrático, ajudasse a desenvolver a sensibilidade do cidadão
na compreensão da arte moderna152, além de servir como um espaço educativo e de
socialização. Cigarra funciona assim como um entreposto dinâmico entre a arquitetura e as
                                                                                                               
149
Cf. CERTEAU, 1984.
150
ELIANE, 2000, p.43
151
Cf. LE CORBUSIER, 1929.
152
Cf. MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO, 1999.
  92  

pessoas que a habitam: a imaterialidade do som é o meio mais imediato e veloz para
percebermos a afetividade entre elas.
Mas o diálogo com a arquitetura modernista ainda não cria uma perspectiva temporal
que nos ajuda a localizar e compreender Cigarras historicamente, vê-la além de seus jogos de
escuta. Podemos seguir para outro contexto: o espaço público na agenda histórica do MAM.
O tema é vasto e merecedor de muitos capítulos, o que me põe a fazer um exame mais pontual
sobre como as prerrogativas fundadoras do museu foram articuladas especificamente pelo
crítico, historiador e curador Frederico Morais tanto em Domingos da Criação quanto no
evento que o precedeu, Arte no Aterro.

5.1.2 A hipótese da participação

Realizado em 1968, meses antes do AI-5, Arte no Aterro consistiu em acontecimentos


simultâneos, gerados por obras de vários artistas, sem qualquer lógica explícita, senão a
participação geral do público.”153. Para esse evento surge um novo conceito inventado por
Rogério Duarte, o APOCALIPOPÓTESE, um termo concebido para definir o que fariam
Hélio Oiticica (com os Parangolés), Lígia Pape (com Ovos) e Antonio Manuel (com Urnas
Quentes) principalmente em relação à participação do público. Somando “apocalipse” a
“hipótese”, os três artistas e Rogério Duarte pretendiam com esse conceito ressaltar o caráter
livre e hipotético da participação do público, uma postura ideológica levando em conta o
contexto político opressivo e violento no qual agiam e lançavam proposições estéticas. Conta
Waly Salomão que essa foi uma estratégia de aproximar a participação à “estrutura do jogo,
afastando-a da rigidez do imperativo categórico.” Qualquer lembrança que a “hipótese” e o
“jogo” suscitam com a estética de John Cage, foi acentuada pela presença do compositor no
evento: Cage foi ao Arte no Aterro e relatou sua experiência com os artistas do Brasil em seu
texto Diário: como melhorar o mundo – você só tornará as coisas piores – continuado em
1969 – parte 5154
Foi como uma evolução das prerrogativas de APOCALIPOPÓTESE que Domingos
da Criação foi criado por Frederico Morais em 1971, já em pleno governo militar de Médici.
Agora não haveriam mais “obras” e “artistas”, o museu seria transformado em um depósito de
materiais brutos já que o evento era direcionado a priori à participação; era um convite ao
                                                                                                               
153
Depoimento de Frederico Morais In: SALOMÃO, 1996, p.75
154
“Aviso aos anarquistas brasileiros: melhorar o sistema telefônico. Sem telefone, será simplesmente impossível
começar a revolução.” (CAGE in SALOMÃO, 1996, p.77)
  93  

exercício da criatividade livre na práxis das artes plásticas. Se não se impunha a necessidade
da intermediação de um artista ou de uma concepção prévia de um acontecimento, o evento
praticava o preceito (popularizado por meio de Joseph Beuys) de que “todo homem é artista”
dando espaço a organizações espontâneas e reapropriações de objetos, e criação com
materiais e espaços. Sob temas abrangentes como “Domingos do Papel ”, “Tecido do
Domingo ” e “Domingo por um Fio”, “Som do Domingo”, “Corpo a Corpo do Domingo”,
Domingos da Criação assim se aproximava mais à vontade educativa do que aos objetivos de
uma exposição ou mostra. O público era numeroso, havia necessidade de liberdade e por
outras ideias de lazer que não aquelas inseridas em uma rotina pragmática, criadas somente
para tornar os dias de trabalho suportáveis, para citar novamente Hélio Oiticica155.
Após quatro décadas, em 2010, o evento é celebrado novamente no museu. Sem ter a
opressão à espreita, a opressão à qual APOCALIPOPÓTESE fazia oposição, Cigarra foi
recebida pelo público de tal maneira que lhe permitiu se espalhar amplamente pelo espaço,
permitiu que sua sonoridade se tornasse coletiva, densa e espontânea o bastante para
podermos escutá-la como um índice da ocupação de pessoas no prédio do MAM. Assim, sua
sonoridade também reflete um desvio fundamental que Cildo Meireles provocou no eixo que
geralmente sustenta um evento sonoro no espaço público moderno o som que vem “de um
para muitos”, um esquema que se desenvolve pelo surgimento e consolidação da indústria
cultural 156. Um comentário de Roland Barthes em seu texto A Escuta escrito na década de 70,
poderia ter sido feito sobre o que ocorreu com Cigarras em 2010:

Daí surge um movimento: os lugares de discurso estão cada vez menos protegidos pela instituição. […] se
acredita que, para liberar a escuta, basta alguém falar por si - ao passo que uma escuta livre é
essencialmente uma escuta que circula, que permuta, que desagrega, pela sua mobilidade, a rede fixa das
funções da fala: não é possível imaginar uma sociedade livre, se concordamos a priori em preservar
dentro dela os antigos modos de escutar: os do crente, do discípulo, e do paciente. (BARTHES, 1977,
p.259)

Ainda que Barthes estivesse operando em outros termos históricos, e estivesse se


referindo à “instituição” como as posições fixas das sociedades tradicionais onde a escuta
estava condicionada à sua posição hierárquica (“a escuta arrogante de um superior, a escuta
servil de um inferior...”), é possível sentir em Cigarras energias utópicas por uma “liberação
da escuta”, ou mesmo, pensá-la como uma metáfora da “escuta livre” no que multiplica os
                                                                                                               
155
OITICICA, 2009, p.59  
156
ADORNO, 1976, p.7
  94  

Figura 19: Cildo Meireles, Malhas da Liberdade, 1976-2008, peças de plástico. Londres: Turbine Hall,
TATE Modern, 2008. Foto: Tim Spear.
  95  

lugares de emissão, fazendo o som se propagar de muitos para muitos e em muitas outras
configurações sempre temporárias. Cigarras assim dá continuidade ao APOCALIPOPÓTESE
e o atualiza em um contexto político democrático.

5.1.3 Minimalismo lúdico

A quarta versão de Malhas da Liberdade, organizada na individual que o artista


realizou na Tate Modern em Londres em 2008, oferece algumas proposições pelas quais
Cigarras pode ter se desenvolvido. Essa sugestão é reforçada pelo fato de que a exposição do
artista foi acompanhada por Frederico Morais que participou do diálogo entre curadores de
diversas instituições que estavam envolvidas nos compromissos de Cildo Meireles na
Inglaterra157.
“Uma rede que não pesca nada, toda aberta”, o trabalho cria uma possibilidade
permeável, penetrável para o formato da grade (ou rede) que fora soldada em metal em sua
primeira versão. Nas palavras de Gabriela Salgado, curadora do evento que realizou a quarta
versão do trabalho no Turbine Hall158, Malhas da liberdade é “uma grade de prisão que se
contradiz a si própria porque com ela você não consegue prender nada com segurança, está
sempre aberta para coisas entrarem e saírem dela”. Nesse evento, milhares de módulos foram
distribuídos ao público. A unidade mínima era um palito de plástico vermelho com uma
estrutura de encaixe no meio e em uma de suas pontas, com a qual o público podia montar as
malhas que quisesse a partir de sua regra simples de encaixe e bifurcação. Como Cigarra,
Malhas da Liberdade só é de fato praticada quando a unidade mínima é multiplicada e
articulada com outras, nesse caso formando estruturas bi e tridimensionais a partir do formato
da grade penetrável. Por outro lado, o encaixe dos módulos de Malhas da Liberdade, ao
contrário dos jogos de escuta de Cigarra, não depende necessariamente da sociabilidade dos
participantes. Esse trabalho - talvez por não soar - oferece uma experiência mais
individualizada, mais próxima do desenho. O que ambas concretizam de forma parecida no
entanto, é a ideia de “minimalismo lúdico” que Cildo atribuiu às atividades de Domingos da
Criação159.
                                                                                                               
157
Entrevista de Cildo Meireles a Frederico Morais Material Language, na ocasião de sua exposição individual
na TATE em Londres. Disponível em: <http://www.tate.org.uk/tateetc/issue14/materiallanguage.htm>
158
O trabalho no formato participativo fora pensado em 1977 para um convite na Bienal de Paris, mas segundo o
artista (2009, p.266) a proposta acabou não sendo realizada.
159
Cildo menciona esse conceito em depoimento no vídeo produzido pela Produtora Matizar para a edição
celebrativa de Domingos da Criação.
  96  

Por “minimalismo lúdico”, compreende-se uma democratização dos procedimentos


artísticos do minimalismo, dos quais se destacam a repetição, a modulação, a distribuição
não-hierárquica das partes160, o uso de materiais industrializados brutos - ou “commodities”
nas palavras de Cildo Meireles - a distribuição no espaço levando-o em conta como um
elemento constitutivo da grande estrutura que se formará repetindo a unidade mínima. O
conceito, por ter sido citado no contexto de Domingos da Criação, sugere principalmente que
esses procedimentos sejam convites à participação do público em um ambiente de lazer.
O minimalismo em Cigarras está tanto na multiplicação de um mesmo objeto - a
cigarra fabricada a partir de um molde, quanto em seu ruído - “clic”. Clic, um estalo com as
pontas dos dedos é a resposta imediata a outro clic que ouvimos ainda mais rápido. Talvez um
dos menores índices e dos mais abstratos, um pequeno som que pode chamar a atenção e ao
mesmo tempo reverberar consideravelmente no espaço. O clic de Cigarras é um ponto de
som no espaço, seguido de outro, e de outros; forma cadeias que não dão pistas por onde
podem crescer. Um ponto que é uma exclamação que pode dizer “estou aqui” , “estamos
aqui”, “te ouço”, “estamos te ouvindo”, ou simplesmente vira a cabeça de uma outra pessoa
em alguma direção.
O encontro com uma eficiente e mínima estrutura sonora deu a Cigarras um caráter
intuitivo, espontâneo, topológico. Como o minimalismo, Cigarra buscou sua auto-explicação.

5.2 Deslize matemático: o disco compacto Mebs/Caraxia

Pegar. Até agora se pegou em uma esfera e uma cigarra de brinquedo. Pegá-las só
fazia sentido porque existia espaço à volta para arremessar as bolas e escutar os clics da
cigarra. Viu-se que o que é tátil de Eureka/Blindhotland e Cigarra é também sonoro, é corpo-
escuta-espaço. É da mão para o mundo, para o outro que dá o som de volta para os ouvidos.
O que acontece porém, quando não se tem mais nada o que pegar com a mão? Quando
só se tem algo a ouvir? E para ouvi-lo, ninguém mais é necessário, uma vitrola já executa
todo o trabalho? Um disco. Mesmo A Entrada na Gruta de Maquiné tem apelo tátil com seus
dois objetos – o rolo de durex e a pequena rolha – e seu vinil liso, mostrando silêncio. Mas
não é o que acontece com Mebs/Caraxia:

[...] A ideia era fazer uma escultura sonora. [...] Um lado chamava-se “mebs” por causa da fita de
Moebius; o outro lado era uma espiral, e para o título dessa espiral, eu resolvi usar a união de duas
palavras referentes a estruturas espiraladas: caracol e galáxia. Daí o nome “caraxia”. [...] Mebs/Caraxia é
                                                                                                               
160
MORRIS, 1966, p.820
  97  

o registro de freqüências sendo alteradas. Durante a gravação, eu tinha um gráfico e ficava seguindo-o.
Estabelecemos um eixo e então a frequência ficava acima ou abaixo dele. Então, nós fomos reconstruindo
aquele gráfico: a ideia era literalmente fazer gráficos sonoros. Como o gráfico lidava com a frequência e o
tempo, eu tinha dois eixos. (MEIRELES, 2009, p.249)

Mebs/Caraxia de 1970 é um disco compacto de duas faixas, cada uma gravada em


uma face do vinil. O que cada gravação guarda, como diz a descrição de Cildo Meireles, é
uma escultura de se ouvir. Essas duas esculturas tiveram origem em duas formas topológicas:
a fita de Moebius e uma espiral. Essas figuras, como observou Moacir dos Anjos, não podem
ser compreendidas dentro da tridimensionalidade clássica:

A escolha das figuras tomadas como enunciados de origem nesta translação deve-se ao fato de elas não
possuírem lados identificáveis e de não ser possível determinar aonde começam ou terminam, o que
impede que sejam descritas por uma geometria ancorada na tri-dimensionalidade. Apresentadas como
ruído somente, a incompatibilidade entre tais figuras e o homogêneo espaço euclidiano torna-se ainda
mais manifesta. (DOS ANJOS, 2008, In:MEIRELES, 2008, p.10)

De fato, assim diz o matemático Irving Adler, a fita de Moebius é um exemplo de


plano que não tem dois lados, possui somente um. A maneira mais comum de comprovar essa
característica é passar a ponta do dedo por uma das bordas da fita, e assim se percebe que, ao
contrário do que aparenta, a fita tem na realidade somente uma borda. Lygia Clark em 1964
corta com uma tesoura uma fita de Moebius ao meio em seu vídeo Caminhando, obra
emblemática, segundo Oiticica (fig.20, cf. capítulo 2). O que se consegue com isso não são
duas novas fitas, mas uma nova Moebius com o dobro do tamanho.
A fita de Moebius é um exemplo de “loop”, mas que diferente de um anel plano como
o de A Entrada na Gruta de Maquiné, engana a visão com uma suposta tridimensionalidade
euclidiana, em outras palavras, que pode ser medida em altura, largura e profundidade e esses
valores sendo um meio exato de localizá-la no espaço (que na geometria euclidiana também
se constitui por essas três dimensões). O mesmo acontece com a forma espiral, que não tem
arestas ou diâmetro: bi ou tridimensional, não podemos medir seus lados pelos parâmetros da
geometria a qual estamos acostumados161.

5.2.1 Glissando como som topológico

O trabalho do artista, que além de lidar com essa inadequação evidente das figuras
unidimensionais no espaço geométrico, praticou uma espécie de tradução com o oscilador:
seus gráficos, seus números tornariam-se som. Por isso se torna inevitável responder à
                                                                                                               
161
São estudados na Matemática da Topologia (cf. ADLER, 1976)
  98  

Figura 20: Cildo Meireles, Mebs/Caraxia, 1971, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 7in. Foto: a autora, 2010.

afirmação de Moacir dos Anjos quando descreve a sonoridade de Mebs/Caraxia como


“somente ruído”, pelo fato de que ouvindo atentamente às faixas é possível apreender os
padrões que desejam trabalhar no ouvido e reconstruir alguns de seus sentidos sonoros,
afinal, têm base numérica.
É também possível descrever o que se ouve: ambas as faixas possuem ritmos definidos
e freqüências que se repetem e se alternam em glissando (um deslize de um tom para outro).
Mebs, mais frenética que Caraxia, tem tons definidos que variam periodicamente: duas linhas
que transitam rapidamente de freqüências muito agudas às muito graves em uma espécie de
curva estreita. Quando chegam nas freqüências altas, ficam ali por mais tempo do que nas
baixas. Outras duas linhas atrás dessas seguem suas formas, porém se alternando entre
freqüências média-altas a média-baixas e nem sempre no mesmo sentido que as linhas do
primeiro plano. O ritmo de Mebs é definido por pulsos (que aparentemente não fazem parte
do gráfico da fita de Moebius) deliberadamente colocados em uma espécie de “segundo
plano”, para dar uma melhor sensação de espacialidade. Esse segundo plano também cria um
ambiente representativo para as linhas curvas principais, como uma tela, um papel em branco,
  99  

uma sala. Cildo conseguiu criar esse desenvolvimento sonoro utilizando um procedimento de
composição próprio.
O glissando, que é um deslize contínuo de um tom para outro, é realmente a estrutura
musical mais adequada para criar a impressão “unidimensional” em Mebs/Caraxia, como se
estivéssemos deslizando com os ouvidos na borda única da fita de Moebius. O glissando, uma
forma que se desenvolveu na música ocidental no século XX, é a mais simples das linhas,
sempre na iminência de se tornar melodia162, e nas palavras do compositor Edgar Varèse, é “o
desenho de uma linha descrevendo a gradação infinita da natureza”163.
Chamar glissandos e pulsos de escultura, porém, é quase uma analogia do próprio
artista, já que a visão e a audição reconhecem formas e desenvolvimentos no espaço de
maneiras muito diferentes, como Rodolfo Caesar percebeu ouvindo a faixa Caraxia:

Duas espirais que se cruzam no meio de suas trajetórias, uma vinda de cima para baixo, outra no sentido
inverso. No papel o olho vê que as linhas se cruzam, aceitando o óbvio que aqueles trajetos têm como
função a continuação após o cruzamento. No escuro o ouvido não pensa assim. Ouvimos dois glissandi
simultâneos, um vindo do alto (agudos) e outro de baixo (graves). Quando as duas linhas se aproximam, a
convergência é prevista, mas em seguida o cruzamento é duvidoso. Não podemos afirmar que as linhas
tenham se cruzado, assim como não podemos jurar pelo contrário, isto é, que cada uma volta para seu
ponto inicial. Ou podemos pensar ambas as soluções. (CAESAR, 1987, p.53)

Vemos aqui que uma linha como é percebida na dimensão da visualidade assume
outro comportamento espacial quando traduzida para a escuta. Porque então continuar
chamando Mebs/Caraxia de escultura? Foi uma escolha do artista, que buscou o que é
atraente para o ouvido na ideia de escultura criando uma nova ponte cognitiva entre sua
fisicalidade, seu apelo tátil, e a virtualidade do som gravado. Para garantir que essa conexão
se estabeleça na experiência de ouvir o disco, porém, Cildo Meireles tinha de chamar
Mebs/Caraxia de escultura sonora, entregar essa informação ao ouvinte. Nesse sentido, o
disco é também uma estratégia conceitualista já que existe uma prerrogativa ao objeto, uma
proposta ou conceito que é informado antes da experiência do observador/ouvinte, um acordo
verbal entre ele e o artista, mediado exclusivamente pelo próprio trabalho.
É assim, estabelecendo novas conexões cognitivas com os sentidos que esse disco, a
despeito de sua característica conceitual, não se distancia de Eureka/Blindhotland, e pode ser
tátil, ainda que as mãos não estejam tateando nada. Criando o elo entre a dimensão da
materialidade do disco e da virtualidade do som, a agulha é a peça que verdadeiramente
“pega” o disco, decodifica-o pelo toque. E é negando o espaço euclidiano, gerando um espaço
                                                                                                               
162
KAHN, 1999, p.83
163
Ibid. p.85
  100  

Figura 21: Lygia Clark, Caminhando, 1959, vídeo.

sem arestas, topológico, que a escultura sonora Mebs/Caraxia cria suas próprias dimensões:
visível (o objeto disco), virtual (sua gravação), tátil (o toque da agulha), sonora (seu som).

5.2.2 Tres Sonidos

Um fato curioso e que ilustra a “palpabilidade virtual” desse disco é que mesmo
ajudada pelo técnico de som, o processo de gravação quebrou várias agulhas por conta das
frequências pouco comuns ao padrões dos estúdios164. Que escultura imaterial é essa que
consegue quebrar uma agulha? Será que o glissando se recusava a se espremer dentro da linha
contínua do vinil? (lembrando Waltercio Caldas e a reforma que teve de fazer nas máquinas
para gravar sua Entrada na Gruta de Maquiné... os artistas plásticos no estúdio só causam
problemas?) E depois de pronto o disco Mebs/Caraxia, a ideia de fricção material continuou a
atrair o artista:

                                                                                                               
164
MEIRELES, 2009, p.250
  101  

Em determinado momento, comecei a me interessar em experimentar os materiais. Então a ideia era usar
disco de madeira, barro, cerâmica, aço ou mesmo lixas redondas substituindo o vinil. Era o disco
agredindo o próprio aparelho de som. Eram discos que só tocariam uma vez, porque a agulha precisaria
ser sempre trocada. A agulha retransmitindo o som do atrito era o que me interessava naquele momento.
(MEIRELES, 2009, p. 250)

Essa ideia depois permeia outro trabalho, Tres Sonidos (1977). São dois pares de luvas
com folhas de lixa de metal colados nas palmas. Um par tem lixas finas, outro, grossas.
Vestindo as luvas, é possível provocar três tipos de som: das combinações lixa fina + lixa
fina, lixa grossa + lixa grossa e lixa fina + lixa grossa165. Ainda que não mediado por uma
vitrola, o contato que provoca os sons de Tres Sonidos não é tão diferente da ideia de uma
agulha tocando um disco. É interessante pensar nesse trabalho como uma espécie de
reprodução fonográfica primitiva ou braçal já que revela para os ouvidos a textura de uma
superfície. A aflição da fricção é inevitável, mas pela ação do corpo e da força, o registro pré-
existente da lixa deixa de ser oculto ou silencioso, ainda que completamente abstrato.

5.3 Índios e padres

Uma outra noção de espaço emerge em Sal Sem Carne de 1975, o segundo disco do
artista que começou a ser produzido simultaneamente a Eureka/Blindhotland. O LP Sal Sem
Carne parece trazer para a dimensão política a crítica ao espaço euclidiano que Mebs/Caraxia
faz por meio da abstração, operando agora por meio de símbolos e narrativas históricas que
demarcam as divisões ou intersecções dos espaços do Brasil indígena e do Brasil português.
Sal Sem Carne provoca por meio do som o encontro de diferentes territórios e suas políticas,
por meio dos discursos de indivíduos ou instituições.
Cildo afirma em diversas entrevistas que mencionam seu segundo disco, que teve
como símbolo dessa oposição territorial o massacre de indígenas no Tocantins na década de
40 (conhecido historicamente como o Massacre dos Índios Krahô), que chegou na década de
40 ao conhecimento do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no Rio de Janeiro166, onde
trabalhava o pai do artista, o indigenista Francisco Meireles. Segundo o depoimento de Cildo,
a denúncia de um pastor protestante havia chegado à capital após uma série de tentativas de
fazendeiros do Centro-Oeste em exterminar os Krahô em disputas por terra. Os arquivos
online do ISA, o Instituto Sócio-Ambiental, de fato relatam que Mundico Soares, desde a
década de 30 herdeiro de três grandes fazendas da região, é citado como responsável pelo
                                                                                                               
165
FERNÁNDEZ, 2006, p. 302
166
CORREIA, Jorge C. O Índio Krahô, a Terra e o Direito Indígena. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, 2002.
  102  

assassinato de vinte e seis índios krahô e um sertanejo na década de 40. Cildo conta também
que seu pai trabalhou na conversão do inquérito administrativo do conflito por terras em um
inquérito policial, assim que a tragédia finalmente veio à tona no Rio de Janeiro. O inquérito
levou Mundico Soares à prisão por cinco anos pela morte dos Krahô e do sertanejo.
O disco foi produzido a partir do material sonoro que Cildo coletou de diversas fontes
que considerou representativas desse conflito histórico, inclusive no próprio Tocantins167. Na
mesma região do conflito, Cildo gravou entrevistas com moradores não-índios, aos quais
perguntava sobre suas impressões sobre a vida e o sujeito indígenas. É possível ouvir no LP o
próprio artista perguntando aos moradores que respondiam com entre outras opiniões, “O
índio é forte”, o “índio não crê em Deus”, “o índio come carne sem sal”. Essas falas são
perpassadas por diversos outros discursos e sons que podem ser manipulados pelo próprio
ouvinte em seu aparelho de áudio, já que no disco foi usado um recurso de mixagem que
permite o controle dos níveis do canal esquerdo e direito.

O disco é constituído por 8 canais: quatro ligadas à cultura branca-portuguesa e quatro ligados à cultura
indígena. Um dos oito canais, ligado à cultura branca, é exatamente a contagem da rádio-relógio, que dura
50 minutos, e marca o eixo do trabalho. Há no trabalho a gravação da festa do Divino Padre Eterno, em
Trindade, e uma gravação, que é uma espécie de terceira margem do rio, num acampamento em São
Cotolengo, que é uma das duas ou três maiores romarias do Brasil. Tenho guardado na memória as
pessoas caminhando em frente à casa da minha avó, nas décadas de 1950 e 60. Elas passavam rezando,
caminhando de joelhos, “pagando promessas”, carregando objetos e seguindo a romaria. Além disso, há
no disco uma entrevista com o Zé Nem, o índio Xerente, cuja história se remete ao Zero Cruzeiro, uma
outra entrevista com um sertanista, que trabalhou com o meu tio Chico e Apoena (meu primo) e
finalmente uma terceira entrevista com os índios kaiapós. O disco foi feito de uma forma onde num dos
canais há a possibilidade de se mixar/regular o discurso dos “brancos” e dos “indígenas”. Toda a captação
dos sons foi feita na Brasil: a rádio-relógio no Rio de Janeiro e o resto em Goiás. (MEIRELES, 2009, p.
259)

Escutar Sal Sem Carne é participar da construção de discursos de diversas origens,


naturezas e conflitos do Brasil: enfrentam-se e se entrecruzam no espaço acústico do disco,
canções folclóricas sertanejas goianas, a voz da Rádio Relógio AM que informa o horário
oficial de Brasília, a voz de moradores de áreas rurais da divisa de Goiás e Tocantins, cantos
indígenas, sermões de padres, crianças índias. Desviando da fácil assimilação que se pode
fazer do estéreo e seus canais direito e esquerdo com metáforas de contradições e até mesmo
as próprias posições políticas de esquerda e direita, Cildo traz para a “terceira margem do rio”
dois sons mais problemáticos: o depoimento de Zé Nem, índio que deixa sua sociedade para
viver na cidade e a paisagem sonora da procissão do Divino Pai Eterno. A romaria já é em si
uma ambigüidade em sua história que começa em 1840, quando um casal de camponeses
encontra acidentalmente um medalhão com a representação da Santíssima Trindade no
  103  

Figura 22: Cildo Meireles, Sal Sem Carne, 1974, 1 disco sonoro, 33 1/3rpm 12in. Foto: still do documentário
Cildo, direção: Gustavo Moura.

córrego do Barro Preto em Trindade (GO). O achado e o objeto despertam desde então a
devoção de habitantes da região e de fiéis de todo país. Porém, segundo o organizador da
procissão Amir Salomão Jacob, somente após 60 anos de romarias regulares que houve a
presença de representantes da Igreja nesses eventos e na construção do Santuário do Divino
Pai Eterno (1912), que dali quase um século receberia finalmente o título de basílica menor
pelo Papa Bento XVI (2006)168. Nisso reside sua ambigüidade histórica, um fenômeno
religioso que emergiu às margens das instituições oficiais do Vaticano e simboliza no
deslocamento da multidão fiéis no território que considera “sagrado”, a fusão da crença
popular com o texto religioso.

5.3.1 Referencialidade e a virada etnográfica

Se a breve descrição do artista pouco esclarece como o Massacre dos Índios Krahô é
problematizado como fato histórico no disco, o mesmo levanta questões sobre como a
                                                                                                               
167
Segundo Melatti (1967, p.4), a região do conflito se localiza no município de Babaçulândia - TO.
  104  

experiência auditiva se comporta frente a referências culturais como as que acabamos de


descrever. No curso deste texto, nos resta pensar: em que medida a tragédia dos Krahô
influencia a experiência de ouvir o disco Sal Sem Carne, tendo em perspectiva que a figura da
Fita de Moebius e a espiral são fundamentais na concepção e audição das esculturas sonoras
Mebs/Caraxia? Para responder a essa questão mesmo de forma puramente especulativa, é
primeiro preciso compreender o que Cildo Meireles julgou necessário, o que foi selecionado,
e seu papel como orquestrador dos discursos de Sal Sem Carne.
É fundamental ter em mente que o artista desempenhou diversas funções na reunião
do material sonoro: se apropriou de material radiofônico, entrevistou cidadãos tocantinenses
ele próprio como um repórter, pediu depoimentos ao sertanista e Zé Nem, gravou os eventos
religiosos nos procedimentos do que se denomina field-recording, gravou as canções
sertanejas como na atividade da etnomusicologia. A maioria dos procedimentos de Sal Sem
Carne, ao contrário da natureza matemática/fonográfica de Mebs/Caraxia, se deram no
mundo, no encontro com o outro, fora feito como um trabalho de campo.
Assim, Sal Sem Carne está de certa forma em sincronia no que o historiador norte-
americano Hal Foster chama de paradigma etnográfico da arte, uma prática percebida por ele
em artistas contemporâneos que se associam ao outro cultural ou étnico em contestação à
instituição de arte burguesa/capitalista:

A virada etnográfica na arte contemporânea é também direcionada por desenvolvimentos internos a uma
genealogia mínima da arte dos últimos 35 anos. Esses desenvolvimentos constituem uma sequência de
investigações: primeiro relativas aos materiais constitutivos do meio artístico, depois, sobre suas
condições espaciais de percepção e, então, das bases corpóreas dessa percepção – mudanças marcas pela
arte minimalista no começo dos anos 60 até a arte conceitual, da performance do corpo e a arte site-
specific, já no início da década de 1970. Assim, a instituição de arte não pôde mais ser descrita só em
termos espaciais (estúdio, galerias, museu, etc...), pois era também uma rede discursiva de diferentes
práticas e instituições, outras subjetividades e comunidades.[...] Obviamente a crise das descrições
restritivas da arte e do artista, identidade e comunidade, foi pressionada outrossim por movimentos
sociais (direitos civis, feminismos variados, políticas estranhas, multiculturalismo) da mesma forma que
os desenvolvimentos teóricos[...] Portanto, a arte deslocou-se para o campo ampliado da cultura, espaço
esse pensado pela pesquisa antropológica. (FOSTER, 1996, p.305)

Com relação ao objeto de contestação contra o qual artistas se voltam unindo-se ao


outro antropológico, poderia ser adicionado, no caso de Sal Sem Carne, o papel da
incorporação de um outro modo de fazer, que é particular ao sistema da música. Quando
Cildo Meireles visualiza o aparelho de áudio (vitrola, amplificador e falantes) como
ferramenta crítica, quando confia ao ouvinte essa mediação possível na própria gravação de
                                                                                                               
168
Reportagem de Talitta Di Martino, Trindade-GO. Disponível em
<http://www.goiastrindade.com.br/site/%28bhwed545jxqk4ibe1v4lqzjt%29/site/indexInst.aspx?acao=prod&id=
154805&usuid=4582&conteudo=Walter%20Jos%C3%A9%20e%20Talitta%20Di%20Martino>
  105  

áudio, está também modificando o modo de fazer do registro fonográfico, e consequentemente


agindo simultaneamente na construção histórica dos procedimentos estéticos e críticos da
música e das artes plásticas.
Repetidamente, Jacques Attali em Noise: The Political Economy of Music descreve a
relação privilegiada que a gravação fonográfica possui com o poder. Esse está incorporado
em diversas instâncias e estágios da gravação, desde dimensões políticas como a seleção do
que será gravado e reproduzido em escala de massa, como aspectos técnicos: tecnologias e
aparatos de gravação, que segundo Attali, são aparelhos coniventes com a manutenção do
poder ou que podem ser aplicados esteticamente de forma a combatê-lo169. É clara a posição
do artista nesse debate, seu desejo de criar território auditivo para os que estão à margem do
que é documentado ou difundido na indústria fonográfica e de criar o “ruído transformador”,
citando novamente Attali, quando os territórios conflitantes se sobrepõe. Ao mesmo tempo,
Cildo consegue estabelecer distância suficiente de uma atitude panfletarista, quando abre sua
obra para manipulações e possibilidades de mixagem inesperadas.
Mas é, no entanto, recusando documentar um fato histórico de forma precisa que Sal
sem Carne não pratica o que Hal Foster aponta como o maior perigo da virada etnográfica da
arte: o artista exercer sobre o outro uma espécie de patronato ideológico. Fatos e
conseqüências são meramente alusivas ao massacre nos depoimentos do sertanista e de Zé
Nem, os eventos religiosos documentados não se ligam diretamente ao fato e mesmo as fotos
da capa e contra-capa do disco, confeccionadas a partir das fotos de Francisco Meireles na
comissão de investigação do crime no Tocantins, não possuem legendas, não se mostram
como documentos e se misturam à outras problemáticas170.
É possível afirmar que sem referências mais consistentes ou classificatórias (textos
descritivos, legendas, etc.) no material que se liga diretamente à tragédia – neste caso, as fotos
– a apresentação da referência histórica está principalmente na fala do próprio artista, portanto
fica exterior à obra. A incompreensão inevitável das falas e cantos dos indígenas agrava ainda
mais a sensação de descolamento que o Brasil português tem em relação às suas realidades,
organizações sociais e sua história, impedindo-nos de compreender sua versão dos
acontecimentos do massacre sem intermediações ou traduções.
                                                                                                               
169
ATTALI, 1985, p.135
170
Essas fotografias retratam tanto os indígenas quanto o território que habitam no município de Pedro Afonso.
Uma outra fotografia, colocada no centro da contra-capa, retrata um homem branco idoso: ele fora fotografado
de costas no canto de um pátio, cabisbaixo. Segundo Cildo Meireles, esse homem foi fotografado por ele em um
manicômio de Goiás. A foto fora também usada na obra Zero Cruzeiro (1974-78).
  106  

É então por meios desses recursos, referências indiretas e na maioria das vezes orais
que o trabalho não se comporta como um relato histórico, sendo justamente essa
inconsistência de situações que reforça sua condição simbólica – ou como Rancière prefere
em Política da Arte, sua condição solitária e indiferente:

A arte não produz conhecimentos ou representações para a política. Ela produz ficções ou dissensos,
agenciamentos de relações de regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação política,
mas no seio de sua própria política, isto é, antes de mais nada no seio desse duplo movimento que, por um
lado, a conduz para sua própria supressão, de outro, aprisiona a política da arte na sua solidão. Ela os
produz ocupando essas formas de recorte do espaço sensível comum e de redistribuição das relações entre
o ativo e o passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os espaços-tempos do teatro
ou da projeção, do museu ou da página lida. Ela produz, assim, formas de reconfiguração da experiência
que são o terreno sobre o qual podem se elaborar formas de subjetivação políticas que, por sua vez,
reconfiguram a experiência comum e suscitam novos dissensos artísticos. (RANCIÈRE, 2005, p.8)

A condição solitária e indiferente é segundo Rancière, o que garante que a arte, como
a política, possa produzir suas ficções. Ficções aqui são “construções de uma nova relação
entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum”. Em
outras palavras, a condição simbólica é o que garante que os dissensos, (como os que residem
entre os territórios do Brasil indígena e Brasil português), possam se estabelecer na dimensão
sensível171, nesse caso, a dimensão auditiva. Se segundo Ranciére, não é o papel da arte uma
ação ou transformação como a própria política faria, pode-se no entanto investir no papel
transformador das ficções que ela pode criar. Cildo Meireles optou por esse caminho.
Assim, não é determinante que o Massacre dos Krahô seja evocado como um ato
discursivo para que a obra cumpra o que se propõe. O artista buscou justamente as referências
auditivas que se sustentam sem sabermos de sua construção histórica, ou seja, o artista buscou
uma universalidade sonora no conflito do Tocantins, símbolos que podem ser usados para
traçar um panorama mais amplo: as interações do Brasil português e do Brasil indígena. Sal
Sem Carne posiciona o ouvinte onde estaria o encontro desses vetores. O Massacre dos Índios
Krahô é o fato que, na dimensão da informação oral do artista, assombra o ouvinte durante
essa experiência como um espectro; se compreende a tragédia não ao remontar as condições
específicas que a tornaram possível, mas em sua inevitabilidade histórica. Nesse sentido, a
tragédia é ao mesmo tempo um pressuposto e um desdobramento simbólico das oposições
fundamentais apresentadas entre o branco e o indígena por meio do som. O ouvinte
participante é posicionado em Sal Sem Carne como uma expectativa utópica de conversação
entre os dois mundos sonoros. É ali permitido ao ouvinte vislumbrar a utopia deste debate por
meio da escuta e manipular com ela, sua possibilidade.
  107  

5.4 Descompartimentação dos sentidos

Digamos que eu chame de espaço todos os mecanismos da vida. O espaço não é apenas o lugar onde as
pessoas estão, mas algo ativo e envolvente. O espaço, como imagino, exclui a possibilidade da existência
de um observador isento, que domina o mundo com o seu olhar. Ele implica a participação. Toda a minha
atuação como trabalhador da arte está orientada para essa ideia: a de que não existe um observador, mas
um sujeito que está no meio de um processo de pensamento, que deve acompanhar esse processo, vivê-lo,
manipulá-lo, e não somente observá-lo. O que seria impossível, aliás. A hipótese de trabalho da arte
tradicional – a arte como objeto de pura contemplação – é evidentemente equivocada. (MEIRELES,
2009, p.26 )

As imagens do documentário “Cildo Meireles” de Wilson Coutinho mostram


Eureka/Blindhotland sem seu som original, substituindo-o por uma trilha musical de Erik
Satie (Gymnopédie No.1, 1888). Essa trilha, leve e europeia, é inesgotavelmente usada em
produções audiovisuais talvez por sua delicada cadência que empodera, sem
sentimentalismos, uma imagem em movimento. Mas ali, ela esconde justamente o índice do
peso físico da instalação: seu som. É evidente que o documentarista foi perspicaz nas
premissas políticas da obra para criar uma imagem que parece, no mínimo, estranha: muitas
pessoas reunidas, de pé, sentadas em uma sala, dentro de um cercado de rede de pesca,
atirando esferas para todos os lados e não as ouvimos. Os toques suaves do piano de Satie
eliminam o barulho e por isso enxergamos as esferas melhor, riscando a tela do vídeo em
parábolas e pulos. Vê-se o espaço; o que essas pessoas fazem ali? Por que estão ali assim
juntas? Fazendo o que fazem? Essa imagem é quase incompreensível porque registra
visualmente o impacto do som na participação das pessoas e depois o elimina. Não temos o
registro auditivo do que o som da queda das esferas faz com essas pessoas (e com suas
vozes...), só vemos corpos se esticando e contraindo com o peso e com o esforço. É quase
desnecessário lembrar também que a imaterialidade do vídeo provoca uma tensão com o
aspecto tátil da obra, deixando a imagem ainda mais musical: a narração feminina porém é o
que nos puxa de volta do abismo da incompreensão, descrevendo do que se trata esse espaço.
O que é verdadeiramente aparente no vídeo, mesmo com o som subtraído (ou por
causa dele), é a energia transformadora do espaço de Cildo Meireles. Não só
Eureka/Blindhotland, Cigarras, Mebs/Caraxia e Sal Sem Carne são propostas e execuções
desses espaços críticos. São espaços que se constituem longe das bases da noção de
perspectiva ou de um centro (de gravidade, de harmonia, de autoridade...), e assim, põe seus
participantes em uma condição nunca absoluta em suas experiências perceptivas, ou como diz
Moacir dos Anjos, violando qualquer associação estável entre a percepção e o conceito de um
                                                                                                               
171
RANCIÈRE, 2005, p.7
  108  

lugar172. Muito deve-se ao fato de que os participantes estão ouvindo ativamente nesses quatro
trabalhos: foi McLuhann que tão seguramente falou que o espaço auditivo “não é o espaço
pictórico, encaixotado, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas próprias dimensões
momento a momento”. Fora da caixa, propagando-se no espaço, o som gera “múltiplos pontos
de vista”. Movediço como deve ser, o espaço auditivo emancipa rompendo com a segurança
do olhar e entrecruzando contextos e situações que no mundo palpável, não se encontrariam.

                                                                                                               
172
DOS ANJOS, in: MEIRELES, C., 2008, p.5
Considerações finais

Se o artista plástico traz algum problema ao estúdio fonográfico quando ali entra com
suas ideias, esse problema está essencialmente ligado na diferença entre os modos de fazer
das artes plásticas – arraigado à noções de autoria individual, à plasticidade do trabalho
artesanal ou à liberdade dos procedimentos de apropriação – e da indústria fonográfica, onde
regem regulamentações de autoria coletiva (compositor, intérpretes, produtor, proprietário do
fonograma, etc.) a serialidade da produção industrial e o pragmatismo que o mercado impõe
nas dinâmicas de produção e distribuição. Ainda assim, modos de fazer – mesmo o da
indústria fonográfica – são dinâmicos. Os três álbuns de Chelpa Ferro evidenciam esse fato no
que registram sonoramente as mudanças de estrutura pela qual o estúdio fonográfico passa na
virada digital da década de noventa.
Planos futuros do grupo se concentram na criação de um selo musical próprio pelo
qual poderão lançar seus próximos álbuns, assim como de outros artistas. Essa é uma
evidência de que na atualidade é possível uma apropriação total do sistema fonográfico, já
que o maior acesso aos mecanismos de produção pode redimensionar a distribuição de cópias
para uma escala muito menor que a abrangência expansiva da indústria fonográfica. Como os
estúdios e selos independentes permitem que a produção se volte a um nicho cultural
específico, a liberdade de experimentação é não só maior, como se torna uma prática estética
desses produtores (cf. Chelpa Ferro III, 2011.). Dessa maneira, artistas que geram ideias de
ruído formulam consequentemente ideias de indústria, ou seja, exercitam possibilidades de
existência desse ruído no mundo, cultura e vida cotidiana. Nesse sentido, Mebs/Caraxia, 1971
e Sal Sem Carne, 1975 de Cildo Meireles e A Entrada na Gruta de Maquiné, 1980 de
Waltercio Caldas são propostas visionária por já repensarem a dialética entre infra-estrutura e
forma em uma época onde os modos industriais não eram acessíveis ou facilmente replicados
da maneira que são com a tecnologia digital. Para produzir a ideias de álbum desses artistas,
foi necessária uma modificação física dentro da estrutura industrial (cf. A Entrada na Gruta de
Maquiné e Mebs/Caraxia), assim como um desvio na rotina serial da gravação.
Se não houve uma efetiva inserção desses álbuns diferenciados no mercado
fonográfico, o que permitiria que eles se reproduzissem lado a lado aos álbuns comuns,
relativizando-se de forma ainda mais contrastante, foi por ainda se dirigirem ao campo das
artes plásticas: A Entrada na Gruta de Maquiné foi lançado na galeria de arte Saramenha em
1980, Mebs/Caraxia e Sal Sem Carne são parte de coleções como MoMA Library em Nova
  110  

Iorque e o leilão de uma cópia do último foi agenciado por Phillips, de Pury & Company173
por quinze mil libras. São álbuns de tiragem limitada, uma escassez que embora se deva ao
caráter experimental dessas produções, também serve aos propósitos do mercado de arte e à
valorização histórica (no sentido arqueológico) e artística dos objetos.
Ao mesmo tempo que essas propostas executam modificações temporárias no modo
de fazer da indústria fonográfica, iniciar esse texto com a trajetória de Hélio Oiticica
evidencia como o artista modifica, através da música, os modos de fazer específicos das artes
plásticas de então. Isso quer dizer que o caminho de Oiticica para o morro, muito motivado
pela musicalidade que se desenvolvia em seu trabalho com a pintura, desafiou axiomas e
regras das “escritas compartilhadas” que segundo o artista, comediam a criatividade e a
possibilidade do ato expressivo individual. Se a musicalidade foi um veículo para essa tomada
de consciência, para essa chegada em lugar alternativo no qual o artista poderia atuar, foi por
levar as práticas das artes plásticas ao espaço público e para o tempo da vida cotidiana.
A indistinção hierárquica do artista quanto a tradições musicais e a inexistência de
opiniões desenvolvimentistas sobre a música, inegavelmente orientou o percurso de Hélio
Oiticica pelo interior dos territórios dos que estavam à margem de qualquer tipo de ordenação
oficial, seja cultural, urbana, legal ou material. A incorporação dessa outra cidade se dá pela
dança, e essa por meio dos Parangolés, participa criticamente possibilidade da realidade
plástica. Os Parangolés culminam uma possibilidade de sintonia entre a dimensão material e
espiritual desejada por Mondrian: a realidade plástica não poderia estar flutuando sobre os
paradoxos da realidade material e política do país. Como previa Lygia Clark, era somente da
adversidade que ela poderia emergir.
Cildo Meireles age nessa abertura para o “conjunto maior de experiências” que um
trabalho ou proposta de artes plásticas passa a oferecer na década de setenta. Assumindo uma
atitude compartilhada com outros artistas desse período que abandonaram discussões
epistemológicas (como foi o caso do fim da polêmica de Oiticica sobre o nome tropicalismo
adotado pelos músicos baianos), e exercitando possibilidades e formas de liberdade, Cildo
Meireles pratica formas de descontrole sobre obras e propostas. A hipótese da participação
torna-se tão importante quanto a vivência: ela determina a dimensão ou extensão da proposta
(o “minimalismo lúdico” de Malhas da Liberdade, 1976-2008, e Cigarras, 2010), a
                                                                                                               
 
173  Cf.  <http://www.phillipsdepury.com/auctions/lot-­‐detail/CILDO-­‐

MEIRELES/UK010410/207/9/1/12/detail.aspx>  
  111  

intensidade das sensações musculares e sonoras vivenciadas (Eureka/Blindhotland, 1970-75)


e mesmo molda versões de uma utopia ou de uma ficção histórica (Sal Sem Carne, 1975).
Nesse desenvolvimento, a produção artística na década de oitenta se favoreceu das
posições mais flexíveis que a geração anterior conquistara em relação à “instituição de arte” e
ao esteticismo típico das vanguardas construtivas. Exercita-se a partir de então uma maior
liberdade no ato expressivo individual (algo evidente na produção de pintura de jovens
artistas dessa geração) ao mesmo tempo em que existem maiores possibilidades de encontro
desses atos de expressão com outras linguagens. Nesse aspecto é fundamental o papel dos
eventos em espaço público para essas reuniões entre artistas de campos diferentes. A co-
produção do Compacto Simples de Waltercio Caldas e do compositor Sérgio Araujo em 1980
acontece justamente em um momento onde surgem novos lugares de encontro entre práticas
estéticas distintas, como a realização Encontro com a Nova Música dos anos 80. A Abertura
Democrática exacerbaria ainda mais essa tomada do espaço público e a intensidade desses
encontros, como demonstra a realização do primeiro Circo Voador em 1982 e a criação do
primeiro CEP 20.000 em 1990.
Embora saibamos que as propostas dos quatro artistas plásticos para a dimensão
audível é motivada e recebida em contextos históricos diferentes, subseqüentes, existem
modos de fazer comuns a alguns deles. O procedimento Merz de colagem, por exemplo,
originalmente desenvolvido por Kurt Schwitters na década de vinte e utilizado por Hélio
Oiticica nos Parangolés, está presente em trabalho como Samba (2001), Cogumelo Ohms
(2005), Jungle Jam (2006) e Ciclotron (2001) de Chelpa Ferro. A apropriação, ou ready-made
que Hélio Oiticica pratica em Cosmococa/HendrixWar (1978) com fotos e música de Jimi
Hendrix é também presente em Thelonious Monk (1998) de Waltercio Caldas, Moby Dick
(2001) de Chelpa Ferro. O conceitualismo de Mebs/Caraxia reside na designação linguística
do objeto como “escultura sonora”, reconfigurando a percepção do ouvinte na experiência de
audição; algo que faz também A Entrada na Gruta de Maquiné quando mostra visualmente o
loop em sua superfície antes que esse seja ouvido.
Esses procedimentos plásticos não precedem sua motivação sonora ou musical: o
Merz dos Parangolés e Samba está ligado fundamentalmente à musicalidade desenvolvida em
toda trajetória dos artistas, o mesmo pode ser dito sobre as incursões dos artistas plásticos no
ambiente da gravação fonográfica. Assim, modo de fazer, musicalidade e sonoridade estão
em um regime simultâneo nos trabalhos analisados: são idéias de espacialidade que não
dissociam seu lugar (infra-estrutura de onde são emitidas, assim como contexto urbano e
institucional) e de sua temporalidade (dinâmicas sonoras e sua condição histórica). A
  112  

contribuição dessas ações reside justamente em não desejar construir lugares seguros para a
experiência artística, pois demonstram em sua sonoridade e musicalidade que mesmo o lugar
que se pretende monumental ou definitivo, não deixa de coexistir com aquele que é
desordenado, está fatalmente aberto a um trânsito desarmônico de debates, avaliações e
possibilidades.
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Filmografia

CHELPA Ferro. Direção: Carlos Nader, Concepção: Solange Farkas, Produção: Já Filmes e
Associação Cultural Videobrasil. São Paulo: Videobrasil Coleção de Autores, 2009,
(52min), 1 DVD.

CILDO. Direção: Gustavo Moura. Produção: Guilherme Coelho, Maurício Andrade Ramos e
Antonio Dias Leite. Rio de Janeiro: Produtora Matizar, 2009, (78min), 1 DVD.

CILDO Meireles. Direção: Wilson Coutinho, Produção: Luiz Alberto L. Lira. Rio de
Janeiro: independente, 1979, (11min), son., cor e PB, 35mm.

HÉLIO Oiticica. Direção: Ivan Cardoso, Produção: Fernando Carvalho e Ivan Cardoso, Rio
de Janeiro: Super 8 Produtora Cinematográfica Ltda., 1979, (13min), son., cor e PB,
35mm.

Documentos Sonoros

CAESAR, Rodolfo. A Arte dos Sons. Rio de Janeiro: ________, 1979, 1 disco sonoro.
Analog 33 1/3 rpm : 12in, estéreo.

CALDAS, Waltercio; ARAUJO, Sérgio. Compacto Simples. Rio de Janeiro: Tapecar


Gravações, 1980, 1 disco sonoro. Analog 33 1/3 rpm : 7 in, estéreo.

CHELPA FERRO. Chelpa Ferro I. Rio de Janeiro: Uni Records, 1999. 1 CD.

CHELPA FERRO. Chelpa Ferro II. Rio de Janeiro: Ping Pong, 2004, 1 CD.

CHELPA FERRO. Chelpa Ferro III. Rio de Janeiro: ________, 2011, 1 CD.

LED ZEPPELIN. Moby Dick. In: Led Zeppelin II. Londres: Atlantic, 1969. 1 disco sonoro,
33 1/3 rpm : 12 in, estéreo, Lado 2, faixa 4, (4min25s)

MEIRELES, Cildo. Sal Sem Carne. Rio de Janeiro: LP-CM-003 Pesquisa, 1975. 1 disco
sonoro. Analog, 33 1/3 rpm : 12 in, estéreo.

MEIRELES, Cildo. Mebs/Caraxia. Rio de Janeiro: Pesquisa de Audio CM-001, 1971. 1


disco sonoro. Analog, 33 1/3 rpm : 7 in, estéreo.
  122  

MONK, Thelonious. Solo Monk. Nova Iorque: Columbia, 1965. 1 disco sonoro, 33 1/3rpm:
12 in, estéreo.

Documentos consultados no Programa Hélio Oiticica/ Itaú Cultural

Disponíveis em
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/dsp_home.cfm>
Acesso: janeiro de 2011

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GIL. Paris

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VELOSO. Paris

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_______________. (1962) HO 0182.62.  Projeto  Cães  de  Caça.  Rio  de  Janeiro
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  mobilidade   pela   participação   do   espectador   na   obra   /   Anotações   para   um  
  trabalho  sobre  "a  pintura  depois  do  quadro”  /    Suporte  /    O  problema  dos  
  opostos  /  Côr  tonal  e  desenvolvimento  nuclear.  Rio  de  Janeiro

_______________. (1960) HO 0182.60. Sem Título. Rio de Janeiro

_______________. (s.d.) HO 0015.sd,. Cor Tempo e Estrutura. Rio de Janeiro

_______________. (1959) HO 0182.59. Sem Título. Rio de Janeiro

_______________. (1959) HO 0017.59. Cor Tempo. Rio de Janeiro

_______________. (1955) HO 0282.55. Sem Título. Rio de Janeiro.

_______________. (1955) HO 0302.54. Caderno de Notas. Rio de Janeiro.


  124  

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