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FILHO”
INSTITUTO DE ARTES
CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
Mimma Ito
SÃO PAULO
NOVEMBRO /2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA
FILHO”
INSTITUTO DE ARTES
CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
Mimma Ito
SÃO PAULO
NOVEMBRO /2019
MIMMA NO MONOGATARI: Narrativas da minha poética artística em
Cerâmica (BACHARELADO)
MIMMA NO MONOGATARI: Narrativas da minha poética artística
integrada a oficinas artesanais de Cerâmica (LICENCIATURA)
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
À minha mãe, Julieta Chiaki Daiten, por me ensinar a amar a vida e acreditar em sua
potência.
Ao meu pai, Olavo Tomohisa Ito, pelo apoio incondicional e por transmitir-me a
paixão pelas Artes.
Aos meus avós, Masuko Shibata Ito, Masae Murao Daiten, Kyosen Ito e Akira Daiten
pela herança cultural, por todo carinho e afeto.
Ao meu orientador, Prof. Dr. aGNuS VaLeNTe, pela paciência, pela partilha e por me
conduzir a descobrir minha essência artística.
À Vera Cozani e Luiz Zanirato, pessoas maravilhosas, com quem sempre pude
buscar apoio técnico e pela profunda amizade.
Aos companheiros de TCC, Gabriela Motta, João Britto, Mari Dagli e Guilherme
Guimarães Moura por dividir comigo esta vivência desafiadora de conclusão de
curso.
À Cerâmica, por seu espírito mágico e generoso que permite com que em minha
vida transbordem experiências intensas e apaixonantes.
RESUMO
ABSTRACT
This work is an artistic autobiography based on my experiences intertwined with the
language of ceramics. These experiences are mainly based on my childhood
memories and experiences during my undergraduate degree in Visual Arts. This
monograph aims to reflect on the importance of experiences for the creative process
of the artist and also seeks to highlight the narrative essence present in the practice
of ceramics and it’s workshops.
Lista de imagens
Imagem 1: A Vaca Princesa alcançando os caquis. Mogi das Cruzes- SP, 2017. Foto
de Mimma Ito.............................................................................................. página 27
Imagem 2: Tsuru no Ongaeshi, capa ilustrada de uma versão do conto. Autor
Desconhecido................................................................................................ página 31
Imagem 3: “A Noite Estrelada” Van Gogh..................................................... página 35
Imagem 4: Detalhe do Vaso Furusato, foto de Mariano Barone.................. página 36
Imagem 5: Vaso Furusato. Instituto de Artes Unesp, 2017. Foto de Mariano
Barone...........................................................................................................página 37
Imagem 6: Primeira escultura de vaca saindo da queima de Rakú..............página 38
Imagem 7: Modelando a segunda escultura de vaca durante a disciplina de
Linguagem Tridimensional I foto de Jayana Oliveira.....................................página 39
Imagem 8: A escultura da segunda vaca concluída foto de Mimma Ito.........página 39
Imagem 9: A artista Beth Cavener em processo de modelagem da obra
“Lupus”...........................................................................................................página 40
Imagem 10: Modelando a escultura “a Vaca” em outubro de 2015 foto de Lalada
Dalglish...........................................................................................................página 41
Imagem 11: “A Vaca” dentro do forno foto de Mimma Ito.............................página 42
Imagem 12: Costas da escultura em reparo foto de Mimma Ito.....................página 44
Imagem 13: Costas da escultura com folhas de ouro foto de Mimma Ito......página 44
Imagem 14: Mimma Ito, Lalada Dalglish e a escultura “A Vaca” foto de Ricardo
Agapê.............................................................................................................página 45
Imagem 15: Abertura da exposição Keramikós” foto de Ricardo Agapê........página 45
Imagem 16: Costas da escultura com folhas de ouro ” foto de Ricardo
Agapê.............................................................................................................página 46
Imagem 17 “A Vaca”. Foto de Ricardo Agapê...............................................página 46
Imagem 18: A artista Máyy Koffler e suas obras, imagem retirada do instagram da
artista..............................................................................................................página 47
Imagem 19: Paleteando, foto de Maneno Llinqarimachiq..............................página 48
Imagem 20: Protótipo do projeto “Tsuru”. Foto de Mimma Ito........................página 49
Imagem 21: Teste das penas sobre a escultura de ferro foto de Mimma
Ito....................................................................................................................página 49
Imagem 22:: Modelagem da cabeça do “Tsuru” foto de Mimma Ito...............página 50
Imagem 23: Projeto em andamento. Foto de Mimma Ito...............................página 51
Imagem 24: Teste da estrutura de ferro. Foto de Mimma Ito.........................página 51
Imagem 25Mimma e o Tsuru-Masuko. Foto de Ricardo Agapê...................página 51
Imagem 26:: Mimma desbastando um prato no Ateliê Kéramos. Foto de Ricardo
Agapê.............................................................................................................página 53
Imagem 27: Alguns esmaltes formulados no curso de vidrados da Sueli Massuda.
Foto de Mimma Ito..........................................................................................página 56
Imagem 28: Detalhe dos testes de vidrados. Foto de Mimma Ito..................página 56
Imagem 29: Vaso no interior do forno do Mestre Ikoma. Foto de Mimma
Ito....................................................................................................................página 57
Imagem 30: Em 2018, estudando a estrutura de ferro do forno a gás. Fotos de
Mimma Ito e Ricardo Agapê...........................................................................página 58
Imagem 31: Esboço do projeto Foto de Mimma Ito........................................página 58
Imagem 32: Construindo a chaminé do forno carinhosamente batizada de “Ofensa
aos pedreiros”.................................................................................................página 59
Imagem 33: Forno na primeira queima a gás Foto de Mimma Ito..................página 60
Imagem 34: Teste dos maçaricos no interior do forno. Foto de Mimma Ito...página 61
Imagem 35: Mimma e Ricardo aguardando ao final da queima a gás no dia
11/09/2019. Foto de Olavo Ito........................................................................página 62
Imagem 36: Cones Pirométricos 7 e 8, caídos na queima do dia 11/09/2019,
comprovando a temperatura alcançada na queima. Foto de Mimma Ito.......página 62
Imagem 37: Kusakabe sensei demonstrando torno em 2017. Foto de Ricardo
Agapê............................................................................................................página 63
Imagem 38: Forno Smokeless durante a queima à lenha. Foto de Mimma
Ito....................................................................................................................página 64
Imagem 39: Abastecendo o forno Smokeless com lenha. Foto de Ricardo
Agapê.............................................................................................................página 64
Imagem 40: Tirando a peça do forno. Foto de Hannah Ito.............................página 65
Imagem 41: O grupo do Ateliê Kéramos desmontando o forno Smokeless. Foto de
Ricardo Agapê................................................................................................página 65
Imagem 42: Ceramistas no lançamento “A poética de Shoko Suzuki” com a mestra
ceramista Shoko Suzuki ao centro da foto. Foto Desconhecido...................página 67
Imagem 43: Abertura da exposição anual da UNATI. Foto
Desconhecido.................................................................................................página 70
Imagem 44: Paleteado Falso Foto de Mimma Ito...........................................página 73
Imagem 45: Vera fazendo molde de paleteado falso. Foto de Mimma Ito.....página 75
Imagem 46: Peças da UNATI paleteadas e esmaltadas. Foto de Mimma
Ito....................................................................................................................página 75
Imagem 47: Peças paleteadas da UNATI prontas. Foto de Mimma
Ito...................................................................................................................página 75
Imagem 48: Alunas da UNATI: Esmênia, Tânia e Ângela. Foto de Mimma
Ito....................................................................................................................página 76
Imagem 49: Vivência Queima Rakú, Foto de Mimma Ito...............................página 76
Imagem 50: Vivência Queima Rakú. Foto de Mimma Ito...............................página 76
Imagem 51: Vivência Queima Rakú. Foto de Mimma Ito...............................página 76
Imagem 52: Vivência Queima Rakú. Foto de Mimma Ito...............................página 76
Imagem 53: Eugênia e Diva. Foto de Mimma Ito...........................................página 81
Imagem 54: Porco da Rosana. Foto de Mimma Ito........................................página 82
Imagem 55: Antílope da Rosecler. Foto de Mimma Ito..................................página 82
Imagem 56: Coala da Luiza. Foto de Mimma Ito.. ........................................página 83
Imagem 57: Naja da Shirley. Foto de Mimma Ito...........................................página 83
Imagem 58: Coelho da Salime. Foto de Mimma Ito.......................................página 84
Imagem 59: Gato da Vilma.Foto de Mimma Ito..............................................página 84
Imagem 60: Gato da Silvia. Foto de Mimma Ito.............................................página 85
Imagem 61: Ovelha da Silvia. Foto de Mimma Ito..........................................página 85
Imagem 62: Cavalo da Marcia. Foto de Mimma Ito........................................página 86
Imagem 63: Bicho-Preguiça da Diva. Foto de Mimma Ito..............................página 86
Imagem 64: Girafa da Teresinha. Foto de Mimma Ito....................................página 87
Imagem 65: Jacaré da Ângela. Foto de Mimma Ito........................................página 87
Imagem 66: Leão da Esmenia. Foto de Mimma Ito........................................página 88
Imagem 67: Quimera da Carmen. Foto de Mimma Ito...................................página 89
Imagem 68: Flor de Shion, o crisântemo azul. Foto de Mimma Ito..............página 100
Imagem 69: Argila amassada em espiral, KIKUNERI Foto de Mimma Ito...página 101
Imagem 70: A semente de Kikuneri. Foto de Mimma Ito.............................página 101
Imagem 71: Semear....................................................................................página 103
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................página 11
Considerações Finais..................................................................................página 96
Bibliografia..................................................................................................página 102
“No Brasil, ainda hoje, muitas pessoas me perguntam: Por que
começou a fazer Cerâmica? Acho que as experiências e sofrimentos durante
a Segunda Guerra Mundial me levaram a pensar sobre o sentido da vida,
entre outros motivos. Desde aquela época, passei a experimentar uma
sensação muito especial ao estar envolvida com as Cerâmicas, algo como
amor, harmonia, delicadeza e de vida em si. Com as Cerâmicas, sinto como
se estivesse protegida por um profundo carinho materno e, ainda, tomada por
um misterioso sentimento de que isso é duradouro.” (SUZUKI apud
KAWAKAMI, 2012, p. 18, retirado de MORAIS L., 2010, pg 64).
11
Introdução
Aos 13 anos de idade fiz um curso de Cerâmica na escola, que me deu uma
pequena carga de conhecimentos básicos sobre a Cerâmica. Durante o curso de
bacharelado em Artes Visuais, a modelagem em argila foi a técnica com a qual eu
mais senti afinidade, não porque já era uma técnica familiar para mim, o motivo era
que eu encontrei na argila uma forma de criar livremente.
Sempre tive a crença de que era necessário ter um bom domínio prático para
a criação artística e por causa desta concepção eu quis me aprofundar mais no mundo
da Cerâmica, por isso fui monitora do Ateliê-Laboratório de Cerâmica da UNESP
durante 3 anos, ao mesmo tempo, professora de Cerâmica para a UNATI
(Universidade Aberta a Terceira Idade) e ainda frequentei diversos cursos regulares
de Cerâmica no Sesc Pompeia para conhecer seus professores e suas metodologias.
A faculdade também me deu oportunidade de criar livremente e desenvolver meus
conhecimentos práticos, o que me levou a poder amadurecer o meu fazer artístico. Lá
eu pude expor duas instalações, o meu conjunto de vacas em 2016 e meu pássaro
12
1
Tsuru, é o nome em japonês do Grus Japonesis, Grou Japonês ou Grou da
Manchúria. É um pássaro de cabeça vermelha, que habita o leste asiático.
https://en.wikipedia.org/wiki/Red-crowned_crane acessado no dia 27/09/2019 ás
11:53.
13
2
“Tsuru no Ongaeshi”, traduzido para o português é “A Retribuição do Grou Japonês”.
14
No capítulo 4 do mesmo livro, o autor afirma que a Cerâmica é uma das mais
importantes e antigas invenções do ser humano e remonta a domesticação e
sedentarismo do homem primitivo, que com os vasos modelados com argila e
queimados conseguiu estocar grãos, carregar água e cozinhar.
3
Retirado do Livro “Manual Práctico da Cerámica” de Jorge Bruguera.
15
Este paralelo entre o narrador e o oleiro, foi meu ponto de partida para
16
compreender que minha poética artística é narrativa e está intrínseca com o processo
narrativo da própria Cerâmica. Ou seja, a Cerâmica faz parte das minhas memórias:
minha relação e experiências com ela fazem parte da minha construção de identidade
como artista, ceramista e narradora.
Quando tento organizar minha história com a Cerâmica, eu nem sei por onde
começar. A minha história com a Cerâmica pode ter começado até antes de eu nascer.
Eu nasci em janeiro de 1995 e sou a primeira filha dos meus pais e primeira
neta dos meus avós. Meus avós são japoneses e por isso a identidade japonesa é
muito forte na minha família. A casa dos meus avós sempre foi meu lugar de conforto,
lá eles tinham um armário cheio de louças e diversos vasos de Cerâmica se
acomodavam sobre os móveis da casa, eu nunca perguntei para eles quem eram os
autores daquelas peças, porque para mim, eles apenas faziam pArte da decoração
de uma casa japonesa, mas mal eu sabia que toda tigela que eu usava e que todo
vaso que eu quebrava eram os primeiros indícios da Cerâmica sussurrando para mim.
Com 4 anos eu entrei em contato com a argila pela primeira vez, eu estava no
Jardim I e a professora distribuiu um pedaço deste barro para todos os alunos. Para
mim a argila era uma massa plástica e gelada, que quando seca se despedaçava.
Naquele dia eu fiz as primeiras três associações sobre a Cerâmica, que são os seus
conceitos mais básicos: A argila tem sabor e cheiro de terra, ou seja, ela é terra;
quando seca ela fica tão frágil que pode se tornar pó; molhando este pó ela volta a
ser argila. Não muito tempo depois, minha tia, irmã da minha mãe, me introduziria a
este universo da argila que se torna Cerâmica.
Minha tia morava em Vitória-ES, costumava fazer raras visitas a São Paulo e
em uma delas, eu e meus pais a acompanhamos para um lugar bem popular entre os
ceramistas, a loja Arte-Brasil. Eu fiquei no carro observando meus pais e ela
carregando dezenas de blocos empacotados para o porta-malas. Naquela visita da
minha tia, eu descobri que ela havia comprado argilas e que aquelas argilas eram
essenciais para a sua profissão, Ceramista.
Ser ceramista para mim começou simplesmente como a profissão da minha tia
e que ao longo do tempo desenvolveu um emaranhado de complexidades em mim.
Para minha família, ser ceramista era ser artista e artistas viviam uma vida
muito livre, porém difícil, por não haver garantias de um salário regular e um estilo de
vida estável. Eles não reprovavam a profissão, mas achavam que poderia não ser
uma BOA profissão, pois estavam inseguros se esta proveria sustento para minha tia.
18
Talvez toda essa atenção sobre a profissão da minha tia produziria em mim uma faísca
da Cerâmica, mas com 7 anos de idade como eu poderia saber? Eu ainda não ouvia
com clareza o sussurro da Cerâmica, mas é garantido que ali ela soprou bem forte em
meus ouvidos.
Hoje, para mim, ser ceramista é a Arte de trabalhar em conjunto com os
elementos da natureza e é um resgate da minha ancestralidade. Com a terra e a água
forma-se o barro, com as mãos transforma-se o barro em forma, o ar seca o barro
para que ele e o fogo transforma este em uma matéria similar à pedra.
Alguns anos se passaram, minha tia não era mais ceramista, confirmando a
natureza da angustia sobre esta profissão para minha família. Em 2008, a minha
escola abriu um curso de Cerâmica; interessados em complementar minha educação,
meus pais me colocaram no curso, mas fizeram um alerta: “Na aula de Cerâmica,
você tem que fazer peças para usar em casa: vasos, pratos, copos etc... Não traga
peças de bichinhos! ”, mal sabiam eles que mais tarde esta ordem moldaria toda minha
trajetória artística. Obedecendo aos meus pais, nas aulas de Cerâmica eu fiz alguns
vasos e eles os expunham em casa com muita satisfação, nessas aulas eu aprendi o
básico da Cerâmica, desde as técnicas de modelagem manual à esmaltação e queima
(por meu professor sempre alertar sobre o calor do forno, eu tinha noção de que para
a transformação do barro em pedra, o calor que o forno produzia era muito mais alto
que um forno doméstico e era perigosíssimo). Naquele ano, fizemos uma excursão
para Atibaia onde conhecemos o ceramista Shugo Izumi4.
Em seu atelier, ele mostrou todo seu processo de produção, ele extraia e
cuidava da sua própria argila, torneava e modelava todas as peças, criava esmaltes
das mais diversas cores e queimava suas peças em um grande forno a lenha. A força
física, a técnica e a força espiritual deviam estar em equilíbrio para o trabalho com a
Cerâmica e Shugo Izumi parecia transmitir a energia daquele equilíbrio. Naquela
visita, eu fiquei impressionada no quão trabalhosa era a profissão de ceramista e que
para tanto era preciso ser perdidamente apaixonado por barro e a minha Cerâmica
ainda era apenas um hobby.
4
Ceramista imigrante japonês que exerce sua profissão em Atibaia-SP. REPORTER ECO |
12/11/2017. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=IgBnDk0HAOc>. Acesso
em: 16 out. 2019.
19
No contexto da Cerâmica, 2008 foi um dos anos mais importantes para mim,
pois além de todas as ricas experiências com a Cerâmica, o meu futuro foi professado
pelo meu avô materno, por aquilo que podemos chamar de “ironias do destino”.
Era minha primeira peça torneada, um vasinho com esmalte preto e marrom,
bem pequeno e torto. Minha mãe me levou para a casa dos meus avós em Mogi das
Cruzes-SP, para dar o vaso de presente para eles. Por mais que eu gostasse de fazer
Cerâmica e eu já estava criando uma história com ela, para mim a Cerâmica era uma
atividade extracurricular da escola. Quando eu entreguei a peça para os meus avós
de presente, meu avô examinou a peça, sorriu e disse do jeito japonês-português dele:
“Não precisa de mais uma ceramista na família. Estuda bastante e vira
veterinária. ”
Com 13 anos de idade, eu não me importava com minha futura carreira, por
isso naquela hora seu conselho só significou que ser artista ou ceramista, não era
uma opção para mim. Hoje, eu me pergunto se meu avô se lembra que quase
profetizou meu futuro e me divirto com o fato de que sem intenção eu escolhi a única
profissão que ele me proibiu. Essa quase profecia pode ter sido a Cerâmica
sussurrando e se manifestando através do meu avô.
A Cerâmica parece ser uma personagem viva nas minhas memórias. Como se
de certo modo ela estivesse sempre presente interagindo comigo. No
desenvolvimento destes meus relatos, é possível entender que tudo que aconteceu
comigo e a Cerâmica teve um desenrolar e que em conjunto com esta linguagem eu
me encontrei de corpo, mente e alma.
20
2.2- A vaca
Meus pais sempre me apoiaram nas minhas decisões e eles não tiveram
objeções quando escolhi que queria me graduar em Artes Visuais. Eu escolhi este
curso, pois desde criança gostava de criar com as mãos e eu quis tornar esta afinidade
em profissão. Enquanto eu planejava o meu futuro profissional, sempre pensava no
desejo do meu avô, mas por mais que o tenha considerado, eu queria mesmo ter a
oportunidade de aprender e trabalhar com as Artes. E em 2014, eu entrei no curso de
Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais do Instituto de Artes da UNESP.
Em setembro daquele ano, eu voltei a me encontrar com a Cerâmica na aula
de “Projetos de Cerâmica” da professora Lalada Dalglish. Iniciava o segundo semestre
da faculdade de Artes Visuais da Unesp e eu me sentia completamente perdida, pois
eu ainda não havia me identificado com nenhuma das matérias do curso e aquilo me
deixava nervosa e ansiosa.
O ateliê de Cerâmica é um dos maiores ateliês de Artes, ele fica no andar térreo
da faculdade. Ao entrar no atelier vemos seu enfileirado de mesas, à esquerda 3
fornos grandes e à direita várias pias. Por todo ateliê temos estantes abarrotadas de
peças, todas organizadas de acordo com seu destino “Biscoito”, “esmalte”, “queima
de alta temperatura”, “trabalhos em andamento” e “peças queimadas”.
Para a disciplina, fui orientada a trazer alguns materiais e argila terra-cota. Fui
com meu pai comprar a argila e como nos “velhos tempos”, nós voltamos a loja Arte-
Brasil. A loja continuava a mesma, com argilas de diversos tipos na entrada e alguns
ornamentos de Cerâmica meio bregas espalhadas. Na disciplina, a professora Lalada
nos deixou livres para criação e modelagem, assim eu finalmente pude modelar a
argila sem um propósito utilitário e aquilo foi um ato libertador para mim. As correntes
que me prendiam no meu primeiro curso de Cerâmica já não existiam mais. Fazer
objetos “úteis” eram até antiquados na faculdade e por isso a volta da Cerâmica foi
um grande abraço para mim.
O meu mundo é um lugar em que tudo que acontece tem um motivo, que na
hora não sabemos, mas sempre se desenrola em acontecimentos extraordinários.
Meus avós maternos residem em Mogi das Cruzes, São Paulo. Eles
trabalhavam e moravam em um clube chamado “Moralogy Golf Club”, minha avó
cozinhava para os funcionários do clube e meu avô administrava o local. Passar boa
21
pArte da infância em um clube de golfe foi um grande privilégio na minha vida, pois ali
eu sentia que podia me conectar com a natureza e correr descalça pelos campos
gramíneos, sempre me dava a impressão de que eu voava. Meus avós já estavam
numa idade avançada, por isso eles sabiam que não trabalhariam ali por muito mais
tempo e minha mãe se incumbiu em encontrar um local para meus avós passarem
sua aposentadoria.
Ao descobrir que um dia eu me despediria daquele local maravilhoso foi muito
doloroso, eu e minha família desejamos que minha mãe encontrasse um novo local
maravilhoso. O local ideal seria um sítio ou chácara pequenos, na mesma região que
eles trabalhavam e que fosse de fácil acesso. Por mais simples que eram as
condições, encontrar um local ideal não era muito fácil. Até que um dia, Barbara, a
amiga de trabalho da minha avó, nos convidou para conhecer o sítio que ela cuidava
como caseira.
Ao adentrar naquele sítio, descobrimos que ele era um sítio de produção de
caqui e que lá haviam mais de uma centena de pés de caquis plantados.
Se me perguntassem qual é a minha árvore ou planta ou fruta favoritas, eu
responderia que é a arvore de caqui e que minha fruta favorita é o caqui, porque na
minha casa em São Paulo, tem plantado dois pés de caqui e acompanhar o ciclo
dessas árvores fazia pArte da minha infância. Quando eu estudava a Língua
Japonesa, me passaram vários textos para eu traduzir como tarefa e escolher um
desses para escrever um resumo a respeito, o texto que eu escolhi era do ceramista
KAKIEMON.
Sakaida Kizaemon foi um oleiro japonês do século XV, que foi reconhecido
como o criador da técnica de decoração em Cerâmica chamada AKAE 5 . Ele era
apaixonado pelas cores da fruta Caqui no outono e queria representar o vermelho-
alaranjado do caqui na Cerâmica. Kizaemon conseguiu reproduzir a cor na Cerâmica
e como recompensa ganhou o nome de KAKIEMON. Seus descendentes até hoje
reproduzem a técnica criada por ele e por muitos pesquisadores de Cerâmica a
porcelana Kakiemon é a mais valiosa dentre todas da região de Arita6.
Esta história me encantava, porque era inacreditável que um feito no séc XV
era perene e permanece até os dias de hoje. Desde que li sobre o Kakiemon, meu
5
AKAE: traduzido do japonês “Aka” é vermelho e “E” é pintura.
6
Arita, região do Japão do município de Saga, que é conhecida como berço da porcelana
japonesa.
22
olhar sobre a fruta caqui mudou e eu nunca deixei de pensar neste Artesão quando
os caquis amadureciam em casa.
Minha família ficou encantada com o local. Além do cultivo da fruta, a casa
principal do sítio estava em ótimas condições e era muito bonita. Aquele lugar era
perfeito para meus avós.
Entre os pés de caqui notei que haviam 3 criaturas gigantes pastando. Eram 3
vacas, que logo foram apresentadas: Vaca Princesa, uma magnifica vaca holandesa,
a típica vaca branca com manchas pretas, ela tinha um olhar dócil e corpo largo,
parecia transbordar uma energia maternal, em sua testa havia uma mancha em
formato de coração. Vaca Morgana, o maior ser que aproximei, meu coração disparou
de medo assim que constatei que ela era gigante de todos os lados, seus chifres eram
compridos e afiados apontados para cima, ela parecia saber que era grande e
poderosa, por isso pastava com a cabeça erguida orgulhosa de si. E a Vaca Dourada,
típica vaca Jersey, sua pelagem era cor de doce de leite e não tinha chifres, no topo
da sua cabeça o pelo era mais comprido, parecendo uma franja loira encaracolada,
ela transmitia uma energia de acolhimento e lar, parecia entender que estávamos
visitando o local e seus grandes olhos negros parecia dizer “Bem- Vindos”. Eu me
apaixonei instantaneamente por elas, porque além de lindas e gigantes, elas tinham
um olhar gentil, era a primeira vez que eu senti aquela energia em vacas, elas
pareciam 3 amigas que estavam felizes passeando no campo.
mãe estava no processo de comprar aquele sítio e que duas vacas do Sítio tinham
acabado de ter filhotes.
Depois daquelas notícias maravilhosas, eu fui dormir muito contente, com uma
sensação de plenitude, sentindo como se “tudo vai dar certo”, naquela noite eu tive
um sonho sagrado com um grande ser bovino.
No meu sonho eu estava no quintal de casa, era noite e por isso eu via o céu
estrelado. Minha casa tem um corredor de entrada estreito, de repente uma luz branca
ofuscou os meus olhos e quando eu consegui adaptar minha visão, havia uma criatura
enorme me encarando. Era um ser bovino branco colossal, que por alguma razão
ilógica cabia perfeitamente no corredor da minha casa. Caminhei até ele deslumbrada.
-Se você me deixar entrar e me proteger, eu também te protejo e vou te dar a
dádiva da prosperidade. – a criatura se comunicou comigo através de um tipo de
telepatia.
Aquela Vaca ou Boi tinha pelo menos 2 metros de altura e chifres longos
dourados. Sua pele era firme, com pelagem branca leitosa e emitia um brilho
acetinado como o reflexo do luar. Eu senti que aquele era o ser mais sagrado que
existia e seria um grande desrespeito não permitir sua entrada.
Antes que eu pudesse responder que ele podia entrar em casa, eu despertei
do sonho.
Naquela noite, eu voltei a dormir, mas não voltei a sonhar mais com aquela
criatura Sagrada.
Chateada por não ter conseguido pronunciar minha resposta no sonho, eu
decidi que a responderia através da escultura e assim eu modelei a vaca re-
imaginando como ela era, para não deixar a memória do sonho escapar. Esta
escultura de argila branca somente foi biscoitada, mas nunca foi inteiramente
concluída. Ela faz pArte da memória de um sonho e de uma faísca criativa, por isso a
deixei somente biscoitada para que sempre haja a possibilidade de um dia finalizá-la.
Apesar de ter feito uma escultura fidedigna ao meu sonho, as vacas ainda eram
uma presença forte para mim. Pensando em homenagear o meu sonho e as vacas do
sítio, resolvi fazer mais uma escultura de Cerâmica de vaca, só que dessa vez ela
seria uma vaca deitada com a cabeça erguida e eu queria que ela fosse a maior que
eu conseguiria construir.
Para ela, eu usei 140kg de Argila Rosa, montei uma mesa que serviria de base
para sua modelagem e com a ajuda técnica da Vera Cozani, planejei todo o processo
24
de construção da obra. Meu plano era que a obra coubesse pela metade no forno do
ateliê da Cerâmica; usando a técnica de modelagem do acordelado subi o corpo da
peça que tinha 1,5m x 0,7mx 0,6 m. Iniciei a peça em meados de setembro de 2015
e a terminei no dia 07 de outubro do mesmo ano.
Dois fatos interessantes aconteceram enquanto eu fazia essa escultura.
Após terminar o corpo da vaca, esculpi sua cabeça e por fim retirei a sua massa
interior, com a técnica de ocagem. No dia 07 de outubro, eu colei a cabeça da vaca
em seu corpo. A professora Lalada Dalglish orgulhosamente registrou aquele
momento e eu fiquei de manhã até o anoitecer fixando a cabeça no corpo e dando os
acabamentos finais na escultura. As aulas de Cerâmica acontecem no período da
manhã de quarta-feira e no decorrer do dia os alguns alunos do segundo ano
costumam a se reunir no ateliê de Cerâmica para dar continuidade aos seus projetos.
Naquela noite eu e alguns amigos estávamos trabalhando em nossos projetos de
Cerâmica, já eram quase 20h quando um rapaz que eu pouco conhecia entrou na
sala. Ele estava participando da comissão de um projeto da faculdade chamado
L.O.T.E. ( Lugar, Ocupação, Tempo e Espaço- evento bienal de Artes Visuais da
UNESP, no qual ocorrem exposições de Arte, ocupações artísticas e palestras durante
o período de um mês no campus) e os mesmos amigos que estavam no ateliê
trabalhando também faziam pArte do projeto. Ali, eles e o rapaz fizeram a reunião,
terminando a reunião meus amigos já haviam guardados seus trabalhos e já se
despediam de mim. Por minha obra ser maior, fiquei para trás, porque demorei para
guardar meus materiais.
Aquela noite eu estava muito contente por ter terminado um grande projeto e
queria poder comemorar, mas meus amigos já haviam partido. Eu não me lembro se
eu falei alguma indireta sobre comemorar no bar, mas o rapaz, que também ficara
para trás, veio até mim e perguntou se eu o acompanharia até o bar. Agradecida,
porém envergonhada, eu aceitei o convite. O nome do rapaz é Ricardo e aquele final
de dia foi o primeiro registro da nossa história de amizade, companheirismo e amor.
Eu não sabia se daria certo colocar uma obra naquelas dimensões dentro de
um forno de 1,0m x 1,0 m, com o auxílio da Vera Cozani7, Thiago Rodrigues 8(monitor
7
Técnica dos ateliês-laboratórios de Artes visuais do Instituto de Artes da Unesp.
8
Monitor do laboratório-ateliê de Cerâmica do Instituto de Artes da Unesp em 2016.
25
9
Artista-professor graduado em Artes Visuais pela Unesp.
26
à aquele sonho sagrado e que a criatura do sonho cumpriu sua promessa e me deu
“a dádiva da prosperidade”.
Imagem 1: A Vaca Princesa Alcançando os caquis. Mogi das Cruzes- SP. 2017
27
Por que a cultura japonesa são signos tão presentes no meu fazer artístico?
Aos 4 anos de idade, o meu dia favorito da semana era a sexta-feira. Não
somente pelo fato que ela precede o final de semana, a sexta-feira para mim era um
ritual. Assim que as aulas terminavam minha mãe me levava para a locadora escolher
um filme e depois ela me deixava na casa dos meus avós para eu passar a noite com
eles.
Na casa deles eu seguia sempre a mesma rotina. Primeiro eu brincava no
quintal com os cachorros, enquanto esperava o jantar ficar pronto, normalmente eu
comia arroz com “furikake”10, assistia o filme escolhido na locadora, tomava banho de
ofurô11 e por fim ia para cama, dormir. A água quente do ofurô relaxava todos os meus
músculos e minha avó preparava minha cama com um futôn12 grande e pesado para
me cobrir. No primeiro momento o futon era geladinho e fresco, depois de um tempo
parecia um verdadeiro forno. Antes de pegar no sono, ela lia para mim algum conto
japonês e entre muitos eu gostava do “Tsuru no Ongaeshi”13. Muitos contos japoneses
envolvem um casal de velhinhos trabalhadores, que normalmente são presenteados
com uma dádiva divina. Alguns tem final felizes outros finais tristes.
“Tsuru no Ongaeshi” versão da minha bachan:
Mukashi, Mukashi14...
Em um vilarejo distante, moravam um casal de velhinhos. Eles tinham uma
cabana simples e aconchegante. Ali eles viviam sozinhos e com muito carinho
trabalhavam tecendo seda para kimono. Atibaia-SP. REPORTER ECO | 12/11/2017.
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=IgBnDk0HAOc>. Acesso em: 16 out.
2019.
Um dia durante uma tempestade de neve, eles ouviram um som estranho. Apesar da
nevasca, o velhinho quis verificar de onde vinha o som e não muito longe de sua casa
ele encontrou um grande Tsuru machucado.
10
Tempero de peixe seco para arroz branco
11
Típica banheira japonesa
12
Cobertor grosso
13
Traduz-se “A Retribuição do Grou Japonês”, o livro que minha avó costumava ler para mim não
está mais em casa. Encontrei um vídeo do youtube que melhor representou a versão do conto da
minha avó つるのおんがえし. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=dICTLGOY45E>.
Acesso em: 9 nov. 2019.
14
“Há muito, muito tempo...”
28
Sabendo que este Tsuru não sobreviveria ao frio machucado, ele o carregou até sua
cabana. Lá, ele e sua esposa cuidaram do pássaro até que ele melhorasse e alçasse
voo.
Noites após a partida do pássaro, durante outra tempestade de neve, alguém
bateu em sua porta. Eles encontraram uma linda moça na porta, que precisava de
abrigo por conta da neve.
Os velhinhos a acolheram e sentiram como se eles estivessem ganhado uma
filha, a moça era muito educada e bonita, vestia-se como uma princesa. Seu kimono
era de um tecido muito luxuoso, nunca visto anteriormente, nesse tecido haviam
bordados lindos desenhos de pena com o que pareciam fios de ouro.
Encantados, o casal se perguntava de onde a moça vinha, mas toda vez que
eles abordavam o assunto ela dava um jeito de se esquivar. Uma noite, a moça
perguntou à senhora se ela poderia usar a sua Roca de tecer, pois ela gostaria de
tecer em agradecimento ao casal. A senhora permitiu que a moça tecesse e feliz a
moça insistiu “Eu vou tecer uma linda seda, como as que eu visto. Mas preciso que
vocês não entrem sob nenhuma circunstância neste quarto, enquanto eu estiver
trabalhando. Vocês precisam me prometer.”
E assim, toda noite a moça trabalhava e de manhã ela entregava uma linda
peça de seda. O tecido que ela lhes entregava era luxuoso e vendido com facilidade
por altos valores, esta seda era fina e também tinha o desenho de penas bordadas de
ouro. Com o passar das noites, o casal notou que a moça parecia cada vez mais
esgotada e a curiosidade de como ela conseguia produzir tantos tecidos em uma noite
era curioso para eles. E essa curiosidade só crescia.
Em uma noite de Lua Cheia, os velhinhos passavam pelo quarto de tecelagem
fechado, enquanto a moça trabalhava. Com a luz da Lua a projeção da sombra da
moça que trabalha estava estranha, era uma forma magra, alongada com braços
largos. Curiosos, o casal decidiu por fim na curiosidade e dar uma pequena
bisbilhotada pelo vão da porta.
Pelo vão, eles não encontraram a moça trabalhando no tear. Descobriram, um
pássaro magnifico, que arrancava algumas de suas penas e os tecia na seda.
Assustados os velhinhos, cambalearam e o pássaro percebeu que havia sido
descoberto. O pássaro, era o Tsuru que havia sido salvo pelo casal e com lágrima nos
olhos o pássaro alçou voo em direção a Lua, para nunca mais ser visto.
29
Owari15
15
“Fim”
16
GROU-DA-MANCHÚRIA. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Grou-da-
manchúria >. Acesso em: 16 out. 2019
30
17
Sincronicidade/JUNG C. G. -21.ed.-2014
31
18
Guerreiros, heróis da franquia de filmes Star-Wars, que lutam contra o lado escuro da força.
32
19
Primeira Narrativa “Tudo começou com um suspiro”
33
próxima da minha avó paterna e a maior parte do meu saber da cultura japonesa veio
dela.
Minha mãe, então, conta que o ancestral mais antigo da minha avó foi
ceramista e que ele não era um Artesão que ficou esquecido na história do Japão, na
verdade este ancestral foi protagonista da Cerâmica de Arita20 no Japão.
No século 16, alguns ceramistas coreanos foram forçados a emigrar para o
Japão. Um destes ceramistas era chamado de Yi Sam- Pyeong. Eles se
estabeleceram na região de Saga e na província de Arita, Yi Sam-Pyeong descobriu
uma montanha de porcelana e a partir dali a porcelana se tornou popular no Japão e
Yi Sampyeon ganhou cidadania japonesa tornando-se KANAGAE Sambee. Até hoje,
os historiados citam ele como o pioneiro da porcelana japonesa, mas existem muitas
controversas a respeito da veracidade disto. Kanagae é o sobrenome do meu bisavô
(pai da minha avó)21.
Essa história corre pela minha família há anos, mas só quando eu decidi me
tornar ceramista que ela voltou à tona. Não sabemos se realmente somos
descendentes do Kanagae Sambee, para isto seria necessária uma pesquisa extensa.
Eu gostaria de ter tido a oportunidade de conversar com a minha avó sobre a
Cerâmica, com certeza ela me ajudaria muito a conseguir investigar melhor sobre
nossas origens e se tudo pode ser comprovado. Deixo essa investigação para o meu
futuro e por enquanto sigo na minha própria jornada com a Cerâmica.
No livro Tao Te Ching do filósofo chinês Lao Tsé, fala-se a respeito do nosso
caminho para a virtude espiritual. O ideograma de Tao é 道, em japonês lê-se como
Michi (MITI) que significa caminho e que C. G Jung em sua obra sobre a
sincronicidade entende por “sentido”. Em um trecho da tese de mestrado “Duas
mulheres ceramistas entre o Japão e o Brasil: identidade e representação” de Liliana
Granja Moraes, Shoko Suzuki fala sobre se sentir envolta a uma energia de amor
enquanto faz Cerâmica. Emocionei-me com esta fala de Shoko, pois nela identifiquei
a Cerâmica como um espírito vivo de amor e acolhimento. Estas memórias são um
fragmento do meu caminho e minha força, do meu Tao 道 e do meu Ki 気, e nestes
20
Arita, região do Japão do município de Saga, que é conhecida como berço da porcelana
japonesa.
21
YI SAM PYEONG. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Yi_Sam-pyeong>
Acesso em: 16 out. 2019
34
22
Vidrados ou esmaltes são a película de vidro que dá cor á Cerâmica.
36
3.2 A Vaca
23
Fornecedor de Argilas de São Paulo-SP.
39
Meu processo criativo sobre a série de vacas está na narrativa “A Vaca”24 deste
trabalho. Além de ter sido inspirada pelas vacas reais do sítio em Mogi das Cruzes, a
dimensão e o volume do animal fizeram parte do desenvolvimento criativo da série.
Minha referência artística para a série foi uma artista norte americana chamada Beth
Cavener25 , que esculpe animais em movimento. Ela usa estruturas de metal para
manter a peça em pé enquanto adiciona argila e retira estas estruturas antes da
queima. O desafio de modelar peças de tamanho grande como a dela foi o que me
impulsionou a modelar minha terceira peça.
24
Capítulo II.
25
LUPUS. Disponível em < https://www.followtheblackrabbit.com > Acesso em: 16 out.
2019.
41
Imagem 10: Modelando a escultura "A Vaca" no Instituto de Artes- UNESP, out.
2015
Esta terceira e última vaca (Imagem 10) foi modelada durante o segundo
semestre da disciplina da professora Lalada Dalglish. A Vaca de dimensões “1,0m x
0,70m x 0,80m” foi construída por pArtes com a técnica do acordelado, nela foram
usados 140 kg de argila do Leí26. Em um vídeo para a disciplina de mídia III, gravei
27
um vídeo que registra meu processo de construção da escultura. Como a peça
inteira não caberia no forno da Unesp, tive que cortá-la ao meio. Muitos alunos
associaram este corte com as vacas e bois cortados do artista Daniel Hirst. Minha
primeira intenção era cortar a vaca ao meio e juntá-la de volta pós queima, porém
como as peças foram biscoitadas separadamente, as peças não se encaixaram mais.
A professora Lalada, então, sugeriu que eu interferisse neste acaso e aproveitasse o
corte para criar uma nova poética na obra. Como a Vaca foi inspirada em um sonho,
pensei em explorar seu lado surrealista, fazendo com que flores saíssem dela. Esta
solução, acabou acrescentando à obra características de um ser divino ou sagrado,
que não sangra como outros animais, mas que floresce.
26
Fornecedor de Argilas de Cunha-SP
27
DESENVOLVIMENTO. Disponível em
<https://www.facebook.com/mimma.ito/videos/897948983643449/ > Acesso em: 11.nov.
2019
42
29
Disponível em < https://pt.scribd.com/document/372834265/Wabi-Sabi-The-Japanese-Art-
of-Impermanence-Art-Design-Philosophy-Ebook-pdf> Acesso em 16 out 2019
30
Exposição de Cerâmica na Galeria Alcindo Moreira Filho, de minha curadoria em
conjunto com a professora Lalada Dalglish, que reunia obras de Cerâmica de todos
os alunos que concluíram a disciplina “Linguagem Tridimensional II” (Disciplina de
Cerâmica do 2º semestre).
31
DALGLISH, Lalada. Texto de abertura da exposição Keramikós, 2016.
44
Em 2016, minha ex-aluna da UNATI, Saiaka Moriya, falou sobre uma exposição
da artista Máyy Koffler na “Associação Casarão do Chá” em Mogi das Cruzes, Saiaka
caracterizou as peças de Cerâmica da artista como “leves como um papel”. A
qualidade de “Leveza” na Cerâmica me instigou. Minha escultura anterior “A Vaca”
era o oposto de leve, foi preciso da ajuda de 4 pessoas para movê-la de lugar. Ao
pesquisar as peças da Máyy Koffler, descobri a técnica do paleteado, nesta técnica
indígena-peruana, uma peça é confeccionada através do manejo de duas
ferramentas, uma pedra redonda, que serve de apoio interno da peça de barro e uma
paleta de madeira que é usada para golpear a argila sobre a pedra, compactando-a.
Esta técnica permite que a massa de argila fique delgada e uniforme. Em suas obras
a artista-ceramista faz uma releitura das culturas pré-hispânicas na
contemporaneidade.
32
Ver capítulo II, página 26.
49
3.4 E agora?
Para mim fazer um utilitário era reverenciar meus ancestrais, em seu valor
estava compreendido um universo infinito (técnica, forma, cor, queima, peso, design
etc), que eu pretendia explorar ao máximo.
33
Para dar coerência ao meu sentimento de desapontamento, relato apenas que este juízo pode
ter vindo de alguns professores da Unesp e que não cabe a este trabalho acusar pessoas ou
apontar nomes.
54
Minha intenção, ao começar a fazer Cerâmica nunca foi para vendê-la, apenas34.
Fazer utilitários compunha a minha pesquisa e ninguém se aproximou de mim e tentou
compreender o meu trabalho. Esta situação comprometeu o meu ritmo de imersão,
pois me obrigou a parar e pensar em qual era o valor da Cerâmica para mim e qual
era a qualidade da Cerâmica quanto utilitário para a Arte. Com o tempo35 reconstruí
minha confiança para seguir minha pesquisa e atualmente reconheço que no final das
contas, este momento amadureceu o meu modo de pensar a Arte e interpretar a
Cerâmica. Tudo isso, transformou-se em meu combustível para permanecer insistindo
na qualidade e contemporaneidade da Cerâmica como Arte.
34
Eu desconheço artistas que não querem ganhar seu sustento pelo fruto de seu trabalho.
35
E terapia.
36
No texto Shoko Suzuki refere-se a Noemisa Batista e Isabel Mendes da Cunha.
55
Neste contexto, entre 1926 e 198937, foi criado o Movimento Mingei, que preza
a conservação e valorização das Artes tradicionais japonesas. Assim, a qualidade do
trabalho manual dos Artesãos anônimos foi reconhecida e até os dias atuais, o Japão
37
Período das Eras Taisho e Showa.
56
Imagem 27: Alguns esmaltes formulados no Imagem 28: Detalhe dos testes de vidrados
curso de Vidrados da Sueli Massuda, 2019
casa.
Imagem 30: Em 2018, estudando a estrutura de Imagem 31: esboço do projeto, 2018.
ferro do forno a gás, Cunha-SP
59
Imagem 34: Teste dos maçaricos no interior do forno, São Paulo, 2019.
62
Para mim, fazer Cerâmica é como uma imersão meditativa. De uma maneira
parecida com a descrição de Shoko, quando estou com ela me sinto abraçada por um
sentimento de amor, acolhimento e paz. Shoko Suzuki é a ceramista que eu mais
admiro como figura que representa a jornada do artista, que tem a Cerâmica como
propósito de vida. Com muita felicidade pude conhece-la em 2019, no lançamento de
67
seu livro “A poética de Shoko Suzuki”, que marcou seu nonagésimo aniversário de
vida e septuagésimo ano dedicado a Cerâmica.
Imagem 42: Ceramistas no lançamento do livro "A poética de Shoko Suzuki" com a mestra
Shoko Suzuki sentada ao centro da foto. Instituto Tomie Ohtake, 2019.
68
Apresentar estes relatos que tratam desde a relutância ao cursar Artes Visuais,
seguida da percepção até a absorção, justifica-se porque resultam na afirmação da
experiência. Assim como no primeiro capítulo deste trabalho defendo que o Narrador
de Walter Benjamin é aquele que narra suas experiências, meu processo de
aprendizagem e ensino também são efeitos das minhas experiências. Buscando
entender o pertencimento das minhas poéticas artísticas como experiências para a
Arte e Educação, migro minha pesquisa para o livro “Arte como experiência” do
educador e filósofo John Dewey.
38
Em 2015.
70
A Unati de 2016 era composta por 10 alunos, todos vinham de várias parte da
cidade participar da aula. A professora, na época, era a Flavia Leme e já na primeira
aula ela propôs uma atividade para os alunos desenvolverem. Ela passou uma poesia
a respeito do pássaro João de Barro e os instruiu a criarem livremente com a argila,
algo inspirado no poema. Minha função era auxiliá-los na parte técnica da Cerâmica.
É muito difícil fazer Cerâmica sem conhecer suas técnicas. A argila costuma secar
quando desprotegida e toda a umidade dentro dela evapora, virando uma frágil pedra
compacta. Neste processo de secagem da argila, deve-se obrigá-la a secar
lentamente, para que ela não deforme, quebre ou desmorone. O barro é uma matéria
completamente orgânica, além de sua composição, todo e qualquer contato com ele
o modifica e o afeta. Isto posto, para trabalhar com a Cerâmica, aprender e dominar
algumas técnicas são fundamentais.
turma, mesmo com pouco preparo e ela me deu apoio dizendo que estava confiante
que eu me sairia bem.
Terminar o primeiro semestre foi tranquilo, porque meu trabalho foi concluir o
semestre da professora Flavia Leme. Contudo, no próprio semestre eu que deveria
propor uma atividade e ensiná-los.
Fazendo o paleteado, notei que esta é uma técnica complicada para ensinar.
Porque para paletear a argila, ela deveria estar em ponto de couro40, no qual deve se
compactar a argila até que ela fique bem delgada e delicada. A peça paleteada fina
se torna muito frágil e suscetível a trincas e rachaduras incorrigíveis.
39
página 49 , capítulo III.
40
Um dos estágio de secagem da argila, em que ainda está úmida, porém pouco maleável.
73
Com esta nova técnica produzi minhas penas do Tsuru. Optei pela queima de
Rakú para dar característica às penas, minha intenção era que as penas ficassem
uma variação de tons brancos, cinzas e pretos.
Imagem 46: Peças da UNATI paleteadas e esmaltadas Imagem 47: Peças paleteadas da UNATI prontas
Ensinar uma linguagem com a qual já temos experiência e afinidade se tornou uma
77
A Pedra no caso sou eu, Mimma. Ela tem dois objetivos: fazer sua obra de Arte
e criar uma oficina de Cerâmica que envolva todos os alunos juntos. No caminho ela
rala, cai e tem uma ideia: ensinar o paleteado. Mas ela encontra uma dificuldade e
não consegue seguir rolando, até que alguém a ajuda a encontrar uma solução: uma
nova forma de fazer o paleteado. Esta solução tem força motora para fazê-la continuar
rolando, até que ela entende que a solução caberia aos seus dois objetivos iniciais:
seu trabalho como artista e seu trabalho como professora.
41
Capítulo II, pág15.
80
Como a Esmênia modelaria seu leão? Por que a Luiza escolheu fazer um coala
e não um urso panda? Qual animal a Diva modelaria?
Assim que cada uma foi modelando sua máscara, eu acompanhei o processo
de criação de cada aluna. Todas as máscaras tinham um molde de jornal, que
serviriam de apoio à peça. Iniciamos amassando a argila e fazendo uma placa grossa
que envolvesse todo o molde de jornal. Fazer placas é uma das técnicas de Cerâmica,
eu quis passar para elas uma forma de fazer placas sem o uso da “plaqueira”, que é
jogar a massa sobre a mesa compactando-a e depois esticá-la com um rolo de
macarrão. A placa sobre o molde é a base para a modelagem do rosto do animal.
Todas, então, com seus smartphones pesquisaram seus respectivos animais, e eu as
orientei a desenhar em um papel o animal antes da modelagem. A modelagem foi por
acréscimo de massa e na semana seguinte, elas retiravam o excesso de massa para
81
deixar a obra mais leve e para que não ocorra risco de bolhas de ar dentro da peça.
Esta técnica chama-se ocagem. De parte em parte, cada uma modelou sua máscara.
Para o acabamento/decoração, eu disponibilizei alguns esmaltes e engobes. A
imersão no projeto de máscara foi um trabalho coletivo do grupo, cada um pôs sua
identidade no trabalho, resultando nas figuras da página 82 a 89.
Quanto à prática da Cerâmica, eu ainda sou um aprendiz, uma pedra que rola,
que um dia pode vir a ser um mestre. Nesta etapa, a melhor defesa do que seria o
meu projeto de licenciatura é a própria produção dos alunos da UNATI. Sendo cada
obra singular e de escolha de cada um.
Imagem 57:Naja da
Shirley
84
Mimma Ito
Furusato
28cmx ø16cm
2008
Cerâmica de Alta temperatura
91
Mimma Ito
Vaca I (detalhe)
17cmx 10cmx 6cm
2015
Cerâmica Rakú
92
Mimma Ito
A Vaca
1,2mx 0,80mx 0,75m
2016
Cerâmica de alta
temperatura
93
Mimma Ito
Masuko Tsuru
Instalação
2017
Cerâmica Rakú e Queima
Primitiva com Sal
94
Mimma Ito
Tigela de Cinzas
17cmx 8,5cm
2019
Cerâmica de queima á
Lenha Smokeless
95
Mimma Ito
Sem Título
25cmx 25cm
2019
Cerâmica de queima á Lenha
Smokeless
96
Mimma Ito
Kin
15cmx 10cm
2019
Cerâmica de queima á Lenha
Smokeless
97
Mimma Ito
TEMMOKU
10cmx 7cm
2019
Cerâmica de queima á Lenha
Smokeless
98
Considerações Finais
na prática da Cerâmica, constato que toda nossa interação com ela, desde o
manuseio da argila à queima, manifesta-se na Cerâmica.
Mas como uma “coisa” vinda de um pedaço de barro, pode criar lembranças?
Ela não é uma “Criatura Viva” de Dewey, que cria experiências como pArte do instinto
de estar vivo. Nem um tipo de ameba que cria sinapses sem ter um cérebro...
Contudo, ao afirmar que a Cerâmica tem memória, eu posso afirmar também
que ela tem experiências?
Sim, a Cerâmica tem memória e através de sua memória, que ela nos transmite
a experiência.
Quando modelamos a massa argilosa, ela absorve todas as nossas interações
com ela e ainda nos denuncia depois de queimada. Sempre vamos notar linhas das
nossas digitais impressas sobre o objeto cerâmico, ou um pequeno risco de seu molde
ou em até mesmo na desproporção na espessura da parede da peça torneada. Isto
é, toda nossa interação com a argila fica gravada no processo de sua modelagem e
se acentuada durante a queima. Provas comuns desta memória são as pequenas
rachaduras nas peças, alguns desníveis em sua parede e até mesmo pequenas
explosões que ocorrem por conta das bolhas de ar, resultado da negligência do autor
da obra.
Na Cerâmica, é regra amassar a argila antes de começar a trabalhar nela. O
ato de amassar a argila tecnicamente, ajuda a compactar a massa, evitando com que
haja bolhas de ar dentro dela. Em termos de conhecimento, amassar também é um
treino, quase meditativo, em que organizamos a nossa intenção criativa com o barro.
Existe uma técnica japonesa de amassar argila que a medida que
pressionamos o barro, ela se abre em forma de espiral e conforme aumentamos a
nossa pressão sobre ela, ela se embrulha até ganhar um formato cônico. Este tipo de
amassado nos exige dançar harmoniosamente com a argila, pois todo corpo
movimenta-se conforme o amassar. Não são só as mãos que se movem para
pressionar a massa, esta técnica também impõe a posição correta das pernas, exige
postura e movimentos rítmicos para balançar do corpo.
de caracol. A partir do seu eixo até sua ponta, a argila formava um desenho circular
que parecia a forma do infinito.
Enquanto eu fazia minha pesquisa para finalizar este trabalho, fiquei surpresa
ao descobrir que na língua japonesa, o nome deste amassado em espiral chama-se
Kikuneri-菊練り. Kiku significa crisântemo e Neri significa amassar e treinar.
Kiku é uma flor que eu tenho especial ligação afetiva, pois representa muitas
memórias felizes da minha infância. Shion era o nome do tipo de crisântemo que
florescia em casa, sua flor era lilás com o miolo amarelo e eu tinha o costume de
colhê-lo enquanto brincava nos jardins da minha família. Quando descobri o termo
Kikuneri, fiquei comovida pois além dele me remeter à minha infância, algo que eu
ressalto como pArte da minha narrativa, ele também poderia se encaixar como um
conceito para a conclusão deste trabalho.
FIM
104
BIBLIOGRAFIA
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2019
106
STAR WARS: The Last Jedi. Direção Rian Johnson. Estados Unidos da América:
Disney Studio Motion Pictures, 2017. 1 DVD (152 min)
つるのおんがえし. Disponível em <
https://www.youtube.com/watch?v=dICTLGOY45E>. Acesso em: 9 nov. 2019.
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crowned_crane> acessado no dia 27/09/2019 ás 11:53.