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DOMÍNIO FRANCÊS- ANOS 50

DEUS, aquele que é a causa primeira.


Esta é a primeira definição dada pelo dicionário fran-
cês Nouveau Larousse Illustré à palavra autor. A seguir,
autor significa "paf', "inventor", "criador de um sistema",
("Pitágoras é tido como o autor da metempsicose"), aquele
que fez uma coisa (o autor de um crime), pessoa que, pela
primeira vez, disse ou escreveu uma coisa.
"Particularmente", autor é uma pessoa que fez uma
obra de ciência, de literatura ou de arte. "Absolutamente",
autor se usa no sentido de escritor, de que é sinônimo.
Seguem exemplos: "O que se observa num autor são os
pensamentos"; "é principalmente o estilo que se leva em
conta num autor". Esses sentidos da palavra autor são
mantidos pela maioria dos dicionários e enciclopédias
franceses e de outras nacionalidades, com exclusão da
primeira acepção aqui citada, que é rara.

Na primeira metade dos anos 50, a revista francesa


Cabiers du Cinéma lança uma proposta de crítica cine-
matográfica conhecida como a política dos autores, que
se tornaria célebre . A proposta teve imensa repercussão
mundial, inclusive no Brasil, e hoje as expressões autor e
cinema de autor tornaram-se usuais no vocabulário cine-
matográfico. Que existam um cinema de autor e autores
cinematográficos ficou uma evidência junto à maioria da
crítica cinematográfica e ao público cinéfilo. Os autores
d:1 proposta foram jovens críticos que pouco depois se
n:aliz:1dores famosos, crnno Jean-Luc ( ;odard,
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1:1.1n"·ob T111fl.1111, < :I.111dl' <·1i.d,rol, l·'.1i<' H<>ll11w1 J,1< ·1p11 •...,
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l () JEAN-CLAUDE BERNARDET O AUTOR NO G1NEMA 11

lHvette, Jean Doniol-Valcroze, expoentes da Nouvelle Va- das funções assumidas pelo diretor, mas Arnoux com-
Rlle. Inicialmente, a proposta choca profundamente, os plementa: o metteur en scene "infundiu seu sangue à obra
Cahiers recebem extensa correspondência crítica, outras que só respira através dele, ele a animou com o mais
revistas se opõem à política dos autores. Na própria reda- puro de si mesmo". Por mais que o vocabulário do articu-
ção dos Cahiers, a situação não é pacífica, e o redator e lista tenha envelhecido, por mais que outros pontos do
grão-mestre da Nouvelle Vague, André Bazin, vê-se levado artigo não coincidam com a futura política, aqui já estão
a escrever um artigo com um título irônico: "Como é pos- enunciados temas fundamentais que seriam desenvolvi-
sível ser hitchcocko-hawskiano?" 0955), onde explica que dos na década de 50: o autor, a contribuição "individual",
a redação está longe de concordar plenamente com as o "si mesmo", a individÜação pelo "estilo".
teses daqueles críticos a quem chama de Jovens Turcos, Por mais ··que se tenha considerado como autor de
mas que a revista optou por abrigar seus artigos devido à um filme o roteitista, o argumentista ou o produtor - e não
seriedade, sinceridade e competência dos a1ticulistas. faltam cineastas que defendem essas posições - a idéia
O que choca na proposta? Com certeza não são nem de autoria cinematográfica como pertencente ao diretor
a palavra política nem a palavra autor. O cinema já é de tem, na França, uma tradição, um enraizamento cultural
longa data considerado uma arte, a idéia de autoria está profundo e não sai do bolso do colete dos Jovens Tur-
suficientemente entranhada na cultura francesa para que cos. O que vai chocar os cinéfilos é que a política dos
se aceite a idéia de autoria cinematográfica. á em 1921, o autores é essencialmente aplicada ao cinema americano,
ensaísta e realizador Jean Epstein aplica o termo "autor" a e por outro lado os Jovens Turcos estão virulentamente
cineastas, ·em 1924 fala claramente em "autores de fil~' solapando o cinema francês dito de qualidade, repre-
e declara "nós, autores de filmes" em 1926. Com todas as sentado por realizadores como Claude Autant-Lara. Di-
ambigüidades que veremos a seguir, o termo autor atra- ferentemente do cinema francês e europeu em geral,
vessa os anos 30 e desabrocha nos anos 40. Basta como onde as formas de produção seriam mais propícias à
testemunho o extenso artigo de Alexandre Arnoux em existência de · autores, Ho l:ywood é geralmente tido
1943 (a guerra ainda não acabou) divulgado por um se- como o lugar do comércio cinematográfico~ do diverti-
manário cultural de grande audiência: "O autor de um mento, do cinema de massa, ·e nunca como o lugar da
filme, este desconhecido". Arnoux, embora tenha colabo- arte e da autoria.
rado em alguns roteiros, não era cineasta mas romancista. Sem dúvida o caráter polêmico e original da pro-
Escreve de Feyder e de Renoir que "sua contribuição indi- posta dos Jovens Turcos é justamente a sua aplicação ao
vidual se esboça logo no início, eles elaboram rapida- cinema americano. A produção dos Estados Unidos tinha
mente seu estilo, sua maneira cinematográfica [leur pâte sumido dos mercados europeus durante a Segunda Guerra
cinématographique], seu ritmo, sua atmosfera, possibili- Mundial, e o seu reaparecimento a partir de 1945 deixa
tando ao amador menos prevenido distingui-los logo nas esses futuros críticos deslumbrados. Só se tem olhos para
primeiras seqüências". E também: "Nenhuma dúvida: no o cinema que chega de além-Atlântico. Em Os filmes de
decorrer desta era muda, o autor do filme é o diretor minha vida, publicado em 1975, Tmffaut relembra essa
[metteur en scene]". Ele desenvolve a idéia destacando o época evoca <(o fanatismo que foi o nosso, aquele dos
fato de que esses metteurs en scene, mesmo quando não drn:•filos franceses, quando chegaram os filmes america-
responsáveis pelo roteiro, quase sempre assumiram a 11<>s ;tpús a Lihert~H;ão". Esse entusiasmo não concerne
dt·cupagcm, <l filmagem, a rnontag~m. e orientaram o fo- .qw11;1s ;t< > dnt•m;i m·111 :tp<.'nas ~tos francvses. P;1rn Fl'llini,
i< >gr.1fc >. Â.( 1uí ;t idi·ia ( I<.' autur apé>ia-se sol >n· ;1 multiplidclad<.' " .1 l1t•·1.1lt11.1 t· <> t i1H·111.1 :111H'rica11<> t·i.1111 11111.1 coi."i,l s<'>: ;1
14 JEAN-CI.AUDE BERNARD.ET O AUTOR NO C1NEMA

consideração neste estudo pelo fato de Gilles Deleuze, clara: "Pois imponho, sim - não posso fazer de outro
no seu Cinéma: image-mouvement, de 1983, ter conside- modo - a minha maneira de ver, de pensar, o meu ponto
rado o trabalho de Truchaud "uma análise exemplar da de vista pessoal, mas como todas as pessoas que escrevem
evolução de um autor". (. .. )". Ou Fellini: "Eu me sentia como um escritor", ou ain-
da, falando de Rosselini: "Vendo-o trabalhar, pareceu-me
descobrir, pela primeira vez, com repentina clareza, que
Embora se possa dizer autor de um quadro, autor era possível fazer cinema com o mesmo relacionamento
de uma partitura, "absolutamente", como diz o dicionáiio, particular, direto, imediato com o qual um escritor escreve
autor significa escritor. Não há dúvida de que a palavra ou um pintor pinta". A ►experiência cult_ural que molda a
autor·usada pelos adeptos da política e seus seguidores idéia do autor cinematográfico é a do escritor e seu livro.
encontra sua origem no domínio literário. Tratava-se de No seu próprio uso cinematográfico, a palavra au-
ver o cineasta como um escritor, o filme como um livro, t~r tem primeiro uma significação literária. Perguntam a
mais preci~amente como_Üm romance. Por mais que as Renoir: "Gostaríamos de interrogá-lo, em primeiro lugar,
artes visuais e sonoras possam ter motivado esses críticos sobre os seus filmes antigos. Sabemos que teve a ocasião
e futuros realizadores, não resta dúvida de que uma das de rever vários mostrando-os aos seus autores". Ou Renoir
grandes experiências formadoras, no seio da cultura fran- diz, comentando o início de sua carreira cinematográfica,
cesa que, me parece, sempre cultuou mais seus escritores quando trabalhava em filmes de outros: "No início, não
que seus pintores, músicos ou arquitetos, é a experiência tinha de modo nenhum a intenção de escrever, de ser
de ler, a perspectiva de escrever. Os Jovens Turcos gos- autor de inventar histórias". Nessas duas frases, autor
tam de escrever, pelo menos escrevem: poucos diretores ' -
não designa um realizador, mas sim roteiristas ou argu-
terão deixado tão farta literatura cinematográfica, exce- mentistas, isto é, autores do que se costuma considerar a
tuando-se um Eisenstein, um Pasolini ou um Glauber e parte literária do tr-ªt,alho cinematográfico. E aqui o termo
poucos outros, e o escritor é a representação do artista autor obedece à sua tradição francesa, firmada por teóri-
e do intelectual. De modo que a referência literária é cons- <·os como Delluc quando, por exemplo, afirmava (1918)
tante nos seus escritos. Truffaut "falava de Citizen Kane que nem sempre o diretor tem idéias para o argumento
como de um filme que era próximo e amical como um de um filme e concluía: "o metteur en scene não é neces-
romance". Esse tipo de aproximação já vinha de antes: em sariamente autor". Henri Diamant-Berger era categórico
1948, Raymond Barkan, em artigo sobr·e Jean Renoir, o 11< > seu tratado cinematográfico (1919): "O roteiro é o fil-
compara aos romancistas Proust e Georges Duhamel. 2 lll<' em si. É, escrito, o filme tal como será impresso na
Jean-Luc Godard: "Estamos sempre sós, tanto no estúdio película. É um erro pensar que o filme seja o desenvolvi-
como diante da página branca". 3 Agnes Varda, ao realizar nH ·nto do roteiro, que o roteiro contém a matéria bruta do
La pointe courte, anuncia que vai "fazer um filme exata- lilme .. que é tarefa do metteur en scene extraí-lo e
mente como se escreve um livro" .4 Em filmes de Truffaut, l·onu.·ntú-lo conforme a sua personalidade. Ao autor do
o cúmulo da atitude anticultural é queimar liv ros, como 1<>ll·iro cabe a res ponsabilidade do filme. Há metteurs en
em Fahrenheit 451 ou Jules et fim, filme este e m qu e os " ,.,,,. <llll' col abora m com o autor. É legítimo, mas isto
dois personagens masculinos são escritores e trocarn, alé m , ll·v,· «H ' <>IT<.T antt"s d a execução e ser discutido com o
de uma mulher, experiências literárias. E m uitos são os .1111, ,, . e>. 1111 1 ,r dl'Vl' ser ohec..lecido; p;.1ra tanto, deve acom-
realizado res do olimpo que us am a refer(·ncia li ter:í1ü 1••11111.11 .1 <.'X('('\11,.·;10 dl· s<.·11 l'<>tl'iro ~1 fim d ' que sejam
par,1 qualificar seus tr;1ha lhos. Por l'X l· mplo, lhvsscm d<.·- 11",111•1 1.,d,l', .1•, •,11.1•, i1 1ti·11<,.ot•~". N.1 11 ws111.1 posi~·ao colo-
16 JEAN-C:LA UDE BERNARDET . O AUT.OR NO CINEMA

cava-se Antoine - com total apoio de Canudo 0927) - , Capricorn, é dito que o roteiro é "dotado de um brasão
quando declarava que o metteur en scene não deve im- literário" e que o filme aproxima-se de "um leit-motiv
provisar-se autor, conforme André Paul Antoine, que diz: fundamental da literatura universal". Há uma nobreza
"Antoine fazia rova de grande modéstia em relação aos literária que contamina o cinema. Truchaud não fica
a_11tore_i. Nunç? se teria -permitido retocar uma peça. Limi- atrás, relacionando Nicholas Ray com Alfred de Musset,
tava-se_a sugerir aos autores modificações que julgava Alfred de Vigny, Bernardin de Saint Pierre, Ésquilo,
deseiá_y(j_s. Nunca pensou em se atvorar em escritor quer Sófocles, Camus, Shakespeare, Racine, Genêt. É de se
no teatro, quer no cinema. Era metteur en scene, ele pra- observar que dos dezoito escritores relacionados acima,
ticava a sua profissão de metteur en ·scene'. Quando, ao dez são franceses: em parte a legitimação desses cineas-
..comentar determinado roteiro, Pasolini diz: "estamos em tas americanos é feita ao encontrar-se nas suas obras
presença de um roteiro autônomo, que pode muito bem valores do quadro cultural a que pertencem os críticos,
representar, por parte de um autor (. .. )", ele se insere na quadro cultural que não é considerado como específico,
mesma tradição da palavra autor entendida como rotei- como francês, mas como universal.
rista. Só após longa e penosa evolução, o autor vai per- .l> No_entanto - quem diria? - a literatura é a grande
dendo o seu peso literário e se torna o diretor. Jean inimiga. Pois esses críticos querem um cinema que seja cine-
Cocteau faz a síntese - mas numa direção oposta à que ma-cinema, e não um cinema reflexo da literatura. O cinema
viria a preconizar o cinema de autor - ao escrever: "O não está aí para contar histórias que a literatura pode contar
dia em que o diretor compreender que o papel do autor tão bem quanto ele. Querem um cinema livre da trama
não·~se limita· ao texto a escrever - no dia em que o como jL ueriam ci11.iasta-s da Vanguarda dos anos 20.Ü
âiitor ele próprio passar à direção - a língua morta do título do artigo que Godard dedica a Hot Blood, de- N.
cinema se tornará uma língua viva" .5 Ness~ pç!_rspectiva, Ray, torna-se emblemático: "Rien que le cinéma" (apenas
não é o diretor que deveria tornar-se autor de seus argu- o cinema, numa alusão, talvez, ao filme Rien que les
mentos e rotefros, e sim aquele que escreve para o cinema heures, de Cavalcanti). Chabrol/Rohmer fazem ressalvas a
tornai~se realizador. ,\'hadow of a doubt, de Hitchcock, por ter "um aspecto
"Além de uma alegoria da Queda, encontramo-nos por demais lit~rário", por não ter "suficiente confiança no
portanto em presença de uma situação trágica digna p'oder próprio do cinema". O que impõrta nÕ cinema,
desse nome, que tem como motor, como em Bernanos, as V< >!taremos a esse ponto, é a mise en scene, a encenação, a
armadilhas do sacrifício e da santidade", escrevem Chabrol direção, que só pode ser prejudicada pela literatura. Fellini
e Rohmer sobre 1 Confess, de Hitchcock. E sobre Tbe 1:1mhém critica seus primeiros filmes por causa do peso
Wrong Man: "Moderna aplicação de um princípio caro a q,w neles tinha a literatura (ou o que considera como tal):
Corneille (. .. )". Além de ser comparado a· Bernanos, a Cor- "1 >n >vavclmente no início experimentei muito o condicio-
neille, Hitchcock será também relacionado com. Balzac, 11.1111<:nto narrativo da história, confiei mais na imagem, e
Goethe, Poe, Alfred de Vigny, Swift, Thomas de Quincey, c·.1d:1 vez mais tento prescindir das palavras enquanto
Mark Twain e outros. Essas comparações têm sempre, nn 1il11H t. 1:: bom insistir: "enquanto filmo". Pois: "É durante
ensaio de Chabrol/Rohmer, a função de dignificar as obras ., d11hl.1gc·1n que volto a dar grande importância aos diá-
do cineasta. Os escritores são considerados como valores lc •i~<>~ ►1. '1';1nd>t'·111 Fe•llini: ''Creio que o cinema não tem
seguros no firmamento da cultura, de modo que rc:<:tK< >n rw, t",•i1d.1< I<· de· lite·r;ltura, pn·ds;1 so111t·11te de· autores cinc-
trar aspectos de seus tem:1s <'111 filmes c.'· rnarwira de• 111.ll">:1.llh 1>~. ,...,,11 <' , dt· ge·nte· <·1uv st· l'Xprl·sse· atr;1vi·s
v;ilori;,.;i lrn, t • de· cons()li( L1 r o ,·/f(/ l(•d 111 <'i I w :1~1.1. l >t • llntll'f ,lc, 1111111,, cl.1 1 .11lc·11e 1,1, lj\lC' ·,,11, 11,111H 1d.1tl'.'-, ,11, l'lll<'lll,1
11
18 JEAN-CL4 UDE BERNARDET O AUTOR NO CINEMA 19

Então, uma atitude contraditória em relação à litera- C.-J. Philippe explica falando de uma "vocação desviada".
tura, que é nociva quando se torna presente num filme Não tivesse existido o cinema, os realizadores da Nouvelle
em detrimento dos valores particulares ao cinema, mas -Vague teriam sido escritores, e eles transferiram sua voca- ~
que pode igualmente dar foro de nobreza a determinados . ção da literatura para o cinema. O que faz que seus escri-
filmes. Em realidade, talvez não haja tanta contradição tos cine1:1arográficos reflitam o seu amor pela literatura,
quanto pode parecer. Quando não se quer que a literatura que os cineastas de que gostam sejam integrados numa
macule o cinema, de que literatura se fala? Basicamente constelação de valores que inicialmente atraiu e formou
das histórias que conta a literatura, do caráter narrativo da esses críticos/cineastas. Mas que faz igualmente que, vol-
literatura. São filmes que valorizam o enredo, que são fei- tando-se para o cinema, procurem um cinema livre da
tos para desenvolver a trama e que, nesse desenvolvi- literatura, para que a transferência possa operar-se com
mento, apelam para uma explicitação verbal da evolução um mínimo de radicalismo. Um artigo de Godard foi re-
das situações e das relações entre personagens, não re- cusado por André Bazin, o editor dos Cahiers du Cinéma:
correndo· suficientemente a valores plásticos, encenação, tratava de Le Plaisir, de Max Ophuls, baseado em conto
olhares, compos{ção de quadros, uso de objetos, cortes, de Maupassant. Bazin recusa o artigo, provavelmente
relação entre tamanhos de plano etc., todo um instrumen- elogioso, porque Ophuls não teria sido fiel ao escritor
tal que não está ao alcance da narrativà literária. E isso francês. Godard· critica Bazin por avaliar o cinema em
não apenas por causa do caráter literário - ou o que se função da literatura, mas deixa entender que talvez Bazin
considera tal - dessa narrativa, mas também, como vere- tivesse razão ao recusar o texto porque devia ser males-
mos mais tarde, porque a política dos autores implica uma crito: "E, além disso, a gente expressava-se muito mal em
n~cessária desvalorização dos enredos. )Quando, ao con- literatura. Eu, em todo caso, pois sentia que não era feito
trário, o relacionamento da literatura ·com o cinema é para isso". As referências eram literárias, escrevia-se, mas
feito, não através do enredo, mas de valores outros, a não se era feito para isso, relação tensa com a literatura
literatura torna-se dignificante. Ouçamos Chabrol/Rohmer: que provoca uma evolução radical em direção ao cinema.
"Não é a primeira vez que po · emos assinalar uma seme- Por isso, conforme C.-J. Philippe, eles valorizam filmes
lhança entre a obra de Hitchcock e a de Dostoievski. Tbe <·<nno Under Capricorn ou Tbe Barefoot Countess, de Hitch-

rope encontra-se mais perto de Crime e castigo que qual- <'<>ck e Mankiewicz, isto é, filmes que devem o essencial
quer adaptação cinematográfica que se tenha feito do ro- <_le se u interesse às suas qualidades cinematográficas. De
mance". De · The Wrong Man: "Esse o motivo pelo qual o 1< >rn:a que a queima de livros em filmes de Truffaut pode
autor tomou o cuidado de nos comunicar a autenticidade Sl'r mterpretada de modo mais complexo: por um lado,
do fato. Moderna aplicação d e um princípio caro a t1;1t a-se d e uma crítica a atitudes anticulturais _or parte de
Corneille, a saber, que um acontecimento fora do comum 1q ~imes ditatoriais, e para isso se escolhe o livro como-

pode inspirar uma tragédia, desde que ele seja possível. E ~,1111l>olo da cultura; por outro, podemos ver uma expressão
a prova, a fortiori, de que é possível, é que ocorreu ". d., 1H ·.n.-~sút:ia ruptura com a li~ ura. para que se opere a
Percebe-se nessas citações que o s valores literários 11.111.~lc.-n.·11e1~1 so bre o cinema.
dign ificantes para o cinema nao são narrativos, são o espf- 1·:ss:i relação do cine ma com a literatura não foram
1 1•, 1 1 11 i<"os dos C't1hiers du Cinéma que inventaram. Exis-
rilo, o que, mais ta rde, poderemos entender com o sendo
e 1s valorl's morr1i.,: d:i lit<.'ratura. 11.1 11.1 l,111g() tl'ntpo 11<> dnl'ma francês, principalmente
A1H'~;1r de.· nae> sc.·r C'<>ntrac.litorio c.·sse Ltsdnio/ n ·~ 11 1 ,., . 11 11 >.'• 20, v t;1mlwm fora d<.'ll·. Isso não p o r causa da
j('l\,ICI d.1 l1 t1·1,1(1 11 , 1, 11,111 d1•h.1 d,· li .l\·1·1 11111.1 11·11~,.ln q11c• ,d.q ,1.1,. ,111 ti, · 111 111.111, ( ·~: < ·.~!'1.t , • 11111.1 rl'la~·:10 pc. ·rvl·rsa (jlll'
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atrela o cinema à literatura. Quando Feyder afirmava que .1< >~ t·nsaios de um Sartre ou de um Camus. O texto de
podia fazer um filme com o ensaio de Montesquieu O Astruc tinha em verdade precedentes nas posições de um
Espírito das Leis, ou Eisenstein com O Capital, de Marx, Cocteau ou de um Jean Becker, que, no a1tigo já citado
eles não pensavam numa adaptação semelhante à de um de 1947, concitava os realizadores a escreverem suas pró-
romance em que o filme reproduz mal e mal o enredo da 1
prias histórias e a se mostrarem "pessoais"; o artigo con-
\ obra para chegar a um discurso em tud~ inferior.ªº origi-( dui com caixa alta: "os autores de filmes franceses DEVEM
1 nal. Pensavam na possibilidade de um discurso cmemato- l<EFORÇAR A SUA CONTRIBUIÇÃO PESSOAL nos seus filmes". Mas
, gráfico que tivesse a mesma complexidade dos origin~ foi o texto de Astruc que virou manifesto, e sem ele os
e, essencialmente, num discurso cinematográfico que, .Jovens Turcos talvez tivessem tido mais trabalho para ela-
saindo da ficção, pudesse tratar de assuntos abstratos borar a sua política. Isso, apesar de haver uma importante
complexos até então reservados à linguagem escrita. divergência entre o texto de Astruc e os críticos dos Cahiers.
Esses dois exemplos são citados no artigo_que_Al~~dre Estes também querem um cinema que tenha a complexi-
Astruc publica em 1948 sob o título de " a cam~~t0o'' dade e a maleabilidade da linguagem escrita, mas dificil-
(a câmera-caneta), com o subtítulo de " ascimento de mente poderiam aceitar que o cinema deixe de ser um
uma nova vanguarda" (referência à antiga vanguarda dos espetáculo, que se distancie da imagem, do visual e do
anos 20). Esse texto teve o papel de um verdadeiro mani- concreto. Nem como críticos nem como realizadores afas-
festo que abriu o caminho para, alguns anos mais tarde, taram-se do enredo - o enredo é fundamental, voltare-
os Jovens Turcos desenvolverem a sua idéia de cinema de mos a essa questão - , não enveredaram nunca pelo
autor. Transcrevo extensos fragmentos que condensam o ensaio puro. Mesmo os filmes de Godard que se pode
pensamento de Astruc: "O cinema está p~ra e simp~es- considerar os mais ensaísticos não se afastaram totalmente
mente tornando-se uma linguagem. Uma linguagem, isto do enredo e, de qualquer modo, obras como Weekend ou
é uma forma na qual e pela qual um artista pode expres- La Chinoise são bem posteriores ao período mais
s;r seu pensamento, por mais abstrato que seja, ou tradu- combativo e criativo da política. Quanto ao típico ensaio,
zir suas obsessões como ocorre hoje no ensaio ou no como Mon anele d'Amérique, vem mais tarde ainda e,
romance. Por isso, chamo essa nova idade do cinema a da além disso, Alain Resnais não integrava o gmpo dos Jovens
câmera-caneta. Esta metáfora tem uma significação muito Turcos dos Cahiers.
precisa. Significa que o cinema irá _libertando-se_ paulati- Há um tema, sem dúvida latente no manifesto de
namente desta tirania do visual, da imagem pela imagem, Astruc, mas que ele não desenvolve, e que se tornará
do concreto, para tornar-se uma escrita tão maleável e tão fundamental para a equipe dos Cahiers, principalmente
sutil como a da linguagem escrita( ... ) pois o cinema, como para Truffaut, tema que ele explicitava em 1957 em textos
a literatura, antes de ser uma a1te específica, é uma lingua- retomados em "Com que sonham os críticos?", introdução
gem que pode expressar qualquer setor do pensamento a seu Les Films de ma vie. "O filme de amanhã me aparece
(. .. ) A expressão do pensamento é o problema fundamen- portanto como ainda mais pessoal que um romance indi-
tal do cinema ( ... ) O autor escreve com sua câmera como vidual e autobiográfico, como uma confissão ou como
um escritor escreve com uma caneta". Trata-se de livrar o um diálio íntimo. Os jovens cineastas se expressarão na
cinema do espetáculo, e daí a pouco as pessoas irão alu- primeira pessoa". Esse é o ponto crucial da política:_g,utor.
gar no livreiro da esquina "filmes escritos" sob~·e qualq~er é aquele que diz "eu". 6 Dreyer, falando de seu projeto da
assunto obras equivalentes pela sua complexidade e sig- -Vida de Cristo, é categórico: "não será grande espetáculo.
nificação aos romances de um Faulkner ou de um Malraux, Cecil B. De Mille está morto". Realmente não há como
,lf:A N e,'/ .-1 f !/>/:' Ili·!< N.·I NI li· J' 1I .·li I f{ JN Nt J e /NJ,,\f,.i

incluir De Mille na política, por 1nais elásticas que se tor- l' ainda l.'stava m busca de si me ma. Parece-me _que fun-
nem suas fronteiras. E, no entanto, para afirmar a força da damentalmente três. Por um lado, o autor é o realizador,
expressão do sujeito, Dreyer faz o seguinte raciocínio que quer se__J_rate do autor da história que passa à realização
chega a ser comovente: "Mas de maneira nenhuma falo do filme ( ro osta de Cocteau), uer do diretor ue- es-
de Cecil B. De Mille com desprezo, longe disso. Ele expri- (Teve suas próe_ri_as his!órias. O que significa que é neces-
mia-se com o que tinha dentro dele. Tem-se de admitir :-;ário juntar ~s_funções de argÜmentista-=i=õteirista e reali-
que, se não tivesse sido o caso, ele não teria tido o grande zador numa só essqa, com_predominância a unçãoae
sucesso que foi o seu". No limite o autor pode importar realizador. Em seu "O papel essencial do autor de filme" '
- .
mais que a obra, ou a obra não obter autonomia em rela- artigo pioneiro de 1943, Marcel L'Herbier não reivindica a
ção ao autor e significar enquanto vinculada a ele: "Só junção roteirista-realizador, mas insiste em que o verda-
gost<?_d?s filmes pareci90s COfl'!. seus autores" diz Godard. deiro autor é o realizador. O a11igo participa de uma polê-
A política é a apologia do sujeito que se expressa. Essa mica que discutia - ainda - se o autor de um filme era
concepção nega totalmente a que entende o cinema com- o roteirista ou o realizador. L'Herbier argumenta que o
uma a1te coletiva, de equipe. Cercado de máquinas, de roteiro não passa de uma "bússola". É necessário criar as
técnicos e de atores, no estúdio, está-se sempre só. Mas imagens, é necessário "servir o acaso plástico e formal
essa solidão é um tanto diferente do recolhimento do es- li que o coup de dés das previsões verbais nunca abolirá".
critor no silêncio do gabinete apenas mobiliado pelo ruído Se o realizador não inventar a imagem, a palavra fica pa-
da máquina ou um disco na vitrola. Foi quando entendeu lavra e o filme não nasce. Encontramos aqui o prenúncio
que recolhimento e solidão criadora eram possíveis - do conceito de mise en scene que se tornará um dos pila-
apenas questão de treino - no meio do maior tumulto, res da política. Um segundo traço estende um elemento
que Fellini compreendeu que estava pronto para se tornar da proposta que acabamos de ver: não são só as funções de
um realizador. Quando roteirista e trabalhando com roteirista e de realizador que se devem juntar, mas tam-
Rosselini, Fellini achava "aquela espécie de babel de vo- bém a de produtor. Três funções numa só pessoa, é a tese
zes, reclamações, deslocamentos, g1ua, refletores, truques, defendida desta vez por um diretor de cinema e teatro
megafones" corrnptora e dispersiva. Vendo Rosselini filmar americano, em artigo publicado na França em 1946, com
um primeiro plano de Paisá urrando num megafone en- o título: "A criação deve ser a obra de um só". Mas Irving
quanto blindados atravessavam a cena e milhares de napo- Pinchei não d~fende a expressão pessoal, de que não fala.
litanos gritavam pelas janelas - um primeiro plano - , A fusão das três funções é indispensável porque não é
então Fellini percebe que a concentração e a expressão da possível a três homens trabalharem como se fossem um
"idéia que temos na cabeça" é possível no meio desse só, porque lhes seria impossível alcançar a necessária uni-
"happening contínuo entre a vida e a representação da dade de espírito, a originalidade de visão, de sentimento
vida" que é o cinema. <J-- e de estilo que deve possuir qualquer obra de arte. Essa
junção das três funções tornou-se o ideal do cinema de
0 autor é um cineasta que se expressa, que expressa autor e do que conhecemos no Brasil como cinema inde-
o ue te entro e e. o emos perce er vários traços pendente. O terceiro traço diz respeito à expressão pessoal:
nessa noção de autor que circula nos primeiros momen- o filme deve ser marcado autoralmente pelo seu realiza-
tos da política, bem como na fase anterior, nos anos 40, dor, sem, no entanto, que ele tenha sido obrigatoriamente
quando a palavra autor era relativamente encontradiça roteirista e produtor do filme. A Nouvelle Vague vai optar
em revistas e jornais franceses especializados em cinema por uma forma em que o realizador é também roteiris:.a e
24 JEAN-CIAUDE BERNARDET O AUTOR NO CINEMA 25

possivelmente produtor, e - basicamente - expressa-se. claro que o estilo é algo que não se prende em especial
A autoria como expressão pessoal também tem uma tra- aos cineastas, mas ao próprio cinema. Um filme composto
dição nas teorias cinematográficas francesas, principal- de fragmentos de filmes chamaria atenção para o "estilo
mente na obra de Jean Epstein, grande defensor da cinematográfico", pois "isolaria o estilo da anedota", em
subjetividade no cinema e que nutria uma admiração outras palavras, valorizaria a fotogenia. Essa interpretação
sem fim pelo autor desta frase: "Gostaria de compor um de estilo se distancia da do próprio Canudo, que fala do
filme que me expressasse com plenitude", Abel Gance. 7 "estilo de um Griffith e de um Gance", portanto de um
Já em 1923, Epstein liga o filme à personalidade do diretor: estilo individual. Da diferenciação que faz entre cineas-
"Esta paisagem ou este fragmento de drama encenado tas, da sua individuação, Epstein retém tão-somente a
por um Gance em nada se parecerá com o que teria idéia de subjetividade, sobre a qual é particularmente in-
sido, visto pelos olhos e o coração de um Griffith, de um sistente. Comentando seu filme L'or des mers, assim define
L'Herbier. E assim fez irrupção no cinema a personalidade o método de trabalho: "Faz quatro anos que penso no
de alguns homens, a alma, a poesia enfim". Hoje talvez tema inicial. Carrego dentro de mim quimeras durante
falássemos em estilo - o que a política acabará enten- vários anos, de modo que elas se corporificam natural-
dendo como mise en scene - para significar essa dife- mente quando tenho as condições de realizá-las". E é este
renciação entre esses cineastas . Por mais que Epstein o destino do cinema: "expressar o exterior e o interior
valorize o estilo e use o termo com freqüência, não o dos seres. Tais filmes [surrealistas] exigem de seus autores
aplica a realizadores ou autores, com uma exceção, tal- uma sinceridade completa que não é fácil. Os autores já
vez única: Chaplin, e não é um elogio. "Acabamos nos calculam com a tábua de correspondência freudiana sua
perguntando se a lei fundamental da fotogenia, donde possibilidade de comunicar os seus sentimentos com
decorre todo o sistema cinematográfico, não permane- imagens". Fazendo em 1947 o balanço da "Escola Fran-
ceu finalmente uma incógnita para Chaplin que, até em cesa" e reconhecendo sua imensa dívida para com os
A opinião pública, no qual encontrava-se livre da preo- americanos, Epstein afirma que os filmes de um Ince, de
cupação de respeitar os limites impostos pelo seu pró- um Cecil B. De Mille, de um Chaplin podem ser imensa-
prio personagem, não soube alterar em nada a insipidez mente comoventes, de uma tristeza ou alegria perfeitas.
de seu estilo". Assim, foi o aperfeiçoamento da técnica No entanto "a objetiva que tinha registrado e que trans-
que, aos poucos, foi criando o "primeiro estilo cinema- mitia tais emoções permanecia, ela, impessoal, absoluta-
tográfico"; o pdmeiro plano é um·a característica desse mente fria, sempre igual a si mesma, como que incons-
estilo. Em 1941, /
Epstein faz uma conferência intitulada cie nte e alheia a tudo o que narrava". O que se aplica
"Nascimento de um estilo", publicada no ano seguinte também a Griffith. Que não se tomem tais considerações
com o título "Nascimento de uma linguagem", o que su- <'<>mo uma crítica, é apenas a constatação de um "siste-
gere uma equivalência dos dois termos. E se Epstein tlla parnasiano". Enquanto em Gance ou L'Herbier, "cada
apontar diferenciações estilísticas, não será em nível indi- plano ( ... ) tornava-se um estado de alma, quer do autor,
vidual, mas nacional, e falará do "estilo cinematográfico qul'r deste ou daquele personagem (. .. ) Nosso melhor
americano", alemão, ou francês, o qual "não pode ser d nc..·nia vi u-se assim em busca da expressão psicológica
confundido com o estilo de nenhuma outra das grandes d() in d ivíduo",
nações produtoras da época". No <·ntanto, nao é essa a su bjetividade que vai ser
Q uando, em 1922, Epstein elogia Canudo pela sua pt• H 111.1 d.1 pl'l.1 jJO/tlico: tra l>;dh a ndo principalmente com
intenc,:ão d l' realizar um:1 "antologia dnematogr:ific1)1, fi<';I tl1 11'111 1,·~ ,1111 <'11< .1 111 >~. "i'i .1d< ·p1()s d .1 /}(}ftlí<'<I v:10 buscar ;1
26 JEAN-CLAUDE BERNARDET O AUTOR NO CINEMA 27

expressão pessoal do diretor em filmes de produtor, ex- anos 60 - , afirma apoiar-se a auteur tbeory em três pre-
pressão do autor que emerge no filme de produtor, isto é , missas. A primeira é que a teoria requer "a competência
em terreno adverso. técnica de um diretor tomada como um valor (. .. ) se um
diretor não tem competência técnica nem um instinto ele-
mentar para o cinema, ele é automaticamente rejeitado

fora do panteão dos diretores". A segunda premissa, ou
segundo critério de valoração, é "a ersonalidade distintiva
ANTES de prosseguir, podemos indagar brevemente sobre 0
~ U''¼ _
d e um dir~tS_>r (. .. ) um diretor deve apr~se_ntar _determina-
a receptividade da política no meio onde foi feita grande ? ,,
das características de estilo recorrentes, que constituirao
parte dos filmes sobre os quais se apoiaram os críticos . s ua assinatura. A forma e o movimento de um filme de-
franceses, o que poderá nos ajudar a melhor compreen- vem ter alguma relação com a forma de um diretor pensar
der as suas posições. Por parte de alguns críticos a oposi- e sentir". Finalmente, a terceira premissa é "a significação
ção foi total, com particular destaque para Pauline Kael, interior, a glória máxima do cinema como arte C...) Tal
que entrou em guerra contra a propagação do "método idéia da significação interior é próxima do que Astmc
francês". Ficou célebre a polêmica que provocou ao negar define como mise en scene, mas não completamente".
a Welles a autoria do roteiro de Citizen Kane, atribuída a Voltaremos mais tarde à mise en scene. Observemos por
H. J. Mankiewicz, e questionando portanto a autoria de enquanto que Sarris tenta uma teorização da questão mais
Welles sobre o filme como um todo. Tanto quanto, pelo sistemática que os franceses, em relação aos quais já per-
menos Welles e a política, Kael visava a influência cres- cebemos algumas diferenças que se manifestam logo na
cente do crítico Andrew Sarris, principal divulgador da primeira premissa. Das posições francesas, podemos de-
idéia de autoria cinematográfica nos Estados Unidos. Sarris duzir que o autor tem que ser competente, sem que se dê
cita Ian Cameron: "A concepção que embasa todos os tamanho destaque à competência técnica. Já para Sarris, a
textos de Movie é a de que o diretor é o autor de um insuficiência técnica pode prejudicar o caráter autoral de
filme, a pessoa que lhe dá todas as suas características uma obra: "Não é que Bergman careça de personalidade,
distintivas". Cameron não deixa de fazer restrições às po- mas se seu trabalho declinou com a exaustão de suas
sições francesas, mas apenas quanto ao que seriam seus idéias é em grande parte porque sua técnica nunca igua-
"excessos": "No conjunto, aceitamos o cinema de direto- lou sua sensibilidade". A segunda premissa, muito próxi-
res, sem ir, no entanto, a tais extremos como la politique ma da política, é no entanto desenvolvida de forma dife-
des auteurs, que torna difícil pensar que um mau diretor re nte por Sarris, que insiste muito mais que os franceses
faça um bom filme e quase impossível pensar que um sobre a forma de trabalho dos diretores americanos: "É
bom diretor faça um filme ruim". Sarris aceita as posições rorque grande parte do cinema americano é definida pe-
de Cameron, o que sugere que a política praticada nos las ·ompanhias produtoras, que os diretores estão obriga-
Estados Unidos, embora provindo essencialmente dos dos a expressar sua personalidade através do tratamento
Cabiers du Cinéma, tinha também raízes britânicas. Os visual do ma terial antes que pelo conteúdo literário desse
textos de Sa rris informam sobre a adaptação da p olítica 111all'rial''. Exemplificando : "Um Cukor, que trabalha com
nos EUA, os , us pontos de contato e sua diferenças m trn L1 sortl' de projetos, t m u m estilo abstrato mais de-
rl·la~·ao :tos críticos franceses, Em texto de 1962 - o ~,t·11volvido qt1l' 11111 lkrgm~m, que tem liberdade para
vs:-,t•ndal do ponto dl' vista d<.'SSL' crítico sobre..· a questao clt•:-,<•rivolv<'t S<'tls ptúprios roteiros" . Essa coloca(àO
l' t•x 1,n· ...,~c1 t· 111 l<'XI<>,.., q11<· cl. 11.1111 d.1 prinwir;i 11H •t;1dt· de >..., , 11111} ~ e • , 1 1 < 11 1e c' 1H, , 1e , < 11 , 111 It 'l'I <> I' 111, 't li/ / J/,11, < •t I ll n •I )i d< > n >11 lC 1
LH /1:AN l .'/A {J/Jl· /IN.'N.·1/i'!>l · I 1 l .- 11 li I Ili' Nl ) , /, / M . 1 HJ

"a tensão entre a personalidade de um dire tor e s ua ma <'a usa da paixão de um realizador ( .. .) não vejo ne nhum
téria". Ou seja, a opção pelo "visual" não é apresentada motivo p ara filmar um roteiro só porque agrada a um ho-
como uma opção do crítico, mas como decorrência de mem que, admito com prazer, é um dos maiores realiza-
um mecanismo de produção coercitivo. Sarris insiste: dores do mundo" (23.6.1937) (no caso, trata-se de John
"Considerar um filme como a expressão da visão de um Ford, cuja carreira Selznick não considerava particular-
diretor não é atribuir a este toda a criação. Todos os dire- mente brilhante do ponto de vista comercial). Selznick
tores, e não apenas em Hollywood, estão aprisionados a chega a palavras precisas numa carta a Hitchcock em que
condições técnicas e culturais". Essas coerções, quando recusa veementemente a adaptação de Rebecca que lhe
levadas em conta pelos franceses, são tidas como entra- encomendara. Declara: "Tenho eu também minhas vaida-
ves à criação, enquanto Sarris as considera como um fator des de autor e não me desagrada soltar os meus instintos
que integra o sistema da criação. "A teoria do auteur va- criadores quando trabalho num roteiro original ( ... ) Mas
loriza a personalidade de um· diretor precisamente por meu ego não tem tamanha importância que não possa
causa dos entraves à sua expressão". Não dar a devida reprimi-lo ao adaptar uma obra de sucesso" (12.6.1939).
importância às coerções provém de uma tendência a idea- Mas a subjetividade pode manifestar-se quando menos
lizar as condições de produção numa sociedade em que o esperada. Às voltas com a Comissão Hays por causa de
crítico não vive, o que aconteceria com os franceses em uma cena de suicídio em Anna Karenina, Selznick faz a
relação ao cinema americano, ou com os americanos seguinte observação: "Eu nunca me tinha dado conta de
em relação aos europeus. "Robert Warshow tratou Carl que tinha o complexo do suicídio antes de ver esta lista,
Dreyer como um artista solitário e Leo McCarey como um todos estes filmes tendo sido produzidos por mim!"
agente social, mas sabemos agora que influências cultu- (12.2.1937). Óbvio que a frase é suscetível de interpreta-
rais pesavam sobre Dreyer na Dinamarca. Day o/ Wrath ção irônica, mas, de fato, além desse filme, o tema do
é, em qualquer nível, superior a My sonjohn, mas Dreyer suicídio aparece em What price Hollywood? e Dinner at
não é um a1tista tão mais livre que McCarey. Simplesmente, eight, além do que seu Nothing sacred recebeu na França
as cadeias de Dreyer são menos visíveis de nossa posição o título de A alegre suicidada. De qualquer modo, o ego
do lado de cá do Atlântico". Voltemos aos franceses. não é bem visto, e se algum ego rondar por aí será antes
o do produtor que o do realizador, o qual deve ser
obliterado. Entende-se então a originalidade da política,

que foi justamente buscar o ego num cinema que o re-
chaçava. Encontrar o eu lá onde aparentemente não está:
O sujeito se expressa. Expressa o quê? Os filmes de eis a tarefa que se atribuem esses críticos, de que o Hitch-
Hitchcock, Hawks, Ray, Mankiewicz, Donen e outros, elo- cock de Chabrol/Rohmer é um dos melhores exemplos.
giados pelos críticos dos Cahiers, nada têm a ver, aparen- O ensaio aborda os filmes de Hitchcock seguindo a
temente pelo menos, com confissões ou diários íntimos. ordem cronológica de produção, e um resumo do enredo
Não é um cinema do eu nem da vida interior. São filmes precede sem·p re as análises. O estudo de Truchaud sobre
de enredo que são e querem ser espetáculos, espetáculos Ray segue a mesma metodologia de base. Há portanto
dos quais há um esforço concreto para eliminar a subjeti- uma valorização do enredo, uma valorização que é ao
vidade. Selznick, produtor- mais exatamente: criador- mesmo tempo uma desvalorização, porque o método
de E o vento levou, tem idéias claras a esse respeito quando consiste em localizar as significações que estão por detrás.
escreve: "Não penso que possamos fazer un:1 filme por Essa a chave do método. O enredo não é posto de lado,
t > .·IU/C >J< N< ><.'INl!'M.-1 31
rn .JFAN <.'IAII/JI- /IH'NANI 1/ J

mas é interpretado como um suporte, um pretexto, e mo (palavra que Chabrol/Rohmer consideram perigosa mas
um cabide de outra coisa que não ele, e essa outra coisa arriscarn algumas vezes), a "viga mestra", a "idéia-mãe", a
é que importa. Se o enredo fosse eliminado, essas signifi- "filosofia", a "figura-mãe". Digamos uma matriz. Essa rela-
cações não teriam como aparecer. Trata-se de analisar o ção roteiro-matriz permite que o autor não seja autor de
enredo para passar através dele. Por isso, as inúmeras seus próprios roteiros e trabalhe com roteiros propostos
restrições feitas ao enredo de muitos filmes de Hitchcock por produtores, desde que o roteiro seja de algum modo
não os invalidam nem prejudicam sua qualidade e signifi- suscetível de facultar a manifestação da 'idéia-mãe" e/ou
1

cações. De determinado filme de Hitchcock, dizem que o diretor tenha a possibilidade de operar algumas
Chabrol/Rohmer: "Este entrecho é evidentemente muito modificações que permitam essa operação. O autor não
banal, [assim mesmo] convém não se apressar em será po1tanto necessariamente autor de seus roteiros, pelo
condená-lo. Hitchcock o utiliza para tratar muito sutil- menos no quadro americano. Mas ele altera os roteiros e os
mente um tema que lhe é caro (. .. ) A obra, sob as suas , , interpreta, interpretação essa que é a própria mise en scene.
aparências de melodrama popular, é rica C...)". Esse tipo O trabalho do crítico consiste em evidenciar essa
de comentário é freqüente nesse livro como no de Tru- matriz, até poder afirmar, a respeito de Tbe Wrong Man,
chaud: "O roteiro não tem evidentemente nenhum inte- que "ela encontra aqui sua expressão mais nobre sob os
resse em si. O essencial está no tema introduzido por Ray traços de uma culpabilidade intercambiável de todo o
e na maneira pela qual o expressa". Outro roteiro merece gênero humano". Evidente que a simples análise desse
o qualificativo de "sem interesse", enquanto de algumas filme não permitiria fazer tal afirmação. No máximo, pos-
situações de um terceiro considera-se que "beiram o mau sibilitaria afirmar que essa é a matriz desse filme, mas não
gosto". Nada disso é grave, pois o roteiro não vale por si, da obra como um todo. A construção da matriz passa
a mise en scene, como veremos, importa muito mais. obrigatoriamente pela análise do conjunto de filmes de
Então, o que buscar além do roteiro e do enredo? um autor, é um trabalho sobre a redundância: peça essen-
Truchaud já respondeu na citação acima: os temas. A cial do método crítico. São as repetições e as similitudes
t~mática, este o níY.el em que se pode e se deve compr;- identificadas na diversidade das situações dramáticas pro-
ender o autor. Há uma temática que a análise permitirá postas pelos vários enredos que permitirão delinear a
deduzir do enredo, será a sua moral: termo-chave no vo- matriz. O autor é, nessa concepção, um cineasta que se
cabulário da Nouvelle Vague. "O travelling é uma questão repete, e não raro houve críticos que consideraram ci-
de moral", frase atribuída a Godard, tornara-se voz cor- neastas autores pelo simples fato de se repetirem . .É.....!}e-
rente nesses anos 50-60. Truchaud prefere falar na _cessárj.Q.. gue º-ªY.!..Qr se L~P-i1a_,_ou é necessário que_o crí-
metafísica de Ray. Qual é a moral estabelecida por tico inteq2rete sua obra_CO!]).O um sistema de repetições,
Chabrol/Rohmer nos filmes de Hitchcock? No decorrer ou trabalhe ~obre ~ repetições da obra-1.. identificando
do ensaio falam em 'troca" ·como sendo o tema essencial
1 essas_~~pet!ç_ões com a obra. Quero dizer que o crítico
da obra ( = conjunto dos filmes de Hitchcock), usam tam- poderá desprezar ou não perceber elementos que não se
bém a expressão "transferência" e, no final, formulam a enquadrem nesse sistema de redundâncias. Um pouco
idéia principal: "culpabilidade intercambiável". As peri- como se se sobrepusessem os filmes, uns em cima dos
pécias de The Wrong Man ou de 1be Man who knows outros, para verificar o que há de coincidente neles. A
too much não são em si interessantes, tornam-se rele- matriz surge desse trabalho de decantação, que nos leva
vantes por permitirem a Hitchcock expressar a "culpabili- ao que poderíamos chamar um arquefilme. O trabalho
dade intercambiável" que é a sua moral, a sua "metafísica" não consiste na · apreensão das significações imediatas:
32 JEAN-CLAUDE BERNAJWJ:.T 1 J .,lf!J <Jt.' NI ><.'I Nl-'A:A

nem sempre "a chave do sistema" está na porta, e às l litd1cock, C:habrol/Rohmer escrevem que ele "estava à
vezes as portas estão habilmente escondidas. Trata-se de procura de alguma coisa que ainda não conseguia apre-
fazer emergir uma "metafísica latente" de que a obra está c:nder completamente". Essa rocura nos dá a idéia de
prenhe, considerando a obra do autor cinematográfico algo latente, quem _sabe p_reexistente à obra 1!.~ avt.o r
"exatamente da mesma maneira que a de tal pintor ou precisa descobrir, alcanç_aJ~_Q_autq1:_segue uma traj~tóriª
poeta esotérico". A concepção da obra como esotérica é <Truchaud fala em "cuiva") _em direção a essa_descobe11a,
inerente ao método. t· se esta não se der nãoJ_1ªyer~ __ autC?r. Mas a "grande
Nestes mesmos anos, em outra área, trabalha um 1uarcha" (Tmchaud) em direção a essa descobe11a pode
dos criadores da psicocrítica francesa, Charles Mauron, nao .ser regular. Assim, de determinado filme de 1928,
que, no mesmo ano em que Chabrol/Rohmer lançam seu <:habrol/Rohmer comentam ser "uma comédia muito en-
Hitchcock 0957), publica O inconsciente na obra e na gra çada, mas decepcionante", pois o autor "marca passo".
vida de Racine. Um dos métodos usados por Mauron con- Mas à medida que o autor se aproxima da descoberta,
siste em destacar a estrutura das tragédias do dramaturgo "o sistema se tornará mais coerente", "os filmes ganharão
francês do século XVII, à busca de "um campo de forças maior homogeneidade e as fórmulas que regerão sua
subjacentes na obra". A aproximação dessas estruturas constmção se deixarão isolar com facilidade cada vez
revela analogias, fruto de "repetições obcecantes" que maior". .Essa curva evolui até a cristalização,_ isto é, até o
permitem falar em "fatalidade interior" na obra do autor. filme em que o autor expressa plenamente a matriz. "Todo
Um trabalho de comparação ou superposição das diversas criador chega a um estágio de cristalização, em que seu
tragédias leva a uma arquitragédia que não existe em si, universo completa a sua organização". Para ilustrar esse
mas está latente em todas. Essa arquitragédia é o que se processo, Chabrol/Rohmer escolhem um diálogo extraído
poderia chamar de "mito fundamental" do autor, ou sua de Rebecca: "Meu pai pintava a mesma flor: ele achava
"metáfora obcecante". Mito ou metáfora são noções que que, quando encontrou seu tema, o desejo do artista é
me parecem vizinhas da "idéia-mãe" de Chabrol/Rohmer não pintar nada além dele". O tema está aí, está como
ou do que venho chamando de matriz. Há uma indiscutível que já dado com antecedência, trata-se de encontrá-lo.
proximidade entre a metodologia proposta por Mauron, Penso que é uma idéia semelhante - o já dado a
aqui superficialmente referida, e o método crítico da polí- ser descoberto - que encontramos em diversos textos e
tica. Essas semelhanças nos métodos não escondem ten- entrevistas de Fellini, mas com uma formulação bastante
tações psicanalíticas por pa11e dos críticos da política, mas diversa: é a idéia do magma. "Tudo ocorre co'mo se já
atendem a outras intenções como veremos mais adiante. houvesse, desde o início, um acordo entre o filme a nas-
Se o desentranhamento da mattiz por parte do crítico cer e eu. Como se o filme acabado já existisse fora de
exige trabalho, não exige menos por pa11e do cineasta. mim (. .. ) É necessário encontrar seu caminho pessoal neste
Ela não é dada no primeiro filme do autor (raras são as magma, cavar até que se produza a faísca". Após a filma-
vezes em que se· pode falar em autoria desde o primeiro gem, o filme toma a sua forma na mesa de montagem:
filme: Welles é uma dessas exceções), o cineasta terá que "Neste ponto, começo a me afastar, a evitá-lo, a não
construí-la. Construir? Se a expressão construção da ma- sentir mais prazer em olhá-lo frente a frente. O magma
triz me parece correta ao falar do trabalho do crítico, não do qual quis extraí-lo se decantou, e o meu interesse vai
é exatamente assim que os críticos vêem o trabalho do , esmaecendo lentamente"; "a mim me parece que todos
cineasta. O autor não se constrói, ele se descobre. A, os projetos que depois acabo por realizar não surgem
cii(erença não é pequena. Falando dos filmes ingleses de num instante, mas sempre existiram, para depois ganha-
34 JEAN-CI..A UDE BENNARDET t >.·Ili I t JU Nt J c.'/Nl:AIA

rem um destaque, uma sedução especial, quando é o t .111 l'ira do cineasta, que vai permitir dizer que já estava
momento em que devem ser levados em consideração". !Hl'Sl'nte mas ainda, digamos, fora de foco, porque o
Nessa perspectiva, o filme já existia previamente à sua dtll'asta se "buscava". Por esse motivo o método crono-
concretização, mas de forma difusa, e o trabalho do ar- 1< >gico adotado tanto por Chabrol/Rohmer como por
tista consistiu em desentranhá-lo da massa informe que já Truchaud é discutível, pois não corresponde ao que foi a
o continha virtualmente. marcha da indagação, o que Chabrol/Rohmer reconhe-
A pa1tir do momento em que a matriz se tomou ní- <'l'm na introdução do seu ensaio: a seqüência cronológica
tida e perdeu o caráter difuso que tinha nos filmes em que f< >i adotada por ser mais simples. Esse efeito retrospectivo
ainda não se delineava claramente, os filmes podem ad- <la mat1iz acabada faz da obra um sistema fechado, reino da
quirir um caráter alegórico. Nos filmes em que está difusa, redundância, em que os filmes precedentes prenunciam
a matriz tem que ser procurada, tanto pelo cineasta como e>S posteriores, e estes desenvolvem e aprimoram o que
pelo crítico. Quando a matriz está esclarecida, ela passa a jú estava contido nos anteriores. De um filme inglês de
info1mar diretamente os filmes e a condicionar as situações I Iitchcock, Chabrol/Rohmer escrevem: "Já encontramos
dramáticas que lhe são intencionalmente subordinadas. A aqui determinados temas ou detalhes que voltarão com
alegolia é a quintessência do sistema. Assim, em Tbe Wrong freqüência nas obras posteriores", ou então: "Como já dis-
Man, "é a alegoria que domina". Lifeboat é um apólogo. E s mos a respeito de Under Capricorn, basta que uma ou
Chabrol/Rohmer fazem obse1var que muitos dos melho- duas vezes Hitchcock tenha revelado a profundidade de
res filmes "recentes" pertencem a esse gênero, e exem- sua intenção, e todo o resto de sua obra encontra-se por
plificam com obras da fase madura de seus realizadores: isso mesmo iluminado e magnificado". Truchaud: "O pri-
em Viaggio in Italia, Confidential report ou Hélene et les meiro filme de Ray é um manifesto que contém as pre-
bommes, Rosselini, Welles ou Renoir "souberam ( ... ) missas dos temas de sua obra"; de obras posteriores: "Ray
manipular as virtudes, aparentemente contraditórias, da continua a falar das mesmas coisas, mas as expressa de
forma alegórica e do documento". A evolução de Ray vista um modo mais intenso". Inúmeras as afirmações desse
por Truchaud o leva ao mesmo ponto: "Este breve resu- teor nos dois ensaios. Radicalizando: tudo já está contido
mo [de Bigger than life] tem como finalidade salientar sua no primeiro filme. Tmchaud, comentando os primeiros
linearidade e a simplicidade do propósito que beira a filmes de Ray: "Neste primeiro período, podemos desta-
fábula ou a parábola". car determinadas estruturas que parecem fundamentais
O encontro da matriz pelo cineasta e pelo crítico se na obra de Nicholas Ray e que determinam sua evolução
dá por caminhos paralelos. O autor vai buscando a matriz futura. Desde o primeiro filme, tudo está expressado. E o
até o momento da cristalização; o crítico segue as pega- que seguirá não serão senão variações sobre os temas e
das do autor, chegando, depois dele, à percepção dessa resoluções dos conflitos".
cristalização. A partir do momento em que a matriz é en-
contrada, ela passa, para o crítico, a ter um efeito retros- ·
pectivo: outro elemento básico do método. De fato, ela ♦

ilumina os filmes anteriores em que os elementos ainda


não estavam bem delineados, ou até totalmente imper- O TEMA da primeira vez é recorrente na literatura refe-
ceptíveis. É a clara percepção da "culpabilidade intercam- rente aos processos de criação, bem como em autobio- ,
biávd' em filmes como Tbe Wrong Man que vai permitir grafias e memórias de artistas que tematizam direta ou -
detectar a presença deste tema em obras do início da indiretamente o seu processo criativo. Este tema é ob-
.fl:AN-CLAUlJE BERNA/Wlff t J .li li t 1/i' Nt JI INl·M.·1

sessivo - saímos do paradigma do olimpo da política - •,t·u l.111H >so artigo "O culto da personalidade - Autores
em Eisenstein, chegando a provocar ora júbilo ora inquie- dt • 1ilmt·s e filmes de autores", o que ele critica é esse
tação no leitor. Para não encompridar este parêntese, .1.~1wcto do método. Primeiro Sadoul alega que os adep-
remeto à longa nota 8. É a obsessão do marco inaugural 1< ,s da política encontram semelhanças onde francamente
prenhe, encontrado na política. 8 11.10 há. Como considerar Laura, um excelente policial,
'Jlw Man with tbe golden arm, estudo sobre um drogado,
t' <) lamentável abacaxi Bonjour Tristesse, extraído do ro-
♦ m:mce de Françoise Sagan, todos de Otto Preminger,
( ·e >mo variações sobre um mesmo tema? Alega também
O primeiro filme contém embutida nele a virtua- <1ue há filmes de autores de primeira grandeza que mere-

lidade da obra. A obra tem como função concretizar essa n·m o esquecimento, pois não passam de "necessidades
virtualidade. Assim considerado, o universo da autoria alimentares". Por exemplo, Renoir conseguiu filmar seu
aparece como o universo da mesmice: o autor repete in- t ·xcelente La Chienne porque tinha feito antes On purge
cessantemente o primeiro filme, depurando seus temas, /)(Yhé, filme de circunstância que teve de realizar sob pena
até a máxima depuração da matriz, a qual já está prevista de ver sua carreira interrompida, e são vários os filmes de
desde o início. A obra fecha-se sobre si mesma como um Henoir nessa situação. "O saber, a competência profissional,
círculo. De 55 days in Peking, Truchaud comenta que a o talento, o gênio até, não conduzem à infalibilidade. Os
história desse filme vai ao encontro dos primeiros e acres- melhores cineastas podem, apesar deles mesmos ou não,
centa: "le carcan est déjà connu", ou seja: a serpente morde nos dar filmes mais que medíocres."
a cauda. Radicalizando ainda mais, diremos que o autor Pode-se responder a Sadoul que sua argumentação
só faz um filme na vida, sempre o mesmo. De fato, a idéia não atinge a medula da política. O primeiro argumento
do filme único perpassa de forma obsedante os escritos e nega afinidades entre obras díspares de um mesmo ci-
declarações de diversos cineastas. Fellini: "Tenho a im- neasta; mas a resposta é fácil: as afinidades não se encon-
pressão de que rodei sempre o mesmo filme; trata-se de tram nem no nível do gênero, nem do enredo, nem do
imagens, só de imagens que filmei usando os mesmos assunto nem da alegada qualidade. As afinidades devem
materiais, uma vez ou outra examinados sob pontos de ser deduzidas das aparências, as quais não revelam as se-
vista diferentes". Idéia semelhante aparece no texto já melhanças. As portas podem ser escondidas. O segundo
citado do psicocrítico Charles Mauron, quando afirma que, argumento tampouco atinge a política, primeiro porque
descartada a evolução pela qual passa o mito fundamen- o autor pode deixar sua marca em filmes obviamente
11
tal, devemos portanto normalmente encontrar a mesma "alimentares" e de encomenda; depois, porque o que mais
estrutura por baixo de Andrômaca como de Pedra", a importa à política não é o filme em si, mas a sua inserção
primeira e a última das tragédias profanas de Racine. dentro de um sistema. Determinado filme que se poderá
Talvez essa conclusão choque o leitor, diz Mauron, mas julgar medíocre sob certo enfoque poderá tornar-se im-
"as diversas obras de um escritor confundem-se numa portante, significativo, bom, desde que se perceba nele
obra única". uma contribuição para a elaboração da matriz, ou desde
Abramos um parêntese. Les Lettres Françaises, de que esta, uma vez elaborada, venha iluminá-lo retrospec-
obediência comunista, não devia carecer de motivos ideo- tivamente e mostrar que já continha o que posteriormente
lógicos e políticos para se opor ao pessoal dos Cahiers. se desenvolveu. A política dos filmes e a política dos auto-
Mas quando, naquele semanário, Georges Sadoul lança res situavam-se em planos diferentes e a polêmica, cuja
38 JEAN-CLAUDE BERNARDET O AUTOR NO C1NEMA 39

motivação era antes política, foi freqüentemente um. diá- Essa unidade e a matriz não são dadas de início,
logo de surdos. A política dos filmes é certamente aquela embora latentes, e não são conhecidas do autor, podem
praticada sem o saber pelo espectador que procura um até permanecer encobertas para o cineasta mesmo quando
bom filme para assistir, mas o método que venceu - na da mais plena manifestação da matriz. A matriz não é uma
época e com profundas repercussões até hoje - é a meta que o autor visualizaria previamente e, conhecendo-a,
política dos autores. poderia programar os meios de alcançá-la. Textos e en-
Voltando à política: seu método crítico visa a perce- trevistas dos cineastas abordados pelos críticos da política
ber o autor como uma unidade, é a absoluta coerência - e de muitos outros diretores - estão repletos de pala-
interna do sujeito que se expressa. "]e est un." Verda- vras como sonho, intuição, inconsciente. Ao fazer o elo-
deiras muralhas são erguidas para impedir a dispersão gio de um de seus atores preferidos, Michel Simon, Renoir
do sujeito que só existe quando uniformemente igual a diz que "esses grandes atores revelam, atualizam sonhos
si próprio. Terrorismo do uno, da unidade, contra o di- que se tinha tido, mas que não se tinha formulado".
verso, o múltiplo. · Bresson é bastante insistente sobre o fato de que não
Quando esse método trabalha com dados biográfi- 1 ma consciência de tudo o que põe nos seus filmes.
cos, o que não é o caso dos ensaios de Chabrol/Rohmer e Comentando o corte na operação de montagem de um
Truchaud, tais dados são usados para reforçar a unidade, nime: "Acho(. .. ) que é uma coisa que deve tornar-se pu-
principalmente na pa1te da vida do futuro cineasta que ramente intuitiva. Se não é intuitiva é má". A "composição
antecede o início de sua carreira cinematográfica. Por de um plano (. .. ) não deve ser premeditada, deve ser
exemplo, na entrevista com Carl Dreyer: antes de cineasta puramente intuitiva (. .. ) não acredito na reflexão muito
Dreyer era jornalista, fazendo crítica de teatro e de cine- longa. A reflexão reduz as coisas à mera execução de um
ma mas cobrindo também os tribunais. Não só se salienta plano. As coisas devem acontecer impulsivamente". Os
que' diversos filmes de Dreyer são adaptações de peças críticos também fazem afirmações desse teor a respeito
assistidas nesse período de sua vida, como os entrevis- ( las obras que analisam. Falando de inúmeras recorrências
tadores sugerem uma relação entre o trabalho jornalístico f <>rmais dentro de um filme de Hitchcock, dizem Chabrol/
nos tribunais e filmes em que processos têm fundamental Hohmer que podem ser consideradas como fruto do
importância dramática: Páginas do livro de Satã, Joana acaso. Mas de que acaso? Que a sua introdução no filme
d'Arc e Dias de ira. Daí a passar a uma idéia de pre- 1cnha sido "sempre intencional, isto não é evidente. Não
destinação ... Tecendo comentários sobre uma casa onde <· n .,m desejável. Um grande criador é como um bom
morou quando criança, próximo a um teatro, Fellini es- geômetra em quem a intuição antecede e guia o raciocí-
creve: "Foi aí que me pareceu ver o signo de minha nio". De certos aspectos destacados pelo crítico em Hot
predestinação". De outro episódio de sua infância, diz h/ood, Truchaud afirma que Ray podia não estar plena-
"que, talvez, nas mãos de um psicanalista, pudesse su- 11H ·nt · consciente deles. Quanto a Fellini, leitor de Jung, o
gerir a interpretação de um caráter e de uma vocação, e M>nho é um de seus temas preferidos. "Tenho um sonho,
até mesmo o pressentimento de um destino,,. A matriz 1 >l 1 ('llt~1o le olhos abertos me abandono a imaginar qual-

não está apenas latente no primeiro filme, a obra já está e p H ·r coisa, e depois, firmando um contrato, com uma es-

embutida no sujeito desde o início de sua vida. A uni- 11 u1 ura, duas belas moças e um par de refletores, me de- ,
dade não envolve apenas o conjunto dos filmes, ma. eli( ·e, :1 materializar aquele fantasma, e todos podem vê-lo
também a vida do autor. Obra e autor formam uma únka , 1 >llH, <'li 1, vi:, vnquanto cochilava'' , Assim como o indi-

unidade coesa. \'1d1111 " .1t1.1vt• s d<>~ sonhos t·xprime aqth.·la parte mais
40 JF.AN-CLA UDE BERNARDET O AUTOR NO CINEMA 41

secreta de si mesmo, a parte misteriosa, inexplorada, que devassados seus sonhos materializados na tela. Só Dreyer
corresponde ao inconsciente, assim também a coletivi- reage. Entre Dois seres, um filme que Dreyer despreza
dade, a humanidade, faz a mesma coisa através da cria- profundamente, e Gertrud, os críticos tecem relações. E
çào dos a1tistas. ~ u ç ã o artística não seria outra coisa Dre_rer: "Ah! Não! Não, absolutamente nenhuma compa-
-~
senão a tivida- e onírica - da humanidade"~
. - --G-5- artistas
organizam "com o próprio talento o conteúdo do incons-
raçao a fazer". Mesmo aqui não penso que Dreyer contra-
diga realmente a proposta do sonho e do inconsciente.
ciente coletivo". As vias para chegar à matriz não são Ele não supo1ta Dois seres porque queria uma atriz um
racionais. O autor vai em sua direção, mas sem saber pouco teatral e um pouco histérica, e os produtores lhe
exatamente qual é essa direção. Ele pode até não perce- deram uma atriz "tudo o que há de mais pequeno-bur-
ber a matriz na sua plenitude, até quando alcance alto guês". Para o personagem masculino, queria "um idealista
nível de sua expressão. "Estou totalmente de acordo com de olhos azuis", lhe deram "um intrigante demoníaco de
aqueles que sustentam que o autor é o último a falar ~lhos escuros". Portanto a produção não lhe permitiu rea-
conscientemente das suas obras." É a porta aberta para hfar o que pretendia, donde o seu desprezo pelo filme.
o crítico, que terá então como tarefa perceber o que o "E um filme completamente frustrado", afirma. Mas os crí-
autor não percebe, descobrindo a obra que se apresenta . ticos não se interessam tanto pela materialidade do filme
relativamente enigmática, informando até o autor sobre quanto pelo que podem deduzir em termos de elabo-
ela. Em diversas oportunidades, nas entrevistas feitas pe- ração da matriz. De modo que, nesse diálogo, críticos e
los críticos da política, encontramos observações desse cineastas me parecem colocar-se em dois planos dife ren-
teor. Howard Hawks diz que se decide a "fazer um filme tes. Os motivos da valorização por parte dos críticos não
quando o assunto me interessa: pode ser sobre as corri- são da mesma natureza daqueles que explicam a desvalo-
das de automóvel ou sobre a aviação, pode ser um rização por parte de Dreyer.
western ou uma comédia". Sabendo o que a história re-
presenta para esses críticos, só pode parecer ingênua a
afirmação de Hawks, a quem os entrevistadores ob- Apesar disso, Dreyer aponta para uma ameaça à
servam que "todos os seus filmes são fundamentados realização da matriz. A unidade do autor está constante-
em acontecimentos que tendem a mostrar o homem em mente ameaçada, quero dizer, o que está ameaçado é a
ação, o seu esforço e a sua luta". E Hawks responde: construção dessa unidade pelos críticos e também pelos
"Isso deve ser verdade, mas não estou realmente cons- autores. Podemos dizer que a própria obra, sobre a qual
ciente de tal coisa". Os entrevistadores observam a repousam o conceito e a construção dessa unidade, a
Bufiuel que há analogias entre L 'âge d'or e El, e, falando ameaçam. Embora tanto Chabrol/Rohmer como Truchaud
de El, o cineasta responde: "Na verdade não quis cons- pretendam nos seus ensaios abarcar o conjunto da obra
cientemente imitar ou seguir L'âge d'or (.. .) Não tinha dos cineastas estudados, bem como o conjunto dos seus
pensado em L'âge d'or. Conscientemente quis fazer o aspectos, há evidentemente uma seleção de material, com
filme do Amor e do Ciúme. Mas reconheço que se é valorizações e rejeições, que visa a alcançar o alvo, isto é
sempre atraído pelas mesmas inspirações, pelos mesmos a. matriz e a unidade da obra. Os críticos não são explí~
sonhos , e que pude fazer nele coisas que se p arece m ntos sobre ess aspecto de sua metodologia, pois, se re-
com L 'âge d 'or". De modo geral, os cineastas aceitam C'onlwn.·ssem que seu trabalho está baseado numa inter-
lwm os reladnnanwntos e n tre vários de Sl'llS filml's. Tal- prc.-Lt\·:t, > qttl' 1:lzc.•m da obra, que a fin alidade do estudo
V<'Z 111.iis: e.·· possívc.·l :1divinhai: 111 11 ('<.'ri<> prazc.•r ;1<> vc.'n.·1 11 11111.1<1' 1·lt·11H·n1c,s d:1 ol>r:1 ;1 st·rc.·m analisados, a matriz e
1
42 JEANCJ.A (JJ J/:' JJHNN.11/<J >l:T <1 Afl/f li.' Nt J e .'!Nl·MA

a unidade poderiam ser questionadas. No entanto, há in- <)uanto à valorização maior ou menor de determi-
dícios de que esse procedimento ocorre. A começar pelo nad:,s obras, o texto de Chabrol/Rohmer está cheio de
fato de que o resumo dos enredos, material de base des- e ,l 1st·1vações
que parecem não ter perturbado seu método
ses ensaios, já é uma interpretação, uma seleção. Aparen- n ítico. Citemos: "Mas, por mais meritórios que tenham
temente não é; poder-se-ia até pensar que um resumo é sido [os primeiros filmes ingleses de Hitchcock], esses
fruto da evidência. Mas não é; a maneira como se resume primeiros esforços não contam ao ver de Hitchcock, que
a trama de um filme já é uma interpretação, já reflete faz iniciar a sua carreira com Tbe lodger 0926), seu pri-
implicitamente a interpretação que se busca. O perso- meiro grande sucesso". Os críticos também têm que fazer
nagem principal de Bigger than life, de Ray, toma corti- iniciar a carreira do cineasta com esse filme, já que desco-
sona, o que deslancha a sua "loucura". Os efeitos da nhecem os anteriores e que o cineasta "se recusa a lem-
cortisona eram muito discutidos na época da produção brar-se deles". No entanto, "nada impede de pensar que
do filme, saindo dos meios especializados e ganhando os esses filmes tenham sido interessantes. Em todo caso, são
meios de comunicação de massa e a conversa cotidiana. eles que assentaram a fama de seu diretor". Ainda na In-
A escolha do assunto do filme não está alheia a esse glaterra, Hitchcock adapta uma peça de Sean O'Casey,
sucesso mundano da cortisona, para o qual, também, permanecendo fiel, por motivos de produção, ao original:
contribuiu o próprio filme. No resumo que Truchaud faz mas o filme não se enquadra na matriz (que, então, já
do filme, a cortisona desaparece, reduzida a um vago começa a se desenhar). Concluem os críticos: "Juno and
pretexto: o resumo tem a ver exclusivamente com a the peacock não é um filme de Alfred Hitchcock (. .. ) O
matriz, faz do filme uma expressão da matriz. E o resu- sucesso, no entanto, foi imenso". Outro filme, "poeirento",
mo de Truchaud é perfeitamente coerente, internamente Skin game, que também recebeu boa acolhida do públi-
coerente e coerente com a metodologia crítica: todo fil- co, "é indigno de seu autor". Em Lifeboat e mais "alguns
me é uma manifestação da matriz, portanto é esta que raros filmes ingleses", pode-se lamentar a ausência, "real-
deve ser procurada em qualquer filme; por outro lado, mente excepcional", dessa poesia geralmente presente
todo filme parte de um pretexto, em si irrelevante, mero nos filmes de Hitchcock. Mesmo comportamento por
estopim para a manifestação da matriz. Portanto, a des- pa1te de Truchaud. Após um primeiro filme que já conti-
valorização da cortisona neste resumo resulta de um pro- nha as premissas dos temas de sua obra, Ray realiza um
cedimento lógico face ao método crítico. Chabrol/ segundo, A wonian 's secret, que, "confor~e o confessa
Rohmer são um pouco mais explícitos. Dizem que al- seu próprio autor, não apresentava maior interesse". Essas
. guns críticos acharam o enredo de Notorious "banal" ou citações deixam entrever todo um trabalho de organiza-
"nauseabundo", e complementam: "Mas a própria manei- ção, de modelação da obra, para apresentá-la como um
ra como resumiam o enredo provava que não o tinham
todo coerente e uno. O que puder prejudicar a unidade
entendido". Ou não o tinham entendido ou não o ti-
tem que ser aparado.
nham entendido da forma como Chabrol/Rohmer acha-
Outro fator que pode prejudicar a unidade da obra
vam que devia ser entendido. E aqui entra um argumento
são os produtores, pois estão interessados em outra coisa
de força para fazer aceitar o seu resumo: "Eis a história
que não a expressão pessoal do autor e da sua matriz.
tal como a conta Hitchcock". Não há o que replicar, mas
Tanto nos livros de Chabrol/Rohmer e Truchaud, como
voltaremos a esse argumento. De todo modo, me parece
nas entrevistas compiladas, encontramos fa1to material
ficar claro que um resumo não é uma constatação, já é
referente .a choques entre produtores e cineastas, pres-
fruto de uma elaboração sujeita a controvérsias.
sões a que estes acabam cedendo ou resistindo, a obras
44 JEAN-CLAUDE BERNARDET O A lffOR NO CINEMA 45

em que as marcas da produção são indeléveis, obscure- criador e as do comércio. Ray sempre foi obrigado a com-
cendo a expressão do autor e a manifestação da matriz. A por com o que lhe propunham, com Hollywood(. .. ) E é,
questão é tão conhecida que dispenso as exemplificações. ironia da sorte, quando é mais atormentado pelos produ-
O nível em que o método crítico absorve razoavelmente tores, mais atraiçoado, que o gênio de Ray jorra de seus
bem a atuação dos produtores é o do enredo e do roteiro, próprios ferimentos. Destino maldito que não deixa de
já que estes não valem em si mas são considerados pre- lembrar o de outro grande poeta, Jean Vigo (. . .)". Aqui
textos para alcançar significações outras, e que é geral- Tmchaud generaliza as dramáticas relações de Ray com a
mente possível uma certa inte1venção do cineasta no sen- produção, tornando-o uma metáfora do artista que só cria
tido de torcer a trama de modo favorável à expressão de quando apunhalado pelo mundo. Raros os cineastas que
sua temática. Mas ao nível da mise en scene, a inte1venção não têm de se queixar dos seus produtores. Fellini é um
dos produtores é inassimilável. Percebendo as tensões desses: "Tive sorte porque sempre consegui fazer o filme
entre as exigências da produção e "a vontade criadora", que desejei, da maneira que quis, e com o mínimo indis-
para Blackmail, primeiro filme falado britânico, Hitchcock pensável de atritos e desacordos". Mas talvez não seja
procura dosar "concessões" e "mensagem". Os críticos bem assim: "Encontro-me assim na obrigação de enfren-
generalizam: "Como será sempre o caso, o roteiro é con- tar a produção a fim de salvaguardar o que pertence a
cessão e a mise en scene, mensagem".- A habilidade de mim e não mais ao filme. Este se transformou agora numa
Hitchcock chega ao que Chabrol/Rohmer vão chamar operação financeira que a produção defende com todas
de "receita" ou "dosagem": como ele não pode livrar-se as suas garras; e o próprio filme presta-se a essa defesa.
dos produtores, sem os quais não filmaria, Hitchcock teria Quanto a mim, fico ~o lado de cá para defender o magma
encontrado um equilíbrio suficientemente satisfatório para originário que o viu nascer (. .. )". Há aqui uma nuança
os produtores, deixando ampla margem para a sua ex- interessante: enquanto nas interpretações de Chabrol/
pressão, a qual não fica com plena liberdade de manifes- Rohmer e Truchaud o filme e o cineasta ficam grudados
tação, mas é também satisfatória para o autor. Se os filmes um ao outro, na visão de Fellini há um momento, ainda
não ficam sendo plenamente de autor, também não são durante a produção, em que o filme se torna um produto
de produtor, sem deixar de ser de um e de outro. De comercial, e o que Fellini resguarda não é esse produ-
Paradine case não se pode dizer que não seja um filme to , mas a potencialidade da sua criação, a potencialidade
de Hitchcock, pois nele "reencontramos essa tentação da de fazer outros filmes. E como a Fellini não falta humor
queda que já era tema de Downhill, de The manxman, de e le vai identificar outro problema nas relações com os'
Notorious". No entanto, Paradine case parece-se muito produtores: "Sempre tive aborrecimentos com os produ-
com Rebecca "na medida em que um filme de produtor se tores [o que contradiz Ol.!tras afirmações]. Após os meus
parece com outro filme de produtor". Que dois filmes primeiros sucessos, queriam que eu refizesse sempre o
se pareçam, não é mau - isso já o sabemos ~ desde que mesmo filmei), afirmação no mínimo graciosa por parte
a semelhança provenha da expressão do autor, mas é pés- t ll' quem disse ter a impressão de ter sempre rodado o

simo se ela for fmto das formas de produção. Nicholas 11H ·sm< > filme, como vimos anterio1mente. Só que esses mes-
Ray, ele, não teria chegado a tal dosagem, espécie d e 111os lilmes são diferentes. O mesmo filme de produtor é
acordo de cavalheiros. Truchaud dá uma visão mais ro- 111 11.1 formul a co mercial e a fixação de um modo de produ-

mântica da relação desse cineasta ·om a produc.;ào: "Des- c.. .1c, klenco, estúdio, pnpel do direto r etc.). O mesmo

1ino dl' Nicholas Ray, do artista l'l1l lura c:ontr;i a m(1quina, 111111<' d(· .111101 e :1 manifcsta~·üo da matriz. Aqui, o que os

1 l <> llywl)<>d , Conn·p~·oes. dianwtralnwnll' <>p<>sta~. ;1s d() 111111lt1t•11t•s 1H'tli11.11 11 .1 l·\·llini l' ;1 sl'dimc.•nta\·ao, a c.·str~ni-
4ü .JF.AN C'J.Alfl>J:' JJHNNAl<J)J:"J' t l , l/f/111" Nt I e '/NJ M.I ·I /

ficação da sua expressão de autor, ou seja, que a forma d.1 111e.·nll'c:riadora dl' Bunuel, que teria vencido mais ou
do autor vire, em conseqüência do sucesso comercial, llll '11< >s l>rilhantementc os . obstáculos que lhe interpuse-
uma fórmula de produtor. A essa estratificação eu chama- 1am os produtores. Na concepção desse crítico, que não é

ria de imagem de marca, a qual não seria senão a repeti- n ciso de detalhar aqui, os filmes não resultam de um
ção mecânica dos traços característicos do autor. Os textos .llltor que tem como inimigo o produtor, mas são fruto de
críticos sobre autores cinematográficos estão cheios de um quadro de produção que envolve tanto o diretor quanto
pequenas observações que são indícios da existência, ou < > produtor, e conservam as marcas dessa relação de pro-

do perigo, dessa imagem de marca, nem sempre con- dução. Enquanto na concepção da política o produtor é
seqüência das pressões da produção, mas às vezes da um mal necessário, mas é um mal, e é exterior à criação.
própria redundância em que essa concepção de autoria l liLchcock pode chegar a uma "dosagem", isto é, a uma
acaba fechando o cineasta. Grazziní pergunta a Fellini: acomodação, a concessões que não o prejudiquem de-
"Há quem diga que você vive hoje de seu mito e faz mais no cômputo geral dos filmes e satisfaçam seus pro-
pouco para renovar a sua criatividade". Sem ceder à su- dutores, permitindo-lhe repor suas condições de produ-
gestão do entrevistador, Fellini qualifica sua produção de ção. Em momento algum o filme é visto como resultado
"masturbação agradável" e "daria saltos mortais de con- de uma conjuntura que envolve diretor e produtor. Acei-
tentamento se alguém me obrigasse a um filme do tipo tar a perspectiva de Drouzy é negar a política, é des-
O Conde de Montecristo". A 111.esma coisa com Hitchcock. vincular o filme do autor, é fazer do autor e sua matriz
Ainda na Inglaterra, jornais especializados escrevem: "ele- apenas elementos, determinantes sem dúvida, mas ele-
mento publicitário, o nome de Hitchcock". De uma deter- mentos de uma conjuntura que os ultrapassa. Um setor
minada marcação de atores, Chabrol/Rohmer dizem que <lo público, dos cineastas e dos críticos está imbuído
é "puro Hitchcock". "Murder nos oferece um instante <lessa concepção do cinema de autor, e é com natura-
Hitchcock". Fala-se no "Hitchcock touch" a respeito de lidade que vinculamos filme e autor, deixando ao pro-
Rebecca. Em Tbe Trouble with Harry, comenta-se o "dedo dutor o papel de quem facultou exteriormente a criação
de Hitchcock". Do mito ao dedo de Hitchcock, tudo isso dos autores, proporcionando-lhes dificuldades ou faci-
nos sugere a possibilidade de uma estagnação. A imagem lidades. Mas trata-se tão-somente de uma concepção de
de marca é a caricatura da unidade e da matriz, perigo cinema e de um método crítico. Não é uma evidência
que espreita autores que se entreguem aos produtores, a nem uma constatação.
e
seu sucesso, a seu envelhecimento dificuldades de re- Outro fator que pode prejudicar a unidade do autor
novação. A matriz se coagula. Se essa coagulação for fruto e a expressão da matriz é o público. Na medida em que,
do sucesso, temos uma fórmula comercial como outra não aceitando bem os filmes do autor, prejudica as suas
qualquer. Chabrol afirmou a respeito da Nouvelle Vague: condições de produção, e também porque, se recusado
"Fomos promovidos como uma marca de sabonete". ou mal aceito pelo público, o cineasta pode sentir a sua
Voltando a Fellini, talvez as suas relações com os obra inútil, devido à falta de comunicação. Nunca, ou bem
produtores não tenham tido a suavidade que se compraz raramente, o autor vivencia uma relação harmoniosa com o
em descrever. Fala-se dos seus acessos de furor diante público. Um público formado pela televisão, que com um
dos produtores, típicos de uma "criança mimada". Quem golpe de polegar corta a palavra a alguém ou a imagem
fala é M. Drouzy, que, para analisar alguns filmes de que não interessa, é, para Fellini, "um espectador tirano,
Bufluel, parte de uma premissa totalmente diferente da déspota absoluto, que faz aquilo que quer e está con-
de Chabrol/Rohmer ou Truchaud. Os filmes não são fruto vencido sempre de que ele é que devia ser o diretor, o
./h'AN c."/.Al/1 J/:' H/:'NN.-1/.'I >l: 'J' , J ,,lf//( >N M J 1.'/Nh\J.·I 49

montador das imagens que está vendo. Como será possí- 111as fatores assimiláveis pela política por serem fatores
vel ao cinema tentar seduzir ainda um espectador assim?". c.·xteriores. A situação complica-se quando tais fatores tor-
Em geral, Renoir sente que o público não está preparado nam-se internos, digamos as contradições do autor. Al-
para seus filmes. "Há sempre uma defasagem entre o meu guns cineastas dão declarações que facilitam a tarefa dos
trabalho e a opinião pública." Por achar que, se fizesse os críticos na sua busca da unidade do autor, da matriz, da
filmes exatamente como tem vontade, o público ficaria coerência interna da obra e do sistema de redundância.
desorientado, Renoir acaba não fazendo aquilo que real- Rosselini reconhece que os cineastas são levados a tratar
mente tem vontade, "não se solta". A relação com o pú- outros assuntos, que o interesse se desloca, que é preciso
blico limita a potencialidade de expressão do autor. A caminhar noutras vias, mas compensa essas afirmações
saída vislumbrada por Renoir para remediar esse relacio- dizendo: "Acho que sou muito coerente. Julgo ser o mes-
namento problemático é típica do cinema de autor: pe- mo ser humano que vê as coisas da mesma maneira".
quenos públicos em muitos países, ao invés de um grande Embora falando de um de seus filmes e não do conjunto
público num único país. Não seria essa evidentemente da obra, Bresson reforça o tema da unidade: "O risco de
uma solução para Hitchcock qu~ trabalha num quadro de faltar unidade ao filme era grande. Felizmente conheço
produção diferente do de Renoir. Mas para Hitchcock tam- os perigos da dispersão que espiam um filme ( ... ) tinha
bém, contrariamente ao que se poderia esperar, a relação um grande medo de não encontrar a unidade, sabia que
com o público, tal como apresentada por Chabrol/Rohmer, essa unidade seria muito difícil de encontrar (. .. ) é pela
é de total desencontro. Juno and the peacock que, como forma que podemos encontrar a unidade". Outros direto-
vimos, "não é um filme de Hitchcock", teve imenso su- res, ao contrário, reagem contra uma unidade que sentem
cesso. Outro filme bem recebido foi Skin game, apesar de como uma ameaça. Por exemplo, Dreyer: "É muito peri-
"indigno de seu autor". Rich an.d stranger,. bem como goso limitarmo-nos a uma certa forma, a um certo estilo.
Under Capricorn, esses hitchcockianos, não foram compre- Um crítico dinamarquês disse-me um dia: 'Tenho a im-
endidos pelo público, o que deixou o cineasta "enjoado" e pressão de que há pelo menos seis de seus filmes que são
"o impediu provavelmente de prosseguir numa via que, completamente diferentes uns dos outros pelo estilo'. Isso
no entanto, ele sabia ser fecunda". Os 39 degraus, filme comoveu-me, pois foi uma coisa que sempre tentei fazer:
hitchcockiano, teve um sucesso "triunfante", mas sucesso encontrar um estilo que seja válido só para um filme, para
onde entrava "uma parte de mal-entendido". Em Secret um ambiente, uma ação, um personagem, um tema. Vampyr,
agent, Hitchcock coloca-se ao alcance do público, e o Joana d Arc, Dias de ira, Gertrud são filmes completa-
1

resultado não é dos melhores, é um filme de Hitchcock mente diferentes uns dos outros, no sentido em que cada
amado por aqueles que não amam Hitchcock. O fracasso um tem o seu estilo". E os críticos são às vezes levados a
de Under Capricorn o levou a fazer marcha a ré. E assim observar que a obra de um cineasta não obedece apenas
por diante. Sabotage é o fruto desse mau relacionamento a normas de unidade e homogeneidade. Assim, entrevis-
com o público, pois neste filme Hitchcock "inventou para tando Antonioni, Godard faz a seguinte observação a res-
si próprio uma segunda personalidade que correspondia peito de O deserto vermelho: "Há, pois, nesse ponto uma
precisamente à idéia que faziam dele", mas que eviden- ru prura com os seus filmes precedentes". A ruptura fica
temente não é ele. limitada a "esse ponto". E outros realizadores, mais sem
Público e produtores são, assim, fatores que preju- cerimônia, declaram pura e simplesmente: "Reivindico o
dicam a integridade do autor, a sua evolução, a sua uni- direito de me contradizer". Fellini, evidentemente, ou seja,
dade, a plena expressão e desenvolvimento da matriz, aquele que dizia ter a impressão de fazer sempre o mesmo
so .JF.AN C'/Al li )li IWNN.-INI )/rr fI . 111/f JI,' /V( I L '/Nhll.-1

filme. Como a unidade é princípio de base da noção de nlt ko d;t j)()/ttica, conceito sse com o qual lidam apenas
autor no quadro da política, os críticos terão grande difi- u111.1 V<.'Z t·m tod > seu estudo: aqui. Desculpa-se o autor
culdade em lidar com contradições, o trítono da política 1H >r criar a moela em vez de segui-la, mas não se considera
dos autores. Já vimos que, a respeito de Hitchcock, < jlll' o fato de criá-la possa contribuir para a expressão da
Chabrol/Rohmer falaram em "marcar passo", em filme matriz e a coerência do autor. E eles encerram esse pará-
"indigno" de seu autor etc., tantas observações que não grafo, que é o fim do seu comentário sobre Tbe Rape,
sabemos exatamente o que significam, o que implicam, o dando a volta por cima com uma frase de teor apocalíptico
que escondem, mas que sem dúvida revelam o desejo de de ai gum efeito quando lida pela primeira vez, mas que,
descartar o que perturba a limpidez da trajetória do autor ú segunda leitura, aparece desprovida de maior sentido: o
no caminho da sua descoberta da matriz una. Eis dois que quer dizer que o cinema se engana? Nesse estudo
trechos do ensaio que, a meu ver, revelam a dificuldade sobre Hitchcock, ou a contradição é eliminada ' ou é redu-
..

em lidar com contradições de Hitchcock, que os ensaístas zida com efeitos de estilo. Tmchaud enquadra-se plena-
não podem ignorar nem considerar indignas do cineasta. mente no método da política, mas faz um esforço para
Observam que em The Wrong Man estão presentes os lidar com as contradições. De Tbe Lusty men, ele afirma
"estilos mais diversos", mas, malfeita a observação, recu- ser um filme "que resume os filmes anteriores" e "anuncia
peram-na no sentido da unidade: "Os estilos mais diversos os seguintes". Estamos aí plenamente dentro das concep-
fazem neste filme o mais feliz dos casamentos, e sua uti- ções da política. E acrescenta: "Fim de uma mise en scene
lização sucessiva não quebra de forma alguma sua perfeita despojada em preto e branco, substituída [nos filmes poste-
homogeneidade". Há casos, porém, em que é impossível riores] por uma mise en scene flamejante de cores quentes".
passar por cima da diversidade para cantar as glórias da A ruptura é afirmada, mas ela é meramente afirmada.
homogeneidade. Sabe-se que Hitchcock usou em The Por que The Lusty men é o último filme despojado, já
Rape planos de longa duração, princípio retomado, com que tematicamente ele se enquadra perfeitamente na tra-
menos radicalidade, em Under Capricorn. Ora, anterior- jetória em busca da expressão da matriz, resumindo os
mente ele defendera a montagem curta. Chabrol/Rohmer: filmes anteriores e anunciando os seguintes? Isto não é
"Num texto de 1938, Hitchcock opunha-se a essas longas · comentado. Mas, pelo menos, o reconhecimento da exis-
tomadas de que se tornaria o campeão dez anos mais tência de ruptura não é minimizado por um artifício de
tarde. Poderíamos criticá-lo por essas reviravoltas se ele estilo. E, no decorrer de seu texto, Tmchaud se referirá
se satisfizesse em obedecer à moda, mas, em realidade, o à "renovação da temática de Ray", à sua evolução, a uma
11
mais das vezes, ele cria. Verdade aquém de 1940, erro inovação capital", deixará entrever meandros nessa "lon-
depois. Se ele se engana, então o cinema inteiro engana-se ga marcha" que é a trajetória de Ray ao dizer de determi-
com ele". Um dado curioso dessa citação é que a palavra nado filme que ele volta a "um problema que se pen-
reviravolta está no plural. Ora, trata-se de apenas uma re- sava resolvido". Apesar disso, as noções de ruptura e de
viravolta, e o ensaio não se refere a nenhuma outra. Como contradição não são integradas ao conceito de autor,
interpretar esse plural? Mascara outras reviravoltas sobre nada altera o princípio da frase já citada: "Desde o pri-
as quais os ensaístas preferiram silenciar, ou seria apenas meiro filme, tudo está dito", e outras do mesmo teor.
um efeito de estilo? De qualquer modo, o trecho me parece Simplesmente, Truchaud dá mostras de que contradições
revelador da perturbação dos críticos: simplesmente não e rupturas não podem ser ignoradas. E para deixar claro
há espaço no sistema para uma ruptura. Introduz-se o que não as ignora, embora não saiba o que fazer com
conceito de moda que nada tem a ver com o método elas, ele abre seu segundo capítulo com uma citação
.fl:AN ( ,'/.All/Jh' Ul:'UNANnhr <>.·li m >N Nt J <.'INl:i\lA 53

categórica, sem mencionar o autor, mas que podemos 111odo bastante diverso, para não dizer oposto. Eisenstein
supor ser de Nicholas Ray: "I contradict myself? Very manifesta uma profunda estima por Bach e Zola, porque
well then I contradict myself". 9 su~ s obras "revelam ser variações sem freio sobre alguma
coisa como uma linha da ordem da idéia, da tese, ou do
conteúdo emocional". E é isso que agora, retomando os

mesmos exemplos do texto anterior, Eisenstein vê na sua
própria obra. Os seus filmes são como "as máscaras variá-
POUCOS cineastas debateram-se de forma tão tensa - veis de um só e mesmo rosto". Se ele se examinasse de
sem o f air play do "very well then" - entre a diversi- fora, diria de si próprio: "Este autor parece ter abordado
dade, a contradição e a unidade como Eisenstein. Saio do de uma vez por todas uma única idéia, um único tema,
âmbito da política, pois Eisenstein não era bem visto no um único assunto, [a sua obra] é sempre e em toda parte
olimpo, para abordar dois textos que tocam nessa ques- a mesma coisa". É "a realização da unidade". Transcrevo a
tão. São "Faz vinte anos" e "A unidade", textos inacabados conclusão (de um texto inacabado) na íntegra: "Começar
datados de 1944. Limito-me a resenhar trechos desses tex- por dizer que (. .. ) tanto nos filmes do autor [o próprio
tos, o que me parece suficiente para ressaltar a tensão em Eisenstein] tomados isoladamente quanto no conjunto de
que se debatia Eisenstein. Dialogando imaginariamente, seu opus, há um traço de composição que atravessa o
no primeiro texto, com o crítico russo Belinski (1811-48), todo, e que lhe é próprio desde as primeiras manifesta-
que afirmava, em 1842, ser a tarefa da crítica contempo- ções dos rudimentos daquilo que mais tarde crescerá
rânea a observação da "idéia preponderante" do poeta, numa concepção da a1te - a repetitividade. Tal repeti-
"o pensamento dominante de toda a sua vida", Eisenstein tividade é o equivalente estrutural, ou, se se preferir, o
retruca que, sem querer resolver a questão, a sua obra intérprete do conceito de obsessão (nos casos positivos)
não apresenta uma tal idéia dominante. A sua obra é a ou de 'idéia fixa' (nos casos patológicos) ou do simples
diversidade. Exemplifica com o Encouraçado Potemkin e automatismo, enquanto estágio primitivo de qualquer
Ivan, O terrível, filmes incompatíveis pelo seu tema. Aqui funcionamento (. .. )".
o coletivo e a massa, aí o indivíduo, o monarca absoluto,
e vai enumerando as oposições. Longe de se poder falar
num tema do autor, único e recorrente, só se pode ver na ♦

sua obra "o caos inimaginável de uma temática espalhada


de modo perfeitamente aleatório". Procurar a "unidade A matriz existe realmente? Ela é um filme? Apesar
temática" nessa "miscelânea temática" seria fruto de uma de, conforme Chabrol/Rohmer, a matriz hitchcockiana ma-
"obsessão maníaca". Essa obra é "um conglomerado ma- nifestar-se plenamente num filme como The Wrong man,
nifestamente sem compatibilidade nem medida comum podemos responder à segunda pergunta: não. A matriz
- isto é visível até para o olhar menos preparado". Ao não é um filme. Pode manifestar-se' num filme, até com
que os críticos da política poderiam responder que ~ó é todo o seu esplendor, mas ela não é esse filme, não coin-
visível justamente pelo olhar menos preparado, pois o cide com ele. A matriz é sempre uma virtualidade. O últi-
mais preparado não se deteria nos temas mais imediatos mo parágrafo do ensaio de Tmchaud me parece revelador.
e aparentes dos diversos filmes. Ray (e seus personagens), que "uma sensibilidade doentia" .
Em "A unidade", redigido aproximadamente na mes- leva à "obsessão da pureza e idéia fixa do mal", tem fas-
ma época que o texto anterior, a questão coloca-se de cínio por Arthur Rimbaud. Truchaud então se questiona
JF.AN c.'ftl(IJ)fi HliNN.-INJJ/:F f 1. lf l/r JN Nl J e 'INl·M:1

pondo um ponto final a seu estudo: "Realizará ele um fazc:r participar, pela fascinação que exerce sobre cada
dia esta Vida de Rimbaud que o obceca desde sempre? um ~le nús _<J~•alquer figura depurada, quase geométrica, à
Seria este o filme ideal, acordo total entre o artista e o vt·rtigem vivida pelos personagens e, além da vertigem,
personagem, acordo por demais perfeito a ponto de pare- <·m nos fazer descobrir a profundidade de uma idéia mo-
cer que cabe a nós, com os elementos de que dispomos, ral. A corrente que vai do símbolo à idéia passa sempre
imaginá-lo. Um filme que não existirá provavelmente nun- pelo condensador da emoção". Afirmações de teor seme-
ca, projeto mítico (...) que refletiria plenamente a conduta lhante encontram-se no estudo de Tmchaud: "A história
de vida do autor. Acordo plenamente realizado entre o dos primeiros filmes de Ray C.. .) ainda é, em certos mo-
homem e o criador, 'autor' de filmes, alcançando final- mentos, melodramática, mas a intenção de Ray consiste
mente a Obra por excelência". Tmchaud vai direto ao em 1~0~ ~azer. compreender que além da forma primeira
âmago da questão: justamente, essa obra por excelência da h1stona, a Juventude revoltada contra a sociedade de-
não existe nem existirá, porque não pode existir, essa vemos ver os protestos da juventude contra o mundo' em
obra só poderia ser um filme concreto em que a matriz se gera½ o. cosmos e a vida"; "a mise en scene despoja as
manifestasse plenamente. aparenc1as e revela o essencial". Idéia semelhante em
É desse método crítico e dessa concepção de autor Fe!lini: "O que quero mostrar atrás da epiderme das
que Drouzy disse ser "matizada de platonismo". De fato, ~01sas e das pessoas, me dizem que é o irreal. Chamam a
a matriz, a idéia-mãe, aparece como uma abstração que isto de gosto pelo mistério. Aceitaria de bom grado essa
não se concretiza nunca, mas projeta-se com maior ou palavra se se quisesse escrevê-la em M maiúsculo". Ou
menor nitidez sobre realizações concretas. O nível das então ne~ta frase lapidar de Godard: "A imagem é apenas
aparências, isto é, cada filme particular, é um meio atra- o complemento da idéia que a motiva".
vés do qual podemos ter acesso à idéia, e este é o traba- ,. U~emos a frase de Godard para afirmar que a matriz
lho do crítico: remontar das aparências à idéia, como é o e um alem, mas igualmente um aquém. Além, pois é ela
trabalho do cineasta cuja busca consiste em, por intermé- que tentamos alcançar para lá das realizações concretas.
dio de realizações concretas particulares, se não alcançar Mas aquém, porque é ela que as motiva. Nem o cineasta
a idéia, pelo menos conhecê-la e atingir sua máxima pro- nem o crítico.º sabem, mas já está presente/oculta, en-
jeção sobre uma realização concreta, momento em que se formando realizações que, no início da cu1va, ainda não
dá o fenômeno da alegoria ou parábola. E, enquanto as conseguem _dar-lhe plena expressão, mas que, com a
realizações concretas são múltiplas e necessariamente decantação, permitirão percebê-la.
múltiplas (primeiro porque o autor não alcança a plena ~ Essa colocação explica, paradoxalmente, a valoriza-
projeção potencial da idéia imediatamente e sim ao cabo çao e desvalorização das aparências, dos filmes concre-
de uma busca e, segundo, porque a idéia só é perceptível tos. Estes são desvalorizados enquanto nunca são um fim
nas realizações concretas pela sua recorrência), a idéia é em si, mas tão-somente um meio para alcançar a idéia. E
una. Esse mecanismo é estrutural na política dos autores. são valorizados enquanto único meio, de acesso a ela e
Sem ele, a política, tal como foi praticada pelos Cabiers única possibilidade de sua manifestação. Verificamos a
du Cinéma, simplesmente desmorona. A política lida com existência de uma atitude de desvalorização quando trans-
um além, um além aparências, um além obras concretas. crevemos comentários sobre roteiros e enredos conside-
A presença desse além expressa-se claramente no se- rados frágeis pelos críticos.
guinte trecho do livro de Chabrol/Rohmer, referente a Outro elemento sistematicamente desvalorizado é a
Spellbound: "A arte de Hitchcock (. .. ) consiste em nos técnica, o que é compreensível, pois neste sistema ela só
56 JEAN-CLAl/JJ/:' /JJ:'NNAW J/:'/' eJ Aff/ ~ JN N< J c,'/NJ:'MA 57

pode ser um instrumento a serviço de outra coisa, sem d< >S Cab iers, pode-se dizer que, mais que uma colocação
valor nem significação própria. Dos entrevistados que se em cena, uma encenação, trata-se de uma colocação em
referem ao assunto, apenas Hitchcock não a desvaloriza e imagem; pelos textos, depreende-se que ela envolve os
demonstra apreciar o "requinte técnico de Vertigo", bem elementos que contribuem para a elaboração dos planos
como o seu então "melhor trabalho técnico", Tbe Rape. (quadros, movimentos de câmera, iluminação, marcação
Mas quando vista como um fim em si, a técnica torna-se e direção dos atores, aproveitamento da cenografia e dos
negativa. Chabrol/Rohmer anotam esta crítica feita a Hitch- objetos de cena, etc.), mais do que, embora sem excluir, a
cock: "Depois de Suspicion se dirá: 'Ele mostra suas limi- montagem, música, ruídos e diálogos. Os Jovens Turcos
tações; é um virtuose sem profundidade, um técnico, não não são os primeiros a valorizar a mise en scene. Na pri-
um autor verdadeiro'". Ou então a técnica é subordinada meira metade dos anos 40, o precursor Marcel L'Herbier
a outros valores. "O progresso técnico mata uma espécie declarava em cursos no Institu t des Hautes Études Ciné-
de qualidade humana em cada um de nós" (Renoir). "O matographiques que uma peça de teatro existe indepen-
que me interessa - e isso vem antes da técnica - é dentemente de sua encenação: pode ser lida, a obra existe.
reproduzir os sentimentos das personagens dos meus fil- Não é o caso do cinema: sem filme, por mais que haja
mes" (Dreyer). "Não gosto de cinema, salvo quando filmo: roteiro, não há obra. "A mise en scene de teatro não é
então, é preciso saber não ser tímido com a câmera, vio- senão a roupagem exterior, as vestes da peça, que consti-
lentá-la, forçá-la até os últimos redutos, porque ela é um tui, ela, a entidade física, viva e ativa de onde vai sair e se
vil mecanismo. O que conta é a poesia" (Welles). "Fico desenvolver(. .. ) toda a cerimônia do espetáculo. A mise
completamente louco de raiva ao ver que uma câmera en film não está aí para vestir o corpo do espetáculo da
pode excitar alguém. É de uma estupidez inaud!ta! (. .. ) A tela, ela está aí para criá-lo, cortando e recortando frag-
técnica é necessária, mas não se fala nisso. E alguma mentos de vida no drama fenomenal que ela tem como
coisa que deve tornar-se natural, mas que não deve fazer missão ordenar e registrar." Pode-se distinguir a peça da
com que se excitem perante ela. 'Vejam esta câmera, mise en piece, não se pode diferenciar o filme da mise en
olhem para esta câmera!' Não me interessa olhá-la" film. Tal valoração da mise en scene... cinematográfica -
(Rosselini). Fellini critica esses grandes espetáculos de apesar da tese de L'Herbier, o vocabulário cinematográ-
produção americana que se reduzem a uma "girândola fico ficou com a expressão teatral - se tornará um dos
pirotécnica de truques sensacionais", "o ideal seria, como pilares da política. Nem por isso, L'Herbier e depois os
no caso de 2001, uma odisséia ·no espaço, de Kubrick, Jovens Turcos disseram precisamente o que é, no cinema,
que essas extraordinárias equipes de técnicos estivessem essa mise en scene.
a serviço de uma idéia, de um sentimento, da fantasia de
um autor". Em poucas palavras: "Toda técnica remete a

uma metafísica", afirma Bazin, retomando uma frase de
Sa11re referente à técnica do romance. A técnica só importa
enquanto não-ela, enquanto remete a algo que a ultrapassa, ANDREW Sarris adota a expressão francesa de mise en
sem o que não se justifica. scene, cuja vagueza - não menor que a de autor - lhe
Uma atitude de valorização encontra-se na impor- cria algum problema. Vai tentar cercar o conceito mais de
tância dada à mise en scene. Esse é outro conceito funda- perto, por exemplo nos seus comentários sob1:e Preminger:
mental da política, e também carece de definição mais "Ler toda sorte de profundidades pungentes na ines-
precisa. Pelas análises de filmes publicadas pelos críticos crutável urbanidade de Preminger pareceria a última das
58 Jl!AN-CI.A l JJJH 13/:'NNAJU Jl!T t J ,li//( JN M,, INI-A/A

imbecilidades, e, no entanto, há momentos em seus filmes plano, a.-; posiçocs morais <los protagonistas se invertem.
em que a evidência da tela não é condizente com as mais Por exemplo na curta discussão entre o chantagista e o
profundas intuições que possamos ter a respeito do dire- detetive: o segundo está à direita, a seguir, quando o dete-
tor como homem. É nesses momentos que sentimos que tive, para salvar a noiva, propõe por sua vez um negócio
os poderes mágicos da mise en scene ultrapassam o que o 1>a~tante ignóbil ao chantagista, coloca-se à esquerda do
diretor pôs num filme". Ele faz mais uma tentativa quando quadro. O lugar dos personagens expressa aqui as suas
define sua terceira premissa, pois, como vimos, a mise en relações". Reencontramos nesse trecho a idéia da "troca"
scenevincula-se ao "interiormeaning", mas "ela não é exa- da "culpabilidade intercambiável" a que se aludiu anterior~
tamente a visão de mundo que um diretor projeta nem mente. E é em função dela que a mise en scene é analisada.
exatamente a sua atitude em relação à vida. É ambígua, Esta é boa porque a idéia projeta-se sobre ela e a molda,
em qualquer acepção literária da palavra, porque uma e boa porque nos permite entender a,idéia através dela. A
parte é enraizada na substância do cinema e não pode ser mise en scene não é aqui ressaltada pela sua plasticidade
expressa em termos não cinematográficos (.. .) Arriscarei ou qualquer valor intrínseco, mas pela sua transcendência.
dizer que penso que ela é como um élan da alma?". Apa- Aproveito essa citação para, mais uma vez, insistir sobre a
vorado com sua própria afirmação, Sarris acrescenta ime- noção de unidade e coerência interna: é o mesmo princí-
diatamente: "Para não parecer excessivamente místico, pio que rege as relações entre os personagens no nível
deixem-me acrescentar logo que o que entendo por 'alma' do enredo bem como a marcação dos atores, princípio
é apenas essa impalpável diferença entre uma personali- este que se reencontra de seqüência em seqüência, isto
dade e outra, todas as outras coisas sendo iguais". A mís- é, no nível das grandes unidades dramáticas do filme
tica fica por conta dos franceses: "A arte do cinema é a (unidade, aqui, no sentido semiológico), bem como dos
arte de uma atitude, o estilo de um gesto. Não é tanto o pequenos grupos de planos (cena), ou até de um só pla-
quê mas o como. O quê _é algum aspecto da realidade no. Assim, a pequena unidade (no caso o plano descrito)
mecanicamente registrado pela câmera. O como é o que reflete a obra no seu conjunto, e este é a expansão da
os críticos franceses chamam de modo um tanto místico pequena unidade.
de mise en scene". Em Truchaud, a mesma forma de valorização: "Em
Tbey live by night [a mise en scene] expressava as idéias.
Formulava a idéia de tragédia pelo uso do preto e do
♦ branco; a idéia de fatalidade e de destino pela qualidade
de falta de ar e do aprisionamento das imagens".
A política valoriza a mise en scene porque é através Mas apesar da extrema importância da mise en scene
dela que o cinema pode distanciar-se da literatura. Mais na concepção da política, sua análise ocupa um lugar
expressiva a mise en scene, menos necessários serão os bastante restrito, tanto no Hitchcock como no Nicbolas
recursos advindos do romance. Mas também - e, a meu Ray, como em geral nos textos críticos produzidos pelos
ver, essencialmente - por ser a aparência a matéria con- Jovens Turcos. Um lugar restrito tanto no volume do texto
creta cinematográfica que permitirá o acesso à idéia. Exa- quanto no papel que lhe é reservado na descoberta e'
minemos a análise de um plano de Blackmail feita por formulação da matriz. Esta provém quase exclusivamente
Chabrol/Rohmer: "Carrascos e vítimas alternam-se de se- da análise dos enredos, das situações dramáticas, dos per-
qüência em seqüência: o carrasco torna-se vítima, a víti- sonagens e suas relações, isto é, de uma análise temática.
ma, o carrasco. Numa mesma cena, às vezes num mesmo Esse fato deve-se provavelmente a que a análise da mise
60 JEAN-CI.Al/JJI:" 1/ENN,I INIJ/:F

en scene em na época uma prática rara, sem tradição, sem qut' no~ n·mcta à idéia, ela nunca é a idéia, apenas uma
instrumental, enquanto a análise temática tinha no mínimo dt' suas manifestações. Donde, provavelmente, esse
uma tradição e um instrumental proveniente da literatura gosto manifestado com certa insistência por Truchaud por
e do teatro. Mas acredito que a pouca participação da obras marcadas por certa imperfeição. Preparado às pres-
mise en scene nas análises de filmes provém também sas, Hot blood "apresenta a desordem e o 'sentimento da
da precariedade conceitua! da expressão. Assim, apesar de incompletude' característicos das obras primas"; "Belezas
ter sido a mise en scene uma bandeira de luta dos Jovens inumeráveis fazem de [ 1be true story of]esse James] um
Turcos, o método crítico da política foi sobretudo temático, dos melhores filmes de Ray e um dos mais acabados pelo
e é bem raro encontrar um texto como "O cinema e seu seu próprio inacabamento e pela sua confusão. Sua de-
duplo", em que Godard analisa The WrongMandando de sordem gera a harmonia, e de seu inacabamento surge
fato importância de primeiro plano à mise en scene. Neste a obra-prima". Sugiro que esse paradoxo - desordem/
sentido, Godard é conseqüente com a desvalorização do harmonia, inacabamento/obra-prima - possa apresentar-
enredo e com sua afirmação de que o cinema não é apenas se, parcialmente pelo menos, na idéia de que a manifes-
uma arte da narração, conforme sua "defesa e ilustração tação da matriz nunca pode ser perfeita, e que a sensação
da decupagem clássica". Desse ponto de vista, é certa- de inacabado engrandece a manifestação concreta, pois
mente revelador que encontremos em vários textos de nos faz perceber que em si não é nada e só vale por nos
Godard, ao lado das inevitáveis referências ao olimpo li- remeter à matriz.
terário, diversas alusões a pintores, o que não ocorre nos Estamos em pleno terreno religioso, o que já podía-
outros críticos. Se tivesse seguido o método de Godard mos sentir desde o início destas considerações sobre a
em "O cinema e seu duplo", apesar de muito incipiente, a aparência e a matriz. Em texto de 1952, Godard remete
carreira crítica da política poderia ter sido diversa. a um artigo de Maurice Scherer que exterioriza o seu pra-
Outra coisa que·se deve dizer a respeito da mise en zer em ver em L 'bom me du sud, filme americano de
scene nesses textos é que também nela uma ce11a debili- Renoir, "um homem que ama sua mulher e acredita em
dade pode ser tolerada. "É estudando plano por plano um Deus". Scherer complementa afirmando que a originali-
filme como Stage fright que se poderia talvez captar os dade dos melhores filmes dos últimos dez anos deve
segredos formais de Hitchcock. Por ser o menos homo- muito pouco ao uso de novas técnicas. Os melhores fil-
gêneo, o menos perfeito dos grandes filmes de nosso ci- mes recentes, tais como Les dames du Bois de Boulogne
neasta ' ele nos maravilha ainda mais." Idéia. semelhante (Bresson), Under Capricorn (Hitchcock), Francesco,
em Truchaud: "Este filme alinha-se entre os mais reve- giullare de Dia (Rosselini) - três grandes do olimpo - ,
ladores, mas não é um dos mais logrados". Não é raro revelam uma espiritualidade que "proclama a retumbante
encontrar críticos que valorizam obras menores, pois nelas vingança de uma arte que, relegada outrora ao nível do
os procedimentos do autor seriam mais imediatamente folhetim, parece se espantar agora de tirar o melhor de
perceptíveis que nas obras melhor logradas e mais com- sua inspiração da crença na almd' (grifos do autor). Nesse
plexas. Mas poderemos nos perguntar aí também se não mesmo texto, Godard afirma claramente ser o cinema
há um efeito da idéia conforme a qual a fraqueza das "a arte mais religiosa, já que situa o homem frente à es-
aparências é tolerável, desde que esta nos possibilite o sência das coisas e mostra a alma no corpo". Essa frase,
acesso à matriz. Eu iria ainda mais longe e perguntaria em que encontramos uma relação análoga à aparência/
se a aparência não deve :ser necessariamente marcada por matriz, não deve ser tomada num sentido alegórico, e
uma relativa debilidade, na medida em que, por melhor poderia orientar uma interpretação do recente ]e vous
62 JEAN-CLA UDH BENNAIWET , J ti I, 1/,' M Jt /!\/ M. I

salue Marie. Fellini faz uma afirmação não tão distante da "' > ll'Xlode Trudiaud. Apús lembrar no início <lo ensaio
de Godard. Considerando-se religioso por natureza, diz: qU<.· Hay ja foi chamado o "cineasta do crepúsculo <la
"E ainda que, desde criança, não tivesse me sentido fasci- .lima", {·omt·nta que um dos personagens de Tbe dusty
nado por este sentimento místico (...) creio que o ofício men ''{.'ncontra finalmente a salvação, na e pela morte".
que tenho e exerço [o de realizar filmes] me teria natural- 1){' \lí'ind across the everglades. "Neste mundo da natureza
mente conduzido na direção de um sentimento religioso". :-,mgc.·m, intimamente ligados, beleza e malefícios, fasci-
Entre os Jovens Turcos, só Godard, que eu saiba, para na,·ao e horror, ternura e cmeldade, este mundo realmente
fazer uma afirmaç.ão tão categórica, o que não impede 1{'llll'te ~1quele dos Tempos da Criação, onde tudo se mis-

que nos escritos dos outros encontremos um sentimento turava, indissoluvelmente. Pureza e inocência se mesclam
religioso cristão bastante marcante. Esse o motivo pelo ,1< > mal e à culpabilidade". Fellini não escapa à culpabili-

qual Hitchcock é um astro de primeira grandeza no dadl': "As raízes onde nasceram Gelsomina e Zampano
olimpo dos autores. A escolha de Hitchcock deve-se em 1personagens de La Strada] e sua história pertencem a

grande parte à "transferência da culpabilidade" e à "cul- , 1ma zona profunda e obscura, constelada de sentimentos
pabilidade intercambiável". O universo hitchcockiano, tal dl' culpa (...)''. Em Os filmes de minha vida, Truffaut vê
como interpretado por Chabrol/Rohmer, está cheio de ~u;1 iniciativa cinematográfica e seu amor pelo cinema vin-

culpa e é na culpa- nessa culpabilidade difusa que pesa t 1ilados, por motivos biográficos, à culpabilidade. Truffaut

sobre cada um de nós e que é transferível - que se en- ni a nça e adolescente teve que ver os seus duzentos pri-
contra o essencial do sentimento religioso. Chabrol/ 111l'i ros filmes fazendo gazeta: "Eu pagava portanto esse
Rohmer citam um texto de Jacques Rivette a respeito de mtenso prazer [de ir ao cinema] com fortes dores de bar-
Under Capricorn: "O assunto secreto desse drama é a riga, o estômago apertado, o medo na cabeça, invadido
confissão, a libertação do segredo tomada na sua dupla por um sentimento de culpa que só podia reforçar as
acepção: no sentido psicanalítico (.. .) como no sentido l 'moções provocadas pelo espetáculo".

religioso; e a confissão dos pecados equivale aqui à sua Mas me parece que o aspecto religioso da política
redenção". Embora católico praticante, Hitchcock não é, nunca foi devidamente analisado, pelo menos nos meios
confo1me seus comentaristas, místico nem militante, "e no 1ranceses. É verdade que Positif publica em 1962 um
entanto não há um só filme de Hitchcock que não seja de monumental panfleto intitulado "As delícias da ambigüi-
alguma forma marcado pela idéia ou pela simbólica cristã". dade - Elogio de André Bazin" que desanca o conser-
O que 1 conjess nos apresenta é um milagre, "tanto um vadorismo religioso do redator-chefe dos Cahiers, tratado
milagre da Graça quanto da vontade". A graça, a salvação, de cura. Ataca-se também o platonismo de Bazin: assim
a remissão do pecado, a culpabilidade são motivos cen- como a aviação seria a concretização de uma idéia que
trais de / confess. O falso culpado de The Wrong Man existia na alma do homem desde que contemplava pássa-
"não é senão um falso inocente, como todos os seus irmãos ros ("o velho mito de Ícaro teve que esperar o motor a
terres"tres desde a Queda". Nesse filme Hitchcock apre- explosão para descer do céu platônico" - Bazin), o cine-
senta o extraordinário sob a sua forma privilegiada, plena, ma é a materialização de uma idéia que lhe preexistia
que é a própria forma do milagre, como já ocorria em toda pronta na cabeça do homem. O virulento ataque
filmes como Le vent souffie ou il veut, Viaggío in Italia ou respinga em outros membros da "Sagrada Família", entre
Mr. Arkadin, que são to<los filmes de autores do olimpo: os quais Rohmer, Chabrol e Godard. Mas nesse longo
Bresson, Rosselini, Welles. As noções de culpabilidade e ensaio o autor nunca aborda especificamente a política
salvação ecoam também, embora menos intensamente, dos autores, que nem é citada.
, 1.llt/1 >N NI Ir 'INl·tllA
64 ./fi.AN <,'/.A l l/ >I:' lil:HN.·1 NJ >/: /'

Bem mais recentemente Cl 983), na entrevista que humanos". E Fellini conclui, em resposta a um jesuíta
sl·n·:-i
serve de introdução a uma antologia de Rohmer, Jean que o questionava sobre o teor religioso de sua obra,
Narboni comenta: "O Senhor e seus amigos da Nouvelle dizendo q ue "Cabiria leva em seu coração o segredo de
Vague são tidos como aqueles que promoveram a idéia uma graça que ela descobriu. Não tentemos definir a na-
de mise en scene. Mas posições políticas, religiosas até, tureza dessa graça; é mais delicado deixar a Cabiria a
éticas, pareciam igualmente determinar seu sistema de alegria de nos dizer se finalmente esta graça é o seu en-
valores". Rohmer responde: "Sim, de fato. É difícil falar contro com Deus".
disso. Poderia até dizer que é a pa11e mais ultrapassada O autor, em última instância, revela Deus, e não
do que escrevemos". E o assunto morre aí. será essa a função última do cinema? As obras dos gran-
Tenho impressão de que o caráter religioso, cristão, des autores não são filmes, mas se identificam com o pró-
da política dos autores, apesar de lhe ser, a meu ver, ine- prio cinema. Já tivemos acima um exemplo desse tipo de
rente, nunca foi tão ressaltado como pelo crítico americano colocação a respeito de Hitchcock: "se ele se engana en-
John Hess em artigos publicados em Jump Cut. Empe- tão o cinema inteiro se engana". Temos outros: "cada pla-
nhado em apresentar a Nouvelle Vague como um movi- no, cada imagem [de Nicholas Ray] respira o cinema e nos
mento conservador que tinha como função afastar a reali- faz compreender o que é o cinema". Hitchcock "é cinema
dade social do cinema, Hess identifica no personalismo qualquer coisa que faça". A obra do autor identifica-se
de Emmanuel Mounier a ideologia religiosa que informou l'Om o cinema, é o cinema, cria o cinema. O romantismo
os Jovens Turcos. André Bazin, seu mestre, era vinculado não está longe: "O artista tornou-se um Deus criador",
ao personalismo, bem como outra figura que a história escreve o alemão Herder. 10 Um passo a mais e o autor
esqueceu em benefício de Bazin, mas cujas idéias tiveram cinematográfico torna-se o Criador. Godard dá esse pas-
algum peso na década de 50, o padre jesuíta Amédée so, ao concluir uma nota sobre India, de Renoir, anun-
Ayfre, também personalista. Cristianismo bastante aberto, ciando um a1tigo sobre esse filme: "Num próximo número
o personalismo - retomo essa condensação de J. Hess - provarei por que India é a criação do mundo". O autor
considerava que o homem vive num estado que resulta virou Deus.
de sua queda num mundo corrompido, mas, por mais de-
sesperada que pareça sua situação, ele tem a possibili-
dade de se libertar dela, desde que enfrente seu destino e
se volte para os outros e para Deus. A presença da culpa-
bilidade nos escritos dos críticos dos Cahiers e, em pa1ti-
cular, a interpretação que Chabrol/Rohmer fazem de
Hitchcock, com a "transferência da culpabilidade" como
relação com os outros, parece harmonizar-se com o per-
sonalismo de Mounier. Mas, em nenhum dos textos fran-
ceses estudados para _este trabalho, Mounier é citado.
Curiosamente, é na "Carta a um crítico marxista" de
Fellini, que lemos: "Para mim, La Strada tenta realizar' a
experiência que um filósofo, Emmanuel Mounier, consi-
dera como capital e primordial para compreender qual-
quer situação social: a experiência comunitária entre dois

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