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Truffaut não atacava todos os cineastas franceses. Ele poupava os diretores que
considerava “verdadeiros autores”, como Jean Renoir, Robert Bresson, Jacques
Tati, Max Ophuls e Jean Cocteau, entre alguns outros. Assim, ele dividiu o
cinema francês em dois campos e conseguiu se ligar a um grupo de aliados.
Foram eles que o ajudaram em seus primeiros passos no cinema. Godard seguia
os seus passos, mas de uma forma menos agressiva.
Esses fatos jamais o abandonaram nem permitiram que ele tivesse uma vida
tranquila como adulto. Truffaut não era como os seus colegas dos Cahiers du
Cinéma, geralmente estudantes universitários de classe média. Vindo de baixo,
autodidata, ele se parecia mais com os imigrantes judeus que criaram do nada
os estúdios de Hollywood.
Já Jean-Luc Godard vinha de uma família protestante de classe alta. Seu pai era
médico e sua mãe era filha de um banqueiro, um dos fundadores da Banque de
Paris et des Pays Bas. Viveu sua juventude sem problemas materiais, na Suíça,
onde viveu confortavelmente nas cercanias do lago Leman, onde terminou os
estudos secundários antes de ir para a Universidade de Paris.
Enquanto isso, Godard havia ficado em Paris, roendo as unhas, e pediu ajuda ao
amigo para também produzir o seu primeiro filme de longa metragem. Truffaut
tinha umas 4 páginas de anotações e recortes sobre o caso de um criminoso que
havia matado um policial numa estrada francesa, e depois fora caçado
intensamente em Paris. Ele ofereceu essas notas a Godard, e também uma carta
na qual se dizia corresponsável pelo filme de Godard. Nascia “A bout de souffle”
(Acossado), o primeiro filme de longa-metragem de Godard.
“Autores” eram os diretores que conseguiam, segundo eles, impor seu estilo,
seus roteiros e suas ideias aos estúdios e seus produtores, os grandes vilões da
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Tanto para Godard como para Truffaut, a batalha se dava, como já vimos,
exclusivamente no campo cinematográfico. A luta da chamada “nouvelle vague”
(nova onda) – nome que havia sido dado pela editora da revista Express,
Françoise Giroud, e que foi adotado pelo resto da imprensa mundial a partir de
1959 – se colocava estritamente em termos estéticos, muito embora os jovens
tentassem ampliar o campo da discussão, declarando que a escolha da maneira
de filmar era também uma questão ética, algo obscuro demais para ser
entendido pela maioria das pessoas.
O passado não interessa, segundo Sartre. Não existem regras imutáveis, nem
uma natureza humana que nos impele a ser de uma dada maneira, ou a fazer
determinadas coisas independentemente da nossa vontade. Sartre não
acreditava em nada disso. Sua fórmula famosa, “a existência precede a
essência”, quer dizer justamente isso: que somos aquilo que decidirmos fazer
das nossas vidas.
Sartre dava o exemplo, vivendo de acordo com suas ideias: sempre solteiro, sem
família, sem filhos, e também sem ser jamais fiel às mulheres com quem
mantinha relações amorosas e sexuais. Sartre detestava a ordem e as proibições
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Mas um outro ponto os une, que não podemos deixar passar desapercebido: a
presença constante da literatura e das referências literárias. Os filmes de ambos
se baseiam em obras literárias (livros policiais americanos, no caso de Godard;
alguns escritores franceses obscuros, em Truffaut) e os personagens dos dois
diretores estão sempre lendo alguma coisa, ou fazendo menção
permanentemente a algum livro ou autor. Os dois são franceses, afinal.
No final dos anos 50, Sartre se deu conta que o seu individualismo radical
levava a um impasse: como seria possível conciliar a liberdade absoluta do
indivíduo com as exigências da vida numa sociedade burguesa? A primeira
resposta vem com a publicação da “Crítica da Razão Dialética”, na qual Sartre
declara que “o marxismo é a filosofia insuperável do nosso tempo”. Sartre se
rende ao pensamento marxista, e passa a escrever que para que os homens
sejam livres é preciso antes libertar a sociedade das limitações e da alienação
impostas pelo sistema capitalista.
Godard e Truffaut se reúnem mais uma vez como amigos e cúmplices, exigindo
o cancelamento do Festival de Cannes daquele ano. Mas esta á a última vez que
os veremos numa ação pública conjunta. A radicalização política obriga a todos
a uma tomada de posição. Coerente com o seu pensamento, Sartre vai às ruas
distribuir o jornal maoísta “La Cause du Peuple”, cuja circulação é proibida. A
direita pede a sua prisão, suscitando a famosa resposta de De Gaulle: “on
n’arrête pas Voltaire” (não se pode prender Voltaire).
familiares. Até que, em 1973, ele dirige “La Nuit Américaine” (A Noite
Americana), mais um filme de inspiração autobiográfica. O que, no caso de
Truffaut, quer dizer mais uma tentativa de autorreconstrução do que
propriamente de autorrevelação. “A Noite Americana” é um retrato ficcional e
sentimental da vida e dos amores dos profissionais envolvidos nos bastidores da
produção de um filme de alto orçamento, com muitos cenários, equipamentos
de luz e maquinária, atores, extras, grande equipe técnica. Nele, o próprio
Truffaut faz o papel do diretor, e Jacqueline Bisset, o da estrela do filme.
Godard viu “La Nuit Américaine” e não gostou nada. Escreveu uma carta a
Truffaut acusando-o de fazer um filme ficcional sobre a produção de um filme
que não mencionava as dificuldades econômicas reais envolvidas no negócio
cinematográfico. Também acusava Truffaut de um outro tipo de desonestidade
pessoal, já que em “A Noite Americana” o diretor interpretado por Truffaut age
como um conselheiro isento diante das confusões amorosas e sexuais da equipe.
Godard se pergunta “por que o diretor é o único que não transa no filme”,
quando o namoro de Truffaut com Jacqueline Bisset era notório no meio
cinematográfico. Por último, Godard pede que Truffaut entre de coprodutor
num filme que ele está pensando em fazer, “para que o público não pense que os
únicos filmes sendo feitos são aqueles que você faz”.