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O EFEITO CINEMATOGRÁFICO DE PERFECT BLUE


Curso Online de Cinema - AULA 121

INTRODUÇÃO

Essa aula será inteiramente dedicada ao filme Perfect Blue, de Satoshi Kon, um longa de
animação japonesa e um dos animes mais famosos do mundo. Vamos analisar o filme
pensando em seus elementos cinematográficos a partir de temas já estudados no curso, ou
a partir de elementos básicos da linguagem do cinema.

O objetivo é quebrar a objeção que muitas pessoas têm com as animações e os animes.

DESCONSTRUÇÃO DA REALIDADE

Perfect Blue é um trabalho que lida com uma ideia de desconstrução da realidade. O filme
tende a ilustrar esse conceito mais através de elementos comuns do cinema (montagem,
decupagem, fotografia) do que por elementos irreais da animação.

De modo geral (e mesmo em seu plot), essa é uma obra que flerta mais do que o comum
com o cinema, inclusive simulando muito satisfatoriamente alguns movimentos de câmera e
outros efeitos práticos.

BREVE SÍNTESE DO FILME

Perfect Blue narra a história de uma jovem cantora pop chamada Mima que, no começo do
longa, abandona sua carreira para tentar ser atriz. Sendo assim, ela começa a trabalhar em
uma série de TV clichê e meio duvidosa ao mesmo tempo em que começa a ser perseguida
por um stalker e descobre um site na internet que expõe tudo o que ela faz.

Durante o filme, várias pessoas envolvidas na série e na vida de Mima começam a ser
assassinadas e a personagem entra em paranóia, vendo-se perseguida por um duplo seu -
alguém igual a ela que estaria cometendo os tais crimes. Aos poucos, Mima vai perdendo a
noção da realidade.

Originalmente, esse seria um anime um pouco mais tradicional, mas o diretor pediu que o
roteirista focasse muito mais no mundo interior da vítima e na desconstrução da realidade
do que faz o romance original em que o filme é baseado. Dessa forma, ele quis reforçar o
aspecto psicológico da obra literária.
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O RACCORD NA DESCONSTRUÇÃO DO FILME

No geral, toda essa ideia de desconstrução do filme se reflete muito bem tanto na narrativa
(num jogo muito ambíguo com a realidade), como também nos aspectos formais da obra,
elementos que são baseados em operações mais práticas do cinema.

Um exemplo disso é que Kon se utiliza muito dos efeitos de raccord entre cenas distintas.
Raccord é qualquer corte do filme que faz a transição entre dois acontecimentos que se
conectam, criando sentido nessa ligação. Geralmente, é utilizado para manter o realismo da
montagem, mas também pode ser subvertido de vários modos.

Em uma cena do começo do filme em que Mima está cantando ela se vira para trás e,
nesse movimento, há um corte que a leva para o quarto, onde ela cai deitada na cama,
chorando. Tal movimento em falso é o raccord. Percebemos depois que essa imagem da
personagem na cama está na TV e não é real. O filme usou dessa virada para trás como
forma de mudar totalmente a ambientação, e fez isso com apenas um corte.

Em outra cena Kon faz algo bem parecido. No caso, Mima está saindo de seu último show
quando um fã entrega um envelope para ela dizendo que acompanha o Mima’s Room. Sem
entender, ela se vira para ele e o filme, novamente, usa essa virada para propor um outro
corte (raccord), transportando a personagem para sua casa como se ela tivesse tido um
lapso de memória. O corte seco gera a sensação de uma continuidade ambígua.

Daí em diante, Kon passa a brincar com o raccord para questionar a percepção de Mima.
Conectar bem cenas distintas, além de funcionar como efeito de transição moderno,
deslocaliza o espectador de modo bem expressivo.

O uso pontual dos cortes secos que propõem essas ligações ambíguas estabelece uma
relação bastante interessante e pouco óbvia de uma confusão de percepção.

IRREALIDADE E EFEITOS DE CÂMERAS

Em outros momentos, Perfect Blue também propõe algumas ideias irreais a partir de
elementos práticos das “câmeras”.

Na mesma cena do último show de Mima, há um plano em que o stalker olha para ela e
coloca a mão bem na frente do rosto para ter a impressão de que sua ídola está na palma
de sua mão. O diretor cria essa impressão apenas a partir do ângulo da “câmera”, do ponto
de vista do stalker e do enquadramento.

Dessa forma, Kon desiste da facilidade de criar uma animação surreal em que a mão do
personagem captura a figura da garota, preferindo usar desse aspecto prático para propor
uma figura de linguagem.

Já em um outro momento, ele mostra alguns planos subjetivos da protagonista enquanto ela
está no set de filmagem da série e simula efeitos de zoom e desfoque de uma câmera para
passar a sensação de confusão e de opressão.
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Numa outra cena ainda, a personagem de Mima na série em que ela atua é estuprada, e ele
também usa alguns efeitos de uma câmera subjetiva desorientada para passar a sensação
de instabilidade.

ASPECTOS DA FOTOGRAFIA

Durante o filme, Kon utiliza vários efeitos de fotografia. Um deles mostra Mima refletida na
tela de um computador como se estivesse aprisionada, num plano que remete muito ao que
Douglas Sirk faz no final de Tudo que o Céu Permite (All That Heaven Allows, 1955).

Como essa questão dos espelhos e dos reflexos é uma espécie de motivo estético do filme
que sintetiza o conceito de desconstrução da obra, o diretor busca explorá-los de modo
mais realista.

Por exemplo, em uma das cenas de assassinato ele compõe uma relação bem interessante
entre a figura do duplo da Mima, que estaria matando um homem, e a figura da Mima na TV,
como se uma coisa fosse a projeção da outra.

Inclusive, esse uso de reflexos e espelhamentos a partir da dinâmica do suspense que


envolve o fascínio pela imagem daquela jovem e até pela beleza dela também lembra muito
alguns filmes do Brian de Palma. Provavelmente, esse suspense mais clássico e
cinematográfico foi também uma influência forte para Satoshi Kon.

OS ELEMENTOS IRREAIS DA ANIMAÇÃO

Os momentos do filme em que Kon usa a animação para de fato propor elementos irreais
são aqueles que envolvem as visões de Mima em relação ao seu duplo. Como se apenas
nesses momentos de um possíveis “lapsos psiquiátricos” mais explícitos o trabalho traísse a
lógica da realidade e de fato passasse a usar efeitos falsos.

Ou seja, o filme estabelece uma lógica formal bastante realista. Não é por menos que vários
diretores de cinema acabam usando ideias estilísticas dos filmes de Satoshi Kon. O caso
mais clássico deve ser o de Darren Aronofsky em Réquiem para um Sonho (Darren
Aronofsky, 2000) e Cisne Negro (Black Swan, 2010). Christopher Nolan também já deu a
entender que foi influenciado pela obra do diretor japonês.

PERCEPÇÃO DIEGÉTICA

Em Perfect Blue, além desses elementos formais propondo a desconstrução através de


aspectos mais realistas da cena, também existem elementos narrativos que brincam com a
nossa percepção diegética da obra.

Em vários momentos uma cena começa e, segundos depois, descobrimos que ela não é
parte do filme, mas uma cena da série em que Mima atua.
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No começo, Kon joga com esse detalhe de forma bem pontual, mas na medida que a
personagem fica mais desorientada ela entra numa espiral de realidade em que tudo se
mistura de modo radical. Dessa forma, sem qualquer lógica, uma sequência do filme de
repente se transforma numa cena da série.

O plot da série dentro do filme ainda brinca com essa ideia, já que nessa segunda narrativa
a personagem viveria uma espécie de assassina com várias personalidades. Uma dessas
personalidades seria a de uma cantora pop.

Mais para o final do filme, a narrativa nem se prende muito na ideia de apenas brincar com
duas realidades isoladas, mas as mistura de modo mais livre até ficarmos em dúvida sobre
qual realidade diegética é a verdadeira.

PLOT TWIST

É interessante como Perfect Blue é um trabalho que parte de temas clichês, mas que se
reinventa com uma abordagem mais radical em relação ao thriller psicológico, criticando,
por exemplo, a cultura do espetáculo em que as celebridades se anulam na medida que
tentam se reformular. Toda a crise de Mima começa justamente quando ela deixa de ser
cantora para tentar virar atriz.

Apesar das abstrações propostas, o final do filme procura concluir tudo de um modo um
pouco mais narrativo, buscando justificar alguns elementos por meio de um plot twist em
que a audiência descobre que, na verdade, era a empresária de Mima, Rumi, quem estava
criando tudo. Ela desenvolveu uma segunda personalidade que, de alguma forma, achava
que era a verdadeira Mima.

CONCLUSÃO

Perfect Blue é um ótimo exemplo de um anime que pode ser apreciado e analisado pelas
suas qualidades cinematográficas. Por isso, acaba sendo um bom filme para pessoas que
possuem algum tipo de preconceito com essas obras.

FILMES CITADOS

Perfect Blue (1997) - Satoshi Kon


Cidade dos Sonhos (2001) - David Lynch
Tudo que o Céu Permite (1955) - Douglas Sirk
Réquiem para um Sonho (2000) - Darren Aronofsky
Cisne Negro (2010) - Darren Aronofsky
A Origem (2010) - Christopher Nolan
Paprika (2006) - Satoshi Kon

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