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SURREALISMO EM BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO (1966):


DA FOTOGRAFIA AO CINEMA

Theo Tanus Salvadori


e-mail: theotsalva@gmail.com

RESUMO
O presente artigo tem o objetivo de apresentar uma leitura interpretativa do filme
Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, a partir de elementos surrealistas
manifestos em sua composição. Assim, evidenciaremos a ocorrência de acasos
objetivos a constituírem o maravilhoso na realidade de sua representação, por
meio da relação entre fotografia e cinematografia na obra. Desse modo, outros
aspectos se evidenciam e vêm a preencher o universo surreal a criar um sentido
comunicante entre partes e detalhes da película.

Palavras-chave: Blow-Up, Surrealismo, Fotografia; Cinematografia.

INTRODUÇÃO

Desde seu lançamento em 1966, o filme Blow-Up – Depois daquele


beijo, dirigido por Michelangelo Antonioni, se tornou um ícone do cinema cult.
Uma atmosfera poderosamente misteriosa em combinação a uma história que
conclama à indefinível revisão a fim de ser vivenciada e compreendida, atrai
muitos espectadores para uma experiência estética, teórica e epistemológica -
atributos esses muito além de uma representação narrativa. Nesse sentido, a
procura no interior do filme ultrapassa o encadeamento lógico e causal em prol
de se enveredar por diferentes abordagens que produzem sentidos diversos.

Por essa razão, as situações e encaminhamentos do filme nos chamam


à atenção pela presença de elementos surrealistas que fazem o enredo se
transformar nos detalhes, acasos e na interpretação de seu personagem
protagonista tanto quanto na do espectador. É justamente na reunião operada
por suas linguagens distintas e complementares que os fatos - acasos objetivos
das pulsões volitivas de Thomas - ganham forma e escrevem, desse modo, a
história. Assim, as fotografias colocadas em determinada ordem sugerem um
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acontecimento espantoso (maravilhoso) ao fotógrafo. Igualmente, a linguagem


que se sobrepõem à linguagem fotográfica no todo, ou seja, a cinematográfica,
atua em complemento e ruptura em relação àquela, provocando outras
perspectivas sobre o filme. Por isso, fotografia e cinema funcionam por meio do
protagonista a fazer, pelo relato que exibem, a construção de sentidos que
tenham a ver com sua própria busca pessoal, na qual se confundem, pela
hipotética fusão entre sonho/imaginação e realidade, as funções de demais
personagens, situações e encontros insólitos mostrados, desejos latentes que
se manifestam objetivamente enquanto acasos. Os quais terão sua revelação
exaltada pelas lentes das câmeras que acompanham endógena e
exogenamente a trama.

Tendo em vista tais características, expandiremos alguns dos pilares da


estética surrealista que nos são visíveis ao longo do filme, os quais são produtos
das associações e acontecimentos entremeados no enredo que se faz mostrar.

1. AS MANIFESTAÇÕES SURREAIS

Blow-Up – Depois daquele beijo (1966), de Michelangelo


Antonioni, é um mistério. E não apenas pelos aspectos que dizem respeito ao
suspense e às dúvidas que suscita sua narrativa, ou mesmo pelas reflexões
acerca do dispositivo cinematográfico e da participação espectadora na trama.
Mas também do ponto de vista ontológico e existencial da representação no que
envolve o protagonista Thomas e as situações por que passa ao longo da
história. Pois, a despeito da dúvida sobre a existência de um sentido linear,
direcionado, composto e concatenado que leva a uma finalidade do desfecho da
obra, percebemos que ela se desenvolve mais a partir de elementos, aparições,
situações intempestivas e ao acaso. Acaso este que não se reduz ao casuísmo
gratuito, mas que tem muito a ver com outras partes da película que reverberam
no subconsciente do protagonista (e do filme), ou seja, com o maravilhoso
surrealista. Daí serem acasos objetivos, uma vez que suas ideias e desejos
latentes se imprimem naquela realidade representada do personagem e vão
conduzi-lo do início ao fim da história do filme, tanto quanto a realizam
enredisticamente. Segundo Chénieux-Gendron: “o acaso pode ser chamado de
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objetivo visto que tudo se passa então como se a subjetividade (desejante) da


pessoa envolvida se projetasse num objeto.” (CHÉNIEUX-GENDRON, 1992,
p.92-93). Ou seja, exatamente a descrição teórica do que ocorre no percurso de
Thomas, em que suas suspeitas incarnam nos eventos pelos quais ele passa.

Partindo desses apontamentos, consideramos haver marcas evidentes


da estética surrealista na película, seja do ponto de vista diegético, seja do ponto
de vista construtivo de sua concepção artística.

Percebemos que a questão fundamental de Thomas, no enfado


existencialista que caracteriza sua vida glamourosa de fotógrafo da alta moda, é
a de entender quem de fato ele é – tal como Breton se questiona como
investigação primordial em Nadja. Pois o fotógrafo declara ter vontade de largar
a vida que leva na cidade de Londres. A arte verdadeira seria, portanto, o meio
de transformação de sua vida para aquilo que deseja ser de mais genuíno.

Para isso, trabalha com afinco em um projeto autoral de fotos realistas,


muito diferente da fotografia programada, que é controlada e feita para o
consumo, as quais Thomas fabrica profissionalmente. Nesse sentido, suas
aventuras fotográficas paralelas, fora do estúdio, pela capital inglesa, o levam a
experiências diversas que o empolgam de algum modo - oportunidades em que
tem um contato mais direto e autêntico consigo mesmo e seus desejos, estando
aberto ao mundo. São os momentos de sua flanerie, que o motivam a conhecer
mais da realidade urbana aproveitando da liberdade pelo obturador. Conforme
Dantas (2017): “A disponibilidade e a flanerie nos colocam à disposição do acaso
objetivo; ele, por sua vez, desvela a relação mágica entre a poesia e vida e,
portanto, nos permite ir ao encontro do maravilhoso.” (DANTAS, 2017, p.309).
Assim, o desejo autoral do fotógrafo protagonista em conjunto à sua disposição
passiva aos acontecimentos inusitados da vida real a serem registrados, dão-lhe
a ocasião de desvendar ou revelar o maravilhoso através de sua lente objetiva.

Nessa disposição, o personagem está sempre entre a distração e a


obrigação na sua perambulação a pé e automobilística por Londres dos anos
1960. Ele providencia afazeres referentes a negócios tanto quanto busca sacar
fotos nos ambientes que descobre ao acaso. E justamente em um destes, um
parque pouco frequentado (o qual se preservará tanto na memória de Thomas
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como na do filme), é que ele vai sacar as fotos que terão todo um conjunto de
consequências que farão o desenvolvimento do filme ocorrer. Um casal isolado
em um encontro romântico num dos campos do parque chama a atenção do
protagonista. Assim, ele os fotografa clandestinamente até ser descoberto pela
mulher do casal. Ela imediatamente vai atrás de Thomas e briga com ele pelo
material; mas ele se esquiva, dizendo que haveria um trabalho a ser feito antes
de entregar os negativos a ela. Porém mais tarde, anormal e excepcionalmente,
ela aparece na porta de seu estúdio (sabe-se lá como) para cobrar a entrega.
Após fazê-la entrar, e lá dentro ela tentar pegar sorrateiramente os negativos das
fotos, eles quase se relacionam amorosamente, mas em virtude de um acaso
objetivado a partir de uma cena anterior (da compra da hélice que nesse
momento era entregue na residência do fotógrafo), ela desiste e vai embora na
mesma pressa que chegou, deixando para Thomas um número de telefone falso.
A partir de então, começa a parte mais intrigante do filme: a revelação e a
ampliação das fotos.

Muito curioso sobre os motivos que tanto afligiam a mulher a respeito


daquele material, Thomas dá início à análise minuciosa de suas imagens. É aí
que começa a tecer seu relato sobre o ocorrido. As fotos são seu meio de
linguagem, sua impressão gráfica do mundo – em termos poéticos, funcionam
como a escrita para Thomas. Nas imagens, podemos inferir que se juntam
elementos dos próprios anseios íntimos do protagonista conforme os vimos no
filme: o desejo autoral e o desvendar de uma imagem como um detetive. Este
último motivo alude a seu encontro com o vizinho pintor de quadros abstratos,
Bill, o qual dissera para Thomas que os quadros que elabora só fazem sentido
para si depois de olhá-lo por anos. Como Bill já é um artista, aspiração maior do
fotógrafo comercial protagonista, deduzimos que a fala ficou marcada neste
como conteúdo latente, e veio a influenciar enquanto acaso objetivo na
apreciação fotográfica que ele empreende. Assim, tomam corpo na realidade do
fotógrafo e, por conseguinte, fazem parte do filme de modo real e objetivo. Mais
uma vez o surrealismo se torna presente na obra através dos impulsos afetivos
de Thomas. De acordo com Cláudio Willer:
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No microcosmo do biográfico, da experiência pessoal, as


mesmas circunstâncias, compulsões e aparentes delírios
acabaram por revelar-se representações da realidade, e não
meras expansões da subjetividade. Se nossa atenção fosse
menos seletiva e a percepção mais aberta, haveria mais a
relatar sobre essas relações de idéias, fatos e símbolos,
onde, nesse limite já sob o comando do demônio da analogia
de Mallarmé, tudo é signo de outra coisa, remetendo a outro
plano de realidade. O surrealismo chegou a essas
antecipações pelo fluir da vida passiva da inteligência,
conforme propunha Breton no primeiro Manifesto do
Surrealismo: nos momentos marcados pela disponibilidade, a
espera sem objetivo definido; na escrita automática, liberta de
controles, permitindo que signos se encadeassem e pessoas
e objetos encontrados em caminhadas erráticas se
articulassem de modo espontâneo. Abolida a
intencionalidade, a realidade acaba por revelar sentidos
insuspeitos. (WILLER, 2008, p. 43-44)

Pois assim as fotos sacadas são um gesto automático do protagonista


que segue seu instinto e sua intuição. Elas vêm a revelar (ou desvelar) algo que
ele estava buscando subconscientemente para registrar por meio da sua
máquina. Não meras reproduções de realidades hiper-estlizadas como no
mundo da moda. Mas sim um insólito e imprevisto fato cru que viesse a lhe
surpreender e consequentemente se converter em arte.

É justamente na revelação e ampliação das fotos do parque que ocorre


o encantamento autoral da realidade do protagonista. Algo que ele mesmo virá
a construir juntamente ao espectador enquanto testemunha. Essa descoberta
rompe a cadeia de seu tédio abastado de vida mercadológica. Ao que parece, a
câmera fotográfica flagrou algo não captado pela filmagem da história ampliando
aquela realidade inicialmente vista, indo além dela. Um crime prestes a ser
cometido, que em determinado momento Thomas achara haver evitado ao ter
sido flagrado no local, mas cujas imagens seguintes desfizeram tal ilusão – a
partir do que, ele visualiza algo bem mais aterrador: o ícone do cadáver do
homem do casal estirado na grama. Eis o maravilhoso mórbido de Thomas: sua
arte enquanto meio de alcançar o insólito, as fotografias perfeitas para sua
carreira autoral. Esse conteúdo o fez deslocar-se de seu tempo e espaço, bem
como o espectador e a própria narrativa do filme a partir do momento em que a
filmagem e um elemento cênico, a fotografia, entram em conflito.
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As fotos, em Blow-Up, são o meio e o espaço do maravilhoso, a


produção e o relato de uma vida surreal que corresponde ao desejo de
transposição da ordinariedade do personagem. É percepção mais que
percepção, onde atuam intuição, imaginação e memória. Procurando conhecer
mais da realidade não estilizada dos estúdios, depara-se com o surreal, o
encantamento (embora macabro) dela.

O maravilhoso é o magma flamejante pulsando no centro da


revolta, é a tensão extrema do ser no momento do encontro
do desejo inconsciente com a realidade exterior. Ele é «um
momento preciso, um instante perturbador onde o mundo nos
dá seu acordo» (MABILLE Apud DANTAS, 2017, p.69)

No caso do fotógrafo, as fotografias sacadas do casal no parque


configuram o maravilhoso em meio à revelação e à ampliação do material.
Momento em que se manifesta sutilmente a mesma volúpia investigativa
mencionada por Bill, o pintor, mas para a qual Thomas não tem a idêntica
paciência de anos daquele para compreender sua produção, pois se empenha
na resolução do mistério como quem se entrega e se maravilha com a
possibilidade oculta.

Entretanto, o mistério que não se resolve e permanece. O significado


real do que as imagens mostram precisam ser verificados in loco por Thomas
após sua abordagem hermenêutica desses retratos. Congeladas em signos
denotativos, o fotógrafo vai em busca do ser que corporifica o sentido das
imagens. Pelo relato fotográfico, o protagonista passa então a depender
daqueles signos, de modo a empreender uma busca por seus significados; logo,
a vida se espelha na arte. Mais uma vez, Cláudio Willer nos vem em auxílio no
que possa ser a interpretação do acaso objetivo – comentado da obra de Breton
– para justamente correlacionarmo-lo ao que ocorre em Blow-Up, isto é, a
intenção do fotógrafo em dar um significado àquilo que capturou por sua câmera,
cujos signos ele obteve de uma série sucessiva das imagens a sugerir um
acontecimento.
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Como interpretar o acaso objetivo, e as ideias e


acontecimentos que o acompanham? O mais produtivo,
evitando campos do conhecimento que não interessam
diretamente à literatura, é tomá-lo em seu valor simbólico.
Mais precisamente, como metáfora da poesia e da sua
relação com o mundo. Isso, dando atenção ao modo como se
inverte a relação entre signos e coisas, textos e
acontecimentos, na obra de Breton. E à universalidade
dessas aventuras intelectuais, buscando superar o abismo
entre palavras e coisas, símbolos e acontecimentos,
imaginação e realidade. (WILLER, 2008, p. 42)

Assim, o empenho fundamental de Thomas será dar corpo factual e


inquestionável ao maravilhoso dramático que pode descobrir e guardar enquanto
signo fotográfico. Notamos, ao longo do filme, que os eventos relativos às
imagens das fotografias do casal no parque circundam e guiam a vida do
fotógrafo revelando acasos objetivos. A começar pela aparição inesperada de
Jane (a mulher do parque) na porta do estúdio do protagonista, a mesma que,
no interior do ambiente, impressiona o fotógrafo como sendo uma modelo de
gestos e postura exemplares, diferentemente do ele que costumava ver entre as
modelos com as quais trabalhava, cujas poses eram forçadas e artificiais, pois
almejavam apenas a difusão pelo apelo de suas imagens. Ao contrário disso,
Thomas vê trejeitos artísticos em Jane, agregando na mulher e na ocasião um
desejo de aflorar sua autoria enquanto profissão. Daí fica a dúvida, que virá a se
aprofundar adiante, se Jane era real ou realização subconsciente do
personagem. Outro momento importante é quando Thomas vai tirar a prova da
existência do cadáver à noite, e de fato o encontra lá estirado como um boneco
plastificado, confirmando sua suspeita, mas na qual apenas ele se fia. Após isso,
a cena do show de rock psicodélico num clube noturno no qual adentra pensando
ter visto a imagem evanescente de Jane entre pessoas na calçada, conforme o
testemunhamos enquanto espectadores. Antes de todas essas situações, um
fato ligeiro mas decisivo no filme é o encontro do fotógrafo com o pintor Bill, do
qual ele cobiçava a vida artística tanto quanto a companheira. Nessa
oportunidade, como já vimos, Bill confessa a Thomas, olhando para um de seus
quadros cubistas, que faz seis ou sete anos que vinha tentando entender o que
pintou até que conseguisse discernir a figuração de pernas delineadas. Tratava-
se, portanto, de uma investigação detetivesca. Ora, a mesma situação ocorre
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com o fotógrafo a partir do momento em que ele pretende investigar o conteúdo


das fotos do parque pelas imagens e, assim, começa a inferir um crime. Ou seja,
a fala de Bill permaneceu na memória recente do protagonista, e, juntando ela à
aspiração autoral de Thomas, seu enfado existencial combinado ao menosprezo
que tinha por sua profissão comercial, além do encontro inusitado com Jane,
observamos a colagem de todo um fato subjacente tornando-se objetivo,
seccionado em forma de acasos. Isto é, Thomas imprime em sua vida situações
misteriosas, polissêmicas, inusitadas a culminar em um mistério que tem a ver,
em última instância, ao que nos parece, com sua pessoalidade: seus anseios,
vontades e aspirações. Nesses momentos, notamos crescentemente uma
ruptura da oposição entre realidade e sonho a partir da consumação desses
fatos, os quais em nenhum momento são dados - seja a Thomas ou ao
espectador - como sendo especificamente realidade ou devaneio, pois estruturas
de vigília ou oníricas não se distinguem separadamente no filme, ou seja,
manifestam-se unificados. O que nos leva a inferir que separá-las é o que menos
importa, pois tudo tem a mesma validade ontológica no filme. De acordo com
Álvaro Cardoso Gomes:

O acaso é o responsável pela fusão de coisas díspares,


contraditórias entre si, que o pensamento força por separar e
eliminar e que o pensamento “não-dirigido” tenta unificar, pois
não só faz parte essencial da existência, como também de
certa maneira explica a existência. O acaso ou “acaso
objetivo”, tal como o denominavam os surrealistas, é assim
definido por Michel Carrouges: “será o conjunto de
premonições, de reencontros insólitos e de coincidências
estupefacientes, que manifestam de tempos a tempos na vida
humana. Estes fenômenos aparecem como sinais de uma
vida maravilhosa que viria a revelar-se por intermitências, no
decurso da vida cotidiana.” (GOMES, 1994, p.26)

Assim, a busca existencial de Thomas é pautada pelos acasos objetivos


mencionados, em sua trajetória particular e investigativa acerca de seu conflito
com o que considera ser a realidade, ou seja, o crime revelado nas fotos. Neste
antagonismo, em que opõe a não ocorrência desse fato ao relato fotográfico que
o revela, o fotógrafo começa a mergulhar mais e mais a fundo na ausência de
oposição entre realidade e imaginação/sonho, ou melhor, há uma mescla entre
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ambos cuja compactação feita no desenrolar da filmagem, indo além do


significante fotográfico, demonstra um surrealismo a comunicar as situações
vistas por meio de seus detalhes. Surrealismo que se sugere, a princípio,
fotograficamente, mas será de fato revelado cinematograficamente.

Os próprios clowns mímicos, que aparecem no início e no final da


película, fazem a perfeita demonstração da ausência de contradição entre
realidade e imaginação/sonho. E mais, restituem à atribuição de sentido o papel
de aceitar ou não o maravilhoso - o que tem a ver exata e inteiramente com
indivíduo em questão. Pois, quando jogam a partida mímica de tênis, Thomas
acompanha com os olhos e aceita a pantomima. Depois, convocado a participar
para devolver a bola que saiu do campo de jogo, ele o faz participando daquela
imaginação coletiva, e assim passa a ouvir os sons “(sur)reais” das raquetadas.
Conforme Marta Dantas: “mais do que uma poética, o Surrealismo é uma
patética, uma modalidade de viver que adota a imaginação como forma de
conhecimento e que atribui ao sonho e a vigília o mesmo estatuto” (DANTAS,
2017, p. 284)

Olhando fixamente para aquela apresentação mímica, pouco antes de a


história terminar, ele nos mostra ter apreendido algo único com aquela
experiência, e que aludia a todas as situações pelas quais havia passado.
Percebeu, ao nosso ver, a existência do maravilhoso por meio de si, do seu
balanço rememorativo e existencial dos fatos, posto que passa a relacionar
aquela invisibilidade da mímica de modo metafórico, talvez poético, aos eventos
por que passou; o que só tem a mais absoluta validade no seu desejo transferido
como sujeito para a objetividade mundana.

O maravilhoso se manifesta como raios que abrem enormes


crateras no tecido liso, da realidade e fazem jorrar uma ordem
até então oculta; é um “apelo ao surreal, uma incitação a ver
o surreal no real, em outras palavras, a ter um olhar ativo
sobre o mundo” (SANGOUARD Apud DANTAS, 2017, p.310).

Consequentemente, ele não apreende apenas as ligações dos eventos


pela linguagem alusiva da peça, como num teatro hamletiano, mas, ao fazê-lo,
também avança no seu próprio autoconhecimento, na busca original que, entre
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outras coisas, parece haver estimulado sua carreira autoral. Portanto, o


maravilhoso é real e vice-versa. Segundo Dantas (2008):

a revelação de quem somos exige que a linguagem e a


imaginação estejam submissas ao desejo, na perspectiva de
que este se manifeste por meio do outro, que vem nos dizer
quem somos por meio de uma linguagem que não é a
habitual, mas a linguagem a enigmática, que revela a
vocação mesma da linguagem, que é ser oracular. (DANTAS,
2008, p.101)

Ao longo do filme, Thomas buscou milimetricamente o significado das


coisas em confronto ao significante provindo das fotos. Mas, ao final, como bem
o expõe a cena do jogo de tênis, ele se rende a algo mais expansivo, que é o
sentido, uma vez que este explica os signos do mundo. É o momento da auto
revelação, do seu olhar fixo ao devolver a bola à quadra, quando daquela partida
apreende algo singular que diz respeito apenas a si (e ao espectador por tabela),
um resumo de toda sua experiência. Ali está a morada do mistério, onde não
existe a verdade imutável, em que é o sujeito que atribui sentido e não se prende
mais obcecado pelo significado; o que tem a ver com sua busca primordial a
respeito de quem ele é: cujos sinais lhe são dados ao longo de suas
perambulações e encontros inusitados, os quais, uma vez colados em sentido
constelar, sem linearidade e subordinação tal como num mosaico, confirmam a
surrealidade poética do que é exibido pela obra ao passo que dão a prerrogativa
ao protaonista (e ao espectador) de decidir acerca das identidades em questão.

O surreal está registrado na cinematografia - instância além da fotografia


na trama - pois as fotos de Thomas foram insuficientes no sentido finalístico do
encadeamento dos fatos que conduzem ao desfecho, contudo isso não escapou
da filmagem enquanto relato daquelas questões e seus desdobramentos
apresentados, sem nenhuma finalidade resolutiva. Portanto, a cinematografia
define o maravilhoso surreal em Blow-Up transpondo os limites fotográficos, na
qualidade de linguagem a relatar os mistérios do filme.
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A negação da transcendência coloca a realidade e a


irrealidade no mesmo nível e, uma vez que tudo imana do
homem, a própria transcendência é profanada. Ele desvela o
maravilhoso moderno e, ao fazê-lo, traz à tona aspectos da
noção do maravilhoso no Surrealismo: ele se manifesta como
algo que se opõe à lógica ou que perturba a causalidade
lógica como o acaso, o encontro fortuito de realidades
distantes (DANTAS, 2017, p. 296)

Por isso, o maravilhoso se manifesta tanto na revelação subjetiva e


epifânica que Thomas nos parece ter ao encarar o jogo de tênis como real e
material, quanto na própria filmagem a apresentar a sucessão sem efeito de
causalidade lógica dos eventos, mas sim como um quadro de relações que se
estabelecem e exigem daqueles que assistem a atribuição de sentido à obra de
modo participativo. Ou seja, se para o fotógrafo é o impacto do olhar assentindo
o imaginário como a peça que faltava ao seu entendimento individual daquela
realidade além dos significados esperados das situações que passou, para o
espectador o filme em si é a linguagem da qual se vale como tempo e espaço da
abertura ao surreal, em que o apreciador pode conceber um sentido poético que
interliga os detalhes apresentados como interpretações da manifestação de
acasos objetivos.

Para além disso, dois aspectos muito relevantes das características que
também fazem do filme uma obra com requintes surrealistas é a outridade vivida
por Thomas em Bill e Jane, e o mistério e a devoção à figura da mulher, mais
uma em vez Jane. Pois Bill é aquele que Thomas almejar ser: um artista que
está sempre em processo de autodescoberta. E, como entendemos, foram as
palavras e atitudes artísticas de Bill que reverberaram na trama e nas ações
fotográficas de Thomas. Por sua vez, Jane, a mulher misteriosa do parque, é
uma personagem sem indício conclusivo de realidade factual e que fascina
Thomas, seja pelo suspense que traz consigo, seja pela postura de modelo ideal.
Nesse sentido, o fotógrafo os faz de meio subconsciente para se alcançar algo
em si mesmo, sua identidade mais verdadeira, a qual, não por acaso, se perfaz
na atitude artística e seu inerente modo de vida – são eles os outros que pautam
a trajetória de Thomas, suas heterogeneidades. Octavio Paz desenvolve a
função e o sentido da outridade no ser individual:
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Experiência feita do tecido de nossos atos diários, a outridade


é antes de mais nada a percepção de que somos outros sem
deixarmos de ser o que somos, e que, sem deixarmos de
estar onde estamos nosso verdadeiro ser está em outra parte.
Somos outra parte. Em outra parte quer dizer: aqui, agora
mesmo enquanto faço isto ou aquilo. E também: estou só e
estou contigo, num não sei onde que é sempre aqui. Contigo
e aqui: quem és tu, quem sou eu, onde estamos quando
estamos aqui? (PAZ, 1982, p. 325)

Exatamente como descreve Paz (1982) é o reflexo do comportamento


do protagonista. Lançado ao mundo ao ritmo de seus desejos e aspirações, ele
se converte em atividade através de outros, os quais evocam sua unidade
ontológica mais autêntica pelas associações que motivam a presença de seu
ser. Distantes entre si e dos afazeres rotineiros de Thomas, Bill e Jane dão
sentido às buscas pessoais e interiores do fotógrafo, pois se relacionam, por
meio de acasos objetivos, à atividade fotográfica que executa: autoral ou
comercial, Thomas os enxerga como o ideal de ambas as atividades, o que se
faz sentir e capturar, como espectador, no desenrolar do filme. Mais uma vez,
segundo Octavio Paz:

A inspiração é uma manifestação da "outridade'' constitutiva


do homem. Não está dentro, em nosso interior, nem atrás,
como algo que surgisse subitamente do limo do passado;
está, por assim dizer, adiante: é algo (ou melhor: alguém) que
nos convida a sermos nós mesmos. E esse alguém é nosso
próprio ser. (PAZ, 1982, p.218)

Em razão disso, a inspiração do protagonista é estimulada através dos


personagens surgidos ao acaso. O pintor, pela fundamentação teleológica da
atividade artística, e Jane, com seu papel misterioso de personalidade
fotografada em duas situações distintas: ao natural clandestinamente e no
estúdio (que não se realiza, mas impressiona o fotógrafo). Dentro do que
representam para Thomas, fazem-se de meio para que ele seja aquilo que de
mais genuíno deseja ser. São as outridades a inspirar a fotografia do artista.
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Em outro aspecto, o mistério que Jane evoca faz do fotógrafo um devoto.


A busca obcecada por ela em meio à noite londrina a torna a esfinge do
protagonista, a musa inspiradora e transformadora do cotidiano e sentimentos
do personagem, a mulher que guarda a fronteira final para ele do que é ou não
real, se houve ou não o crime, até o momento em que descobre, com os clowns,
não existir essa fronteira. Portanto, para ele, Jane é um mistério que remove sua
vida da ordinariedade, a questionar sua auto percepção profissional e autoral do
mundo, jogando-lhe em uma mais-além realidade. Como o diz Eliane Robert de
Moraes:

A esfinge surreal evoca amiúde a mulher amada, em cujos


avatares o poeta reconhece o único ser que resume os
mistérios do mundo: “representando todo o real, a mulher é
sucessivamente a natureza, a mãe consoladora, a musa ou a
mediadora; ela pode transformar-se também na rebelde, na
perturbadora” [...]. Mas a esfinge também representa
frequentemente a portadora da morte. (MORAES, 20020,
p.119-120)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, Blow-Up é um filme complexo, pleno de detalhes, lacunar,


em que existe uma ligação secreta ou subliminar entre seus elementos cênicos
e técnicos, nada óbvios, a criar os acontecimentos mostrados. Dentre os muitos
modos que possam abordar a interpretação da película, verificamos na
perspectiva surrealista um desdobramento bastante plausível de acordo com os
aspectos do acaso objetivo, do maravilhoso, da fusão entre imaginação/sonho e
realidade, da linguagem fotográfica e cinematográfica a criar o sentido poético
que permeia os demais aspectos, da outridade do protagonista e a questão da
devoção e importância da mulher, a figura feminina na trama. E isso sem que se
possa afirmar sobre a intenção deliberada de Michelangelo Antonioni em fazer
de Blow-Up um filme surrealista, algo não manifestado por ele; contudo, dada a
sabida abertura e participação subjetiva ensejadas pela obra, é inteiramente
possível de se observar e de se interpretá-la por essa via. Pois Thomas é um
personagem que faz acontecer tudo na película, desde sua busca mais pessoal,
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até seus desejos incarnados que o fundem a um real mais além na investigação
de si através de/do(s) outro(s).

Ademais, quando as imagens fotográficas apontam para um evento não


captado pela cinematografia, caberá a esta desenvolver o além de sua realidade
não filmada diretamente. Se, no primeiro instante, são as fotos que nos
apresentam o maravilhoso redundado dos acasos objetivos de Thomas, no
segundo momento, estabelecidos os limites imagéticos daquelas, é a filmagem
da obra que relatará, por fim, a continuidade desse evento. Por isso, no que cabe
ao conceito exibido em filme, em que a forma toca o conteúdo, há um
aprofundamento cada vez mais surreal que expande os limites da sua
representação, ou seja, o cinema se sobrepondo ao imaginário fotográfico para
ratificá-lo de um modo mais complexo e dinâmico, onde o poder do relato que
expressa o maravilhoso dos acasos objetivos só pode ser alcançado plenamente
no sentido cinematográfico.

REFERÊNCIAS

Blow up. Direção: Michelangelo Antonioni. Produção: Carlo Ponti. Intérpretes:


David Hemmings, Vanessa Redgrave, Sarah Miles, John Castle e outros. Itália;
Grã-Bretanha: Warner, 1966. 1 filme (117 min.)
BRETON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Apresentação Eliane Robert
Morares. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline. O surrealismo. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
________. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.
DANTAS, Marta. Breton, um errante sonhador. In: SANTOS, Volnei E. dos (org.).
Sopros do silêncio. Londrina: Eduel, 2008, p.71-105.

________. O castelo de André Breton: o fantástico e o maravilhoso no


Surrealismo. Revista Abusões, vol. 05 n.0 5 ano 3, 2017, p. 281-313.
GOMES, Álvaro Cardoso. A estética surrealista: textos doutrinários
comentados. São Paulo: Atlas, 1994.
MORAES, Eliane Robert. A mesa de dissecação. In: O corpo impossível. São
Paulo: Iluminuras, 2002.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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WILLER, Claudio. Magia, Poesia e Realidade: o acaso objetivo em André Breton.


In: GUINSBURG, J.; LEINER, S. (orgs.). O Surrealismo. São Paulo:
Perspectiva, 2008, p. 323-350.
WILLER, Claudio. Escrita automática: uma falsa questão?. In: GUINSBURG, J.;
LEINER, S. (orgs.). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 709-722.

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