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‘THE OFFICE’ E A APROPRIAÇÃO DO

MOCKUMENTARY PELA COMÉDIA


MAGDALENA MAIA VIANNA
A palavra “mockumentary” (aportuguesada para mocumentário) vem da junção do
termo “mock” — zombar, em inglês — e “documentary”. A ideia do mocumentário é se
apropriar de elementos estéticos visuais e narrativos do documentário, criando uma
ficção que parece real. Dessa forma, a comédia se dá através da sátira, da auto ironia e
da metalinguagem. Nesse contexto, faz sentido que The Office (2005) tenha se tornado
um fenômeno dentro da minha geração, que cresceu na internet, mais especificamente
dentro da cultura de memes, que perpassa exatamente por essas características de
humor.

Quando comecei a pesquisar sobre o surgimento e as raízes do mocumentário, que eu


acreditava serem ligadas ao gênero de terror/horror – no estilo “found footage” – com
nomes como Holocausto Canibal (1980), A Bruxa de Blair (1999) e até mesmo Atividade
Paranormal (2007), descobri que já em 1983 o subgênero foi subvertido para a comédia,
com os filmes Zelig, de Woody Allen e This Is Spinal Tap, de Rob Reiner. Woody Allen já
experimentava com elementos do mocumentário em 1967, em seu filme Um Assaltante
Bem Trapalhão, mas com Zelig ele se apropria do subgênero completamente. O filme é
a história de um “homem-camaleão”, que sofre de uma doença que faz com que ele se
pareça com as pessoas ao seu redor. A narrativa é apresentada como um estudo
científico sobre o caso.

Zelig e uma breve história do Mockumentary

Nesse vídeo produzido pelo Cinemascope, assim como em algumas outras fontes, a
origem do mocumentário é atribuída a transmissão de “A Guerra dos Mundos“, de
Orson Welles, narrando uma invasão alienígena no rádio, em 1938. Como era habitual
se ouvir notícias no rádio nessa época, a transmissão causou desespero em muitos
que acreditavam se tratar de um fato. Em um paralelo similar, em 1957, no 1º de Abril, a
BBC produziu uma matéria falsa sobre como italianos cultivavam “árvores de
espaguete”, o que pode ser considerado também, um marco na experimentação da
sátira através da linguagem científica, ou documental.
BBC: Spaghetti-Harvest in Ticino

Mas assim como na famosa transmissão de Orson Welles, no caso do filme This Is
Final Tap, a receptividade não foi tão boa quanto em Zelig. O filme conta a história de
uma banda que fez muito sucesso no passado, Spinal Tap, sendo acompanhada por
uma equipe de documentaristas em uma turnê final, no momento de derrocada da
carreira do grupo. A grande diferença entre Zelig e This Is Final Tap, é que enquanto o
primeiro retrata um caso absurdo, e provavelmente mais identificável como irreal, o
segundo é menos surreal e mais satírico, apresentando personagens que não existem,
mas poderiam. Quando foi lançada, a obra foi criticada pelo público que não entendeu
se tratar de uma sátira e que a banda era uma invenção de Rob Reiner, como ele
mesmo conta em entrevista para o Emmy TV Legends.

Rob Reiner discusses “This Is Spinal Tap” – www.emmytvlegends.org

Zelig e This Is Spinal Tap provavelmente foram umas das primeiras experiências de
mocumentário na comédia e abriram caminhos em questão de linguagem, mas a
maneira como The Office entendeu e utilizou o formato na televisão certamente
revolucionou a forma como a comédia é feita em grandes estúdios de televisão
hollywoodianos hoje. The Office (uma série originalmente inglesa) teve sua versão
americana encabeçada por Greg Daniels que, se afastando um pouco da versão
original, inovou o universo das sitcons.

Os principais elementos do mocumentário são a sua fotografia e a relação que se cria


entre os personagens e a câmera — a quebra da quarta parede com o público e com a
equipe de filmagem, de uma maneira geral é muito frequente. A câmera dá os tons da
narrativa e acaba se tornando um personagem.
Karen (Rashida Jones) - The Office

Os movimentos, como em um documentário, capturam as emoções dos personagens e


a verdade cênica das situações. Em um episódio da quinta temporada, quando estão
namorando, Jan (Melora Hardin) liga para Michael (Steve Carell), e antes de começar a
falar pergunta se está sendo filmada, Michael responde que não, sorrindo para a
câmera. Jan desliga o telefone. Nessa cena, a piada não está só em Michael, mas no
desconforto de Jan com a presença das câmeras, explicitando a vergonha que ela
sente daquela relação.

Em um vídeo-ensaio, o youtuber Jesse Tribble fala sobre a fotografia como elemento


principal no humor de The Office, destrinchando a importância dos movimentos para as
propostas cômicas.

Filming The Office

Além disso, a metalinguagem é um artifício também muito presente, tanto em The


Office quanto no subgênero como um todo. Nesse sentido, é inerente ao mocumentário,
dado que o formato propõe justamente a falsa realização de uma obra documental. Em
um episódio da terceira temporada, Michael inclusive cita o diretor documentarista
Michael Moore em uma piada, se comparando a ele. Ademais, o fazer cinema é
indiretamente discutido ao satirizar a forma como as pessoas se portam ao serem
filmadas e também quando não percebem que estão.

Por fim, também é importante citar as talking heads, que são os quadros de entrevistas
— elemento clássico do documentário — e que especificamente no caso do The Office
tem uma carga cômica enorme, com os personagens e seus pontos de vistas
singulares sobre as cenas ocorridas na trama. Inclusive uma das evidências do impacto
do seriado na cultura pop e juventude como um todo é a quantidade absurda de
screenshots de talking heads de The Office que circulam como forma de meme na
internet.

Creed (Creed Bratton) - The Office

O que pode se observar hoje, é que devido ao sucesso desse formato de comédia,
muitas produções bebem na fonte do mocumentário, sem assumir todos os seus
aspectos, e utilizando dos elementos como ferramentas de humor. Em Modern Family,
as talking heads e alguns movimentos de câmera são parte importante da narrativa,
mas não quebram tanto a quarta parede ou reconhecem a câmera como personagem.

Alex Durphy - Modern Family

Em Brooklyn Nine Nine, novamente os movimentos da câmera se fazem presentes de


forma a intensificar as emoções dos personagens, mas a série em si tem um formato
clássico de sitcom. Até mesmo em Fleabag, é possível identificar a influência do
subgênero quando a proposta de humor se dá quase exclusivamente através da relação
entre a protagonista e a câmera, ou a protagonista e o público. A série se baseia em
quebras de quarta parede para entendermos como a personagem se sente enquanto
vive as situações de seu dia-a-dia.
Fleabag (Phoebe Waller-Bridge) e o Padre (Andrew Scott) - Fleabag

A utilização do mocumentário se tornou uma estética tão presente, que até mesmo
para a animação ela se expandiu. Na nova animação da Netflix, Midnight Gospel, o
protagonista viaja por diferentes universos gravando um programa de entrevistas com
criaturas de diversos planetas. Os criadores tiveram a delicadeza de incluir no desenho
câmeras em drones que seguem os personagens pelas suas aventuras, reafirmando a
metalinguagem proposta.

Midnight Gospel ~ Fish Magic (Cat Captain, We Salute You)

Mas não foi apenas em The Office que o mocumentário apareceu como gênero, ou
subgênero, principal na televisão. A série Parks and Recreation (2009) é outro perfeito
exemplo de uma comédia que abraçou completamente o estilo com todos os seus
elementos. O seriado se passa na sede de um órgão governamental que faz a
administração de parques públicos, e assim como em The Office, os personagens, em
especial os protagonistas de ambas as tramas, tem um tom absurdo que abre mais
espaço para a sátira e a auto ironia, quase em um “realismo brutal”.
Leslie Knoppe (Amy Poehler) - Parks and Recreation

Esse ano, a Netflix lançou um mocumentário chamado #BlackAF (Black As Fuck, que é
uma gíria que de maneira literal quer dizer “bem preto” ou “preto pra c*ralho”), onde a
filha mais velha (Iman Benson) de uma família com seis irmãos resolve fazer um
documentário sobre a própria família para usar de vídeo de aplicação para
universidade. É uma família rica, então o pai (Kenya Barris) disponibiliza equipamento
de ponta e uma equipe de audiovisual para a filha, o que torna a série um
“documentário” de alta produção, e até mesmo hiper realista. Nesse sentido, beira a
estética do reality show. #BlackAF tem uma abordagem menos cômica que The Office
por também falar sobre outros assuntos – disfunções nas relações familiares, racismo
estrutural e a relação com dinheiro de uma família negra rica – ainda que se trate de
fato de uma comédia, com diversas quebras cômicas, agregando todos os pontos
fundamentais do mocumentário.

Rashida Jones interpreta Joya Barris, a mãe, em #BlackAF, onde finalmente a atriz teve
seu merecido protagonismo. Rashida tem um histórico considerável na produção
mocumentários na comédia televisiva, tendo participado dos mais importantes
programas aqui citados. A atriz foi Karen Filippelli em The Office, tendo participado de
cerca de duas das nove temporadas. Em Parks and Recreation, Rashida foi Ann Perkins,
pelas sete temporadas da série. Tornando-se assim, uma importante referência nesse
formato de comédia.

Outros títulos de sucesso que seguem o estilo estético proposto pelo mocumentário
são os seriados Trailer Park Boys (2001) e American Vandal (2017) e os filmes 7 Days in
Hell (2015) e Popstar: Never Stop Never Stopping (2016), ambos protagonizados por
Andy Samberg.

Popstar: Never Stop Never Stopping (2016)

De uma maneira geral, é possível afirmar que a linguagem do mocumentário


estabeleceu algumas tendências dentro da comicidade e hoje é um formato muito mais
aceito tanto pelo público, que se identifica com o humor proposto, como pelas próprias
grandes produtoras, que entendem essa forma de narrativa como uma possibilidade a
ser explorada. Diferentemente de outras obras que, fossem comédias ou de qualquer
outro gênero que se utilizasse do formato, no passado não foram tão bem recebidas,
The Office foi um marco para a ascensão desse subgênero no audiovisual e se tornou
um fenômeno na cultura pop.

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