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O Piloto Perfeito de Twin Peaks

04/09/2020
Eu sempre quis falar sobre Twin Peaks. Essa é uma daquelas séries que vão muito além
de um simples show porque entrega toda uma experiência sensorial no lugar de apenas
uma história. Pareceu confuso? Melhor se acostumar, porque com a obra-máxima de
David Lynch e de Mark Frost, muita coisa fica a cargo do seu subjetivo imaginário.
No entanto, com o intuito de desmitificar um pouco da aura que a série tem de
complicada ou confusa, decidi escrever esse especial para resenhar todas as três
temporadas e o filme. E como vocês podem ver, o primeiro texto é sobre o Piloto de
Twin Peaks, conhecido também como Northwest Passage.
Preparado para embarcar nessa viagem?
A História Antes de Twin Peaks
Antes de entrarmos na história de Twin Peaks, vamos falar um pouco sobre a produção
da série. Para os que estão chegando aqui de paraquedas e não imaginam nem sobre o
que ela se trata, eu preciso dizer que Twin Peaks foi a responsável por termos séries
como Arquivo X, Lost, Buffy e até mesmo Watchmen ano passado. Todos esses shows
só existiram graças ao passo inicial que TP deu na década de noventa, e entender o
porquê de a série ser tão revolucionária é uma parte importantíssima para compreendê-
la por completo.
Em 1989, a divisão entre cinema e televisão era bem clara. O primeiro era o lar de
grandes obras artísticas, enquanto a segunda transmitia programas sem um conteúdo tão
refinado, cheio de shows com episódios tão parecidos uns com os outros que não
importava passá-los fora de ordem. Período esse conhecido como a era de ouro dos
sitcoms e procedurais. No entanto, havia um canal que estava querendo se diferenciar e
por causa disso, começou a procurar por obras que fugissem daquele padrão, dessa
maneira a ABC chegou até David Lynch.
Conhecido por filmes como Eraserhead e Veludo Azul, o diretor de cinema fugia
bastante da narrativa comum que Hollywood produzia. Lynch conseguia ter um apelo
visual que tornava suas histórias hipnotizantes na medida que elas iam se
desenvolvendo, atraindo o público com a ajuda do seu texto carismático e surrealista.
Eu pessoalmente acho que os filmes dele exigem uma experiência muito própria que
nem todo mundo está disposto a ter, mas dizem que Kubrick era apaixonado por
Eraserhead, então vocês tiram por aí o tanto de aclamação que ele tinha por parte da
crítica nos anos 80.
Convencido a fazer algo na TV, ele se juntou com o roteirista Mark Frost para escrever
uma adaptação de “Goddess: The Secret Lives of Marilyn Monroe”, um projeto que
nunca saiu do papel. Mas, conforme a dupla ia progredindo, eles chegaram a uma ideia
muito abstrata, que seria sobre uma cidade muito especial em que um assassinato
mudaria tudo e traria para a superfície os segredos de seus habitantes. Esse foi o
embrião do que se tornaria Twin Peaks.
Após a criação da personagem Laura Palmer, os outros personagens foram sendo
criados e escritos, e a cidadezinha foi se fazendo por conta própria enquanto Lynch e
Frost descascavam sua história de fora para dentro, como camadas de uma cebola.
David Lynch e Mark Frost
Vale salientar que enquanto Frost tem uma escrita mais pé no chão, Lynch é alguém que
se deixa levar pelo momento, sempre improvisando e adicionando novos elementos
conforme ele acha necessário. Dessa mistura, nasceu o piloto de Twin Peaks que fora
gravado na pacata cidade de Snoqualmie.
Tendo sido aprovado, o piloto foi feito de uma maneira bem específica. Sua gravação
ocorreu em locação, o que elevou um pouco os custos, mas que rendeu a ele um
ambiente extremamente único e hipnótico. Twin Peaks era uma cidadezinha esquisita
com cada detalhe de sua produção sendo feito com muito cuidado. O resultado foi um
piloto de 93 minutos, uma duração quase de filme, que estreou nos Estados Unidos
quebrando recordes de audiência. Caso o episódio inaugural fosse um fracasso, um final
internacional tinha sido gravado para fechar a história, no entanto o que aconteceu é que
Twin Peaks conquistou o público e foi aprovado para uma temporada de mais 7
episódios.
Logo, todos os estadunidenses só pensavam em uma coisa…
Quem Matou Laura Palmer?
Sendo um dos maiores fenômenos televisivos dos anos 90, Twin Peaks revolucionou a
televisão por romper as barreiras do cinema e TV. Claro que Decálogo (Dekalog)
estreou antes em Outubro de 1989, e foi o pioneiro em trazer a narrativa artística para a
televisão, no entanto foi TP que realmente popularizou a ideia e mostrou que havia
como fazer arte na televisão de uma maneira comercial e de fácil acesso ao grande
público.
Mesmo tendo uma aura surrealista, o piloto de Twin Peaks tem os dois pés no chão. De
pouco em pouco, passamos as uma hora e meia conhecendo cada personagem daquele
intricado quebra-cabeça humana, aprendendo sobre as relações de cada um e
descobrindo como os núcleos são separados. Enquanto algumas histórias funcionam
como se fosse uma espécie de telenovela, como o relacionamento de Shelly e Bobby,
outros são focados exclusivamente na investigação policial e terror, como o de Cooper e
a morte de Laura Palmer. Mas, sobra espaço até mesmo pra comédia com o casal Lucy e
Andy, mostrando que Twin Peaks é uma grande mistura de gêneros, algo inédito para
aquela época.

Em 1990, cada show tinha sua categoria bem definida. Ou era 100% comédia ou 100%
drama, mas TP negou essa classificação para criar sua história de maneira bem
particular. Uma das táticas para inovar a narrativa foi criar um mistério a longo prazo,
estratégia que shows como Lost e Arquivo X usaram a rodo em anos posteriores. Isso
fidelizou o público e o obrigou a voltar na semana seguinte para obter mais respostas.
Era uma estratégia tão boa que Lynch queria manter o assassino de Laura para sempre
em segredo, nunca revelando-o, pois, dizia que o mistério que era a alma da série.
Pensamento esse que a segunda temporada comprovou com um gosto bem amargo.
No entanto, não vamos colocar as carroças na frente dos bois. Vamos falar sobre o dia
24 de Fevereiro de 1989. Também conhecido como o dia que Laura Palmer foi
encontrada morta…
Enrolada em Plástico
A primeira cena de Twin Peaks é simplesmente icônica. Pete Martell se prepara para
pescar quando encontra um corpo perto do lago. Ao ligar para a polícia ele diz a frase
“Ela está morta… enrolada em plástico” e pouco tempo depois conhecemos a
personagem principal dessa saga, Laura Palmer, a rainha do baile encontrada morta em
circunstâncias misteriosas.
Um dos aspectos que eu mais gosto nesse piloto é a forma como ele constrói as relações
e o universo de Twin Peaks. Em nenhum momento parece que estamos vendo uma
história de fato, mas sim que estamos acompanhando um recorte muito específico
daquela cidade e de seus habitantes. Por isso, Lynch dedica todo os primeiros 40-50
minutos do seu piloto para mostrar como cada um deles reage a notícia da morte de
Laura.

Os primeiros que acompanhamos são Leland e Sarah, os pais da garota que entram em
desespero quando descobrem que sua filha foi encontrada morta. Logo após a história
chega na escola, e quando Donna, a melhor amiga de Laura, percebe que ela faltou à
aula saca na mesma hora que algo de ruim aconteceu com sua amiga. Escutamos uma
menina passar correndo e gritando, e enquanto Donna chora de forma sensível, a música
tema composta por Angelo Badalamenti ecoa ao fundo. O cavalo da morte chegou
aquela cidadezinha pacata, e as consequências não serão poucas.
Com um corpo em mãos a polícia começa a investigar, chegando ao namorado de
Laura, Bobby. O episódio não perde tempo em mostrá-lo como um bad boy típico de
histórias adolescentes e vemos que ele não amava tanto assim sua namorada, já que se
arriscou a ter um caso com Shelly Johnson, esposa de Leo, um caminhoneiro criminoso.
Bobby é levado como suspeito e a história parece ter acabado por aí, mas quando uma
menina em estado catatônico é encontrada, vemos que ela foi a sobrevivente do
assassino de Laura. Ronnette Pulaski é a ferramenta pelo qual o roteiro se utiliza para
introduzir Dale Cooper, o agente do FBI que irá ajudar a polícia da cidade a resolver o
caso de Laura.
Extremamente simpático e falante, Cooper é um dos melhores personagens já escritos
por Lynch e Frost, justamente por funcionar como um respiro em uma cidade cheia de
mistérios, traições e coisas do tipo. Enquanto vamos nos aprofundando nessa parte ruim,
Cooper é o oposto que nos mantém interessados, e aqui eu tiro meu chapéu ao ator Kyle
MacLachlan por ter criado um mocinho nesses moldes que não é chato de se assistir.

Funcionando como nossos olhos e ouvidos, Cooper vai descobrindo que Laura era
conectada com várias pessoas na cidade. De professora de Inglês até babá de um
menino com deficiências cognitivas, Laura se revela como uma personagem
extremamente complexa que também traía seu namorado com um motoqueiro chamado
James Hurley. É ele e Donna que se unem para tentar aguentar o peso da morte
repentina da menina, descobrindo estarem apaixonados um pelo outro no processo.
Então só nisso aí tivemos triângulos amorosos, um assassinato macabro e personagens
carismáticos. Tudo bem pé no chão se não fosse pelo final, em que a mãe de Laura,
Sarah Palmer, tem uma visão e grita de forma assustadora enquanto uma figura humana
se revela no espelho. James e Donna são pegos pela polícia quando tentam enterrar uma
colar de Laura, e então o episódio se encerra com uma mão enluvada pegando o colar
enterrado.
Tudo isso pode parecer complexo, mas a pergunta central é “Quem matou Laura
Palmer?” e nisso o roteiro se supera por criar diversos personagens que podem ser
suspeitos graças às suas conexões com a garota. Sem mergulhar no sobrenatural, o
piloto da série é incrivelmente bem feito, indo desde a fotografia até a trilha sonora
cujas músicas Falling e The Nightingale cantadas por Julee Cruise embalam alguns dos
melhores momentos.
Para encerrar, o episódio termina com um cliffhanger perfeito que nos deixa curiosos
para o que virá a seguir. Claro que ninguém na época imaginava a piração que Twin
Peaks se tornaria, mas vendo em retrospectiva esse foi um dos melhores pilotos já feitos
na história do audiovisual.
A maneira como a história passeia pelos mais diversos personagens e núcleos, sem
nunca deixar Laura de lado, desenvolvendo-a de maneira pós-morte é algo que eu acho
incrível pelos mais diversos motivos. No entanto é atmosfera do show que me fez ficar
encantado. A aparente calmaria daquela cidadezinha é quebrada pelo assassinato de
Laura, e logo descobrimos que existe todo um submundo de sexo e drogas acontecendo
por debaixo dos panos. Hoje em dia, essa metáfora continua mais válido do que nunca.
Se em Twin Peaks só conhecíamos cidadãos de bem, ninguém imaginava o que eles
faziam quando a noite chegava.

Por isso que o Xerife não acreditava que a menina doce e simpática cujo corpo foi
encontrado perto do lago, podia ter feito sexo com três homens diferentes e ter usado
cocaína. Laura Palmer escondia suas facetas para continuar vivendo, o problema é que
ela também escondia seus traumas e por causa deles foi assassinada. O motivo? Ainda
iremos descobrir, mas só pelo que vimos é uma jornada que vale a pena ser percorrida.
Então, voltamos logo com a outra parte desse especial que irá abranger toda a primeira
temporada. Até lá assistam a série por qualquer meio disponível e desfrutem da
experiência que Twin Peaks pode oferecer. Prometo que você não vai sair sem sentir
nada. Se será medo ou tédio, aí depende da sua experiência.
Bem-vindo a Twin Peaks. Meu nome é Margaret Lanterman. Eu moro em Twin Peaks.
Sou conhecida como Dama do Cepo. Há uma história por trás disso. Há muitas histórias
em Twin Peaks. Algumas delas são tristes, outras engraçadas. Algumas delas são
histórias de loucura, de violência. Outras são comuns. No entanto, todos elas têm em
comum um sentido de mistério – o mistério da vida.
Às vezes, o mistério da morte. O mistério dos bosques ao redor de Twin Peaks. Para
apresentar essa história, deixe-me apenas dizer que ela abrange tudo – está além do
‘fogo’, embora poucos saibam desse significado. É uma história de muitos, mas começa
com uma – e eu a conhecia.
Aquela que leva a muitos é Laura Palmer. Laura é a única
Margaret Lanterman – A Dama do Cepo (Monólogo Introdutório do Piloto)

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