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The Locket
Brenna Todd
Clássicos Românticos n° 55
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.
Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá
sido mera coincidência.
Anne ouviu o Chevrolet de sua mãe parar em frente de casa. Segundos depois,
escutou o barulho de duas portas abrindo e fechando. As vozes de sua mãe e de sua tia
Shirley soaram no jardim, alegres. Anne ergueu os olhos da revista que lia e sorriu. Seu
pai mudou de posição na cama hospitalar alugada e resmungou, bem-humorado:
— Quantas lojas de antigüidades será que essas duas esvaziaram dessa vez?
— Oh, bom dia, papai — disse Anne, zombeteira, pois já passava das quatro da
tarde.
Ela largou a revista sobre uma mesinha e atravessou a sala. Há dois meses, logo
após a morte de J.B. Munro, Henry Sawyer sofrerá um segundo ataque cardíaco, e ainda
estava em fase de recuperação.
Os horários de sono de Henry ainda estavam desregulados. Ele ficava acordado a
noite toda, virando-se na cama, e dormia durante a maior parte do dia. Na opinião de
Anne, seu pai ainda precisava melhorar muito para poder ser considerado
completamente recuperado.
— Não sei por que você não saiu para fazer compras com elas, minha filha —
ralhou Henry, em tom afetuoso.
Anne riu, ao mesmo tempo em que erguia o braço do pai para medir-lhe a
pulsação.
— Eu já lhe disse antes, papai, não consigo acompanhar o ritmo de mamãe e de
tia Shirley. Elas levam o assunto "fazer compras" a sério demais!
— De qualquer modo, você deveria se divertir mais, Anne. Mulheres jovens
como você não foram feitas para passar o dia inteiro cuidando de gente doente.
— Deixe de tolices, papai. Se eu quisesse estar em outro lugar, fazendo outra
coisa, pode apostar que eu já teria ido embora.
— Tem certeza, filha?
Anne ignorou a pergunta, como já fizera dezenas de outras vezes. No último mês,
seu pai não se cansara de repreendê-la por passar tanto tempo cuidando dele.
A porta da sala se abriu. Dorothy Sawyer e a cunhada, Shirley, entraram no
aposento carregadas de sacolas e pacotes.
— A expressão orçamento doméstico não tem o menor significado para você,
mulher? — indagou Henry à esposa.
Enquanto Shirley caía na risada, Dorothy lançou um olhar de falsa indignação ao
marido.
— Pare de implicar comigo, seu chato! Desde quando você deu para ser pão-
duro?
Largando os pacotes e sacolas em cima do sofá, ela aproximou-se da cama e
beijou o marido no rosto.
— Você está com uma ótima aparência hoje, querido. — Olhando para a filha,
Dorothy perguntou em seguida:
— Você vai demorar muito para permitir que o seu pai levante dessa cama e saia
para dar um passeio?
— Acho que não, mamãe — mentiu Anne.
Os horários irregulares de sono do pai ainda a preocupavam, mas ela não queria
deixar a mãe aflita. O estresse provocado pela doença do marido logo começaria a afetar
a saúde de Dorothy, e Anne não desejava ver também a mãe numa cama hospitalar.
— No entanto, não pense que papai poderá sair logo de cara para fazer compras
com você e tia Shirley — acrescentou Anne, segundos depois. — Nos próximos doze
meses, ele só poderá fazer passeios tranqüilos e curtos.
— Fique tranqüila, filha. Prometo parar com essas maratonas de compras assim
que o seu pai receber alta — afirmou Dorothy.
— Está aí uma boa razão para eu me recuperar mais depressa — riu Henry.
A esposa também riu e deu-lhe outro beijo no rosto antes de virar-se para Anne,
comentando:
— Quando o seu pai brinca desse jeito é porque já está melhor, não é mesmo?
Agora deixe-me mostrar-lhe o presente que comprei para você, minha filha! É um lindo
medalhão antigo, de ouro. Você vai adorar, tenho certeza.
— Por que não mostra o medalhão mais tarde, Dorothy? — sugeriu Shirley. —
Primeiro eu gostaria que Anne fosse comigo tomar um sorvete no Braum's.
— Oh, sim, é claro. A propósito, Shirley, aproveite a chance para conversar com
Anne sobre a possibilidade de ela voltar logo para Detroit. — Depois de falar com a
cunhada, Dorothy dirigiu-se à filha: — Você não deveria estar há tanto tempo aqui
conosco, querida. Sinto que estamos abusando da sua boa vontade e...
— Mamãe, por favor! — protestou Anne, tentando conter uma onda de
impaciência.
Não era a primeira vez que seus pais abordavam este assunto. E agora, para
piorar, a sua mãe envolvera tia Shirley na história!
— Por acaso vocês já me viram fazer algo contra a minha vontade? Se papai não
tivesse sofrido o segundo ataque eu já teria voltado para Detroit, e vocês sabem muito
bem disso — argumentou Anne.
— É claro que sabemos. Você sempre foi do tipo independente, desde pequena —
disse Henry, com uma ponta de orgulho na voz. — Ao mesmo tempo, porém, você
sempre gostou de cuidar dos outros. Quando era garota, levava para casa todos os
animais feridos que encontrava na rua, e não perdia uma única chance de bancar a
enfermeira quando algum amigo seu adoecia. Não foi à toa que você decidiu ser para-
médica, certo?
— Pelo amor de Deus, papai, você não é um animal ferido que encontrei na rua!
Além disso, é meu dever...
— Este é o problema, minha filha — interrompeu-a Henry. — Você está levando
a sério demais a responsabilidade que sente em relação a nós. Apreciamos a sua atitude,
mas já é hora de você começar a cuidar da própria vida.
— O seu pai tem razão, querida — disse Dorothy. — Você sempre gostou de
cuidar dos outros, e talvez por isso a gente tenha passado a depender de você mais do
que seria normal. Nesse último ano, por exemplo, você desistiu de tantas coisas por
nossa causa! Sei que agiu assim porque nos ama, mas nós queremos que você seja feliz,
também.
— Não desisti de tantas coisas assim — assegurou Anne. — Ainda trabalho como
para-médica, e pretendo voltar para Detroit assim que a saúde de papai melhorar.
— Acontece que trabalhar como para-médica em Munro não é a mesma coisa que
trabalhar como para-médica em Detroit — argumentou Dorothy. — Sabemos que você
adora levar uma vida agitada, excitante.
— Tudo bem, mãe, reconheço que o trabalho aqui em Munro é meio entediante.
Mas você e papai cuidaram de mim e me ajudaram durante tantos anos! Por que não
posso retribuir tudo o que já fizeram por mim? Não terei a menor dificuldade para
retomar a minha vida em Detroit depois que papai ficar bom.
— Nós achamos melhor você voltar para Detroit o mais depressa possível,
querida — interveio Henry.
— De modo algum, papai. Sou eu que devo decidir a hora de partir. Se você não
tivesse sofrido um segundo ataque cardíaco...
— Mas eu sofri, minha filha. E mesmo me cuidando direito daqui para frente,
nada impede que eu venha a sofrer novos ataques. Isso não significa, contudo, que você
deva adiar indefinidamente os seus planos de vida por minha causa!
— Acalme-se, por favor — pediu Anne, alarmada, ao ver o rosto de Henry ficar
vermelho.
Aproximando-se da cama, ela fez menção de medir a pulsação do pai.
— Não! — Henry escondeu os braços sob o lençol da cama. — Sou o seu pai, e
não apenas mais um dos seus pacientes, portanto trate de me ouvir!
Anne pestanejou, espantada. Mal conseguia se lembrar da última vez em que seu
pai usara esse tom autoritário com alguém. De certa forma era bom ouvi-lo falar assim,
pois isso demonstrava que Henry Sawyer estava voltando a demonstrar sinais de força.
Ao mesmo tempo, porém, era desconcertante e desagradável levar uma bronca dessas.
Afinal, ela só estava pensando no que era melhor para os seus pais.
O espanto de Anne aumentou ainda mais depois que seu pai fez uma nova
declaração:
— Você não vai nos enrolar dessa vez, filha. Sua mãe e eu já discutimos o
assunto e concluímos que o melhor é mandá-la embora de casa, para o seu próprio bem.
— O quê? Me mandar embora de casa? Mas eu não quero ir, papai! E você ainda
não está bom o bastante para...
— Estou sim, fique sossegada. Dorothy e Shirley ajudarão você a fazer as malas.
— Fazer as malas?!
— Sim, foi isso o que eu disse.
Dorothy aproximou-se da filha e tocou-lhe o braço, argumentando com simpatia:
— Não nos leve a mal, Anne. Adoramos tê-la morando conosco, mas uma mulher
jovem e cheia de energia como você não merece deixar de ter vida própria por causa de
um casal de velhos.
— Tenha dó, mamãe, vocês não são velhos! E eu tenho vida própria, sim, quem
foi que disse que não? — Em busca de uma aliada, Anne voltou-se para Shirley. — Tia,
papai é seu irmão. Por favor, ajude-me a enfiar um pouco de bom senso na cabeça dele
e da minha mãe. Você sabe que esta situação é apenas temporária. Só porque eu vim
morar em Munro para ajudá-los isso não significa que me transformei numa... numa
solteirona desajustada que ainda vive com os pais!
Shirley pigarreou, constrangida, e afirmou:
— Sinto muito, querida, mas fui eu que sugeri a seus pais que a mandassem
embora de casa.
— O quê?! Por que fez uma coisa dessas, tia?
— Porque você estava ficando parecida demais com a sua prima Beth, que tem
trinta e seis anos de idade e nunca passou um dia sequer longe dos pais. Comecei a ficar
aflita com a sua situação, e foi por isso que decidi abordar o assunto com Henry e
Dorothy.
— Pelo amor de Deus, a minha situação não tem nada a ver com a de Beth, que é
uma perfeita pamonha em forma de gente! — retrucou Anne, sem saber se ria ou
chorava da resposta da tia.
— Mas você tem de admitir que nos últimos meses não saiu nem uma vez para
jantar fora com amigos ou para fazer compras com a sua mãe e comigo — argumentou
Shirley, categórica.
— Está bem, está bem! Se é isso o que vocês três querem, vou começar a sair e
me divertir mais, combinado? Ainda hoje pegarei um cineminha para me distrair,
prometo. E então, estão satisfeitos?
para-médica Ir ao cinema é uma ótima idéia, querida. Você precisa mesmo se
distrair — disse Henry. — E enquanto você assiste a um bom filme, Dorothy e Shirley
podem começar a arrumar as suas malas — acrescentou ele, irredutível.
Meia hora mais tarde, enquanto dirigia pela rua principal da cidade, Anne
fumegava de raiva. Um palavrão escapou-lhe dos lábios, e o volante do carro foi alvo de
um soco de irritação. Com mil diabos, por que seus pais eram tão teimosos?
Virando à esquerda numa rua transversal, Anne concluiu que precisaria de pelo
menos mais meia hora de solidão para acalmar-se e voltar a enfrentar Henry e Dorothy.
Tudo bem, sabia que os pais só queriam o melhor para ela. Henry e Dorothy eram
amorosos e atenciosos, preocupavam-se com o futuro da filha. Mas Anne sabia o que
era melhor para os pais. Tudo o que tinha a fazer era ser mais firme com eles.
Meus parabéns, você fala como se fosse mãe deles, disse uma voz interior,
deixando Anne ainda mais irritada.
Ela tentou se convencer de que não estava bancando a mãe de ninguém; queria
apenas o melhor para os seus pais.
Tem razão, concordou a voz. O que será que deu neles, afinal? É muita ousadia
dos dois deixarem de pensar em si mesmos para pensarem no bem-estar da filha, não é
mesmo?
Anne fez uma careta, detestando esse debate íntimo com a própria consciência.
Levando uma das mãos ao medalhão de ouro que ganhara da mãe antes de sair de casa,
sentiu-se culpada. Ao parar o carro no cruzamento da rua com o bulevar West Munro,
suspirou. Que situação... Amava os pais e desejava vê-los felizes e saudáveis.
Exatamente a mesma coisa que eles desejavam em relação a ela.
Uma buzina soou atrás do carro de Anne, arrancando-a de seus devaneios. Ela
virou à direita no bulevar, odiando-se por deixar que a insegurança viesse perturbar uma
decisão que, até segundos atrás, considerava inabalável. Ao aproximar-se da mansão
Munro, que fora aberta recentemente à visitação pública, Anne resolveu conhecê-la. De
nada adiantaria continuar dirigindo sem rumo definido, remoendo dúvidas. Se deixasse
o assunto de lado por algum tempo, talvez fosse capaz de enxergá-lo com mais clareza
depois. Além disso, estava curiosa para saber mais sobre J.B. Munro e a mansão onde
ele havia morado.
As gárgulas de aparência feroz que enfeitavam os cantos superiores frontais da
mansão seguravam entre as garras uma faixa de tecido vermelho onde estava escrito:
"Visite a Propriedade Munro, Agora Aberta ao Público".
Anne enfiou a carteira no bolso da calça jeans e trancou a porta do carro. Ao
seguir na direção da mansão, notou que vários jardineiros podavam as árvores e os
arbustos; o gramado já fora aparado.
Três carros da década de 20, estacionados sob o pórtico, chamaram a atenção de
Anne. Um adolescente, usando boné com a aba virada para trás, observava os
automóveis. O garoto passou a mão sobre a porta esquerda de um Packard em ótimas
condições de conservação e sorriu para Anne, que se aproximara.
— Esses carros antigos são demais, não é mesmo? — disse o adolescente.
— Também acho — respondeu ela tentando imaginar J.B, quando jovem,
dirigindo o Packard.
— Veja só que máquina! — exclamou o rapazinho, entusiasmado, abrindo a porta
e acomodando-se no assento do motorista.
Ele examinou o painel cheio de mostradores, a direção bem maior que a dos
carros modernos, o luxuoso estofamento de couro dos bancos. Em seguida, apontou
para um botão no chão e comentou:
— Meu pai disse que esse botão serve para diminuir ou aumentar a intensidade da
luz dos faróis.
Quando o adolescente fez menção de pisar no botão, Anne o preveniu:
— Não pise aí! Sinto muito, mas o seu pai se enganou. Esse botão serve para dar
partida no motor do carro.
— Sério? Puxa, que legal poder dar partida no motor pisando num botão em vez
de usar uma chave! Parece que você entende bastante de carros antigos, hein?
— Bem... Não entendo muita coisa, não.
Na verdade, Anne não entendia nada de automóveis antigos. Sendo assim, como
sabia que o botão no chão do Packard servia para dar partida no motor?
Foi nesse momento que um grupo de turistas saiu da mansão, conversando em
voz alta.
— Ele gostava de ostentação, não é mesmo?
— Não, para mim o velho tinha estilo. Se você quer a minha opinião, ele sabia
como viver.
— Pode até ser, mas nada no mundo irá me convencer de que foi o sócio de J.B.
que matou a mulher dele. Acho que foi o próprio J.B. que fez o serviço e depois
subornou a polícia para não ser preso.
Deborah. Os turistas estavam falando do assassinato de Deborah, concluiu Anne.
Pode me perdoar, Deborah? Nunca tive a intenção de magoá-la... As palavras de
J.B. Munro voltaram à mente de Anne, que se sentiu compelida a subir os degraus da
escada de entrada da mansão. Uma estranha sensação de dejà vu, mais forte que da
primeira vez, voltou a assaltá-la. Ela levou as mãos ao peito. Sob o tecido fino da
camisa de algodão, sentiu os contornos do medalhão de ouro que ganhara da mãe e que
pendurara numa correntinha também de ouro.
Franzindo a testa, percebeu que a sensação de já ter estado ali antes, muito tempo
antes, tomava-se cada vez mais intensa. Segundos depois sentiu o chão girar à sua volta
e, sem qualquer aviso, uma visão explodiu-lhe na mente com tanta força que o mundo
real à sua volta desapareceu.
Anne viu-se num salão de baile, em meio a um grande grupo de pessoas. Uma
pequena orquestra tocava um jazz animado, e a música misturava-se ao som de vozes e
risos. Homens fumavam charutos, mulheres fumavam cigarros colocados em piteiras
enfeitadas com pedras preciosas. Todos vestiam modelos elegantes dos anos 20. No
centro do salão, casais dançavam sob a luz brilhante lançada por um grande e luxuoso
lustre feito de centenas de pingentes de cristal.
Como que surgido do nada um homem parou ao lado de Anne, que também usava
roupas no estilo em voga nos anos 20. Ela estremeceu diante da intensidade do olhar
que o desconhecido lhe dirigiu. Será que o conhecia? Nunca o vira antes, embora o
rosto lhe parecesse familiar. Ou melhor, muito mais que familiar; ambos tinham um
passado em comum. Confidências, segredos, intimidade... O olhar do desconhecido
revelava tudo isso. No entanto, mesmo que a expressão dele não houvesse revelado
nada, Anne teria adivinhado que laços fortes os uniam, pois jamais se sentira como se
sentia agora perto de qualquer outro homem.
Os olhos do desconhecido, negros como uma noite de inverno, estreitaram-se.
Uma expressão de zanga surgiu no rosto másculo, atraente. Por quê?, Anne teve
vontade de perguntar. Por que está zangado comigo?
O traje que o homem usava era tão elegante quanto o dos outros convidados da
festa, mas de algum modo Anne adivinhou que ele não estava à vontade ali na festa. O
desconhecido possuía uma aura de força e rusticidade que as roupas civilizadas não
conseguiam disfarçar. E fora justamente essa aura que atraíra Anne desde a primeira vez
que o vira. Primeira vez? Mas esta era a primeira vez que o via, não era?
Os convidados da festa dançavam, conversavam e riam, mas o homem continuava
sério. Diga logo!, Anne teve vontade de gritar. Por que está me olhando desse jeito
quando sei que você não me odeia? Ao contrário, você me ama!
A visão desapareceu tão depressa quanto surgira, e o rosto do homem pareceu
partir-se em mil pedaços diante dos olhos de Anne. Ela gemeu baixinho, dominada por
uma profunda sensação de perda. Volte! Não me abandone!
Anne retornou à realidade com a impressão de que fora atingida por um raio.
Deixando os braços caírem ao longo do corpo, deu dois passos para trás. Ofegante, sem
conseguir respirar direito, fitou a porta de entrada da mansão com os olhos cheios de
lágrimas. Confusa e assustada, virou-se e começou a correr na direção do seu carro, sem
enxergar nada do que a cercava.
Abriu a porta do automóvel com mãos trêmulas, jogou-se no banco do motorista
e, depois da terceira tentativa, conseguiu enfiar a chave na ignição. Enxugou as lágrimas
que lhe escorriam pelas faces, tentando entender o que acontecera. Tivera uma visão, ou
sofrera uma alucinação? Quem era o homem que vira? Sabia que não o conhecia, mas
ao mesmo tempo sabia que o amava... Oh, céus, que loucura!
Anne deu partida no motor e engatou a primeira marcha, sem conseguir tirar do
pensamento a imagem do desconhecido de olhos negros. Antes de pôr o carro em
movimento, avistou a mansão pelo espelho retrovisor. Uma espécie de paralisia a
dominou.
De algum modo o homem misterioso estava ligado à mansão. E estava ligado a
ela, também. Mas como?
Como que hipnotizada, Anne desligou o carro e virou-se para trás para observar
melhor a mansão. Será que encontraria alguma resposta lá dentro?
— A mansão demorou cinco anos para ficar pronta — disse Betty, a guia
turística. — O projeto foi executado por um conjunto de arquitetos de renome
internacional, e os melhores artesãos do país foram contratados para trabalhar na
construção. O Sr. Munro tinha gostos caros e era exigente, sempre fazia questão do
melhor.
Ao terminar de falar, a guia apontou para o teto. Anne e os outros turistas
olharam para cima e soltaram uma exclamação de surpresa e admiração. O teto inteiro
era folheado a ouro!
A mansão era uma verdadeira "arca do tesouro". O grupo de visitantes do qual
Anne fazia parte já se deslumbrara com vários outros cômodos da residência: a imensa
cozinha onde podiam ser preparadas refeições para centenas de convidados, salões
cheios de quadros e esculturas de preço inestimável, aposentos decorados com
belíssimos e luxuosos móveis.
No escritório, Betty chamara a atenção dos turistas para um grande retrato no
qual apareciam J.B. e sua primeira mulher, Virgínia. J.B. era mostrado de pé, numa
postura rígida, ao lado da mulher, que estava sentada numa cadeira com as mãos
cruzadas sobre o colo. Virgínia era atraente, mas a boca de lábios finos e os olhos cinza
expressavam frieza. E J.B. não era o homem que aparecera na estranha visão de Anne,
como ela havia imaginado antes de ver o retrato.
Desde então Anne passara a observar com cuidado todos os outros retratos em
exposição na mansão, na esperança de encontrar o tal homem, mas ainda não o vira. O
que ela desejava, no fundo, era uma explicação para a visão que tivera. Talvez já
houvesse visto o retrato do desconhecido em algum lugar e enterrado a imagem dele no
subconsciente. Talvez a Munro Gazette tivesse publicado uma reportagem com fotos
sobre a história da mansão, quem sabe? Nas primeiras semanas após o ataque cardíaco
do pai, Anne procurara distraí-lo lendo o jornal para ele. Desse modo, era possível que
tivesse visto a fotografia do homem no jornal, não era? Mas como poderia ter esquecido
um rosto tão marcante? Que mulher não se lembraria daqueles enigmáticos olhos
negros, mesmo tendo-os visto numa foto granulada em preto e branco?
Interrompendo os devaneios de Anne, Betty — que mais de uma vez lançara
olhares curiosos na direção dela — conduziu o grupo até uma sala de jantar com
paredes revestidas de painéis de mogno. Uma imensa lareira de pedra encimada pelo
brasão da família Munro ocupava boa parte de uma das paredes; diversas peças de
porcelana estavam expostas em cristaleiras bem iluminadas.
Em seguida, a guia turística levou os visitantes para a ala dos aposentos
particulares da família.
O quarto de J.B. era o cômodo mais impressionante da mansão, todo decorado
com móveis em estilo barroco inglês. Duas poltronas ladeavam uma pesada arca de
nogueira. A cabeceira da cama era ornamentada por um delicado trabalho de
marchetaria. Tocheiros italianos iluminavam uma coleção de vasos chineses dispostos
sobre uma cômoda entalhada.
O grupo de turistas percorreu mais uma série de aposentos, incluindo um andar
inteiro de quartos de hóspede, antes de chegar ao último cômodo a ser visitado.
— J.B. Munro pediu que os arquitetos fizessem nessa sala uma cópia de um
aposento de um castelo medieval construído na Europa por um de seus ancestrais —
informou Betty aos turistas. — Estão vendo a lareira? — A guia entrou no "buraco"
formado pelas altas paredes de pedra, onde uma pessoa de tamanho médio podia ficar
de pé sem problemas. — Reparem que há uma porta escondida, aqui. Ela leva aos túneis
que J.B. mandou abrir durante a construção da mansão. Existem outras entradas para os
túneis, incluindo uma na casa de hóspedes.
— Eu já tinha ouvido falar nos túneis — comentou uma mulher de meia-idade. —
Parece que eles eram usados para esconder tonéis de uísque durante a época da Lei
Seca.
— A senhora está enganada — disse Betty. — Lembre-se, J.B. foi o fundador da
cidade. Ele servia bebidas alcoólicas em todas as festas que dava, sem fazer nada para
esconder tal fato. Isso significa, é claro, que os túneis não foram abertos para esconder
tonéis de uísque, e sim por uma questão prática. Muitos dos quadros e esculturas que
enfeitam a mansão foram produzidos num ateliê que J.B. mandou erguer na propriedade
para os artistas contratados. Quando completavam suas obras os artistas as traziam para
a mansão através dos túneis, para evitar que elas fossem danificadas pela poeira, pelo
sol ou pela chuva. Depois que a construção da mansão terminou, os túneis raramente
foram usados.
A mulher de meia-idade franziu a testa, parecendo não gostar de ter sido
contrariada. A seguir, declarou:
— Mas eu ouvi dizer que o gângster Pretty Boy Floyd matou um homem aqui na
mansão por causa de um jogo de pôquer, e depois arrastou o corpo através dos túneis e
o jogou num dos lagos.
— Isso não passa de mero boato — explicou Betty. — E se todos os boatos aos
quais Pretty Boy Floyd está ligado fossem verdadeiros, ele precisaria ter sido mágico
para poder estar em mais de um lugar ao mesmo tempo.
— Podemos conhecer os túneis? — perguntou um rapaz.
— Infelizmente, não. As entradas para os túneis foram fechadas por ordem do
serviço municipal de prevenção contra incêndios — explicou a guia turística, indicando
o cadeado que mantinha trancada a porta dentro da lareira. — Mas ainda temos mais um
item de interesse para ver antes do final da visita. É um retrato de Deborah, a segunda
mulher de J.B. O quadro foi encontrado esta semana, guardado no sótão da mansão.
Anne sentiu um calafrio ao lembrar que J.B. Munro a confundira com Deborah.
Trêmula de expectativa, seguiu o grupo até a extremidade oposta da sala, onde havia um
quadro apoiado num cavalete de metal, coberto por um retângulo de veludo preto.
— A tal de Deborah foi assassinada — afirmou a mulher de meia-idade que
adorava boatos. — Dizem que a polícia acredita que foi J.B. que a matou.
— Na verdade, o mistério do assassinato jamais foi esclarecido, e J.B. nunca
entrou na lista de suspeitos — retrucou Betty, com uma nota de impaciência na voz. —
Mais uma vez, isso não passa de boato. A única coisa que se sabe de concreto sobre o
caso é que Patrick MacKinnon, sócio de J.B. na Ferrovia Munro-MacKinnon, foi
interrogado pela polícia. Diziam, na época, que Patrick era amante de Deborah Munro.
Ele desapareceu logo depois que o corpo de Deborah foi encontrado numa caverna
dentro dos limites da propriedade, e nunca mais foi visto de novo.
— Se o tal Patrick desapareceu logo depois de encontrarem o corpo, então é
óbvio que ele que cometeu o crime! Como foi que ele matou Deborah? Ouvi dizer que...
— Deborah Munro foi estrangulada — declarou Betty com certa rispidez,
perdendo a paciência com a mulher. — E agora, antes do retrato de Deborah, quero
mostrar-lhes outra coisa especial que existe nesta sala. J.B. Munro, que nasceu na costa
leste dos Estados Unidos, interessava-se bastante pela história do Estado onde veio
morar quando já era adulto. Por isso, mandou pintar um mural representando essa
história.
Ao terminar de falar, Betty apontou para o alto.
Anne e os outros turistas olharam para cima e ficaram boquiabertos. No teto da
imensa sala estava pintada a história do Estado de Oklahoma, desde a época em que os
índios ocupavam a área até a chegada das estradas de ferro. Era óbvio que o mural fora
um projeto do qual J.B. se ocupara durante a vida toda. Os eventos históricos não
estavam misturados numa grande colagem, e sim dispostos em ordem cronológica.
Qualquer um que os visse podia acompanhar sem problemas a seqüência dos
acontecimentos.
— E agora, como prometi, vou mostrar-lhes o retrato da segunda esposa de J.B.
— anunciou Betty, conduzindo o grupo para mais perto do retrato e removendo a
cobertura de veludo negro. — Aqui está ela, a Sra. Deborah Richards Munro.
Anne arregalou os olhos e levou as mãos ao peito.
— Como podem ver — disse a guia turística —, Deborah foi retratada usando o
vestido que está em exposição no quarto que lhe pertencia. É fato corrente que a
segunda esposa de J.B. gostava de ser fotografada e retratada em quadros, e não é difícil
entender por quê. Afinal, Deborah era bastante atraente, não acham?
Aturdida, Anne mal ouviu as palavras da guia. Momentos mais tarde, quando o
grupo de turistas se dispersou, ela permaneceu paralisada no lugar. Ao sentir que
alguém a tocava no ombro, deu um pulo de susto.
— Você se manteve meio escondida no meio do grupo, mas não pude deixar de
notar a semelhança — comentou Betty, com um sorriso curioso. — Vocês têm algum
laço de parentesco?
— Não. Não temos — murmurou Anne, em resposta.
— Tem certeza? Não existem registros de nenhum descendente vivo, mas a
semelhança é tão marcante que cheguei a pensar que...
— Não, não temos nenhum laço de parentesco — reafirmou Anne, interrompendo
a guia.
— Que esquisito! Mas, como se costuma dizer, todos nós temos um gêmeo
perdido no mundo, não é mesmo?
— Sim, é o que se costuma dizer.
Logo que Betty se afastou, deixando-a sozinha na sala, Anne voltou a fitar o
retrato, incrédula. "Esquisito"? O caso podia parecer meramente "esquisito" para a guia
turística, mas isso era porque ela não sabia de nada sobre o que acontecera antes: a visão
que Anne tivera na escada de entrada da mansão; o fato de J.B. tê-la chamado de
Deborah e depois tê-la chamado pelo nome verdadeiro, sem nunca tê-la visto antes. E
agora havia o retrato...
Balançando a cabeça num gesto de negação, Anne reparou nos olhos verdes e
amendoados de Deborah, nos cabelos curtos e ruivos, no rosto ovalado. Não, esta não
podia ser Deborah Munro. Era impossível!
A pele da segunda esposa de J.B. não podia ser tão clara, do tipo difícil de
bronzear. O maxilar não podia ser ligeiramente quadrado, e o queixo não podia ter uma
covinha no centro. Estas não podiam ser as feições de Deborah Richards Munro, por
uma razão muito simples: estas eram as feições de Anne.
Pode me perdoar, Deborah? Nunca tive a intenção de magoá-la... Não, eu estava
errado! Você não é Deborah! Você é a outra, e seu nome é Anne...
Anne fechou os olhos e cobriu a boca com as mãos trêmulas. Rezou para estar
tendo uma alucinação, rezou para que quando tornasse a abrir os olhos a imagem de
Deborah Munro fosse diferente. Mas suas preces foram em vão. Quanto mais olhava
para o retrato da segunda mulher de J.B, mais semelhanças encontrava. O sorriso era
igual. Também era igual o nariz ligeiramente arrebitado na ponta.
Tensa, Anne apalpou seu rosto como se quisesse certificar-se de que as suas
feições não haviam sido roubadas para criar a imagem de Deborah. Em seguida,
aproximou-se mais do retrato a fim de examiná-lo melhor. Foi então que notou um
detalhe que a deixou ainda mais assustada. O medalhão que Deborah usava era idêntico
ao que sua mãe lhe dera poucas horas antes. Não, não podia ser possível!
Anne puxou o medalhão para fora do decote da camisa. Acompanhou com a
ponta dos dedos o desenho gravado na superfície de ouro, igualzinho ao desenho no
medalhão usado por Deborah no retrato.
Ao ganhar a jóia da mãe, Anne a abrira e vira que estava vazia. Ao abri-la agora,
porém, teve a sensação de que encontraria algo ali dentro.
Para seu alívio, o medalhão continuava vazio. Mas o que esperara encontrar
dentro dele, afinal? Uma pequena e antiga foto de J.B. quando jovem? A foto de Patrick
MacKinnon, um dos supostos amantes de Deborah?
Ou a foto do homem misterioso que surgira na visão que tivera na escada, cuja
imagem a havia compelido a visitar a mansão?
Voltando a sentir-se assaltada por uma forte compulsão, Anne estendeu uma das
mãos para tocar o retrato. No mesmo instante ouviu um zumbido alto e foi tomada pelo
mesmo mau pressentimento que tivera no dia da morte de J.B. Munro.
Sem saber por que, apertou com força o medalhão que a mãe lhe dera. E quando
finalmente seus dedos tocaram o medalhão do retrato, a escuridão a envolveu e ela
perdeu os sentidos.
3
Anne voltou a si num lugar mal iluminado, frio e úmido. Pelo cheiro que pairava
no ar, parecia que ela estava perto de um lago, ou do mar. Mas não havia qualquer
movimento, nenhuma brisa marinha soprava. O chão, onde estava deitada, era duro e
gelado. Uma única lâmpada acesa, ao longe, mal e mal dissipava a escuridão.
Ela tentou se mover, mas seu corpo, que formigava inteirinho, recusou-se a
obedecer aos comandos do cérebro. Engolindo em seco, Anne lutou para afastar o
pânico. Com extremo esforço conseguiu mexer um pouco a cabeça, e percebeu que se
encontrava numa espécie de corredor de um metro e oitenta de largura por um metro e
oitenta de altura.
Como fora parar ali? E onde seria "ali"? O que acontecera que a deixara
paralisada desse jeito? A última coisa de que se lembrava era de ter tocado o medalhão
no retrato de Deborah Munro.
Foi então que ela ouviu o ruído de passos e vozes.
Anne olhou para a esquerda e avistou duas silhuetas indistintas, uma grande e
outra pequena, vindo em sua direção. Tentou gritar, mas nenhum som escapou-lhe dos
lábios.
Céus, será que tinha morrido? Seria este o famoso túnel mencionado pelas
pessoas que sofriam longas paradas cardíacas e depois eram "ressuscitadas" pelos
médicos? Não, não podia ser. As pessoas que chegavam ao Portal do Paraíso e voltavam
em seguida falavam sempre de uma sensação de paz e segurança, nunca de dor ou
medo. E Anne estava definitivamente apavorada.
As silhuetas aproximaram-se mais e em seguida pararam, a uns seis metros de
distância. Anne pôde ver que a figura menor era de uma mulher e que a maior era de um
homem barbado, mas não conseguiu distinguir-lhes as feições. Os dois estavam
discutindo. Havia ódio na voz do homem, e medo na voz da mulher, mas não dava para
entender direito o que diziam.
Será que nenhum dos dois tinha visto Anne? Parecia que não, pois comportavam-
se como se estivessem sozinhos no corredor.
Segundos mais tarde o homem ficou de costas para Anne, impedindo-a de ver a
mulher. As vozes em tom baixo transformaram-se em gritos. O ruído de uma bofetada
ecoou no ar.
O homem e a mulher começaram a lutar. Anne fechou os olhos e concentrou toda
a sua força de vontade no ato de mexer-se. Foi inútil. Nenhum músculo do seu corpo se
moveu. Tentou gritar de novo, mas sua voz ficou presa na garganta. Voltou a abrir os
olhos, e viu que a luta do casal tomara-se mais violenta. A mulher agitava os braços em
desespero, numa vã tentativa de fugir.
De repente, o corpo da mulher caiu no chão e um pesado silêncio tomou conta do
corredor mal iluminado.
Anne virou a cabeça, sentindo-se nauseada. Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.
Por Deus, este não podia ser o portal do Paraíso. Mas onde estaria ela, então?
Ouviu passos novamente. Era o homem, afastando-se do corpo da mulher. Ele
estava indo embora pelo mesmo caminho que viera. Prendendo a respiração, Anne o
acompanhou com o olhar até vê-lo ser engolido pelas sombras.
Escutou o ruído de uma porta sendo aberta e fechada ao longe, e depois o silêncio
voltou a imperar.
Esta era a chance que Anne esperava para ajudar a mulher. Mas como ajudá-la, se
nem conseguia se mover? Por Deus, que pesadelo!
Segundos mais tarde, o pesadelo intensificou-se. Pontadas de uma dor fortíssima
percorreram o corpo de Anne, começando nos ombros e descendo até as pernas. Se ela
estivesse de pé, a dor insuportável a teria feito cair de joelhos no chão.
Ainda paralisada, Anne não podia fazer mais nada além de tentar suportar a dor
lancinante que tomava conta de seus músculos, tendões e ossos. De repente, teve uma
idéia. Começou a inalar e soltar o ar ritmadamente, seguindo o método de respiração
Lamaze para mulheres em trabalho de parto, conforme aprendera durante o seu curso de
para-médica.
Aos poucos, a dor foi passando. Anne respirou fundo, procurando relaxar.
Lágrimas de alívio inundaram-lhe os olhos. Sem parar para pensar no que fazia, ergueu
uma das mãos para enxugar as lágrimas. Um gritinho de alegria escapou-lhe da
garganta. Sua mão! Conseguira movimentá-la! Seus pés, suas pernas... Não estava mais
paralisada!
Mais que depressa engatinhou para perto da mulher caída no chão, sentindo o
medalhão pendurado na correntinha batendo em seu peito.
— Oh, não! — exclamou, chocada, ao ver o rosto da mulher.
Uma onda de náusea a invadiu. Não foram as marcas vermelhas ao redor do
pescoço da mulher e nem os olhos baços e sem vida que a fizeram ter vontade de
vomitar. Afinal, Anne já vira muitas pessoas mortas desde que começara a trabalhar
como para-médica. O que a chocou foi algo que jamais teria sido capaz de imaginar,
nem mesmo no seu pior pesadelo: ao olhar para a mulher, viu o seu próprio rosto.
— Meu Deus... — murmurou. — Deborah?
Não, impossível! Deborah morrera antes de Anne nascer. A segunda esposa de
J.B. Munro fora assassinada na década de 20! Engolindo em seco, a mente semi-
entorpecida de horror, Anne examinou Deborah à procura de algum sinal de vida, mas
não encontrou nenhum. Baixou as pálpebras da mulher morta para fechar-lhe os olhos,
num gesto respeitoso, e tornou a engolir em seco. Aturdida, observou o modo como
Deborah estava vestida: um glamouroso vestido decotado no estilo dos anos 20, dois
longos colares de contas coloridas, meias de seda, sapatos de salto alto. Os cabelos
ruivos da falecida eram curtos, num corte não muito diferente do que Anne usava. Mas
o que mais chamava a atenção era o rosto dela, parecidíssimo ao de Anne; os olhos, o
nariz e a boca eram praticamente idênticos.
Nesse momento, Anne ouviu a porta sendo aberta de novo. Passos ecoaram
ameaçadoramente pelo corredor.
O mistério do assassinato jamais foi esclarecido... O corpo foi encontrado numa
caverna dentro dos limites da propriedade... Ao lembrar-se das palavras da guia turística
Anne percebeu que precisava fugir, pois o assassino estava voltando para buscar o
corpo, a fim de escondê-lo na tal caverna.
Movida pelo instinto de sobrevivência, ela se pôs de pé e saiu correndo.
Anne sentou-se no chão e enterrou o rosto nas mãos, esforçando-se para conter as
lágrimas de frustração e cansaço que ameaçavam inundar-lhe os olhos. Andara horas
pelo labirinto de corredores, mas não encontrara a saída; encontrara apenas portas
fechadas.
Devia estar no complexo de túneis que J.B. mandara escavar sob a mansão, sem
dúvida alguma. A mente de Anne, porém, recusava-se a aceitar o resto desse
"pesadelo". A mulher que vira ser estrangulada não podia ser Deborah Munro.
Mas e se fosse? Se Anne aceitasse reconhecer o local onde estava, se aceitasse
admitir a identidade da mulher morta, não teria de aceitar também o ano em que estava?
De acordo com a data da morte do assassinato de Deborah...
Céus, em que ano estaria, no fim das contas? Anne suspirou. Só podia ter
enlouquecido, claro. Afinal, só uma louca alimentaria a idéia de que havia viajado no
tempo!
Pondo-se de pé, ela decidiu provar a si mesma que se enganara, que não perdera o
juízo. Tinha de existir uma explicação lógica para o que lhe acontecera, para o crime
que testemunhara. E o melhor era encontrar tal explicação, sem perda de tempo.
Mais meia hora passou. Anne encontrou outras três portas nos túneis, mas todas
estavam fechadas. Exausta, com as pernas fracas e trêmulas, ela se obrigou a continuar
andando. De repente, ao entrar num túnel novo, avistou uma escada de cimento no topo
da qual havia uma porta.
Oh, por favor. Senhor, rezou em pensamento, permita que esta seja a saída desse
labirinto. Segurando-se no corrimão de metal, começou a subir a escada. Na metade do
caminho tropeçou, caiu e rolou pelos degraus abaixo. Bateu a cabeça com força no chão
e gritou de dor. Levou uma das mãos à testa e notou que gotas de sangue escorriam de
um pequeno corte.
Permaneceu imóvel por alguns minutos, esperando que a dor diminuísse, e tornou
a subir a escada. Desespero e esperança deram-lhe forças para chegar ao topo dos
degraus. Ela abriu a porta e... ouviu música.
Confusa, olhou ao redor. Encontrava-se dentro de uma abertura quadrada feita de
tijolos. Céus, será que estava onde imaginava que estava? No interior da grande lareira
que Betty mostrara ao grupo de turistas? Abaixando a cabeça, dirigiu o olhar para a sala
à sua frente. A música vinha de uma festa. Uma festa que mais parecia uma cena tirada
do filme O Grande Gatsby.
Os homens trajavam ternos com camisas de colarinho alto, engomado, e as
mulheres usavam vestidos de cetim com bordados de contas. Uma pequena orquestra
tocava um jazz animado, e uma nuvem azulada de fumaça de charuto e cigarro pairava
no ar.
— Deborah!
Anne virou-se na direção da mulher que pronunciara o nome da segunda esposa
de J.B. Usando um vestido verde sem mangas e um longo colar de pérolas, a mulher
devolveu o seu copo vazio ao garçom que passava e aproximou-se de Anne.
— Deborah, querida, por onde andou? Já estávamos preocupados com a sua
ausência e... Oh, a sua testa está sangrando! — A mulher segurou Anne pelo braço e
puxou-a para fora da lareira, indagando: — O que aconteceu com você? Como se
machucou?
Sem esperar pela resposta, a mulher dirigiu-se a um segundo garçom que passava,
ordenando:
— Vá chamar o Sr. Munro, depressa!
Outras mulheres se aproximaram, fitando com curiosidade as roupas de Anne. A
mulher do vestido verde voltou a falar:
— Não quer sentar-se um pouco, Deborah? Você está tão pálida.
Anne sentiu a cabeça girar. Com voz fraca, balbuciou:
— Eu... Eu não sou... Não sou quem você pensa que... Ela não teve tempo de
terminar a frase, pois nesse momento um homem abriu caminho por entre o grupo de
mulheres.
— Ah, J.B, o garçom lhe deu meu recado? Venha cá, dê só uma olhada em
Deborah! Eu estava procurando por ela quando a vi dentro dessa monstruosidade que
você chama de lareira, usando essas... essas roupas de trabalhador do campo! Além
disso, ela está ferida e...
— Afaste-se, Leila.
Diante do tom autoritário de J.B, a mulher de vestido verde calou-se e obedeceu.
Anne pestanejou. Céus, era ele mesmo! Era o próprio J.B. Munro, só que décadas
mais jovem! Em lugar das rugas e dos ralos cabelos brancos, ele apresentava pele lisa e
fartos cabelos loiros. Os olhos azuis, antes apagados pela velhice, mostravam-se agora
brilhantes e vivazes. E lá estava a peculiar cicatriz em forma de "C" perto do olho, para
confirmar-lhe a identidade de uma vez por todas.
Mas como era possível uma coisa dessas? Anne chegou a pensar que estava tendo
uma alucinação, provocada pela batida que dera com a cabeça. Mas não, ela batera a
cabeça depois de ter visto Deborah ser assassinada, e isso significava que... Oh, Deus, o
que significava tudo isso, afinal?
J.B. segurou-lhe o braço sem a menor gentileza e puxou-a para junto de si.
— Onde esteve até agora? — perguntou, irritado. — Quer fazer o favor de me dar
uma explicação para o fato de estar vestida desse jeito?
Uma explicação? A incredulidade de Anne transformou-se em raiva. Quem
precisava de uma explicação era ela, droga! Num gesto brusco, soltou o braço e deu um
passo para trás.
J.B. fitou-a com ar surpreso por um segundo, antes de fazer menção de segurar-
lhe o braço outra vez.
— Deborah está machucada, J.B. — interveio uma voz masculina. — Será que
ainda não percebeu que a testa dela está sangrando?
Anne olhou na direção da voz e arregalou os olhos.
— Oh! É você! — exclamou, sentindo o coração disparar.
Finalmente o encontrei, pensou. Você está aqui! Perturbada, examinou o rosto
másculo e atraente que havia aparecido na visão que tivera antes de entrar na mansão
Munro pela primeira vez. Um rosto bronzeado, de testa larga e queixo forte.
Sobrancelhas escuras encimavam os olhos negros como uma noite sem luar. Olhos que
a fitavam com uma expressão que parecia indagar "Você perdeu o juízo, sua doida?"
Sim, acho que perdi, pensou Anne. Ou melhor, tenho certeza que perdi! Não
havia outra explicação: ou endoidecera de vez ou estava tendo um dos sonhos mais
estranhos de toda a sua vida! Ela notou um rápido brilho de advertência nos olhos do
homem moreno, e voltou a experimentar a mesma excitação que sentira antes, nos
degraus de entrada da mansão. Existia algo de especial entre o desconhecido e ela, não
restava a menor dúvida.
— Não se intrometa, Patrick — resmungou J.B, arrancando Anne de seus
devaneios. — Deborah é minha esposa.
Patrick? O sócio de J.B. na Ferrovia Munro-MacKinnon? O suposto amante de
Deborah? Sem saber por que, Anne sentiu uma pontada de ciúme.
— Não precisa usar esse tom comigo, J.B. Nunca lhe dei motivos para desconfiar
de mim — retrucou Patrick MacKinnon.
Os dois homens se encararam por um instante, como dois leões disputando a
mesma presa, e o ar ficou carregado de tensão. De repente, J.B. pareceu lembrar-se da
presença de Anne. Olhou-a de modo possessivo, declarando:
— Você está proibida de entrar nos túneis outra vez. Ouvirei as suas explicações
mais tarde, depois de cuidar do corte na sua testa. Vamos, venha comigo.
Ele a empurrou de leve pelas costas, mas Anne recusou-se a sair do lugar. Não
sabia o que lhe acontecera nem como havia ido parar ali — onde quer que fosse ali —
sabia apenas que era a contra a sua natureza obedecer cegamente a uma ordem.
— Não vou a lugar nenhum com você — protestou, em tom firme.
— Não? Por Deus, o que há de errado com você? — impacientou-se J.B,
examinando-lhe a calça jeans e a camisa de algodão antes de lançar um rápido olhar na
direção dos convidados da festa. — Venha comigo, agora!
— Não! Eu...
— Você se machucou, Deborah — intrometeu-se Patrick, em tom apaziguador.
Ele tocou-lhe a testa e depois mostrou-lhe as pontas dos dedos manchadas de sangue. —
Está vendo? Por favor, vá com J.B. e deixe que ele lhe faça um curativo.
Anne estava consciente do ferimento, mas estava ainda mais consciente do
homem que a fitava com uma expressão que a instava a obedecer J.B. Não posso ficar
com você?, sentiu vontade de perguntar. Mas sabia que isso só iria piorar a situação,
portanto permaneceu calada.
Desviando o olhar do rosto moreno, tomou uma decisão. Sim, a melhor coisa que
tinha a fazer era obedecer J.B, mas não por causa do pedido de Patrick. Obedeceria
porque precisava pensar, refletir sobre o que lhe acontecera e descobrir um jeito de
voltar para casa.
Depois de pigarrear para limpar a garganta, encarou J.B. Era estranho ter de agir
como se fosse outra mulher, mas não havia outra saída; mais estranho ainda seria ter de
explicar quem era ela, de onde viera e a cena trágica que vira no túnel.
— Está bem — disse Anne, por fim. — Leve-me... leve-me para os meus
aposentos, J.B.
J.B. não pareceu muito satisfeito com o fato de ter sido Patrick a convencer sua
esposa a fazer o que ele mandava, mas não falou nada. Ele simplesmente a segurou pelo
braço e a conduziu para fora do salão apinhado de gente.
O grande hall não mudara muito, refletiu Anne. O lugar continuava quase igual
ao que vira durante a visita turística que fizera antes. Havia lindas tapeçarias e quadros
de artistas renomados pendurados nas paredes.
Foi então que ela viu o retrato, e suas pernas amoleceram. Pestanejou ao olhar
para a figura de Deborah, mais uma vez surpreendendo-se com a incrível semelhança
entre as duas. Deborah, cujo destino fora selado por um homem barbado.
Mais surpreendente ainda foi o zumbido peculiar que começou a ouvir e que
tornava-se cada vez mais alto conforme J.B. e ela aproximavam-se do retrato. Anne
chegou a pensar que o ruído era uma conseqüência da batida que dera com a cabeça e
que a deixara zonza.
Demorou alguns segundos para se dar conta de que estava enganada e que o
zumbido era idêntico ao que ouvira pouco antes de tocar o retrato e viajar
misteriosamente para o passado. Seria o retrato de Deborah o seu passaporte para voltar
ao futuro? Se a pintura fora a porta de entrada para os anos 20, a lógica lhe dizia que a
pintura também serviria como porta de saída...
A cada passo dado por Anne, o zumbido aumentava de intensidade. Quando J.B.
começou a conduzi-la na direção do corredor ao lado do retrato, ela se soltou e correu.
— Só faltava essa! — resmungou J.B, zangado, seguindo-a. — Deborah, por
acaso está querendo que eu perca a paciência de vez?
— Preciso fazer uma coisa. Por favor, espere só um pouquinho — pediu Anne.
Vendo que J.B. fazia menção de segurar-lhe o braço de novo, acrescentou: — Se não
atender o meu pedido, terá de me arrastar daqui pelos cabelos. Os seus convidados iriam
adorar o espetáculo, não acha?
— Tudo bem — concordou J.B, contra a vontade. — Mas não se demore.
Anne não perdeu tempo. Ergueu uma das mãos, tocou o retrato e fechou os olhos,
esperando que a escuridão a envolvesse como acontecera anteriormente. O que
aconteceu, porém, que foi o estranho zumbido cessou de repente. Ela abriu os olhos e
viu que estava no mesmo lugar de antes.
Confusa, deu um passo para trás. E o zumbido recomeçou!
— Já chega, Deborah. Pare de se comportar como louca e venha comigo —
exigiu J.B.
Anne ignorou-o, concentrando toda a sua atenção no retrato. De súbito, lembrou-
se. O medalhão! Como podia ter se esquecido dele? Enfiou a mão sob a gola da camisa
à procura da jóia. Da primeira vez, tocara o retrato ao mesmo tempo em que segurava o
medalhão. A jóia devia ser a chave que abria a porta de comunicação entre o passado e
o futuro e...
Oh, não! O medalhão sumira! Mas como? Lembrava-se de estar usando a jóia no
túnel, pois sentira o objeto de ouro batendo contra o seu peito enquanto engatinhava
para junto do corpo de Deborah. Quando será que o perdera?
— Já esperei mais que o suficiente, Deborah — disse J.B, impaciente. — Pelo
amor de Deus, você está ferida! Precisa de um curativo.
Anne encarou-o e levou as mãos à testa.
— É isso — sussurrou. — Eu o perdi quando caí...
Girando sobre os calcanhares, tomou o rumo da sala onde estava a imensa lareira.
— Deborah!
Ela escutou o chamado de J.B, mas não parou de andar. Ao avistar a lareira a
poucos metros de distância, sorriu, satisfeita, e começou a abrir caminho por entre os
grupos de convidados. Foi então que Patrick MacKinnon bloqueou-lhe a passagem.
— Deixe-me passar — pediu Anne. — Tenho de voltar.
Patrick a segurou pelos braços e chacoalhou-a de leve, indagando:
— O que está acontecendo, afinal? Você está bêbada, Deborah?
— Não! Eu não sou Deborah — disse ela, sem pensar. — E não estou bêbada. Só
preciso voltar para o túnel!
— Você não vai a lugar algum, Deborah, muito menos para o túnel — interveio
J.B, que se aproximara. — Você finalmente conseguiu me fazer perder de vez a
paciência, mulher! Está satisfeita, agora? — murmurou por entre os dentes, furioso,
enquanto a puxava para fora da sala.
4
A luz do sol acordou Anne. Enquanto ela se espreguiçava, sonolenta, ouviu vozes
sussurrantes, femininas, que vinham do rádio-relógio. De olhos fechados, aconchegada
ao calor da cama, ela bocejou. Tivera um sonho esquisitíssimo, e agora a sua cabeça
doía.
As vozes das locutoras de rádio aumentaram de volume. Anne cobriu a cabeça
com o travesseiro. Percebendo que também estava com os braços e as pernas doloridos,
achou estranho. Não fizera nenhum exercício físico no dia anterior. Na verdade, durante
as últimas semanas, não fizera nada mais cansativo que cuidar do pai.
Seu pai! Tinha de dar a ele o comprimido das nove da manhã! Anne sentou-se
depressa na cama, abriu os olhos e viu algo que a espantou.
Rosas. Pequenas rosas brancas e vermelhas enfeitavam as paredes do seu quarto.
Ela pestanejou e olhou para o lençol que a cobria, que também era estampado
com rosas brancas e vermelhas, como o papel de parede. E como a colcha dobrada aos
pés da cama. Confusa, alisou o tecido com as mãos. Não reconheceu o lençol nem a
colcha, muito menos o papel de parede. E o que dizer dos móveis de época espalhados
pelo quarto? Poltronas combinando com os criados-mudos que ladeavam a cama de
casal, abajures de cúpula branca, um biombo em estilo art déco. Tudo o que havia no
aposento parecia ter saído de uma das lojas de antigüidades favoritas da sua mãe.
Anne franziu a testa. Seu olhar pousou sobre uma parede perto da cama que
formava uma espécie de alcova, bloqueando o resto do quarto. Ela levou uma das mãos
à cabeça e notou que alguém lhe pusera uma bandagem na testa.
Trechos do sonho maluco que tivera durante a noite voltaram-lhe à mente. Um
labirinto... Correra por um labirinto de túneis. Começara a subir uma escada, caíra e
batera a cabeça. Em seguida, saíra de dentro de uma lareira e vira uma porção de gente
usando roupas no estilo dos anos 20. Ela se lembrava também de ter visto um
adolescente olhando um carro antigo. Que bizarro!
Ao escutar de novo as vozes femininas Anne olhou ao redor à procura de um
rádio ou de um rádio-relógio, mas não havia nenhum tipo de aparelho no quarto.
Curiosa, levantou-se e contornou em silêncio a parede perto da cama. Levou o maior
susto quando viu duas mulheres ao lado de um guarda-roupa com as portas abertas. As
mulheres deviam ser empregadas, pois trajavam uniformes pretos com avental e touca
branca. Elas estavam dobrando a calça jeans e a camisa que Anne usara no dia anterior.
Anne olhou para a camisola que lhe cobria o corpo. Não se lembrava de tê-la
vestido antes de ir dormir, nem de tê-la comprado algum dia — na verdade, não se
lembrava de nada. Afinal, onde estava, e o que teria lhe acontecido? Fechando os olhos,
tentou pôr a cabeça para funcionar em busca de uma pista. Foi então que ouviu uma das
criadas ralhar com a outra, com um forte sotaque irlandês.
— Fale mais baixo! Quer que a patroa escute o que estamos dizendo? Ela pode
estar acordada, sabia?
— Deborah Munro, acordada antes da hora do almoço? — A segunda empregada
deu uma risadinha cínica. — Está aí uma coisa que eu gostaria de ver, Katy O'Brien!
Deborah Munro.
Oh, céus... Deborah Munro. A névoa de confusão que tomava conta da mente de
Anne dissipou-se como que por encanto. De um segundo para outro ela se recordou de
tudo, nos mínimos detalhes: a visita à mansão Munro, o retrato de Deborah, o homem
barbado que a estrangulara, a festa, J.B. e Patrick, o medalhão perdido. Pelo visto, o que
imaginara ser um sonho era pura realidade. Mas como...?
Uma das criadas virou-se, e Anne escondeu-se atrás da parede.
— A Sra. Munro tem um bom motivo para dormir até tarde, hoje — argumentou
a empregada de sotaque irlandês. — Já esqueceu que ela sofreu um ferimento na
cabeça?
— E você, Katy, já esqueceu onde ela machucou a cabeça? Nos túneis! E sabe
por que ela estava nos túneis? Porque tinha um encontro secreto com...
— Já chega, Edith! Não quero ouvir mais nenhum dos seus mexericos maldosos
sobre a patroa. Não sei por que você a odeia tanto, se todos os outros empregados da
casa gostam dela. Além disso, ela é uma mulher casada e jamais teria coragem de...
Dessa vez foi Edith, a criada que pouco antes dera uma risadinha cínica, que
interrompeu Katy:
— Ah, como você é ingênua! Os outros empregados só gostam de Deborah
Munro porque não sabem nem metade do que eu sei sobre ela. E caso lhe interesse
saber, o fato de ser casada pode significar algo para gente como nós, mas não significa
nada para as pessoas que vivem nesta casa e que não têm o menor senso de moral. Eu já
não lhe contei que o patrão era tutor de Deborah antes de se casar com ela? Pois então,
isso confirma o que estou dizendo.
— Acontece que eu só acredito no que vejo com os meus próprios olhos, Edith, e
o que vi até hoje nesta casa basta para me convencer que a Sra. Munro é uma boa
pessoa. Ela sempre foi gentil comigo. Não descontou um único dia do meu salário
quando fiquei doente, e eu estava trabalhando aqui há apenas seis meses. Nenhuma
outra patroa teria feito isso.
— Não perca o seu tempo defendendo Deborah Munro, a menos que queira
bancar a tola. Vamos, me diga, se ela não tinha um encontro com algum amante, o que
foi fazer nos túneis no meio da festa? E ainda por cima usando roupas de homem, para
se disfarçar!
— Concordo que as roupas são estranhas, mas talvez a patroa as tenha vestido
para cavalgar. Ela adora cavalos, você sabe. Por falar nisso, talvez esses sapatos
estranhos também sejam próprios para cavalgar. Eu nunca tinha visto nada parecido,
antes. Céus, e eu que achava que aquelas botas pontudas de caubói é que eram
estranhas!
— Por Deus, Katy, você é mesmo ingênua! Deborah Munro foi se encontrar com
um homem, e não andar a cavalo. Quanto a estes sapatos, eu também nunca tinha visto
nada parecido. Mas dê uma olhada aqui. Não é um nome de homem bordado aqui do
lado? Leia, está escrito Mike.
Anne franziu a testa. O nome Mike? Bordado nos seus tênis?
Depois de um momento de silêncio, ela escutou Katy rir baixinho e comentar:
— Posso ser ingênua, Edith, mas sei ler melhor que você. Esta primeira letra é
um "N", não um "M". Repare, aqui está escrito Nike, em vez de Mike. Não sei o que a
palavra significa, mas com certeza não é nome de gente.
Anne sorriu, divertida. As duas empregadas estavam falando da marca dos tênis!
— Não importa o que está escrito nos sapatos — resmungou Edith, na defensiva.
— O que importa é o que Deborah Munro foi fazer nos túneis. Talvez, por causa disso,
ela seja mandada embora de novo.
— Você acha? — indagou Katy, em tom preocupado.
— Acho, sim. Foi por causa desse mesmo tipo de comportamento que o Sr.
Munro afastou a esposa da mansão quatro anos atrás. Tentaram abafar a história,
dizendo que ela tinha ido visitar parentes em outro Estado, mas eu fiquei sabendo que o
patrão brigou com Deborah uma dia antes de ela ir embora. O motivo da briga, é óbvio,
foi um dos casos escandalosos da patroa. Ele não queria que a cidade inteira soubesse
que...
— Edith! Por acaso você ficou ouvindo a discussão dos dois atrás de alguma
porta?
— Bem, para ser sincera, eu não pude deixar de ouvir, Katy. Os dois estavam
discutindo aos berros. Pensei até que o patrão fosse bater na mulher! Ele estava gritando
e jogando coisas no chão e nas paredes, enquanto a esposa chorava e implorava pelo
divórcio.
— Por favor, Edith, prefiro não ouvir mais nada.
— Tem certeza? Não quer nem ouvir por que o patrão estava mandando a mulher
embora de casa, e por que ela queria o divórcio? Pois fique sabendo, sua tonta, que a
mulher que você teima em defender tem um passado vergonhoso. Ela...
A porta do quarto se abriu de repente e Edith parou de falar.
— Sr. Munro! — exclamou a empregada mexeriqueira, assustada. — Nós... Nós
estávamos arrumando as roupas da sua esposa, mas já acabamos o serviço. Com licença,
senhor... Venha, Katy.
Ao perceber que as mulheres saíam do quarto, Anne voltou correndo para a cama
e fingiu que estava dormindo. Por Deus, o sonho estava se transformando num
pesadelo!
Sua cabeça doía muito, e a última coisa de que ela precisava agora era de uma
conversa com J.B. Munro. Ainda mais se ele ainda estivesse tão zangado quanto na
noite anterior!
Anne sentiu o colchão afundar quando J.B. sentou-se na beirada da cama. Ele a
segurou pelos ombros e chacoalhou-a sem a menor gentileza.
Acorde, Deborah. Vamos, acorde. Ela conservou os olhos fechados, o rosto
impassível. Pare de fingir, Deborah. Sei que já acordou — disse.
Anne continuou a respirar em ritmo lento, como alguém que estivesse num sono
profundo. Precisou controlar-se ao máximo para manter-se imóvel quando J.B.
aproximou seu rosto do dela e lhe acariciou de leve o pescoço.
— Devo tentar acordá-la como um marido amoroso o faria? — sussurrou ele,
sarcástico.
Uma briga com J.B. não era a última coisa de que Anne precisava. Pensando
nisso, ela abriu depressa os olhos.
— Ah, eu sabia que isso a faria acordar — riu J.B, pondo-se de pé.
Anne encarou-o, procurando esconder o espanto que a dominou. Ele era o mesmo
homem que vira num dos retratos durante a visita turística à mansão. Mas como isso era
possível?
— Precisamos conversar, mulher. — J.B. falou em tom educado, mas seus olhos
mais pareciam duas pedras de gelo. — Precisamos ter uma conversinha a respeito do
seu ódio por mim, do seu desejo de destruir o meu nome nessa cidade. Um assunto
fascinante, não acha?
Anne permaneceu calada e ele prosseguiu:
— E então, não vai dizer nada? Pensei que o assunto iria interessá-la. Afinal,
escândalos e mexericos são o seu forte, não é mesmo? Imaginei que você estaria ansiosa
para falar sobre as suas últimas tentativas de me desgraçar. Vamos lá, não vai fazer
nenhum comentário sobre como conseguiu reavivar rumores que há quatro anos
estavam esquecidos?
Anne continuou muda.
— O seu silêncio me surpreende, Deborah. — J.B. tornou a rir com cinismo. —
Não quer mesmo se vangloriar do sucesso do seu plano para me humilhar? Por favor,
não se finja de modesta só por minha causa. Você planejou tudo direitinho. Primeiro
ofereceu uma festa em minha homenagem, depois fez questão de ser vista saindo do
salão com um outro homem. E é claro que todo mundo comentou o fato, exatamente
como você queria!
Estremecendo diante da crueldade de tal acusação, Anne baixou a cabeça. J.B.
continuou, implacável:
— Ignorei todos os rumores que ouvi nos últimos meses, decidido a lhe conceder
o benefício da dúvida. Mas, pelo visto, banquei o tolo. Você andou sendo leviana outra
vez, como todo mundo já sabia. Todo mundo menos eu! E o espetáculo da noite passada
foi planejado para mostrar aos habitantes da minha cidade o quanto tenho sido idiota,
certo?
J.B. correu os dedos pelos cabelos e torceu a boca num gesto de asco. Ele virou o
rosto, como se não suportasse olhar para a mulher na cama por mais um único segundo.
Anne suspirou, pesarosa. Se não estivesse tendo um pesadelo, se o que estivesse
acontecendo fosse mesmo real, isso significava que Deborah era uma pilantra de marca
maior.
— Vai continuar calada? Pois o que tenho para lhe dizer agora talvez estimule a
sua vontade de falar — declarou J.B, ameaçador. — Acho que você está precisando de
um período de descanso, minha querida. De um longo período de descanso, para ser
mais exato. Por isso, hoje de manhã, dei um telefonema para um hospital em Missouri.
— Você... telefonou para um hospital? — murmurou Anne, por fim.
O pesadelo estava assumindo um ar mais real e assustador a cada minuto que
passava.
— Oh, vejo que o assunto despertou o seu interesse. Sim, telefonei para um
hospital. Geralmente o processo de internação demora algum tempo, mas parece que
ainda me resta um pouco de influência para apressar as coisas. E depois do que você fez
na noite passada, será ainda mais fácil convencer os médicos de que você não anda no
seu estado normal.
Anne aprumou-se na cama, imaginando-se internada num hospício dos anos 20.
Ah, não, de jeito nenhum! É claro que já pensara na possibilidade de ter ficado louca;
no fundo, porém, sabia que estava mais lúcida que nunca. A situação em que se
encontrava é que era maluca, isso sim! Mas ela sabia como sair dessa situação, usando o
medalhão e o retrato de Deborah.
Chegara a hora da verdade. Hora de contar a J.B. que ela não era a mulher que ele
queria mandar para um hospício. Hora de revelar que não era a adúltera e escandalosa
Deborah, pois Deborah estava morta num dos túneis sob a mansão. Hora de revelar que
ela era Anne, uma para-médica que cuidara dele nos anos 90 e...
Céus, agora sim Anne devia ter enlouquecido! Era óbvio que J.B. jamais
acreditaria nessa história. Ao contrário, ele iria repetir para os médicos tudo o que
ouvira e ela passaria o resto da vida internada como doida incurável.
Não, Anne não podia contar nada para J.B, a menos que mostrasse o corpo de
Deborah como prova do que dizia. Mas quanto tempo seria necessário para encontrar o
corpo de Deborah? Dias, talvez semanas. Sendo assim, o melhor a fazer era evitar a
verdade a qualquer custo e recuperar o medalhão!
Pense, ordenou Anne a si mesma. Pense num jeito de enganar de J.B. e ganhar
tempo para poder sair dessa enrascada.
— Vai ficar muda, Deborah? — J.B. cruzou os braços Um sorriso de satisfação
curvou-lhe os lábios. — Fico feliz em ver que você concorda com os meus planos. Para
mim tanto faz se você acha que precisa mesmo de um descanso ou se está apenas
aborrecida com os amantes que arranja por aí. Já fico contente só de vê-la com essa
expressão confusa, sem saber o que dizer.
Anne arregalou os olhos e cerrou os punhos, dominada por uma raiva intensa.
Deborah podia ter sido a maior pilantra do Estado de Oklahoma, mas o marido dela
também não era nenhum santo. O homem que estava à sua frente não era o velhinho
doente que conhecera; ele não era fraco nem indefeso, era perigoso!
Na atual circunstância, o melhor seria fazê-lo experimentar um pouco do próprio
remédio. Anne pigarreou, recostou-se na cabeceira da cama e, forçando-se a assumir
uma expressão entediada, declarou:
— Você está me subestimando, J.B, e isso me surpreende. Você não chegou à
posição que ocupa hoje subestimando as pessoas.
— Tem razão. Eu não costumo subestimar ninguém. Admito, contudo, que já
cometi alguns erros no passado, principalmente no que diz respeito a você. Mas não se
preocupe, sou do tipo que não comete o mesmo erro duas vezes.
— Será? — provocou Anne, fingindo uma coragem que nem de longe sentia. Em
seguida, ameaçou: — Se você quiser que o "episódio" de quatro anos atrás continue
sendo um segredo de família, trate de não assinar nenhuma guia de internação
hospitalar, entendeu?
J.B. riu, abalando a confiança de Anne. Droga! Edith não dissera a Katy que J.B.
fizera questão de abafar o caso? Será que não era esse o ponto fraco dele?
— Está querendo me chantagear, Deborah? Pensei que seu forte fosse o adultério
— retrucou J.B, antes de acrescentar: — Se você tentar me prejudicar ainda mais, darei
um jeito de deixá-la trancafiada no hospital até que todos os habitantes da cidade
esqueçam que um dia você existiu.
Ele fez a ameaça soar de modo convincente, mas Anne percebeu algo: J.B.
Munro tinha um tique. Um tique nervoso na cicatriz sob o olho esquerdo. Então ele não
está tão seguro quanto quer parecer, pensou Anne, enquanto argumentava:
— Antes de ser trancafiada, meu caro, posso muito bem arrastar o sobrenome
Munro na lama.
— Munro também é o seu sobrenome, Deborah.
O tique nervoso tomou-se ainda mais perceptível. J.B. passou a ponta dos dedos
sobre a cicatriz. Ao notar que Anne observava-lhe o gesto, apressou-se a enfiar as mãos
nos bolsos da calça.
— Acho que dá para adivinhar, pelo meu comportamento, que eu não ligo a
mínima para o sobrenome Munro — afirmou Anne, dando de ombros.
Com medo de que a ameaça de revelar um segredo de família não fosse suficiente
para deter os planos de J.B, ela resolveu blefar mais uma vez:
— A propósito, meu caro, também não costumo subestimar as pessoas. Eu sabia
que você iria tentar me punir pelo que fiz ontem na festa. Por isso, tomei providências
para que você pagasse bem caro caso conseguisse arranjar um modo de me castigar. O
homem com quem me encontrei na noite passada está a par de tudo o que aconteceu
quatro anos atrás. Pedi a ele que revelasse todos os detalhes caso ficasse sabendo que,
de repente, eu tinha ido "visitar parentes em outro Estado".
J.B. estreitou de leve os olhos, e Anne jogou sua última cartada:
— Ele... ele tem um parente que é repórter.
— Um parente?
— Um primo, para ser mais exata.
— Esse primo trabalha para algum jornal local?
— Não, o rapaz trabalha para um jornal de circulação nacional.
— Não acredito em você.
— Problema seu, meu caro.
A cicatriz sob o olho de J.B. começou a pulsar mais depressa.
— Você não é tola, Deborah. Deveria saber que está provocando o homem
errado.
— A meu ver, J.B, é você que está provocando a mulher errada.
— Acontece que essa mulher é minha esposa! — esbravejou ele.
— Pois saiba que a sua esposa não passará um único dia num hospital. A menos,
é claro, que você queira ver o seu precioso sobrenome jogado na lama.
Os dois se encararam com fúria, e a discussão transformou-se num jogo para ver
quem desviava primeiro o olhar.
Apesar de toda a sua determinação, J.B. foi o primeiro a romper o contato visual.
Ele balançou a cabeça e, por um breve instante, Anne imaginou ter detectado uma
sombra de tristeza no rosto dele.
— Você se saiu bem, Deborah. mas a vitória não terá um sabor tão doce quanto
você imagina — afirmou J.B, tenso. — A partir de agora você está proibida de se
afastar da mansão, de se aventurar pelos túneis ou de fazer qualquer coisa que me deixe
embaraçado na frente de Harrison Wyndham enquanto ele estiver hospedado aqui. A
cidade investiu muito para conquistar a cooperação de Wyndham, e eu não quero que
você arruíne os meus projetos. Trate de assumir o papel de esposa apaixonada e
atenciosa, entendeu?
Ao terminar de falar, J.B. saiu do quarto pisando duro e fechou a porta com força.
Anne jogou-se de bruços na cama, gemendo baixinho. A tensão que
experimentara momentos atrás se dissipara com a partida de J.B, mas o medo continuava
presente — medo de ter pressionado demais um homem tão poderoso.
Mas não adiantava nada ficar pensando na discussão que acabara de acontecer.
Tinha de agir, e depressa. Afastando o lençol florido, Anne pôs-se de pé e foi até a
alcova onde estava o guarda-roupa. Ignorando a dor de cabeça que sentia, procurou e
encontrou a sua calça jeans. Havia acabado de vesti-la quando seu olhar pousou sobre a
janela ao lado do guarda-roupa.
Não acredito no que estou vendo, pensou, assustada. Não posso acreditar!
A janela dava para os jardins da frente da mansão, oferecendo uma ampla visão
da entrada para carros. Havia dez ou mais automóveis estacionados lá embaixo. Quando
Anne fizera a visita turística à mansão, no dia anterior — ou melhor, setenta anos no
futuro —, carros semelhantes àqueles eram considerados como antigüidades. Mas ali,
agora, os mesmos automóveis tinham apenas alguns anos de uso.
Um grupo de pessoas saiu da mansão e se aproximou dos carros. Obviamente,
muitos dos convidados da festa haviam passado a noite nos vários quartos de hóspedes
da imponente residência.
Anne observou de olhos arregalados as roupas das pessoas. As mulheres usavam
chapéus coloridos e casacos com gola de pele. Os homens trajavam sobretudos
elegantes por cima dos ternos bem-talhados e usavam chapéus coco.
Afastando-se da janela, Anne suspirou e tirou a calça jeans. Não podia usá-la,
pois chamaria demais a atenção se vestisse algo diferente das outras mulheres.
Tornando a suspirar, examinou as roupas penduradas no interior do imenso guarda-
roupa.
Betty, a guia turística, não havia exagerado. Deborah Munro fora mesmo uma
escrava da moda da época. Os cabides estavam cheios de vestidos com etiquetas
famosas: Chanel, Lanvin, Patou, Worth, Vionnet. O vestido que mais impressionou
Anne foi um de cetim prateado que lembrava um pouco o estilo egípcio. Deborah podia
ter sido uma grande desmiolada, mas ninguém podia negar que tivera bom gosto e
soubera viver cercada de luxo.
Anne pegou um dos vestidos mais simples, apropriado para ser usado durante o
dia, e vestiu-o. Quando ia guardar a calça jeans ouviu o tilintar das moedas que estavam
no bolso e que, por sorte, as empregadas não tinham tirado dali. Ela pegou as moedas,
junto com a sua carteira de motorista. Olhou para a data de nascimento escrita na
carteira, 1966, e estremeceu ao pensar na impossibilidade do que estava lhe
acontecendo. Como podia estar na década de 20 se só iria nascer dali a uns quarenta
anos?
5
Patrick beijou-a no pescoço e depois beijou-a nos lábios outra vez. Suas mãos
deslizaram da curva da cintura fina até os ombros roliços, e em seguida insinuaram-se
pelo decote da camisa. Ao mesmo tempo, sua língua voltava a explorar a boca macia
que um dia já fora sua.
Sua. Deborah deveria ter continuado sendo sua pelo resto da vida. Voltar a beijá-
la depois de tantos anos trouxera-lhe lembranças dos planos que havia feito para os dois.
Uma família. Ele queria ser parte de uma família outra vez. Deborah acariciou-lhe os
cabelos enquanto ele mudava de posição para aprofundar ainda mais o beijo, Os quadris
femininos moldaram-se aos dele; Patrick perdeu a noção do presente e retornou ao
passado, lembrando-se dos bons momentos que passara em companhia de Deborah: as
conversas que haviam tido, o riso compartilhado, os carinhos trocados, as horas que
haviam gasto fazendo amor.
Horas em que experimentara a mesma deliciosa sensação que experimentava
agora.
Mas não, estava enganado. O que acontecia agora era mil vezes melhor do que
tudo o que já acontecera antes. A mulher em seus braços parecia diferente, de algum
modo que ele não era capaz de definir. Patrick sabia apenas que os beijos de Deborah
tinham sido menos apaixonados e urgentes no passado. Ele a amara de verdade mas,
levando em consideração o que Deborah lhe dissera antes de casar-se com J.B,
concluíra que ela apenas sentira uma forte atração sexual por ele. Agora, porém,
Deborah estava agindo do modo com que Patrick sempre sonhara, entregando-se
totalmente, sem reservas.
Ela deslizou as mãos para debaixo da camisa de Patrick, acariciando-lhe o peito, e
ele voltou a gemer. Louco de excitação, Patrick começou a desabotoar a camisa de seda
que cobria os seios fartos e firmes de Deborah. Desejava tocá-la, sentir a maciez e o
calor daquela pele contra a sua própria pele. Desejava experimentar mais uma vez a
sensação paradisíaca de ter aqueles seios roçando contra o seu peito nu, a sensação
maravilhosa de beijá-los e mordê-los bem de leve para depois sugar os mamilos
rosados.
Sim, Patrick se lembrava. Deborah fora sua antes de tomar-se esposa de J.B! Tal
pensamento teve o poder de trazê-lo de volta à realidade. Arrasado por um intenso
sentimento de culpa, ele interrompeu o beijo e as carícias. Por Deus, o que estava
fazendo? Deborah não mais lhe pertencia! Agora ela era a mulher de J.B!
Patrick empurrou-a para longe de si.
Cobrindo os olhos com as mãos, ele balançou a cabeça. Pretendera ensinar uma
lição a Deborah, provar que ela jamais mudaria. Como pudera permitir que situação
escapasse do seu controle? Pior que isso, o que o levara a cometer um ato tão insano?
Baixando as mãos, Patrick abriu os olhos e encarou Deborah. Ela estava
abotoando a camisa de seda com dedos trêmulos. Lágrimas escorriam pelo rosto corado
e deslizavam sobre os lábios inchados pelos beijos de poucos segundos atrás.
— Maldição! — exclamou Patrick, tenso.
Ele se virou de costas e arrumou a própria camisa, que escapara para fora do cós
da calça, Pensando ter ouvido a voz de Deborah, olhou para trás.
— O que disse?
— N-nada — respondeu ela, enxugando as lágrimas com as costas das mãos
antes de fitá-lo.
Por um instante Patrick teve a impressão de que os olhos verdes de Deborah
pareciam um tom mais escuro que o normal. E a expressão com que ela o fitava tinha
uma força e uma profundidade da qual Deborah não era capaz. Será que estava tendo
uma alucinação? De repente, ela pigarreou e deu um passo à frente,
— Fique longe de mim — ordenou Patrick. — Por favor, fique longe de mim,
Deborah!
Ela assentiu e recuou, afirmando:
— Fique tranqüilo, nunca mais irei me aproximar de você. Mas quero lhe pedir
um favor, também. Não me chame de Deborah.
Patrick lembrou-se no mesmo segundo da estranha frase que ela dissera na noite
anterior. Eu não sou Deborah. Franziu a testa, curioso, pensando no quanto ela parecia
mudada. Agora há pouco Deborah agira como uma mulher completamente diferente do
que sempre fora, uma mulher que ele nunca conhecera antes, que correspondera às suas
carícias com um ardor inusitado. E os olhos dela...
Ora, que tolice! Ele até podia estar disposto a imaginar que a mulher que se
derretera de paixão em seus braços não era Deborah Munro, mas existia uma grande
distância entre "imaginar" e "acreditar". E por mais que deixasse a imaginação correr à
solta, nada alterava o fato de que Deborah era a esposa de J.B. Munro. Seria loucura
esquecer-se disso, mesmo que por um breve momento.
— Você tem razão — murmurou Patrick, por fim. — O seu nome não é Deborah,
é Sra. J.B. Munro. E eu já aceitei esse fato há muito, muito tempo.
Anne estava tão zangada quanto Patrick, ou mais. Assim que *montado em
Cherokee para procurar Sophie, ela se recriminou por ter permitido que o beijo
acontecesse. Irritada, pegou um pedregulho do chão e atirou-o com força no riacho.
Como pudera ser tão estúpida e tão irresponsável a ponto de não ter pensado no quanto
o beijo abalaria Patrick MacKinnon? Desde quando tornara-se tão egoísta?
A expressão de vergonha e de arrependimento que vira no rosto de Patrick
quando ele a afastara voltou-lhe à mente. Droga! Era ela que devia estar envergonhada,
e não Patrick. Afinal, sabia muito bem que ele amara Deborah, antes de perdê-la para o
melhor amigo. Além disso, havia a questão da sua própria identidade.
Patrick não sabia que havia beijado e acariciado outra mulher. Ele acreditara estar
beijando Deborah, acreditara que fora Deborah que correspondera às suas carícias.
Droga, mil vezes droga!
Anne não estava absolvendo Patrick de toda responsabilidade pelo que
acontecera, claro. Fora ele quem havia começado tudo, portanto merecia sentir um
pouco de culpa também. Por outro lado, Anne sabia que não deveria ter permitido que a
situação chegasse ao ponto em que chegara. Tinha de ter interrompido o beijo antes que
ele se tornasse tão... tão incrível!
Teria sido fácil recuar se o beijo tivesse sido normal ou sem graça. Mas nunca,
em toda a sua vida, Anne fora beijada com tanta paixão e sensualidade, a ponto de
sentir-se prestes a desmaiar de emoção. Mulher nenhuma no mundo teria tido força de
vontade para resistir a um beijo tão avassalador.
Ah, mas como ela gostaria de ter a chance de testar a sua força de vontade outra
vez...
Sentando-se numa pedra e enterrando o rosto entre as mãos, Anne suspirou.
Quero voltar para casa. Por favor, meu Deus, deixe-me voltar para casa.
Alegar que sentia uma forte dor de cabeça não havia adiantado nada. J.B. fizera
questão de que sua esposa participasse do jantar que ele estava oferecendo naquela noite
aos líderes da comunidade. E mais, J.B. insistira para que ela se comportasse direito,
caso contrário...
— Nunca vi ninguém tão preocupado com a própria auto-imagem quanto J.B. —
resmungou Anne em voz inaudível, enquanto levava à boca uma garfada de bolo de
chocolate com cobertura de chantilly.
Ela não sabia quem a mataria primeiro, o homem que assassinara Deborah ou os
alimentos cheios de calorias e colesterol que consumira esta noite. Como não havia
comido nada desde que chegara, a princípio Anne não pensara em mais nada além de
saciar a fome. Mas agora, depois de uma refeição à base de carne vermelha e molhos
gordurosos, sem mencionar os doces servidos à sobremesa, ela estava descobrindo mais
uma razão para voltar o quanto antes para os anos 90: preservar a sua saúde.
Nesse momento, a mulher sentada ao lado de Anne à mesa abriu a bolsa que tinha
no colo e pegou uma piteira de jade. Em seguida, a mulher enfiou um cigarro — sem
filtro, claro — na ponta da piteira e acendeu-o, lançando uma pequena nuvem de
fumaça azulada na direção do rosto de Anne.
— Quer fumar também, querida? — perguntou a mulher, oferecendo-lhe um
cigarro.
Anne pestanejou, reprimindo a vontade de soprar para longe a nuvenzinha tóxica.
Será que Deborah fumava? Era provável que sim, pois todo mundo por ali fumava. Mas
havia um limite para o que Anne estava disposta a fazer enquanto era obrigada a
assumir a identidade de sua sósia.
— Não, obrigada — respondeu ela, com delicadeza. — Talvez eu fume mais
tarde.
A mulher sorriu e soltou mais algumas baforadas de fumaça antes de tornar a
abrir a bolsa e pegar um frasco de bebida. Olhando para as outras convidadas, Anne
notou que várias delas também haviam tirado frascos de bebida da bolsa. Que doidice!
Anne teve a sensação de estar assistindo a um filme antigo, ou de ter sido convidada
para participar de uma peça de época onde todo mundo conhecia o script, menos ela.
Para as outras pessoas devia ser fácil agir com naturalidade, refletiu Anne,
pesarosa. Afinal, ninguém mais precisava fingir que era Deborah Munro. Mas por que
logo ela fora escolhida para desempenhar o papel de uma mulher fútil e desajuizada,
detestada pelo marido, desprezada pelo ex-amante, e que ainda por cima fora
estrangulada por um homem barbado?
Anne estremeceu. Ainda não havia parado para pensar com calma no assassinato
porque estivera ocupada demais tentando encontrar um jeito de entrar nos túneis, Mas
agora que já não tinha tanta certeza de conseguir retornar logo para o futuro, a
possibilidade de o assassino de Deborah vir atrás dela começava a preocupá-la. E se o
tal homem fosse algum aliado de J.B. nos negócios? E se o sujeito houvesse
comparecido ao jantar desta noite? Na certa ele teria ficado chocado ao entrar na
mansão e ver Deborah circulando por entre os convidados, sem nenhuma marca roxa no
pescoço.
Por sorte, isso não acontecera. Não havia nenhum homem barbado entre os
convidados de J.B. Mas até quando essa sorte iria durar?
Olhando para J.B, sentado na outra pontada da mesa, Anne levou uma das mãos à
testa e fez uma rápida careta de dor enquanto movia os lábios para formar em silêncio a
frase "Estou com dor de cabeça, posso me retirar?" J.B. balançou de leve a cabeça e
lançou-lhe um olhar cujo significado era óbvio: "não".
Anne pousou as mãos sobre o colo e suspirou. Olhou ao redor até avistar a figura
de Patrick MacKinnon.
Patrick... Ela já o achara bonito usando roupas apropriadas para cavalgar. Mas
agora, usando um elegante traje social, ele estava simplesmente devastador! O terno
risca-de-giz de corte impecável realçava-lhe os ombros largos. O colarinho engomado
da camisa branquíssima contrastava com o bronzeado do rosto e com os cabelos pretos.
A gravata de seda combinava com o lenço no bolso do paletó, um detalhe sem dúvida
destinado a atrair a atenção feminina. E o truque funcionava, concluiu Anne, notando
com uma pontinha de ciúme que muitas das mulheres à mesa não tiravam os olhos de
Patrick. A moça sentada ao lado dele, por exemplo, não cessava de dirigir-lhe sorrisos
sedutores. Uma outra mulher o fitava como se estivesse prestes a pular a mesa para ir
aninhar-se no colo dele.
Ao estender uma das mãos para pegar a taça de vinho à sua frente, Patrick
percebeu que Anne o encarava e franziu a testa. Ela enrubesceu e virou o rosto,
depressa. Lembrava-se com clareza do que Patrick lhe dissera à tarde. Fique longe de
mim.
Suspirando novamente, Anne disse a si mesma que trataria de obedecer a ordem,
Podia ter bancado a tola ao brincar com fogo horas antes, mas aprendera a lição. Patrick
MacKinnon era uma fogueira sexual, e o melhor que tinha a fazer era se manter afastada
dele.
O som de vozes no hall vizinho à sala de jantar chamou a atenção de Anne. Ela
olhou para trás e viu o mordomo conversando com uma mulher. Vestida de modo muito
simples, se comparada à elegância e ao luxo das convidadas, a mulher dizia com voz
chorosa que precisava falar com J.B. Quando o mordomo explicou que o pedido era
impossível de ser atendido no momento, a voz da mulher tomou-se mais insistente, mais
alta. E então, ao perceber que Anne a observava, a mulher calou-se e lançou-lhe um
olhar carregado de ódio.
Era só o que faltava!, pensou Anne, aflita. O que será que aconteceu dessa vez?
Quanto mais o mordomo tentava acalmar a mulher, mais ela se mostrava
determinada. Finalmente o mordomo se afastou da mulher e entrou na sala de jantar
para cochichar algo ao ouvido de J.B. Segundos depois, pedindo licença aos
convidados, J.B. seguiu o mordomo até o hall.
Alguma coisa de grave devia ter acontecido, refletiu Anne. Era óbvio que J.B.
pretendia se livrar da mulher, mas depois que os dois trocaram algumas palavras ele
olhou furioso na direção de Anne.
Anne encolheu-se na cadeira ao ouvir trechos das frases ditas pela mulher.
Meu marido... Sua esposa...
As pessoas presentes na sala de jantar haviam parado de conversar e prestavam
atenção na conversa de J.B. com a mulher. Harrison Wyndham, o banqueiro de Boston,
parecia ligeiramente mais interessado que os outros no que acontecia. Anne rezou para
o desejo de J.B. de não provocar escândalos na frente dos convidados o impedisse de ter
uma explosão de raiva. Mas suas preces não foram atendidas.
J.B. voltou para a sala de jantar e aproximou-se dela, sem fazer o menor esforço
para esconder a irritação que o dominava.
— Venha comigo, Deborah. Precisamos ter uma conversa com uma visitante
inesperada — disse ele, antes de dirigir-se aos convidados: — Se vocês nos derem
licença por alguns minutos...
Ao terminar de falar, J.B. segurou Anne pelo braço e praticamente a arrastou até
o seu escritório. A "visitante inesperada" já fora conduzida até lá pelo mordomo.
Depois de fechar a porta do escritório, J.B. convidou a mulher a sentar-se e
entregou-lhe um lenço para enxugar as lágrimas. A dor de cabeça que Anne fingira estar
sentindo há pouco transformou-se numa dor real.
— Explique-se, Deborah — ordenou J.B, enquanto se sentava à sua mesa de
trabalho e tirava um molho de chaves do bolso para destrancar uma gaveta. — Vamos
lá, a Sra. Tompkins e eu merecemos uma explicação — disse ele, enquanto tirava um
caderninho com capa de couro de dentro da gaveta.
— Eu... Eu não conheço esta senhora — declarou Anne, cabisbaixa.
A visitante parou de chorar e encarou Anne com um olhar que mesclava
hostilidade e esperança. Ela usava um chapéu marrom meio amassado que nem de longe
combinava com o casaco preto de tecido puído, e calçava sapatos velhos de salto baixo.
Uma inexplicável onda de culpa assaltou Anne, que usava um caríssimo vestido
francês, dois longos colares de pérolas e elegantes sapatos de salto alto. Mas nada disso
é meu, é tudo de Deborah, pensou ela num gesto de autodefesa. Assim como era de
Deborah o crime do qual estava sendo acusada.
— A senhora não me conhece, mas conhece o meu marido, não é mesmo? O
nome dele é Roy Tompkins — disse a mulher de repente, tirando uma fotografia do
bolso do casaco e entregando-a a Anne. — Por favor, não tente negar. A senhora teve
um caso com o meu marido, eu sei. Ele mesmo me contou. Roy disse que amava a
senhora, mas que não conseguia aceitar o fato de não ser correspondido, não conseguia
aceitar a idéia de que a senhora só queria uma aventura. Por isso... Por isso Roy foi
embora da cidade. Ele me abandonou, e abandonou os filhos, por sua causa. Foi isso
que Roy me disse, e eu... eu quero saber se é verdade.
Maldita seja você, Deborah, pensou Anne, sentindo uma imensa pena da pobre
mulher. Se você já não estivesse morta, eu mesma a estrangularia com as minhas
próprias mãos!
Mas... Espere um pouco. Deborah estava morta. E talvez esse tal de Roy
Tompkins fosse o assassino! Uma briga entre amantes era um bom motivo para um
assassinato, não era? A mulher havia dito que seu marido fora embora da cidade...
Talvez ele estivesse fugindo, com medo de ser preso e condenado à morte quando o
crime fosse descoberto. Esperançosa, Anne examinou a foto que a Sra. Tompkins lhe
entregara à procura de uma pista para o mistério.
Suas esperanças foram em vão. O homem da foto não tinha barba nem qualquer
outro ponto em comum com o assassino. Roy era loiro, em vez de moreno; magro, em
vez de forte, encorpado. Anne ficou desapontada, mas o seu desapontamento
desapareceu assim que ela olhou para a mulher abandonada pelo marido. Coitada! Ser
casada com um homem infiel já era ruim; se ainda por cima o sujeito fosse um
assassino, a situação seria mil vezes pior.
— E então, Deborah, você conhece esse tal de Roy Tompkins?
Anne assustou-se quando a voz de J.B. rompeu o silêncio que reinava no
escritório. Ela o fitou que viu que havia algo além de raiva no olhar dele: havia
esperança, também. Assim como a Sra. Tompkins viera procurá-la esperando que ela
negasse ter sido amante do tal de Roy, J.B. também esperava que ela desmentisse a
história.
J.B. pegou uma caneta-tinteiro e abriu o caderninho com capa de couro, que na
realidade era um talão de cheques, e afirmou:
— Quero ajudar esta pobre senhora, mas primeiro preciso saber se o que ela disse
é verdade. E só você pode confirmar a história, Deborah.
— Oh, não! Eu não quero o seu dinheiro, Sr. Munro! — protestou a Sra.
Tompkins, pondo-se de pé. — Só quero saber se Roy estava falando a verdade.
Anne engoliu em seco, sem saber o que fazer. Será que Deborah tinha mesmo
sido amante de Roy? A resposta mais óbvia era "sim". Deborah devia ter se divertido
um pouco com o tal sujeito antes de chutá-lo para escanteio. Afinal, não fora isso que
ela fizera com Patrick?
Além disso, mesmo que a história fosse falsa, Anne não podia deixar de ver que a
Sra. Tompkins iria precisar de dinheiro para sustentar os filhos, agora que o marido a
abandonara. E já que J.B. estava pronto para assinar um cheque, por que não aproveitar
a chance para ajudar a coitada?
— Responda logo, Deborah, você conhece ou não o marido desta senhora?
Anne abriu a boca, disposta a confessar a traição em lugar de Deborah. Mas
quando viu a expressão esperançosa no rosto de J.B, mudou de idéia. Céus, não
importava o que dissesse, alguém sairia magoado dessa história toda! Mais uma vez
Anne desejou que Deborah não tivesse morrido, para que ela pudesse enfrentar
pessoalmente a terrível situação. Era a própria Deborah quem deveria estar pagando
pelos erros que cometera, e não duas pessoas inocentes, pensou Anne, notando que o
tique nervoso de J.B. voltava a se manifestar.
Isso a fez lembrar da ameaça de ser mandada para um hospício, e um arrepio
percorreu-lhe a espinha. Se desse um passo em falso, acabaria trancafiada num quarto
com paredes acolchoadas e grades nas janelas. Sentiu vontade de sair correndo, mas não
tinha para onde fugir.
— Responda, Deborah! — ordenou J.B, perdendo a paciência.
— Por favor... Eu... Eu não sei o que dizer...
— É simples. Por que não experimenta dizer a verdade?
— Mas eu não sei qual é a verdade! — gritou Anne, perdendo o autocontrole.
A Sra. Tompkins arregalou os olhos, espantada.
— Deborah... — murmurou J.B, por entre os dentes.
— Dê um cheque à Sra. Tompkins — retrucou Anne, tentando acalmar-se. — É
óbvio que ela precisa de dinheiro, não é? Eu confirmarei a história toda se você...
— Não! — exclamou a mulher. — Pode guardar o seu talão de cheques, Sr.
Munro. Eu jamais pensaria em...
Anne segurou a Sra. Tompkins pelo braço, argumentando:
— Por favor, aceite o cheque, pelo bem dos seus filhos. Orgulho não irá pagar as
suas contas e nem comprar comida para alimentar a sua família. A senhora precisa...
— Eu não preciso da sua caridade, Sra. Munro! — protestou a mulher, soltando o
braço e dando um passo para trás. — Não aceitarei um único centavo!
— Por favor, eu insisto. Esqueça o que o seu marido fez e...
— Não, eu queria apenas saber...
— ... aceite o cheque...
— ... se o meu Roy...
— ... pelo bem dos seus filhos...
— Calem-se, as duas! — esbravejou J.B, vendo que elas falavam ao mesmo
tempo. — Discutir desse jeito não nos ajudará a resolver o assunto.
— J.B., eu já confessei. Agora trate de preencher o cheque — exigiu Anne.
— Não! — teimou a Sra. Tompkins.
— Calem-se! — repetiu J.B. — Sra. Tompkins, minha esposa e eu precisamos ter
uma conversa em particular. A senhora poderia nos fazer a gentileza de sair do
escritório por alguns minutos?
A mulher assentiu com um gesto de cabeça e saiu do aposento, fechando a porta.
Aproximando-se de Anne, J.B. segurou-lhe as mãos e perguntou:
— Você não teve um caso com esse tal de Roy Tompkins, teve?
Anne lembrou-se de ter segurado as mãos de J.B. pouco tempo antes de ele
morrer. Lembrou-se também de que ele a chamara de Deborah e lhe pedira perdão. Em
seguida, refletiu que J.B. logo ficaria sabendo que sua esposa fora assassinada. Por mais
que Deborah tivesse sido uma desmiolada de marca maior, ainda assim ela fora casada
com J.B. E o fato de tê-la pedido em casamento significava que algum dia, de algum
modo, J.B. a amara. Deborah podia ter sido amante de Roy Tompkins, sim, mas na
posição em que se encontrava no momento Anne tinha o poder de aliviar pelo menos
em parte o sofrimento de J.B.
— Não. Nunca tive nada a ver com Roy Tompkins. Eu nem mesmo o conhecia —
murmurou Anne, por fim.
E assim que terminou a última frase, experimentou a estranha sensação de ter
falado a mais pura verdade.
J.B. aquiesceu, indicando que acreditava nela, e Anne prosseguiu:
— Mas isso não muda o fato de Roy Tompkins ter abandonado a família. E
agora, como aquela mulher vai sustentar os filhos? Você vai ajudá-la, não vai?
— Sim, vou — respondeu ele sem pestanejar, apertando de leve as mãos de
Anne.
Ela tentou interpretar o gesto. Teria sido reconciliatório? Paternal? Amoroso? De
um modo ou de outro, o leve aperto em suas mãos fora gentil, carinhoso. Isso
significava que talvez o relacionamento entre Deborah e J.B. não fosse tão frio e
distante quanto ela imaginara a princípio. Só porque os dois dormiam em quartos
separados, quem podia garantir que não partilhavam a mesma cama de vez em quando?
Tal pensamento deixou-a apreensiva.
— Suponho que esta sua repentina preocupação com o bem-estar alheio seja
sincera, Deborah. Admito, porém, que a sua atitude me surpreende — disse J.B., após
um momento de silêncio.
Anne enrubesceu, preocupada com as conseqüências do seu gesto de bondade. A
Sra. Tompkins e seus filhos mereciam receber ajuda, claro, mas isso não queria dizer
que Anne estava disposta a transformar o relacionamento entre J.B. e sua esposa numa
segunda lua-de-mel. Afinal, já que ela estava ocupando o lugar de Deborah, uma
reconciliação poderia trazer-lhe problemas embaraçosos.
— Não cometa a tolice de pensar que fiquei boazinha de repente, J.B. — Anne
forçou uma risada sarcástica.
— Apenas considere o que acabei de fazer como mais uma das minhas...
excentricidades.
J.B. suspirou e soltou-lhe as mãos, afirmando:
— Acho que tem razão, o seu gesto não deve mesmo ter passado de uma
excentricidade. Mesmo assim, para retribuir a bondade que você demonstrou esta noite,
faço questão de confirmar uma promessa que lhe fiz alguns anos atrás.
— Que promessa?
— Eu prometi que nunca mais falaria a respeito daquilo que aconteceu, lembra?
Pois fique tranqüila, cumprirei a minha palavra.
Anne não tinha a menor idéia do que ele estava falando, mas achou melhor deixar
o assunto de lado. Já estava mais que satisfeita em ver que o episódio relacionado com a
Sra. Tompkins terminara bem.
9
Anne acordou ouvindo uma música transmitida por um rádio ligado num quarto
próximo ao seu. Dessa vez, reconheceu de imediato o lugar e a época onde se
encontrava. Teria sido impossível confundir a antiga melodia orquestrada com uma
gravação de algum concerto de rock dos anos 90.
Dia dois, e ainda estou aqui, pensou ela enquanto saía da cama espreguiçando-se.
Depois da cena com a Sra. Tompkins no escritório, na noite anterior, Anne e J.B.
haviam entrado numa fase de trégua. Ele não permitira que ela fosse mais cedo para o
quarto; em compensação, o final do jantar não fora tão carregado de tensão quanto o
início. J.B. continuara vigiando o comportamento de Anne, mas de um jeito mais
natural. A certa altura, ele se mostrara relaxado o bastante para contar piadas para os
homens e elogiar os vestidos e as jóias das mulheres. Os convidados, sentindo um clima
menos pesado entre o casal anfitrião, mostraram-se mais animados e alegres, parecendo
ter esquecido o incidente desagradável provocado pela chegada da Sra. Tompkins.
Deixando de lado as lembranças da noite passada, Anne espreguiçou-se. Ao olhar
para o relógio sobre um dos criados-mudos, levou um susto. Onze horas! Nunca
dormira até tão tarde em toda a sua vida! Dirigiu-se apressada para o banheiro anexo ao
quarto, recordando o que a guia turística dissera a respeito da mansão Munro, que
contava com comodidades raras para a época e região em que fora construída. Nos anos
20, a maioria das grandes áreas urbanas dos Estados Unidos era beneficiada por casas
com encanamento interno, rádio e carros. Mas no Estado de Oklahoma, que não podia
ser considerado um dos mais avançados do país, as pessoas que não pertenciam à
mesma classe social de J.B. não sabiam distinguir um Ford de um Packard, nem tinham
dinheiro para comprar algo tão caro e supérfluo quanto um rádio.
Enquanto tomava banho, Anne voltou a se preocupar com a situação provocada
pelo incidente com a Sra. Tompkins. J.B. prometera que não deixaria a mulher enfrentar
problemas financeiros, mas recusara-se a permitir que sua esposa "mentisse" afirmando
que tivera uma aventura com Roy Tompkins. Mas e se Deborah tivesse mesmo sido
amante de Roy? E se a Sra. Tompkins encontrasse uma prova disso e a mostrasse a J.B?
Existiria um quarto num hospício à espera de Anne, no futuro? Haveria mais sofrimento
reservado para J.B. e para a Sra. Tompkins?
Bem, não adiantava nada esquentar a cabeça antes da hora. Além disso, se os
planos de Anne para recuperar o medalhão pudessem ser realizados logo, nem existiria
motivo para preocupação.
Anne tentaria encontrar uma outra entrada para os túneis nessa noite, depois que
todos estivessem dormindo. Pretendia escapulir da mansão sem ser notada e vasculhar
todas as edificações mencionadas pela guia turística como tendo acesso aos túneis.
Dessa vez, já sabia onde ficavam as edificações. Prestara atenção nelas quando Patrick a
trouxera de volta para a mansão no dia anterior.
Patrick... Anne ficara sabendo na noite passada que Patrick iria acompanhar J.B,
Wyndham e ela na visita à Fazenda 101.
Depois do episódio envolvendo a Sra. Tompkins, Anne esforçara-se ao máximo
na noite anterior para manter o olhar afastado de Patrick. Contudo, não conseguira
deixar de observá-lo, ansiosa por verificar se ela a fitaria com desaprovação por causa
do que acontecera. Apesar de o erro ter sido cometido por Deborah, Anne não pudera
deixar de se sentir responsável pelo que havia ocorrido. E a opinião de Patrick a seu
respeito era muito importante para ela.
Curiosamente, porém, Patrick não a encarara com ar de censura. Limitara-se a
olhá-la com uma expressão que só podia ser classificada como auto-recriminação.
Suportar a culpa por algo que Deborah fizera era difícil para Anne, mas a culpa
por ter beijado Patrick era dela mesma, de mais ninguém. E isso era mil vezes pior. A
vergonha deixara um gosto amargo na boca de Anne, e ela havia passado o resto do
jantar evitando o olhar de Patrick. Não conseguira evitar de pensar nele, porém.
Pensamentos perturbadores demais para a sua paz de espírito...
A certa altura, os convidados haviam deixado a sala de jantar e ido para uma
outra sala mais aconchegante. Anne juntara-se ao grupo das mulheres, e precisara
esforçar-se para prestar atenção no que elas diziam. Não que a conversa das convidadas
fosse aborrecida. Ao contrário, tinha sido intrigante ouvi-las falar de uma nova técnica
cirúrgica chamada lifting facial e escutá-las discutir o enredo das peças de teatro às
quais tinham assistido em Nova York em suas últimas viagens.
De repente, a conversa das mulheres começara a girar em torno do Dr. Freud e de
sua nova teoria, que afirmava que o sexo era a força motriz da humanidade. No mesmo
instante Anne tornara-se refém de pensamentos libidinosos que envolviam um homem
moreno que ela havia jurado esquecer. Uma das convidadas comentara que havia
consultado um analista europeu; o analista lhe dissera que, para ser uma pessoa feliz e
satisfeita, ela devia obedecer a sua libido. Uma outra convidada logo concordara com tal
afirmação, declarando que uma vida sexual desinibida era um fator fundamental para
quem quisesse ter boa saúde mental.
Lançando a Anne olhares que insinuavam que ela devia ser especialista em levar
uma vida sexual desinibida, as mulheres haviam passado a discutir uma série de teorias
sexuais ligadas aos estudos do Dr. Freud. Em determinado momento da conversa Anne
sentira vontade de sair gritando da sala — mas só depois de agarrar Patrick pelo braço e
arrastá-lo consigo para qualquer lugar onde pudessem fazer amor. Ela não conseguia
parar de pensar no beijo e nas carícias que haviam trocado, assim como não conseguia
entender como pudera esquecer quem era, de onde tinha vindo, e o fato de que precisava
voltar para o futuro. Acima de tudo, sentia-se incapaz de compreender a força da atração
que Patrick exercia sobre ela.
E agora, nessa manhã, Anne acordara com a certeza de que Freud tinha razão: era
impossível ser mentalmente saudável sem obedecer os comandos da libido! Ela passara
a noite toda sonhando com Patrick, sonhos durante os quais realizara todos os seus
desejos. Havia deixado o bom senso de lado e feito amor com Patrick sem pensar por
um único segundo em J.B, em Deborah, em voltar para casa. Entregara-se sem
pestanejar ao prazer de tocar e ser tocada por Patrick, até o êxtase final...
Balançando a cabeça sob a água morna do chuveiro, Anne tratou de retornar à
realidade. A satisfação de seus desejos mais íntimos não passara disso, de um mero
sonho. O melhor que tinha a fazer agora era deixar essas tolices de lado e aprontar-se
para a visita à Fazenda 101.
Maldição, ela estava agindo de modo estranho de novo! Até parecia que nunca
tinha visto o Packard de J.B, quando na verdade ajudara a escolhê-lo! Patrick,
acomodado a um canto do banco traseiro do automóvel, ficou a observar Deborah com
os olhos semicerrados. Ela examinou o pequeno tapete que cobria o assoalho do carro, e
depois levantou-o com a ponta do sapato, como se estivesse fazendo uma inspeção
geral.
Deborah transmitia a impressão de que estava andando pela primeira vez de
automóvel desde que J.B. lhe abrira a porta e lhe fizera um sinal para sentar no banco de
trás, ao lado de Patrick, enquanto Wyndham e ele acomodavam-se nos bancos
dianteiros. Ela havia alisado o estofamento de couro como se nunca tivesse visto nada
igual na vida. Quando J.B. pisara no botão que dava partida no motor, ela rira baixinho
feito uma criança. Só ao lançar um olhar meio de esguelha para Patrick é que Deborah
perdera a expressão de encantamento que lhe iluminava o rosto.
Patrick não deveria ter ficado irritado com isso, mas ficou. O fato de ver Deborah
seguindo as regras e agindo como uma moça bem-comportada o incomodava, e muito,
dando-lhe a sensação de que estava perto de uma pessoa completamente desconhecida.
Na noite passada, por exemplo, depois do episódio envolvendo a inesperada visitante,
Patrick esperara ver Deborah sair do escritório com um brilho de rebeldia e desafio no
olhar, com um sorriso zombeteiro nos lábios. Em vez disso, porém, ela voltara para a
sala de jantar com uma expressão séria, quase que de remorso.
Enquanto observava a paisagem conforme se aproximavam da Fazenda 101,
Patrick adivinhou de repente o motivo da sua irritação. Gostaria que tudo permanecesse
igual ao que sempre fora antes de Deborah sair dos túneis na noite da festa. Não queria
que Deborah se tornasse uma mulher sensível, responsável e doce, assim como
preferiria não ter experimentado o tumulto de emoções que sentira quando a beijara.
Desejava que tudo continuasse como antes, sim, e por uma razão muito simples: era
fácil manter-se afastado da antiga Deborah, desmiolada e calculista, mas era difícil não
sucumbir à atração que a nova Deborah lhe despertava.
Deborah estava agindo agora exatamente do jeito que Patrick gostaria que ela
tivesse agido quando eram namorados.
E Patrick não estava gostando nem um pouco disso. Ver sinais da mulher que ele
gostaria que Deborah tivesse sido o deixava confuso e zangado.
Causava-lhe ressentimento saber que uma simples pancada na cabeça fora
responsável pela transformação de Deborah na mulher que ele considerava ideal.
Perturbava-o sentir-se atraído por ela outra vez, depois de tudo o que acontecera entre
ambos. Mas a atração voltara com força total, não havia como negar. Desde que beijara
Deborah no dia anterior, Patrick não conseguia tirá-la dos pensamentos.
Por sorte, o Packard aproximou-se da casa-sede da Fazenda 101 bem a tempo de
interromper os devaneios de Patrick. Pensar em Deborah como algo além da esposa de
J.B. era alarmante... e perigoso.
J.B. desligou o motor do carro e virou-se para trás, sorrindo para Patrick.
Indicando com um gesto a bela casa de dois andares, pintada de branco, perguntou:
— Este lugar lhe traz boas lembranças, amigo?
— Sim, muitas — respondeu Patrick antes de acenar para o seu antigo patrão, que
aparecera na frente da casa.
George Miller estava vestido a caráter para o rodeio; parecia mais um vaqueiro, e
não o dono da famosa fazenda.
J.B. deu um tapinha amigável no ombro de Wyndham, comentando:
— Você não irá se arrepender de ter vindo, Harrison. Os seus camaradas lá de
Boston irão morrer de inveja quando você lhes contar que viu o show Oeste Selvagem.
— Existem várias companhias que apresentam esse tipo de show viajando pelo
país, J.B. — retrucou o banqueiro, em tom entediado. — Eu mesmo já vi uma
apresentação dessas na primavera passada.
Patrick conteve a vontade de rir. Harrison Wyndham não o enganava nem por um
segundo com o seu falso ar de tédio. J.B. também não se deixara enganar, pois fitou o
banqueiro com uma expressão malandra, argumentando:
— Primeiro assista ao show, e depois venha me dizer se já tinha visto igual,
antes.
Wyndham pigarreou, abriu a porta e desceu do carro. J.B. também desceu do
veículo e ajudou a esposa a sair. Patrick saiu por último, reparando que Deborah olhava
ao redor como se nunca tivesse posto os pés na fazenda. O que estaria acontecendo,
afinal? Será que ela estava mesmo com amnésia? Deborah parecia mais assombrada
com o que via do que o próprio Wyndham, que observava tudo com os olhos
arregalados. Ela quase ficou de queixo caído diante dos grupos de caubóis e de índios
usando cocares de penas coloridas, e pareceu não reconhecer as vaqueiras com as quais
conversara nas últimas visitas que fizera à fazenda. Enquanto seguia J.B. até o terraço
da casa-sede, ela virava a cabeça de um lado para outro como se não quisesse perder
nenhum detalhe do que acontecia à sua volta.
— J.B., eu já estava achando que você não viria! O que o fez sair daquele
mausoléu que você chama de mansão? — brincou Miller, enquanto trocava um aperto
de mão com o magnata. — A notícia de que Will e Tom estão aqui?
— Quem são Will e Tom? — perguntou Wyndham em voz baixa a Patrick.
— Will Rogers e Tom Mix — respondeu ele, rindo ao ver a cara de espanto do
banqueiro. Em seguida, adiantou-se para cumprimentar o dono da Fazenda 101. — Olá,
Sr. Miller. É um prazer revê-lo.
— Não precisa mais me chamar de "senhor", MacKinnon. Agora você já tem
dinheiro bastante para comprar uma dúzia de fazendas maiores que a minha — retrucou
Miller, bem-humorado. Em seguida, voltando-se para Wyndham, comentou: —
MacKinnon trabalhou para mim quando era garoto. Talvez eu consiga convencê-lo a
participar do rodeio, hoje.
Harrison Wyndham pareceu ficar impressionado com o que ouvira, exatamente
como J.B. e Patrick haviam esperado. George Miller era um bom amigo dos dois, e
aceitara com prazer o pedido prévio de ajudá-los a conquistar o interesse do banqueiro
de Boston. Por mais que ele parecesse ser um simples vaqueiro, a sua bela e imponente
residência indicava que ele era bem-sucedido nos negócios. Miller construíra um
verdadeiro império econômico levando a aura de romance e aventura do Oeste para o
resto do mundo. E, tanto quanto J.B., ele se preocupava em atrair novos investimentos
para o Estado de Oklahoma.
O dono da fazenda 101 cumprimentou Anne com um galante beijo na mão,
enquanto dizia:
— É um grande prazer revê-la, Sra. Munro. Acho que vou precisar colocar
vendas nos olhos dos meus caubóis outra vez, pois a senhora continua linda como
sempre.
Anne sorriu, encabulada, e Patrick estranhou-lhe o gesto. Deborah nunca ficava
encabulada! E mesmo que J.B. tivesse lhe pedido para bancar a atriz e fingir, ela jamais
teria concordado com a idéia. Ao contrário, a simples sugestão de que deveria
comportar-se bem a teria levado a fazer justamente o contrário.
Ao notar que Patrick a fitava com ar de censura, Anne parou de sorrir e virou-lhe
as costas. Ele cerrou os punhos, zangado, mas logo ralhou consigo mesmo. Ridículo! A
troco de que ficar zangado, só porque Deborah parara de sorrir? O que ela fazia ou
deixava de fazer não era da sua conta, e ponto final.
George Miller apresentou Harrison Wyndham a alguns dos vaqueiros que se
apresentariam durante o show, e depois o grupo todo dirigiu-se para as arquibancadas
que cercavam a arena. Um bom número de habitantes da cidade de Munro viera assistir
ao espetáculo. Depois que todos se acomodaram nas arquibancadas baixas, o show
começou com um desfile de caubóis e vaqueiras, índios, uma tropa de cossacos e até
mesmo um trio de palhaços. Patrick procurou relaxar e aproveitar o espetáculo.
No entanto, as danças de guerra dos índios, os exercícios de tiro dos cossacos, as
brincadeiras dos palhaços com laços de corda e as outras atividades que se
desenrolavam na arena não conseguiram fazê-lo parar de pensar em Deborah. Não eram
apenas as atitudes dela que pareciam diferentes do normal. Havia algo mais, também.
Os olhos verdes de Deborah, por exemplo, estavam um tom mais escuro. Ontem
ele havia se convencido de que apenas imaginara tal fato, mas agora não havia como
negar as evidências. Os olhos de Deborah estavam mais escuros, sim. Mas como? Por
quê?
Apesar dos olhares coléricos que Patrick lhe dirigia de vez em quando, Anne
estava se divertindo à beça.
Quando Katy mencionara a visita à Fazenda 101, ela imaginara que iria assistir a
um ou dois vaqueiros domando alguns poucos cavalos ou laçando novilhos, numa
espécie de rodeio de pequenas proporções, como os que já vira na TV.
Mas o que estava vendo agora era mil vezes mais emocionante. Junto com o resto
do público, ela rira das brincadeiras dos palhaços, maravilhara-se com a boa pontaria
dos cossacos e ficara encantada com as breves apresentações teatrais contando a história
da vida dos pioneiros nas planícies de Oklahoma. Isso sem mencionar os atos circenses
com elefantes, camelos e búfalos.
Anne gostou especialmente das vaqueiras. Uma delas ficou de pé sobre a sela e
disparou tiros de rifle contra um alvo enquanto seu cavalo corria em círculos. De
repente, a vaqueira caiu. Anne soltou uma exclamação de susto e ficou de pé, quase
pulando dentro da arena para socorrer a mulher. Demorou alguns poucos segundos para
perceber que a vaqueira não havia caído de verdade; a mulher escorregara de propósito
na sela até ficar grudada à barriga do cavalo, enquanto continuava atirando contra o
alvo!
Ao final do número Anne aplaudiu a vaqueira e riu, feliz. Ah, se os seus pais e tia
Shirley pudessem vê-la agora... Ela estava testemunhando um show histórico, o que
apenas contribuía para aumentar a sua excitação. Além disso, depois de dois exaustivos
dias fingindo ser Deborah Munro, estava adorando a chance de poder relaxar e ser ela
mesma por algumas horas.
Quando a apresentação seguinte começou, porém, Anne voltou a ser dominada
pela tensão. Enquanto observava os caubóis pulando na sela de cavalos bravios e
laçando novilhos com chifres pontiagudos, tudo em que conseguia pensar era nos
horríveis ferimentos que os animais podiam causar nos homens. E que condições tinham
os médicos da década de 20 para socorrer os feridos?
Refletindo bem, os homens na arena não eram vaqueiros, eram suicidas em
potencial. Enquanto exibiam a sua força e agilidade para o público, corriam o risco de
que algo muito grave lhe acontecesse.
E então, de repente, algo muito grave aconteceu.
Muitas das pessoas nas arquibancadas gritaram quando o último caubói a se
apresentar foi derrubado da sela pelo novilho que tentava laçar. Anne também gritou e,
horrorizada, viu o animal enfurecido dar uma cabeçada no peito do vaqueiro, que
tombou de costas no chão. Finalmente o novilho foi retirado da arena por um grupo de
participantes do show, enquanto o vaqueiro era levado embora numa maca. Anne não
sabia se o homem simplesmente perdera a respiração e desmaiara ou algo pior, mas
tratou de não perder tempo.
Pedindo licença às pessoas que estavam sentadas, começou a descer às pressas os
degraus da arquibancada. Se o vaqueiro não tivesse apenas perdido o ar, se houvesse
sofrido uma parada cardíaca — como Anne suspeitava, a julgar pela força do impacto
recebido pelo homem — nenhum médico dos anos 20 saberia o que fazer para salvá-lo.
— Deborah! — chamou J.B, em tom preocupado. — Onde vai? Está se sentindo
mal?
— Sim — respondeu Anne, sem parar de descer os degraus. — A violência da
cena que acabo de ver me deixou com o estômago embrulhado.
Deixando a arquibancada para trás, ela olhou ao redor tentando localizar alguma
tenda que servisse de posto médico ou algo do gênero.
Em menos de um minuto avistou o que procurava. Dois homens estavam levando
o vaqueiro para dentro de uma grande tenda encimada por uma bandeirinha vermelha.
Enquanto corria atrás deles, depois de arrancar dos pés os sapatos de salto de Deborah,
Anne notou que o show recomeçara; a banda começara a tocar uma música diferente e o
som de patas de cavalo batendo no chão ecoou pelo ar. Ao alcançar a entrada da tenda,
ela foi abrindo caminho por entre a multidão de caubóis e índios até ver o vaqueiro,
colocado em cima de uma mesa, sendo examinado por um médico.
Usando um estetoscópio de aparência pré-histórica, o médico auscultou o coração
do vaqueiro. Em seguida, voltando-se para George Miller, que também se encontrava na
tenda, anunciou:
— O coração dele parou de bater, George. Sinto muito, não há mais nada que eu
possa fazer agora, e...
— Não! Afaste-se! — gritou Anne, aproximando-se. Ela jogou os sapatos no
chão e empurrou o médico para o lado. Depois de fazer um exame rápido para verificar
se o vaqueiro não quebrara nenhuma costela, começou a fazer-lhe uma massagem
cardíaca junto com respiração boca a boca.
— Ei, espere um pouco! — protestou o médico quando viu Anne pressionar o
peito do vaqueiro com as palmas das mãos. — O que pensa que está fazendo, minha
jovem?
Ignorando o médico, ela puxou o maxilar inferior do vaqueiro para a frente, em
vez de inclinar-lhe a cabeça para trás, pois temia que ele tivesse sofrido uma fratura no
pescoço. Em seguida, apertou o nariz do homem e soprou-lhe ar para dentro dos
pulmões através da boca.
Todos os que estavam dentro da tenda soltaram exclamações de espanto.
— O que pensa que está fazendo, moça? — repetiu o médico, segurando um dos
braços de Anne.
— Solte-me! — ordenou ela, em tom feroz. — Fique longe de mim e não me
atrapalhe!
Chocado, o médico obedeceu. Um pesado silêncio tomou conta da tenda.
Anne continuou a pressionar regularmente o peito do vaqueiro e a lhe fazer
respiração boca a boca, checando-lhe o pulso de minuto em minuto. Vamos lá, cara,
respire. Você tem de respirar, pensou ela, aflita, preocupada com a possibilidade de o
homem sofrer algum dano cerebral por falta de oxigenação.
Então, de repente, o vaqueiro respirou fundo. Anne afastou-se um pouco e,
emocionada, observou o milagre que já vira acontecer tantas vezes em sua carreira de
para-médica: a pele azulada do homem foi recuperando aos poucos a cor normal, e
depois de alguns segundos ele abriu os olhos.
O médico lançou um olhar espantado a Anne e correu para junto da mesa.
— Clinton? Você está bem?
O vaqueiro tossiu e gemeu.
— Sim, ele está bem! — exclamou Anne, feliz.
— Caramba, eu nunca tinha visto uma coisa dessas, antes! — murmurou um dos
caubóis presentes.
Após certificar-se de o pulso do vaqueiro batia em ritmo normal, Anne deu-lhe
um leve tapinha no ombro, brincando:
— Faça o favor de não me desmentir, amigo. Você está bem, não está?
— Estou... Estou sim, moça — respondeu o homem, parecendo confuso.
— Meu Deus, que milagre — murmurou o médico, encarando Anne. — Como
foi que você conseguiu ressuscitá-lo?
George Miller aproximou-se de Anne e fitou-a com assombro.
— Sra. Munro? Como foi que...?
Incapaz de terminar a pergunta que tinha em mente, o dono da Fazenda 101
limitou-se a indicar Clinton com um gesto.
O homem estava tentando sentar-se. Bom sinal, refletiu Anne; isso significa que
ele não sofreu nenhum traumatismo na espinha.
Só então ela se preocupou em responder às perguntas do médico e de George
Miller. Ansiosa por salvar a vida do vaqueiro, utilizara um procedimento médico que as
pessoas da década de 20 não conheciam. Sendo assim, como explicar o que fizera?
Agira por instinto, sem pensar nas conseqüências do seu ato, e agora tinha de arranjar
um jeito de sair da enrascada em que se metera.
Procurando ganhar tempo, recolheu os sapatos que largara no chão e tornou a
calçá-los. Em seguida, declarou, constrangida:
— Eu apenas... apenas fiz algo que vi um médico fazer na... na Europa.
O fazendeiro e o médico trocaram um olhar de incredulidade.
— É verdade — insistiu Anne. — Uma vez vi um médico europeu socorrer um
homem no meio da rua e... Bem, eu só imitei o que ele fez.
De repente, ela se lembrou de J.B. Se ele ficasse sabendo do que acontecera na
tenda... Pensando em evitar maiores complicações, Anne dirigiu-se ao dono da Fazenda
101.
— Posso conversar com o senhor em particular, Sr. Miller?
O fazendeiro assentiu e seguiu-a para fora da tenda, dizendo:
— A senhora conseguiu realizar um verdadeiro milagre, Sra. Munro. Eu nunca
tinha visto ninguém ressuscitar um homem, antes!
— Eu sei, mas... Como já expliquei, fiz apenas o que vi um médico fazer para
socorrer uma pessoa que se acidentou na rua, lá na Europa. Deve ser algum
procedimento médico novo, ainda pouco conhecido aqui nos Estados Unidos.
— Procedimento médico? Para mim continua parecendo um milagre, isso sim!
Clinton estava morto, e a senhora...
— Por favor, Sr. Miller, vamos deixar esse assunto de lado. A propósito, eu
gostaria de lhe pedir algo.
— Pode pedir, Sra. Munro. Eu lhe devo gratidão eterna por ter salvo a vida de
Clinton. O que a senhora quer?
— Quero que o senhor me ajude a manter em segredo o que aconteceu lá na
tenda.
— Manter em segredo? Por quê?
— Tenho os meus motivos para não desejar que essa história se espalhe, Sr.
Miller. Por favor, não comente com ninguém, nem mesmo com J.B, o que aconteceu. Se
o senhor fizer isso, pode considerar paga a sua dívida de gratidão para comigo.
— Bem, já que a senhora insiste, farei o que me pede. Mas, mesmo assim...
Anne não permitiu que o fazendeiro terminasse a frase. Soltando um suspiro de
alívio, agradeceu a George Miller por ele ter concordado em atender o seu pedido e
afastou-se depressa na direção das arquibancadas.
Patrick saiu da tenda e foi para junto de Miller. Assim que Anne sumiu de vista, o
dono da Fazenda 101 virou-se para o seu ex-empregado e comentou:
— Por Deus, MacKinnon, creio que testemunhei um milagre, hoje. Você também
estava lá dentro da tenda? Viu o que aconteceu?
— Vi.
— E então, o que achou?
Patrick não achava nada, mas tinha certeza de uma coisa: Deborah mentira. De
novo.
Ele havia escutado sem querer a conversa entre Deborah e o fazendeiro, e sabia
que ela nunca vira nenhum médico socorrer um homem acidentado em alguma rua da
Europa. Na verdade, Deborah nunca estivera na Europa. Ela já havia feito vários planos
para conhecer o Velho Mundo, mas na última hora J.B. sempre cancelava as viagens
para puni-la por "mau comportamento".
— Não sei, George. Eu nunca tinha visto nada parecido, antes — respondeu
Patrick, por fim.
O fazendeiro coçou o queixo, murmurando:
— Quem diria, a Sra. Munro salvou a vida de Clinton...
Em seguida, ele deixou Patrick sozinho e voltou para o interior da tenda.
O vaqueiro morrera, e Deborah, num gesto de compaixão, o ressuscitara. Ela
havia soprado ar na boca do homem e feito massagem no peito dele. Incrível! Como é
que alguém podia resgatar uma pessoa das garras da morte desse jeito? E como é que
Deborah tivera coragem de fazer o que fizera?
Patrick jamais esqueceria a cena, nem que vivesse mil anos...
10
— Nós vamos demorar muito para ir embora, J.B? — perguntou Anne ao retornar
para o seu lugar nas arquibancadas.
— Ir embora? Já? Não vá me dizer que você ainda está se sentindo mal por causa
do acidente com o vaqueiro!
— Não, eu já estou me sentindo bem melhor. Mas o dia foi cansativo, e eu
gostaria de voltar logo para casa.
— Você nunca foi de se cansar à toa, Deborah, portanto não me venha com
histórias. — Baixando o tom de voz, J.B. prosseguiu: — Estamos aqui para agradar a
um possível parceiro nos negócios, e não para nos divertir. Dê só uma olhada em
Wyndham. Ele está adorando o show! Não podemos ir embora antes do último número.
Will Rogers e Tom Mix irão se apresentar, e eu quero que...
— Espere um pouco. Onde está Patrick? — perguntou Anne de repente, ao notar
que o lugar do sócio de J.B. esta vazio.
— Patrick deixou a arquibancada logo depois de você, portanto suponho que deva
ter ido pedir informações sobre o estado do vaqueiro que se acidentou. Provavelmente
ele conhece o homem dos tempos em que trabalhou aqui na fazenda.
Sim, Patrick já havia trabalhado na fazenda. George Miller mencionara tal fato
poucas horas antes. Isso significava que Patrick devia mesmo ter ido até a tenda depois
do acidente. E se ele fora até lá, com certeza testemunhara o que Anne fizera para salvar
a vida do vaqueiro!
Era estranho como tudo o que acontecia com Anne acabava envolvendo Patrick
de um modo ou de outro. Ela também se preocupava com J.B, claro; seria ótimo, por
exemplo, se ele não ficasse sabendo do que "Deborah" fizera na tenda até que Anne
voltasse para o futuro. No entanto, quem mais a deixava abalada emocionalmente era o
ex-amante, e não o marido de Deborah. Será que Anne teria sentido tanta vergonha do
episódio relacionado à Sra. Tompkins se Patrick não tivesse presenciado a cena? E por
que ela se esforçava tanto para evitar o olhar dele? Por que tinha sonhos eróticos nos
quais o sócio de J.B. era a figura principal?
O lado racional de Anne procurou convencê-la de que a atração que sentia por
Patrick era uma questão de pura química sexual. O lado emocional, contudo, dizia que o
interesse que ele lhe despertava estava ligado a algo mais profundo que o sexo.
Patrick MacKinnon era um homem bom, honrado. Ele beijara Anne, ou melhor,
Deborah, no dia anterior, perto do riacho. Mas logo admitira que havia cometido um
erro ao aproximar-se da esposa de seu amigo e sócio, e desde então tratara de ficar
longe dela. Isso era uma demonstração clara de lealdade e decência, o que o tomava
ainda mais interessante aos olhos de Anne.
Interessante até demais!
— Com licença... Posso passar?
Abandonando seus devaneios de lado, Anne olhou para o lado e deu de cara com
Patrick, que a fitava com uma expressão mista de curiosidade e impaciência.
— Posso passar? — repetiu ele. — Eu gostaria de voltar ao meu lugar.
Anne não queria deixá-lo passar, muito menos deixá-lo chegar perto de J.B, mas
não teve outra opção além de encolher as pernas para dar-lhe passagem.
Disfarçadamente, observou Patrick sentar-se ao lado de J.B. e pôs-se a imagina o que
ele iria dizer ao sócio. Seu olhar encontrou o de Patrick por um momento, e ela
adivinhou de imediato que ele vira o que acontecera na tenda. Droga, agora só faltava
Patrick contar tudo a J.B!
Fingindo prestar atenção no que ocorria na arena, onde George Miller
apresentava Will Rogers ao público, Anne ficou ligada na conversa dos dois.
— O vaqueiro está bem? — indagou J.B.
— Milagrosamente, sim — respondeu Patrick.
— O que houve, ele perdeu a respiração?
— Não, o caso foi um pouco mais sério.
— É mesmo? Então foi uma grande sorte o Dr. Kenner ter sido chamado para vir
trabalhar aqui, hoje. Ele é conhecido por fazer "milagres" para salvar seus pacientes.
— Sim, é verdade. Mas o Dr. Kenner teve ajuda extra, dessa vez.
— Ajuda extra? De quem?
Antes que Patrick tivesse tempo de responder, Anne apressou-se a segurar um dos
braços de J.B. e apontou para a arena.
— Will Rogers é mesmo incrível. Veja só o que ele consegue fazer com o laço!
— comentou ela, antes de dirigir-se ao banqueiro: — O que está achando do show, Sr.
Wyndham? É fantástico, não é?
— Sim, é fantástico — concordou o banqueiro, sorrindo.
— Will Rogers nasceu em Oklahoma, o senhor sabia? — disse Anne. Em
seguida, perguntou a J.B: — Você já falou para o Sr. Wyndham que há outras pessoas
famosas que também nasceram em Oklahoma? Aposto que ele adoraria discutir esse
assunto. Isso sem mencionar os fora-da-lei que tinham esconderijos aqui no Estado, em
tempos passados — acrescentou ela, dando graças a Deus por seu pai ser um historiador
amador e gostar de contar fatos curiosos sobre o Estado onde nascera. Tomando fôlego,
tomou a dirigir a palavra ao banqueiro: — Sr. Wyndham, não se esqueça de pedir que
J.B. lhe fale, mais tarde, sobre os fora-da-lei.
— Tulsa World, Sr. Munro! — anunciou o rapaz que se aproximou correndo,
trazendo consigo uma máquina fotográfica. — Posso tirar uma foto sua e do Sr. Rogers
para o jornal?
Anne reprimiu um suspiro de impaciência. Céus, será que nunca mais
conseguiremos voltar para mansão?, pensou. Ela havia adorado o show, e quase matara
J.B. de embaraço ao ficar boquiaberta quando Will Rogers e Tom Mix foram procurá-
los ao final do espetáculo para bater papo. O dia fora divertidíssimo, sem dúvida, mas
ao mesmo tempo fora tenso e cansativo, deixando os nervos de Anne em frangalhos.
Além de ter sido alvo constante dos olhares vi-o-que-você-fez-lá-na-tenda-e-quero-
saber-como que Patrick lhe dirigira, ela se lembrara de repente de que não estava em
segurança ali no meio da multidão. Talvez o assassino de Deborah gostasse do show
Oeste Selvagem e tivesse vindo até a fazenda... Céus, como ela pudera esquecer-se
dessa possibilidade? Não tinha resposta para isso. Sabia apenas que não gostava da
perspectiva de estar na mira de um criminoso, assim como não gostava da idéia de que
Patrick pudesse contar a J.B. o que vira na tenda.
— Claro que pode, meu jovem — respondeu J.B. ao fotógrafo do jornal. —
Deborah, venha cá, quero que você fique perto de nós — disse ele a seguir, puxando-a
pela mão.
— Não, J.B, por favor, devo estar com uma aparência horrível. Prefiro ficar
esperando lá no carro. Além disso, não gosto de ser fotografada.
J.B. e Patrick a encararam com espanto.
Tarde demais Anne lembrou-se do que a guia turística dos anos 90 dissera: A Sra.
Munro adorava ser fotografada...
— Acho que a pancada na cabeça afetou o cérebro da sua esposa, J.B. — riu
Patrick, antes de acrescentar num disfarçado tom de desafio: — Ou será que alguém
colocou uma impostora no lugar de Deborah?
Anne encarou-o com raiva. Ora, mas que atrevimento! Patrick a estava
provocando! Ele devia ter escutado às escondidas a sua conversa com George Miller e
descoberto que ela não queria que J.B. soubesse que ela salvara o vaqueiro da morte.
Droga, por que Patrick MacKinnon não cuidava da própria vida e a deixava em paz?
O próprio Patrick fizera questão de deixar claro que não queria ter nada a ver com
a mulher do seu sócio, e pedira que ela se mantivesse afastada dele. Pois bem, Anne
obedecera. E agora ali estava ele, parecendo se divertir com a idéia de provocá-la!
Ajeitando os cabelos com as mãos, Anne dirigiu um sorriso de falsa inocência a
Patrick e colocou-se entre J.B. e Will Rogers, dizendo:
— Você realmente me conhece bem, não é mesmo, Patrick? Eu só estava
bancando a moça mimada, como sempre. Afinal, vocês, homens, quase não me deram
atenção hoje, por causa do show. E quem pode culpar uma garota por desejar atenção?
— Em seguida, semicerrando os olhos e sorrindo para o fotógrafo, ela perguntou: — E
então, a minha pose está boa?
O rapaz assentiu e tirou a foto. Anne fitou Patrick com ar de triunfo, mas ele nem
se abalou.
Nesse momento, Harrison Wyndham aproximou-se de Will Rogers e estendeu-
lhe uma caneta e um luxuoso bloquinho de anotações com capa de couro.
— Pode me conceder a honra de me dar um autógrafo, Sr. Rogers?
Imediatamente Anne voltou a sua atenção para o banqueiro de Boston e para o
filho mais famoso do Estado de Oklahoma. Para que perder tempo preocupando-se com
Patrick MacKinnon quando tinha a chance de estar perto do lendário Will Rogers?
— O seu pedido é que me deixa honrado, senhor — respondeu Rogers. — Diga-
me, o senhor é de Boston?
— Sim, sou. Como adivinhou?
— Pelo sotaque, que é inconfundível.
J.B. deu uma piscadela para Rogers e comentou:
— Harrison Wyndham é banqueiro, Will.
— Verdade? Meu pai também era banqueiro, Sr. Wyndham, e vivia me
convidando para trabalhar com ele.
— Oh, eu não sabia! Isso significa que o senhor quase seguiu uma carreira ligada
às finanças?
— Não, eu logo vi que não tinha muito jeito para a coisa. Os únicos clientes que
eu conseguiria para o banco teriam de ser pegos a laço.
Todos riram da piada. Em seguida, após uma troca de aperto de mãos com Will
Rogers e George Miller — que apareceu para se despedir dos convidados — Patrick,
Wyndham, J.B. e Anne entraram no carro para ir embora.
Anne recostou-se no banco traseiro do Packard e, exausta, fechou os olhos. Sentiu
que Patrick, sentado a seu lado, a observava. Procurou ignorá-lo, mas depois de alguns
minutos não conseguiu mais suportar a situação. Abriu os olhos e encarou-o.
— Você me pediu para ficar longe de você, não foi? — indagou num murmúrio,
para que J.B. e Wyndham não escutassem. — Pois agora sou eu que lhe peço, Patrick,
fique longe mim!
Ele a fitou em silêncio por um instante antes de retrucar também em voz baixa,
como se estivesse falando consigo mesmo:
— Será que vou conseguir?
Franklin Thomas lavou o rosto recém-barbeado com água fria. Em seguida,
fechou a torneira e pegou a toalha que a camareira do hotel deixara pendurada perto da
pia. Ao olhar-se ao espelho, quase começou a chorar.
Sem a barba, ficara parecidíssimo com o seu irmão. Ah, Henry, nunca mais serei
capaz de ver a minha própria imagem sem lembrar de você, pensou, angustiado.
Gotas de água pingaram-lhe do queixo feito lágrimas. Franklin enxugou-as e
depois jogou a toalha dentro da pia. Lágrimas demais já haviam sido derramadas por
sua mãe e sua irmã, e por todos os que tinham amado Henry.
Só Franklin não havia chorado e nem pedido a Deus que o consolasse, pois
deixara de acreditar em Deus no dia em que Henry morrera.
Deus, em sua infinita bondade... Deus, em sua infinita bondade...
Franklin recordou-se das palavras ditas pelo padre durante o funeral de Henry.
Palavras mentirosas, que o haviam enchido de fúria. Meu irmão só queria servir a Deus,
mas mesmo assim acabou morrendo! Como esse padre ainda tem coragem de falar da
"bondade infinita" do Senhor?, ele sentira vontade de gritar.
Mas não gritara. Apenas dera um beijo de despedida na mãe e na irmã e partira
atrás da mulher responsável pela morte de Henry, disposto a vingar o irmão.
Olho por olho, dente por dente...
Dando uma risada cínica, Franklin vestiu seu casaco. Procurando não pensar mais
em Henry, saiu do quarto e desceu até a recepção. Pagou a conta e foi para a rua, sem
pressa. Seu plano era ir embora de Oklahoma o quanto antes, mas não tão rápido a
ponto de dar a impressão de que estava fugindo. Embora não se importasse com a
possibilidade de ser punido pelo crime que cometera, preferia não ser preso para evitar
que a sua família sofresse ainda mais.
Ele comprou a última edição do Tulsa World de um jornaleiro que passava pela
calçada, e depois fez sinal para um táxi.
— Para onde quer ir, senhor? — perguntou o motorista.
— Para a estação ferroviária — respondeu Franklin, entrando no veículo.
O táxi havia acabado de parar diante da estação de trens da cidade de Tulsa
quando Franklin Thomas viu a foto de Deborah no jornal.
— Chegamos, senhor — disse o motorista.
Um engano. Tinha de ser um engano! Mas a legenda da foto era bem clara. A
foto fora tirada na véspera, na Fazenda 101.
O ódio que abandonara Franklin depois de ele ter vingado a morte do irmão
retornou com força total, trazendo consigo desespero e dor. Mas como era possível? Ele
a estrangulara com as próprias mãos! Fizera questão de verificar se não havia nenhuma
centelha de vida no corpo da mulher antes de abandoná-la no interior da caverna!
— Já chegamos, senhor — insistiu o motorista.
— Sim... — murmurou Franklin, sentindo-se zonzo. — Quanto... Quanto lhe
devo?
— Ei, o senhor ficou pálido de repente. Está passando mal?
— Não, não, estou ótimo.
Franklin pegou a carteira, deu uma nota de cinco dólares ao motorista e, sem
esperar pelo troco, saiu do táxi levando o jornal consigo.
Morta, pensou, enquanto entrava na estação ferroviária e comprava um bilhete de
ida para Munro. Eu podia jurar que a vagabunda estava morta.
Ao ouvir uma batida à porta da sua suíte, Anne fechou o diário que tinha nas
mãos.
— Quem é? — indagou.
— Sou eu, Katy. O Sr. Munro me mandou vir chamar a senhora para tomar o café
da manhã lá em baixo.
Anne reparou pela primeira vez que um raio de sol entrava no quarto por uma
fresta da cortina, o que significava que já havia amanhecido há algum tempo. Só então
se deu conta de não havia parado de ler o diário desde que voltara da casa de hóspedes.
Ah, e como a leitura a enfurecera! Só de pensar em encarar J.B, depois de ter lido
algumas das anotações feitas no diário de Deborah, sentia o sangue ferver.
— Katy, diga a meu marido que prefiro tomar o café da manhã no meu quarto,
hoje.
— Sinto muito, senhora, mas o Sr. Munro disse que faz questão absoluta de que a
senhora desça. O Sr. Wyndham vai embora hoje, e o Sr. Munro quer que a senhora se
despeça dele.
Anne resmungou uma praga em voz alta.
— Desculpe-me, Sra. Munro, mas foi o seu marido que me mandou insistir para
que a senhora descesse.
— Tudo bem, Katy, não é com você que estou zangada. Pode dizer ao meu
marido que irei encontrá-lo daqui a pouco, assim que terminar de me arrumar.
— Sim, senhora.
Anne escondeu o diário debaixo do colchão da cama e foi até o banheiro. A
imagem que viu refletida no espelho não a surpreendeu. As olheiras escuras
denunciavam que ela havia passado a maior parte da noite acordada.
E não era para menos! Quem teria sido capaz de dormir depois de ler as coisas
que Deborah escrevera? Anne ainda não chegara ao fim do diário, mas o que lera até
agora já era suficiente para explicar por que Deborah se transformara numa mulher
rebelde, revoltada. A história da vida da pobrezinha daria uma excelente tese de
doutorado no campo da psicologia!
Enquanto lavava o rosto, Anne refletiu que promiscuidade era o mínimo que J.B.
deveria ter esperado depois do modo como ele e sua primeira esposa haviam tratado
Deborah. Na opinião de Anne, era um milagre que Deborah não tivesse assassinado J.B.
por vingança anos atrás.
Ao terminar de pentear os cabelos, Anne recordou-se das passagens do diário que
mencionavam Patrick — as únicas passagens que a haviam feito sentir raiva de
Deborah. Mesmo tendo tido uma educação deficiente, Deborah não deveria ter tratado
Patrick com tanta crueldade; afinal, a infância dele também não fora lá muito agradável
e saudável.
De qualquer modo, era J.B. o responsável direto pelo que Deborah fizera com
Patrick. E por isso ele merecia todo o sofrimento que Deborah lhe causara nos últimos
anos.
— Ah, aqui está ela, cavalheiros — anunciou J.B, sentado à cabeceira da mesa.
— Bom dia, Deborah. Você está linda como sempre, se é que me permite um elogio —
disse ele, ao saudá-la com um gesto de cabeça.
Isso significa que passei na inspeção?, pensou Anne, irritada, acomodando-se na
cadeira que o mordomo puxou para ela. Onde estavam os elogios quando Deborah mais
precisara deles? Por que J.B. nunca elogiara Deborah quando ela ainda era uma menina
traumatizada pela recente morte dos pais, disposta a tudo para agradar a sua nova
família?
Será que eu sempre vou ter a aparência que tenho hoje, Diário? Espero que não!
Virgínia vive me dizendo que J.B. sempre reclama das minhas sardas e da cor dos meus
cabelos. Ah, eu queria tanto que ele me achasse bonita e gostasse de mim! No começo
até pensei que ele fosse me deixar chamá-lo de "papai". Mas que homem gostaria de ter
uma filha feiosa como eu?
— Não precisa mentir, J.B, sei que estou com uma aparência péssima — retrucou
Anne, por fim, enquanto se servia de suco laranja. — Oh, mas onde estão as minhas
boas maneiras? Obrigada pelo falso elogio, querido. E, se permite dizer, você está muito
atraente, como sempre — acrescentou, sarcástica.
J.B. arregalou os olhos, chocado. Harrison Wyndham pigarreou, constrangido, e
Patrick fitou Anne com curiosidade.
— Não seja modesta, Sra. Munro. O seu marido tem razão, a senhora está muito
bonita — afirmou Wyndham, tentando desanuviar a tensão ambiente. — A propósito,
ainda há pouco eu dizia a J.B. que a senhora será uma excelente representante de
Oklahoma junto às esposas dos homens de negócios que virão fazer investimentos aqui
no Estado.
— O senhor acha, mesmo?
— Sim, Deborah. Harrison decidiu aconselhar os clientes do banco a investir
dinheiro em Oklahoma. A cidade de Munro, em especial, seria o ponto de partida ideal
para a expansão dos negócios de muitos homens importantes — explicou J.B, dirigindo-
lhe um olhar do tipo "comporte-se bem, caso contrário eu te esgano!" Em seguida, ele
comentou com o banqueiro: — Pensei em promover apresentações de música e jogos de
bridge para divertir as esposas dos seus clientes, Harrison. Deborah é uma excelente
jogadora de bridge... Não é mesmo, querida?
Querido Diário, você é meu único confidente! Sou uma menina horrível, um
fracasso completo aos olhos do meu tutor. Todo mundo na cidade de Munro o adora,
claro, e eu também o adoro. O problema é que não sei me comportar em sociedade!
Por mais que eu me esforce, só o que consigo é deixar J.B. e Virgínia embaraçados!
Outro dia ouvi J.B. dizer a Virgínia que nunca serei uma boa anfitriã... a menos que a
festa seja na estrebaria e que os convidados sejam cavalos. Ah, que tristeza... Já estou
morando há dois anos com J.B. e Virgínia, e a única coisa que aprendi foi cavalgar
direito.
— Errado, J.B. Você sabe muito bem que odeio jogar bridge — alfinetou Anne,
nem um pouco disposta a deixar passar em branco a oportunidade de vingar Deborah.
— Será que as esposas dos seus clientes sabem andar a cavalo, Sr. Wyndham? —
indagou a seguir, em tom doce. — Cavalgar é a única coisa que eu sei fazer direito.
Patrick quase engasgou de susto diante das palavras de Anne, e J.B. ficou roxo de
raiva e vergonha. Fingindo não notar os esforços dela para irritar J.B, Wyndham
limitou-se a responder:
— Algumas das esposas devem saber cavalgar, sim. E as que não souberem
certamente gostarão de aprender. A senhora deve ser uma excelente professora de
equitação, eu suponho.
J.B. pareceu relaxar um pouco ao ouvir a resposta do banqueiro, mas nem por
isso deixou de fitar Anne com ar de censura.
Ela o encarou de volta, sem se deixar intimidar. Pretendia fazê-lo pagar por todas
as vezes que magoara Deborah, abalando a autoconfiança da jovem com observações
ferinas, irônicas, maldosas. Vá em frente, J.B, pensou Anne. Continue a me provocar e
irritar, se quiser. Estou tão furiosa que sou até capaz de estragar o bom relacionamento
de negócios que você estabeleceu a duras penas com Wyndham. E não sentirei o menor
remorso!
J.B. tossiu de leve e tornou a voltar a sua atenção para o banqueiro de Boston.
— Oh, sim, Deborah é uma excelente amazona, Harrison. Foi ela que ensinou
Patrick a cavalgar puros-sangues... Não é verdade, querida?
— Sim, é verdade, J.B.
Nesse momento, o olhar de Anne encontrou o de Patrick. Ele não deixou
transparecer nenhuma emoção, mas Anne sabia que Patrick estava se lembrando das
aulas de equitação que Deborah lhe dera. Fora J.B. quem havia sugerido que Deborah o
ensinasse a montar puros-sangues e, no decorrer das aulas, Patrick se apaixonara por
ela.
Deborah tinha dezessete anos, na época. Virgínia, a primeira esposa de J.B, havia
morrido há pouco mais de um ano. Pelo que Anne lera no diário, a essa altura Deborah
já tinha tanto desprezo por si mesma que tornara-se incapaz de amar alguém. Certas
pessoas guardavam o ódio que sentiam dentro de si, mas com Deborah acontecia o
oposto. Ela era do tipo que externava suas emoções negativas, e ai de quem estivesse
por perto! No entanto, bem lá no fundo, apesar de todo o sofrimento que Virgínia e J.B.
lhe haviam causado, Deborah continuara ansiando pela atenção e pela aprovação do
tutor.
Mesmo quando ficou óbvio que J.B. jamais aprovaria o jeito de ser de Deborah, a
jovem continuou insistindo em chamar-lhe a atenção, usando Patrick como arma.
Deborah sabia que J.B. ficaria furioso quando descobrisse que ela estava tendo um caso
com o rapaz do qual ele tanto gostava.
Aconteceu o que eu previa, Diário. J.B. descobriu tudo. Você nunca acreditou
que ele descobriria, não é mesmo?
Imagino até que você pensou que J.B. iria ignorar o caso, como ignorou todas as
minhas outras "escapadelas". Mas dessa vez foi diferente! Ah, o meu plano funcionou
direitinho... Amo J.B. há muito tempo, Diário, e queria que ele me amasse também.
Virgínia já morreu, J.B. precisa de uma nova esposa. E eu serei essa esposa, espere só
para ver! Jurei a mim mesma que mudarei o meu comportamento. Serei o tipo de
mulher da qual J.B. precisa, Patrick MacKinnon é o "filho" que ele nunca teve — eu o
ouvi dizer isso várias vezes. Eu sabia que se ameaçasse fugir com Patrick, J.B. faria
qualquer coisa para me impedir. E foi o que aconteceu.
— Bem, preciso ir — disse Wyndham, depois de checar as horas no relógio de
ouro, que tirou do bolso do colete. — Pode fazer a gentileza de pedir ao seu motorista
que me leve até a estação ferroviária. J.B?
— Esqueça o motorista, Harrison, eu mesmo faço questão de levar você até a
estação. No caminho, aproveitaremos a chance para marcar a data da minha primeira
viagem a Boston.
— Combinado. — O banqueiro sorriu e dirigiu-se a Anne. — Foi um prazer
conhecê-la, Sra. Munro. Eu gostaria de lhe agradecer por ter me hospedado em sua casa
e ter transformado a minha estada aqui num interlúdio tão encantador.
— Não precisa agradecer, Sr. Wyndham. O prazer foi todo meu — respondeu ela,
retribuindo o sorriso.
Harrison Wyndham assentiu e saiu da sala. Antes de ir atrás dele, J.B. encarou
Anne com ar feroz e murmurou, por entre os dentes:
— Quero ter uma conversinha com você quando voltar da estação, Deborah.
Oh, ótimo! Talvez ela houvesse exagerado na grosseria com que tratara J.B. à
mesa. Mas e daí? Ela estava pouco se lixando!
Anne observou Patrick limpar a boca o guardanapo e lhe fazer um discreto sinal
para permanecer calada.
Poucos minutos depois ambos ouviram o barulho da porta da frente sendo
fechada, e começaram a falar ao mesmo tempo.
— Precisamos conversar...
— Tenho de lhe contar o que...
Anne calou-se e sorriu para Patrick, sentindo um prazer inexplicável pelo simples
fato de estar sozinha com ele na sala. Toda a sua raiva desapareceu como que por
encanto. Ah, como gostaria de poder realizar o sonho impossível de ter um longo futuro
ao lado de Patrick! Dias, meses, anos na companhia dele...
— Sim, precisamos conversar — disse ela, por fim. — Mas não aqui. Vá até a
casa de hóspedes. Irei encontrá-lo daqui a pouco, depois de pegar uma coisa que quero
lhe mostrar.
— Pode me explicar por que ficou provocando J.B. à mesa do café da manhã?
Anne fechou a porta da sala da casa de hóspedes, desviou-se dos livros que
continuavam caídos no chão e aproximou-se do sofá onde Patrick estava sentado.
— Bom dia para você também, meu querido — disse ela com um sorriso,
deixando o diário de Deborah em cima da mesinha de centro.
Sentando-se ao lado de Patrick, beijou-o na boca, acariciando-lhe os lábios com a
língua. Ele correspondeu ao beijo com paixão, mas logo em seguida perguntou, tenso:
— Como você consegue ficar tão calma? Depois do que fizemos ontem à noite...
— Eu já disse, nós não fizemos nada de errado — interrompeu-o Anne. — Além
disso, aprendi a ser boa atriz nos últimos dias. Eu não estou calma, apenas pareço estar
calma.
— Do meu ponto de vista você não bancou a boa atriz agora há pouco, quando
fez de tudo para irritar J.B.
— Oh, naquele momento eu não estava a fim de parecer calma. Eu estava mesmo
furiosa com J.B, depois de ter dado uma olhada nisto aqui. — Anne entregou a Patrick o
livro com o coração dourado desenhado na capa, explicando: — Eu o encontrei no chão
ontem à noite, antes de ir embora. Deborah deve tê-lo escondido no fundo da prateleira
mais alta da estante, e quando eu derrubei os outros livros ele caiu junto. Vamos, leia a
primeira página... Patrick fez o que ela pediu e depois fitou-a, surpreso.
— Este é o seu diário?
Anne suspirou.
— Não, é o diário de Deborah. Tudo o que ela viveu desde que veio morar na
mansão sob a tutela de J.B. e Virgínia está relatado aí.
— E...?
— E foi por isso que fiquei tão furiosa. O diário revela em detalhes o modo
traumático como Deborah sempre foi tratada na mansão, especialmente por J.B. Não era
à toa que Deborah tinha um comportamento tão promíscuo e rebelde. Depois dos abusos
emocionais que sofreu, era óbvio que a coitada tinha de ficar traumatizada e... Ei, o que
foi? Por que está me olhando desse jeito, Patrick?
— Porque não entendi o que você disse. O que significa "traumático" e "abuso
emocional"? Conheço as palavras, claro, mas não nos contexto em que você as utilizou.
— Oh, esses são termos comumente usados pelos psiquiatras e psicólogos dos
anos noventa. "Traumático" é tudo o que causa um trauma, ou seja, um choque violento
capaz de desencadear perturbações psíquicas. E "abuso emocional" é o que você
chamaria de "maus-tratos". Foram feitas muitas descobertas importantes sobre o
comportamento humano desde os primeiros estudos realizados por Sigmund Freud,
Patrick. Uma dessas descobertas diz que ninguém pode abusar emocionalmente de uma
criança, tratando-a como se não valesse nada, e depois esperar que ela se transforme
numa pessoa adulta feliz e bem ajustada.
— Não concordo quando você fala em "abuso". J.B. e Virgínia receberam
Deborah...
Anne encarou-o, surpresa, e Patrick apressou-se a corrigir o que dissera.
— Eu me refiro a você, claro. J.B. e Virgínia receberam você na mansão depois
que os seus pais morreram. Você sempre teve tudo o que quis. Um lar, roupas bonitas
para vestir, cavalos puros-sangues para montar...
— E quanto a amor, Patrick? J.B. e Virgínia nunca deram amor a Deborah, e era
disso que ela mais precisava. A pobrezinha não teve culpa de ter ficado órfã, mas os
dois a trataram como se ela não passasse de um presente de grego. Eles tentaram
transformá-la em algo que ela não era, e depois a culparam por ser revoltada.
— Parece que os homens e mulheres do seu tempo nunca são responsáveis pelas
próprias ações, se tudo o que eles fazem ou são é por culpa das pessoas que os
maltrataram na infância.
— Não é bem assim. Na verdade a questão é um pouco mais complicada que isso
e... — Anne calou-se de repente ao se dar conta do que Patrick acabara de falar.
Eufórica, exclamou: — Ei, você disse "os homens e mulheres do seu tempo"! Por acaso
isso significa que você está acreditando em tudo o que lhe contei ontem?
— Prefiro dizer apenas que a sua história começa a me parecer possível. Quanto
mais ouço você falar, mais fica fácil para eu acreditar que você veio de algum lugar
muito diferente daqui. Por outro lado, quando olho para você vejo uma mulher que
conheço há anos, e daí fica difícil para eu pensar que...
Anne o interrompeu com um rápido beijo, satisfeita com o que acabara de
escutar. Era um bom começo, refletiu ela. Mesmo que no fim Patrick não fosse capaz de
acreditar totalmente na sua estranha história, já era um grande consolo saber que ele não
pensaria nela apenas como Deborah.
— Tudo bem, eu compreendo — murmurou Anne, por fim. — Afinal, às vezes
até eu acho difícil acreditar no que aconteceu comigo.
Patrick assentiu com um gesto de cabeça e indicou o diário, indagando:
— Por que você achou que seria importante me mostrar isto?
— Bem, eu ainda não li tudo o que está escrito, mas espero encontrar uma pista
que me ajude a descobrir quem matou Deborah. Tenho a sensação de foi por este
motivo que viajei no tempo e vim parar aqui. Quero dizer, deve existir uma razão lógica
para o que aconteceu comigo, não é mesmo? Eu me lembro de algo que J.B. falou.. Que
um dia eu saberia por que ele sentia tão grato em relação a mim... Até encontrar o diário
de Deborah eu não tinha parado para pensar no assunto, estava preocupada apenas em
voltar para o futuro.
—Agora você me confundiu de vez. Do que está falando?
— Oh, desculpe. Ontem à noite eu não lhe contei exatamente como vim parar
aqui, contei?
— Você mencionou algo a respeito do medalhão e do retrato, mais nada.
— Nesse caso, deixe-me contar-lhe o resto. Eu encontrei J.B. pela primeira vez
na minha época.
— O quê?!
— Sei que parece absurdo, Patrick, mas J.B. Munro irá viver até os cento e sete
anos de idade. De qualquer modo, a minha unidade... Você se lembra que eu lhe contei
que sou para-médica, não lembra? Pois então, a minha unidade foi chamada para
socorrer J.B, que havia sofrido um ataque cardíaco. Eu nunca o tinha visto antes, mas
ele me reconheceu. A princípio J.B. me confundiu com Deborah e me pediu perdão.
Pensei que ele estivesse desorientado por causa da dor e da idade avançada. Mas depois
J.B. disse que não, que eu não era Deborah, que eu era a "outra". E daí ele me chamou
de Anne.
Patrick permaneceu em silêncio, e Anne prosseguiu:
— J.B. foi levado para o hospital, mas não conseguiu sobreviver até o dia
seguinte... Antes de morrer, porém, ele pediu a uma enfermeira que me dissesse, que um
dia eu saberia por que ele se sentia tão grato em relação a mim.
— A meu ver, se você o socorreu quando ele estava passando mal, era óbvio que
ele lhe seria grato. O que há de estranho nisso? — observou Patrick.
— O estranho é que ele já sabia o meu nome, sem que eu nunca o tivesse visto
antes! No fim, acabei considerando o fato uma mera coincidência. Quem sabe, talvez
J.B. houvesse conhecido alguma Anne no passado... E então, meses mais tarde, a
mansão foi aberta à visitação pública.
— A visitação pública?
— Sim. J.B. deixou a mansão de herança para a cidade, pois não tinha herdeiros
diretos. A guia turística que acompanhou o meu grupo durante a visita nos contou a
história do assassinato de Deborah. E adivinhe quem foi considerado o principal
suspeito do crime?
— Não faço a menor idéia.
— Foi você.
— Eu?! — Patrick ficou de pé num pulo. — Por Deus, eu não assassinei
Deborah! Por que alguém pensaria que... Oh, céus, o que estou dizendo?
— Eu sei, eu sei... Você não pode acreditar que isso aconteceu porque, se eu sou
Deborah, então não houve assassinato nenhum. Mas o crime realmente aconteceu, eu
juro! E você foi considerado suspeito porque diziam que na época você e Deborah eram
amantes.
— Imagine! Deborah e eu, amantes? Nunca!
— O fato é que você desapareceu logo depois que o corpo de Deborah foi
encontrado numa caverna dentro dos limites da propriedade. E nunca mais ninguém viu
você outra vez.
Enfiando as mãos nos bolsos da calça, Patrick andou de um lado para outro na
sala e depois parou perto da janela.
Embora ele estivesse de costas, Anne percebeu pela postura do corpo másculo
que ele estava tenso, nervoso.
Depois de alguns minutos, Patrick virou-se para encará-la. Ao ver a dor
estampada nos olhos dele, Anne desejou nunca ter lhe falado sobre o futuro. Mas fora
obrigada a falar, pois precisava da ajuda de Patrick para cumprir a missão que parecia
ser a razão da sua viagem no tempo.
Anne recordou-se da conversa que tivera com os pais naquele fatídico dia dos
anos 90, antes de sair para visitar a mansão Munro. Seus pais haviam dito que ela
precisava ter vida própria... Que ironia! Ali estava ela, agora, sendo obrigada a viver a
vida de outra mulher!
Anne levantou-se do sofá e aproximou-se do homem pelo qual se apaixonara
perdidamente. A idéia de que não teria uma vida inteira para passar ao lado dele partia-
lhe o coração em milhares de pedaços.
— Patrick, eu não lhe contei tudo isso só para magoá-lo — murmurou ela,
acariciando-lhe o rosto. — Oh, eu sei o que você está pensando. Deve ser algo do tipo
"como posso ficar magoado se tudo o que ouvi não passa de um produto da imaginação
de Deborah?" Mas a história que lhe contei é a mais pura verdade, Patrick, e no fundo
você sabe disso, não sabe?
— Eu... eu quero acreditar em você, mas...
— Por favor, me escute. Encontrar o diário me ajudou a entender o que aconteceu
comigo. Não foi só por causa de Deborah. Foi por sua causa que viajei no tempo e vim
parar aqui, Patrick.
14
Edith não conseguiu decifrar a expressão no rosto de J.B. Munro. Ele não ficara
furioso com a notícia de que a esposa o traía com seu sócio e amigo, como a criada
havia imaginado, mas também não entrara em desespero. Além da cicatriz em forma de
"C" que começara a pulsar sem parar, J.B. Munro não esboçara a menor reação.
Edith tentou adivinhar o que significava a aparente apatia do patrão. Talvez ele
não houvesse acreditado no que ouvira e estivesse prestes a mandá-la para o olho da
rua... A criada torceu as mãos, nervosa. Embora vivesse reclamando de trabalhar na
mansão, sabia que não encontraria outro emprego onde o salário fosse tão bom.
J.B. esfregou a cicatriz com a ponta dos dedos e abriu uma das gavetas de sua
mesa de trabalho.
Edith engoliu em seco e balbuciou:
— Sr. Munro... Espero que... que o senhor não me despeça por causa do... do que
lhe contei. Eu...
J.B. interrompeu a fala da criada com um olhar gélido. Em seguida, tirou da
gaveta um bloquinho com capa de couro. Abriu-o e começou a escrever algo numa das
folhas internas. Será que ele está preenchendo um cheque?, perguntou-se Edith, em
pensamento. Pelo que os outros empregados da mansão lhe haviam contado, J.B. Munro
estava sempre pagando alguém para ficar de boca fechada em relação a um escândalo
ou outro.
É uma sorte que o patrão seja rico, refletiu Edith; afinal, com a mulher que ele
tem... Satisfeita consigo mesma e com a perspectiva de ganhar um dinheiro extra, a
criada comentou;
— Fique tranqüilo, Sr. Munro, sei guardar um segredo quando necessário.
— Sabe mesmo?
— Sim, senhor. Quando é preciso, sei ficar de boca fechada.
Ao terminar de falar Edith esticou o pescoço, tentando ver quanto valia o seu
silêncio. Ao ler o valor do cheque, arregalou os olhos. Uma fortuna! O patrão iria lhe
dar uma fortuna! Ah, como era sortuda!
— Aqui está — disse J.B, entregando o cheque à criada. — Muito bem, agora
você tem uma hora para fazer as malas e pegar um trem para bem longe de Munro.
Edith ficou perplexa.
— O senhor quer que eu vá embora da cidade? Mas... Eu não tenho parentes nem
amigos em outro lugar. Vivo em Munro desde que nasci e...
— Com o dinheiro que estou lhe dando você poderá comprar amigos em qualquer
lugar do mundo.
— Mas... Por favor...
— Uma hora, Edith. A menos, é claro, que você queira devolver o cheque.
— Não! Não, eu... Humm... Já estou indo, senhor.
— Ótimo. Estamos combinados, então. Em troca do cheque, você guardará
segredo da história que me contou. No entanto, para o caso de você decidir que não
consegue ficar de boca fechada, quero que desapareça da minha cidade.
Grávida!
Sentindo o coração disparado, Anne verificou a data no topo do parágrafo que
acabara de ler. Será que...
Sim! Deborah engravidara quatro anos atrás. Então fora por isso que J.B.
mantivera Deborah afastada da mansão! Era isso que Edith havia começado contar a
Katy naquele primeiro dia, antes de ser interrompida pela chegada de J.B!
Ansiosa, Anne continuou lendo o diário.
Deborah tinha ficado feliz ao descobrir que esperava um filho. Ao mesmo tempo,
ficara amedrontada. Se contasse ao amante que estava grávida, destruiria o futuro dele
como pastor religioso. Se J.B. descobrisse sobre a gravidez, era o futuro dela mesma
que passaria a correr perigo. O casamento com J.B. não dera certo, como Deborah havia
imaginado que daria. Os dois brigavam o tempo todo, por qualquer motivo.
Para resolver a situação, Deborah tentou convencer o amante de que não podiam
mais se ver, mas ele se recusou a aceitar o fim do relacionamento. Quando Deborah,
num gesto de desespero, declarou que não o amava mais, o rapaz não acreditou e
ameaçou ir conversar com J.B, supondo que ele era o pai dela, decidido a pedir a mão
de Deborah em casamento. Finalmente percebendo que o único jeito de afastar o amante
seria contar-lhe a verdade, Deborah falou sobre o bebê.
O rapaz não reagiu como ela esperava. Em vez de ficar com raiva ou medo, ele se
mostrou feliz. Chorando de emoção, abraçou Deborah e declarou que agora a amava
mais do que nunca.
Ao ler esse trecho do diário, Anne sorriu. Que sujeito incrível! Para um homem
dos anos 20 que pretendia ser pastor religioso, até que ele reagira de um jeito bem
"moderno" ao saber que engravidara a mulher com quem tinha um relacionamento
considerado pecaminoso na época. Suspirando, Anne, retomou a leitura.
O amante de Deborah não reagiu tão bem quando ela lhe contou o resto: que era
casada, que já havia tido outros amantes e tudo o mais. O rapaz ficou ao mesmo tempo
magoado e furioso, e foi com alívio que Deborah o viu ir embora do bosque onde
costumavam se encontrar. Ela lamentaria para sempre a perda do único amor verdadeiro
que conhecera, mas pelo menos teria o consolo de saber que havia feito tudo o que era
necessário para evitar a ruína do homem amado.
Os olhos de Anne se encheram de lágrimas de emoção. Pobre Deborah... O que
acontecera com ela e com bebê? Anne sabia que J.B. afastara Deborah da mansão,
graças ao mexerico de Edith, mas não sabia o que havia acontecido depois. Será que
Deborah tivera o bebê? Em caso afirmativo, onde estaria a criança, agora?
Anne continuou lendo o diário.
Para surpresa de Deborah, o seu amante foi procurar J.B. a fim de exigir que ele
concedesse o divórcio à esposa, para que os dois pudessem se casar. J.B. ficou
enfurecido e ameaçou o rapaz, dizendo que preferia arruinar financeiramente a família
dele a permitir que um escândalo manchasse a boa reputação do sobrenome Munro. O
rapaz, por sua vez, não se deixou intimidar e retrucou que J.B. podia fazer o que bem
entendesse; só o que ele queria era casar-se com Deborah, que estava esperando um
filho seu.
Mas Deborah sabia do que J.B. era capaz. Sabia que ninguém no mundo seria
capaz de vencer J.B. numa guerra de vontades. Por essa razão, quando J.B. mentiu para
o rapaz dizendo que ele e Deborah também tinham dormido juntos nos últimos meses,
ela confirmou a mentira. Fingindo um pouco caso que estava longe de sentir, Deborah
afirmara que qualquer um dos dois podia ser o pai do bebê que estava esperando. Ao ver
o desespero de seu amante ela sentiu que morria por dentro, mas fez questão de desferir
o golpe final dizendo ao rapaz:
— Para mim tanto faz quem é o pai do bebê, desde que eu possa continuar a viver
cercada pelo luxo ao qual estou acostumada. E você não é rico o bastante para me cercar
de luxo, certo?
Nunca mais Deborah viu o rapaz outra vez. Ele desapareceu, e a família dele
aceitou a generosa "oferta" que J.B. lhe fez para ir embora da cidade. Antes de ser
mandada para um abrigo para mães solteiras, Deborah implorou a J.B. que a deixasse
ficar com o bebê para criá-lo como se fosse filho dos dois, mas ele não quis nem saber
da idéia. Em vez disso, J.B. fez planos para entregar a criança ao orfanato vizinho ao
abrigo.
O parágrafo seguinte do diário dizia:
O meu bebê é um menino. Ele é lindo, embora tenha cabelos ruivos como os
meus, e não cabelos escuros como os do pai. Mas eu insisti para que meu filho tivesse o
mesmo nome do pai: Henry.
Havia mais parágrafos depois. Alguns falavam do sofrimento de Deborah ao
deixar o bebê no orfanato, outros mencionavam o seu retorno à mansão Munro.
Deborah quase morrera de tristeza ao dar um beijo de despedida no filho; primeiro fora
obrigada a separar-se do homem amado, agora era obrigada a abandonar o bebê...
Deborah voltara para a mansão com o coração cheio de ódio e amargura. J.B. a
afastara das duas pessoas que ela mais amava no mundo, e ela jamais o perdoaria por ter
feito isso.
Sem que J.B. soubesse, Deborah havia continuado a visitar o filho no orfanato.
Entregava todo o dinheiro que conseguia juntar à instituição, impondo apenas uma
condição: o bebê não devia ser entregue para adoção.
Anne fechou o diário com as mãos trêmulas e a mente em turbilhão. A última
entrada do diário era datada de seis meses atrás, o que significava que o filho de
Deborah ainda devia estar no orfanato mencionado.
E o nome da criança era Henry.
Henry.
O pai de Anne também se chamava Henry. E nascera no mesmo dia que o filho
de Deborah.
Anne saiu correndo do quarto, ansiosa para ir ao encontro de Patrick. Encontrou
Katy no corredor, e a criada avisou que J.B. mandara chamá-la. Ignorando o recado,
Anne continuou correndo até chegar à casa de hóspedes. Abriu a porta da sala e quase
deu um encontrão em Patrick, que estava saindo com uma mala nas mãos.
— Patrick, você precisa me levar para o Estado de Missouri! — disse ela, sem
fôlego.
— Mudou de idéia? — perguntou ele, largando a mala no chão. — Quer ir
embora daqui comigo?
— Não... Isto é, eu quero ir até o Estado de Missouri, mas só por um dia. E você,
para onde estava indo com essa mala? Pensei que ainda fosse demorar alguns dias para
ir embora daqui.
— Isso foi o que eu lhe disse antes, mas agora...
— Oh, não! Você contou a J.B. sobre nós?
— Contei.
— Céus! Será que você tem noção do que fez?
— Claro que tenho. Eu fiz apenas algo já deveria ter feito há muito tempo. Além
disso, uma das criadas viu você saindo da casa de hóspedes hoje de madrugada e foi
falar com J.B. Ele já sabia de tudo, antes mesmo de eu abrir a boca.
— E qual foi a reação de J.B? — indagou Anne, aflita. — Ele ficou muito
furioso?
— Ficou, mas só porque eu me recusei a seguir os planos que ele havia feito para
o meu futuro. Você tinha razão, sabe? J.B. nunca se importou com você. A única coisa
que o preocupava era a possibilidade de você arruinar a minha vida. — Patrick sorriu e
acariciou o rosto de Anne, acrescentando: — Mas eu disse a ele que você me salvou.
— Você é um bom homem, Patrick MacKinnon. Ninguém mais teria tido
coragem de defender Deborah. Talvez você esteja certo... Talvez ir para longe de J.B.
seja o melhor para você.
— Você é o que pode existir de melhor para mim, querida. E mesmo que você
não concordasse em partir comigo, eu arranjaria um jeito de afastá-la de J.B.
Anne estremeceu e aninhou-se nos braços de Patrick. Abraçou-o com força,
emocionada. Não tinha mais a sensação de estar levando a existência de outra mulher,
pois agora sabia que, assim como Deborah havia encontrado o grande amor da sua vida,
ela também encontrara o seu grande amor. O problema era que mais cedo ou mais tarde
também seria obrigada a abandonar o homem amado, como acontecera com Deborah.
— Patrick, eu terminei de ler o diário de Deborah — disse Anne, de repente. —
Ela... teve um filho.
— O quê?! Um filho?
— Sim. Lembra-se de quando Deborah passou quase um ano longe da mansão,
quatro anos atrás? Pois então, J.B. a mandou para um abrigo de mães solteiras no
Estado de Missouri. Ela permaneceu lá até o nascimento do bebê, um menino.
— Um filho... — murmurou Patrick, incrédulo. — Mas por que J.B. mandaria a
esposa para um abrigo de mães solteiras? Ele sempre quis ter um filho, e...
— J.B. não era o pai do menino — explicou Anne. Antes que Patrick pudesse
dizer qualquer coisa, ela prosseguiu: — Não tenho tempo agora para tentar convencê-lo
mais uma vez de que não sou Deborah. Só o que posso lhe dizer por enquanto é que o
filho de Deborah é mais uma das coincidências que já mencionei antes. O menino deve
estar com uns três anos de idade, e ainda se encontra no orfanato em que J.B. mandou
colocá-lo, no Estado de Missouri. E eu preciso vê-lo para ter certeza de uma coisa.
— Você quer que eu a leve até lá?
— Quero.
— E depois?
— Não sei. Mas se o menino for quem eu estou pensando que ele é, serei
obrigada, mais que nunca, a voltar para o futuro.
Franklin Thomas sentiu o sangue gelar nas veias ao ver a mulher no interior do
luxuoso automóvel que atravessou os portões da mansão. A mesma mulher que julgara
morta e cujo corpo abandonara dentro uma caverna. Mas ali estava ela, viva,
acomodada no banco do passageiro, conversando com o homem moreno que dirigia o
automóvel.
Dando partida no motor do automóvel que comprara assim que chegara a Munro,
Franklin começou a seguir o outro veículo. Em algum momento, de algum modo, teria
de separar Deborah Munro do homem que a acompanhava e matá-la.
— Sra. Munro, como vai?
A mulher sentada atrás da escrivaninha de mogno levantou-se da cadeira com um
sorriso nos lábios. Ela usava os cabelos presos num coque e usava roupas simples mas
elegantes. A pequena placa de bronze sobre a escrivaninha identificava a mulher como
"Sra. Phillips".
A Sra. Phillips aproximou-se. Cumprimentou Anne com um aperto de mão, fez
um aceno com a cabeça na direção de Patrick e em seguida comentou:
— Que bom vê-la novamente, Sra. Munro. Fazia tempo que a senhora não vinha
até aqui. Precisamos conversar sobre um assunto muito importante relacionado ao...
— Quero ver Henry — disse Anne, interrompendo-a. — Ele ainda está aqui, não
está?
— Sim, é claro, mas...
— Discutiremos o tal assunto importante mais tarde, se não importa.
As palavras de Anne soaram bruscas, mas ela estava tão ansiosa para ver o
menino que nem se deu conta disso. Seu pai... O filho de Deborah podia ser o seu pai!
Durante a viagem de três horas entre Munro e a pequena cidade na divisa dos Estados
de Oklahoma e Missouri, ela não conseguira pensar em outra coisa.
— Como preferir, Sra. Munro. Com licença, vou buscar Henry.
A Sra. Phillips saiu da sala.
Anne fitou Patrick, tentando decifrar a expressão que dominava o rosto másculo.
Ele permanecera calado durante toda a viagem. E agora, o que estaria pensando? Será
que passara a acreditar que Deborah e Anne realmente eram duas mulheres diferentes?
Ou teria concluído que "Deborah" enlouquecera de vez?
Bem, pelo menos ele estava ali, a seu lado, e isso já era um bom sinal.
— A Sra. Phillips me reconheceu, Patrick. E ela foi buscar o menino. Isso
significa que tudo o que Deborah escreveu no diário é verdade — disse Anne, de
repente.
— Eu sei que é. Por acaso pensou que eu não havia acreditado em você?
— Confesso que não sei mais o que pensar. Você ficou calado durante toda a
viagem...
— Fiquei calado para refletir melhor sobre tudo o que está acontecendo. E sabe o
que foi que eu concluí? Que estou com medo de que tudo o que você me contou seja
mentira, pois quero muito ter certeza de que você é mesmo Anne, e não Deborah. Por
mais absurda que a sua história pareça, quero que ela seja verdadeira. — Baixando o
tom de voz, Patrick acrescentou: — E sabe por quê? Porque estou apaixonado por
Anne, e quero passar o resto da minha vida ao lado dela.
— Eu também te amo, querido, mas nós nunca...
Anne interrompeu a frase no meio e virou-se para trás ao ouvir o barulho da porta
da sala sendo aberta. A Sra. Phillips entrou, acompanhada por um garotinho ruivo de
três anos de idade.
Oh, céus, pensou ela quando o menino sorriu de alegria ao vê-la. Já havia
considerado a possibilidade de o filho de Deborah ser o seu pai, e agora ali estava a
confirmação que procurava. Mas como? Como era possível?
— Mamãe! — exclamou o garotinho, correndo para abraçá-la. — A senhora
voltou!
Anne abaixou-se e o recebeu de braços abertos, procurando esconder as lágrimas
que lhe subiram aos olhos.
— Sim, eu voltei — murmurou com voz rouca de emoção. — Vamos, deixe-me
olhar para você.
Ela notou que os olhos do menino eram verdes como os seus — e como os de
Deborah... Então era essa a conexão! Finalmente Anne entendeu por que era tão
parecida com Deborah. Sua avó... Deborah era sua avó! — Quem é ele, mamãe? —
perguntou Henry, baixinho, apontando para Patrick.
Tentando ocultar o choque que a sua descoberta lhe provocara, Anne respondeu:
— Este é Patrick, um amigo meu. ... Patrick, este é Henry.
— Prazer em conhecê-lo, Henry — disse Patrick, trocando um aperto de mão
com o menino.
Anne sentiu um aperto no coração ao ver o modo como o garotinho sorria e
apertava a mão de Patrick. Maldito seja você, J.B. Munro, pensou, revoltada; maldito
seja por ter afastado o menino da mãe!
— Puxa, Henry, como você é forte! — brincou Patrick. — Quase esmagou a
minha mão!
— Sou o menino mais forte daqui, senhor — afirmou Henry, com orgulho, antes
de virar-se para Anne. — Vamos brincar nos balanços, mamãe, como a gente sempre
faz?
— Sim, querido, vamos.
— Que bom! Adoro balançar!
Anne teria sido capaz de ficar empurrando o balanço no qual Henry estava
sentado durante horas, mas o sol já se punha no horizonte e o estômago do garotinho
começara a roncar de fome. Ela pensou em sugerir a Patrick que se hospedassem em
algum hotel e fizessem uma segunda visita ao orfanato no dia seguinte, mas de que
adiantaria isso? Ficar mais um dia na cidade serviria apenas para adiar o inevitável.
De braço dado com Patrick, Anne voltou para o escritório da Sra. Phillips
enquanto uma funcionária do orfanato levava Henry para o refeitório.
Vendo que Patrick a olhava com ar preocupado, Anne o tranqüilizou:
— Não se preocupe comigo, eu estou bem.
E era verdade, pois tivera a chance de participar de um milagre: conhecer o
próprio pai quando ele ainda era criança. E Henry também ficara feliz em rever sua
"mãe" outra vez. Sim, um milagre... Uma experiência alegre, e não uma ocasião para
lágrimas.
No escritório, a Sra. Phillips os convidou a sentar e abordou o tal assunto
importante que mencionara antes.
— Sra. Munro, a senhora não faz idéia do quanto as suas visitas são boas para
Henry. Ele é uma das crianças mais bem-ajustadas que temos aqui no orfanato, com
certeza por causa das visitas que a senhora lhe faz. Nenhuma das outras mães vêm ver
os filhos, a senhora sabe.
Desde que suspeitara de que o filho de Deborah era seu pai, Anne não deixara de
pensar sobre o fato de ele ter ido parar num orfanato. Se houvesse sabido antes que seu
pai fora adotado, teria feito mais cedo a conexão entre ela mesma e Deborah. No
entanto, ou seu pai não se lembrava de ter sido adotado ou então preferira manter o fato
em segredo.
— Sim, Henry parece ser um menino feliz — disse ela, por fim.
— Ele é feliz, sem dúvida — concordou a Sra. Phillips. — No entanto, devo
pedir-lhe que reconsidere a decisão de não permitir que ninguém o adote. Sei que a
senhora ama o seu filho, mas ele se encontra numa situação peculiar demais. As
doações que a senhora tem feito ao orfanato são bastante generosas, e todos aqui lhe são
gratos por isso. Mantivemos a nossa promessa e nunca contamos ao seu marido que a
senhora costuma vir visitar Henry. No entanto, existem dois casais que estão muito
interessados em adotar o menino. As duas famílias são ótimas, tenho certeza de que a
senhora as aprovaria. Seria bom para Henry se a senhora reconsiderasse a sua decisão e
o deixasse ser adotado. Ele precisa de uma família de verdade, embora todos aqui no
orfanato gostem muito dele e lhe dêem atenção e carinho.
Anne encarou a mulher, incapaz de pronunciar uma única palavra. Henry era o
filho de Deborah, mas Deborah estava morta. Ele também era o pai de Anne. Com
certeza não estava nas mãos dela a decisão de permitir que Henry fosse adotado ou não,
Tudo aconteceria naturalmente, claro. Seu pai seria adotado por Charles e Esther
Sawyer e seria irmão de Shirley. Mas e se Charles e Esther não estivessem entre os
casais que queriam adotá-lo? O que poderia fazer nesse caso?
— Sra. Phillips, pode nos dar licença por um minuto? — pediu Patrick, de
repente. — Preciso conversar a sós com a Sra. Munro.
— Por favor, fiquem à vontade. — A mulher levantou-se e indicou duas pastas
que estavam em cima da escrivaninha. — Se quiser, pode dar uma olhada nisto, Sra.
Munro. Aqui estão as fichas preenchidas pelos dois casais que querem adotar Henry.
Assim que a Sra. Phillips saiu da sala, Anne abriu a primeira pasta, contendo
fichas referentes a Emma e Seth Johnson. Ela franziu a testa.
— Deborah, você não precisa entregar o seu filho para adoção — declarou
Patrick, tirando-lhe a pasta das mãos.
— Eu sou Anne, não Deborah. E é óbvio que preciso...
— O menino já tem uma mãe: você. Você o ama e quer ficar com ele, certo? Pois
é simples resolver a situação. Não volte para junto de J.B. Tire Henry do orfanato e
mude-se comigo para outra parte do país.
— Ah, Patrick, será que você nunca vai acreditar em mim? — suspirou Anne,
pesarosa. Ela pegou a segunda pasta, dizendo: — Quero mostrar-lhe algo. Algo que
talvez finalmente o convença de que eu não inventei essa história toda. Você ainda não
adivinhou quem é Henry?
— Ele é seu filho, qualquer um pode ver isso.
— Aí é que você se engana. Henry não é meu filho, é meu pai.
Anne abriu a segunda pasta, rezando para que as fichas contidas ali dentro
confirmassem o que ela dissera. E confirmavam: os nomes dos seus avós estavam
escritos nas fichas.
— Charles e Esther Sawyer... — Patrick leu em voz alta, assombrado.
— Antes que você me pergunte qualquer coisa, quero lhe dizer que não vim até
aqui antes para olhar o nome do casal a fim de usá-lo na minha história — afirmou
Anne. — Você ouviu o que a Sra. Phillips falou. Ela mencionou os dois casais como se
eles fossem uma novidade, e não como algo que eu já sabia. Isso significa que tudo o
que eu lhe contei é verdade, Patrick. Você queria acreditar em mim? Pois agora pode
acreditar.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. Só então Anne se lembrou de que tinha mais
provas para confirmar o que dizia. Enfiou a mão no bolso do casaco que estava vestindo
e tirou a sua carteira de motorista e as moedas que pegara na calça jeans antes de pedir a
Patrick que a trouxesse até o orfanato. Na hora, pensara apenas que poderia usar o
dinheiro para comprar uma passagem de trem caso Patrick se recusasse a trazê-la.
Depois, ficara tão concentrada pensando no passado trágico de Deborah e no seu pai
que até se esquecera da carteira de motorista em seu bolso.
— Dê uma olhada nisto. — Ela entregou o documento a Patrick. — A foto está
horrível, claro, mas dá para ver que sou eu. Leia o nome escrito aí: Anne Sawyer. Agora
veja a data de nascimento: mil novecentos e sessenta e seis. E a foto é colorida,
reparou? Se nada mais for capaz de convencê-lo depois disso...
Patrick examinou o documento com atenção e em seguida sorriu, murmurando:
— Por Deus, é verdade... É tudo verdade!
— Oh, até que enfim! — exclamou Anne, rindo, beijando-o na boca.
Ele correspondeu com paixão ao beijo, finalmente sentindo-se livre de qualquer
sentimento de culpa em relação a J.B, sentindo-se livre para amar a mulher que nunca
fora Deborah, que nunca o magoara.
— Eu te amo, Anne Sawyer — declarou ele, emocionado, depois do beijo.
Anne sorriu, sabendo que jamais se esqueceria desse momento. O que quer que
acontecesse dali para a frente, ela guardaria para sempre na lembrança as cinco palavras
que Patrick acabara de pronunciar.
— Eu também te amo, Patrick MacKinnon — disse ela, com voz rouca de
emoção. — Lembre-se sempre disso, não importa o que aconteça.
Eles estavam voltando para Oklahoma. Com certeza iam retornar à mansão
Munro, refletiu Franklin Thomas, seguindo-os de longe.
Ficara furioso quando vira o casal entrar no orfanato. Seu irmão Henry lhe havia
falado sobre o filho que gerara, mas nunca soubera que a criança tinha sido deixada
num orfanato. O próprio Franklin só soubera disso através de Deborah, antes de atacá-la
nos túneis.
Mas ele nunca imaginara que Deborah Munro fosse visitar o menino. Afinal, a
troco de que uma mulher tão egoísta e irresponsável iria preocupar-se com o garoto? O
coração de Franklin se encheu de ódio ao pensar que Deborah ainda estava viva para
poder visitar o filho, ao passo que Henry jazia morto num túmulo frio.
Ele havia sentido vontade de assassinar Deborah lá mesmo, no orfanato, mas
preferira não correr nenhum risco desnecessário. Seria mais seguro matá-la na mansão.
Patrick parou o automóvel sob o pórtico e desceu para abrir a porta do passageiro
para Anne.
Anne... Ele apertou-lhe de leve a mão num gesto de carinho e conforto. Durante a
viagem, procurando esquecer a tristeza causada pelo fato de ter deixado Henry no
orfanato, Anne começara a contar histórias da vida do seu pai. O garotinho ruivo iria
crescer e transformar-se num homem bom, honesto, responsável e amoroso.
Conforme se aproximaram da mansão, porém, Patrick havia notado que Anne
voltara a ficar triste, parecendo a ponto de chorar a qualquer instante. Como agora, por
exemplo.
— Você está preocupada com a idéia de contar a J.B. o que aconteceu com
Deborah? — indagou ele.
— Não. Estou mais preocupada com o soco que darei em J.B. se ele reagir à
notícia com desdém. Depois de ter lido o diário de Deborah, imagino que ele não vá
ficar muito abalado ao saber que a esposa está morta.
— Tem razão. E bem provável que isso aconteça pois, na verdade, J.B. odiava
Deborah.
— E você, Patrick, ainda sente raiva dela?
— Depois de tudo o que você me contou a respeito de Deborah, como eu poderia
continuar sentindo raiva? Pena que eu não sabia de tudo na época. Talvez as coisas
tivessem sido diferentes, então.
— Sim, talvez... Mas nesse caso eu não teria tido a chance de conhecer você, não
é mesmo? Posso parecer egoísta falando isso, mas de certo modo fico até contente por
as coisas não terem sido diferentes. É horrível eu me sentir feliz às custas da tragédia
que se abateu sobre a minha avó, mas... Deborah teve Henry para amar, e eu tive você.
— Por que usou o verbo no tempo passado, Anne? Por acaso está me dizendo
adeus?
— Sim. Eu tenho de voltar para a minha própria época — respondeu ela, a voz
embargada de lágrimas.
— Por causa do seu pai, que está doente e precisa de você?
— Não só por causa disso. Na verdade, creio que não tenho outra opção. Não sou
uma expert em viagens no tempo, mas acho que a natureza não permitiria que eu ficasse
aqui. Até ver o meu pai, eu não tinha nem parado para pensar que existe outro motivo
pelo qual não posso continuar vivendo nos anos vinte.
— Que motivo é esse?
— Sou filha de Henry. Não posso existir aqui, na época dele, se nasci quarenta e
um anos no futuro. Você entende isso, não entende?
— Não. Só o que eu sei é que quero que você fique aqui comigo.
— Ah, meu amor, eu também gostaria muito de ficar, mas...
— Vou vestir as roupas que estava usando quando vim parar aqui — disse Anne,
enquanto se dirigia para o quarto de Deborah na companhia de Patrick. — Depois, você
pode me ajudar a entrar nos túneis para procurarmos o medalhão. Talvez até lá J.B. já
tenha voltado, e então explicarei tudo a ele.
— Talvez J.B. não volte tão cedo, e você tenha de passar mais algum tempo aqui
— observou Patrick, esperançoso.
Anne fitou-o, sorrindo, e deu-lhe um beijo. Em seguida, quando já ia entrar no
quarto, Katy apareceu correndo.
— Oh, Sra. Munro, que bom que a senhora chegou! O Sr. Munro ficou furioso
quando descobriu que a senhora tinha saído. Mal pude acreditar no que estava vendo, o
Sr. Munro parecia ter enlouquecido! Ele pegou uma faca e rasgou a tela inteira, e
depois...
— Acalme-se, Katy, por favor. Desse jeito não estou entendo nada. Conte direito
o que aconteceu.
— Bem... O Sr. Munro... — a criada lançou um olhar na direção de Patrick.
— Pode falar na frente do Sr. MacKinnon, não tem problema — tranqüilizou-a
Anne.
— Se a senhora acha... Bem, como eu ia dizendo, o Sr. Munro parecia ter
enlouquecido. Ele xingou a senhora de tudo quanto foi nome e jogou uma porção de
coisas contra a parede. O Sr. Munro insistiu comigo para eu dizer para onde a senhora
tinha ido, e quando eu respondi que não sabia ele ficou mais furioso ainda. Imagine só,
o seu marido pegou uma faca e rasgou a tela inteirinha!
— Que tela, Katy?
— Aquela que estava no salão de festas.
— No salão de festas...?
— Sim, aquele retrato bonito onde a senhora aparecia usando um medalhão de
ouro. — respondeu a criada, apontando para dentro do quarto de Deborah. — O Sr.
Munro me mandou trazer o retrato e todas as coisas que são da senhora aqui para o
quarto. Ele me mandou também trancar a porta e jogar a chave fora. Depois, o Sr.
Munro saiu da mansão como se todos os demônios do inferno estivessem atrás dele!
Perdoe-me o atrevimento, Sra. Munro, mas talvez seja bom a senhora ir embora agora e
passar algum tempo longe daqui. Se o seu marido encontrá-la aqui quando voltar, não
sei o que será capaz de fazer.
Empalidecendo, Anne entrou às pressas no quarto.
— Oh, não! — gritou ao ver o retrato colocado em cima da cama junto com
outros quadros e objetos pessoais de Deborah. — Dê só uma olhada nisso, Patrick! Meu
Deus, o que vou fazer agora?
Patrick dispensou Katy e correu para junto de Anne. O retrato fora retalhado com
uma faca, como a criada dissera.
— Não dá nem para ver o medalhão... Como poderei voltar para o futuro? —
indagou Anne, horrorizada.
— Sinto muito, querida — disse Patrick, com sinceridade.
Se o retrato fora destruído, então Anne seria obrigada a continuar nos anos 20,
com ele. Mas isso não o deixava feliz, pois sabia que para Anne o mais importante era
voltar para o futuro, para o próprio bem dela. E como ele poderia ser feliz vendo a
infelicidade da mulher amada?
— Talvez Deborah esteja usando o medalhão em algum outro quadro ou
fotografia — sugeriu Patrick, mas logo em seguida balançou a cabeça, aflito. — Não,
não adiantaria nada... A mágica, ou seja lá o que fez você viajar no tempo devia estar
toda concentrada no retrato que foi destruído. E agora que Deborah está morta, nem é
possível copiar o retrato e...
— Ei, espere! — Anne arregalou os olhos, — Deborah morreu, mas eu estou
viva! E sou praticamente idêntica a ela! Diga-me, Patrick, o pintor que fez o retrato vive
em Munro?
— Não, mas... No momento ele está morando aqui na propriedade, no ateliê dos
artistas. J.B. o contratou para pintar alguns quadros para a casa que mandei construir
para mim.
Anne correu a abrir a porta do guarda-roupa de Deborah e começou a arrancar os
vestidos dos cabidos até encontrar o que procurava.
— Achei! — exclamou, aliviada. — Foi esse o vestido que Deborah usou quando
posou para o retrato. Talvez a gente consiga refazer a mágica da viagem no tempo,
Patrick!
16
Não fazia nem quinze minutos que Patrick havia saído do quarto quando Anne
ouviu o barulho da porta se abrindo. Ela saiu do banheiro enfiando a barra da camisa
para dentro da calça e levou um susto; J.B. estava parado no meio do quarto.
Ao vê-la, ele empalideceu violentamente e estremeceu.
— Você está bem? — perguntou Anne, preocupada. J.B. recuou um passo,
balbuciando com voz fraca:
— Você... você está morta... Encontrei o seu corpo... lá na caverna...
Oh, não! Ele havia encontrado Deborah!
— J.B., escute, eu não sou Deborah. Tentei lhe dizer isso na noite em que saí dos
túneis, lembra-se?
Anne tentou se aproximar, mas ele continuou recuando até que suas costas
encontraram a parede.
— Você... você não é ela? Mas então... quem...? Apesar de ter ficado com muita
raiva de J.B. depois de ler o diário de Deborah, nesse momento Anne sentiu pena. Os
olhos dele estavam vermelhos e inchados, indicando que havia chorado. E agora ele a
encarava como se estivesse diante de um fantasma.
Anne o segurou pelo braço e o conduziu até uma poltrona, usando um tom de voz
suave para acalmá-lo.
— Venha, J.B, sente-se um pouco. Nas linhas do seu destino não está escrito que
você vai morrer de ataque cardíaco aos quarenta e poucos anos de idade, pode acreditar
no que lhe digo.
Depois que ele praticamente desabou sobre a poltrona, Anne tomou fôlego e
começou a explicar o que acontecera.
— Acalme-se, J.B. Você não está vendo o fantasma de Deborah. O meu nome é
Anne Sawyer. Sei que você vai achar a minha história absurda, mas...
Franklin Thomas viu o homem moreno sair da mansão, depois esperou durante
quarenta e cinco minutos, até ter certeza de que o sujeito não retornaria tão cedo.
Nervoso, enxugou as palmas suadas das mãos nas pernas das calças. Não podia perder a
calma, agora. Tinha de pensar em seu irmão Henry deitado no caixão e lembrar que,
dessa vez, não podia falhar. A sua missão de justiceiro devia ser cumprida.
Ele se esgueirou pelo jardim até entrar na mansão. Atravessou o hall vazio e
correu até a primeira sala do andar térreo. Ao ouvir as vozes de Deborah e de um
homem, assustou-se. Escondeu-se atrás de um sofá de encosto alto e esperou que os
dois passassem. Arriscando-se a dar uma espiada, viu que eles caminhavam na direção
do salão de festas.
— É difícil de acreditar — dizia o homem.
— Mas é verdade, J.B. Você viu a minha carteira de motorista, viu o corpo dela.
E quando Patrick voltar, ele poderá confirmar o que aconteceu em Missouri. Patrick leu
o nome que estava nas fichas referentes ao casal. — Uma pausa, e então: — Você
precisa ler o diário dela, e então entenderá por que...
As vozes foram se distanciando. Franklin seguiu atrás, tomando cuidado para não
ser visto nem pelo casal nem por algum empregado que porventura aparecesse. Com
muita sorte, conseguiu chegar até o salão de festas sem que a sua presença fosse
detectada. Tornando a esconder-se, dessa vez atrás de uma poltrona, ele viu Deborah e
J.B. entrando na enorme lareira. Escutou barulho de chaves, de uma porta se abrindo.
Olhando ao redor para certificar-se de não havia mais ninguém no salão, correu
até a lareira. Se não estivesse enganado, o casal descera até os túneis por uma entrada
diferente daquela que ele conhecia — a entrada que Deborah lhe mostrara quando
estava ansiosa para receber notícias de Henry, pensando que o seu antigo amante ainda
estava vivo.
Deborah e J.B. eram os responsáveis pela morte de Henry. Os dois! Franklin não
se importava mais de deixar um ou dois corpos sem vida nos túneis. Afinal, J.B. Munro
era tão culpado pelo que acontecera quanto a sua esposa vagabunda. Tirando um
revólver do bolso do paletó, Franklin Thomas entrou na lareira e começou a descer a
escada que levava aos túneis.
O medalhão estava perto do primeiro degrau da escada, onde Anne sabia que
estaria. Ela se abaixou, pegou a jóia e mostrou-a a J.B.
— Viu só? O medalhão estava onde eu disse que estaria. A correntinha deve ter
arrebentado quando eu caí e bati a cabeça.
— Humm, estou me lembrando desse medalhão. Patrick o deu de presente a ela.
Mas como uma jóia e um retrato puderam...
— Não sei — respondeu Anne, sem esperar pelo final da pergunta.
Era incrível, mas ela não estava se sentindo nem um pouco feliz por ter
encontrado o medalhão. Ali estava a jóia, na palma da sua mão. A jóia que era a sua
passagem de retorno para os anos 90. Ou, pelo menos, parte da passagem. O retrato teria
de ser copiado, e ainda assim Anne não tinha certeza de que a mágica, como dissera
Patrick, voltaria a funcionar.
Se funcionasse, ela retomaria para o futuro, para junto da sua família, para o seu
emprego como para-médica, — em resumo, voltaria para o que considerava ser o
"mundo real". Há pouquíssimos dias, teria dado cambalhotas de alegria ao recuperar o
medalhão. Agora, porém, ela o trocaria de bom grado por uma certidão de nascimento
com uma data bem anterior a 1966 — uma data mais próxima dos anos 20, por
exemplo. Desse modo, não precisaria abandonar Patrick MacKinnon.
Ao pensar nisso, Anne sentiu-se culpada. Desde quando a saúde de seu pai
deixara de ser a coisa mais importante do mundo para ela?
— Você disse que viu o homem, não é? — disse J.B., interrompendo-lhe os
pensamentos. — Antes de partir, é melhor você descrever a aparência do sujeito, para
que eu possa mandar a polícia atrás dele.
— Sim, claro. Eu já havia mesmo decidido que...
— Ela não irá descrever a aparência de ninguém — intrometeu-se uma voz
masculina vinda do alto da escada.
Anne soltou um gritinho de susto e deu um encontrão em J.B. quando ambos se
viraram ao mesmo tempo na direção da voz.
— Quem está aí? — perguntou J.B.
— Pergunte à sua esposa — respondeu Franklin Thomas, descendo a escada com
um revólver na mão direita. — Ela e eu nos encontramos aqui nos túneis poucas noites
atrás. Foi um encontro memorável, diga-se de passagem.
— Você o conhece? — indagou J.B. a Anne.
— Eu não sou Deborah, lembra? — ela sussurrou em resposta.
Não conseguia ver direito o rosto do homem por causa de uma lâmpada acesa que
lhe ofuscava a visão. Mas o revólver na mão dele deu-lhe uma boa indicação de quem
podia ser o sujeito.
— É ele? É o assassino? — indagou J.B. em voz baixa.
— Acho que sim. Mas parece que ele tirou a barba...
Nesse momento, Franklin desceu mais um degrau e a lâmpada iluminou-lhe de
frente o rosto.
Anne soltou uma exclamação de surpresa. O sujeito era parecido com o pai dela,
embora tivesse feições mais duras.
— Afastem-se da escada — ordenou Franklin, aproximando-se.
Anne não saiu do lugar.
— Quem é você? — questionou ela.
Se ia morrer, queria pelo menos saber o nome do seu carrasco e o motivo que o
levara a matá-la.
— Não banque a engraçadinha, Deborah. Você ouviu a minha ordem, agora
mexa-se!
— Não vou arredar o pé daqui enquanto você não me disser quem é — insistiu
Anne, com voz trêmula de medo. — Se quiser me matar, terá de me matar aqui mesmo.
Mas acredito que você não queira atirar tão perto da porta, pois algum empregado pode
ouvir o disparo, certo? Muito bem, diga quem é e eu me afastarei da porta.
— Você me parece familiar — disse J.B. ao homem, ao mesmo tempo em que
abraçava Anne num gesto protetor. — Quem...
— É claro que eu lhe pareço familiar, uma vez que meu irmão era tão parecido
comigo que muita gente pensava que éramos gêmeos — retrucou Franklin, apontando o
revólver para a cabeça de J.B. — Mas você já destruiu tantas pessoas na sua vida que
nem distingue mais uma vítima da outra, não é mesmo, seu filho da mãe? Agora andem,
vamos! Os dois!
— Seu irmão? — instigou Anne, sem mover-se um só milímetro.
Ela já sabia agora quem era o irmão do homem, claro. Se o irmão era parecido
com o sujeito que segurava o revólver, ele só podia ser o pai do filho de Deborah, ou
seja, o avô de Anne. E o homem ameaçador à sua frente era o tio de seu pai, ou seja, seu
tio-avô.
— O que aconteceu com Henry? Por acaso você quer nos matar por causa dele?_
ela perguntou em seguida, mas uma vez tentando ganhar tempo.
— Não se atreva a pronunciar o nome do meu irmão, sua vagabunda! Você foi a
responsável pela morte dele!
— Henry... Agora me lembro... — murmurou J.B, antes de indagar ao homem: —
O seu irmão morreu, então?
— Ele se matou! — vociferou Franklin.
— Oh, Deus... Não...
Anne fechou os olhos, recordando-se do modo como Deborah descrevera o
amante em seu diário: um homem bom e generoso, honrado e religioso. Ele amara
Deborah, apesar de tudo, e fora o único a dizer que ela era linda.
— Sim! — esbravejou Franklin. — Ele se suicidou por sua causa, mulher! Henry
se matou porque não conseguia viver sem você, sua cadela!
Uma revolta profunda tomou conta de Anne. Deborah não tinha sido nenhuma
"cadela"! Disposta a defender sua antepassada, que tanto havia sofrido na vida, Anne
protestou:
— Não ofenda a memória Deborah desse jeito! Ela amava o seu irmão, e o seu
irmão a amava!
No mesmo instante Franklin deu-lhe um tapa que a jogou longe de J.B. Ela bateu
contra a parede do túnel e ouviu o ruído do revólver sendo jogado no chão. Segundos
depois, duas mãos fortes a agarraram pelo pescoço, começando a sufocá-la.
Anne escutou os gritos de J.B. e viu que ele tentava arrancar o assassino de perto
dela. Mas J.B, desacostumado a exercícios físicos, não era páreo para um homem
enfurecido como Franklin Thomas. A visão de Arme escureceu, e ela percebeu que
estava prestes a perder a consciência. Ia morrer como Deborah morrera: estrangulada.
Foi então que as mãos assassinas soltaram-lhe o pescoço. Anne caiu no chão,
tossindo, os olhos cheios de lágrimas. Ao olhar para cima, esperou ver J.B. Mas era
Patrick quem estava ali na frente, com o revólver nas mãos. Pelo jeito, ele havia batido a
coronha da arma contra a cabeça do assassino, fazendo o homem desmaiar.
Entregando o revólver a J.B, Patrick ajoelhou-se e abraçou Anne.
— Ah, meu amor... Graças a Deus cheguei a tempo! Você não estava no quarto
quando voltei. Procurei-a pela casa toda, aposento por aposento. Quando vi o cadeado
no chão do salão de festas, perto da lareira, pensei que você tivesse descido até aqui
sozinha e vim procurá-la. Quando vi aquele homem com as mãos no seu pescoço...
Céus, eu não suportaria perdê-la, querida!
Anne correspondeu ao abraço, enxugando na camisa de Patrick as lágrimas que
lhe escorriam pelas faces. Lágrimas de amargura e pena por todo o sofrimento pelo qual
Deborah e Henry haviam passado. Chorava também por Patrick e por si mesma, pois
seriam obrigados a se separarem apesar do amor que sentiam um pelo outro.
Ela avistou o medalhão no chão, onde havia caído quando Franklin a atacara.
Pegou-o, com mãos trêmulas, e mostrou-o a Patrick.
— Eu o encontrei — soluçou. — Encontrei o maldito medalhão...
— Como posso pintar o retrato se ela não pára de se mexer, Sr. Munro? —
reclamou o pintor, dirigindo um olhar fulminante a Anne. — A sua esposa era capaz de
ficar imóvel durante horas, mas a sua cunhada parece que tem bicho-carpinteiro no
corpo!
— Falvo, meu caro, como artista sensível que é , você deveria ser o primeiro a
saber que as pessoas têm temperamentos diferentes. Anne pode ter uma incrível
semelhança física com a... irmã, mas sempre teve um gênio oposto ao dela.
— É verdade — concordou Anne, mais uma vez disposta a defender Deborah,
embora numa situação bem mais agradável. — Deborah sabia posar, eu não paro de me
mexer. Ela sabia cavalgar e vestir-se com elegância, ao passo que eu sou um desastre
em cima de uma sela e não consigo nem diferenciar um modelo de Chanel de um
modelo de Lanvin. Isso sem mencionar...
— Já chega, Anne, não precisa dar mais exemplos — riu J.B, saindo de perto do
pintor e aproximando-se dela.
Falvo gemeu e revirou os olhos.
— A luz, Sr. Munro! O senhor está bloqueando a passagem da luz! Oh, assim é
impossível trabalhar... O senhor exigiu que eu fizesse uma réplica exata do primeiro
retrato, com as mesmas cores, a mesma luz e a mesma composição, certo? Pois então,
por favor, não dificulte ainda mais o meu trabalho, eu lhe imploro!
— Tudo bem, Falvo, não precisa ficar nervoso — disse J.B, saindo da frente da
luz. Em seguida, cochichou para Anne, repetindo uma frase que a ouvira falar na
véspera; — Acho que ele precisa de um Valium, coitado.
— Pare com isso, J.B, assim você vai me fazer rir — protestou ela.
Assumindo um tom mais sério, ele mudou de assunto:
— Terminei de ler o diário de Deborah e... Confesso que estou com remorso.
Olho à minha volta, vejo todas as coisas que sempre considerei importantes, e sinto-me
envergonhado, arrependido. Eu devia ter dado mais valor às pessoas que me cercavam,
principalmente no que diz respeito a Deborah. Quando penso no quanto ela deve ter me
odiado...
— Sim, Deborah deve tê-lo odiado, às vezes. Eu mesma cheguei a odiar você
depois de ler o diário — admitiu Anne. — Por outro lado, se eu achasse que você era
um "caso perdido", jamais teria lhe mostrado o diário. Seria como jogar pérolas aos
porcos.
Arriscando-se a levar mais uma bronca do pintor, ela virou o rosto para fitar J.B.
Sorrindo, argumentou:
— Sei que você pode ser generoso, quando quer. Lembro-me muito bem da noite
em que aquela mulher interrompeu o nosso jantar. Você me prometeu que não a
deixaria passar por dificuldades financeiras e...
— Srta. Anne, por favor... — resmungou Falvo.
Ela ignorou o pintor e continuou falando:
— Também pude perceber o quanto você era generoso ao observar o seu
relacionamento com Patrick e ver o modo como você se preocupa em dinamizar a
economia da cidade que fundou. Não é só com o seu império particular que você se
preocupa, J.B, mas também com as pessoas que vivem na cidade.
— Se sou tão generoso quanto você diz, por que não me preocupei mais com
Deborah? Céus, quando penso no modo como a tratei... Eu nunca me dei conta do que
estava fazendo com ela. Pensei que seguir uma disciplina rígida fosse o melhor jeito de
educar uma criança. Meu pai era um homem severo, e no entanto eu me tornei um
adulto equilibrado.
— Tem certeza, J.B?
Ele sorriu, sem graça.
— Bem, pelo menos eu achava que era equilibrado. Agora, no entanto...
— J.B, ouça com atenção. O maior erro que você poderia cometer agora seria sair
dessa história toda sem ter aprendido nada. Você errou ao tratar Deborah como tratou,
ao dar prioridade a coisas que deveriam ter ocupado um segundo plano. Mas agora você
está arrependido, e o melhor que tem a fazer daqui para a frente é viver segundo novos
padrões de comportamento. O que passou, passou, portanto pare de se atormentar e
tente ser feliz.
— Como poderei ser feliz, Anne? Perdi todo mundo. Deborah... Patrick... Até
você vai embora, amanhã.
A simples menção de sua partida e do nome de Patrick, Anne sentiu um aperto no
coração. Não via o amado há dois dias, desde que ele viera despedir-se. Ao contrário de
J.B, Patrick não ligara a mínima para as broncas do pintor; pusera-se ao lado de Anne
enquanto ela posava, sem se importar com o fato de estar "bloqueando a luz", sem se
importar com quem pudesse ouvir o que tinha a dizer.
— Eu te amo, Anne Sawyer — ela havia declarado com a voz rouca de emoção e
um brilho de angústia no olhar. — Eu gostaria de passar o resto da minha vida com
você, repetindo todos os dias que te amo, mas sei que não é possível. Sabia que vir até
aqui para me despedir seria doloroso, e no entanto eu tinha de vir, nem que fosse para
vê-la pela última vez...
Anne balançou a cabeça e procurou afastar a lembrança que lhe partia a alma em
mil pedaços.
— Sinto muito — desculpou-se J.B, enxugando com a ponta dos dedos a lágrima
que escorreu pelo rosto de Anne. — Você também vai perder alguém muito importante,
não é mesmo?
— Sim, é verdade... Mas não se esqueça do que eu lhe disse, J.B. Você ainda tem
muitos anos de vida pela frente. A decisão é sua. Ou você passa o resto dos seus dias
lamentando o passado ou utiliza tudo o que aprendeu para mudar o seu jeito de ser. —
Ela forçou um sorriso. — Acho que você vai escolher a segunda opção, certo? De
algum modo, não consigo imaginá-lo como sendo o tipo de homem que perde tempo
com lamentações.
— Obrigado — murmurou J.B. — Por tudo.
— Não há o que agradecer — respondeu Anne, levantando-se da cadeira onde
estava sentada há mais de três horas. Em seguida, aproximando-se do pintor,
argumentou: — Sei que você vai ralhar comigo, Falvo, mas não agüento mais ficar
imóvel e... Oh! — exclamou ela, quando o seu olhar pousou sobre o retrato.
— "Oh"? Depois de todo o trabalho que tive, isso é tudo o que a senhorita tem a
dizer?
— É... é incrível! Ficou igualzinho ao outro!
Anne estendeu a mão para tocar o retrato. O pintor deu-lhe um tapinha no braço,
protestando:
— Não toque nele! Quer borrar a tinta?
Ela recolheu a mão, mas não porque Falvo lhe dera uma bronca. O zumbido...
Acabara de ouvi-lo de novo ao aproximar os dedos da tela... Isso significava que a
mágica funcionaria outra vez.
— O que foi, Anne? — indagou J.B, preocupado. — Você empalideceu. Está se
sentindo mal?
— Não, eu estou bem — mentiu ela antes de sair da sala de pintura do estúdio
dos artistas.
Será que teria forças para seguir o mesmo conselho que dera a J.B? Teria forças
para não ficar lamentando o passado e tentar ser feliz novamente?
— O retrato está pronto, então? — perguntou J.B, olhando a tela pela milésima
vez.
— Sim — respondeu o pintor.
— É impressionante! Ficou idêntico ao primeiro! Meus parabéns, Falvo. Você é
um gênio!
— Obrigado, Sr. Munro. A propósito, eu ainda não lhe agradeci por ter me
pedido para pintar este retrato pela segunda vez, a fim de substituir o que foi danificado.
É uma honra saber que o meu trabalho é considerado em tão alta estima. Ao mesmo
tempo, suponho que tenha sido a memória da sua adorável esposa que motivou o
pedido, também.
— É verdade — concordou J.B.
O retrato serviria para a viagem de retorno de Anne, mas serviria também como
uma homenagem póstuma a Deborah.
De repente, J.B. reparou em algo que não havia notado antes.
— Falvo... Essa sombra... — murmurou ele, apontando para a tênue mancha
cinza perto do ombro da mulher retratada.
— Sim?
— Oh, não importa. Creio que havia uma sombra igual no outro retrato.
— É claro que havia.
— Está bem. E, mais uma vez, obrigado. Você fez um excelente trabalho.
Falvo esperou que J.B. saísse da sala para começar a limpar os seus pincéis,
lembrando-se das exigências do magnata há três dias: O retrato precisa ser idêntico,
Falvo! As mesmas cores, a mesma luz, a mesma composição! Ele cumprira as ordens,
claro, mas na medida do possível. Afinal, não era uma máquina, era um artista! Jamais
poderia ter deixado de incluir no retrato, por exemplo, a sombra da tristeza do Sr.
MacKinnon quando ele viera se despedir da srta. Anne.
Anne percorreu a mansão de ponta a ponta pela última vez, numa espécie de
despedida, deixando por último o salão de festas. Sabia que poderia voltar a visitar a
luxuosa residência no futuro, se quisesse, mas preferia guardar na lembrança os detalhes
da aparência do lugar como ele era agora, nos anos 20. As salas, os quartos e banheiros,
a cozinha... Até mesmo o Packard, na garagem, merecera uma última visita.
— Jeans, camisa e tênis... Vejo que já está vestida para viajar.
O olhar de Anne dirigiu-se para J.B, que estava parado à porta do salão de festas.
— Sim, já estou pronta para partir — disse.
— Patrick também vai embora hoje.
— Você conversou com ele, J.B? — indagou, sentindo-se estranhamente calma;
não tinha mais lágrimas para chorar.
— Conversei. Patrick ainda não sabe para onde vai. Acho que ele irá andar meio
sem rumo por aí, mas acabará voltando para cá um dia. O que não falta em Oklahoma
são fazendas e, imagine só, Patrick comentou que gostaria de ser fazendeiro!
— Isso não seria tão ruim, seria? — perguntou Anne, enquanto o magnata se
aproximava dela. — Lembre-se do que aprendeu, J.B. Os seus negócios são tão
importantes quanto os seus relacionamentos pessoais. Antes de mais nada Patrick é seu
amigo, e que diferença faz se ele vai deixar de ser seu sócio? Se ele se tornar fazendeiro,
pelo menos você o terá sempre por perto.
— Tem razão. Ah, irei sentir muitas saudades suas, Anne... Mas você disse que
vamos nos reencontrar no futuro, não disse?
— Sim, iremos nos ver de novo.
Ela ouviu um zumbido alto e virou-se para olhar o retrato pendurado na parede às
suas costas.
— Está escutando, J.B?
— Escutando o quê?
— Um zumbido... Foi esse mesmo barulho que ouvi antes de viajar no tempo pela
primeira vez.
— Não, não estou escutando nada.
— Bem... Acho que chegou a hora da minha viagem... — Fitando J.B, Anne
acariciou-lhe de leve a pequena cicatriz em forma e "C" e comentou: — Quando
cheguei aqui, reconheci você por causa da cicatriz.
— Foi Deborah que me "deu" essa cicatriz de "presente". Ela jogou um prato em
mim quando cancelei pela terceira vez os seus planos de ir conhecer a Europa.
Anne sorriu, depois ficou séria.
— Adeus, J.B. Procure ser feliz, e diga a Patrick que...
— Anne!
Ela interrompeu a frase no meio e arregalou os olhos, atônita. Patrick acabara de
entrar no salão, usando a mesma roupa que usara no dia em que haviam trocado o
primeiro beijo, perto do riacho. O coração de Anne começou a bater mais forte, ao
mesmo tempo em que o zumbido em seus ouvidos ficou mais forte.
— Vou deixá-la agora, Anne — disse J.B, sua voz quase inaudível por causa da
intensidade do zumbido. — Adeus, minha querida, e obrigado por tudo.
Assim que J.B. se afastou Patrick aproximou-se de Anne, com um brilho de
desespero nos olhos negros como uma noite sem luar.
— Não vá ainda, Anne. Por favor, fique mais um pouco — ele implorou.
Oh, Deus, dê-me forças para abandonar esse homem que eu amo tanto, pensou
ela, sabendo que a separação era inevitável. Em voz alta, porém, limitou-se a declarar:
— Eu preciso ir, Patrick. Você sabe disso.
— Sim, eu sei. Mas eu tinha de vê-la uma última vez, pelo menos. Fui cavalgar
agora de manhã, tentando descobrir um jeito de podermos continuar juntos. Pensei em
levá-la para longe daqui, mas...
— Mas eu não posso ficar, Patrick. Adeus... E lembre-se, eu te amo... Sempre vou
te amar...
— O quê? Não ouvi o que você disse, Anne. Fale mais alto!
Ela estremeceu de espanto, uma semente de esperança brotando de seu coração.
— Patrick, por acaso você está escutando um zumbido forte? J.B. não ouviu o
zumbido, mas você está ouvindo...
— É claro que estou! Parece até que tem um trem vindo na nossa direção.
Anne o abraçou e beijou, sentindo-se a ponto de explodir de felicidade.
— Acho que isso significa que você pode ir comigo para o futuro, Patrick!
Lembra-se da história que lhe contei? Depois que Deborah foi assassinada, você nunca
mais foi visto de novo. Talvez seja possível! Eu não posso ficar, mas talvez você
possa...
Patrick ficou boquiaberto e olhou primeiro para Anne, depois para o retrato.
— A menos que... Patrick, é isso o que você quer? Abandonar a sua época, os
seus amigos e tudo o que possui? Se você não quiser...
— É claro que eu quero, meu amor. Afinal, só poderei ser feliz ao seu lado, seja
lá onde for!
Excitada, Anne segurou a mão dele. Juntos, aproximaram-se ainda mais do
retrato.
— Toque no meu medalhão e no retrato ao mesmo tempo — ela explicou. — E se
por acaso não der certo... Se você ficar para trás... Saiba que eu te...
Patrick a calou com um beijo apaixonado e depois murmurou:
— Vai dar certo, tenho certeza.
Anne dirigiu um último olhar ao salão de festas e recordou-se do dia em que
chegara aos anos 20. Tomou a ouvir o conjunto de Jazz e a ver as pessoas rindo e
dançando, como se estivesse assistindo a um filme antigo. Tivera a extraordinária
chance de conhecer um mundo diferente do seu, um mundo saído dos livros de história,
mas agora era hora de voltar para casa.
Ela olhou para Patrick e sorriu. Juntos, seguraram o medalhão de ouro e, ao
mesmo tempo, tocaram o medalhão pintado no retrato.
Antes de ser envolvida pela escuridão, Anne teve a impressão de ouvir ao longe a
voz de J.B. lhe dizendo adeus.
EPÍLOGO
Anne duvidava que existisse no mundo visão mais bela que a de Patrick
MacKinnon vestindo jeans e camisa de flanela xadrez, cavalgando pelos campos de
Oklahoma num garanhão baio. Ela adorava seu marido, e todos os dias dirigia uma
prece de agradecimento aos céus por ter tido a chance de trazê-lo consigo do passado.
Ela sorriu ao pensar no quanto essas cavalgadas matinais faziam bem a Patrick,
ajudando-o a relaxar. Embora ele nunca reclamasse de nada, era óbvio que a pressão de
ajustar-se a um mundo novo e desconhecido o deixava estressado. Patrick estava indo
bem no curso de economia no qual se matriculara, numa faculdade próxima. Mas só
Anne e os poucos membros de sua família que conheciam a verdadeira data de
nascimento de Patrick sabiam o quanto ele precisava se esforçar para ter sucesso nos
estudos. Patrick passava horas mergulhado nos livros, tentando apreender as mudanças
que haviam ocorrido no mundo dos negócios desde a sua época. Ele também lia muitos
livros de história, tecnologia e ciência para ficar por dentro das transformações
ocorridas depois dos anos 20.
Patrick dizia achar tudo fascinante, e Anne sabia que ele estava sendo sincero.
Por outro lado, sabia também que ele não estava fazendo tudo o que fazia pensando
apenas em si mesmo. Patrick queria proporcionar um bom nível de vida para a esposa e
para os filhos que ambos pretendiam ter, mas logo descobrira que, em 1994, ser
fazendeiro exigia um investimento altíssimo de capital. E como ele não tinha esse
capital, decidira voltar a ser um homem de negócios. Embora não fosse isso o que mais
gostava de fazer, era nisso que ele era bom.
Ah, nunca conheci ninguém tão teimoso quanto o meu marido, refletiu Anne,
tornando a sorrir enquanto observava Patrick. Pela centésima vez ele estava tentando
ensinar ao cavalo, batizado de Cherokee II, alguns truques e passos que Anne vira no
show Oeste Selvagem, na Fazenda 101.
Sim, sem dúvida alguma, Patrick MacKinnon dava à palavra "teimosia" um novo
significado!
Ao avistar Anne sentada na cerca do curral, Patrick conduziu Cherokee para perto
dela. Desmontou, fazendo um floreio, e cochichou para o cavalo:
— Incline-se! Vamos, incline e cabeça e dobre as pernas dianteiras!
Cherokee ignorou a ordem e Anne começou a rir. Patrick largou as rédeas do
cavalo e abraçou-a com força antes de dar-lhe um beijo carregado de paixão.
— Humm, você fica tão sexy usando essa camisa — murmurou Anne segundos
depois, abrindo os dois primeiros botões para acariciar-lhe o peito.
— Por acaso está querendo me despir em público, mulher? — brincou ele. — No
meu tempo, homens sem camisa eram considerados uma indecência. Mas o mundo está
tão mudado agora, não é mesmo? Gosto de rock'n roll, por exemplo, só que ainda não
consigo entender por que os cantores das bandas gostam de se apresentar seminus,
dançando feito índios selvagens. Esse tipo de coisa é um grande choque cultural para...
— ...para alguém que veio da Era do Jazz, como você — completou Anne,
divertida. — Ah, meu querido, você não imagina como é engraçado ouvir você, às
vezes, falar igualzinho ao meu pai!
— Tolice, garota, sou um cara ligado em novidades. O jazz é legal, mas prefiro
um som mais heavy metal — disse ele, usando algumas das novas expressões que
aprendera nas últimas semanas. — E então, gostou do meu discurso? — indagou a
seguir, com uma piscadela marota.
— Achei demais! — riu Anne, brincalhona.
Os dois voltaram a se beijar, envoltos numa nuvem de desejo e sensualidade, mas
o som de um carro que se aproximava os fez despertar para realidade.
— Parece que temos visita — comentou Patrick, indicando o BMW branco que
subia a estradinha do pequeno sítio que tia Shirley lhes dera de presente de casamento.
O homem que saiu do carro minutos depois trajava um elegante terno Armani e
trazia nas mãos um buquê de flores e uma pasta executiva de couro.
— Você é Anne MacKinnon? — perguntou o homem de longe, enquanto fechava
a porta do BMW, com o pé.
— Eu mesma! — respondeu ela, olhando para o buquê de flores e depois para
Patrick, murmurando: — Preparou alguma surpresa para mim, querido?
— Não. Talvez o seu pai tenha decidido lhe mandar flores. Mas é estranho, o cara
não parece ser um simples entregador. Ele parece mais um executivo yuppie.
— É verdade. Além disso, meu pai não mandaria ninguém me entregar flores, ele
viria trazê-las pessoalmente.
Henry Sawyer havia se recuperado muitíssimo bem do segundo ataque cardíaco
enquanto Anne estivera "viajando", e agora os seus hobbies preferidos eram a
jardinagem e a genealogia. Henry havia demorado para acreditar na história que Anne e
Patrick lhe contaram. Mas depois que os dois o convenceram de que tudo era verdade
ele se transformara num ávido pesquisador da árvore genealógica da família Munro — à
qual nunca soubera que pertencia, pois não se lembrava de ter sido adotado e seus pais
nunca tinham lhe dito nada a respeito.
O homem desconhecido se aproximou do casal e entregou o buquê de flores a
Anne. Vendo que ela procurava pelo cartão do remetente, foi logo dizendo:
— Não adianta procurar, não há cartão nenhum. Permita que eu me apresente...
Meu nome é Brandford Tompkins. Sou advogado, sócio do escritório Tompkins &
O'Brien. — Virando-se para Patrick, Brandford cumprimentou-o com um aperto de
mão. — Você deve ser o marido de Anne, certo?
— Sim, sou eu — respondeu ele, desconfiado.
Tia Shirley resolvera o problema da identidade de Patrick arranjando-lhe novos
documentos, mas não através de canais reconhecidos pela lei. Os documentos haviam
custado caro e eram perfeitos, ninguém jamais descobriria que eram falsos. Mesmo
assim, Patrick achava melhor ser prudente.
— Ótimo! — Brandford abriu a pasta de couro e pegou um envelope que trazia o
nome de Anne escrito na frente. — Há tempos eu estava esperando por esse dia, pois
não sou do tipo que gosta de surpresas ou mistérios. Quando era pequeno, eu nunca
resistia à tentação de xeretar os presentes de Natal que meus pais deixavam escondidos
no armário.
— Surpresas? Mistérios? Do que está falando? — indagou Anne, curiosa.
— Quem lhe mandou essas flores foi J.B. Munro — respondeu o advogado,
sorrindo.
— J.B. Munro?! Mas... como...?
— Compreendo o seu espanto. Afinal, o Sr. Munro morreu há um ano. Acontece
que o meu escritório é o responsável pela administração dos bens que ele legou à cidade
de Munro. Na verdade, o escritório já cuidava de parte dos negócios do Sr. Munro bem
antes de ele falecer. Foi o Sr. Munro que incentivou o meu avô a abrir o escritório,
depois de pagar os estudos dele, mas essa é uma outra história. De qualquer modo,
todos os bens que o Sr. Munro deixou já foram distribuídos entre os herdeiros
designados, com exceção de um. — Brandford deu o envelope a Anne, acrescentando:
— O Sr. Munro deixou instruções para que isto lhe fosse entregue depois do seu
casamento.
— Oh, céus... — murmurou Anne, trocando um olhar com Patrick.
Ela abriu o envelope e, junto com Patrick, leu a carta que havia lá dentro.
Querida Anne, querido Patrick:
Depois que vocês se foram, não passei um único dia da minha vida sem me
lembrar de vocês com muito carinho. Pensei num jeito de ajudá-los a serem tão felizes
quanto eu fui graças à lição que me ensinaram, e espero ter encontrado a solução mais
adequada. Pedi aos meus advogados que só lhe entregassem a parte da herança que lhe
deixei depois do seu casamento com Patrick, Anne. Eu já sabia o que ia acontecer
assim que vocês partiram para o futuro. Por favor, não sejam orgulhosos e aceitem o
meu presente. Conheço você como se fosse meu filho, Patrick, e finalmente consegui
entender e aceitar o fato de que você nunca tinha sido feliz trabalhando com finanças.
Sendo assim, use o dinheiro para comprar aquela fazenda com a qual sempre sonhou.
Quanto a você, minha querida Anne, trate de ser tão feliz quanto desejou que eu fosse.
E eu consegui mesmo ser feliz, pode acreditar. Com amor,
Jonathan Bartholomew Munro, Munro, Oklahoma, 1980.
Anne e Patrick fitaram-se com os olhos cheios de lágrimas de emoção, e depois
encararam o advogado.
Brandford entregou um cheque a Anne. Ao ler o valor escruto no cheque, ela
soltou uma exclamação de espanto. Era dinheiro mais que suficiente para comprar cinco
fazendas enormes!
— Eu tinha muita curiosidade em conhecê-la, Anne — disse o advogado,
sorrindo. — Eu conhecia a maioria dos amigos do Sr. Munro, mas nunca tinha ouvido
falar em você. O que despertou a minha curiosidade, de fato, foi o valor elevado do
cheque.
— A avó de minha esposa foi uma grande amiga de J.B. — explicou Patrick.
— Oh, compreendo... Bem, o Sr. Munro sempre foi um homem muito generoso.
Vejam o caso do meu avô, por exemplo. O Sr. Munro nem o conhecia direto, e mesmo
assim pagou os estudos dele. — Depois de checar as horas em seu caro relógio de pulso,
o advogado despediu-se. — Com licença, mas preciso ir embora para tratar de outros
compromissos. Adeus, e parabéns pelo presente que acabaram de ganhar!
Assim que Brandford Tompkins partiu, Patrick abraçou Anne.
— É bom saber que J.B. conseguiu ser feliz — disse ela, comovida. — Eu meu
preocupava tanto por causa dele!
— Eu também me preocupava, querida.
— Tompkins... Tompkins... Esse sobrenome me parece familiar, por que será?
— Você não lembra? Esse era o sobrenome da mulher que foi procurar J.B.
depois de ter sido abandonada pelo marido.
— Oh, é verdade! J.B. havia prometido cuidar da mulher e dos filhos dela. Pelo
visto, ele cumpriu a promessa.
— Pois então, esse advogado que veio nos ver deve ser neto de um dos filhos da
Sra. Tompkins.
— Tem razão. — concordou Anne. — J.B. era tão generoso... E você também é,
meu amor. Aposto que já está pensando em ajudar alguém com parte do dinheiro que
J.B. nos deixou, não é mesmo?
— Sim. Mas estou pensando em outra coisa, também.
— No quê?
— Em agradecer. — Patrick olhou para o céu e gritou:
— Obrigado, J.B, você deve ter adivinhado que eu ia achar difícil aprender a
trabalhar com microcomputadores! — Em seguida, puxando Anne pela mão, brincou:
— Vamos lá, agora que você vai ser mulher de um fazendeiro, é melhor aprender
a andar a cavalo!
BRENNA TODD adora desafios. Cada livro que ela escreve tem uma temática nova,
envolvente. Seus heróis e heroínas são pessoas que poderíamos encontrar na rua — ou
numa aventura capaz de nos fazer voltar no tempo. O Enigma do Medalhão é uma
dessas histórias, trazendo um toque mágico de "e se fosse possível...?" para um
acontecimento da vida cotidiana, além de incluir uma boa dose de romance para deixar
as leitoras com água na boca. Brenna vive em Oklahoma com o marido e dois filhos.