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O Segredo do Visconde

The Viscount's Wicked Ways


Anne Mallory

Inglaterra, Século XIX


Uma tentação irresistível...
Nada é mais importante para Thomas Ashe do que o projeto secreto que vem
desenvolvendo para o governo. No entanto, ele sabe que alguém está tentando
destruir tudo o que construiu até agora. E quando a encantadora e curiosa Patience
Harrington aparece em seu castelo para avaliar sua coleção de antiguidades, Thomas
suspeita de que ela esteja escondendo algo. A beleza da jovem o afeta em todos os
sentidos, mas envolver-se com ela seria a última coisa que ele pensaria em fazer.
Porém, com seu futuro em jogo, Thomas está decidido a fazer o que for preciso,
inclusive seduzir Patience, a fim de convencê-la a dizer a verdade, antes que sua vida,
e seu coração, se percam para sempre...
Digitalização: Néia
Revisão: Andréa
Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Anne Mallory consegue conciliar os mais variados tipos de atividades em seu dia-a-dia:
trabalha como analista de sistemas, toca música, pratica atletismo e aproveita as horas livres
para ler para os deficientes visuais de sua comunidade. E também escreve histórias de amor
encantadoras, que já lhe renderam prêmios literários.

"O talento de Anne Mallory cresce a cada romance!"


Romantic Times

"Os fãs de romances históricos vão adorar O Segredo do Visconde. Anne Mallory dá
vida a personagens carismáticos e encantadores!"
A Romance Review

"O Segredo do Visconde tem diálogos espirituosos, personagens divertidos e um


empolgante enredo de suspense. Parabéns, Anne Mallory, por mais este romance
maravilhoso!"
Writer's Unlimited

"...um romance histórico gótico muito original, com situações divertidas..."


The Best Reviews

"...um romance encantador, com um toque gótico..."


Fresh Fiction

"O Segredo do Visconde é uma leitura deliciosa, o romance perfeito!"


Romance Reviews Today

"Anne Mallory é uma autora fantástica. Seus romances mantêm os leitores


enfeitiçados..."
America Online Fiction Forum

"Eu achei O Segredo do Visconde um romance tão charmoso e irresistível quanto o


próprio visconde, herói da história! Anne Mallory dá uma abordagem inovadora aos
romances clássicos com suas tramas inteligentes e imaginação privilegiada!"
Teresa Medeiros

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Querida leitora,
O que pode acontecer quando o destino faz cruzar os caminhos de um misterioso e
reservado visconde com segredos demais e de uma jovem impetuosa com propensão para
se envolver em encrencas e uma forte atração por desvendar mistérios? Acrescente a isso
uma boa dose de suspense e sensualidade, e você terá um romance delicioso...
Leonice Pomponio Editora

Copyright © 2006 by Anne Hearn


finalmente publicado em 2006 pela HarperCollins Publishers
PUBLICADO SOB ACORDO COM HARPERCOLLINS PUBLISHERS NY, NY - USA
Todos os direitos reservados.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Proibida a reprodução, total ou parcial, desta publicação, seja qual for o meio, eletrônico
ou mecânico, sem a permissão expressa da Editora Nova Cultural Ltda.
TÍTULO ORIGINAL: The Viscount's Wicked Ways
EDITORA Leonice Pomponio
ASSISTENTES EDITORIAIS Patricia Chaves Silvia Moreira
EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Camillo Garcia Revisão: Giacomo Leone
ARTE Mônica Maldonado
ILUSTRAÇÃO Thomas Schlück
MARKETING/COMERCIAL Andrea Riccelli
PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi
PAGINAÇÃO Dany Editora Ltda.
© 2008 Editora Nova Cultural Ltda.
Rua Paes Leme, 524 – IO andar - CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
Premedia, impressão e acabamento: RR Donnelley

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde

Capítulo I

Patience Harrington estremeceu de emoção, ao observar as portas de madeira maciça


do castelo, com entalhes em forma de coroas, corvos e hera. Os entalhes eram ricamente
detalhados, como se tivessem sido esculpidos em honra a algum deus da Antigüidade.
Tímidos raios de sol se insinuavam entre as nuvens da tarde cinzenta e chuvosa,
iluminando tenuemente o pátio do castelo que se erguia, soberano, com suas torres que
pareciam resvalar o céu. Logo a noite cairia, envolvendo tudo em seu manto escuro.
De súbito um trovão soou, tão forte, que até o solo pareceu estremecer. Patience
pensou que aquele som bem poderia vir das profundezas. Talvez Plutão, o antigo deus dos
infernos, estivesse querendo mostrar seu poder, naquele cenário sombrio...
Raios riscaram o céu. A chuva tornou-se ainda mais forte.
Esculturas de seres bestiais espalhavam-se pelo pátio. Patience teve a nítida impressão
de que aqueles seres a observavam, enquanto ela caminhava.
Patience conhecia bem aquelas imagens. Eram entidades antigas que, segundo a
tradição, protegiam o local e seus moradores contra os espíritos maus.
Havia também outras estátuas, perto da entrada do castelo, ali colocadas certamente
com o mesmo fim: cavaleiros lutando contra dragões, guerreiros trajando armaduras, com as
armas em punho, em posição de ataque.
Patience percorreu os olhos por todos aqueles seres de pedra. Teria tempo de observá-
los com mais calma, depois. No momento, precisava concentrar-se no castelo e na figura
esguia do mordomo que acabava de abrir a porta.
Quem seria ele?, Patience se perguntou, dando asas à imaginação.
Um arcanjo, dando-lhe as boas-vindas e ao grupo que a acompanhava, convidando-os
a entrar no paraíso? Ou um demônio recepcionando-os à porta do inferno?
Fosse quem fosse, o homem convidou-os a entrar.
Com um misto de curiosidade e entusiasmo, Patience caminhou pelo amplo vestíbulo,
cujo piso de mármore era, por si só, uma obra-de-arte.
Ao chegar ao saguão, separado do vestíbulo por uma porta estreita de madeira nobre,
ela mal pôde conter uma exclamação. No teto, muito alto, afrescos retratavam uma terrível
batalha entre antigos deuses gregos e titãs. Cronus, o deus do tempo, ocupava o centro da
pintura. Além dos deuses e titãs, havia várias outras figuras: gigantes, ciclopes e guerreiros
formavam um círculo em torno do afresco. Era como se vigiassem a batalha ali travada, mas
também observassem os viajantes que acabavam de entrar na fortaleza.
Patience era fascinada pela arte e pelos mitos. Esse era o grande prazer que
desfrutava, em seu trabalho: admirar os mitos, o talento dos artistas que retratavam os
deuses e costumes de sua época. Haveria experiência sensorial mais rica do que essa
sensação?
Por isso, ela resolveu deixar para mais tarde o trabalho prático, que exigia uma
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observação atenta, sob o ponto de vista puramente racional e científico.
— Com licença, srta. Harrington...
A voz da sra. Tecking, a pessoa mais mal-humorada do grupo, soou num tom
impaciente.
Só então Patience percebeu que estava bloqueando a passagem de seus
companheiros de trabalho. Murmurando um pedido de desculpas, afastou-se para o lado e
continuou a observar o local.
A sra. Tecking lançou-lhe um olhar de censura, enquanto passava por ela,
acompanhada pelo marido e pelos outros integrantes do grupo. Mas Patience, atenta ao
mundo novo que se descortinava diante de seus olhos, nem se deu conta disso.
Uma escadaria de mogno conduzia ao andar superior do castelo. A intervalos, sobre os
pilares que a sustentavam, havia imagens de guerreiros, cada qual com uma expressão mais
assustadora do que a outra. Era como se alertassem os invasores sobre as terríveis
conseqüências que sofreriam, caso ousassem galgar aqueles degraus.
Tapeçarias coloridas, estátuas de ar feroz, mesas e estantes de variados tipos e
tamanhos, pinturas de valor incalculável, emolduradas em madeira com detalhes em ouro,
decoravam o ambiente. Por toda parte havia castiçais, já acesos, lançando uma
luminosidade que poderia parecer assustadora ou suave, dependendo do ângulo em que
fossem observados. Era nisso que Patience pensava, impressionada com aquela sensação:
pois o clima, naquele castelo, tanto poderia ser intimidador como convidativo.
Ela jamais se sentira assim, em qualquer outro ambiente, antes. E já estivera em vários
castelos antigos.
— Sejam bem-vindos ao Castelo Blackfield — disse o homem que os recepcionou. —
Meu nome é Kenfield, sou mordomo do senhor desta fortaleza, que pertence ao visconde de
Blackfield e à sua tia, lady Caroline.
Todos agradeceram, num tom solene.
— Que clima terrível, sr. Kenfield! — comentou John Fenton, primo de Patience,
enquanto lhe entregava seu sobretudo e o chapéu.
— É verdade — o mordomo concordou, num tom solícito. O sr. e a sra. Tecking
também tiraram seus agasalhos e os entregaram a ele.
Só então Patience se deu conta de que deveria fazer o mesmo. Com gestos rápidos,
sem desviar os olhos de uma tapeçaria que agora lhe chamava a atenção, livrou-se do
casaco e passou-o ao sr. Kenfield, que o recebeu com uma respeitosa reverência:
— Obrigado, senhorita.
— Ora, sou eu que agradeço, senhor — ela respondeu, amavelmente.
A sra. Tecking lançou-lhe um outro olhar de reprovação, como se quisesse lembrá-la de
que não era de bom-tom agradecer aos serviçais por algo que, afinal, fazia parte de suas
obrigações. Mas Patience não se deu conta dessa silenciosa reprimenda.
— Que trabalho maravilhoso, primo John! — comentou, apontando a tapeçaria. —
Aliás, todas essas obras são de tirar o fôlego!
John era um rapaz alto, magro, de cabelos cor de areia e olhos castanhos e
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perspicazes.
— É simplesmente fascinante estar aqui, prima — ele concordou, com franca
admiração.
— De fato... — disse o sr. Frederic Tecking, com suas maneiras formais e aquele ar de
alheamento que tanto o caracterizava. No momento seguinte, seus olhos recaíram sobre
uma estátua de Minerva, esculpida em mármore branco. — Vejam que perfeição de linhas...
Patience assentiu, com um sorriso. Sabia que o sr. Tecking era um grande admirador
da arte romana. Aliás, mais que um admirador, ele parecia obcecado por tudo o que dizia
respeito à Roma Antiga.
— E olhem só para aquilo... — Com um gesto de cabeça, o sr. Tecking apontou para o
imenso lustre de cristal que pendia de um canto do teto. — É realmente singular.
Encantada com os afrescos, esculturas e demais objetos de arte, Patience ainda não
tinha reparado naquele lustre, de onde provinha a maior parte da iluminação da sala.
Mas antes que ela fizesse qualquer comentário, o mordomo pediu:
— Por favor, queiram me acompanhar. — E conduziu todos por um corredor, até uma
ampla sala. Abriu as portas de par em par e disse: — Fiquem à vontade, como se estivessem
em sua própria casa. A lareira está acesa. Aqueçam-se e acomodem-se, enquanto aviso lady
Caroline sobre sua chegada. — O mordomo já ia se afastando, mas voltou-se para informar:
— Ah, já ia me esquecendo de informar que lady Caroline providenciou os serviços de um
criado para cada convidado.
Logo em seguida, quatro serviçais entraram na sala. Patience simpatizou de imediato
com sua camareira, que num tom tímido apresentou-se como Tilly, denunciando um forte
sotaque francês.
A um sinal do mordomo, os quatro pediram licença para verificar se tudo estava em
ordem, nos aposentos preparados para os convidados. Depois que eles se afastaram, o
mordomo pediu licença e saiu, em direção oposta.
Patience, John e o casal Tecking acomodaram-se na sala ricamente mobiliada e
decorada, tal como o saguão. John e o casal sentaram-se em confortáveis cadeiras estilo
rococó, em frente ao fogo. Mas Patience preferiu continuar se deslumbrando com os
detalhes dos móveis e das obras-de-arte que havia por ali.
— Por favor, sente-se — a sra. Tecking pediu, momentos depois. — A senhorita está
me deixando nervosa, com toda essa agitação.
— Perdoe-me, senhora — disse Patience, sem a menor intenção de obedecer à ordem.
— É que estou me sentindo numa espécie de paraíso, em meio a tantas peças e obras de
valor inestimável. — E tocou o friso de uma estatueta de bronze, como se estivesse diante
de um objeto sagrado. — Veja só que riqueza de detalhes...
— Compreendo seu entusiasmo, srta. Harrington — a sra. Tecking retrucou. — Mas
lembre-se de que terá três semanas para estudar e catalogar todo esse patrimônio. Portanto,
poderá se deliciar à vontade com os móveis, as peças, os objetos de arte, as tapeçarias, os
quadros, tudo! Porém, devo lembrá-la de que teremos apenas uma chance de causar boa
impressão a lady Caroline e seu sobrinho, o visconde de Blackfíeld. E esta chance é agora...
Entende o que quero dizer? — Sem esperar pela resposta, ela voltou-se para o marido,

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pedindo seu apoio: — Você não concorda comigo, Frederic?
— Ora, querida... — Ele tomou-lhe a mão, num gesto carinhoso, mas não lhe deu
razão. — Deixe a srta. Harrington portar-se como quiser. — E ante a expressão chocada da
esposa, acrescentou: — A viagem até aqui foi exaustiva, não? Estamos todos um pouco
tensos e ansiosos para descansar. Mas parece que a srta. Harrington ainda tem disposição
suficiente para continuar admirando essas maravilhas. — E piscou um olho para Patience,
que sorriu, agradecida.
A sra. Tecking franziu o cenho, demonstrando seu desagrado. Logo em seguida,
continuou argumentando a respeito das boas maneiras que toda jovem deveria ter,
sobretudo em casa de estranhos.
Patience bem que gostaria de continuar admirando a beleza daquele aposento, mas
acabou cedendo à insistência da sra. Tecking. Puxando uma cadeira, acomodou-se ao lado
de John, que também parecia cansado, com as longas pernas estiradas em direção ao fogo.
Mesmo assim, acolheu-a com um sorriso.
—Você tem uma energia inesgotável, prima — disse, num tom cordial. — Mas também
está precisando de descanso.
Patience suspirou profundamente, compreendendo que, de algum modo, John
concordava com a sra. Tecking.
Bem, Patience não queria causar problemas, nem má impressão aos anfitriões. Mas o
fato era que os problemas a acompanhavam, aonde quer que ela fosse, com a tenacidade de
cães raivosos.
Kenfield voltou, pouco depois, empurrando um carrinho com um serviço de chá, bolos e
pães. A sra. Tecking ofereceu-se para servir.
Boquiaberta, Patience contemplou a porcelana finíssima, decorada com delicados
desenhos. Voltou-se para o mordomo, para agradecer, mas naquele exato momento um
novo estrondo soou no interior da sala, e Patience teve a nítida impressão de que as paredes
estremeciam. Todos se sobressaltaram, inclusive ela. A sra. Tecking, que estava servindo a
primeira xícara de chá, quase deixou o bule cair no chão.
Um criado entrou na sala, com expressão tensa. Aproximando-se do mordomo, disse-
lhe algo ao ouvido e saiu, a passos largos.
Atenta à cena, Patience notou que a face do mordomo permaneceu impassível, mas
seus ombros haviam se encolhido ligeiramente, num claro sinal de nervosismo.
— O que foi isso? — perguntou o sr. Tecking — Outro trovão?
Mas o mordomo já se afastava, enquanto dizia:
— Com licença... Lady Caroline estará aqui em poucos minutos.
Lá fora, a chuva continuava a cair. A sra. Tecking serviu o chá e, por alguns momentos,
todos saborearam a bebida fumegante em silêncio, os olhos fixos no fogo que crepitava na
lareira.
Mais de vinte minutos se passaram... E lady Caroline não aparecia.
Patience começava a relaxar... E isso significava, entre outras coisas, uma atenção
maior às suas urgências mais básicas. Pouco antes de chegar ao castelo, havia sentido uma
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forte necessidade de ir ao toalete. Como sabia que isso era impossível, tentara se distrair e
pensar em outra coisa. Com esse recurso, conseguira superar a vontade, por algum tempo.
Mas agora, depois do chá, e com o barulho da chuva torrencial que caía lá fora, estava
ficando cada vez mais difícil ignorar o que seu corpo pedia.
No entanto, era preciso. E Patience tentou se concentrar em alguma coisa, qualquer
coisa. Reparou que o lustre que pendia do teto daquela sala era um pouco menor que o do
saguão, embora obedecesse ao mesmo estilo. Reparou também que os jarros dispostos
numa estante, na parede oposta à da lareira, eram de puro cristal.
Mordendo o lábio inferior, Patience cruzou as pernas. Endireitando-se na cadeira,
descruzou-as.
— Este castelo deve datar do século XIV — comentou o sr. Tecking. — Dá para se
notar isso, claramente, pela técnica de alvenaria utilizada na construção.
— Sem dúvida — John concordou. — Mas as tapeçarias do saguão datam, com
certeza, do século anterior.
Patience pensou em participar da conversa, mas sentia-se desconfortável demais para
fazê-lo. Por fim, ela se ergueu e avisou:
— Por favor, se lady Caroline chegar antes que eu retorne, transmitam-lhe minhas
desculpas.
John sorriu para ela, enquanto fazia um gesto de assentimento. Mas a sra. Tecking
meneou a cabeça, reprovando uma vez mais seu comportamento:
— Seja lá o que for que pretenda fazer, tenho certeza de que a senhorita poderá
esperar alguns minutos, até que nossa anfitriã venha nos receber.
Patience respondeu com um sorriso provocador:
— Desculpe, sra. Tecking, mas realmente não será possível. No entanto, prometo que
voltarei o mais rápido que puder.
— Mas...
A sra. Tecking ainda quis insistir, mas Patience já se afastava, antes que alguém a
lembrasse do que acontecera na última vez em que ela entrara, desacompanhada, numa
casa estranha. Fora em parte por essa razão que seu pai, Arthur Harrington, a enviara
àquele castelo, como sua representante: para que os mexericos que fervilhavam em
Londres, a seu respeito, arrefecessem com sua ausência.
Além do mais, Patience era uma especialista em antigüidades, e Arthur sabia que ela
faria um ótimo trabalho, naquela expedição.
Patience lembrava-se, com nitidez, da expressão de alívio do pai, ao vê-la partir. Afinal,
ele tivera dois motivos muito fortes para sentir-se assim. O primeiro era saber que Patience e
os outros membros do grupo fariam um bom trabalho na avaliação e catalogação da
generosa doação de lady Caroline para o Museu Britânico. O segundo, e mais importante,
era saber que sua amada filha estaria a salvo dos rumores maldosos que circulavam nas
altas-rodas sociais de Londres.
Com um leve meneio de cabeça, Patience afastou essas lembranças. Tinha sonhado
com aquela viagem durante semanas, e não queria que pensamentos desagradáveis, sobre
as fofocas londrinas, por exemplo, a atormentassem. Não fora para isso que viera até ali.
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Aliás, naquele exato momento, ela só tinha um interesse fundamental: encontrar um criado
que lhe indicasse o caminho para o toalete.
Andando ao acaso, Patience percorria corredores, atravessava salas e ante-salas, sem
nenhum sucesso. De súbito, o castelo parecia estranhamente vazio. Para onde teriam ido os
criados que o mordomo apresentara, pouco antes?
Alguns estariam, sem dúvida, no andar superior, cuidando dos últimos preparativos
para receber os hóspedes. Patience pensou em subir até lá, mas desistiu. Era óbvio que
devia haver algum toalete, no andar térreo. Só precisava que alguém lhe dissesse onde. E,
assim, continuou caminhando. Ao se encontrar numa ampla sala, de onde partiam vários
corredores, ela chamou, em voz alta:
— Alô? Há alguém por aqui? Preciso de uma informação...
Mas a única resposta que obteve foi o som da chuva, batendo com força nas altas
vidraças das janelas.
Patience suspirou, desalentada. Precisava pensar em outra coisa. O barulho da chuva
só fazia piorar o estado em que se encontrava.
Escolhendo um dos corredores, Patience seguiu por ali. E apesar do desconforto, não
pôde deixar de admirar as tapeçarias medievais que decoravam as paredes.
Preciso voltar aqui, com John, ela decidiu, mentalmente, lembrando-se de que o primo
era um grande admirador daquelas peças.
O corredor ia se tornando sombrio, à medida que ela avançava. Patience preferiu voltar.
Pegando uma luminária que pendia da parede, retornou à sala e seguiu por outro corredor.
Àquela altura, já havia desistido de encontrar um criado que a orientasse. O melhor a
fazer seria procurar um toalete, por sua conta. E foi assim que ela começou a abrir cada
porta que encontrava, ao longo do corredor.
Só esperava não cometer uma indiscrição ou, o que era ainda pior, um escândalo,
como o que provocara em Speckling Rout, numa situação semelhante.
Na ocasião, caminhando por um corredor, ouvira gemidos e gritos abafados. Pensando
que alguém estivesse em apuros, precisando desesperadamente de ajuda, ela abrira a
porta... Somente para descobrir lorde Seagram e lady Hillshine em total intimidade. Ambos
eram casados... com outras pessoas. Tão ou mais constrangida do que os dois, Patience
jurara, por sua honra, que não diria uma palavra sobre o fato.
Mas isso de nada adiantara. Lady Hillshine não confiara em sua promessa. E, assim,
levantara várias calúnias, inclusive acusando Patience de ser mentirosa, esquizofrênica, de
viver vendo coisas que não existiam. Fizera isso para se precaver, achando que se Patience
contasse o que tinha visto, ninguém acreditaria. Mas o tiro saíra pela culatra. O efeito
causado pela maledicência de lady Hillshine fora exatamente contrário. Afinal, as pessoas
conheciam a inabilidade social de Patience, mas sabiam, também, de sua sinceridade. No
final das contas, lady Hillshine ficara desmoralizada. O escândalo de seu caso amoroso com
lorde Seagram viera à tona, não por meio de Patience, mas de um criado que os encontrara
em plenas vias de fato. No entanto, mesmo sabendo que Patience nada tivera a ver com o
escândalo, lady Hillshine a odiava.
Por que pensar nisso, agora?, Patience perguntou-se, tornando a afastar as lembranças

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incômodas.
Abrindo a terceira porta que encontrou, sentiu-se invadida por uma onda de alívio:
acabava de achar o que tanto procurava. Mas, ao mesmo tempo, estava espantada. Havia
vários dispositivos, naquele cômodo, que ela jamais vira antes. Na verdade, nem sabia para
que serviam.
Surpreendeu-se ao ver um pequeno cordão que pendia do teto, logo acima da bacia
sanitária. Puxou-o e quase deu um pulo para trás quando um forte jato de água jorrou das
bordas internas da bacia, deixando-a totalmente limpa.
— Engenhoso — ela murmurou, ainda não refeita do espanto. — Muito engenhoso
mesmo!
E continuou a verificar os vários outros dispositivos que havia por ali.
Pouco depois, voltava a caminhar pelo corredor, tomada por uma sensação de bem-
estar. Talvez por sentir-se mais tranqüila, pôde ouvir o ruído do vento, que parecia soprar
ainda mais forte, enquanto raios riscavam o céu. Os trovões ribombavam numa seqüência
assustadora.
Patience voltou à sala onde estivera pouco antes. Então reparou numa enorme
armadura, a um canto.
Lá fora, os trovões continuavam a rugir, mas, de súbito, ela ouviu um som diferente, que
a fez estremecer. Em sua mente fértil, imaginou fantasmas e outros espíritos errantes, à
espreita, nos corredores, prontos para assombrar os hóspedes desavisados.
O som se repetiu... uma, duas, três vezes. E Patience caminhou em sua direção.
Acabou chegando a uma sala menor, fracamente iluminada por uma arandela junto à porta.
Tornou a ouvir o som, dessa vez com uma nitidez assustadora, e logo entendeu o que
estava acontecendo: a força da ventania havia aberto uma janela, que agora batia,
seguidamente, contra a parede.
Aproximando-se, Patience viu o clarão dos raios, lá fora. De súbito, estacou,
aterrorizada...
Alguém acabava de saltar, pela janela, para dentro da sala. Tratava-se de um vulto alto,
esbelto, usando uma capa que lembrava uma figura típica dos contos de terror.
— Um vampiro! — ela exclamou, num tom abafado, levando a mão à boca.
Calmamente, o invasor fechou a janela. Então voltou-se e, surpreso, notou a presença
de Patience.
— Para trás! — ela ordenou, pegando duas estatuetas que estavam sobre um consolo
e com elas improvisando uma cruz. — Não ouse se aproximar de mim!
Ele franziu o cenho, com ar intrigado:
— Quem é você? — perguntou.
— Isso não interessa — ela respondeu, ostentando uma coragem que estava longe de
possuir. E ordenou, no tom mais autoritário que conseguiu: — Vá embora, criatura das
trevas! Dentro de apenas um instante o senhor deste castelo e seus servos estarão aqui. É
melhor você fugir enquanto pode!

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Ele passou a mão pelos cabelos negros, um tanto longos, e tão encharcados quanto as
roupas que usava. Com gestos enérgicos, moveu a cabeça de um lado para o outro,
espalhando respingos.
Respingos de sangue!, Patience concluiu, aterrorizada. Os cabelos dele estão cheios
de sangue... provavelmente de donzelas inocentes!
Um clarão iluminou a sala. E então Patience constatou, aliviada, que não se tratava de
sangue e sim de água... Água da chuva, com toda a certeza.
Menos mau, ela pensou, sem baixar a guarda.
— Isso parece divertido — ele comentou, abrindo um sorriso. — Quer dizer então que o
senhor deste castelo está vindo para cá?
— Exatamente — Patience respondeu, observando-o com atenção, esperando ver os
caninos proeminentes, típicos dos vampiros. Mas tudo o que conseguiu perceber foram
dentes perfeitos, muito brancos e regulares.
— Bem, senhorita, vá chamar o visconde de Blackfield... — Havia um toque de ironia,
na voz daquele homem. — Ficarei aqui, aguardando a presença do nobre senhor.
Arregalando os olhos, numa expressão atônita, Patience indagou:
— Então você o conhece?
— Mais ou menos — ele respondeu, com uma expressão um tanto marota.
Refeita do susto inicial, Patience começou a duvidar de seu julgamento...
Decididamente, aquele homem não estava agindo como um vampiro.
— Por que tanta demora? — ele insistiu. — Vá chamar o proprietário deste castelo,
senhorita!
Agora, sim, Patience tinha certeza de que não se tratava de um vampiro. A menos que
aquele homem fosse...
— Um ladrão! — ela exclamou. — Você veio aqui para roubar as antigüidades
preciosas que o visconde de Blackfield herdou de seu tio, sir George Blackfield!
Ele fitou-a com um ar entre surpreso e zombeteiro. Por fim, meneou a cabeça e disse:
— Vamos parar com essa comédia, sim? Por favor, sente-se e procure relaxar. —
Caminhando até um pequeno móvel, colocado a um canto, abriu-o e retirou uma garrafa. —
Está muito frio e úmido, aqui. Um pouco de vinho do Porto será ideal para nos aquecer.
Confusa, Patience o viu encher dois pequenos cálices.
— Não quero beber nada, obrigada. Já sei que o senhor não é um vampiro...
— Vampiro! — ele repetiu, divertido. — Decididamente, sua imaginação é muito fértil.
Ignorando o aparte, ela continuou:
— ...mas continuo desconhecendo sua verdadeira identidade. — Em tom de desafio,
acrescentou: — Talvez o senhor esteja aqui para cometer um roubo. Quem sabe?
O homem sorriu. E, pela primeira vez, fitou-a com intensidade.
Patience quis desviar o rosto, mas não conseguiu. Havia qualquer coisa, naqueles
olhos, que a deixava intrigada... Era como se eles pudessem hipnotizá-la.
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Aliás, os olhos não eram a única característica marcante daquele homem de traços
finos, porte elegante e inegável carisma. Contudo, ainda havia a possibilidade de ele ser um
ladrão. E Patience lembrou-se de que certa vez lera um livro sobre um vigarista que fazia
muito sucesso com as mulheres...
— A senhorita é convidada de lady Caroline? — A pergunta daquele homem misterioso
interrompeu-lhe os pensa mentos.
— Sim — ela respondeu.
— Ora, ora... E a primeira vez que lady Caroline traz uma bela mulher a este castelo —
ele comentou, como que para si.
— Como disse? — Patience indagou. — Acho que não entendi direito.
— Ora, não foi nada de importante. Mas, diga-me, o que faz por aqui?
— Eu estava procurando um toalete.
— Sozinha? — ele apartou. — Por que não pediu auxílio a uma criada?
— Bem que eu pensei nisso, mas os criados desapareceram. Acho que estão no andar
de cima, preparando os aposentos. Então, resolvi procurar por conta própria.
— E conseguiu achar?
— Sim.
— E por que veio a esta sala?
— Bem, eu pretendia voltar ao local onde estão meus companheiros de viagem.
De súbito, o homem fitou-a com desconfiança:
— Como posso saber que está dizendo a verdade? Quem me garante que a senhorita
não estava procurando por alguém...
Patience riu, nervosa.
— Ora, por favor! Como eu poderia estar à procura de alguém, se não conheço
ninguém neste castelo?
Ele sorveu um gole de vinho, antes de retrucar:
— Nunca se sabe... A senhorita poderia estar, também, atrás de alguns objetos
valiosos...
— Como ousa? — Patience reagiu, indignada. — Como ousa desconfiar de mim?
— Acho que eu poderia lhe perguntar o mesmo — ele retrucou, impassível.
Patience ia dizer algo mais, quando o mordomo surgiu à porta:
— Visconde? — disse, num tom respeitoso. — Perdoe-me por importuná-lo. —
Lançando um olhar na direção dela, acrescentou: — Vejo que o senhor já conheceu a srta.
Patience Harrington, que veio com a equipe do museu para avaliar e catalogar as
antigüidades.
— Visconde? — Patience repetiu, atônita. — O senhor é... Thomas Ashe, o visconde de
Blackfield?
— Ao seu inteiro dispor, srta. Harrington — ele respondeu, contendo um sorriso.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Perdoe-me pela intromissão, senhor — disse o mordomo. — Mas lady Caroline está
à sua espera, para recepcionar os convidados.
— Obrigado, Kenfield. Irei até lá num instante. — Ele tirou a capa e entregou-a ao
mordomo. — Mas, antes, preciso me trocar, pois estou encharcado. E não ficará bem me
apresentar assim.
— Certamente, visconde — Kenfield concordou, num tom respeitoso.
Voltando-se para Patience, que continuava perplexa, Thomas sugeriu:
— Se a senhorita quiser seguir na frente... nos encontraremos em poucos minutos.
Afinal, seus amigos devem estar preocupados com sua ausência.
— Sim, eu farei isso — Patience balbuciou. Afastou-se alguns passos, mas voltou-se
para indagar: — Quer dizer que... esta sala... pertence a seus aposentos, visconde?
— Exato — ele confirmou, num tom gentil. Mas seu olhar ainda mantinha uma
expressão zombeteira.
— Oh... — Patience murmurou, desejando que o chão se abrisse, para que ela pudesse
se esconder, tamanha era a vergonha que a dominava. — Acho que cometi um terrível mal-
entendido.
— Isso acontece. — Foi o comentário lacônico de Thomas, antes de acrescentar: — Ah,
já ia me esquecendo...
— Sim? — ela indagou, num fio de voz.
— Seja bem-vinda a este castelo, srta. Harrington. Espero que sua estada seja bastante
agradável.
Murmurando um agradecimento, Patience deixou a sala, a passos largos.
Thomas Ashe, o décimo homem da família a receber o título de visconde de Blackfield,
por direito de sucessão, observou a jovem e bela mulher desaparecer pelo corredor. Estava
confuso, não exatamente com relação ao comportamento incomum da srta. Harrington, mas
sim com a forte impressão que ela havia lhe causado. Era a primeira vez que isso lhe
acontecia, em muito tempo.
— Quer dizer então que aquela moça faz parte do grupo que veio de Londres, para
examinar as peças? — ele comentou, como se pensasse em voz alta.
— Sim, senhor — Kenfield confirmou.
— Quantas pessoas há no grupo?
— Quatro, senhor: o casal Tecking, o sr. John e a srta. Harrington.
— Estou surpreso. Fazia tempo que lady Caroline não trazia pessoas interessantes a
este castelo.
O mordomo fez um gesto de assentimento, mas nada disse.
— Bem, está na hora de recepcionar os convidados. — A voz de Thomas tinha um tom
de cautela.
Era bem possível que a srta. Harrington fosse apenas uma especialista em
antigüidades, que viera com o único objetivo de avaliar as peças a serem doadas ao Museu

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Britânico, ele pensou. Mas sempre havia a possibilidade de ela estar ali disfarçada, com um
objetivo bem diferente.
Era isso o que ele pretendia descobrir.
Pouco depois, Thomas deixava seus aposentos, trajado com elegância, tal como a
ocasião exigia.
Patience ainda estava atordoada, ao chegar à sala onde os outros integrantes de seu
grupo a aguardavam, na companhia de lady Caroline, a viúva de George Ashe.
Patience observou-a com atenção.
Tratava-se de uma mulher de cerca de sessenta anos, do tipo mignon, muito elegante e
de porte altivo. Seus cabelos, já grisalhos, caíam-lhe ao lado do rosto de traços
aristocráticos, dando a impressão de um belo e antigo camafeu.
— Ah, a senhorita deve ser Patience Harrington, filha de Arthur Harrington — disse
Caroline, com um sorriso amável, tomando-lhe a mão.
Patience sorriu de volta, tomada por um sentimento de simpatia:
— É um prazer conhecê-la. Meu pai fala muito da senhora.
— George e seu pai se corresponderam durante muitos anos. Depois que George
faleceu, resolvi manter o contato. Escrevi para seu pai, que me respondeu prontamente.
Assim, passamos a nos corresponder com freqüência. A propósito, como ele está?
— Muito bem, obrigada. Papai lhe manda lembranças e pede desculpas por não ter
vindo. — Num tom gentil, Patience explicou o motivo: — Amanhã haverá uma reunião da
diretoria do museu com representantes do Parlamento. E papai não podia faltar.
— Eu compreendo.
— Mas ele pede, também, que em sua próxima ida a Londres a senhora lhe dê a honra
de jantar em sua companhia.
— Oh, será um prazer. — Após uma pausa, Caroline perguntou: — Bem, querida,
suponho que você esteja exausta da viagem.
— De fato — Patience concordou, com sua franqueza habitual. — Não estou
acostumada a fazer longos trajetos de carruagem.
— Este é um dos problemas de se morar longe de Londres — Caroline comentou. —
Acabamos por obrigar nossos hóspedes a esse desconforto, não é mesmo?
— Nem tanto — a sra. Tecking interveio. Lançando a Patience um olhar severo,
acrescentou: — Para nós, pessoas acostumadas ao trabalho de pesquisa sobre
antigüidades, as viagens fazem parte da rotina.
— Mas nem por isso deixam de ser cansativas — John opinou, com a clara intenção de
tomar o partido de Patience.
— Espero poder compensá-los pelo esforço, oferecendo-lhes um mínimo de conforto,
nessa estada — disse Caroline.
— Por favor, não fale assim, senhora! — Patience exclamou. — Para estar aqui, em
sua companhia e em contato com tantas obras de valor inestimável, eu viajaria até o fim do
mundo, se fosse preciso.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Faço minhas as palavras da srta. Harrington — disse Frederic Tecking, para total
desagrado da esposa, que o fitou com severidade. Mesmo assim, ele prosseguiu: — Em
nome de meu amigo Arthur Harrington e de todo o grupo, quero agradecer sua hospitalidade
e sua generosidade.
— Ora, não há nada a agradecer — Caroline respondeu, com modéstia. — A propósito,
devo esclarecer um detalhe: as obras que serão doadas ao museu não pertencem a mim,
mas a meu sobrinho, Thomas Ashe. É verdade que a sugestão de doá-las foi minha, mas a
decisão foi tomada por ele. — Após uma pausa, ela concluiu: — Enfim, sinto que George,
onde quer que esteja, aprova o que estamos fazendo.
— Sem dúvida alguma — Patience concordou, comovida com as palavras da nobre
senhora. — Tenho certeza de que ele ficaria feliz em saber que suas obras, colecionadas ao
longo de toda a vida, estarão num local seguro, devidamente protegidas.
— E expostas ao público — John completou. — Assim, muita gente poderá admirá-las.
— Tem razão, meu jovem — Caroline concordou, retirando da manga um pequenino
lenço, para enxugar uma lágrima furtiva. Em seguida, disse: — Bem, vou deixá-los
descansar, agora. A partir de amanhã poderemos traçar um cronograma de trabalho.
— Se a senhora me permite um aparte, nós já temos um cronograma — disse Patience.
— É mesmo? — indagou Caroline, surpresa.
— Sim. Estivemos trabalhando nele, nos últimos dias. — E Patience explicou: — Cada
um de nós desempenhará uma função. Assim, o trabalho será mais dinâmico.
— Compreendo. Quem dirige o grupo?
— Eu mesma, senhora. — E ante a expressão surpresa de Caroline, ela esclareceu: —
Sei que pareço jovem demais...
— De fato, mas eu nunca duvidaria da sua competência, senhorita. Aliás, o sr. Arthur
Harrington costuma mencionar, nas cartas, sua paixão pelas antigüidades.
— De fato, minha prima ama o seu trabalho — John afirmou. — Isso, somado à sua
incrível inteligência e brilhantismo, faz de Patience uma das maiores especialistas no
assunto.
— Obrigada, querido — disse Patience, sorrindo para o primo. Em seguida voltou-se
para Caroline: — Todos nós lemos uma especialidade. O sr. Tecking é uma grande
autoridade, quando se trata de arte romana. Já o meu primo John é expert em armamentos
da época medieval. Seus conhecimentos abrangem as técnicas desenvolvidas na Ásia e
Europa. Quanto à sra. Tecking, além de ter um conhecimento geral sobre antigüidades, é
dona também de uma grande capacidade de organização. Ela responde pelo trabalho de
secretariado, em nosso grupo.
— Bem, vejo que o grupo está muito bem estruturado — Caroline comentou.
Todos sorriram, mas o sorriso da sra. Tecking era um tanto forçado. E Patience sabia
por quê. Afinal, a sra. Tecking praticamente se oferecera para assumir a direção do trabalho.
Com gentileza e habilidade, Arthur Harrington e John haviam rejeitado o oferecimento. Até
mesmo o sr. Tecking fora contrário à idéia.
Por isso a sra. Tecking guardava certos ressentimentos contra ela, Patience pensou,
com tristeza. Enfim, só esperava que esse fato não atrapalhasse o andamento do trabalho.
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— E qual é a sua especialidade, srta. Harrington? — A pergunta de Caroline
interrompeu-lhe os pensamentos.
— Por favor, me chame apenas de Patience — ela pediu, antes de responder: — Tenho
uma certa familiaridade com todas as áreas relativas às peças deixadas por seu marido. Mas
minha preferência fica por conta da arte na Grécia Antiga, Egito e ocultismo.
Encantada, Caroline bateu palmas:
— Excelente! E já que estamos deixando de lado as formalidades, por favor, me chame
apenas de Caroline.
A simpatia da anfitriã por Patience era mais do que evidente. John e o sr. Tecking não
se importavam com isso. Ao contrário: estavam acostumados ao brilhantismo de Patience.
Mas a sra. Tecking não parecia nada satisfeita.
— Diga-me, querida... — Caroline perguntou a Patience. — Já conheceu meu sobrinho,
Thomas Ashe, o visconde de Blackfield?
— Tive um breve encontro com ele, agora há pouco — Patience respondeu, um tanto
embaraçada. Não queria se lembrar dos momentos constrangedores pelos quais havia
passado. E muito menos compartilhá-los com lady Caroline ou com o resto do grupo.
— Meu sobrinho, apesar de herdeiro desse valioso patrimônio, não é um grande
admirador das obras-de-arte. Ele se preocupa mais com questões políticas, sabe?
— Já está contando meus segredos aos nossos convidados, tia Caroline?
Todos se voltaram em direção à porta, por onde Thomas Ashe acabava de passar,
vestido com elegância, usando roupas de tom cinza, com um casaco verde-escuro por cima.
Seus cabelos negros e lisos estavam úmidos. Seu rosto, de traços finos, onde os olhos azuis
brilhavam como safiras, era simplesmente impressionante. Sua alta estatura parecia
reforçada pelo porte altivo.
Uma sensação de constrangimento invadiu Patience, enquanto ela o fitava.
Decididamente, aquele era o homem mais belo que já vira, nos últimos tempos... Talvez em
todos os tempos!
— Thomas... — disse Caroline. — Deixe-me apresentá-lo ao sr. John Fenton, ao sr. e
sra. Tecking...
— E à srta. Patience Harrington... a quem já tive o prazer de conhecer — ele
completou, tomando a mão de Patience e levando-a aos lábios, num gesto galante. Só
depois cumprimentou, um a um, os outros convidados. Por fim, disse: — Sejam bem-vindos
a este castelo. Espero que desfrutem ao máximo sua estada conosco.
Todos agradeceram, inclusive Patience. Mas havia um toque de frieza, talvez de ironia,
nas palavras gentis daquele homem. Por quê?, ela se perguntou. Porém, não teve tempo de
cogitar sobre isso.
Do relógio de ouro maciço, sobre a lareira, veio um som semelhante a um carrilhão.
Caroline levou a mão à testa, Enquanto dizia:
— Oh, como sou distraída! Onde estão minhas boas maneiras?
— Por que diz isso, senhora? — John indagou, num tom amável.
— Ora, porque estou retendo meus convidados aqui, quando deveria deixá-los
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
descansar, depois da longa viagem que fizeram.
— Imagine, senhora — disse o sr. Tecking. — Estamos lendo um imenso prazer em
desfrutar de sua companhia... E também da do visconde.
— O senhor é muito gentil — Thomas comentou. — Mas Caroline tem razão. Devemos
deixá-los descansar.
Como num espetáculo previamente ensaiado, Kenfield entrou na sala naquele exato
momento e convidou todos a acompanhá-lo ao piso superior do castelo, onde os respectivos
criados de quarto os aguardavam.
Depois de desejar boa-noite a seus anfitriões e aos colegas, Patience seguiu Tilly, sua
camareira, em direção aos aposentos que lhe haviam sido reservados.
— Por aqui, srta. Harrington... — disse a jovem criada, conduzindo-a por um vasto
corredor, em direção à ala oeste do castelo. Num tom carinhoso, acrescentou: — Venha, ma
petite.
A medida que ambas avançavam, a luminosidade se tornava mais fraca, pois o espaço
entre as arandelas que pendiam das paredes era cada vez maior.
As estátuas e quadros dispostos no corredor pareciam ganhar vida, no momento em
que eram iluminadas pelo facho da tocha que Tilly carregava.
A certa altura, o corredor descrevia uma curva. Ao dobrá-la, Patience quase chocou-se
com uma velha armadura medieval. No instante seguinte, o braço da armadura deslocou-se
para a frente e caiu no chão.
Patience recuou em direção à parede oposta, levando a mão à boca, para sufocar um
grito. Enquanto isso, o braço de metal rolou até seus pés.
Tudo aconteceu muito rápido. E, de súbito, a luminosidade tornou-se ainda mais fraca.
— Tilly! — ela chamou, com voz trêmula.
— Sim, srta. Harrington? — a criada respondeu, apavorada, escondida atrás de uma
estátua grega, a poucos metros de distância.
— Que susto! — sussurrou Patience, com um profundo suspiro. — Por um momento,
tive a impressão de que...
— Eu também, senhorita — a criada afirmou, sem deixá-la terminar a frase.
— Acho que estou com a imaginação acirrada, esta noite. — Patience forçou um
sorriso.
— Oh, não se trata de imaginação, ma petite! — Tilly tremia da cabeça aos pés.
Patience fitou-a com estranheza. Seria impressão sua, ou aquela jovem camareira
estava realmente apavorada?
— Ilumine aqui, para mim, por favor — Patience pediu, aproximando-se da armadura.
— Vou colocar a peça de volta no lugar.
— Não, senhorita! — Tilly pediu, num tom abafado. — Eu mesma cuidarei disso, —
amanhã cedo. Ante a expressão interrogativa de Patience, acrescentou: — As coisas são
sempre menos assustadoras, à luz do dia. E, agora, se a senhorita tiver a bondade de me
acompanhar até seus aposentos...
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Patience não retrucou. Apenas fez um gesto de assentimento e seguiu a criada. Pouco
depois, perguntou:
— Há quanto tempo você trabalha aqui no castelo, Tilly?
— Há quase um mês, srta. Harrington.
— E sente-se bem, aqui?
— Preciso trabalhar, senhorita. — Foi a resposta lacônica da criada.
— Compreendo.
Os aposentos reservados a Patience eram luxuosos e um tanto sombrios, assim como
todo o castelo. A decoração variava entre tons de verde-escuro e dourado. Um grande tapete
oriental cobria o piso de madeira, que tinha ao centro uma cama com dossel. Um armário,
uma penteadeira, cadeiras, bancos e uma grande mesa completavam a mobília.
Tilly ajudou Patience a se trocar. Depois indagou:
— A senhorita deseja comer alguma coisa, antes de se recolher?
— Não, mas eu tomaria um pouco de leite.
— Vou providenciar. — Tilly saiu e retornou logo depois, trazendo uma bandeja com
uma xícara de leite, uma jarra de água e um copo.
— Obrigada, querida — Patience agradeceu, num tom amável. — Será que os outros
hóspedes tiveram a mesma sorte que eu?
— Como assim, ma petite!
— Estou me perguntando se os camareiros de meus colegas são tão prestativos como
você.
— Bem, os criados designados para servir o sr. John e o sr. Tecking são bem
eficientes. Quanto à criada da sra. Tecking... — Tilly hesitou, antes de concluir: — É tão fria e
enjoada quanto ela.
Patience riu, divertida:
— Você tem senso de humor, Tilly. Esta é uma qualidade que sei admirar, nas pessoas.
— Obrigada, srta. Harrington. E desculpe-me se lhe pareci atrevida.
— De modo algum. Você está sendo sincera. E esta é outra característica que admiro,
tanto ou mais que o senso de humor.
Pouco depois, Patience dispensava os serviços da criada e desejava-lhe boa-noite.
— Voltarei amanhã, para ajudá-la a fazer sua toalete e a se vestir para o desjejum —
avisou Tilly, antes de sair. — Durma bem, srta. Harrington.
— Obrigada. — E Patience despediu-se, em francês: — Bon soir, ma cherie.
— Ora! — a criada exclamou, alegremente surpresa. — A senhorita fala francês?!
— Sei apenas algumas expressões, que aprendi com minha mãe, que era francesa. —
Em seguida, Patience despediu-se em inglês: — Boa noite, querida.
— Boa noite, ma petite. — E a criada saiu.

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Patience tomou o leite, fez uma breve toalete e deitou-se na grande cama,
acomodando-se sob as cobertas macias.
Sua imaginação trabalhava rápido. Várias perguntas acorriam-lhe à mente: por que Tilly
havia se assustado tanto com aquela armadura, no corredor? Aliás, por que ela parecia tão
tensa? E quanto a Thomas Ashe, o visconde de Blackfield? Por que entrara em seus
próprios aposentos pela janela, em vez de usar a porta? E por que ela tivera a nítida
impressão de que por trás das palavras gentis do visconde havia um toque de sarcasmo? E
quanto a lady Caroline, que havia se mostrado tão amável e cordial... Seria uma pessoa
realmente sincera? Ou o excesso de amabilidade estaria ocultando outras intenções?
Decididamente, preciso parar de ler histórias de suspense, Patience pensou, com um
suspiro. Estou vendo mistério em tudo e em todos!
Mas uma coisa era pensar e outra era fazer. Patience simplesmente não conseguia
acalmar os pensamentos. Lá fora, a tempestade continuava a cair, num sinistro espetáculo
de raios e trovões, que ribombavam no vale, lá embaixo.
Afastando as cobertas, Patience levantou-se e foi até a janela. Abrindo a vidraça,
indiferente aos respingos de chuva trazidos pelo vento, ela contemplou a paisagem. Mas que
paisagem era aquela, formada somente pela chuva e escuridão, quebrada
momentaneamente pelos raios que riscavam o céu?, perguntou-se, enquanto um calafrio lhe
percorria a espinha.
Mesmo assim, permaneceu ali, debruçada no peitoril da janela por algum tempo, até
sentir que a mente começava a se aquietar.
Já ia fechar a vidraça, quando uma pequena luz, ao longe, chamou-lhe a atenção.
O que seria aquilo?, pensou, curiosa.
Logo notou que a luz se movimentava. Seria uma tocha? Ou um lampião, que alguém
estivesse carregando? Mas quem era louco o suficiente para andar sob aquela terrível
tempestade?
Patience fechou os olhos por um instante, enquanto se recriminava. Lá estava ela, outra
vez, deixando-se levar pela imaginação.
Ao abri-los, não mais enxergou a luz. Mas tremeu da cabeça aos pés, ao ouvir uma
nova seqüência de trovões, que parecia balançar toda a estrutura do castelo. Mas claro que
isso não era possível. Seria preciso um forte terremoto para abalar aquela fortaleza.
Com um profundo suspiro, Patience fechou a janela e voltou para a cama. A última
imagem que lhe veio à mente, antes de adormecer, foi a do visconde de Blackfield, fitando-a
com aqueles olhos que pareciam devassá-la por completo.
Tilly acordou-a bem cedo.
Patience pediu-lhe que abrisse a janela. Debruçou-se no peitoril e desfrutou um
momento de indescritível paz, enquanto observava a paisagem.
A tempestade havia passado. A Natureza parecia em festa.
Patience deixou que seus olhos passeassem pelos jardins de flores silvestres,
multicoloridas, pelo jardim das rosas, pelo lago e pelo bosque ao norte da propriedade. Ao
longe, uma construção baixa, longa e plana, de concreto, chamou-lhe a atenção, mas não
por suas linhas arquitetônicas e sim porque parecia destoar, naquele quadro de beleza
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
quase perfeita.
O que seria aquilo?, ela se perguntou. Mas não queria começar o dia fazendo
cogitações.
O sol iniciava sua trajetória, abrindo caminho no céu azul, envolvendo tudo com seus
raios dourados.
Um sorriso insinuou-se nos lábios de Patience, enquanto ela aspirava, com prazer, o ar
fresco da manhã, impregnado do perfume das flores. Esperava, sinceramente, que lady
Caroline houvesse planejado uma turnê pelos jardins, como parte das atividades daquele dia.
Depois de ajudá-la a se preparar, Tilly ofereceu-se para levá-la à sala de refeições.
Patience declinou:
— Não é preciso se incomodar, querida. Ainda vou ficar um pouco por aqui, antes de
descer.
— Então, quando quiser ir, a senhorita poderá acionar aquele dispositivo. — Tilly
apontou para uma corda que pendia do teto, a um canto do quarto. — Daí eu voltarei, para
conduzi-la até lá. Se eu estiver ocupada com outros afazeres, outro criado virá.
— Obrigada, querida — Patience agradeceu. E Tilly saiu.
Pouco depois, Patience resolveu encontrar, sozinha, a sala de refeições.
Decididamente, o castelo parecia ser outro, depois da tempestade. Não tinha mais nada
de sombrio, nem de assustador.
Enquanto caminhava pelos corredores e outras dependências, Patience parava, vez por
outra, para admirar móveis e objetos de arte. Uma mesa de madeira lavrada chamou-lhe a
atenção. Uma cômoda no mesmo estilo despertou-lhe a curiosidade, a ponto de Patience
abrir, uma a uma, suas várias gavetas, todas vazias. Uma ânfora grega causou-lhe tanto ou
mais admiração do que os móveis, assim como as pinturas renascentistas ao longo do vasto
corredor e um conjunto de três vasos chineses, numa estante envidraçada.
Entregue àquele sentimento de contemplação e fascínio que sempre a invadia nessas
horas, Patience não notou os olhares curiosos dos criados, que transitavam pelo castelo, em
meio aos afazeres do dia que começava.
Ao passar pela armadura, na curva do corredor, Patience notou que a parte do braço,
que havia caído, já fora colocada em seu devido lugar.
John precisa ver isto, ela pensou. Mas não se demorou muito observando a armadura.
Pouco depois, descia a longa escada que levava ao andar térreo.
Surpreendeu-se ao encontrar apenas Thomas Ashe, na sala de refeições.
— Bom dia, srta. Harrington — ele cumprimentou-a, com um meio sorriso. — Sente-se,
por favor.
— Obrigada. — Patience acomodou-se à mesa.
— Passou uma noite agradável?
— Passei uma noite interessante — ela respondeu.
— Imagino que a tempestade a tenha deixado inquieta. Todos aqueles trovões, raios e

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ventania podem dar a impressão de que este castelo é mal-assombrado. Isso, no caso de as
pessoas terem uma imaginação um tanto quanto fértil.
— Que eu saiba, não há nada de errado com a imaginação.
— Se ela for excessivamente fértil, poderá causar impressões errôneas, a senhorita não
acha?
— Depende.
— De quê?
— Do estado de espírito da pessoa. De minha parte, posso garantir que gastei mais
tempo admirando os móveis e peças deste castelo do que pensando em fantasmas — ela
declarou, preferindo excluir o episódio da armadura, na curva do corredor.
— No entanto, a senhorita me pareceu bastante nervosa, ontem, quando nos
conhecemos.
— E não era para menos, senhor visconde. Afinal, eu o vi entrando no castelo pela
janela. Como queria que eu reagisse?
Mal acabou de pronunciar essas palavras, Patience compreendeu que havia falado
demais.
— Oh, perdoe-me — ela apressou-se a dizer. — Eu e minha velha mania de falar sem
pensar! Já criei tantas situações embaraçosas, por conta disso!
Para sua surpresa, Thomas não parecia aborrecido. Ao contrário, estava sorrindo. E
seus olhos brilhavam com uma expressão divertida.
— A franqueza não é um defeito, srta. Harrington — ele sentenciou, por fim. Apontando
a mesa já posta, acrescentou: — Mas, por favor, sirva-se...
Patience observou uma grande bandeja de frutas frescas, no centro da mesa. Havia
também chá, leite e suco, além de vários tipos de pães, biscoitos e bolos.
Escolheu uma maçã e começou a saboreá-la, evitando olhar para Thomas. No entanto,
sentia que ele a observava, atentamente, a cada movimento que fazia.
Patience lançou um olhar inquieto em direção à porta.
Onde estariam os outros?, perguntou-se.
Ficar sozinha, na companhia daquele homem tão belo quanto enigmático, era um
verdadeiro teste para os nervos. Um teste para o qual ela não se sentia muito preparada.
Vários minutos se passaram, em total silêncio.
Ao servir-se de chá, Patience interrompeu o gesto, por um instante, para observar o
desenho da xícara.
— Que delicadeza! — comentou.
— A senhorita gosta, não é mesmo?
— Por demais. Já o senhor não parece muito afeito a antigüidades...
— Nem a antiquários — ele completou.
— O que o senhor tem contra os antiquários? — ela reagiu prontamente.
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— Oh, nada em especial. Mas, diga-me, a senhorita às vezes não acha sua profissão
entediante?
— De modo algum! — ela respondeu, sem hesitar. — Ao contrário: considero minha
profissão como uma caixinha de surpresas. Cada vez que descubro a origem de uma peça,
ou de um objeto de arte, sinto-me renascer.
— E a senhorita não se cansa de estudar, exaustivamente, os mesmos objetos?
— Mas cada objeto é único, senhor! — Patience argumentou, arrebatada pela paixão
que sentia por seu trabalho. — Alem do mais, a História é fascinante... — E explicou: —
Estou me referindo à história que envolve cada objeto, entende?
— Creio que sim. Mas, definitivamente, isso não me desperta a menor curiosidade.
— Mas o senhor não tem vontade de saber como viviam seus ancestrais? Como
cultivavam seus valores culturais, como desenvolveram técnicas para melhorar a qualidade
do dia-a-dia e tornar a vida mais confortável?
Inclinando-se em sua direção, Thomas perguntou, com ar de ceticismo:
— Os antiquários realmente se preocupam em descobrir o tempo e o modo como os
antepassados viveram?
— Claro que sim!
— Pois me parece que eles estão mais interessados no dinheiro que uma peça pode
render do que em seu valor cultural ou histórico.
Patience empalideceu, tamanha era sua indignação. E respondeu à altura:
— Seu julgamento está sendo, no mínimo, injusto. Certamente há antiquários
competentes e incompetentes, honestos e desonestos, como, aliás, em todas as profissões.
Mas o senhor não tem o direito de generalizar.
Ignorando-lhe o tom de revolta, ele continuou:
— Há também aqueles que, para fugir dos próprios problemas, preferem mergulhar no
passado e tecer teorias a respeito de utensílios ou móveis que há muito foram soterrados
pelo tempo.
— Acredito que esse tipo de obsessão possa vitimar algumas pessoas. Nesse caso,
seria um vício, como outro qualquer. Mas um verdadeiro antiquário, que ame sua profissão,
jamais agiria assim. — Num tom veemente, Patience concluiu: — Asseguro-lhe que este não
é, em absoluto, o meu caso, nem o de qualquer outro membro do meu grupo.
— Vejo que a senhorita está seriamente empenhada em se defender.
— Vejo que o senhor está seriamente empenhado em atacar — Patience rebateu, no
mesmo tom.
— Touché, srta. Harrington! — ele exclamou, entre surpreso e divertido. — Ainda bem
que lady Caroline não está presente. Caso contrário, ela ficaria chocada com minha falta de
boas maneiras. — Num tom mais ameno, acrescentou: — Acho que ainda não aprendi a ficar
de boca fechada e guardar minhas opiniões.
— Nunca é tarde para começar. Eu mesma aprendi, recentemente, que é melhor refletir
muito, antes de expressar um pensamento. E, na maioria das vezes, se pensarmos bem,

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
acabaremos não falando.
— Por que diz isso, senhorita?
— Porque acabo de me lembrar que outro dia cometi uma gafe terrível, justamente por
causa dessa minha mania de não medir as palavras.
— Que tipo de gafe? — Thomas indagou, com genuíno interesse.
— Ora, não importa — Patience desconversou.
— Conte-me, por favor. Eu realmente gostaria de saber.
— Oh, não... — Patience o interrompeu, meneando a cabeça, num gesto veemente. —
O senhor não gostaria de saber o que eu disse a lady Shickles.
— Na verdade, eu adoraria. — Afastando a xícara de chá, e apoiando o queixo sobre as
mãos, ele perguntou: — A senhorita está se referindo àquela senhora imensa, cujo rosto
excessivamente corado e os longos cabelos, artificialmente cacheados, mais parecem uma
cabeça de medusa?
— Sim, senhor — Patience confirmou, envergonhada, enquanto se repreendia
mentalmente: por que havia tocado naquele assunto constrangedor com o visconde? Agora,
não havia como voltar atrás. — Ela mesma.
— E o que foi que a senhorita disse a lady Shickles?
— Bem, ao ver seu enorme ventre protuberante, perguntei-lhe se estava grávida.
Thomas tentou conter o riso, sem muito sucesso.
Sentindo-se ainda mais embaraçada, Patience apressou-se a explicar:
— Devo dizer que me esqueci, momentaneamente, de dois detalhes importantes: que
lady Shickles não é casada... E que já não tem idade para engravidar. Oh, senhor, foi um
erro imperdoável!
Com ar zombeteiro, Thomas comentou:
— Bem, espero que ninguém mais, exceto a senhorita e a própria lady Shickles, tenha
presenciado a gafe.
— O pior é que não, senhor! — Patience respondeu, mortificada. — Havia pelo menos
umas oito pessoas ao nosso redor, quando fiz essa pergunta absurda a lady Shickles.
Thomas agora ria, de maneira descontraída, sem se preocupar em manter as
aparências.
— Puxa, eu teria gostado de estar presente a essa cena hilariante, srta. Harrington.
— Não brinque com coisa séria, senhor visconde — advertiu-o Patience, no auge da
vergonha. — Se soubesse quantas dores de cabeça essa gafe me rendeu...
— É mesmo?
— Sim. As fofoqueiras de plantão se encarregaram de passar a história adiante. Não
tem se falado em outra coisa, nas altas-rodas de Londres. — Com um suspiro, Patience
baixou os olhos e concluiu, como que para si: — O fato é que sou mestra em me meter em
encrencas... E tudo por causa dessa minha triste mania de falar sem pensar!
— A senhorita não deve se censurar por isso... A franqueza é uma grande qualidade,
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que tem se tornado cada vez mais rara, em nossos dias.
— Franqueza é uma coisa — Patience argumentou. — Grosseria é outra, bem
diferente.
— A verdade às vezes dói.
— Acontece que nem todo mundo quer sofrer essa dor. Aliás, a maioria das pessoas
não parece lá muito interessada na verdade.
— A senhorita tem toda a razão — Thomas concordou, com gravidade.
Patience ergueu os olhos negros e encontrou os de Thomas: azuis como safiras,
límpidos, donos de um estranho brilho... Um brilho que tinha, a um só tempo, um toque de
curiosidade, de admiração e de desconfiança.
Por que ele a fitava daquela maneira?, ela se perguntou.
Mas não teve tempo de cogitar a resposta, pois naquele exato momento John e o casal
Tecking entraram na sala de refeições.

Capítulo II

O castelo de Blackfield erguia-se no centro de um vasto parque, de cerca de doze mil


acres, tendo ao norte um denso bosque. Enquanto conduzia os visitantes por uma turnê ao
redor do castelo, Caroline contava histórias curiosas sobre a propriedade e seus ancestrais.
Patience a ouvia com relativa atenção, mas estava fascinada demais para concentrar-
se apenas nas palavras de Caroline. Preferia, antes, admirar por si mesma aquele quadro
vivo e fantástico. John parecia igualmente maravilhado, e um tanto alheio às explicações
detalhadas de Caroline. Apenas o casal Tecking a ouvia com total atenção, sem desviar os
olhos sequer por um minuto, nem mesmo para admirar as estátuas, vasos e canteiros de
flores espalhados ao redor. O resultado era magnífico.
— Temos três jardins principais, na propriedade — dizia Caroline. — Este, ao norte do
castelo, e mais dois, que ficam próximos da ala sul. Temos também dois templos em estilo
grego. Podemos ver um deles, daqui... — E apontou uma construção, na margem oposta do
lago. — O outro, que fica na entrada do bosque, está parcialmente oculto pelas árvores.
Patience olhou na direção indicada por Caroline, mas não conseguiu avistar o segundo
templo.
— Lá, junto à entrada do templo que acabei de mencionar, está uma das esculturas que
serão doadas ao museu — prosseguiu Caroline. — A outra é esta aqui — acrescentou,
apontando um Apolo de mármore, que parecia reluzir na manhã ensolarada.
— Que maravilha! — a sra. Tecking exclamou. — Oh, lady Caroline, em nome da
direção do Museu Britânico, quero que saiba que sua contribuição para a difusão da cultura
européia é simplesmente inestimável.
— Obrigada por suas palavras gentis, senhora — disse Caroline. — Mas devo lembrá-la
de que não sou a única responsável pelas doações.
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— Oh, sim, certamente agradeceremos também ao visconde de Blackfield — a sra.
Tecking afirmou. — Mas sei que a iniciativa foi sua.
— Ora... — Caroline sorriu, com modéstia. E continuou com a turnê, conduzindo os
convidados em direção à ala leste da propriedade. — Eis o jardim das rosas... — Voltando-se
para Patience, acrescentou: — Este é o meu favorito.
O jardim, de formato retangular, tinha uma fonte em cada canto. De cada uma delas
partia uma trilha.
— Uma dessas trilhas leva àquele templo grego, oculto pelo bosque — Caroline
explicou. — Se alguém quiser fazer um passeio a cavalo, é só me avisar, que pedirei ao
funcionário encarregado dos estábulos para selar um de nossos animais.
Patience teria preferido ficar contemplando longamente aquele jardim, que tinha rosas
de todas as cores. Mas o resto do grupo preferiu continuar acompanhando Caroline, que
agora contornava o lago e apontava um caminho de cascalho, à esquerda:
— Logo depois da curva, há um rio que atravessa toda a propriedade. A cerca de três
quilômetros daqui há um local ótimo para pescar. Quem for adepto desse esporte, por favor,
me avise, que providenciarei para que um criado o conduza até lá. Agora, vejam só que
coisa curiosa... — Remexendo no bolso do vestido, Caroline retirou um pequenino pacote,
com pedaços de pão. Imediatamente, vários patos e cisnes se aproximaram, em alegre
alvoroço. — O rio que acabo de mencionar passa também pelas ruínas de Karstnff Abbey,
um local que vale a pena visitar, pelo cenário e pela História que ali se encerra.
Minutos depois, ela se levantou e sorriu na direção dos animais, enquanto dizia:
— Por hoje é só, amiguinhos... O pão acabou.
Todos sorriram, também, menos Patience, que havia se distanciado em direção a uma
das fontes próximas ao jardim das rosas, que tinha um Cupido seminu, no centro. O pequeno
deus segurava uma ânfora, de onde jorrava água.
Mais ao longe havia um observatório, além de quatro construções de alvenaria, que
pareciam incrustadas na encosta de uma colina.
Foram essas construções que vi, ontem à noite, julgando que se tratasse apenas de um
bloco longo, baixo e plano, de concreto, Patience concluiu. Foi lá que vi uma luz oscilando
fracamente, para logo depois se apagar.
Patience ficou por um bom tempo observando aquelas construções sem estilo definido,
que pareciam até deslocadas, em meio à paisagem magnífica. Por fim, perguntou, curiosa:
— Caroline, o que são aqueles quatro blocos, próximos ao observatório?
— Oh, nada de importante — Caroline respondeu, sem olhar na direção que Patience
apontava. — Trata-se de alguns alojamentos destinados à criadagem.
Patience sentiu-se intrigada. Afinal, Tilly havia lhe contado, naquela manhã, que o
castelo tinha quase duzentos empregados, e que todos eles viviam nos alojamentos situados
na ala sudoeste do castelo.
Voltando a observar os quatro blocos na encosta da colina, ela notou que apenas um
possuía janelas, na parede que dava para o leste. O que haveria nos outros blocos? E por
que eles não tinham janelas?

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Temendo parecer indiscreta, Patience preferiu não fazer mais perguntas. Mas a
resposta de Caroline a havia deixado um tanto apreensiva.
A manhã transcorreu rápido, em meio a muitas novidades. Por volta de onze e meia,
todos retornaram ao castelo. Ao meio-dia foi servida uma refeição.
Após o almoço, todos se retiraram para seus aposentos, a fim de descansar um pouco.
No início da tarde, Patience resolveu dar início ao trabalho de catalogação das obras
que seriam doadas ao museu. Dividiu as funções entre os membros do grupo e propôs que
se separassem, cada um com seu respectivo bloco de anotações.
— Eu me encarregarei de catalogar as armas — disse John.
Todos acataram a sugestão, já que ele era um especialista no assunto.
O casal Tecking ficou de catalogar as estátuas e esculturas, sobretudo as de origem
romana. Assim, restou a Patience encarregar-se dos quadros, tapeçarias e objetos de arte
grega, encargo que ela aceitou de boa vontade, pois adorava esse ramo das antigüidades.
Escolheu, para começar, uma pequena galeria que havia a caminho de seus aposentos, no
piso superior do castelo. Lá estavam os antepassados da família Blackfield. Condes,
condessas, viscondes, viscondessas, duques, duquesas, marqueses e marquesas, todos
retratados em telas a óleo, por grandes artistas.
Patience pôs mãos à obra. Um sorriso insinuou-se em seus lábios, enquanto ela
pensava que, em breve, muitos de seus conterrâneos poderiam admirar de perto aquelas
telas, que estariam ao alcance de quem bem o desejasse, no Museu Britânico.
Concentrada no trabalho, volta e meia fazia anotações sobre os aspectos gerais de
cada tela, mencionando detalhes que considerava importantes. Num dado momento, ao
afastar-se para observar melhor um quadro, acabou batendo na mesma armadura que tanto
a havia assustado, na noite anterior.
— Oh, não! — ela exclamou, aborrecida.
O antebraço direito da armadura caiu no chão e rolou. Terei de pedir a John para dar
um jeito nisso, pensou, erguendo a peça do chão e colocando-a no pedestal, aos pés da
armadura.
Continuou a observar o quadro, mas havia perdido a concentração. Fez mais algumas
anotações e resolveu partir para outra tela. Foi então que ouviu uma exclamação de medo,
seguida de uma reprimenda:
— Cale a boca! Você quer nos meter em complicações?
— Mas estou dizendo que vi! Juro que vi, de novo, ontem à noite! E também agora, ao
passar pelos aposentos do visconde, escutei claramente. E não foi um pesadelo, como você
quis me fazer crer, da outra vez.
As vozes se tornavam mais nítidas. Procurando raciocinar depressa, Patience se
escondeu numa reentrância da parede, atrás da armadura. Momentos depois, duas criadas
dobraram a curva do corredor.
— Estou apavorada, Jenny — dizia uma delas. — Aquele monstro não foi fruto da
minha imaginação. Ele existe, de verdade! Eu o vi!
— Você pensou ter visto — a outra retrucou. — A mente nos prega peças, sobretudo
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quando estamos com medo.
— Que nada! Aquilo era real... Era um monstro enorme, maciço, com mãos de aço,
soltando fogo pelas ventas! Ele vai acabar nos matando, Jenny!
Sacudindo-a levemente, pelo braço, a outra criada ordenou:
— Shh! Fale baixo! Se milorde souber que você anda choramingando e gritando pelo
castelo, poderá castigá-la.
— É verdade, Jenny! — a outra parecia no auge do pânico. — É capaz de ele me
entregar ao monstro, para ser devorada!
— Ora, não seja tão dramática. Você está assim porque é nova, aqui no castelo. Daqui
a algum tempo, acabará se acostumando.
— Eu não vou conseguir... — a outra choramingava.
— Vai, sim. Basta seguir meu conselho: trate de ficar longe daquelas construções na
encosta da colina. E não deixe que os convidados de lady Caroline e do visconde de
Blackfield saibam dessa história. — Num tom ameaçador, concluiu: — E trate de me
obedecer, ouviu bem? Caso contrário, milorde não terá sequer de se preocupar com você,
pois eu mesma me encarregarei de castigá-la.
— Não, por favor, Jenny!
— Se não quer que isso aconteça, esqueça essa história, afaste-se daquelas
construções e pare com essa cena patética.
— Está bem.
Patience esperou que as duas se afastassem e só então saiu de seu esconderijo.
Um monstro?, pensou, intrigada, piscando os olhos, como se duvidasse da cena que
tinha acabado de presenciar.
Será que Thomas Ashe mantinha uma besta-fera trancada naquelas sombrias
construções, na encosta da colina?
Com um meneio de cabeça, ela procurou afastar o pensamento. Já havia cometido uma
grande injustiça com aquele homem belo e enigmático, ao tomá-lo por um vampiro, e depois
por um ladrão. Agora, só faltava acreditar que ele tinha um monstro cativo, e que o
alimentava com o sangue de lindas donzelas.
Há momentos em que minha imaginação realmente exagera na criatividade, ela
concluiu, rindo de si mesma.
Ouviu novamente o som de vozes, mas agora podia reconhecê-las. Pertenciam a
Caroline e a John, que se aproximavam, pelo lado oposto do corredor.
— Estávamos à sua procura, querida — disse Caroline.
— Achei que você estivesse perdida... Já ia mandar uma criada para encontrá-la.
— Acho que me esqueci do tempo, observando esses belos quadros — Patience
comentou.
— Lady Caroline vai nos oferecer um chá — disse John.
— Viemos chamá-la para juntar-se a nós, prima.
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— Será um prazer — Patience respondeu. Enquanto os três caminhavam em direção à
sala de refeições, Caroline explicou:
— Este castelo começou a ser construído no século XVII, pelo terceiro visconde de
Blackfield. O trabalho se estendeu durante muitos anos. Nesse tempo, houve mais três
viscondes de Blackfield. Tanto que o castelo foi inaugurado pelo sexto visconde a ostentar o
título. Todos esses homens dedicaram sua vida e seu trabalho para que esta propriedade se
tornasse um dos maiores e mais respeitados redutos da Inglaterra. Os melhores arquitetos
da época trabalharam aqui, assim como os melhores artesãos. De algum modo, todos os
viscondes da família Blackfield se empenharam para manter intactas a tradição e a nobreza
deste lugar, ao longo do tempo.
— E conseguiram — John comentou, num tom respeitoso.
— Imagino que algumas renovações ou restaurações na estrutura do castelo tenham
sido feitas, nesses anos todos — disse Patience.
— Sem dúvida, querida. A manutenção da propriedade é por demais trabalhosa, como
você já deve ter percebido.
Patience fez um gesto de assentimento, antes de indagar:
— E quanto ao atual visconde de Blackfield? Ele fez algum tipo de reforma no castelo
ou na propriedade?
— Sim — Caroline respondeu, um tanto reticente. — Ele realizou algumas
modificações, na propriedade. E também no interior do castelo... Mais precisamente em seus
próprios aposentos.
— E também no toalete, que fica na mesma ala? — Patience não resistiu à tentação de
perguntar.
Caroline arregalou os olhos, ao afirmar:
— Aquele toalete é privativo de meu sobrinho, querida.
— Ah, eu não sabia. Acabei entrando por acaso... Mas há equipamentos incríveis, lá. —
Patience virou-se para John.
— Você precisa ver, primo. Há dispositivos simplesmente fantásticos! Um deles aciona
fortes jatos de água, que lavam por completo a bacia sanitária.
— Patience, querida... — disse Caroline, constrangida. — Acho que preciso lhe dar um
aviso.
— Pois não?
— Já notei que você é uma pessoa dinâmica, independente, auto-suficiente... E que
gosta de explorar os lugares por conta própria.
— Isso é verdade — Patience admitiu, com sua franqueza costumeira.
— Então, gostaria de alertá-la sobre um fato importante.
— Do que se trata?
— Bem, o castelo é todo seu... Exceto no que toca às dependências particulares da
família, ou seja: os meus aposentos e os do visconde de Blackfield. Por favor, tenha cautela
para não entrar, inadvertidamente, nesses locais.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
À medida que falava, Caroline parecia terrivelmente desconfortável:
— Sinto muito por dizer-lhe isso, querida... Mas meu sobrinho é muito rígido, quanto a
certas regras de privacidade. E ele não gostaria...
— De ser invadido novamente, não é mesmo? — Patience completou.
— A palavra "invasão" talvez seja muito pesada, para definir sua atitude. Afinal, você
entrou no toalete de meu sobrinho por puro acaso.
— E também nos aposentos dele.
— Não diga! — Caroline arregalou os olhos, numa expressão de espanto.
— Você fez isso, prima? — John indagou, espantado.
— Sim, mas foi sem querer, é claro — Patience justificou-se. Em seguida perguntou a
Caroline: — Ele não lhe contou?
— Bem... Não tivemos tempo de conversar, de ontem para cá.
— De qualquer forma, ficarei atenta para não cometer novas impertinências.
— Ora, não fale assim, querida. — Caroline sorriu, mas era evidente que estava
constrangida com aquela conversa. Tanto que se mostrou aliviada ao ver o casal Tecking,
que se aproximava. — Pronto! Agora o grupo está completo! Vamos saborear nosso chá?
A coleção de George Ashe era tudo o que se esperava e um pouco mais, Patience
pensava, satisfeita, enquanto caminhava em direção a seus aposentos, no final da tarde. Era
hora de se vestir para o jantar.
Papai ficará feliz, ela concluiu. E o pessoal do Museu Britânico também.
Tilly a aguardava, no quarto, para ajudá-la.
Patience sorriu, ao vê-la:
— Puxa, você já cuidou de tudo — comentou, ao ver seus melhores vestidos
espalhados sobre a cama.
— Estou apenas fazendo meu trabalho, ma petite. Bem, qual a senhorita pretende
vestir, para o jantar?
— Ainda não sei... — Patience observou-os com atenção e, por fim, apontou um, azul-
celeste, com detalhes em branco.
— O que acha deste?
— Combina com seus olhos negros — Tilly opinou. — É uma escolha perfeita.
— Então, está decidido.
— Posso guardar os outros, senhorita?
— Sim, obrigada, Tilly.
Cerca de uma hora depois, ao deixar os aposentos, Patience lembrou-se de que
deveria pedir a John que consertasse a armadura que ficava perto da curva do corredor. Mas
ao passar por ela notou que estava inteira. Alguém havia colocado o braço de volta, no lugar.
Quem terá feito isso?, perguntou-se. Tilly?

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Pensou em voltar e tirar a dúvida. Mas desistiu e seguiu adiante, em direção à sala de
refeições, no piso térreo do castelo.
O jantar transcorreu num clima alegre e cordial. Todos estavam felizes com o trabalho
realizado durante o dia. Quanto a Caroline, parecia radiante por ter sido a motivadora
daquela situação que, afinal, seria satisfatória para todos.
— Sobretudo para os freqüentadores do Museu Britânico — o sr. Tecking comentou. —
Pois terão a oportunidade de conhecer todas essas maravilhas.
— É verdade — sua esposa concordou, num tom polido. Mas até mesmo aquela
rabugenta senhora parecia feliz, naquela noite. E não era para menos: como uma
profissional consciente e competente, sabia da grandeza do tesouro que o Museu Britânico
em breve teria em mãos.
Pela primeira vez, desde o início daquele projeto, Patience sorriu para ela. E, um tanto
surpresa, a sra. Tecking retribuiu o sorriso.
Decididamente, hoje é uma noite especial, Patience pensou, tomada por uma sensação
de bem-estar.
— Acho que nunca mais, em toda a minha carreira como antiquário especialista em
armamentos antigos, terei o privilégio de me deparar com tantos tesouros ao mesmo tempo
— disse John. — Acho que já cataloguei mais de trinta objetos, entre escudos, arcabuzes,
escopetas, espadas, elmos, armaduras...
— Falando nisso, você chegou a catalogar aquela armadura que fica no corredor que
leva aos meus aposentos? — Patience perguntou.
— Ainda não cheguei até lá — John respondeu. — Por enquanto, estou catalogando as
que se encontram no andar térreo. Para ser franco, nem vi essa peça de que você está
falando.
— Trata-se de uma legítima armadura medieval — explicou Caroline. — E está inteira!
— É original? — John perguntou.
— Sim.
— Inteira! — ele repetiu, numa exclamação de surpresa e alegria. — Ora, mas isso é
uma raridade!
— Raridades não faltam neste castelo — sentenciou o sr. Tecking.
Todos concordaram, menos Thomas Ashe, que saboreava o jantar em silêncio e
parecia alheio ao clima animado que reinava na mesa.
Embora participasse ativamente da conversa, Patience o observava. Seria impressão,
ou a menção da armadura o havia aborrecido? E por quê?
Decididamente, havia qualquer coisa naquele homem que a deixava bastante curiosa.
Num dado momento, ele a flagrou, e os olhos de ambos se encontraram. Patience
tentou desviar o rosto, mas não conseguiu. Era como se uma força poderosa a impedisse de
olhar para outro lado, para outra pessoa...
De súbito, Patience teve a nítida sensação de que não havia ninguém mais, à mesa,
exceto ela e Thomas que, naquele exato momento, levava a taça de vinho aos lábios.

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Por algum motivo inexplicável, Patience o imitou, os olhos sempre fixos nos dele.
Thomas percorreu rapidamente a borda da taça com a língua, antes de sorver a bebida.
Por que ele estaria agindo daquele modo?, Patience se perguntou. Quais seriam suas
intenções? Provocá-la? Intimidá-la? Ou ela estaria de novo imaginando coisas?
— Prima, estou falando com você... — A voz de John interrompeu-lhe os pensamentos.
Piscando, como se despertasse de um sonho, Patience conseguiu enfim tirar os olhos de
Thomas Ashe, que parecia tê-la hipnotizado.
Que emoções estranhas esse homem me desperta, ela pensou, antes de perguntar ao
primo:
— O que foi, John?
— Bem, eu estava contando aos nossos amigos sobre os projetos nos quais já
trabalhamos juntos.
— Oh, sim — Patience comentou, vagamente. — Foram vários. — E como se
obedecesse a uma voz poderosa, mais forte que ela própria, voltou a fitar Thomas,
mergulhando profundamente naqueles olhos azuis, que pareciam guardar tantos segredos.
Quais seriam? E por que, ao encarar aquele homem, ela experimentava sensações tão
contraditórias, como medo, excitação e alegria, tudo ao mesmo tempo?
Bem, fossem quais fossem os mistérios que envolviam Thomas Ashe, ela estava
disposta a descobri-los... Embora não tivesse a menor idéia de por onde deveria começar.

Três dias depois, Patience preparava-se para ir até o vilarejo mais próximo. Uma
carruagem, providenciada por Caroline, já estava à sua espera, junto à entrada principal do
castelo.
A perspectiva de ir às compras, que a princípio parecera tão atraente, havia perdido o
encanto quando, durante o almoço, a sra. Tecking anunciara:
— Vou acompanhá-la até o vilarejo, srta. Harrington. — Ela, que tanto prezava as boas
maneiras, não havia se lembrado de perguntar se "poderia" ir. Simplesmente impusera sua
companhia, sem dar-lhe outra opção, senão aceitar. Era nisso que Patience pensava, agora,
enquanto se aprontava para sair.
Levando uma cesta de compras, Patience dirigiu-se à entrada do castelo. Encontrou
John, no saguão, examinando um conjunto de cimitarras, que também iriam para o museu.
— Já está pronta? — ele perguntou.
— Sim — ela respondeu, com um suspiro.
— Você não parece nem um pouco animada com a perspectiva de passear nesta bela
tarde.
— Eu bem que estaria, se não fosse a perspectiva de viajar até o vilarejo com a sra.
Tecking — Patience confessou. De súbito, teve uma idéia: — Escute, primo, você bem que
poderia ir, também. Assim, faríamos companhia um ao outro. O que acha?
John meneou a cabeça, num gesto de negação:
— Eu adoraria passear com você... Mas não posso abandonar estas maravilhas. — E

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apontou as antigas armas, sobre uma longa mesa de madeira maciça.
— Por que não? — Patience insistiu. — Você poderia retomar o trabalho, na volta.
— É verdade, mas não quero parar, agora. — John apontou seu bloco de anotações. —
Acabo de fazer descobertas importantes sobre estas cimitarras.
— Já entendi — Patience assentiu, com desânimo. — Você não quer ir, mesmo...
— Para ser franco, não. — John sorriu, para encorajá-la. — Mas desejo que você se
divirta muito, prima.
— Vai ser difícil.
— Srta. Harrington? — A sra. Tecking aproximou-se, com uma bolsa de viagem. — Já
estou pronta.
— Então, podemos ir — Patience respondeu, resignada. Voltando-se para John,
perguntou: — Quer alguma coisa do vilarejo?
— Não, obrigado. Façam um bom passeio.
Pouco depois, ambas partiam.
Logo nos primeiros minutos do trajeto, Patience sentiu que aquela viagem seria
interminável. A sra. Tecking tagarelava o tempo todo. E os assuntos giravam sempre em
torno do mesmo tema: as boas maneiras, imprescindíveis a qualquer pessoa, mas sobretudo
a uma jovem dama que quisesse ingressar na alta sociedade.
Essa jovem dama a quem ela se refere certamente sou eu, Patience concluiu,
enfastiada.
Quando a carruagem, aberta, saiu da estrada ladeada de árvores para um
descampado, Patience tentou se distrair, observando a paisagem. Mas a sra. Tecking não
lhe dava trégua:
— A senhorita já ouviu falar do Manual de Boas Maneiras para Debutantes? Pois trata-
se de um guia perfeito para moças da sua idade... — E desfiava uma série de elogios ao
autor, que soubera captar e compreender, tão bem, as necessidades das jovens da
atualidade.
Depois de esgotar sua reserva de elogios ao manual, a sra. Tecking iniciou um discurso
sobre a importância de nascer numa família influente, de ter um bom nome, uma boa
reputação. Mas foi no quesito "feminilidade" que ela se esmerou. E foi quando Patience
sentiu que sua paciência chegava a um limite perigoso.
— Se uma jovem deseja ser um bom exemplo de refinamento e bom gosto — dizia a
sra. Tecking —, ela nunca deve manifestar sua opinião, antes que...
Um forte solavanco impediu que a sra. Tecking concluísse a frase. Antes que ela se
recuperasse do susto, Patience perguntou ao condutor:
— O que houve, senhor?
— Quase caímos num buraco, srta. Harrington — explicou o homem. — Uma roda está
danificada. Por favor, aceite minhas desculpas. Mas não tive como evitar.
— Ora, não há por que se desculpar, senhor. Também, já estamos na entrada do
vilarejo. Podemos descer aqui e seguir a pé.
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— Certo, senhorita. Enquanto isso, providenciarei para que a roda seja consertada.
— Oh, céus, o que está acontecendo? — indagou a sra. Tecking, lívida de susto.
— Apenas um pequeno incidente — Patience respondeu, pensando que, no último
minuto, havia infringido duas regras que a sra. Tecking tanto prezava: tinha falado sem
esperar pela permissão, tinha se dirigido a um serviçal de forma descontraída e, agora,
preparava-se para infringir mais duas: descer da carruagem sem esperar pela ajuda de um
cavalheiro e andar sozinha num vilarejo desconhecido.
Saltando para o chão, ela estendeu a mão para a sra. Tecking:
— Quer ajuda?
— Deixe que eu cuide disso, senhorita — se ofereceu o condutor.
Sem nem se preocupar em responder a Patience, a sra. Tecking aceitou a mão que o
homem lhe estendia. Depois de descer, agradeceu num tom seco, mantendo uma expressão
altiva. Em seguida, com um gesto de cabeça, indicou a bolsa que havia deixado sobre o
banco.
— Aqui está, senhora. — Solícito, o homem entregou-lhe a bolsa.
— Bem, acho que podemos ir, agora — disse a sra. Tecking, voltando-se para falar com
Patience, que já ia longe. — Srta. Harrington! — chamou, num tom que tinha algo de
autoritário. — Espere-me!
Patience, porém, já não a ouvia. Estava ansiosa para desfrutar um pouco do passeio,
sem a tagarelice e as reprovações da companheira de viagem. Foi nesse estado de espírito
que ela entrou no vilarejo, levando sua cesta de compras, que continha uma ferramenta que
havia trazido para consertar.
Um sorriso estampou-se em seu rosto, à medida que ela avançava pela rua de pedras.
De algum modo, aquele lugar a fazia lembrar-se de Cotswolds, sua pequena cidade natal. As
fachadas de calcário das casas, cobertas de hera, destacavam-se na luminosidade da tarde,
que já ia pelo meio.
Nos balcões e varandas, a profusão de canteiros e vasos de flores dava um toque
especial ao cenário, criando um belo contraste entre os tons delicados das flores e os tons
cor de mel das portas e janelas.
No final da rua principal, as casas tornavam-se mais majestosas e ricas. Pertenciam,
certamente, à classe abastada do vilarejo. A rua terminava num belo parque, onde crianças
brincavam e corriam, sob os olhares atentos das mães.
Uma vez mais, Patience sentiu saudade da pequena cidade onde nascera e vivera
durante um bom tempo. Mas, depois, seu pai fora contratado pelo Museu Britânico, e a
família se mudara para a capital.
Além do parque, havia uma rua estreita, bastante movimentada, onde funcionava o
comércio. Patience sabia que ali havia uma oficina de ferreiro e uma confeitaria, que vendia
saborosos pães, bolos e doces. Tilly lhe contara. Havia também uma loja de tecidos, que ela
pretendia conhecer.
Foi logo ao entrar nessa rua que Patience ouviu uma explosão, que pareceu sacudir
todo o povoado.

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— Minha nossa! — ela exclamou, levando a mão à boca, sentindo-se bruscamente
arrancada do estado de espírito calmo e melancólico no qual se encontrava.
O que estaria acontecendo?, perguntou-se, pegando a cesta de compras, que havia
deixado cair, com o susto.
Que tipo de explosão era aquela?
Depois dos primeiros momentos de choque, Patience lembrou-se de que já tinha ouvido
ruídos semelhantes, na primeira noite que passara no castelo.
Bem, de nada adiantava fazer cogitações. Era melhor perguntar a alguém sobre a
origem da explosão.
Olhando ao redor, Patience notou uma mudança radical no cenário: a rua agora estava
deserta. Mais que isso: um clima tenso parecia ter se instalado por toda parte. A atmosfera
de cordialidade que reinava naquele vilarejo, apenas alguns momentos atrás, havia se
dissipado como que por um passe de triste magia.
Mas o que está acontecendo, afinal?, ela pensou, confusa.
Foi com um sentimento de alívio que avistou a placa da oficina do ferreiro local. Dirigiu-
se até lá a passos largos e entrou. Mas o estabelecimento parecia vazio.
— Olá! — chamou, elevando a voz e aproximando-se do balcão. — Há alguém aí?
Pouco depois, uma mulher surgiu, no fundo da loja. Olhou-a com um misto de temor e
curiosidade, enquanto ela dizia:
— Boa tarde, senhora. Eu trouxe uma ferramenta para consertar e...
Antes que Patience terminasse a frase, a mulher afastou-se, correndo.
— Que coisa mais estranha — ela murmurou.
Já estava se preparando para ir embora, quando um homem se aproximou.
— O senhor é o ferreiro? — perguntou, tomada por um súbito entusiasmo.
— Sim — ele respondeu, num tom polido, quase frio. — O que posso fazer pela
senhorita?
— Preciso dos seus serviços, senhor. — Patience pegou a ferramenta de dentro da
cesta e colocou-a sobre o balcão. — O senhor poderia consertar isto?
— Sim — o homem respondeu, depois de verificar a peça.
— E quando ficaria pronto o serviço?
— No final da semana.
— Ótimo! — Patience exclamou, aliviada. Ao menos as coisas estavam voltando a
parecer normais, novamente.
— A senhorita virá buscar, ou prefere que eu mande entregar?
— Bem, eu estou hospedada no Castelo Blackfield. O senhor poderia mandar alguém
até lá?
As feições do homem se tornaram sombrias, enquanto ele perguntava:
— Então a senhorita faz parte daquele grupo que veio de Londres?
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Sim, senhor.
O homem ficou em silêncio por alguns instantes.
— E então? — Patience indagou. — O senhor pode me enviar a ferramenta, depois de
consertá-la?
Em vez de responder, o homem fez um comentário surpreendente:
— As pessoas não costumam ficar naquele castelo por muito tempo...
Patience ia perguntar o que ele queria dizer com isso, mas não teve oportunidade, pois
o homem já concluía:
— Bem, eu mandarei entregar, sim.
Patience teve a nítida impressão de que ele gostaria de acrescentar: Isso, se a
senhorita ainda estiver por lá, daqui a alguns dias...
De súbito, sentiu-se invadida por um terrível mal-estar. E desejou sair dali o mais rápido
possível.
— Vou pagar adiantado — disse, remexendo nervosamente no bolso do vestido, para
pegar o dinheiro que trouxera.
— Não é preciso. Mesmo porque ainda não sei em quanto ficará o conserto.
— Então, o senhor me mandará a conta, junto com a ferramenta?
— Sim... — o homem respondeu, estreitando os olhos para fitá-la.
Novamente, Patience sentiu que ele queria dizer algo mais. Por que não dizia?
Bem, ela não estava interessada em saber. Só queria sair daquele lugar, que de
repente lhe parecia opressivo.
— Obrigada por sua atenção, senhor. Boa tarde.
— Boa tarde — o homem respondeu, voltando-lhe as costas.
Ao sair da loja, Patience notou que a rua continuava praticamente deserta, assim como
o parque onde, pouco antes, tantas crianças brincavam. A algazarra havia se transformado
num pesado silêncio.
— Srta. Harrington! — a voz da sra. Tecking soou a poucos metros de distância.
Minha nossa!, Patience pensou, levando a mão à testa. Tinha se esquecido
completamente de sua companheira de viagem.
Sentiu-se quase feliz, ao vê-la. Ao menos já não estaria sozinha, naquele estranho
vilarejo.
— Ainda bem que a encontrei — disse a sra. Tecking, um tanto ofegante.
— Eu estou a caminho da padaria. A senhora me acompanha?
— Claro. — Num gesto inesperado, a sra. Tecking tomou-lhe o braço. Baixando a voz,
como se alguém a estivesse espionando, perguntou: — A senhorita ouviu a explosão?
— Sim.
— E o que terá sido aquilo?

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Não faço a menor idéia, sra. Tecking. Mas já ouvi esse estrondo outras vezes.
— É mesmo? — A mulher arregalou os olhos.
— Sim. Houve uma série de explosões desse tipo, na primeira noite que passamos no
castelo.
— Eram trovões, srta. Harrington.
— Houve muitos trovões, sem dúvida. Mas esse barulho é inconfundível.
— Acho que a sua imaginação lhe pregou uma peça, srta. Harrington.
— É possível que sim — Patience assentiu, nada disposta a se envolver numa
discussão com a sra. Tecking.
Ambas entraram na padaria. Apoiada no balcão, a proprietária conversava com duas
freguesas. Mas as três se calaram de imediato, ao vê-las.
Um aroma tentador de croissants de chocolate pairava no ar. Patience lembrou-se de
que Tilly havia lhe dito que essa era uma das especialidades da casa.
— Boa tarde, senhoras — cumprimentou-as, com um sorriso um tanto tenso. —
Gostaria de levar alguns croissants. Esse aroma é de dar água na boca!
A mulher detrás do balcão fitou-a com um olhar apático. Que reação mais estranha,
Patience pensou, antes de indagar:
— A senhora vende croissants de chocolate, não é mesmo? — A mulher não
respondeu. As outras duas, imóveis, observavam a cena como se assistissem a um filme.
Patience e a sra. Tecking entreolharam-se. Percorrendo o ambiente com um olhar
atento, Patience viu uma placa escrita em francês. Então, resolveu repetir a pergunta, nessa
língua:
— Vendez-vous des croissants de chocolat?
O olhar apático da mulher transformou-se numa expressão de horror. As outras duas
assumiram a mesma expressão. Patience ainda tentou insistir, voltando a falar em inglês:
— Pão? Croissants? Chocolate? Vocês vendem esses produtos aqui, não é mesmo?
Mas as mulheres nada responderam. Apenas continuaram a fitá-la, parecendo ainda
mais apavoradas. Patience perdeu o controle:
— Mas que raios há com essas pessoas, afinal? Por que de repente começaram a agir
desse modo absurdo?
A proprietária saiu de trás do balcão e, juntando-se às outras duas, começou a
cochichar, lançando olhares inquietos na direção de Patience, que conseguiu distinguir duas
expressões: "espiões franceses" e "sérios problemas".
— Eu desisto! — ela exclamou, irritada, caminhando a passos largos em direção à
saída.
A sra. Tecking a seguiu de perto, com uma expressão de censura.
— Francamente, srta. Harrington, é preciso ter mais paciência com essa boa gente! —
exclamou, quando ambas saíram na rua.
— Ora, por favor, tente ser razoável! — Patience retrucou, indignada. — Os habitantes
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
desta cidade são grosseiros comigo, e a culpa é minha, sra. Tecking?
— Fale baixo, senhorita. Caso contrário, acabará provocando a hostilidade das pessoas
daqui.
— Não é preciso provocar nada, senhora. Essa gente já nos tratou com uma hostilidade
gratuita, desde o momento em que pisamos neste vilarejo. E se duvida do que estou falando,
veja por si mesma.
De fato, enquanto caminhavam, eram observadas disfarçadamente pelos habitantes da
cidade. Por janelas e portas entreabertas, por trás de postes ou esteios de varandas, as
pessoas acompanhavam os movimentos de ambas.
— O que vamos fazer, agora? — perguntou a sra. Tecking.
— Quanto à senhora, eu não sei — Patience respondeu, de mau humor. — Quanto a
mim, vou voltar para a carruagem e esperar que o condutor termine de consertar a roda.
— Acho que a acompanharei.
— A senhora não pretendia fazer compras?
— Sim... — Com um profundo suspiro, a sra. Tecking acrescentou: — Mas desisti.
— Eu também.
— É uma pena, não?
Patience assentiu com um gesto de cabeça. Sentia-se terrivelmente frustrada. Nada,
naquele dia, havia transcorrido de acordo com seus planos. Primeiro, a sra. Tecking insistira
em acompanhá-la; depois, quase a deixara louca, durante o trajeto, com sua tagarelice a
respeito de etiqueta e boas maneiras para jovens debutantes; e agora, o vilarejo, que a
princípio parecera um local aprazível, com habitantes cordiais, transformara-se num lugar
hostil, quase perigoso. E tudo havia ocorrido depois daquela maldita explosão, que parecera
abalar não apenas os alicerces das casas e lojas, mas os nervos das pessoas que lá viviam
e trabalhavam.
Muitas dúvidas acorriam à mente de Patience, mas a principal resumia-se numa
pergunta que ela já se fizera antes: existiria, de fato, um monstro nas redondezas? Um
monstro que volta e meia visitava aquele vilarejo, para aterrorizar seus moradores?
Mas, supondo-se que o monstro fosse uma realidade, por que aquela gente não reagia?
Por que silenciava? Calavam-se por medo, ou porque tinham algo a ver com a existência do
monstro? Ou talvez o monstro fosse resultado de alguma culpa coletiva, de algum terrível
pecado que todos preferiam esquecer?
Patience e a sra. Tecking esperaram mais de uma hora. Por fim, a roda da carruagem
foi consertada. Só então puderam empreender a viagem de volta.
A sra. Tecking se manteve calada durante a maior parte do percurso.
A pobre coitada está assustada demais para se lembrar do Manual de Boas Maneiras
da Debutante Inteligente, Patience pensou, aliviada com o silêncio que reinava entre ambas.
Precisava mesmo dessa calma, para refletir sobre o que havia acontecido. Mas mesmo
depois de pensar muito, não chegou a conclusão alguma. Não tinha dados para tanto.
Contudo, no momento em que a carruagem se aproximou do castelo, Patience lembrou
da conversa que ouvira, entre duas criadas. E perguntou-se se não estaria apenas voltando
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de uma casa de loucos para outra...

Capítulo III

Thomas Ashe caminhava apressado pelo corredor, ignorando os olhares apreensivos


dos criados que se afastavam para o lado, dando-lhe passagem. Já estava acostumado
àquela expressão mista de temor e respeito que despertava nas pessoas, principalmente nos
serviçais.
A semana havia transcorrido em meio a vários problemas. E, para complicar ainda mais
as coisas, havia a questão dos hóspedes, que movimentavam-se pelo castelo o dia todo,
catalogando as peças doadas ao Museu Britânico.
Apesar de serem muito discretos e educados, os hóspedes davam certo trabalho. Já
fazia uma semana que haviam chegado. E, portanto, já fazia uma semana que ele, Thomas
Ashe, tinha de se movimentar com cautela... E dentro de sua própria casa! Isso lhe causava
um sentimento de revolta e indignação.
Mas não era exatamente com os hóspedes, nem mesmo com Caroline, que ele estava
irritado, e sim consigo mesmo. Pois, nos últimos dias, algo incrível acontecera. E ele passara
a se interessar por um assunto que havia muito lhe causava um misto de revolta e antipatia:
antigüidades! Sim, era isso mesmo. De um momento para o outro, ele passara a gostar
daquele tema. Não se incomodava de ouvir Patience Harrington, John Fenton e o casal
Tecking discorrer longamente sobre o assunto. Ao contrário, até estimulava-os a falar,
durante as refeições.
Mais perigoso ainda eram as incômodas e surpreendentes emoções que Patience
Harrington lhe despertava.
Esses dois problemas, somados à falta de privacidade, eram demais, até mesmo para
ele, que geralmente conseguia manter o controle em qualquer situação. O fato era que,
assim, acabara por perder tempo, por negligenciar seu trabalho e seu projeto, tão
longamente acalentado.
E tudo isso, por quê?, ele se perguntou, tomado por um sentimento de aflição. Por
culpa de um par de olhos negros, que chegavam a tirá-lo do sério... Olhos de Patience
Harrington, que parecia devassá-lo cada vez que o fitava com aquela intensidade
inquietante.
Aquilo não podia mais continuar. Ele precisava tomar uma providência... Evitar ao
máximo o convívio com os hóspedes, por exemplo.
Assim, Thomas decidiu que a partir daquele dia faria a maior parte das refeições em
seus aposentos.
Essa solução ajudaria bastante, ele pensou, mas ainda não seria o suficiente.
Um profundo suspiro brotou-lhe do peito. Podia bem imaginar o que Samuel Simmons,
seu sócio que chegaria de Londres naquela tarde, diria a respeito daquela situação.
Certamente censuraria sua negligência, no trabalho da semana... Depois faria piadas a
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
respeito de sua vulnerabilidade com relação aos hóspedes e, sobretudo, com relação à srta.
Harrington.
Thomas mordeu o lábio inferior, num gesto de nervosismo. Era orgulhoso e detestava
ser repreendido. Além do mais, custava-lhe muito admitir os próprios erros. Mas, pensando
bem, era melhor admiti-los de uma vez, para poder se corrigir e seguir adiante.
Afinal, tinha trabalho a fazer. Muito trabalho, por sinal. E havia, ainda, um problema em
Hastings House que merecia sua total atenção. Thomas só esperava que tudo se mantivesse
de forma regular, até a fase final do teste. Afinal, os modelos estavam quase prontos.
Qualquer erro, àquela altura, levaria semanas para ser reparado. E se fosse necessário
construir outra estrutura, o tempo seria ainda maior.
No entanto, a questão permanecia: o que teria acontecido na oficina, na noite anterior?
Tudo levava a crer que se tratara de sabotagem. O fato era que o trabalho atingira um
ponto alto, que certamente chamara a atenção de prováveis espiões. Alguém, no castelo ou
no vilarejo, devia ter deixado vazar informações sobre o projeto.
Essa possibilidade causou-lhe um sentimento de fúria. Era só o que faltava, depois de
tanto trabalho, ter o projeto roubado por algum oportunista!
Isso não ia acontecer. Isso não podia acontecer!
Thomas meneou a cabeça, tentando afastar o pensamento inquietante. Só esperava
que Kinney, o responsável pelas investigações, bem como Samuel, conseguissem reunir o
máximo possível de informações a respeito dos serviçais, principalmente os novatos. Afinal,
Caroline contratara alguns criados, nas últimas semanas. Seriam todos de confiança?
Caroline acreditava que sim. Mas ele não. Ele queria provas. Mesmo porque, os criados
recém-contratados não vinham do vilarejo próximo ao castelo, e sim de cidades distantes. O
motivo era muito simples: os habitantes do vilarejo estavam muito assustados com o projeto.
Preferiam passar fome a empregar-se no castelo.
Havia também a questão dos hóspedes, bem como a possibilidade de terem vindo ao
castelo não exatamente para estudar antigüidades... Nem todos, talvez. Mas um deles
poderia estar ali com outro objetivo: espionar o projeto.
Na mente de Thomas, desenhou-se a imagem de cada um dos hóspedes. E, como por
coincidência, naquele exato momento, o sr. Tecking surgiu na curva do corredor, com aquela
expressão de alheamento que tanto o caracterizava.
Aquele homem poderia ser um espião?, Thomas perguntou-se.
Dificilmente.
O sr. Tecking parecia viver trancafiado em seu próprio mundo, certamente povoado de
objetos antigos. Thomas lembrava-se de que, algumas noites atrás, ele se encantara com
um antigo tinteiro que havia sobre um consolo, na sala de refeições. Ficara tão fascinado que
derrubara o cálice de vinho do Porto oferecido por uma criada.
Trocar uma bebida de ótima safra por um tinteiro velho... Era ridículo!
— Boa tarde, sr. Tecking — Thomas o cumprimentou, ao passar por ele.
— Oh! — o homem sobressaltou-se. — Boa tarde, visconde! E desculpe minha
distração. É que acabo de descobrir uma característica surpreendente na estátua de
Minerva, que fica no jardim... E mal posso esperar para registrá-la!
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— Claro — Thomas assentiu, num tom polido.
Voltando-se, observou o homem que se afastava. E concluiu que não. Decididamente,
Frederic Tecking não podia ser um espião. Era lunático demais para isso! Quanto à esposa,
a sra. Tecking, tampouco se enquadrava no perfil básico de uma espiã. Restavam, portanto,
John Fenton e sua prima, Patience Harrington.
Por via das dúvidas, pedira a Samuel um dossiê completo sobre cada membro do grupo
do Museu Britânico. Afinal, os espiões eram mestres na arte do disfarce. E talvez os que
menos levantavam suspeitas, como o sr. e a sra. Tecking, fossem os mais perigosos.
Inquieto, Thomas saiu do castelo pelos fundos, rumo a um de seus pontos preferidos:
um banco de pedra, sob uma trepadeira, próximo à entrada do bosque.
Quando precisava refletir, ou tomar uma decisão importante, era para lá que se dirigia.
E, geralmente, costumava tomar as atitudes adequadas.
Naquele momento, mais do que nunca, ele precisava de calma e reflexão... Ou todo o
projeto iria por água abaixo.
Thomas deixou-se ficar ali, no banco, por um bom tempo. A tarde ia pelo meio. Uma
brisa suave trazia o perfume das flores silvestres do bosque, mesclado ao das rosas e das
outras flores dos jardins do castelo.
Thomas estava começando a experimentar uma sensação de calma, quando ouviu
vozes bem próximas. Um homem e uma mulher conversavam. Quem seriam? Empregados
do castelo? Intrusos? Ele não tinha a menor idéia.
— Você acha que ele suspeita de alguma coisa?
— Nem pense nisso.
— Tenho de pensar, ora! Se ele nos descobrir, estaremos perdidos.
— Se isso acontecer, daremos um jeito nele.
— E quanto ao monstro? Como pretende conseguir o que precisamos? Você sabe que
tudo está muito bem guardado...
— Bem, continue de olhos abertos. Agiremos no momento oportuno.
Já não havia dúvidas, Thomas concluiu, levantando-se.
Alguém estava conspirando contra o projeto. E ele precisava descobrir de quem se
tratava.
A conversa continuava, agora num tom mais baixo, quase inaudível. Mesmo assim,
Thomas caminhou na direção das vozes. Mas logo nos primeiros passos pisou num graveto,
que se rompeu com um estalido seco.
E isso foi o bastante para alertar os conspiradores de que não estavam sozinhos.
Thomas andou mais rápido, em vão. Fossem quem fossem aquelas pessoas, já sabiam
que ele estava em seu encalço. E tinham um bosque inteiro para se embrenhar, em total
segurança. Seria inútil tentar persegui-los.
Voltando sobre os próprios passos, Thomas passou pelo banco e retornou ao castelo.
Apesar de não ter alcançado os conspiradores, havia percebido dois pontos importantes: o
tom da conversa era tenso, e ambos haviam falado em francês.
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— Desculpe-me por fazê-lo esperar — disse Patience, entrando no saguão. — Eu
estava ocupada e...
Interrompendo-se, ela notou que o menino, que acabava de chegar do vilarejo para
entregar-lhe a ferramenta, nem havia se dado conta de sua presença. Com os olhos fixos no
teto, oscilando levemente o corpo, ele parecia hipnotizado pelas cenas ali retratadas.
Não devia ter mais de doze ou treze anos, Patience concluiu, observando-o com
atenção. E resolveu aguardar. Não queria interromper aquele momento de contemplação.
Afinal, ela própria havia ficado impressionada, uma semana atrás, com aquele mesmo
afresco.
— Então é assim... — o menino murmurou, como se pensasse em voz alta. — É assim
que os deuses e os titãs lutam...
A voz do garoto tinha um toque de reverência e temor. Patience continuou esperando,
até que ele por fim notou que não estava sozinho.
— Oh! — exclamou, visivelmente agitado, tirando o chapéu. — Boa tarde, senhorita.
— Boa tarde.
— Por favor, queira me desculpar. Acho que me distraí com aquela pintura. — O
menino apontou para o teto. — E não vi a senhorita.
— Não faz mal. — Patience sorriu, numa tentativa de deixá-lo mais à vontade. — Qual
é o seu nome?
Parecendo ainda mais embaraçado, o menino respondeu:
— Todd Farmer, às suas ordens. — E entregou-lhe a ferramenta, num gesto tenso e
rápido. Parecia ter receio de que as mãos de ambos se encostassem. — Aqui está.
— Obrigada — Patience agradeceu, num tom calmo, perguntando-se por que o garoto
estaria tão nervoso. — Diga-me, o ferreiro mandou que você me transmitisse algum tipo de
instrução, a respeito do uso desta ferramenta?
O menino, que já havia voltado a contemplar o afresco, levou alguns segundos para
entender a pergunta. Só então respondeu:
— Ah, sim... Ele disse que a senhorita deve lubrificá-la... uma vez por mês.
— Certo. Eu farei isso — Patience assentiu, num tom amável. — E em quanto ficou o
conserto?
O menino balbuciou um preço. Por duas vezes, Patience teve de lhe pedir que
repetisse, pois mal conseguia entendê-lo. Finalmente, tirou duas notas do bolso do vestido e
entregou-as:
— Tome. Pode ficar com o troco.
— É mesmo? — o garoto reagiu, atônito.
— Sim.
— Obrigado, senhorita — ele agradeceu, num tom polido. Mas nem mesmo a generosa
gorjeta parecia deixá-lo mais à vontade.
— Você trabalha para o ferreiro? — Patience perguntou.

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— Sim... Quero dizer, às vezes trabalho para ele. — Num tom um pouco mais firme,
que deixava transparecer uma ponta de orgulho, o menino acrescentou: — Mas, em geral,
trabalho para o projeto Estige.
— Estige? — Patience repetiu, surpresa, lembrando-se de que esse era o nome de um
dos rios do Inferno, na mitologia grega. E era nesse rio que ficavam as almas furiosas, que
tinham cometido o pecado da ira, na Terra.
Que nome estranho para um projeto, ela pensou, enquanto o garoto dizia:
— Somente os mais espertos podem trabalhar no Estige.
— Não diga! — Patience colocou a ferramenta sobre uma mesa de canto. — E o que é
Estige?
O garoto fitou-a como se ela houvesse feito uma pergunta absurda. Por fim, disse:
— Bem, Estige é o nome do lugar onde são feitos os trabalhos secretos... — Ainda
restava uma ponta de orgulho, em sua voz. Mas havia, também, certa apreensão.
— Que tipo de trabalhos? — Patience insistiu. — E por que secretos?
— Bem, isso eu não sei responder. Mas minha função é trabalhar nas peças do
monstro.
Patience engoliu em seco. E o menino prosseguiu:
— Na verdade, quem trabalha lá é meu pai. Mas eu sempre ajudo.
— E o que, exatamente, você faz?
— Em geral, cuido das articulações.
Antes que Patience pudesse perguntar a que tipo de articulações ele se referia, o
menino disse:
— Meu pai está me ensinando tudo o que sabe. Assim, quando eu crescer, tomarei o
lugar dele. Mas só quando meu pai estiver muito velho e não puder mais trabalhar. Enquanto
isso, continuarei sendo seu ajudante.
Esforçando-se para dar um tom natural à voz, Patience indagou:
— E você já viu o monstro, alguma vez?
O garoto meneou a cabeça, num gesto de negação:
— Nunca. Eles mantêm o monstro escondido, em algum lugar deste castelo, ou da
propriedade. — Baixando a voz, acrescentou em tom confidencial: — Puxa, eu queria tanto
vê-lo, ao menos uma vez!
— Eu também — Patience afirmou, no mesmo tom, tentando conquistar a confiança do
menino. Precisava disso, para descobrir se aquela história tinha fundamento. Bem que havia
desconfiado de que algo estranho estava acontecendo, naquele castelo. E ali estava o fio da
meada... Ela sentia isso claramente.
Mergulhada nos próprios pensamentos, Patience custou a perceber que o menino havia
mudado de expressão e a fitava com desconfiança.
Antes que ela tentasse descobrir o motivo daquela súbita mudança de atitude, ele
indagou:
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— O que a senhorita quis dizer com "eu também"? — Patience estranhou a pergunta.
Mas não teve tempo de responder, pois ele a interpelou novamente:
— A senhorita não mora neste castelo?
— Não.
E ante a expressão atônita do menino, explicou:
— Estou hospedada aqui.
Se Patience houvesse jogado um balde de água fria no garoto, não o teria assustado
tanto.
— Preciso ir embora — ele afirmou, muito pálido, correndo em direção à porta.
— Espere... — Patience ainda tentou detê-lo.
— Não posso — ele replicou, sem se voltar. Correndo, seguiu em direção à trilha que
conduzia à estrada que, por sua vez, levava ao vilarejo.
Na sala reservada aos estudos e reuniões de seu grupo de trabalho, Patience estava
terminando de contar a John sobre a estranha conversa que tivera com o garoto do vilarejo,
quando o sr. Tecking entrou. Murmurando um cumprimento, caminhou até a janela e ficou
em silêncio por alguns instantes. Por fim, anunciou:
— Os criados estão começando a transportar as estatuetas e esculturas. Lady Caroline
reservou um cômodo para guardá-las, até a data em que serão levadas ao museu.
— Que boa notícia, sr. Tecking — Patience comentou, trocando um olhar divertido com
o primo, pois o homem estava coberto de poeira, da cabeça aos pés. E parecia nem se dar
conta disso. Num tom gentil, ela acrescentou: — Imagino que o senhor já tenha lhes dado
todas as instruções necessárias.
— Sim — ele respondeu, sem se voltar. — Levei quase duas horas para explicar-lhes
os procedimentos corretos. Mas acho que consegui me fazer entender.
— Aposto que sim, sr. Tecking — Patience comentou. — E agora, que já cuidou disso,
o senhor não quer descansar um pouco, em seus aposentos?
— Não... — Voltando-se, ele piscou os olhos, como se despertasse de um sonho. — Na
verdade, preciso continuar com minha turnê...
— Turnê? — John repetiu, sem entender. — Como assim, sr. Tecking?
— É que lady Caroline me disse para dar uma olhada nas salas da ala leste do castelo,
a fim de verificar os móveis e objetos lá guardados. — Olhando para si mesmo, o homem
justificou-se: — É por isso que estou assim, empoeirado da cabeça aos pés. Parece que faz
muito tempo que ninguém entra naqueles cômodos.
— Compreendo — disse Patience. Com um sorriso, indagou: — E o senhor já descobriu
algum tesouro, por lá?
Com um gesto vago, o sr. Tecking respondeu:
— De tudo o que vi, até agora, o que mais me chamou a atenção foi uma Puckle Gun...
— Este é o nome da primeira arma de fogo de grosso calibre de que se tem notícia —
John aparteou, entusiasmado. — Ela foi inventada por James Puckle.

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— É verdade — aquiesceu o sr. Tecking. — Mas apesar de seu valor histórico, eu
jamais chamaria uma arma de "tesouro".
— Bem, sr. Tecking, eu também sou pacifista, por princípio — John declarou. — Mas
não posso negar que uma Puckle Gun causaria sensação, em nosso museu.
O homem meneou a cabeça, como se lamentasse o que tinha acabado de ouvir.
— Ah, os jovens de hoje! Tudo o que lhes interessa são pistolas, revólveres, cimitarras,
espadas... Aposto que não reconheceriam a Bocca de La Verità, mesmo que ela os
mordesse.
Patience sorriu. Sabia muito bem a que o sr. Tecking estava se referindo. E explicou a
John:
— Bocca de La Verità significa Boca da Verdade. Foi esculpida em pedra, na Itália, nos
tempos medievais. E lá permanece, até hoje.
— Eu sei, prima. Trata-se de uma figura famosa, que exibe uma boca aberta. Segundo
a lenda, se um mentiroso colocar a mão na abertura da Bocca, levará uma mordida. — E
John voltou-se para o sr. Tecking: — Como o senhor pode ver, não somos tão mal
informados assim...
— Certamente, meu rapaz. — O homem caminhou em direção à porta. — Bem, com
licença. Preciso dar continuidade ao trabalho.
— Claro — Patience assentiu. — Mas não se esqueça de selecionar a Puckle Gun e
incluí-la no catálogo de doações.
— Já fiz isso, senhorita.
— Ótimo. Bem, nós nos veremos no jantar, sr. Tecking.
— Sim. — Com um aceno, ele se despediu, deixando a porta aberta.
— Sabe de uma coisa, primo? — disse Patience, a sós com John. — Eu também não
gosto de armas. Acho uma invenção lamentável.
— Concordo plenamente. Mas já que elas foram inventadas, temos de estudá-las, não
é mesmo?
— Bem, essa é a sua especialidade. Mas prefiro as minhas: arte grega, egípcia e
ocultismo.
— Ocultismo? — repetiu uma voz grave e pausada, junto à porta. — É uma ciência
interessante.
John e Patience voltaram-se ao mesmo tempo. Ali estava Thomas, acompanhado por
um homem quase tão alto quanto ele.
— Quero apresentar-lhes meu amigo e sócio, Samuel Simmons, que acaba de chegar
de Londres — disse Thomas. E, voltando-se para Samuel: — Esta é a srta. Patience
Harrington... E este é seu primo, o sr. John Fenton.
Todos se cumprimentaram, num tom polido. Visivelmente impressionado com a beleza
e o carisma de Patience, Samuel disse:
— Por favor, me chame pelo primeiro nome, sem formalidades. Eu estava mesmo
ansioso para conhecê-la. Lady Caroline me contou sobre o belo trabalho que a senhorita tem
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desenvolvido, aqui no castelo.
— O mérito não é apenas meu, mas de toda a equipe — Patience afirmou, com
modéstia. — Inclusive de meu primo, John, que é especialista em armas antigas. Contamos
também com a preciosa colaboração do casal Tecking. Juntos, estamos avaliando e
catalogando o acervo deixado pelo sr. George Ashe, que foi generosamente doado ao
Museu Britânico, por lady Caroline e pelo visconde de Blackfield.
Samuel sorriu, mostrando-se ainda mais encantado:
— A senhorita não é apenas bela... É também dona de uma inteligência brilhante e de
inegável competência profissional.
— Obrigada. Mas, como já disse, eu não faria nada sem a ajuda preciosa da equipe
que me acompanha.
A conversa com Samuel Simmons fluía de maneira tranqüila e agradável. Enquanto
falava, Patience sentia que Thomas a fitava com intensidade. Era como se ele a invadisse,
como se com um simples olhar pudesse adivinhar-lhe os mais íntimos segredos. Foi por isso
que, num dado momento, ela resolveu pedir licença e se retirar. Não suportava aqueles olhos
azuis sobre si, por muito tempo... E isso vinha acontecendo com freqüência, nos últimos dias,
sobretudo durante as refeições.
Por que Thomas Ashe a olhava daquele modo?
Patience não fazia idéia. Só sabia que aquele homem mexia com seus nervos, e talvez
com algo mais... Embora ela relutasse em admitir.
Aproveitando uma pausa na conversa, Patience disse:
— Bem, preciso ir até meus aposentos, agora. Nos veremos no jantar?
— Sim — John respondeu.
— Não — disseram Thomas e Samuel, quase ao mesmo tempo.
E foi Samuel quem explicou:
— Temos assuntos importantes a tratar, sobre nosso trabalho. E quando começamos a
conversar sobre isso, nos esquecemos do tempo. Mas amanhã, sem falta, farei questão de
desfrutar da sua companhia, durante as refeições.
— Certamente, sr. Simmons — ela aquiesceu, num tom amável.
— Samuel — ele a corrigiu.
— Está bem... — Patience sorriu, antes de dizer: — Samuel.
— Ah, assim é melhor.
Com um aceno, Patience se afastou.
— Eu a acompanharei, prima! — John alcançou-a, no corredor. Em voz baixa, indagou:
— O que você achou do amigo do visconde?
— É uma pessoa educada — Patience respondeu, lacônica.
— E o que você acha de lady Caroline?
— Ela é muito prestativa e amável.

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— E quanto ao visconde?
— O que significa isso? — Patience reagiu, entre surpresa e aborrecida. — A que se
deve este interrogatório?
— Queria apenas saber sua opinião sobre eles — John justificou-se.
— Por quê?
— Porque às vezes acho que há algo estranho, neste lugar... e nas pessoas que vivem
aqui.
Patience fitou-o com espanto. Afinal, John sempre fora tão racional... Não haviam sido
poucas as ocasiões em que a acusara de ter uma imaginação excessivamente fértil. No
entanto, ele parecia bem apreensivo, naquele momento.
Segurando-lhe o braço e baixando a voz, Patience confidenciou:
— De fato, há qualquer coisa aqui que não dá para entender.
— E a questão é: nós queremos entender? Queremos desvendar o mistério que paira
neste lugar, seja lá o que for?
Ambos se olharam, em silêncio. E Patience por fim respondeu:
— Queremos, sim, primo. Mesmo porque não sei se temos outra opção.
— Sempre é possível ignorar o que se passa ao nosso redor.
— Desculpe, mas não é este o meu estilo. — John sorriu:
— Eu já sabia que você diria isso. — Depois, num tom mais sério, acrescentou: —
Conte comigo para o que for preciso.
— Você também, primo.
Haviam chegado ao ponto onde o corredor se bifurcava. E cada um seguiu por um lado,
rumo aos seus aposentos.

— E então? Você fez o levantamento que lhe pedi, sobre os hóspedes? — foi a primeira
coisa que Thomas perguntou a Samuel, depois que ambos deram por encerrado os assuntos
relativos ao projeto.
— Eu ia justamente lhe falar sobre isto. — Samuel entregou-lhe uma pasta, contendo
quatro envelopes. — Kinney me passou este material ontem. Então resolvi juntar com as
informações que consegui, nos últimos dias, e fazer um só dossiê.
— Ótimo. — Thomas abriu a pasta. Cada envelope trazia o nome de um membro da
equipe do Museu Britânico. — Deixe-me ver... John Fenton... Frederic Tecking e esposa...
Ah, aqui está: Patience Harrington.
— Eu já imaginava que você começaria por ela.
— É mesmo? — Thomas comentou, abrindo o envelope.
— Aquela moça mexeu com você, não foi?
— Em que sentido?
— Todos.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Se você puder me poupar das brincadeiras, agradeço muito — Thomas retrucou, os
olhos fixos na página impressa à sua frente.
No início do dossiê, o termo "ascendência francesa" chamou-lhe a atenção. Havia
também outros itens, como "mãe francesa", "visitas freqüentes à França", "correspondência
regular com um primo que reside em Paris"...
— A srta. Harrington tem uma forte ligação com a França, não? — Thomas comentou,
com ar intrigado, como se pensasse em voz alta.
— Sim — Samuel respondeu, sem dar muito interesse ao fato. — Mas esse fato,
isoladamente, não constitui um problema.
Thomas assumiu uma expressão de dúvida. Sabia que seu sócio ignorava que naquela
tarde um homem e uma mulher haviam conversado em francês, nos fundos da propriedade,
a respeito de um possível golpe ou sabotagem no projeto.
— O que me preocupa com relação à srta. Harrington é outra coisa — Samuel afirmou,
após alguns instantes.
— Sim? — Thomas indagou.
— Você está fascinado por ela.
— Nem tanto.
Indiferente ao aparte, Samuel prosseguiu:
— Mas este não é o momento adequado para se envolver sentimentalmente, meu
amigo... Ainda mais com uma jovem como Patience Harrington, que além de bonita é
inteligente e perspicaz.
— Você também não conseguiu se manter indiferente aos encantos dela — Thomas
argumentou, num tom ferino.
— Nenhum homem conseguiria. Afinal, a moça é, de fato, um encanto. Mas nem por
isso tenho intenção de me aproximar demasiado dela, ou tentar qualquer tipo de
aproximação.
— Nem eu — Thomas declarou, visivelmente incomodado com o rumo que a conversa
estava tomando.
Em tom categórico, Samuel sentenciou:
— Ainda que a srta. Harrington fosse tão inofensiva quanto diz lady Caroline, imagine o
que aconteceria se ela descobrisse o nosso segredo.
— Isso não vai acontecer.
— Assim espero, meu amigo — Samuel retrucou.
— Um momento... — Thomas fitou-o com apreensão, enquanto repetia suas palavras:
— Você disse que "ainda que a srta. Harrington fosse tão inofensiva quanto diz lady
Caroline"... Por quê? Você acha que ela pode representar algum tipo de perigo para nós?
Em vez de responder, Samuel citou um velho provérbio:
— Todo o cuidado é pouco, meu caro. — E acrescentou: — Imagine só se a srta.
Harrington ainda estiver por aqui, quando o monstro "nascer"... Ou melhor: quando funcionar,

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
pela primeira vez. Seria um escândalo, para dizer o mínimo.
Franzindo o cenho, Thomas insistiu:
— Você não respondeu a minha pergunta, amigo. Por isso, vou fazê-la de um modo
mais direto: você acha que Patience Harrington poderia ser... uma espiã?
— Qualquer um de seus hóspedes poderia... Por isso, digo e repito que devemos ficar
de olhos bem abertos... Sobretudo com relação a ela e a John Fenton.
— Há algum motivo em especial pelo qual devemos desconfiar deles?
— Aparentemente, nenhum. Mas, como já disse, é bom não facilitar. Ainda mais a esta
altura dos acontecimentos, quando o projeto está chegando à sua fase final.
— Tem razão. E quanto ao casal Tecking?
— Parece que ambos são tão competentes quanto excêntricos. Mas não creio que
sejam perigosos.
— Certo. E os serviçais recém-contratados? Você chegou a pesquisá-los?
— Kinney está cuidando dessa parte. — Samuel deu-lhe uma outra pasta. — Eis o que
ele conseguiu reunir, até agora. Aliás, Kinney me pediu para avisá-lo de que enviará novos
relatórios, na próxima semana.
— Perfeito. Vou ler tudo com calma. — Thomas voltou a se concentrar no dossiê sobre
Patience Harrington. Folheou-o, detendo-se vez por outra em alguma informação que lhe
parecia importante. Por fim, indagou: — Você já leu isto?
— Sim.
— Notou algo realmente suspeito, sobre a srta. Harrington?
— Para ser franco, não. Mas, em todo caso...
— Devemos nos manter alertas — Thomas completou. — Era isso que ia dizer, não é
mesmo?
— De certo modo, sim. — Samuel fez uma pausa. — Talvez eu esteja sendo
excessivamente cauteloso. Mas há muita coisa em jogo. E não podemos nos dar ao luxo de
cometer erros.
— Como sempre, você tem razão. — Thomas hesitou, antes de perguntar: — Este
relatório faz alguma referência à vida afetiva da srta. Harrington?
— Como assim?
— Ela se relaciona com alguém? Tem um namorado, um noivo, um amante?
— Lady Hillshine andou espalhando, nas altas-rodas de Londres, que Patience
Harrington é uma jovem bastante promíscua. Mas, afora essa informação, que pode até ser
falsa, não conseguimos mais nada a respeito. Ao que tudo indica, Patience é uma pessoa
muito franca... E por conta disso acaba cometendo gafes imperdoáveis.
— Essa parte eu sei... Ela mesma me contou. Quanto a lady Hillshine, tem todos os
motivos do mundo para levantar calúnias contra Patience.
— Por quê?
— Porque Patience a flagrou num momento íntimo, nos braços de lorde Seagram... E,
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
como você bem pode imaginar, lady Hillshine não a perdoou por isso. — Thomas agora
sorria, com ar divertido. — E houve também uma outra gafe... Esta, sim, foi hilária! A srta.
Harrington perguntou a lady Shickles, em público, se ela estava grávida.
— Minha nossa! Lady Shickles nem sequer é casada!
— Mas é rechonchuda o suficiente para ser confundida com uma gestante...
Ambos desataram a rir. Então, Samuel comentou:
— Você parece muito bem informado a respeito dessa moça... Acho até que esse
dossiê é desnecessário.
— Ora, não exagere. Aqui há muitas coisas que eu nem imaginava, a respeito dela.
— Como o quê, por exemplo?
— A ascendência francesa.
Ambos se olharam com apreensão. O momento político entre França e Inglaterra era
bem difícil. Napoleão estava numa posição vantajosa. Mas os ingleses esperavam,
sinceramente, que essa situação não perdurasse por muito tempo. Por tudo isso, havia uma
rivalidade crescente entre os dois povos.
— De qualquer forma, o fato de ter ascendência francesa não significa,
necessariamente, que Patience Harrington seja uma inimiga ou uma espiã — Thomas
opinou.
— No entanto, esse fato o está preocupando... Certo? — Thomas fez um gesto de
assentimento, antes de contar ao sócio sobre a conversa em francês que tinha ouvido
naquela tarde.
— Isso aumenta nosso grau de preocupação — disse Samuel, depois de ouvi-lo
atentamente. — Você acha que a mulher poderia ser Patience?
— Não — Thomas respondeu, sem hesitar. E explicou: — A voz da mulher era bem
mais aguda que a dela.
— Tem certeza?
— Absoluta.

— Precisa de mais alguma coisa, ma petite! — Tilly perguntou, num tom carinhoso,
ajudando Patience a se deitar.
— Não, querida, está tudo bem.
— Então, posso me retirar?
— Claro, ma chérie — Patience respondeu, com um sorriso. — Boa noite.
— Boa noite. — E Tilly saiu.
Patience remexeu-se sob as cobertas macias, buscando uma posição confortável. A
seu lado, estava um livro sobre a importância da Agora na vida social da Grécia antiga.
Agora, em grego, significava "praça pública". Era numa dessas praças que os filósofos se
reuniam, para conversar.
Patience abriu o livro, posicionando-o sobre o facho luminoso da vela que Tilly havia
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deixado sobre o criado-mudo.
Depois de ler algumas páginas, sentiu as pálpebras pesadas... Poucos minutos depois,
mergulhava num sono profundo.
Acordou com o som de estrondos, que ecoavam nas colinas próximas ao castelo.
Lançando um olhar à vela, que já estava quase pelo meio, calculou que cerca de uma hora
havia se passado.
Apoiando-se nos cotovelos, apurou os ouvidos. Os estrondos soavam a intervalos mais
ou menos regulares.
Afastando as cobertas, Patience saltou da cama e caminhou até a janela, abrindo-a de
par em par.
Era noite de lua crescente, mas havia muitas nuvens no céu. Uma brisa forte soprava,
vinda do bosque.
Patience observou o céu, atentamente. Se a brisa continuasse, acabaria afastando as
nuvens que encobriam a lua.
— Tomara... — ela murmurou, com os olhos fixos no sopé da colina, onde ficavam
aquelas estranhas construções baixas, que tanto a haviam intrigado.
Após alguns minutos, Patience conseguiu discernir sombras, junto à entrada de um dos
blocos. Logo duas luzes surgiram. Não eram luzes fixas. Patience concluiu que se tratava de
dois lampiões, carregados certamente por duas pessoas que acabavam de sair do bloco.
Quem seriam? E o que estariam fazendo lá, àquela hora?
O vento soprou mais forte, despenteando os longos cabelos de Patience, que ajeitou-os
atrás das orelhas e debruçou-se no peitoril, para ter uma visão mais clara.
Livre das nuvens que a encobriam, a lua pôde lançar sua claridade sobre a paisagem,
facilitando assim a visão de Patience que, àquela altura, mal podia controlar as batidas
aceleradas do coração.
Correndo até o armário, pegou um pequeno telescópio que havia encontrado, na
véspera, em meio aos objetos doados ao museu. Tratava-se apenas de um empréstimo,
claro. Depois de usá-lo, ela pretendia devolvê-lo. Mas tinha a impressão de que aquele
objeto lhe seria muito útil, em suas investigações.
O telescópio trazia gravadas as iniciais G e A. Era fácil deduzir que significavam
"George Ashe", Patience pensou, voltando à janela e levando-o ao olho.
Agora sim, com a claridade lunar, e aquela invenção magnífica, ela podia ver o que
estava acontecendo...
Não havia apenas dois homens, mas vários, junto à entrada de um dos blocos, na
encosta da colina. Dois deles seguravam lampiões, enquanto os outros empunhavam
grandes bastões de madeira.
Mais uma vez, Patience perguntou-se quem seriam aqueles homens. Era até provável
que se tratasse de caçadores, invadindo os domínios dos Blackfield à procura de animais
para abater. Mas, nesse caso, se esconderiam no bosque... E certamente não carregariam
lampiões, que poderiam denunciá-los.
Num dado momento, a luminosidade aumentou: deslocando-se levemente para a
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
esquerda, Patience viu que a porta do bloco havia sido aberta. Era de dentro que vinha
aquela luz tão forte.
Um novo estrondo soou, fazendo-a estremecer da cabeça aos pés.
Seus nervos estavam no limite. Talvez fosse mais sensato esquecer tudo o que tinha
visto até o momento e voltar a dormir. Mas, pensando bem, não vira nada de excepcional:
apenas alguns homens com lampiões e bastões...
Patience tomou fôlego, uma, duas, várias vezes. Precisava se acalmar, pois por nada
no mundo abandonaria a investigação. Fingir que nada de mais estava acontecendo nunca
fora o seu estilo.
Dali a pouco, outro grupo se aproximou, liderado por um homem alto e esguio. Patience
não tardou a reconhecê-lo: aquele homem era Thomas Ashe, Visconde de Blackfield.
Gesticulando, parecia dar ordens aos outros, que se juntavam ao grupo colocado junto à
entrada do bloco.
Patience mordeu o lábio inferior. Sentia que algo importante estava prestes a
acontecer...
De súbito, os homens se precipitaram para dentro do bloco. Pouco depois, saíram,
arrastando algo que Patience não conseguia discernir, pois os homens formavam um círculo
em volta da "coisa", que parecia pesada, atada por cordas ou correntes. De súbito, os
movimentos se tornavam mais bruscos, alguns homens perdiam o equilíbrio e, então,
erguiam o bastão e desferiam sucessivos golpes...
Em quê?, Patience se perguntou. Em quem? O que havia no centro daquele círculo?
O vento continuava a soprar, deslocando um novo agrupamento de nuvens densas, que
começavam a encobrir a lua. A paisagem tornava-se mais escura.
Um dos lampiões se apagou, assim como a luz que vinha do interior do bloco.
— Oh, não — Patience murmurou. — Justamente agora!
Mal havia acabado de falar, viu um longo braço se erguendo, no meio do círculo. O
movimento causou um terrível alvoroço, e então ela não pôde ver mais nada, pois as nuvens
haviam escondido totalmente a lua.
Patience ainda manteve o pequeno telescópio apontado para o local, por algum tempo.
Mas era inútil. Já não conseguia discernir o que se passava.
Com um profundo suspiro, fechou a janela e atirou-se na cama. Já não restava dúvida:
um trabalho sinistro acontecia, nos sombrios blocos incrustados na colina. O monstro,
mencionado pelo garoto do vilarejo, realmente existia... E sofria... E era cativo... E estava
tentando se libertar!

A manhã seguinte foi bastante atribulada para Patience, que se reuniu com sua equipe
para debater o andamento do trabalho.
Após o almoço, que ela preferiu saborear em seus próprios aposentos, para não se
encontrar com Thomas Ashe, saiu para dar um passeio pelos jardins do castelo. Precisava
mesmo ficar sozinha, para refletir melhor sobre os estranhos acontecimentos da noite
anterior.
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Mas o que, exatamente, havia ocorrido? O que ela vira de concreto? Alguns homens
armados de bastões e correntes, um alvoroço, um braço enorme surgindo apenas por um
instante, no centro de um círculo muito mal iluminado...
Isso não provava nada, embora Patience tivesse certeza de que o monstro existia. Mas
que tipo de monstro? De onde viera? Como fora parar ali? E por que era mantido prisioneiro?
Tenho uma infinidade de perguntas, ela pensou, com um suspiro, e nenhuma resposta.
De qualquer forma, era preciso tomar uma providência. Mas qual? E por onde
começar?
Como poderia contar a alguém que um dos homens mais ricos e respeitáveis da
Inglaterra, senhor de um castelo que datava dos tempos medievais, mantinha um monstro
em seus domínios? E que monstro era aquele? Será que ele o havia criado? Mas como? E
para que fim?
Quem acreditaria naquela história fantástica?
— Ninguém — Patience murmurou.
Ninguém lhe daria crédito. No entanto, sentia uma profunda necessidade de conversar
com alguém, de compartilhar o que tinha visto... Mas com quem?
Caroline?, Patience pensou, e logo concluiu que não. Afinal, Caroline tinha muita
consideração pelo sobrinho. Além do mais, parecia ser uma mulher prática, do tipo que
jamais acreditaria numa história de mistério ou terror, a menos que lhe dessem provas. E
isso era exatamente o que faltava a Patience, no momento.
Os criados do castelo também estavam fora de cogitação. Em primeiro lugar, porque
ela mal os conhecia. Tinha uma grande simpatia por Tilly, era verdade. Mas já havia
percebido o quanto Tilly era sensível e sugestionável. Se lhe contasse o que vira, só
conseguiria assustá-la, nada mais.
De súbito, Patience lembrou-se das duas criadas que vira, poucos dias atrás, no
corredor. Uma delas parecia apavorada. E chegara a ser ameaçada pela outra...
Não, Patience decidiu. Conversar com os serviçais de nada adiantaria. Nem com os
habitantes do vilarejo, que certamente sabiam da existência do monstro, mas não ousavam
denunciar o fato. Afinal, de algum modo dependiam de Thomas Ashe. E certamente não
tinham coragem de desafiá-lo.
Pobre gente, Patience pensou, penalizada. Agora podia entender a estranha atitude das
pessoas, na tarde em que fora ao vilarejo.
Quem mais restava, para conversar?
O sr. Tecking talvez a ouvisse com a devida consideração. Mas com certeza não daria
muita importância ao fato. Afinal, para ele, que o mundo explodisse ou não, pouco
importava... Desde que lhe permitissem continuar com seus trabalhos e projetos.
Já a sra. Tecking com certeza a acusaria de fantasiar demais as coisas, e aproveitaria o
ensejo para recomendar-lhe a leitura de mais um manual sobre boas maneiras.
Só havia sobrado John... E Patience considerou a possibilidade de desabafar com ele.
Afinal, na noite anterior, John mostrara-se inquieto com o clima de mistério que reinava no
castelo.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Um meio sorriso insinuou-se nos lábios de Patience. Era isso mesmo que faria:
procuraria John e compartilharia com ele suas apreensões.
Ao avistá-lo, junto ao jardim das rosas, experimentou um misto de alegria e alívio.
— John! — chamou-o, enquanto se aproximava. Ele a recebeu com um sorriso calmo e
carinhoso:
— Prima, que bom vê-la por aqui. Eu ia mesmo procurá-la, para conversar.
— Foi justamente isso que vim fazer — ela respondeu, sorrindo de volta.
— Pois é, tenho algo importante para lhe falar.
— Do que se trata? — Patience indagou, sentando-se ao lado dele, num banco de
pedra.
— Você deve se lembrar que ontem nós tivemos uma conversa tensa...
— Sobre as coisas estranhas que acontecem por aqui — Patience completou. — Claro
que me lembro.
— Pois é, prima... Quero lhe pedir desculpas.
— Como assim? — Patience indagou, sem entender.
— Bem, acho que fiquei muito sugestionado com o que você me contou, sobre aquele
garoto do vilarejo. Mas depois pensei melhor e cheguei à conclusão de que estamos nos
preocupando à toa.
Patience ergueu as sobrancelhas, numa expressão surpresa.
— Você acha?
— Sem dúvida. — Com um gesto largo, John apontou o castelo e seus arredores. —
Veja só onde estamos... No meio de um quadro vivo, onde a História pulsa em cada canto.
— Num tom veemente, repetiu: — Eu disse História, prima! E não contos de fadas ou de
mistério. Estamos lidando com peças genuínas, de valor inestimável. Somos antiquários,
somos estudiosos, levamos a sério nosso trabalho. Portanto, não podemos nos dar ao luxo
de soltar as rédeas da imaginação desse jeito... Seria até um desacato à posição que
ocupamos.
— Entendo seu raciocínio. Mas acontece que...
— Eu a deixei assustada, ontem à noite, não foi? — Ele acariciou-lhe os cabelos,
ajeitando-os atrás das orelhas. — Por isso peço que me perdoe. Justamente você, que é tão
sensível e crédula! Por favor, diga que não perdeu o sono por minha causa.
— Por sua causa não, John... De modo algum.
— E prometa que vai esquecer o que eu lhe disse, sobre o suposto clima tenso ou
estranho deste castelo. Não há nada de errado por aqui, prima. Tudo não passou de um
momento de fraqueza, pelo qual, mais uma vez, peço desculpas.
Patience abriu a boca para dizer que não, que John estava enganado, que suas
suspeitas tinham muito mais fundamento do que ele poderia imaginar... Mas calou-se.
John havia voltado a ser a pessoa racional e prática de sempre, ela concluiu, com
tristeza. De nada adiantaria contar-lhe o que tinha visto, durante a noite. Ele tomaria tudo

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como um sonho ruim, ou fruto de sua imaginação. E ainda se sentiria culpado, por tê-la
assustado daquela maneira, a ponto de fazê-la ver coisas que não existiam!
— Por favor, diga alguma coisa — John pediu, ansioso. Patience forçou um sorriso. E
ostentando uma calma que estava longe de possuir, afirmou:
— Fique tranqüilo, primo, está tudo bem.
— Mesmo?
— Sim. Aliás, eu também já esqueci aquela conversa de ontem.
— Foi um temor momentâneo, mas já passou.
— Claro. — Patience continuava a sorrir, mas seus olhos negros ainda traziam um
misto de medo e tristeza. — Bem, com licença, vou continuar meu passeio.
— Você disse que precisava falar comigo... Sobre o quê?
— Oh, nada de importante. Queria apenas lhe dar um beijo e saber se você estava
bem.
— Estou ótimo. — John sorriu, longe de imaginar o que se passava em seu íntimo. —
Fiquei muito preocupado com você, prima.
— Ora, que bobagem. — Com um aceno, Patience se afastou. Agora, estava mais
sozinha do que nunca.
Caminhando ao acaso, tentava arquitetar um plano de ação. Mas qualquer plano
conduzia a uma necessidade básica: provas. Portanto, era nisso que deveria se concentrar:
conseguir um meio incontestável de provar o que havia descoberto. Para isso, precisava
manter os ouvidos e os olhos atentos, além de confiar na sorte e na intuição.
Mergulhada nesses pensamentos, Patience mal se deu conta de que caminhava na
direção dos blocos incrustados na colina. Foi somente quando chegou perto do bosque que
percebeu onde se encontrava. Já ia voltar, quando ouviu passos e vozes numa trilha de
cascalho, que contornava o bosque. Correndo para não ser vista, escondeu-se atrás de uma
árvore. No momento seguinte, avistou Thomas, acompanhado por dois homens. Um deles
trazia as roupas rasgadas, como se tivesse sido agredido por uma fera. O outro usava um
avental, que um dia fora branco, mas agora estava tingido de marrom e vermelho.
Marrom cor de terra... E vermelho cor de sangue, Patience concluiu, apavorada. De
onde estava, podia ouvir com clareza a conversa dos três, que caminhavam em direção aos
blocos.
— Isso não podia ter acontecido, Henry — Thomas dizia, exasperado.
— Não podia, senhor... — O homem de avental parecia desolado. — Mas foi
exatamente assim.
— Impossível... Ele não pode ter agido sozinho. Alguém fez isso. Alguém o colocou
para funcionar. Precisamos descobrir quem foi e...
— Mas não temos a menor idéia... — disse o homem de roupas esfarrapadas.
— Cale-se! — o homem de avental ordenou. — Não interrompa o senhor visconde.
O outro obedeceu. E Thomas, lançando-lhe um olhar apreensivo, perguntou:

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— Vocês acham que foi um dos criados?
— Não sei — respondeu o homem em farrapos.
— O fato é que quase fomos mortos — o de avental sentenciou.
— Eu sei, Henry — disse Thomas, num tom mais ameno. — A situação está cada vez
mais difícil. Temos espiões à nossa volta...
— Mas nem por isso vamos interromper o projeto, não é mesmo? — o homem indagou,
ansioso.
— A esta altura, já não podemos voltar atrás — declarou Thomas.
— Ainda bem. Seria uma pena suspender tudo, depois de tanto trabalho...
— Bem, vamos tomar algumas providências. Dê ordens aos homens para redobrar a
vigilância. Diga-lhes que as portas devem ser mantidas fechadas, dia e noite.
— Pode deixar, senhor.
— Quanto a mim, avisarei alguns habitantes do vilarejo sobre a reunião de hoje.
— Será à meia-noite, senhor?
— Sim, como sempre.
— Temos de descobrir quem está nos espionando, senhor... Os três se afastavam, e
Patience já não podia ouvir o que diziam. Mas havia conseguido uma informação importante:
uma reunião, à meia-noite, à qual ela não poderia faltar. Seria sua chance de constatar, uma
vez mais, a existência do monstro... E de conseguir provas para denunciar Thomas Ashe às
autoridades.

Capítulo IV

A conversa fluía num tom leve e agradável, durante o jantar. Todos pareciam muito à
vontade, Patience pensou. Todos, menos ela, que não conseguia esquecer o que vira na
noite anterior, nem a estranha conversa de Thomas com aqueles dois homens, durante a
tarde.
Por algum motivo inexplicável, a sra. Tecking parecia com ótima disposição e bom
humor. Era a primeira vez que se mostrava assim, desde a chegada ao castelo. E o
responsável por essa súbita mudança, ao que tudo indicava, era Samuel Simmons.
Patience tinha de reconhecer que ele era tão educado quanto hábil. Sabia mostrar-se
atencioso e gentil, sabia como conduzir uma boa conversa. Assim, havia conquistado de
imediato a simpatia da sra. Tecking. Quanto ao sr. Tecking, parecia nem se dar conta da
evidente mudança de comportamento da esposa. Continuava, como sempre, encantado com
as antigüidades doadas ao museu. E quando falava delas, seus olhos reluziam de
entusiasmo.
Quanto a John, estava encantado com a descoberta da Puckle Gun e com a coleção de
cimitarras que fazia parte do lote de peças doadas.
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Caroline também demonstrava ótima disposição e conversava animadamente, dando
atenção a todos, cuidando para que nada faltasse à mesa.
Apenas Patience mantinha-se calada, circunspecta, sentindo a todo momento o olhar
intenso de Thomas sobre si.
— Digam alguma coisa, por favor — Samuel pediu, a certa altura, dirigindo-se a ambos.
— Vocês não estão participando da conversa... Acham-na aborrecida?
— De modo algum, meu amigo — Thomas respondeu. — Na verdade, estou achando
tudo muito interessante.
Havia uma ponta de ironia naquelas palavras. E isso não passou despercebido a
Patience.
— Sabem que até poucos dias atrás eu não me interessava por antigüidades? — ele
comentou, dirigindo-se a todos, em geral. — Mas depois que vi a srta. Harrington, o sr.
Fenton e o casal Tecking tão empenhados em catalogar a coleção de meu falecido tio,
confesso que fiquei curioso com relação ao assunto.
Agora ele parece estar sendo sincero, Patience concluiu.
Que homem instigante era Thomas Ashe... Num momento, parecia sarcástico, quase
grosseiro. Em outro, agia como um perfeito gentleman.
A que se deviam aquelas súbitas mudanças de humor?, ela se perguntou. A um caráter
excêntrico, certamente. Mas quem seria, no fundo, Thomas Ashe, o visconde de Blackfield?
Um homem inteligente, sem dúvida. Sensível e perspicaz, também. Mas e quanto a seu
coração? Que tipo de sentimentos o habitava?
Patience meneou a cabeça, como se assim pudesse afastar essas divagações.
Ninguém notou seu gesto, ninguém exceto Thomas, que, inclinando-se em sua direção,
perguntou:
— Está preocupada com alguma coisa, srta. Harrington?
— Não — ela respondeu, evitando-lhe os olhos. — Por que estaria?
— Não sei... Mas pareceu-me que algo a aborrecia.
— Impressão sua — Patience desconversou.
— A senhorita... sente-se bem acomodada? Seus aposentos têm o conforto necessário
a seu bem-estar?
— Claro — ela apressou-se a responder. — Por que pergunta, senhor?
— Porque noto que a senhorita está inquieta, de uns dias para cá. Creio, também, que
não tem dormido direito.
— Ora... — Patience forçou um sorriso. — De onde o senhor tirou essa idéia?
— É que ouvi alguns ruídos, vindos da direção de seus aposentos, na noite passada. E
achei que a senhorita estivesse com insônia.
Patience sentiu-se empalidecer.
Será que ele desconfia de alguma coisa ?, pensou, tentando sufocar uma onda de
nervosismo. Será que me ouviu abrir a janela, ontem à noite? Ou me viu com o telescópio?

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Pegando a taça de vinho, ela sorveu um longo gole, numa tentativa de se acalmar.
Pensando bem, talvez estivesse se afligindo à toa... Era óbvio que Thomas não a tinha
visto, na noite anterior. Como poderia, se estava nas construções em bloco, na encosta da
colina?
Pare de se atormentar, Patience Harrington, ela se ordenou, mentalmente. Desse jeito,
acabará se denunciando.
— Outra coisa interessante que notei é que a senhorita sabe falar francês muito bem —
disse Thomas.
Patience quase engasgou com o vinho. Sabia que, no momento, Inglaterra e França
atravessavam uma fase delicada, quase perigosa, em suas relações. Portanto, o comentário
de Thomas só podia ter um intuito provocativo.
Por que ele está agindo assim, comigo?, perguntou-se. Aonde pretende chegar, com
tudo isso? A um confronto? E por que todo mundo de repente resolveu se calar, nesta mesa?
De fato, ninguém mais conversava. Percebendo o clima tenso, as pessoas preferiam
ocupar-se dos deliciosos pratos, servidos sob a supervisão rígida de Caroline.
Patience lançou um olhar a John, pedindo seu apoio. Mas ele parecia tão entretido em
saborear uma torta de legumes que ela desistiu.
Compreendendo que estava sozinha, naquele princípio de confronto, respondeu:
— Na verdade, eu não falo francês com tanta fluência assim.
— Não? — Thomas ergueu as sobrancelhas, numa expressão de dúvida. — Pois eu
poderia jurar que a senhorita conversou com sua criada de quarto nesse idioma.
— Trocamos apenas algumas expressões comuns, como ma chérie, ma petite,
bonsoir... Nada além disso.
— E como foi que a senhorita aprendeu o francês?
— Minha mãe era francesa.
— Ela já é falecida?
— Sim.
— Então, ela era uma imigrante?
— Sim.
— E a senhorita é leal à França?
A pergunta era perigosa, com o claro objetivo de constrangê-la, Patience bem o sabia.
Depois de sorver mais um gole de vinho, respondeu:
— Serei franca e direta, visconde... Considero-me, em primeiro lugar, inglesa. Isso não
significa que eu não sinta simpatia pela cultura de outros países, inclusive a França...
Sobretudo pelo fato de minha mãe ter nascido lá.
— E qual sua visão sobre a França, neste exato momento? — Samuel interveio.
Touché!, Patience pensou. Até parece que este interrogatório foi planejado...
Como sempre fazia, respondeu com a sinceridade que tanto a caracterizava, e que às
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
vezes a colocava em maus lençóis.
— Acho que o povo francês está confuso. Aquela pobre gente buscava uma liderança,
um caminho para a reconstrução de sua economia...
— E então surgiu Napoleão Bonaparte — Samuel completou. — Qual é sua opinião
sobre ele, srta. Harrington?
— Bem, não posso dizer que concordo com os métodos aos quais Napoleão tem
recorrido, para fortalecer seu poder... Mas creio que compreendo os motivos pelos quais as
pessoas comuns o admiram. Afinal, ele tem carisma e é um grande estrategista. E os
cidadãos comuns da França, tal como nós, são apenas humanos. E, como seres humanos,
tudo o que desejam é uma vida melhor.
— E será que Napoleão vai lhes dar o que querem?
— Eles acreditam que sim.
— E quanto à senhorita?
— Não creio que ele vá conseguir.
Thomas e Samuel trocaram um olhar significativo. O interrogatório chegou ao fim,
Patience concluiu, satisfeita com o modo como havia se saído.
— Como estamos sendo grosseiros — disse Samuel, lançando um sorriso à sra.
Tecking.
— Por que diz isso, sr. Simmons? — ela indagou, sorrindo de volta.
— Porque eu e Thomas acabamos monopolizando a conversa.
— De modo algum... Aliás, foi muito interessante ouvir as opiniões inteligentes da srta.
Harrington sobre a atual situação da França.
Patience fitou-a, surpresa. Aquele era o primeiro elogio que a sra. Tecking lhe fazia,
desde o dia em que a conhecera.
Decididamente, Samuel Simmons estava produzindo milagres com relação à excêntrica
senhora.
A conversa voltou a fluir entre todos, no mesmo tom agradável do início da refeição. O
momento de tensão havia passado, mas Patience estava ansiosa para se recolher. E foi o
que fez, assim que surgiu a oportunidade. Recusando a sobremesa, pediu licença e dirigiu-
se a seus aposentos, onde Tilly a esperava.
A simpatia e o carinho da criada a ajudaram a se acalmar.
Mais tarde, depois que Tilly saiu, Patience sentou-se numa cadeira, para ler. Não queria
se deitar, pois estava tão cansada, que acabaria adormecendo e perdendo a hora da
reunião.
Por volta de onze horas da noite, ela vestiu roupas escuras, pegou um pequeno
lampião e saiu do quarto. Verificou o corredor, mergulhado em profundo silêncio. Mal havia
dado alguns passos, quando ouviu vozes. Voltando para o quarto, esperou por cerca de dez
minutos e tornou a sair.
Patience não imaginara que a reunião pudesse atrair tanta gente. No caminho para as
colinas, teve de se esconder por várias vezes, atrás de estátuas ou árvores, para não
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
levantar suspeitas.
Era verdade que a noite estava escura. A lua não conseguia lançar sua luminosidade
na terra, graças às nuvens carregadas que se acumulavam no céu. Era bem provável que
chovesse, durante a madrugada.
Já bem perto dos blocos incrustados na colina, Patience deparou-se com um grupo de
cinco pessoas, que vinham por uma trilha estreita, próxima ao bosque. Certamente eram
habitantes do vilarejo, que chegavam para participar da reunião.
Sem tempo para esconder-se, ela murmurou um cumprimento e caminhou em sentido
contrário ao dos blocos. As pessoas responderam, e ninguém lhe fez perguntas.
Foi com um sentimento de alívio que Patience chegou ao bosque. Saindo da trilha, para
não correr novamente o risco de encontrar alguém, dirigiu-se a uma elevação à direita, de
onde podia ter uma boa visão dos blocos cinzentos. Apagou o lampião e esperou.
O movimento em frente ao segundo bloco era intenso. Vários homens montavam
guarda junto à porta. Cada pessoa que chegava era revistada.
Foi com o coração aos saltos que Patience viu Thomas e Samuel se aproximando, pelo
mesmo caminho que ela viera.
Imediatamente, várias pessoas os cercaram. Algumas chegavam a fazer reverências
respeitosas a ambos, chamando-os de "mestres".
Depois de conversar com os guardas, Thomas entrou, seguido por Samuel e pelos
outros. A reunião ia começar. E até mesmo os guardas entraram.
Patience esperou alguns minutos. O silêncio reinava, quase absoluto, quebrado apenas
pelo som de um ou outro pássaro noturno. Saindo de seu esconderijo, ela aproximou-se dos
blocos. Seus olhos já haviam se acostumado à escuridão.
Contornando o bloco onde Thomas e os outros haviam entrado, encontrou uma janela,
de onde vinha uma fraca luminosidade. A janela era estreita e tinha uma grade. Patience
teve de se erguer na ponta dos pés, para alcançá-la. Aproximando o rosto da grade, espiou
lá dentro, mas só viu um cômodo vazio. Da sala contígua, vinha uma luminosidade mais
forte. Certamente era lá que estava acontecendo a reunião.
Se eu ao menos pudesse chegar mais perto!, ela pensou, ansiosa. Tateou a parede, à
procura de uma porta. Mas nada encontrou. E, assim, voltou à janela.
Lá de dentro, vinha um burburinho. Às vezes algumas vozes se elevavam. Em meio a
essas vozes, Patience distinguiu a de Thomas, grave e pausada. E também a de Samuel.
Apurando os ouvidos, conseguiu discernir algumas frases:
— Precisamos deixar tudo pronto, dentro do prazo...
— Sim, mas não podemos nos precipitar. Uma coisa é concluir o projeto. Outra, bem,
diferente, é soltá-lo em mãos erradas, o que poderia resultar em grandes catástrofes.
— Mas até quando você pretende manter esse projeto em segredo, Thomas?
— Até quando for necessário.
— Não se esqueça de que ganharemos um bom dinheiro, com ele.
— O dinheiro não é tudo, Samuel.

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— Para você, talvez, não... Mas, para mim, ele representa muito.
— De qualquer forma, insisto em que não podemos nos precipitar.
— Também não podemos demorar muito para apresentar nosso trabalho ao público,
Thomas.
— Você está com muita pressa, meu caro... No entanto, ainda nem concluímos o
projeto.
— Mas certamente o faremos, muito em breve. Por isso, é melhor pensar numa forma
de apresentá-lo...
— Antes de tudo, precisamos nos manter atentos, para não sofrermos novas
sabotagens.
— É verdade. Vamos reforçar a guarda...
— Já cuidei disso.
— E quantos guardas você deixou a postos, Henry?
— Neste momento, nenhum. Afinal, todos queriam participar da reunião.
— Mas, como, homem? Você enlouqueceu? Pois trate de mandar alguém para lá,
agora!
Patience recuou um passo, no momento exato em que um homem corpulento
atravessava a sala, em direção à entrada do bloco.
Com o coração acelerado, ela esperou para ver se ninguém mais ia sair. Só então
voltou à janela. Mais uma vez, tudo o que conseguiu distinguir foram frases esparsas:
— O governo aprovará o projeto, tenho certeza.
— Mas poderá haver discordâncias...
— Não acredito.
— É possível, sim...
— Nem todos são a favor da guerra.
— Pois eu sou.
— Eu, não. De modo algum!
— A questão não é essa. A questão é garantir uma arma eficaz de defesa.
— Protótipos...
— Perigosos...
— Destrutivos...
— Se nosso projeto cair em mãos erradas, o resultado será catastrófico...
— Exércitos inteiros serão dizimados...
— Temos algo absolutamente perigoso, em mãos...
— E o melhor seria jamais usá-lo...
— Só usaremos se for realmente necessário...
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Em algum momento, teremos de fazê-lo...
Fazer o quê? De que modo?, Patience pensou. E o que, exatamente, aqueles homens
teriam em mãos? Monstros? Monstros assassinos, com alto poder de destruição?
O burburinho se tornou mais intenso. Agora, várias pessoas falavam ao mesmo tempo,
e Patience já não conseguia distinguir nada. Ainda assim, permaneceu junto à janela até o
fim da reunião. Quando as pessoas começaram a sair, ela voltou para o bosque e ali ficou,
por um bom tempo, até se sentir segura o suficiente para voltar ao castelo.
Caminhando em direção a seu escritório particular, Thomas refletia sobre um assunto
que o vinha incomodando, nos últimos dias. Um assunto que, inclusive, roubava-lhe parte da
concentração que deveria dedicar ao trabalho. Aliás, esse assunto o estava perturbando
naquele exato momento.
Fazia pouco mais de uma hora que a reunião havia terminado. E em vez de meditar
sobre os problemas que tinham sido debatidos, no encontro, ele só conseguia pensar em...
Patience Harrington!
Um suspiro brotou do peito de Thomas. Não adiantava negar: aquela mulher o
perturbava de um modo muito mais intenso do que ele gostaria de admitir. E ele precisava ao
menos descobrir se ela era, de fato, uma espiã. Isso faria toda a diferença...
Ao sair da reunião, Samuel o chamara de lado para dizer que, depois da conversa
durante o jantar, sentia-se bastante inclinado a acreditar que Patience poderia ser uma espiã.
E isso o perturbara bastante.
Era verdade que Patience não parecia, nem de longe, uma espiã. Mas, afinal, espiões
não andavam por aí, exibindo placas de identificação...
Thomas lembrou-se de Kevin McSweeney, que caíra justamente na lábia de uma
adorável espiã... E isso fora a sua ruína. Adulando-o com palavras doces, hipnotizando-o
com altas doses de sensualidade, a mulher conseguira transformá-lo num mero fantoche, em
suas mãos.
Patience não era desse tipo. Não costumava abusar de seus encantos, embora tivesse
muitos. Era, também, muito espontânea e ingênua, apesar das furiosas ladies Hillshine e
Shickles terem espalhado comentários maldosos a seu respeito.
Havia uma outra qualidade em Patience Harrington que ele prezava por demais: a
franqueza, a coragem de dizer o que pensava, mesmo que isso resultasse em
constrangimento ou embaraço.
No entanto, quando pensava em Patience, não era nas qualidades que sua mente se
concentrava, e sim no rosto de traços delicados, no corpo escultural, de curvas generosas.
Thomas era um homem solitário. Não gostava de se envolver com mulheres do vilarejo,
nem com criadas. Preferia viajar com freqüência a Londres, onde se envolvia em
relacionamentos superficiais, com mulheres tão solitárias quanto ele, mas que também não
exigiam nada em troca. Pois Thomas tinha horror a compromissos.
Com a mente ocupada por essas reflexões, ele enfim chegou a seu escritório. Estava
abrindo a porta quando notou um facho de luz sob a porta da biblioteca, que ficava bem em
frente. Intrigado, abriu-a e deparou com uma cena inesperada: segurando um lampião,
Patience observava os livros numa estante.

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— O que está fazendo aqui, srta. Harrington? — perguntou, aproximando-se.
— Eu? — ela balbuciou, assustada. — Bem, eu... não conseguia dormir e... resolvi
procurar um livro...
Thomas fitou-a com desconfiança:
— Que tipo de livro?
— Ora... qualquer um... Há tantos, por aqui!
— Pensei tê-la ouvido dizer que estava lendo algo sobre a Grécia Antiga.
— De fato, estou. — Forçando um sorriso, ela justificou-se: — Mas em geral leio dois ou
três, ao mesmo tempo. E como esta biblioteca tem obras interessantes, resolvi dar uma
olhada.
— Entendo... E encontrou alguma coisa?
— Ainda não. Afinal, acabei de chegar.
Patience deu um passo em direção à porta. Ele barrou-lhe a passagem, enquanto
perguntava:
— Aonde vai, srta. Harrington?
— Voltar aos meus aposentos.
— Desistiu de procurar?
— Sim... Mesmo porque não quero perturbá-lo.
— A senhorita não está me perturbando. Ou melhor, está, sim, mas de um modo bem
diferente.
— Como? — Ela o fitava, ofegante.
Por que Patience estava agindo daquele modo?, Thomas perguntou-se. Teria algo a
esconder?
— Por favor, deixe-me ir — ela pediu, num tom que era quase uma súplica.
Em vez de lhe dar passagem, Thomas aproximou-se ainda mais.
Os olhos de ambos se encontraram, por um longo momento.
— Deixe-me... — Patience repetiu, num fio de voz.
— A senhorita não deveria andar assim, pelo castelo, a esta hora avançada da noite.
— Por que não?
— Porque as pessoas podem interpretá-la mal. Podem pensar que está bisbilhotando...
Ou indo se encontrar com alguém.
— Ora... — Ela riu, nervosamente, enquanto meneava a cabeça, numa veemente
negação.
Com esse gesto, uma mecha de cabelos castanhos soltou-se de seu penteado. Thomas
colocou-a de volta no lugar, enquanto se aproximava um pouco mais.
— Patience Harrington... — ele disse, baixinho. — A senhorita está me provocando,
sabia?
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Provocando? — ela repetiu, engolindo em seco. — Não é esta a minha intenção,
visconde.
— Eu não disse que era...
Os rostos de ambos estavam, agora, muito próximos. E, de repente, a curta distância
que os separava desapareceu. Patience sentiu que o chão lhe fugia sob os pés. O tempo
perdeu o significado, a partir do momento em que Thomas tocou-lhe os lábios com os seus,
num contato morno e suave. Patience gemeu baixinho, e ainda tentou se desvencilhar. Como
resposta, ele enlaçou-a pela cintura, atraindo-a para mais perto ainda. Dessa vez, Patience
não tentou recuar. Thomas explorava-lhe a boca, num movimento sôfrego que lhe causava
um indescritível prazer.
Mas o que estava acontecendo? Seria um sonho, ou ela estava realmente permitindo
que Thomas Ashe, visconde de Blackfield a beijasse? Justamente ele, que fazia parte de um
projeto misterioso e sinistro? Justamente ele, que a havia questionado cruelmente, algumas
horas atrás, durante o jantar?
Patience sentia-se dividida. Seu lado racional a avisava que estava cometendo uma
imprudência perigosa, mas seu lado romântico e emocional estava adorando cada segundo
daquela hora mágica.
Os beijos se sucediam, numa intensidade crescente.
Quando por fim os lábios se afastaram, Patience recuou até a porta, que ficara
entreaberta. Ofegante, levou alguns momentos para se recuperar e indagou:
— O que o senhor estava fazendo?
— Você — ele corrigiu, com os olhos fixos nos dela. -— Chame-me apenas de "você",
Patience Harrington. Quanto à sua pergunta, parece-me que a resposta é óbvia, não? Eu
estava fazendo algo que desejei, desde o primeiro momento em que a vi. — Com um sorriso,
acrescentou: — Você tem o dom da palavra... Sabe argumentar e conversar muito bem. Mas
acho que sua boca pode fazer outras coisas, além de ser uma prova viva de sua inteligência
brilhante... Beijar, por exemplo.
Patience nada respondeu. Tinha a nítida impressão de que, de algum modo, Thomas
estava se divertindo à sua custa. Além disso, sentia-se tão confusa quanto excitada e, nesse
estado de espírito, não tinha a menor condição de discutir qualquer assunto. Assim, ela
resolveu se retirar:
— Boa noite, sr. Ashe.
— Já lhe pedi que pare com esse tratamento formal.
Com um gesto de assentimento, ela replicou:
— Então, boa noite, Thomas. — E voltou-se para sair.
— Só mais uma coisa...
— Sim?
— Você não estava à procura de um bom livro para ler?
— Esqueça... Vou retomar a leitura sobre a Grécia Antiga.
— Espere... Há algo aqui que certamente vai lhe interessar. — Thomas dirigiu-se a uma

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
das estantes. Correndo os dedos pelas lombadas dos livros, escolheu um e sorriu: — Aqui
está.
Patience pegou o volume e leu o título:
— Espiões e Ladrões Famosos?
— Achei que você gostaria.
Agora, já não restava dúvidas, Patience concluiu, indignada. Thomas Ashe realmente
estava se divertindo, e muito. Mais que isso: ao sugerir aquele livro, estava fazendo uma
insinuação grave, da qual ela nem sequer poderia se defender. Mas nem por isso deixou de
demonstrar sua irritação:
— Boa noite, visconde de Blackfield. Espero que seus pesadelos se tornem realidade.
E afastou-se, a passos largos, enquanto o riso de Thomas soava, cristalino, às suas
costas.

Patience serviu-se de ovos mexidos e torradas e sentou-se ao lado de John, o único


que já se encontrava na sala de refeições.
— Bom dia, prima — ele cumprimentou-a, num tom amável.
Patience mal respondeu. Havia passado uma noite péssima. Só conseguira conciliar o
sono de madrugada. E então fora assaltada por terríveis pesadelos. Ao despertar, pouco
antes do amanhecer, passara um bom tempo pensando nos beijos trocados com Thomas.
Com isso, perdera o sono de vez.
Fitando-a com atenção, John comentou:
— Acho que você deveria voltar para a cama, logo depois do desjejum.
— Deveria? — Patience repetiu, contendo um bocejo.
— Sim. Você está com uma aparência péssima.
— Obrigada, John — ela retrucou, irônica. — Suas palavras gentis são um ótimo
estímulo para começar o dia.
— Podem não ser gentis, mas certamente são sinceras. Eu não disse isso para ofendê-
la.
— Oh, eu sei, querido.
— Acho apenas que você precisa descansar.
— Não posso. Tenho de trabalhar na coleção de papiros do acervo de George Ashe.
— Isso pode esperar, não?
— De jeito nenhum. Temos um cronograma de trabalho a seguir, lembra-se? A partir de
amanhã, começaremos a embalar o primeiro lote de peças.
— Quando virão buscá-lo?
— Daqui a três dias. Papai está cuidando dessa parte. E você sabe que ele não
costuma falhar.
— Bem, se não conseguirmos deixar o primeiro lote pronto, poderemos escrever a tio
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Arthur, pedindo-lhe para adiar o envio da carruagem. O que você acha?
— Nem pense nisso, primo — Patience respondeu, com determinação. — Quero
concluir esse trabalho a tempo, se possível, antes do prazo. — Com um suspiro,
acrescentou: — Assim poderemos ir embora desta casa de loucos.
John afagou-lhe a mão, num gesto de solidariedade e carinho.
— Posso imaginar como você está se sentindo, depois daquele verdadeiro
interrogatório a que o visconde e o sr. Simmons a submeteram. Foi uma situação
constrangedora, não?
— "Constrangedora" me parece uma palavra suave demais, para definir como me senti.
— Eu queria dizer alguma coisa em sua defesa, prima... Só que nada me ocorria.
— Eu percebi. Na verdade, você me pareceu até um pouco alheio à conversa.
Fitando-a com gravidade, John aconselhou:
— Talvez você devesse evitar o visconde, o máximo possível.
Patience sorriu, com amargura. O que diria John, se soubesse que na noite anterior
Thomas Ashe a havia beijado? Certamente julgaria que ela havia enlouquecido...
— Você sempre foi muito brilhante, para argumentar — John comentou.
— Que nada, primo. Sou a pessoa mais trapalhona deste mundo no contato social. E
você sabe disso muito bem.
— Você pode ser inábil com relação à etiqueta, e também no trato com as fofoqueiras
da nossa alta sociedade. Mas tem uma classe invejável, quando se trata de uma discussão
lógica ou filosófica. — Após uma pausa, John prosseguiu: — Nunca vi você reagir com tanta
categoria, diante de um questionamento perigoso, como o que o visconde e Samuel lhe
fizeram, ontem. Mas senti que isso a abalou bastante, não é mesmo?
— Sim. — Com sua franqueza habitual, Patience resumiu: — Estou desgastada,
apreensiva e confusa.
— Que você esteja cansada, eu compreendo. Mas apreensiva e confusa... Por quê?
— Oh, deixe estar... Você não acreditaria.
— Não me diga que ainda está pensando naquelas histórias fantásticas das quais
falamos, na outra noite.
— Não falamos de nada fantástico. Apenas comentamos sobre o clima tenso que paira
neste castelo.
— Isso já é pretexto suficiente para você soltar sua imaginação, não é mesmo?
Baixando a voz, Patience segredou:
— John, por favor, tente compreender... Há coisas estranhas acontecendo por aqui.
Ele fitou-a com uma expressão complacente, como se ela fosse uma criança. Depois,
lançou um olhar inquieto ao redor, como se temesse ser ouvido por mais alguém. Por fim,
disse:
— Escute, prima, nós não viemos a este castelo para estudar seus mistérios, e sim para
fazer um trabalho muito importante. E nisso que devemos nos concentrar.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Mas não podemos ignorar...
— Oh, podemos, sim — ele a interrompeu. — E vou lhe dizer uma coisa, prima: se você
continuar com essa história, escreverei a tio Arthur pedindo que venha buscá-la.
— Você não faria isso! — Patience exclamou, chocada.
— Faria, sim. É para o seu próprio bem — John sentenciou, olhando novamente ao
redor e, depois, em direção à porta. — Agora, vamos esquecer esse assunto, sim? Alguém
pode chegar e...
— Para quem acredita que estou imaginando coisas, você parece tenso demais, John.
— De modo algum. Apenas, me preocupo com você.
— Em que sentido?
— Tenho medo que você se envolva num novo confronto com o visconde.
— Por quê?
— Ora, porque você é uma pessoa muito sensível, que se ofende com facilidade. E ele
parece ter uma grande capacidade de magoar.
— Ao menos neste ponto nós concordamos, primo — ela sentenciou, voltando a comer.
Mas já havia perdido totalmente o apetite. Além disso, estava intrigada com o
comportamento de John. Ele parecia nervoso, esquivo, inquieto. Era como se temesse
alguma coisa... Ou alguém.
E aí estava mais uma questão, para a qual ela não tinha resposta.

Três dias mais tarde, o primeiro lote de peças foi enviado ao Museu Britânico. Um
comboio de carruagens chegou ao castelo, enviado por Arthur Harrington. Jeremy, um antigo
funcionário do museu, com quem Patience simpatizava muito, dirigia o grupo de oito homens,
responsáveis pelo carregamento das peças.
O trabalho foi exaustivo, mas todos se dedicaram ao máximo, para que as peças
fossem transportadas em segurança.
A tarde chegava ao fim, quando o comboio preparou-se para partir.
— Obrigada por tudo, Jeremy — Patience despediu-se afetuosamente do velho
funcionário. — Diga a papai que estou com saudade e que em breve nos veremos.
— Eu direi, sim. Acho que já lhe falei que ele mandou um grande abraço.
— Já. — Patience sorriu. — Bem, faça uma boa viagem. — Apertou a mão de Jeremy,
num gesto cordial. Em seguida cumprimentou cada um dos homens que o acompanhavam.
O comboio partiu e o grupo de trabalho se dispersou. Patience viu John afastar-se na
companhia de Caroline. Conversando amavelmente, ambos entraram no castelo. O sr.
Tecking retirou-se para seus aposentos, enquanto a esposa tagarelava com um criado do
castelo, que parecia atônito.
Sobre o que ela estaria falando, àquele pobre homem?, Patience perguntou-se. Estaria
lhe dando conselhos sobre etiqueta e boas maneiras?
Bem, isso não é problema meu, Patience pensou, caminhando em direção ao jardim
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
das rosas.
Sentou-se num banco de pedra e ali ficou, por algum tempo, observando o sol que se
punha atrás das montanhas. O cansaço do dia e da noite mal dormida começava a ceder
lugar a uma leve sensação de paz. Fechando os olhos por um instante, Patience aspirou o ar
perfumado que vinha do bosque.
De súbito, uma forte explosão soou, interrompendo brutalmente aquele momento
especial. Patience quase caiu do banco, por causa do susto. Com os olhos arregalados
numa expressão de horror, voltou-se na direção da imensa nuvem de fumaça que subia ao
céu.
Era fácil constatar que a explosão acontecera num dos blocos da encosta da colina, o
mesmo onde, na noite anterior, ocorrera aquela estranha reunião.
Patience retirou-se rapidamente para seus aposentos. Pegando o telescópio, abriu a
janela e observou os blocos, com a respiração acelerada.
Homens movimentavam-se de um lado a outro, no local.
E lá estava Thomas, gesticulando muito, dirigindo as operações.
— Quem terá feito isso, Henry? — Thomas perguntou, transtornado.
— Não sei ao certo, senhor. Mas pode ter sido um dos antiquários... Ou um daqueles
homens do Museu Britânico, que chegaram hoje cedo.
— Talvez haja mais de uma pessoa envolvida nessa sabotagem — disse outro homem,
aproximando-se, coberto de fuligem da cabeça aos pés.
— Você se machucou, Richard? — Thomas indagou.
— Não, senhor, estou apenas sujo de fuligem. Felizmente, eu estava do lado de fora,
na hora da explosão, junto com todos os outros trabalhadores. Se estivesse lá dentro... — O
homem não completou a frase. E nem seria preciso, pois a conclusão era óbvia: tanto ele
quanto os colegas poderiam ter morrido.
— Seja lá quem for nosso espião, teve o cuidado de atacar depois do turno de trabalho
— Thomas concluiu.
— Foi alguém do Museu Britânico — Henry afirmou, categórico.
— Como pode estar tão certo disso? — Thomas indagou. — Você tem alguma prova?
— Não, mas concordo com o sr. Samuel Simmons... Fazer-se passar por alguém de
uma instituição tão respeitável quanto o Museu Britânico é um álibi perfeito.
Thomas engoliu em seco. Estava tão furioso quanto intrigado. A possibilidade de
Patience ser uma espiã o tirava do sério. Algo nele se recusava a acreditar nisso. E aí estava
outro fator que lhe causava um misto de raiva e confusão: seus sentimentos por Patience o
estavam levando a pôr em risco um projeto no qual trabalhava havia muitos anos. Onde
estava sua racionalidade? Por que as emoções falavam mais alto, em seu íntimo, do que a
sensatez?
De qualquer forma, agora não era o momento de refletir sobre isso. Algo muito grave
havia acontecido, e aqueles homens esperavam por suas ordens. Voltando-se para Richard,
disse:

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— Eu lhe pedi que colocasse alguém para vigiar os antiquários.
— E foi exatamente isso o que fiz, senhor.
— Pois bem, onde estavam eles, nos momentos que antecederam a explosão?
— Todos passaram o dia envolvidos com o carregamento do primeiro lote de peças
para Londres, senhor. Nenhum deles teve tempo de vir até aqui.
— E quanto aos homens que vieram para carregar as peças? — Henry indagou.
— Também os mantive sob discreta vigilância, desde o momento em que chegaram à
propriedade. — E Richard afirmou, com forte convicção: — Não pode ter sido nenhuma
dessas pessoas.
— Mas então, quem? — perguntou Henry, num tom ríspido.
— É o que precisamos descobrir. — Thomas suspirou, com ar de profundo cansaço.
— Bem, o fato de os suspeitos não terem vindo até aqui não os torna inocentes —
Henry argumentou. — Afinal, eles podem ter mandado alguém para fazer o trabalho sujo e...
— Meus homens teriam visto — Richard aparteou. — Não, Henry, decididamente
nenhum estranho apareceu por aqui.
— E, neste momento, onde estão nossos suspeitos? — indagou Henry.
— Não os chame assim — Thomas o advertiu. — Não temos prova alguma contra
aquela gente. Portanto, não podemos considerar ninguém como suspeito...
— Nem como inocente.
— De fato — Thomas concordou, pensativo.
— Respondendo a sua pergunta — disse Richard —, neste momento o sr. John Fenton
está em companhia de lady Caroline, na sala de estar do andar térreo do castelo. O casal
Tecking está descansando.
— E quanto à srta. Harrington? — Thomas perguntou, mal disfarçando a ansiedade.
— Encontra-se em seu quarto. — Richard voltou-se na direção do castelo e apontou a
ala onde ficavam os aposentos de Patience. — Daqui, fica difícil de ver. Mas se os senhores
prestarem atenção, poderão distinguir um vulto na janela. Trata-se da srta. Harrington, com
um telescópio, nos observando.
— Então é ela! — Henry exclamou, com uma euforia incomum. — É ela a espiã!
— Eu não diria isso — Richard ponderou.
— Ora, se ela está nos observando...
— É porque está curiosa para saber o que aconteceu por aqui — Richard completou. —
Isso não a transforma, necessariamente, numa espiã.
— Mas por que ela estaria tão interessada?
— As mulheres são curiosas — Richard sentenciou e voltou-se para Thomas. — O
senhor não concorda comigo, visconde?
— Sem dúvida. Afinal, a reação da srta. Harrington é perfeitamente normal.
— Vocês estão brincando com fogo...
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Os três voltaram-se e viram Samuel, que se aproximava.
— Se querem saber minha opinião, concordo plenamente com Henry — ele disse, num
tom mais grave. — Para mim, a srta. Harrington não é tão ingênua quanto quer parecer.
— Ah, enfim alguém me deu ouvidos! — Henry exclamou.
— Não temos provas contra a srta. Harrington — Richard insistiu.
— Mas é bom ficarmos de olhos bem abertos — Samuel replicou.
— A propósito, por onde você andou? — quis saber Thomas. — Fui procurá-lo em seus
aposentos, mas não o encontrei.
— Resolvi fazer uma busca, nos arredores da propriedade, para ver se encontrava o
crápula que provocou a sabotagem.
— Não era preciso ir tão longe, meu amigo. Pelo visto, o traidor deve estar entre nós.
Por falar nisso, você já recebeu os relatórios sobre a criadagem?
— Chegaram hoje cedo.
— Ótimo. Bem, vamos verificar o tamanho do estrago.
E Thomas dirigiu-se à entrada do bloco onde ocorrera a explosão, seguido pelos três
homens.

No jantar daquela noite, Thomas deu uma breve explicação a respeito do ocorrido:
— Tivemos um princípio de incêndio num depósito, próximo à cabana do nosso guarda-
caça. Como ele costuma armazenar pólvora lá, houve a explosão. Mas tudo já está sob
controle.
— Espero que ele não tenha sofrido nada — disse a sra. Tecking.
— Oh, não, senhora — Samuel apressou-se a explicar. — Não havia ninguém, no
depósito, no momento do acidente.
— Ah, que bom! — ela exclamou, com exagerada euforia. — Puxa, estamos todos
aliviados por saber disso, não é mesmo?
A concordância foi geral, exceto pelo sr. Tecking que, como sempre, parecia alheio a
tudo o que acontecia ao redor. Observando-o atentamente, Patience teve a impressão de
que ele estava aborrecido.
Por que seria?, ela se perguntou. Mas claro que não tinha a menor idéia sobre o motivo.
E, pensando bem, não era de sua conta.

Mais três dias se passaram, em meio a um trabalho intenso. No quarto dia, os


carregadores, chefiados por Jeremy, voltaram ao castelo. Chegaram muito cedo. Patience,
assim como os outros membros do grupo, empenharam-se para que as peças, já
devidamente embaladas, fossem carregadas com o cuidado merecido.
Após o almoço, Patience retirou-se para o jardim das rosas para ler uma carta de seu
pai, que Jeremy havia trazido.
Não pretendia demorar-se muito ali. Apenas o tempo necessário para inteirar-se das
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
notícias de Londres.
Um sorriso insinuou-se em seus lábios, durante a leitura.
— Logo estaremos juntos novamente, papai — ela murmurou, ao terminar.
Então, uma sensação inesperada a invadiu: de repente, sentia-se dividida. Por um lado,
estava ansiosa para deixar o Castelo Blackfield. Por outro, já podia prever a falta que sentiria
de Thomas e seus olhos cor de safira...
— Com licença — a voz de Thomas soou às suas costas.
Que coincidência!, Patience pensou, voltando-se para fitá-lo. Eu estava justamente
pensando em Thomas... E ele me aparece!
— Estou interrompendo alguma coisa? — ele indagou, num tom gentil.
Como esse homem consegue mudar tanto?, Patience se perguntou, tentando não
demonstrar o misto de ansiedade e alegria que a presença de Thomas lhe causava. Num
dado momento, parece o sarcasmo em pessoa... Em outro, chega a ser rude... Mas, agora, é
a própria personificação do encanto e do cavalheirismo... Quem será, no fundo, o misterioso
visconde de Blackfield? Será outra pessoa, ou uma fusão de todas essas facetas?
— Não, de modo algum — ela respondeu, por fim. E explicou: — Eu me afastei um
pouco do trabalho, para ler a carta que meu pai me enviou.
— Espero que ele tenha mandado boas notícias.
— Oh, sim, está tudo bem, por lá. Sem grandes novidades, exceto, é claro, a doação do
patrimônio de seu tio ao Museu Britânico.
Thomas assentiu com um sorriso que parecia tornar a tarde ainda mais luminosa. Então
anunciou:
— Vim convidá-la para um passeio.
Patience reagiu, surpresa. Esperava tudo do visconde de Blackfield, menos um convite
daquele tipo.
— Quando? — ela perguntou.
— Agora.
— Não posso... Preciso supervisionar o embarque das peças.
— Seu primo John não poderia cuidar disso?
— Talvez, mas...
— Por favor — ele a interrompeu, fitando-a com tamanha intensidade, que Patience não
resistiu.
— Está bem... Vou conversar com John.
— Ótimo. Eu a esperarei na porta dos fundos do castelo daqui a... digamos... vinte
minutos. Pode ser?
— Claro. Bem, com licença. — Patience afastou-se, tomada por confusas emoções.
Mal podia acreditar que havia acabado de concordar em interromper o trabalho para
passear com o visconde de Blackfield! Onde estava seu senso profissional? Onde estavam
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
seu orgulho e sensatez? Já não tivera provas suficientes sobre o quanto aquele homem
poderia ser perigoso? Não sabia nem mesmo que tipo de experiência ele realizava, nas
estranhas construções cravadas na encosta da colina próxima ao castelo. Além do mais, ele
tinha o poder de roubar-lhe a vontade própria, como, aliás, acabara de fazer.
E, ainda assim, ela havia aceitado o convite para um passeio. Decididamente, Patience
Harrington, você não tem um pingo de juízo, concluiu, irritada consigo mesma. Em
contrapartida, seu coração estava feliz... Absurdamente feliz com a perspectiva de passar o
resto da tarde na companhia do homem mais belo, inteligente e charmoso que já conhecera.
Foi nesse estado de espírito que ela abordou John, que vistoriava o embarque de
algumas tapeçarias, já devidamente embaladas:
— Primo, será que você poderia assumir a direção do trabalho, por hoje?
— Claro — ele aquiesceu, com um sorriso. —Vá descansar tranqüila, que eu cuidarei
de tudo por aqui.
Patience sabia que poderia dar meia-volta e afastar-se, deixando que John pensasse
que ela pretendia se retirar para seus aposentos, mas, como sempre, optou pela franqueza:
— Muitíssimo obrigada, John. Mas eu não vou descansar.
— Não?
— Vou fazer um passeio na...
— É mesmo? — ele a interrompeu. — Pois trate de tomar cuidado para não se meter
em encrencas. — Baixando a voz, recomendou: — E nem pense em se aproximar daquelas
construções, na colina. Já houve uma explosão, outro dia, e nada nos garante que a coisa
não possa se repetir.
Ignorando o conselho, Patience concluiu o que havia começado a dizer:
— Vou fazer um passeio na companhia de Thomas Ashe.
— O quê? — John reagiu, com espanto.
— É isso mesmo, primo. Ele me convidou e eu aceitei.
— Por quê?
Patience hesitou. Não sabia ao certo como responder àquela pergunta, e muito menos
como explicar ao primo o que sentia pelo visconde. Afinal, nem ela mesma saberia definir, ao
certo, o misto de alegria, susto e curiosidade que Thomas lhe despertava.
Por isso, disse, simplesmente:
— Se você quer uma resposta franca, aí vai: não sei, John. Não sei por que aceitei o
convite. Mas o fato é que combinei de encontrar Thomas, daqui a vinte minutos, na porta dos
fundos do castelo.
John meneou a cabeça:
— Sabe de uma coisa? Jamais entenderei as mulheres... Nem você, nem a sra.
Tecking.
— Ei, espere um momento, primo... Sei que posso estar cometendo uma insensatez.
Mas você não acha que é um exagero me comparar à sra. Tecking?

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— O fato é que vocês duas resolveram passear na mesma hora... E bem no meio do
trabalho!
— Como? — Patience espantou-se.
John repetiu o que havia dito e acrescentou, com uma ponta de humor:
— Bem, mas você não deve ficar tão surpresa, prima. Vai ver que o visconde de
Blackfield convidou a sra. Tecking para passear, também.
— Duvido. — E como se pensasse em voz alta, Patience acrescentou: — Para onde
será que ela foi?
— Não faço a menor idéia.
— Talvez tenha resolvido fazer uma caminhada com o marido.
— Que nada. O pobre sr. Tecking veio me perguntar por ela, agora há pouco. Parecia
bastante preocupado.
A conversa foi interrompida por Jeremy que, pedindo licença, entregou a Patience
alguns formulários, para serem lidos e assinados.
— Meu primo cuidará disso — ela afirmou. — Terei de me ausentar, agora. Qualquer
problema, fale com John, que está me substituindo, está bem?
— Está bem, srta. Harrington — Jeremy assentiu, num tom respeitoso. — Devo dar
algum recado a seu pai?
— Sim, por favor, diga que adorei a carta e que lhe mando muitos beijos e abraços.
— Pode deixar, senhorita.
Depois de despedir-se de John e Jeremy, Patience dirigiu-se aos fundos do castelo.
Enquanto caminhava, seu coração parecia saltar no peito, como um pássaro na expectativa
do primeiro vôo.
Thomas a esperava, junto à grande porta dos fundos, com uma cesta de piquenique,
varas de pescar e uma valise de metal, contendo equipamento de pescaria.
— Está pronta? —- ele perguntou, com um sorriso encantador.
— Sim — ela respondeu, esquecendo-se momentaneamente de todos os problemas
que a haviam atormentado nos últimos dias. E tudo por culpa daqueles olhos cor de safira,
que tão bem sabiam hipnotizá-la.
Thomas conduziu-a por um caminho de cascalho, que descia em direção ao vale. Por
um bom tempo, ambos andaram em silêncio. O caminho conduzia a uma trilha estreita,
ladeada de árvores. E foi por ali que seguiram.
Onde iria dar aquela trilha?, Patience se perguntou, a certa altura. E não pôde conter
uma exclamação de admiração, ao sair numa clareira, onde um rio de águas cristalinas
cortava a paisagem.
— Que lugar magnífico!
— Eu imaginei que você iria gostar.
— Adoro estar em contato com a natureza.
— Então, seja bem-vinda ao meu território particular... E para cá que venho, quando
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
preciso refletir sobre algum problema, ou simplesmente quando quero descansar das
atribulações do dia-a-dia.
Thomas colocou a cesta de piquenique sobre uma pedra, abriu a valise de metal e
preparou as varas de pesca.
— Você gosta de pescar?
— Como posso saber, se nunca pesquei?
— Então, para tudo há uma primeira vez.
E Thomas iniciou-a nos rudimentos básicos da pescaria: como colocar a isca, como
lançar a linha e esperar pela primeira fisgada, como tirar o peixe da água.
Patience prestava atenção a todas as instruções e tentava segui-las corretamente. Era
adorável estar ali, na companhia de um homem fascinante, desfrutando da natureza e
divertindo-se, numa cena simples, íntima...
— Pesquei um! — ela exclamou, quando sentiu a primeira fisgada, puxando
rapidamente a linha.
— Isso foi sorte de principiante — Thomas sentenciou, com um largo sorriso, ajudando-
a a tirar o peixe do anzol.
O tempo passou rápido, sem que Patience percebesse. Quando deu por si, a tarde
começava a cair.
Thomas acendeu uma pequena fogueira. Em seguida improvisou uma grelha com
pedras e alguns espetos de ferro, para assar os peixes. Enquanto isso, Patience abriu a
cesta de piquenique, estendeu a toalha e dispôs os alimentos que Thomas havia trazido:
vinho, pães e doces.
Pouco depois, ambos saboreavam a refeição, num clima de agradável intimidade.
Haviam conversado muito, naquela tarde, trocando opiniões, idéias, descobrindo
afinidades... E, assim, tinham se conhecido um pouco melhor.
Thomas fizera várias perguntas a respeito dos membros do grupo do Museu Britânico,
inclusive sobre Arthur Harrington. Patience respondera a tudo com boa vontade. Mas a
impressão que tivera, logo ao conhecer Thomas, permanecia: por algum motivo, ele parecia
ter aversão pelos antiquários em geral. Por quê? Era o que ela pretendia descobrir. E, de
preferência, logo. Por isso, ousou perguntar:
— Estou enganada, ou você tem uma profunda antipatia pelos estudiosos de
antigüidades?
Ele fitou-a no fundo dos olhos, antes de responder:
— Não, Patience Harrington... Você não está enganada.
— Nesse caso, você se importaria de me dizer o motivo dessa aversão que, me perdoe
a franqueza, parece infundada?
Thomas contraiu o rosto, ao retrucar:
— Agora você errou longe, srta. Harrington... Tenho razões de sobra para me sentir
assim, com relação a esse tipo de gente.

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— E você poderia me dizer quais são essas razões? — Thomas ficou em silêncio por
um longo momento. Por fim, disse:
— Meu tio, George Ashe, era obcecado por antigüidades. Colocava essa obsessão
acima de todos os valores éticos e até mesmo afetivos. Todos os seus amigos também eram
assim.
— Imagino que George tenha exagerado um pouco, em sua paixão por esse assunto —
Patience ponderou. — Mas você há de convir que ele conseguiu reunir um acervo
impressionante, de valor incalculável.
— E a um custo igualmente incalculável — Thomas argumentou. — Pois sua obsessão
o levou a cometer ou permitir ações imperdoáveis.
— Como assim?
O semblante de Thomas tornou-se ainda mais sombrio. De súbito, ele perguntou:
— O que faz seu trabalho tão interessante, afinal? — Um tanto surpresa, Patience
respondeu:
— Bem, vou tentar resumir: as descobertas, a História, o mistério que envolve cada
objeto, dentro de cada projeto... Enfim, a dinâmica. E quanto ao seu trabalho?
— A que, exatamente, você está se referindo? Às minhas funções como senhor do
Castelo Blackfield, ou à minha carreira profissional?
— Eu nem sequer sei qual é sua profissão.
— Sou engenheiro.
— Ah, parabéns. Nesse caso, imagino que as reformas que você efetuou, no castelo...
— Eu mesmo desenhei os projetos. — Após uma pausa, ele acrescentou: — Na
verdade, me considero mais um inventor do que propriamente um engenheiro.
Patience fez um gesto de assentimento. Imediatamente, lembrou-se das construções
baixas, na colina. Seria lá que Thomas Ashe experimentava seus inventos? E que tipos de
inventos seriam?
Ela bem que se sentia tentada a perguntar. Mas antes que reunisse coragem para
tanto, ele afirmou:
— Os motivos pelos quais você ama sua profissão são exatamente os meus. A
propósito, você os resumiu muito bem. Há apenas uma diferença...
— Sim?
— Não creio que a Engenharia seja capaz de criar tantos seres obcecados, como o
estudo das antigüidades.
Patience fitou-o no fundo dos olhos, antes de dizer:
— Ainda não compreendi sua aversão aos antiquários. Somos apenas pessoas
comuns, ansiosas para fazer um bom trabalho.
— Tão ansiosas, que podem chegar a matar.
As palavras de Thomas causaram em Patience o efeito de um duro golpe.
— Matar? — ela repetiu, chocada. — Essa palavra é cruel demais para se aplicar aos
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
antiquários ou a qualquer outro profissional. Baseado em que, exatamente, você faz esse
tipo de acusação?
— No que aconteceu com minha irmã — ele respondeu, com uma expressão tão
amargurada que Patience não teve coragem de argumentar.
Apenas esperou que ele continuasse, e foi o que aconteceu, depois de alguns
instantes:
— Meu pai era um homem frio e distante. Vivia apenas para os seus negócios e mal
falava com a família. Tornou-se ainda mais fechado depois que minha mãe morreu, ao dar à
luz minha irmãzinha, Letty. Nessa época, eu já era adolescente. Fui estudar em Eton, mas
vinha para casa sempre que podia, nos fins de semana e feriados prolongados. Não para ver
meu pai, nem meu tio, mas sim para estar com Letty, que havia se tornado o centro do meu
mundo, a única pessoa a quem eu amava, realmente.
Patience estava penalizada. Num impulso, tomou-lhe a mão, para confortá-lo. Thomas
fitou-a com um misto de carinho e gratidão.
— Faz tanto tempo que ninguém me olha assim...
— Assim... como? — ela indagou, docemente.
— Dessa forma pura... como Letty fazia.
— E o que aconteceu com ela?
— Num fim de semana em que não pude vir, Letty ficou sozinha com a babá e tio
George, no castelo. Meu pai estava viajando e a criadagem estava de folga. A babá
comentou com meu tio sobre uns utensílios antigos que um velho morador do vilarejo queria
vender. Então tio George a mandou até o vilarejo, buscar os objetos, para que ele os
avaliasse. — Thomas fez uma pausa. — A babá foi e deixou Letty, que tinha apenas quatro
anos, aos cuidados do meu tio. E como a única coisa que lhe importava, no mundo, era sua
coleção de antigüidades, ele ordenou a Letty que ficasse na sala azul, até que a babá
voltasse. — Um profundo suspiro brotou do peito de Thomas. — A sala azul era o local onde
meu tio guardava sua coleção de armas e armaduras.
Patience arregalou os olhos, numa expressão de horror.
— Oh, não me diga que sua irmãzinha se feriu acidentalmente com alguma velha
escopeta, ou algo assim.
Thomas respondeu com um gesto negativo de cabeça.
— Não foi com uma arma de fogo.
— Então... o que...
— Letty deve ter ficado curiosa com as várias armaduras que havia na sala...
Particularmente com aquela armadura medieval, que parece em perfeito estado.
— A mesma que está no corredor que dá acesso aos meus aposentos?
— Sim.
Um calafrio percorreu a espinha de Patience, enquanto ela perguntava, num fio de voz:
— Mas o que houve, afinal?

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— Letty deve ter subido no pedestal e mexido na armadura. O fato é que a armadura
caiu em cima dela, ferindo-a gravemente. Dois dias depois, ela estava morta.
— Oh, não! — Patience exclamou, angustiada. — Que acidente lastimável! Eu... sinto
muito.
— Obrigado. — Thomas engoliu em seco. — O que mais me deixou desesperado, na
época, é que o acidente poderia ter sido evitado. Se meu tio não tivesse deixado Letty
sozinha, naquela sala... Se ao menos tivesse ido vê-la! Mas não... Ele simplesmente se
entregou à contemplação de seus tesouros e se esqueceu do tempo. Foi somente quando a
babá retornou do vilarejo, horas depois, e perguntou por Letty, que ele se lembrou de que
tinha uma sobrinha.
— Imagino que se George tivesse ido vê-la antes, poderia tê-la socorrido.
— Foi exatamente isso que eu disse a ele, quando soube. Mas era tarde demais. Nada
nos traria Letty de volta.
A tarde caía. Os pássaros se retiravam para os ninhos. O rio de águas límpidas
continuava a correr, sobre as pedras. No céu, as primeiras estrelas surgiam.
— Agora entendo seu ressentimento contra os antiquários em geral — disse Patience,
após um longo momento, ainda mantendo a mão de Thomas entre as suas. — Mas,
compreenda, nem todos somos tão obcecados quanto seu tio. Além disso, tenho certeza de
que ele não agiu de má-fé, com relação à pequena Letty.
Thomas sorriu, com tristeza:
— Sabe de uma coisa? Muita gente já me disse exatamente essas palavras... Mas
ninguém o fez com tanto carinho e tanta compreensão, como você.
Patience sorriu de volta, um tanto lisonjeada:
— Ora...
Thomas aproximou o rosto, e ela sentiu o coração disparar. Não tinha a menor dúvida
sobre o que ia acontecer, no próximo instante... E não havia nada, no mundo, que desejasse
mais do que aquele beijo.

Capítulo V

Como amava aquele homem! Essa certeza se tornava cada vez mais forte, no íntimo de
Patience, enquanto os beijos se sucediam. Com movimentos ágeis, mas sem pressa,
Thomas começou a desabotoar-lhe o vestido.
Patience gemeu de prazer quando ele acariciou-lhe as costas nuas, deixando que as
mãos deslizassem pelos ombros e pelas costas, até o início dos quadris.
Estavam ambos sobre a toalha usada para o piquenique. A garrafa de vinho, vazia, bem
como os utensílios com restos de bolo e pão, que já haviam sido guardados na cesta.
Thomas livrou-se do paletó e da camisa, exibindo o tórax musculoso, coberto por uma
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penugem negra. Com gestos trêmulos, em razão da intensa emoção que a dominava,
Patience tocou o peito daquele homem, desenhando o contorno dos mamilos. Depois
repousou a cabeça sobre o coração, ouvindo as batidas aceleradas... Ou seria o seu próprio
coração que pulsava assim? Ela não saberia dizer.
Nunca, em toda a sua vida, estivera tão próxima de um homem. Era sua primeira vez.
Mas isso não a assustava, ao contrário: de algum modo, sabia que sempre esperara por
aquele momento, pois sempre acreditara que o destino a levaria para os braços do homem
eleito por seu coração, ainda que os caminhos parecessem tortuosos.
— Você é linda — Thomas murmurou, no momento em que descia o vestido de
Patience até a cintura, para contemplar-lhe os seios pequenos e firmes.
Fazendo-a deitar-se, Thomas debruçou-se sobre ela e beijou-lhe o pescoço, o colo,
depois deteve-se a acariciar cada mamilo com a ponta da língua, provocando uma emoção
que ela jamais imaginara existir.
A sensualidade, adormecida ao longo dos anos, despertava a cada carícia, a cada
palavra sussurrada, a cada gesto. Por um instante, Patience quis contar a Thomas que ela
ainda não conhecia o amor, mas calou-se, pensando que, em algum momento, ele
perceberia.
As carícias se intensificavam, com uma ousadia permitida apenas pela paixão. As
roupas espalhavam-se ao redor da toalha.
Ao ver-se totalmente despida, Patience chegou a sentir-se envergonhada. E como se
lhe adivinhasse os pensamentos, Thomas abraçou-a calorosamente, protegendo-a,
agasalhando-a com seu corpo. Mantendo-a junto a si, acariciou-lhe as pernas e o interior das
coxas, buscando os recantos mais íntimos... E Patience abriu-se como uma flor ao sol, para
receber aquela infinidade de toques desconhecidos, para ingressar num mundo diferente,
que só os verdadeiros amantes conheciam.
— Você... é virgem! — Thomas constatou, baixinho.
— É minha primeira vez — ela respondeu, num sussurro, com um olhar luminoso.
— Ora! — ele exclamou, com os lábios bem junto aos seus. — Por que não me disse?
— Achei que você saberia, quando fosse o momento.
— Virgem... — ele repetiu, erguendo o rosto, com ar pensativo.
Patience não saberia dizer por que, mas sentia que naquele momento mágico estava
correndo o sério risco de se perder...
— Eu... disse algo de errado? — indagou, confusa.
Como se não a ouvisse, ele seguiu adiante em sua linha de pensamento:
— Para ser franco, eu não a tomei por uma jovem promíscua, como dizem lady
Hillshine e outras fofoqueiras das altas-rodas londrinas. Mas, sinceramente, não esperava
que você fosse...
— Virgem?
— Sim.
— Por que não?

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— Porque achei que você fosse mais... experiente.
— Pois bem, eu não sou. O que há de mau nisso?
— Nada, é claro. Mas as pessoas falam...
— Bem, as pessoas também falam que você é um homem excêntrico e misterioso...
Que promove experiências terríveis e assustadoras, naquelas estranhas construções na
encosta da colina... Que você até cria um monstro, ou algo parecido, naqueles locais
secretos. E nem por isso eu acreditei.
Enquanto falava, Patience via quebrar-se, como um cristal, seu momento de amor.
Agora, sentia-se realmente envergonhada por estar despida diante de um homem que,
pouco antes, parecia sua alma gêmea, mas que de repente se transformara num perfeito
estranho.
Com gestos nervosos, ela começou a se vestir.
— Sou mesmo uma grande idiota. Mas acho que mereço isso...
Desconcertado, Thomas indagou:
— Como assim?
— Eu mereço, por ser tão idiota e ingênua. Mas sabe de uma coisa, visconde de
Blackfield? Talvez eu deva parar de acreditar em contos de fadas e romances perfeitos.
Também, já não era sem tempo!
— Patience... — Ele tentou abraçá-la.
— Não me toque! — ela ordenou, num tom que não admitia réplicas.
— Eu não quis ofendê-la.
— Oh, claro que não — ela retrucou, com amarga ironia.
— Mas você conseguiu ser mais inábil do que eu, com as palavras. Mencionar as
calúnias de lady Hillshine e outras idiotas de Londres, num momento como este, foi uma
atitude, no mínimo, infeliz.
— Desculpe. Acho que pensei em voz alta.
Com os olhos rasos de lágrimas, ela afirmou:
— Não tenho nada a desculpar, Thomas. Mas sabe o que mais me dói? É o fato de
você ter considerado aquelas calúnias como prováveis verdades. E eu, que imaginava que
você me conhecesse, ao menos um pouquinho. E que confiasse em mim.
— Eu confio, querida. Apenas fiquei surpreso pelo fato de você...
— Ser virgem? Pelo fato de eu não conhecer o amor? E de ter escolhido você como
meu primeiro homem?
— Sim — ele confessou, com um suspiro. — Eu realmente não esperava...
— Sabe de uma coisa? — ela o interrompeu, num tom áspero. — Foi melhor assim. —
E já inteiramente vestida, começou a se afastar.
— Aonde você vai?
Patience não respondeu. Apenas continuou a caminhar, a passos largos. A noite caía.
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A lua, quase cheia, espalhava sua luminosidade pela paisagem e pela trilha estreita.
— Espere, Patience! — Thomas pediu, visivelmente aflito. — Você pode se perder!
— Mais perdida do que já me sinto, é impossível! — ela murmurou, apressando o
passo, com o rosto banhado pelas lágrimas.
Felizmente Patience tinha um bom senso de direção. Além disso, o caminho não era
muito complicado. Depois da trilha entre as árvores, havia a estrada de cascalho.
Logo ao sair da trilha para a estrada, Patience avistou o castelo que se erguia,
poderoso, destacando-se na paisagem. A estrada era em aclive e Patience caminhava,
ofegante, não por cansaço, mas por estar nervosa e terrivelmente angustiada.
Seu sonho de amor, que prometia ser dourado, desfizera-se num instante, como que
por um passe de mágica.
A estrada conduzia à ala sul da propriedade. E era exatamente por ali que Patience
queria entrar no castelo, para não ser notada. Afinal, não queria que ninguém a visse
naquele estado.
Felizmente, àquela hora, todos estariam se preparando para o jantar. Certamente
notariam sua ausência, Patience pensou. Mas poderia pedir a Tilly que avisasse Caroline e
os outros de que fora se deitar mais cedo. Assim, todos ficariam tranqüilos, inclusive John,
que se preocupava tanto com seu bem-estar.
Patience estava quase chegando ao castelo quando, ao passar pelo jardim das rosas,
percebeu um movimento e ouviu o som de uma conversa. Apurando os ouvidos, aproximou-
se da orla do bosque, e distinguiu vozes falando em francês. Parou atrás de um arbusto e
pôs-se a escutar com atenção. Momentos depois, percebeu que se tratava de três pessoas,
dois homens e uma mulher.
— Temos de agir rápido — disse um dos homens.
— Sejam cautelosos. E tomem cuidado para que ninguém se machuque —
recomendou a mulher.
— Que vamos tomar cuidado, não há dúvida. Mas se alguém se machucar... paciência!
— disse a segunda voz masculina.
Patience cobriu a boca com a mão, sobressaltada. Havia três pessoas conspirando...
Mas contra o quê? Ou contra quem?
— Será hoje à noite, mesmo?
— Sim. Não podemos adiar mais.
— O visconde ficará furioso.
— Mais que isso: ficará assustado, mas também ansioso para concluir o projeto.
— E então poderemos roubar o monstro e vendê-lo ao governo.
— É essa a idéia.
— Sempre foi, desde o início.
— Não. A princípio, eu ainda pensava em dividir tudo com o visconde. Mas depois me
aborreci. Ele vive dizendo que tem medo de que a coisa caia em mãos erradas. Ora, de

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minha parte não me importo nem um pouco com quem vai comprar o projeto. O importante é
o dinheiro.
As vozes se tornaram mais nítidas, enquanto passos soaram, na orla do bosque. Era
evidente que as três pessoas estavam se aproximando, Patience concluiu, afastando-se o
mais rápido que pôde, e sem olhar para trás.
Enquanto caminhava, pensava que duas daquelas vozes lhe soavam familiares. De
quem seriam?
Tal como havia planejado, Patience entrou no castelo pelos fundos. Mas, para chegar à
escada que conduzia a seus aposentos, tinha de passar perto da sala de jantar.
Com um pouco de sorte, não serei notada, ela disse para si, procurando um ângulo, no
saguão, de onde não poderia ser vista pelas pessoas que estariam lá, jantando.
E foi exatamente isso que fez. Mas ao olhar de relance para a sala de jantar, notou que
apenas John, o sr. Tecking e Caroline estavam sentados à mesa.
Era óbvio que Thomas não havia chegado. Mas onde estariam Samuel e a sra.
Tecking?, Patience pensou.
Bem, ela não tinha tempo para se preocupar com isso naquele momento. Só desejava
chegar a seu quarto para tentar ordenar seu mundo que, de um momento para o outro, havia
virado de cabeça para baixo.
Patience subiu a escada de dois em dois degraus e chegou ao corredor. Logo avistou a
armadura, próxima à curva que levava a seus aposentos.
Seria a mesma que teria matado a pequena Letty?, perguntou-se, com um calafrio.
Com um brusco meneio de cabeça, tentou afastar esse pensamento incômodo.
Falta pouco, agora, pensou, ao dobrar a curva. Então percebeu uma presença atrás de
si... Mas não teve tempo de cogitar sobre quem seria, pois mãos fortes a agarraram,
subjugando-a.
Patience quis gritar, mas alguém aproximou um lenço molhado de seu nariz. Ela sentiu
um cheiro forte de alguma substância química, provavelmente clorofórmio. Depois adveio
uma sensação de náusea e, de súbito, tudo se apagou.
— O que você pensa que está fazendo? — disse uma voz feminina, que Patience ouvia
vagamente, por conta do estado de torpor em que se encontrava.
— Bem, eu preciso silenciá-la — respondeu uma voz masculina.
— Você não pode matá-la!
— Mas, querida, se ela falar nós estaremos perdidos.
— Não existe mais nós. Para mim, chega! Você não gosta de mim. Apenas me seduziu
para atingir seus objetivos. Como fui tola ao acreditar em suas promessas, Henry!
— Cale a boca! E não ouse repetir meu nome. Você quer me arruinar?
— Tudo o que desejo é me livrar dessa rede onde me meti, graças à minha paixão por
você.
— Querida, este não é o lugar nem o momento adequado para discutirmos nossa

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
relação.
— Já basta, Henry. De hoje em diante, não existe mais nada entre nós.
— Olhe, vou fazer um favor a nós dois, está bem? Vou desconsiderar o que você acaba
de dizer. Conversaremos quando você estiver mais calma. A propósito, por que não vai
descansar um pouco?
— Porque pretendo evitar que você cometa um crime.
— Querida, é preciso... A moça pode ter nos ouvido.
— Nada prova isso.
— Ela praticamente passou por nós, hoje, lembra-se? Estávamos no bosque e...
— Ela não nos viu.
— Mas pode ter nos reconhecido quando a abordamos, no corredor...
— Francamente, Henry! Ela nem teve tempo de perceber o que estava acontecendo.
Como poderia nos reconhecer? A menos que tivesse um olho na nuca!
— Mesmo assim, acho prudente tomarmos essa providência.
— Nem pense nisso, Henry.
— Pare de falar meu nome!
— Então, desista dessa idéia absurda.
— E o que faremos com a moça?
— Nada. Deixe-a aí. Alguém a encontrará.
— Ainda acho que deveríamos silenciá-la.
— Pois eu acho que nem deveríamos ter cometido a bobagem de raptá-la.
— Você sabe muito bem por que fizemos isso... Essa moça pode ter ouvido nossa
conversa. Aliás, quem nos garante que não estava a caminho dos aposentos do visconde,
para nos delatar?
— Bem, nesse estado em que se encontra, ela não poderá contar nada a ninguém.
Agora, é melhor nos apressarmos. O tempo está correndo e temos de pôr mãos à obra.
— Você tem certeza de que não é melhor...
— Absoluta. Deixemos a moça aqui mesmo.
— Então, vou trancar bem a porta.
— Sim, faça isso, Henry.
— Se você repetir meu nome mais uma vez, vou me esquecer de que sou um
cavalheiro.
— Você está me ameaçando?
— Interprete como quiser, querida.
— Não me chame de "querida". Você não gosta de mim. Apenas me usou...
— Ora, não diga asneiras.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Patience queria se mover, queria abrir os olhos e dizer alguma coisa. Mas não
conseguiu. Se ao menos pudesse saber onde estava e quem eram aquelas pessoas...
De uma coisa ela tinha certeza: a mulher impedira o homem de matá-la. Teria de
agradecer-lhe... E faria isso, em algum outro momento. Pois, agora, só sentia uma intensa
vontade de dormir.

Thomas estava arrasado. Chegara tão perto da felicidade e a jogara pela janela... E
tudo porque se dera ao luxo de pensar em voz alta.
Agira como um tolo e o preço ali estava: em vez do amor, só conseguira a indignação e
o ressentimento de Patience.
Onde estaria ela, naquele momento? Sofrendo, com toda a certeza. E, talvez, odiando-
o.
E ele bem que merecia.
Caminhando de um lado a outro de seu quarto, Thomas recriminava-se duramente.
Passara tantos anos duvidando do amor que não soubera como agir, no momento em que
ele estivera a seu alcance.
A lua cheia já ia alta, no céu. Dentro em pouco seria madrugada, e ele não sentia a
menor vontade de dormir ou de fazer qualquer outra coisa. Estava desgastado, triste,
inquieto.
Debruçando-se na janela, começou a rememorar cada momento do passeio que fizera
com Patience, até o rio, naquela tarde. E teria ficado assim durante horas, se uma forte
explosão não interrompesse bruscamente suas lembranças.
— Minha nossa! — Thomas exclamou, contemplando com uma expressão de horror o
incêndio que se iniciava num dos blocos da encosta da colina.
Vestindo o casaco às pressas, precipitou-se para fora do quarto. Precisava saber, e
rápido, o que havia acontecido. Tudo indicava que seria um segundo atentado. Ou, então,
um acidente provocado por algum trabalhador desatento. Fosse o que fosse, a situação era
grave.
Correndo o mais rápido que podia, Thomas chegou ao local. Henry já estava lá, e
Samuel também.
— Puxa, vocês são muito eficientes... Conseguiram chegar antes de mim!
— Viemos correndo — disse Samuel. — Mas fique tranqüilo, que desta vez o estrago
não foi muito grande.
— Alguém tentou incendiar a sala de munições — Henry revelou. — Era hora da troca
de turno dos guardas e a pessoa aproveitou esse intervalo para entrar sem ser vista. Mas,
seja lá quem for, não teve tempo de agir, pois um dos guardas esqueceu o chapéu na sala e
voltou para pegá-lo. Ao ouvir o barulho da porta se abrindo, o malfeitor saltou pela janela.
— Deixou pegadas?
— Sim, mas será impossível identificá-lo através disso. — E Henry explicou: — Ele
usava sapatos do mesmo tipo que os meus e dos outros trabalhadores.

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Entendo. — Thomas assentiu, com um suspiro. — Bem, vamos vistoriar a sala.
— Meus homens já estão lá dentro, cuidando disso.
— Nesse caso, vou me juntar a eles. Você vem, Samuel?
— Claro.
Thomas passou quase uma hora verificando a sala de munições, para ver se
encontrava alguma pista... Em vão. A pessoa que havia entrado ali tomara o cuidado de não
deixar nenhum sinal que a denunciasse.
Por fim, ele se despediu de todos e voltou ao castelo, na companhia de Samuel. Sentia-
se péssimo. Decididamente, estava atravessando uma fase difícil.
— Quer tomar um copo de vinho, antes de se recolher? — Samuel sugeriu. — Assim
poderemos falar sobre o projeto.
— Vamos deixar isso para amanhã, sim? Hoje estou exausto, além de furioso com esse
espião que, afinal, parece invisível! Ninguém consegue pegá-lo, nem mesmo Henry, que é
tão competente.
— É melhor esquecermos o espião e tentarmos apressar a conclusão do projeto,
Thomas. Quanto mais rápido fizermos isso, mais cedo poderemos vendê-lo ao governo.
— A questão não é vender e sim ter essa arma de defesa, para o caso de uma
emergência. Mas sabe o que realmente desejo?
— Sim?
— Que nunca chegue o momento de usá-la. Que nunca tenhamos uma guerra, contra
os franceses ou contra qualquer outro povo.
Samuel fitou-o com estranheza, enquanto comentava:
— Às vezes não entendo você, Thomas. Qualquer inventor se sentiria tentado a
experimentar sua criação... E você vem me dizer que jamais quer utilizá-la? Ora,
francamente!
— Você sabe muito bem quais serão as conseqüências, se...
— Estou pouco ligando para as conseqüências, meu caro — Samuel aparteou. — O
que realmente quero é melhorar de vida. E o projeto viabilizará a realização desse desejo,
entende?
Thomas fitou-o com desagrado:
— Às vezes tenho a impressão de que não o conheço, Samuel... Ao menos não como
eu imaginava, no início de nossa amizade.
— Por quê?
— Ora, porque em vez de pensar com seriedade, sobre o projeto, você só consegue
imaginar as vantagens que ele lhe trará, se for vendido.
— Acontece que eu não nasci em berço de ouro, como você.
— Não é esse o caso.
— Você diz isso porque nunca passou necessidade. Se soubesse a falta que o dinheiro
faz, em certas horas... Aliás, em todas as horas!
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Dinheiro, dinheiro, dinheiro! É só nisso que você tem falado, ultimamente. Confesso
que estou ficando irritado com essa sua obsessão.
— Desculpe se lhe pareço medíocre, meu ilustre visconde de Blackfield... Mas nós,
pobres mortais, não nascemos com sua grandeza de caráter, nem com sua nobreza, nem
com sua fortuna.
— Ora, já chega dessa conversa idiota — Thomas retrucou, separando-se de Samuel
no saguão do castelo. — Boa noite, meu caro. Espero que ambos estejamos num estado de
espírito melhor, amanhã. Assim, poderemos conversar sobre coisas sérias.
— Boa noite, milorde — Samuel respondeu, com ironia.
Thomas nem se preocupou em rebater a provocação. Estava desgastado demais para
isso. Ao chegar a seus aposentos, encontrou um bilhete sob a porta. Curioso, leu-o à luz de
uma vela que estava sobre um consolo.
Caro visconde de Blackfield,
Se quiser salvar a vida da srta. Harrington, vá até a cabana de caça, situada na ala sul.
Assinado: um amigo.
— Patience! — Thomas murmurou, empalidecendo. Releu rapidamente o bilhete e
notou que, apesar de o autor assinar "um amigo", a letra parecia bem feminina. Mas isso não
importava, agora. Na verdade, nada importava, exceto a urgente necessidade de colocar
Patience a salvo.
Enquanto descia rapidamente as escadas até o andar térreo do castelo, Thomas
perguntou-se se aquele bilhete não seria um trote. Patience estaria mesmo na cabana?
Era o que ele pretendia conferir... E logo!
Patience sentia-se flutuar num mundo diferente, talvez situado entre o sono e a vigília.
Mas não estava flutuando sozinha. Alguém a carregava... para onde? E por quê?
Ela não saberia dizer. Mas o contato com um corpo quente, vagamente familiar, dava-
lhe uma sensação de aconchego e proteção.
— Pronto — disse uma voz grave e pausada. — Agora você poderá descansar.
Patience abriu os olhos e levou um longo momento para compreender onde se
encontrava: em seu quarto, mais precisamente em sua cama. E alguém segurava sua mão.
— Thomas! — ela exclamou, fitando-o com ar confuso. — O que aconteceu? — Quis
erguer-se, mas não conseguiu.
— Shh... — ele recomendou, acariciando-a no rosto. — Não fale e nem tente se mover.
— Mas o que houve? — ela insistiu, invadida por um intenso cansaço.
— Não sei... Espero que você me conte, quando melhorar. Mas não pense nisso agora.
Concentre-se apenas em descansar, está bem?
— Minha cabeça dói... E minha garganta está seca.
— Quer um gole de água?
— Sim, por favor.
Alcançando uma jarra sobre uma mesinha baixa, ao lado da cama, Thomas encheu um
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
copo até a metade. Em seguida, apoiando a cabeça de Patience com uma das mãos, levou-
lhe o copo aos lábios.
— Beba devagar...
Ela sorveu três goles, lentamente.
— Sente-se melhor?
— Um pouquinho.
— Amanhã você estará bem. Agora, procure dormir.
— Não vou conseguir... Antes, preciso entender o que aconteceu.
— Alguém a atacou e tentou raptá-la... Não sei por quê.
— Talvez para que eu não falasse — Patience concluiu, estremecendo.
— Falasse sobre o quê?
— Ouvi uma conversa, perto da orla do bosque, ao voltar do rio... Três pessoas falavam
em francês... Dois homens e uma mulher.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— De qualquer forma, não pense nisso, agora. Amanhã, quando você se sentir mais
descansada, conversaremos melhor.
— Agora me lembro! — Patience levou lentamente a mão à testa, que doía
terrivelmente. — Eu estava vindo para cá, quando alguém me segurou e encostou um pano
molhado, talvez um lenço, em meu nariz... O pano tinha uma substância química, de cheiro
muito forte.
— Alguma droga para fazê-la perder os sentidos, sem dúvida alguma — Thomas
concluiu.
— Depois, lembro-me de ter ouvido vozes novamente. Uma mulher e um homem
discutiam sobre o que fazer comigo.
— Como? — Thomas indagou, horrorizado. — Patience, eu não deveria deixá-la falar,
nesse estado, mas você está me fazendo revelações surpreendentes!
— Estou me lembrando aos poucos... O homem queria me matar, mas a mulher não
deixou. E ela o chamava por um nome...
— Qual? — Thomas indagou, com a respiração suspensa. — Se você se lembrar desse
nome, teremos o fio da meada para resolver esse mistério.
— Henry — Patience recordou-se, por fim. — Era esse o nome do homem.
— Tem certeza?
— Absoluta. A mulher o chamou assim, várias vezes. Agora vou ver se consigo me
lembrar de toda a conversa...
— Nada disso — Thomas retrucou, num tom carinhoso. — Tente dormir e se recompor.
Amanhã conversaremos melhor.
— Você vai embora? — Patience indagou, invadida por uma repentina sensação de
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
pânico. — Vai me deixar aqui, sozinha? E se aquelas pessoas voltarem para me atacar?
— Não se preocupe — ele a tranqüilizou, com um sorriso. — Há dois homens
guardando a porta de seu quarto. E Tilly passará o resto da noite com você. Portanto, trate
de descansar.
Inclinando-se, Thomas beijou-lhe a testa... De súbito, Patience sentiu-se calma e
confiante. Era como se as palavras e o carinho de Thomas tivessem o mágico poder de
afastar, para bem longe, todos os seus temores.
Certa de que poderia repousar em segurança, ela fechou os olhos e levou apenas
alguns momentos para adormecer.

Réstias de sol entravam pela janela, anunciando uma bela manhã.


Antes mesmo de abrir os olhos, Patience sentiu o calor de um corpo próximo ao seu e a
proximidade de um braço atravessado sobre ela e apoiado no colchão, transmitindo-lhe uma
doce sensação de bem-estar.
Patience abriu os olhos e sorriu, ao se deparar com o rosto de Thomas, observando-a
com expressão serena.
— Bom dia, Patience.
— Bom dia.
— Como se sente?
— Bem melhor. A dor de cabeça passou.
— E a garganta?
— Já não tenho aquela sensação de secura.
— Ótimo.
— Imagino que meus colegas de trabalho tenham estranhado minha ausência.
— Sem dúvida. Sobretudo seu primo, John, que ficou bastante preocupado. Aliás, ele é
o único que sabe sobre o que aconteceu. Inclusive, veio vê-la, enquanto você dormia. E ficou
aqui por um bom tempo.
— John é um amor. Gosto dele como se fosse o irmão que nunca tive.
— Ele é um bom profissional, de uma competência a toda prova.
Patience surpreendeu-se com o elogio, mas não fez comentários. Apenas perguntou:
— Por que você não contou aos outros sobre o que houve comigo?
— Por dois motivos: para não assustá-los e também porque não sei se algum de seus
colegas está envolvido no caso.
— Isso seria impossível. Tanto John como os Tecking são pessoas de absoluta
confiança.
— Acontece que as sabotagens e as traições geralmente vêm de pessoas em quem
confiamos.
— Mas você acabou de elogiar John... Como pode desconfiar dele?
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Eu não desconfio. E, para ser franco, também não acho que o casal Tecking possa
estar envolvido. Mas nunca se sabe, não é mesmo? Por isso preferi manter segredo sobre o
que houve com você. Disse-lhes apenas que você estava cansada e resolveu tirar o dia de
folga.
— E eles acreditaram?
— Não sei, mas aceitaram a explicação. E seu primo se prontificou a substituí-la, na
direção do trabalho. — Thomas fez uma pausa, antes de acrescentar: — Por favor, não fique
ofendida com meu excesso de cautela. Realmente preferi manter segredo sobre o que
aconteceu com você, baseado numa hipótese muito simples: o traidor está entre nós.
— É verdade... infelizmente.
— Não contei nem mesmo à minha tia sobre o que houve com você.
— Puxa! — Patience surpreendeu-se. — Você está se cercando de cuidados, mesmo.
— Mas não me diga que desconfia dela!
— Na verdade, não. Mas tia Caroline é muito ingênua, e alguém pode se aproveitar
disso.
— Tem razão. — Patience ficou pensativa por alguns instantes. Então, perguntou: — E
quanto a Henry? O que aconteceu com ele?
— Foi levado para Londres, esta madrugada, para ser interrogado. Felizmente, a polícia
agiu com discrição e creio que ninguém percebeu o que se passou. Suspeitamos que ele
esteja envolvido nas sabotagens de Hastings House.
E diante da expressão interrogativa de Patience, Thomas explicou:
— Hastings House é o nome do conjunto de blocos na colina, perto da cabana do
guarda-caça. E lá que realizo minhas experiências.
— Então aquela explicação que você deu, na outra noite, durante o jantar, sobre uma
explosão no depósito de munição do guarda-caças...
— Não era verdadeira. Falei aquilo apenas para tranqüilizar os hóspedes e a
criadagem.
Fitando-o nos olhos, Patience indagou:
— Thomas, o que acontece naquele lugar?
Acariciando-lhe o rosto, ele respondeu com outra pergunta:
— Você quer mesmo saber?
— Sim.
— E prefere que eu lhe conte... Ou seria melhor ver com seus próprios olhos?
Surpresa, ela perguntou:
— Você... permitiria que eu visse?
— Mais que isso: eu a convido para ir até lá... digamos... amanhã.
— Por que não hoje?
— Porque você ainda precisa de repouso.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Que nada, sinto-me ótima! E, devo confessar, bastante curiosa também.
Patience fez menção de levantar-se, mas Thomas a atraiu para si:
— Já que você insiste, iremos lá ainda hoje. Mas não é preciso ter tanta pressa,
querida.
— Está bem — Patience aquiesceu, docemente, aconchegando-se naquele corpo
quente, que tão bem sabia protegê-la. — Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Você tem alguma pista sobre a mulher que estava falando com Henry, ontem, ou
sobre o outro homem?
— Não. Mas Henry deverá ser acusado formalmente de traição. E, mesmo se não for, o
fato de ter atacado você já é motivo suficiente para mantê-lo preso.
— Por que traição?
— Porque, ao que tudo indica, ele está passando segredos de Estado para outras
nações, talvez para a França.
— Segredos... — Patience repetiu, pensativa — relacionados a Hastings House?
— Sim. Você entenderá melhor o que estou dizendo, quando visitar o local.
Patience fez um gesto de assentimento, antes da pergunta seguinte:
— Posso lhe fazer um pedido?
— Tudo o que você quiser.
— Se Henry mencionar o nome de sua cúmplice... Por favor, tenha complacência com
ela. Afinal, seja lá quem for, essa mulher salvou a minha vida. — E Patience explicou: — Eu
a ouvi pedir a Henry que não me fizesse nada de mau.
— Esse fato certamente será considerado. — Thomas começou a abrir-lhe o vestido. —
E agora, srta. Harrington, pode continuar me questionando, mas com uma condição...
— Qual?
— A cada pergunta, a senhorita perderá uma peça de roupa.
— Visconde de Blackfield! — ela exclamou, contendo um sorriso. — Isso lá são modos
de tratar uma hóspede?
— Talvez não... Mas, tal como você, não sou um grande especialista em boas
maneiras. — E Thomas cobriu-lhe a boca com a sua, num beijo longo e apaixonado, ao qual
Patience correspondeu com ardor.
Já nem se lembrava do quanto havia ficado ofendida com Thomas, na véspera. E isso a
lembrava de uma outra pergunta, que não poderia deixar de ser feita...
— Por favor... — ela pediu, baixinho, quando os lábios por fim se afastaram. — Posso
fazer só mais uma pergunta?
— Você é quem sabe, srta. Harrington... — ele respondeu, com ar maroto, enquanto
continuava a tirar-lhe o vestido.
— Estou falando a sério, Thomas.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Eu também.
— Diga-me, como você me encontrou?
— Recebi um bilhete anônimo, assinado simplesmente por "um amigo", informando que
você estava na cabana de caça. Mas a caligrafia me pareceu bem feminina.
— Deve ter sido escrito pela mesma mulher que impediu Henry de me...
— Por favor — Thomas a interrompeu, tocando-lhe os lábios com a ponta dos dedos. —
Não repita mais essa palavra.
E um novo beijo selou aquele momento, enquanto Thomas massageava as costas de
Patience, e ela podia sentir o corpo voltando à vida sob o toque das mãos experientes, que
passaram a lhe acariciar os mamilos já enrijecidos. A camisola de cetim foi parar no chão,
sem nenhum ruído. Thomas mordiscou um mamilo e sugou-o. Deslizou a mão pela cintura
fina, e o ventre, até encontrar sua parte mais íntima. A carícia começou suave, depois se
intensificou, quando percebeu que Patience estremecia de desejo.
O movimento dos quadris de Patience indicava que ela estava próxima do auge do
prazer, e Thomas segurou-lhe a mão, conduzindo-a para a própria virilha.
Um suspiro rouco escapou da garganta de Patience, ao sentir o volume rígido sob o
tecido da calça. Num rompante de ousadia, ela afastou o cós e introduziu a mão para dentro
da calça de Thomas, alcançando o membro túrgido e aveludado e envolvendo-o entre os
dedos.
Patience jamais imaginara que fosse possível experimentar sensações tão
esplendorosas, sensações que invadiam não só o corpo, mas também a alma, a mente e o
coração.
E quando Thomas finalmente se livrou das próprias roupas e deitou-se sobre ela, os
tépidos raios do sol da manhã banharam em seu calor o apaixonado casal de amantes,
entregues à magia da paixão.
Momentos depois, aconchegada nos braços de Thomas, Patience refletiu que tudo o
que imaginara, a respeito do amor, não chegara nem mesmo perto da intensidade do que
acabara de acontecer.
Patience mal podia conter a ansiedade, enquanto caminhava, de mãos dadas com
Thomas, em direção ao lugar que, agora ela sabia, chamava-se Hastings House.
Vários homens guardavam o local e olhavam com estranheza para ambos... Ou melhor,
para ela.
Thomas, porém, parecia não se importar com isso. Parando a poucos metros do
primeiro bloco, ele a fitou com seriedade:
— Antes de entrar, quero que você me dê sua palavra de que guardará segredo sobre
tudo o que vir ou ouvir aqui. Quero sua palavra de que não revelará nada a ninguém, em
nenhuma circunstância.
Patience sustentou-lhe o olhar, enquanto refletia sobre a gravidade daquele momento.
Uma dúvida a assaltou: e se Thomas estivesse promovendo experiências terríveis, no interior
daqueles blocos? E se houvesse criado um monstro, tal como dissera o garoto do vilarejo,
dias atrás, e tal como acreditavam algumas criadas? Se fosse esse o caso... Ela não poderia
dizer nada às autoridades? Mas isso a tornaria cúmplice de Thomas e seus seguidores!
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— E então? — ele indagou, traindo uma ponta de ansiedade na voz. — Posso contar
com sua discrição?
Patience continuou a fitá-lo. E concluiu que não, que um homem capaz de amar com
tanta intensidade e delicadeza não poderia ser um cientista cruel e tampouco um assassino.
Por isso, tomou fôlego e respondeu:
— Eu prometo. Você tem minha palavra de que guardarei segredo sobre seu projeto,
seja lá o que for.
— Na verdade, tenho vários projetos em andamento, alguns em fase de conclusão —
ele explicou, voltando a caminhar. — Mas um deles, o principal, tem despertado a cobiça dos
espiões. Enfim, espero que Henry conte à polícia sobre o que pretendia, juntamente com
seus cúmplices. Afinal, esse projeto não pode cair em mãos erradas.
— Por quê?
— Você verá... — E Thomas fez um sinal a um guarda, para que lhes abrisse a porta.
O homem obedeceu, num tom respeitoso, embora parecesse surpreso.
— Obrigado, Richard. A propósito, onde está Samuel?
— Sentiu-se indisposto e foi para o castelo descansar, senhor.
— É mesmo? Eu o procurei, agora há pouco, em seus aposentos, e não o encontrei.
Bem, não faz mal. Conversarei com Samuel mais tarde. — Após uma pausa, Thomas
apresentou Patience: — Esta é a srta. Harrington. Ela veio conhecer o trabalho.
Richard cumprimentou-a, num tom polido. E ambos entraram.
Tomada por uma forte curiosidade, Patience entrou no hall, conduzida por Thomas.
No final do hall havia uma porta de metal, bastante pesada. Thomas abriu-a e então
Patience ouviu o som de máquinas funcionando.
— Aqui estamos — disse Thomas, dando-lhe passagem. Patience entrou numa grande
sala, onde havia cerca de dez homens trabalhando em estranhas máquinas que produziam
zumbidos, sirenes, estalos e outros sons que, a princípio, a deixaram atordoada.
Mais atordoados, porém, ficaram os homens ao ver Thomas entrar acompanhado por
uma linda jovem.
Imediatamente, as máquinas pararam, e um súbito silêncio se fez na sala.
— Boa tarde, rapazes. Esta é Patience Harrington, que veio conhecer nosso trabalho.
Os homens se entreolharam, com ar de dúvida. Um deles se aproximou, com uma
expressão cordial.
— Este é Jim Jones, responsável pela coordenação dos trabalhos realizados neste
setor. Ele é também um químico brilhante, que tem feito pesquisas interessantes sobre
medicamentos. Desenvolveu, também, uma série de estudos para descobrir o combustível
mais adequado às nossas máquinas.
— Muito prazer, srta. Harrington — o homem cumprimentou Patience, com uma espécie
de reverência.
— O prazer é todo meu, sr. Jones — ela respondeu, amavelmente.

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— Bem, fiquem à vontade — disse Thomas. — Vou mostrar nossos projetos à srta.
Harrington. Mas podem voltar ao trabalho... E façam de conta que não estamos aqui.
Ainda surpresos, os homens retomaram suas atividades. E logo o ruído das máquinas
tomou conta da sala... A primeira, de várias que Patience visitou.
Com muita paciência e dedicação, Thomas apresentou-a a cada um dos principais
encarregados dos projetos. Havia setores variados, em Hastings House: naquele primeiro
bloco, fazia-se pesquisa sobre remédios. De acordo com a explicação de um farmacêutico,
em breve Thomas lançaria duas fórmulas importantes: um remédio contra enxaquecas e
outro contra dores musculares. Este último teria um efeito calmante.
No terceiro bloco, chamado Galileo Buiding, em homenagem ao grande inventor Galileu
Galilei, os homens dedicavam-se à criação de novos instrumentos de navegação. De boa
vontade, o encarregado, que se chamava Peter Yensen, mostrou a Patience um telescópio já
pronto, de longo alcance. Astrônomos e navegadores trabalhavam naquele local, em total
sigilo, auxiliados por vários aprendizes e serviçais. Patience ficou fascinada com um
instrumento, semelhante a um sextante, que estava sendo desenvolvido e que em breve
seria apresentado numa reunião da Academia de Ciências.
No quarto bloco, as pesquisas eram voltadas aos fertilizantes. Lá os cientistas
estudavam os adubos naturais e tentavam implementar suas propriedades, para torná-los
mais eficazes, na lavoura.
Mas foi o trabalho desenvolvido no segundo bloco, que Thomas fez questão de deixar
para o final, que mais espantou Patience.
Dezenas de homens trabalhavam lá, em bancadas e mesas. Havia também várias
máquinas, de formato estranho, onde eram forjadas e manipuladas peças de metal e
madeira.
O barulho era ensurdecedor. Patience estava simplesmente perplexa. Num imenso
depósito, nos fundos, havia veículos de vários tamanhos e formatos. Veículos com duas
rodas, três rodas, quatro rodas e até mesmo com dez rodas, estavam enfileirados.
— Esses já estão prontos — disse Thomas.
O bloco chamava-se Theodore Tick, em homenagem a um homem que, segundo
Thomas, dedicara sua vida à invenção de aparelhos eletrônicos e relógios.
— O que são essas máquinas? — Patience indagou.
— São maravilhas da engenharia mecânica, conseguidas após anos de trabalho —
Thomas respondeu.
— E para que servem?
— Para serem usadas em situações que, esperamos, jamais cheguem a acontecer.
— Não entendi — ela confessou, confusa.
— São máquinas de guerra... Que, espero, sejam usadas apenas em última instância,
quando não tivermos outra maneira de nos defender.
E ante a expressão ainda interrogativa de Patience, ele conduziu-a para fora, saindo
pela porta dos fundos do bloco.
— Agora vou apresentá-la ao "monstro"... É assim que as pessoas costumam chamar
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nossa maior e mais perigosa arma.
Patience não conseguiu conter uma exclamação ao deparar-se com uma enorme
máquina, muito maior do que uma carruagem, que parecia ter saído diretamente de um livro
de ficção científica.
Construída em metal escuro, tinha um imenso braço, semelhante a um guindaste.
— Vou lhe mostrar como funciona — disse Thomas, acenando para um homem que
estava próximo.
— Será que você pode fazer uma pequena demonstração sobre o nosso monstro, para
a srta. Harrington?
— Claro, senhor. — E o homem, abrindo uma pequena porta, penetrou no interior da
máquina.
— O que ele vai fazer? — Patience indagou, espantada.
— Essa máquina pode ser comandada de dentro de uma cabine — Thomas explicou.
— Veja só como funciona.
Com os olhos arregalados numa expressão de espanto, Patience observou o braço da
máquina se elevar no ar, até posicionar-se ma direção de uma montanha, ao longe.
— Não se assuste — Thomas recomendou, em vão, pois no instante seguinte um forte
estrondo soou, ecoando na paisagem.
— Eu lhe disse para não se assustar — Thomas disse, sorrindo, enlaçando-a pelo
ombro.
— O que significa esse estrondo?
— Nada... Por enquanto. Mas imagine o estrago que o monstro teria feito, se houvesse
uma bala de canhão, no interior de seu braço. Imagine o alcance da bala e seu poder
mortífero.
— Nossa! — Patience exclamou, assustada. — Essa máquina poderia arrasar vilarejos
inteiros!
— Exércitos inteiros — Thomas completou. — Com isso, nossas forças militares seriam
invencíveis.
— E quanto àquelas máquinas menores?
— Também têm um poder de fogo muito forte. Mas claro que não chegariam a provocar
a mesma devastação que o monstro.
— Entendo... — E Patience concluiu: — Agora vejo por que você tem tanto medo que
esse projeto caia em mãos erradas.
— Sim. Minha intenção é apresentá-lo ao governo inglês, mas quero a garantia de que
nem o monstro, nem as outras máquinas, serão usados... A menos que seja absolutamente
necessário.
— A menos que ocorra uma situação de guerra... É isso?
— De certo modo, sim. Mas só se acontecer de estarmos praticamente derrotados.
Somente assim eu recorreria a essas armas secretas.

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— Sabe, eu já tinha visto o monstro — Patience confessou, após alguns instantes.
— Como assim? — Thomas surpreendeu-se.
— Certa noite, eu estava em meu quarto, quando ouvi uma explosão. Usando um
telescópio, que encontrei no acervo de seu tio, tentei descobrir o que estava acontecendo.
Num dado momento, vi essa máquina imensa sendo transportada por vários homens. Vi
quando o braço se ergueu. E sabe o que imaginei? — ela indagou, com um sorriso. — Que
você estava criando um monstro de verdade!
— Patience Harrington... — Ele sorriu de volta. — Não existem "monstros de verdade"!
Não me diga que você imaginou, também, que ele era feito de partes de cadáveres
humanos...
— Quer uma resposta sincera?
— Claro.
— Confesso que cheguei a pensar nisso, sim... Embora soubesse que era impossível.
Mas tenho uma imaginação fértil, você sabe...
— Os habitantes do vilarejo também. Alguém andou espalhando a história de que o
monstro era feito de restos humanos.
— E por que você não desmentiu?
— Não havia como. Para desmentir, eu teria de apresentar provas, ou seja: tornar
público o trabalho que realizamos aqui. E eu ainda não podia... Aliás, ainda não posso. Não
enquanto houver espiões, por aí. Tenho tanto medo que nossas descobertas sejam vendidas
a governos inimigos, ou a pessoas mal-intencionadas!
— Bem, agora que Henry está preso, acho que você pode ficar mais tranqüilo.
— Não ficarei em paz enquanto não descobrir quem são os cúmplices dele.
— Compreendo seus temores, Thomas...
— Você compreende bem mais que isso, Patience. — Ele a abraçou com força. —
Você compreende meu coração.
— Por quê? — ela indagou, fitando-o com intensidade. — Por que você resolveu me
mostrar tudo isso?
— Porque sinto que posso confiar em você — ele respondeu, ajeitando-lhe os cabelos
atrás das orelhas, num gesto carinhoso.
— E houve algum momento em que você não confiou?
— Para dizer a verdade, sim.
— Mas desde quando eu lhe dei motivos para...
Ele a interrompem, sorrindo:
— Desde o primeiro dia em que a vi, srta. Harrington. Lembra-se de que você
praticamente invadiu o meu quarto?
— Oh, é mesmo. — Patience sorriu de volta. — Eu o confundi primeiro com um vampiro
e, depois, com um ladrão. Também, não era para menos... Você estava entrando pela janela!
— E você estava invadindo os aposentos do proprietário do castelo.
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
Ambos desataram a rir. E um longo beijo selou aquele momento, sob o olhar curioso do
homem que manobrava a enorme máquina de guerra.

Capítulo VI

Anoitecia, quando Patience e Thomas retornaram ao castelo.


— Teremos o tempo exato para trocar de roupa e jantar — ele comentou.
— É verdade. — Patience olhou para si. Seu vestido estava amarrotado. E havia
bastante poeira, na barra. Isso sem contar seus cabelos, despenteados pelo vento. Divertida,
ela gracejou: — Se eu aparecer assim na sala de refeições, a sra. Tecking terá uma síncope.
— Ou, o que é ainda pior, passará a refeição inteira fazendo um verdadeiro sermão
sobre a importância das boas maneiras.
— Tem razão.
Foi nesse clima de carinho e euforia que ambos entraram no castelo, por uma porta
lateral. O saguão estava vazio. Subiram a escada de mãos dadas e, já no corredor do piso
superior, despediram-se com um beijo.
— Até já, Thomas...
— Até já, querida.
Patience dirigiu-se a seus aposentos, tomada por uma intensa alegria. Tinha vontade
de cantar, de compartilhar com o mundo sua felicidade. Nunca, em toda a sua vida, sentira-
se tão plena, tão amada.
Tilly a aguardava, no quarto, para ajudá-la a vestir-se para o jantar. E Patience
escolheu, com cuidado, o traje que usaria naquela noite.
Pouco depois, ela deixava o quarto, usando um vestido cor de vinho, com detalhes em
marfim. Mal podia esperar pelo momento de rever Thomas. E pensar que fazia apenas meia
hora que se separara dele!
Caminhando a passos largos pelo corredor, Patience sentia-se como uma adolescente
apaixonada. Seu coração pulsava acelerado, suas faces estavam coradas e seus olhos
traziam um brilho singular... O brilho de uma mulher que acabava de descobrir o amor.
Estava tão imersa nesse estado de espírito que quase se chocou com a sra. Tecking,
ao dobrar a curva, no ponto onde ficava a armadura medieval.
— Aonde vai com tanta pressa, srta. Harrington? — perguntou a mulher.
— Olá, sra. Tecking! — Patience exclamou, surpresa. — O que faz por aqui?
— Vim saber como a senhorita estava se sentindo. Soube que sofreu um atentado,
ontem à noite.
Patience surpreendeu-se ainda mais. Afinal, Thomas havia lhe dito que não contara a
ninguém sobre o que acontecera. Portanto, como a sra. Tecking soubera do fato?

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
— Nós... não temos nos dado muito bem, ultimamente, srta. Harrington — ela
comentou. — Mas quero que saiba que me preocupo com seu bem-estar. E que fico aliviada
por vê-la assim, com tanta disposição.
— Obrigada — Patience agradeceu, notando que a sra. Tecking parecia
excessivamente gentil... e também nervosa. Por quê?
Não houve tempo para refletir sobre o assunto. O som de vidros se quebrando e móveis
sendo arrastados sobressaltou a ambas.
— O que foi isso? — a sra. Tecking quase gritou.
— Não tenho a menor idéia. Mas algo de grave está acontecendo por aqui...
Um novo barulho soou, seguido de vozes alteradas. Patience e a sra. Tecking
precipitaram-se na direção dos ruídos.
— Os sons vêm da biblioteca! — exclamou a sra. Tecking.
— Não! — Patience concluiu, aflita. — Vêm daquela porta em frente... Vêm dos
aposentos de Thomas!
De fato, a porta do quarto de Thomas estava escancarada. Patience e a sra. Tecking se
aproximaram, no exato momento em que um vaso se estilhaçava no chão.
— O que está acontecendo? — Patience perguntou, ao entrar. E então viu o primo ser
jogado violentamente, por Samuel, contra uma parede. — John! — gritou, estarrecida.
— Samuel Simmons! Pare com isso! — ordenou a sra. Tecking, cuja voz o nervosismo
tornava ainda mais estridente.
John tentou se levantar, mas Samuel tornou a derrubá-lo. Então Thomas, surgindo de
trás de uma estante, conseguiu segurar Samuel por trás, imobilizando-o. Aproveitando a
oportunidade, John ergueu-se e ajudou Thomas a subjugá-lo.
Encurralado contra um canto do quarto, Samuel murmurou um impropério e ainda
tentou reagir. John apontou-lhe uma velha arma, que Patience reconheceu de imediato, já
que ela pertencia ao acervo doado por George Ashe. Era óbvio que daquela antigüidade não
poderia sair um tiro sequer, mas, ao que tudo indicava, Samuel não sabia disso.
— Providencie uma corda — Thomas pediu, olhando rapidamente para Patience.
— Não é preciso — disse John. E, abaixando-se junto a Samuel, amarrou-lhe as mãos
atrás das costas enquanto dizia: — Samuel Simmons, vou levá-lo até Londres para ser
interrogado sobre dois assuntos muito graves: traição e roubo.
— John! — Patience exclamou, atônita. — O que significa isto?
— Desculpe, prima — ele respondeu, ofegante. — Eu não podia lhe contar...
— Contar o quê?
— Quem vim para cá não apenas a serviço do Museu Britânico, mas também da polícia
londrina.
— Como? — Patience reagiu, confusa.
— Sou agente secreto, prima. Fui designado para investigar as sabotagens e suspeitas
de traição que estavam acontecendo aqui. Para que ninguém desconfiasse de nada, vim na

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
qualidade de antiquário e pesquisador... Que, aliás, é minha primeira profissão.
— E papai sabe disso?
— Sim.
— Mas por que ele não me contou?
— Porque era preciso manter segredo. Alguns setores do governo estão bastante
interessados nos projetos de Thomas. E como foram avisados sobre os problemas que
estavam ocorrendo em Hastings House...
— Então você sabia, também, das experiências de Thomas?
— Sim.
— E por que não me disse?
— Eu não podia. Mas tentei convencê-la a ficar longe de lá, lembra-se? Tive medo que
você se metesse em alguma encrenca.
— Você não confiou em mim — Patience concluiu, em tom de mágoa.
— Não me leve a mal, prima. Eu realmente não podia lhe contar nada, antes de
resolver o caso.
— Você mentiu descaradamente, John — ela o acusou, magoada. — Lembra-se
daquela noite em que conversamos sobre o estranho clima que reinava neste castelo?
— Sim. Achei que era melhor deixá-la apreensiva a esse respeito... Assim você não
tentaria investigar o que estava acontecendo. Mas me enganei redondamente, claro. Porque,
ao invés de se encolher, você resolveu pôr mãos à obra. Se soubesse o quanto me
recriminei, por ter agido desse modo, com você!
Sentindo-se ainda mais indignada, Patience retrucou:
— Pensei que fôssemos amigos, John! Pensei que você confiasse em mim. Mas você
me traiu.
— Por favor, não o acuse com tanta veemência — Thomas interveio. — Compreendo
perfeitamente a atitude de seu primo. Ele se calou por dois motivos: por consciência
profissional e também para evitar que você corresse perigo. Afinal, não sabíamos com quem
estávamos lidando. — Lançando um olhar severo em direção a Samuel, acrescentou: — Mas
agora acabamos de descobrir. — Voltando-se novamente para Patience, acrescentou: —
Isto, sim, é traição. Este homem se disse meu amigo e sócio durante muito tempo. E agora
acabamos de flagrá-lo, roubando documentos importantes de minha mesa de trabalho.
Patience estava boquiaberta:
— Oh... Eu nunca imaginei que...
— Ninguém imaginava — Thomas aparteou. — Sempre considerei Samuel como um de
meus melhores amigos. No entanto, era ele quem fazia contato com certos setores do
governo francês... E estava prestes a vender nossos projetos, por uma pequena fortuna.
— Pequena para você — Samuel resmungou. — Para mim, seria a solução de todos os
problemas.
— Como você é tolo, Samuel Simmons — Thomas retrucou. — O dinheiro certamente

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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
ajuda muito, mas não poderia, jamais, solucionar todos os problemas de uma pessoa. Para
isso, é preciso força de caráter, determinação e trabalho, coisas que, pelo visto, você
desconhece.
— Ora, vá para o inferno! — Samuel praguejou, virando o rosto, com uma expressão de
fúria.
— Mas como vocês o descobriram? — Patience quis saber.
— Já fazia alguns dias que eu o estava seguindo — John explicou. — E hoje, no final
da tarde, flagrei-o entregando alguns papéis importantes a uma criada chamada Jenny.
Como amanhã seria seu dia de folga, ela os levaria até o vilarejo, para entregá-los a um
contato de Samuel.
— Jenny! — Patience exclamou. — Foi ela que impediu Henry de me matar!
— Eu sei — John assentiu. — Henry já confessou tudo à polícia de Londres. E Jenny
confirmou o que ele disse. Pelo que pudemos deduzir, Henry a estava usando para fazer
pequenos serviços, como transportar documentos, por exemplo. Ela será indiciada, sem
dúvida. Mas talvez nem fique presa, ou receba uma pena leve.
— No entanto, já foi demitida — Thomas afirmou. — Minha tia não suportaria continuar
tendo Jenny como criada, depois de tudo isso.
— O que é perfeitamente compreensível.
— Mesmo assim, pedi-lhe que desse uma razoável soma em dinheiro a Jenny, para
que ela possa se sustentar até encontrar outro trabalho.
— Você agiu com generosidade, Thomas — Patience comentou, admirada.
— Só tomei essa atitude porque ela salvou sua vida.
— E eu lhe sou muito grata por isso.
A sra. Tecking, que até o momento assistira a tudo em silêncio, ousou se manifestar.
— Minha nossa! Sinto-me como se estivesse em meio a uma história de mistério e
suspense... Afinal, a gente sempre pensa que essas coisas só acontecem nos livros, não é
mesmo?
— Ora, não venha bancar a indignada, agora — Samuel resmungou, num tom
agressivo, que surpreendeu a todos. — Você bem que se sentiu tentada a participar de
tudo... Só que se acovardou, na última hora.
John, Thomas e Patience voltaram-se para a sra. Tecking, com uma expressão de
espanto. Muito pálida, ela apenas declarou:
— Ele está mentindo.
— É... — disse John. — Parece que esta tem sido a especialidade de Samuel, de
algum tempo para cá. — Voltando-se para Thomas, pediu: — Você me ajuda a levá-lo para
um lugar seguro?
— Claro.
Os dois saíram, escoltando Samuel. A sós com a sra. Tecking, Patience fitou-a com
estranheza.

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— Por que está me olhando assim? — perguntou a mulher. Sem esperar pela resposta,
acrescentou: — Oh, você não acredita que eu seria capaz de cometer um crime de alta
traição contra o nosso governo, não é mesmo?
Mais uma vez, ela não deu chance a Patience para retrucar. E prosseguiu:
— Samuel tentou fazer comigo o mesmo que Henry fez com a pobre Jenny.
Patience arregalou os olhos.
— A senhora está tentando dizer que ele quis... seduzi-la?!
— Sim. E eu quase me deixei levar por sua conversa galante.
Patience lembrou-se dos olhares lânguidos que a sra. Tecking lançava a Samuel,
durante as refeições. Lembrou-se, também, de como ela se mostrava afável diante daquele
homem tão atraente quanto perigoso.
— Imagino que você me despreze, por isso — disse a sra. Tecking, num tom ríspido.
— Em absoluto — Patience respondeu, com veemência. — Na verdade, não me sinto
no direito de julgar ninguém.
— Para a senhorita, tudo é muito simples, não?
— Como assim, sra. Tecking? — Patience indagou, sem entender.
— Ora, a senhorita é jovem, bonita, inteligente, brilhante, admirada por todos...
— Por todos, não, sra. Tecking — Patience a corrigiu, com um sorriso. — Não se
esqueça de que, segundo as más línguas de Londres, sou uma pessoa desajeitada, inábil,
mal-educada... Isso para dizer o mínimo. Pois há quem diga que sou até mesmo uma jovem
promíscua, o que é uma inominável calúnia.
— Ora, todas essas acusações não passam de boatos maldosos, causados
principalmente pela inveja que a senhorita desperta nas pessoas que se sentem menos
privilegiadas pela sorte.
— Confesso que estou surpresa por ouvir isso... E justamente da parte da senhora, que
vive me repreendendo por minhas trapalhadas no convívio social. — Após uma pausa,
Patience acrescentou: — Mas não se iluda... As coisas não são mais fáceis para mim. Creio
que, nesta vida, todos temos de vencer as dificuldades. Acho que nisso reside o nosso
crescimento, não é mesmo?
— Filosoficamente, sim. Mas o fato é que tudo fica mais simples quando se é jovem e
bonita.
— Discordo, mas respeito seu ponto de vista. Se a senhora quer pensar assim, é
problema seu. Mas por que está me dizendo tudo isso, sra. Tecking?
— Não sei... Talvez porque eu precisasse me abrir com alguém. — E com os olhos
fixos no vazio, a sra. Tecking confidenciou: — Sou uma mulher solitária, srta. Harrington...
Sempre fui. Meu marido é um bom homem. Mas, como a senhorita já deve ter percebido, ele
coloca o trabalho acima de todas as outras coisas. O centro do mundo de Frederic é sua
paixão... não por mim, nem por qualquer outra pessoa, mas pelas antigüidades. Mais
especificamente pela arte da Roma Antiga. — Com um suspiro, acrescentou: — Não é nada
fácil viver com um homem assim.

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— Posso imaginar — Patience comentou, num tom respeitoso.
— Não, menina, você não pode. Aliás, ninguém pode saber o tamanho da solidão de
uma pessoa. E então a idade vai chegando... As perspectivas de vida vão se perdendo... E a
pessoa comete uma loucura. Uma loucura chamada... Samuel Simmons.
Patience conteve uma exclamação de espanto. E a sra. Tecking continuou:
— Claro que um homem atraente como Samuel jamais se aproximaria de uma mulher
como eu, a menos que tivesse algum interesse.
— Qual? — Patience indagou, num tom cauteloso.
— Ele queria que eu me tornasse cúmplice de seu crime de traição e roubo dos projetos
de Thomas Ashe. Mas isso, a despeito de toda a minha carência, eu não poderia aceitar.
— Sabe de uma coisa, sra. Tecking? Apesar de todos os nossos desentendimentos,
posso dizer, neste momento, que a senhora é uma pessoa admirável.
— Ora, não exagere.
— É sim. A senhora não deixou que a carência falasse mais alto do que seus princípios.
— Tive ao menos esse mérito, não é mesmo?
Num impulso, Patience abraçou-a e beijou-a carinhosamente, nas faces.
— O que é isso, menina? — a sra. Tecking reagiu, lisonjeada.
— Estou apenas demonstrando minha admiração... De uma forma bem trapalhona, por
sinal.
Ambas riram. E, naquele momento, estabeleceu-se um princípio de amizade.

Os dias que se seguiram foram bastante movimentados. O terceiro lote de peças foi
devidamente catalogado e embalado. O comboio de carruagens voltou de Londres, para
transportar as peças. Assim, o trabalho foi concluído.
Caroline anunciou um jantar de gala, para celebrar o final do trabalho. Seria uma
espécie de despedida para o grupo do Museu Britânico, que deveria regressar a Londres dali
a dois dias.
Patience sentia-se dividida entre duas emoções contraditórias: por um lado, estava
satisfeita pela realização de mais um projeto, por outro, estava profundamente triste, pois
não conseguia imaginar sua vida, dali por diante, sem Thomas Ashe. E, no entanto, o
momento do adeus se aproximava.
Para piorar ainda mais a situação, ambos mal tinham tempo de se ver. Uma comissão
do governo inglês chegara ao castelo, para conversar com Thomas e firmar um contrato
sobre seus projetos. Assim, ele passara vários dias ocupado em receber os convidados e
fazer longas explanações sobre seus inventos.
No dia marcado para o jantar, porém, Patience teve uma surpresa: ao sair de seus
aposentos, deparou-se com Thomas, que a esperava junto à porta.
— O dia de hoje promete ser atribulado — ele disse, depois de beijá-la levemente, nos
lábios. — Precisamos arranjar um tempo para nós dois. Vamos conversar após o jantar?

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— Sim — ela respondeu, com um sorriso radiante. — Onde?
— Em meus aposentos. Pode ser?
— Claro. Irei para lá assim que terminar a refeição.
— Então, está combinado. — Tomando-a nos braços, Thomas voltou a beijá-la, dessa
vez com mais intensidade.
O dia transcorreu em meio a muitos compromissos. Patience dedicou a manhã à
redação de um relatório que deveria apresentar à direção do Museu Britânico, narrando as
etapas do trabalho que fora realizado. Aliás, cada membro do grupo deveria redigir suas
impressões sobre o projeto. No final, a sra. Tecking se encarregaria de organizar os
relatórios numa pasta, que formaria o dossiê do processo de doação do acervo de George
Ashe ao museu.
Durante a tarde, Patience conversou longamente com lady Caroline e com seus colegas
de trabalho. Agora que a sra. Tecking não mais a hostilizava, o clima no grupo ficara bem
mais agradável. Aliás, todos haviam se tornado mais próximos, mais amigos, naqueles dias.
Até mesmo Frederic Tecking parecia menos alheio e mais afeito ao contato social. A
julgar pelos olhares que trocava com a esposa, era bem possível que houvessem se
reconciliado e até feito renascer a velha chama que um dia os unira...
No final da tarde, Patience deixou seus aposentos, já vestida para o jantar. Tinha se
aprontado com esmero, pois depois da refeição teria um encontro importante... Um encontro
com o homem a quem tanto amava.
O que, exatamente, Thomas pretenderia lhe dizer? Era só nisso que ela havia pensado,
o dia todo. Por várias vezes, a expectativa e a paixão que a dominava a haviam feito perder
a concentração no trabalho.
Como ainda faltava quase uma hora para o jantar, Patience resolveu dar uma volta pelo
jardim das rosas, o seu preferido. Sentando-se num banco de pedra, contemplou a bela
paisagem, que dentro em pouco seria envolvida pela penumbra da noite.
O sol se punha por trás das colinas. Os pássaros se retiravam para os ninhos. E
Patience pensava na falta que sentiria daquele lugar magnífico, cheio de mistérios que agora
já haviam sido resolvidos.
Patience ficou ali por um bom tempo, refletindo. Tantas coisas haviam acontecido, nas
três semanas que passara em Blackfield!
A noite caiu. Era hora de voltar ao castelo. Caso contrário, acabaria se atrasando para o
jantar. Em vez de entrar pela porta dos fundos, que ficava bem perto do jardim, Patience
resolveu contornar o castelo e entrar pela porta principal.
Ao entrar no hall, ouviu o som de vozes que vinham do saguão principal. Vozes
femininas, que soavam um tanto alto, bem mais do que a boa educação permitia. Era como
se uma festa estivesse acontecendo, Patience pensou, com estranheza. Afinal, nem lady
Caroline, nem Thomas, haviam mencionado que estavam esperando visitas.
Enquanto se aproximava do saguão, Patience conseguiu discernir a voz de Caroline,
que dizia:
— A senhora sem dúvida nos dará o prazer de passar a noite em nossa companhia...

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Mas não havia, em sua voz, qualquer sinal de entusiasmo. Ao contrário: o tom era
neutro, polido, quase frio.
— Oh, é muita gentileza de sua parte nos fazer esse convite, lady Caroline! Nós
adoraremos passar a noite aqui, não é mesmo, meninas?
Um coro de vozes soou em concordância:
— Oh, mas é claro que sim!
— Aliás, eu cheguei a comentar com as meninas sobre a grande anfitriã que a senhora
é, lady Caroline! E o visconde de Blackfield, então! Um verdadeiro gentleman! A propósito,
ele está em casa?
— Sim, sra. Finchford. E já pedi ao nosso mordomo que o avise sobre sua chegada.
— Que maravilha, lady Caroline!
— Oh, não... — Patience murmurou, aborrecida. Celeste Finchford, tal como lady
Hillshine, era uma das maiores fofoqueiras de Londres. Isso não era segredo para ninguém.
Mas como pertencia a uma família tradicional, as pessoas suportavam sua presença nas
festas e recepções.
Com sua franqueza habitual, Patience não tardara a desagradá-la. Tampouco fizera
questão de disfarçar a antipatia que sentia por ela. Aliás, a antipatia era mútua. O resultado
não poderia ser outro: Celeste não apenas espalhara as calúnias inventadas por lady
Hillshine a respeito de sua conduta e de seu caráter, mas aumentara-as consideravelmente.
Chegara mesmo a insinuar que Patience, além de promíscua, era muito volúvel... Com base
nessas mentiras, espalhara várias histórias, todas falsas, a respeito de suas supostas
aventuras amorosas.
Patience pensou em dar meia-volta e retornar a seus aposentos. Poderia enviar um
bilhete a Thomas, pedindo-lhe que fosse vê-la, após o jantar. Enviaria outro a lady Caroline,
desculpando-se pela ausência... Mas teria de justificar-se. Esse era o problema. Faltar ao
jantar de despedida seria uma grosseria imperdoável.
Diante desse pensamento, Patience surpreendeu-se. Estaria aprendendo, finalmente, a
considerar as regras sociais, antes de agir? Teria amadurecido também com relação a isso?
Tudo indicava que sim, pois, depois de refletir por alguns instantes, ela continuou
caminhando em direção ao saguão. Seria preferível suportar a presença de Celeste
Finchford a ofender lady Caroline e Thomas.
— Patience, querida! — Caroline saudou-a, com sua costumeira amabilidade. —
Recebemos uma visita surpresa da sra. Finchford e suas amigas...
Cerca de vinte minutos depois, Patience se perguntava se seu sacrifício teria valido a
pena, pois estava a ponto de explodir.
Celeste Finchford tagarelava o tempo todo, entremeando fofocas com comentários
maldosos a respeito de várias pessoas preeminentes da alta sociedade londrina.
Para alívio de Patience, Kenfield, o mordomo, veio avisar que o jantar seria servido em
dez minutos.
A refeição transcorreu num clima de festa, apesar dos comentários de péssimo gosto
de Celeste Finchford. Volta e meia, Patience trocava olhares com Thomas, contando os
minutos que faltavam para ficarem a sós.
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No final da refeição, Caroline convidou todos a saborear um cálice de licor, no saguão.
Patience bem que teria gostado de ficar ao lado de Thomas, mas Celeste agiu mais rápido.
Precipitando-se na direção dele, tomou-o pelo braço e conduziu-o a um canto, deixando bem
claro que não queria compartilhá-lo com mais ninguém.
Resignada, Patience juntou-se a John que, tomando-lhe a mão, comentou:
— Você está linda, prima.
— Estou a ponto de ter uma crise nervosa, por causa das tolices e à maldade de
Celeste Finchford — ela segredou, baixinho.
— E agora, ao que tudo indica, ela já encontrou sua próxima vítima...
— É verdade — Patience concordou, observando Celeste, que tagarelava sem parar,
enquanto Thomas parecia fazer um intenso esforço para concentrar-se em suas palavras. —
Aposto que ela vai bombardeá-lo com as últimas fofocas de Londres.
— Ele sobreviverá — John gracejou.
— Assim espero.
O casal Tecking aproximou-se de ambos. E a conversa fluiu, num tom agradável. O
assunto principal era o trabalho bem realizado, o que causava um sentimento de satisfação a
todos.
Num dado momento, Patience pediu licença e afastou-se. Tinha acabado de ver
Celeste Finchford caminhar, de braços dados com Thomas, em direção à sala de estar. E
resolveu segui-los. Aproveitaria a primeira oportunidade para salvar Thomas da companhia
entediante da velha matrona.
Estava se aproximando da sala, quando ouviu Celeste dizer:
— Senhor visconde, detesto ser portadora de más notícias, mas a srta. Harrington...
— É uma pessoa adorável, a senhora não acha?
— Bem, eu não diria que...
— É também uma jovem brilhante e inteligente, além de muito bonita.
— As aparências enganam, meu caro visconde — Celeste sentenciou, em tom
confidencial. — Essa moça não é o que parece.
— Como assim?
— Ela é... má.
Patience estava atônita. Seu primeiro impulso foi invadir a sala e dizer umas boas
verdades a Celeste Finchford. Mas conteve-se. Precisava se acalmar, antes de enfrentar a
velha megera. Caso contrário, acabaria cometendo uma gafe terrível, e novamente se
tornaria alvo das fofocas da alta sociedade.
— Má? — Thomas repetiu. — Não entendo o que a senhora quer dizer com isso.
— Ora, não é possível que o senhor desconheça o significado de uma palavra tão
simples.
— Por favor, defina o que é "má", segundo o seu ponto de vista.
— Ora, é o contrário de "boa"... Em resumo, senhor visconde, acho que a srta.
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Harrington não é uma pessoa confiável.
— Sabe que eu penso exatamente o contrário? Ela me parece uma pessoa muito digna,
inclusive digna de confiança.
— Sinto dizer, visconde, mas o senhor está enganado.
— Sinto dizer, mas quem está enganada é a senhora.
— O senhor não a conhece como eu...
— Realmente, não, sra. Finchlet.
— Perdão, mas meu sobrenome é Finchford.
— Certo, sra. Finchford. Bem, como eu ia dizendo, não concordo, em absoluto, com sua
visão sobre a srta. Harrington.
— Nesse caso, sinto-me na obrigação de abrir seus olhos. — Baixando a voz, Celeste
afirmou: — Ela é excêntrica, volúvel, promíscua e...
— Já basta, sra. Finchlet — Thomas a interrompeu, ríspido.
— Finchford — a mulher o corrigiu, chocada.
— Seja lá qual for o seu nome, devo dizer-lhe que me desagrada muito o tom que a
senhora está usando para se referir à srta. Harrington.
— Visconde! — Celeste exclamou, chocada. Num tom muito calmo, Thomas indagou:
— A senhora acha que ela aceitaria se casar comigo?
— O quê?
— Acha que ela seria uma boa esposa?
— O senhor só pode estar brincando! Eu já disse e repito: o senhor não imagina quem
é a srta. Harrington... — E Celeste despejou seu arsenal de fofocas, numa velocidade
estonteante.
Patience sentiu as lágrimas virem aos olhos. Lágrimas de pura indignação. Por que as
pessoas eram tão maldosas? Por que espalhar tantas mentiras a seu respeito?
Várias perguntas assomavam à mente de Patience que, para sua própria surpresa, não
invadiu a sala, nem desacatou Celeste Finchford. Em vez disso, deu meia-volta e, passando
rapidamente pelo saguão, dirigiu-se a seus aposentos. Atirando-se na cama, desatou a
chorar. Estava farta de ser caluniada. Farta com a incompreensão das pessoas.
Uma batida soou à porta, mas Patience, mergulhada em seu sofrimento, não ouviu. A
batida se repetiu. No instante seguinte, Thomas entrava no quarto.
— O que há com você? — perguntou, preocupado. — Por que está chorando,
Patience?
— Porque estou farta das fofoqueiras de plantão — ela respondeu, com sua franqueza
habitual. — E também porque, para ser sincera, estou com medo de você ter acreditado nas
mentiras absurdas que ela lhe contou a meu respeito.
— Bem que eu me senti tentado a dar crédito àquela mulher. Sabe por quê? — Ele a
fitava com intensidade. E ante a expressão de espanto de Patience, explicou: — Porque se
você fosse uma pessoa tão desprezível como a que ela descreveu, seria mais fácil lhe dizer
103
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adeus...
— Adeus... — Patience repetiu, num fio de voz. — E esta palavra que vamos nos dizer,
hoje à noite?
— Se eu pudesse, diria... Mas não consigo imaginar minha vida sem você, Patience.
Ela piscou os olhos e, por um instante, perguntou-se se não estaria sonhando. Então
pediu, docemente:
— Por favor, repita isso...
— Não sei como vou viver sem você, Patience. E, ao mesmo tempo, não me sinto no
direito de pedir-lhe para ficar.
— Por que não?
— Porque amo você perdidamente... Mas não sei se o mesmo acontece com você.
— Mas eu também amo você, Thomas — ela declarou, com os olhos rasos de
lágrimas... Lágrimas de pura felicidade. — Quer dizer então que você quer continuar com
nosso relacionamento?
— Não, srta. Harrington... Eu quero me casar com você.
— De verdade?
— Claro. Inclusive, eu disse isso à tal Celeste Finchlet... Ou Finchford.
— Eu ouvi. Mas achei que você estivesse falando aquilo apenas para provocá-la.
— Não, querida, eu estava sendo sincero. Aliás, espero que ela espalhe a notícia...
Assim, não teremos de anunciar nosso casamento nos jornais — Thomas afirmou, com um
sorriso.
Patience sorriu de volta. Ele tomou-lhe as mãos e, fitando-a nos olhos, indagou:
— Patience Harrington, quer se casar comigo?
— Sim, Thomas Ashe... Não há nada que eu deseje mais, neste mundo. Mas como
faremos com nosso trabalho? Geralmente, passo a maior parte do tempo em Londres. E
muitas vezes preciso viajar... Em contrapartida, você tem uma rotina árdua de trabalho, aqui
em Blackfield.
— Costumo ir a Londres com freqüência. É verdade que fiquei por aqui, no último mês,
por causa da conclusão do projeto. Mas, em geral, viajo muito. Além do mais, Patience, sou
um homem liberal. Não quero prendê-la em Blackfield. Não quero que você abandone seu
trabalho, em função do nosso casamento. Tenho certeza de que, com um pouco de boa
vontade, conseguiremos combinar nossos horários e dar um jeito de estarmos juntos,
durante a maior parte do tempo. O que acha disso?
— Oh, Thomas! — Ela atirou-se em seus braços. — Para mim está perfeito!
— Não, querida... — Ele ergueu-lhe o queixo, num gesto de carinho. — Ainda falta uma
coisa, para que tudo fique realmente perfeito...
— O quê?
— Livrar-se dessas roupas.
Patience sorriu, enquanto ele a ajudava tirar o vestido. Mas a urgência do desejo era
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Julia Histórico 1503 – Anne Mallory – O Segredo do Visconde
tanta que Thomas a possuiu, antes mesmo que ambos estivessem totalmente despidos.
— Eu amo você — ele sussurrou, com os lábios colados aos dela, enquanto se
movimentava de maneira ritmada, buscando uma intensidade cada vez maior, no prazer.
— E eu amo você — ela respondeu, um segundo antes de chegar ao clímax.
Ambos alcançaram juntos o êxtase, como se celebrassem o início de uma nova vida,
plena de sonhos que sem dúvida, realizariam juntos.
Pouco antes de adormecer, Thomas beijou-a levemente, na testa. Patience abriu os
olhos e sorriu.
E o sono veio colher os amantes, proporcionando-lhes o descanso merecido.

Fim

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