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Análise do Artigo: “A Arte Primitiva nos Alienados”

escrito de Dr. Osorio Cezar


Andreia Agostinho

Osório Cézar nasceu na localidade Franco da Rocha, que se situa na Região de São Paulo
e foi um importante anatomopatologista, psiquiatra e estudioso. Ficou marcado por ser um dos
pioneiros na defesa do uso da arte como recurso terapêutico, na área da psiquiatria, opondo-se
aos métodos agressivos para o tratamento de doentes mentais.

Começou por estudar na área de odontologia, em São Paulo e formou-se em medicina, no Rio
de Janeiro, depois decidiu viajar para França, onde trabalhou no “Hospital da Salpêtrière”, como
assistente de laboratório, em conjunto com discípulos de Carl Jung (fundador da psicologia
analítica). Teve também contacto com Sigmund Freud, em que ambos estabeleciam o contacto
através de cartas, e de uma dessas correspondências surgiu a resenha, que irei analisar: “Arte
Primitiva dos Alienados”, escrita em 1925.

No entanto, foi no “Hospital Psiquiátrico do Juqueri”, localizado em Franco da Rocha,


mais especificamente, em São Paulo, que Osório Cezar trabalhou cerca de quatro décadas,
executando atividades com o objetivo de estimular a produção artística dos pacientes. Neste
hospital criou a “Escola Livre de Artes Plásticas”, onde organizou mais de cinquenta exposições
de obras de arte realizadas pelos pacientes.

Osório Cezar teve conhecimento e acesso à psicanalise, mantendo constante diálogo e


contacto com psiquiatras alemães e franceses, surgindo assim a motivação para a elaboração
dos estudos aprofundados, em relação à análise das manifestações formais e simbólicas, das
peças artísticas criadas pelos pacientes do “Hospital Psiquiátrico do Juqueri”.

O autor refere no texto, que existe uma imensa necessidade por parte de alguns pacientes em
materializar os seus sentimentos através de representações artísticas. Esclarece-nos que a arte
produzida por estas pessoas não é somente uma obra mecanizada e elaborada sem interesse e
sentido, muito pelo contrário, estas pessoas, como grande parte dos artistas, tem uma
verdadeira adoração pela arte que produzem.

Em relação, especificamente, à arte elaborada pelos pacientes do respetivo hospital, é


referido que muitas das produções executadas revelam um “feitio acentuadamente primitivo”,
sendo que a maioria destas pessoas são incultas, portanto, são indivíduos, que tiverem uma
educação intelectual ínfima. Desta forma, o médico foi desenvolvendo os seus estudos tendo
como base a forma humanizada dos métodos e tratamentos, utilizando a arte como mecanismo
de expressão da loucura e do “primitivo” dos doentes, tendo como objetivo o resgate da
abstração do paciente, que assim a mente seria ordenada e apaziguada. Com isto, ele apresenta
o “Método Científico Junguiano”, que consiste na análise dos símbolos místicos representados
nas obras, interpretando-os de forma formal.

Devido ao estudo de Osório Cezar em relação às produções destas pessoas, ele identifica
um ponto comum, o “feiticismo”, afirmando que: “(…) e em algumas delas deixam reproduzir o
sentimento atávico evocando a alma dos antepassados de sua raça.”

Para justificar, de forma coerente, esta afirmação, Osório Cezar fornece um exemplo de um
doente negro brasileiro chamado T., que foi polícia, casado e católico. Esteve preso, devido ao
assassinato da sua mulher, porém, foi transferido para o “Hospital Psiquiátrico de Juqueri”, por
causa da sua condição patológica. Pela informação obtida, relativamente, a este doente, na
infância ele terá sido vítima de moléstia grave, sendo também portador de diversos estigmas de
degeneração, como por exemplo, a assimetria craniada e pés chatos.

O médico conta, que este doente tinha momentos, em que se demonstrava alheado da
realidade, chegando a afirmar, que sofria de perseguição no hospital; que faziam de tudo para
o aborrecer e chegou a intitular-se de médico, - comportamentos provenientes do fruto da sua
singular imaginação. Desta aparente necessidade de expressão, T. começa a ter uma
preocupação diária em modelar barro, daí surgem figuras grotescas, de um realismo distorcido,
porém, embebido de uma originalidade única. Osório Cesar defende, que essas obras
representam “um grito atávico de recordações passadas.”

Uma das obras de T., que é referida no texto, é uma estátua de barro, que este intitulou
de: “São Jacinto”, esta é descrita no texto com as seguintes palavras: “possui a virtude de
espalhar a felicidade entre os homens”.

Osório Cezar descreve a obra, analisando-a, de um ponto de vista artístico, dizendo que se nota
uma certa originalidade na expressão que a figura possui, comparando-a com a carranca
grotesca da “Igreja de Santa Formosa”, em Veneza. O autor também explica, que o doente
artista nunca esteve, ao longo da sua vida, inserido em algum ambiente artístico, tendo sido
soldado da polícia, durante a maior parte da sua vida.

Osório Cesar mostra outra obra, com um nível de extravagância superior, produzida por
T., que ele terá intitulado de: “Santo António da Rocha”. Nesta obra, nota-se elementos
simbólicos, como a forma de cruz por baixo das mãos, que nos leva a pressentir a mentalidade
do primitivo, onde é representada uma ideia religiosa conjunta com a plástica de beleza.

“A arte para ser genial tem que ser livre”, defende o autor do texto, transmitindo-nos a
ideia, de que apesar da distorção das obras, consegue-se identificar uma íntima conexão com a
natureza e que a beleza não é uma manifestação, que se aprende na escola, mas sim uma
questão de “temperamento”, de afirmação sentimental, em forma de expressão material, de
cada individuo. Também é referido, no texto, que desde o período da antiguidade, conseguimos
encontrar exemplos de deformidades na arte, que não são só encontradas entre artistas, dito
loucos e através de artistas modernos, mas como sendo algo, que nos remete até aos nossos
antepassados.

Para o psiquiatra, o que existe de diferente nas obras de T. é a sua qualidade dominante
e “o seu forte individualismo feiticista “, sendo evidente a presença religiosa representada nas
suas obras. A explicação, que o médico encontra, é que, apesar de T. ter nascido no Brasil, as
suas origens são provenientes de Africa, onde a crença nos feitiços é muito presente, tanto ao
nível cultural, como ao nível social, sendo legitimo, assim, concluir, que as esculturas de barro
feitas por T., com elementos místicos, sejam resultado da explosão e mistura de crenças
feiticistas dos seus antepassados, somente, despertadas na sua razão, devido à sua condição
mental.

A escultura de “Santo António da Rocha” é considerada por Osório Cezar como uma
manifestação de “simbolismo sexual”, fruto de “recordações de práticas infantis”; na peça as
mãos estão representadas de forma realista, com algum movimento e adquirem uma marcante
autonomia em relação ao resto da escultura, esta atenção acentuada especificamente pelas
mãos reflete um simbolismo sexual, de um contexto de recordações de práticas infantis. O
médico afirma que este doente, na infância teve como vicio a masturbação, portanto justifica-
se que o desenvolvimento escultórico de T. dado às mãos representa a sua mentalidade artística
como símbolo da vida sexual infantil.

No texto é clarificado, que o simbolismo erótico não é intelectual, mas sim emocional,
que se forma sem notória consciência, sendo uma consequência de alguma meditação instintiva
associada à pessoa e à sua sexualidade do passado. Sobre o valor simbólico das mãos, o autor
diz que pode ser encontrado em todas as épocas, que teve um carácter elevado e até divino,
evidente na religião. Portanto, neste doente os médicos encontram esta explicação, para além
de um “sentimento artístico feiticista, recordações de atos de sua infância que surgem do
subconsciente e que ele plasma no barro sob a forma de símbolo”.
Osório Cesar também procede à comparação dos seus estudos simbólicos em relação
ao estudo de Freud, tendo em consideração o quadro “Sant’Ana, a Virgem e o Menino”, de
Leonardo Da Vinci, em que Freud chega a conclusões interessantes através da psicanálise.
Segundo Freud esta pintura é uma recordação infantil do pintor, ou “uma fantasia ulterior
transportada por ele à sua meninice”, acrescentando ainda, que as recordações da infância do
homem por vezes não têm outras origens, em vez de se reproduzirem, ficam impressas e
“perdidas” no tempo, até que aparecem deformadas e falseadas.

No fim do texto, o psiquiatra em tom conclusivo diz que a arte de T. “é uma arte do
primitivo, grotesca, feiticista, com representação simbólica sexual”, e que nela se encontra
conformidades profundas com a arte cubista. Indica, que apesar da educação intelectual
rudimentar deste doente, ele possui uma manifestação artística, que evoca lembranças
feiticistas dos seus antepassados, que só surgiram em consequência do seu desequilíbrio
mental. Consequentemente, o principal argumento do autor é defender, que existe uma estética
própria e individual nas manifestações artísticas das pessoas, que sofrem de doenças mentais, -
a arte, que produzem, muitas vezes, deformada e distorcida, são comparáveis à estética cubista
e futurista.

Os estudos deste psiquiatra, explicam o contacto entre o estilo formal e o conteúdo das doenças
psicóticas, assim Osório Cesar justifica os pontos em comum, encontrados nas manifestações
dos doentes mentais e nas obras de arte de vanguarda, tendo em consideração a mente
primitiva, ou seja, os artistas desta época estavam numa fase que sentiam a necessidade de
atingirem uma arte nova, diferente e renovada. Encontraram através do inconsciente e da
observação do homem primitivo, nas culturas consideradas primitivas, tais como: a cultura
africana, a indígena e a oriental. Um exemplo são, as máscaras Africanas de Picasso, que
mostram, que o artista encontrou inspiração na cultura Africana.

Devido a este princípio fundamentado por Osório Cesar, que, naturalmente, se abriram
complexos debates em relação ao primitivismo na arte, onde se introduziu a manifestação
simbólica dos loucos.

Foi no seculo XX, que Osório Cesar, estava a deixar a sua marca na história da psicologia,
porém, foi também neste século, que surgiram nomes bastantes importantes e marcantes,
como o de Mário Pedrosa, critico conceituado de arte brasileiro, que começou por analisar as
peças de arte elaboradas por um grupo de doentes mentais do “Centro Psiquiátrico Pedro II”.
Este defendeu o valor estético das obras produzidas por eles e os seus estudos foram
incentivados pela psiquiatra Nise da Silveira, que é conhecida por ter combatido as terapias
agressivas contra os doentes mentais.

Nesta altura, os pacientes, que frequentavam os ateliers dos hospitais psiquiátricos, apesar de
nunca terem tido formação artística ou contacto com a arte e com os materiais, todos eles
tinham uma enorme capacidade de imaginação, segundo Nise da Silveira, tinham uma “pulsão
configuradora de imagens”, pela qual defendia a existência de uma pulsão criadora, que o que
sobrevivia à doença mental seria a necessidade instintiva (compartilhou estas ideias com Mário
Pedrosa e Osório Cesar).

Nas análises de Mário Pedrosa, o que mais se destacou foi o estudo teórico em relação
às proporções formalistas, na convecção de “arte virgem”, termo que utilizou para analisar a
produção artística dos doentes mentais, crianças e primitivos. Segundo ele: “Cada indivíduo é
um sistema psíquico à parte, e também uma organização plástica e formal em potência”,
defendendo, assim, que o valor artístico que é dado às obras de arte deve ser equivalente aos
artistas modernos, tal como aos artistas, que sofrem de doenças mentais, sendo que estas
pessoas também deveriam ter uma marca na história da arte.

Concluindo, através destas análises, compreendi, que os conceitos artísticos dos


cânones do mundo da arte estão estabelecidos em conformidade com as regras impostas pela
sociedade, colocando-se a questão pertinente, de que: Se o paciente T. fosse uma pessoa
“normal” inserida na sociedade, as obras dele seriam empregadas com sentido “primitivista”?
Como esta pessoa é vista como um “louco” e as suas obras são produzidas num Hospital
Psiquiátrico, estas não são tão valorizadas como se fossem produzidas por uma pessoa
considerada normal, existindo assim um preconceito em relação a este tipo de artista, em que
podemos afirmar, que, desta forma, a arte é assim avaliada, conforme as circunstâncias da sua
criação e o artista ganha a visibilidade de artista conforme a sua condição.

Apesar de T. ter sido estudado por Osório Cesar e isso ter um sido um fator benéfico
para a visibilidade da sua arte, estas obras não foram criadas com a intenção de serem obras de
arte, foram criadas com uma intenção “virgem”, sem filtros, tal como a intenção de uma criança
quando produz pinturas. Consequentemente, não são inseridas no panorama artístico, não são
expostas em Museus de grande renome, são quase colocadas à margem da sociedade, como
por exemplo: o “Movimento da Pixação em São Paulo”, emergindo da negação, da transgressão,
não sendo considerado arte aos olhos dos críticos de arte. Contudo, este não deixam de ser uma
expressão, um grito, uma mensagem, tal como as esculturas de T..
No caso da Pixação, existe uma conexão política, social e económica, em que a maioria
dos pixadores são ou foram provenientes das periferias, onde existe um enorme nível de
pobreza, em que esta parte da população acaba por se ver inserida numa classe económica
baixa, vivendo segregada da sociedade. Desta forma, estes fatores estruturais e sistémicos
fazem com que emerja um sentimento de injustiça, surgindo assim uma necessidade, por parte
destas pessoas, de se expressarem, sendo que estas sentem que a sua voz nunca é ouvida. Com
isto, acabam por encontrar nas paredes e nas telas, um veículo de manifestação e liberdade,
onde podem gritar por democracia e por direitos igualitários, através da sua arte.

A Pixação é uma chamada de atenção para a existência de pessoas, que se sentem esquecidas e
colocadas à margem, muitas delas analfabetas, com trabalhos precários, que vivem em bairros
problemáticos, sem direito à inclusão nas sociedades urbanas, onde existe esperança e
oportunidade de um futuro melhor.

Na minha perspetiva, a liberdade de os artistas se expressarem nas paredes, reflete


também a forma destes olharem para a construção do sistema político e societário. Eles
defendem uma sociedade mais igualitária, em que não exista muros e paredes a dividir as
pessoas e que a propriedade privada não seja uma realidade, porque esta é sim o fator que mais
cria disparidades económicas e sociais entre as pessoas. As paredes e a sua utilização como
“espelho” de revolta e manifestação é algo muito simbólico, espontâneo e natural, deveria ser
um direito de todos e, respetivamente, dos artistas, tal como a oportunidade de ter uma vida
melhor, longe da segregação, não deveria ser apenas uma miragem e uma ilusão, criada por um
sistema capitalista, que separa mais as pessoas, do que as une.

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