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VIÇOSA
2019
RESUMO
As clássicas representações femininas feitas no decorrer da história da Arte, como por exemplo, a
tradição iconográfica da Vênus e sua frequente reprodução, serviram como suporte para construir um
ideal corporal e comportamental para as mulheres de diferentes épocas. Utilizada como solução
artística que permitia a exposição desses corpos nos museus de arte europeus, essas figuras femininas,
geralmente nuas, encarnavam seres mitológicos e alegóricos a fim de justificar e tornar adequada sua
exibição ao grande público. Essas representações estavam pautadas nas construções sobre a presença
social da mulher, carregando noções como a da sensualidade e a da passividade feminina. Assim, se
tratava de corpos idealizados e que incorporavam um padrão comportamental socialmente designado às
mulheres, como forma de controle e imposição do que era ou não adequado a elas. Produzidas em sua
grande maioria por artistas homens e como mero objeto de contemplação dos mesmos, essas pinturas
podem nos mostrar alguns critérios pelos quais as mulheres têm sido observadas e julgadas,
contribuindo para reforçar ainda mais esses valores e perpetuando um imaginário feminino ideal. A
partir de duas obras da artista barroca dos séculos XVI e XVII, Artemisia Gentileschi, em que retrata as
histórias bíblicas de “Susana e os Anciãos” e “Judite decapitando Holofernes”, essa investigação
propõe-se a analisar a influência do olhar masculino nas representações feitas de figuras femininas e
propor uma comparação destas com obras de mesma temática, mas realizadas a partir do olhar das
próprias mulheres.
Palavras-chave: Gênero; Corpo feminino; Artemisia; Representação; Arte barroca.
ABSTRACT
Abstract: The classic female representations made during the history of Art, such as the iconographic
tradition of Venus and its frequent reproduction, served as support to build a corporal and behavioral
ideal for women of different times. Used as an artistic solution that allowed the exhibition of these
bodies in European art museums, these female figures, usually naked, embodied mythological and
allegorical beings in order to justify and make their exhibition to the general public adequate. These
representations were based on constructions about the social presence of women, carrying notions such
as sensuality and female passivity. Thus, it was about idealized bodies that incorporated a behavioral
pattern socially assigned to women, as a way of controlling and imposing what was or was not suitable
for them. Mostly produced by male artists and as a mere object of contemplation, these paintings can
show us some criteria by which women have been observed and judged, contributing to further reinforce
these values and perpetuating an ideal female imagination. Based on two works by the 16th and 17th
century Baroque artist, Artemisia Gentileschi, in which she portrays the biblical stories of “Susana and
the Elders” and “Judite decapitating Holofernes”, this investigation proposes to analyze the influence of
the male gaze on representations made of female figures and propose a comparison of these with works
of the same theme, but made from the perspective of the women themselves.
Keywords: Gender; Feminine body; Artemisia; Representation; Baroque art.
3
INTRODUÇÃO
Apesar dos avanços nos debates, muito ainda precisa ser feito, e as discussões
de gênero que propõe a quebra da distinção binária, ampliam ainda mais as relações.
pela tentativa de valorização do ofício dando a este um caráter formal que se distanciava
das associações e vínculos artísticos existentes principalmente na França. Não sendo
mais caracterizados como simples artesãos, esses artistas trabalhariam agora com as
normas técnicas, estéticas e formais do estilo das academias.
1 OLIVEIRA, Brenda Martins de. Olhar para o corpo: um estudo do “nu feminino” de Baptista da costa do
Museu Mariano Procópio e sua relação com a pintura do entre séculos XIX e XX. Dissertação. UFJF, Juiz
de Fora, 2019, p. 39.
2 Ibidem, p. 39.
3 Ibidem, p. 47.
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Podemos usar como exemplo a Vênus, como é conhecida pela mitologia romana
ou Afrodite na mitologia grega. Deusa do amor e da beleza, era filha de Júpiter e de
Dione, mas outra versão sugere que tenha saído da espuma do mar. Zéfiro a levou sobre
as ondas, até a Ilha de Chipre, onde foi recolhida e cuidada pelas Estações, que a
levaram, depois, à assembleia dos deuses. Todos ficaram encantados com sua beleza e
desejaram-na como esposa. Júpiter deu-a a Vulcano, em gratidão pelo serviço que ele
prestara forjando raios. Desse modo, a mais bela das deusas tornou-se esposado menos
favorecido dos deuses.
4 Ibidem, p. 48.
5 BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.64.
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Figura 1 Sandro Botticelli (1445-1510). Nascimento de Vênus, 1483. Têmpera sobre tela,
172.5 x 278.5. GalleriadegliUffizi, Florença.
Figura 2 Alexandre Cabanel. Nascimento de Vênus, 1863. Óleo sobre tela, 130 x 255 cm. Musée
d'Orsay, Paris.
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Figura 4 Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando uma mulher reclinada.De Unterweysung
der Messung, Nuremberg, 1538.
Outra técnica de nu ideal foi sugerida pelo artista alemão Albert Dürer (1471-
1528). Segundo ele o nu deveria ser formado a partir do rosto de um corpo, os seios de
outro, as pernas de um terceiro, os ombros de um quarto, as mãos de um quinto, e assim
por diante. 8
OLHAR MASCULINO
Como é possível notar a partir da seleção das obras feita acima, a esmagadora
maioria das obras clássicas do gênero Nu são assinadas por artistas masculinos. Nesse
sentido, o presente artigo pretende analisar como esse olhar masculino sobre o corpo da
mulher, em diversos âmbitos, mas na Arte em especifico, influenciou nas representações
desse corpo.
Nesse sentido, toda imagem incorpora uma forma de ver que, no caso das obras
de arte do gênero Nu, são uma forma de ver masculina. Dessa maneira, podemos notar
que estas obras carregam uma ideia sobre o corpo feminino pautada nas construções
sobre a presença social da mulher, e a sua diferença em relação à presença social
masculina. Assim,
Dessa maneira, ela se torna objeto de contemplação masculina, e será entendida a partir
de uma série de premissas construídas sobre sua maneira de agir. Portanto, "[...] na
mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu "ser - outro";
ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve,
portanto, renunciar à sua autonomia." 14
Utilizando-se de outros autores, Nayara Matos nos mostra em seu artigo, como
as exposições de nudez feminina foram usadas como forma de controle sobre os
comportamentos das mulheres, e também como forma de impor o que era considerado
como apropriado às mulheres e ao mundo feminino. Dessa forma,
Estar nu é ser visto despido por outros e, contudo, não ser reconhecido
como quem se é. Um corpo despido tem de ser olhado como um
objeto a fim de tornar-se um nu. (Vê-lo como objeto estimula seu uso
como objeto.) A nudez revela a si mesma. O nu é colocado em
exibição. 18
Não questionar as questões que envolvem as representações do nu, retirando sua
visão canônica e idealizada na Arte, pode fazer com que discussões mais amplas como
as representações do nu feminino, abordadas nesse artigo, não sejam levadas em
consideração. De acordo com Gabriela Oliveira, em sua dissertação,
15 BARRETO, Nayara Matos. Do nascimento de Vênus à arte feminista após 1968: um percurso histórico
das representações visuais do corpo feminino. Trabalho apresentado no GT de História d a Mídia
Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013, p. 2.
16 OLIVEIRA. Gabriela Rodrigues Pessoa de. Entre pinturas e escritos: aspectos da trajetória de Virgílio.
Maurício (1892-1937) em uma narrativa particular. São Paulo. Dissertação de Mestrado, p. 221.
17 BERGER, John. Op. Cit., p. 55.
18 Ibidem,
p. 56.
19 OLIVEIRA. Gabriela Rodrigues Pessoa de. Op. Cit., p. 222.
11
SUSANA E OS ANCIÕES
20 Ibidem, p. 223.
21 OLIVEIRA, Brenda Martins de. Op. Cit., p. 128.
12
Esses dois homens, de tanto verem Susana passeando pelo jardim, começaram a
desejá-la secretamente. Impossibilitados de declarar um para o outro o seu desejo por
Suzana, um dia ambos se despedem, mas com a intenção de ficar mais tempo para ver a
mulher cobiçada. Depois de fingirem a despedida, os dois velhos retornaram aos seus
lugares confessando as suas intenções. Combinaram então uma ocasião em que
pudessem abordá-la sozinha.
Em um dia quente de verão, Susana pediu óleo e bálsamo a duas criadas para
que pudesse se banhar em seu jardim. Escondidos nos arbustos, à espreita, os anciãos
aguardaram as criadas se retirarem. Imaginando-se sozinha, Suzana começou a se
despir. Os velhos escondidos, então, esperando o momento certo para abordá-la,
surpreenderam-na exigindo que se entregasse a eles ou seria acusada de ter sido vista
com um amante.
COSTA, Ricardo da. Visões da Idade Média. Santo André, São Paulo: Editora Armada, 2019, p. 289 -310.
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Figura 5 “Susanna e os Anciãos”. Peter Paul Rubens, 1607 - 1608. Óleo sobre tela, 94x66.
Figura 6 "Susanna e os Anciãos", Alessandro Allori, 1561. Óleo sobre tela, 202x117.
uma passividade em relação às atitudes dos velhos. Já dominada por eles, ela
possivelmente não conseguiria escapar. Mais que isso, a maneira como esta posicionada
e as suas expressões dão a entender que ela não faz muitos esforços para se livrar deles.
A escolha do artista de posicionar a mão de Susana de forma que tocasse o rosto de um
dos anciãos contra a sua vontade, e a maneira como ela o olha, também parecem
garantir certa sensualidade à figura, dando a entender que estaria conivente com a
situação.
Nesta outra versão pintada por Tintoretto, no século XVI, a cena ganha outra
dimensão. Se tratando de momentos antes de notar que não estava sozinha, enquanto os
velhos ainda estavam a observá-la, Susana olha para o espectador como se notasse a sua
presença. Isso lhe confere certa sensualidade, além disso, expressões de pudor ou
desconforto não estão presentes, como se gostasse de ser observada.
A cena foi retratada diversas vezes, mas uma em especial nos chama mais
atenção. A obra do artista Caravaggio, datada do século XVI, época de predominância
das obras barrocas, a pintura mostra o momento em que Holofernes, já embriagado, é
decapitado por Judite com a ajuda de sua criada.
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Figura 8 "Judite e Holofernes". Caravaggio, 1599. Óleo sobre tela, 144 cm × 195 cm.
ARTEMISIA GENTILESCHI
Para abordamos a existência de uma diferença entre as representações femininas
feitas por artistas homens, ou seja, carregadas de um olhar masculino sobre o corpo da
mulher, e as representações desse corpo feitas por mulheres, iremos utilizar duas obras
da autora do barroco italiano Artemisia Gentileschi.
Nascida em Roma no dia 8 de julho do ano de 1593, primogênita dos seis filhos
de Prudenza Montore e Orazio Gentileschi, perdeu sua mãe precocemente, cabendo ao
pai, pintor reconhecido na época, criar os filhos. Entre eles, foi Artemisia quem
demonstrou maior interesse e aptidão para a pintura.
17
Vale lembrar que durante toda a sua carreira, Artemisia recebeu apoio e
comissões da Corte de Médici e também de outras pessoas influentes em sua época,
além disso, a maior parte dos seus trabalhos foram frutos de encomendas, que eram
pagas antes mesmo de receberem a obra finalizada. Dessa forma, essas questões
favoreceram a sua carreira e sua boa inserção no meio artístico, que era
predominantemente masculino.
18
25 NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições Aurora, 2016,
p.8.
19
Figura 99 "Susana e os anciãos", 1610. Artemisia Gentileschi, óleo sobre tela. Coleção Schönborn,
Pommersfelden.
Figura 10 Artemisia Lomi Gentileschi. Judite decapitando Holofernes (1620-1621). Óleo sobre tela, 199 x
162 cm. Galleria degli Uffizi, Florença - Itália.
Em sua outra obra com temática bíblica (Figura 10), Gentileschi também
podemos perceber um certo contraste. Apesar de se utilizar das mesmas técnicas
barrocas presentes na obra de Caravaggio que vimos acima, como o uso de tons claros
em relação a um fundo totalmente escuro, ressaltando a cena e dando um caráter de
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Sendo mulheres visivelmente fortes, tanto Judite quanto sua criada Abra,
podemos ver nessas figuras femininas que estavam seguras do propósito que deveriam
cumprir. A expressão facial da Judite, e a força empregada por ela para segurar o corpo
que se debate, demonstra determinação e confiança. Mulheres que capazes de passar
segurança ao seu povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas categorias e amarras sociais limitam qualquer um dos lados, mas nos
atemos aqui às limitações impostas à figura feminina. Pensar o gênero enquanto
categoria analítica nos mostra como a criação de um discurso sobre o que ou não
adequado, ou do que se espera ou não do comportamento de uma mulher são
construções inteiramente sociais, que são responsáveis por sujeitar os indivíduos.
Além disso, o patriarcado, sistema social que expressa essas relações de poder,
surtiu efeito em vários âmbitos, na medida em que fez do corpo feminino um objeto
para atender às necessidades masculinas, tirando deste corpo sua autonomia e vontade
própria.
Vale ressaltar, como aborda John Berger, “só vemos aquilo que olhamos. Olhar
é um ato de escolha.” 26Assim, da mesma forma que os pintores em suas respectivas
épocas representavam mulheres baseados em sua própria visão de mundo, e a partir de
premissas que estavam inseridas no contexto em que viviam. Também aqui estamos nos
baseando em discussões que foram postas pelo presente a um determinado passado.
Dessa maneira, as categorias utilizadas para se avaliar as obras de arte como Beleza,
Verdade, Gênio, Civilização, Forma, Status, Gosto, etc, eram outras e dificilmente eram
questionadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIRA, Brenda Martins de. Olhar para o corpo: um estudo do “nu feminino” de
Baptista da costa do Museu Mariano Procópio e sua relação com a pintura do
entre séculos XIX e XX. Dissertação. UFJF, Juiz de Fora, 2019.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo:
Edições Aurora, 2016.