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Arte e agência

Alfred Gell

Apresentação:
A apresentação cumpre bem o que se propõe: apresentar a obra. São dadas algumas
pistas de leitura para os pensamentos de Gell. A princípio, é colocado que ele é um antropólogo
britânico, situando o entorno do autor. Seus pensamentos se fundam a partir do debate em torno
dos objetos e materialidade presentes a partir dos anos 1990. Sobre a arte propriamente dita, se
tem que ela sempre esteve presente na antropologia, mas na segunda metade do século XX ela
foi colocada como algo secundário. O regresse do tema como algo central se deu a partir dos
anos de 1970 com os estudos de cultura material marcada pela arqueologia culturalista e a
antropologia simbólica. O interesse na materialidade se dá com a releitura da obra clássica de
Marcel Mauss, a associando com questões técnicas, corporalidade e a noção de pessoa. Um
outro pensamento que guia essas noções são as divisões modernas dualistas: nós-outros,
natureza-cultura, humano-não humano, sujeito-objeto, etc., colocando em pauta as divisões
clássicas da arte e a transformação e multiplicação de critérios para exposições de objetos
etnográficos. Nesse contexto ocidental nasce as divisões entre artesanato, folclore, objeto
etnográfico, destinadas a criar um olhar exorcizante para as culturas não ocidentais. A partir
disso, os objetos de “arte primitiva” se converteram em instrumentos de luta política,
reinvindicação étnica e denúncia de exploração colonial.
Nessa perspectiva de luta, passou a se procurar qualidades estéticas em objetos
etnográficos de acordo com critérios universais (obra, artista, criação, repertório, etc.) na busca
de reverter algumas tendências antigas, mas as próprias divisões não foram questionadas. A
“arte etnográfica” continuou sendo avaliada pelos “cultos” e seus critérios hegemônicos de arte
ocidental. Se percebe, então, a necessidade de se produzir uma aproximação simétrica das
tradições culturais do mundo, incluindo a própria tradição ocidental, como uma entre outras.
Com isso é apresentada, mesmo que brevemente, a teoria antropológica da arte. Ela se
fundamenta em um tratado entre as relações de arte e antropologia, colocando o sentindo em
arte de e na vida social. De início, ela se focou em buscar padrões estéticos universais, depois
a contextos particulares de significados. A diante, se buscou compreender a produção e
circulação dos objetos visuais nativos, a partir de uma reflexão de sua natureza e as
características de sua eficácia simbólica e ritual, entendendo a lógica das diferentes expressões
em seus próprios termos. A antropologia da arte focou muito nos alcances das valorizações e
categorias estéticas, e nos debates sobre forma-função. Para Gell, nesses moldes, nunca foi
produzido uma verdadeira antropologia da arte, pois sempre se apoiou muito em disciplinas
como a estética, semiótica ou linguística, deixando de lado o foco antropológico.
A proposta de Gell é analisar as produções artísticas (ocidentais e não ocidentais) a
partir de um esquema de relações, não priorizando a interpretação de significados simbólicos
de objetos, mas sim a rede de relações que os originou, identificando os afetos ou respostas que
esses objetos produzem no receptor ou recebem de outros elementos da mesma rede de
intencionalidades. Se trata então de mudar a análise da estética para a da intencionalidade.
Nessa perspectiva, se tem que os objetos fundamentalmente constituem índices das relações
sociais que os originaram. O trabalho da antropologia, então, se trata em reconstruir as relações
dos objetos no meio social, como se fossem pessoas dotadas de agência (capazes de produzir
efeitos ou respostas) em uma cadeia de agenciamentos. Gell entende que o comportamento dos
objetos na rede é do mesmo tipo que o das pessoas em interação, na medida que o índice é o
resultado e/ou instrumento da agência social. Para ele, falar de arte é falar de situações que
produzem índices que podem incluir desde a obra convencional (de museu), até um fetiche
africano em seu contexto de ritual. A arte é um sistema de ações.
A existência dos objetos não pode se fazer a parte do fluxo de relações ou interações
sociais concretas. A chamada rede da arte, proposta pelo autor, tem um esquema composto por
quatro elementos: artista, índice, protótipo e receptor. Esse esquema tem a posição do agente e
do receptor, permitindo abordar um amplo leque de situações empíricas nas quais os diferentes
elementos podem ocupar alternadamente ou simultaneamente as duas posições. O objeto
constitui o índice a partir de sua análise antropológica supõe, ou concretamente abduz a agencia
e a rede de relações presentes no processo de produção do objeto. A agência se encontra
distribuída na cadeia de casualidades, e as pessoas não são entidades fechadas e homogêneas,
são múltiplas e fracionadas, partes de um todo que constituem em si mesmas um primas do
todo. A agência é social e não exclusivamente individual ou psicológica, na medida em que se
insere em um meio de relações sociais, resultando em ações e efeitos de ações entre agentes
(coisas também). Ou seja, todo objeto ou pessoa é um agente em potencial, podendo ocupar a
posição de agente em um modelo relacional na medida em que forma parte de um meio casual
de relações sociais. A agência seria uma posição dentro de uma relação, não uma essência fixa
e imutável ou um fenômeno mental. Os objetos e pessoas se colocam em posição de agentes
em determinadas situações e contextos: só podendo ser quando estão relacionados com outros
objetos e pessoas.
As obras são momentos de séries temporais, constituem verdadeiras linhagens. Em seu
conjunto, configuram um macro objeto que evolui com o passar do tempo. Essa acumulação
de agências para frente e para trás no eixo temporal, são chamadas por Gell de proteção e
retenção. Ele argumenta que as obras de arte são partes de um objeto distribuído que se
relacionam com todas as obras de um sistema determinado (individual ou coletivo), que se
distribui no tempo e espaço: perceber um estilo é essencialmente captar as relações entre as
relações das formas como partes do todo. Por meio de uma analise formal, morfológica, é
possível determinas as transformações no tempo que as formas experimentam, e assim, seguir
a biografia dos objetos como se fossem pessoas. A pessoa, conforme Gell, é a soma dos índices
que demostram, não só na vida, mas na existência biográfica. O índice não seria o ponto final
de uma ação, mas uma extensão distribuída ou disseminada de um agente. De forma geral, se
busca superar a oposição clássica entre objeto de arte ocidental estetizado e o artefato não
ocidental funcional: o encantamento da magia é equiparável ao encantamento estético da obra
em um museu.

Definição do problema: necessidade de uma antropologia da arte


A ideia de “teoria antropológica da arte visual” provavelmente diz respeito a noção de
uma teoria que trate a produção de arte nas sociedades coloniais e pós-coloniais que os
antropólogos estudam, além das chamadas “artes primitivas” (agora chamadas de etnográficas)
que se encontram nas coleções de museus. Algo próximo a ideia de uma teoria da arte aplicada
a arte antropológica. Nessa perspectiva, as teorias clássicas podem facilmente escrever
reflexões sobre mascaras africanas como obras de arte. Dando continuidade a sua
argumentação, o autor aponta o pensamento de Price, que pensa que cada cultura tem uma
estética específica, e que a tarefa da antropologia da arte é definir suas características para que
se possa considerar as contribuições estéticas dos artistas não ocidentais corretamente (em
relação as intenções específicas de sua própria cultura). Os argumentos de Price se baseiam em
uma ideia de um conceito de beleza universal com base na estética, e uma submersão no saber
tribal para descobrir a função utilitária ou ritual dos objetos de “arte”. Para tal, são colocados
dois princípios: o primeiro é que mesmo o olhar mais talentoso não está despido da cultura
ocidental da qual faz parte, e o segundo é que muitos “primitivos” também possuem o olhar
condicionado por um aparato ótico que reflete sua própria cultura. A visão de Price diz respeito,
então, ao reconhecimento da existência e legitimidade de marcos estéticos daqueles que criam
obras (inclusive e principalmente, os não ocidentais).
Gell coloca que há uma analogia evidente entre a estética especifica, a cultura e uma
época especifica, que fica claro em alguns trabalhos que mostram que a recepção da arte de um
determinado período/tempo na história do ocidente, dependia de como se via a arte nesse
momento. Essas formas de ver mudam com o tempo, portanto, para apreciar a arte de um
período, e necessário recuperar a forma de ver que os artistas desse momento colocavam para
seu público. Voltando para o trabalho de Price e suas ideias de potencializar o reconhecimento
de arte e artistas de não ocidentais, o autor se questiona: que pessoa bem intencionada podia se
opor a essa proposta? O ponto é que o autor não acredita que sistemas estéticos não ocidentais
constitua uma antropologia da arte, pois essa teoria foca no contexto social da produção,
circulação e recepção de arte, tanto na valoração de obras particulares. A título de exemplo do
problema estético, é colocado que a preocupação está em porque ela entende uma escultura
esteticamente superior a outra, mas questões como a motivação de se esculpir nessa tribo não
são levadas em consideração. A presença de um elevado número de esculturas, talhadores e
críticos de esculturas em Yorubalândia é um feito que a questão estética não explica. Da mesma
forma, nossas preferencias estéticas não explicam por si mesmas a existência de outros objetos
que se reúne em museus. Enquanto os sentidos estéticos são atos mentais interiores, os objetos
de arte circulam em um mundo externo físico e social: a produção e circulação tem que se
sustentar em certos processos sociais objetivos que se conectam com outros distintos, como a
troca, a política, a religião e o parentesco.
O autor não se convence da ideia de que toda cultura tenha em seu cerne algo
comparável com a estética ocidental. O desejo de ver a arte por esse prisma nos diz muito mais
da nossa própria ideologia e da veneração quase que religiosa dos objetos de arte como talismãs
estéticos, que das outras culturas. Para Gell, os esquemas de valoração só têm interesse para a
antropologia se formam parte de processos sociais de interação que os geram e sustentam. A
antropologia da arte não pode ser um estudo sobre princípios estéticos, mas a mobilização
desses princípios ou o que ele se pareça, no curso da interação social. Nesse caso, o autor
propõe que o que tem que ser feito é criar uma variante de uma teoria antropológica existente
e aplicar à arte, visto que as teorias antropológicas existentes não tratam da arte, sim de
parentesco, economias de subsistência, gênero, religião e temas similares. Com isso, o autor
começa a debater o que entende por teoria antropológica. De forma sintética, é colocado que a
antropologia trata de um tema especifico: as relações sociais, ou seja, as relações entre os
participantes de sistemas sociais.
Nessa perspectiva, colocando que alguns autores, como Price, que reconhecem a cultura
como o tema da antropologia, Gell aponta que o problema nesse pensamento se dá que só se
descobre uma cultura com observação e registro da conduta cultural em uma realidade
específico, observando como um se relaciona com “outros” particulares nas interações sociais.
A noção de cultura não existe fora das manifestações produzidas nas interações: o problema é
que nesse caso, a interação é entre o antropólogo e um informante provavelmente
desconfortável. Voltando para a questão da “estética indígena” o problema, de acordo com
Gell, está na tendencia de colocar a resposta estética fora do contexto social de suas
manifestações, se baseando em uma noção de antropologia de Boas que coisifica a cultura no
geral. Portanto, um foco puramente cultura, estético e valorativo sobre os objetos de arte é um
beco sem saída para a antropologia. Os interesses do autor estão na possibilidade de construir
uma teoria da arte com base nas relações sociais, entendendo que as pessoas ou agentes sociais
podem, em determinados contextos, serem substituídos por objetos de arte.
Sobre o objeto de arte, o autor aponta o pensamento de Morphy, que rejeita a definição
institucionalizada de arte, pois esse é tudo o que tratam como arte as pessoas especificas que
fazem parte desse universo reconhecido da arte ocidental. A ideia é de que não haja um mundo
da arte em si em muitas sociedades que estudam os antropólogos, mas, mesmo assim, elas
produzem obras, algumas das quais se encontram como arte em nosso mundo da arte.
Conforme as teorias ocidentais, a maioria da arte indígena só são assim reconhecidas porque
nós as reconhecemos como tais, não porque as pessoas que produziram pensam que é. Aceitar
essas definições ocidentais obriga o antropólogo a aplicar a arte de outras culturas um marco
referencial de natureza metropolitana. Dessa forma, Morphy propõe uma definição dualista: os
objetos de arte são aqueles que possuem propriedades semânticas ou estéticas e que são usados
para apresentar ou representar algo, ou seja, os objetos de arte são signos que transmitem um
significado ou são objetos elaborados para provocar uma resposta estética cultural, podendo
ser as duas possibilidades de uma vez. Por outro lado, Gell coloca que não concorda com essa
perspectiva, pois ele não acredita que algo que não seja a língua tenha significado como
geralmente é entendido. Portanto, o autor evita a utilização da noção de significado simbólico
no trabalho, pois quem fala sobre os objetos somos nós, não eles mesmos (de forma gráfica).
O autor coloca ênfase, para seu trabalho, na agência, interação, casualidade, resultado
e na transformação. A arte é considerada por ele como um sistema de ação, destinada a mudar
o mundo mais que a codificar proporções simbólicas sobre ele. É considerado que a perspectiva
da ação é mais inerente à antropologia, pois nela se é capaz de analisar o papel prático da
mediação que desempenham os objetos de arte no processo social. A teoria da antropologia da
arte, conforme o texto, não precisa de um critério que seja independente da teoria antropológica
em si mesma; com isso, a definição de objeto de arte empregada não é institucional, estética
nem semiótica, é teórica: o objeto de arte é qualquer coisa que se enquadra na “fenda” de objeto
de arte dentro do sistema de termos e relacionamentos concebidos em teoria. A natureza do
objeto de arte é uma função da relação social, a matriz que ela se insere. Inicialmente se tem
os objetos de artes em duas categorias principais: ocidentais e indígenas ou etnográfica. Porém,
qualquer coisa podia ser, teoricamente, um objeto de arte do ponto de vista antropológico (até
mesmo as pessoas), pois não existe solução de continuidade entre a antropologia da arte e a
antropologia social da gente e seu corpo: um ídolo de um templo é considerada como corpo de
Deus, ao mesmo tempo um médio espiritual empresta seu próprio corpo, de forma temporal,
para Deus; os dois exercendo papel de objeto de arte, pois podem ser vistos como relações
sociais em torno dos objetos que mediam a agência social.
Portanto, a antropologia da arte, para Gell, é o estudo teórico das relações sociais ao
redor dos objetos que mediam a agência social. Para tal ciência ser especificamente
antropológica, ela precisa que se desenvolver sobre a base de que os objetos de arte são
equivalentes a pessoas ou, de forma mais precisa, aos agentes sociais. É apontado também pelo
autor a existência de uma sociologia da arte, que se ocupa, precisamente, com os parâmetros
institucionais da produção, recepção e circulação da arte. Os estudiosos dessa área, Berger e
Bourdieu, por exemplo, analisam as características institucionais das sociedades de massas –
as instituições. Dentro da perspectiva antropológica da arte, é colocado que o antropólogo não
pode ser omisso às instituições, é necessário considera o marco institucional que envolve a
produção e circulação de obras de arte sempre e quando ele existir: tendo cuidado para não
limitar seus interesses somente a isso. A arte produzida em contextos locais que é criada como
derivada da mediação da vida social e da existência de instituições mais gerais, justificam ao
menos uma autonomia relativa para uma antropologia da arte que não foque na presença de
instituições especificas de arte. A partir da particularidade da relação social (que pode ou não
ter instituições especificas de arte), a antropologia da arte pode se separar do estudo de
instituições artísticas ou do mundo da arte.
A antropologia tende a desfamiliarizar e relativizar o conceito de pessoa. Desde seu
nascimento existem trabalhos sobre relações peculiares entre pessoas e coisas que, de alguma
maneira, se parecem pessoas ou cumprem essa função. Alguns pensamentos clássicos da
disciplina são utilizados de exemplo dessa relação, como o de Taylor, e o animismo, Frazer, e
a magia simpática e por contágio, e Malinowski e Mauss, com a troca. A base para pensar o
objeto como pessoa vem da teoria de Mauss, já que os benefícios ou presentes são considerados
como extensões das pessoas em sua teoria da troca. A teoria antropológica da arte proposta por
Gell, conforme ele coloca no texto, se trata de uma adaptação da teoria de troca de Mauss, a
aplicando nos objetos de arte. Isso se dá porque o autor pensa que uma teoria antropológica
sobre qualquer tema só se torna viável na medida em que se pareça, em certos pontos
fundamentais, com outras teorias antropológicas. Ou seja, a teoria antropológica da arte é
aquela que se parece a uma teoria antropológica na qual as obras de arte figuram como
elementos relacionados cujos vínculos são descritos na teoria.
De maneira direta, é colocado que a antropologia é excelente em oferecer ricas análises
sobre condutas, atuações, afirmações, dentre outras, aparentemente irracionais. O problema da
irracionalidade é resolvido com a localização e contextualização na dinâmica da interação
social (não na cultura, que se trata de uma abstração para o autor). A conduta pode ser
condicionada pela cultura, mas é melhor considera-la como um processo ou uma dialética real
que se desenvolve no tempo. A antropologia compartilha a perspectiva de interpretação da
conduta social com a sociologia e a psicologia social. A diferença da antropologia é que ela
produz uma profundidade de analise que podia ser descrita como biográfica, pois são
consideradas as perspectivas dos próprios agentes. A sociologia, por outro lado, é vista como
supra biográfica e a psicologia social e cognitiva, infra biográfica. A antropologia se centra no
ato enquadrado no contexto da vida (ou etapa da vida) do agente. Essa profundidade tem uma
correlação espacial: os espaços da antropologia são onde os agentes percorrem no decorrer de
suas biografias. Os antropólogos observam as relações em um contexto biográfico, ou seja, se
consideram as relações como parte de uma serie biográfica que aparecem em diferentes fases
da vida. A antropologia explica a conduta das relações sociais em um contexto; a antropologia
da arte analisa a produção e circulação dos objetos de arte como uma função do contexto de
relações.

Teoria da trama de arte (Art Nexus)


Tendo a teoria da antropologia da arte como uma forma de estudar o domínio em que
os objetos se fundem com as pessoas por conta das relações sociais entre pessoas e coisas, e
entre pessoas e outras pessoas por intermédio das coisas, o autor afirma que não pretende
utilizar termos como “objeto de arte” ou “obra de arte” com finalidade técnica, muito menos
apontar o que é ou não um objeto de arte. É informado que o pressuposto para pensar na teoria
da trama de arte que dá forma a chamada antropologia da arte proposta no trabalho é o índice.
Com isso, o autor o explica como parte fundamental da teoria apresentada. De antemão, se tem
que o ponto de foco são as artes visuais, ou, ao menos, visíveis. Com isso, se tem que as
“situações artísticas” se definem como aquelas em que o índice material – a coisa visível e
física – dá origem a uma operação cognitiva chamada de abdução da agência. A fim de explicar
o índice, é colocado em pauta a semiótica pierciana, que tem que se trata de: um signo natural,
uma entidade da qual o observador realiza uma inferência casual de algum tipo, ou uma
inferência sobre as intenções ou capacidades de outra pessoa (fumaça indica fogo). Porém, se
sabe que a fumaça pode ser produzida sem o fogo. Os índices não fazem parte de um cálculo,
nem são componentes de uma linguagem natural ou artificial que os termos têm significados
fixos em convenções. Com isso, entendendo que a lógica indicial por si só, não basta para
pensar nas relações sociais estabelecidas pelos objetos de arte, o autor aprofunda a
compreensão do termo.
Nessa perspectiva, se coloca em pauta a ideia de abdução. Se baseando nos pensamentos
de Eco, é colocado que a abdução é um caso de inferência sintética em que encontramos uma
circunstância muito curiosa que poderia se explicar pela suposição de que é o caso específico
de uma regra geral, portanto, adotarmos essa suposição. Ainda no mesmo pensamento, tem-se
que a abdução representa a tentativa aventurada de traçar um sistema de regras de significação
que permitam que o signo adquira seu próprio significado. Ela abre uma zona em que a
inferência semiótica se funde com a hipotética (não semiótica). A abdução pode ser utilizada
para criar uma nova teoria empírica, algo que nunca foi proposto, pois pega indicadores de um
local e outro e cria algo novo surgido dos processos perceptivos, não controlado; ela está ligada
a noção de primeiridade (fenomenologia) a criação, pois todo conhecimento nasce da
criatividade; representa uma hipótese; ela é uma especulação, a partir de um caso se pode
conecta-lo a uma regra geral pelas semelhanças; nela se utiliza a regra e a conclusão para
defender que uma determinada premissa implica naquela conclusão, se vai eliminando
possibilidades menos prováveis, em outras palavras, é um mecanismo básico para limitar o
número infinito de explicações compatíveis com qualquer evento.
Ainda nessa discussão, Gell coloca que procura evitar qualquer ideia que sugira que o
mínimo da arte visual é como a língua (simbólica), e para isso a ideia de abdução aplicada ao
índice é essencial: se coloca os objetos de arte (índices) como se tivessem uma fisionomia; ao
olhar para ele, se vê alguém que sorri. Esse sorriso pode ser percebido como uma reação
amigável, ao menos que se esteja fingindo; aí se tem uma mente real e uma imaginária. O meio
que se usa para formar uma ideia da disposição e intenções do outro social é um alto número
de abduções de índices que são um ponto intermediário entre convenções semióticas e leis da
natureza. A definição mínima da situação da arte (visual) implica na presença de algum índice
que se pode fazer abduções de muitos tipos. Portanto, a categoria de índices relevantes para a
teoria é aquela que permite a abdução da agência social. Um signo natural como a fumaça não
se considera como produto de uma agência social; o que interessa é ver, por exemplo, o índice
de uma fogueira acendida por agentes humanos, produzindo a abdução de agencia, fazendo
com que a fumaça se converta em um índice artefatual (assim como o signo natural).
Após as explicações de índice e abdução, o autor explica o conceito de agente social.
De forma direta, esse é visto como quem exerce a agência social: qualquer ser humano pode
ser considerado um agente social, ao menos em potência. A agência pode ser atribuída a
pessoas (ou coisas) que causam eventos por atos mentais, vontade ou intenção, no lugar de
simplesmente atos físicos. O agente é aquele que faz que os eventos ocorram ao seu redor. Os
filósofos enxergam a agência sob a ótica da mente e intenções, e a relação entre as intenções
internas e acontecimentos reais, os sociólogos apontam que as ações tem consequências não
desejadas. Para o antropólogo, o problema da agência não é a definição mais racional ou
justificável para o conceito, sua tarefa é descrever as formas de pensamento apontadas pelos
filósofos de forma que as colocassem em prática social e cognitiva. Aos olhos antropológicos,
as noções comuns de agência, extraídas de práticas e dos discursos cotidianos, são formas de
estudo. O autor defende a ideia de que a agência pode ser inerente aos ídolos, assim como aos
carros, por exemplo, pois pessoas de verdade atribuem intenções e consciência a tais objetos.
A ideia de agência é um marco estabelecido culturalmente para pensar casualidade, quando se
supõe que o que ocorre segue as intenções prévias de uma pessoa agente ou coisa agente:
quando pensamos que algo acontece por causa da intenção da pessoa ou coisa que inicia a
sequência casual, se tem um exemplo de agência.
Gell coloca que é redundante situar a palavra social diante a agência, pois o termo
agência serve, em primeiro lugar, para diferenciar os feitos causados pelas leis físicas e as ações
iniciadas por intenções prévias (social). A ideia de intenção prévia supõe atribuir ao agente
uma mente similar – se não idêntica – à humana. Os animais e objetos materiais, nesse sentido,
possuem mentes e intenções, mas essas sempre são, ainda que minimamente, de caráter
humano, pois só temos acesso “de dentro” às mentes humanas. E essa mente humana é social,
tal que só conhecemos nossa própria mente em um contexto social. É impossível pensar em
ação sem pensar em termos sociais. O tipo de agência atribuída aos objetos de arte (ou índices
de agência) é social, isso se dá porque eles só surgem como agentes de maneira relevante em
meios sociais muito específicos. Vale ressaltar que os objetos não são agentes autossuficientes,
são secundários, que funcionam em conjunção com associados (humanos) específicos. De um
ponto de vista filosófico, se coloca a autonomia e independência humana para os estudos de
agência, mas, para Gell, o que mais interessa é a agência secundária que adquirem os artefatos
quando se inserem em uma trama de relações sociais. Com isso, o autor passa a explicar as
coisas como agentes sociais.
De forma quase automática, quando pensamos no “outro” em relações sociais,
pensamos em humanos. Essa lógica é limitada, conforme Gell, pois a agência social pode ser
exercida sobre as coisas, e pelas próprias coisas, assim como os animais. As pessoas fundam
evidentes relações sociais com as coisas, a nível de exemplo se tem uma menina e sua boneca
que é tratada como sua melhor amiga. As relações construídas pela menina com sua boneca
não são típicas da conduta social humana, mesmo que elas existam. Outro exemplo que é
colocado é a escultura de David de Michelangelo: o que seriam as relações estabelecidas entre
as pessoas (amantes de arte) se não algo que coloca a escultura como um boneco – só que de
adultos? Esses objetos acabam por se transformar em seres sociais que fazem parte das
“famílias”, ainda que só durante um tempo limitado. A distância que separa as bonecas e os
ídolos é muito curta, e a que separa os ídolos das esculturas de Michelangelo é igualmente
curta. As formas que as agências sociais são concedidas às coisas ou pelas quais as coisas
emanam agências compõem uma gama diversa de possibilidades.
Como exemplo, é posto a realidade de um carro, que é compreendido como um bem
material e um meio de transporte. Quem possui esse carro, o compreende como parte de seu
próprio corpo, algo que imprime sua própria agencia frente a outros agentes sociais. Um
vendedor aborda um cliente potencial com seu corpo (dentes limpos, bom penteado, índices de
concretização de negócios), assim como seu carro. Essa é outra parte do corpo. Quando o carro
recebe dano, configura uma agressão pessoal, uma ofensa, ainda que o seguro cubra os gastos.
O automóvel não é só um locus de agencia do dono e uma via que se pode afetá-lo a agência
de outro (maus condutores, vândalos, etc.), ele também tem uma agência autônoma. O veículo
não só reflete a personalidade do dono, mas também possui sua própria personalidade como
carro. Falando de seu próprio carro (Olly), Gell complementa o exemplo com a situação em
que ele para de funcionar no meio da noite longe de casa. Esse ato é considerado como de alta
traição, cujo o único culpado pessoal e moral seria o carro e ninguém mais (nem ele, que é
dono, nem o mecânico que o revisa). Grande parte dos donos de carro atribuem personalidade
a seus veículos: se trata de uma forma de crença religiosa (animismo veicular) que é aceito
porque forma parte da cultura automobilística de onde ele vive.
Se define o agente como quem exerce a capacidade de provocar que ocorram coisas ao
seu redor, capacidade que não se pode atribuir ao estado comum do cosmos material, mas só a
uma categoria especial de estados mentais: as intenções. De modo comum, as bonecas e os
carros podem atuar como agentes em interações sociais humanas porque, por definição, não
abrigam interações. As coisas que acontecem com eles são feitas por coisas físicas, não ações
relacionadas às coisas. No máximo se tem que a menina imagina que sua boneca é uma pessoa.
Uma sociologia da ação que toma como premissa a natureza intencional da agência se contradiz
quando introduz a possibilidade de que coisas podem ser agentes, pois a teoria se funda na
separação entre a agência exercida pelos seres humanos conscientes e imersos em cultura, e a
casualidade física que explica o comportamento das coisas. Gell afirma que a agência humana
atua no mundo material. O autor coloca as cadeias de causa e efeito como central para a
existência da ação intencionada, pois elas nascem como estados mentais e se dirigem aos
estados mentais dos outros sociais. A menos que exista uma mediação física que se aproveite
sempre das diversas propriedades casuais do entorno material (meio ambiente, corpo humano,
etc.), o agente e o paciente não interagem um com o outro. As coisas com suas propriedades
casuais, são tão essenciais à agência quanto os estados mentais. Se reconhece a presença do
outro agente somente por conta que o entorno casual que o cerca adota uma configuração que
se pode abduzir uma intenção: não é possível diferenciar que alguém é um agente antes que
atue como tal e modifique o entorno casual de uma maneira que só pode se atribuir à agência.
A boneca não é um agente autossuficiente como um ser humano, ela é uma emanação
ou manifestação da agência; um espelho, veículo ou canal da agência e, por tanto, origina
experiencias tão intensas da copresença de um agente, como um ser humano faz. Nessa
perspectiva, se tem os agentes primários, seres intencionais categoricamente diferente das
simples coisas ou artefatos, que são os agentes secundários (bonecas, carros, etc.), através dos
quais os primários distribuem sua agência em entornos casuais e a fazem efetiva. Falar que os
agentes artefatuais são secundários não implica conceder que não são agentes. Aqui como se
tem soldados que são simples homens, a menos que armados com um rifle. As armas são partes
de si mesmo e o fazem ser quem são. Não podemos falar de soldados sem falar de suas armas,
assim como o contexto social e as táticas militares que os levaram a possuí-las. Os soldados
eram capazes de ser os agentes (muito maus) que eram só por conta dos artefatos que tinham e
que os transformavam de homens à “demônios” com poderes extraordinários. Se pensarmos
nessas armas não como uma ferramenta utilizada por um usuário, mas como um componente
de uma identidade e uma agência social, então vemos de forma mais clara porque ela pode ser
considerada como agente. Se não houvesse o artefato (a arma), o agente (o soldado), não
existiria. A origem e manifestação da agência tem lugar e um meio que a constrói, em maior
parte, em artefatos. Os agentes não só utilizam os artefatos, mas os artefatos são mediadores
entre o agente e o meio social. Portanto, os agentes primários são os intencionais e os
secundários os artefatuais.
Posteriormente é colocado em pauta a teorização de agentes e pacientes. De início, Gell
coloca que o loca que a agência sempre é relacionada com a intencionalidade, a mente,
consciência, etc. Dessa forma se tem uma divisão de classificações: as entidades que são e as
que não são agentes. O conceito incorporado pelo autor é relativo às relações e depende do
contexto. Seu carro (Olly), por mais que seja um agente potencial diante de Gell, que atua como
paciente, quando para de funcionar de madrugada longe de casa, não tem objetivos e intenções.
O carro só é agente na medida que Gell é paciente, e o inverso também, o carro enquanto
paciente na medida que Gell é agente em respeito a ele. A noção de agente que o autor adota é
exclusivamente relacional: para todo agente há um paciente, e para todo paciente há um agente.
Os veículos não são seres humanos, mas atuam como agentes e sofrem como pacientes no
entorno casual das pessoas: seus donos, vândalos, etc. Sobre os agentes sociais, o autor coloca
que eles podem ser pessoas, coisas, animais, divindades, na verdade, tudo. A única condição é
que um exerce a agência enquanto outro é o paciente por um momento: para ser agente é
necessário atuar em relação a um paciente. Em toda realidade que se manifesta a agencia existe
um paciente que é outro agente potencial, capaz de atuar como agente ou de ser um locus de
agência. O carro quebra, Gell é paciente e Olly o agente. Se a reação de Gell é gritar e bater no
carro, então o agente é Gell e o carro o paciente. Vale ressaltar que os paciente não são
totalmente passivos, eles podem expressar alguma resistência. O conceito de paciente não é
simples, pois ser paciente pode ser também uma forma derivada de agência.
Em seguida se coloca em pauta o artista. Nesse ponto é colocado que a agencia pode se
atribuir às coisas sem se remeter diretamente à produção e circulação da arte. Os índices
tratados pela antropologia da arte geralmente são artefatos (nem sempre). Eles possuem a
capacidade de ser índices de suas origens em um ato de manufatura. Todo artefato, por ser uma
coisa manufaturada, propicia uma abdução que indica a identidade do agente que o fabricou ou
criou. Os objetos manufaturados existem por conta de seus criadores, assim como a fumaça
existe por conta do fogo. Portanto, eles são índices dos seus fazedores e estão em posição de
paciente em relação social com eles, que são agentes. Nem sempre os objetos estudados pela
antropologia da arte são criados por humanos, às vezes se acredita que eles foram criados por
deuses, ou que foram elaborados por vias misteriosas. Pode ser que suas origens tenham sido
esquecidas ou ocultadas, o que se bloqueia a abdução que conduz a existência do índice
material à agencia de um artista. É colocado em pauta também o papel do destinatário ou
receptor. Os objetos de arte vivem vidas muito transacionais, em que o ser produto de um artista
é somente uma fase. Muitas vezes eles não são índices do tempo e do agente de sua manufatura,
mas de outra origem posterior e puramente transacional. Ele pode proporcionar uma segunda
abdução de agencia relativa a seu destino, a recepção desejada.
Por norma geral, os artistas não elaboram objetos de arte sem uma razão, eles criam
para que sejam vistas por um público ou que sejam adquiridas por um mecenas (pessoa que
patrocina um artista, ou compra sua obra). Igualmente um objeto de arte é índice de sua origem
na criatividade de um artista, mas também de sua recepção por um público para que se fez
principalmente. Vale ressaltar que ao longo de suas vidas, esses objetos podem possuir muitos
receptores. Aqui o autor aponta que eles também carregam consigo abduções indiciais que
apontam para recepções não intencionadas, como o museu britânico e as obras egípcias. O
público ou destinatários de uma obra de arte (índice) participam, segundo a teoria antropológica
da arte, de uma relação social com esse, bem como pacientes, pois o índice os afeta de alguma
maneira; ou como agentes, pois se não fossem por eles, o índice não existiria. Um índice sempre
está em função de uma recepção específica, muito provavelmente diversa, seja essa ativa ou
passiva. Por fim, explicado por Gell a ideia do protótipo. A discussão se inicia pela iconicidade,
e a noção de convenção simbólica, similar a cachorro significar um animal canino. É posto
também o pensamento de Goodman, que aponta que todo ícone poderia funcionar como uma
representação de qualquer objeto elegido de maneira arbitraria ou referente.
Essas ideias em torno da iconicidade são rechaçadas pelo autor, pois, para ele,
representa uma generalização excessiva da semiótica linguística. É defendido que a iconicidade
se fundamenta na semelhança real de forma entre a representação e as entidades que ela
representa ou acredita representar: a imagem de uma coisa se parece a ela em suficientes
aspectos para que se reconheça como representação ou modelos seus. Uma representação de
algo imaginário como um deus se assemelha a imagem que seus crentes tem dele. O que
importa para o autor não é a questão estética da representação, mas a questão da crença: as
pessoas acreditam que uma flecha só se orienta em um sentido e que o deus, como agente, fez
com que a imagem (índice), como paciente, tenha criado um aspecto particular. A ideia de
representação na arte visual está relacionada a uma semelhança que provoca reconhecimento.
Talvez necessitamos que nos falem que tal índice é uma representação icônica de um tema
próprio da pintura, podendo ser que o reconhecimento não se dê de forma espontânea, mas
quando se tem as informações necessárias, os sinais visuais estarão presentes, do contrário, não
haverá reconhecimento. Existem também índices que se referem a outras entidades: deuses que
são visíveis e os que não proporcionam abduções sobre suas aparências. Às vezes uma pedra
representa um deus, mas esse não se parece uma pedra aos olhos de ninguém.
A imagem de um deus representado por uma pedra é um índice de sua presença espaço-
temporal, não de seu aspecto. A pedra funciona como signo natural, do lugar do deus, assim
como a fumaça é um signo natural do lugar espacial do fogo. Gell utiliza o termo protótipo (de
um índice) para identificar a identidade que índice representa visualmente (um ícone, uma
representação, etc.) ou de maneira não visual, como o exemplo da pedra. Nem todos os índices
possuem um protótipo, nem representam algo que não seja eles mesmos. Enquanto ao artista
como criador de um índice e o receptor desse, é defendido que se pode observar vários tipos
de relações sociais agência-paciência que liga os índices aos protótipos (se eles existem). Existe
uma classe de agência abduzida do índice, tal que o protótipo é percebido como agente em
relação ao índice. Caso contrário, o protótipo pode ficar em posição de paciente por meio do
índice.
De forma geral, até o momento, se tem que a teoria antropológica da arte se finca nas
relações sociais em torno das obras de arte (índices). Essas obras formam parte de um tecido
da vida social dentro de um marco biográfico (antropológico) e só pode existir quando se
manifesta através de ações. Os agentes são os que praticam as ações sociais que surtem efeitos
nos pacientes. As relações entre agentes e pacientes sociais se desdobram em quatro termos:
índice, entidades materiais que proporcionam abduções, interpretações cognitivas, etc.; artistas
ou outros criadores, aqueles que são atribuídos por abdução a responsabilidade casual da
existência e as características do índice; destinatários; sobre os quais os índices exercem a
agência, ou quem a agência se manifesta através do índice (conclusões que se chega pela
abdução); e protótipos, entidades que se pensa por abdução que estão representadas no índice
(frequentemente, mas não necessariamente) por semelhança visual.

A trama da arte e o índice


O capitulo se inicia apontando a trama em torno do objeto de arte composto por: índice,
artista, destinatário e protótipo. A teoria proposta por Gell consiste em um dispositivo para
ordenar e classificar o material empírico que colhido, ao invés de oferecer generalizações como
se fossem leis e predeterminações obtidas dessas. A teoria se baseia na premissa que os quatro
termos podem ser considerados agentes sociais de diferentes tipos e, como tais, são capazes de
assumir a posição de agente ou paciente em relação a outros e a si próprios. O capitulo se trata
de exemplos de aplicações para as relações de agente e paciente entre os componentes da trama.
A nível de organização das explicações, farei um quadro, pois acredito que dessa forma ficará
mais fácil de visualizar os exemplos. Vale ressaltar que o que o autor faz nessa parte do texto
é colocar um dos quatro elementos como agente e outro como paciente e, a partir disso,
exemplificar.
Tabela 1 – Relações entre os elementos da trama
Aqui são considerados os casos em que o índice físico “manda” no
artista, reagindo como paciente à agência do objeto. Essa é a
inversão direta de Artista A – Índice P. Como exemplo se tem
árvores que chamavam “bruxos” para transformar seus troncos em
ídolos que era adorado nas portas de cabanas-templos de uma
comunidade. O material do índice controla, em certo ponto, o
Índice A – Artista P artista. Outro exemplo dado pelo autor é a relação produtiva de
artesões e arquitetos, que trabalham, geralmente, com materiais
que seus clientes escolhem ou o mercado disponibiliza, não com o
que querem trabalhar. O artista não elabora o índice, ele o
reconhece. Ainda a nível de exemplos se tem o trabalho ocidental
com rochas utilizadas em jardins, no Japão, e pedras de rios, na
Índia.
Essa é a fórmula de espectador passivo. Qualquer um que permita
que o índice cative sua atenção e se submeta a seu poder, atrativo
Índice A – Destinatário P ou de fascinação, é um paciente que responde à agência intrínseca
do índice, que pode ser física, espiritual política, estética, etc. O
exemplo utilizado pelo autor é um escudo smat, que aterroriza seus
oponentes a partir de seu poder em fazer o terror se manifestar. Ele
age como um falso espelho, refletindo na vítima um medo que, na
verdade, pertence ao portador do escudo. Perceber (internalizar) é
imitar: a pintura de um santo que reza, inspira piedade; a de um
casal amoroso, luxuria, etc. Os índices podem funcionar tanto
alienando o espectador, como produzindo identificação. O ponto
central é a agência intrínseca do índice material. Os objetos agem
nas pessoas de formas diversas (beijar um santo cura, tocar no pau
da bandeira faz a pessoa casar, etc.).
Como exemplo se coloca a história do “O retrato de Dorian Grey”.
Nela o protótipo (Grey) se mantem jovem e com um físico “belo”
porque quem envelhece em seu lugar é uma fotografia que guarda
no bolso. Aqui se tem um exemplo ficcional, argumentado pelo o
autor como válido, pois a antropologia tem que tratar tanto as
Índice A – Protótipo P
situações irreais quanto as reais (na verdade é difícil distinguir
umas das outras). Outro exemplo dado é o que compreendemos
vulgarmente como “voodoo”, a feitiçaria feita pela imagem, onde
a vítima sofre a lesão que é feita a sua representação.
Aqui se tem que o índice pode propiciar a abdução da agência da
pessoa que o elaborou, o ato criativo do artista. Grande parte da
Artista A – Protótipo P arte ocidental (pós-renascentista) projeta a agencia do artista de
forma muito pronunciada: as pinceladas de Van Gogh, por
exemplo.
Ela acontece quando um destinatário pode abduzir sua própria
agência de um índice. O exemplo que se dá é o de Luís XIV.
Quando ele passava pelos terrenos de Versailles e contemplava as
obras que tinha encomendado e financiado, se sentia também autor
delas, mesmo que não tivesse participado das criações. Isso
acontece porque ele ocupa lugar de mecenas (condutor da
casualidade social de tais obras de arte, pela qual é possível abduzir
sua – do mecenas – delas). Outro exemplo é o de visitantes de
Destinatário A – Índice P galerias. Eles participam na transferência de agência dos criadores
de obras de arte aos seus destinatários; eles atribuem a si mesmos
uma criatividade como espectadores que podem fazer algo a partir
da matéria prima que foi apresentada na galeria (criar uma roupa,
por exemplo). Vale ressaltar que esses visitantes são, geralmente,
de classe média, com formação, etc. Eles não abandonam essa
realidade ao entrar em uma exposição; não se sentem passivos. Isso
também leva em conta que as obras expostas em galerias são
mercadorias e os visitantes consumidores que demandam consumo
de algo específico.
Esse se trata de um proponente fundamental para representações
realistas. Aqui o exemplo é um artista que precisa pintar um
Duque. Para isso, é necessário criar uma imagem com traços
Protótipo A – Índice P próprios do Duque: nariz fino, gesto sério, imagem militar, etc.
Nesse sentido, o Duque desempenha um papel casual em relação
ao seu aspecto no retrato. Um outro exemplo é a fotografia. Alguns
a consideram uma produção de imagem sem artista, pois a imagem
se forma a partir da luz que emana o próprio protótipo.

Antes de continuar com o quadro, se faz necessário, assim como foi feito no texto,
apontar colocações sobre a importância central do índice. O ponto central é que a teoria da
antropologia da arte proposta por Gell precisa de um índice para fazer abduções de agência,
sem ele não é possível. Podem ser construídas fórmulas sem artista, destinatário e protótipo,
mas não sem o índice. Fórmulas como Artista A – Destinatário P sempre implica em Artista A
– Índice A – Destinatário P. O autor explica também a lógica dos agentes e pacientes primários
e secundários. Resgatando a ideia de agente primários, eles são aqueles que tem o poder de
iniciar e realizar ações por vontade ou intenção; e os secundários, aqueles que não possuem
vontade ou intenção por si mesmos, mas são essenciais na formação, aparição ou manifestação
das ações intencionais. Nesse contexto, normalmente os índices são agentes secundários, pois
tomam sua agência de fonte externa e servem como meio para transferi-la ao paciente. Com
isso, o autor coloca que os artistas e destinatários são agentes ou pacientes primários, pois
causam ações por si mesmos. Os protótipos ocupam uma posição ambígua: em geral não são
primários.
Uma maçã não tem intenção de aparecer entre nós ou para o pintor com forma redonda,
vermelha, etc. Ela é um agente secundário. Mas eles também podem ser primários, como o
Luís XIV retratado, que ostenta a aparência que o próprio Luís elegeu. Por mais que ele seja o
mecenas da obra, ele é também o protótipo a ser representado. No caso da maçã, a agência do
artista é primária, no caso de Luís, as agências do artista e do mecenas protótipo são primárias.
Se o protótipo é um objeto que se considera incapaz de exercer agência primaria no mundo,
então ele só transmitirá agência secundária. Se ele é uma entidade capaz de determinar sua
própria aparição, então ele pode ser de maneira parcial ou total um agente primário assim como
secundário. O centro da trama da arte é sempre o índice, que nunca, ou raramente, é agente ou
paciente primário. O índice, para o autor, é a perturbação do entorno casual que revela e
potencializa a agência que exercem e a condição de paciência que sofrem os agentes primários
(os destinatários os artistas e os protótipos). O índice é a região do entorno casual que se
encontram e sobrepõe a esfera de ação do agente primário e a esfera de vulnerabilidade do
paciente primário. A teoria se ocupa das relações entre os agentes e os pacientes primários que
aparecem nos pontos de partida e final, passando por uma cadeia de transição mediadas pela
arte que ambos compartilham no entorno casual: agente primário – paciente secundário –
agente secundário – paciente primário. Com isso, voltamos à tabela:
Tabela 02 – As expressões “ilegítimas”
É a forma geral para as imagens imaginárias elaboradas por
artistas. O índice é um caso de criação de imagens imaginárias
Artista A – Protótipo P quando se considera que seu aspecto decidiu o artista e que é
um índice da agência desse como o imaginador da forma da
coisa. O exemplo é a forma de uma entidade fictícia, a pintura
de um unicórnio.
Designa a criação de imagens realistas, pois o aspecto do
Protótipo A – Artista P protótipo define o que o artista vai fazer. A representação do
Duque.
Essa forma expressa o poder do artista como agente social sobre
Artista A – Destinatário P o destinatário como paciente social. Muitas obras de arte
inspiram as pessoas a ficarem maravilhadas, assombradas, com
medo e outras emoções poderosas ao espectador.
Se trata da forma do artista como artesão; alguém contratado
para seguir as indicações do destinatário (esse aparece mais
como mecenas que espectador passivo). O índice pode
Destinatário A – Artista P manifestar a agência independente do artista e sua
predominação sobre o espectador, enquanto, de outro lado, o
mesmo índice indica a subordinação do artista perante o
mecenas.
A forma do ídolo. O paciente destinatário abduz do índice à
agência do protótipo, que provoca que o índice tome uma forma
Protótipo A – Destinatário P determinada enquanto exercita a agência social no destinatário.
Os exemplos típicos desses são os ditadores como Stalin, que
colocou enormes imagens suas nas paredes para manter uma
vigilância e controle continuo sobre a cidade.
Nessa fórmula pode ser aplicado também o exemplo da bruxaria
por imagem (algo próximo ao “voodoo”). De forma geral, esse
se refere à situações das quais o protótipo é incomodado de
alguma forma através de sua imagem (que é diferente de uma
ideia de Artista A – Destinatário P). É possível que a agência
Destinatário A – Protótipo P
venha do ato de um destinatário que distorce uma imagem:
pintar um bigode em uma foto. Uma mesma imagem pode atuar
duplamente na agência do protótipo ao destinatário, mas
também do destinatário ao protótipo de uma só vez.

Tabela 3 – Os elementos por si próprios.


Um índice pode ser considerado a causa de si próprio. Como
exemplo se tem um espetáculo de acrobacia de um circo. Em
determinado momento os acrobatas sobem uns em cima dos
outros e formam uma pirâmide humana. Os próprios acrobatas
construíram e compõem a pirâmide. Ela é um índice paciente,
pois alguém construiu (coletividade), mas também é agente,
pois ela mesmo elaborou a si mesma. Outro exemplo apontado
são grandes batatas que são expostas em um festival como
Índice A – Índice P objetos de culto. As batatas crescem por si próprias. Todos os
seres vivos são agentes de si próprios na medida em que se pode
atribuir seu crescimento e forma a sua própria agência. As
batatas, nesse sentido, devem ser consideradas agentes
similares às pessoas ao invés de obras de arte. Porém, os
plantadores personificam suas plantas; quem visita às
exposições se comportam de maneira similar a espectadores de
eventos artísticos. Os índices exercem sua agência sobre si
mesmos na medida em que se compõem de partes visuais que
se afetam umas às outras dentro do índice.
Aqui o exercício proposto por Gell é que pensemos que vamos
desenhar algo que não desenhamos antes, algo que exista. Na
nossa mente ensaiamos as linhas que devemos traçar e logo
desenhamos. Nossa mão está controlada por uma misteriosa
alquimia muscular totalmente opaca a qualquer introspecção. A
linha que é feita no papel nunca deixa de ter algo de surpresa.
Nesse momento, somos espectadores da nossa tentativa de
desenhar, ou seja, se convertemos em pacientes. O ato de
desenhar pode nos causar algumas frustrações, pois não saiu
Artista A – Artista P como queria, ou surpreender, pois ficou melhor que se
esperava. Outro exemplo está em torno do conjunto de obras
produzidas durante toda uma vida por um artista. Em um caso
se tem alguém que nunca quer repetir uma obra – cada uma está
afetada pelas obras anteriores. O outro caso é alguém que quer
pintar coisas que se pareçam entre si, que os elementos sejam
parecidos – esse está preso aos elementos frequentes. Nos dois
casos o artista é agente, pois está criando, mas também paciente
de seu histórico.
Receptor A – Receptor P O exemplo aqui é o próprio mecenas. Se tem uma posição de
paciente para a obra de arte, que causa uma reação no
espectador (impressão, fascinação, etc.), inclusive o mecenas,
que encomendou a obra. O exemplo que se tem é justamente
uma pintura encomendada por mecenas importantes de uma
cidade para uma igreja. No dia que levaram a pintura pronta, a
cidade parou: o bispo conduziu uma procissão com as
autoridades e as pessoas da cidade, comovendo grande
devoção. Os mecenas que organizaram tudo se glorificam ao
venerar o produto de sua própria agência, mediada pela igreja.
A eficácia do papel do mecenas necessita de uma mostra de
reverencia para o que foi produzido.
Protótipo A – Protótipo P O exemplo aqui é um prefeito de uma cidade industrial. Para
comemorar seu cargo, os membros da prefeitura propuseram
encomendar uma foto para ser posta em uma sala especial, em
um lugar de honra e o prefeito aceitou. O fotógrafo levou uma
hora para montar o cenário e tirar as fotos de diferentes ângulos.
Chegando o dia da cerimônia de entrega do quadro com a foto,
o prefeito não gosta de sua aparência na fotografia. Ele não
culpa o fotografo, pois reconhece que o quadro é fiel a seu
aspecto real. No fim ele culpa a si mesmo por sua falta de
beleza. Nessa situação o prefeito é vítima de si mesmo, da
influencia casual direta que exerce seu aspecto real sobre o
quadro. Outro exemplo é o reflexo no espelho: podemos ou não
gostar do que vemos, respondendo como pacientes a um índice
de que somos agentes.

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