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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

FLA 0372 - TÓPICOS EM ANTROPOLOGIA DAS FORMAS EXPRESSIVAS

PROF. DR. PEDRO DE NIEMEYER CESARINO

O PROCESSO DE SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA SUJEITO/OBJETO ARTÍSTICO


NA ARTE NÃO-OCIDENTAL

MARIANA RAMOS

Nº USP 11250171, PERÍODO NOTURNO

SÃO PAULO, 2º SEMESTRE DE 2021

INTRODUÇÃO
Como em tantas outras disciplinas acadêmicas no Ocidente, a antropologia, pelo
menos até o século XX, codificou a arte em diversos conceitos-chave categorizados de forma
dicotômica. Em Conflitos de pressupostos na antropologia da arte: relações entre pessoas,
coisas e objetos, Cesarino (2017) mostra as muitas dicotomias ocidentais: escrita/oralidade,
mito/história, natureza/ cultura, simples/complexo, arte/artefato e sujeito/objeto, todas elas
com um propósito e, também, com a potencialidade de limitar o objetivo final da disciplina, o
de explorar e conhecer as expressões artísticas em todos os seus âmbitos.
Este ensaio busca expor aspectos da arte não-ocidental que ultrapassam os limites que
a dicotomia sujeito/objeto impôs sobre a antropologia da arte e trazer alguns autores que
propuseram visões alternativas e/ou críticas, mesmo que não completamente, a essa
polarização, como Marcel Mauss, Lévi-Strauss, Alfred Gell, Anne Christine Taylor, Eduardo
Viveiros de Castro, Tim Ingold e Igor Rodrigues, tentando recriar o percurso que a superação
dessa dicotomia segue.

DESENVOLVIMENTO
Apesar de Marcel Mauss ainda manter em sua teoria resquícios de um pensamento
evolucionista, mesmo o criticando, com o que chama de “sobrevivências” em sociedades
tradicionais - implicando “estágios” anteriores no desenvolvimento - há um avanço em suas
considerações sobre o objeto artístico e sobre os sujeitos que se relacionam com esse objeto.
Em Ensaio sobre a dádiva (2005), Mauss observa o sistema de troca do presente, da
dádiva, do objeto artístico e o caracteriza como uma força mística e prática que une e divide
os grupos envolvidos, ou seja, o objeto artístico aqui não é algo estático e sem função, ao
contrário, é dinâmico e está ativo, sendo o fator de união - mesmo que através da competição
e rivalidade - dos clãs. O objeto artístico, nesse contexto, tem ações e, como é considerado o
sujeito do Ocidente, é um ser (taonga) com espírito (hau) que se relaciona com outros
taongas e os representa.
Suponha que você possua um artigo determinado (taonga) e que me dê esse
artigo; você me dá sem preço fixado. Não fazemos negociações a esse
respeito. Ora, dou esse artigo a uma terceira pessoa que, depois de
transcorrido um certo tempo, decide retribuir alguma coisa em pagamento
(utu), ela me dá de presente alguma coisa (taonga'). Ora, esse taonga que ela
me dá é o espírito (hau) do taonga que recebi de você e que dei a ela.
(MAUSS, 2005, p.198)
A fala maori citada pelo autor explicita um conceito de objeto, não como a antítese de
um sujeito, não é uma categoria paciente e submissa, ela age e possui espírito. Além disso,
Mauss (2005) também observa no potlatch a valorização dos objetos trocados como
representações do status dos povos que realizaram sua troca, gerando um encontro entre os
conceitos de sujeito e objeto.
Lévi-Strauss (1981) também considera objetos artísticos que funcionam e se
relacionam entre si, como as máscaras dos grupos indígenas que são membros da família
linguística salish, que, assim como foi observado por Mauss, também fazem parte de uma
espécie de potlatch, o sqwéqwé, um gênero de cerimônias durante as quais um hospedeiro
distribui riquezas pelos convidados que reúne para validar, com a sua presença, com um novo
título ou de passar a novo estatuto social (LÉVI-STRAUSS, 1981, p.19), ou seja, as máscaras
também podem representar riquezas, equivaler a status social ou representar alianças, seja
possuindo-as ou as repassando para um terceiro.
O autor (LÉVI-STRAUSS, 1981, p.15 e 16) compara os objetos artísticos em questão
com mitos, que, como as máscaras, devem ser analisados em seu contexto e não de forma
isolada e que, a partir da comparação de seus respectivos grafismos e as transformações e
distinções entre eles, é possível compreender suas funções sociais ou religiosas, conectando,
assim, o quesito estético da obra de arte com seu papel na sociedade.
Dos Salish da ilha de Vancouver provém uma escultura que
representa uma máscara swaihwé cuja parte geralmente ocupada pela língua
tem, em relevo, a efígie de um peixe; e, dos Lililoet aos Shuswap, perdura,
no interior, uma crença em espíritos aquáticos meio-humanos e meio-peixes.
(LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 32).
Em outras palavras, a obra de arte não é um objeto apenas contemplativo, possui
função e relação com outras máscaras, ela possui individualidade e intencionalidade, tal como
uma pessoa, não à toa representam na cultura salish seres meio-humanos (ora conectados
com seres aquáticos, ora conectados com o cobre), antepassados ou desdobramentos de
pessoas.
Para Alfred Gell (2018) a intencionalidade, da mesma forma que em Lévi-Strauss,
também seria um elemento definidor da obra de arte. Para o autor, arte seria algo capaz de
evocar intencionalidades complexas - o que ele chamará de agência - e, por isso, imagens,
ícones e afins devem ser tratados, no contexto de uma teoria antropológica, como relativos à
pessoa, ou seja, fontes de agência social e, logo, a adoração de imagens ocupará posição
central em sua teoria, dado que se aproxima mais do tratamento de imagens como pessoas.
Gell dirá que escrever sobre arte é escrever sobre religião e a separação é um erro cometido
no Ocidente, para ele, o ícone artístico, ou índice, é um ídolo, um corpo, um “outro social”,
ao passo que segue regras sociais - caráter externalista da agência social - e possui uma
intenção, um espírito - caráter internalista da agência.
Gell faz, então, uma análise sobre o trabalho etnográfico de Alain Babadzan acerca
das práticas religiosas, do desenvolvimento de imagens e de cerimônias no Taiti antigo,
envolvendo sacerdotes, caçadores e a floresta, a qual, no contexto da cultura maori, possui
hau, espírito, e, logo, agência.
A floresta é passiva em relação aos sacerdotes, os motores
primordiais, mas não que ela não possua em absoluto uma agência
intrínseca. Pode haver apenas um mauri da floresta, uma objetificação física
da produtividade da floresta, porque esta é (potencialmente) produtiva em
si; e ela a "agência" que foi cooptada pela agência dos sacerdotes. (GELL,
2018, p.171)
Alfred Gell percebe um passo maior na superação da dicotomia sujeito/objeto
artístico na cultura maori, onde a arte, ou ídolo, possui agência e se relaciona com outros
elementos não-humanos igualmente detentores de agência. Dessa forma, o ídolo cria um
agregado de relações externas, como uma pessoa, mas a superando, na medida em que não é
individualizado e, portanto, não possui as mesmas limitações espaciais de um indivíduo.
Do mesmo modo que, externamente, o dolo está no centro de uma
ordem concêntrica de relações entre pessoas, o ídolo pode ser visto,
internamente, como uma ordem concêntrica de relações entre pessoas
"internas" - o pandemônio de homúnculos - das quais é composto. (GELL,
2018, p.211)
E, segundo Gell (2018, p.3 23), é através dessa liberdade de tempo espaço que o
índice possui que a pessoa pode ser distribuída, ou seja, por meio de seus índices, a pessoa
pode estender sua agência, sua vida, tornando os objetos artísticos a própria pessoa.
Essa distribuição da pessoa observado por Gell, também é analisada por Anne
Christine Taylor e Eduardo Viveiros de Castro em Um corpo feito de olhares (2019), que
descrevem uma plasticidade dos corpos indígenas da Amazônia peruana, similar à
transposição de limites espaciais e temporais da pessoa através da transmissão de agência
social em seus índices na análise de Gell. Os autores irão expor uma capacidade de trânsito
de corpos, que possuem variados fluxos de intencionalidade e que produz justamente essa
flexibilidade dos limites corpóreos, se traduzindo na diversidade de silhuetas corporais nas
artes.
A conexão entre corpos humanos e não-humanos proposta por Taylor e Castro
(2019) e Igor Rodrigues em Corpos que emergem: vegetais trançados e sua persistência
entre os povos do rio Mapuera (2021), onde argumenta-se que a técnica do trançado não é
um procedimento apenas humano, mas se relaciona com os vegetais utilizados na técnica e a
intencionalidade do processo conecta a corporalidade humana e a vegetal.
Tim Ingold em Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição
(2015) também já havia contribuído para a problematização da dicotomia sujeito-objeto,
onde o autor apresenta sua visão do que é “estar vivo para o mundo”. Para Ingold, viver
historicamente é habitar o mundo, e habitá-lo significa traçar um caminho através da
variedade de coisas que aparecem e compõem seu percurso. O autor considera os objetos, o
ambiente e tudo, de modo geral, um fator digno de consideração no percurso da vida. Tais
coisas que permeiam o caminho/habitar/viver são percebidas pelo indivíduo através de seu
contato e relacionamento e a forma de estar vivo/habitar é afetada pela forma como
percebemos as coisas, da mesma forma que os objetos são afetados pelo relacionamento
com o indivíduo.
Trata-se quase de um truísmo dizer que não percebemos com os
olhos, os ouvidos ou a superfície da pele, mas com o corpo todo. (INGOLD,
2015, p.87, grifo meu)

Para Ingold a percepção do meio ambiente e das coisas é feita através de todo o corpo,
colocando, à primeira vista, o corpo humano como sujeito na relação entre seres humanos,
meio ambiente e os objetos. Entretanto, ao dissertar sobre a história da tecnologia e a
influência dos objetos, o autor abandona a dicotomia sujeito-objeto e considera os materiais,
sejam vivos ou não-vivos, como parte da história, como sujeitos também.

Como artefatos, essas coisas podem ser atribuídas às propriedades


formais de um projeto, no entanto elas não foram produzidas, mas
cresceram. Se, além disso, elas forem parte do mundo material, então o
mesmo deve ser verdade do meu próprio corpo. (...) Se eu e meu corpo são
uma e a mesma coisa, e se o meu corpo realmente participa do mundo
material, então como pode o corpo-que-eu-sou se comprometer com esse
mundo? (INGOLD, 2015, p.53, grifo meu)
Ao pensar na materialidade, Ingold coloca os corpos humanos, os corpos não-
humanos, os objetos e as ferramentas na mesma altura, todos fazem parte do mundo material
e se desenvolvem de forma independente, mas conectada, assim como a arte se conecta com
seu artista e os materiais utilizados em sua criação. Ingold vê, então, o “objeto” e o “sujeito”
ocidentais como apenas elementos distintos em uma mesma malha conectada pelo percurso
da vida, sem criar antíteses entre eles e superando, assim, a dicotomia limitante
sujeito/objeto.

CONCLUSÃO
De um objeto artístico com função, dinâmico, que representa status social, que
estabelece união ou hierarquia e detém espírito na análise de Mauss (2005), ao caráter
relacional e estruturante, que possui individualidade e intencionalidade em Lévi-Strauss
(1981), à agência externa e interna dos ídolos, que distribui a pessoa em índices plásticos em
Gell (2018), à flexibilidade dos corpos vivos, em Taylor e Castro (2019), e não-vivos, em
Rodrigues (2021), à completa conexão com o ambiente e os elementos deste, sejam seres
vivos ou não-vivos em Tim Ingold (2015), ultrapassando, assim, as categorias dicotômicas
de sujeito e objeto na arte.
Assim, o objeto artístico em culturas não-ocidentais supera a passividade e o
isolamento da categoria objeto ocidental e amplia as considerações para as teorias
antropológicas sobre arte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESARINO, Pedro de Niemeyer."Conflitos de pressupostos na antropologia da arte: relações
entre pessoas, coisas e objetos". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32/93, 2017.

GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo, UBU, 2018.

INGOLD, Tim. Estar Vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.


Petrópolis/RJ: Vozes, 2015.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A via das máscaras. Lisboa, Editorial Presença, 1981.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

RODRIGUES, I. Corpos que emergem: vegetais trançados e sua persistência entre os povos
do rio Mapuera. Revista de Arqueologia, [S. l.], v. 34, n. 3, p. 146–177, 2021. DOI:
10.24885/sab.v34i3.915. Disponível em:
https://www.revista.sabnet.org/index.php/sab/article/view/915. Acesso em: 9 dez. 2021.

TAYLOR, Anne-Christine; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Um corpo feito de olhares.


Revista de Antropologia, 62/3, 2019.

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