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O que acontece quando você faz um teatro de objetos com objetos que nunca
pertenceram a você? A quem pertencem esses objetos que agora escolhi e ao
mesmo tempo nunca possuí, de acordo com o significado que Jean Baudrillard deu
a esta palavra (possessão) em 1968? O filósofo francês escreveu que o objeto
funcional é uma ausência de ser porque "é rico em funcionalidade e pobre em
significado, refere-se ao presente e se esgota no cotidiano" (Baudrillard, 1969: 92).
Segundo ele, todo objeto tem duas funções: o de ser utilizado e o de ser possuído.
Quando é utilizado pelo sujeito, com o propósito de servir seu ambiente doméstico e
prático, é uma ferramenta. Deixa de ser um utensílio se for personalizado e
abstraído, possuído pelo sujeito fora de suas funções práticas. Reflete, no livro o
Sistema dos Objetos: "Objetos são, além do uso prático que fazemos deles, em um
dado momento, uma outra coisa, uma coisa a mais, que está profundamente
relacionada ao sujeito, não é somente um corpo material que resiste, é a tradução
de um recinto mental em que eu reino, uma coisa da qual eu sou o sentido, uma
propriedade, uma paixão"(Baudrillard, 1969: 97).
De acordo com essa citação, o que teríamos que fazer ao transpor cenicamente o
recinto mental de pessoas que nos são desconhecidas e que provoca um estado
flutuante e incerto de propriedade? Que tipo de espaço dramático, de conhecimento
documental, faz emergir este lugar entre a biografia de pertencimento que não nos
pertence e seu confronto conosco, já que a sua transformação em teatro virá de
nós?
É por isso que nossas buscas têm um certo paralelismo com a sociologia crítica,
com novos estudos da cultura material, que cada vez mais voltam sua atenção para
os significados que os laços subjetivos têm com os objetos que nos cercam. Cito
Bruno Latour, autor emblemático em relação à outra visão da dinâmica objetiva, que
escreve em Remontando o social - Uma Teoria Ator-Rede: "definição assimétrica
entre os atores que dirigiu estudos sociológicos tradicionais, tem sido relegado para
a inação e incapacidade de gerar movimento às coisas, aos objetos [...] Os objetos
não são considerados, mas a sua presença está em todo lugar. Eles existem, é
claro, mas você nunca pensa neles, em termos sociais, como servos humildes que
vivem nas margens do social, fazendo a maior parte do trabalho, mas não lhes é
permitido se mostrar [...] Quanto mais os pensadores radicais querem chamar a
atenção para os seres humanos nas margens e na periferia, menos eles falam sobre
os objetos. Como se uma maldição lhes tivesse sido imposta, eles continuam
dormindo como os servos de um castelo encantado. Mas assim que são libertados
do encantamento, começam a tremer, esticar-se e murmurar; eles começam a se
aglomerar em todas as direções, abalando atores humanos, despertando-os de seu
sonho dogmático" (Latour, 2005: p.110).
Todo objeto cotidiano tem uma história por trás dele, e é uma oportunidade de ser
um arquivo, uma dramaturgia potencialmente que contém uma geografia percorrida,
uma história de produção que já passou por muitas mãos, é a síntese de
metamorfose material e carrega um campo evocativo, simbólico, que pode
transcender por muitas gerações ou não; Pode ser consumido, descartado,
esquecido no local e será a sua condição residual, a que nos falará
sintomaticamente de um certo estado das coisas, de todas as velocidades da
memória material e o condicionamento econômico que instiga os seus ciclos de vida
no fundo de uma cartografia capitalista do desejo. Peguei emprestado as seguintes
perguntas do filósofo italiano Remo Bodei na Vida das Coisas: "Como as gerações
futuras poderão compreender a mensagem deixada nas coisas de gerações
anteriores? Pode-se evitar o naufrágio do esquecimento ou o destino da
insignificância? Como reconectá-los, através das mediações apropriadas, com suas
próprias experiências e sua própria sensibilidade?” (Bodei, 2013: 80). A ética
objetual que tentamos desenvolver nos trabalhos que fazemos tem uma
preocupação com esta comprensão que interliga diferentes temporalidades das
vivências materiais. Como nos aprofundarmos no passado e na memória objetual,
podemos decodificar maneiras críticas de nos relacionarmos com o mundo para o
qual nosso presente foi concebido e continua a ser desenvolvido.
Para acessar essa ética objetiva – insisto que afirmo a partir de minha experiência –
é necessário uma qualidade que associamos à delicadeza, com o cuidado daquele
outro que não é inteiramente meu, mas que provoca em mim um estado de atenção
e de questionamento sobre a história invisível que há nele. O objeto de outra pessoa
e eu nos visibilizamos um ao outro, para tornar conhecidos os dados em uma
experiência. É sugerido o que está antes, o que está depois do objeto, é como
descifrar as suas ligações com o humano. Desta forma, a delicadeza traduz a
observação ética que surge entre os pesquisadores de objetos, o tipo de
cumplicidade e as interações reais que emergem com os territórios. Requer uma
autovigilância epistemológica constante, nos modos pelos quais acordos básicos
são estabelecidos para criar um espaço poético como um todo.
A prática dessa “ética objetual” faz emergir a potência do objeto, ao mesmo tempo
em que alude à infinidade de índices documentários, capaz de revelar um objeto
com uma história verdadeira. Quando algo tem potência vibra, é matéria vibrante (a
matéria vibrante em termos de Bennet). A capacidade de agência que tem um objeto
é também a sua potência, isto é, sua capacidade intrínseca para provocar ação
sociocultural. Desencadeia uma certa ressonância coletiva.
Sob estes dois fundamentos essenciais que compõem a ética objetual no teatro de
objetos documentais (delicadeza e potência), diferentes tipos de relações são
constituídos, o que nos permite estudar várias abordagens de como nossa cultura
material é sustentada em grande parte por nossas projeções psíquicas sobre o
inanimado.
Esses laços podem ser lidos no teatro de objetos documentais e de sua própria
ética, de acordo com as relações que o pesquisador-objeto realiza, dentro da
simbiose junto com ela que acontece entre o ser e a as suas posses. Seja por este
se encontrar presente, junto com eles, ou apenas por se evocar metonimicamente,
sinecodicamente por meio de seus pertences. Em outro nível, seria a autobiografia
objetual do próprio pesquisador, sem dúvida, para o momento que mais nos
interessa é desenvolvê-lo no duplo processo de nos descobrirmos simultaneamente,
enquanto se suscita a análise da objetualidade dos outros.
O teatro de objetos documentais inventa seus próprios recursos para revelar esse
poder expansivo de objetualidade onde, na maioria das vezes, não há nada para
animar, porque os objetos documentais, detectados em seus espaços reais, já estão
superanimados, aguardando que alguém lhes dê uma voz e, com isso, lhes dê
visibilidade e tornando-os um fato comunicativo e coletivo.