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Anthony HARDING. “Introduction. Biography of things”. Distant Worlds Journal


(DWJ) 1: Continuities and Changes of Meaning, Universität Heidelberg, 2016, p. 5-10.

Como arqueólogo, estou acostumado a olhar para objetos e considerar quando e


onde eles foram feitos, por quem e com que finalidade; também o que aconteceu com eles
quando eles chegaram ao final da sua “vida-útil” (que não significa qualifica-los como
“inúteis” no sentido de não-funcional, mas apenas que eles não eram mais necessários
para a sua finalidade original). Em todas estas formas pode-se considerar que um artefato
teve uma “vida”. Entretanto, a vida de um artefato é diferente da vida de um ser biológico
em vários sentidos. Em última instância, um artefato não pode assumir uma existência
física sem os comandos de um ator humano (eu ignoro para efeitos dos presentes
propósitos a facilidade em fazer “instrumentos” que alguns animais possuem). Embora
se possa inferir que no mundo de hoje, e cada vez mais no de amanhã, robôs fazem
“coisas”, eles só podem (pelo menos até agora) confecciona-las sob as ordens de seres
humanos. Por mais entrelaçados que o mundo dos seres humanos e o mundo dos objetos
estejam, os artefatos são o que a palavra diz: objetos feitos através de “arte” ou da
habilidade humana.
Objetos, coisas, pode ser referido de diversas maneiras; o termo utilziado dá
alguma indicação do que o autor pretende. É neste sentido que o antropólogo Daniel
Miller escreve um livro intitulado simplesmente “Stuff'” – sobre as razões pelas quais as
pessoas acumulam coisas – e outro sobre o “conforto de coisas”. Marie Kondo escreve
livros sobre como “spark joy” por “de-cluttering”, também conhecido como “tidying up”,
ou seja, livrar-se de coisas (sem dúvida essencial para apartamentos minúsculos
japoneses); a alegria de “de-cluttering” estendendo-se para as pessoas, bem como coisas,
uma vez que alguns de seus clientes se livraram da “desordem” que eram, na verdade,
seus maridos. A maioria das pessoas na vida cotidiana provavelmente não pensa sobre o
que significam os objetos ou o de que suas “vidas” são compostas; elas fazem suas
compras, compram duas “coisas”, e levam-nas para casa, local onde as “coisas” vivem
até que alguém decide “disparar a alegria” de “des-desordena-las”.
Mas as coisas são mais do que aquilo que acumulamos em nossas vidas. Objetos,
artefatos, desempenham um papel em tudo o que fazemos; daí a afirmação, agora familiar,
que as pessoas e objetos são emaranhados, essa metáfora de emaranhamento é,
naturalmente, também usada na física quântica para expressar a relação entre as partículas
que não podem ser medidas separadamente, mas apenas como um sistema (de
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Schrödinger’s Verschränkung). Não tenho a certeza se os cientistas sociais que


desenvolveram a noção de emaranhamento em estudos artefato modernos empregaram
conscientemente a metáfora da física ou não; para mim a sua adopção aparenta um pouco
de pretensão, uma vez que existem maneiras mais fáceis de expressar as relações homem-
objeto na língua inglesa.
O estudo de biografias dos objetos geralmente retorna ao estudo de Kopytoff como
precursor. Aqui estão algumas das perguntas que Kopytoff coloca logo no início do
artigo:
- O que, sociologicamente, são as possibilidades biográficas inerentes ao seu “status” [de
um objeto] e ao período e à cultura [a partir das quais esse “status” emana]?
- Como essas possibilidades são percebidas?
- De onde vem a coisa e quem a fez?
- Qual tem sido a sua carreira até agora?
- Quais são as “idades” ou os “períodos” reconhecidas na “vida” das coisas e quais são
seus marcadores culturais?
- Como o uso das coisas muda com as duas “idades”?
- O que acontece com o objeto quando ele chega ao fim da sua utilidade?
Todas estas são questões que os arqueólogos da atualidade reconhecem como
aspectos regulares das nossas tentativas de compreensão do papel dos objetos nas
sociedades do passado. Kopytoff dá o exemplo da mudança de funções de uma casa, ou
do estatuto diferente de um carro nos EUA ou na África. Ele também considera a questão
da mercantilização como um todo, o processo pelo qual as “coisas” tornam-se ou não
“mercadorias”; o que não é a minha preocupação atual, embora seja um elemento
importante para a compreensão da cultura material, no passado e no presente. Porém, a
distinção entre os diferentes papéis das coisas em pequena escala e em sociedades
complexas é um fator importante. No primeiro caso, que é o que eu trabalho enquanto
pré-historiador, as “coisas” correspondem ao que Kopytoff chama de “singulares”, isto é,
as “coisas” que são protegidas da mercantilização – o que não quer dizer, é claro, que
algumas coisas não se tornaram mercadoria durante a pré-história. Metais, sob a forma de
lingotes, por exemplo, pode ter sido uma mercadoria.
Janet Hoskins considerou a relação entre “agency” e as biografias dos objetos em
uma série de artigos e livros. Em seu livro de 1998 ela usou o exemplo de um grupo de
mulheres e homens que narram suas vidas através de suas posses. Neste trabalho ela
estava tentando “definir uma nova categoria de ‘objetos biográficos’, que ocupam um dos
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polos do continuum entre presentes e mercadorias e são dotados das características


pessoais de seus proprietários”. Posteriormente ela referiu-se a vários experimentos com
o “biográfico” discorrendo sobre os objetos e dividindo-os em duas formas dominantes:

(1) as biografias dos objetos que começam com pesquisa etnográfica, e que, assim,
fornecem uma narrativa de como certos objetos são percebidos pelas pessoas que estão
ligadas a eles;
(2) os esforços para “interrogar os próprios objetos”, que começam com a pesquisa
histórica ou arqueológica, na tentativa de “fazer os objetos mudos falarem” colocando-os
em um contexto histórico e ligando-os a fontes escritas, tais como agendas, loja
inventários, registros comerciais, etc.

A primeira é praticada, principalmente, por antropólogos, e a segunda por


arqueólogos. Ela própria pertence claramente ao primeiro grupo. Para arqueólogos ela
cita o trabalho de Lynn Meskell (práticas funerárias egípcias) e David Fontijn (deposição
de objetos em bronze nos Países Baixos). Ela também considera como a obra de Alfred
Gell tem influenciado o debate sobre o papel da arte e dos artefatos.

Até que ponto é realmente possível para aqueles que trabalham com períodos
remotos do passado “interrogar os próprios objetos”? Não é inevitável que estaremos
reduzidos à adivinhação e à especulação sobre coisas que são essencialmente
incognoscíveis?
Isso depende, é claro, de seu ponto de vista sobre o que realmente pode ser
“conhecido” sobre o passado, em especial aquilo que não pode ser “iluminado” pelas
fontes textuais. Este é um debate que está em vigor por pelo menos trinta anos, desde que
a reação à Nova Arqueologia ou Arqueologia Processual ou científica nos anos 1960 e
1970. Alguns reagiram ao que eles viam como a “aridez” da arqueologia orientada
cientificamente tentando escrever uma história do passado baseada em desconstruir os
processos de pensamento envolvidos, e, em seguida, voltar a construí-los através de
dispositivos como narrativa. Um trabalho típico deste género é o de Mark Edmonds, que
unapologetically escreveu um livro sobre o Neolítico sem qualquer apparatus criticus
aparelho, começando cada capítulo com uma narrativa, ou uma cena imaginada no mundo
neolítico que ele descrevia. Outro exemplo bem conhecido é o relatório sobre o trabalho
de campo na Leskernick, Cornwall, por Barbara Bender, Christopher Tilley e Susan
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Hamilton, onde a informação estritamente arqueológica está submersa em uma


“narrativa” - da escavação, tanto quanto do passado que está sendo investigado.
Obviamente essas narrativas não são questões que podem ser “conhecidas”, mas a
intenção não era a do exercício.

Estudos mais recentes de artefatos, de fato, dispõem de uma série de meios


sofisticados para fornecer informações sobre o passado - e, portanto, sobre suas próprias
vidas. Alguns deles são provenientes de avanços na análise da composição, o que nos
permite de definir onde e como os artefatos foram feitos; mas outros visam sobretudo a
identificação de “áreas de origem”, onde tipos específicos foram dominantes, e padrões
de distribuição que dão informações sobre os mesmos artefatos fora da sua área de
origem. Estudos de ornamentos de roupas das mulheres na Idade do Bronze Médio
constituem um exemplo clássico deste tipo de abordagem. Eu mesmo tentei fazer análises
semelhantes para outros objetos com um uso particularmente pessoal, tais como as
navalhas (barbeadores). Claro que, em sentido estrito, estes objetos não são “conhecidos”
nem podem ser; mas com hipóteses científicas, parece pouco razoável recusar
interpretações provisórias até que novas investigações provem o contrário.

Voltando ao que Marie Kondo chama de “de-cluttering”, podemos nos questionar


em que medida a prática generalizada de eliminação de objetos aparentemente utilizáveis
nos tempos antigos pode ser iluminada através de uma tal noção. Em estudos da Idade do
Bronze, que trabalho, enormes quantidades de bronze foram enterradas e nunca
reutilizadas. Houve um longo debate sobre as razões disso (esconder objetos de valor em
tempos de dificuldade, armazenar sucata de metal para reutilização, presentes aos deuses,
etc.), sem qualquer explicação que levasse em consideração todas as instâncias. Uma
explicação que encontra seu lugar enquanto “de-cluttering”: simplesmente se livrar de
coisas que foram superadas e substituídas, por exemplo, se livrar de objetos em bronze
quando os superiores em ferro se tornaram comuns. Na verdade, eu duvido que isso pode
ser a causa do descarte para a maioria dos objetos, porém a ideia de simplesmente “se
livrar” das coisas é uma noção convincente, qualquer que sejam as demais causas
envolvidas. É bastante óbvio que os objetos tanto no passado como no presente, foram
criados (“tomaram vida”), tiveram uma “vida útil” e, finalmente, caíram em desuso. Você
pode chamar de nascimento, vida e morte, se quiser. Dada a natureza “emaranhada” de
nossa relação com os objetos, é exatamente como eles interagiam com as pessoas, o que
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eles nos dizem sobre a vida dos seres humanos que os criaram, os utilizaram e os
descartados, aquilo que estamos tentando elucidar. Neste sentido, a vida de objetos é nem
mais nem menos do que a vida de seres humanos, de nós mesmos.

Bibliografia.
Bender – Hamilton – Tilley 1997
B. Bender – S. Hamilton – C. Tilley, Leskernick: Stone Worlds; Alternative
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Edmonds 1999
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Fontijn 2002
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(Leiden 2002).

Gell 1998
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Harding 2000
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Hodder 2012
Hodder, Entangled: An Archaeology of the Relationships between Humans and
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Hoskins 1998
Hoskins, Biographical Objects: How Things Tell the Stories of People’s Lives
(London 1998).

Hoskins 2006
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J. Hoskins, Agency, Biography and Objects, in: C. Tilley – W. Keane – S. Küchler –


M. Rowlands – P. Spyer (eds.), Handbook of Material Culture (London 2006) 74–
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Kondo 2014
M. Kondo, The Life-Changing Magic of Tidying Up: The Japanese Art of
Decluttering and Organizing (Emeryville 2014).

Kondo 2016
M. Kondo, Spark Joy: An Illustrated Master Class on the Art of Organizing and
Tidying Up (Emeryville 2016).

Kopytoff 1986
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Meskell 2004
L. Meskell, Object Worlds in Ancient Egypt. Material Biographies Past and Present
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Miller 2009
D. Miller, The Comfort of Things (Cambridge 2009).

Miller 2010
D. Miller, Stuff: Compulsive Hoarding and the Meaning of Things (Cambridge
2010).

Wels-Weyrauch 1989
U. Wels-Weyrauch, Mittelbronzezeitliche Frauentrachten in Süddeutschland
(Beziehungen zur Hagenauer Gruppierung), in: Dynamique du bronze moyen en
Europe occidentale (Paris 1989) 119–134.

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