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VIVIANE MATESCO

corpo, imagem e representação


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direção: Glória Ferreira
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um Almoço no Parque e um Bar
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Performance nas artes visuais
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O projeto do renascimento
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Razões da crítica
Luiz Camillo Osorio
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A teoria como projeto:
Argan, Greenberg e Hitchcock
Guilherme Bueno
sumário
Introdução

Vê-nus

Corpo-imagem: corpo à imagem


e semelhança de Deus

O corpo-forma: morada do “eu”


e espelho de reconhecimento

Autonomia da arte e fragmentação


da imagem do corpo

Quebra do especular
e profanação da imagem do corpo

Ações de Barrio com as


trouxas ensanguentadas

Referências e fontes

Sugestões de leitura
Introdução
NA SEGUNDA METADE do século XX o corpo é focalizado em happenings,
ações, performances, experiências sensoriais, fragmentos orgânicos, o que
afirmaria a noção de um corpo literal como singularidade da arte
contemporânea. Essa noção foi desenvolvida pela produção e pelo discurso
crítico de arte em contraposição ao corpo idealizado expresso no nu. Gênero
artístico-metafísico por excelência, o nu foi criado na Grécia em um
momento no qual a própria imagem de corpo pôde ser pensada. Isso quer
dizer que a concepção de corpo na cultura ocidental está intimamente ligada à
questão da imagem e da representação. Se no início do século XX a arte
moderna subverte a tradição do nu, através da fragmentação e da deformação
do corpo, na segunda metade do século essa crise da outrora equilibrada visão
antropocêntrica é ainda mais acentuada uma vez que a matéria, a animalidade
e a crueza passam a ser exploradas. Dessa maneira, a arte contemporânea
profana a antiga imagem de um corpo idealizado por intermédio do
reconhecimento da corporalidade humana, seja através de uma ação ou pela
ênfase da sexualidade, a utilização de fluídos e de odores. A afirmação de
uma ideologia de corpo autêntico e libertário, nas décadas de 1960 e 1970,
contribuiu para a construção da imagem de um corpo puro centrado na
experiência física e cotidiana. Utilizado inicialmente como uma ferramenta
para aplicar a tinta, o corpo desempenha papel principal na subversão dos
tabus e interditos com a body art: seja como pincel, instrumento de libertação
ou suporte de discurso, o corpo foi tratado como objeto, como algo externo e
manipulável.
Mas será que o sentido do corpo na arte contemporânea pode ser
compreendido apenas pelo deslocamento de pessoas, pelos fragmentos
orgânicos como sangue, crânios, dentes, trouxas ensanguentadas, urina? Se a
presença de elementos corpóreos contraria a sublimação tradicional do corpo
expressa no gênero do nu, a redução do corpo apenas à sua corporeidade
achata a riqueza de sua complexidade. Certamente, a exposição de dimensões
do corpo antes reprimidas profana a idealização de sua imagem e
representação no Ocidente. No entanto, fazer o caminho oposto e afirmar a
literalidade de um corpo primário é apagar sua ambiguidade constituinte. O
cerne do problema quando se enfrenta a questão do corpo na arte é o terreno
movediço dos próprios termos: corpo, imagem e representação não possuem
um sentido único e podemos mesmo afirmar que a cultura ocidental é fruto
dessa polissemia. O intuito deste livro é buscar nas raízes históricas da
relação corpo, imagem e representação elementos que ampliem a reflexão
sobre a questão do corpo na arte contemporânea.
Partiremos da série Vênus, do artista Tunga, para discutir os limites da
visualidade e introduzir a problematização do nu no Ocidente e concluiremos
o livro com a análise da ação trouxas ensanguentadas, realizada por Barrio.
Esses dois trabalhos de arte contemporânea funcionam como propulsores de
questões que perpassam o sentido da arte para os homens de períodos mais
remotos até os dias de hoje. Por intermédio deles, compreende-se como um
mundo comum se construiu e definiu sua cultura como gestação articulada e
simultânea do invisível e do visível. O pensamento ocidental é construído
mediante dualidades como corpo e alma, Eros e Tânatos, matéria e espírito,
aparência e essência, corpo e mente, sensível e inteligível, categorias criadas
pelo homem que informaram e geraram as concepções de corpo, imagem e
representação no Ocidente.

Vê-nus
Trabalho de Tunga de 1976, Vê-nus (cuja fotografia está na capa) é realizado
a partir de uma folha de borracha negra dividida em dois segmentos: o
primeiro, preso à parede, tem formato alongado e a borda inferior dentada e
liga-se ao outro por correntes; o segundo elemento é formado por tiras de
borracha que se erguem do chão como um organismo vivo, insinuando
encaixe no primeiro por ter a borda superior também dentada. Se a borracha
funciona como isolante, as correntes de metal são condutoras de energia; um
mecanismo com luz, apoiado no chão, confere ainda mais vivacidade ao
conjunto, uma vez que cria jogos de luminosidade e sombra e acentua a
possibilidade de junção. O formato fálico da parte superior, as relações entre
as duas bordas dentadas e a configuração da parte inferior sugerindo boca ou
vagina acentuam e dão sentido a essa promessa de interação. A relação entre
o objeto e a sombra gerada pela luz produz outra dimensão que preenche o
vazio e repõe a falta do objeto como sua substituição. A sombra, assim, não
se limita a ser projeção, uma vez que supõe olhar mais complexo que
desnude outro corpo: aquele da pulsão. Aqui é o trabalho que nos olha, pois o
que vemos relaciona-se com nossa experiência mais íntima. Vê-nus pressupõe
essa maquinaria pulsional; realizada em escala humana, é um corpo inteiro e
ao mesmo tempo mutilado, cujas partes complementares precisam de
materiais opostos para se conectar.
Vê-nus, ou Afrodite, é a deusa do amor associada ao desejo sexual entre
os mortais e, segundo as narrativas mitológicas, teria nascido a partir do
esperma de Urano que, atirado ao mar, espumou sobre as águas. Na pintura
de Botticelli, Vênus nasce das águas, numa concha, mas está isolada da
paisagem que a cerca. Seu corpo frio alude à nudez sublimada e ideal. Toda
paixão centra-se no exterior, no vento agitando seus cabelos, o que perturba a
cena e impõe sua outra face, o desejo. Nascida numa esfera mitológica de
crueldade, do sexo cortado do Céu, Vênus não é entidade pura, pois apresenta
duplicidade estrutural: é dividida entre deusa celeste e vulgar, é também a
dobradiça em que Eros encontra Tânatos e pela qual nudez rima com desejo,
mas também com crueldade. Na Vê-nus de Tunga, como em Botticelli, é esse
corpo do desejo que transparece pela relação de partes que se constituem
através de opostos como macho e fêmea, Eros e Tânatos.
O processo de construção do trabalho através do corte e de um molde
explicita a interação de masculino e feminino, pois implica um núcleo
central, que já remete a um falo dentado, e o que resultou da folha de
borracha, espalhada pelo chão. O encaixe de positivo e negativo, macho e
fêmea remete à frase de Galeno de Pérgamo: “Vire a vagina para o lado de
fora ou vire para dentro e dobre o pênis; você encontrará a mesma estrutura
em ambos, sob todos os aspectos.” A afirmação atesta a crença grega em um
único sexo, um continuum corporal com dois polos, que supunha a
reversibilidade dos órgãos na genitália masculina e feminina. Em Vê-nus,
essa relação não se restringe ao aspecto físico: a implicação da sexualidade é
sutil porque não é representada, mas experimentada através de condensações,
deslocamentos e outros mecanismos que se afastam do que o público
geralmente toma como erótico. A produção de Tunga lida com materiais que
sugerem campos de energia e com imagens que desafiam a comunicação
entre esse campo de forças e o corpo. Em Prática de claridade sobre o nu,
misto de produção prática e texto teórico, Tunga explicita uma lógica que vai
permear toda sua obra – o tema do nu é aí tratado no campo da intimidade na
tentativa de objetivar experiências do sensível, de colocar o real em
movimento e tornar visíveis as forças que o animam.
O título Vê-nus supõe a duplicidade que enuncia seu sentido. A deusa
Vênus é associada ao desejo sexual, mas também há a analogia entre as
palavras ver e nus. A série investiga os limites da visualidade e da
representação e nos propõe o enigma de um olhar que desnuda o invisível. A
aproximação de ver e nus não é apenas um jogo de palavras, mas referência
que nos permite investigar a singularidade da relação entre corpo e arte.
Como mecanismo invisível do desejo, Vênus relaciona-se à problematização
do nu na história da arte, ao desafio de representar o irrepresentável fugidio
do colocar a nu. Tal como a Vê-nus de Tunga, trata-se aí do aparecimento de
uma evidência plástica que atue na fronteira do visível. O que o nu revela é
que não há nada a revelar, ou melhor, que ele é somente a própria revelação,
o revelador e o revelado ao mesmo tempo; é o gesto que desnuda. O divino
nu (das estátuas gregas), o pecado nu (da inquietude cristã em relação à
carne) e a pele nua – esses três aspectos do nu ocupam de muitas maneiras o
pensamento atual.
Quando investigamos outras sociedades, percebemos que o corpo é
categoria historicamente baseada nas ideias de corpo perfeito no mundo
grego e na tradição judaico-cristã. Da mesma maneira, a importância da
imagem em nossa sociedade é indissociável do modo como o corpo foi
concebido no Ocidente.
No universo simbólico das sociedades primitivas, o corpo é permutador
de códigos e fala a língua que nele vêm inscrever. As forças motrizes do
universo estão de tal maneira ligadas ao indivíduo que seria impossível falar
do meio físico ambiente, exterior ao homem. Há uma correspondência entre o
corpo humano e o mundo vegetal ou animal. Na passagem do mito ao
pensamento entre os gregos, a natureza é separada do seu pano de fundo
mítico para tornar-se problema e objeto de uma discussão racional. A
narrativa do mito dá lugar a um sistema que questiona a estrutura do real.
Para dar razão às mudanças no cosmo, recorre-se não mais à vida animal ou
das plantas, mas a modelos abstratos. O nascimento da filosofia é solidário a
um pensamento que exclui toda forma sobrenatural e rejeita a assimilação
implícita estabelecida pelo mito entre fenômenos físicos e agentes divinos.
Fundamentada em um sistema de oposição binário-pitagórico, a filosofia
constrói uma lógica de pensamento seminal para o Ocidente. O princípio de
imortalidade, a alma, é parte de uma dualidade que precisava ser mantida em
equilíbrio. A partir disso, o corpo é idealizado, modelizado e julgado por
princípios externos a ele, transcendentes, mais pensados do que vividos. As
situações singulares e a realidade empírica serão analisadas por essas
configurações universais que constituirão o corpo como uma imagem de
valor universal. A leitura da natureza a partir da geometria é a cena
imaginária em que a menção do corpo é sempre o enunciado do desejo da
forma; o que significa uma imagem totalizada reconhecível no espelho. Foi a
partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada. O
corpo é reinventado mediante um ideal que lhe é externo e que o deslocará da
natureza para a pólis: o corpo do cidadão era um artifício a ser criado, que
deveria ser treinado e aprimorado. Por isso, todas as figuras humanas do
Pathernon são jovens; o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao
contrário, é uma conquista da civilização. Compreende-se, dessa maneira,
que o nu artístico é relacionado a características morais, tornando-se modelo
de virtudes e qualidades subjetivas que marcam toda a arte europeia
ocidental. O nu faz abstração da dimensão do particular e do próprio ao
manifestar fixidez fora do tempo: a beleza. É precisamente por causa dessa
vontade obstinada do homem de dar forma visível ao humano que o nu seria
o signo distintivo da sociedade ocidental, de sua metafísica milenar à procura
de uma imagem sensível do ideal. As estátuas gregas representam o ideal
mais elevado, uma vez que elas são o signo tangível do poder de uma cultura
capaz de extrair o ideal abstrato da humanidade. O nu não representava um
corpo, mas uma ideia: a ideia de homem.
Se nenhum corpo satisfaz em sua totalidade, o artista é livre para escolher
formas perfeitas de corpos diferentes e compor um conjunto harmonioso.
Assim procede Zeuxis quando cria sua Vênus, inspirando-se em cinco filhas
de Cretone. Do ponto de vista da lógica, desloca simplesmente o problema do
conjunto para aquele das partes, o que nos faria perguntar em virtude de qual
modelo ideal Zeuxis aceita ou rejeita o braço ou o pescoço das cinco filhas. É
difícil reuni-los. Para ultrapassar a dificuldade de partir de elementos diversos
perfeitos, mas que reunidos causavam estranheza na composição, os artistas
desenvolveram o que os teóricos, posteriormente, denominaram forma
mediana. Essa fusão, uma vez alcançada, resulta numa imagem maleável que
pode ser ainda enriquecida ou depurada. A paixão dos gregos pela
matemática contribuiu para a formação dessa imagem, uma vez que toda a
arte está fundada na fé e na harmonia dos números; daí percebermos o laço
entre sensação e ordem, entre a base orgânica e a base geométrica da beleza.
O nu encarna valores espirituais das divindades, como a medida, o
equilíbrio, a modéstia e a proporção. O belo designa uma qualidade rítmica
das coisas, certa proporção harmoniosa regular das partes, mais ou menos
presente no mundo, mas exemplar e superlativa no corpo humano. A beleza,
no entanto, não está no corpo ou no trabalho do artista, uma vez que o belo
grego não é categoria artística; antes supõe um discurso filosófico. Trata-se
de ideal suprassensível, realidade imóvel e transcendente, da qual a beleza
física é imitação longínqua e degradada. Também aqui uma distinção se faz
necessária. A arte de Fídias e Praxíteles produziu figuras de aparência real e
grande número de histórias contadas por Plínio, entre outros, gira em torno da
admiração diante do grau de verossimilhança que os gregos atingiram. A
habilidade dos artistas em dar ilusão de vida – a representação no sentido de
imitação – foi tema e dilema que persistiu durante toda a Antiguidade. Cabe
ressaltar, no entanto, que no discurso filosófico a representação clássica não
significa uma ideia simples da substituição, uma coisa no lugar de outra, pois
se privilegia o conhecer. A representação clássica implica a capacidade de se
fazer a correspondência com o objeto através da mediação do pensamento.
Corpo-imagem: corpo à imagem e semelhança de Deus

Se por um lado a formação de imagem do corpo origina-se na Grécia e torna-


se referência para toda a arte europeia, é através do cristianismo e da forma
como a doutrina cristã interpretou a interdição judaica de representação de
Deus que a concepção de corpo pôde se constituir em categoria da cultura
ocidental. Além do dualismo ontológico (corpo e alma) que já vimos, dois
outros elementos são fundamentais nesse processo: o criacionismo
monoteísta e o pensamento sobre a encarnação. O criacionismo monoteísta
impregnou a Europa pelo Antigo Testamento, cuja récita situa a origem do
corpo no ato criador de um deus que fez o homem à sua imagem. No entanto,
essa relação de imagem que associa o homem a seu criador é assimétrica.
Deus está, na verdade, além de toda imagem, pois essa é, por definição, algo
sensível e Deus é incomensurável. Também o pecado original introduz a
dessemelhança do homem em relação ao criador; ele passa a ser, então,
apenas uma imagem decaída, expressa na fragilidade de seu corpo. A
semelhança cristã é expressa hierarquicamente, pois fixa uma cópia que se
assemelha a seu modelo, cujo inverso nunca deve ser dito, pois
desclassificaria a relação de semelhança. Nesse contexto hierarquizado,
produtor de interdito, a semelhança só pode ser encarada como objeto
perdido. O nó filosófico da questão da semelhança e da figura humana
consiste na evidência que reveste uma característica de interdição exemplar:
quando se diz que duas coisas ou duas pessoas se assemelham, supomos,
normalmente, que elas não se tocam, que elas permanecem num
distanciamento material mais ou menos afirmado, ou seja, a matéria não deve
tocar a forma. A possibilidade dessa relação é introduzida pela doutrina da
encarnação, pois permite compreender que, apesar do caráter irrepresentável
de Deus, uma circulação possa existir entre Ele e o homem. Ao encarnar,
Deus se oferece aos humanos sob uma forma que participa, ao mesmo tempo,
da transcendência espiritual e do corpo humano. Por intermédio de Cristo,
Deus toma rosto e se faz ver. Assim, o homem pode relacionar-se com Ele
mediante a figura de Cristo e graças à sua imitação aproxima-se de Deus.
A Europa cria uma concepção de corpo-imagem que comporta três
elementos essenciais; o corpo humano é então pensado em relação a um
modelo que é sua fonte e seu ideal, como se fosse uma imagem ou traço. Daí
a necessidade de mediação, de espaço de troca entre essas duas realidades,
uma vez que o modelo é imaterial e abstrato, e o corpo, sensível. Pensada a
partir do modelo, a mediação (Cristo) é imagem conforme, consubstancial e
traduz, sem perda, o modelo ao encarnar uma realidade sensível. A fabricação
social do corpo consiste em levar o homem a imitar a imagem conforme e
assim se aproximar da perfeição do modelo. Por meio dessa descontinuidade
e dessa hierarquia que estabelece entre o corpo e o que funda seu ser é que a
cultura europeia se distingue das outras. Na Europa, o corpo é uma substância
individual que se relaciona ao modelo não corporal de que é imagem. A
quase-ausência do nu no Extremo Oriente demonstra o quanto é estranho para
essas sociedades o conceito ocidental de um Deus criador. Da mesma
maneira, a pintura no Oriente não é pensada como representação (no sentido
de imitação, de reprodução). Isso confirma a existência na Europa de um laço
essencial entre o pensamento do corpo e o culto da imagem. Portanto, na
cultura ocidental o pensamento do corpo é um pensamento de imagem e, ao
mesmo tempo, o pensamento de imagem é um pensamento do corpo.
Assim como impõe a ideia de culpa, de redenção pelo sofrimento e,
sobretudo, a interdição aos prazeres corpóreos, a doutrina cristã postula
inicialmente o afastamento da beleza plástica, tal como o mundo grego, e
então pagão, concebera. Herdeiros da tradição judaica, que proibia a
representação de Deus, os primeiros cristãos temiam que os convertidos não
compreendessem a nova mensagem de um deus desencarnado e único e o
confundissem com a representação que se fazia do deus pagão. Desse modo,
a representação deixara de ser uma finalidade, o que resultou na proibição de
estátuas, pois se pareciam demais com aquelas imagens dos ídolos pagãos
gregos. O corpo abstrato do ícone e o corpo em fragmento da relíquia eram
sinais de uma crise que havia abalado a relação entre imagem do corpo e
imagem do homem. Essa crise foi provocada porque se transferiu para o
corpo de Jesus tudo o que até então era relacionado à imagem do homem. O
único corpo que exercia um papel na teologia era aquele no qual Deus
encarnou.
O percurso paradoxal de como o cristianismo elabora as condições de um
pensamento específico sobre a imagem a partir do ódio ao visível pode ser
analisado nos textos escritos por Tertuliano, o primeiro teólogo da Igreja
católica. Tertuliano tinha como projeto extrair eficácia imaginária da
encarnação fora da eficácia imaginária da imitação. Imitar Jesus Cristo
designaria um limite. Mas esse limite designa também a tentativa de exceder
a imagem pela imagem encarnada. A própria crença é completamente
implicada por esse nó. Enquanto a imitação visava a semelhança e se dava o
espelho como problema visual, a encarnação propõe processo e o primado da
matéria a partir da noção de traços ou vestígios de Cristo. Por isso, os mitos
da origem da imagem cristã implicam a luz, o sangue e o contato, enquanto
os mitos plinianos ou ovidianos – tal como Narciso – implicam mais a
sombra, o reflexo, a distância insuperável.
A questão da imagem e a possibilidade de representação de Deus
causaram impasses e violentas disputas, como as querelas dos iconoclastas no
Império Bizantino no período medieval. O ponto da discórdia era se a
imagem incorporaria o divino, pois isto significaria que diante da imagem de
Deus, o homem estaria diante d’Ele próprio. Em função disso, muitas obras
foram destruídas nas igrejas, pois se temia a idolatria pagã. Ao contrário
daqueles que defendiam essa crença, para os iconoclastas existiria a cópia e a
diferença de seu modelo, ou seja, apesar de a imagem trazer a presença, ela
guarda diferença do modelo. Cortando o laço que liga a imagem ao modelo, o
iconoclasta demonstra a estrita materialidade do ícone. A querela dos
iconoclastas é referência que torna possível enunciar o estatuto das imagens a
partir de um fundamento dessacralizado. Os estudiosos das querelas dos
iconoclastas estabelecem uma relação direta com a possibilidade de
representação na arte, pois é justamente nesse momento que a Igreja postula a
distinção entre veneração, que significava simplesmente dirigir um pedido a
Deus, e a adoração pagã, que implicava submissão: venera-se a imagem,
enquanto se adora a Deus. O cristianismo teria criado uma relação singular
com a bidimensionalidade, sendo a forma visível a forma tangível desse
divino, ou seja, através da imagem de Cristo pode-se representar Deus. Essa
relação arquétipa entre Cristo e a arte fundaria a possibilidade de
representação na Europa.
Outros autores argumentam que essa possibilidade de representação não
ocorreu de maneira imediata, pois acentuam o caráter antimimético da
imagem medieval europeia, mais ligada ao culto do que à arte. A
característica determinante da imagem cristã medieval advém de uma visão
marcada pelo contato e pelo traço e não pela mimese. A extraordinária
difusão de objetos figurativos relaciona-se muito mais à eficácia
antropológica e doutrinária, uma vez que as imagens serviam como ícones de
relações de crença constantemente expressas em termos de não visualidade,
para além do Verbo divino. O mistério da encarnação exigiu e produziu um
trabalho de revezamento do visível no qual o invisível estava contido na
visão, pois pretendia perturbar a ordem do mundo visível e a ordem clássica
da imitação. A figurabilidade não mimética da imitação de Cristo é dominada
pela ideia de traço, pela dimensão táctil-háptica da visão, do olhar como
unção, e pela exigência de uma cor-martírio. Essa figurabilidade tende ao não
mimético, porque ela tenta incluir os aspectos fundamentais de uma imitatio
cristi consagrada ao processo, à virtude, mais do que à simples aparência.
Desse modo, o sangue de Cristo pôde constituir-se em intenso foco de
devoção, de pensamento de construções simbólicas e produções imaginárias.
O sangue não se reduz a valores icônicos ou simbólicos; trata-se antes de algo
como transubstanciação. Ele transita perpetuamente entre um corpo glorioso
e uma imagem; será, assim, a própria transubstância da imagem enquanto
virtude de encarnação. A imagem deve imitar o Cristo ao copiar sua virtude
mais do que sua aparência, ou seja, produzindo eficácia semelhante: deve ser
à imagem de Cristo, como milagre e santidade. É apenas no Renascimento
que o termo “figura” passa a ser visível, isolável e descritível. É sem dúvida
em Alberti que a noção de figura é encetada ao recobrimento da aparência
“figurativa” em detrimento da virtualidade figural da arte cristã medieval.
Essa nova concepção do termo “figura”, contemporânea da própria história
da arte, vai positivá-lo, restringindo-o à aparência, à transparência
representativa, em resumo, à univocidade.
O corpo-forma: morada do “eu” e espelho de reconhecimento

Na Idade Média não havia representação do corpo individual – retratos, como


hoje entendemos. É só no Renascimento, quando o homem descobre a
consciência de seu existir social, que um processo de figuração plástica é
concebido a partir da ideia de semelhança: o eu do sujeito torna-se “o espelho
do mundo”. Recupera-se a experiência da carne direcionada ao conhecimento
sensível: o homem não será mais definido por regras de narração, mas pela
apreensão física imediata. No espaço simbólico do Renascimento percebe-se
o despertar do real como aparência, pois os corpos decodificados que ele
contém fazem aparecer o fantasma da identidade. Agora não se pode pensar
uma coisa fundamental além da aparência, como se esta fosse apenas
imitação; o artista não é apenas quem representa a coisa, mas também aquele
que revela seu sistema de projeções. A natureza é aparência, mundo da
visibilidade, mas aparece através de um sistema articulado de coordenadas. A
partir do Renascimento não existe apenas uma vinculação entre aparência e
essência; sem a representação, não é mais possível perceber a vinculação
entre ideia e ideado. Não é de estranhar que a pintura se ponha como ciência:
trata-se de construir modelos do real para revelar aquilo que sustenta essa
aparência.
A originalidade dos pintores quatrocentistas foi imaginar uma pintura que
tornasse tangível um universo testemunho dele mesmo. Apesar de os
personagens nas pinturas de Giotto já possuírem evidência humana, é com
Masaccio que o sentido corpóreo é enfatizado: agora, o homem será definido
não mais pelas ações situadas numa história ou por saberes situados na
memória, mas por novos repertórios ópticos, por uma visada sensorial
imediata que cria presença. Substitui-se a evidência intelectual pela sensível;
não é mais a fé que funda o real, mas a experiência. Quando Masaccio evoca
sensivelmente a figura humana, é porque está em curso a tomada de
consciência dos valores do indivíduo; a intenção é estabelecer a imagem na
medida do homem e não na de uma visão de mundo. Nesse sentido,
compreende-se a influência de Vitrúvio sobre os artistas renascentistas, pois
estabelecia regras de proporções humanas corretas e defendia que o homem é
um modelo de proporção porque, com pernas e braços estendidos, encaixa
nas formas geométricas perfeitas, o quadrado e o círculo. Para o
Renascimento, mais do que regra prática, isso se constitui no fundamento de
toda uma filosofia. A finalidade da pintura não se relaciona a valores
absolutos, mas a uma explicação de modalidades e princípios visando a ação
humana.
A retomada do nu no Renascimento reativa normas antigas, mas no
contexto de uma concepção de corpo já distante da vigente na Antiguidade.
Com a busca da harmonia e das proporções, a pintura se propõe a fundar a
beleza visível do corpo humano sobre uma harmonia interior. Como belo
ideal, o corpo escapa ao tempo orgânico e se cristaliza em presença imutável
submetida à única lei da forma. O estatuto do nu, no entanto, é inquietado
pela possibilidade da redenção da realidade corporal bruta. Com efeito, o
pressuposto implícito do nu é a ideia de que o olhar que o constrói é aquele
da interioridade espiritual. A sexualidade dos corpos, sobretudo do corpo
feminino, no entanto, sempre foi um problema para o nu. Mesmo em sua
origem grega, a nudez masculina e a feminina não tinham o mesmo estatuto:
enquanto os jovens participavam dos jogos nus, as mulheres vestiam-se;
enquanto a nudez de Apolo participava de seu caráter divino, Afrodite foi
envelopada em drapeados. Os nus femininos são raros antes de Praxíteles e a
fama de sua escultura Afrodite de Cnide relaciona-se à questão de seu
estatuto. A irresistível atração que a escultura exercia espalhou-se por toda a
Antiguidade, o que pode ser aferido pelos relatos ressaltando sua irresistível
beleza como se ela fosse de carne, a própria encarnação do desejo físico: uma
força afrodisíaca. É interessante observar como a própria história da arte
constrói seu discurso a partir da repressão da sexualidade. Na verdade, só
conhecemos os nus gregos através de cópias romanas e de objetos como
moedas, estatuetas de mármore, bronze, argila. Como seu conhecimento é
construção realizada a partir de sua repercussão, as cópias variam a partir do
momento em que foram interpretadas. De certa maneira, podemos afirmar
que o desenvolvimento da história da arte vincula-se a essa reconstrução: é
uma imaginação da Grécia. Desse modo, Kenneth Clark, o mais famoso
estudioso do gênero, denuncia a mediocridade das cópias difundidas no
Renascimento, sobretudo as Vênus do Capitólio e de Médici, pois teriam
degenerado o nu clássico ao lhe emprestar caráter carnal. Na concepção de
Clark, é indispensável distinguir entre nudez e nu para compreender como o
corpo se constituiu num dos principais motivos da obra de arte. Enquanto a
nudez sugere o estado de quem está desprovido de vestes e o correspondente
embaraço dessa situação, o nu não projeta em nosso espírito a imagem de um
corpo tolhido e indefeso, mas daquele equilibrado, desabrochado e seguro de
si mesmo: o corpo “re-modelado”.
Se o nu evocava uma transcendência, isso não se efetivava sem
problemas, uma vez que o desejo era uma face velada do gênero. Em Ouvrir
Vénus. Nudité, revê, cruauté, Georges Didi-Huberman demonstra como a
própria história da arte é construída a partir do pressuposto de um sujeito
desencarnado, evidente nas teses de Kenneth Clark. Ao isolar o nu de sua
nudez através de diversas camadas de interpretações, a história da arte o
transforma em elo de uma cadeia legível e constrói seu discurso a partir da
desqualificação do desejo. Por intermédio de um idealismo que funda a
proeminência do desenho pelo enquadramento de tudo que se relaciona à
fenomenologia do corpo e da carne, a historiografia tradicional analisa o nu a
partir das fontes, das palavras gregas ou latinas, das descrições relativas ao
mito, dos cânones da estatuária grega; ou seja, a nudez é abstraída. No
entanto, a base filosófica a partir da qual a figura de Vênus foi gerada no
Quattrocento estava longe de ter a estabilidade semântica que lhe
emprestaram os historiadores da arte. Na conjuntura do Quattrocento, a
imagem da nudez forma um conjunto impuro, inquieto e muito distante de
idealidade estável e apaziguada. O nu ideal belo tem outro lado que não é
tratado pelos historiadores: a abertura dos corpos e a obsessão dos
escorchados seriam a outra face mais cortante, cruel, da beleza do nu. Os
humanistas do Quattrocento não ignoravam o fundo de horror e de morte na
narrativa mítica. É esse lado dilacerante que Clark se recusa a ver na poesia
de Botticelli ao isolar o nu da nudez a fim de postular a forma ideal.
Essa pluralidade de fenômenos no Renascimento é compreendida também
pela diversidade de concepções de corpo entre os artistas. Os diferentes
modos com que Donatello, Alberti, Leonardo Da Vinci e Michelangelo
representam o corpo humano revelam diferentes conotações pelas quais o
homem se viu. A tradição albertiana da pintura implicava ponto de vista
único a partir do qual o espectador constituía o lugar da representação, isto é,
a história. Em De Pictura, Alberti destaca não a beleza física dos corpos ou
sua representação naturalista, mas a beleza da história e a transmissão de
valores ao espectador. A representação do corpo não pode ser separada de
uma construção ética que delineia o primeiro humanismo italiano; o corpo
destila uma polissemia de sentidos, a um só tempo ético e estético,
tensionado sob as noções de conveniência, dignidade, natureza, beleza e
imitação. As regras de desenho, por meio das quais o pintor deveria
representar o espaço e o personagem, são sintetizadas no que Alberti
chamava de “véu intersector”; superfície projetiva que separa pintor e
modelo, as imagens e atitudes dos homens e mulheres. Com esse modelo,
suprimia-se qualquer tipo de ambiguidade e estabelecia-se o ponto de vista, o
ponto de distância, dados próprios à representação ocidental e à exigência de
recuo para olhar, observar as coisas e os outros. Um corpo desenhado é cada
vez mais abstrato, pois é construído por essa ordem geométrica na qual se
baseia a perspectiva humanista.
O corpo humano em Leonardo, de maneira diversa da que aparece em
Masaccio, deixa de ser investido por uma ideia que o distingue, para fazer-se
da mesma substância do mundo. Também não se inspira em projeto de
humanismo cívico, como em Alberti; significa, antes, o ponto de passagem
em que o objetivo de toda especulação intelectual se torna apreensão das
formas sensíveis. Para Leonardo existe, no universo, um número incalculável
de elementos virtuais suscetíveis de serem descobertos pelo olhar humano,
por isso, a pintura torna-se instrumento de conhecimento e não apenas de
representação de atos. A observação do corpo humano, tanto externo quanto
interno, mesmo que para tal fosse necessário utilizar a dissecação, prática até
então proibida, pontua esse novo momento. Leonardo parte do fenômeno e,
por isso, recusa uma ideia apriorística e externa às coisas. A novidade está em
observar o corpo e já não dissertar a seu respeito, como era hábito dos
teólogos medievais. A arte e a ciência renascentista nos mostram corpo e
natureza dessacralizados, convertidos em coisa humana, considerados a partir
da finitude de nosso olhar.
A cientificidade em relação ao corpo desenvolve-se gradualmente em um
universo ainda carregado de reminiscências medievais. As primeiras
dissecações só ocorreram oficialmente no século XVI, pois não se tinha,
então, a noção moderna de cadáver. A oficialização desse procedimento e
desenvolvimento do saber anatômico atestam a dissociação entre corpo e
homem e a possibilidade de o corpo afirmar-se como conceito autônomo. Na
medicina, a postura de observação e experimentação introduzida por Vesálio
(1514-64) revoluciona a tradição de subordinação a um texto filosófico-
religioso. Contra o olhar medieval, Vesálio instaura os direitos da observação
– daí utilizar técnicas de representação dos pintores para fazer desenhos após
as dissecações. A exatidão das estampas de anatomia testemunha os poderes
do novo olhar, pois fornece visão insubstituível do trabalho científico. Os
“escorchados” nas ilustrações de Vesálio representam esqueletos como se
estivessem vivos, cheios de vigor; ao desvincular o morto de seu corpo,
permitem a constituição da anatomia, excluindo a morte de seu campo. O
corpo como representação passa agora a ser assimilado a processos objetivos;
longe do espectro da morte, edifica-se um saber. No século XVII, com as
descobertas sobre a circulação do sangue por William Harvey (1628), ocorre
uma verdadeira revolução científica que muda toda a compreensão do corpo
– sua estrutura, seu estado de saúde e sua relação com a alma –, dando
origem a um novo modelo. Harvey relaciona o coração a uma máquina que
bombeia o sangue através das artérias do corpo. Essa concepção mecânica
deu origem a uma compreensão mais secular do corpo, contestando a noção
de que a alma fosse a fonte de energia da vida.
A imagem secularizada do corpo e a possibilidade de constituição do
saber anatômico marcam uma mudança no pensamento no século XVII. Se
até o século XVI a semelhança desempenhou papel construtor no saber da
cultura ocidental, a partir de então os critérios de comparação e análise, em
termos de identidade e diferenças, e o estabelecimento de métodos e sistemas
dominam a episteme cultural. Com o desenvolvimento da filosofia
mecanicista no século XVII, a Europa perde sua vinculação religiosa;
Galileu, Copérnico, Bruno e Kepler estabelecem um universo da precisão,
impondo novas noções de medida, exatidão e rigor. O pensamento
mecanicista cria uma relação de domínio ao procurar reduzir o conjunto dos
movimentos do mundo e as turbulências da condição humana a um conjunto
de leis racionais, a recorrências previsíveis. A filosofia cartesiana é
reveladora da sensibilidade de uma época ao formular oficialmente a
distinção do homem de seu corpo, fazendo deste uma realidade depreciada. O
corpo do homem tem a desvantagem de não ser confiável e rigoroso na
percepção dos dados do ambiente, aparece como a parte menos humana do
homem e estaria alinhado com a natureza e a animalidade, devendo ser
transcendido e banido.
Se no Renascimento o homem se descobria através da representação, no
século XVII a representação torna-se manifestação dela mesma: desliga-se do
estatuto da aparência, estabelece códigos e inicia um processo de autonomia.
Na modernidade, a representação distingue-se em dois momentos; no
primeiro, o sujeito posiciona-se como ponto de referência – é o momento em
que os postulados representacionais renascentistas definem a verossimilhança
do eu e abordam a questão do sujeito no mundo. A presença efetiva do que é
representado só é crível em função do grau de verossimilhança não mais
baseada na mimese clássica, mas intuitiva. Aqui o sujeito moderno é definido
por sua própria representação: o corpo enquanto forma torna-se a morada do
“eu” como um espelho de reconhecimento. O maneirismo põe fim ao caráter
experimental dessa representação, ao sistema de unidade perspectivista
enquanto portadora de unidade simbólica do sujeito, fazendo da metódica e
científica descoberta do mundo uma interpretação na qual o sujeito se perde.
A representação, no final do século XVI e no XVII, legitima-se buscando
sentido em si mesma. Assim, quanto mais os meios empregados na
representação se tornavam evidentes, mais perdiam a relação com sua função
referencial. Se o sujeito renascentista é definido por sua própria
representação, que seria um corpo-forma através do qual seu “eu” se
constituía, agora o “eu” do sujeito não mais espelha o mundo. Esse novo
sujeito retira-se de todo espelho, de toda reflexão para se confinar num lugar
que ele possa imaginar, um lugar interior e subjetivo.
A pintura chamada de vanité testemunha essa mudança. A anatomia
oferece matéria às primeiras vanités, permitindo difundir as pranchas de
desenhos dos esqueletos com grande precisão. O desprendimento dos bens
terrestres, a fim de preparar a vida eterna, é récita bíblica que ganha
atualidade no Renascimento paralelamente à racionalização iconográfica que
permitiu aos artistas conjugar pensamento moral, religioso e imagem. A
vanité lembra ao homem sua finitude, a fugacidade do tempo que vem selar a
morte e a inutilidade das riquezas do mundo. O crânio foi um de seus
principais elementos, utilizado para evocar a fragilidade da existência
humana e a esperança na redenção através do sacrifício de Cristo. O crânio
representa a passagem da morte à ressurreição, o abandono do envelope
carnal, o retorno à matéria. Morrer para ressuscitar, viver e pecar para ser
redimido. Em meados do século XVII, a classificação progressiva dos temas
da pintura situará esses quadros entre as naturezas-mortas. Mediante um jogo
de analogias entre os objetos, entrelaça-se uma linha metafórica geral da
composição, mas os elementos simbólicos são sempre ambivalentes. O
espelho em que Madalena contempla o reflexo do crânio é também o
instrumento em que Vênus controla seus ornamentos. Todas essas
representações se articulam por contraste em sistema; quanto mais a natureza-
morta é suntuosa, com o crânio coroando a cena por meio de um fio de
analogias, maior a sensação de caducidade; quanto mais a penitente é bela,
mais sua renúncia e sua ascese devem tocar-nos. Em determinado momento,
o equilíbrio é rompido, pois a afirmação do métier é forte demais, a tensão
moral desaparece, e o repertório de vanités torna-se uma modalidade da
pintura entre outras. Mimando sua própria capacidade de representar, longe
de redobrar sua potência, a pintura descobre a verdade última de sua vaidade
não através da confrontação da realidade das coisas, mas pela conversão ao
olho, ao olhar, ao sujeito, ao eu. O quadro torna-se autônomo e fixa o
efêmero em sua realidade e seu conceito. A instabilidade das coisas mede de
certa maneira aquela do eu.
É a subjetividade que marca o fim do nu como algo impessoal e fora do
tempo. O nu acaba quando começa a destroçar toda uma visão de mundo que
supunha a essência universal do homem. O homem não é evidente; é o que a
arte testemunha a partir de nus que projetam não mais a atemporalidade, mas
uma dimensão inédita de singularidade. É a própria essência do nu que se
perde e resta a imanência de um corpo – seu ser sem respostas, totalmente
exposto, sem proteção. A desconstrução do nu ideal foi o fato próprio da
pintura. Da Bethsabée de Rembrandt, à Maja Desnuda de Goya e à Olympia
de Manet, observamos a afirmação do singular e o fim de uma tradição.
Autonomia da arte e fragmentação da imagem do corpo

A impossibilidade de representar a sucessão, a espacialização do tempo


narrativo, é uma das questões tratadas por Gotthold Lessing no livro
Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia a partir do grupo
escultórico da Antiguidade que representa Laocoonte e os filhos atacados
pela serpente. A definição dos limites dos meios de poesia e pintura (arte) em
sua teoria embute o germe de todo o processo de autonomia da arte que se
consolida no século seguinte. As artes plásticas são as artes do espaço e
representam os corpos com suas qualidades visíveis, só imitando ações por
intermédio dos corpos. A poesia, ao contrário, é arte do tempo e só por meio
da ação deve representar os corpos. O pensamento de Lessing significou uma
mudança nas concepções teóricas no século XVIII e se opôs a uma tradição
humanista que relacionava a pintura à poesia. O Laocoonte de Lessing faz
parte de uma reviravolta estética que se inicia no século XVIII, quando a
tradição clássica retórica e poética começa a dar lugar à construção de uma
abordagem estética do fenômeno artístico, organizada em função tanto de seu
meio quanto da recepção. A importância dada à representação dos corpos na
teoria de Lessing não é propriamente uma novidade no período. Lessing
situa-se nessa discussão com extrema capacidade de síntese através de uma
análise clara de como os signos se estruturam de diversas maneiras na pintura
e na poesia. Observa que os signos devem ter relação conveniente com o
significado. Portanto, signos ordenados lado a lado também só podem
expressar objetos que existam lado a lado, e esses objetos se chamam corpos,
sendo por isso objeto da pintura; enquanto signos que se seguem um ao outro
só podem expressar objetos em sequência, que são as ações, sendo, por isso,
objeto da poesia. A preocupação com a recepção e a adequação dos objetos
em relação a cada arte é um marco na busca de especificidade e autonomia da
arte e, por isso, apesar de Lessing operar ainda dentro de uma concepção
mimética da arte, compreendemos como a investigação do funcionamento
dos meios contribuiu para sua superação.
A autonomia do campo artístico insere-se no processo de fragmentação
do trabalho quando a imagem quantitativa de modernização se liga à ideia de
progresso. O homem pode servir-se da técnica, mas deixa de ter a capacidade
de entendê-la; é um homem mutilado, resultado de uma relação que lhe é
externa. Ele está fragmentado, pois suas impressões são fragmentadas. Se
antes a arte acreditava na capacidade de representar o mundo através de
princípios racionais, agora a possibilidade de comunicação entre base
material e campo simbólico será colocada em xeque: a racionalidade técnica
e sua consequente especialização constituem justamente a marca do real
moderno, à qual os movimentos artísticos estão sujeitos e que culminará na
ruptura do compromisso com a representatividade do mundo. A questão da
representação só ocupa as vanguardas sob o ponto de vista da autorreflexão
sobre o meio de arte, o que explica o permanente reenvio de representação a
representação.
A constante presença do corpo fragmentado é uma metáfora da perda da
totalidade que caracteriza a modernidade. O homem é apenas efêmero, um
fragmento do mundo contingente e errante. A essência humana, desprovida
de sua origem divina, apresenta-se como finitude e transitoriedade. As leis
gerais que diziam respeito à totalidade da vida, implicando os
comportamentos, dissolviam-se diante da dispersão do mundo moderno.
Diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto, a atenção voltava-se
para o detalhe, para o momentâneo. Diante de um mundo em pedaços, só
restava ao artista capturar os fragmentos. Essa nova ideia subverteu a
representação antropomórfica que dominava a tradição ocidental. O corpo
tomado como unidade material mais imediata do homem tornou-se o
primeiro alvo a ser atacado. Destruir a forma humana supunha operação
inversa àquela renascentista; retirar o homem do centro da cena significava
desumanizar a arte. O período da Primeira Guerra Mundial fornece ao mundo
imagens de destruição não apenas da paisagem, mas de todas as esperanças
do projeto humanista.
As vanguardas do início do século XX efetuam uma desintegração da
figura humana: questionando a representação tradicional, cubistas,
expressionistas, dadaístas e surrealistas dilaceram e deformam a anatomia
humana. Demoiselles d’Avignon, concebida por Picasso entre 1906 e 1907, é
emblemática da decomposição do corpo humano que marca a estética
modernista. A total desconsideração pela anatomia realista, a sexualidade
crua e a utilização de morfologia da arte primitiva refletem a distância do
ideal clássico do corpo humano. Posteriormente, há em Picasso uma mudança
da percepção do corpo como escultura externa para o corpo constantemente
remodelado e distorcido por diversas emoções e pelos sofrimentos do
indivíduo. O corpo que conhecemos quando sentimos dor – aspecto da
experiência interior do corpo –, é descoberto por Picasso como novo campo
de representação do ser humano; não se trata mais de um corpo visto, mas
sentido.
Esse novo campo de representação relaciona-se ao corpo constituído
psicologicamente e desenvolvido a partir das novas teorias de Paul Schilder
relativas à imagem do corpo. Na concepção do neurologista e psicanalista, a
solidez do corpo depende de contínua construção e reconstrução de sua
imagem, mas isso não significa uma mera sensação ou imaginação, pois
envolve figurações e representações mentais. A noção de imagem corporal
não é um modelo fisiológico, mas supõe uma estrutura libidinal dinâmica que
não para de mudar em função de nossas relações com o meio: é um processo
contínuo de diferenciação e integração de todas as experiências incorporadas
no curso de nossas vidas, sejam elas perceptivas, motoras, afetivas, sexuais.
Ao definir a articulação da realidade orgânica do corpo com sua realidade
erógena e fantasmática, tendo como base a teoria freudiana, Schilder toca em
algumas ideias que já estavam presentes nas discussões surrealistas. A
labilidade da imagem do corpo ultrapassa os limites da anatomia e pode
incorporar objetos que atuam como fetiches. O corpo nos objetos surrealistas
elaborava intercâmbios materiais e sensoriais. De Hans Bellmer, Georges
Bataille, André Breton a Aragon, o surrealismo empenhava-se na dissolução
orgânica na estética: o corpo erotizado era lançado à sua fantasmagoria
absoluta.
Em seu Manifesto de 1924, Breton, psiquiatra estudioso de Freud, clama
por procedimentos artísticos que liberassem as forças criativas. Contudo, sua
intenção sintética e totalizante nunca deixará de se chocar com a visão
essencialmente analítica de Freud, fundada em pares sempre inconciliáveis,
ao contrário dos vasos comunicantes de Breton. Para este, o desejo era
concebido como fenômeno espontâneo, mas conectado ao amor, e implicava
os imperativos que levaram os surrealistas a celebrar, nos primeiros anos, os
aspectos irracionais e imaginativos do espírito humano; o homem deveria
explorá-lo para desafiar as forças da repressão individual e do controle
sexual, daí a ênfase na coincidência, no acaso objetivo, na combinação
incongruente de objetos. A exploração do desejo pelos surrealistas veio da
psicanálise, mas não ficou a ela subserviente. Os artistas exploraram meios
para representar as multiplicidades do desejo, geralmente servindo-se do
objeto corpo a fim de evocar temas como gozo e obsessão erótica. O objeto
do desejo era prazer para ser saboreado como libertador. Desse modo, os
objetos de função simbólica assumiam o lugar de impulsos velados ou
sublimados, como recompensa, explicando como grande parte da atividade
surrealista pode ser vista como remoção de obstáculos para derrubar as
censuras da consciência e se chegar ao inconsciente, ao maravilhoso.
O número 6 da revista Minotaure, de 1935, traz as fotografias de uma
boneca que Hans Bellmer construiu em madeira e papel machê, e fotografou
em partes. As versões posteriores da boneca acentuam o sistema operatório
através do qual Bellmer desenvolve os princípios de uma anatomia
metamórfica visionária; isolar uma parte, desmembrar, mutilar, depois
desarticular e reatircular diferentemente, combinar ao infinito as montagens
corporais possíveis e improváveis ou mesmo monstruosas (multiplicar seios,
nádegas, braços), variar posturas (deitada, em pé, sentada), compor cenas. A
estratégia visava liberar o imaginário, pois se tratava de teatralizar seguindo
as regras de combinações eróticas; uma ambivalência entre sedução e terror,
“erótico-velada”, “explosivo-fixa”, “mágico-circunstancial”, a qual Breton
chamava de a “beleza convulsiva”. Em Bellmer cruzam-se duas abordagens
do surrealismo, a de Breton e a de Bataille, pois as bonecas não expressam
redenção pelo amor, tal como Breton via o erotismo; ao iluminarem a tensão
entre possibilidades integradoras e desintegradoras, elas revelam a natureza
sadomasoquista da sexualidade como o nó de todo o surrealismo. Bataille
criticava os surrealistas argumentando que não viam o mundo tal como era,
mas através do filtro de um idealismo romântico, pois não atentavam para as
realidades sombrias do Eros. Ao contrário de Breton, Bataille não concebia o
erotismo ligado ao amor, mas ao sacrifício. As bonecas de Bellmer, mutiladas
ou monstruosas, conjugam impulsos sádicos e amorosos, como uma rede de
emoções e ansiedades em circulação. Bellmer transpõe os limites anatômicos,
operação que invoca analogias em imagens virtuais, pois as bonecas são
representações transgressivas do corpo feminino e, ao mesmo tempo, liberam
fantasias sexuais; portanto, lidam não apenas com a imagem do corpo, mas
com o corpo da imagem.
Por apresentar o corpo atendendo a uma plástica do desejo e não à sua
forma natural, o surrealismo diferencia-se dos demais movimentos da
primeira metade do século XX, pois vai além de um processo de desfiguração
das representações. Como vimos, o cubismo “desrealiza” por completo a
aparência da forma humana, conferindo sentido ao próprio processo de
transfiguração. Ao romper com a representação tradicional, o corpo passa a
ser compreendido como linguagem pelas diversas vanguardas; o artista se
apropria do envelope carnal que se torna resíduo acessório, matéria para
tradução, forma de abstração, pois fala tanto da carne quanto do estado
mental de uma sociedade. O nu torna-se objeto de negociação plástica.
Quebra do especular e profanação da imagem do corpo

O papel da religião começa a ser minado no final do século XIX com o


avanço do processo de industrialização e a introdução de novas relações de
trabalho. O movimento cultural contemporâneo explorou a reabilitação de
nossa sexualidade para promover renovação dos estudos sobre o corpo e
transformação radical de nossa atitude em relação a ele. Por outro lado, a
apologia do corpo na cultura contemporânea relaciona-se também com
algumas mudanças ocorridas no capitalismo e, consequentemente, nos
costumes. A erosão do capitalismo competitivo modifica a estrutura da classe
trabalhadora, enfatizando, como estilo de vida, o consumo e o lazer. O
declínio dos valores puritanos de trabalho e o crescimento do hedonismo,
nascidos do lazer e do consumo pós-capitalista, geram, nessa sociedade, a
tendência a atribuir ao indivíduo a responsabilidade pela plasticidade de seu
corpo. A hipervalorização da construção corporal ganhou importância quando
antigos valores que rebaixavam o corpo sofreram o impacto da
espetacularização característica do mundo contemporâneo.
A crescente tecnologia no final do século XX torna-se outra questão
relevante para a reflexão sobre o papel do corpo. As mediações tecnológicas
implicam declínio da presença física e sua substituição por um corpo virtual –
já estamos cercados por dispositivos que virtualizam os sentidos e,
simultaneamente, reduzem a utilização do corpo. Os sistemas ditos de
realidade virtual nos permitem experimentar uma dinâmica integração de
diferentes modalidades perceptivas. Conseguimos estar em vários lugares ao
mesmo tempo graças às técnicas de comunicação e de telepresença, o que
implica mudança de nossa percepção sensorial, da temporalidade humana,
agora confrontada com o tempo tecnológico. As imagens médicas nos
permitem ver o interior do corpo sem cortar os tecidos; a partir de membranas
virtuais, pode-se reconstruir modelos digitais do corpo em três dimensões.
Essas questões, como outras ligadas a transplantes e próteses, serão alvos de
incessantes transformações nos conceitos de real e irreal, público e privado.
Os artistas têm explorado a capacidade de novas tecnologias para refazer os
próprios corpos, que são com frequência tecnológicos, híbridos, irônicos e
abertos à diferença. A proliferação de imagens de fragmentos corporais
parece refletir sobre sua desmaterialização. Por outro lado, muitos trabalhos
buscam alterar, desenvolver e incitar percepções, como forma de promover
novas modalidades de experiências sensoriais.
No cenário artístico, a relação entre corpo e arte adquire novas referências
a partir do pós-guerra: a tela foi gotejada e salpicada por Jackson Pollock,
rasgada por Lucio Fontana e furada por Shozo Shimamoto. No Manifesto
branco, que Fontana escreve em 1946, a arte é definida como gesto e não
meramente como objeto; ao rasgar a tela, ele não representa o espaço, mas o
cria. Da mesma maneira, no Japão, entre 1949 e 1952, Shozo Shimamoto faz
buracos em suas telas. Pollock, Fontana e Shimamoto subvertem o espaço
pictórico tradicional e introduzem acaso e ação como cerne da atividade
artística. A arte muda a partir de então, pois a ação pictórica tornou-se tão
importante quanto o que estava sendo criado. A atenção deslocou-se
gradualmente da pintura como um objeto e focou-se no próprio ato de pintar.
A action painting desenvolvida por Jackson Pollock cria uma referência que
influenciará toda a arte nas décadas seguintes. A circulação das fotografias de
Pollock, realizadas por Hans Namuth, causa grande impacto e repercussões
em várias partes do mundo. A presença do artista no trabalho através do ato
da pintura fez com que o corpo se tornasse ferramenta para aplicar tinta,
numa tentativa de estender o espaço pictórico tradicional, como nos “pincéis
vivos” de Yves Klein, nos quais lambuzou os corpos de mulheres nuas com
tinta e os imprimiu nas telas. De maneira semelhante, no Japão, Kazuo
Shiraga, o mais exemplar dos artistas Gutai, realizou em 1955 o trabalho
Lama provocante, que se constituiu em ação realizada numa piscina de lama,
em que produziu uma pintura a partir das impressões de seu corpo.
Artistas como Alan Kaprow, Georges Mathieu, Atsuko Tanaka, Otto
Mühl, Günter Brus e Robert Rauschenberg estenderam a arte gestual de
Pollock em happenings e ações nas décadas seguintes. A dificuldade comum
para diferenciar happening, Fluxus, body art e performance advém do fato de
que um mesmo ato pode envolver várias denominações artísticas. Esses
termos foram criados em momentos precisos e trazem consigo contextos e
referências culturais diferentes.
Os happenings caracterizavam-se pela organização simultânea de
acontecimentos, como em uma colagem, e pelo estabelecimento de relações
entre os artistas e o público através da solicitação de diversos sentidos, como
no trabalho de Alan Kaprow que deu origem a denominação. Em 18
Happenings em 6 partes, de 1959, os espectadores participaram de várias
ações cotidianas, seguindo as instruções do artista, em um ambiente
subdividido por plástico transparente. A imprensa reuniu outras
manifestações que envolviam ação e público sob o mesmo nome que se
popularizou ao longo da década de 1960. As ações Fluxus, mais
internacionais, tinham caráter mais político que os happenings, mais ligados
ao contexto americano. Se o happening apresentava maior complexidade, os
artistas do Fluxus recorriam a ações muito simples, como a apresentação de
George Brecht ligando e desligando a luz, pois pretendiam ter grau zero de
emoção. Sem nenhuma participação do espectador, as ações eram geralmente
desenvolvidas perante um público e consistiam de evento único, o que
justifica a recorrência de trabalhos com os atos de comer e de vestir, pois
podiam ser executadas por qualquer pessoa.
A afirmação de uma ideologia libertária nas décadas de 1960 e 1970
contribuiu para a construção da imagem de um corpo puro, centrado na
experiência física e cotidiana. Outra via para contrariar a hegemonia da
cultura oficial era a do corpo expressivo, algumas vezes agressivamente
ativista, usado para solicitar a raiva, a compaixão e outras emoções que,
presumidamente iriam romper a apatia e passividade da sociedade. Embora o
termo body art surja apenas em 1969, muitos artistas já trabalhavam nesse
sentido desde o início da década, como os do Acionismo Vienense e Carolee
Shneemann. A confusão em torno da body art reside no fato de que esse
rótulo ganha popularidade quando a performance se desloca da exploração
das capacidades do corpo para a idéia do corpo do artista como suporte de
arte. No anos 1970, a performance afirma-se como meio que, apesar de
utilizar o corpo como matéria-prima, se propõe a processo de linguagem mais
intelectualizado.
Se, de início, os artistas vienenses trabalhavam o corpo como extensão do
espaço pictórico, paulatinamente passam a utilizar substâncias reais em suas
ações; o sangue vertido sobre corpos humanos e os cadáveres de animais
eram motivos revisitados. Depois, começaram a fazer ações que violavam
tabus sociais; as fronteiras sobre sexo, alimento, espaço pessoal e fluídos do
corpo eram violadas em ações ritualísticas num esforço quase catártico. A
ênfase em funções orgânicas como vomitar, urinar, defecar, ejacular, sangrar
visava a restauração da situação primordial do corpo por meio de atos diretos
e elementares. O corpo era o espaço da dramaturgia do excesso que também
tinha referências religiosas, como no trabalho de Herman Nitsch A concepção
de Maria, de 1969, no qual utiliza símbolos cristãos: em ação pública, joga
sangue e vísceras de cordeiro sobre o corpo nu de uma mulher atada a uma
cruz, representando a Virgem Maria. Otto Mühl também trabalha com ações
obscenas que têm como referência um universo sadomasoquista que precipita
a sexualidade nos limites da ridicularização e da burla grotesca da
perversidade. Carolee Schneemann desenvolve em Meat joy um rito erótico
com sentido comunitário, apontando a dimensão coletiva da existência
sexual: em celebração da carne, usa o sangue de carcaças de animais para
lambuzar os corpos dos participantes.
Os happenings, as ações Fluxus, a body art e, mesmo posteriormente, as
performances criaram uma tensão entre corpo literal e ideal em claro
questionamento do nu eterno e universal: a essa concepção opõem o aqui e
agora do corpo. Na ação Degradação de Vênus, realizada em 1963, Otto
Mühl visava destruir a imagem do ser humano, jogando lama sobre uma
jovem nua e a envolvendo em tecido mergulhado em dejetos. Em 1964
Robert Morris apresenta Site, quadro vivo do Olympia, de Manet, em que
Carolee Schneemann é progressivamente desnudada. O mito do corpo
autêntico, a volta à condição das sociedades primitivas e a negação dos
parâmetros de beleza do corpo e da arte ocidental são ideias dominantes na
década de 1960. A quebra do especular para afirmação de um corpo primário
era vista como maneira de subverter a repressão dos suportes tradicionais e o
distanciamento imposto pela perspectiva. O corpo verdadeiro, não idealizado,
fora esquecido na arte, daí a primazia que os artistas davam à experiência
corporal. Alguns autores defendem que a aventura de quebrar o espelho e
passar para o outro lado seria o grande estereótipo do corpo, pois ele atuaria,
ao mesmo tempo, como sujeito e objeto. Desse modo, exibir seria o contrário
de representar: a raiva do espelho se traduz pela reconstituição de uma
superespecularidade, o que retira a tensão entre representação e realidade.
Questionam o corpo primário e o imediatismo das ações e performances por
acabarem com qualquer relação semântica necessária à representação. O
debate do corpo como objeto de arte centra-se na impossibilidade da
representação, pois se tiraria o “re” da representação, restando a
apresentação. A confusão entre apresentação e representação da performance
se deve ao fato de ela existir não porque o objeto é um signo, mas porque ela
se torna um signo durante o seu desenvolvimento. O significado da
performance reside na relação estabelecida entre emissor e receptor, pois é
um ato de comunicação. Dessa maneira, a performance tenta resolver a
contradição entre o homem e sua imagem especular, pondo a descoberto a
distância real entre as convenções sociais e os programas instituídos; o corpo
é tomado aí como elemento do processo artístico.
Ações de Barrio com as trouxas ensanguentadas

A distância do caráter de apresentação e do pressuposto de público, bem


como uma concepção particular de corpo, diferencia as ações de Barrio das
práticas internacionais como os happenings, as ações Fluxus, a body art e a
performance. Nas situações propostas por Barrio, os espectadores ou
transeuntes não veem jamais a figura do artista trabalhando, a não ser por
acaso, pois não supõem encontro marcado: as pessoas não podiam decidir se
as iriam ver ou não. Nos seus trabalhos, a utilização de materiais orgânicos e
de dejetos, como sangue, saliva, cabelo, urina, excremento, meleca, ossos e
papel higiênico, constitui fator importante não pelo caráter estritamente físico
das substâncias, mas porque desencadeia situações transgressivas.
Situação……….ORHHHHHH…………………… ou……
5000..TE…………..em NY……………CITY…1969 e Situação T/T são os
títulos das ações que envolvem as trouxas ensanguentadas realizadas por
Barrio no Rio de Janeiro em 1969, no Museu de Arte Moderna, e em Belo
Horizonte em 1970, no Parque Municipal. No primeiro trabalho, apresentado
no Salão da Bússola, o artista expôs trouxas apunhaladas e ensanguentadas e
lixo acumulado junto a dois painéis. As obras sensoriais (três sacos com
serragem, cimento e bombril) foram destruídas pelo artista na inauguração do
evento; transformadas em detritos, foram colocadas num canto do salão,
passando a receber novos detritos dos visitantes. Apesar dessa atitude, o
trabalho ainda apresentava um resquício de preocupação estética, pois as
trouxas foram cuidadosamente furadas e pintadas de vermelho no intuito de
atingir o ambiente sagrado do museu. A intervenção Situação T/T, realizada
em Belo Horizonte durante o evento Do Corpo à Terra, contou com três
fases; uma primeira, na qual o artista preparou 15 trouxas contendo sangue,
carne e ossos comprados num açougue, barro e espuma de cola; na segunda,
distribuiu-as por diversos pontos da cidade, concentrando-se, porém, nas
imediações de um esgoto no ribeirão Arrudas, que atravessa o Parque
Municipal. Conseguiu reunir cinco mil pessoas, o que acabou provocando a
intervenção do corpo de bombeiros e de várias radiopatrulhas. As trouxas
ensanguentadas causaram impacto nas pessoas, segundo os relatos da época,
pela relação com o chamado esquadrão da morte e os desaparecidos da
ditadura militar. Na terceira fase, o artista recriou uma situação antes
experimentada na baía de Guanabara; também no ribeirão Arrudas, estendeu
60 rolos de papel higiênico, atraindo novamente a repressão. Objetos
deflagradores de situações, as trouxas e os rolos de papel higiênico eram o
cerne das intervenções que desencadeava reações populares, interferindo no
fluxo cotidiano. Deixados em atuações realizadas em ruas, praças e terrenos
baldios, esses elementos produziam acontecimentos, pois suscitavam
interrogações nos transeuntes, perplexos diante de algo que não
compreendiam. O lixo, as sobras, a perecibilidade do orgânico, o choque
visual no limite da repugnância impunham um processo transgressivo que
perturbava todas as normas do mundo.
Método terrorista, radicalidade, transgressão absoluta são normalmente os
termos utilizados para qualificar ou aferir o grau de confrontação das obras de
Barrio com o mundo do trabalho, o mundo cotidiano da conveniência e das
normas sociais. As situações com as trouxas ensanguentadas têm a política
brasileira como pano de fundo, em alusão a corpos esquartejados. Apesar da
alusão a restos de corpos, o trabalho não se resume a uma simbologia da
morte; parte, sim, da reação das pessoas diante da morte, diante do
inesperado, mas não se restringe ou se deixa enclausurar em mera
exemplificação. Não é a analogia entre trouxas e corpos que dá sentido ao
trabalho, mas o atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre
erotismo e morte; o que interessa é a detonação de sentido advinda da
situação. Barrio lida com a transgressão do interdito da morte, uma vez que
ela é redimensionada pela pulsão de vida. É o transtorno desse
atravessamento que perturba a consciência ao se experimentar separada do
mundo previsível e ordenado.
Geralmente, temos a atitude de desviar o olhar de um cadáver ou cobri-lo
com um lençol, pois a morte é algo difícil de visualizar diretamente. A
impossibilidade de um acesso direto à morte e o desenvolvimento de um
desvio através da arte foram estudados por alguns autores a partir de
diferentes pontos de vista. A visualização de um corpo decomposto seria a
primeira experiência metafísica: é o espelho de se ver na morte. A morte foi o
primeiro mistério, que leva o pensamento do visível ao invisível, do
passageiro ao eterno, do humano ao divino; foi através da vista de um morto
que o faber tornou-se sapiens. O corpo como aquilo que delineia nossa
finitude radical nos determina uma forma que reconhecemos no espelho, ou
na sombra, que nos faz presente em nossa ausência imediata. A sombra
agarra sua presa para recompor a ausência pela imagem: negocia com o
invisível através da visualização, representando-o. A imagem tinha uma
função mediadora entre os vivos e os mortos, não é um fim em si, mas meio.
Opomo-nos à decomposição da morte pela recomposição da imagem. Nesse
sentido, a arte nasce funerária e as sepulturas foram nossos primeiros museus.
Georges Bataille desenvolve sua teoria relacionando o nascimento da arte
à consciência da morte, mas acentua o aspecto da transgressão ao interdito. A
atenção dada aos cadáveres mostra que as condutas humanas em relação à
morte são primitivas e implicam o sentimento de medo ou respeito que torna
os restos humanos objetos diferentes de todos os outros: a interdição de sua
aproximação os diferencia dos objetos comuns. A atitude antiga dos homens
em relação à morte significa que começava a classificação fundamental dos
objetos, uns tidos como sagrados e interditados, outros como profanos,
manipuláveis e acessíveis sem limitação. O interdito mantém o mundo
organizado pelo trabalho ao abrigo dos desarranjos que introduzem a morte e
a sexualidade, uma animalidade durável em nós que introduz a vida e a
natureza sem cessar. Quando o trabalho foi suplantado pelo jogo, sob forma
de atividade artística, o interdito foi tocado. A festa marca o tempo do
encerramento das regras, do peso e da opressão normalmente suportados;
embora a angústia seja profunda na transgressão autêntica, na festa, a
excitação a ultrapassa e a suspende. É o estado de transgressão que comanda
o desejo e as formas da arte têm a mesma origem que a festa de todos os
tempos. A arte, o jogo e a transgressão estão ligados no mesmo movimento
de negação dos princípios de regularidade do trabalho.
Em O erotismo, Bataille amplia o confronto constituinte entre interdição e
transgressão, relacionando a animalidade das cavernas pintadas à esfera do
sacrifício e ao erotismo. O conhecimento do erotismo, ou da religião, exige a
experiência pessoal, igual e contraditória, da interdição e da transgressão. A
transgressão difere do retorno à natureza – ela suspende a interdição sem a
suprimir. Aqui se esconde a energia do erotismo e das religiões.
Experimentamos, no momento da transgressão, angústia sem a qual a
interdição não existiria: é a experiência do pecado. A transgressão bem-
sucedida mantém a interdição para gozar através dela. A experiência interior
do erotismo solicita, daquele que a prova, sensibilidade à angústia fundadora
da interdição tão grande quanto o desejo que leva o indivíduo a enfrentá-la. É
a sensibilidade religiosa que liga, sempre estreitamente, o desejo e o pavor, o
prazer intenso e a angústia. Os homens estão submetidos a esses dois
movimentos: de terror, que rejeita, e de atração, que comanda o respeito
fascinado. A interdição rejeita, mas a fascinação introduz a transgressão.
O espírito de transgressão é o do deus animal que morre no sacrifício,
desse deus cuja morte é animada pela violência e que não é limitado pelas
interdições impostas à humanidade. A ação violenta, o sacrifício, priva a
vítima de seu caráter limitado e lhe confere o ilimitado, o infinito que
pertence à esfera sagrada e, por isso, concilia vida e morte ao dar à vida a
vertigem e a abertura da morte. O mesmo acontece com a convulsão erótica
ao liberar os movimentos animais dos órgãos intumescidos de sangue: o
movimento da carne excede um limite na ausência da vontade. Na base do
erotismo, temos a experiência de violência no momento de explosão; uma
liberdade ameaçadora. A partir do momento em que os homens se conciliam
em determinado sentido com a animalidade, entramos no mundo da
transgressão, que forma, na manutenção da interdição, a síntese da
animalidade e do homem. O erotismo é a infração à regra das interdições,
mas, ainda que comece onde acaba o animal, a animalidade não deixa de ser
seu fundamento. A humanidade se desvia desse fundamento com horror, mas,
ao mesmo tempo, o mantém.
Nessa perspectiva, as ações de Barrio com as trouxas ensanguentadas
exercem reaproximação com o próprio fluxo vital, que relaciona vida e
morte. É a maneira como a situação nos atinge e implica nossa experiência
que confere sentido ao trabalho. O corpo não é tema em Barrio: as trouxas, o
sangue e os fluxos corporais não são o que a anatomia vê neles; o visceral em
Barrio não é o fato de lidar com vísceras, mas a potência e a energia
desencadeadas na situação. Suas ações partem de transformações físicas
precisas, mas conseguem alcance poético que ultrapassa polaridades
tradicionais; as ações com as trouxas ensanguentadas equilibram interdição,
transgressão e gozo; nessa experiência, desejo e morte, Eros e Tânatos são
indissociáveis.
Compreendemos como não só a arte, mas todo pensamento ocidental é
construído através de dualidades como matéria e espírito, aparência e
essência, corpo e alma, corpo e mente, sensível e inteligível, criadas pelo
homem em momentos históricos diferentes para tentar compreender esse
enigma que nos constitui. Embora de uma maneira singular, a análise da Vê-
nus, de Tunga e das ações Situação……….ORHHHHHH……………………
ou……5000..TE…………..em NY……………CITY…1969 e Situação T/T de
Barrio com as trouxas ensanguentadas nos mostra que a questão do corpo na
arte contemporânea lida com essa mesma ambivalência: da aparição material
de uma imaterialidade.

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Referências e fontes
[1] Tunga. A análise tem como referência os textos de Paulo Sergio Duarte
publicados em: Tunga. (João Pessoa, Funarte/UFPB, 1979) e A trilha da
trama e outros textos sobre arte (Rio de Janeiro, Funarte, 2004, p.90) e o
texto de Tunga “Prática de claridade sobre o nu”. Malasartes (Rio de Janeiro,
n.3, 1976).
[2] A citação de Galeno de Pérgamo foi retirada do livro de Richard Sennet
Carne e pedra – o corpo e a cidade na civilização ocidental (Rio de Janeiro,
Record, 2003, p.71).
[3] A relação entre o nu e o gesto que desnuda foi tratada por Jean-Luc
Nancy e Frederico Ferrari em Nus Sommes La peau des images (Bruxelas,
Yves Gevaert, 2002).
[4] Corpo e sociedades primitivas. Análise desenvolvida por José Gil
(Metamorfoses do corpo. Lisboa, Relógio D’Água, 1997).
[5]. Idealização do corpo na Grécia. O estudo baseia-se em Ieda Tucherman
em Breve história do corpo e seus monstros (Lisboa, Passagens/Veja, 1999,
p.33-7) e nos estudos sobre o nu de Kenneth Clark (Paris, Hachette
Littératures, 1998).
[6]. Corpo-imagem na Europa. Jean-Marie Schaeffer examina essa
concepção no artigo “O corpo é imagem” publicado pela revista Arte &
Ensaios, n.16 (Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2008, p.126).
[7]. Corpo na Idade Média. A análise de Tertuliano foi realizada por
Georges Didi-Huberman no livro L’Image ouverte (Paris, Gallimard, 2007,
p.97-152).
[8]. As querelas dos iconoclastas são relacionadas diretamente à
possibilidade de representação na arte por Philippe-Alain Michaud (Le
peuple des images. Essai d’anthropologie figurative. Paris, Desclée de
Brower, 2002) e por Maria José Mondzain (L’Image peut-elle tuer. Paris,
Bayard, 2002). Já Didi-Huberman, Hans Belting Pour une anthropologie des
images (Paris, Gallimard, 2004) e Schaeffer acentuam o caráter de culto na
imagem medieval.
[9] Concepções de representação baseia-se em José Giannotti “A nova
teoria da representação” (Rio de Janeiro, Arte e filosofia, 1988).
[10] Corpo no Renascimento tem como referência Pierre Francastel (La
figure et le lieu. L’ordre visuel du Quattrocento. Paris, Gallimard, 1967) e “O
Corpo no Renascimento” de Carlos Antônio Leite Brandão, in Adauto
Novaes (org.) O homem-máquina, a ciência manipula o corpo (São Paulo,
Companhia das Letras, 2003) e o confronto entre Georges Didi-Huberman
em Ouvrir Vénus, Nudité, rêve, cruauté (Paris, Gallimard, 1999) e Kenneth
Clark.
[11] Corpo e modernidade. A análise baseia-se no livro Anthropologie du
corps et modernité (Paris, Presses Universitaire de France, 2001, p.125) de
David Le Breton e em Carne e pedra – o corpo e a cidade na civilização
ocidental de Richard Sennet.
[12] Representação no século XVII. Baseou-se em Juan Garcia-Porrero
(revista Esthétique 6. Paris, Sorbonne, 2003, p.91.), em Louis Marin, De la
représentation (Paris, Gallimard/Le Seuil, 1994, p.35) e no catálogo
organizado por Alain Tapié Les Vanités dans la peinture au XVIIe siècle
(Caen, Albin Michel/Musée des Beaux-Arts).
[13] Fragmentação do corpo. Investigação desenvolvida por Eliane Robert
Moraes (O corpo impossível. São Paulo, Iluminuras, 2002), foi referência
fundamental, sobretudo na análise da questão no surrealismo.
[14] Imagem do corpo e teoria freudiana. Estudo realizado em 1935 por
Paul Schilder em A imagem do corpo, as energias construtivas da psique
(São Paulo, Martins Fontes, 1999). Suas posições, no entanto, implicam
ambiguidade uma vez que tenta juntar neurologia e psicanálise e do ponto de
vista freudiano há uma anatomia fantasmática irredutível àquela definida
pelos biólogos.
[15] Novo papel do corpo no mundo contemporâneo. A análise tem como
referência o trabalho de Nízia Vilaça e Fred Góes (Em nome do corpo. Rio de
Janeiro, Rocco, 1998, p.39-60).
[16] Corpo na arte contemporânea. Duas publicações foram fundamentais
para nossa análise; o catálogo organizado por Paul Schimmel, Out of Actions,
between performance and the object 1949-1979 (Los Angeles, The Museum
of Contemporary Art, 1998) e o livro The Artist’s Body, organizado por
Tracy Warr. Sally Bannes trata este tema em Greenwich Village 1963 (Rio de
Janeiro, Rocco, 1999).
[17] Performance e representação. O debate sobre a validade das
performances como representação opõe Henry-Pierre Jeudy que no livro O
corpo como objeto de arte (São Paulo, Estação Liberdade, 2002) ressalta o
estereótipo da performance, enquanto o semiólogo Jorge Glusberg em a Arte
da performance (São Paulo, Perspectiva, 1987, p.43) defende seu valor
artístico.
[18] Para mais informações sobre o artista Barrio, a principal referência é o
livro organizado por Ligia Canongia (Rio de Janeiro, Modo, 2002).
[19] Relação arte/morte e interdito/transgressão. Análise desenvolvida por
Régis Debray em Vie et mort de l’image. Une histoire du regard en Occident
(Paris, Gallimard, 1992, p.41-6). As teorias de Bataille foram traduzidas em
O erotismo (São Paulo, Arx, 2004).
Sugestões de leitura
COMO O LIVRO envolve vários aspectos e abordagens do corpo em perspectiva
temporal muito ampla, as indicações bibliográficas mais específicas foram
detalhadas por período ou assunto na seção Referências e fontes. Vou me
deter agora nas publicações de caráter mais geral agrupando-as por possíveis
áreas de interesse:
Corpo/História. Começo as sugestões pelo livro de Richard Sennet
Carne e pedra – o corpo e a cidade na civilização ocidental (Rio de Janeiro,
Record, 2003), publicação em que o leitor encontrará informações a partir de
uma perspectiva histórica. Sennet relaciona a experiência do corpo às
cidades, partindo de Atenas, na Grécia Antiga e chegando até metrópoles
contemporâneas, como Nova York.
Breve história do corpo e seus monstros, de Ieda Tucherman (Lisboa,
Passagens/Veja, 1999), apresenta inicialmente as imagens do corpo ao longo
do tempo e depois se concentra na análise das figuras da monstruosidade.
Destaco a pesquisa de Eliane Robert Moraes, O corpo impossível (São
Paulo, Iluminuras, 2002), que apesar de limitado do final do século XIX à
Segunda Guerra Mundial, investiga com extrema clareza o período de
subversão da tradição antropomórfica marcado pela fragmentação da figura
humana. É uma publicação indispensável para se entender o papel que o
corpo assume no debate do surrealismo mediante análise das teorias de
Bataille e Breton.
Corpo e sociedade contemporânea. O livro Em nome do corpo (Rio de
Janeiro, Rocco, 1998) de Nizia Vilaça e Fred Góes oferece amplo panorama
das diversas vias do imaginário do corpo contemporâneo, integrando
abordagens da antropologia, arte, filosofia e sociologia. É referência
fundamental para se ter noção da amplitude de discursos envolvidos na
questão do corpo.
Corpo e arte. Kenneth Clark (Le nu. Paris, Hachette Littératures, 1998) é
passagem obrigatória para o estudo da questão do nu. Historiador
influenciado por Panofsky, Clark investiga detalhadamente todas as facetas
das Vênus e Apolos em diferentes momentos da história. Mesmo que
signifique uma abordagem tradicional, nenhum estudo sobre corpo e arte
pode prescindir de sua leitura. O contraponto a essa abordagem é encontrado
em Georges Didi-Huberman, nas obras Ouvrir Vénus. Nudité, revê, cruauté
(Paris, Gallimard, 1999) e L’Image ouverte (Paris, Gallimard, 2007). No
Brasil o autor publicou O que vemos e o que nos olha (São Paulo, Ed. 34,
1998) e, embora centrado na arte minimalista, é uma boa opção para conhecer
as ideias do principal pensador da relação corpo e arte.
Em O corpo como objeto de arte (São Paulo, Estação Liberdade, 2002),
Henry-Pierre Jeudy analisa a questão do corpo nas performances tendo como
premissa a representação clássica que o leva a criticá-las como estereótipos
da arte contemporânea.
A revista Arte & Ensaios, n.16 (revista do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais EBA/Universidade Federal do Rio de Janeiro, julho 2008) é
toda dedicada à questão do corpo na arte. Destaco as traduções dos artigos de
Jean-Marie Schaeffer “O corpo é imagem” e de Rosalind Krauss “Vídeo: a
estética do narcisismo”.
Corpo e arte contemporânea. Metacorpos (São Paulo, Paço das Artes,
2003) e Corpo (São Paulo, Itaú Cultural, 2005) são catálogos que
acompanham exposições focalizando o corpo. Ambos contam com textos de
críticos de arte e autores de diferentes áreas como a psicanálise, a
antropologia e a filosofia.
Out of Actions, between performance and the object 1949-1979 (Los
Angeles, The Museum of Contemporary Art, 1998) é um catálogo referência
que inclui amplo histórico das manifestações artísticas envolvendo o corpo
no pós-guerra. Apesar de contar com textos de diversos autores, a
exposição/publicação organizada por Paul Schimmel situa essas
manifestações a partir da ótica e do contexto americano assimilando a
denominação “performance”. Já o catálogo da exposição francesa L’Art au
corps, le corps exposé de Man Ray à nos jours (Marseille, Musées de
Marseille, 1996), constitui-se uma investigação mais profunda, pois analisa
as diferentes abordagens que o corpo assume na arte do século XX,
explorando a especificidade e denominação de cada contexto.
O livro The Artist’s Body (Londres, Phaidon Press, 2000), organizado por
Tracy Warr, conta com um ensaio de Amelia Jones, historiadora da arte
feminista, e apresenta uma seleção de imagens e verbetes de trabalhos
envolvendo o corpo do artista. Constitui um panorama bem amplo das
diversas vias nas quais o corpo foi tratado pela arte contemporânea.
Copyright © 2009, Viviane Matesco

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como a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, os movimentos
Occupy nos Estados Unidos - e oferece uma análise pioneira de suas
características sociais inovadoras: conexão e comunicação
horizontais; ocupação do espaço público urbano; criação de tempo e
de espaço próprios; ausência de lideranças e de programas; aspecto
ao mesmo tempo local e global. Tudo isso, observa o autor,
propiciado pelo modelo da internet.
<p>O sociólogo espanhol faz um relato dos eventos-chave dos
movimentos e divulga informações importantes sobre o contexto
específico das lutas. Mapeando as atividades e práticas das diversas
rebeliões, Castells sugere duas questões fundamentais: o que
detonou as mobilizações de massa de 2011 pelo mundo? Como
compreender essas novas formas de ação e participação política?
Para ele, a resposta é simples: os movimentos começaram na
internet e se disseminaram por contágio, via comunicação sem fio,
mídias móveis e troca viral de imagens e conteúdos. Segundo ele, a
internet criou um "espaço de autonomia" para a troca de informações
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