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Crítica | Bom Dia, Verônica (2020)

03/10/2020

por Arthur Albano

“Bom Dia, Verônica” não me é um projeto estranho. Eu já li a maioria dos livros do


escritor Raphael Montes, assim como já li tudo o que a Ilana Casoy publicou. Então, um
livro feito a quatro mãos pelos dois tinha tudo para ser ótimo, não é? Errado.
Ao menos no papel essa foi uma história bem decepcionante e arrisco dizer até mal
escrita, mas ao dar uma segunda chance ao projeto, descobri que a série de 8 episódios
produzida pela Netflix até que é muito boa. Por isso, me animei a fazer essa crítica com
spoilers.
Sinopse: O thriller acompanha Verônica Torres (Tainá Müller), que trabalha como
escrivã na delegacia de Homicídios de São Paulo, onde vive uma rotina burocrática e
pouco dinâmica dentro do sistema. Casada e mãe de dois filhos, ela se vê diante do
abismo quando presencia um suicídio que acaba por despertar nela dolorosas feridas do
passado. Na mesma semana, recebe a ligação anônima de uma mulher desesperada
clamando por sua vida. Determinada, Verônica decide usar toda sua habilidade
investigativa para mergulhar nos casos das duas vítimas: uma jovem enganada por um
golpista na internet, e Janete (Camila Morgado), a esposa subjugada de Brandão
(Eduardo Moscovis), policial de alta patente e um homem dominador. Ao se aprofundar
nessas investigações, Verônica irá enfrentar um mundo perverso que coloca em risco
sua família e sua própria existência.
Antes de prosseguir com a crítica de fato, eu gostaria de falar um pouco sobre os
bastidores do projeto. Bom Dia, Verônica é uma adaptação do livro de 2016 escrito por
Raphael Montes e Ilana Casoy. O primeiro é o dono de obras como “Suicidas” e “Uma
Mulher no Escuro”, enquanto a segunda é mais conhecida por seus livros de
criminologia como “Casos de Família” e “Serial Killers: Louco ou Cruel?”.
Respectivamente, eles são autores bem respeitados dentro do seus nichos, mas a obra
que eles escreveram em conjunto não saiu tão boa quanto seus livros isolados.
Por essa razão, eu estava bem apreensivo com o que seria dessa série. O roteiro foi
capitaneado pelos autores originais, o que nem sempre é um bom sinal vide os filmes do
Stephen King. Mas, enquanto eu assistia notei que Montes e Casoy conseguiram fazer
um excelente trabalho em transpor um livro bem instável de maneira sólida para o
formato televisivo. Afinal, eles tiveram quase três anos de diferença entre o lançamento
original do livro (ainda sob o pseudônimo de Andrea Killmore) e o início da escrita dos
roteiros da série, o que revela um amadurecimento imenso do tratamento dado não só a
trama geral como aos arcos dos personagens.
Eu não vou mentir que li o livro inteiro. Larguei por volta da metade porque achei ruim
demais, o que é algo que eu não consegui fazer com a série. A cada final de episódio eu
já estava correndo pra ver o próximo enquanto comentava com minha parceira de crime
e melhor amiga, Mariah Siqueira. Juntos, nós dois vimos os 8 episódios de 40 minutos
em apenas uma tarde, o que revela que a estratégia de criar uma série estruturada para
ser maratonada teve seu objetivo alcançado.
Diferente das outras séries da Netflix, em “Bom Dia, Verônica” não temos uma
higienização excessiva da linguagem, ambientação e trama. Tudo aqui soa muito
nacional, diferente das genéricas primeiras temporadas de “3%” e “O Escolhido”. Tanto
é que se não houvesse o logo do streaming estampado em tudo o que é lugar, esse é um
show que poderia facilmente figurar no catálogo do Globoplay, muito talvez pela
presença dos três personagens principais que são interpretados por atores já conhecidos
da emissora.
Para mim esse foi um dos maiores acertos do show porque ele conseguiu criar uma
identidade visual que é facilmente reconhecida pelo espectador. Não parece ser uma
série feita aqui para o público estrangeiro, parece ser feita para nós brasileiros, o que é
MUITO bom. Isso vai desde a composição estética da cidade de São Paulo até a trilha
sonora que conta com a presença de Elza Soares e Belchior. Tudo sem exageros e sem
forçar uma regionalização excessiva, na verdade de todos os shows nacionais do
streaming, esse aqui é o mais natural desde as atuação até os diálogos.
E aqui já entro na parte da atuação da Tainá Müller que conseguiu criar uma Verônica
muito mais interessante, competente e empática que a que temos no livro. Sério gente,
não leiam o livro! A personagem Verônica foi a principal razão pela qual eu abandonei
a leitura, porque ela é insuportável, mas graças ao feedback dos leitores, Montes e
Casoy amenizaram na personalidade dela e temos uma protagonista que é minimamente
decente e identificável, o que é muito graças a própria Tainá que consegue convencer
desde o papel de mocinha traumatizada até uma quase assassina justiceira. Ela é um dos
pontos mais fortes do show inteiro e conseguiu provar seu talento, que na minha opinião
não era tão explorado na rede Globo.

Ainda no mérito de atuações, Eduardo Moscovis e Camila Morgado vivem um casal


tóxico em que ele abusa da própria esposa forçando-a a atrair mulheres para assassiná-
las. Moscovis que sempre foi um galã de novela, consegue mostrar um outro lado do
seu talento ao fazer um vilão cheio de camadas. Brandão nem chega a ser tão explorado
pelo roteiro, mas a atuação dele nunca fica em uma nota só, deixando-o interessante o
suficiente para nos engajar em sua história. Já Camila Morgado é um talento por si só.
Ela tem um dos papéis mais difíceis, atuando muitas vezes apenas com seu olhar e suas
expressões faciais e sem falhar em momento algum.
Ao longo dos episódios vamos acompanhando sua evolução de mulher que reconhece os
abusos do marido, os nega em seguida e depois tem uma crise de consciência que o faz
confrontá-lo, e todos esses estágios são muito bem retratados pela atuação de Camila.
Ela realmente merecia uma indicação pelo papel que desempenhou aqui. De resto, todos
os coadjuvantes estão muito bem retratados, mas quem rouba as cenas é a Delegada
Anita interpretada por Elisa Volpatto e o legista Prata interpretado por Adriano
Garib (que alguns de vocês podem reconhecer como Russo de Salve Jorge).
Agora narrativamente falando, a série é muito competente com a sua trama com alguns
deslizes aqui e ali. O primeiro deles é que existe uma trama envolvendo um golpista e
seu terrível modus operandi de marcar as mulheres na boca usando um ácido, logo de
cara a gente acha que esse homem é o vilão da série, Brandão, mas conforme os
episódios passam é revelado que o golpista na verdade é outro cara e o núcleo de
Brandão é uma história a parte. Enquanto eu assistia, isso não me incomodou muito,
mas quando eu terminei a maratona identifiquei esse como um problema ao discutir
com minha amiga Mariah.
Nós dois achamos que a série podia ter seguido logo pra trama principal envolvendo
Brandão, já que o caso do golpista é resolvido por volta do episódio 3-4 e depois é
simplesmente esquecido com algumas poucas menções nos episódios restantes.

Aliás, o próprio núcleo do Brandão é algo que podia ser mais explorado. Devido a
morte de Janete no final do episódio 7 e a morte do próprio Brandão no episódio
seguinte, fica claro que nenhum desses núcleos vão ser retomados na próxima
temporada, então tudo precisava ser explicado nesses oito episódios. Mas, não é o que
acontece, já que mal sabemos qual o modus operandi de Brandão ou o motivo pelo qual
ele fazia aquela espécie de ritual ao lado de sua avó. Em vez de dedicar quase metade da
sua temporada a uma subtrama que nem precisava ser tão esticada assim, a série podia
ter se aprofundado mais nessa questão. Porém, esse não chega a ser um erro tão grave.
Devida à estrutura da série ser praticamente desenhada para ser assistida de uma vez só,
esses são erros que relevamos devido a experiência de maratonar. Eu mesmo só me
toquei desses problemas ao refletir um pouco sobre a história inteira, quando já tinha
todos os pedaços dela em mãos. Talvez isso seja pelo fato de termos a esperança de que
certos mistérios serão explicados em episódios seguintes, mas as respostas não chegam
e ficamos de mãos abanando. Não chega a ser nada extremamente péssimo, mas pra
quem gosta de saber todos os detalhes de determinada trama pode incomodar sim.
Apesar de tudo isso, “Bom Dia, Verônica” é um excelente show policial. Existe
algumas invencionices aqui e acolá, mas nada que já não estejamos acostumados após
assistir diversas séries americanas. O roteiro é competente o suficiente para sempre estar
com algo em cena que nos chame a atenção. Literalmente, existe três tramas que correm
em paralelo. A primeira é a do Golpista e serve para apresentar os personagens e o
universo do show. A segunda é a de Brandão e Janete, que domina 50% do tempo de
tela e a última é a da máfia policial que é o gancho para as futuras temporadas que
virão.
Não vou mentir quando digo que o maior pecado da série seja o seu último episódio
focar mais na trama da máfia policial ao invés de encerrar a trama de Brandão e Janete
de maneira melhor. Quando ela morre incendiada no final do episódio 7, também morre
certa parte da trama, já que o 8 se concentra exclusivamente em Verônica saindo da
polícia para se tornar uma espécie de justiceira / espiã / assassina. Claro que a atuação
da Tainá é o que vende toda essa situação para o público, mas eu por exemplo fiquei
mais interessado no serial killer interpretado por Eduardo Moscovis que em saber mais
sobre a máfia policial.
Para finalizar, a série tem alguns momentos bem violentos. Ela não tem medo de apostar
na violência gráfica, com ganchos sendo enfiados na pele humana ao melhor estilo O
Massacre da Serra Elétrica e até mesmo corpos sendo incendiados de maneira super
realista. Aliás, foi muita coragem da Netflix de mostrar o corpo carbonizado de Janete
no último episódio. No entanto, nada chega a ser tão chocante ou assustador a ponto de
fazer o telespectador virar o rosto da tela. Graças a pouca violência, o show não se torna
extremamente pesado, conseguindo assim manter sua estrutura de maratona intacta.
Em suma, “Bom Dia, Verônica” é a prova de que livros ruins podem gerar séries boas.
Além de que é um grande avanço para o audiovisual nacional, porque mostra que a
Netflix está acertando ao criar shows cada vez mais naturais e competentes. Pode não
ser aquela série que vai mudar a indústria, mas é inegável que ao longo de seus 8
episódios o show escrito por Raphael Montes e Ilana Casoy cumpre o que o streaming
promete: Deixar o espectador vidrado na história.
Se teremos uma segunda temporada, isso só o tempo vai dizer. Eu espero que sim,
porque um show desses merece ser renovado devido ao enorme gancho deixado em seu
final. Ver Tainá Müller como uma versão feminina do Justiceiro é algo que eu fico
curioso para assistir e acho que ela vai tirar esse desafio de letra.
Já fico animado para mais rostos conhecidos terem a oportunidade de brilhar em papéis
diferenciados como o de Eduardo Moscovis e Camila Morgado, e além disso… Pode ser
que o show bombe internacionalmente a ponto de chamar atenção pro nosso mercado
nacional, vai saber? Em tempos que nossa indústria está tão mal das pernas, “Bom Dia,
Verônica” é um respiro muito mais que necessário. E com ele, temos uma certa dose de
alívio ao saber que ainda podemos produzir obras muito boas.

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