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Crítica | Desalma (2020)

26/10/2020

por Arthur Albano

Depois de alguns dias, com uma maratona feita de maneira leve, eu terminei a primeira
temporada de Desalma, a primeira série de horror original da Globoplay. Considerando
que esse é um gênero não muito explorado dentro do audiovisual nacional, eu fiquei
impressionado com a qualidade e não poderia deixar de comentar sobre a série em
uma crítica com spoilers.
Mas afinal, sobre o que é Desalma? De maneira breve, tudo o que você precisa saber é
que é uma série de bruxa com a Cássia Kis. Só isso já deve bastar para despertar a
curiosidade do telespectador, mas se você ainda quer mais argumentos, então segue o
texto que vamos explorar tudo o que série nos apresentou em seu ano inaugural.
E como esse é um texto com spoilers, só leia se você tiver visto a série ou não se
importa de saber elementos chaves da história!
Sinopse: A história começa com o desaparecimento da jovem Halyna (Anna Melo) em
1988, na cidade fictícia de Brígida, fundada por imigrantes ucranianos. Na época do
desaparecimento, a cidade celebrava Ivana-Kupala, uma festa com origens pagãs e
ligada a ritos de fertilidade que foi incorporada mais tarde no calendário dos cristãos
ortodoxos, e na verdade é realizada na virada de 6 a 7 de julho.
A tragédia fez com que a festa fosse banida do calendário da cidade, e trinta anos
depois, quando a tradição é retomada, eventos misteriosos acontecem novamente. Três
mulheres são marcadas por transformações e perdas, algumas delas irreparáveis. Rituais
de bruxaria são capazes de reverter até mesmo a morte. Às vésperas da noite mais
escura do ano, quando almas das trevas têm o poder de caminhar sobre o mundo dos
vivos, a floresta parece atrair os ingênuos para seu interior frio, de árvores altas, onde
eventos sobrenaturais assombram os integrantes das famílias envolvidas na tragédia do
passado.
Desde que a Globo começou a investir em seu streaming, o Globoplay, ela sabia que iria
precisar de novas estratégias para competir de frente com a Netflix. Então, eles
apostaram na criação de séries nacionais exclusivas para seu catálogo. Entre elas
tivemos Carcereiros, Assédio, Ilha de Ferro, Aruanas, A Divisão, Anjo Renegado e
agora, Desalma, a mais recente e a que mais está fincada em um único gênero se
afastando do drama que une todas suas antecessoras. Por causa da proposta um pouco
peculiar, Desalma logo me chamou a atenção e os dois adiamentos que a série teve me
deixaram preocupado que o canal estivesse em dúvida sobre a qualidade do programa,
mas tendo terminado de vê-lo fica claro que esse foi só um problema de logística, afinal,
Desalma é sim muito boa!
Uma das primeiras coisas que eu notei sobre o programa é que ele não seria a série de
bruxas que a maioria esperava que fosse. Enquanto Ryan Murphy conquistou e perdeu
muito fãs com sua abordagem mais pop em AHS: Coven, a Globo preferiu apostar em
horror de queima-lenta que se aproxima muito mais de séries como Dark e Twin Peaks
pra só daí desenvolver sua mitologia própria explorando a bruxaria ucraniana. Mas,
vamos por partes.

A série se inicia como qualquer outra série de terror. Temos uma morte esquisita e então
tudo se desenrola a partir disso. Infelizmente, preciso dizer que os primeiros episódios
são muito lentos porque são feitos para apresentar todas as vertentes da história e a
ambientação. A Globo ainda está caminhando nessa parte de séries com estruturas mais
americanizadas, mas eles fizeram um trabalho muito competente, você só precisa
mesmo ter paciência para se engajar na história e então seguir em frente.
A parte ruim é que os primeiros episódios se dedicam muito a história de Giovana,
interpretada por Maria Ribeiro, que empalidece narrativamente diante dos núcleos
comandados por Cláudia Abreu e Cássia Kis. Na série, ela é a esposa de Roman, o
homem que se suicida na abertura da série. Enquanto tenta descobrir o que levou o
marido a ter feito o que fez, Giovana vai descobrindo outros segredos da cidade de
Brígida e do próprio marido também. Tecnicamente, a história dela tinha tudo para ser
interessante, mas a personagem é tão qualquer coisa que você agradece quando a série
muda de olhar para os outros personagens.
Esse é um dos poucos problemas que eu senti, porque em Twin Peaks, uma das coisas
que mais cativavam o público era a presença de Dale Cooper, o estranho que chegava na
cidade para agitar as coisas e descobrir os segredos que os moradores queriam esconder
a qualquer custo. Giovana tem essa mesma função dentro da história, mas eu não sei se
foi o roteiro ou a atuação da Maria Ribeiro que não conseguiram fazer jus ao que nós
normalmente esperamos de uma protagonista.

O que se salva é o núcleo adolescente comandado pela sua filha Melissa, interpretada
por Camila Botelho. A jovem tem o papel clichê de estranha que chega na cidade, mas
ela tem uma naturalidade e química com o resto do elenco juvenil que consegue chamar
muito mais atenção do público que a história de sua mãe. Inclusive, ela é quem lidera a
parte final da série e chama muito a atenção pelo que podem fazer com ela na futura
segunda temporada.
“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”
O ditado castelhano acima se traduz como “Eu não creio em bruxas, mas que elas
existem, existem”, e se aplica perfeitamente a história de Desalma. Após a introdução
de Giovana a cidade de Brígida, logo conhecemos a figura peculiar de Haia, a bruxa
interpretada por Cássia Kis que é a imagem mais forte de toda a série. Sem dúvidas, ela
é a atriz que tem mais cacife e toda vez que entra em cena, magnetiza nosso olhar em
suas cenas recheadas de tensão e mistério.
Mas o que eu mais gostei na forma que desenvolveram Haia, é que poderiam ter apelado
para o senso comum sobre o que é ser bruxa, mas a criaram de uma forma tão coesa
naquele mundo que nada do que ela faz ao longo dos episódios chega perto dos
exageros que esperamos, mas ainda assim nos assusta pela astúcia e força dos seus atos
silenciosos. Haia é uma das personagens mais interessantes da série pelo seu passado
cheio de dor, e Cássia Kis consegue vender isso sem precisar falar muito. Finalmente
deram um papel à altura da atriz e eu fico muito feliz de ela poder conquistar uma nova
geração.

Eu que a acompanho desde as novelas, fiquei apaixonado por ela ainda em “Morde e
Assopra” na qual ela interpretava uma mãe que fazia de tudo pelo filho que a
desprezava. Aqui, Haia também é uma mãe capaz de fazer tudo pela sua filha, o
problema é que ela foi assassinada e mesmo depois de 30 anos, a dor dessa morte ainda
não cicatrizou.
Para fechar o trio de protagonistas temos Cláudia Abreu interpretando Ignes, uma
mulher atormentada pelo tempo e que nunca superou as tragédias do seu passado. Ela
teve a melhor amiga assassinada pelo irmão, e nunca se recuperou desse fato. Mesmo
casada e com um filho, Ignes faz terapia e toma remédios controlados, sempre em um
estado de medo da depressão e da realidade que precisa enfrentar diariamente.
Não preciso nem dizer que logo depois da Cássia, é a Cláudia Abreu que mais tem
história como atriz. As duas estrelaram juntas Barriga de Aluguel, uma novela marcada
pela disputa entre uma mulher que deseja ser mãe e não pode (Cássia) e uma mulher que
vende seu útero e depois de arrepende (Cláudia). Ver as duas contracenando juntas
depois de trinta anos é um privilégio que só a Globo poderia nos oferecer, e mesmo não
tendo muitas cenas juntas, são as duas que dão a alma de Desalma.
Mas nisso tudo, onde reside o horror da série?
Eu passei os primeiros episódios me perguntando isso até entender a essência dela. De
primeira, imaginei que fossem apostar no sobrenatural com força, mas na verdade o
roteiro construiu todo o horror de maneira lenta, apostando na força das imagens e dos
conceitos apresentados. Em Brígida, nada assusta mais que a capacidade de reviver o
passado e é por isso que tocam tanto no assunto da celebração de Ivana Kupala, a festa
em que tudo deu errado.
Foi em 1988 que Halyna foi assassinada, marcando Brígida para sempre. De maneira
parecida, Halyna é construída como se fosse nossa Laura Palmer brasileira, sempre
citada em todos os episódios, sempre rondando cada núcleo, ela está lá mesmo não
estando. E é por ser a personagem mais marcante que ela precisava de uma atriz a sua
altura, felizmente Anna Melo provou que conseguia e nos deu uma Halyna inocente e
doce e ao mesmo tempo esperta e ávida. Queria que ela tivesse mais tempo de tela, mas
o episódio em que sua morte é apresentada (o sétimo) é um dos melhores da série e
responde questões que passamos os outros seis formulando.

Algumas cenas se destacam com força como o ritual de Haia com a carcaça, a
invocação do deus Veles e a celebração original de Ivana Kupala em 1988. Mas, é aí
que horror da série vive pois ela não adentra de forma mais profunda o sobrenatural e
nem apela para jumpscares baratos. Considerando que o Horror é muito pouco
explorado dentro dos filmes, séries e outros meios da indústria audiovisual nacional,
acho que Desalma é um excelente ponto de partida pra ir acostumando o público.
Precisamos ter nosso próprio repertório e aí que eu acho que Desalma acerta. Muita
gente a compara a Dark pela fotografia que emula o horror europeu, mas fora as cores e
o ritmo lento, a história das duas não poderia ser mais diferente. Claro que pode haver
um pouco de confusão com as famílias ucranianas e os sobrenomes diferentes, mas
Desalma se torna bem didática nesse ponto sendo às vezes expositiva demais.
É aí que entra um dos poucos problemas que eu tive com a série, que foram os diálogos
literários demais. Acho que esse fator vem da sua roteirista Ana Paula Maia, conhecida
pelos livros Assim na Terra como Embaixo da Terra e Enterre Seus Mortos. Pelo que eu
notei, ela tem um controle muito grande sobre os aspectos da história. O roteiro foca
muito na construção e desenvolvimento, mas perde muita força com os diálogos pouco
naturais que poderiam ter sido excluídos se ela e o diretor da série tivessem conversado.
Até mesmo a Cláudia Abreu precisa se robotizar um pouco pra falar seus diálogos
sempre com a flexão perfeita de cada verbo.
Muita gente disse que isso se deve ao fato de a Globo querer comercializar Desalma
internacionalmente, mas legenda e dublagem existe pra isso. Fato é que somos (ou
deveríamos) ser o público principal, e considerando que a Globo domina o português
coloquial porque o enfia em todas suas novelas, ter atuações e diálogos robóticos em
pleno 2020 é um pouco amador. Mas, relaxem que esse é um aspecto que me
incomodou cada vez menos com o passar dos episódios.
Lá pelo episódio 5-6, a série tem sua primeira guinada e aí ela continua a andar como
um trem descarrilhado, forçando uma maratona porque você quer ver o que vai
acontecer em seguida. Pra mim o melhor episódio foi o 7, por explicitar tudo o que
aconteceu na linha do tempo de 1988 e ainda assim fornecer mais fôlego pros três
episódios finais. E aliás, ao final do décimo eu notei que essa primeira temporada
realmente foi uma preparação para o verdadeiro potencial que Desalma pode apresentar.

Pertinho do final descobrimos que Haia não é a única bruxa da cidade e que ela tem
planos a longo prazo que serão devastadores para todos. O maior sem dúvidas foi o fato
de a transmigração de almas acontecer em personagens que eu não esperava. Ver o
Roman voltando no corpo do Boris e a Halyna (possivelmente) no da Melissa foi algo
que me deixo “CARACA!”. E eu tenho certeza que a trama vai ficar mais obscura ainda
na 2ª Temporada.
Outro destaque que eu preciso apontar é pro ator João Pedro Azevedo que dá vida ao
pequeno Anatoli Burko. Em uma mistura de possessão / assombração, ele serviu muito
no elenco mirim ao atuar ao lado de Cláudia Abreu e se rolasse uma releitura nacional
de A Profecia, esse menino seria o próprio Anticristo de tão bem que atua.
De resto, eu digo que Desalma não é a série mais assustadora da Globoplay, mas ela
vence pela consistência dos seus dez episódios. Com uma trilha sonora incrível, uma
fotografia que raramente vemos em séries e uma atuação perfeita de duas de suas três
protagonistas, a série ainda vai conquistar muito o público e abrir mais portar para o
horror nacional.
Então que venha a segunda temporada em 2021! Precisamos de mais bruxas nesse
Brasil!

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