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CADERNO DE CINEMA

vol. 2 - 2022
Comunicação e Multimeios - Universidade Estadual de Maringá

Sertão
Coordenação: Prof. Dr. Rodrigo Gontijo
Projeto Gráfico: Beatriz Senger
APRESENTAÇÃO
“O sertão está em toda a parte”. A frase de Riobaldo, que se encontra nas primeiras páginas do livro “Grande Sertão: Veredas” de João
Guimarães Rosa, sintetiza o significado de sertão. Inicialmente, o termo que tem origem na palavra desertão, foi usado pelos portugueses
para designar as terras desabitadas pelo dominador, distante do litoral e das cidades. Com a publicação de “Os Sertões” em 1902, Euclides
da Cunha, ao falar de Canudos, contribuiu para a associação do termo sertão com região semiárida do nordeste brasileiro. Porém, o
sentido desta palavra extrapola territórios, biomas e ecossistemas, podendo ser compreendido também como um imaginário simbólico
povoado de afetos. Riobaldo complementou: “sertão é confusão em grande demasiado sossego [...] Sertão: é dentro da gente.”

Na disciplina “Projeto em Comunicação IV”, ministrada no primeiro semestre letivo de 2021 no curso de Comunicação e Multimeios da
UEM, realizamos uma reflexão sobre o imaginário da palavra sertão através do cinema brasileiro.

O Caderno de Cinema vol.2, com textos elaborados pelos alunos, se tornou então uma jornada por movimentos, histórias e linguagens do
cinema brasileiro atravessadas pelo o cangaço, cinema novo, cinema documental, experimentações de linguagem, cinema indígena,
adaptações literárias, filmes de estrada, cinema da retomada, cinema contemporâneo até chegar em Bacurau.

Desejamos a todos, todas e todes uma boa viagem pelos filmes indicados e “se for, vá na paz”!

Rodrigo Gontijo
Professor do curso de Comunicação e Multimeios da UEM
Coordenador do Cine UEM
Fragmentos de “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode


torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive
seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.

O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que
quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está
em toda a parte. [...]

Mas o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que
nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos.
Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão?

Sertão: é dentro da gente.

Ilustração original: Poty Lazaroto


Sumário
1. Cangaço 06
2. Cinema Novo 12
3. Adaptação Literária 18
4. Documentário 24
5. Documentário Contemporâneo 30
6. Experimentação da Linguagem 36
7. Cinema da Retomada 42
8. Filmes de Estrada 48
9. Cinema Indígena 54
10. Cinema Contemporâneo 60
Cangaço
06

Por Elis Tama S. Nakasato e Vinicius Hernandes Frares


O Cangaceiro Cangaço

Direção: Lima Barreto (1953, 105')


Os cangaceiros atacam um vilarejo e raptam a professora Olívia. Teodoro, membro do
bando, apaixona-se pela vítima, ajudando-a a fugir do cativeiro. O capitão Galdino, líder do
grupo, vai atrás dos dois.
A história apresenta o contraste entre os cangaceiros Galdino e Teodoro. A
religiosidade, vaidade e liderança são características presentes no primeiro personagem,
inspirado livremente na figura de Lampião. Suas atitudes são controversas, provocando
medo e respeito: durante o ataque ao vilarejo, ao mesmo tempo em que Galdino rouba e
rapta moças, ele também ajuda uma senhora que teve seu cordeiro assinado.
O segundo personagem é o misterioso Teodoro, amigo de Galdino. Suas histórias são
reveladas durante a fuga com a professora Olívia. Teodoro se mostra um personagem
culto, que ama o sertão, apesar de ter morado parte de sua vida na cidade. Teodoro e
Olívia vivem o típico romance entre o herói e a princesa, que o deixa dividido entre o amor
pela sua terra sertaneja e o amor por uma mulher. Teodoro deseja fugir com ela para a
cidade, porém a separação dos dois é metaforizada por um rio.
"O cangaceiro”, um dos primeiros filmes de ficção sobre o cangaço, fez sucesso
internacional e venceu a Palma de Ouro em Cannes como melhor filme de aventura.

07
Lampião, o Rei do Cangaço Cangaço

Direção: Carlos Coimbra (1964, 100')


O filme aborda a história de Virgulino Ferreira, mais conhecido como Lampião.
Após perder os pais, o protagonista decide se tornar um cangaceiro, apaixona-se
por Maria Bonita e se torna em um dos homens mais temidos do Brasil nos anos
30.
Lampião, o Rei do Cangaço começa com Virgulino ainda garoto, que ao
encontrar com o cangaceiro João, recebe um chapéu de couro. No momento do
presente, João diz: “só bote esse chapéu na cabeça se um dia tiver um motivo”.
Este gesto simboliza a grande importância que o acessório possui na vida dos
cangaceiros e o início da vida de Virgulino como o famoso Lampião.
O filme retrata o conflito vivido pelos personagens entre continuar com essa
vida sanguinária do cangaço ou encontrar um lugar melhor para morar (“um outro
mundo”). Devido às diversas dificuldades enfrentadas pelo casal Lampião e Maria
Bonita após darem à luz a uma filha, questionam-se se a vida que possuem
realmente vale a pena, pois por causa do perigo teriam que viver separados da
menina. O personagem de Lampião, apesar de violento, também é retratado de
maneira bastante humanizada
O diretor Carlos Coimbra realizou diversos filmes de sobre o cangaço, sendo
um dos mais importantes diretores neste meio.

08
O Lamparina Cangaço

Direção: Glauco Mirko Laurelli (1964 83')


Sem conseguir arranjar emprego na cidade grande, a família de Bernardino Jabá recebe
uma proposta e vai tentar a sorte no interior, perto do povoado de Sororoca, local que havia
sido atacado por cangaceiros. Para não serem alvos do bando de Zé Candieiro, a família se
disfarça com os mesmos trajes do bando.
“O Lamparina” realiza uma sátira aos muitos filmes de cangaço que faziam sucesso na
época. Com uma ótima atuação de Amácio Mazzaropi (ícone da comédia no cinema
brasileiro), o protagonista Bernardino Jabá, ao se disfarçar de cangaceiro com sua família,
imita de forma cômica com certo ar de ingenuidade, os diversos capitães do cangaço
representados nas telas de cinema no Brasil. Ele se apresenta como um cangaceiro cruel,
valente e vaidoso (assim como os cangaceiros representados em outros filmes), se
autodenominando Lamparina.
No filme, os cangaceiros são vistos como vilões e perigosos que roubam e matam as
pessoas do vilarejo. Porém o filho do líder Zé Candieiro é representado como um
personagem que não gosta desta vida e quer deixar o cangaço.
Uma curiosidade: a maior parte do filme são cenas externas, somente algumas cenas da
igreja no final é interna, e a filmagem não foi feita no Nordeste, mas sim na fazenda de
propriedade de Mazzaropi, no estado de São Paulo.

09
O Cangaceiro Trapalhão Cangaço

Direção: Daniel Filho (1983, 90')


A história começa com o criador de ovelhas Severino, interpretado por Renato Aragão,
salvando o Capitão Virgulino e seu bando de uma emboscada. A partir disso, o pastor acaba
se juntando com o grupo e o líder lhe propõe uma missão, aproveitando-se do fato dos dois
serem parecidos. Neste filme, os cangaceiros não são retratados de maneira tão violenta e
malvada, como em outros do gênero. Os policiais comandados pelo Tenente Zé Bezerra são
os vilões que a todo momento perseguem o bando do Capitão Virgulino.
O seu público-alvo são as crianças, inclusive na trama aparece a menina Expedita,
trazendo para o público infantil uma identificação. O filme é de fantasia, então utiliza da
magia e do sobrenatural em diversos momentos da história. E também é cômico, com o
humor sempre presente conforme os personagens se envolvem em trapalhadas. Fazendo
jus ao título, Severino se torna uma cangaceiro trapalhão, se metendo em várias confusões
durante a trama. No final do filme, como é comum nos filmes dos Trapalhões, eles
encontram o tesouro que procuravam durante a jornada o filme. A trama faz críticas
sociais, como a questão da fome no sertão nordestino.
O elenco, além do quarteto dos Trapalhões, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, , traz atores
famosos da época, como Regina Duarte, Nelson Xavier, Tânia Alves, Tarcísio Meira, entre
outros.

10
Corisco & Dada Cangaço

Direção: Rosemberg Cariry (1996, 112')

O filme conta a história de amor e fúria entre Corisco e Dadá, que acabam por ficar juntos
após Corisco estuprar a moça para cobrar uma dívida. Após esse trágico evento ela também
se torna uma cangaceira. A obra foca bastante nas características dos personagens, nas
suas angústias e na sua luta constante pela sobrevivência.
No decorrer da obra, apesar de terem começado mal, o casal se aproxima e Corisco se
arrisca para defender a moça. Com o tempo, Dadá vai endurecendo, ficando mais valente e
aprendendo a se virar no meio dos homens. Vale ressaltar que Corisco ensina algumas de
suas práticas, para que a moça seja respeitada pelo grupo. Essa dualidade dos
personagens, as mudanças que acontecem com eles no decorrer da obra e a relação
desenvolvida por eles, deixa o filme interessante e prende o espectador aos
acontecimentos.

11
CINEMA NOVO 12

Por Maria Eduarda E. Fernandes e Thaiany Ignes Vedovato


Aruanda Cinema Novo

Direção: Linduarte Noronha (1959, 21')


O documentário em curta-metragem apresenta inicialmente, os antigos escravos de Olho
Dágua da Serra do Talhado, as dificuldades que enfrentaram na busca de um lugar longe da
violência da escravidão. Na sequência, como um diário do dia, o filme demonstra a vida
rotineira da população sertaneja da Serra do Talhado, descendentes dos escravos, com
cenas dos trabalhos com cerâmica argila, a busca de água nos poços, a preparação de
alimentos e até as dificuldades para o comércio de suas produções.
Pesquisando sobre o documentário, o que mais se destaca é o significado de “aruanda”
que é um paraíso espiritual, segundo as religiões umbandistas e espíritas. A forma com que
Aruanda contrasta com a realidade do povo descrito no curta-metragem, longe de ser um
paraíso, atrai os olhares às mazelas do povo esquecido e ignorado por todo o Brasil e seu
governo.
O enredo, que mistura realidade com ficção, foi um dos primeiros a retratar com tanta
proximidade o quão difícil é a vida de um povo que vive em meio às secas. Aruanda utiliza
também determinados termos que remetem às fábricas e à industrialização no contexto da
extrema pobreza, como por exemplo, chamando as mulheres artesãs de operárias, na
“indústria primitiva” de fabricação de objetos domésticos.

13
Vidas Secas Cinema Novo

Direção: Nelson Pereira dos Santos (1963, 103')


A história de sobrevivência de uma família pobre da região seca do Nordeste e sua luta
por trabalho e comida, frente às dificuldades do ambiente árido. Composta pelo pai
Fabiano, a mãe Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cadela Baleia, o grupo de retirantes
sertanejos é obrigado a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas
pela seca.
Os personagens se estabilizam por um breve momento em uma pequena fazenda, onde
Fabiano consegue trabalho, porém ele é constantemente injustiçado por seu patrão, que
sabe da sua falta de esperteza. Sinha Vitória é uma mulher trabalhadora, que sempre tenta
auxiliar o marido para que não lhe ‘’passem a perna’’. É também esperançosa e sonha em ter
uma vida que não esteja fadada à miséria. Os dois filhos não possuem nome e ainda não se
dão conta do contexto em que estão inseridos. Por fim, a cadela Baleia é tratada como
membro da família e possui traços muito humanos.
A obra é muito importante por apresentar a realidade da sociedade brasileira em seu
mais profundo âmbito, evidenciando a exploração e opressão política. É envolvente e, ao
mesmo tempo, agoniante acompanhar de perto a vida no Sertão, ainda mais, do lado
injustiçado da história.

14
Deus e o Diabo Cinema Novo

na Terra do Sol
Direção: Glauber Rocha (1964, 120')
Nas misérias do sertão, Manuel e Rosa se encontram em fuga, após Manuel matar o
Coronel. Assim, o casal busca refúgio com o Beato Sebastião, que prometia fazer o sertão
virar mar e o mar virar sertão. A elite, insatisfeita com as consequências do movimento do
Beato, contrata o famoso matador de cangaceiros, Antônio da Morte, o qual é encarregado
de matar Sebastião e seus seguidores. Mesmo repleto de promessas encantadoras, o
profeta se mostra perverso, ao realizar o sacrifício de um bebê e de uma mulher, que seria
Rosa, mas que ao presenciar a cena, assassina o santo Sebastião. Mais uma vez em fuga,
Manuel e Rosa se unem ao cangaceiro Corisco em busca de justiça: pelas mortes de seus
líderes, e pelo povo sertanejo.
A comparação entre mar e sertão, Deus e o Diabo, o devoto que se torna satanás, pobres
e ricos que invertem seus lugares no céu, entre outros, demonstram grandes antíteses que
compõem o roteiro do filme. Além disso, a frase “o sertão não é de Deus nem do Diabo, é do
povo” representa o pertencimento do sertanejo à sua terra natal, como representado pelos
personagens principais, que mesmo tentando fugir, em busca de uma vida melhor,
terminam em meio ao sertão, sem lugar para ir.

15
Os Fuzis Cinema Novo

Direção: Ruy Guerra (1964, 80')


Um grupo de soldados é enviado para uma cidade do Nordeste, para impedir que os
cidadãos famintos saqueiem os armazéns de comida. Em um contexto de pobreza e fome
extrema, os fuzileiros parecem mais preocupados em se divertir e impor medo aos outros,
do que realmente proteger a população. As coisas ficam conturbadas quando, em meio a
uma aposta, o militar Pedro acaba matando um morador da cidade e encobrindo o crime. No
fim, o soldado Gaúcho se revolta ao ver a situação de miséria passar dos limites e acaba
morto por seus próprios companheiros. A população, que se encontra sem opções, mata o
boi sagrado da cidade, para finalmente saciar seu apetite.
O filme retrata com clareza a estética da fome, e com isso, a violência, que é a sua maior
consequência. Apenas usando de sua própria força, é possível ser ouvido. A obra em si é
visualmente mais ‘’sofisticada’’ que os trabalhos da época, com uma luz muito mais
naturalista e contrastada, trazendo um ar de clareza às imagens. Com uma riqueza de
diálogos, os personagens são muito bem construídos e psicologicamente aprofundados.
Diante disso, é estabelecida uma relação muito dramática e expressiva entre os soldados e
a cidade.

16
Dragão da Maldade contra Cinema Novo

o Santo Guerreiro
Direção: Glauber Rocha (1969, 95')
O matador Antonio das Mortes, é novamente contratado, dessa vez pelo coronel Horácio,
para assassinar o último cangaceiro do povoado sertanejo Jardim de Piranhas, o conhecido
Coirana. Porém, antes de cumprir sua missão, o matador se vê em crise, analisando sua
trajetória, as tantas vidas que já tirou, vivendo em meio à tristeza. Mesmo atacando
Coirana, os pensamentos de Antonio das Mortes não param, até que o então matador de
cangaceiros decide apoiar a manifestação do povo.
O filme retrata com clareza o misticismo sertanejo, envolvendo Santas, crendices e
práticas religiosas com óperas e músicas que são até hoje conhecidas. Os personagens da
trama carregam fortes características que representam a sociedade da época, por exemplo
o Coronel Horácio é retratado, cego, sempre de pijama e gritando ao vento, o que
demonstra o desespero dos que até então controlavam a vida dos vilarejos no sertão e que
não enxergavam as possibilidades de um futuro (como a repulsa à reforma agrária citada no
início da obra). O professor, é apresentado como a mente pensante que ensina criancinhas
sobre os acontecimentos do país, alimentando a geração com consciência e por fim,
Mattos, que mesmo sendo o oficial “puxa-saco” do coronel, sonha com a instalação de uma
indústria local. Ao mostrar Antônio das Mortes saindo do sertão, em uma estrada em
direção a um posto de gasolina de nome americano, o filme demonstra uma certa derrota,
afastando o sertanejo de sua tão amada terra.

17
18
Adaptação Literária
Por Diego Albanez e Jéssica Batista
O Pagador de Promessas Adaptação Literária

Direção: Anselmo Duarte (1962, 98')


O filme mostra a realidade de Zé, um fiel muito esforçado, que fez uma promessa em
terreiro de candomblé, e por isso é condenado pela igreja católica. A promessa pedia pela
cura de seu burro de estimação (Nicolau), em troca de uma peregrinação, carregado uma
enorme cruz, de seu sítio até a igreja de Santa Bárbara. Ao chegar no seu destino final, é
admirado pela atitude, porém, após contar sua história, é proibido de cumpri-la ainda em
vida e acusado pelo padre Olavo, que o acusava de estar possuído por entidades do mal. Zé
recebe apoio daqueles que como ele também são proibidos de expressarem sua fé, e sem
desistir, tenta invadir a igreja.
O longa abre espaço para discussões sobre a ignorância presente na religião, no caso a
católica, e como a fé está ligada a seu espaço físico (igreja), podendo ser exercida
livremente fora dela.

19
A Hora e a Vez de Adaptação Literária

Augusto Matraga
Direção: Roberto Santos (1965, 109')

O filme começa com uma frase que diz que a família é o que temos de mais valia, porém,
só fará sentido depois do renascimento de Augusto. Sendo um clássico do cinema novo,
Augusto é um fazendeiro vingativo, que já teve status e agora está falido e ameaçado.
Nesse contexto, sua esposa e sua filha vão embora por segurança, e Augusto a fim de se
vingar daqueles que tiram sua credibilidade é capturado por capangas, agredido e jogado
de um penhasco. Quase morto, o protagonista é resgatado por um casal, fato que dá início
ao seu renascimento. O casal passa a ser chamado de pais, os quais Augusto nunca teve.
Depois de muita luta para sobreviver, o protagonista se torna temente a Deus, se tornando
pacíifico e religioso. E após 6 anos de penitência vivendo com seus novos pais, Augusto
decide embarcar em uma nova jornada.
Típico de filmes com protagonistas homens, a esposa de Augusto e sua filha são
menosprezadas na trama, aparecem no limite da residência e saem somente quando estão
fugindo do vilarejo. Augusto trai a mulher e só se sente só sozinho quando a perde. Depois
da virada de página de sua vida, se arrepende de ter deixado elas irem embora.
É notável a constante tentativa de Augusto de se manter obediente à religião e aos
ensinamentos de Quiteria, sua mãe, para não cair na tentação de voltar a viver pela
vingança. Na cena final, toda essa dedicação é posta em xeque, e ele se entrega para evitar
que mais injustiças ocorram, ao mesmo tempo que se redime pelos erros do passado.

20
Macunaíma Adaptação Literária

Direção: Joaquim Pedro de Andrade (1969, 110')


Uma adaptação de um clássico da literatura modernista escrito por Mário de Andrade, o
filme conta a história de Macunaíma, um herói com aspectos cômicos e ações
questionáveis pela moralidade. A a obra é uma grande sátira sobre a realidade do povo
brasileiro. Macunaíma nasce na selva e vive por lá com seus irmãos, sua mãe e sua cunhada,
e após algumas aventuras e muitos atos errôneos, é expulso de casa. Se perde e , ao
retornar encontra uma fonte mágica que transforma, Macunaíma, um garoto negro, em
branco. Ele parte pra cidade grande, se envolve romanticamente, tem um filho, e durante a
trama busca pela muiraquitã, um amuleto mágico, o qual ele mesmo tinha perdido.
O filme mostra a faceta da fantasia em contraste com as máquinas da cidade grande, e
tem um apelo político satirizando o autoritarismo e a aceitação econômica da época.

21
Lavoura Arcaica Adaptação Literária

Direção: Luiz Fernando Carvalho (2001, 163')


Baseado no livro de Raduan Nassar, o filme conta a história de André que foge de casa
pois não consegue se adequar a visão tradicional e moralista do pai. Assim como no livro, o
enredo acontece como em um fluxo de pensamentos e memórias que se desenvolvem
mostrando, aos poucos, como a rebeldia de André (personagem interpretado por Selton
Mello) é uma fuga para se libertar das amarras familiares, mesmo que isso resulte em uma
paixão incestuosa com sua irmã, Ana. Após sua saída de casa, sua mãe angustiada pede
para seu irmão mais velho, Pedro, buscá-lo como tentativa de reorganização familiar. Com a
volta de André, é perceptível que a tentativa de reconciliação familiar, não foi possível, uma
vez que o afastamento de pai e filho, foi construído socialmente por conta do
desenvolvimento patriarcal.

22
Mutum Adaptação Literária

Direção: Sandra Kogut (2007, 95')


Mutum conta a história de Thiago, uma criança que vive no sertão mineiro com seus
pais e seu irmão mais novo, seu único amigo. Pela sua criação rígida, ele não pode
aproveitar a infância plenamente, tem seus sentimentos oprimidos, sendo tratado
praticamente como um adulto. Sua mãe é mais atenciosa com o protagonista, porém,
dentro dos limites submetidos pelo pai. Apesar da relação com seu pai, Thiago, mesmo com
pouco idade compreende, que têm responsabilidades. Alguns momentos da trama anuncia
a falta de sensibilidade com as crianças ao mesmo tempo tenta mostrar em momentos
mais singelos que elas ainda carregam suas identidades infantis. Um exemplo dessas
variações é no momento em que Thiago está com sua cadelinha Rebeca, é notável sua
felicidade e quando está dando banho no animal e a tristeza que sente quando seu pai se
desfaz de seu animal de estimação. Em outros momentos Thiago também tem que ser
forte, como o luto que teve que superar pela morte de seu irmão.
O filme, num primeiro momento, parece ter uma direção bem simplista sem muitos
enquadramentos e movimentos de câmera, mas no decorrer da história essas
características nos fazem compreender melhor a realidade do ambiente, com os sons da
natureza, ruídos, barulhos dos animais para que de forma sutil nos faça prestar prestemos
atenção nas pequenas ações, com relevância aos gestos e diálogos.

23
24
Documentário
Por Laís Vieira Ferreira e Victoria Carolina L. Martins
Memória do Cangaço Documentário

Direção: Paulo Gil Soares (1964, 29')


O filme ocorre a partir da explicação do surgimento dos cangaceiros e de uma descrição
morfológica destes indivíduos, seguido da apresentação do seu modo de vida, a falta de
estrutura e de oportunidades. Memórias do Cangaço contém depoimentos de ex-
cangaceiros, coronéis e sobreviventes das lutas que marcaram o nordeste brasileiro na
década de 1930 e imagens originais da época. Com base nos depoimentos dos ex-
participantes do movimento cangaceiro e dos coronéis e seus aliados, observa-se o
contraste com as ideias tradicionais e os pontos de vistas. Contrariamente, somos
envolvidos por suas histórias e as motivações que levaram a sua entrada no movimento,
revelando também o lado cruel dos coronéis e seus aliados, que expõe com simplicidade a
brutalidade com que agiam nas lutas, como por exemplo, as cabeças que cortavam e
guardavam como "troféus".Além disso, o filme possui um teor poético e musical apurado,
conduzido com as narrativas dos versos de Lampião e músicas características daquele
tempo.

25
Maioria Absoluta Documentário

Direção: Leon Hirszman (1964, 20')


O documentário fala sobre a questão do analfabetismo no Brasil e como este contribui
para a marginalização dos brasileiros, retratando o cotidiano de trabalhadores do campo,
principalmente Nordestinos, que vivem em uma situação de miséria extrema. A intenção do
filme é retratar as condições de vida desse grupo que, na realidade, e não só no Nordeste,
são a grande maioria dos brasileiros. Grande maioria esta que não tem condições dignas de
moradia, saúde, alimentação, educação, mas, apesar de tudo, têm plena consciência da
injustiça que vivem. Através de depoimentos, informações históricas e dados estatísticos,
são apresentadas as problemáticas da estrutura agrária do país. Essa obra é de extrema
importância para a conscientização de seus espectadores, em geral, brasileiros de outras
classes sociais, para que vejam e tentem compreender a seriedade das circunstâncias
daqueles que “dão tudo ao país, mas o país não lhes dá nada de volta.

26
Eu Carrego um Sertão Documentário

Dentro de Mim
Direção: Geraldo Sarno (1980, 14')
Com relatos de diferentes figuras do sertão nordestino, mostrando cantores, jagunços e
coronéis, o documentário é inspirado em uma entrevista do diplomata, novelista,
romancista e considerado o maior escritor do século XX, João Guimarães Rosa. De maneira
poética, a narrativa apresenta os aspectos do sertão com depoimentos das figuras
presentes em seu contexto. “Não se deve separar o homem da obra da vida, como faz o
homem no sertão, ele retrata sua vida através de sua obra”, a partir desta frase, descreve-
se no filme a profundidade e a particularidade da relação entre aquilo que os habitantes do
sertão fazem e aquilo que realmente são, seu modo de viver e seus ofícios compactuam e
se completam com o ambiente e a geografia que residem.

27
Mato Eles? Documentário

Direção: Sergio Bianchi (1983, 34')


A respeito da reserva de Mangueirinha, no Paraná, o documentário repleto de ironia e
críticas ácidas, discute a situação das aldeias indígenas nesta região. Supostamente
apoiados e protegidos pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), estes os indígenas são
colocados para trabalhar na serraria da reserva, onde toda a madeira retirada e o dinheiro
arrecadado seriam direcionados à comunidade. O filme, porém, surge com a intenção de
denunciar o que de fato ocorre,: a violência com os índios, a violação de suas terras,
desmatamento das florestas, assassinato de indígenas e o desamparo da fundação para
com estes. Elaborado a partir de perguntas como num teste de múltipla escolha sobre as
questões apresentadas, contendo alto teor de ironia, atua como uma forma de reflexão
para quem o assiste.
O filme denuncia a exploração dos indígenas e, através de seus depoimentos, revela a
insatisfação deles quanto à situação, a preocupação quanto ao desaparecimento da
floresta, a inquietação com o futuro de suas gerações e a indignação por não terem
controle de suas próprias terras. Em seu fim, o diretor, ainda acompanhado da ironia, deixa
uma fala marcante sobre o genocídio dos indígena, que se transforma em conteúdo
atraente para o consumo, marcado em nossas mentes junto com outra frase do início: “ou
eles se aculturam, ou morrem”.

28
Cabra Marcado pra Morrer Documentário
Direção: Eduardo Coutinho (1964, 119')
Produzido para a contar a história de João Pedro Teixeira, líder da liga
camponesa de Sapé-PB, perseguido e assassinado por latifundiários por
reivindicar os direitos dos camponeses, o filme mescla o que seria a
encenação dos fatos com a história de sua própria filmagem, processo que
sofreu diversas interferências e demorou mais de 20 anos para ser
concluído, tornando-se então um documentário. Iniciadas antes de 1964, as
gravações foram interrompidas pela ditadura, com parte do material
apreendido, e, somente anos depois foram retomadas, agora não só para
contar a história de João Pedro, mas sobre o que seus familiares e os
atores das filmagens iniciais vivenciaram desde a interrupção do filme, já
que muitos foram perseguidos, obrigados a fugir para outras cidades e
acusados de possuírem relações com o comunismo.
O documentário então, além do assassinato de João Pedro, foca
principalmente na vida de sua esposa, Elizabeth Teixeira, responsável por
continuar lutando pelas causas dos camponeses e, por isso, precisou fugir e
abandonar seus oito filhos. O filme, além de registrar a violência política e
as atitudes radicais contra o movimento por parte do governo militar e dos
latifundiários, também foi de suma importância pois proporcionou a
possibilidade de Elizabeth sair de seu “esconderijo”, abandonar sua
identidade falsa, voltar a ser quem realmente era e reencontrar alguns de
seus filhos.

29
30
DOCUMENTÁRIO
CONTEMPORÂNEO
Por João V. Bastos Seguro e Kaio Murilo S. Santos
Aboio Documentário Contemporâneo

Direção: Marília Rocha (2005, 73')


O filme é um mergulho nas histórias de vaqueiros do sertão brasileiro, que utilizam uma
antiga técnica de canto conhecida como aboio. O aboio é usado para conduzir os gados ou
para se comunicar com eles, e é a partir daí que conhecemos as histórias desse povo. As de
entrevistas traçam uma abordagem íntima das memórias, histórias e hábitos dessa cultura,
e apresentam suas rezas, suas peles, suas chagas, mas principalmente seus cantos. Esses
hábitos vêm sendo extinguidos por conta das novas técnicas de cultura de gado, o que
proporcionam um tom de nostalgia e melancolia que rondam os hábitos daqueles
vaqueiros. As histórias contadas datam de um passado amigável para o aboio e nos trazem
uma memória cultivada por alguns dos últimos praticantes da técnica. A obra traz uma
discussão importante sobre os reflexos dos avanços tecnológicos, da globalização e do
abandono do passado, e assim somos convidados a olhar para esse povo e entender a dor
que eles carregam.

31
Serras da Desordem Documentário Contemporâneo

Direção: Andrea Tonacci (2006, 135')


O filme começa com imagens do cotidiano da comunidade Awá-Guajá e a recriação de um
ataque de fazendeiros armados que culmina na fuga de Carapirú, que, acaba adentrando
numa civilização desconhecida. A partir desse momento, acompanhamos Carapirú, entre
histórias do passado e momentos do presente, assistimos a sua jornada para achar algum
lugar para ser bem vindo. O longa mostra toda a angústia de Carapirú, que se vê perdido,
com uma comunicação limitada e totalmente deslocado em uma civilização desconhecida.
Durante o documentário, são representados vários símbolos, como o trilho do trem ou o
avião que passam pela aldeia, e nos fazem questionar a preocupação com o povo indígena,
tanto na forma como eles são cercados e intimidados por fazendeiros e grileiros, quanto
nas ameaças de um mundo que dizima a cultura indígena, por meio do avanço tecnológico e
desrespeito com os povos originários e seus territórios.

32
O Fim e o Princípio Documentário Contemporâneo

Direção: Eduardo Coutinho (2006, 110')


O filme começa com o diretor afirmando o objetivo do projeto: uma expedição para o
sertão, sem nenhuma pesquisa prévia, com o objetivo de achar uma comunidade que
receba a produção e conte as suas histórias. A expedição vai para São João do Rio do Peixe,
na Paraíba, e lá é recebida pela professora Rosa, que se torna a guia do filme e apresenta a
futura comunidade escolhida para a filmagem. A comunidade escolhida é a mesma em que
Rosa reside, e foi selecionada justamente pela familiaridade e intimidade que o filme
poderia alcançar. A partir desse momento, a produção começa as visitas às residências dos
personagens, com preferência aos habitantes com mais idade, que são entrevistados
dentro das suas casas e relatam sobre a vida no sertão. As entrevistas são conduzidas
como um diálogo entre o diretor e os residentes, que respondem sobre suas vidas, trabalho,
amor, fé e a morte. Dessa forma, o filme nos mostra um pouco das ideias das pessoas
daquela comunidade, nos mostra um pouco de seus cotidianos, das suas rezas e de seus
passados.

33
Acidente Documentário Contemporâneo

Direção: Cao Guimarães (2006, 60')


“Cao Guimarães e Pablo Lobato definitivamente apostam na força da imagem. Impacto
visual com a finalidade de causar sensações, sentimentos, criar histórias e narrativas
exclusivamente pelo potencial imaginário que desperta a partir da plasticidade e do
movimento. Assim também é Acidente. A partir de imagens registradas em 20 cidades no
interior de Minas Gerais, os diretores fazem muito mais do que um painel dos locais
visitados. Tiram dali impressões extremamente pessoais que, postas lado a lado, compõem
um álbum repleto de belas imagens. E assim o filme se estrutura. Cada plano minimamente
pensado e executado com precisão. De cada elemento presente no quadro, Cao Guimarães
e Pablo Lobato fazem poesia. Poesia que está evidenciada na junção dos nomes das
cidades.” (Por Revista Contracampo de Cinema)

Disponível em:
https://caoguimaraes.com/wordpress/wp-content/uploads/2012/12/acidente.pdf

34
Terra Deu, Terra Come Documentário Contemporâneo
Direção: Rodrigo Siqueira (2010, 89')
“Grande vencedor do festival de documentários É Tudo Verdade em 2010, “Terra Deu,
Terra Come” é um mergulho no sertão profundo, na terra mítica retratada pelo escritor
Guimarães Rosa em livros como “Grande Sertão: Veredas”. Pactos com o diabo, vocabulário
e paisagens parecem saídos diretamente do universo do romancista mineiro e se
materializam no filme de Rodrigo Siqueira.
O que conduz o filme são os ritos fúnebres prestados a João Batista, homem bom,
casado e sem filhos que morreu aos 120 anos. Seu velho amigo, Pedro de Alexina, é o
responsável pelas homenagens. Garimpeiro, ele é uma figura inesquecível e carismática,
que domina o filme de ponta a ponta com suas histórias que oscilam entre a verdade, a
representação e a brincadeira.” (Por Alysson Oliveira, do Cineweb para Reuters.)

Disponível em:
https://www.reuters.com/article/cultura-filme-estreia-terra-idBRSPE68T0V120100930

35
36
EXPERIMENTAÇÃO
DA LINGUAGEM
Por Giovana Navakoski Storti e Stefany Nicolin da Silva
A Velha a Fiar Experimentação da Linguagem

Direção: Humberto Mauro (1964, 6')


O curta retrata brevemente a vida e os afazeres cotidianos do campo. Com uma
estrutura de videoclipe, a partir da música popular do Trio Irakitan, a história do filme se
inicia com pessoas realizando tranquilamente suas atividades. Um corte na ambientação
direciona o foco para uma mulher idosa fazendo tecelagem, e a partir daí, o filme consiste
em acontecimentos que se repetem. A cada repetição, uma nova cena e verso, que afetam
e perseguem o anterior, são acrescentados, todos terminando na velha que continua a fiar.
Considerado por alguns críticos como um dos trabalhos pioneiros no campo do videoclipe
brasileiro, é notável como sua montagem ágil torna o ritmo fluido e divertido. Há cenas com
animais reais que interagem, e outras onde eles são representados de forma artesanal, por
bonecos e desenhos, que recebem efeitos de movimento manualmente. São usadas
técnicas de stop-motion, algo curioso para filmes dos anos 60, e também efeito de imagens
em reverso, onde o trabalho é reproduzido ao contrário.
É interessante como o curta consegue se dividir em dois momentos para retratar os
extremos de um dia no campo: a tranquilidade e a inquietação. Composto por cenas
incríveis, onde a natureza interage entre si e com a humanidade, o curta cria expectativas e
abre brechas para imaginarmos a continuidade dessa história.

37
Congo Experimentação da Linguagem

Direção: Arthur Omar (1972, 109')


É um curta que se autodescreve como “filme em branco”, um filme com o mais puro
experimentalismo, que pode ser visto e lido. “Congo” poderia ser considerado um semi
documentário ou um antidocumentário, provisoriamente como propôs o autor. O trabalho é
quase inteiramente composto por letreiros, que substituem as imagens e apresentam
dicotomias: algo contra algo, em uma montagem marcada por uma subversão da
linguagem, que explora essas antíteses. As imagens, de pessoas do campo, fazendas,
animais e retratos antigos, aparecem como figuras isoladas, sem representar diretamente
o tema tratado, mas fazendo conexões com as problemáticas apontadas pelo curta. Na
trilha, há a intercalação de uma cacofonia dramática e momentos de silêncio. Estão
presentes também sussurros e uma narração que são realizados de forma over. Por essa
narração é possível perceber a consciência que o filme tem da complexidade do diálogo que
estabelece com quem o assiste, “interlocutor”, como o chama.
A falta de abundância de imagens oferece ao espectador um quê de cinema silencioso.
As cenas, por serem estáticas ou com poucos movimentos de câmera, direcionam o foco
para o que está sendo narrado em texto, para o que se fala sobre o Congo, sobre o reino de
Matamba, e sobre a ascensão de Ginga ao seu reinado.

38
Varela em Serra Pelada Experimentação da Linguagem
Direção: Olhar Eletrônico (1984, 20')
Nesta produção realizada por Fernando Meirelles e Marcelos Tas, o repórter fictício
Ernesto Varela vai até o buraco de garimpo Serra Pelada, localizado no Estado do Pará,
onde entrevista e acompanha os moradores da cidade ocupada pelos 40 mil garimpeiros
que para lá viajaram na esperança de uma vida melhor.
Ao adentrar a serra, Varela explora os comércios locais, todos bem humildes com o
intuito de oferecer o básico para a subsistência local. A cidade artificial é formada
unicamente por homens, que com suas roupas simples e em condições extremamente
precárias, sobrevivem com um fim único: a riqueza do ouro.
A abordagem descontraída do repórter-personagem ao mostrar como esses homens
desesperados continuam alegres e bem-humorados apesar das circunstâncias extremas e
perigosas do trabalho de garimpo, traz leveza que se contrapõe transforma a à tristeza
imposta pela situação. Ao entrevistar quem vai embora, e quem continua lá há tempos sem
sucesso, Varela exibe a ilusão e desilusão que acometem os trabalhadores. É interessante a
presença da brasilidade em diversos momentos, tanto por meio da trilha sonora, quanto por
meio da imagem.

39
Caramujo-Flor Experimentação da Linguagem

Direção: Joel Pizzini (1988, 26')


O curta de 1988, de Joel Pizzini, é baseado nos poemas de Manoel de Barros e traz as
aventuras do poeta Cabeludinho, uma pessoa do mato e apaixonada pelo mar. Através de
fragmentos muitas vezes oníricos, acompanhamos a sua vida pelos mais variados cenários
tropicais, intercalados entre paisagens da cidade, do campo e da praia.
Trazendo a narrativa paralela de um homem da terra, ambos são comparados a lesmas,
que sempre carregam o pantanal consigo. Os personagens se assemelham e se conectam
ao final da jornada, quando estão, ironicamente, separados pelas paisagens.
Os movimentos de câmera trazem uma certa contemporaneidade para a filmagem, com
jogos de luz sofisticados e angulações inusitadas. Explorando a mistura de imagens e sons
e a intercalação de colorido com monocromático, a obra é uma verdadeira poesia visual. As
falas transmitidas em monólogos poéticos quebram a quarta parede, fugindo da estrutura
fílmica tradicional. Na parte sonora, canções acapella e acompanhadas de viola se fazem
presentes, assim como o jazz e o som marcante dos três ambientes destacados no curta. É
interessante notar a presença de uma imagem tátil carregada de texturas, quando o filme
retrata superfícies e a pele dos caramujos que dão nome ao curta.

40
Oiapoque – L’Oyapock Experimentação da Linguagem

Direção: Lucas Bambozzi (1998, 12')


Oiapoque - L'Oyapock é um curta-metragem documental que acompanha a vida na
fronteira entre a cidade de Oiapoque, no Brasil, e a cidade de St. Georges de L’Oyapock, na
Guiana Francesa.
O curta é marcado pela variação de flashes de luzes, jogos entre títulos e subtítulos,
ângulos curiosos, ruídos, sobreposição sobre texturas e variações nos cortes e velocidades
das cenas. Esses efeitos em conjunto com as cores das imagens de pouca definição
destacam o desacolhimento que a região traz aos seus habitantes.
A narrativa retrata quem quer partir do Brasil para o garimpo da Guiana, e quem já está no
garimpo. Os moradores relatam sobre a hostilidade, as dificuldades e riscos da migração e
do trabalho de extração realizado na mata, repleta de cobras e outros animais selvagens
característicos da Amazônia. Prostitutas, crianças, viajantes, imigrantes e trabalhadores,
são esses os habitantes trazem em seus depoimentos desejos e decepções acumuladas,
alguns com esperança cega em um futuro repleto de ouro, outros descrentes de que
qualquer coisa boa possa aparecer por lá.

41
42
CINEMA DA RETOMADA
Por Gabriel Vieira e Victor Guandalini
Guerra de Canudos Cinema da Retomada
Direção: Sérgio Rezende (1996, 160')
O filme aborda a Guerra de Canudos que aconteceu entre os anos 1896-1897 na cidade de
Canudos, interior da Bahia. Um grupo chamado Belo Monte, liderado por Antônio
Conselheiro, luta contra a República que se instaurou a pouco tempo no Brasil. Do outro
lado, o exército Brasileiro tenta de todas as formas acabar com toda essa misticidade e
derrubar os rebeldes.
O filme retrata desde a fundação de Belo Monte até a sua queda, com a morte de
Conselheiro. Para isso, faz uso de personagens carismáticos de ambos os lados. Por parte
dos rebeldes, mostra uma família que se juntou ao grupo, porém antes disso uma das filhas
do casal, foge e 3 anos depois, acaba se apaixonando por um soldado, ficando em um
embate entre salvar sua família ou permanecer junto ao exército.
De forma complexa, toda a trama dos personagens, sobretudo da principal, Luiza,
interpretada por Cláudia Abreu, é muito bem executada, na qual sua trajetória e decisões
difíceis são bem justificadas. A seca, a fome, a pobreza e o fanatismo religioso como única
esperança para a situação ali vivida, também estão no filme.
Por fim, o longa é uma bela representação de toda a situação histórica, apresentando-se
com um roteiro bem estruturado que se aprofunda de ambos os lados da guerra, intrigando
o público, fazendo-o pensar.

43
Baile Perfumado Cinema da Retomada

Direção: Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1996, 93')

O filme é baseado no documentário de Benjamin Abrahão dos anos de 1936-1937, quando


filmou o grupo de cangaceiros liderado por Virgulino, também conhecido como Lampião.
Baile Perfumado aborda desde o momento em que Abrahão vai se aproximando de pessoas
importantes para descobrir o paradeiro de Lampião, até a sua morte. Durante a obra, é
explicitado que tanto do lado dos cangaceiros, quanto dos militares, havia muita violência,
com mortes, torturas, abusos sexuais de mulheres e decapitações. O longa também mostra
como as pessoas da época eram impactadas pela fotografia, pois naquele tempo era algo
raro. Por causa disso, Abrahão, que tinha acesso a máquina, conseguia se aproximar e pedir
favores a grandes figuras, que o ajudavam, como é o caso de Virgulino, que é apresentado
no filme como uma pessoa vaidosa. Também é notável que o filme diversas vezes usa o
contra-plongée para engrandecer ou causar medo de figuras como militares ou até mesmo
os cangaceiros.

44
Central do Brasil Cinema da Retomada

Direção: Walter Salles (1998, 115')


O filme conta a história de Dora (Fernanda Montenegro) que trabalha escrevendo cartas
para pessoas pouco letradas na estação Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro.
Ainda que a escrivã não envie todas as cartas que escreve - as cartas que considera inúteis
ou fantasiosas demais -, ela decide ajudar um menino (Vinícius de Oliveira), que perdeu a
mãe, a tentar encontrar o pai que nunca conheceu, no interior do Nordeste.
A partir disso, começa uma história de superação e amor entre os dois, uma vez que a
personagem se torna a “mãe” do garoto. Com um roteiro bem estruturado, há uma relação
crescente entre ambos e o desenvolvimento e mudanças dos personagens se tornam um
ponto chave do filme. A atuação de todo o elenco, principalmente do jovem Vinicius de
Oliveira, ajuda a trazer ainda mais empatia ao espectador e envolvê-lo com o universo que
está sendo retratado.
Todos os cenários apresentados no filme são dinâmicos e demonstram diversos aspectos
da nossa realidade.

45
Eu, Tu, Eles Cinema da Retomada

Direção: Andrucha Waddington (2000, 107')


O filme acompanha a história de Darlene, uma mãe solteira que ao voltar para sua terra de
origem, acaba por se casar com Ozias, um homem mais velho e com estabilidade financeira.
Porém, ela não está contente com o casamento, e por conta disso se envolve com outros
homens.
O interessante, é que, apesar da infidelidade, a obra consegue fazer com que os
espectadores criem uma afinidade com a Darlene, pois logo após o casamento com Ozias,
ele se torna um marido negligente. Já na fotografia, podemos notar um outro ponto. A
história se passa no nordeste, em uma área seca e quente, e para retratar esse ambiente,
foi escolhido uma paleta de cores quentes, que passa a sensação de intenso calor.

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Auto da Compadecida Cinema da Retomada
Direção: Guel Arraes (2000, 104')
O Auto da Compadecida acompanha a história de Chicó e João Grilo, que sempre acabam
em confusões pelas ideias inusitadas de João. O filme é baseado nas obras Auto da
Compadecida; O Santo e a Porca e; Torturas de um Coração, de Ariano Suassuna. O Auto da
Compadecida, de forma leve e bem humorada, apresenta diversas das características
comuns nos filmes sobre o nordeste, como: a ambientação seca que retrata o clima árido,
pouca água, fome; a religiosidade forte, tendo a igreja sempre como um ponto importante
no decorrer da história; e os cangaceiros, figuras perigosas, aqui até retratados como
malignos, mas que apesar disso, temente a Deus. Um dos aspectos que chama muita
atenção é a etnia de Jesus. O próprio personagem diz que escolheu se mostrar como um
homem negro, pois sabia dos tipos de pensamento que isso causaria. Apesar disso, existem
diversos comentários racistas de vários personagens, até de João Grilo, que apesar de suas
ações, ainda é o herói da história.

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48
FILMES DE ESTRADA
Por Matheus Martins Hernandes e Pedro Sardeti Dantas
Iracema, uma transa Filmes de Estrada

amazônica
Direção: Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1974, 91')
Iracema (Edna de Cássia), uma jovem índigena, vai à Belém com sua família para pagar
promessas na festa do Círio de Nazaré. Ela permanece na cidade e as novas companhias
que a garota tem a inserem na vida da prostituição. Um dia, ela conhece um comerciante de
madeira, o gaúcho Tião Brasil Grande (Paulo César Pereio), que cruzava a Transamazônica
em seu caminhão e juntos partem rumo a outros lugares do país. A produção teuto-
brasileira funciona como uma retratação da realidade local na época. Tendo a rodovia e o
caminho percorrido por Iracema como guia, o filme denuncia a realidade social que a
propaganda desenvolvimentista da Ditadura Militar escondia, como se a obra fosse algo
milagroso que estava dando emprego aos locais. Filmado nos anos 1970, o longa foi
censurado e estreou oficialmente apenas em 1981.
O Ponto inicial da trama é a prostituição de Iracema que a leva até Tião, personagem que
funciona no filme como a personificação do Estado brasileiro. Temos também as falas
propagandistas da rodovia, o jeito de lidar com as situações na viagem, seus adesivos, entre
eles com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” que são algumas das características. Ao
mesmo tempo, Tião não passa de um trambiqueiro que faz de tudo por dinheiro. As
desventuras da jovem índigena escancaram o outro lado da história, denunciando a
grilagem, o desmatamento, as queimadas, o tráfico de pessoas, a prostituição e a pobreza.
Com um olhar contemporâneo à produção quase cinquentenária, podemos perceber o
machismo empregado nas relações, que causa desconforto.

49
Bye Bye Brasil Filmes de Estrada

Direção: Cacá Diegues (1979, 100')


O acesso à televisão ainda é um privilégio para poucos nos anos 1970. Assim, a Caravana
Rolidei cruza a Amazônia e o nordeste brasileiro levando espetáculos artísticos às pessoas
que não têm acesso ao entretenimento. Após Lorde Cigano (José Wilker), Salomé (Betty
Faria) e Andorinha (Príncipe Nabor) realizarem um show numa cidade, o sanfoneiro Ciço
(Fábio Júnior) e sua esposa grávida, Dasdô (Zaira Zambelli), decidem rumar numa nova
jornada com os artistas.
O filme marca a transição política que o país passava, no fim do período da Ditadura
Militar. No percurso da caravana, o Brasil real se revela por meio de uma mistura cômica e
erótica. As relações amorosas entre os casais são apenas um dos pontos para a potência
reveladora que o diretor propõe mostrar com a produção. A modernização do país entra em
um embate com a colonização que sofremos. Não é à toa que o filme não se chama “Tchau
Tchau Brasil”, o “Bye Bye” provoca o espectador a questionar sobre quem somos e sobre
como é a cultura do nosso país.
Nas complexas relações entre os passageiros da caravana, vemos a ganância mover o
grupo de um lugar a outro em busca de público para as apresentações. De cidade em
cidade, acabam indo para Altamira, no Pará, onde o caminho de cada um dos integrantes
ganha novos rumos. A visão desenvolvimentista em confluência com aspectos estéticos
decadentes e colonizantes é apoiada com uma trilha sonora envolvente.

50
Árido Movie Filmes de Estrada

Direção: Lírio Ferreira (2005, 115')


“Árido Movie” conta a saga de Jonas (Guilherme Weber), um repórter do tempo, que se
desloca pelo interior de Pernambuco para o enterro de seu pai, que fora assassinado. No
caminho, ele conhece Soledad (Giulia Gam), uma cineasta que está fazendo imagens e
entrevistas sobre a água no nordeste. Entre encontros e desencontros, Falcão (Gustavo
Falcão), Bob (Selton Mello) e Vera (Mariana Lima), seus amigos de Recife, também partem
rumo ao interior para apoiá-lo.
Três núcleos se aproximam e se afastam em diferentes momentos da narrativa: o humor
do grupo de amigos, o suspense que paira sobre Jonas e as decisões de sua família, além da
busca incessante por informações e novos conhecimentos da cineasta. No meio das
aventuras e desventuras, nos deparamos com os envolvidos no assassinato de Lázaro
(Paulo César Pereio) e com a família de Jonas que quer que o jornalista vingue a morte de
seu pai.
Com inspirações remanescentes do movimento do manguebeat (inclusive, Lírio é diretor
de “Baile Perfumado”, de 1996), a produção mantém um ritmo de videoclipe, com tons
psicodélicos, além de introduzir os cangaceiros da contemporaneidade, algo que é
incorporado no célebre “Bacurau” (2019), filme composto de diversas rememorações do
cinema. “Árido Movie” coloca o sertão em embate com a capital, por meio de cada um dos
núcleos citados.

51
Andarilho Filmes de Estrada

Direção: Cao Guimarães (2006, 80')


O longa acompanha a rotina de três andarilhos, que vivem pelas estradas, do estado de
Minas Gerais, buscando entender melhor suas formas de interpretar os grandes mistérios
da vida e do universo.
Cao Guimarães impacta os espectadores com o gritante contraste de sua produção: um
documentário, de caráter austero e impessoal, retratando o comportamento imprevisível e
fugaz de indivíduos neurodivergentes. Conduzidos por excelente fotografia e trilha sonora,
somos imersos nesse contexto enigmático e contemplativo da sobrevivência nômade com
recursos escassos. Sem mostrar, ao longo do filme, quais foram as perguntas previamente
feitas, só o que ouvimos é a divagação dos andarilhos acerca de teorias da conspiração e
resquícios de histórias que nem eles próprios parecem se recordar com clareza.
O que resta, ao final do longa, é a reflexão acerca da transitoriedade das coisas. Todo o
contexto da produção parece propor uma interpretação do mundo como uma imensa e
cruel estrada, onde seríamos todos andarilhos.

52
Viajo porque preciso, Filmes de Estrada

volto porque te amo


Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes (2009, 75')
Um nostálgico e melancólico geólogo (Irandhir Santos) registra através de um diário sua
solitária peregrinação à trabalho pelo sertão nordestino, o que torna um prato cheio para os
românticos incuráveis. Intimista e espontâneo a ponto de se assemelhar à um filme-carta,
o longa de Marcelo Gomes e Karim Ainouz trabalha a densidade psicológica do viajante
através de fluxos de consciência e alegorias belíssimas e profundas, sem deixar de lado a
ingenuidade e pacatez do nordeste brasileiro.
Em meio às imagens de pessoas simples mas esperançosas vivendo no sertão árido,
somos sempre acompanhados pela narração do geólogo, que ora desabafa sobre seu
descontentamento em estar longe da amada, ora faz avaliações técnicas acerca da obra de
transposição de um rio (o objetivo de sua viagem para aquele “fim de mundo’’, como o
próprio faz questão de pontuar).
A dinâmica narrativa lenta e as poucas aparições de trilha sonora (que são, em maioria, as
músicas tocando no rádio do carro) ajudam a construir o tom de solidão e amargura, que
expõe sem eufemismos o lado difícil de amar alguém.

53
54
CINEMA INDÍGENA
Por Amanda Siqueira Dias e Mariana Lindner Zoschke
Wai’á Rini, o poder Cinema Indígena

do sonho
Direção: Divino Tserewahú (2001, 48')

A cerimônia de iniciação espiritual dos homens jovens do povo Xavante é abordada pelo
documentário, que revela como o ritual Wai’á acontece durante as semanas de sua
celebração, mostrando as características e segredos desse povo indígena.
O documentário se mostra extremamente relevante para a manutenção da cultura
Xavante, visto que, no trecho em que o pai do diretor está sendo entrevistado pelo filho,
este pede para que ele guarde bem as imagens que estão sendo produzidas, pois o mesmo
não sabia se estaria vivo para o próximo Wai’á, e, caso ele não estivesse, o documentário
serviria para continuar alimentando as crenças das novas gerações nas tradições deste
povo. A obra, tem também um caráter educativo, pois explora os costumes de um povo
indigena que muitas vezes é esquecido nos estudos formativos sobre as sociedades
brasileiras. O filme surpreende e cativa, trazendo costumes que jamais vi em outros locais
pelos olhos do próprio povo, validando seus costumes e crenças sem julgamentos, já que a
obra foi produzida por um membro Xavante, que buscou transmitir como o ritual de
iniciação dos jovens meninos de seu povo se dá, expondo como ocorrem as semanas de
festa nas quais os garotos passam por um rito de sofrimento, para ao final, se mostrarem
fortes e receptivos aos sonhos que terão a partir do término do evento.

55
Corumbiara Cinema Indígena

Direção: Vincent Carelli (2009, 117')


O documentário de origem brasileira denuncia um massacre de indígenas ocorrido em
1985 na Gleba Corumbiara, em Rondônia. Mesmo com evidências claras do crime, filmadas
em 1986 pelo próprio diretor Vincent Carelli, acompanhado do indigenista Marcelo Santos, o
caso caiu no esquecimento e os culpados nunca foram punidos. Dez anos após o ocorrido,
Vincent e Marcelo voltam ao local e encontram dois indígenas sobreviventes, que falam
uma língua até então desconhecida. No entanto, mesmo provando a existência deles e de
outros indígenas isolados, a narrativa construída pelos fazendeiros é a que persiste.
O próprio Vincent Carelli narra o documentário, e esta narração é essencial para o
entendimento da história, pois explica o que está acontecendo de forma didática, tornando
o filme de fácil compreensão, ainda que a história não seja contada de forma linear. Outro
aspecto é que não há legenda durante as falas dos indígenas, reforçando o
desconhecimento da língua tanto pelo diretor e sua equipe como pelos espectadores. Uma
das cenas mais marcantes, na minha visão, foi a fala do advogado dos fazendeiros da
região, Dr. Flausino, que criticou a existência de reservas indígenas e parabenizou os
Estados Unidos pelo crescimento econômico após o extermínio dos povos nativos,
pensamento que ilustra muito bem a visão de seus clientes.

56
As Hiper Mulheres Cinema Indígena

Direção: Takumã Kuikuro, Leonardo Settte, Carlos Fausto (2011, 80')


Os indígenas Kuikuro se juntam para realizar o desejo de uma anciã que fica doente. A
senhora quer cantar no ritual Jamurikumalu pela última vez, esta é Os indígenas Kuikuro se
juntam para realizar o desejo de uma anciã que fica doente. A senhora quer cantar no ritual
Jamurikumalu pela última vez, nesta grande festa que reúne as mulheres para celebrar.
O documentário foi produzido pelo projeto Vídeo nas Aldeias e já recebeu diversos
prêmios. O filme apresenta o processo que antecede a ocorrência do evento Jamurikumalu,
um ritual de canto e dança feminino que busca unir gerações e mostrar a força das
mulheres. O documentário retrata com muita sensibilidade e leveza o cotidiano e as
relações dos indígenas fazendo com que o público compreenda e se sinta familiarizado com
os costumes deste povo, mostrando suas relações familiares e afetivas, e como seus
costumes são passados de geração à geração através da oralidade, com os mais velhos
ensinando para as novas gerações suas tradições e canções. O filme demonstra como é a
cultura dos Kuikuros, sem julgamentos e floreios, com cortes e planos simples de um
documentário que não busca seduzir o público apenas com imagens belas, mas pelo
conhecimento que transmite.

57
Yãmiyhex – As Cinema Indígena

mulheres-espírito
Direção: Sueli Maxakali e Isael Maxakali (2019, 76')
O documentário Yãmĩyhex – as mulheres-espírito é dirigido por uma dupla indígena do
povo Maxakali, que busca retratar de perto o ritual de seu povo, conhecido como Yãmĩyhex,
trazendo uma visão de dentro dos processos e ritos que acontecem durante esta cerimonia.
O documentário se passa na Aldeia Verde Maxakali e retrata a partida das Yãmĩyhex desta
localidade. O evento para a despedida destas mulheres-espírito dura em torno de uma
semana e exige que diversas ações tradicionais sejam realizadas durante este processo. O
filme gera curiosidade em torno dos mistérios deste povo, já que não revela tudo para o
público, em respeito aos segredos que as autoridades da aldeia primam manter, e pela
crença no poder de dedução das ações retratadas por parte dos diretores, que já conhecem
e vivem a cultura. A produção respeita as tradições do povo Maxakali e não tenta aproximá-la
da cultura não-indígena, demonstrando as especificidades desta aldeia de forma coerente
com a realidade. As cenas são gravadas de uma perspectiva inusitada, do ponto de vista de
quem participa dos rituais ativamente, gerando planos mais informais, parecidos com o que
vemos em vídeos gravados em primeira pessoa para as redes sociais.

58
A última floresta Cinema Indígena
Direção: Luiz Bolognesi (2001, 74')
O filme que conta com características documentais e ficcionais, retrata de modo poético
a história e a realidade do povo indígena Yanomami, mais especificamente da Aldeia
Watoriki, em Roraima. O longa intercala cenas cotidianas, encenações e discursos do xamã
Davi Kopenawa Yanomami, que escreveu o roteiro junto com o diretor Luiz Bolognesi.
Para mim, logo no início, Davi deixa claro qual é a intenção do filme, ao explicar que os não-
indígenas não conhecem o povo Yanomami, sendo necessário que o xamã entre no mundo
dos brancos para espalhar a história de seu povo. Assim, tive a impressão de que o foco da
obra não é denunciar o garimpo ilegal crescente na região, ainda que isso seja tratado com
devida importância no documentário, mas acima de tudo levar a história dos Yanomami ao
conhecimento de outras pessoas e mostrar que esta cultura merece ser respeitada e
preservada. Também tive a impressão que o diretor se preocupou em ressaltar a beleza da
Amazônia, utilizando planos abertos para destacar as paisagens ao longo de todo o filme, o
que colabora para a linguagem poética com que a história dos Yanomami é contada. Com
narrativa fluída e de fácil compreensão, o filme é extremamente relevante na atualidade
devido ao cenário político do país, que favorece a mineração ilegal de ouro em territórios
indígenas, colocando em risco a vida desses povos ou, como o xamã Davi Kopenawa cita,
liberando espíritos malignos. Ao ganhar notoriedade, obras como esta contribuem para
conscientizar a população brasileira e fortalecer as culturas indígenas.

59
60
CINEMA
CONTEMPORÂNEO
Por Giovanna M. da Silva Cebulski e João V. Oliveira de Souza
O Céu de Suely Cinema Contemporâneo

Direção: Karim Aïnouz (2006, 90')


“[...] em jeito de menino que está sempre indo embora
à mesma hora e que amanhã se tudo der certo
voltará à mesma hora para o mesmo amor
a mesma mesa a mesma explosão
com toda certeza a mesma fuga [...]”
(Matilde Campilho, Conversa de fim de tarde depois de três anos no exílio)

Hermila (Hermila Guedes), depois de ter fugido para São Paulo, onde passou os últimos
meses com o namorado, retorna à sua cidade-natal, Iguatu-CE, com o filho no colo,
esperando que o marido venha nas semanas seguintes. Ao se dar conta de que ele não vai
voltar, de que fora abandonada, Hermila decide rifar uma “noite no paraíso”, uma noite ao
seu lado, a fim de comprar uma passagem para longe, bem longe dali. O filme, que no
festival de Veneza foi associado pelos italianos ao neorrealismo, se aproxima do que
conhecemos como road movie, como “filme de estrada”, de viagem, de deslocamento (não à
toa as sequências iniciais e finais: “aqui começa a saudade de Iguatu”), e talvez seja esse o
ponto central da narrativa: os deslocamentos de Hermila: Hermila que se desloca a uma
identidade outra — Suely — e que a rejeita na mesma medida (“não conheço nenhuma
Suely!”), Hermila que não se interessa pelo destino de sua viagem, pelo que encontrará em
sua chegada, mas pelo deslocamento em si mesmo. E sobretudo, pelo deslocamento em si
mesma: pela busca identitária e geográfica de si — o que Ainouz comparou a um “peixe fora
d’água”: se debatendo, buscando por um espaço em que caiba.

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Girimunho Cinema Contemporâneo

Direção: Helvécio Marins Jr., Clarissa Campolina (2011, 90')


No sertão mineiro, “Girimunho” dispõe das fronteiras opacas entre o ficcional e o
documental, o inventado e o real, se valendo das histórias de vida de seus personagens para
constituir seu roteiro, no qual os atores interpretam a si mesmos. Dona Bastu, a
protagonista do filme, acaba de ficar viúva, e o seu luto, e os temas a ele imbricados,
apontam para a morte e o tempo que demarcam boa parte do longa-metragem. “Girimunho”
não se trata de um filme essencialmente narrativo; a opacidade fronteiriça da ficção e do
documentário estende-se a toda a obra. Na verdade, as tradições regionais, as percussões,
as rimas, o Candomblé (fortemente representados pela figura de Maria, grande amiga de
Bastu) e o próprio ritmo das imagens sugerem e revelam um outro modo cinematográfico,
que privilegia o que há de sensorial, elevando o filme a um deslocamento temporal muito
apropriado de si mesmo, muito apropriado do que há de “natural” e “real” na vida daquelas
personagens — no descascar legumes, no coser, no fantasiar — que é da própria vida. O
tempo e a vida são evocados pelos diálogos: “a gente não começa nem acaba; a gente não é
nem velho nem novo: a gente vive.”

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Joaquim Cinema Contemporâneo

Direção: Marcelo Gomes (2017, 102')


Joaquim é um filme de época dirigido por Marcelo Gomes, lançado em 2017 e indicado ao
Grande Prêmio do Cinema Brasileiro como Melhor Roteiro e Melhor Efeito Visual.
O longa-metragem conta a história de como Joaquim José da Silva Xavier, um dentista
nascido em Minas Gerais, que liderou a Inconfidência Mineira e ficou conhecido como
Tiradentes, considerado um mártir na história brasileira, traído por aliados e decapitado
pela Coroa Portuguesa.
A obra audiovisual inicia-se já com uma cena marcante, podemos observar a cabeça
decapitada de Tiradentes em meio a uma chuva, enquanto o mesmo narra sua história no
pós-morte.
Há diversas cenas em que a câmera está em movimento junto com os personagens, o que
deixa a obra mais empolgante do início ao fim. Nelas, é possível observarmos cores fortes
da obra e muitos dos cenários se passam nas matas de Minas. Há há também algumas
cenas da obra cinematográfica que se passam em um quilombo, onde Joaquim tem contato
com a revolta dos escravos. A narrativa foca na vida de Joaquim antes de se tornar um herói
Nacional, tornando a figura de Tiradentes mais humanizada.

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Azougue Nazaré Cinema Contemporâneo

Direção: Tiago Melo (2018, 80')


Azougue Nazaré é um filme nacional do diretor Tiago Melo, lançado em 2019. Que se passa
na cidade de Nazaré da Mata, Pernambuco. A história mostra a resistência dos moradores
em aceitar as diferentes religiões presentes na cidade.
De um lado o Maracatu, ritual de origem afro-brasileira que envolve música e dança, e do
outro os fiéis da igreja Evangélica. Entre os personagens, podemos dar destaque ao
relacionamento de Catita e Darlene. Catita se veste de mulher para participar da folia de
Maracatu, escondido de sua esposa, já que a mesma é evangélica e abomina o ritual.
Também observamos um crime de intolerância religiosa cometido por cristãos da igreja
Evangélica de Nazaré da Mata contra um Pai de Santo da cidade.
A obra tem uma fotografia incrível, com cores vibrantes nas cenas onde aparece a dança
folclórica e tons mais frios nas cenas da igreja cristã, deixando claro o contraste entre as
duas religiões. Os planos chamam a atenção nas cenas em que acontece a fuga do Pai de
Santo, que fazem com que o espectador sinta a tensão dos personagens. Outra cena
relevante é quando Catita vai à igreja da esposa e afirma ser do Maracatu até a morte, após
descobrir que fora enganado e traído pelo pastor e pela sua esposa.
O longa-metragem mostra o preconceito e a intolerância religiosa que pessoas que
creem em religiões de matriz africana sofrem em nosso País.

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Bacurau Cinema Contemporâneo

Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles (2019, 131')


Bacurau é uma pequena cidade no interior do sertão nordestino brasileiro que, de
repente, some do mapa. Aos poucos, outros acontecimentos de ordem desconhecida
provocam estranhamento: drones sobrevoando a cidade, um caminhão-pipa alvejado e
assassinatos. Quando a chegada de alguns turistas levanta suspeitas, os moradores de
Bacurau se organizam para enfrentá-los. Assim, “Bacurau” é assumidamente um filme de
gênero, fortemente atravessado tanto por tradições cinematográficas de suspense (a
escola da cidade se chama João Carpinteiro, referência direta ao cineasta John Carpenter)
como, ainda, pelo gênero do faroeste, assimilado no Brasil como nordestern. Agraciado
com o prêmio do júri no Festival de Cannes de 2019, “Bacurau” se tornou instantaneamente
um clássico, por concatenar grande domínio da linguagem cinematográfica com questões
sociais e políticas latejantes no Brasil contemporâneo. É um filme catártico sobre
identidade, memória, saberes tradicionais, violência e resistência, reivindicando o status de
humanidade negado a tantas populações subjugadas e atravessadas por histórias de
dominação: “quem nasce em Bacurau é gente!”

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