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O PLANETA PROIBIDO EDITORIAL

P or vezes, há filmes que insis-


tem em não ser esquecidos ou
deixados para trás. The Swimmer
de 1968 (realização de Frank Perry) é
um desses filmes, uma estranha obra Quando o herói regressa a casa da ficção científica pós-apocalíptico A
balançada entre a literatura e cinema, sua viagem, qual Ulisses, não é ne- Canticle for Leibowitzz de Walter Miller
baseada num conto de John Cheever. nhuma família calorosa que o espera, Jr. em que a idade da luz cede à ida-
Vou contar-vos a história até ao fim apenas ruína. O dia de verão termina de das trevas e assim por diante? Ou
para que compreendam melhor a for- em chuva e tristeza devastadora. Mas seremos como a civilização evoluída
te impressão que me causou. Começa naquele excepcional dia na vida do na- dos Krell em O Planeta Proibido que li-
com um belo dia de Verão e o protago- dador, observámos e acreditámos na bertou os seus demónios interiores no
nista (Burt Lancaster) irrompe na casa sua grandeza. mundo, desconhecendo o mal que isso
de uns amigos que tomam banhos de Posto isto, porque me demorei tanto iria causar?
sol à beira de uma piscina. É acolhido na descrição deste filme surpreenden- Talvez ainda seja cedo demais para
com amizade e simpatia e, enquanto temente bom? Porque todos nós so- responder a estas questões, mas a fic-
fita a paisagem, decide regressar a casa mos a personagem do nadador neste ção científica muitas vezes já as colo-
nadando nas piscinas que atravessam o momento, entregues à fantasia e a uma cou por nós e deu respostas. Muitas
vale rumo à sua casa. normalidade ilusória. Há poucas coi- dessas respostas não são animadoras e
E assim vai ele, de piscina em pis- sas neste momento na ficção que pos- certamente ninguém quer que o mun-
cina, desde manhã ao crepúsculo. Por sam chegar aos calcanhares da realida- do se torne o local abandonado e sem
vezes é bem recebido, por vezes é des- de cada vez mais absurda e sombria. vida no ano de 2026 como descrito
prezado pelos donos das piscinas. O As notícias do dia-dia mostram um no conto de Ray Bradbury, There Will
que começa por ser uma aventura es- mundo cada vez mais doente. O que Come Soft Rains.
plendorosa termina a revelar algo ne- era impensável passou a ser, de súbito, Mas essas histórias são apenas ad-
gro e perturbante. Vamos compondo uma possibilidade. vertências, não factos. Os monstros
as peças do puzzlee sobre a vida deste A estabilidade que a minha geração do id, do subconsciente mais negro –
homem em cada casa que frequenta. conheceu enquanto crescia já desapa- a ganância e ambição –, podem ainda
Encontra uma bela jovem no caminho receu por entre as brumas da nostal- ser combatidos com razão, bom-sen-
que, por breves momentos, alinha na gia e agora enfrentamos uma parte do so, compaixão e boa-vontade. Podem
sua aventura. Mas o dia está a ficar frio mundo de novo a ser quebrado por ser combatidos enfrentando a realida-
e as pessoas cada vez mais hostis. O erros que não são nossos. As vidas de de uma vez por todas e recusando
nosso herói começa a soçobrar perante tornaram-se demasiado insuportáveis com todas as forças o fundamentalis-
o peso da realidade. Quase no fim do ou demasiado aborrecidas. E o cansa- mo, as injustiças gritantes e a perda da
percurso, enfrenta uma ex-amante que ço não permite virar a página e forçar dignidade humana.
não consegue perdoá-lo por ter sido uma mudança. Deixamos outros to-
rejeitada. A fachada quebra-se. Des- mar as decisões importantes por nós
cobrimos que este homem está social- enquanto prosseguimos com as nos-
mente acabado, imerso numa fantasia sas vidas. Mas podemos facilmente ser
que nega a todo o custo a realidade e enganados e, de um dia para o outro,
profundamente alheado dos factos trá- tudo o que passamos a ouvir são dis-
gicos que abalaram a sua vida. cursos plenos de fanatismo.
Há uma batalha a decorrer sobre
como será o nosso mundo no séc.
XXI. Até agora, aparentemente esta- Safaa Dib é coordenadora editorial
mos condenados a um interminável da editora Saída de Emergência e faz
ciclo de repetição de História em que parte de organização da convenção
os erros nunca são aprendidos. Sere- anual do Fórum Fantástico.
mos como a civilização do livro de

BANG! /// 1
ilustradordacapa
Anita Carneiro e Ricardo Garcês

2 //
/// BAN
/// ANG!
G!
orthern-Winds é um projecto conjunto de Anita
Carneiro e Ricardo Garcês aliando áreas artísti-
cas da experiência de cada um.

Anita Carneiro, licenciada, dedica-se ao estudo e de-


senvolvimento de guarda roupa de carácter histórico
para reconstituição e eventos.

Ricardo Garcês, designer de produção de ambientes,


encontra no mundo digital uma forma de expressão.
Artista digital, tem trabalhado com estúdios de efeitos
visuais em Portugal e no estrangeiro. Duas das suas
obras foram publicadas nos livros Exposé 5 e Mat-
tepainting 2, da Ballistic Publishing a convite de Max
Denison, designer em filmes como Starwarss e Lord of
the Rings.s

Em 2010 nasce o projecto Northern-Winds. Inicial-


mente criado com o intuito de uma loja de artigos
medievais, rapidamente amadurece e transforma-se
num atelier de desenvolvimento artístico para cinema,
televisão e publicidade.

“Como forma de promoção decidimos fazer uma hu-


milde curta metragem. Após vários meses de trabalho,
lançámos “The Hunt”, com música composta pelo
nosso grande amigo Mestre Pedro Macedo Camacho
que escreveu o "Requiem Inês de Castro" cuja última
actuação foi em Outubro de 2012 no primeiro concer-
to digital do mundo, e que nos brindou com um tema
épico!”

Empresas e Produtoras podem encontrar no atelier


solução para eventos, filmagens, fotografia e aluguer
de guarda roupa, na temática medieval, fantasia e fic-
ção científica.
A mais recente participação foi no documentário
sobre Lisboa pré-terramoto de 1755, o qual irá estar
em apresentação no Museu do dinheiro do Banco de
Portugal.
Em 2013 a Northern-Winds irá desenvolver mais
uma curta metragem no seu universo que irá ser mais
ambiciosa que a primeira.

Links:
www.northern-winds.com
www.ricardogarces.com
www.musicbypedro.com
www.facebook.com/northernwindsworkshop
www.youtube.com/northernwindschannel

BAANGG! //
BANG / /3
14 30

24
42

57 64

67 72
Não Ficção 38
02 Ilustradoor da capa
Anita Carneiro
rneiro e Ricardo Garcês
57 A Fantasia e a Ficção Científica na Era da Interactividade

08 Fantasia e Realidade: A Fatrasia João Campos


ares
David Soares
67 As Crónicas de Dragonlance

10 Metais Pesados: Por toda a Parte SSafaa


f Dib
Fernando Ribeiro
74 Távola Redonda

12 Enciclopédia da Estória Universal Vários autores


Afonso Cruz

14 Espelho meu, espelho meu…


Inês Botelho
Ficção
30 O Senhor do Vento

20 As Mulheres de Negro
António Monteiro
42
Gabriel Réquiem
O Cemitério do Diabo

24 As Cidades na Ficção Científica - Episódio 1


João Rosmaninho
64
Pedro Ferreira
O Vampiro

38 Evocando Sérgio Toppi


João Lameiras
72
Jan Neruda
Artigo 56.º

49 A Invasão dos Ladrões de Corpos


João Monteiro
78
Ágata Ramos Simões
Arquivo Morto
Gilmar Fraga e Paulo Stenzel

PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE A COLECÇÃO BANG! OU A EDITORA SAÍDA DE EMERGÊNCIA VISITE-NOS EM: SAIDADEEMERGENCIA.COM
Revista Bang! 14 / Abril de 2013 ISBN: 978-989-637-534-8 Propriedade: Edições Saída de Emergência. Todos os direitos (e mais alguns) reservados. Director e escravo das galés: Luís Corte Real
Editora (procurada pela Interpol): Safaa Dib Direcção de arte e catering: Saída de Emergência Colaboradores explorados nesta edição: Alexandra Rolo, André Nóbrega, Antó-
nio Monteiro, Filipe Homem Fonseca, Inês Botelho, Joana Neto Lima, João Barreiros, João Campos, João Lameiras, João Leitão, João Monteiro, João Rosmaninho, Marco Lopes, Nuno
Duarte, Pedro Andrade, Sofia Romualdo. Autores e outros convidados sem voto na matéria: Afonso Cruz, Ágata Ramos Simões, David Soares, Fernando Ribeiro, Gabriel Réquiem,
Gilmar Fraga, Jan Neruda, Paulo Stenzel, Pedro Ferreira, Ricardo Garcês. Redacção e solário: Rua Adelino Mendes, nº152, Quinta do Choupal 2765-082 S. Pedro do Estoril, Portugal
Impressão (gralhas incluídas): Printer Portuguesa Tiragem de revirar os olhinhos: 8500 Copyright: Textos e imagens propriedade da editora e/ou dos respectivos autores, etc e tal.
Nota: os preços das lojas Fnac anunciados nesta revista consideram-se correctos salvo erro, gralha tipográfica ou intervenção alienígena.

4 /// BANG!
bang
g!
colecção

só literatura fantástica
[Resumo das novidades Por Luís Corte Real / editor]
Lançamentos da colecção Bang! da primavera / verão de 2013

Chegou a crise, a austeridade, o medo, uma espécie de distopia que só


existia nos livros de História e nos de ficção científica. Mas de ficção cien-
tífica percebemos nós: para que haja um final feliz os heróis têm de ser
engenhosos, lutar e resistir. É o que nós estamos a fazer, e os nossos lei-
tores connosco. Por outras palavras: a colecção Bang! vai continuar e a
revista Bang! também. Certamente que as novidades mensais não serão
tantas, os riscos terão de ser repensados e o marketing ajustado, mas es-
tamos a trabalhar em formas alternativas de levar a cultura do fantás-
tico até aos nossos fãs e leitores. Como por exemplo, a Bang! Online, uma
plataforma para todo o mundo português, com actualizações diárias de
contos, ensaios, críticas, entrevistas, e tudo aquilo que os nossos fãs que-
rem ler. E com a colaboração regular dos grandes nomes que todos nós
nos habituámos a ver nestas páginas, sejam eles portugueses, brasilei-
ros, ou de qualquer outro ponto do globo.

ABRIL unir para enfrentar o mal, uma tarefa que


se revela mais difícil do que o planeado.
apenas na memória de feitos há muito
realizados. Perante um feudo assola-
do pela seca, Dunk e Egg envolvem-se
Escondida A Espada Ajuramentada numa disputa de território e tudo deve-
(BD) rão fazer para alcançar a paz entre am-
de P.C. Cast + Kristin Cast
bos os lados que parecem estar conde-
de George R.R. Martin
nados à guerra.
É lançado um novo volume da saga da
Casa da Noite onde são feitas novas reve- A dupla Dunk & Egg está de volta com
lações sobre a luta de Zoey Redbird e os mais uma aventura em Westeros, cerca R. A. Salvatore num pack
seus amigos para combaterem o mal. A de 100 anos antes do início dos eventos económico
verdade sobre Neferet é revelada e o mal das Crónicas de Gelo e Fogo. Sor Dunk faz-se de R.A. Salvatore
é exposto, mas a vampyra está longe de à estrada junto com o seu companheiro
se dar por derrotada e inicia uma série de Egg e chegam ao feudo de Sor Eustace, A trilogia das Planícies Geladas regressa
ataques devastadores. Todos terão que se um cavaleiro idoso cuja glória sobrevive num pack económico. Para quem ainda
não conhece o famoso elfo negro Drizzt mundo de paisagens estranhas e mágicas,
do’ Urden tem aqui a oportunidade para ligadas apenas por pontes – pontes que
descobrir um pouco mais sobre o mundo poderão levá-lo para onde realmente per-
criado por R. A. Salvatore com persona- tence, e não para onde deseja ir…
gens inesquecíveis.

Assassin’s Creed – Renegado


de Oliver Bowden JULHO
O legado dos Assassinos regressa em
força num cenário do século XVIII, na 4º volume da saga Acácia
América do Norte. Depois de mais de (título a definir)
vinte anos de conflito, as treze colónias de David Anthony Durham
americanas e a Coroa Britânica estão à A SDE planeia publicar em Julho o quarto
beira de uma guerra total. Dos destroços, volume da saga Acácia que dá continuida-
emerge um novo assassino. De ascendên- de ao enredo arrebatador e surpreendente
cia Mohawk e sangue britânico, a sua luta Dragões de uma Noite que Durham nos habituou a ler.
pela liberdade e justiça será forjada nas de Inverno
chamas da revolução.
de Margaret Weis & Tracy Hickman

O segundo volume das Crónicas de Dra-


MAIO gonlance retoma as aventuras do nosso
grupo de companheiros que partem em
busca da lendária orbe e lança de dragão.
Windhaven Os perigos aumentam e as emoções atin-
de George R.R. Martin gem o rubro na guerra pelo destino de
Krynn.
Um dos mestres da literatura fantástica
está de regresso numa parceria com Lisa Pack George R.R. Martin
Tuttle e desta vez oferecem-nos o mara- de Vários Autores
vilhoso mundo de Windhaven. Maris de
Amberly, filha de um pescador, foi criada Mais um fabuloso pack de George R. R.
por um voador e nada mais deseja do que Martin direccionado para novos leitores da
conquistar os céus de Windhaven. A sua saga e como oferta dois livros da colecção
ambição é tão forte que a jovem desafia Bang! e um brinde especial.
a tradição para se juntar à elite. Mas cedo
irá descobrir que nem todos os voadores
estão dispostos a aceitá-la e terá de lutar e
arriscar a vida pelo seu sonho. JUNHO

Depois da Terra ÚLTIMOS LANÇAMENTOS DA COLECÇÃO BANG!


de Peter David
198. O Prisioneiro da Árvore
A SdE tomou a iniciativa de publicar o livro Marion Zimmer Bradley
oficial de um dos filmes de ficção científica 199. Lisboa no Ano 2000
que maior sucesso terá em 2013 realizado Vários autores
200. Acácia – Outras Terras
pelo conhecido M. Night Shyamalan e ba-
David Anthony Durham
seado numa história de Will Smith. Depois 201. Dragões de um Crepúsculo de Outono,
da Terraa centra-se na relação familiar de pai vol. 1
e filho num ambiente apocalíptico, desco- Margaret Weis & Tracy Hickman
nhecido e perigoso. Após uma tempestade 202. Mago – A Filha do Império
de asteróides atingir a nave onde viajavam, Raymond E. Feist & Janny Wurts
os dois despenham-se num novo mundo 203. God of War
Matthew Stover & Robert E. Vardeman
que parece estranhamente familiar...
204. Escondida
P.C. Cast + Kristin Cast

Ponte de Sonhos 205. Assassin’s Creed - Renegado


Oliver Bowden
de Anne Bishop 206. Windhaven
George R. R. Martin & Lisa Tuttle
Regresso a Efémera da autora Bestseller 207. Dragões de Uma Noite de Inverno, Vol.2
do New York Times, Anne Bishop. É um Margaret Weis & Tracy Hickman
BANGG! ///
BA //// 7
E
m meados te com acrobacias de inspiração árabe
da Primeira que se aproximavam muitíssimo da
Grande Guer- breakdance contemporânea: em suma,
ra, no ano de era puro dadaísmo avant la lettre.
1916, nasceu Creio que a Fatrasia foi, certamen-
em Zurique te, seminal para o desenvolvimento de
no clube noc- outro género, com cujo nome rima: a
turno Cabaret Fantasia – que, até à data, não existia,
Voltaire um fora da hegemonia mitológico-religiosa,
movimento enquanto família de narrativas auto-coe-
artístico que se internacionalizou com rentes, algo que só se cristalizou a partir
grande popularidade: o Dadaísmo, cria- do século XVIII. O conceito de “fanta-
ção do poeta e músico romeno Tristan sia” enquanto modo fantástico de nar-
Tzara e do poeta alemão Hugo Ball rar ainda não tinha, sequer, sido fixado:
(fundador e dono do Cabaret Voltaire). na Península Ibérica medieval, assim
Buscando aleatoriamente o nome à pa- como no Norte de África e no Próxi-
lavra francesa para “cavalinho-de-ba- mo Oriente, chamava-se fantaziiâ, que é
louço” (embora também possa ter um nome árabe, aos exercícios equestres
originado de uma conhecida marca de corrida e destreza cavaleiresca, por
homónima de loção para o cabelo), o exemplo, não havendo relação particu-
movimento artístico Dada pretendia Hugo Ball lar nem especial entre essa palavra (que
romper com os códigos culturais e os (fundador e dono do Cabaret Voltaire)
provém do étimo grego phantasia, com
valores da sua época, considerados o significado de aparição e ilusão) e o
culpados pelo conflito mundial, impri- mundo literário coevo. Contudo, a par-

fantassia e
realid
dade
A Fatrasia
por David Soares
p

mindo para efeito sanatório uma recei- d


so género literário medieval: a Fatrasia. tir do século XVI já se encontram obras
ta exclusiva de exposição ao absurdo, O étimo de Fatrasia provém do oc- que, na esteira dos cânones da Fatrasia
através de obras de estética revolucio- citano (língua medieval, falada no Sul (usando temas “popularuchos” – o re-
nária – colagens de diversos materiais e de França e na Catalunha, derivada do fugo: humor grotesco e crítica ao clero e
também engenhosas fotomontagens –, latim, que esteve na origem do fenóme-
mas, em principal, improvisadas inter- no trovadoresco e que possui no cata-
pretações de poesia e música absurdas lão hodierno o seu descendente direc-
que chocavam os espectadores. Impor- to) e consiste na palavra fatras que sig-
ta reter que a premissa dadaísta mais nifica farrapo ou refugo. Nesse feitio,
apurada por cultores como o artista a Fatrasia foi um novo estilo poético
francês Marcel Duchamp e pela poe- que, através da reunião de referências
tisa e artista germano-americana Elsa populares (o refugo), sem sofisticação
von Freytag-Loringhoven (a verdadeira e, sobretudo, sem relação entre si (uma
criadora da famosa “fonte” feita com manta de farrapos, lá está!), apresentava
um urinol atribuída a Duchamp) foi o histórias de forte componente absurda
constante recurso ao refugo – ao lixo (por exemplo, a peça quatrocentista La
– para fazer arte. Foi por essa via que Farce de Maistre Pierre Pathelin, de au-
se criou o conceito de “descontextu- tor anónimo). Não eram obras mora-
alização”, posteriormente adoptado listas, como as fábulas ou os exemplos,
pela Pop Art, pelo Surrealismo e pelo mas exercícios que, hoje, só podem ser
Pós-Modernismo. Porém, a noção de baptizados de puro nonsense. Na pró-
respigar refugo para fazer arte é mais pria província da Langue d’oc, não raro
antiga do que Tzara ou Ball talvez pen- se declamavam Fatrasias musicadas,
sassem e esteve na génese de um famo- enquanto se dançava cabriolescamen- A Farsa de Pathelin

8 /// BANG!
S O F I A RO MUA L DO
http://sofiaromualdo.wordpress.com/
OS LIVROS QUE DEVORARAM O MEU PAI
AFONSO CRUZ
   
Escrito com o público juvenil em mente,
este livro segue a história de Vivaldo
Bonfim, um funcionário das finanças com
uma paixão por romances clássicos, con-
tada pelo seu filho Elias, um rapaz de 12
anos que descobre que o seu pai desa-
pareceu para dentro de um livro. E assim
começa uma viagem que mistura realida-
de e fantasia, com Elias a procurar o seu
pai por entre as personagens criadas por
Dostóievski, H.G. Wells, Ray Bradbury e
Robert Louis Stevenson. A história torna-
se menos importante que o processo de
descoberta e amadurecimento de Elias, que aprende a importância
das histórias e das memórias que criamos entrelaçadas com elas,
enquanto lida com o processo inevitável do crescimento, e a respon-
Breakdancing Medieval sabilidade para lidar com as consequências das suas escolhas. É um
livro sobre livros e sobre as pessoas que neles se perdem (e se en-
à nobreza), se assumem, declaradamente, como autênticas Fan- contram), figurativa e literalmente. / Sofia Romualdo
tasias (mas mais ou menos alegóricas, não apresentando, ainda,
mundos fantásticos auto-contidos), como o inaugural diptíco
de François Rabelais, Pantagruell (1532) e Gargantuaa (1534), e os TVD
influentes Don Quixotee de Miguel de Cervantes (1605 e 1615) e tvdependente.net/
Gulliver’s Travelss de Jonathan Swift (1726). O HOMEM DO CASTELO ALTO
Tenho defendido que o Fantástico foi (continua a ser?) uma PHILIP K. DICK
importante arma de contestação social, uma literatura de rup-     
tura com o sistema, e a Fatrasia medieval contribuiu, decidida- O Homem do Castelo Alto atravessa
mente, com a injecção do absurdo, do delírio mais desbragado gerações e levanta pertinentes ques-
tões filosóficas, tão actuais hoje como
que – isto é importante – não precisava de arreigar-se rigida- na altura em que foi escrito. Clássico da
mente às referências clássicas, nem às hagiológicas. Contribuiu, ficção científica (e não só) publicado em
pois, com esse hibridismo característico de caldear o absurdo 1962, transporta-nos para uma realidade
(o impossível) com o real, que foi redescoberto pelos dadaístas alternativa, onde o Eixo composto pela
e, a partir deles, contaminou a literatura pós-moderna e até o Alemanha Nazi, o Japão Imperial e a Itália
Fascista, triunfa na Segunda Guerra Mun-
chamado “realismo mágico”. dial e domina o mundo. Ali, Philip K. Dick,
Mas existe outra afinidade entre a Fatrasia, a Fantasia e o Da- o conhecido e venerado autor, esboça um
daísmo: a guerra. conjunto de personagens imersas em vá-
A cruzada sangrenta que o papa Inocêncio III instigou con- rias faces da opressão, seja racial, cultural
tra os heréticos cátaros da região da Langue d’oc coincidiu com ou até de género, que se revelam numa narrativa rica e sublime, narrativa
essa assente num tema recorrente nas obras do autor, o questionamento
o período áureo do fenómeno trovadoresco e da Fatrasia. As e a forma como se percepciona a realidade, que abraça a ambiguidade,
reinvenções ocidentais da Fantasia ocorreram em força nos pe- sujeitando-se abertamente a diferentes interpretações, factor crucial para
ríodos subsequentes às duas Grandes Guerras. E o Dadaísmo o enriquecimento de qualquer história. / Pedro Andrade
foi uma consequência directa da frustração cultural e artística
sentida durante a Primeira Grande Guerra. Vale a pena reflectir
sobre estas coincidências. No fundo, o que elas nos mostram O MN I LO G I KO S
é a profunda inquietação da imaginação humana, a recusa da omnilogikos.blogspot.com
barbárie e do fratricídio e a busca dessa qualidade redentora, PEQUENOS MISTÉRIOS
tão luminosa, que somente o sonho pode oferecer com genero- BRUCE HOLLAND ROGERS
sidade. A verdade é que hoje, como ontem, somente a Fantasia,    
em tudo aquilo que ela encerra, é Pequenos Mistérios de Bruce Holland
capaz de nos salvar. Rogers coleciona de dezenas de contos
muito curtos, dividida em cinco sec-
ções. Começa por “Histórias”, onde o autor
nos descreve situações, emoções e suas
consequências - por vezes a uma escala
muito superior à esperada - centradas na
sensação de epifania e transcendência mas
David Soares é autor dos roman- sem originar uma resolução completa. Em
ces “Batalha”, “O Evangelho do “Metamorfoses”, analisa a transformação
Enforcado”, “Lisboa Triunfante” e a reacção à inevitabilidade da mudança
e “A Conspiração dos Antepas- ou do fim. Nas “Insurreições”, o narrador
sados”. A revista literária Os desrespeita regras do enredo, sendo imprevisível a forma como cada conto
Meus Livros considerou-o «o mais
progride ou termina. Em “Contos” aproxima-se da fantasia e simultanea-
mente explora ideias como a violação das expectativas ou o poder do su-
importante autor português de gestionamento. Por fim, “Simetrinas” são dos mais complexos textos da co-
literatura fantástica». lecção, cuja estrutura é uma simetria no tamanho dos parágrafos espelhada
no central, maior. Recomendo uma leitura calma, para saborear cada conto e
aproveitar o que de melhor a ficção curta tem para oferecer. / André Nóbrega
metais
pesados
Por toda a parte
por Fernando Ribeiro

A
cabámos por culpas, pois recuso-me a utilizar o meu estilo, um certo receio que a magia se
não ter que so- filho em algo que não é nobre. perca, quebrando a exigência de uma
breviver ao fim Viemos há dias de uma digressão pela fruição verdadeira e solene. Mas, tendo
do mundo, pelo América Latina. Esta tour teve a par- participado em alguns destes eventos
menos eu con- ticularidade de se iniciar num cruzeiro com os Moonspell, fico mais fascina-
tava fazer tudo de Heavy Metal que em cinco dias ligou do pelo contexto que deu origem a esta
para sobreviver, Miami a Nassau (sim andamos à bo- ideia e pela absoluta convicção com que
e fresco de uma lina muito tempo, já que é um tirinho fãs acérrimos do estilo acorrem a estes
noite que foi, a todos os níveis, memo- de um lado ao outro) através de mais eventos, sabendo, como poucos, equili-
rável, volto ao vosso convívio para vos de quarenta concertos para uma audi- brar essa solenidade de que falava com
falar outra vez do mundo e do tempo. ência dedicada que elege esta inusitada a vontade de deixar tudo para trás e se
Foi um ano intenso. Aconteceram coi- travessia para destino de férias. O cru- divertir mesmo se quem toca no palco
sas tão boas a nível pessoal e profis- zeiro chamava-se Barge to Hell. Barge da piscina sejam os Mayhem, uma das
sional que nem me atrevo a evocar o pode ser traduzido por uma espécie de bandas mais ferozes do Black Metal que
desgaste. Fui pai em Abril. E esse Abril embarcação, feroz e degradada. Mas tornaram o ambiente mais sombrio não
irá ser sempre o melhor mês da minha tudo no barco aponta e respira destinos impedindo, porém, a festa, servida em
vida. Foi também em Abril que saiu o paradisíacos e é exactamente neste con- cocktails, bom ambiente, miúdas de bi-
novo disco dos Moonspell. Em Maio traste que reside todo o encanto de uma quíni, à noite, no jacuzzi com uma fila
começámos a digressão que já nos le- actividade assim. Não foi o nosso bap- de rapazes a tentar a sua sorte, apesar do
vou a mais de trinta países. Agora estou tismo a bordo. Já tínhamos sido con- sangue falso em palco. Quando comecei
de pantufas de lobo. Uma oferta da mi- vidados para a primeira edição que foi a ouvir Metal, depressa me converti ao
nha mulher. Amanhã é Natal, uma festa um sucesso retumbante, não só entre os Underground, vivendo e experimentan-
de família. Estarei com os que me são que navegaram, mas também correndo do os códigos por vezes apertados que
mais queridos e independentemente de mundo através da Imprensa, Internet vinham anexos ao movimento. Quando
não acreditar nem no Pai Natal, nem no e do boca-a-boca. Fazer este cruzeiro, envelheci e me vi confrontado com cer-
simples mas ultra-elaborado nascimento tornou-se objecto de desejo de qualquer tas situações, tomei a decisão certa de ir
do Messias, irei celebrar esta data como fã que se preze do estilo, adicionando equilibrando a sociabilidade que possuo,
um reencontro com o que me é precio- mais um lugar de peregrinação ao espí- a necessidade de passar um bom boca-
so. Sei que com a minha família, haverá rito, para além das romagens ao Wacken do, com a seriedade da música, a sua
sempre algo de pagão neste encontro na Alemanha e, mais recentemente, a profundidade.
dezembrino. Iremos comer, beber, con- festivais como Hellfest em França ou
versar, trocar oferendas e votos e pas-
sar um bom bocado. Não quero mais
nada depois da vertigem das viagens e
noutra onda ao Roadburn na Holanda
ou Inferno Festival em Oslo, na Norue-
ga, estes últimos mais pequenos e selec-
N a sequencia deste raciocínio, pas-
so algum do meu tempo livre a
pesquisar coisas inéditas ao movimento
dos concertos. Não acuso a pressão das cionados por um público de culto. metálico, em especial, até onde vão as
prendas, e este ano não andarei a correr fronteiras geográficas, se isto do Metal
para visitar todos aqueles que deveria.
Vão ter de me perdoar. Sou pai, tenho
a melhor das razões. Não digo das des-
T udo isto me faz pensar no quanto
o Metal pesado se tem expandido.
Existirá sempre, entre quem ouve este
e do Rock é afinal anglo-saxão, domi-
nado também por países com mais
esclarecimento económico e cultural,

10 /// BANG!
N uma vida pessoal que se divi-
de liminarmente entre o circo
do rock’n’roll e a domesticidade
plena de sorrisos, fraldas e horários
sem rigor, orientados pelo amor e
necessidade, esta expansão do He-
avy Metal, destruidor de fronteiras,
estados de alma e credos, traz re-
conforto e segurança. Todos senti-
mos que pertencemos a um mun-
do sem fim, que se renova quando
alguns territórios atingem o limite,
desvirtuando-se. Faz-nos perceber,
também, que por muito esforço
Fazer este cruzeiro, tornou-se que façamos para defender os nos-
objecto de desejo de qualquer
fã que se preze do estilo sos pontos de vista e gostos, exis-
tem pessoas que têm de se manter
vivas e livres, lutando contra o ca-
como Alemanha ou Escandinávia. Para
ciquismo, o fanatismo e a opressão,
meu agrado e surpresa, ser de Portugal
apenas para conseguirem escutar e
e ouvir Metal ou fazê-lo é algo pálido a
viver um estilo que representa um
nível de espanto se comparamos a ban-
compromisso acima de tudo e de
das e pequenos movimentos que se es-
todas as coisas. As recompensas
tabelecem em países como Índia, Irão,
são estas, este reconhecimento,
Botswana, ou Indonésia. De todos estes
que é dedicado a todas estas pes-
países vibram exemplos da vívida comu-
soas e histórias que felizmente vou
nhão que se estabelece neste estilo e que
encontrando por toda a parte.
extravasa fronteiras e comportamentos.

S
Na Índia, em Bangalore, os Iron Mai-
e estiverem numa de histórias
den, sempre pioneiros incontornáveis,
de resistência e improbabilida-
foram recebidos como deuses. Na nos-
des, não se esqueçam da fotobio-
sa pequena escala, conhecemos quatro
grafia com textos dos Moonspell
fãs, três raparigas e um rapaz que vieram
que foi exactamente lançada por
de Teerão até Istambul (o único país ao
esta casa que vos traz esta revis-
qual podem verdadeiramente aceder)
ta e a melhor da ficção fantástica.
para ver o nosso concerto, com um sor-
riso estampado na cara, absorvendo da
primeira fila todos os momentos, para,
sem outra hipótese, mais tarde recor-
darem. Na Internet descobri uma ban-
da de Death Metal com uma potência
brutal. Chamam-se Crackdust e vêm do
sul de África. Finalmente na Indonésia
há um movimento forte e entusiasta, a
julgar pela reacção dos fãs desse país asi-
ático que se cruzaram connosco no bar-
co, pedindo-nos, fervorosamente, para
tocar na sua capital Jacarta. Quando a
ocasião surgir, lá estaremos. A caixa de
surpresas não pára de debitar e duran- Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da
te algum tempo mantive contacto com banda Moonspell, com a qual já lançou vários
uma banda Angolana (Neblina) que no discos, e em 2009 participou no projecto
espaço de alguns anos evoluiu imenso, Amália. Tem três livros de poesia publicados
praticando agora um estilo mais próxi- e, no universo lovecraftiano, traduziu para
mo ao Death e Black Sul-Americano, português a biografia em banda desenhada
especialmente Brasileiro, o que em mui- intitulada “Lovecraft”, assinou as introduções
to me agrada. O documentário Death das antologias “Os Melhores contos de H. P.
Metal Angola irá ilustrar como o rock Lovecraft” e participou nas antologias “As
já plantou a sua “verminosa” semente Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de Terror do
em terras de Huambo. Por sua vez, em Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção na
Moçambique, o Metal junta pessoas que colecção Mitos Urbanos da editora Gailivro.
vivem na franja em torno de uma paixão
comum.
enciclopédia
da estória
universal
por Afonso Cruz

Letra A
Anatomia de uma visão
Ezequiel, na sua visão de Deus, descreveu um leão, um boi,
um anjo e uma águia, que compunham o trono celestial.
Um famoso cabalista do início do século XX, Dovev
Rosenkrantz, interpretou a visão de Ezequiel separando as
quatro entidades em grupos de dois e formando uma cruz.
Como o leão e o boi são animais terrestres, ficam em baixo, Dovev Rosenkrantz disse ainda que a águia e o leão são
enquanto que o anjo e a águia, por serem animais celestes, rapaces e vorazes. O anjo e o boi são criadores, o primeiro
ficam em cima. Devemos dividi-los assim: do espírito, o segundo da lavoura. Devemos dividi-los assim:

12 /// BANG!
Letra G
Rosenkrantz concluiu então o seu raciocínio dizendo que
estes seres têm uma relação directa com as quatro cavidades
do nosso coração, cujas aurículas recebem o sangue enquanto
os ventrículos o expelem. As aurículas estão em cima, os
ventrículos em baixo: Gaiola do tamanho da liberdade
Hasaba tinha um enorme mocho numa gaiola. Não o queria
soltar, não o queria perder, mas tinha pena que ele estivesse
confinado àquele espaço. Por isso construiu uma gaiola
maior. Olhou para o mocho e sentiu que não chegava. Ele já
podia abrir as asas, saltar para outro poleiro, mas era pouco.
Decidiu, então, construir uma gaiola ainda maior, uma em
que o mocho pudesse voar. A nova gaiola era tão grande que
dentro dela cabiam duas árvores: um abeto e uma bétula.
Quando Hasaba viu o mocho em cima do ramo de umas
das árvores, concluiu que não era suficientemente grande
para a ave. O mocho precisava de voar pelos céus. Então,
decidiu construir uma gaiola que incluísse nuvens e florestas.
E mais: que incluísse cidades e países distantes. E estrelas.
Hasaba ainda hoje está a construir essa gaiola onde todos nós
vivemos.
(Lenda siberiana, citada por Eugène Faucher)

As cavidades do lado direito têm sangue venoso, enquanto as É autor dos livros Enciclopédia da Estória Universal
do lado esquerdo têm sangue arterial: (Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008)
e Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010
- Prémio Literário Maria Rosa Colaço). Recentemente
publicou A Boneca de Kokoschka (2010), O Pintor
Debaixo do Lava-Loiças (2011) e O Livro do Ano (2013).
Além de escrever, também é ilustrador, cineasta e
músico (compõe e toca na banda de blues/roots The
Soaked Lamb).
Vive no campo e tem dois filhos.
http://afonso-cruz.blogspot.com
http://soakedlamb.com

Ou seja, segundo Rosenkrantz, a visão de Ezequiel era a


imagem anatómica de um músculo, representada por símbolos.
No fundo, o profeta hebreu estava apenas a observar as suas
próprias entranhas.
“Quando um homem julga estar a olhar para Deus, mais não
faz do que olhar para dentro do seu coração”, disse Dovev
Rozenkrantz.

BANG! /// 13
14 /// BANG!
A história co-
meça com
um dia de
Inverno e
um desejo.
Depois varia. Quase sempre surge uma
Rainha grávida a idealizar o aspecto do
e negra como há apenas uma: Branca de
Neve.
A esta conjugação de cores acres-
cem outros elementos mais ou menos
constantes: um espelho, um caçador,
sete companheiros que escondem e
protegem, a seguir vem uma beldade
sos países e regiões como da abundân-
cia de contadores que sempre o alteram
e reinventam. Como observa Maria Ta-
tar, não existem versões originais destes
contos, só versões imperfeitas, muitas
vezes incompletas e fragmentadas.4 E a
estas acrescem as muitas recriações artís-
futuro bebé, mas por vezes a enuncia- disfarçada de velha e com ela uma fita ticas, novas encenações que aproveitam
ção parte de um Conde a passear com para a cintura, um pente, uma maçã, a a oportunidade para repensar as velhas
a esposa, e nesses casos a menina surge morte, aparente ou não, um caixão, que histórias, fazendo-o informadas pelos
já criança crescida, materializada ali de pode ser de vidro ou prata ou outro ma- textos tradicionais, pelas diversas leitu-
repente no meio da estrada.1 De uma ou terial qualquer, e por fim, com alguma ras de que os contos foram alvo e pelas
outra forma, Branca de Neve nasce, a sorte, aparece um Príncipe que conduz adaptações anteriores. Um conjunto de
sua aparência distinta e inconfundível: a narrativa para um casamento e uma objectivos perfeitamente integrado nas
branca como a neve, vermelha como o boda onde figuram uns sapatos de ferro idiossincrasias pós-modernistas.
sangue, negra como o ébano. em brasa prontos a castigarem o Mal e Mais ou menos recentes, existem
Ou talvez vermelha como pétalas a confirmarem o triunfo do Bem. Ou vários trabalhos relacionados com
de rosa. então tudo ocorre de modo diferente. “Branca de Neve”, sejam filmes, livros,
Ou se calhar os cabelos são ne- Como em tantos outros contos contos, fotografias ou bailados. Face à
gros como as asas dos corvos, ou então de fadas,2 os vários elementos dançam impossibilidade de os considerar a to-
como a noite. entre si, ora saindo ora entrando, ora dos neste curto espaço, optar-se-á por
Os termos da comparação variam, inventando novas parcelas que depres- alguns dos mais significativos,5 numa
as cores mantêm-se. sa se imiscuem no enredo. No centro, tentativa de entender de que modo te-
Sempre, em todas as versões, em constantes e inamovíveis, ficam apenas mos transformado este conto e se o
qualquer representação, nas muitas Branca de Neve, as suas três cores e a utilizamos realmente para questionar a
adaptações e reescritas, a tríade cromáti- Rainha, que pode afinal ter o título de tradição e os valores por ela vinculados.
ca mantém-se: branco, vermelho, preto. Condessa e que talvez nem seja Madras- Comecemos contudo por conhecer
Os três aspectos que caracterizam o de- ta mas a própria Mãe.3 algumas das interpretações atribuídas a
sejo e a criança. Perante eles, não restam Tamanha variação advém tanto das “Branca de Neve”.
dúvidas. Branca como, vermelha como múltiplas existências do conto em diver-

BANG! /// 15
congelada num narcisismo primitivo que mesticidade, algo que só uma visão pa-
As histórias dentro da a impede de formar relações positivas. triarcal da felicidade feminina conside-
história

S
Contudo, a inocente Branca de Neve, raria satisfatório.9 De facto, Tatar sugere
que exibiu pequenos episódios narcísi- que a catatónica Branca de Neve pode
teven Swann Jones, ao cos ao ceder à vaidade e comprar a fita representar a mulher ideal segundo o
estudar a estrutura desta para a cintura e o pente, acabará por se folclore e avisa que a passividade e ne-
história tradicional, iden- livrar destas tendências egoístas e por es- gligência paternas apenas parecem be-
tifica nove episódios co- quecer o desejo pelo pai, ficando apta a névolas perante a marcada agressividade
muns às diversas varian- casar com o Príncipe e a desenvolver a da Rainha.10 Esta seria pois a história da
tes. No entanto, muitas das recriações sua vida de esposa equilibrada. E assim a dificuldade feminina em viver e atingir o
artísticas escapam a esta organização história demonstraria como e porque se equilíbrio psíquico dentro de uma socie-
narrativa, condensando, suprimindo ou deve resolver de forma positiva o confli- dade patriarcal.
mesmo alterando os episódios, pelo que to de Édipo8. Shuli Barzilai advoga que a rainha
se torna despropositado esmiuçar a aná- Mãe e filha em luta por um homem, boa no início e a rainha má que domi-
lise de Jones.6 Importa porém notar que dizem os freudianos. Uma única mulher na o conto são dois aspectos da mesma
Jones associa a estrutura do conto ao condicionada por uma sociedade pa- pessoa, de uma mãe em conflito com o
ciclo de vida feminino, defendendo que triarcal, dizem as feministas. crescimento da filha, tentando recuperar
a perseguição se inicia na puberdade, Para Sandra Gilbert e Susan Gubar, o controlo que já exerceu sobre a crian-
perante a primeira menstruação, resul- vozes activas da perspectiva feminista, ça e recusando aceitar o envelhecimento.
tando numa morte que serve como me- mesmo maioritariamente ausente e sem Barzilai nota ainda que a rainha boa pos-
táfora de iniciação sexual e que conduz grande intervenção directa, o rei assom- sui tanta arte e criatividade quanto a má,
ao casamento da heroína, à sua transição bra a história. Além disso, se para Bette- pois através do seu desejo consegue te-
da adolescência para a idade adulta. Este lheim o espelho falava com a voz da pró- cer a fisionomia da filha, o que evidencia
casamento deverá ainda resultar numa pria Branca de Neve, primeiro enquanto a natureza dupla da Rainha, o seu poten-
gravidez e nas consequentes problemá- criança que considera a mãe a mais bela cial quer benévolo quer maléfico. Nesta
ticas da maternidade, que Jones consi- mulher do mundo e depois como ado- história de mãe e filha em luta aguerrida,
dera expressas no conto pela inveja da lescente que se acha bem mais bonita do o Rei tornar-se-ia totalmente desneces-
figura perseguidora. que a envelhecida mãe, Gilbert e Gubar sário e o espelho funcionaria como eco
Também N. J. Girardot conecta encontram no espelho a voz masculina, das preocupações da Rainha.11
“Branca de Neve” com o despertar se- plena de repressão e estereótipos, sem- Perante tantas interpretações,
xual, lembrando que o esquema preto/ pre a dividir as mulheres entre anjos e “Branca de Neve” torna-se uma his-
branco/vermelho é típico das iniciações monstros. De um lado Branca de Neve, tória tão moldável e receptiva quanto
alquímicas, correspondendo a morte/ qualquer outro conto de fadas. E as suas
purificação/renascimento, e acres- metamorfoses continuam, prolongadas
centando que o vermelho sig- pela literatura, o cinema e a televisão.
nifica menstruação, o branco
encontra-se associado tanto
à pureza como ao sémen O que o espelho
e o preto representa a mostra

B
morte, quer a morte final
quer a pequena morte
relacionada com o acto n-
sexual. Para atingir a ma- de
turação, Branca de Neve ve e
terá de reunir estes três Sete
elementos num todo equi- Anões,
librado.7 o filme da Disney estreado em
E as interpretações de ín- 1937, não foi a primeira recriação
dole sexual continuam. A teoria de “Branca de Neve”,12 mas mais do
freudiana, aqui como em tantos que qualquer outra imiscuiu-se no nos-
outros casos, acentua os aspectos se- a so imaginário, condicionando a forma
xuais do conto, transformando “Branca angelical como recordamos e pensamos o conto.
de Neve” numa história sobre amar um filha patriarcal, dó- Ninguém esquecerá a imponência da
dos progenitores e odiar o outro. Deste cil, infantilizada e submissa, do outro a Rainha, nem a fuga de Branca de Neve
modo, Bruno Bettelheim afirma que a Rainha, a orquestradora de enredos que pela floresta, e muito menos a assusta-
história realça o conflito de Édipo entre impulsiona a narrativa, plena de criati- dora transformação da Rainha em ve-
mãe e filha, sendo a rivalidade propul- vidade subversiva, decidida a eliminar a lha. E recordar-se-ão sempre os Anões,
sionada por um homem, o marido/pai, sua contraparte. Um mundo dicotómico convertidos aqui em personagens tão
mas também pela necessidade da mãe e maniqueísta que Gilbert e Gubar con- importantes quanto a protagonista.13
em manter a filha sob controlo, impedin- sideram ilustrativo de dois aspectos de Além disso, a versão Disney vilifica e
do assim a sua maturação e consequen- uma única psique em conflito. Do duelo demoniza a Rainha, obrigando-a a en-
te independência. Bettelheim considera resulta um fim infeliz: a Rainha morre e carnar a absoluta mulher monstro, sem
ainda que ninguém pode salvar a mãe, já Branca de Neve fica aprisionada na do- defesa possível e isenta de características

16 /// BANG!
O conto “The Snow Child” (1979) de Angela Carter,18
pequeno, perturbador e positivamente feminista, funciona
como uma brilhante evocação de diferentes versões e leituras.
Submetido ao cromatismo branco, vermelho, preto, e basea-
do na variante em que um Conde actua como enunciador do
desejo, o texto tece uma Branca de Neve de uma passividade
absoluta, objecto do desejo do Conde e do ódio da Condes-
sa. Manipulada por ambos, esta Branca de Neve inadverti-
damente relega a Condessa para segundo plano, deixando-a
cada vez mais desprotegida e nua. Porém, ao colher uma rosa,
o terceiro pedido da Condessa, a criança acaba por morrer,
embora só derreta e desapareça após o Conde lhe violar o
cadáver. Quando o Conde redirige a atenção para a Condessa
e lhe oferece a rosa que Branca de Neve apanhara, ela rejei-
ta o presente, alegando que a flor morde e de algum modo
percebendo-se simultaneamente perseguidora e vítima. Car-
“Snowy” da série Fallen Princesses de Dina Goldstein ter evidencia assim a parcialidade manipuladora da visão pa-
triarcal da mulher ideal bem como da ideia freudiana de duas
mulheres em competição por um homem, enquanto expõe a
prevalência de conceitos patriarcais no imaginário de “Branca
redentoras. Ao mesmo tempo, enfatiza a candura, inocência de Neve” e demonstra a ambiguidade e o potencial repressivo
e infantilidade de Branca de Neve, transformando-a numa jo- da figura paterna. Ademais, esta Condessa reflecte a ideia de
venzinha passiva,14 excelente dona de casa, plena de visões Barzilai sobre a capacidade benévola e maléfica da Rainha.
românticas delicodoces e totalmente dependente dos homens Tanith Lee urdiu um outro conto multifacetado: “Red
que a rodeiam: uma verdadeira mulher anjo que no último as Blood” (1979).19 Aqui, a mãe biológica é a rainha má e
plano se encaminha para o seu final feliz de alegria conjugal. a madrasta a rainha boa. Ambas versadas nas artes mágicas,
Na série fotográfica Fallen Princesses (2009), Dina Gold- a primeira pertence totalmente às trevas, uma vampiro que
stein contradiz esta ideia, introduzindo as Princesas Disney, devasta o reino. A sua filha, Bianca, também ela uma vampira,
perfeitas e imaculadas, em contextos reais. Assim, a fotografia reacende a praga da mãe no dia em que lhe aparece a primeira
Snowy retracta Branca de Neve a viver um “pesadelo domés- menstruação. A segunda rainha, uma mulher religiosa mais
tico”,15 apresentando-a desgrenhada, em pé numa sala de es- sábia do que os padres e capaz de ultrapassar as limitações
tar desarrumada, e rodeada por crianças algo negligenciadas. patriarcais, tentará eliminar a ameaça mas só perante o Prínci-
Atrás, ocioso e desinteressado, o Príncipe bebe cerveja e vê pe a jovem ganhará a oportunidade de uma nova vida, isenta
televisão. Espelhando as ideias de Gilbert e Gubar, Goldstein da componente vampírica, e aceitará o amor da mãe adoptiva.
transforma o final feliz numa prisão que força Branca de Lee convoca alguns dos motivos associados a este conto de
Neve a tomar conta de uma casa a desmoronar-se. fadas, inverte os papéis sem os simplificar em excesso, e cons-
Escapando à influência Disney, a Branca de Neve trói uma história alicerçada na relação entre mãe e filha. Uma
(2004)16 da japonesa Miwa Yanagi assusta e inquieta com o abordagem que Debra Doyle e James D. Macdonald repetem
seu ambiente de casa abandonada, talvez até assombrada. A
fotografia a preto e branco mostra uma criança a segurar uma
maçã e aparentemente a observar-se num espelho. O suposto
reflexo revela o rosto de uma velha, sugerindo deste modo “Snow White” da série Fairytale de Yanagi Miwa
que Branca de Neve e a velha são uma só pessoa. O trabalho
de Yanagi parece portanto concordar com a tese de Gilbert
e Gubar onde a Rainha e Branca de Neve se revelam dois
aspectos da mesma mulher.
Também em “The Dead Queen” (1973) de Robert Coo-
ver17 se encontram ecos dos conceitos de Gilbert e Gubar, em-
bora aqui a história apareça contada pelo Príncipe. Ao início,
Branca de Neve reflecte uma imagem de verdadeira pureza, uma
mulher anjo de trejeitos e reacções infantilizadas. Porém, na noi-
te de núpcias, um episódio que imprime uma sensação onírica e
ébria, Branca de Neve revela-se sexualmente voraz. Pior, o Prín-
cipe descobre que o hímen não se rompe e começa a suspeitar
de orgásticas orgias entre Branca de Neve e os Anões. Aliás,
vai-se convencendo de que tudo decorre segundo o plano da
Rainha, entretanto morta pelos sapatos de ferro ardente, e que
se a beijar a ressuscitará. Contudo, engana-se e percebe enfim
que não compreende nenhuma das duas mulheres. Embora esta
seja a história de crescimento do Príncipe, Coover acentua a hi-
pótese da Rainha como orquestradora de enredos. O seu texto
consegue ler “Branca de Neve” por uma nova perspectiva sem
incorrer no facilitismo de extremar as personagens.

BANG! /// 17
belíssimas e cativantes, como Prel-
jocaj tencionava. As coreografias do
Príncipe com Branca de Neve origi-
nam momentos belos, porém o bai-
lado pertence inteiramente às duas
mulheres.
O telefilme Snow White: a Tale
em “The Queen’s Mirror” (1993),20 of Terror (Michael Cohn, 1997) pre-
apresentando uma história onde ocupa-se em explorar a relação entre
não se sabe se Branca de Neve é a Branca de Neve e a Rainha, aqui cha-
mãe ou a filha. Fica a sensação de madas Lilli (Monica Keena) e Clau-
um ciclo constantemente repetido, dia (Sigourney Weaver). Desde crian-
a sugestão de que Rainha e Branca ça Lilli inferniza a vida de Claudia,
de Neve acabam sempre converti- apenas parando quando a madrasta
das na mesma pessoa, ambas com- aborta, numa altura em que esta já
portando bondade e maldade. não lhe consegue perdoar. A história
“Snow, Glass, Apples” (1994) segue então os trâmites habituais do
de Neil Gaiman21 recupera a ideia conto, embora acentue os contornos
de Branca de Neve enquanto vam- góticos e introduza dois aspectos
piro e introduz um príncipe necró- que “Branca de Neve e o Caçador”
filo, o que relembra a sugestão de (Rupert Sanders, 2012) recupera:
Tatar sobre os atractivos de uma o irmão da Rainha e um triângulo
mulher catatónica. Contudo, embo- amoroso para Branca de Neve. De
ra interessante e inteligente, o con- facto, Sanders aproveita elementos
to acaba por repensar mal a história de várias obras, construindo um fil-
tradicional pois limita-se a transfor- me visualmente impressionante mas
mar Branca de Neve no mal abso- mutilado por um enredo demasiado
luto e invencível. complicado e de raciocínio simplista:
Kim Addonizio no seu “Ever Branca de Neve (Kristen Stewart) é
After” (2006)22 debruça-se sobre o Bem, a Rainha (Charlize Theron)
um grupo de Anões citadinos que, o Mal. Uma curará a terra, ecoando a
conhecendo apenas uma versão ideia deste conto enquanto mito ve-
incompleta do conto, aguardam a getativo de espera pela Primavera,23
chegada de Branca de Neve para a outra destrói a vida que a rodeia e
que então vivam todos juntos e dedica-se a uma cruzada contra todo
felizes para sempre. O texto utili- e qualquer homem, justificando-se
za os nomes atribuídos aos Anões com argumentos de um feminismo
pela Disney e funciona como alerta bolorento e negativo. Para agravar a
contra os perigos do conhecimento questão, a Rainha incorre geralmen-
parcial e de pressupor informação, te em histerismos e Branca de Neve,
advogando que se valorize as rique- mesmo usando uma armadura, defi-
zas do momento; contudo torna-se ne-se não pelo que faz mas por quem
difícil acreditar que na era da infor- é, dependendo dos muitos homens
mação estes Anões nunca encon- que a rodeiam para protecção.
traram a história completa. “Espelho Meu, Espelho Meu!
Entre a contemporaneidade Há Alguém Mais Gira do Que Eu?”
e o tradicional, o bailado “Branca (Tarsem Singh, 2012), servido pelo
de Neve” (2008) de Angelin Prel- maravilhoso guarda-roupa de Eiko
jocaj parte do conto dos Grimm Ishioka, revela-se mais interessante e
e, usando extractos das sinfonias coeso, apesar de algo inócuo. Branca
de Gustav Mahler, guarda-roupa de Neve (Lily Collins) é independente
de Jean Paul Gaultier e cenários de e aguerrida, a Rainha (Julia Roberts)
Thierry Leproust, cria um espectá- possui sentido de humor e nota-se
culo de grande poder encantatório. uma reflexão sobre o conto de fa-
Os figurinos de Gaultier brincam das. Contudo, o filme resvala amiúde
com a tríade cromática deste con- para o disparate e a tensão dramática
to de fadas e ajudam a acentuar as
características de Branca de Neve e
da Rainha, a primeira de uma ino-
cência quase infantil mas também
consciente do seu corpo feminino
e a outra uma dominatrix sedutora, Bailado “Branca de Neve” de Angelin Preljocaj
sensual, sexual e poderosa. Ambas

18 /// BANG!
desfaz-se perante perigos muito pouco
E vivem

S
ameaçadores.
Em “Era uma vez” (ABC, AXN),
a viciante série centrada na vida e na fa- e o cinema e a televisão
mília de Branca de Neve mas povoada têm quase sempre es-
pelas personagens de diversos contos partilhado “Branca de
de fadas e mitos, as dificuldades e revi- Neve” em dicotomias,
ravoltas abundam, de tal modo que se a literatura e a fotogra-
incorre numa lógica telenovelesca. O fia, de algum modo também a dança,
Inês Botelho nasceu em Vila Nova de Gaia em
próprio motivo pelo qual a Rainha (Lana usaram o conto para espelharem dife-
Agosto de 1986.
Parrila) odeia Branca de Neve (Ginnifer rentes hipóteses e várias verdades. Po-
Licenciada em Biologia, iniciou em 2009 um
Goodwin) denuncia esta tendência: em rém, quer prolonguem a tradição mais
Mestrado em Estudo Anglo-Americanos.
criança, Branca de Neve contou à mãe comummente aceite quer a questionem
Completou o 8º grau de Piano e Formação
da Rainha que esta estava apaixonada, o ou contradigam, todos mantém a histó-
Musical. É autora da trilogia de fantástico
que conduziu à morte do amante. E as- ria desperta e pulsante.
“O Ceptro de Aerzis”, composta por “A Filha
sim a Rainha torna-se má e Branca de Quem são Branca de Neve e a Rai-
dos Mundos” (2003), “A Senhora da Noite e
Neve boa, ainda que ambas tenham uma nha? Ninguém sabe ao certo, pois elas
das Brumas” (2004) e “A Rainha das Terras
personalidade forte e nenhuma sofra de renascem e transfiguram-se. Felizes ou
da Luz” (2005). Publicou ainda os roman-
qualquer passividade. Além disso, tudo se não, viverão para sempre. ces “Prelúdio” (2007) e “O passado que
limita demasiado à estética e interpreta-
seremos” (2010).
ção da Disney.

1 Estas e outras variações são desenvolvidas por 4 Maria Tatar, The Hard Facts of the Grimm’s bra ainda que se numa versão o pai salva Branca
Jacob e Wilhelm Grimm nas notas a “Branca de Fairy Tales (Princeton University Press, 2003), de Neve noutras ajuda a Rainha (p. 151, 154).
Neve”, onde se tecem também algumas conside- p. xvi. 11 Shuli Barzilai, “Reading ‘Snow White’: The
rações sobre a ligação do conto com certos mitos 5 Por uma questão de uniformidade, em termos Mother’s Story”, Signs 15.3 (Primavera, 1990):
nórdicos. Este esquema, aliás, é seguido para os literários considerar-se-ão apenas contos. Para os p. 515-534.
vários contos presentes em Kinder- und Haus- interessados em conhecer outras obras, algumas 12 A primeira longa-metragem remonta a 1916,
märchen. Para uma tradução integral em por- hipóteses de leitura são: Schneewittchen (Robert um filme mudo que apresenta Marguerite Clark
tuguês, ver os três volumes de Irmãos Grimm, Walser, 1901), Snow White (Donald Barthelme, como Branca de Neve. Clark, com a sua figura
Contos da Infância e do Lar, trad. Teresa Aica 1967), “Snow White and the Seven Dwarfs” (em pequena e delicada, até algo acriançada, influen-
Bairos (Temas e Debates, 2012). Transformations de Anne Sexton, 1971) e Mir- ciou a representação da Disney.
2 Existe alguma controvérsia quanto ao termo ror, Mirror (Gregory Maguire, 2003). De referir 13 Zipes, op. cit. p. 127-128. Zipes advoga ainda
“contos de fadas”, principalmente porque a que a peça de Robert Walser serviu de base para que o filme simplifica o conto, convertendo-o
maioria dos contos que em geral recebem esta o muito polémico Branca de Neve de João César numa apologia da ordem e dos ideais america-
designação não apresentam qualquer fada no en- Monteiro e que Paula Rego retratou várias ve- nos.
redo. Há portanto quem advogue o uso de “con- zes esta personagem, recorrendo quase sempre 14 Warner, op. cit. p. 207.
tos maravilhosos”. Em todo o caso, a abordagem à imagética Disney, o que facilita a identificação, 15 A expressão é a usada pela própria Goldstein
sócio-histórica de Jack Zipes parece não só cla- acentua o contraste entre filme e pinturas e re- no texto de apresentação da série. Para ver as
rificar como resolver a questão. Zipes argumen- alça a sexualidade e agressividade latentes nos fotografias consultar http://dinagoldstein.com/
ta que o termo deriva do francês conte de fées, quadros. A história de “Branca de Neve” foi fallen-princesses/
surgido através da produção literária de contos ainda utilizada por Maria Isabel Barreno como 16 Fotografia disponível em http://www.yanagi-
durante os séculos XVI, XVII e XVIII, pelo que motivo recorrente na pequena colectânea Corre- miwa.net/e/fairy/index.html
será apenas aplicável a textos literários. “Conto dores secretos (actualmente incorporada na obra 17 Robert Coover, “The Dead Queen”, A Child
popular” constituirá o termo adequado às nar- Corredores secretos, seguido de Motes e glosas, Again (McSweeney’s Books, 2005), p. 51-63.
rativas orais de circulação entre as populações ao 2010). O meu conto “Na noite branca o verme- 18 Angela Carter, “The Snow Child”, The Bloo-
longo dos diversos séculos. Para uma explicação lho” (Revista Correntes d’Escritas nº 9, 2010) dy Chamber and other stories (Vintage Books,
mais exaustiva deste assunto, consultar Jack Zi- também se desenrola em torno de “Branca de 2006), p. 105-106.
pes, Breaking the Magic Spell: radical theories Neve”. 19 Tanith Lee, “Red as Blood”, The Magazine
of folk and fairy tales (The University Press of 6 Para o artigo completo, consultar Steven of Fantasy & Science Fiction (Julho, 1979), p. 6,
Kentucky, 2002), p. 2, 27-28, 32. Swann Jones, “The Structure of Snow White”, 8-15.
De modo a evitar uma complicação excessiva do Fabula 24.1/2 (1983): p. 56-71. 20 Debra Doyle & James D. Macdonald, “The
texto, e dado que a maioria das obras aqui abor- 7 N. J. Girardot, “Initiation and Meaning in the Queen’s Mirror”, A Wizard’s Dozen: stories
dadas serão de ordem artística, utilizar-se-á sem- tale of Snow White and the Seven Dwarfs”, The of the fantastic, ed. Michael Stearns (Harcourt
pre a designação “conto de fadas”. Journal of American Folklore 90.357 (Julho - Se- Children’s Books, 1993), p. 89-98.
3 Marina Warner relembra que, nas versões ini- tembro, 1977): p. 274-300. 21 Neil Gaiman, “Snow, Glass, Apples”, Smoke
cialmente recolhidas pelos irmãos Grimm, Bran- 8 Bettelheim, op. cit. p. 199-215. and Mirrors: short fictions and illusions (Harper-
ca de Neve era perseguida pela Mãe. A figura 9 Sandra Gilbert e Susan Gubar, The Madwo- Collins, 2001), p. 325-339.
da madrasta terá sido introduzida para eliminar man in the Attic: the woman writer and the 22 Kim Addonizio, “Ever After”, My mother
uma tão explícita violência maternal, cf. Marina nineteenth-century literary imagination (Yale she killed me, my father he ate me, ed. Kate Ber-
Warner, From the Beast to the Blonde: on fairy University Press, 2000), p. 3-44, sendo a primeira nheimer (Penguin Books 2010), p. 512-526.
tales and their tellers (Vintage Books, 1995), p. edição do livro de 1979. 23 A. S. Byatt, On Histories and Stories (Harvard
210-211. 10 Tatar, op. cit. p. 146, 148-149. A autora relem- University Press, 2001), p. 159.

BANG! /// 19
Advertência: No presente artigo, os
enredos do romance The Woman in
Black e das suas adaptações ao teatro,
à televisão e ao cinema são referidos
sem restrições, o que pode colidir
com o efeito de surpresa pretendido
pelos respectivos autores.

muito frequente tentar-se definir qual a forma literária mais apropriada às

E histórias sobrenaturais, se o conto se o romance ou a novela, caindo geral-


mente a preferência sobre o primeiro. Na verdade, não sobram dúvidas de
que a generalidade dos grandes mestres da literatura sobrenatural – Mon-
tague R. James, Howard P. Lovecraft, E. F. Benson, J. Sheridan le Fanu,
Jean Ray e tantos, tantos outros – se dedicaram principal ou exclusivamente ao
conto curto, enquanto os romances sobrenaturais de alguma notoriedade são
muito mais escassos. Constituem óbvias excepções à regra geral autores como
Stephen King ou Peter Straub, cujas longas histórias são bem conhecidas e al-
cançaram êxito assinalável.
Ao longo do século XX – o que deixa desde logo para trás obras como Dracu-
la, de Bram Stoker – o romance sobrenatural atingiu os seus momentos de máxi-
mo fulgor em livros como The Hound of the Baskervilles (Sir Arthur Conan Doyle,
1902), The Werewolf of Paris (Guy Endore, 1933), Malpertuis (Jean Ray, 1943), The
Haunting of Hill House (Shirley Jackson, 1962), etc. Mas poucos ultrapassaram o
impacto de The Woman in Black, de Susan Hill, publicado em 1983.

The Woman in Black: O Livro e a Autora o Prémio Somerset Maughan, assim como, no campo das his-
tórias de fantasmas, The Mist in the Mirror (1992), The Man in
usan Hill, nascida em Scarborough (North Yorkshi- the Picture (2007) e The Small Hand (2010). Em 2012, foi con-

S re) no dia 5 de Fevereiro de 1942, notabilizou-se quer


como autora de romances de ficção, quer em vários
outros géneros, do ensaio ao teatro e mesmo à litera-
tura infantil, tendo publicado o seu primeiro livro (The
Enclosure, 1961) quando ainda frequentava o primeiro ano da
universidade. Entre os seus romances mais famosos contam-
se I’m the King of the Castle (1970), pelo qual recebeu em 1971
decorada, pelos seus serviços no campo da literatura, com o
grau de Comandante da Ordem do Império Britânico (CBE).
A autora tem referido o seu interesse pelas histórias de
fantasmas tradicionais, manifestando admiração pelas obras de
Montague R. James e Daphne du Maurier, tendo mesmo pu-
blicado, em 1993, o romance Mrs. De Winter, que é uma con-
tinuação à conhecida obra Rebecca (1938), desta última autora.

20 //
20 /// BAANNGG!!
O êxito alcançado por The Woman in trário da literatura por vezes chamada de
Black levou a que o romance fosse adap- horror, que vive da descrição minuciosa
tado ao teatro em 1987, continuando a de cenas desagradáveis, as mais das ve-
peça em cena em Londres, ao cabo de zes com grande profusão de sangue e
vinte e cinco anos. Por sua vez, em 1989 tripas. Ora é precisamente essa uma das
foi transformado num filme destinado à forças da obra em apreciação, história de
televisão e, em 2012, num filme de lon- fantasmas tradicional, ao estilo gótico,
ga-metragem pela famosa firma produ- capaz de provocar um arrepio em quem
tora britânica Hammer Film Productions. Susan Hill, por John Lawrence/Rex a lê, mormente se a leitura decorrer numa
Também em 1993 a BBC Radio 5 difun- velha casa, à noite – quiçá uma tempestu-
diu uma adaptação do romance, em quatro partes, realizada osa noite de Inverno – e sem companhia. A perícia da autora
por Chris Wallis e com interpretações de Robert Glenister e consiste na tranquila construção do ambiente, na sugestão
John Woodvine, enquanto em 2004 a BBC Radio 4 passou dos sentimentos que apertam o coração do narrador, com
uma versão de cerca de uma hora, numa adaptação de Mike precisão e subtileza. Essa subtileza tem os seus momentos
Walker, com realização de John Taylor e interpretação de Ja- de glória nas páginas de Montague R. James, Henry James,
mes D’Arcy. Robert Aickman e tantos outros autores distintos; Susan Hill
O enredo de The Woman in Black (entre nós, A Mulher de aparece aqui como sua legítima continuadora.
Negro) é bem conhecido: Mais do que as personagens, mais até do que a alma pena-
Arthur Kipps, solicitador, é enviado pela sua firma à da que a assombra, é a casa, a remota e medonha Eel Marsh
vila de Crythin Gifford para acompanhar o funeral de uma House que ocupa a posição central na narrativa e que é o foco
importante cliente, Mrs. Alice Drablow, viúva que vivia sozi- de minuciosas descrições, através das quais a inquietude se
nha numa casa remota e isolada, a Eel Marsh House, a qual, apodera lentamente do leitor. A casa é tão importante em The
situada numa vasta área pantanosa, fica completamente se- Woman in Black quanto Hill House o era em The Haunting of
parada da terra firme nos períodos de maré alta, muito à se- Hill House, de Shirley Jackson, adaptada ao cinema por duas
melhança do famoso Mont Saint-Michel, na Normandia. No vezes, primeiro por Robert Wise, em 1963, mais tarde, em
funeral, vê uma mulher pálida, de olhos encovados e vestida 1999, por Jan de Bont, de ambas as vezes sob o título The
de negro, que é acompanhada por um grupo de crianças e Haunting (entre nós A Casa Maldita e A Mansão, respectiva-
nos dias seguintes, enquanto examina os papéis da defunta, mente), ou Malpertuis na obra-prima de Jean Ray a que dá tí-
é assombrado por ruídos diversos, entre os quais os de um tulo, também passada ao cinema em 1971, por Harry Kümel.
carro puxado a cavalo aparentemente em dificuldades no Por sua vez, o espectro que origina todos os aconteci-
pântano, acompanhado por gritos de uma criança e da ama. mentos narrados pertence a uma das categorias reconhecidas
A pouco e pouco, Arthur vem a saber que Mrs. Drablow ti- na variedade de fantasmas da ficção literária: a da alma do
nha adoptado um sobrinho, Nathaniel, filho ilegítimo da sua outro mundo presa ao nosso por um desejo de vingança –
irmã Jennet; esta acaba por se acolher a Eel Marsh House, ainda que mal direccionado, injusto e desproporcionado – do
mas sem dar a conhecer a Nathaniel que é a sua verdadeira que lhe sucedeu em vida. Os seres humanos que se lhe atra-
mãe, mas um dia a criança e a sua ama morrem quando a vessam no caminho, neste caso, o infeliz Arthur Kipps, estão
charrete que os transporta fica presa nas areias movediças condenados a sofrer não as consequências de quaisquer actos
que circundam a propriedade. É Jennet que, tendo morrido que pratiquem ou tenham praticado, mas a fúria cega de um
algum tempo depois, assombra Eel Marsh House e a vila de castigo intemporal que baliza a actuação da abantesma.
Crythin Gifford: de cada vez que é avistada como a Mulher Ao mesmo tempo, o protagonista e narrador da história
de Negro, ocorre a morte de alguma enfrenta uma dualidade enriquecedora
das crianças da vila. do enredo: se por um lado o seu espírito
Terminada a sua missão, Arthur vol- metódico e racional vê como meras su-
ta para Londres, casa e desse casamento perstições as histórias de assombrações
nasce um filho. Em dada altura, quando e outras manifestações quejandas, os su-
a família está numa feira e a criança com cessivos acontecimentos que é forçado a
a mãe estão a andar numa carruagem presenciar vão a pouco e pouco minando
puxada por um pónei, Arthur volta a ver essa forte posição materialista, à medida
o fantasma, que assusta o pónei ao pon- que o terror lhe invade a alma e lhe tolhe
to de este encetar um galope desenfrea- discernimento e movimentos. À medida
do, fazendo a carruagem embater numa que os acontecimentos se desenrolam, é
árvore, de cujo acidente resulta a morte o próprio Arthur que muda. Se antes da
instantânea da criança e mais tarde, em sua macabra experiência em Eel Marsh
resultado dos seus ferimentos, da mãe. House era capaz de afirmar com firme-
The Woman in Black é um romance za que “não acreditava em fantasmas”,
curto – menos de 200 páginas – notável no momento em que é levado a contar
precisamente pela sua concisão e con- a sua história vê-se forçado a confessar
tenção. Na literatura sobrenatural, talvez que é “atreito a ocasionais indisposições
mais do que em qualquer outro géne- nervosas” e que se sente “afectado pe-
ro, é muitas vezes mais eficaz, para se las mudanças de tempo” – um eco dos
alcançarem os efeitos pretendidos, não espessos nevoeiros que, vindos do mar
dizer tudo explicitamente, antes deixar sem aviso, envolviam a velha mansão. A
muito à imaginação do leitor – ao con- O livro “The Woman in Black” de Susan Hill riqueza psicológica da experiência vivida

BBAANNGG! //
///
// 2211
pelo narrador é bem patente na sua afir- crianças ser revelada muito mais cedo
mação de que, ao explorar na escuridão no filme do que no livro, o que na verda-
o quarto infantil “não sentia medo, nem de produz um melhor efeito, e também
horror, apenas uma avassaladora má- todo o episódio que consiste em apazi-
goa e tristeza, um sentimento de perda guar a abantesma através da recuperação
e privação, uma angústia mesclada por do cadáver do filho. A cena final, com a
um absoluto desespero”. Mais do que os cega retribuição que consiste na reunião
seus próprios sentimentos, Arthur espe- da família desfeita pela morte da mulher
lha aqui as sensações do próprio fantas- de Arthur, pode ser considerada por al-
ma, numa comovedora comunhão. guns como demasiado adocicada, mas
À riqueza da trama acrescenta-se funciona perfeitamente, num registo ro-
a elegância da escrita de Susan Hill e a mântico.
facilidade com que conduz o leitor ao Além disso, o filme de James Wa-
longo das suas páginas, empurrando- tkins conta com uma bela fotografia,
o gentilmente para o centro da acção uma excelente construção do ambiente
e levando-o a sentir aquilo que nos diz na casa assombrada e interpretações de
que as suas personagens sentem. Nessa bom nível.
habilidade e hábil manejo das palavras A comparação com a versão televi-
reside também o êxito e a eficácia do siva de 1989 é inevitável, sendo de re-
romance. conhecer que esta tem também muitas
Cartaz do filme “The Woman in Black”
de 1989 por Herbert Wise virtudes, entre elas a de seguir mais de
perto, em diversos aspectos, a história
As Duas Versoes apenas ligeiramente – e transformou-se original.
Cinematograficas num viúvo perturbado, com problemas Um ponto difere constantemente
no seu trabalho e um filho ainda muito entre o romance e as duas versões em
xaminemos agora as duas ver- pequeno a seu cargo, o que, na verdade, filme: o estado civil do protagonista, Ar-

E
1
sões cinematográficas, acima torna o seu comportamento muito mais thur Kipps! Na realidade, Kipps é sol-
referidas. crível. teiro no romance original, viúvo, com
A primeira adaptação, des- A escolha de Daniel Radcliffe para um filho pequeno, na versão de 2012 e
tinada à televisão e da respon- desempenhar o papel de Arthur mere- casado, com um filho e uma filha, na de
sabilidade do conhecido argumentista ceu alguma reticência, havendo quem o Herbert Wise! Não é fácil decidir qual
Nigel Kneale, foi realizada em 1989 por achasse demasiado jovem para o papel das variantes resulta melhor, se bem que
Herbert Wise. O papel de Arthur Kipps e, porventura, demasiado marcado pela a de James Watkins pareça mais sólida,
– rebaptizado como “Arthur Kidd” – foi icónica figura de Harry Potter. Apesar como acima ficou dito. Por sua vez, aos
interpretado por Adrian Rawlins que, disso, Radcliffe sai-se bastante bem na responsáveis pela versão de 1989 clara-
por coincidência, viria a desempenhar representação do amargurado Kipps. mente desagradaram os nomes atribuí-
o papel de James Potter, pai de Harry Outras modificações introduzi- dos por Susan Hill às suas personagens:
Potter, nos filmes desta conhecida série, das por Jane Goldman referem-se, por Arthur Kipps transforma-se em Arthur
enquanto o papel de Harry era, como se exemplo, ao facto de a relação entre as Kidd, Samuel Daily em Sam (Samuel)
sabe, confiado a Daniel Radcliffe, que aparições do fantasma e as mortes das Toovey, sendo lícito que nos interrogue-
faz de Arthur Kipps na mais recente mos acerca das vantagens de tais modi-
versão cinematográfica de The Woman ficações.
in Black, realizada em 2012 por James Há depois outras alterações. Por
Watkins e com adaptação de Jane Gold- exemplo, no romance Arthur não morre
man. Este filme mais recente alcançou (na realidade, é ele o narrador, muitos
algum êxito, ao ponto de a firma pro- anos depois da data em que os aconte-
dutora ter já anunciado uma continua- cimentos relatados tiveram lugar), mas
ção, com o título – provavelmente ainda acaba por morrer tanto no filme de 1989
provisório – The Woman in Black: Angels como no de 2012. Por sua vez, tanto a
of Death. esposa de Arthur como o filho mor-
Mais do que um bom filme, base- rem, no romance, num acidente com
ado num bom romance, a nova adap- uma carruagem puxada por um cavalo,
tação ao cinema de The Woman in Black enquanto na versão cinematográfica de
constitui um excelente exemplo de uma 1989 toda a família se afoga num lago
boa adaptação! Na verdade, algumas das depois de ser atingida pela queda de uma
ideias do filme são mesmo superiores às árvore; na versão de 2012 Arthur é viú-
do livro. vo já no início da história, acabando por
Em primeiro lugar, Arthur Kipps morrer, com o filho, esmagados por um
deixa de ser um jovem um tanto pateta, comboio. Outro ponto de distinção é
as mais das vezes demasiado seguro de que na versão de 1989 Arthur consegue
si mesmo e das suas convicções materia- ouvir parte da história da casa e dos seus
listas, incapaz de aprender com quanto Cartaz do filme “The Woman in Black” habitantes na voz da própria Mrs. Dra-
se lhe depara. Envelheceu – se bem que de 2012 por James Watkins blow, através de gravações fonográficas,

2222 //
/// BAANNGG!!
coisa que não aparece nem no romance nem no filme mais contar a uma audiência não completamente identificada –
recente. Há também cenas que são exclusivas da versão de mas que parece pretender reduzir a pouco mais que a sua
1989, para a televisão (certamente em resultado da esfusian- própria família – tudo quanto lhe aconteceu, enquanto jovem,
te imaginação bem conhecida em Nigel Kneale, responsável na sua visita à casa da falecida Mrs. Drablow, mas reconhe-
pela adaptação): não só aquela em que Arthur deita fogo ao cendo que não tem jeito para contador de histórias, ainda que
seu gabinete, ao tentar queimar os papéis de Mrs. Drablow, verídicas e consistindo em experiências pessoais, contrata um
que lhe foram misteriosamente enviados, mas também uma jovem autor para o ajudar a montar a narrativa, que o ajudará
outra em que Arthur salva uma menina que ficou presa debai- a exorcizar medos que guardou durante muitos anos no mais
xo de troncos de árvore caídos de um carro. Resta ainda refe- profundo do seu ser.
rir que o cãozito, Spider, emprestado a Arthur para lhe fazer Os espectadores vão pois ouvindo da boca de ambos e
companhia em Eel Marsh House quase se afoga no romance, do diálogo entre eles a história da Mulher de Negro, a qual
consegue voltar para a casa de Saily/Toovey no filme de 1989, não deixa também de fazer a sua aparição (se o trocadilho é
mas não aparece de todo na versão de 2012, ou também que permitido) em cena. Curiosamente o programa não faz qual-
o enervante e assustador som da cadeira de baloiço no quarto quer referência à intérprete da sinistra figura.
da criança defunta é referido no romance e ouvido no filme Excelentemente montada, a peça consegue arrancar de
de James Watkins, enquanto na versão cinematográfica an- muitos espectadores algumas exclamações de susto, em res-
terior é substituído pelo barulho de uma bola de borracha a posta aos episódios mais inesperados e aterradores que se vão
saltar. Outros mais pormenores se poderiam evidentemente desenrolando no palco. Com 432 lugares, o Fortune Theatre
referir, mas os que ficam enunciados são já suficientes para não é muito grande, mas todas as sessões se encontram prati-
demonstrar as diferenças entre as várias obras em compara- camente esgotadas, apesar de a peça comemorar actualmente
ção. um quarto de século de exibições ininterruptas. Excluindo
De um modo geral, o nível de representação na versão famosos musicais como Les Misérables ou The Phantom of the
televisiva é de muito bom nível, salientando-se Adrian Ra- Opera, a peça só é ultrapassada em longevidade pela famosís-
wlins, no papel de Arthur, que vai de agradavelmente normal sima The Mousetrap (A Ratoeira), de Agatha Christie, consecu-
a praticamente louco de forma suficientemente convincente; tivamente em cena há nada menos de 60 anos!
um pormenor curioso consiste em ver como Mulher de Ne-
gro a actriz Pauline Moran, que muitos de nós se habituaram
a identificar, na série de televisão Agatha Christie’s Poirot, com Referências
Miss Felicity Lemon, secretária do famoso e infalível detective Susan Hill, The Woman in Black, Profile Books, 2011 (ilustra-
belga, interpretado por David Suchet. ções de Andy English)

A Peca de Teatro
estará ainda dizer algumas palavras acerca da trans-

R formação do romance The Woman in Black em peça


de teatro, segundo adaptação de Stephen Mallatratt.
Estreada no Stephen Joseph Theatre em Scarbo-
rough quatro anos depois da publicação do livro, pas-
sou a ser representada nos teatros dos West End de Londres
a partir de 1989, encontrando-se presentemente em cena no
Fortune Theatre, junto a Covent Garden. Do elenco original
Nascido em Lisboa em 1951, casado, com duas filhas
e três netos. É professor universitário de Matemática
e tem múltiplos interesses, entre os quais a Malaco-
logia, sendo editor da revista electrónica “The Cone
Collector” (www.theconecollector.com).
da produção londrina constavam os nomes de Charles Kay Na área da literatura fantástica, especialmente da
(no papel de Arthur Kipps) e de John Duttine (no papel do literatura de terror, para além de pertencer a diver-
actor), hoje substituídos, respectivamente, por Ken Drury e sos clubes, é autor de diversos contos publicados
Adam Best. em revistas.
Nesta versão teatral e seguindo, de resto, a estrutura do
próprio romance, um envelhecido Arthur Kipps, desejando

Peça de teatro “The Woman in Black”,


adaptação de Stephen Mallatratt

NG! /////
BBAANG!
NG // 233
24 /// BANG!
«Y es que, en cada ciudad, hay, amalgamadas, una
ciudad exterior y una ciudad interior, una ciudad visible
y una ciudad invisible, una ciudad histórica y una
ciudad mítica, una ciudad real y burguesa y una ciudad
imaginaria y utópica, una ciudad empírica y una ciudad
virtual, una ciudad de piedra, hierro, cristal y hormigón
y una ciudad de papel y tinta»
Lu is Garc ia J ambrina (2008)

as
As origens
cidades são construções humanas e ur- Na fc, em geral, as urbes provocam os acontecimentos;
banas mas são, também, ficções; contêm umas vezes sujeitam-se a eles, outras vezes resultam deles. As
histórias e territórios, gentes e espaços. urbes são espaços que catalisam a acção para um plano outro,
São uma invenção cultural intrínseca a mais ou menos próximo, mais ou menos distante. Em alguns
todas as narrativas. As cidades são es- casos, interferem nos elementos narrativos, são activas, estão
truturas compostas por elementos fixos ao nível das personagens, são organismos móveis ou entidades
e mutáveis, umas vezes coerentes outras nem tanto. Desde a vivas.
cidade-estado de A República (c. 300 A.C.), de Platão, à ilha de A Desde o seu início em meados do século XIX que a fc vem
Utopia (1907), de Thomas More, que as cidades são projecções ampliando ambientes e especificidades.1 Como poucas áreas
de desejos e dramas. As cidades são territórios que permanecem criativas, tem explorado a manipulação de espaços enquanto
abertos como objectos em contínua re-escrita e leitura e com mecanismo narrativo e, com isso, tem proporcionado tantas vi-
várias camadas de sentido. São pedras ou arquitecturas por assi- sões de cidades por vir quantas as cidades descritas. O pioneiro
nar, como escreveu Victor Hugo em Notre Dame de Paris (1831) Jules Verne lança uma primeira proposta de futuro para Paris
sobre a catedral parisiense mas são, também, modelos incom- com uma antecedência de quase 100 anos. Na obra Paris au XXe
pletos quando lhes falta a ficção, quando lhes falta algo para lá Siècle (1863) a arquitectura da cidade em 1960 é a de um aparato
das visões reais. Por tudo isto e muito mais, o par cidade-ficção é metropolitano e tecnológico próximo das transformações ur-
uma espécie inseparável de causa-efeito; e este texto tenta apon- banas que se seguiriam no século XX. Edifícios construídos em
tar algumas ligações entre as cidades e a ficção científica (fc) que altura, veículos motorizados individuais ou redes ferroviárias
sobre elas ou com elas se tem desenvolvido. Talvez por isso as silenciosas de transporte colectivo anunciam uma densidade e
narrativas têm também evoluído com as cidades e os territórios. um movimento a despontar nas capitais ocidentais. Nesta ge-
Elas nascem, vivem ou morrem com cada ficção e, nesses mo- nealogia e cerca de um quarto de século depois, o caricaturis-
mentos, tornam-se sempre lugares plausíveis. ta Albert Robida publica outra visão do mesmo lugar em Le

BANG! /// 25
esta procure preparar um futuro a narrativa. Se calhar por ter nome
100 anos, entre 1903 e 2003, e com genérico mas, com certeza, pela
base narrativa semelhante, ancora- verticalidade, sectorização, obscu-
da ao passageiro no tempo. ridade e trânsito, aquela cidade fa-
Muito próxima, cronológi- bril (e febril) não deixa, ainda hoje,
ca e geograficamente, a capital de ressoar em alguns aspectos das
portuguesa torna-se também cidades contemporâneas.
objecto de experimentação fic-
cional científica. No artigo Lis-
boa no ano 20000 (1906),2 escrito O s l ugares
pelo engenheiro Melo de Matos,
estruturas como metropolitanos
elevados ou veículos em balão
de ar quente ocupam e saturam
NLisboa,
a primeira metade do século ,
cidades como Paris, Londres,
Berlim, Nova Iorque, Wa-
XX

© Paris: G. Decaux a paisagem e o carácter da cida- shington D.C., Los Angeles, ou San
(1ªedição: 1883) de. A permanência de dispositivos Francisco, são material suficiente
de escala industrial (à época pouco para o desenvolvimento de histó-
desenvolvida no país) é a maior rias do futuro. Os modelos urba-
diferença para aquele contexto en- nos que esses lugares representam
tre o citadino e o provinciano da tanto permitem a verosimilhança
pré-república portuguesa. O vidro, necessária ao reconhecimento do
o ferro e o aço, a par do vapor, da leitor ou espectador quanto a inve-
© Berlim: Universum electricidade3 e do motor de explo- rosimilhança de mundos distantes.
Film AG (1927) Autoria são são os elementos próprios da Cada um destes lugares tem perfis
de Heinz Schulz-Neudamm tecnologia e da arquitectura no fi- e propriedades que possibilitam
nal do século XIX e arranque do XX. visões outras. A fc, na literatura e 1
Com eles as cidades ganham novas no cinema, existe para além da sua
Vingtième Siècle: la Vie Électriquee (1890). No volume, que formas e concretizações também história e percorre passados, pre-
coloca a capital francesa no ano de 1955, a circulação de na literatura de fc. sentes e futuros; e é, nesse sentido,
veículos aéreos e a apropriação de ícones como o Arc Naquela altura, os materiais uma hipótese tão ou mais válida de
de Triomphe propõem uma utopia parisiense pós-in- sofisticados que ficcionam os es- observação e representação das ci-
dustrial e pré-modernista aparentemente reconhecível. paços são, na verdade, aqueles que dades quanto um levantamento de
Contemporaneamente, autores britânicos como se tornariam correntes a breve tre- dados ou uma peça de jornal. Es-
George Griffith ou H. G. Wells incluem também a ci- cho; são os que no primeiro quar- sencialmente a fc poderá significar
dade de Londres nas suas perspectivas futuras. Wells, tel do século XXX se tornam objecto um método de rigor na caracteri-
autor entre outras obras de Time Machinee (1895) e The de modernidade e progresso. As zação e compreensão das cidades
War of the Worldss (1898), introduz vários desequilíbrios populações urbanas crescem num actuais. Como escreve Bruce Ster-
narrativos que partem de novos e improváveis aconte- êxodo rural acelerado e em busca ling, na antologia de contos cyber-
cimentos na periferia da capital inglesa. Em A Guerra de trabalho, fenómeno tal que pro- punk Mirrorshadess (1986), a fc não
dos Mundos,s os relatos do aparecimento de estranhas e duz uma nova e imensa classe ope- deixa de ser um reflexo do futuroo dos
destruidoras criaturas vem dos subúrbios da cidade e rária circunstancialmente inadap- dramas, das pessoas... e dos lugares
não do centro consolidado e institucional de Londres. tada à cidade. Um filme como do presente.
Por sua vez, When the Sleeper Awakes (1899), outro conto Metropoliss (1927), de Fritz Lang, Londres é aliás uma urbe fér-
de Wells, continua a exploração de espaços londrinos, demonstra exemplarmente esse til para a fc. Para além das obras
já no centro da cidade, no ano de 2102. É, talvez, sin- desajuste humano a par da ambi- de Wells, e sobre as quais algu-
tomático que a primeira impressão e maior surpresa do ção técnica. Projectada à distância ma da bibliografia do género se
protagonista seja exactamente a da monumentalidade de 100 anos, a metrópole recorre estabeleceu, é difícil não esque-
arquitectónica da cidade. Descreve o narrador que es- a uma divergência entre o humano cer livros como Brave New World
truturas de escala “titânica” se espalham em todas as e o urbano de tal modo violenta (1932), de Aldous Huxley, Nine-
direcções, num sistema urbano de pontes suspensas e que a consequência é a aniquilação teen Eighty-Fourr (1949), de George
ruas curvas. Aos olhos daquele viajante no tempo – sle- final da urbe moderna. Em con- Orwell, The Drowned Worldd (1962),
eperr –, a metrópole britânica é confusa e preenchida por traposição, no filme, está a resis- de J. G. Ballard, ou o romance grá-
cabos, projecções de luz e edifícios com inúmeras jane- tência da urbe antiga representada fico V for Vendetta (1982-1988), de
las de vidro, numa acumulação excessiva de movimento na catedral gótica. A relevância da Alan Moore e David Lloyd. Em
e repetição. Um pouco mais tardia é a obra Le Meraviglie cidade é tal que o filme fica reduzi- qualquer uma destas obras, Lon-
del Duemilaa (1907), de Emilio Salgari, ainda que também do a uma indistinção entre urbe e dres é palco de experiências de
poder e domínio, de catarse e des-

1
truição. Brave New World,d uma obra publi- lectiva cujo resultado é, nada menos, que
cada entre guerras, divide o território em o saneamento e a limpeza extrema da ci-
função de classes bio-sociais, entre uma dade. Nessas obras, o quotidiano isolado
zona civilizada e outra selvagem. Nineteen do protagonista, que é sempre um cien-
Eighty-Four,r escrito durante a década se- tista, encontra-se num esquema de usos
guinte, toma o Reino Unido – a Pista Um rígidos e separado entre dia e noite, entre
– no ano de 1984 como o corolário espa- o espaço público acessível e o espaço do-
cial de decisões globais políticas, militares méstico prisional. A luz proporciona-lhe
e de vigilância. The Drowned Worldd faz uso liberdade e a escuridão o pânico; à vez é
da catástrofe para designar problemas sujeito dominante e à vez é sujeito domi-
© Londres: Chatto
ambientais e individuais correntes. V for nado. À vez, cada uma dessas cidades é
& Windus (1932)
a por seu lado, lança uma hipó-
Vendetta, um espaço distópico e utópico.
tese paradoxal para o ano de 1997 reco- De resto há sempre situações onde
nhecendo na destruição arquitectónica a o território urbano surge como um labi-
resposta prática de reconstrução urbana rinto mas de base abstracta, longe de re-
e política. No fim, e embora sejam obras ferências ou contextos reais. Nóss (1921),
de contido aparato tecnológico, o territó- de Yevgeny Zamyatin, faz uso do vi-
rio que exploram surge essencialmente dro para desenvolver uma crítica sobre
como campo de análise social e totalitá- a estética construtivista ao serviço de
ria. Entre a ordem e a anarquia, são obras um regime hipoteticamente soviético.
com acção nas ruas e praças da cidade e, O livro propõe uma estrutura urbana
também por isso, com pertinência históri- totalmente transparente e inexequível à
ca. No cinema filmado em Londres, mais época mas constituída por fascinantes
que as duas versões homónimas da obra formas modulares. Neste livro, o autor
de Orwell (1956 e 1984) ou V for Vendetta apela às características do material para
(2005), parece ser da mais elementar jus- denunciar questões colectivas numa ci-
teza referir a versão A Clockwork Orange dade totalmente exposta. Trata-se, afi-
(1971) de Stanley Kubrick, um caso com © Nova Iorque: Gold nal, de um registo armadilhado sobre
a particularidade da rodagem acontecer Medal Books (1954) a transparência e a reflexividade.4 Por
quase totalmente em espaços constru- outro lado, uma das ficções como é El
ídos na cidade, capazes de reivindicar a Jardín de Senderos que se Bifurcann (1941),
violência e incomunicabilidade naquele de Jorge Luis Borges, propõe um lugar
contexto de revisão do modernismo ar- que, sendo aparentemente opaco, não
quitectónico e urbano pós-sixties. deixa também de levar à queda todos
Por outro lado, o tema da sobrepo- os que nele habitem. Ou, porque não
pulação ou do controlo demográfico lembrar The Man in the Maze (1969), de
define ainda outra das genealogias da fc, Robert Silverberg, que coloca o dédalo5
como sucede no filme Gattacaa (1996), de ainda mais no centro da narrativa? Nes-
Andrew Niccol, numa interessante rein- se livro, a cidade habitada ao longo de
venção e readaptação de Admirável Mundo
Novo. E há ainda o caminho das narrati-
vas que se propõem abordar a condição © Nova Iorque:
de último sobrevivente. Na tradição fun- Ballantine (1953)
dada por The Last Mann (1826), de Mary
Shelley, o confronto do indivíduo solitá-
© Nova Iorque: Signet
rio perante a adversidade do território ou
(1957) Autoria do
da região é igualmente um tema literário.
desenho da capa por
Um exemplo é a obra I Am Legend (1954),
Richard Powers
de Richard Matheson, que origina pelo
menos três adaptações cinematográficas,
cada qual em distintas urbes: The Last
Man on Earthh (1964), de Ubaldo Ragona
e Sidney Salkow, é rodado em Roma; The
Omega Mann (1971), de Boris Sagal, em
Los Angeles; e a homónima I Am Legend
(2007), de Francis Lawrence, em Nova
Iorque. No original e nas suas versões, o
protagonista enfrenta sempre a desolação
urbana como consequência de um flage-
lo humano. Numa linha semelhante, The
White Plaguee (1982), de Frank Herbert,
projecta Boston na década de 1990 para
reflectir sobre uma doença humana co-
© Nova Iorque: ACE
Books (1967)
BBAANNGG! ///// 2277 5
nove anos pelo protagonista resistente vem mais das suas familiaridades que dos
é um labirinto de ciladas e ilusões. A ci- interesses geográficos. Alguns escritores
dade, mais que um espaço, é também estabelecem a sua ficção a partir do espa-
um aparelho arquitectónico clássico. No ço que habitam e onde se movem. Dois
cinema, THX 1138 (1971), de George autores contemporâneos, por exemplo,
Lucas, continua essa exploração através coincidem num lugar que é a conurbação
de uma narrativa sem fuga aparente e ao de Los Angeles: Ray Bradbury e Philip
longo de espaços interiores, confinados K. Dick. Bradbury escreve obras primas
e sem profundidade.6 sobre L.A. apesar de nunca citar a cidade
Mas, para além da ideia de last man, © Paris: Les onde decorre a acção; como acontece no
há também a ideia de last city. A ideia das Humanoïdes Associés conto The Pedestrian (1951), localizado em
cidades sobreviventes mas débeis peran- (1976) Autoria dos 2053, ou no livro Fahrenheit 451 (1953), lo-
te um cenário pós-catástrofe é também desenhos por Jean calizado num tempo genérico pós-1990.
assunto recorrente na fc. Clifford D. Giraud Em ambas as obras, o espaço urbano
Simak escreve os vários contos de City assenta sobretudo no modelo de subúr-
(1944-1952) numa apologia da sustenta- bio norte-americano do 2º pós-guerra
bilidade urbana pós-holocausto e, assim, reconhecido e amplamente explorado
propondo novos lugares como refúgio. na cidade dos anjos. K. Dick, por exemplo,
Edmond Hamilton escreve City at World’s regressa exaustivamente ao seu espaço
End (1951) sugerindo Middletown, uma reconhecível, que tanto passa pela cida-
aparente cidade-modelo norte-americana, de angelina como pelo mais vasto Esta-
como o último abrigo no planeta Terra do da Califórnia. Enquanto Do Androids
que entretanto se tornou desértico e ás- Dream of Electric Sheep? (1968) ocorre em
pero. Arthur C. Clarke escreve The City San Francisco e, originalmente, no ano
and the Stars (1956) com base na cidade quase iminente de 1992, A Scanner Darkly
fictícia e encapsulada de Diaspar, a última (1977) desenvolve-se num subúrbio de
urbe no planeta. No cinema, por exem- Orange County em 1994. Embora alguns
plo, Michael Anderson realiza Logan’s Run destes territórios não sejam mencionados,
(1976) com base numa cidade-maqueta não deixam de se identificar com os seus
ideal semelhante a um conjunto de cúpu- © Nova Iorque: DC sub-textos. Questões de censura ou segu-
las na periferia de Washington D.C.. Por Comics (1989) rança e drogas ou sexualidade são moti-
sua vez, a actual capital norte-americana vos que remetem para aquela urbe a cada
parece desaparecer em ruína. Em Brazil época específica.
(1985), de Terry Gilliam, a cidade emerge, Blade Runner (1982), de Ridley Scott,
como se nascesse e crescesse com estron- um filme da adaptação livre de Do Androi-
do. Em Dark City (1998), de Alex Proyas, ds Dream of Electric Sheep?, reinventa uma
a cidade encobre-se e descobre-se. Nes- cidade nocturna de ruas enevoadas para
te último caso, a cidade negra é, ao mesmo desenvolver uma história de indefinição e
tempo, uma máquina, um planeta e um dúvida sobre a máquina e o humano. Por
agente narrativo, é um instrumento urba- oposição, a primeira série Terminator (1984
no que respira e afecta a percepção. e 1991), realizada por James Cameron,
A territorialização tem sido, com reinventa a mesma cidade diurna de ca-
efeito, um pretexto criativo de muitos nais abandonados para desenvolver uma
autores, especialmente durante a “era história de perseguição e luta sobre o mes-
dourada” americana da fc. Isaac Asimov mo binómio: a máquina e o humano. Es-
escreve os contos de I, Robot (entre 1940 e cape from L.A. (1996), de John Carpenter,
1950) recorrendo a cidades-fundo como © Gaumont (1997) ou a recente versão cinematográfica Battle:
Nova Iorque ou Chicago. Philip José LA (2011), exageram ainda mais o estado
Farmer escreve The Lovers (1961) reno- de confronto urbano, fazendo evoluir as-
meando Montreal de Sigmen City. Ro- sim a cidade para campo de batalha.
bert Heinlein escreve Stranger in a Strange Do outro lado do continente nor-
Land (1961) sobre o trânsito entre regiões te-americano está Nova Iorque a funcio-
orbitais, especificamente, entre a Terra e nar como o território inverso. Se Los An-
Marte. Ursula K. Le Guin escreve City of geles é horizontal, Nova Iorque é vertical;
Illusions (1967) numa projecção distante se L.A. é um lugar centrífugo, N.Y.C. é
futurista do continente norte-americano. um lugar centrípeto; Los Angeles é uma
Brian Aldiss escreve Supertoys last All urbe dispersa, Nova Iorque é densa. Por
Summer Long (1969) voltando a colocar isto as narrativas são, na maioria, opos-
a narrativa entre cidades sobrepovoadas tas. Escape from New York (1981), de John
sem nome mas apontando para as urbes Carpenter, ficciona Manhattan como uma
como lugares humanos e territórios des- prisão de alta segurança no ano de 1997.
cartáveis, de lixo. A lista é infindável mas In the Country of Last Things (1987), de Paul
há autores cujo entendimento das urbes © Los Angeles: New Auster, sem indicar o nome da urbe, não
Line Cinema/Mystery
Clock Cinema (1998)
deixa de referenciar a grelha nova-iorqui- nem identidade para além do seu desastre.
na e as suas ruas todas iguaiss para caracte- Naquele território urbano pós-nuclear
rizar um espaço sem ordem nem futuro. a figura humana move-se num percurso
Mais recentemente a série comic DMZ devastado e sem referências que a liguem
(2005-2012), de Brian Wood e Riccardo ao mundo. Do lado norte-americano,
Burchielli, representa a cidade num hi- resta tomar como exemplo obras como
potético futuro próximo de guerra civil The Postmann (1985), de David Brin, ouu The
e toma, novamente, aquela metrópole Roadd (2006), de Cormac McCarthy.
como um enclave. Em todos os casos, a
cidade funciona como dispositivo de cár-
cere e o facto de Manhattan ser uma ilha As f i cções
permite esta percepção de autonomia e
singularidade territoriais. The Fifth Element
(1995), o filme de Luc Besson, com ac-
ção na cidade em meados do século XXIII
Hveis;istoricamente as formas e dimensões
físicas das cidades nunca foram está-
aliás, reside nesse ponto a sua impor-
parece também revelar a densidade como tância. Não sendo as cidades, portanto,
tema. Tema esse que lembra as pranchas coisas fixas ou cristalizadas (quando tal
de The Long Tomorrow (1976), de Jean acontece estarão em processo de extin-
“Moebius” Giraud e Dan O’Bannon, ção), são corpos em contínua transfor- © Nova Iorque:
na visão de uma cidade excessivamente mação e é esse o seu fascínio. Em jeito de Ballantine (1953)
ocupada, colorida e suja.7 Em The Fifth pré-conclusão, poder-se-ia dizer que à fc
Element,t a verticalidade é tão explorada tanto serve o território urbano, o exces-
nos edifícios e na sobreposição de vias sivo e sobrepovoado, quanto o abando- luzes, e Londres, a capital pós-industrial
aéreas de circulação quanto na própria nado e desabitado; tanto serve o territó- e pós-vitoriana. No arranque do século
topografia da ilha. Manhattan surge com rio plausível quanto o implausível; tanto XXX surgiram as cidades norte-americanas
as margens para o rio Hudson em falésia serve o real quanto o irreal; tanto serve o com particular força narrativa em Nova
devido à descida do nível das águas. Sobre figurativo quanto o abstracto; tanto serve Iorque, a cidade moderna, ou Washington
verticalidade e na proximidade de um rio, o lento quanto o acelerado. Tanto serve o D.C., a cidade monumental. Um pouco
embora sem pretensões sobre o género de hoje como o de ontem. mais tarde, entre e pós-Guerras, surgiu
literário, poder-se-á também mencionar Los Angeles, a cidade-subúrbio. Nos anos
Lisboa. Uma Noite Não São Diass (2009), ’50 apareceram as urbes em Marte, com
de Mário Zambujal, projecta a cidade no A séri e as suas cidades-cúpula, e nos anos ’60
esquisito ano de 2044. emergiu San Francisco, a cidade homóni-
As Cidades na Ficção Científicaa é uma série ma (i.e. SF8). Nos anos ’70 veio Tóquio,
de três episódios sobre a representação a cidade pós-moderna e, daí para cá, um
E nt r e os l u g ar e s das cidades no género. A partir de um le- sprawll urbano e contínuo vem cobrindo
vantamento de obras enquadradas na fc todo o território livre.

C(1979),
om as cidades há sempre a ideia de tentaremos desenvolver uma visão e uma Enfim, se é verdade que todas as cida-
trânsito, de percurso entre elas. Stalker versão da história das cidades ao longo des representadas na literatura e no cine-
o filme de Andrej Tarkovsky ins- dos últimos 160 anos. Para nós, cidades ma existem com diferentes formas, tam-
pirado em Roadside Picnic (1972), dos ir- e fc são parte de uma só ideia, são cor- bém é verdade que o fazem com maior
mãos Arkady e Boris Strugatsky, vai mais pos indissociáveis, e tanto a ficção está intensidade, na fc.
longe na intangibilidade de lugar destro- enraizada nas cidades como acontece o
çado. O problema da busca e deambula- contrário.
ção é uma permanência. A Zona, a como é Tal como hoje conhecemos o géne-
referido o espaço de desejo e imortalidade ro, tudo começou na Europa em meados
das personagens, é uma ruína sem limite do século XIXX entre Paris, a capital das

[1] Embora a fc só tenha sido nomeada, en- [4] Assumindo, em certa medida, o elogio que é
quanto género literário, no final da década de a obra Glasarchitektur (1914) de Paul Scheerbart.
1920, pelo editor e inventor Hugo Gernsback. [5] A obra tem, na edição portuguesa, o título
[2] Publicado originalmente na revista Ilustração Labirinto.
Portugueza, este texto teve seguimento em O [6] O espaço mais reconhecível é um túnel
João Rosmaninho (n. 1979) é licenciado
Turno da Noite, de João Barreiros, publicado na viário na Baía de San Francisco. em arquitectura e mestre em ciências da
revista BANG! #10. Posteriormente foi ainda [7] Trata-se de um modelo, por sinal, muito comunicação. É docente na Universidade
editada a antologia Lisboa no Ano 2000, na qual nova-iorquino e que lembra a cidade dos so- do Minho onde desenvolve, actualmente,
se desenvolveram alguns dos imaginários lança- nhos de Little Nemo in Slumberland (1905-1914) investigação de doutoramento sobre as
dos no princípio do Século XX. de Winsor McCay. relações entre as cidades e o cinema.
[3] No caso da ficção estes elementos consti- [8] Curiosamente, SF, as letras iniciais de San Todos os seus campos de interesse
tuem uma caracterização de estilo actualmente Francisco, compõe também o acrónimo de convergem na ficção.
classificada como steampunk ou electropunk. Science Fiction.

BANG! /// 29
3 //
30 / / BBAN
A G!
ANG
Zezinho e Emília chegaram à varanda rindo, pingando lama no pavimento
de ladrilhos florais. Com o escarlate do céu crepuscular iluminando suas
silhuetas, pareciam dois fantasmas ensanguentados gotejando coágulos.
– Seus capetas! Vão já tomar banho! – Gritou Vó Benta, sacudindo o braço
pelancudo em riste, desfigurando o costumeiro ar maternal na vermelhidão do
rosto. – Primeiro você, Emília! Isso lá é brincadeira de menina!
A garota tinha imundície desde as meias coloridas, até os cachos dourados
dos cabelos. Pela quantidade de matéria vegetal agarrada nas roupas, no
mínimo seguiu o primo em uma de suas explorações pelas matas do sítio.

NGG! //
BANG
BA /// 31
3
– A culpa é dele, vó! – justificou-se mastodônticos, contudo, movia-se com condecorado pelo próprio Duque de
a garota, apontando um dedo de Judas. delicadeza suficiente para não ranger as Caxias. Segundo as fofocas dos jantares
– Não me interessa! – A matriarca tábuas corridas no assoalho, enquanto de Natal, falecera louco, abandonado
suspirou, coçando os cantos dos olhos cruzava o pórtico da cozinha rústica. pelos amigos num sanatório.
por baixo dos óculos redondos. – Vai Zezinho subiu as escadas em dire- Abriu o baú que gemeu suas dobra-
logo Emília, a janta está quase pronta! ção ao seu quarto, no segundo andar. diças. Ele cerrou os dentes, apertando as
Zezinho abaixou a cabeça respei- Quando segurava a maçaneta para en- pálpebras, esperando que aquela careta
tosamente, aguardando um esporro de trar, algo chamou-lhe a atenção... tivesse a habilidade sobrenatural de ex-
proporções bíblicas. Nos fundos do corredor, o quar- tinguir o ruído. Esperou uns dois minu-
– Garoto, presta atenção... – O tom tinho proibido estava entreaberto. A tos em silêncio. Como não detectou os
suavizara, voltando a ser a sexagenária porta pintada de branco sempre estivera passos contrariados da avó, prosseguiu.
atenciosa de sempre. – Você poderia aferrolhada com um cadeado de ferro, O conteúdo da arca emanava um
ter se machucado. A floresta tá cheia de intocada, graças às advertências da avó, odor de coisa antiga, proibida. Um mis-
espinho e capim navalha. – A avó afa- porém, hoje, estava ali, indo e voltando, to de mofo e naftalina que não era in-
gou-lhe a franja, derrubando um carra- empurrada pela brisa de verão. teiramente desagradável. Viu uma foto
picho que se prendeu nas sobrancelhas Vovó dizia que ali era o depósito da apagada de Tio Sinésio. Achava que fo-
grossas do menino. – Agora limpa os família, um lugar exclusivo para adultos, tografias de finados sempre tinham um
pés no tapete e toma um banho. Eu fiz não crianças. ar assombrado e sinistro, como se a fi-
cozido. Ponderando se deveria ceder à gura eternizada ali fosse piscar ou sorrir
curiosidade, acabou correndo o risco. a qualquer momento.
Ele sorriu, imaginando Ah que mal pode fazer? Mas o medo diminuiu ao surpre-
O menino esgueirou-se sorrateira- ender-se com as semelhanças físicas
o gosto da carne e dos mente, tomando cuidado para não pisar que compartilhava com aquele mítico
numa tábua solta. A dona da casa tinha Tio-avô. Herdaram as mesmas sobran-
legumes derretendo na ouvido de tuberculoso e escutava tra- celhas unidas em cima dos olhos. Um
língua. Vó Benta era uma quinices a quilômetros de distância. bigode fino conferia ao homem um ar 1
Colocou a cabeça para dentro da respeitoso, severo.
cozinheira de mão cheia e fresta, deixando a escuridão do cômo- Explorou o tesouro um pouco mais,
do guilhotinar seu pescoço. Um tímido e achou uma velha farda do exército, toda
só ficava satisfeita quando faixo de sol penetrando por um buraco esfarrapada. Medalhas e condecorações
no telhado iluminava um baú rústico. por bravura ornamentavam os cortes
entupia os netos de comida Refletidos dentro do raio solar, grãos nos ombros. Aquela roupa emanava uma
de poeira gravitavam como minúsculos tristeza profunda. Era a prova de que um
até as amigdalas. Naquele cinturões de asteroides. dia alguém a vestira, e agora, nem mesmo
Para um menino de dez anos um seu cheiro permanecia no mundo.
tempo, termos como holofote apontando para uma arca es- Um objeto fino e elegante des-
“alimentação balanceada” condida significava a interferência do viou-lhe o olhar. Como todas as crian-
destino estimulando uma aventura. ças daquela fase, jamais conseguia pres-
e “nutrição adequada” Mesmo sendo apenas um baú comum, tar a atenção em alguma coisa por muito
ele só pensava em uma possibilidade: tempo.
eram tão exóticos quanto Tesouro! Era um cachimbo de bambu fina--
Entrou esbaforido, arrependendo-se mente trabalhado. Uma peça feita a
um Mc Donalds numa quase instantaneamente. Por um instan- mão, um pouco longa demais. Entalhess
te estacou de terror, imaginando alguma de pica-paus pintados de amarelo for--
aldeia Xingu. lagartixa aproximando-se nas sombras. mavam um arabesco em espiral, conver--
Tinha pavor de répteis, e seus piores gindo para o pito. Embaixo do cachim--
– Tem milho, vó? – Inquiriu Emília. pesadelos envolviam ser perseguido na bo, encontrou um diário encadernado o
– Ah tem! Milhos enormes que o floresta por uma mulher-lagarto cheia em couro. Tirou o caderno e repousouu
Seu Pedrinho trouxe. Ele guardou os de presas afiadas. ao lado.
melhores para mim. – Confirmou a ma- Tentando reduzir o pânico, procu- Quando seu avô, o Visconde, es--
trona. rou por um lampião. Tateando sobre tava em casa, gostava muito de fumarr
– Oba! – Exclamou a menina, cor- velhas fotografias, roupas cheias de cachimbo em sua vasta biblioteca. Ze--
rendo com rara satisfação para o chu- traças, e outros cacarecos, achou o que zinho apreciava o aroma acre do tabaco o
veiro. queria. Convenientemente, havia fós- queimando, mesmo quando lhe provo--
Zezinho arrastou os pés no capa- foros também. Acendeu a luminária, cava lágrimas e tosse.
cho e entrou naquela casa aconchegan- tomando o cuidado de fechar a porta Homens fumavam, então também m
te. Quase tudo era em madeira de lei e atrás de si. deveria fumar, afinal tinha quase onzee
azulejos barrocos. Um útero acolhedor, Ajoelhou-se em frente à enigmática anos. Já não era nenhum moleque. A
típico das zonas rurais abastadas. caixa. Um adesivo com letras gastas avi- fumaça deixou seu avô forte e impo--
Vó Benta retornou aos seus afaze- sava que era propriedade de Tio Sinésio. nente, e ele queria ser como ele paraa
res, meneando a cabeça, sorrindo os lá- Zezinho jamais o conhecera pessoal- poder entrar na biblioteca a hora quee
bios enrugados. Era uma senhora gran- mente, mas ouvira as lendas a respeito. quisesse.
de, com carne farta abraçando ossos Era um herói da Guerra do Paraguai, Pegou os fósforos desajeitadamentee
e acendeu o resquício de tabaco socado ali dentro. Um gostto daa mettad
a e ddoo con-
de flores mortas e relva seca encheu-lhe a boca. A gargantta ting
ngenen
nte
t . Re
Rest
star
a am
incendiou-se, provocando uma tosse convulsiva... cinq
nqque
uent
ntaa e três sol-
nt
Mas ao invés de exalar fumaça, um torvelinho de pétalaas dados, uma tropa ínfima paraa con-
brancas partiu de seus lábios, espiralando pelo ar, animadaas frontar uma legião de gringos.
por um titereiro invisível. Mas não se tratava de vencer ou morrrer e,
Zezinho ficou encantado com aquilo. As pequenas folhaas e sim de resistir com bravura. Milittaress
saíam, fazendo-lhe cócegas no céu na boca. Tragou novamen n- burocratas não se destacavam pela in-
te, e dessa vez soltou um punhado de mariposas coloridas quue teligência ou senso de praticidade.
cintilavam os espectros do arco íris em suas asas sedosas. Era demasiadamente fácil para co- ro
onéis e
O cachimbo era mágico! generais mandarem que se sacrifi- casssemm pela
Mal conseguia conter a excitação de descobrir mais sobrre pátria. Difícil era eles levantarem m os traseiro
os flácidos
aquele artefato incrível. Apagou a chama com medo que vó de suas escrivaninhas, e manter o patrioti t sm
ti mo com uma bala
Benta sentisse o cheiro. Mas cheiro de quê? Não havia fuu- de chumbo fumegando nas entran a has.
maça, só o fôlego criador da natureza. Um perfume de terrra Antes de ser iludido por essee n naacional
a is
i mo irracionaall,, Si-
i
molhada depois da garoa. nésio fora um homem de teoriia, não de prrátic ica.
a Lece iona
nava
Afinal, de onde viera aquilo? Se havia alguma respostta literatura e gramática em Taubaté. Perdido ali, ttãão lo l ngge daa
para a charada, ela certamente estaria nas linhas daquele pee- civilização, a antiga fleuma intelectual cedera ao sellvageem es e-
queno caderno. condido nos recônditos de sua mente. Se a esposaa o visssee
Curioso, abriu o diário e começou a ler: agora, certamente teria dificuldades em reconhecê- ê lo
o: peelee
curtida em sol,sol sujeira,
sujeira e ferida cicatrizando.
cicatrizando O bigode dee – ou-
ou
Relatório de campanha, Agosto de 1866. trora aparado com elegância máscula – um chumaço emara-
nhado na barba eremítica.
Naqueles dias de inferno, a floresta brincava conosco. O ar Cuspiu no chão, olhando para seus homens em ativida-
quente e úmido só alimentava a sensação de que todo aquele de. O acampamento vivia uma rotina indolente. A comida
verde era um monstro baforando em nossas nucas. Nem os pás- não chegava com frequência e eles precisavam se aventurar
saros cantavam naquelas bandas. Era sempre silencioso, não o entre os arbustos para caçar alguma coisa. Um de seus sol-
silêncio silvestre da natureza, mas a calmaria predatória que dados, o índio Carlos Cupiaçaba – Cuca para os íntimos
– estava sobrecarregado. Além de ensinar os outros a cap-
antecede o ataque... turar animais e pescar naqueles riachos barrentos, também
rastreava os inimigos para a tropa. Era o único com com-

O
petência para ler nos elementos da natureza os sinais do
capitão Sinésio Monteiro bebeu um gole de água na mo-
homem branco.
ringa. O líquido deslizou pela garganta, rescindindo a
Falando no Diabo, Cuca e mais dois homens voltavam
barro e minério de ferro. O calor da mata era sufocante,
e por mais que tragasse toda aquela garrafa, não conseguiria da mata com uma expressão derrotista. Há dois dias procu-
compensar o banho de suor que colava suas costas à farda ravam indícios do Cabo Aurélio, desaparecido durante uma
encardida. vigília noturna. Ninguém sabia o que lhe aconteceu. A úni-
Mosquitos orbitavam ao redor de seu cabelo negro, dei- ca evidência de que ele existira alguma vez nesse mundo de
xando-o ainda mais irritado. Era o líder daquela companhia. Deus era a faca largada nos limites da selva.
Não poderia dar-se ao luxo de perder o controle, não depois – Nadinha dele, Capitão – Disse o soldado de pele ver-
do desaparecimento do Cabo Aurélio. melha, aproximando-se. – Desci o rio dois quilômetro mais
Os homens estavam irrequietos, dardejando olhares hesi- Otávio e Praça Ribeiro, e não achamo o cabo. A essa altura
tantes para a floresta. Sabia que eles não estavam procurando deve di tá todo carcomido pelos bicho. Tem monte di onça
inimigos... nessas banda.
Era a própria mata que os intimidava. Sinésio espantou os mosquitos, dizendo:
Numa olhada inocente, parecia apenas um bosque co- –Não achou nada mesmo? Nem a medalha de identifi-
mum, ordinário como tantos outros que já vira na vida. Não cação?
obstante, uma investigação minuciosa fazia o animal perdido – Não – O índio coçou a cabeça, olhando para as botas
em seus genes aguçar-lhe os instintos, pressentindo naquela – Mas achamo um troço meio esquisito preso, lá nas preda
quietude uma ameaça velada. Não havia ali os sons subjacen- do rio.
tes da vida silvestre, nem mesmo um único criquilar de grilo. Uma mão fria dedilhou a nuca do capitão.
Aquela era uma vegetação amaldiçoada, temida até pelos mais
A – Que coisa esquisita, como assim?
estúpidos filhos da natureza. Sinésio olhou para os homens atrás de Cuca. Eles fin-
Foram deslocados para aquele fim de mundo, próximo giam que não sabiam do que estava falando. Saíram de fini-
a um afluente da Bacia da Prata. Os soldados de Francisco nho, procurando alguma coisa para fazer entre as barracas do
Solano rondavam o lugar, tentando estender as fronteiras do acampamento.
Paraguai, e abrir caminho até o Atlântico. Os rumores diziam O índio manteve-se em silêncio, revirando os olhos para
que o ditador queria agora tomar o Rio Grande do Sul, e já cima como se buscasse na testa as palavras corretas para falar.
havia cercado a província de Corrientes, na Argentina. – Fala homem! – Explodiu Sinésio. Não precisava de
Não permitiria que aquela campanha prosseguisse onde mais suspense para terminar de devastar seus nervos em
quer que fosse. As ordens do Alto Comando eram expres- frangalhos.
sas: Guarnecer os pontos estratégicos até o último homem Cuca levou um susto, explicando:
tombar. E não eram muitos. A febre amarela sepultou mais – Se voismicê quisé, posso leva tu lá pá vê. – Ofereceu
com seu português campestre. – Nóis de madeira. Cabelos e barba simulados
num teve coragem de ih lá pra confiri. por folhagens, mãos e pés feitos com
Capitão Monteiro largou a moringa minúsculos ciprestes, dedos de raízes
e inquiriu: retorcidas. Estreitou a distância, ficando
– Estamos esperando o quê então? impressionado com o detalhismo das
– E saiu na frente, ajeitando a bandolei- feições: as linhas de expressão no rosto
ra do rifle nas costas. fariam inveja à mais sensível obra prima
Ele e Cuca voltaram para as maatas, de Michelangelo. Órbitas preenchidas
caminhando com passadas rápidass. O por duas amêndoas entalhadas, emulan-
ritmo da jornada nada tinha a ver ccom do o olhar vitrificado da surpresa ou do
determinação... E foi quando horror.
Estavam com medo de que a noite Notou que o brilho vinha de um re-
preta e maligna caísse sobre eles antes alguma coisa puxou o tângulo de metal preso ao pescoço. Pa-
recia uma medalha de identificação.
de retornarem ao acampamento.
Com um frio soprando do estôma-

M
as que Diabo é aquilo? – In-
gigante para a mata. go, Sinésio nem precisou chegar mais
– dagou Sinésio, apontando para perto para entender o que estava vendo.
algo brilhando entre as rochas Foi tão repentino Aquela árvore era o Cabo Aurélio.

D
que dividiam a correnteza do rio.
O sol da tarde era uma gema incan- que piscou os olhos, epois de falarem ao restante dos
descente, lançando suas chamas sobre soldados o que tinham visto, Siné-
o objeto de sua curiosidade. O Capitão achando que estava sio e Cuca ficaram o resto da tarde
não conseguia discernir as formas por- calados, esperando que ao ignorar o as-
que alguma coisa estava refletindo a luz, alucinando, ou sendo sunto, pudessem refazer a realidade aos
fragmentando os raios num gigantesco seus caprichos, e trazer Cabo Aurélio
ouriço luminoso. uma vítima de ilusão são e salvo da floresta.
O calor diurno foi cedendo lugar ao
– Eu que num vô lá discobri! – Dis-
sereno, anunciando sua presença nos
se Cuca, sombreando a fronte com a
mão para bloquear a claridade.
de ótica provocada ventos glaciais, soprados do Oeste. A
A apreensão do índio era um indica- tarde extinguiu-se rapidamente, com a
tivo de perigo. Aprendera a confiar nos pelo brilho do fogo, lua no horizonte afogando o astro rei
instintos daquele soldado. Cuca estava numa poça de sangue em oferenda à
tão intimamente ligado à natureza quan- então, começou a Deusa Noite.
to uma mãe ao cordão umbilical do filho. Estavam agora sentados ao redor de
Conseguia interpretar os sons, e mais ventar – não o vento uma fogueira, ouvindo desanimados, as
importante: os silêncios da floresta. Ne- bravatas de Alemão, um soldado valente
nhum pássaro piava nos galhos daquelas soprado pela natureza e enorme, oriundo do Paraná.
árvores, dando a entender que a região – Acho que estamos caindo numa
era indigna de receber seus ninhos. – O ulular sinistro que tática de guerra! Os paraguaios estão nos
rondando, rindo da nossa cara! – O gi-
O capitão andou de um lado para ou-
gante bebeu um gole de cachaça. – Tão
tro na esperança de que o ângulo de vi-
são pudesse deter aquela reflexão branca,
anunciava a morte. querendo nos assustar! Devem ter escul-
mas nada adiantou. Teria que ir lá. pido aquele troço e colocado a medalha!
– Me espera aqui! – Ordenou ao índio. Era o mesmo Não é óbvio?
Usando o rifle como muleta, foi sal- – Acho que você está certo! – Con-
tando de rocha em rocha, encaixando a vento que soprava cordou o capitão, levantando-se de um
baioneta entre as fendas das pedras. tronco de mangueira tombado. – Somos
Conforme se aproximava, os galhos na noite que Aurélio adultos, o que é mais provável? Que al-
de uma amendoeira, que se projetava guém enfeitiçou o Cabo e o arvorificou,
para fora da margem, iam eclipsaando desapareceu. ou que somos um bando de borra-botas
o sol. O brilho reduziu um pouco,, de- caindo nas artimanhas do inimigo? – Si-
lineando as características do objetoo ao nésio girou nos calcanhares lentamente,
redor do reflexo. Tinha algo vagam men- buscando apoio nos olhares reticentes
te familiar nele. As formas remetiamam à dos soldados.
cabeça, braços e pernas, mas estavam Alemão tinha mais barriga do que
imóveis. cérebro, mas sua teoria era absoluta-
Olhou para trás e o índio limitava-se mente plausível.
a vigiá-lo em silêncio. Percebeu que o medo escuro de al-
Pulou para outra pedra interpon- guns era lentamente penetrado por uma
do-se entre a luz e a coisa. faixo luminoso de razão. Alguns riram
Era uma árvore em forma de gen- forçadamente, dispostos a conter o pâ-
te. Na verdade pelo nível de minúcias nico que marchava sobre suas espinhas
estava mais para uma escultura perfeita numa fila de insetos fantasmagóricos.
O único que parecia à vontade era o gigante branco, fosse – Os Sinhores du vento. – Respondeu Cuca.
pela embriaguez, fosse pela falta de imaginação. O Capitão fez uma careta confusa e o índio continuou:
– Quer saber? Vou provar que vocês estão se borrando – Nem tudo qui nasci da terra é coisa di Deus, capitão. Às
sem motivo! – Disse o paranaense caminhando para a flores- vezes, a natureza prova sangui dos homi e gosta. Esse vento
ta sombria. – Não existe diabo, fantasma nem mula sem ca- num é coisa normal. É um vento di raiva, di vingança...
beça! – Ele pegou um revólver e o colocou embaixo da pança Apavorado, um dos homens começou a atirar a esmo
suada, prendendo-o na cintura da calça. Estava sem camisa, o para dentro da mata.
tronco oleoso refletindo as chamas da fogueira. – NÃO! – Gritou Cuca, mas os tiros espocavam bem
Os soldados observavam aquele espetáculo de bravura in- mais altos que sua voz.
fantil, enquanto Sinésio berrava: Num ato reflexo, todos os outros soldados imitaram o
– Soldado, volta pra cá agora! atirador.
Alemão ignorou a advertência, balbuciando o quanto to- – Cessar fogo! Cessar fogo! – Berrou Sinésio.
dos eram covardes. O capitão começou a segui-lo, ordenando: As munições acabaram e no intervalo da recarga, ele ber-
– Alemão isso é uma ordem! Volta pra cá agora! rou:
– Fica manso, capitão! – respondeu o soldado. – Tu vai – Eu mandei parar, caralho!
ver que num tem nada naquelas árvores. – Vou só dar uma Os homens obedeceram trêmulos, suando em profusão.
mijada! – e continuou andando. A fumaça de pólvora rescindia no ar, criando um nevoeiro
Diabo! cinzento.
Sinésio trincou os dentes em fúria. Estava sendo desmo- O vento parara. Tudo estava mortalmente quieto. As fo-
ralizado, diante de uma tropa com fome, medo e sede. O que lhas estavam imóveis novamente.
viria a seguir? Um motim? E foi nesse momento que uma aberração escarlate saiu
– Alemão, se você não der meia volta, vou atirar! – Sinésio da mata.
apontou o rifle para as costas do insubordinado, focando a Capitão e os homens apontaram as armas, preparados
mira. para abater a criatura...
O paranaense ignorou. Parou nas raízes de uma frondosa Não era um monstro...
amendoeira e começou a abrir as calças, cantarolando alguma Era Alemão.
coisa que se perdeu no vento. Ele nem mesmo ouvira a ame- Esfolado vivo da cabeça aos pés, ele parecia uma carica-
aça ou simplesmente não a levara a sério. tura retirada de um livro de medicina. Os Músculos e nervos
Os homens assistiam espantados ao conflito. Alguns ti- em carne viva brilhavam contra a fogueira, lustrando cintu-
nham um brilho febril no olhar, desejando secretamente que rões de gordura amarela. Ele caminhava tropegamente, com
ele consumasse a ameaça para entreter-lhes a noite. a banha incontida escorrendo pelo tórax descarnado. Cada
Sinésio estava com o Golias louro na mira. O dedo trans- centímetro do corpo ardia tão hediondamente que nem con-
pirava na curva do gatilho, adquirindo a rigidez de um ver- seguia falar.
galhão. Se atirasse agora, o disparo desabrocharia uma rosa Ele caiu de costas no chão, encarando o luar com olhos
vermelha na carne adiposa do paranaense. catatônicos.
Um milhão de coisas passavam em sua cabeça naquele Os soldados correram para acudir, prestando atenção em
instante. Talvez estivesse apenas arranjando um motivo para murmúrios pronunciados por dentes sem lábios.
alvejar um inimigo que fosse palpável, e descontar a frustra- – Chá... a...chi – Disse Alemão quase sem forças –
ção de estar ali quando não queria. Lembrou-se de como era Chá-a-chi
a sensação de deitar numa cama quente e desfrutar o abraço – Meu Jesus, quê que é isso? – choramingou um dos solda-
terno da esposa, do som musical das risadas dos filhos, do dos, feito um bebê.
café fumegando nas manhãs de domingo, de seus romances Lutando para controlar o horror que ameaçava devorá-lo,
encadernados em couro, das aulas que aplicava na escola... o Capitão aproximou-se, tentando decifrar aquelas palavras.
Não valia a pena. – Chá-chi... chá-chi – murmurava o paranaense sem parar.
Simplesmente não valia. Ele estava dizendo “tá aqui”, mas a boca sem lábios não
Abaixou a espingarda, olhando para as ancas gordas de conseguia moldar as palavras adequadamente.
Alemão, distraído, tirando água do joelho... O que estava aqui?
E foi quando alguma coisa puxou o gigante para a mata. A resposta veio numa cacofonia de gargalhadas malig-
Foi tão repentino que piscou os olhos, achando que estava nas. O ar preencheu-se de um coro de vozes estridentes,
alucinando, ou sendo uma vítima de ilusão de ótica provocada rindo em diferentes tons. Pareciam se comunicar num idio-
pelo brilho do fogo, então, começou a ventar – não o ven- ma sem palavras, onde somente as notas vocálicas tinham
to soprado pela natureza – O ulular sinistro que anunciava a significado. Havia uma ordem subliminar naquele caos de
morte. risos medonhos.
Era o mesmo vento que soprava na noite que Aurélio de- E eles vieram em toda a sua fúria.
sapareceu. Saindo de trás das árvores, velozes como panteras, com
Os homens levantaram de seus lugares, pegando as armas, olhos amarelos faiscando sua inumanidade, vultos mais ne-
prestando atenção no farfalhar dos galhos. Uma orquestra de gros que a própria noite saltaram sobre eles.
corações em pânico formava uma sinfonia de tambores den- Sinésio simplesmente não conseguia entender o que esta-
tro daqueles peitos amedrontados. Fitaram as sombras recor- va vendo. As criaturas corriam de quatro com os braços dian-
tadas da mata, apontando os rifles e revólveres. teiros apoiados em posição de flexão militar, pois elas não
– É eles... – Disse Cuca enigmaticamente. tinham pernas; a metade inferior do corpo afinava-se numa
– Eles quem? – Perguntou Sinésio com todos os pelos do cauda curvada para o alto, onde um apêndice em forma de
corpo eriçando em lanças. pinha oferecia um contrapeso.
O Praça Jarbas foi atingido violenta- pele, espirrando sua vida para fora do
mente por uma das caudas. Houve um corpo em jorros quentes.
estalo de ossos quebrando, quando a Eles não tiveram a mínima chance.
mandíbula dele foi arrancada num jorro A chacina durou menos que dois mi-
escarlate. A língua ficou pendurada nos nutos.
músculos esfarrapados, contorcendo No final, só restava o moribundo
como uma lagarta. Alemão, e Sinésio, cujas lágrimas ver-
Um dos monstros ficou de pé que tiam o horror sobre as maçãs do rosto.
nem uma naja em posição de bote, e se- Já havia se entregado à morte. A
gurando uma zarabatana com as mãos, mente estava prestes a involuir até à sim-
soprou um espinho envenenado que plicidade de uma criança amedrontada
atingiu Cuca bem no meio da cara, fa- no canto escuro do quarto.
zendo-o cair para trás com as mãos no As criaturas – pelo menos uma dúzia
rosto. Ele debatia-se, enquanto a toxina delas – formaram um círculo ao redor
mágica começava a agir em seu sangue, dele, lentamente. Eram machos e fêmeas
convertendo cada célula de seu organis- mantendo uma distância de dez metros,
mo em madeira. Sinésio fez menção de caminhando com movimentos cautelo-
socorrê-lo, mas o amigo já estava tão sos.
inanimado quanto à estátua de Cabo Sua consciência relutava em aceitar
Aurélio, presa lá nas rochas do rio. a terrível realidade traduzida pelos seus
olhos. As monstruosidades tinham o
As feras agora urravam uma espécie tronco e a cabeça impossivelmente hu-
manos. Eram atléticos, delineados por
de
de canto de batalha indígena, agudo e uma musculatura obsidiana, tão rígida
quanto carapaça de escaravelho. Ideo-
profundo.
proofu Saltavam e se movimentavam gramas tribais espalhavam-se pelo torso 1
e rosto, pintadas com a seiva vermelha
mais
m rápido que as miras dos soldados de Pau-brasil. Os olhos eram amarelos
e brilhantes, cortados por íris reptilianas.
podiam acompanhar, sempre Todos, sem exceção, cultivavam uma
vasta cabeleira crespa, trançada em dre-
dilacerando, eviscerando, rasgando, adlocks com caniços de bambu.
Um deles, bem maior e mais forte
mordendo. Caudas tão segmentadas que os outros, se aproximou, caminhan-
do com as mãos, exibindo a gigantesca
quanto espinhas vertebrais chicoteavam cauda escorpiana em toda a sua impo-
nência. Sinésio encolhia em baixo de sua
crânios que rachavam com um ruído sombra, humilhado perante aquele ídolo
esponjoso. Mãos em garras tríplices do mais puro ônix.
O Senhor do Vento andou ao seu
fatiavam estômagos que libertavam redor, estudando-o com arrogância sem
esconder seu ar de supremacia. Deveria
intestinos fumegando no ar frio da noite. ser o líder, pois uma coroa de madeira
escarlate ornava o topo do seu crânio.
Sinésio assistia a tudo congelado de – Ocê nem reagiu... – Disse a cria-
terror. Apenas seus olhos testemunha- tura numa voz gutural, resvalando entre
vam aquele massacre dantesco. Os mús- presas afiadas. – ... Num vali nem a pena
culos recusavam-se a obedecer ao alar- mata um covarde que nem tu.
me de fuga que tilintava em seu cérebro. Sinésio mal ousava olhá-lo. Estava
Uma das bestas começou a girar o apavorado demais para encarar aquelas
rabo flexível, deslocando o ar acima da fendas elípticas.
própria cabeça, atraindo folhas secas O líder parou na frente dele, tirando
para formar um pequeno redemoinho. as mãos do cascalho, apoiando-se sobre
O tufão do tamanho de uma pessoa as- a cauda grossa semi-enroscada. Com
sobiava ameaçadoramente, então, a fera uma das garras pegou uma zarabatana
chicoteou o rabo, lançando aquela bole- num cinto de palha, e com a outra, um
adeira de vento no meio do conflito. pedaço cônico de bambu.
O furacão envolveu o soldado Bra- O capitão orou em silêncio, aguar-
ga, capturando-o numa armadilha ro- dando o espinho de arvorificação, todavia,
dopiante. Ele começou a levitar no olho isso não aconteceu. O guerreiro encai-
daquela diminuta tempestade, quando, xou o cone na ponta da zarabatana e
repentinamente, as folhas que giravam transformou a arma em cachimbo.
em velocidade subsônica, fatiaram sua Sinésio ousou uma espiada para
cima. Do alto do rrabo, a criatura devia tadoria e um monte de medalhas no fim
medir quase quatro o metros de altura. da guerra.
O líder sugou a piteira, tragando a Essa é a verdade, nada mais que a
erva, e baforou um m enxame de moscas
verdade...
varejeiras.

Z
Numa situação o confortável, Sinésio
ezinho largou o diário, apavorado.
tentaria racionalizaar o que acabara de
Naquela noite, pediu para dor-
ver, entretanto, diannte de todo fantástico
mir no quarto da avó, temendo
ocorrido, o objeto que produzia vida era
aqueles estranhos cha-chii que povoariam
um pormenor insiggnificante.
seus pesadelos anos a fio.
Ele jogou o cacchimbo aos pés do ca-
Por muito tempo em sua longa vida,
pitão e disse:
acordaria com gritos aprisionados na
– Ocê vai vivêê pra conta o qui viu
garganta, sem lembrar-se a razão de seus
aqui, homi branco o. Vai fala di nóis pra
temores, todavia, a mente humana ti-
tua laia, pra qui cês jamais pise di novo ni
nha seus meios de suprimir lembranças,
nossa terra. – O mo onstro apontou para a
quando essas eram demasiadamente in-
zarabatana no chão o – Eis aí tua prova di
toleráveis. Seu inconsciente adaptou-se,
qui isso aqui num ffoi só um sonho ruim.
gerando mecanismos que suavizaram
As criaturas deeram-lhe as costas e
a vivacidade daquele relato, até que no
começaram a se reetirar. Dessa vez não
fim, tudo não passava de uma lenda pue-
estavam apoiadas nas n mãos. Deslizavam
ril sem qualquer traço de malevolência.
em pé, serpenteanddo a cauda num movi-
O insólito cedera lugar ao mundano,
mento sinuoso.
impondo sentido no inacreditável, trans-
formando caudas em pernas saltitantes,
Metade delas de já havia carapaças em pele escura, gargalhadas
diabólicas em risadas traquinas, coroas
desaparecido nas sombras de pau Brasil em gorros vermelhos.
O menino Zezinho cresceu, e tor-
da floresta, quandoq nou-se o homem José Bento. Ele foi es-
tudar e graduou-se em Direito, quando
num impulso,
impulso Sinésio passaram a chamá-lo apenas de Doutor.
Porém, jamais esqueceu de fato
chorosamente perguntou: aquele conto impressionante, e décadas
Deus Quem são mais
– Por Deus... tarde, voltaria aquele sítio encanta-
do, onde relataria sua versão daquela his-
vocês? tória, assinando a autoria com seus dois
últimos sobrenomes:
O líder parou, o olhando-lhe por cima Monteiro Lobato.
dos ombros podero osos.
– Ocês dão no omi pra tudo, até pa-
quilo que num intende. – Ele dirigiu um
olhar para o escaalpelado Alemão que
murmurava suas últimas
ú palavras nesse
mundo:
– chá-chi... chá--chi... chá-chi...

Essa é a minha
v
versão dos fatos. Por Gabriel Réquiem nasceu no Rio de Janeiro, em 26
muito tempo fui jul-
m de Dezembro de 1978. Profissional de Marketing e
ggado pelo Alto Co- colaborador do site Nós Geeks, divide seu tempo
mando e chegaram a entre a literatura fantástica e sua paixão pela
me acusar de traição. cultura pop. Estreou na ficção com o conto “O
Não havia provas que
N último apóstolo” da antologia “Névoa – contos
me incriminassem e ne-
m sobrenaturais de suspense e de terror”, onde
nhuum dos juízes acredi- homenageia uma de suas grandes influências:
tou qque eu poderia ter feito H.P Lovecraft.
aquilo ccom meus homens. Os Atualmente, vive no Rio de janeiro com a esposa
ferimentos nãoo eram de balas, pare- Vivian e conclui seu primeiro romance.
Fale com o autor: gabriel.requiem@yahoo.com.br
ciam de animais, onças ou outra coisa.
Minha sobrevivêncicia garantiu a aposen-
por João Lameiras

S
e o ano de 2012 foi infelizmen-
te fértil no desaparecimento de
grandes nomes da Banda Dese-
nhada mundial, como Jean Moebius
n
Giraud, ou Joe Kubert, cujas mortes
G
tiiveram grande destaque mediático, já
o falecimento do Mestre italiano Sérgio
Toppi, em Agosto, perto de completar
T
80 anos, passou relativamente desper-
8
ccebido, pelo menos em Portugal.

38 /// BANG!
U
ma lacuna que tentaremos Portugal, através da edição brasileira da
corrigir nesta Bang!, evo- Mythos, que publicou a referida história
cando aqui a vida e a obra no nº 11 da revista J. Kendall Aventuras
de Sérgio Toppi, virtuoso de uma Criminóloga. Toppi tem também
desenhador italiano, cujo estilo único e o seu nome ligado a outros dois popu-
arrojada planificação não deixa ninguém lares personagens da Bonelli, Martin
indiferente. Nascido em Milão em 1932, Mystére, de quem ilustrou uma história
Toppi matriculou-se na Faculdade de de 22 páginas para o Almanaque Martin
Medicina em 1952, para rapidamente Mystére nº 16, de 1999, posteriormente
descobrir que essa não era de todo a adaptada a um CD-Rom, e Dylan Dog,
sua vocação. Rapidamente abandonou que Toppi retratou na capa do Dylan
os estudos para se dedicar à ilustração, Dog Color Festt nº 3, de 2009, no que seria
campo em que se estreia em 1953, rea- a sua última colaboração com a editora
lizando uma série de ilustrações históri- Bonelli.
cas para a reedição da L’Enciclopedia dei Revista Julia, ilustração de história de Giancarlo Berardi Entre a longa colaboração com Il
Ragazzi,i promovida pela editora Mon- Giornalino, iniciada em 1976, e diversas
dadori. Enquanto realiza trabalhos para participações nas principais revistas ita-
publicações como a revista Topolino, em lianas, como a Sgt. Kirk, Linus,s Alter Al-
1957 arranja emprego no Estúdio de terr e Corto Maltese, Toppi constrói o seu
Animação Pagot, dirigido pelos irmãos estilo próprio, em que a rígida divisão
Pagotto, responsáveis pela primeira lon- da página em tiras e quadrados, dá lugar
ga-metragem italiana de animação, o que a uma planificação mais dinâmica e ar-
não o impede de continuar a trabalhar tística, que considera a página como um
como ilustrador para a imprensa e para todo. O aspecto pétreo do seu desenho,
a publicidade e de se estrear na Banda em que as personagens parecem cris-
Desenhada em 1960, ilustrando uma talizadas numa natureza ameaçadora,
biografia em BD de Pietro Micca, uma também ela fossilizada, o fantástico que
personagem histórica italiana do século emerge das suas histórias, faz da obra de
XVII, escrita por Milo Milani para o jor- Toppi, algo único e inesquecível.
nal Corriere dei Piccoli.i Infelizmente, essa obra, tão varia-
Um momento importante da sua da que inclui, além de largas dezenas de
carreira na BD, foi o encontro com Ser- histórias curtas, coisas tão inesperadas
gio Bonelli, personagem incontornável como uma biografia em BD do Papa
da BD italiana, editor de Tex e Dylan Capa do Dylan Dog Color Fest nº3, de 2009
João Paulo II, nunca conseguiu cativar
Dog, que contratou Toppi em 1974, para devidamente o grande público, talvez
este acabar de desenhar um Western que pela ausência de um herói icónico que o
a morte de Rino Albertarelli deixara in- fidelizasse. A obra de Toppi é constituí-
completa. O ano de 1975, também foi da maioritariamente por histórias curtas,
importante para Toppi, pois além de ter tendo como único personagem recor-
ganho o Yellow Kid para o melhor de- rente Il Coleccionista, um peculiar colec-
senhador no Festival de Lucca, começou cionador e aventureiro, misto de dandy
a colaborar com a revista Sgt. Kirkk nesse e de cowboy, que se estreou em 1982 na
mesmo ano. Seguir-se-ia a participação revista Orient Express. Um personagem
na mítica coleção Un Uomo, un’Avventura, de moral dúbia e passado misterioso,
onde Bonelli conseguiu a proeza de muito longe dos heróis tradicionais com
juntar os mais prestigiados nomes dos que o leitor facilmente se identifica.
fumetti italianos, de Hugo Pratt a Milo Com o declínio das revistas em
Imagem da biografia em BD do Papa João Paulo II
Manara, passando por Crepax, Buzzelli, Itália, que se acentuou no início do sé-
Battaglia, e claro, Toppi, que entre 1976 culo XXI, Toppi começou a cair no es-
e 1978 ilustrou os volumes, L’Uomo del quecimento no seu país. Algo que não
Nilo, L’Uomo del Messicoo e L’Uomo del Pa- aconteceu em França, graças ao exce-
ludi,i o primeiro dos quais chegaria a Por- lente trabalho da editora Mosquito, que
tugal através de uma edição brasileira. a partir de 1997 tem vindo a editar de
E se os interesses de Toppi esta- forma cuidada o seu trabalho (tal como
vam algo afastados das grandes séries o de outros grandes mestres italianos,
da Bonelli, a sua amizade com o editor como Battaglia e Micchelluzi). Uma
fez com que colaborasse ocasionalmen- parceria feliz, que deu origem a mais
te com a editora da Via Buonarrotti, de 30 álbuns de BD, entre colectâneas
desenhando histórias para a Ken Parker de histórias curtas, até trabalhos feitos
Magazine, para dois números de Nick directamente para o mercado francês,
Rayder, r em 1997 e 2001, para o nº 11 como a segunda parte de Sharaz’de, ou a
da revista Julia, ilustrando uma histó- quinta aventura do Coleccionador.
ria de Giancarlo Berardi, que chegou a Graças às edições da Mosquito, o

Sharaz’de BANG! /// 39


trabalho de Toppi tem vindo a ser tra- pelos próprios, que nunca esconderam estreia do desenhador italiano no merca-
duzido em diversos países, da Europa, a sua admiração pelo trabalho de Toppi. do americano, publicando uma ilustração
aos Estados Unidos e à China, onde Walt Simonson, que deu Toppi a des- que o Mestre fez de homenagem à série
uma exposição das suas obras foi vista cobrir a Frank Miller e Howard Chaykin, Sin City, no nº 4 da mini-série Sin City:
por dois milhões de pessoas em apenas quando os três partilhavam um estúdio The Big Fat Kill,l infelizmente ausente da
cinco dias. Uma merecida consagração em Nova Iorque, foi o autor do prefá- edição portuguesa da Devir. Mais tarde,
que Toppi, já debilitado pelo cancro que cio à edição americana de Sharaz-De, será a Marvel a encomendar-lhe as ca-
haveria de o levar, não pôde testemu- em que refere que: “as imagens de Toppi são pas da mini-série 1602: The New World, d
nhar pessoalmente. uma mescla evocativa de belos desenhos, texturas, que retoma o conceito, criado por Neil
Apesar do seu trabalho só agora formas, espaço negativo e design. Desenha com Gaiman, do universo Marvel transposto
começar a ser publicado nos EUA, gra- uma mistura de contornos, hachuras, manchas de para o século XVII, ficando-se por aqui
ças à Archaia Press, a sua influência em preto cuidadosamente posicionadas e espaços em a presença do desenhador americano na
desenhadores como Walt Simonson, branco. Ele é um mestre dos espaços em branco. terra do Tio Sam, até a Archaia começar
Frank Miller, Bill Sienkiewicz, Ashley O resultado é um desenho extremamente vivo em finalmente a publicar a sua obra em in-
Wood, ou Dave McKean (sobretu- cada página, independentemente do assunto”. Já glês, começando por Sharaz’de,e numa bela
do numa primeira fase que vai até ao Frank Miller, que dizia que “Toppi faz o im- edição que Toppi já não teve tempo de
Arkham Asylum)m é evidente e assumida possível parecer fácil”,
l foi o responsável pela ver…

40 /// BANG!
G! “Black & Tans”
João Lameiras é Mestre em História da Arte pela
Universidade de Coimbra. Tem desenvolvido uma
vasta actividade no campo da Banda Desenhada, como
conselheiro editorial, tradutor, argumentista e crítico
para diversas editoras e publicações e é sócio-gerente
da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequência no seu
blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com

“Algarve 1460. O Infante Dom Henrique e a epopeia dos


Descobrimentos Portugueses vistos por Toppi.”
“L’Obélisque Abyssin.
Em Portugal, onde a influência do seu traço é visível num A natureza ameaçadora, numa aventura do Coleccionador”
autor como Pedro Massano, as histórias de Toppi chegaram
através de revistas como Jactoo e o Jornal do Cuto, que publica-
ram algumas histórias curtas e da Colecção A Descoberta do
Mundo, da Larrousse, que a Dom Quixote editou em Portugal
e em que o nome de Toppi aparece ao lado de ilustres com-
patriotas seus, como Buzzelli, Manara, ou Battaglia, e do por-
tuguês Eduardo Teixeira Coelho. A última aparição de Toppi
em português, deu-se em 1999, no nº 8 da 2ª série da revista
Selecções BD, com a história Algarve 1460, protagonizada pelo
Infante Dom Henrique, enquadrada por um belo texto de
João P. Boléo, que abordava a relação de Toppi com Portugal,
que tinha visitado um ano antes de desenhar essa história.
Curiosamente, a mesma revista preparava-se para iniciar a
publicação de Sharaz’de, a peculiar adaptação das Mil e Uma
Noites,
s que é um dos melhores trabalhos de Toppi, no preciso
momento em que a falência da editora Meribérica levou ao
seu desaparecimento.
Ficaram a perder os leitores portugueses. Os mesmos lei-
tores que, nestas páginas têm finalmente direito a uma peque-
na amostra do imenso talento de Sergio Toppi, um desenha-
dor, nas palavras de Dave McKean, “capaz de desenhar qualquer
coisa e dar-lhe uma solidez e um sentido de movimento que a tornam “A estreia de Toppi no mercado americano pela mão de
ideal para contar histórias no formato da Banda Desenhada”. Frank Miller, numa homenagem à série Sin City.“

BANG! /// 41
conto de

pedro ferreira

C ONTEMPLA MORTAL, A CASA QVE


VM DIA HERDARÁS, assim dizia
em letras barrocas, o letreiro nas
mãos da gárgula de ferro negro e
face craniforme a muitos metros
do solo, sobre o portão. Olhado à parca
grandioso manto de sepulturas. O es-
paço era vedado por um gigantesco
gradeamento de negras barras, ergui-
das para o céu como lanças colossais,
vindo a desembocar no portão de ara-
bescos negros onde Luís considerava o
do se deixavam os defuntos à entrada,
para que durante a noite algo os viesse
a juntar aos irmãos em repouso.
Nisto pensava Luís, persistindo em
desistir – São terras do diabo, onde
caminha a morte – afirmou – Não há
luz da candeia, o seu esplendor agoirento epitáfio pela milésima vez. quem nos tire de lá! Por favor Márito,
afugentava a coragem que Luís Manuel Dos cumes em redor, como era dito, vamos voltar para trás.
reunira a tanto custo. Lendas sombrias, podia ver-se a custo os torreões de – Continuas a acreditar nesses ser-
contadas pela sua avó à lareira em noites um palácio encravados na montanha, mões do padre Esteves – objectou o
frias, quando o vento assobiava e toda a muito após as intermináveis lápides de outro – Onde é que está o Manel que
Vila parecia engolida nas montanhas, cir- granito. O palácio dos capricotos, o lugar eu conheci, hã? Esquece isso, vais ver
culavam agora pela sua mente. da imortalidade, dizia-se na ignorância que corre tudo bem.
Nenhum homem vivo havia pisado o do que consistia. Nem sequer se sabia Conhecia o Valdemar, ou o Márito
Velho Cemitério, local desde há muito o que era um capricoto. Contava-se de como lhe chamava, há quase duas dé-
habitado por demónios. Meia légua a quem o tentasse encontrar, mas sem cadas, quando não eram mais que dois
norte da Vila, acedido por um trilho ca- nunca regressar para contar o que vira. garotos a correr pelos prados sem pen-
vado sob inúmeras procissões, erguia-se Tudo isso era esquecido na maioria do sar no futuro. Valdemar, o calmeirão
aquele numa enorme serrania, mais alta tempo e o Cemitério era apenas visita- sem medo com quem fizera boa parte
e vasta que as restantes e repleta de um do durante as marchas fúnebres, quan- de partidas. Com ele apedrejara os vi-

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ANNG!
G
trais da igreja, roubara fruta em dezenas de hortas, explorara, acampara em toda a
espécie de lugares estranhos e partilhara experiências como a do dia em que fora
à casa de Ginita pela primeira vez.
Mas nada que se pudesse comparar a isto! Mais do que fugir do Manel Mulateiro
de enxada em punho, enfrentar uma dezena de cães, esquivar das pontas de um touro
em fúria ou enfrentar uma mulher de pernas abertas pela primeira vez, aquilo era
muito pior. Pensava sobre o que teria passado pela cabeça do amigo trazendo-lhe esta
mórbida ideia e só chegava à conclusão que a culpa era inteiramente de Vingelha, a
bruxa, e não dele. Dizia-se que o convívio com Sara Vingelha podia enfeitiçar, levando
à loucura qualquer incauto que o fizesse, sendo por isso que nunca ninguém a despo-
sara, e isso, parecia-lhe agora, havia acontecido a Valdemar, que perdera até o receio
da morte. Devia tê-lo evitado desde o início, mas agora era tarde e qualquer tentativa
de dissuasão ir-se-ia mascarar de cobardia.
Não podia aceitar que Valdemar lhe chamasse cobarde.
– Do que se conta por aí – prosseguiu aquele, vendo o seu receio – Não acre-
dito que alguém tenha razões para falar. É como te digo, Manel – e colocou-lhe o
braço sobre os ombros – Vamos triunfar onde os outros têm medo.
– O Jaquim Bodo jurou-me ter visto a dança macabra dos mortos na noite após
um funeral – contrapôs Luís – Falou-me da forma como eles saíram por este por-
tão, dançaram em volta do caixão e no fim o arrastaram para dentro.
– E tu acreditas nisso? – riu-se Valdemar – O homem é capaz de já ter visto o
diabo a copular com a virgem no cimo de uma árvore a arder. Vais ver que esses
mistéérioss não devem ser mais do que as brincadeiras de algum coveiro marreco.
– Acabou-se a conversa! – quebrou a voz da mulher à frente – Vamos embo-
ra! – o seu aspecto era sério e o olhar imperturbável. Sempre que falava todos a
ouviiam. Assim era Sara Vingelha, a bruxa da Vila, muito procurada em segredo
peloos jovens apaixonados na busca de conselhos e poções, pelos homens com
má sorte na vida e mulheres traídas à procura de vingança. Mantendo um corpo
joveem, embora se aproximasse da meia-idade, vestindo andrajos e caminhando
desccalça, fraco o sustento das profecias e mezinhas, as suas palavras, repletas de
umaa verdade profunda, não encontravam dificuldade em calar um fidalgo de bar-
bas brancas e larga fazenda – Se queres desistir, estás à vontade Luís, agora fá-lo
já e não nos faças perder tempo.
Mas Luís não o faria. Não diante da franqueza daquelas palavras. E então, ele
que acreditava na Bíblia e nos santos como no restolhar das folhas e que sempre
vira o diabo naqueles olhos, deu consigo a assentir e a jurar que não desandaria.
Também queria perguntar a razão da viagem se efectuar de noite, mas para isso já
não encontrou coragem.
Pouco depois, o grande portão rangeu nos gonzos pela força do grupo. Para
seu pesar, entravam no Velho Cemitério e por todo o clarão das suas lanternas
se estendia uma imensidão de marcos cruciformes, aleatoriamente dispostos sem
formar qualquer trilho ou padrão geométrico entre si, o que iria levar a uma
marcha demorada, obrigando-os a rodear, esquivar, ou mesmo trepar sobre os
obstáculos quando não houvesse outra hipótese.
Não se detendo, Sara avançou pelas fileiras de granito.
– Manel, anima-te – reconfortou-o o companheiro – Poucos estiveram onde tu
estás agora – e avançou também, deixando-o para trás.
– E desses poucos, nenhum voltou a casa para contar a história.
Todavia, nada podia abalar a boa disposição de Valdemar, muito menos um
comentário pessimista. Sara era o seu único interesse no momento e todo o resto
ficava de fora para o seu devido tempo. Recordava-se de em criança a ter contem- rante muito tempo em que ele a amava
plado secretamente desde que a mulher surgira na Vila, sem se saber de onde veio sem o confessar.
e a razão por que o fez. Os enigmáticos saberes que logo demonstrou deixaram Mas fora Luís quem levara a melhor.
os Vilãos receosos, alcunhando-a de todos os nomes proibitivos à moral cristã. Não olvidava a tarde fatídica em que vira
Mas entre aqueles não se encontrava Valdemar, que embora não o tivesse feito o amigo sair da casa dela, nada tendo ele
antes, chegou a pensar em visitá-la na recôndita moradia. A oportunidade de lhe feito em relação a isso. Nessa e nas noites
falar só veio muito mais tarde e sem iniciativa da sua parte, quando Doroteia foi subsequentes, ao chegar da labuta, apenas
cortejada por Luís. bebia para afogar o ressentimento.
Doroteia enlouquecera-o. Ele acabava sempre os dias de caneca na mão na taberna O tempo trouxe novas pretendentes,
do pai dela,
d língua afiada e peito emproado. Eram raras as noites que não descam- sem grande nota da sua parte. Até que
bavam numa ma rixa,
ri sendo aí o meio onde a razão da sua força livremente triunfava. Sara Vingelha se aproximou um dia,
Sempre que o via,, DorDoroteia elaborava um sorriso, e vendo-o esvaziar o copo, não quando voltava do rio onde lavara a rou-
perdia a oportunidade de se ab abeirar perguntando-lhe se queria mais. Assim fora du- pa, encetando diálogo. Era o espírito livre

BANG! /// 43
daquela mulher, patente no cabelo des- – Não é estranho ver uma campa interromper as suas cogitações. Er-
grenhado, que o seduzia mais que os tí- aberta – constatou Valdemar ao pegar guendo as lanternas, ambos puderam
midos maneirismos das jovens casadoiras na mão estendida de Luís para se le- contemplar uma massa negra que se
de lenço à cabeça. Foi assim que renasceu vantar – O local parece não ter sido aproximava, ameaçando esmagá-los.
a sua atracção pela bruxa do monte. usado desde há muito tempo. Talvez Então, quando os seus olhos se adapta-
Teria sido mais fácil de aceitar uma muito antes dos bisavós dos nossos ram à luz alaranjada do fogo, reconhe-
corte com Ginita, a rameira, pois aquela bisavós. ceram o grupo de silhuetas que trôpega
tinha o dobro da sua idade e, sem dúvida, – De facto – concluiu o outro muito e placidamente se arrastava por entre
pior fama. Mas apesar de tudo, ali estava estoicamente. A situação e o comen- os campanários na bruma, entoando
ele agora, tentando provar a sua coragem tário de Sara deixaram-no ainda mais um lúgubre pranto.
leonina diante de uma musa audaz. receoso, contudo o seu fatalismo não – A caminhada dos mortos – zurziu
Absorta em qualquer objectivo, Sara contagiava o amigo. Luís – Devem estar ali todos os nos-
caminhava à frente, transpondo habil- Porém o avanço da mulher não per- sos antepassados desde o princípio do
mente os obstáculos de pedra sem de- mitia atrasos. Era curioso constatar tempo.
monstrar desconforto nas solas dos pés como mesmo descalça se mostrava Em vão o outro gritara para que
ou dificuldades pelo longo vestuário. pouco hesitante ao terreno rugoso, fugissem dali, pois logo o fizeram. A
Com a cabeleira negra a adejar ao vento sendo dificilmente acompanhada pelos corrida valeu-lhes grande número de
e a saia a trair o mais leve movimento dois homens de pesadas botas que não arranhões, esfoladelas e uma dor ex-
das coxas, bastava olhá-la para renovar conseguiam disfarçar o cansaço que se cruciante no artelho ferido de Valde-
o seu espírito aventureiro. Deus e o dia- acumulava de muito galgar as silhue- mar, mas colocou-os a escassos metros
bo tremeriam diante daquela mulher. tas de granito. No caso de Valdemar, de Sara que permanecia serena na sua
Caminhando atrás, Luís não sen- as dores no artelho levavam-no a uma trilha. Quando lhe contaram das negras
tia o mesmo ímpeto. O martírio da marcha lenta com hesitações. figuras, objectou que não as temessem,
caminhada e o imaginário macabro Meia hora andada, Luís deteve-se resposta que não os satisfez. Todavia
toldavam-lhe o espírito. Cada marco como para tomar fôlego. deixaram de avistar as formas e o seu
que transpunha era para si mais do que – Vamos! – incitou o outro. canto perdia-se na imensidão que os
simples pedra, era gente que pisara a – Estou estafado! separava.
Vila muito antes dele, revolvendo-lhe a – Anda lá, já falta pouco – Valdemar O terreno acidentava-se e não muito
culpa sempre que pensava nisso. Pior estendeu-lhe a mão. depois tornaram-se visíveis, por entre a
do que isso era o medo. Ali, todas as Luís colocou a lanterna sobre uma massa de rochedo, os torreões do cas-
lendas sombrias ganhavam vida a cada haste da lápide onde se encostara e telo, enquanto o emaranhado de tum-
passada, fazendo-o tremer diante de segurou-lhe a mão com força – Ouve bas se ia progressivamente tornando
um longínquo piar de coruja ou da si- Márito – e olhando em redor, confir- esparso. A leste surgiam os primeiros
lhueta esvoaçante de um morcego. mou não ser ouvido por Sara – Já che- raios solares e as lanternas tornavam-se
Se cedera pela dificuldade em negar ga desta farsa. Deixa o raio da bruxa ir desnecessárias, mas a nova luz permi-
o desafio do companheiro, ou se teria ao encontro da morte, eu quero voltar! tiu também que avistassem a procis-
sido pelo terror que a mulher lhe inspi- – Estás a caçoar comigo, claro?! – são de silhuetas, progredindo no sopé
rava, não sabia explicar. Talvez ambas riu-se o outro, libertando a mão com for- do morro onde se encontravam. Era
as coisas. Por diversas vezes pensara ça – E o néctar da imortalidade, já não o imensa, dispersando-se ao longo da
em desistir, mas a razão desvanecia-lhe queres? Anda lá, põe o cu a mexer! montanha até onde a vista alcançava.
no penetrante olhar de Sara sempre – Vou-me embora e tu vens comigo! Ameaçava cercá-los. Por mais que am-
que o via. Contrariado, engolia em seco – rugiu Luís, agarrando o colarinho do bos o desejassem, sobretudo Luís, os
e continuava a marcha. amigo, levando a que Valdemar o em- companheiros receavam dar voz aos
Vira há pouco na lua duas horas de purrasse com força contra o campaná- pensamentos, acelerando a marcha e
extenuante caminhada, quando à sua rio atrás. procurando na impassibilidade de Sara
frente Valdemar é tragado pelo chão, – Eu não quero saber do raio do pa- um parco consolo para o problema.
largando um berro. lácio nem da tua imortalidade, Márito Alcançaram a última fileira de cam-
– Márito! – gritou acorrendo ao lo- – constatou desesperado – tenho tudo pas não muito depois, assim como um
cal, encontrando o amigo agarrado ao para estar bem. Tenho trabalho, ando extenso vale verdejante que se espraia-
tornozelo ferido, metro e meio abaixo a construir a minha casinha e tenho a va além dela. Ao centro elevava-se um
do chão. Felizmente conservara a lan- Doroteia que me quer. Não me quero monte em cujo topo repousava o vis-
terna intacta, evitando um incêndio. arriscar nisto. toso palácio, cinzento como o granito,
Com a sua ajuda regressou à superfície. A menção daquele nome reverberou decorado de florescentes vitrais e com
Vendo o aparato, Sara voltou atrás. na mente de Valdemar. Por vezes reflec- enormes torreões projectados no céu,
Remexendo na bolsa, a mulher colocou tia até que ponto a esquecera, julgando rematados por telhados cónicos cor de
algo na boca que mastigou até formar serem as coxas de Sara apenas o motivo esmeralda. A fim de o alcançar, era im-
uma pasta que aplicou no artelho do para que isso viesse a acontecer. Quan- perioso escalar o enorme trilho serpen-
amigo, atando-o com um pedaço de te- do o fazia, a imortalidade já não lhe pa- teante em redor do promontório onde
cido que rasgou da saia. recia tão vantajosa, julgando as dificul- a construção se elevava.
– Tenham cuidado, ou ficam para dades em viver uma eternidade ao lado Embora a vontade os incitasse a re-
trás – alvitrou ela. E sem dar maior ex- da curandeira. Mas era tudo o que tinha pousar sobre o convidativo tapete ver-
plicação, retomou a passada. e de nada servia amaldiçoar o destino. de, a hipótese nem lhes surgiu em pen-
Os dois homens entreolharam-se. Um longo murmúrio à distância veio samento e depressa atingiram a base da

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ladeira
d que os colocaria no caminho do objectivo. Decorreu a hora seguinte na – Levanta-te, mortal desafortunada –
subida do curso traiçoeiro. Sara progredia pelo caminho escarpado sem receio, condescendeu o gigante numa voz de
segurando a comprida saia com uma mão, não mostrando dificuldade em encon- barítono, erguendo-lhe meigamente a
trar locais de apoio para as sujas solas dos seus pés. O mesmo não acontecia aos face com uma mão sob o queixo – Cer-
restantes atrás, cuja embaraçosa caminhada os levava a recorrer frequentemente to é que terás aquilo que vieste buscar.
à ajuda mútua para transpor os obstáculos em forma de rochas salientes e desli- Mas por ora ergue-te, uma eternida-
zamentos no terreno. Por vezes o caminho estreitava-se tanto e as bases de apoio de de prostração te esperará depois –
eram tão esparsas, que um descuido não muito grande poderia ocasionar uma riu-se.
queda mortal. Olhavam para o cume na esperança de encontrar um fim próximo, Olhando em volta, Mefisto exami-
desejando apenas não ter de regressar a um sitio assim. nou os restantes.
Foi grande o alívio quando atingiram a alameda no topo, detendo-se para recu- – E vejo que trouxeste companhia.
perar o fôlego e massajar os membros molestados. Na base avistaram as hostes Muito bem – sorriu – Está na hora de
negras, estacionadas a toda a volta no limiar do cemitério, sem colocarem pé na brindarmos! – gargalhou, batendo pal-
superfície relvada. Escusado seria dizer que estavam cercados, embora isso não mas.
lhes causasse grande transtorno face ao sucesso momentâneo. Diante aquele sinal as criaturas retoma-
– Não temam! – aconselhou Sara encaminhando-se logo para a enorme portada ram vida, correndo a abandonar o salão
do edifício onde fez ecoar como um gongo a desmesurada aldraba. Imediata- em várias direcções distintas, regressando
mente seguiu-se o silêncio. Momentos depois despontou uma figura no cimo de com uma imensidão de objectos necessá-
um torreão que, para espanto dos observadores, se projectou no ar em vários rios à prática de um banquete, tais como
rodopios, aterrando no adarve alguns metros em baixo. Daquele ponto, lançou-se toalhas, discos de porcelana, vasilhames
numa cambalhota para a frente, até ficar presa ao umbral de uma seteira na parede de cristal, faqueiros em ouro, jarros com
oposta. Usando-se dos pés como mola, disparou deste sítio numa série de piruetas vinho e outras espirituosas, assim como
até alcançar firmemente o solo a escassos metros de Sara. uma imensidão de bandejas de tentadoras
– Bem-vindos sejam, mortais infelizes – proferiu com uma série de risadinhas
infantis – ao Palácio do Prazer Eterno.
Não tinha nada de humano, apesar das semelhanças. O corpo era esguio e den-
samente peludo como atestava o seu peito nu, os braços estendiam-se até aos
joelhos, sendo as pernas curtas, terminando os membros em largas extremidades
com garras. As feições eram indistintas, como se a cabeça tivesse sido lambida,
apagando os mais evidentes traços de personalidade para deixar apenas uma testa
pronunciada e uma pêra retorcida no queixo. Para rematar, o vestuário era re-
sumido a umas bragas azuis bastante gastas, presas na cintura por um cordel de
cânhamo. Para todos os efeitos, aquilo devia ser um capricotoo como os da lenda.
– Conduz-nos ao teu mestre – asseverou laconicamente Sara.
Com risadinhas esganadas, o misterioso ser retirou um molho de enormes chaves
dos calções, abrindo a portada com uma delas e convidando-os a entrar. Em nada a
sua presença tranquilizou Luís, contudo preferia-a à hoste de silhuetas negras no sopé
do monte. Quando a porta se fechou atrás, sondou o amigo sem encontrar compla-
cência no olhar daquele. Parecia ser um júbilo momentâneo que movia Valdemar,
caminhando logo atrás do novo guia. Sara continuava impassível, contudo parecia
entrever-lhe algum nervosismo.
À volta, as paredes do corredor achavam-se esculpidas em complexos entrelaçados
com monstruosidades serpenteantes de entalhes revestidos pelo musgo de eras, entre-
cortadas por longas trepadeiras que brotavam das fendas no mosaico do chão.
O caminho desembocava numa série de passagens labirínticas, idênticas entre
si na florestação exaustiva, vindo a terminar numa vasta galeria aberta no topo,
onde os raios de sol entravam numa tonalidade amarelada, contrastando com a
obscuridade dos corredores. No centro da sala repousava uma comprida mesa de
pedra, circundada por bancos do mesmo material e por todo o espaço saltitavam
e cabriolavam grande numero de criaturas semelhantes à primeira, rindo e guin-
chando, trepando paredes, baloiçando nas trepadeiras ou lutando entre si numa
cacofonia infernal. Os seios pronunciados em algumas delas remetiam-nas para o
sexo feminino, embora fossem igualmente esquálidas e peludas, envergando todas
elas apenas um par de calças muito sujo e gasto.
Vendo os forasteiros, um grupo das quais aproximou-se, contemplando-os de uma
distância em redor, para logo desatar a fugir sobre os quatro membros quando Luís
o enxotou, berrando e fingindo correr atrás. O ser que fizera de guia saiu disparado
pelo lado oposto da sala, onde momentos depois assomou um grande homem debai-
xo da larga ombreira. Perante a sua chegada, todas outras criaturas se imobilizaram
como por magia nos locais que ocupavam. O anterior rebuliço deu lugar a um silêncio
estonteante, no qual Sara caminhou para o recém-chegado, prostrando-se a seus pés.
– Mefisto, meu senhor – suplicou, fitando o soalho – aqui tendes a escrava
prometida.

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BAANG
iguarias, que compuseram a rude mesa brindando todos com a perfeição do seu seu melhor amigo. E então voltou-se
de pedra. corpo. Mesmo Luís no seu decoro, foi in- para Sara, era sobretudo ela quem ele
Como convidada de honra, Mefisto capaz de desviar o olhar enquanto ela se detestava. Sempre a odiara, desde que
incitou Sara a ocupar o grande cadeirão sentava no enorme cadeirão. chegara à Vila com a sua pose provo-
ao lado do seu, ordenou-lhe também que Seguidamente, novo sinal do gigan- catória, rindo de todos os justos que a
se desnudasse e que assim permanecesse te levou todas as criaturas encontrarem acusaram de bruxa. Odiava a mulher.
durante o jantar, para que a sua beleza não anarquicamente o seu lugar à mesa, dei- Por tudo o que alguma vez lhe dissera,
ficasse oculta entre burel e serapilheira. xando apenas os companheiros de pé, por tudo o que o levara a fazer nestas
Foi a primeira vez que a viram hesitar pe- defronte a Mefisto.. últimas horas. Mas agora a aversão ga-
rante algo, mas mostrando uma grande – Ora não me julguem mal, meus ami- nhava novos contornos e no seu íntimo
dose de amor-próprio, recompôs-se ime- gos – atestou aquele –, mas não é hábito não sabia mais dizer se um pouco de
diatamente e não permitiu que lhe repe- meu partilhar o jantar com adoradores da desejo carnal não acompanhava todo o
tissem a ordem. Desenrolou o xaile que cruz. Se não vos causar incómodo, a re- ódio. Malditos aqueles olhos que nun-
lhe envolvia os ombros, lançando-o aos feição ser-vos-á levada aos aposentos – e ca puderam ser humanos, aquela boca
pés do anfitrião, despiu a saia e a casaca, nisto ordenou a dois dos seus servos que que lhe trazia pensamentos obscenos,
os encaminhassem. aquele corpo pálido como o vira há
O primeiro a levantar-se indicou-lhes pouco. Não podia pensar nisso, não
a direcção, guiando-os com a ajuda do podia fracassar…
outro por meio de outros corredores, Sucumbiu ao sono. Um sonho de-
até uma enorme porta de madeira licioso onde a imaginava nua sobre o
que lhes informou ser do seu quarto. frio cadeirão de pedra, rindo e brin-
Abrindo-a, acrescentou – Não o aban- dando, sorvendo um cálice de vinho
donem até que o nosso senhor vos diante de uma hoste de demónios que
chame e aguardem aqui o jantar – Luís se desenrolava em redor da mesa…
suspirou e Valdemar rangeu os dentes Os demónios soerguiam-se. Sorrisos
e apertou os punhos, mas nada disse- sardónicos a rasgarem-lhes as faces
ram, entrando no quarto. como máscaras gregas de teatro…
Estava majestosamente mobilado, Em pânico a mulher olhava em redor,
contrastando com o lúgubre corredor era minúscula diante deles, como uma
de acesso. Ao centro, sob a carpete gata encurralada entre lobos famintos.
vermelha, repousavam dois enormes Largou o cálice que se quebrou sobre
dosséis cobertos duma igualmente a mesa e tentou correr. Não podia fu-
rubra tapeçaria debruada a ouro, am- gir… os demónios erguiam-se a toda
bos ladeados por sinistros estafermos, a volta. Gritou, mas ninguém a podia
representando corpos esquálidos de ajudar… Apenas uma parede de gra-
braços estendidos para segurar as ves- nito se erguia atrás dela… Agora os
tes. Um enorme candelabro iluminava demónios afrouxavam, cedendo lugar
todo o espaço a partir do tecto, vendo a a uma figura que se sobrepunha pelo
sua luz reflectida num grandioso espe- tamanho descomunal… Perante a sua
lho que cobria a parede oposta. Apesar monstruosidade, Sara levou as mãos
de tudo isso, quando a porta se fechou à cara e voltou a gritar… Esticou a
nas costas, só muito tenuemente todo manápula agarrando-a pela cintura,
o luxo ocultava o estatuto de prisão. depositando-a sobre o ombro. Calma-
Entrando atrás do companheiro, mente se encaminhou no obscurecido
Luís poisou igualmente a lanterna sob pavilhão para fora do círculo de alar-
a mesinha à entrada e encaminhou-se vidades até um túnel ainda mais escu-
para a cama que restava. Vendo Valde- ro… A mulher gritava aflitivamente,
mar sentado sobre a sua, de costas para agredindo os costados do seu captor,
si, resolveu gritar-lhe. enquanto ia sendo tragada pelas tre-
– Hei Márito! Onde está a porra da vas do corredor… Num momento,
imortalidade, hein!? – rugiu – Fomos apenas a sua cara era visível, recortada
vendidos, meu grande nabo – socou entre as sombras em redor… Parou
um poste da sua cama, mas pronta- de gritar, agarrou ternamente o pes-
mente agarrou a mão ferida. coço do gigante, elaborou um sorriso
Valdemar não respondeu, viran- burlesco… e desapareceu no túnel.
do-lhe um olhar sombrio, pedindo-lhe Luís acordou sobressaltado, defronte
que se calasse, ao que ele prontamen- ao olhar cansado de Valdemar, sentado
te acedeu. Largou-se sobre a cama. ao canto da cama.
O cansaço e a raiva toldavam-lhe a – Luís… – interrompeu-o o compa-
mente e o sono foi o desejado alívio. nheiro – acho que vou morrer aqui…
Odiava Valdemar, sabia que o odiava, Luís estremeceu.
mas quando o pensamento lhe surgiu, – Ora essa, que raio de pensamento!
tentou afastá-lo. Não sabia odiar o – Não importa. Algo me diz que vai

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ANGG!
ser assim… Ouve-me Luís, quero-te e lutando contra a moleza inicial, aca- veitando-se da confusão momentânea,
pedir um favor. Diz uma coisa à Do- bou por se levantar e dirigir-se à me- saltou sobre ele, socando-o até o seu
roteia… diz-lhe… que morri como um sinha onde repousava ainda um tabu- crânio se estilhaçar contra a tapeçaria
herói… que morri a enfrentar o diabo leiro. O outro fora rudemente lançado do chão e os seus berros e movimen-
de peito erguido. contra a parede do quarto, formando tos cessarem. Quem lhe dera que Val-
Ao ouvir o nome da sua noiva, não poças de comida pelo chão em volta. demar pudesse ter visto a sua vitória.
foi capaz de reprimir um suspiro. Mas Indagou sobre o acontecimento. Abandonando o corpo sem vida do
então, o desalento do companheiro co- Afastando as cortinas da cama onde monstro, correu pelo caminho de re-
meçou a influenciar as suas esperanças. o amigo dormia, logo reparou na cabe- gresso ao grande salão, encontrando-o
– Ora essa, Márito – tentou parecer ça oval onde as feições se desvaneciam, como o vira antes, com a mesa de pe-
bem-disposto – Ninguém ganha ao ve- assim como na mão grande e peluda que dra ao centro e o grupo de estranhos
lho Márito! Ainda te lembras daquela repousava ao lado daquela. Examinan- seres entregue a loucas folias, sem in-
vez que fomos com o João ao Casal dos do demoradamente, viu as madeixas do dícios de hostilidade. Por momentos
Fornos e que a rapaziada de lá se juntou seu cabelo espalhadas em montículos tomou o caminho que o trouxera ali,
para nos malhar? Dessa vez tu agarraste sobre a cama, dando lugar a outra pela- mas detendo-se a meio do salão, olhou
num pau e dos dez ou doze que vieram gem, mais espessa e encaracolada que lhe
para ti, fizeste um – riu-se – Ora essa, crescia a partir da nuca. Diria estar diante
sempre foste duro como um touro! de um dos seres disformes que habita-
– Agora é diferente – redarguiu o ou- vam o castelo, não fosse a roupagem de
tro – Diz isso à Doroteia… e diz-lhe Valdemar: a camisa branca sob o colete,
outra coisa… diz-lhe que sempre gostei desajustada à nova forma que perdera
dela – e feito isto encaminhou-se para a musculatura, já não lhe cobria a base
a sua cama. da barriga e ficava larga nos ombros,
Luís não conseguiu responder perante assim como as calças, agora demasiado
a menção daquele nome. A culpa atin- compridas, formavam várias dobras em
giu-o em choque. Sempre fora Valdemar redor de uns pés descomunais. Ao lado
de quem ela gostara e nunca dele. A sor- da cama repousavam as botas que não
te sorrira-lhe quando ela lhe pedira para mais lhe serviriam. Valdemar deixara de
entregar uma carta ao amigo, o que ele ser humano.
nunca fez, trazendo-lhe a resposta nega- Luís tentou fugir, mas encontrou a
tiva que lhe magoara o coração. Ainda porta trancada. Com quase meio palmo
guardava ressentimento dessa traição, de grossura e uma negra fechadura em
mas não podia fraquejar agora. Muito aço, não cederia facilmente. Desespe-
menos agora! Porque teria Valdemar de rou. Disposto a tentar de tudo, olhou
ficar com a moça mais formosa da Vila!? para a mesinha a seu lado, ainda com
A vida era injusta. Pensou em Doroteia, as lanternas e a bandeja sobre si, pen-
reviu-a atrás do balcão com o sorriso deli- sando usá-la como aríete improvisado.
cioso que apenas ela conhecia, ou regres- Quem lhe dera que Valdemar estivesse
sando da fonte no seu andar jovial com ali agora como ser pensante. Havia de
a bilha sobre o ombro. Não! Ele apenas conseguir fugir. Preparava-se para le-
lutara com as armas que tinha e saíra vito- vantar a mesa, quando pensou ter ouvi-
rioso. Talvez um dia pudesse contar isso do um ruído do lado oposto.
a Valdemar, mas esse momento não era Sabia que a imaginação podia ser
agora. traiçoeira em momentos de ansiedade
Seria justo condená-lo por esta fútil como aquele e encostou o ouvido à
aventura, quando sabia que Doroteia fora superfície de carvalho. Tudo silencioso
a principal responsável? Não pensava nis- durante uns instantes… Quando reto-
so. As pancadas na porta despertaram-no mava o processo, ouviu distintamente o
destes pensamentos, mas quando as cria- restolhar de pés descalços sobre o chão
turas se abeiraram para depositar duas de pedra do corredor. Com um estalido
bandejas sobre a mesinha da entrada, metálico a porta abriu-se, deixando-o
recusou o convite de Valdemar para se de frente a uma criatura.
lhe juntar na refeição. Recostou-se sobre Assustada, aquela tentou fechá-la de
a almofada de braços cruzados atrás da novo, acto que ele prontamente impe-
cabeça, contemplando as dobras do tecto diu com um braço, usando-se da outra
de veludo do dossel, enquanto meditava mão para a puxar para dentro, ficando
na situação. Não estava em condições de surpreendido pela falta de resistência
encarar o amigo… que lhe ofereceu. A criatura saiu pro-
Só reparou que tinha dormitado jectada, vindo a embater contra a sua
quando abriu os olhos no silêncio do cama.
quarto. Valdemar devia ter acabado por Repentinamente Luís pegou numa
adormecer, pois a divisória estava de- lanterna, estilhaçando-a sobre a cabeça
masiadamente calma. A fome atacava-o do opositor que se levantava, e apro-

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///
ddemoradamente
d para o grande d túnell a todad a fúria
f que o seu corpo o leva-
por onde vira o seu anfitrião surgir ho- va, arrancando beijos à mulher, mor-
ras atrás. dendo-lhe e esbofeteando-lhe os fartos
Encaminhou os seus passos para seios numa fúria arrebatadora, acaban-
lá, encontrando um corredor bastante do por possuí-la como se mais nada
mais largo que os restantes que desem- houvesse a fazer. Nem das melhores
bocava numa enorme porta de carva- vezes que oferecera dois tostões a Gi-
lho, decorada em floreados negros de nita, se conseguira sentir como agora.
ferro forjado. Estava entreaberta e com O que diria Valdemar, se o pudesse ver
algum esforço conseguiu empurrá-la. assim? Não demorou a atingir o êxtase.
Diante de si ergueu-se um grandioso Apertava novamente o cinto de cou-
hall, forrado de uma passadeira ver- ro quando se cruzou com o sorriso ma-
melha ladeada de estátuas de prístinas treiro de Mefisto, que presenciara toda
divindades sobre pedestais, que desem- a cena sem sair do local.
bocava num patamar semicircular. Cin- – A mulher traiu-te. Mas posso dar-ta
gido pelo pequeno lanço de escadaria para a eternidade para te vingares –
que lhe dava acesso, no topo daquele sugeriu aquele, apontando o frasco de
repousava um vistoso trono dourado líquido verde sobre o patamar – Infeliz-
com forros de algodão vermelho no mente haverão consequências…
assento e no encosto, ao lado de uma O restolhar dos grilhões de Sara
pequena tripeça igualmente em ouro, eram prova das consequências. Luís
Pedro Ferreira nasceu em 1989 e é licenciado em
suportando um receptáculo de cristal virou-lhes as costas, direccionando-se
História pela Universidade de Coimbra. Começou a
com um líquido verde no interior. para a porta. Ao ver-se abandonada,
ler por brincadeira, mas encontrou aí um vício mais
Mefisto caminhava placidamente Sara desatou num choro que lhe rubes-
forte que o do tabaco. Escreve por desporto, e o seu
pelo corredor com a sua negra capa a ceu as faces, implorando-lhe que voltas-
objectivo é encontrar na literatura o Santo Graal das
retumbar nas costas, arrastando uma se. Pela primeira vez na vida da mulher,
ideias raras. Actualmente é professor estagiário,
grossa corrente ligada ao pescoço de as suas palavras foram ouvidas em vão.
leccionando as disciplinas de História e Geografia no
Sara, forçando-a a rojar-se nua atrás, – Hei, Luís! – chamou Mefisto, levan-
ensino secundário. O seu género literário, inspirado
com os ferros que lhe oprimiam os do-o a olhar para trás – És um tipo do
no meio rural de antanho, é definido por ele como
membros a arrojar no chão. O gigante diabo, mas há qualquer coisa que me
«Mantilhas&Capotes Punk».
deteve-se a escassos passos da escada- faz gostar de ti. És livre de ir, mas não
.
ria, olhando o intruso sob a soleira. O abuses da sorte! – sorriu.
seu gesto foi repetido pela cativa. Sem nada dizer, Luís encaminhou-se Alves pouco depois da façanha, relação
– Salva-me, Luís – gritou Sara quan- para a porta. Sem demoras, abandonou que terminou abrupta quando aquela
do o viu, segurando o grilhão em volta o palácio. O desfiladeiro que o rodea- foi morta num assalto. Desde esse dia,
do pescoço – Não me deixes aqui! – va não se mostrou grande problema na segundo se conta, Manuel nunca mais
levantou-se e caminhou tropegamente, descida, mas chegando ao vale encon- foi o mesmo até que numa noite desa-
arrastando a corrente presa aos seus trou o mesmo círculo negro de figuras pareceu, sem ninguém lhe pôr mais a
tornozelos. Parou quando os elos da no limiar do cemitério. Suspirou, aper- vista em cima. Talvez fugisse para lon-
que lhe prendia o pescoço se estiraram, tou os punhos e avançou pelo intervalo ge, ou talvez regressasse ao lugar som-
deixando-se cair de joelhos – Faz amor entre duas delas. Não houve qualquer brio onde podia agora encontrar a sua
comigo, Luís, eu sei que sempre me de- resposta daquelas, que permaneceram mulher.
sejaste! – e pôs-se a acariciar os peitos. hirtas como estátuas. Fiel à promessa do amigo, nenhuma
Aquela visão dissipou todo o ódio Cruzou o manto de sepulturas pela se- verdade dissera do seu trágico fim, fi-
que conjurara. Sabia agora o que mo- gunda vez naquele dia sem se deter, en- cando guardada a lenda de Valdemar
vera Valdemar e caminhou na direcção quanto o sol desaparecia no ocidente. Era Mata-Diabos para a imaginação popu-
da mulher. Vendo-o fazê-lo, Sara recupe- já bastante perto do crepúsculo quando lar, uma bela história de coragem que
rou parte do seu característico orgulho e avistou as grades do grandioso portão. há gerações se conta aos mais jovens…
nada mais disse. Quando Luís se abeirou, CONTEMPLA MORTAL, A CASA QVE e que lhe contarão a si, se algum dia vi-
ergueu a cabeça para lhe fitar o olhar, VM DIA HERDARÁS, dizia muito estoi- sitar estas paragens.
mostrando-lhe toda a inocência que sabia camente o seu letreiro, sem que ele se Sobre o destino de Sara Vingelha,
ilustrar. Era de novo uma jovem garota, detivesse para o contemplar. Nada ha- poucas perguntas terão sido feitas e
esperando um castigo do pai por qual- via de espectacular em admirar o ocaso quando um ano após esta história, che-
quer travessura. Com as correntes a res- da vida. Quando alcançou a Vila era já gou sobre um cavalo baio o primeiro
tolhar nos pulsos, agarrou-se gentilmente noite cerrada, acabando por se guiar médico da Vila, o nome da curandeira
à perna de Luís onde encostou a cabeça. pela luz que brotava nas janelas das ha- nunca mais foi lembrado.
Não encontrando resistência, tomou a bitações. Tivera um dia cheio e a labuta
liberdade de lhe desapertar o cinto, pu- pC
esperaria por ele na manhã seguinte.
xando-lhe as calças até ao cano das botas.
Debalde Luís lutava contra o desejo que Ainda hoje se conta na Vila a proeza
lhe crescia, estonteante, e empurrando-a do único homem que regressou do Ve-
para trás, lançou-se sobre ela. lho Cemitério. Sobre ele, Luís Manuel,
Mefisto sorriu, enquanto Luís cedia diz-se ainda que desposou Doroteia

48 /// BANG!
O
documentário “Shut up & Play the Hits” que captura o último concerto
dado pelos LCD Soundsystem sugere, a meu ver, uma discussão recorren-
te no mundo das artes, acerca das consequências do pós-modernismo. Os
LCD são um projecto criado pelo DJ/produtor James Murphy e tornaram-se
conhecidos após um single chamado “I’m Losing my Edge” no qual Murphy
se queixa de todos os novos Djs que acham que sabem tudo, ao contrário dele
que viveu tudo. Este projecto, pela posição assumida por Murphy, poderia cons-
tituir-se como uma banda puramente conceptual a tentar jogar com as lições do
passado para apontar no sentido do futuro. Um filme acerca do final de um grupo
no pico da sua fama poderia claramente pressupor isso. Pura ilusão, este filme é
a continuação lógica de um projecto totalmente conduzido pelo sofrível narcisis-
mo de Murphy e pelo seu pânico em dar um passo em falso que possa afastá-lo
do panteão de grupos e artistas que enumera na canção já citada. “Shut Up &
Play the Hits” é um parente mais próximo de “Sexo e a Cidade” do que “The Last
Waltz” de Scorcese sobre o último concerto dos The Band.

NG!! //
BANG
BA //// 49
Para um projecto musical se assumir conceptualmente é preciso uma grande dose de sacrifício e muita auto-confiança
posta ao serviço da criatividade. Acredita-se que esta poderá trazer transformações, mesmo que sejam a longo prazo ou
até a título póstumo. Por isso, conta-se pelos dedos o número de bandas
que ousaram subordinar as suas carreiras musicais a um conceito. Mas aque-
las que o fizeram deixaram uma marca profunda na cultura popular, arrisco
mesmo afirmar que foram elas que fizeram o género evoluir através de uma
constante reinvenção operada num campo puramente ideológico. Gente que
contestou a natureza puramente instintiva e libidinal do rock, e que de certa
forma alertou para os perigos dessa mesma natureza quando caída nas mãos
erradas - não as de génios do mal mas das exigências naturais das sociedade
de consumo capitalistas. A característica utópica e distópica da mensagem
destes artistas tem por base influências díspares provindas da ficção científica
especulativa, de teorias futuristas ou da pura fantasia transcendental, provan-
do que o pós-modernismo em si mesmo, apesar de fundamentar a ideia de
fim da modernidade, não é necessariamente o fim do caminho para as artes
no século XXI. A própria ficção científica em si é um conceito pós-moderno,
prevê o futuro através do passado, transformando-se em presente constan-
temente. Proponho então uma breve viagem pelas bandas conceptuais que
puseram em causa o reaccionarismo do rock, preconizado pela máxima –
sexo, drogas e rock’n’roll. São histórias que se cruzam no tempo e no espaço
subentendendo uma linhagem. Que se contaminam e se destacam pelo seu
carácter militante, progressista e radical. Bem-vindos ao maravilhoso mundo
das bandas conceptuais.

O REGRESSO AO FUTURO
Cartaz do filme “Shut up And Play The Hits” sobre
os LCD Soundsystem
Alemanha, no dealbar da década de 60, era um país

A sem uma identidade cultural que não trouxesse à me-


mória o seu passado recente. O ocidente apro-
veitara as consequências da rendição e invadira
culturalmente a nação europeia, que por sua vez
o acolhera desesperadamente, sedenta de entretenimento
Para além de possuir uma forte tradição boémia e art
tinha também um circuito de bares onde see podi
rtís
rtísti
ís
o.
tica,
d a tocar
The Monks

para um público entusiasta de novidade ddees, principalmente


nas grandes cidades como Frank nkkfu
furt, Hamburgo ou Co-
lónia. Este circuito foi a escco
olla que os Beatles frequenta-
ram e de onde se lannççaaram para o estrelato mundial. O seu
impacto foi taal que dois designers de publicidade, depois
de os teere
rem visto, decidiram que este fenómeno popular
erra merecedor de uma reacção “artística”. Karl-H. Remy
e Walter Niemann, seguidores da corrente vanguardista
provinda da escola Bauhaus, concentravam o seu trabalho
sobre a ideia de identidade corporativa, ou seja, a forma
como todos os objectos e instalações de uma única em-
presa se identificam de modo singular e consistente. numa rejeição total de todas as caracterrís ísticas do beaat
at bbri
ritâ
tâni
ni--
Para formar aquilo a que designavam de “anti-Beatles”, co. O pendor melódico era totalmen nte
t inexistente e a eeststru
rututu--
escolheram uma de entre as centenas de bandas que tenta- ra rítmica profundamente alterad adda. O baixo era tocaad
ado mu muit ito
o
vam a sua sorte na Alemanha: os The Torquays, s formados por alto sob os ritmos minimalis issttaas e tribais de uma bat ater
eria
ia qque
ue
cinco ex-soldados norte-americanos estacionados em territó- raramente utilizava címb bal
alos. Esta secção rítmica cr cria
iari
riaa um
umaa
rio germânico. Remy e Niemann convenceram os jovens a tensão hipnótica à qua ual se acrescentaria um órgãão de iigr grej
ejaa
deixarem a seu cargo toda as decisões artísticas e financeiras tocado agressivaamente, um som de guitarra assen nte no uuso
nt so
em troca de um contrato discográfico. Para realçarem a im- descontrolado o de feedback
k e um banjo electrificaddo qu quee apape-
e-
portância destas mudanças, exigem uma mudança de nome – nas serviaa a secção rítmica, criando um som mettá tálico
tálico qqueue ssee
The Monkss – e elaboram um conjunto de regras para cimentar sobrepep
punha ao conjunto final. Os versos das can nçõe
nç õess se
seri
riam
am
a sua identidade corporativa: vestir sempre de preto; usar o brev
e es e nunca cantados, antes falados ou gritaddos
ev os, ap
apoioiad
adosos
cabelo curto tonsurado como um monge medieval; ser um por um coro uníssono de matriz gregoriana, o seeu co cont
nteúeúdodo,,
monk k não apenas em cima do palco mas também nas ruass; surrealista e anti-bélico.
e principalmente nunca mais voltar a ser um torquay. E em Enquanto os Beatless cantavam “I Wanna Hoold yyou ou HHan andd”,
Março de 1965, os Monkss e os seus empresários ent nttram em os Monkss gritavam “I hate you with a passion, babby! y!”. E
Escscus
usadadoo
estúdio para descobrirem o seu novo som, que se iria basear será dizer que mesmo um público aberto a noviid idad
ades
es ccom
omo oo

50 /// BANG!
alemão não conseguiu entender, muito eco à sua voz criando o “som” do psi- suas detenções eram m tr
t an
a smitidas em
menos aceitar um som que continha em cadelismo; e os seus poemas em forma directo pela tellev evi
visão. O uso abusivo
ab
b
si sementes de Heavy Metal,l de Techno, de de letras exaltando as substâncias que das substâ tâânc
tânncias psicotrópicass começou
Punk ou da música industrial. O mais possibilitam a cada um “alterar quimi- tamb
m ém
mb ém a ter o seu efeitto negativo na
próximo do que teria sido um concerto camente o seu estado mental.” Estes banda, que intername mente começou a
me
dos Monkss deve ser a sequência do filme elementos convergidos dão orig iggeem
m a dividir-se entre oss que levavam a sério
de Robert Zemeckis “Back to the Futu- “The Psychadelic Sounds of o The 13th a experiência e os que se opunham à
re” na qual Michael J. Fox resolve tocar Floor Elevators”, o pr priim
meiro registo do obrigação ddee tomar as ditas drogas. Os
“Johnny B. Good” por via de Eddie Van grupo. Na cont nttra
raca
c pa encontra-se um 13th Flo
looor
or Elevatorss iriam pagar caro a sua
Halen defronte de um público com 25 texto não o assinado (da autoria de Hall) ousa
saadia, a começar pelo vocalista Roky
anos de atraso (“I guess you guys aren’t ready no qual este expõe as bases do seu pen- Erickson que, para fugir a uma senten-
Er
for that yet. But your kids are gonna love it.“)). samento: a mudança de um conceito o ça por posse de um cigarro de cannabis,
Se o momento fulcral da aasscen- aristotélico de conhecimento verti tical,
ti alegou insanidade em tribunal, foi inter-
são dos Beatles foi a sua ap aparição
p no separado entre si e ordenado por clas- nado e submetido a terapias à base de
Ed Sullivan Show, w tran
a sf
an sformando toda ses, criando um mundo no qual impera electro-choques e torazina. O guitarris-
a música pop pul
u ar
a do séc. XX, então o o caos e a desordem; Halll propõe uma ta Stacy Sutherland lutou durante anos
mesmo see aplica à aparição dos Monks sistematização do co onhecimento hori- contra a dependência de drogas pesadas
noo programa Beat Beat Beatt da TV ger- zontalmente paraa encarar a vida na sua até à sua morte prematura, provoca-
mâânica. Defronte do televisor estavam totalidade. Poor detrás desta filosofia está da por um tiro disparado pela mulher.
joveens
jo n como Hans Joachim Irmler, que o trabalhoo do
d matemático polaco Alfred Tommy Hall entrou num exílio forçado,
viuu nesta actuação um chamamento re-
vi Korzyb y ski, para quem toda a experiên-
yb transformando-se num eremita urbano
voolu
l ci
cionário. Anos mais tarde formaria ciaa humana devia ser reavaliada através mas sem nunca desistir de trabalhar a
o Fauust,
os uusst um dos expoentes máximos do de uma perspectiva não-aristotélica. ideia de “Pensamento Horizontal”, aca-
Krau
Kr autr
troc
ock, a linguagem vanguardista (e
oc Onde Korzybski é vago, ou seja, na for- bando por converter-se à Cientologia
anti
ti-c
-com mercial) do rock dos anos 70. 0. ma de atingir esta meta, Hall é prático, nos anos 70. Antes, em 1967, os Beatles
seria através do uso de substâncias psi- lançam “Sgt. Pepper’s” e o mundo nun-
cadélicas. Nesta introdução explica de ca mais deixou de ser psicadélico.
OS ELEVADORES DA PERCEPÇÃO que forma o álbum corresponde a uma
reavaliação psicadélica em torno da gé-
teerm mo “rrock psicadélico” é hoje nese de uma nova percepção afastada O SEGREDO É A ALMA DO NEGÓCIO

O
de m
tura
tu
a ou
mão
ra p
ouvi
psi
sico
um lug

sica
si
nias
ni
ãoss da
ca p

dada
cotr
virr o ad
ugar comum do género mu-
siiccaal. Nasce da fusão entre a mú-
pop
as qque
das.
tróp
opular e drogas alucinogé-
op
uee desde então caminham
s. Por isso, a cada nova cul-
ópic
adje
icaa emergente, lá se volta
ject
ctiv
ivo “psicadélico”. As
iv
do “velho sistema”. Assim, cada canção
representa um estádio nesse processo
de libertação.
Como é do conhecimento comum,
o Texas não é (nem nunca foi) um dos
estados progressistas dos EUA e o en-
dosso público do uso de LSD por parte
D
iz-se que são naturais da cidade
de Shreveport, no Louisiana, e
que em 1966 se mudaram para a
Califórnia, mais especificamen-
te San Mateo, onde assentaram
arraiais e iniciaram um trabalho artístico
orig
or igen
enss de dest stee teterm
rm
mo situam-se na Uni- dos Elevatorss era visto como uma séria multifacetado nas mais diversas áreas.
vers
ve rsid
idadadee do T Texexasas em Austin, por volta ameaça à manutenção do tecido social. Experiências com gravadores produ-
da m mes esmama aalt ltur
uraa em m que os Monkss ar- Não só foram perseguidos como as zem uma cassete enviada para a Warner
ranc
ra ncavavamam n naa Al
Alememan anhha – 1965. Tommy Brothers ao cuidado de Hal Halversta-
Hallll,, um eest
Ha stud
udan antete que havia trocado dt, pela simples razão de que este havia
Capa do disco
a en engegenh nhar ariaia qquíuími
micaca pela filosofia e a colaborado com Captain Beefheart.
“The Psychadelic Sounds of The 13th Floor Elevators” (1966)
lilite
tera
ratu
turara,, co comemeça ça a ddeestacar-se Halverstadt acha a cassete
na vvid idaa boboém émia ia ddoo ca
camp
mpususs através interessante mas não sufi-
da p pro
roduduçã ção o de fa fanz
nzin
ines
es,
s, fe
festas li- ciente para gravar um disco e
terá
te rári
rias
as e exp xpereriêiênc
ncia
iass co
com munais escreve uma carta de rejeição
com
co m al aluc
ucin inogogénénio ioss on
onde de p paartici- enviada ao cuidado dos “The
pava
pa vam m jo jove vens ns m músúsic
icos
os ccomom
mo os Residents”,
s visto o pacote ter
guit
gu itar
arririst
stasas R Rokokyy Er Ericicks
kson
on ou vindo sem nome no remeten-
Stac
St acyy SuSuth ther erla
landnd.. A ju junç
nção
ão des- te. Parece que foi assim que
tass 3 pe
ta persrson onag agenenss fofoii o su
sufi
fici
cien
ennte
t nasceu um dos mais misterio-
para
pa ra ffaz
azerer n nas
ascecerr a 1ª b ban
anda
da p psi
sii- sos colectivos musicais a dei-
cadé
ca délilica
ca,, os 113t 3th h Fl
Floo
oorr El
Elevevat
ator
ors.s.. xar a sua marca no mundo da
Eram
Er am ttam ambé bém m tr três
ês o oss el
ele-
e- música popular.
ment
me ntosos qque ue ddes esta
taca
cava
vamm es estata O parágrafo anterior é
band
ba ndaa de qqua ualqlque
uerr ououtrtraa na aalt
ltu-
u- baseado em “informações”
ra:: a po
ra pode dero rosasa vvozoz ddee RoRoky ky EEriri-- veiculadas pelos próprios The
kson
ks on qque ue n no o seseuu pi pico
co rrivival
aliz
izav
avaa Residentss a propósito de uma
com
co m a de JJan anis is JJop
oplilin;
n; uum m in
inst
stru
ru-- carreira que subsiste em tor-
ment
me nto o in inve ventntadado o poporr Ha Hallll qque
ue no de uma auto-mitologia
cons
co nsisisti
tiaa nu num m bi bido
donn dede gagaso
solilina
na em constante renovação.
quee fu
qu funcncio iona navava ccomomo o câ
câma
mara ra ddee Um desses mitos conta que

BANG! /// 51
o mentor da banda teria sido um meiro grupo pós-moderno. A
obscuro compositor bávaro de eles se deve por exemplo, o pri-
nome N. Senada, criador de duas meiro mashh-u -up da história do rock
teorias que têm sido os pilares (técnica muito em voga hoje em
das composições dos Residents. dia na MTV) com o single “The
A primeira chama-se “Teoria da Beatlees Play the Residents and
Obscuridade” e defende que o the Residents Play the Beatles”.
artista estará sempre no pico da Essta ironia provocatória marca
sua criatividade se se mantiver a primeira fase da carreira dos
totalmente anónimo e imune ao Residentss que se apresentavam em
feedback
k por parte de um público, fotos promocionais de smokingg e
teoria à qual os Residentss sempre cartola com enormes glóbulos
foram fiéis até ao presente. A se- oculares no lugar das cabeças –
g nda – “Teoria de Organização
gu imagem icónica para sempre li-
Fonética” – sustenta que a músi-
Fo gada ao grupo. De certa forma,
ca dev
e e ser construída a partir do os Residentss devolviam ao públi-
som, em vez de ser um elemento co o seu olhar, propondo uma
secundárrioio em relação ao ritmo, meditação não apenas sobre a
tom, estrutu t ra, etc. Trata-se de
tu própria composição musical mas
uma forma dee organizar os sons igualmente sobre o seu consumo
que rejeita as regrarraas
a estabelecidas massivo.
da composição muusi s cal. Há no Uma das vantagens da per-
som dos Residentss umaa qualidade sistência em trabalharem sob a
primitiva inspirado pelas cu c lturas “Teoria da Obscuridade” du-
“T
tribais de África e da Améri riica
c do The Residents raant
n e tanto tempo, é o facto de
Sul, ou seja, toda a sua criação ão é se poderem afastar sem o sub- 1
pautada pelas regras do minima- sequuen
e te fim do grupo, poden-
lismo filosófico e artístico. do esste ser mantido por novas
Sem acesso aos canais mains- geraçõ ões
e de artistas sem que o
tream
m para difundirem o seu tra- público se aperceba. Os Residents, s
balho, os Residentss criam uma enquanto o projecto, transcendem
editora (Ralph Records) e uma os seus crriai dores e os seus pró-
companhia (“The Cryptic Cor- prios limite tees espácio-temporais,
poration”) para tratar dos negó- encontrando o paralelo noutr trros
cios e servir de porta-voz. Para fenómenos co omo a série televi-
o grupo, o progresso era indis- siva “Os Simpssonss”. Est stta referên-
sta
sociável de uma ironia sobre as cia não é de tod oddo casual visto o
formas popp prevalecentes: no criador da sérriee, MaM tt Groening,
seu primeiro álbum parodiam os ser admiraado d r con nfesso da obra
Beatles de “Meet the Beatles”, dos Reesisidentss e auto
or de uma das
chamando-lhe “Meet the Resi- biog
ogrrafias ficcionaiss que se po-
og
dents” (1974), na capa as carass dem encontrar no sitte oficial da
de
dos fab fourr surgem debaixo de de banda. Os Residents, s co
om quaren-
máscaras grotescas; em “Th hird ta anos de carreira, anu nunciaram
nu
Capa do disco “Meet the Residents” (1974)
Reich’n’Roll” (1976), surge Dick recentemente uma nova tournée
Clark, mentor do pro ograma mundial.
“American Bandstand”,, com um
uniforme de oficial naazi na capa,
no interior assistimos oss a um desfi- WE ARE THE ROBOTS
le de canções rock clássicas como
“Let’s Twist Agaain i ”, “Papa’s Got o final dos anos 60, surr-
a Brand New Bag” (ambas can-
tadas em aleemão), “Hey Jude”,
“Rock Arouund the Clock”, “Li-
ght my Fir
em simul
Album
vamm ao
ul
ire” por vezes tocadas
u tâneo; em “Commercial
m” (1980), os Residentss le-
m”
a extremo a sua lógicaa de
e--
d s-
N giu na Alemanha um
movimento associado ao
rock

nação criada devid


m

ck progressivo intitu-
lado “Kr
K autrock”, desig-
id à dificuldade
id
ido
em associar os novvos o projectos
musicais germânicos a este gé-
coonstrutivista criando um disco nero, mercê do uso quee faziam
composto por 40 caan
co nçções, todas do improviso proveniente do free
com um minuto de duração. jazzz e de uma obsessão com m a
Podemo os atribuir, desta for- electrónica. As inúmeras bandass
ma, aos ReR sidents,
s o título de pri- que explodiram nos grandes cen-
Capa do disco “The Third Reich ‘n Roll” (1976)
52 /// BANG!
Kraftwerk
tros urbanos eram compostas por estudantes de arte
que reinterpretavam o rock por intermédio de uma Em “Radio-Activity” (1975),
nova sensibilidade pós-guerra. No entanto, a maio- “Trans-Europe Express” (1977), “The
ria destes grupos cantava em inglês e possuía nomes Man Machine” (1978) E “Computer
anglo-saxónicos - Can, Tangerine Dream, Cluster, etc World” (1981), os Kraftwerk k constru-
– à excepção de uma que se destacava dentro do mo- íram uma obra conceptual em torno
vimento: os Kraftwerkk (termo que significa “Central da identidade germânica, do seu pa-
de Energia”). O grupo era formado pelos estudantes pel no continente europeu, ao mesmo
de música clássica, Ralf Hütter e Florian Schneider, tempo que provocavam uma autêntica
influenciados pelo compositor avant-gardee Karl-Heinz revolução electrónica no seio da mú-
Stockhausen, pela música concreta de Pierre Schae- sica popular. Durante este trajecto, os
ffer e pela banda sonora exclusivamente electrónica membros da banda foram-se desper-
do clássico de ficção científica “Forbidden Planet”,
t pio- sonalizando, tornando-se personagens
neiro no seu uso. secundários da banda sonora de uma
Em 1974, os Kraftwerk lançam o primeiro de nova sociedade tecnológica que pro-
uma série de álbuns conceptuais que os tornaria num grediu das auto-estradas até aos com-
dos mais importantes projectos musicais do século putadores - fase final na qual os Kraf-
XX - “Autobahn”. A “auto-estrada”, uma das heran- twerk se substituem literalmente por
ças de Hitler, propõe uma viagem pela nova nação manequins robotizados, simbolizando
germânica industrializada com todas as suas possibi- uma fusão completa entre homem e
lidades e sonhos. “Autobahn” é um disco marcante máquina. É por isso surpreendente a
para os Kraftwerk por muitos motivos: marca a sua importância dos Krafwerk k para a músi-
última colaboração com o produtor Conny Plank (a ca popular do último quarto do século
quem chamavam o “Phil Spector do Krautrock”); a XX até ao presente. Os seus ritmos
inclusão dos novos membros Wolfgang Flür e, mais minimais e repetitivos provocariam o
tarde, Karl Bartos, naquela que viria a ser a forma- nascimento de novos estilos de música
ção mais duradoura da banda; e o seu estrondoso hoje predominantes como o hip hopp , o
sucesso além-portas, chegando a nº3 na lista de ven- techno, e toda a electro-pop.
das nos EUA. Com os lucros destas vendas, Hütter
e Schneider investem em mais material para o seu
próprio estúdio de gravação, baptizado de “Kling
Klang”, onde trabalharam exaustivamente lançando Capas de discos de Kraftwerk:
quase um álbum por ano entre 74 e 81. Durante este 1. Autobahn (1974)
período, os Kraftwerk não só se barricaram no seu 2. Radio-Activity (1975)
estúdio para não sofrerem influências do exterior, 3. Trans-Europe Express (1977)
como também habitaram a mesma casa durante 10 4. The Man-Machine (1978)
anos. 5. Computer World (1981)

BANG! /// 53
A CIVILIZAÇÃO MAGMA
ouve uma altura em que a música impro-

H visada, com durações que chegavam a


ocupar o lado inteiro de um LP (executa-
da por virtuosos que se perdiam em solos
intermináveis tendo por fundo cenários
futuristas fantásticos, provindos da imaginação de
gente como Lewis Carroll ou Tolkien), dominava
as tabelas de vendas um pouco por todo o mundo
ocidental. O músico que mais longe levou todos
os excessos deste sub-género denominado de rock
progressivo ou prog rock, proveio da cidade das lu-
zes, Paris. Christian Vander, baterista de formação
jazzística, descobriu a sua raison d’êtree na música de
John Coltrane. Aquando da morte prematura deste,
Vander entrou em depressão profunda. Via apenas
no seu horizonte duas possibilidades: o suicídio
ou pôr sobre si a responsabilidade de continuar a
obra de Coltrane. Quando se decidiu pela última,
foi possuído por uma luz criadora. Imaginou um Capa do disco
“1001º Centigrades” (1971)
mundo, muitos séculos no futuro, quando a socie-
dade tal como a conhecemos houvesse sucumbido
ao caos e à degradação. A colonização do espaço tivamente à vertente estética do projecto, Vande der e
de
era uma realidade e as viagens interestelares prática a banda trajavam sempre de negro, ostentando co-
comum. É neste cenário que um grupo de terráque- lares com um símbolo inventado pelo próprio, im ma-
ma
ma- 1
os iluminados partem numa nave privada em busca gem que consolidava uma ideia de culto alienígenaa. a.
de um novo mundo onde uma civilização, fundada O primeiro álbum auto-intitulado, editado em m
na espiritualidade, possa florescer. Descobrem-no 1970, marca o início da odisseia kobaïan. Relata a
no planeta Kobaia, onde darão início à sua empresa. partida, a viagem e a chegada ao planeta; o longo
Fundar uma banda de rock progressivo com processo de construção de uma nova sociedade de
base nesta mitologia fantástica não é um feito inédi- acordo com a sua visão e a familiarização com o
to, aliás, pelo contrário, é quase um ritual de inicia- território em seu redor. Os terráqueos impressiona-
ção. Mas Vander decidiu cantar as suas canções na dos com os seus progressos imploram um regresso
nova língua que iria nascer neste planeta, o dialecto à Terra para salvar o planeta da interminável dee-
kobaïann que, fundido com a espiritualidade da músi- generação – pedido a que os kobaïanss acedem m. Em
m.
ca de John Coltrane, daria origem aos Magma. Em “1001º Centigrades”, o segundo registo o, de 1971,
entrevista, Vander disse que tinha inventado o ko- um grupo de kobaïanss aterra na Terra e, após a pro-
baïan porque o francês não era suficientemente ex- clamação das suas soluções, são deettiidod s pelas auto-
pressivo, tanto para a narrativa como para o som da ridades e a sua nave é confiscadda.a Do planeta Kobaïan
música. A linguagem desenvolveu-se naturalmente ouve-se a ameaça de destruuiç i ão da Terra em caso da
em paralelo com a música, através dos sons que esta não libertação dos refén ns. Tudo
T termina bem com o
lhe pedia. Combinando elementos de dialectos es- regresso do grupo ao seu novo lar, seguro de nunca
lavos e germânicos com técnicas vocais empregues mais voltar. A para tir daqui os álbuns dos Magma de-
no Jazzz por cantores como Leon Thomas, nascia bruçam-se so obr
b e aqueles que na Terra se recordam da
uma nova língua musical obediente apenas ao som visita doss kobaïan, dos seus ensinamentos e da forma
e não às limitações fonéticas de cada idioma. Rela- de oss ppô
ôr em prática. Os Magmaa gozam actualmen-
tee de um reconhecimento que tardou durante a sua
Magma longa carreira. Ainda dão concertos, gravam állbu b ns
e Vander
err ainda fala
doos kobaïanss em
entrevistas.

5544 //
/// BAANNGG!!
A AMÉRICA DO DR. MOREAU
nquanto estudante na Ken State Universitty

E em finais dos anos 60, Gerard Casale, naatu


da pequena localidade de Akron no

tual denominado DEVO, ab


“De-Evolution”, o oposto de evvol
darwinianoo da palavra. Este co
tural
o Estado
do Ohio, forma um grupo artísttiicco concep-
abreviatura de
olução no sentido
onceito afirmava que a
humanidade havia paraddo a sua evolução natural e
encontrava-se actualm mente num estado de regres-
me
são. A acção do gr g upo restringia-se ao campuss uni-
versitário, usan ndo o conceito para a criação de pe-
ças satíricaass.. Esta vertente algo imatura iria desper-
tar paraa a dura realidade norte-americana quando a
Guuar a da Nacional norte-americana assassina quatro
colegas de Casale numa investida contra uma mani-
co
festação estudantil anti-guerra dentro do perímetro
da universidade, em 1970. A piada perdera a graça
quando Casale percebeu que a “De-Evolução” era
uma realidade, e alguém tinha de avisar a popula- Capa do disco “Q:Are We Not Men? A: We are DEVO!” (1977)
ção.
Com Mark Mothersbaugh e os irmãos de ambos Plank (esse mesmo, o “Phil Spector do Krautrock”)
– mais conhecidos por Bob 1 e Bob 2 – transfor- e em 1977 é lançado “Q: Are wee not men? A: We are
mam o grupo artístico numa banda pop e à De-Evo- DEVO”, verdadeira ofen nsi
s va
va DEVO contra a socie-
luçãoo juntam as teorias de um livro pseudo-científico dade norte-americana na. O seu impacto fez-se sentir da
na
de 1971 chamado “The Beginning Was the End”, es- pior maneira.. NiN nguém entendeu a “De-Evolução” e
crito por um cientista nascido na Hungria, de nome como a ig ignorância anda de mãos dadas com a vio-
Oscar Kiss Maerth. Nesta obra constava a tese de lêênc
n ia, a Rolling Stonee rotulou-os de fascistas. Contu-
que a humanidade havia evoluído a partir de prim im
ma- do, junto do público os DEVO O iriam causar alguma
tas canibais, o que colava na perfeição ao filme favo- sensação, devido em grande parte ao nascimento da
rito de Casale e Mothersbaugh: “Thee Is Islland of Lost MTV. Os DEVO O tinham acumulado muito trabalho
Souls” de 1932, adaptação do clá lássico
á de HG Wells, audiovisual, aquilo a que se chama comummente de
“The Island of Dr. Morrea e uu”” A ligação ao clássico de videoclip, formato desconhecido no dealbar da década
Wells está patentee no hino oficial da “De-Evolução” de 80. E como a MTV precisa de material para encher
- “Jocko Hom omo” - onde se ouve o cântico “Are we
om a programação, os DEVO O dominaram a playlistt diária
not meen n?? We are DEVO!”, adaptado do lema das do canal, expondo a juventude norte-americana ao seu
ccrriiaaturas mutantes do Dr. Moreau. universo subversivo patente nos vídeos de “Satisfac-
David Bowie, fervoroso adepto dos DEVO, tion”, “Jocko Homo” ou “Whip It”, tornando-os, por
convenceu Brian Eno a produzir o primeiro álbum da brevíssimos momentos, a banda mais cooll dos EUA.
banda gravado na Alemanha, no estúdio de Connie Mas, por esta altura, o grupo tinha deixado o

DEVO

N ! //// 55
BBAANG 55
fervor idealista, substituído por uma ironia ácida e amarga,
própria de quem não se consegue fazer entender. Sensação
ilustrada na melodia em tons rosa de “It’s a Beautiful World”
a que se contrapunha o sarcasmo dos versos de Casale: “It’s a
beautiful world we live in / A sweet romantic place / Beautiful people
everywhere / The way they show they care / Makes me want to say /
It’s a beautiful world / For you/ Not me”. Os DEVO tinham dei- afirma haavav mais criatividade ond
aver nde existirem menos oportu-
xado de ser relevantes e apagaram-se naturalmente após uns nidades. Ao Bluess roubaram o mistério da sua simplicidade; ao
quantos álbuns. Destinados a habitarem a história do rock neo-plasticiisms o flamengo a apresentação estética; a Nikolai
enquanto bizarria passageira, iriam voltar a reunir-se para uns Tesla a magiia da electricidaade; e a Orson Welles, a ideia de lo-
concertos de apoio à candidatura de Barak Obama (DEVO- gro enquanto elemento fu fundamental de uma narrativa huma-
bama) – para Casale, Sarah Palin era a prova irrefutável da na. Tudo isto en ncaixado o no número 3 – voz, guitarra e bateria
De-Evolução. Depressa começaram a surgir, dos mais varia- ou branco, verm melho e preto (as primeiras manifestações cro-
dos espectros musicais, interessados em produzir o regresso máticas que o olh ho apreende). Deste modo, através da fusão
dos DEVO, de Snoop Doggy Dog a Trent Reznor. Casale
do de elementos préé-e -existentes, os Stripes relembraram que não
costtum
u ava dizer que os DEVO eram o cruzamento entre os é o aparato tecn nol
ológgico mas sempre o elemento humano que
“Flinstotones” e os “Jetsons”, querendo com isto dizer que a
to domina o pro ocesso criativo.
cr
cr
evolução o ttecnológica tem de ser acompanhada de uma evo- Assim, em conclu lusão, temos dois tipos de pós-moder-
lu
lução psicol ollóg
ógica, e atendendo ao estado actual do mundo, a nismos dom om
o minantes: o que dá primazia ao autor (LCD ( Soun-
De-Evoluçãoo é cad a a vez menos uma ideia absurda. dsystem)
m e o que dá primaazia à obra (White Stripes). s Resta saber
por quue caminhos se dessd sdobrará o Pós-Modernismo, se ele
tamb bém
ém sofrerá uma ruptu tuura inevitável; se será, enfim, subs-
one, two, three... tituuíd
ído por outro moviment nto sócio-cultural. Até lá, termino
nt
cco
om a citação do último diiál á ogo ouvido no clássico “The
pós-modernismo car aracteriza-se pela troca de bens

O
Thing from Another World”” de Christian Nyby (e Howard
imateriais, como a infor orr mação e os serviços (nascidos Hawks): “Everyone of you listeninng to my voice, tell the world, tell this
das tecnologias eletrónicaa e nuclear) e pela imposição o to everybody wherever they are. Watchh th
t e skies. Everywhere. Keep look-
obsessiva de uma mentalida da revisionista. Ou seeja
da
dade ja, ing. Keep watching the skies.”
o artista criativo foi substituííddoo pelo artista técn
nico,
capaz de manipular manifestações do paassado crianddo algo Frame do videoclip “Seven Nation Army” (2003)
de novo sem elementos originais ou inova vadores. Por isso,
va de The White Stripes
a Pós-Modernidade é
traçada como a época
da perda de sentido
da narrativa humana,
onde o hedonismo
é quase um valor to-
talitário, pois no seu
epicentro encontra-se
o primado da liberda-
de absoluta e do fim
dos grandes conflitos
ideológicos do século
XX. Os seus sinto-
mas traduzem-se na
substituição da ética
pela estética, do nar-
cisismo, na apatia, no o
simulacro, daí que se
utilize continuameente
a cópia de eleme mee
mentos
pré-existentes. Em
suma, o pó ós-moder-
nismo evideencia a morte das grandes ideiass e o fim do mis-
tério da cri r ação artística.
ri
Esta
taa definição bastante negra do d pós-modernismo as-
senta, a meu ver, que nem um ma luva em grupos como os
LCD D Soundsystem. Mas, gostaari r a de contrapôr à inanidade de
Jam
mes Murphy & Compa paanh
p nhia, o primeiro projecto de outro
super-ego do rock co
su contemporâneo, Jack White. Os White João Monteiro nascido a 17/05/1977.
Stripes contrariar arram a ideia de liberdade total como motor Licenciado em História da Arte. Sócio-fundador
da emancipaç açção
ã humana e durante cerca de uma década de- do Cineclube de Terror de Lisboa (CTLX) e
senvolvera rraam um corpo de trabalho assente num conceito que produtor/programador do MOTELx.

56 /// BANG!
m Março de 2012, a BioWare e a Electronic Arts viram-se a braços com uma contram muitos clientes mimados, difí-

E polémica especialmente incendiária (mesmo para os padrões actuais da Inter-


net) a propósito do lançamento de Mass Effect 3, o terceiro título da aclamada
série de role-play games (RPG). Que o lançamento de um jogo possa ser polémico não
ceis de contentar e prontos a extravasar
o seu descontentamento à mais pequena
falha. Em resumo, o célebre conceito de
é novidade: também em 2012, a Blizzard Entertainment enfrentou a fúria dos fãs no gamer entitlement, defendido por alguns
lançamento do muito aguardado Diablo 3, e há apenas algumas semanas estourou nos meios da imprensa especializada com
colo dos responsáveis dos estúdios da Maxis uma crise similar no lançamento do não
menos aguardado SimCity. Para um observador menos atento, ou menos ligado a este
meio, estes três casos poderiam indicar apenas que entre os fãs de videojogos se en-

CAMPOS
POR JOÃO

NGG! //
BANG!
BA //// 57
57
verso dos videojogos o preconceito da
infantilidade e da imaturidade do meio,
pelo que acompanhar no seu seio um es-
cândalo de natureza narrativa não deixa
de ser curioso. Mas a verdade é que há
muito que os videojogos passaram de um
meio de puro entretenimento para um
novo formato narrativo, capaz de desen-
volver e de contar as suas próprias his-
tórias – e indo buscar muitas influências
narrativas à ficção especulativa e aos seus
vários géneros, da fantasia ao horror e à
ficção científica. O próprio Mass Effect,
aliás, é disso um exemplo perfeito: uma
vasta space opera cujo enredo se estende
por uma galáxia povoada por civilizações
alienígenas distintas e complexas; um Star
problemas inerentes à estrutura do jogo, Wars (passe a comparação) sofisticado da
ou mesmo devido às práticas comerciais era da interactividade, no qual o jogador
dos estúdios (e havia muito por que re- pode personalizar o seu – a sua – pro-
clamar nestes campos); protestaram, tagonista para participar de forma activa
sim, por considerarem que o desenlace e individualizada na história de uma Via
do enredo construído desde o original Láctea ameaçada pelo regresso de má-
Mass Effect em 2007 quebrava a lógica quinas sencientes e letais, que a cada 50
interna daquele universo ficcional em mil anos exterminam de forma eficiente
vários pontos, dando saltos narrativos e despreocupada toda a vida inteligente
duvidosos e recorrendo a um artifício de da galáxia. No decurso desta aventura,
deus ex machina (curiosamente literal) para o jogador relaciona-se com outras raças
dar à narrativa uma resolução não só an- alienígenas (de forma mais ou menos ín-
ticlimática como pouco coerente. Uma tima), explora as histórias dos seus com-
preocupação artística, portanto – como panheiros e das várias civilizações que
dores de crescimento de um meio cada coabitam com a Humanidade na galáxia,
vez mais narrativo. Aqui, nada de novo: e envolve-se numa missão para salvar o
os meios tradicionais de contar histórias, universo. Como se pode ver, longe vão já
como a literatura, o cinema, ou a televi- os tempos de Space Invaders (Taito Corpo-
são, também as sofreram. Recordemos, a ration, 1978) ou de Asteroids (Atari, 1979),
título de exemplo, a morte de Sherlock quando os jogos se limitavam a recorrer
mais condescendência do que verosimi- Holmes e o hate mail recebido por Arthur a elementos tradicionais da ficção cien-
lhança, e que por si só daria (e deu) azo Conan Doyle, ou a fúria dos telespecta- tífica para recriar os seus ambientes in-
a polémicas dentro de polémicas. O meu dores para com a morte de Bobby Ewing teractivos, sem preocupações narrativas
ponto aqui é outro: trolls à parte, há uma em Dallas. Ou os milhares de filmes trun- relevantes.
diferença fundamental entre as polémi- cados e alterados no seguimento de ses-
cas de Diablo 3 e SimCity 5 e a de Mass sões de pré-visionamento com plateias
Effect 3. Nos dois primeiros casos, e em seleccionadas.
termos gerais, o desagrado audível dos
Literatura e videojogos:
fãs deveu-se a problemas na estrutura do É certo que Mass Effect é, na sua essência,
próprio jogo (a itemização e os leilões no uma série de RPG, género que desde os das “novelizações” à adaptação
primeiro caso, a falta de funcionalidades seus primórdios privilegiou as questões invertida de The Witcher
essenciais no segundo) e à imposição – narrativas e o enredo – basta olhar para Algumas das mais relevantes franchises do
problemática, como se viu – da experiên- alguns dos títulos que fizeram a sua histó- universo dos videojogos viram os seus
cia online mesmo quando o objectivo é ria, como Ultima (Richard Garriot, 1980), universos e as suas personagens viver
jogar em modo de single-player; no caso de The Legend of Zelda (Nintendo, 1986), novas e velhas aventuras na literatura.
Mass Effect 3, a polémica centrou-se numa Fallout (Interplay Entertainment, 1997), Starcraft (Blizzard Entertainment, 1998) e
questão narrativa. Baldur’s Gate (BioWare, 1998) ou Planesca- Warcraft: Orcs and Humans (Blizzard En-
pe: Torment (Black Isle Studios, 1999), que tertainment, 1994) são disso exemplo,
É neste ponto que reside a singularidade sempre enquadraram as suas aventuras com autores como Jeff Grubb e Richard
da crise enfrentada pela BioWare e pela num corpo narrativo elaborado e refina- A. Knaak a escrever e publicar livros de
Electronic Arts há pouco mais de um do ao longo dos anos. Isto talvez ajude a relativo sucesso no meio, mas estão longe
ano: dezenas de milhares de jogadores, enquadrar um pouco a natureza do deba- de ser casos isolados: jogos como Halo:
fãs de longa data da série, manifestaram te, mas não servirá decerto para explicar Combat Evolved (Bungie, 2001), God of
de forma ruidosa em fóruns públicos o as proporções descontroladas que gerou. War (Sony, 2005) ou Mass Effect conhece-
seu desagrado pela conclusão da histó- Afinal, pesa ainda – com alguma injus- ram várias “novelizações”, em romance
ria daquela trilogia. Não por quaisquer tiça, importa acrescentar – sobre o uni- e em banda desenhada, que exploraram

588 //
///
// BAN
ANGG!!
o passado dos protagonistas, algumas seu universo literário, a verdade é que os High Fantasy e Space Opera
histórias laterais e mesmo as mitologias estúdios polacos fizeram um trabalho
dos universos ficcionais, dando um en-
na estratégia em tempo real
excepcional na transposição dos vários Nos primórdios dos jogos de estraté-
quadramento mais rico às aventuras inte- elementos que constituem o universo fic- gia em tempo real encontramos Dune II
ractivas das suas personagens. Claro que cional do celebrado autor polaco para um (Westwood Studios, 1992), que como o
o contrário também acontece – universos formato interactivo. Um dos vários sleeper título indica foi um videojogo inspirado
literários de grande sucesso como Harry hitss de 2007, The Witcherr tornou-se num na popular série literária de Frank Her-
Potter,
r The Lord of the Ringss ou His Dark dos mais populares RPG contemporâ- bert e na adaptação cinematográfica de
Materialss também foram abordados em neos devido ao carisma do protagonista, David Lynch. Dune III foi aclamado pela
formato de videojogo, se bem que seja Geralt of Rivia, e ao seu universo de dark crítica e estabeleceu as fundações de um
discutível se tal se deveu ao suces- fantasyy que combina tropess convencionais género de videojogos que ganharia po-
so comercial dos livros originais da fantasia literária com o folclore do les- pularidade nos anos que se seguiriam,
ou das respectivas adaptações ci- te europeu e com momentos de delicioso com títulos como Command & Conquer
nematográficas. humor negro. O enredo é desenvolvido (Westwood Studios, 1995), com uma
através de um sistema tradicional de quests breve narrativa de ficção científica pós-
Talvez por isso o caso de The com várias bifurcações, onde cada joga- apocalíptica numa Europa alternativa, e
Witcherr seja bastante invulgar dor pode escolher o seu percurso com Warcraft: Orcs & Humans,s com uma his-
na indústria. Ainda que An- base nas escolhas que lhe parecerem mais tória de high fantasyy reminescente da Terra
drzej Sapkowski considere as acertadas – um pouco como acontece em Média de Tolkien, com os Orcs do mun-
narrativas desenvolvidas pela Mass Effect.t A diferença reside na morali- do de Draenor e os Humanos do mundo
CD Projekt Red como “não- dade subjacente a cada escolha, e se Mass de Azeroth a opor-se no campo de bata-
canónicas” relativamente ao Effectt mostra de forma clara a vertente lha. À época, a rivalidade entre os estú-
Paragonn e Renegadee das várias dios da Westwood e da Blizzard deu um
opções, em The Witcherr essa
o grande impulso ao desenvolvimento do
polarização nunca é evidente,
p género, tendo a última apostado também
ccom as consequências das vá- na componente narrativa dos seus jogos
rrias escolhas a ganharem por para lhes conferir uma maior profundi-
iisso uma maior imprevisibili- dade e longevidade. As sequelas de War-
ddade. A história iniciada em craft,t Warcraft II: Tides of Darknesss (1996)
The Witcherr teve continuidade
T e Warcraft III: Reign of Chaos (2002), e res-
eem 2011 com The Witcher 2: pectivas expansões, Warcraft II: Beyond the
Assassins of Kings,s aclamado
A Dark Portall e Warcraft III: The Frozen Thro-
ccomo um dos jogos daque- ne (2003), aprofundam o conflito original
lle ano; e The Witcher 3: Wild entre Orcs e Humanos, envolvendo mais
Huntt já se encontra em de-
H raças (como elfos e trolls), s heróis como
ssenvolvimento. Este tercei- Turalyion, Kadghar, Thrall e Thyrande
rro jogo centrado na história Whisperwind, territórios mais vastos e
dde Geralt of Rivia promete um maior enquadramento histórico e mi-
ccontinuar a transposição do tológico não só para as várias raças, mas
uuniverso de Sapkowski, mas também para todo o mundo de Azeroth.
ddesta vez para um formato Esta complexidade narrativa acabou por
oopen worldd de características ser explorada em vários livros de ficção
iidênticas àquele que há dois ligados à narrativa do jogo, e viria a servir
aanos fez a delícia de jogado- de alicerce em 2004 para World of War-
rres em todo o mundo em The craft,t o massively multiplayer online (MMO)
Elder Scrolls V: Skyrim.
E RPG que viria a dominar o seu mercado
até ao presente.

BANG! /// 59
Mas foi com Starcraftft e a sua expansão excepção de alguns RPG e de algumas de Duke Nukem 3D, porém, reside no
Broodwarr (ambos de 1998) que a Blizzard aventuras gráficas (que, por a sua natu- seu tom de paródia vincado e assumido
refinou os seus elementos narrativos ao reza muito particular, sempre apostaram desde os primeiros minutos de jogo, ata-
colocar o popular sistema de jogo de mais nas narrativas e na resolução de pu- cando tanto o universo dos videojogos
Warcraft III num fascinante e bem estru- zzles),
s os enredos apresentados por boa ao qual pertencia (“That’s one doomed Spa-
turado ambiente de space operaa capaz de parte dos videojogos eram simples, mais ce Marine”,
” comenta Duke a dada altura,
reconhecer e homenagear as suas muitas ou menos lineares, e quase sempre sub- numa alusão a Doom) m como ao cinema.
influências (os filmes Aliens,s de James jugados à lógica das várias mecânicas in- Passe a associação óbvia de Duke com
Cameron, e Starship Troopers, de Paul teractivas dos jogos – algo especialmente Ash Williams de The Evil Deadd (“Groo-
Verhoeven serão as mais ais evi-
evi visível no género dos
visíve vy!”):
” quem não se lembra de, no final do
dentes) enquanto first-peerson shooterss (FPS). nono nível do segundo episódio do jogo,
recriava uma narra- Quan ndo Duke começa encontrar na Lua o monólito de 2001: A
tiva original. Numa a co ombater alieníge- Space Odyssey?
região da galáxia co- nas na Los Angeles
lonizada muitos anos invaadida do clássico Claro que no género muito particular dos
antes, a Humanidade Duk ke Nukem 3D D (3D FPS a questão narrativa ficou arrumada
vê-se obrigada a en- Reaalms, 1996), o jo- em 1998 com o lançamento de Half-Life
frentar duas poderosas gaddor sabe que por (Valve): o jogador entra num universo
raças alienígenas, os in- dettrás de cada nível de ficção científica com um enredo mais
sectóides Zerg e os psí- e de cada um dos complexo, com algumas inspirações em
quicos Protoss, num en- trêês episódios do jogos anteriores (como Doom m e Quake)e
redo movido por intrigaa jo
ogo há um enredo mas com um desenvolvimento narrati-
e rebeliões e sustentado o siimples e linear que vo mais denso e aprofundado através de
por Sarah Kerrigan, um ma sserve um único um argumento sólido e de eventos pré-
das mais memoráveis vi- vi propósito: forne-
p configurados e de vídeos. A sua sequela,
lãs da história dos video o- cer ao prrotagonista (avatar Half-Life 2 (2004), e os dois episódios que
jogos. As mais recentes versões de do jogador) o enquadramento necessá- se seguiram, aprofundaram ainda mais o
Starcraft,t Wings of Libertyy (2010) e Heart of rio para a crescente complexidade dos mundo pós-apocalíptico que o protago-
the Swarm (2013) não fazem justiça ao bri- desafios apresentados. O mesmo se ve- nista Gordon Freeman explora no se-
lhantismo narrativo de Broodwar, r a todos rifica em títulos como Doom m (id Softwa- guimento do desastre de Black Mesa. Na
os níveis um marco do formato. re, 1993) ou Quakee (id Software, 1996), mesma linha surge Halo: Combat Evolved, d
ambos com narrativas que servem ape- utilizando um mundo anelar inspirado
nas de enquadramento à premissa funda- naquele que Larry Niven celebrizou em
mental dos jogos (eliminar alienígenas e Ringworldd (1970) para desenvolver a opo-
monstros – não tão diferente de Space In- sição entre Master Chief e as forças do
Os first person shooters e as vaders,s afinal) e aos vários elementos que Covenant. E, em 2007 – ano gordo para
narrativas de ficção científica: a integram (dispositivos de teletranspor- os apreciadores de videojogos com boas
do suporte ao progatonismo tação, por exemplo). Mas mesmo num histórias –, a Irrational Games lançou
Se desde cedo as narrativas fantásticas shooterr tão tradicional como Duke Nukem Bioshock
k para aclamação geral.
conquistaram um lugar de destaque na 3DD existem alguns detalhes narrativos
indústria dos videojogos, durante mui- que o colocam num patamar narrativo
to tempo viram-se limitadas a um papel distinto de outros títulos seus contem-
de suporte para toda a estrutura inte- porâneos. A começar pelo protagonista, Da História Alternativa à
ractiva, servindo como enquadramento Duke: o típico herói de acção dos anos
para a progressão do jogador e pouco 80, politicamente incorrecto e irrepro- Filosofia: o caso de Bioshock
duzível num videojogo contemporâneo Bioshock, o sucessor espiritual de System
mais. Um meio para um fim – comple-
(como se viu no fiasco de Duke Nukem Shock produzido pela Irrational Games,
tar o jogo, e não um fim em si. Com a
Forever,r em 2011). O verdadeiro charme conseguiu com o seu lançamento em

60 /// BANG!
«Bioshock, o sucessor espiritual de System Shock
produzido pela Irrational Games, conseguiu com
o seu lançamento em 2007 revitalizar não só
o formato mas também as ambições narrativas
dos videojogos.»

2007 revitalizar não só o formato mas Portal: O triunfo do minimalismo adaptado para videojogo nos anos 90), ou
também as ambições narrativas dos vi- narrativo e a importância do SHODAN dos videojogos System Shock.
deojogos. Tal proeza deveu-se não só a Mas GlaDOS ascende à altura daquelas
uma jogabilidade renovada, mas também voice acting personagens não só devido ao complexo
– sobretudo, diria – à sua componente No extremo narrativo oposto a títulos jogo de gato e rato que joga com Chell,
narrativa, firmemente ancorada em três como Half-Lifee e Bioshock, com a sua ac- mas também por toda a história suben-
pilares: uma atmosfera retrofuturista úni- ção rápida e os seus enredos vastos, com- tendida e aludida à medida que o jogador
ca, um enredo complexo com perspecti- plexos e repletos de consequências, en- avança pelas várias salas de teste. Estas
vas morais desafiantes, e um enquadra- contramos Portal,l o sleeper hitt da Valve que escondem vários easter eggss e pequenos
mento filosófico que deu à narrativa uma passou de um quase-protótipo incluído fragmentos narrativos de histórias laterais
maior densidade. na célebre Orange Box x (entre dois títulos (como a de Rat Man), e todo o complexo
consagrados como Half-Life2: Episode 2 da Aperture Science explorado em Portal
A acção de Bioshockk tem lugar na cidade de e Team Fortress 22) para uma das franchises e Portal 2 permite ao jogador descortinar
Rapture, um paraíso filosófico e capitalista mais aclamadas dos últimos anos tanto ((pun intendedd) uma fascinante história de
construído no leito do oceano pelo visio- pela crítica, como pelo público. E isso ficção científica autónoma no universo
nário magnata Andrew Ryan, como refú- deveu-se não só à formidável mecânica de Half-Life.
gio para todos os empreendedores como de jogabilidade que sustenta o jogo – na
ele que quisessem escapar ao jugo estatal prática, um FPS sem violência –, mas Claro que a principal característica iden-
e estatizante das nações da superfície - os também à narrativa minimalista de ficção tificativa de GlaDOS é a sua voz, resul-
“prime movers”, se quisermos recorrer científica que enquadra toda a sucessão tado de um excepcional voice actingg de
aos termos de Ayn Rand. De facto, uma de puzzles.s Onde jogos mais ambiciosos Ellen McLain, a cantora de ópera norte-
das principais inspirações para Bioshock k– como Mass Effectt recriam todo um uni- americana que deu a GlaDOS a sua in-
reconhecida pelo próprio criador do jogo, verso inspirado nas space operass tradicio- confundível voz, tão sarcástica como
Ken Levine – foi Atlas Shrugged, d o magnum nais, Portall pede emprestado o mundo es- calculista. O voice acting,
g aliás, tem sido um
opuss de Rand e definição literária de toda a tabelecido em Half-Lifee para se posicionar elemento cada vez mais utilizado – e mais
filosofia objectivista que definiu nas suas nas suas franjas; onde Bioshock k apresenta bemm utilizado – pelos criadores de video-
obras. A cidade de Rapture é, para todos toda a cidade de Rapture (ou de Colum- jogos ao longo dos anos, substituindo as
os efeitos, uma recriação subaquática em bia, se considerarmos o novo jogo) inteira tradicionais caixas de texto para criar um
Art Déco do “Galt’s Gulch”, e muitas são para explorar, Portall limita-se às salas de ambiente e uma narrativa mais verosímeis
as semelhanças superficiais entre Andrew teste do complexo subterrâneo da fictícia e envolventes. Neste campo, muitos são
Ryan e o herói randiano John Galt. Mais Aperture Science. E ao invés dos vastos os videojogos que apresentam já elencos
do que um shooterr de acção orientado por elencos de outros títulos, o jogo Portall ori- vocais assinaláveis, como Mass Effectt (que
uma narrativa sombria, Bioshock k constitui ginal apresenta apenas duas personagens: contratou actores consagrados como
também uma reflexão crítica ao objecti- a protagonista, Chell, que nunca diz uma Martin Sheen, Lance Henriksen e Kei-
vismo randiano, que explora – sem tomar palavra, e a inteligência artificial GlaDOS.
um partido claro – tanto as forças como
as vulnerabilidades daquela corrente fi- Para todos os efeitos, a narrativa de Por-
losófica. Pela maturidade do seu enredo, tall é toda ela sustentada por GlaDOS, a
pelas escolhas que impõe ao jogador e inteligência artificial que eliminou todos
por toda a “bagagem” filosófica que in- os ocupantes dos laboratórios da Apertu-
cluiu no fascinante universo alternativo re Science com uma neurotoxina mortal.
que criou, Bioshockk é, com toda a justiça, De certa forma, GlaDOS surge na conti-
um dos exponentes máximos da vertente nuidade de outras inteligências artificiais
narrativa nos videojogos. famosas na ficção científica como HAL-
9000 de 2001: A Space Odyssey, de Stanley
Kubrick e Arthur C. Clarke, a cruel AM
que Harlan Ellison apresentou em I Have
No Mouth, And I Must Scream m (também

NG! ///// 61
BBAANG 61
Entretanto, e já em 2013, a Irrational para desenvolver as suas premissas, os
Games lançou Bioshock: Infinite – uma vez seus ambientes e as suas personagens.
mais, para aclamação generalizada –, que Para além dos títulos referidos ao longo
mais do que uma sequela é um sucessor do texto, muito fica por dizer de outros
espiritual do original Bioshock , deixando jogos de sucesso - como Final Fantasy
as profundezas do oceano para ascender (Square, 1987), The Elder Scrolls (Bethesda
aos céus na cidade voadora de Columbia, Game Studios), 1994), Resident Evil (Cap-
e explorar uma narrativa ambiciosa num com, 1996), Fallout (1997), Deus Ex (Ion
cenário de história alternativa (e um tanto Storm, 2000), Star Wars: Knights of the Old
ou quanto steampunk) dos Estados Uni- Republic (BioWare, 2003), Dragon Age:
dos. A Trion Worlds e o SyFy Channel Origins (BioWare, 2009), e muitos outros
aliaram-se para uma oferta conjunta: De- – que ao longo dos anos mostraram aos
fiance, um massively-multiplayer online shooter seus fãs universos ficcionais complexos
na terceira pessoa cuja narrativa está liga- e diversificados, explorando premissas
da à série televisiva pós-apocalíptica es- tradicionais da fantasia e da ficção cien-
treada em Abril. E muitos outros títulos tífica através da sua lógica interactiva.
em desenvolvimento parecem continuar Jogos com uma forte componente nar-
a apostar em narrativas complexas em rativa, que não pela sua jogabilidade mas
ambientes de fantasia e ficção científica. também pelos seus enredos sofisticados
Destiny, o próximo título dos estúdios da e pelas suas personagens inesquecíveis
th David) ou Bioshock. Portal também o Bungie, foi anunciado com a promessa conquistaram o público – e que decerto
fez, sobretudo com a contratação de J.K. de ser um FPS num ambiente de ficção continuarão a conquistar nos anos vin-
Simmons e Stephen Merchant para a se- científica, e o cyberpunk parece estar de douros, dando à ficção de género mais
quela de 2011; mas Ellen McLain conti- regresso com Remember Me, da Capcom, um palco privilegiado para contar as suas
nuou a ser a estrela do jogo, com a voz de previsto ainda para este ano, e Cyberpunk histórias.
GlaDOS a tornar-se numa referência de 2077, adaptação do
cultura popular. Não foi por acaso que, RPG pen & paper
quando foi exibido o primeiro trailer do Cyberpunk 2020 para
próximo filme de Guillermo del Toro, um RPG em for-
Pacific Rim, aquilo de que se falou mais na mato open world pe-
Internet não foi do filme em si, mas da los estúdios polacos
voz de GlaDOS presente num dos me- da CD Projekt Red
chas. Nada mal para um simples jogo de – que, convém não
puzzles com traços de first-person shooter. esquecer, também
se encontra a desenvolver The Witcher 3:
Wild Hunt.

A narrativa como É certo que boa parte dos videojogos


mais populares não precisam de recorrer
futuro do meio?
a narrativas complexas para conquistar
No ano passado, a Telltale Games recu-
o seu público – simuladores desporti-
perou um género praticamente esqueci-
vos (e outros), alguns shooters e jogos de
do – as aventuras gráficas point and click
arena multiplayer são jogados todos os
– com The Walking Dead, um jogo nar-
dias por milhões de pessoas em todo o
rativo inserido no popular universo pós-
mundo. Mas muitos daqueles que op-
apocalíptico de Robert Kirkman. E fê-lo
tam por contar uma história, recorrem
com mestria, apresentando um enredo
aos vários géneros da ficção especulativa João Campos é natural do concelho de Odemira, no
intricado e enquadrado na continuidade
Alentejo – terra fantástica mas com pouco fantástico,
da banda desenhada que obriga o joga-
pelo que vive em Lisboa há quase uma década.
dor a tomar decisões difíceis, de morali-
Licenciou-se em Jornalismo, escreveu sobre Tecnologias
dade ambígua e com um impacto emo-
de Informação e mantém actualmente o blogue
cional genuíno. Na indústria, a surpresa
“Viagem a Andrómeda”, dedicado à fantasia e à ficção
inicial tanto da crítica como do público
científica na literatura, na banda desenhada, no cinema,
cedo deu lugar à aclamação generalizada,
na televisão e nos videojogos.
e The Walking Dead foi considerado em
http://viagem-andromeda.blogspot.pt/
diversos quadrantes como o melhor vi-
.
deojogo de 2012, superando títulos AAA
muito aguardados como Mass Effect 3 ou
Diablo 3. Uma vez mais, o ponto forte do
jogo não foi a sua jogabilidade, mas sim
o seu conteúdo narrativo. Uma segunda
temporada de The Walking Dead está já
confirmada.

6 //
62 //// BBAN
ANG!
ANG!
NG! //
BANG
BA /// 633
64 /// BANG!
O
barco a vapor trouxe-nos de car-se dela. Apoiava-se no noivo quando que não pudéssemos ver os seus dese-
Constantinopla até à cos- caminhava e ficava sentada com bastan- nhos – disse eu.
ta da ilha de Prinkipo, onde te frequência para descansar, enquanto – E nem precisamos de os ver – disse
desembarcámos. Não eram uma pequena tosse seca e persistente o jovem polaco. – Temos à nossa frente
muitos os passageiros. Havia interrompia os seus murmúrios. Sempre paisagem suficiente para admirar. – Um
uma família polaca, pai, mãe, que tossia, o seu acompanhante parava pouco depois, acrescentou: – Parece-me
filha e o noivo desta, e nós os atenciosamente a caminhada. Olhava que nos está a retratar como uma espé-
dois. Oh, sim, e não posso es- sempre para ela com um ar de comise- cie de pano de fundo. Bem, é deixá-lo!
quecer-me de que quando já estávamos ração sofredora, mas ela devolvia-lhe o Tínhamos realmente paisagem sufi-
na ponte de madeira que liga o Corno olhar e dizia: ciente para onde olhar. Não existe canto
Dourado a Constantinopla, se juntou a – Não é nada. Estou feliz! do mundo mais bonito ou mais feliz do
nós um grego, um rapaz bastante jovem. Ambos acreditavam na saúde e na que Prinkipo! A mártir política, Irene,
Era provavelmente um artista, a avaliar felicidade. contemporânea de Carlos Magno, viveu
pela pasta que trazia debaixo do braço. Por recomendação do grego, que ali durante um mês, quando estava no
Os cabelos longos, pretos e ondulados, se separou de nós assim que chegámos exílio. Se pudesse ali viver durante um

flutuavam-lhe até aos ombros, o rosto ao cais, a família instalou-se no hotel da mês, viveria feliz com as memórias da-
era pálido e os olhos negros estavam colina. O encarregado do hotel era um quele lugar para o resto dos meus dias!
profundamente enterrados nas órbitas. francês e todo o edifício estava confor- Jamais esquecerei aquele único dia que
O rapaz despertou o meu interesse des- tável e artisticamente equipado, seguin- passei em Prinkipo.
de o início, principalmente pela sua de- do o estilo francês. O ar era tão límpido como um dia-
licadeza e conhecimentos das condições Tomámos o pequeno-almoço juntos mante, tão suave e meigo que a nossa
locais. Só que falava demasiado e acabei e quando o calor do meio-dia esmore- alma pairava nele, elevando-se na dis-
por me afastar dele. ceu um pouco, decidimos subir para as tância. À direita, para lá do mar, eleva-
A família polaca era bastante mais colinas, onde no bosque de pinheiros vam-se os acastanhados picos asiáticos;
agradável. O pai e mãe eram pessoas siberianos nos deliciámos com a vista. à esquerda, ao longe, estendiam-se as
bondosas e simpáticas, o noivo um ra- Mal tínhamos acabado de encontrar um violáceas costas íngremes da Europa. A
paz jovem e bonito, de modos directos lugar adequado para nos instalarmos vizinha Chalki, uma das nove ilhas do
e refinados. Dirigiam-se a Prinkipo para quando o grego reapareceu. Cumpri- Arquipélago do Príncipe, erguia-se com
passar os meses de Verão por causa da mentou-nos levemente, olhou em re- as suas florestas de ciprestes até à pací-
filha, que se encontrava um pouco com- dor e sentou-se a poucos passos de nós. fica altura como um sonho lamentoso,
balida. A bonita e pálida rapariga estava Abriu a pasta e começou a desenhar. coroada por uma grandiosa estrutura –
ou a recuperar de uma doença grave ou – Acho que ele se sentou proposita- um asilo para aqueles cujas mentes esta-
então uma doença séria estava a acer- damente de costas para as rochas para vam doentes.

BANG! /// 65
– Aqui, o corpo e a mente têm de ga e impropérios. O nosso grego estava
melhorar – murmurou a rapariga. – Que a discutir com o encarregado do hotel e
terra feliz é esta!
ter nós ficámos à escuta, por pura diversão.
– Deus sabe que não tenho inimigos, A diversão não durou muito tempo.
mas see o os tivesse, seria capaz de os per- – Se eu não tivesse mais hóspedes –
doar aqui!i! – Exclamou o pai com a voz rosnou o encarregado do hotel, subindo
trémula. os degraus na nossa direcção.
E ficcámos mais uma vez em silêncio. – Diga-me por favor, senhor – pediu
Está
stávamos todos com uma disposição o jovem polaco quando o encarregado
maravilhosa – todo o cenário era indes-
m se aproximou, – mas quem é aquele ca-
critivelmente doce! Cada um de nós sen- valheiro? Como se chama ele?
tia um mundo de felicidade dentro de si – Oh – quem sabe como se chama
e todos partilharíamos a felicidade com o sujeito? – Resmungou o encarregado
o resto do mundo. Todos sentíamos o do hotel, olhando venenosamente para
mesmo – e por isso ninguém perturbou baixo. – Nós chamamos-lhe o Vampiro.
ninguém. Mal tínhamos reparado no – É um artista?
grego que, passado cerca de uma hora, – Mas de que rico mister! Ele só
se levantara, fechara a pasta e com um desenha cadáveres. Assim que alguém
morre em Constantinopla ou aqui na
O Marr ded Marmára agitava-se sua- vizinhança, ele tem, no próprio dia, um
vemente
mente e exibia todas as cores, como retrato completo do falecido. O sujeito
uma opala brilhante. Ao longe, o mar pinta-os com antecedência e nunca se
era branco como o leite, depois rosado, engana – é como um abutre!
entre ambas as ilhas brilhava em tons A velha mulher polaca gritou assus-
alaranjados e por baixo de nós era ma- tada. Nos seus braços, repousava a filha,
ravilhosamente azul-esverdeado, como branca como a cal. Tinha desmaiado.
uma safira transparente. Era resplan- Num só impulso, o noivo desceu os
decente na sua própria beleza. Não se degraus. Com uma mão agarrou o gre-
avistavam grandes navios – apenas duas go e com a outra a pasta dos desenhos.
pequenas embarcações com a bandeira Corremos atrás dele. Os dois ho-
da Inglaterra corriam velozes ao longo mens rebolavam pela areia. O conteúdo
da costa. Uma delas era um barco a va- da pasta espalhou-se por todo o lado.
por do tamanho de uma torre de vigia, Num dos desenhos, feito a carvão, es-
a outra tinha cerca de doze remadores e tava a jovem rapariga polaca, de olhos
quando os seus remos se erguiam em si- fechados e com uma coroa de murta na
multâneo da água, caíam deles pingos de cabeça.
prata derretida. Os golfinhos confiantes
nadavam em seu redor e mergulhavam
com longos e arqueados voos à super-
fície da água. O céu azul era ocasional-
mente cruzado pelas calmas águias que
planavam, medindo a distância entre os
dois continentes.
Toda a encosta que se estendia por
baixo de nós estava coberta de rosas
em flor cuja fragância inundava o ar.
Jan Nepomuk Neruda (1834 – 1891) nas-
A música viajava até nós através do ar
ceu em Praga e foi um jornalista, autor e
límpido, vinda do café perto do mar e
poeta checo, um dos representantes mais
ligeiramente abafada pela distância.
notáveis do Realismo Checo, assim como
O efeito era encantador. Ficámos ligeiro aceno de cabeça anunciara a sua membro da “Escola de Maio”.
todos sentados em silêncio, deixando partida. Nós ficámos.
que as nossas almas embebessem com- Finalmente, depois de várias horas,
pletamente aquela imagem do paraíso. quando a distância se começava a tingir
A jovem rapariga polaca estava deitada de um tom violeta-escuro, tão magica-
na relva, com a cabeça apoiada no colo mente bonito a sul, a mãe recordou-nos
do noivo. O seu rosto pálido, oval e de- que estava na altura de partir. Levantá-
licado, estava agora ligeiramente tingido mo-nos e caminhámos até ao hotel com
com uma cor suave e dos seus olhos os passos soltos e descontraídos que
azuis começaram a cair subitamente caracterizam as crianças despreocupa-
lágrimas. O noivo entendeu, curvou-se das. Sentámo-nos sob a bonita varanda
e beijou cada uma das lágrimas. A mãe coberta do hotel.
dela comoveu-se também e chorou e eu Mal tínhamos acabado de nos sentar
– até eu – senti uma estranha pontada. quando começámos a ouvir sons de bri-

66 /// BANG!
BANNGGG!! /////
BA // 6677
T
enho uma memória mui- na mesma altura em que descobri a loja geons & Dragons, e foi lançado pela pri-
to forte de caminhar da Devir em Arroios com os títulos em meira vez em 1974, pela TSR, empresa
pela Avenida Marquês inglês, que voltei em pleno ao universo recém-criada por Gygax e outros sócios.
de Tomar, em Lisboa, de Dragonlance. Devorava cada volu- A influência de muitos escritores na
debaixo de um sol infer- me com ansiedade, desta vez em inglês. criação do jogo é bem evidente. Não só
nal, aos 17 anos, à procura da livraria Já tinha lido O Senhor dos Anéis de J. J. R. R. Tolkien está bem presente, mas
Europa-América numa tentativa de en- R. R. Tolkien que me marcara imen- também Robert E. Howard, Jack Vance,
contrar um dos livrinhos de bolso da so, mas embora reconhecesse que a Fritz Leiber, Edgar Rice Burroughs, Mi-
saga Dragonlance que me faltava para linguagem e a escrita dos autores de chael Moorcock, H. P. Lovecraft, outros
a colecção. Cada livro da primeira tri- Dragonlance era tudo menos sofistica- autores, bem como mitologias celta e
logia tinha sido dividido em dois pela da, a história era tão cheia de emoção e greco-romana.
Europa-América, e já então era difícil aventura que muitas discussões acalo- Com a popularidade de Dungeons &
encontrá-los, mas estava determinada radas surgiam entre o nosso grupo de Dragons, A TSR rapidamente descolou
a coleccioná-los, mesmo com uma tra- amigos porque alguém cometia a ou- e tornou-se a empresa líder na indústria
dução de qualidade dúbia. Hoje olho sadia e a blasfémia de dizer que Dra- dos RPG (role-playing games). Chegamos
para as lombadas desses livros já tão gonlance era melhor do que Tolkien. à década de 80 e Tracy Hickman, na
gastos, quase a desfazerem-se nas mi- Claro que não era. Mas compreendia altura desempregado, cria os primeiros
nhas mãos, e sinto um enorme afecto facilmente o amor e a devoção por rascunhos do que viria a ser o univer-
e saudades das discussões com os com- Dragonlance. Os livros eram viciantes so Dragonlance, e propõe o conceito à
panheiros de leituras de então e como e irresistíveis. TSR que aceita. Outros parceiros de tra-

Miniaturas do jogo de D&D “Dragonlance: Heroes” que representam os Heróis da Lança

nunca deixávamos de nos deliciar com Dragonlance, balho foram envolvidos, incluindo Mar-
o humor e emoção do mundo de Dra- garet Weis, e o grupo inicia uma série
gonlance. as origens de jogos e campanhas, expandindo ain-
A primeira trilogia de Dragonlan- da mais o universo de Dragonlance. O
ce chegou a Portugal inicialmente por
via da Europa-América, que publicou
apenas os primeiros três livros e o pri-
meiro volume da trilogia dos gémeos.
Mais tarde, a Bertrand publicou num
P ara compreender o sucesso mun-
dial de Dragonlance e a sua in-
fluência inegável, é necessário
regressar às origens. Tudo começou
na década de 70 quando Gary Gygax
grupo propõe à TSR uma série de livros
a contar as histórias que iam criando, e
assim começa a desenvolver-se a franchi-
se que iria incluir, para além dos livros,
os jogos, manuais e miniaturas. Depois
formato maior a primeira trilogia e o li- e Dave Arneson criaram um jogo, com de uma série de falsos inícios, a dupla
vro Dragões de uma Chama de Verão, uma base num cenário de fantasia, em que Weis & Hickman é estabelecida para es-
sequela que decorre 25 anos depois cada jogador representa uma perso- crever o livro que se tornou conhecido
dos acontecimentos de Dragões de uma nagem com determinados atributos e como Dragões de um Crepúsculo de Outo-
Alvorada de Primavera. Nunca mais vi os poderes, liderados por um dungeon mas- no. E assim se fez história. O sucesso
livros nas feiras ou alfarrabistas, desa- ter ou game master, que cria o enredo e de Dragonlance na década de 90 foi
pareceram e caíram no esquecimento. testa constantemente os jogadores nas esmagador. O primeiro volume revela
Foi só quando entrei na faculdade e várias aventuras e campanhas, basean- ainda uma escrita frágil, mas os volumes
conheci uma data de amigos que par- do-se sempre num conjunto de regras subsequentes melhoraram grandemente
tilhavam a mesma paixão por fantasia, específicas. O nome do jogo era Dun- o potencial da história e revelaram per-

6688 //
/// BAN
ANG!
G!
sonagens que inspiraram milhares de jo-
vens ao longo de várias gerações.
O Universo
Tudo o
Um dos pontos fortes de Dragon-
lance trata-se do facto de constituir um
de Dragonlance
que devo a
universo partilhado. Embora os criado-
res originais sejam Weis & Hickman,
outros autores contribuíram com as
suas próprias histórias para o cenário de
Dragonlance. A geografia, cronologia
N o mundo de Krynn, no conti-
nente de Ansalon, convivem
(ou não) várias raças como el-
fos, anões, gnomos, humanos e kender,
mas também minotauros e draconia-
Dragonlance
por Luís Corte Real
de eventos, história do mundo e mitos
constituem hoje material que enche vá-
rias enciclopédias. Mas a faísca brotou
na saga principal que segue os prota-
nos. Três deuses formam um panteão
e são conhecidos pelos seus caprichos
e excentricidades, são eles Paladino, o
arauto do bem, Gilean, o deus neutro,
e Takhisis, a deusa das trevas. É deles
D evia ter 13 ou 14 anos quando
comecei a jogar Dungeons &
Dragons. Éramos um grupo de
amigos à volta de uma mesa, uma mão
cheia de dados, muitos papéis rabisca-
gonistas fundadores e que se tornaram
conhecidos como “os heróis da lança”. que advém a magia dos clérigos, mas dos e, claro, várias figurinhas de chum-
Qualquer leitor fiel de Dragonlance os magos de Krynn veneram os deuses bo para simular os combates. Não vos
sabe os seus nomes e feitos. lunares Solinari, Lunari e Nuitari, ob- consigo dizer como essas tardes, noi-
Para além de Dragonlance, também tendo deles o seu poder. tes, madrugadas (por vezes autênticas
o universo partilhado de Forgotten Re- Por alguma razão desconhecida e diretas), se tornaram tão especiais para
alms (criado por Ed Greenwood) onde obscura (que é mais tarde revelada), mim. Foi assim que fiz algumas das mi-
decorrem as aventuras do elfo negro deu-se o Cataclismo no mundo de nhas melhores amizades, que aprendi a
Drizzt do’Urden, explodiu em fama, Krynn. Os verdadeiros deuses que ler inglês (a vontade de jogar era tanta
muito graças aos livros de R. A. Salvato- eram até então venerados abando- que tínhamos mesmo de ler aqueles ca-
re, Ed Greenwood e outros. naram o mundo e os seus habitantes. lhamaços que um de nós comprava e
Em 1997, a TSR sucumbiu a dificul- Inteiras cidades foram destruídas ou os outros fotocopiavam), e que conhe-
dades financeiras e foi comprada pela engolidas pelos mares, o continente ci um género novo que desconhecia: a
Wizards of the Coast. A marca TSR, Inc foi quebrado e uma grande montanha fantasia.
foi descontinuada em 2000, mas o seu de fogo abateu-se sobre a cidade de Foi também por essa altura que co-
legado foi fulcral para o desenvolvimen- Ihtar. Levou muitos anos para as raças mecei a ler a saga Dragonlance numa
to da indústria de RPG. de Krynn recuperarem da catástrofe, edição de bolso da Europa-América.
Relativamente ao seu contributo para entregues à sua sorte e desaparecidos Sempre li muito e, naquela idade, devia
o género da fantasia, Dragonlance é fre- todos os sinais divinos. andar numa dieta rigorosa de vampiros
quentemente considerado o parente po- Após muitas aventuras e viagens ao de bolso e romances históricos. Mas
bre. Por não ser propriamente original longo de cinco anos, os companheiros ler Dragonlance foi como uma revelação.
ou criativo nos seus elementos, tendo de juventude Tanis, Sturm, Raistlin, Senti aquele lugar-comum, de que o li-
derivado de outras obras maiores, é vis- Caramon, Flint e Tas reencontram-se vro tinha sido escrito para mim. Amei
to como fantasia derivativa. E até cer- em Solace para partilharem as suas cada personagem, a arrogância do Rais-
to ponto isso é correcto. Mas em 2014 descobertas em Ansalon e o que des- tlin, a nobreza de Sturm, a simplicidade
celebram-se 30 anos decorridos desde cobriram sobre a ausência dos deuses. de Caramon, o humor do kender (ho-
a publicação do primeiro livro de Dra- Ao constatarem que a sua terra natal bbit?) Tasslehoff. Abracei tudo, em es-
gonlance. Várias gerações atravessaram está dominada por um misterioso gru- pecial o mundo, os Dragões e o facto
essas três décadas e todas renderam-se po religioso, começam a temer o pior. de serem tantos livros e aquela aventura
com igual paixão às histórias narradas. Os clérigos estão à procura de um bas- não mais terminar.
Hoje, a fantasia evoluiu para um novo tão de cristal azul e, nessa noite, uma Recordo-me que algum tempo depois
patamar e encontrou novas vozes mais bela mulher com esse bastão e o seu descobri, para minha surpresa, que afi-
fortes e originais. George R. R. Martin companheiro, Lua Dourada e Vento nal havia centenas de autores e mundos
ajudou a lançar uma nova tendência do Rio, chegam a Solace, desencade- de fantasia para além dos da linha Dun-
grimdark que ganha cada vez mais ex- ando assim uma série de eventos que geons & Dragons. E que até existia uma
pressão, a de uma fantasia mais negra põe o grupo inteiro a ser perseguido. trilogia (a bíblia do género) intitulada O
e cruel, mais desesperante e violenta. Assim começam as aventuras sem fim Senhor dos Anéis. Os anos seguintes da
A crueza do realismo é tal que se torna dos nossos heróis. Irão descobrir mais minha juventude foram passados a des-
quase paradoxal decorrer em mundos do que sonhavam sobre o panteão de bravar esse mundo novo. Mas na minha
de fantasia. deuses. vida há claramente um antes e um depois
Ainda assim, face a tantos novos au- As personagens são extremamen- de Dragonlance. Por isso, estarei para
tores e tendências, a dupla Weis & Hi- te carismáticas, desde Raistlin a Tanis sempre grato a Tracy Hickman e Mar-
ckman, bem como muitos outros auto- passando por Tas ou Kitiara, e vão sen- garet Weis por cada minuto de absoluto
res colaboradores, mantém-se de pedra do transformadas pelos eventos. Para deleite que me proporcionaram. Seria
e cal nos topos de vendas. A fama de aligeirar o drama, a história está polvi- um prazer saber que esta edição da Saí-
Dragonlance não se esgota. E qual o se- lhada de imensos momentos de bom da de Emergência teve o mesmo impac-
gredo do sucesso? comic-relief tornando a leitura diverti- to numa nova geração de leitores. Para
da, mas também cheia de emoção ao que isso aconteça, arrisquem, abram a
mesmo tempo. O equilíbrio de tensão primeira página e deixem-se levar…
que se gera torna a leitura fluida e as

BANG! /// 69
surpresas do enredo não largam o lei- Deus Único. Mas Será Mina uma serva
tor. Embora seja anterior às Crónicas As trilogias das forças do bem ou das forças das tre-

A
de Gelo e Fogo, não é menos cruel e vas? Margaret Weis voltou, mais tarde,
várias das nossas personagens favoritas saga principal de Dragonlance, a abordar esta personagem na trilogia
não chegarão vivas ao fim da viagem, da autoria de Tracy Hickman Dark Disciple. E para quem desejar saber
causando algumas cenas emocionais e Margaret Weis, não acaba no mais sobre eventos contados nas pri-
muito intensas. Mas como diz bem o livro Dragões de uma Alvorada de Primave- meiras crónicas, mas que nunca foram
Senhor da Floresta que encontram no ra. Embora cada trilogia inicie e encerre na verdade narrados, temos os livros
primeiro livro, Não lamentamos a perda um arco de história, muitos dos prota- que constituem The Lost Chronicles.
daqueles que morrem cumprindo o seu destino. gonistas transitaram para novas histó- É de notar que são apenas referidos
É comum dizer-se hoje que, para rias. Assim, após o livro da Primavera, os livros escritos pelos criadores da saga
apreciar Dragonlance, é preciso ter segue-se a Trilogia dos Gémeos (Time principal. Por ser um universo partilha-
lido os livros na idade certa, na adoles- of the Twins, War of the Twins, Test of the do, Dragonlance é actualmente consti-
cência. Li-os nessa altura e o impacto Twins) focada nas personagens de Ca- tuído por mais de 190 livros de muitos
foi tal que mesmo após ter devorado ramon e Raistlin que viajam no tempo outros autores que exploraram outras
tantas séries de fantasia, fico emocio- até às vésperas do Cataclismo. Raistlin temáticas, personagens, heróis e lendas.
nada quando relembro algumas cenas revela nesta trilogia o seu verdadeiro ca- Mas a saga principal é a que conheceu
fulcrais de Dragonlance. A publicação rácter e ambição. maior popularidade ao longo dos anos.
de Dragonlance pela SdE não esconde Após essa trilogia, foi lançada uma se- É um sem fim de acólitos e fãs, muitos
que pretende chegar a novas gerações, quela que retoma todas as personagens deles também jogadores de D&D, que
mas é preciso vencer algum precon- do grupo original, decorrendo 25 anos ainda prestam vassalagem ao mundo
ceito contra os livros. Não creio que depois dos eventos da Guerra da Lança, de Krynn. O universo de Dragonlance,
estejam ultrapassados, em especial de- e inicia aquela que veio a ser conhecida quase 30 anos depois, está mais vivo do
como a Guerra do Caos. Não é tão bri-
pois de ter lido a trilogia War of Souls, que nunca. BANG!
embora a fantasia de hoje esteja mais lhante ou emocionante como os livros
interessada em anti-heróis ou heróis anteriores, mas é bom o suficiente para
falhados e seja muito mais violenta. satisfazer a curiosidade. Seguiram-se
Face à década em que surgiram, satu- uma série de livros inferiores, como Se-
Dedicado aos meus companheiros
rada de fantasia derivativa, esta foi das cond Generation e Dragons of a New Age.
de leituras de fantasia de 2001-2005,
mais memoráveis que surgiu nesses Quando se julgava que já não podiam
vocês sabem quem são
anos. Além disso, a influência do jogo surpreender, a dupla Weis & Hickman
em si terá sido tremenda e a uma escala lançou-se naquela que é uma das séries
que não é de menosprezar. Muitos dos mais maduras e sofisticadas do univer-
jovens americanos, mas não só, que jo- so Dragonlance, War of Souls, capaz de
garam e viveram intensamente D&D rivalizar com os melhores autores de
tornaram-se eles próprios escritores ou fantasia. Uma misteriosa rapariga de
até mesmo editores (como o próprio nome Mina revela servir o enigmático
One God. Os estranhos poderes que a Safaa Dib é coordenadora editorial
editor da SdE).
rapariga manifesta fazem com que ga- da editora Saída de Emergência e faz
nhe rapidamente a lealdade de exérci- parte de organização da convenção
tos, iniciando uma série de conquistas anual do Fórum Fantástico.
por toda a Ansalon sob o estandarte do

7700 //
/// BAN
ANG!
G!
Os Heróis da Lança

Tanis Meio Elfo - O líder do grupo de Sturm Lâmina Brilhante - filho de um Raistlin Majere - provavelmente a mais
heróis, Tanis cresceu em Solace e é o filho cavaleiro de Solamnia, e forçado ao exí- famosa personagem do universo de Dra-
bastardo de uma princesa elfa violada por lio na vila de Solace onde cresceu, Sturm gonlance, Raistlin construiu uma vasta fama
um humano. Ao longo do percurso, é mui- dedicou-se de corpo e alma aos códigos de como um dos mais poderosos e perigosos
tas vezes atormentado pelo conflito entre conduta rígidos dos Cavaleiros de Solamnia. feiticeiros de Krynn. Irmão gémeo de Cara-
as suas duas heranças. Um excelente archei- O seu fortíssimo código de ética inabalável, mon, é o completo oposto do irmão guer-
ro, Tanis é a voz da razão e respeitado por bem como devoção aos ideais nobres da sua reiro, tendo uma constituição física debilita-
todos os companheiros. Tem uma difícil e ordem, torna-o uma das personagens mais da. A sua paixão por magia fê-lo sacrificar
atribulada relação com a elfa Laurana que o intensas de Dragonlance. até a própria saúde para se tornar um mago.
ama desde muito jovem. É conhecido pela sua arrogância, frieza e
sarcasmo, e oculta do grupo e do próprio
irmão as suas verdadeiras ambições. Tem
uma meia-irmã mais velha, Kitiara Uth-Ma-
thar, que o ajudou a criar.

Caramon Majere - irmão gémeo de Raistlin, Flint Forjardente - pertencente à raça dos
é o guerreiro por excelência, conhecido pela anões, Flint é um anão que se exilou da sua
sua força e destreza com armas, mas também terra natal devido a conflitos com o seu clã.
bondade. Muitas vezes vê a sua inteligência Estabeleceu-se em Solace como comercian-
subestimada pela forma lenta como dige- te e ferreiro, e nas suas muitas viagens por
re as ideias. É também conhecido pelo seu Ansalon, e em especial a Qualinost, a terra
coração de ouro e por providenciar muitos dos elfos, conheceu os restantes compa-
momentos de comic-relief no grupo. Tem uma nheiros. Tem uma intensa fobia de barcos e
grande admiração e amizade pela órfã Tika é alérgico a cavalos. Uma figura paternal do Tasslehoff Pé-Ligeiro - sem dúvida, uma
Waylan. Caramon é devoto ao irmão, embo- grupo, desenvolveu uma amizade inesperada das criações mais originais e divertidas do
ra este muitas vezes o trate com crueldade ou e forte com o kender Tasslehoff Pé-Ligeiro. universo de Dragonlance consiste na pecu-
desprezo. Tem uma meia-irmã mais velha, liar raça dos Kender. De pequena estatura,
Kitiara Uth-Matar, que o ajudou a criar. são conhecidos pela sua intensa curiosidade
que os leva muitas vezes a cometerem rou-
bos, embora não tenham qualquer cons-
ciência moral que os permita encarar a
apropriação de objectos como roubo. Não
demonstram qualquer medo, são sempre
alegres e travessos, e na sua adolescência
atravessam a fase de wanderlust que os leva a
viajar pelo continente todo. É numa dessas
viagens que Tasslehoff, ou Tas, conheceu
Vento do Rio - Um pastor que se apaixo- Flint e, através dele, os outros membros do
nou pela princesa bárbara Lua Dourada. grupo. As suas acções tornaram-se valiosas
Lua Dourada - Uma princesa bárbara, Para provar o seu valor, partiu numa de- e vitais na guerra da Lança.
filha do líder da tribo Que Shu. Ao salvar manda em busca de provas da existência dos
a vida do pastor Vento do Rio, viu-se na deuses. Numa das suas muitas viagens peri-
posse de um misterioso bastão de cristal gosas, descobre o bastão de cristal azul, mas
azul, com poderes mágicos que a conduzi- ao regressar para junto da tribo, é condena-
ram para Solace onde conhece os restantes do à morte por blasfémia. Lua Dourada e os
membros do grupo. Torna-se o seu objec- estranhos poderes do bastão salvaram a sua
tivo descobrir a verdade sobre a existência vida. É o protector inseparável da princesa e
dos deuses. conheceu os companheiros em Solace.

BANNGG! //
BA /// 7711
ARTIGO 56.º
(Lei 107/2001)
“Classificação de bens
culturais de autor vivo:
A classificação feita nos termos
do artigo 15.º da presente lei de
bens culturais de autor vivo depende
do consentimento do respectivo
proprietário, salvo situações
excepcionais a definir (...)”
A
dal Marabundo despertou com o barulho de quinze anos. Nunca na sua existência imaginara que algo se-
um homem enfezado, pequerrucho e esqui- melhante ao que se passava agora lhe pudesse ocorrer a ele.
sito a fitá-lo com extraordinária expressão de Uma série de homenzinhos pequenos, raquíticos, mirrados,
comovido espanto. A criaturinha rapidamente de faces chupadas, demasiado pálidos e com pernas de palito,
desviou o olhar e prosseguiu o trabalho que recolhiam cada minúsculo papelucho seu. Os minguados se-
consistia em colocar, de modo ordenado, dentro de uma cai- res trajavam uniformes idênticos de cor indefinível e usavam
xa de cartão, todos os pedacinhos do manuscrito que ontem um estranho objecto no olho direito. Removiam de modo
Marabundo rasgara. diligente e delicado – por deus, notou Marabundo, como se
– Eh, que é isto? Eh, o que é que está a fazer? fossem relíquias sagradas! – todos os seus escritos e diários,
Adal Marabundo, de sessenta e três anos, há semanas refor- textos terminados, por terminar e até abandonados. Assusta-
mado, homem solteiro e sem encargos, julgara que ter agora va-o a reverência com que tratavam o que para ele não passa-
todo o tempo livre dedicado à escrita lhe iria conduzir os dias va de entulho, enquanto ao mesmo tempo o evitavam e não
como se habitasse uma suave e cálida brisa. Julgara-se imune respondiam a qualquer questão, desviando sistematicamente
a sobressaltos. Pela primeira vez uma leve e gentil felicidade o olhar do seu.
apegara-se à pele. Ele podia enfim ocupar-se a escrever. Ti- De súbito sente uma tímida pressão no ombro. Vira-se e
nha esboços para vinte livros a que iria dedicar os próximos descobre um cavalheiro, mais velho e um pouco mais alto.

72 /// BANG!
Este sorri e leva-o para a cozinha. Sentam-se e é enfim forne- era bem papel ou plástico, antes um misto de ambos. Adal
cida a Adal uma explicação. leu o decreto-lei. As linhas iam passando ante os seus olhos
– Daqui por quatrocentos anos, – diz o outro com tal gen- à medida que ele avançava na leitura. Era como se este ar-
tileza e suavidade na voz que Adal se pergunta em silêncio: tefacto proveniente de um futuro incógnito conhecesse na
“Pensará que se dirige a uma criança? Ou a um enfermo às exactidão em que zona do documento pousavam os olhos de
portas da morte?” – daqui por quatrocentos anos (retome-se Marabundo.
a narrativa), Marabundo será considerado (e salvo das garras Quando acabou, os homens tinham partido e só lhe dei-
do anonimato) um grande autor cuja obra irá servir para re- xaram na secretária a lâmpada alimentada a energia solar, a
definir a identidade e consciência nacionais. Porém, antes da história em que presentemente laborava (vinte folhas avulsas,
sua morte (e o estranho inclinou, reverente, como se se diri- escritas à mão), uma caneta e...
gisse a uma árvore milenar, o crânio coberto por um exótico Mais nada.
barrete decorado com folhos também eles de cor indefinida), Descobriu que até grande parte da sua roupa haviam levado
Adal queimou tudo aquilo que não quis que fosse preserva- – nem deixando para trás os chinelos de quarto.
do: antigos manuscritos inacabados; versões iniciais de obras Adal Marabundo, não obstante a estupefacção e alguma
(às vezes mais de quinze) que os cidadãos desta sociedade dor de alma, decidiu retomar a escrita.
futura (directa descendente da actual) seriam impedidos de Percebeu que não importava os dias que tinha até a morte o
ler (e idolatrar) em tempos vindouros. Chegou até a incendiar vir buscar. Não importavam o presente ou futuro.
todos os seus diários íntimos e pessoais (o cavalheiro repri- Aquela serena bem-aventurança que o habitava só a des-
miu um soluço). Rascunhos, notas avulsas, correspondência. cobria ao escrever. E por isso regressou ao trabalho.
Tudo incinerado! A perda para o país. A perda irreparável
para a Nação!
“Devo sonhar. Ou será um pesadelo?” Adal era ferozmente
autocrítico e não acreditava que algum dia tivesse um impacto
tão visível em quem quer que fosse.
Os seus livros, a sua obra... não. Era, portanto, um estranho
sonho.
– Tudo irá para o Museu Nacional, na secção a si dedicada.
Os seus documentos serão estudados pelos nossos académi-
cos. Acredite, ficarão em mãos competentes e gratas.
– Mas como, como...?
– Ah. Compreendo o que o aflige. As viagens no tempo fo-
ram recém-desenvolvidas. Obtivemos finalmente aprovação
do Conselho Maior para esta Missão de Salvamento.
– Mas, mas... mas não tiveram a minha! Eu exijo que... eu Ágata Ramos Simões escreveu “Lisboa singular”, livro infanto-juvenil, e participou
exijo...! na colectânea de poesia, “Ventana A La Nueva Poesía Portuguesa”, editada no
– Compreendo – replicou o estranho. – Mas temos a per- México pela Ediciones Desierto. Teve uma participação no Salão do Livro em Paris
missão da Lei. convidada pela editora Éditions 00h00. Ganhou o 1º prémio no concurso literário
– Não da nossa! A do meu tempo! “António Mendes Moreira” com o manuscrito “À Procura de um Livro” e ganhou
– Sim. Da vossa. Remeto-o para a leitura da lei 107 de 2001. igualmente no concurso literário Orlando Gonçalves com o mesmo manuscrito. No
Particularmente o Artigo 56. princípio de 2006, foi publicado a obra “Senhor Bentley, o Enraba-Passarinhos”
Adal Marabundo olhou-o sem expressão. O desconhecido pela Saída de Emergência. Tem, até à data, 14 livros electrónicos publicados
passou-lhe uma folha de um material fino e bizarro que não através do site Smashwords. (http://www.smashwords.com/profile/view/agata)

BANG! /// 73
A
lguma vez pensaram no quão difícil deve ser cons- televisão, rádio e cinema, as repercussões na indústria e o impac-
truir diálogos fluidos ou bombásticos em televisão to na economia local foram tremendos. Todo o mundo sentiu
ou cinema e que entrem para o cânone da cultura os efeitos nas suas séries de TV favoritas ou filmes que foram
popular? Não é uma arte que dependa meramen- abruptamente cortados ou irremediavelmente arruinados com
te de inspiração ou talento. Quentin Tarantino viu a greve.
centenas e centenas de filmes de todas as épocas, e
construiu um sólido conhecimento cinematográfi-
co, antes de criar os seus próprios guiões cheios de referências e
homenagens aos mestres do cinema.
A escola portuguesa
Embora a escola de guionismo de Hollywood seja muito mais
Tudo começa numa página em branco. Os filmes, as séries, vasta e dominante, exemplos nacionais não faltam, tanto no
os programas da rádio, dependem de um guião técnico, um do- humor como no drama, duas faces da mesma moeda. Vê-se
cumento que irá orientar a produção e execução de qualquer uma muito maior abertura para ficção na TV e Herman José
formato audiovisual. Sem o guião, todo o processo é travado. marcou para todo o sempre o humor português e a sua longa
Quando a Writer’s Guild of America declarou uma greve que carreira trouxe um legado de qualidade que influenciou mui-
se prolongou por quatro meses, em Novembro de 2007, e que tos humoristas portugueses da nova geração. Em cinema, Mi-
juntou mais de doze mil escritores e argumentistas das áreas da guel Gomes provou a todos, através do filme Tabu, ser possível
Tr ês Ar gu m en ti stas
pa rt il ha m as su as ex
pe ri ên ci as
nuno duart
e
j o ã o le it ã o
fi li p e h o m e m
fo n s e c a
Texto e entrevistas
por Safaa Dib

concretizar-se no grande ecrã um argumento português de uma


beleza literária extraordinária com uma naturalidade invejável.
Primeiros Passos
João Leitão ganhou uma nova visibilidade com a exi-
Temos tendência a enaltecer, ou não, os valores de produção,
bição do trailer e primeiro episódio da sátira “Capitão
o talento dos actores, fotografia, mas todos sabemos, bem no
Falcão” que incendiou o festival MotelX e rapidamente
fundo, que não podemos passar sem uma boa história. É na
ganhou inúmeros adeptos. Um super-herói fascista ao
escrita do guião que nasce a criação de personagens, descrição serviço de Salazar e um sidekick de nome Puto Perdiz
de cenários, é nessa fase do processo que se tomam todas as formam uma dupla imbatível que lança o terror sobre os
decisões sobre os conteúdos. Afinal, o que nos prende a uma comunistas. A paródia ao Estado Novo entusiasmou o
série televisiva até ao fim será sempre a qualidade do enredo e público e está em curso uma produção sem data prevista
personagens. ainda de estreia.
A Távola Redonda decidiu partir à descoberta de três argu- E como foram os primeiros passos de entrada no mundo do
mentistas portugueses, com ligações especiais ao género fantás- guionismo profissional é a pergunta que se impõe. João Lei-
tico, mas não só. De currículos diversificados, ou partilhando al- tão confessa que “no início fui obrigado a fazer isto. Quando
gumas afinidades de percurso, são eles Filipe Homem Fonseca, produzi e realizei o meu primeiro trabalho (a série Um Mun-
Nuno Duarte e João Leitão. do Catita) acabei por também ser o argumentista porque não

BANG! /// 75
conhecia ninguém do meio. Não dade entedia-o facilmente e “estes
foi tanto uma escolha como uma universos distraem-me da vida
necessidade”. real, por isso tento viver neles o
máximo possível”.
No caso de Nuno Duarte que,
para além de já ter trabalhado em Filipe Homem Fonseca e Nuno
TV e teatro, é também argumentis- Duarte desenvolveram em con-
ta de grande reputação na área da junto há cerca de dois anos o
BD, a leitura e a ânsia de criar, bem magazine “Orelhas de Spock” no Nasceu em Lisboa em 1975, viv-
como uma série de workshops e canal Q e que lhes permitiu pres- endo a sua infância e adolescência
pequenos cursos, foram deter- tarem homenagem aos seus he- no Ribatejo, onde aprenderia a
gostar de sopa da pedra, amigos e
minantes para que abandonasse róis e aos temas que os tornaram histórias. Escritor freelancer asso-
o curso de Direito e integrasse a os criativos que são hoje. Nuno ciado das Produções Fictícias desde
equipa de uma produtora de ani- Duarte comenta que o sucesso da 2002, trabalhou em imprensa es-
mação como guionista. E conta iniciativa deveu-se à “Internet, que crita, teatro e televisão, em projec-
como cometeu “a ousadia de en- abriu as portas do fantástico como tos como “Manobras de Diversão”,
“Liberdade XXI”, “Conta-me como
viar uma série de textos humorís- Há Mais nunca, permitindo-nos encontrar foi”, “Bocage” ou “República”.
ticos para a Produtora do Herman referências e material que consi-
José, que foi não só benevolente Mundos derávamos há muito perdido.” A
Argumentista de BD, publicou obras
como “Paris Morreu”, “Quebra
a ponto de não me arrasar, como facilidade com que é possível hoje Queixo – Technorama”, “A Fórmula
me enviou às Produções Fictícias, Todos estes três argumentistas dar a conhecer ao público novos da Felicidade” e “O Baile”.
onde acabei depois por me tornar nasceram na década de 70 ou iní- conteúdos criativos foi só graças à
membro associado”. cios de 80, e cresceram influencia- Internet e João Leitão acrescenta
dos pela BD, cinema e televisão, que “a democratização do digital e
Filipe Homem Fonseca tem com forte tendência para o fan- a promoção online são as maiores
um currículo onde se destaca o tástico, dessas décadas. Apoian- ferramentas de qualquer pessoa
envolvimento em programas tão do-me nas palavras de Nuno Du- que esteja a começar no audiovi-
icónicos como Herman Enciclopé- arte “figuras como Moebius, Stan sual”
dia, Herman 98, Major Alvega, Con- Lee, Jack Kirby, Frank Miller, Alan
versa da Treta ou Contra-Informação. Moore, George Lucas, Steven
Spielberg e muitos outros afirma-
Mas o início do seu percurso está
envolto em mistério e alega que ram que o fantástico, a ficção e os A Visão do João Leitão, natural do Porto, for-
invocou uma entidade semi-cor- super-heróis eram temas tão perti-
nentes e de qualidade como qual-
Criador mou a sua produtora, Individeos,
em 2006, após mudar-se para Lis-
pórea da 5.ª dimensão para com
quer outro.” É uma geração que boa para escrever e realizar a série
ele negociar um lugar como play- Aquele que é hoje considerado televisiva “Um Mundo Catita” con-
boy milionário. “Perdi para o Tony se afasta da veia mais realista de um dos melhores guiões de cine- juntamente com Filipe Melo, desco-
Stark e sobrou-me o guionismo”. gerações anteriores e começa a re- ma de sempre, Chinatown da au- brindo assim uma enorme paixão
flectir sobre o mundo com cores toria de Robert Towne, tem uma pela Escrita de Argumento e pela
Como todos os trabalhos cria- mais vibrantes e entregam-se de Realização. Nos últimos anos tem-
famosa história de disputa nos se concentrado principalmente em
tivos, o guionismo está rodea- corpo e alma a outros universos. bastidores sobre o final do filme. trabalho de argumento e no desen-
do de preconceitos ou algumas A última década permitiu que o Towne tinha escrito um final fe- volvimento de projectos de ficção,
ideias erradas que interessa des- pulp, o universo dos super-heróis, liz em que o bem triunfaria sobre Em 2012 lançou a sua primeira
mistificar. João Leitão descreve o os filmes de fantasia e ficção cien- curta-metragem “O Grande Mon-
o mal, mas o realizador Roman teleone”. De momento encontra-se
ofício como “frustrante, doloro- tífica ganhassem um ainda maior Polanski insistia que, para o filme em pré-produção do seu projecto
so e mal pago, mas quando cor- reconhecimento pelas boas his- se tornar especial, nunca poderia “Capitão Falcão”.
re bem é a melhor sensação do tórias e personagens de enorme acabar bem. A disputa chegou a
mundo porque sabes que criaste complexidade. Essa nova abertura tal ponto que o realizador desen-
algo só teu.” E se julgam que es- reflectiu-se também no trabalho tendeu-se com o produtor, foram
tes argumentistas ficam sentados dos três argumentistas que já mer- feitas alterações substanciais de
à espera que a musa os abençoe gulharam, ou vão mergulhar, em última hora ao filme e o resulta-
com um golpe de inspiração, o águas mais alternativas. do final foi… brilhante. Hoje o
Nuno Duarte explica como estão guião de Robert Towne é consi-
enganados, o “guionismo pro- João Leitão, para além de ou- derado uma obra-prima, mas foi
fissional não se compadece com tros projectos como o “Capitão o realizador a impor a sua visão
momentos de inspiração, e a cria- Falcão”, tem em preparação uma nos momentos finais, elevando o
tividade é um músculo que pode longa-metragem de ficção cien- filme a todo um novo nível. Esta
e deve ser exercitado para que o tífica, ainda longe de terminada, Freelancer. Argumentista, hu-
é uma história que acabou bem, morista, dramaturgo, realizador,
trabalho seja executado com qua- e direcionada para um público mas há incontáveis outras histó-
internacional. Admite que a reali- e outra coisa que agora não se
lidade.” Filipe Homem Fonseca rias de bons guiões totalmente lembra mas que tem a ver com
opta por definir a profissão atra- descaracterizados por interferên- música. Gosta muito de torresmos
vés de um haiku que escreveu há cias de produção, limitações de e de viajar no tempo, especial-
uns tempos: ser ao escrever, dedos em mente às 3.as-feiras. Quando não
orçamento, realização e tudo o é 3.a-feira, viaja até à 3.a-feira
carne viva, de tanto viver. que for imaginável. anterior, ou à seguinte, e depois já
lhe sabe melhor. Truques que foi
aprendendo com o tempo.
76 /// BANG!
rias sobre o formato ou o género em que
escrevo. Dito isso, a BD é por excelência
um meio gráfico e tem que ser pensado
como tal, logo a cada colaboração com os
diferentes artistas que executam os guiões
procuro um estudo adequado das suas ca-
racterísticas e pontos fortes antes da ela-
boração do guião”.
Consegue um argumentista vingar sem-
pre a sua visão? Nim. É muito frequente Sendo um ofício que implica uma forte
não ter controlo sobre o material. Nuno criatividade, o campo onde se geram as
Duarte acredita que muitas vezes o guio- maiores expectativas será em torno das
nista é visto em Portugal “como apenas personagens. Serão elas a conduzir o enre-
mais uma roda dentada de um processo do ou são as necessidades do enredo que
de produção quando é tantas e tantas ve- conduzem e vão criando as personagens?
zes o único criativo que parte da página JL começa sempre com as personagens
em branco.” Refere o facto de estarmos principais primeiro. “Preciso de as ter
a atravessar uma idade de ouro da ficção bem construídas na cabeça antes de criar
“e que isso se deve à aposta em grandes o enredo à sua volta, mas também sur-
guionistas e na sua visão, mas seria lógico gem surpresas agradáveis e às vezes uma
que, pelo menos em Portugal, os guionis- necessidade de argumento cria uma per-
tas tivessem mais a dizer acerca da criação sonagem secundária que depois acaba até
de novos conceitos e projectos”. por ser a tua favorita, e quando isso acon-
Filipe Homem Fonseca refere “Alguns tece, é indescritível”. FHF opta por uma Horas de labor
guionistas, em alguns projectos, conse- abordagem mais intuitiva “Se estivermos
guem vingar a sua visão. Outros não, e atentos quando estivermos a escrever, E para finalizar, o que recomendariam
é pena. Outros não, e ainda bem. Cada conseguimos ouvir quer o enredo quer as os nossos convidados a aspirantes a argu-
trabalho de guionismo é um passo nessa personagens a ditarem as suas necessida- mentistas? “Paciência, perseverança e ler
mudança; com sorte, um passo em frente. des”. ND considera que um enredo “são muitos argumentos”, uma recomendação
Faz-se caso a caso.” as personagens e as decisões que estas to- partilhada pelo ND que acrescenta “es-
mam quando colocadas perante qualquer crever nasce de muita leitura, de muitas
João Leitão acha que é preciso mudar que seja a situação em que as coloquemos. horas a ver cinema e TV e de muitas dis-
em Portugal a mentalidade que “a escrita Para isso há que conhecer o seu passado, cussões apaixonadas sobre esse material.
é gratuita até ao momento em que apare- o seu presente, o seu estado de espírito.” É dessa apreciação que surge o vírus de
ce um subsídio. Muitos argumentistas de- fazer, de escrever, de fugir aos inevitáveis
dicam meses a trabalhar num guião sem Poderá toda esta geração que nasceu cursos de Direito desta vida.” Mas caso
qualquer renumeração, e mesmo quando nas décadas de 70 e 80 e que absorveu arrisquem, “tenham cuidado com a Segu-
arranca a produção, são das pessoas mais imensas referências de ficção científica, rança Social, olhem que é uma batelada”,
mal pagas se tivermos em conta a quanti- fantasia e horror vir um dia a criar uma avisa o FHF em tom de brincadeira, mas
dade de horas que investiram no filme.” identidade portuguesa no género fantásti- uma advertência para o facto de nem tudo
Essa fraca renumeração será provavel- co? Nem por isso. FHF acha que “é uma ser um mar de rosas na vida de freelancers.s
mente um sentimento global, tendo sido utopia pensar em seja o que for puramente
um dos principais motivos da greve dos português, ou puramente seja de que na- A todos os que se lançam na escrita,
escritores americanos de 2007-2008 que cionalidade for, daqui a uns anos. E ainda sejam argumentistas ou não, o conselho
se sentiam injustiçados perante os lucros bem.” Face à espoliação da cultura nacio- mais banal à face da terra, mas ainda o
brutais dos principais estúdios. nal e degradação das condições económi- mais acertado, é o de não se deixarem fi-
cas, ND considera que “neste momento car pelas intenções. Frequentem cursos,
é uma utopia pensar em qualquer género workshops, sejam autodidactas, apren-
dam com a Internet, aprendam com
O processo cultural português daqui a uns anos”, mas
admite “que se há algo que essa geração profissionais da área. Não se limitem a
criativo aprendeu foi a fazer uma mescla de influ- pensar que um dia irão escrever um ex-
ências anglófonas, continentais e até ni- celente livro ou guião. Só com trabalho e
E sobre a escrita em si? Não resisto a pónicas”. Na mesma veia, JL refere que é persistência poderão almejar um dia criar
perguntar sobre o processo criativo. Sen- uma cultura rica, com muito para explorar um dos finais mais negros da história do
do argumentistas que já trabalharam em e espera um dia ver uma “identidade mais cinema e resumi-lo numa única linha: For-
vários formatos ou géneros, interessa sa- ibérica no mundo do fantástico”. get it, Jake. It’s Chinatown.
ber como moldam as ideias e a escrita aos
diferentes meios. FHF é mais pragmático
“Quando tenho uma ideia, tento perce-
ber qual o formato mais adequado para
desenvolvê-la. E depois vou na direcção
oposta.” ND diz que “sempre dei prima-
zia ao primado das ideias e das boas histó-

BANG! /// 77
C ANTO S QUE BRAD O S
http://cantosquebrados.blogspot.pt/
ARGENTO-VIVO
NEAL STEPHENSON
    
Do autor de Cryptonomicon, Argento-Vivo é o
primeiro livro da trilogia inicial d’O Ciclo Bar-
roco.
O livro passa-se numa altura em que o pensa-
mento científico se eleva das cinzas da alquimia.
Seguimos a viagem de Daniel Waterhouse, um
jovem dividido entre dois mundos acompanhado
de grandes pensadores que com as suas experi-
ências e descobertas traçaram novos caminhos
para o pensamento. Stephenson (re)apresenta-
nos Newton, Leibniz, Hook, Boyle, Huygens e Arquivo Morto é uma série
éi d de terror
Wilkins, homens que transformaram a forma como compreendemos o Mundo e
que mesmo perante catástrofes, nada os impediu de procurar a verdade... verdade em BD. Numa sociedade de consu-
essa mais importante que as suas próprias vidas. Daniel Waterhouse encontra-se mo desenfreado, o desafio é conse-
no meio da tempestade e guia-nos desde uma Inglaterra em convulsão e flage-
lada pela Peste e uma Londres na época do Grande Incêndio até à nova colónia guir envolver – e satisfazer – o leitor
americana de Boston. Uma viagem imperdível. / Joana Lima em apenas uma ou duas páginas. Para
este efeito, Paulo Stenzel mistura o po-
L I VRO S P O R TO DO O L AD O der de síntese, aprendido em quase 20
http://livrosportodolado.blogs.sapo.pt/ anos a trabalhar em publicidade, com
DUNA temas clássicos do terror e do fantástico.
FRANK HERBERT A riqueza dos detalhes e a opção do preto
    
Em “Duna” de Frank Herbert podemos ver uma e branco, nas ilustrações de Gilmar Fraga,
sociedade que gira em torno da produção de
uma substância viciante existente apenas num completam o ambiente denso e sombrio das
planeta: Arrakis, também conhecido como Duna. histórias. Apesar de curtas, as histórias con-
Quem controlasse este planeta controlaria de cer- vidam a uma atenta apreciação, pois cada
ta forma a economia do império e seria alvo de
intrigas palacianas com planos dentro de planos. nova leitura proporciona uma nova desco-
Uma obra de grande interesse e profundidade berta: seja na subtileza oculta nos textos, seja
onde podemos ver de que forma uma profecia
pode ser manipulada e adaptada para que um nos pormenores incluídos nas ilustrações.BANG!
simples homem se torne mais que isso. O autor
utiliza muitas características das religiões orien-
tais que vemos em cada página tanto neste livro como nos restantes. Nota-se
também uma preocupação bastante vincada, por parte do autor, relativamente à
possibilidade de existir um planeta que tenha de viver com constante escassez de
água (água é vida).
Considerado um clássico da Ficção Científica, teve adaptações para cinema e televi-
são, e é uma obra a não perder. / Alexandra Rolo
Gilmar Fraga é ilustrador, Paulo Stenzel trabalhou, como
caricaturista e artista plás- redactor e director criativo,
O SENH O R DAS LUVAS tico premiado em salões em mais de uma dezena de
http://osenhorluvas.blogspot.pt/ de humor brasileiros e agências de publicidade no
internacionais. O seu gosto Brasil e em Portugal; e como
A MANHÃ DO MUNDO pelo desenho vem desde a apresentador e redactor do
PEDRO GUILHERME-MOREIRA infância e a sua curiosidade programa Zinco Quente (TV
em experimentar novas téc- Unisinos – Brasil). Na música,
    
nicas e materiais reflecte-se fez parte de uma popular
E se? Esta pergunta assombra a Humanidade banda brasileira de punk
no ecletismo do seu
desde sempre e a literatura procura dar a respos- trabalho. Já ilustrou mais de rock. Actualmente, dedica-se
ta. A Manhã do Mundo de Pedro Guilherme-Moreira 15 livros, dezenas de BDs e aos seus estilos de eleição: o
é mais do que outro livro de História Alternativa. O muitas outras publicações. terror e o fantástico. As suas
autor leva o tema mais longe. Como palco o 11 de Publicitário de formação, actividades mais recentes
Setembro, como personagens as pessoas que salta- mas apaixonado por incluem dois filmes (em pro-
ram das Torres e duas mulheres que sem saberem ilustração editorial, trabalha cesso de produção), o guião
como ou porquê se veem novamente naquele dia desde 96 no maior Jornal do do episódio piloto de uma
com a possibilidade de impedir ou minimizar a sul do Brasil, Zero Hora, em série televisiva, um romance
Porto Alegre, estado do Rio de terror a ser publicado em
tragédia. Dá-se o confronto entre o que se passou 2013 e ainda dois projectos
e o que afinal ainda está para vir, entre o medo e Grande do Sul, onde ocupa
o cargo de editor adjunto de BD, sendo um deles este
a coragem, entre o preconceito e a redenção. Uma de arte. que é agora apresentado, em
história que levará o leitor a olhar para a vida e a pensar o que faria ou como um primeira mão, na Bang! .
mero segundo pode fazer a diferença. A Ficção Científica escrita por Portugueses é
algo raro e este livro é um dos que merece ser lido. / Marco Lopes
BANNGG! //
BA /// 8833
84 //
84 /// BAANNG
NG!
G!

Literária
Crítica Receber um elogio dos
críticos é como ter um
carrasco a dizer-nos que
temos um pescoço bonito.”
Eli Wallach

Lá fora tipo de indícios, podemos incompetência e a corrup-


escutar o raspar das unhas ção. De fundos de maneio
dos Cães de Tíndalos em desviados para actividades
Dois Guias para Lidar com busca de uma falha nas
geometrias Euclidianas do
ilegais. Em boa verdade,
as coisas nunca correm
Monstros nossos quartos. A revista de feição para os ator-
mentados membros da
WEIRD TALES abriu as
brechas. Através delas in- Checquy. São obrigados a
The Rook e The Breach filtraram-se autores como abater dragões acabadi-
Daniel O’Malley e Patrick Lee Matheson, Bloch, Leiber, nhos de sair dos ovos com
Little Brown e HaperCollins Publishers Campbell, Lumley. A cha- lança-chamas. Hostilizam
ma do medo ao indizível invasões fungais com mo-
não se apagou. Continua a toserras. Derretem cubos

H á momentos assim!
Momentos em que, no recatado si-
lêncio que nos vai nas almas, o leitor,
arder e a alumiar os novos
horrores que se escondem
nas sombras do novo milénio.
de protoplasma tentacula-
res com Torres dotadas de
poderes neurodisruptores. E ainda assim
defendido por uma língua estrangeira Pois bem. Vivemos numa época escla- têm de aceitar entre os seus membros
ou por uma capa inócua, cercado pela recida. Hoje em dia, os monstros multi- vampiros snobs e dandies, indivíduos que
passiva ignorância das massas anónimas dimensionais não atacam apenas tristes se transformam em estátuas de metal, ou-
que espreitam por cima dos nossos om- bibliotecários que descobriram versões tros que exsudam vapores tóxicos através
bros para títulos como “THE ROOK” K poeirentas do Necronomicon. Agora os dos poros, sem esquecer um mão cheia de
ou “THE BREACH”, poderá deleitar- governos sabem que “eles” existem. E irmãos quadrigémeos psicóticos que são
se com um ou mais livros que não serão para se defenderem, criaram organizações todos a mesma pessoa. Myfanwy Thomas
propriamente “obras-primas”, mas que financiadas pelos contribuintes. Fiquem a é um dos mais recentes membros desta
apesar disso nos deleitam, fazem subir o saber que é para lá que escorrem os im- organização em colapso. Foi retirada ao
nível das endorfinas, até finalmente nos postos. conforto paterno aos oito anos e integra-
mergulharem naquele estado de êxtase Estamos a falar da Checquy britânica, uma da nas Escolas de Torres muito simples-
que os americanos tão bem classificaram sucursal do Governo de Sua Majestade. mente porque podia controlar à distancia
como “Gosh! Uau”. Uma organização super-secreta à qual só o sistema nervoso de quem a irritava.
Chamamos-lhes “prazeres culposos” e a Rainha e o Príncipe Herdeiro têm aces- Agora acordou sem memórias, no meio
não estamos muito longe da verdade. Ao so. Mais hermética ainda do que o MI6. do jardim público rodeada de cadáveres
fim e ao cabo, o prazer de ler pode ser tão Com mais de quinhentos anos em defesa de agressores, todos eles com luvas de lá-
intenso que substitua um frasquinho de do Reino. Composta por figuras de auto- tex calçadas. No bolso, uma carta dirigida
ansiolíticos ou um bom shoott de heroína. ridade retiradas do Xadrez. Com Bispos e a si mesma, escrita por ela própria antes
E não é a ler Peixoto que lá chegamos, Cardeais dotados de poderes “especiais”, de lhe roubarem a memória. Cautela. Há
meus caros... recrutados e roubados aos traidores na Checquy. Traidores vendidos,
Pela parte que me toca, pais desde a mais peque- acreditem, aos Belgas. Belgas que há anos
nada me dá mais gozo, na infância.
f No tabuleiro e anos tentam invadir as costas britânicas
do que ler a ficção pós- do mundo movem-se os com hordas de monstros mutantes dota-
lovecraftiana. Sinal que peões e as torres, prestes dos de espinhaços, cuspo alucinogénico,
o horror metafísico não a combater todas as inva- e implantes cibernéticos. Todo o livro é
morreu, mas que antes sões transdimensionais, composto das cartas a uma amnésica cuja
está vivo e recomenda-se. todas as manifestações de personalidade se alterou por completo
Afinal os Grandes Antigos indizíveis horrores, todos com a “limpeza”. E das aventuras desta
continuam à espera de nos os poltergeists e monstros recém-criada Myfanwy Thomas para pas-
devorar, escondidos para tentaculares. sar despercebida a quem a atacou. O livro
lá das barreiras do Espaço Serão sempre bem sucedi- é uma delícia de humor negro e pequenos
e do Tempo. E quando a dos? Claro que não. Esta- detalhes da vida quotidiana de quem não
noite chega, para quem mos a falar da burocracia é normal de todo. Absolutamente a não
saiba prestar atenção a este britânica. Onde reina a perder as cenas de um pato que consegue
prever o futuro bicando num teclado gi- veio parar às mãos, a tentarem atacar o de um atentado à bomba, mas uma das
gante de computador. E do desgraçado prédio onde estão alcantilados os solda- vítimas decide continuar a viver habitan-
destino do bicho algumas páginas mais dos da Tangent. THE BREACH devo- do o seu corpo e mente. O conto The Iraqi
abaixo quando se encontra com o astró- ra-se como um rebuçado de adrenalina Christt tem como protagonista um solda-
logo do Primeiro-Ministro. THE ROOK, rumo à terrível revelação final. E com a do com a habilidade de prever o futuro;
primeiro romance de Daniel O’Malley é promessa de que o horror não terminou as suas premonições permitem salvar-lhe
fresco, ácido, absurdo. Leva a desejar que ali. A Brecha continua aberta e a derra-
o autor escreva mais romances nesta ca- a vida de muitos soldados, mas será isso
mar artefactos. Ainda nos dois volumes
tastrófica sociedade quase-secreta, onde seguintes, GHOST COUNTRY e DEEP suficiente para que ele possa sobrevi-
tudo dá para o torto, sempre, sempre e SKY. ver à constante violência que o rodeia?
sempre. Bem-vindos àquilo que o comedido Lo- Incursões metaficcionais curiosas como
A organização TANGENT é Americana, vecraft nunca conseguiu descrever. Bem- o conto Why don’t you write a novel, inste-
mais séria e brutal do que a Checquy, mas vindos ao caos acidulado do nosso mun- ad of talking about all these characters? des-
também ela composta de elementos cor- do./ João Barreiros tacam um protagonista acusado de
ruptos que não desejam outra coisa senão ser o autor Hassan Blasim, embora a
destruir o mundo tal como nós o conhe- personagem o negue constantemente.
cemos. Nos anos setenta, um acelerador
de partículas abriu uma brecha no espa- The Iraqi Christ É difícil não ficar impressionado com as des-
crições casuais do Iraque da última década
ço-tempo. Um buraco que leva a “outro- Hassan Blasim
lado”, e ninguém sabe bem se será o futu- Comma Press (e-book) que polvilham estes contos, e que montam
ro, um planeta de extraterrestres que nos um retrato de devastação, de personagens
forçadas a fugirem pelas florestas à noite
D
odeiam à partida, ou pura a literatura escrita ori-
e simplesmente esse lugar ginalmente em ára- em direcção às fronteiras e à condição de
recatado onde se ocultam be e com elementos do refugiados, de doses de violência diária que
os Grandes Antigos. Não fantástico, pouco chega testam a sanidade de qualquer pessoa. Mas
podemos atravessar para ao Ocidente. Parcas tra- é bebendo dessa negritude – e do bizarro
o outro lado, mas que im- duções para línguas eu- que a acompanha – que Blasim constrói
porta? O outro lado está ropeias, dificuldade dos uma teia de personagens quebradas pelo
permanentemente a des- autores em imporem-se choque e trauma, não sem alguma mor-
carregar “artefactos” no numa língua que não é
nosso mundo. À razão dacidade ou um tom casual perturbador.
particularmente flexível A voz que detalha estes contos faz uso
de quatro por dia. Alguns para as constantes inova-
são absolutamente incom- do fantástico, como se este fosse a única
ções do dia-a-dia e num
preensíveis, outros lá têm género que não é aprecia- maneira de contar as histórias das muitas
a sua utilidade como um do no mundo árabe nem personagens que habitam ou tentam fugir
regenerador de traumas fí- tem forte expressão, tor- de um país desorientado e quebrado, sem
sicos ou uma pistola de amnésia. Outros nam livros como The Iraqi lei nem rei. A naturalidade
são terríveis: um gerador de campo psicó- Christt do autor iraquiano com que os elementos fan-
tico que faz com que todas as pessoas que Hassan Blasim um acon- tásticos invadem a realidade
se encontram à nossa volta, num campo tecimento. Conhecido só atesta a surrealidade do
de umas boas centenas de metros, nos também pela sua activida- pós-guerra. Uma mudan-
queiram degolar com o máximo de preju- de como realizador de ci-
ízo. Outra é uma caixinha que tudo sabe. ça refrescante em relação
nema, Blasim foi forçado a matérias anglófonas, os
E quando eu digo tudo, é tudo mesmo. a refugiar-se na Finlândia
Desde o próximo bilhete de lotaria aos contos de Hassan Blasim
em 2004, devido a proble-
códigos de disparo dos mísseis nucleares. mas com as autoridades expõem um país arruinado
A caixinha seduz-nos. E com voz doce locais. pela guerra e entregue à sua
faz-nos propostas irrecusáveis. Se matares Traduzida para o inglês por sorte, onde cada sobrevi-
este ou aquele, eu dou-te isto e aquilo. A vente aprende a depen-
Jonathan Wright, a sua co-
caixa chamada Whisper é um gerador de der apenas dele próprio.
paradoxos ou a terrível garantia que ape- lectânea The Madman of Free
Squaree trouxe-lhe notorie- /Safaa Dib
nas um dos múltiplos futuros que nos es-
peram, seja o aprazível futuro apocalíptico dade e uma nomeação para o Independent
onde ninguém sobreviverá. Foreign Fiction Prize, em 2010. Mas se
O livro THE BREACH de Patrick Lee, nessa colectânea, o toque kafkiano já estava The Hundred Thousand
primeiro de uma trilogia, move-se à ve-
locidade de um míssil cruzeiro, pleno de
presente, é na sua segunda colectânea The
Iraqi Christt (vencedor do Writers in Trans-
Kingdoms
violência e daquele tipo de fluidos que N. K. Jemisin
lation Award 2012) que Blasim concilia
deveriam estar muito sossegadinhos no plenamente o quotidiano com o fantástico.
Orbit
interior das nossas vísceras. Um dos mo- Em contos como The Hole,e um homem de
mentos mais sublimes é o massacre de Vencedor do Prémio Locus para Melhor
toda a população de Zurique zombificada Bagdade cai num buraco para encontrar
no fundo um djinnn e um soldado morto Romance de Estreia de 2011 e nomea-
pelo amplificador de psicoses. Mas não
se esqueçam que estes zombies não são de uma guerra antiga. Crosswordss conta- do para quase todos os prémios mais re-
mortos-vivos. São pessoas, furiosas, inte- nos a história de um homem que gosta putados do género, o primeiro volume
ligentes e armadas com tudo o que lhes de fazer palavras cruzadas, sobrevivente da trilogia Inheritance mostra um pro-
missor enredo: os cem mil reinos são
governados pelos Arameri e o seu líder
A Bang! recomenda... cem a sua influência nefasta nas crian-
ças… A paranóia vai gradualmente
convoca Yeine Darr, sua neta, à cida- instalando-se, gerando um ambiente
de de Sky para se tornar herdeira. Yeine claustrofóbico pontuado por aparições
desconhece a sociedade de Sky, tendo aterradoras dos fantasmas. A gover-
sempre vivido com a tribo do pai por
quem a mãe, filha do líder, se apaixonou.
A Lenda do Vento nanta está determinada a combater a
corrupção e perversão dos fantasmas,
Quando Yeine compreende que não é Bertrand mas conseguirá a sua sanida-
a única herdeira, mas terá que enfrentar (livro) de sobreviver intacta?
a concorrência de mais dois herdeiros,
apercebe-se de que terá que aprender
rápido a manobrar por entre a corte ou
poderá não sobreviver até à cerimónia da
S tephen King iniciou
a sua série mítica A
Torre Negra nos anos
sucessão, onde um deles será escolhido. 80 com o livro The Guns-
Os mais curiosos elementos neste uni- linger.r Numa realidade
verso criado pela autora N. K. Jemisin paralela conhecida como
são definitivamente os deuses. Entida- “Mundo Médio” (a obra
de Tolkien é assumida-
Fables
des divinas escravizadas pelos Arameri, Vertigo
são seres poderosos que também con- mente uma inspiração),
um homem de nome (BD)
tribuem com uma boa dose de manipu-
lações e intrigas. É só através da magia Roland Deschain par-
escravizada desses deuses que os Arameri
controlam o mundo. Um deus em parti-
te numa demanda em
busca da Torre Negra E se todas as personagens
dos contos de fadas
que conhecemos se tivessem exilado no
cular, o deus de destruição, Nahadoth, e ao longo do percurso encontra mui-
tos amigos e inimigos. De género difícil nosso mundo, obrigadas a fugir da sua
exerce um fascínio intenso sobre Yeine
de caracterizar, A Torre Negra recorre realidade paralela devido a uma conquis-
e ceder à sua sedução é ceder à morte.
a elementos de fantasia, ficção cientí- ta liderada por uma misteriosa entidade
A heroína é uma mudança refrescante
fica, western e horror, tornando-se no conhecida como o Adversário? Face
em relação às dezenas de heróis de fan-
seu conjunto uma obra-prima a uma derrota inglória na sua terra na-
tasia, sejam de origens nobres ou humil-
única no universo de Stephen tal, e forçados a
des. Cativante pela sua força de carácter
King. Com o lançamento do 1º abandonar todas
e espírito independente, Yeine não se
volume agendado para breve, a as suas proprie-
deixa intimidar pelos nobres ou deuses
publicação de A Lenda do Vento, dades e posses,
que a enclausuram em Sky. Jemisin não
que faz parte da série, não deixa as personagens
se inibe de emprestar à narrativa uma
de ser um lançamento imperdível. constroem uma
carga mais romântica e sensual, sendo o
nova comunidade
jogo de gato e rato entre Yeine e os deu-
de nome Fableto-
ses um elemento importante do enredo.
wnn na cidade de
A uma certa altura, o romance torna-se
um pouco detectivesco, centrado nas cir- The Innocents Nova Iorque que
desconhece que as
cunstâncias da morte da mãe de Yeine, e (filme) figuras dos contos
não fosse a química de Yeine com os deu-
de fadas com que
ses, em especial com Nahadoth, o livro
tornar-se-ia facilmente aborrecido. Nas ce-
nas mais românticas, a prosa entrega-se a
B aseado na obra de Henry James, The
Turn of the Screw, esta aclamada e am-
bígua história de fantasmas foi brilhante-
cresceram estão ali mesmo, em carne
e osso, à mão de semear. É esta pre-
missa central que dá o mote à série de
um maior lirismo, mas desilude na descri- mente adaptada para cinema em 1961, BD Fables,s criada por Bill Willingham
ção do mundo; é por vezes linear demais e com realização de Jack Clayton. Deborah e publicada pela Vertigo, actualmente
nota-se uma falta de vontade da autora (ou Kerr é a governanta recrutada por um constituída por 19 volumes. O concei-
preguiça?) em enriquecer o mundo com homem rico para to está muito bem concretizado
mais detalhes. O conhecimento que temos tomar conta da e o ritmo de acção e diálogos
dos cem mil reinos é demasiado superficial educação dos seus são irresistíveis, oferecendo-nos
e apenas serve os propósitos da acção. É o dois sobrinhos, uma Branca de Neve e um Lobo
enredo e interacção entre personagens que numa mansão vi- Mau como nunca antes vistos.
interessam acima de tudo à autora, resul- toriana inglesa.
tando numa obra em que a acção se sucede Cedo a governan-
rapidamente, talvez até de modo abrupto. ta desconfia de
Ainda assim, o final é satisfatório e – novi- que a mansão
dade num livro de fantasia! – encerra o arco está assombrada
da história da protagonista Yeinne Darr. pelos espíritos
/Safaa Dib de dois antigos
criados que exer-

BANG! /// 87
Sugestões Fnac
por Filipe Martins / Vendedor Fnac Colombo

Batalha de David Soares


avid Soares já provou ser um verdadeiro con- ares consegue proporcio-

D tador de histórias. A sua obra reúne livros que


pertencem aos mais variados estilos desde os
álbuns de banda desenhada; o romance (os
seus caracterizam-se por misturarem o históri-
co com o fantástico); passando por um registo mais ensaísti-
co/enciclopédico e culminando na literatura infantil.
Contudo, há uma constante em toda a obra de David Soa-
nar ao leitor um distancia-
mento da razão humana,
introduzindo de seguida
temas religiosos ou fi-
losóficos que permitem
reflectir, acompanhando
o raciocínio (crítico ou
res - o lado negro, sombrio e desconhecido do mundo. Neste construtivo) de um ani-
seu Batalha, o autor apresenta-nos algo peculiar, o ponto de mal, que por norma seria
vista de um animal no que toca à condição humana, à emer- desprovido de tal. E é isto
gência do fenómeno religioso ligado também à questão exis- que torna Batalha um mar-
tencialista, linhas que nos fazem recordar George Orwell e o co da literatura fantástica
seu Triunfo dos Porcos. Portuguesa, pois tomado por um romance igual aos muito
Partindo de uma premissa que roça a fábula, Batalha conta- outros que facilmente se encontram e digerem, revela-se um
nos a história de uma Ratazana (homónima do livro), que verdadeiro exercício de retórica e de Auto-reflexão.
desde a nascença vive no limiar do mundo que a rodeia. David Soares é uma brisa de ar fresco no meio da literatura
Abandonado à nascença pela mãe, Batalha é adoptado por fantástica publicada em Portugal, um escritor que se destaca
uma família de ratos do campo, só para de seguida se ver não apenas pelo seu exímio estilo de escrita mas também pela
de novo sozinho no mundo, abandonado e sem nada que o temática das suas obras, que apesar de inseridas num ambien-
prenda a algo ou alguém. Aí começa a sua verdadeira deman- te esotérico, fazem o leitor pensar; questionar; reflectir sobre
da - encontrar uma razão para Existir. situações reais para todos nós e que estão presentes na vida
Usando um animal como personagem principal, David So- diária de todos os leitores.

Prémios Adamastor do Fantástico


P
ortugal vai voltar a ter quer pessoa poder submeter nomes
os seus próprios pré- à apreciação da organização que
mios que visam dis- averiguará a sua eligibilidade, sendo
tinguir o melhor da as submissões posteriormente dis-
produção nacional do ponibilizadas numa lista online.
género fantástico (Fantasia, Fic- A categoria de Melhor Livro Na-
ção Científica e Horror). A equipa cional não incluirá apenas romances,
Trëma, que lançou o primeiro nú- mas também banda-desenhada ou
mero da revista Trëma no Fórum romance gráfico, e terá uma eligibi-
Fantástico 2012, e tem desenvolvi- lidade de dois anos, tendo em conta
do um conjunto de actividades que o carácter esporádico das publica-
incluem um workshop de escrita ções nacionais desta área. Serão ele-
criativa e um blogue com actuali- gíveis obras publicadas por editoras
zações diárias, será a organizadora tradicionais e edições de autor. Não
dos Prémios Adamastor distribuí- serão elegíveis obras de editoras que
dos pelas seguintes sete categorias: derivem os seus lucros directamente
Melhor Livro Nacional, Melhor Li- do autor e não de vendas ao público.
vro Traduzido, Melhor Ficção Cur- Até que a organização possa as-
ta Nacional, Melhor Audiovisual segurar uma premiação de carácter
Nacional, Melhor Livro Eleito pelo financeiro, esta tomará a forma de
Público, Melhor Livro Eleito pela diploma. A 1.ª cerimónia de entre-
Crítica e Distinção Carreira. ga dos prémios Adamastor terá lu-
Os Prémios serão atribuídos anu- gar na convenção anual do Fórum
almente por um júri convidado pela Fantástico, no mês de Novembro.
organização. A crítica especializada (bloggers ou críticos O regulamento pode ser consultado no blogue da equipa
nacionais) e o público terão também oportunidade de par- Trëma: http://trema-mag.blogspot.pt/
ticipar na votação dos prémios. De destacar o facto de qual-

88 /// BANG!

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