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editora átiea
Caio Porfírio, 1928-
C288s 0 sal da terra: romance / Caio Porfírio
2.ed. Carneiro.- 2. ed.- São Paulo: Ática, 1978.
(Coleção de autores brasileiros; 25)
1. Romance brasileiro 1. Título.

78-1012 CDD-869.935

1ndices para catãlogo sistemático:


1. Romances: Século 20: Literatura brasileira
869.935
2. Século 20: Romances: Literatura brasileira
869.935

1978

todos os direitos reservados


editora ática s.a. / rua barão de iguape, 110
telefone: 278-9322 (50 ramais)/ caixa postal 8656
end. telegráfico: ''bomlivro'' / são paulo.
.--- Nasci em Fortaleza, em julho
de 1928. Pelo lado paterno
descendo de família de
fazendeiro do norte do
Meu avô foi coronel,
uma fazenda muito antiga que
ação a geração na mão
lado materno sou
Castro, ramificação
dos Caminha.· O escritor Adolfo
Caminha era primo legitimo do
meu avó. Fui criado em
Fortaleza e tive uma infância
muito pobre, apesar de meu pai
ter sido um homem rico, mas
uma sucessão de
fez com que ele
deixando minha
dez filhos. Ela sofreu "o pão
que o diabo amassou" para nos
criar. Fiz o primário em colégio
particular, e que minha mãe
nunca pagou, depois fiz o ginásio
e colegial no Liceu do Ceará. Na
juventude comecei a trabalhar,
enquanto fazia um curso na
Faculdade de Filosofia, me
formando em Geografia e
História.
Esta história prsa em Assim, a vrsao de aparente
território virgem na literatura calmaria das salinas do
brasileira. O mundo branco e Nordeste, com as magníficas
desconhecido do sal no pirâmides de sal grosso, vem
Nordeste, visto de dentro para em O Sal da Terra à luz do dia.
fora e devassado com uma E a realidade de um mundo de
autenticidade fotográfica, supera mazelas transhorda na narrativa.
de pronto. as frouxas investidas A salina perde as dimensões de
literárias de que se tem notícia postal turístico e ganha em
na área das salinas c de sua tamanho, força e verdade.
gente. Na verdade, raras e mal lJ ma multidão de párias são os
realizadas. tais tentativas tarefeiros das salinas nordestinas
perderam-se ou pela exageração e suas implicações são a fome,
do pitoresco ou mesmo por a 'cegueira, o calo branco,
não portarem um nível mínimo o maxixe, as brechas de uma
de qualidade. E o tema do polegada na sola dos pés, o
sal estava a pedir um escritor meretrício aos treze anos de
que o incorporasse à literatura. idade, os assassinatos sobre as
cm termos de arte e depoimento. dunas, enfim, a vida e agonia
A experiência do autor. como de um batalhão de descalços
artista e como homem, lhe que vegeta e morre com lentidão
permitiu erguer um livro que naquele mundo de cloreto de
atende a uma característica sódio, cruelmente iluminado
fundamental, velha quanto. no Nordeste de sol.
André Gide e que cm outras Caio Porfírio Carneiro não
palavras, se traduz pela verdade é exatamente um escritor de
de que uma literatura não tramas simples, isento das
se constrói para o simples complexidades psicológicas de
divertimento de uma sociedade seus personagens. É a simplicidade
e, tampouco, para servir ao das gentes das salinas que motiva
pó ela vaidade de seu cultor. a economia de palavras e

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á pegou em ferro-de-cova?

J De quê?
Ferro-de-cova.
- Não, senhor.
O homem encarou-o alguns instantes, mãos nos qua-
dris, blusão de linho, chamou o auxiliar.
A fila estendia-se por dezenas de metros. E toda a
salina era um vasto formigueiro branco. Pirâmides de
sal grosso, sobre os aterros, perfiladas, imponentes corno
estátuas. Sol a despejar sua cegante luminosidade.
O auxiliar aproximou-se, papéis na mão:
Diga.
Este brabo fica também. Leve ele. E meta logo
no serviço.
Submisso, encolhido, o novato tarefeiro continuou
ali parado, indeciso, vai-não-vai, olhar de interrogação.
Vamos, seu brabo! Siga este homem. Ou para
que diabo se meteu na fila?
Desorientou-se, um pé coçou o outro, decidiu-se:
Hem? . . . Pois sim. . . Sim, senhor ...
Saiu no passo mole, alpercatas de rabicho, esforçava-
-se para acompanhar o andar ligeiro do auxiliar.
A salina era um viveiro de homens a subir e descer
pelas longas pranchas estreitas, a transportar cestos trans-
bordantes de sal grosso. Nos baldes, dezenas de mãos,
em ritmo uniforme, cadenciado, batiam os ferros-de-cova
e chibancas nas ramas cristalizadas para espatifá-las. E
os pequeninos estilhaços brilhavam ao sol corno agulhas.
Arreie aí sua carga.
O novato tarefeiro deitou o saco no batente do
paiol, tirou o chapéu e escorreu o suor da testa com
o indicador. Fitou, apertando muito as pálpebras, a pirâ-
mide de sal sobre o aterro.
Não olhe muito pra brancura. Você não está
acostumado.
Dói na vista.
Avisei. De onde veio?
Do sertão. Trabalhava ...
E onde mora?

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Cheguei ontem e vim logo caçar serviço. Minha
mulher e os dois meninos estão debaixo dum cajueiro,
aqui perto.
- Pois procure morada. E não muito longe. O
serviço aqui começa às seis. E em noite de lua o serviço
entra pela madrugada.
Sim, senhor.
Já viu salina?
Vi não. Cheguei do sertão ...
Sei disso. Por hoje guarde os teréns aí no canto
do paiol e tire as alpercatas. Esta salina se chama Mar-
garida.
Como?
Margarida.
Como nome de gente ...
Mas não é gente, é salina.
Sim, senhor.
Tem calção?
Tenho não.
- Precisa. Arregace as calças. Isto. Tire essa
camisa. Ninguém se mete vestido no cloreto. Depressa
que tem mais gente para atender.
Obedeceu nervoso, encabulado, sem jeito. Mundo
estranho aquele em que se metera. Ouvira sempre dizer
que nos períodos de seca as salinas dobravam de pro-
dução, necessitavam de braços e mais braços, que a safra
de sal era muito grande.
Pronto?
Sim, senhor ...
Ficou ali, nu da cintura para cima, calças arrega-
çadas nos joelhos, braços encolhidos, em cruz, esconden-
do pudor.
Não, não. O chapéu é preciso. Bote ele na
cabeça. Ora já se viu ... Você sabe o que é quentura
de sol?
Sei. No sertão . . .
Que nada! Bote o chapéu. E me acompanhe.
Isto aqui é salina, não é sertão.

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Dirigiram-se ao aterro. E do alto do barranco o
auxiliar saltou o grito, mãos em concha cobrindo a boca:
- Éi!
Veio o caraolho, suor a pingar do queixo:
- Sim? ...
Este brabo vai começar hoje. Vem do mato.
Não conhece o serviço, nunca viu o mar. Meta ele nos
cestos.
O novato tarefeiro admirava, de perto, a legião de
homens sobre chibancas e ferros-de-cova, suores a escorrer
coleantes, de costas luzidias, joelhos emergindo da água
choca dos cristalizadores, coalhas de sal verde a se abrir
em gomos.
Meter esse brabo nos cestos?
Bote nos cestos. Tem muito sal para carrear.
E se prepare que vem mais.
O auxiliar retirou-se, papéis agora presos ao sovaco.
O novato tarefeiro acompanhou-o com o olhar, como a
pedir proteção. Aquilo tudo lhe parecia muito confuso:
gente a quebrar sal, a correr no chouto ligeiro sobre os
empranchamentos, conduzindo balaios. Ouvia ordens es-
quisitas: "Limpa os salitros!" "Cuidado com a revên-
cia!" E, queimando como brasa, um sol reverberante, a
doer na vista e nos nervos como mil navalhas.
- Desça aqui. Ligeiro.
O novato tarefeiro desceu o aterro, para dentro da
salina, com cautela, escorregando.
- Cuidado, seu brabo! Você se estrepa nas águas-
-mães.
Viu-se no meio dos homens, sentiu-se um estranho,
um empecilho. Equilibrava-se sobre tábuas, sem habili-
dade. Sentiu o encontrão, desequilibrou-se, por pouco
não cai.
- Olha a frente, brabo! Quer que eu derrame o sal?
O caraolho puxou-o pelo braço:
Aprenda primeiro a andar sobre as pranchas.
Fique aqui. Pronto. Venha agora devagar, na minha
pisada.

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Acompanhou com prudência exagerada, coração
pulsando forte, medo de despencar da prancha e cair num
dos cristalizadores, onde grupos de homens quebravam o
coalho espesso de sal e o recolhiam em pequenas pirâmides.
Isso. Pise firme. A tábua não tem prego.
É quente ...
Acostuma.
Sentiu-se aliviado quando chegaram do outro lado.
Suspirou. O caraolho acompanhou o chamado com gesto
de mão:
- ôi!
E para o novato:
Você vem de onde?
Do sertão ...
Foi a seca?
Foi.
Como é o seu nome?
Nonato. Nonato Aparecido da Silva.
- Solteiro?
- Não, senhor. Deixei a patroa e os meninos ali
perto, debaixo dum cajueiro.
- São pequenos?
A Cristina tem cinco anos e o Leocádio já faz
um mandado. A patroa se chama Maria.
Sorriu murcho, estendeu o braço timidamente:
Vim caçar serviço aqui. . . Disseram que é de
futuro ...
Pois bem. Aqui, na Margarida, ninguém se en-
costa. O serviço é puxado.
- É tudo branco . . . Dói na vista ...
Braços de símio, a coçar as brotoejas, pêlos do peito
branquejando de sal, aproximou-se o baixote:
Diga.
Mais um brado. Tome conta dele. Meta nos
cestos.
Nos balaios? Brabo começa é na chibanca e no
ferro-de-cova.
- Ordem é ordem.
Loucura.

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Examinavam o novato, discutiam, mediam-lhe o
físico, comentavam sua total ignorância do serviço, lem-
bravam desastres passados com outros brabos devido à
teima em jogar-lhes ao ombro, logo no primeiro dia, balaios
pesados de sal.
O novato tarefeiro sentia-se aflito, acusado, recuava,
bambo de corpo, coçava os braços para fazer alguma coisa.
Está bem, está bem, jogo ele nos balaios. Se não
der conta do recado, quem se estrepa não sou eu. Estou
avisando.
O caraolho se foi, o baixote ordenou:
Me siga.
Andavam sobre tábuas. O novato tarefeiro abria os
braços, medo muito, para manter o equilíbrio. Entraram
num dos cristalizadores.
Pode pisar no sal. Ele não morde.
Sentiu a água morna alcançar-lhe os joelhos e grâ-
nulos pontudos machucar a sola dos pés. Pilhas de sal
fresco aguardavam vez de serem carreadas para os bar-
rancos. Descobriu, curioso, que grande número daqueles
homens trazia no ombro um mondrongo enorme, músculo
intumescido como aleijão.
O que viu?
Estava olhando ...
Admirado?
Hem? ...
Aquilo, meu velho, é do pau dos balaios. Com
o tempo você também fica assim. Ponha este jucá no
ombro. Assim não. Assim. Isso. Segure aqui. Não está
habituado a conduzir enxada no ombro? Pois. Mesma
coisa. E tire as mãos dos olhos ...
Dói ...
Acostuma.
Sentiu forte pressão sobre o ombro, dobrou os joelhos,
reuniu forças para equilibrar-se. Homens penduravam, nas
pontas. do pau, balaios cheios de sal.
Agüente firme. Pesa muito?
Por detrás do sorriso murcho procurou negar a força
que fazia:

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Não, senhor.
Pois suba aí na prancha. Pronto. Pode ir.
Despeje tudo lá naquela ruma, no aterro. Aquela terceira,
de lá pra cá. Está vendo?
- Estou.
Vira confusamente várias pilhas brancas ao longe e
homens a conduzir balaios em todas as direções.
Acompanhe a marcha dos outros.
Hem? ...
Acompanhe os outros. E volte logo.
Sim, senhor.
Pode ir. Quem sabe um dia você chegará a mes-
tre ... Vá andando.
Ninguém lhe dava mais atenção. Todos voltados
para seus serviços. Bolas azuladas bailavam-lhe na vista
como lâminas de aço. Com dificuldade, equilibrava-se na
ponta da prancha estreita e bamboleante. Preparou-se
para a caminhada. Era como uma ponte imensa solta no
espaço. Amparou o peso com as duas mãos. Respirava
fundo. A forte luminosidade cegava-o.
No desespero de invocar proteção, apenas viu a mu-
lher com o filho no colo e a filha a correr tangendo
carneiros, um ramo verde na mão, fita presa aos cabelos.
Deu o primeiro passo, iniciando a caminhada.

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Desceu o barranco, sungando o vestido. Mergu-

1 lhou os pés nas águas-mães. Iniciou o passeio de


todas as tardes pelas escoadeiras. O sol de fogo
do poente refletia-se nos cristalizadores, extraía faíscas
coloridas das pilhas de sal. O silêncio sobre a salina era
de grande paz. O velho cata-vento, para os lados do
riacho, no caminho dos mangues, jogava o leme em mo-
roso vaivém. Homens conversavam em grupos junto aos
paióis. Sentados, acocorados, estirados. Desfaziam-se
das canseiras. Por detrás dos casebres, a bola de meia
subia e descia e a gritaria da meninada ganhava as dis-
tâncias.
Cristina Louca chapinhava no seu caminhar, que-
brando o tranqüilo correr das águas-mães. O vento levan-
tava-lhe o vestido, acariciava-lhe as coxas morenas, brin-
cava com a fita em seus cabelos. Nas mãos, o ramo
verde.
Parou para os lados das águas-levadas. Ali ficou
a receber a ventania nos cabelos, o ramo a roçar no rosto
com carícia. Então foi soltando a voz, alteando-a. A
modinha de todos os dias:
" Capineiro de meu pai
não me corte o meu cabelo ... "
Subiu o barranco, barra do vestido molhada, gru-
dando-lhe nas pernas. Rumou para o barbeiro carago, lá
muito longe, além dos cristalizadores, onde almas-de-gato
descaíam em vôos moles e iam se esconder nas copas ver-
des das árvores que margeavam o riacho.
Toda a salina era uma vasta solidão branca, grande
calmaria verde. O vento, soprando do mar, descia das
dunas em lufadas serenas.
Os derradeiros grupos, abandonando suas tarefas,
desciam em fila pelos empranchamentos rumo dos paióis.
Iam engrossar as rodas de bate-papo, disputar jogos de
onça, matar o bicho no Gato Preto.
Anoitecer de verão. No céu, rebanhos e rebanhos de
carneirinhos.
Pilhas, cristalizadores, escoadeiras, aos raios do sol
poente, vibravam em cambiantes multicores.

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E, por detrás da rua de casebres de taipa, a bola de
meia surgia e eclipsava. Uma mulher, barriga de muitos
meses, dirigia-se para lá, o cachorro a lhe atrapalhar as
pernas:
Acaba com esse jogo, Bibio ! Está na hora de
guiar cego Delfino !

A tabuleta pensa do Gato Preto rangia nos velhos


2 gonzos. Zé-Rodrigues, nu da cintura para cima,
banha da barriga a derramar-se para os lados, cor-
ria o balcão de ponta a ponta atendendo a freguesia.
Tarefeiros amontoavam-se, braços estendidos, cabeças a
procurar brechas. Coçavam-se pelas paredes. Nus até à
cintura, umbigo à mostra, calças arregaçadas para além
das canelas, cusparadas sonoras.
Mulher de Zé-Rodrigues ajudava, pesadona, lenta,
banha muita. Corria o pires com tira-gosto de cajarana,
coçava o úbere, chocalhava o molho de contas dos rosá-
rios e saquitéis, soltava longos arrotos.
Imprensado ao canto de balcão, pé escorado à pa-
rede, o tarefeiro coçava os escrotos e falava para quem
quisesse ouvir:
Vou virar toda a noite. Pegar com o nascer da
lua. A tira do meu balde vomita sal que é um estrupício.
Safra mais gorda nunca vi.
Num riso murcho e desdentado, a enrolar o velho
chapéu nas mãos, outro se queixava dos maxixes. Há
dias vinha trabalhando com febre alta. Feridas arreben-
tavam-lhe o pé, subiam pela canela. Tomara penicilina
no Instituto, enfrentando filas, perdendo dias de tarefa.
Veja como está o dedo. Não posso pisar de
jeito. A dor pinica na virilha. E moleza de se acabar ...
Nenhum olhar caiu sobre o pé em exibição.
Outros fregueses chegavam, encontrões na porta com
os que saíam, desculpas camaradas.
A ventania entrava canalizada, redemoinhava sobre
as cabeças. Mas não tangia a catinga enjoenta de suores
salgados. Mulher de Zé-Rodrigues, na pasmaceira da so-

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nolência, limpava nódoas de aguardente espalhadas no
balcão.
- Dona Candoca, vossa senhoria continua engor-
dando que nem uma porca ...
Habituado àquelas liberdades, a resposta de Zé-Ro-
drigues vinha pronta, sem convicção:
- Respeite minha mulher, cachorro.
Garrafa na mão, cabelos do peito branquejando de
sal, tinha ouvidos apenas à freguesia:
Mais uma?
Mãos a derramar gotas de cachaça no cimento em
atenção aos espíritos. Palavrões. Conversaria tumul-
tuada:
Sessenta mil sacas? Bote sal nisso.
Tem troco, sim. Dei cinco mil-réis.
Hoje me estrepei no salitro. Veja a brecha.
Só bebi duas.
Sei lá! Pergunte a ele.
Não, não. Só serve Yolanda.
Quebrar sal com aquele ferro-de-cova é uma
merda, meu irmão.
Do lado de fora, acocorado, enrodilhado, cego Del-
fina esperava. O cacete junto aos pés, fiel como uma
sentinela. Viola do lado, encolhida, silenciosa.
Muito popular e respeitado. Andava de porta em
porta. A todos identificava pela voz. Encarquilhara e
perdera a vista no sal verde das salinas. A boca sempre
cheia de histórias. Contava-as com detalhes e datas. Ta-
refeiros faziam roda, curiosos e mudos. Trazia na ca-
cunda a marca do grande calo, mondrongo disforme,
herança dos muitos anos a carrear sal dos baldes.
Apanhou a viola, limpou-a com o antebraço, acari-
ciou-a. Começou a tirar uma música chorosa das cordas
desafinadas.
Dentro do Gato Preto o tumultuar das conversas e
gargalhadas adquiria proporções de confusão geral.
O tarefeiro vítima de maxixes esqueceu a dor na
virilha e as queixas e apontou para o barreiro carago:

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Vejam lá a Louca. Cantando outra vez para o
vento.
A ventania aumentava. A noite descia. Dunas se
sumiam para os lados do mar. E as ondas pequeninas
dos baldes, marezinhas de cristal, brilhavam e rebrilha-
vam em lusco-fusco manso, pisca-piscando.
Almas-de-gato continuavam em volitações bêbadas
para além do barreiro carago.
O vulto de Cristina Louca era um ponto distante na
amplidão.

Mestre Nonato, escorado ao parapeito da janela,


3 costurava sacos e aguçava o ouvido para acompa-
nhar a voz da filha, vinda de muito longe, trazida
pelo vento. Fechando muito as pálpebras, voltava a vista
rumo ao estirão do barreiro carago.
Não atinava por que Cristina, depois de enfraquecer
o juízo, criara a mania daqueles passeios, ao cair das
tardes, quando os homens suspendiam suas tarefas. Lem-
brava-se apenas que a vira pela primeira vez cantando no
massapê mole do carago, logo após o dia em que menino
Daniel, filho de velho Coriolano, fora ali encontrado
morto. Menino Daniel havia desaparecido e à noite os
homens formaram grupos à luz de candeias amarradas
na cabeça para procurá-lo. A procissão de muitas luzes
iluminava os baldes de pontinhos vermelhos e os gritos
ecoavam pela planície:
"Daniel! Daniel!"
Encontrado ao amanhecer, braços abertos, olhos vi-
drados para o infinito. Ninguém descobriu o motivo real
de sua morte. Falaram em picadas de corais que se enros-
cavam nos mata-pastos da beira do riacho. Velho Corio-
lano correu a salina com o filho nos braços, a mulher
amparada pelas amigas, soluçando meu filho morreu ...
Dias depois, velho Coriolano deu novo rumo à sua vida.
A casa amanheceu fechada. Mulheres fizeram roda diante
da porta. Correu de boca em boca que velho Coriolano
voltara para o sertão.

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A penumbra envolvia a salina. Vermelhidão no
poente. Homens deixavam o Gato Preto em grupos va-
garosos, alguns deles bamboleavam de encachaçados.
Mestre Nonato jogou para o canto o saco que cos-
turava e respondeu ao cumprimento do tarefeiro que
passava:
Olá!
Mulheres da Zona recebiam as primeiras visitas,
abraços escandalosos no meio da rua, pernas entrançadas.
Mestre Nonato debruçou-se à janela. Chegava de
muito longe, na voz diluída:
"Capineiro de meu pai .."
Ouviu perfeitamente a mulher a ralhar com o filho:
Vamos, Bibio! Acaba com esse jogo, menino!
Cego Delfino está esperando!
O menino se chegou, dedo no nariz:
4 Vamos, seu Delfino?
Cego Delfino pendurou a viola no ombro, levan-
tou-se com dificuldade, peso do corpo sobre o cacete,
entortando a cabeça para a porta do Gato Preto fez meia
saudação de despedida, aprumou-se:
Vamos, Bibio.
Pôs a mão no ombro do menino, que o saiu guiando
rumo de casa. Cego Delfino batia o cajado no chão,
prático, para evitar tropeços.
Você demorou hoje, Bibio. Já escureceu?
O j.ogo custou a acabar ...
Quem ganhou?
Meu time perdeu.
Bibio apressava os passos e cego Delfino orientava
o cajado com habilidade para acompanhá-lo.
- Mais devagar, Bibio.
Bibio conduzia cego Delfino para jantar. Cego Del-
fina vivia só, dormia nos fundos do grande paiol de sal.
Caridade de doutor Penaforte. Vão escuro, úmido, pau-
-a-pique. Antes fora reservado para as precisões dos
homens que socavam o sal no grande paiol. Fossa eS-
cura, povoada de moscas e varejeiras. Mais para o canto,

30
monte de palhas secas de coqueiro, cama improvisada
das prostitutas que, sem freguesia na Zona, procuravam
a fedentina do quartinho, altas horas, para safadezas a
qualquer preço. Veio o dia em que tarefeiros abandona-
ram pás e enxadas sobre a montanha de sal granulado
do grande paiol e fizeram fila para os amores com uma
aleijada dos mangues. Seu Honório franziu a testa, sus-
pendeu, dispensou, entupiu a fossa, pôs cadeado no quar-
tinho. E do quartinho, cego Delfino fez sua morada.
Tinha ali sua rede, seus teréns. E quando os tarefeiros
entravam de serviço, noite adentro, virando e revirando
sal, cego Delfina não pregava olho. Apanhava a viola e
tocava músicas tristes.
Fazia refeições em casa de Mestre Nonato, desde
quando este lhe cedera o filho para guia. O que trouxera
de outras salinas, anoitecera e não amanhecera. Socorreu-
-se de Mestre Nonato. Bibio esperneou, estirou beiço,
bateu pé, levou trompaços. Medo do cego, de sua cara
encovada, da barba de fios brancos, do ombro penso e
mondrongoso, da fala trêmula e cansada. Tudo em cego
Delfino lhe apavorava. No primeiro dia de serviço, cho-
rou e tremeu com o contato da mão de unhas grandes
e amarelecidas a fazer-lhe agonia no ombro. Cego Delfi-
no contou-lhe histórias. Já tivera vista. Fora vaqueiro.
Tarefeiro em salinas muitos e muitos anos. Apanhara
maxixes gigantes, pranchas quentes encheram-lhe os pés
de calos brancos. Acordou uma noite com coceira nos
olhos. Ensinaram-lhe muitos remédios. A vista encurtou,
encurtou. Viu-se nulo para o serviço. Agora penava no
mundo. E andaram por muitas ruas areentas, pararam
em inúmeros becos para cego Delfina tocar viola. Bibio
admirava-se de ver como tanta gente dava cédulas e moe-
das. Subiram à cidade. Gente bem vestida parava para
escutar as músicas de cego Delfino. Na caminhada de
volta era muito o seu cansaço. Trazia diante dos olhos
o deslumbramento das ruas iluminadas, dos carros em
disparada. Do apurado, cego Delfina deu-lhe uma por-
ção de níqueis. Sentiu uma sensação nova com todo
aquele dinheiro a tilintar no bolso. Jamais possuíra tanto.

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Junto à lamparina, em casa, exibiu sua fortuna. Mestre
Nonato contou todas as moedas, fez somas com o toco
de lápis, e guardou para si grande número delas. Das que
sobraram, Bibio escolheu a maior e deu para Cristina.
A irmã parou de cantar e guardou-a no seio.
Cego Delfino chegou-se à família, ensinou remédios
para o juízo de Cristina, passou a fazer ali as refeições,
pagando com o apurado. O vão do paiol era para as
dormidas e horas de tranqüilidade.
Bibio puxou o braço de cego Delfino para ele se
curvar. A porta era baixa. Mestre Nonato, nu da cin-
tura para cima, costurava sacos.
Sente-se, Delfino. A Maria está botando a janta.
Lá de dentro chegava zoada de pratos. O caçula
veio engatinhando, abraçou-se às pernas de cego Delfino.
É o Serginho?
Sentou-o no joelho. Dona Maria ralhava com os
filhos na cozinha. Mestre Nonato jogou para o lado o
saco que costurava, olhou pela janela:
A Cristina está demorando. Essa menina é a
minha pena ...
Homens passavam conversando, cumprimentavam.
A lua hoje vai sair bonita, Delfino. Servição
noite adentro. O diabo de uma reverência que não tem
tamanho. Não há jeito de acabar com ela. Este ano
doutor Penaforte tira pra mais de sessenta mil sacas de
sal.
Será? ...
E por baixo. Cinco safras, meu amigo Delfino.
Verãozão louco.
Cego Delfino balançava a cabeça, constante pesta-
nejar, o caçula tentando arrancar-lhe a viola. Vieram lá
de dentro outros meninos. Arrodearam cego Delfino. E
ele procurava guiar a mão para acariciá-los.
Pois é como sempre digo, Delfino. Acabo vol-
tando pro sertão. Burrice ter saído de lá.
Cego Delfino desceu o caçula para o chão e suspen-
deu a carícia, olhos abertos na direção da parede. Mestre
Nonato gritava para fora:

32
- Como vão os maxixes, Benedito?!
Benedito aproximou-se caxingando, escorou-se ao
parapeito da janela. Perna vermelha, inflamada, bordada
de pequenas bolhas. O dedão do pé destacava-se arrebi-
tado, grosso, arroxeado, estriado de brechas, como ata-
cado de lepra.
Andei no Instituto, seu Nonato. Um dia todo
pra falar com o doutor. Ele me deu penicilina. A melho-
ra é quase nada. O dedo lateja que me deixa doido.
Use um bico de chupeta. Protege.
Tentei. Mas não suporto a dor. Assim no livre
a dor é mais calma.
Quando volta ao serviço?
- Sei lá, seu Nonato. Ainda ontem tive febre.
Moleza desgraçada. . . Dei agora uma voltinha lá pelo
Gato Preto pra mexer um pouco o sangue ...
Chico Benedito morava ali parede-meia e por qual-
quer dá cá aquela palha batia na mulher. Tomava suas
doses, tornava-se violento, caía de porre sobre os aterros.
Armava escândalos, provocava meio mundo, levantava
uma perna e exibia o saco às mulheres, que protegiam o
decote dos seios e fugiam para a segurança de suas janelas.
Uma manhã, perseguiu a amásia, penico na mão, braço
estendido como em pontaria. E diante do povo, despe-
jou-lhe tudo sobre a cabeça. A mulher chorava socorrida
pelas amigas e Benedito, encolhendo as pernas, exibia sua
força para se libertar dos muitos braços que o prendiam.
Mas quando não bebia, Benedito era de muita paz e toca-
va violão. Falava sempre que iria de arribada para o
Sul. Qualquer dia, de veneta, meteria pé no mundo.
Vou chegando, seu Nonato. O dedo dói como
os seiscentos diabos.
Mestre Nonato ralhou com os filhos para deixarem
cego Delfino em paz.
- Pois é como sempre lhe digo, amigo Delfino.
A seca me tangeu do sertão. Diziam que corria dinheiro
grosso nas salinas. E só tenho é sofrido. Deixei minha
terra pra viver no desassossego. Comecei na Margarida,
me lembro como se fosse hoje. Lá paguei setenta vezes

34
os meus pecados. Me mandaram fazer serviço de tare-
feiro manso logo no primeiro dia. Ouvi muitos gritos e
quase fui despedido. Caí da prancha carregando balaios
de sal e ainda hoje tenho aqui no braço a marca do ras-
gão. Verti sangue dois dias, e trabalhando. A família
debaixo dum cajueiro. Nestes anos de sal aprendi muito
mas não guardei nada de meu. Cristina ficou aluada.
Perdi o meu menino mais velho. Lá no sertão eu tinha
os meus vinténs. Faz uns pares de anos que subo e desço
pelas salinas. Estou encalhado aqui na São Francisco há
três anos. Na Margarida carreei sal todo um verão. Saí
de lá brigado. Não sou de comer desaforo.
Ouvi dizer que o apontador de lá morreu ...
Levou da breca. Só tinha de gente o corpo. E
este foi esfaqueado. Sofri muito nas suas unhas. Na
Margarida não ponho mais os pés, nem para alcançar a
salvação. Aqui estou mais sossegado. Mas salina não é
lugar pra vivente, Delfino. Quando finda a safra fico aí
feito vigia. Estou decidido, Delfino. Volto pra minha
terra.
Cego Delfino cavoucava o chão batido com o cacete.
Aquela história de Mestre Nonato era de todos os dias.
Desde que o conhecera que Mestre Nonato falava em
voltar à sua terra.
Você vai com a gente, Delfino. Aquilo é terra
farta. Dá de um tudo.
Passava velho Alípio, corcovado, olhos fundos, achi-
nesados, duas postas de sangue. Mestre Nonato debru-
çou-se à janela:
E a vista, seu Alípio?!
Velho Alípio parou para uma prosa. Olhou para
dentro da sala:
É cego Delfino? Boa-noite, Delfino.
E falou da vista, do colírio que lhe dera a vizinha.
Os olhos não mais ardiam tanto. Amanheciam grudados
e ele os lavava com água morna. Esperava voltar ao
serviço em poucos dias. Seu Honório lhe dispensara do
ferro-de-cova, dera-lhe serviço mais fácil: amarrar as tá-
buas dos empranchamentos, substituir as podres.

35
Velho Alípio era homem de saber. Escrevia cartas
à tinta. Lia jornais. Quando acontecia crime ou briga
feia nas salinas, todos corriam à sua casa para ouvir as
notícias que ele lia do jornal em voz alta. Velho Alípio
respondia a todas as perguntas. Falava de outros lugares
do mundo. Apontava para o céu e chamava as estrelas
pelo nome. Afirmava que só doutor de Casa de Saúde
daria jeito em Cristina. Ninguém lhe conhecia o passado.
Faziam conjecturas. Morava com uma filha, na ponta
da rua de casebres, para os lados da Zona, no fim das
escoadeiras. Homem branco, fino. Diziam que matara
a mulher, o crime era o peso de sua vida. Cansava-se
logo no trabalho, não nascera para tarefeiro de salina.
Pois que fique logo bom, seu Alípio.
Obrigado, Mestre.
Voltou a olhar para dentro da sala:
- Boa-noite, Delfino.
Adeus, Alípio.
Saiu de cabeça baixa, arrastando os pés, batendo as
pálpebras, umas compras nas mãos.
Chamavam cego Delfino para jantar. A sala ficou
vazia. Mestre Nonato acendeu o cigarro e escorou-se à
janela. Cantar da filha chegava num fio de voz. Passou
Guedegue e cumprimentou. Mestre Nonato sabia das
histórias que corriam. Tinha dúvidas. Guedegue era
homem de respeito, de pouca prosa e muito trabalho.
Não se meteria com sua filha Cristina. Muitos eram os
fuxicos que corriam a salina. Nem mesmo ele, Mestre,
escapava. Intrigas constantes. Mulheres se atracavam,
homens se esbofeteavam, comuns os crimes na praia ou
sobre o frio das dunas.
Vivia naquele inferno há anos. O sal lhe dera um
lagarto enorme no ombro, maxixes e calos brancos e ra-
chaduras nos pés. Vista curta. Envelhecera e perdera as
forças. No sal, Cristina enfraquecera do juízo. Sob uma
pilha de sacas de sal, o filho mais velho morrera esma-
gado.
A luz surgia bonita, gigante, sanguínea, boiava trê-
mula sobre os cristalizadores.

36
A viração varria a planície e trazia trecho picado
da cantiga:
Capineiro de meu pai ...

O último freguês se retirou.


5 Acendeu então a lamparina de pavio grande, con-
tornou o balcão e encostou a porta, que muita
era a força do vento. A mulher, lá para dentro, mexi_a
em pratos.
Sentou-se à mesinha, no vão pegado à bodega, co-
meçou a trabalhar em suas contas, a lamparina ao lado
soltando fornaceiro rumo às telhas, desenhando sombras
disformes nas paredes.
A dívida de Mestre Nonato ia grande. Perto de dois
contos de réis. Um escândalo de dívida. E todo fim de
mês Mestre Nonato a soltar a mesma desculpa; descon-
fiado, mole nos gestos. Pagava parte da dívida e a sobra
juntava-se a novas dívidas. Falava sempre em dinheiro
que estava para receber, extraordinários de tarefas. "Está
bem, Mestre. Espero." Fiava a poucas pessoas. Só a
tarefeiros mansos de muita confiança. E importâncias
reduzidas. Mas para Mestre Nonato não tinha medidas.
No princípio, chegou a mandar o moleque bater na
porta de Mestre Nonato. Mas desde o dia em que Cristi-
na Louca, manhãzinha, entrou na bodega e ficou a olhar
as muitas coisas espalhadas pelas prateleiras, os seios na-
dando dentro da blusa fina, que seu coração amoleceu e
a atitude para com Mestre Nonato mudou de rumo. "Não
tem dúvida, Mestre. O senhor manda." Mestre Nonato
desculpava-se, malfeito de corpo, falava da vida, que
acabaria largando tudo e voltando para sua terra. "Isto
passa, Mestre. O senhor tem crédito." E carregava nas
contas, exagerava nos preços. Dava agrados aos meninos
de Mestre Nonato. Uma bola para Bibio, fitas coloridas
para os cabelos de Cristina. De seus olhos nunca mais
fugira o quadro daquela manhã. Encostada ao balcão,
olhar irrequieto passeando as prateleiras, peitinhos pon-
tudos soltos na transparência do vestido. Procurou segu-
rar-lhe a mão. Mas Cristina saiu correndo e nunca mais

37
entrou no Gato Preto. Via-a nas manhãs nubladas pas-
sar para o riacho. E às tardinhas, enquanto servia aos ho-
mens que voltavam das tarefas, falando alto, garrafa na
mão, dando ordens à mulher, sua atenção voltava-se toda
para o cantar que o vento trazia.
Examinando as contas, descobria que Mestre Nonato
estava indo longe. Quase dois contos de réis. Nunca
ninguém lhe devera tanto. E toda essa bondade apenas
porque vira, manhãzinha, as formas de Cristina por den-
tro da blusa transparente.
Vira também, certa manhã, menino Daniel, filho de
velho Coriolano, tomando banho junto à cacimba. A
imagem lhe torturou dias, semanas. E tudo se consumou
como num sonho. Menino Daniel, ali encostado à mesi-
nha, de noite, insistindo para que ele lhe vendesse tiras
de borracha para sua baladeira. O gesto rápido abafou-
-lhe o grito. E menino Daniel não resistiu. Alta madru-
gada conduziu-o para longe, jogou-lhe o corpo lá para os
lados do barreiro carago.
Dona Candoca cantarolava no quintal, puxava água.
Conversas de homens vinham da casa do moinho. Logo
mais, passariam as primeiras turmas para as tarefas da
noite. A lufada de vento entrou forte, escancarando a
porta, o lume da lamparina lutou desesperado para não
morrer. Levantou-se para fechá-la. Parou junto ao bal-
cão, olhos abertos, coração estancado. Cristina estava ali,
o ramo murcho nas mãos, desgrenhada, olhar de espanto.
O que é, Cristina? ...
Olhos corriam as prateleiras, buliçosos:
- A minha fita . . . Minha fita ...
Respirava difícil:
- Perdeu sua fita, Cristina? ...
Nervoso, abriu o armarinho, tirou o rolo de fitas de
variadas cores, estendeu:
Escolha, Cristina.. .
Cristina aproximou-se, olhos boiando de satisfação.
Vinha do- quintal o cantar sonoro da mulher.
Deixe que eu prendo seus cabelos, Cristina. Lhe
dou duas fitas bonitas ...

38
Contornou o balcão, as fitas estendidas como uma
isca. Chegou-se muito perto de Cristina, olhos estriados,
trêmulo. Estendeu a mão para alcançar-lhe os cabelos.
Cristina permitiu. Então a mão caminhou para as espá-
duas. E num gesto violento, puxou-a para o abraço. Mas
Cristina deslizou rápida e saiu correndo, para a noite.
Ficou parado, fitas na mão, respirando apressado,
recebendo no peito cabeludo o vento que chegava do mar.

Mestre Nonato ainda fumava, debruçado à janela,


6 cismático. A lua ganhava as alturas, caminho das
estrelas. Da cozinha chegavam pedaços de con-
versas de cego Delfino mais dona Maria. A viração vi-
brava nas frinchas do telhado e as pilhas de sal, enfilei-
radas no barranco, branquejavam ao luar como estátuas
silenciosas. Acordes tristonhos de violão para os lados
do puteiro. Gritos ao longe de menino apanhando.
Mestre Nonato acariciou de leve o calo do ombro.
Mondrongo disforme e duro, produto de anos e anos a
carregar balaios de sal, no chouto ligeiro, equilibrando-se
sobre tábuas quentes das pranchas. Recordou seus pri-
meiros meses de trabalho na salina Margarida. O cara-
olho, bajulador, delator, não-me-toques, baitola nos ges-
tos. Comido de faca. O outro pulha, sempre no blusão
de linho, padecendo agora de eczemas, inchações nas vi-
rilhas, pagando caro.
Grupos passavam conversando sobre o aterro, braços
levantavam para a saudação:
- Boa, Mestre!
Oi!
Cacarejar em galinheiro perto. E os pensamentos
de Mestre Nonato voaram para o sertão. Nunca mais
recebera notícia de sua gente. Lembrava-se das palavras
de negro Valério: "Salina só tem beleza por fora, Nonato.
Come por dentro que nem rato". Os anos se passaram
e só ganhara de seu aquele calo no ombro, marcas muitas
de maxixes nos dedos dos pés, brechas na sola dura, si-
nais de calos brancos, vista mais curta. Perdera o filho
mais velho. Encontrado boca da noite, sob o monte de

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sacas de muitos quilos, luz dos candeeiros caindo de
cheio nos bugalhos do menino, goela escancarada espe-
rando ar. Cristina tresvariando. Bem tinha razão finado
Irineu, suas palavras sempre foram. de muita ciência:
"A maresia é reimosa para a moleira de sua filha, Nona-
to". No sertão tomava doses, no bem-bom, mais com-
padre Valério. Por diversas vezes negro Valério procura-
ra dissuadi-lo: "Tire isto da cabeça, compadre. Salina
tem a cor da morte".
Guedegue passou assoviando.
Já vai, Guedegue?
- Boa-noite, Mestre. Estou limpando os salitros
do meu balde. Tem ventado muito. E o senhor, trabalha
hoje de noite?
- Não consigo acabar com o diabo daquela revên-
cia. Ando desconfiado que a água está passando por
baixo da segunda tira do primeiro balde. Aquilo acaba
estragando o coalho. Vou dar uma espiada mais Zacarias.
- A noite está muito bonita. Doutor Penaforte
andou por aqui?
- Não sei. Seu Honório não falou nada. Ouvi
dizer que doutor Penaforte anda contrariado com o en-
calhe de sal lá no armazém da cidade. A safra este ano
é muito grande. O sal está sem preço.
- Conversa, Mestre. Conheço essa história. Quan-
do findar a safra o senhor vai ver: não fica um grão.
Estão segurando o sal pra melhorar o preço. Procura
não falta. Ouvi um tarefeiro brabo da São Jorge expli-
cando tudo.
Quem é ele?
Nunca vi .antes.
- A São Jorge é a maior salina destas praias. Co-
nheço aquilo. Este ano ela vomita sal pra fazer duna.
- Safrão mesmo, Mestre. Coalhando tudo em me-
nos de um mês. Este ano pode juntar a Margarida, a
Deus-Te-Guarde, aqui a São Francisco, tudo quanto é
salina, que a São Jorge sozinha desova mais.
Eu sei.

41
Guedegue despediu-se e se foi, andar torto, pernas
bambas. Criatura de boa paz. Vivia só, falava sempre
que se metera em salinas desde menino. Para tudo apare-
cia com seu auxílio, sua disposição, sem esperar paga.
Trabalhava como um burro de carga, cumpria tarefas dos
doentes. O sal não corroía Guedegue. Os pés não apre-
sentavam brechas, o calo nunca cresceu no seu ombro.
Gabava-se da boa vista. "Tomo rapé, minha gente. Taba-
co limpa os olhos." Tinha suas esquisitices. Andava so-
zinho altas madrugadas, em passeios longos para os lados
dos cercos. Afirmava que maresia da noite dava muita
sustância. A meninada, porém, desconfiava que Guede-
gue tivesse parte com o diabo. Garantiam que ele se
transformava em lobisomem nas noites de temporal.
Tarefeiros afirmavam que Cristina fora por ele perseguida
inúmeras vezes, por detrás das boas maneiras escondia-se
toda uma malignidade. Mas Mestre Nonato sabia que
a língua do povo, ali na salina, era bastante comprida e
venenosa. Nunca descobrira Guedegue com olhares para
sua filha. Era homem para qualquer chamado. Devia-lhe
muitos favores. Quando as rachaduras do seu pé infla-
maram a ponto de prendê-lo em casa, fora de Guedegue
que se socorrera. "Faço sua tarefa, Mestre."
O vulto abriu a porta e entrou.
Chegando agora, Cristina?
- Pai, perdi minha fita ...
Mestre Nonato não respondeu. Pigarreou, fechou a
janela e gritou pedindo a lamparina.

Cego Delfino encostou-se ao poste, Bibio sentou-


7 -se ao meio-fio, joelhos juntos, canelas abraçadas,
vasilha das esmolas entre os pés.
Aqui está bom, Bibio.
Lugar de muito movimento. Ponto ainda não explo-
rado. Grupos passavam conversando, gente nas calçadas.
Veículos subiam e desciam a rua, chiavam nos catabis.
Bibio olhou o colar de lâmpadas dos postes perfilados.
A gente nunca veio por aqui, hem, seu Delfino?
Nunca.

42
Bibio descobriu, na calçada em frente, um grupo de
meninos. Brincavam de roda. Uma menina entre eles.
Seus sapatos brilhavam de tão envernizados. No meio
deles também um menino na roupa bem passada de mari-
nheiro. Todo de branco. A menina usava tranças, fita
longa a descer dos cabelos. Bem mais bonita que as fitas
de Cristina. Cantavam num alarido de vozes desencon-
tradas:
" Ti-ro-li-ro-lá..."
A viola de cego Delfino foi alteando o som de man-
sinho, como saindo do chão e ganhando o céu, chorosa,
aflita, até alcançar as notas mais agudas. Bibio apanhou
a vasilha, estendeu-a para o povo, mas não percebeu
quando a primeira moeda pingou dentro num claro tinido.
Atenção voltada para os meninos da calçada defronte.
Notou que silenciavam e se voltavam curiosos para ele
e cego Delfino.
Habituara-se à curiosidade do povo. Cego Delfino
chamava a atenção de toda gente quando tocava viola.
Muitas vezes vira-se sufocado em rodas compactas de
curiosos e o braço estendido, segurando a latinha, cansava,
pendia, e a cabeça bambeava de sono. Acordava e voltava
rápido ao aprumo sempre que o pé de cego Delfino o
procurava: "Bibio, onde você está, Bibio?"
Os meninos se aproximaram e Bibio, pela primeira
vez, sentiu sensação esquisita mexer-lhe os nervos. Nas
andanças mais cego Delfino, pelos arrabaldes da cidade,
meninos se aproximavam para ouvir as músicas. Sentia-se
superior. Chegava a se dirigir a um grupo de meninos
de escola, para mostrar toda a sua importância junto a
cego Delfino: "Se ninguém der esmola, pira, vai andan-
do ... " Cego Delfino, por isto, repreendeu-o na volta para
casa.
Sentia agora estranha sensação. Acanhamento cres-
cendo no peito, encolhendo-lhe o corpo. Prendeu a lata de
esmolas no colo, encolheu-se como em defesa. Os me-
ninos se chegavam, silenciosos, o de roupa de marinheiro
de boca aberta para cego Delfino. A menina de tranças

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aproximou-se muito, mãos cruzadas às costas, barra do
vestido quase a lhe tocar o ombro. Sentia-lhe o perfume.
Perfume que era uma agonia. Protegeu-se junto às pernas
de cego Delfina. Passou um homem, parou o assovio.
estendeu uma moeda. Fez que não via. Era a primeira vez
que isto acontecia. O homem jogou a moeda ali na coxia,
junto a seus pés. Prendeu-a, em gesto rápido, debaixo do
calcanhar. Levantou os olhos para a menina de tranças.
Ela não observava, vista levantada para cego Delfina.
Então apanhou a moeda. Nunca vira menina tão bonita.
E ela estava ali pertinho, barra do vestido quase lhe
alcançando o rosto. Por isto o coração acelerava, procu-
rava se sumir entre as pernas de cego Delfina.
Os meninos debandaram em carreira e cego Delfino
suspendeu a música. Viu perfeitamente as tranças voando
ao vento. Levantou os olhos e descobriu o homem de
farda perfilado diante de cego Delfino.
O senhor não pode tocar aqui. Procure outro
lugar.
Cego Delfina dava explicações, viola na mão, cacete
entre as pernas, procurava dirigir a vista sem luz para o
homem fardado.
É proibido. Já avisei. E leve o garoto.
Pois vamos, Bibio.
Preparou-se para conduzir cego Delfina, vasilha de
esmolas abraçada ao peito, olhos correndo do homem
fardado para a menina de tranças, agora novamente brin-
cando na calçada em frente. Da ponta da esquina ainda
se virou. As tranças voavam e a fita brilhava sob a luz
que vinha da casa de janelas abertas para a rua.
- Vamos voltar para o nosso ponto, Bibio. Lá
ninguém nos incomoda.
E, na ponta de rua, perto do bar onde homens todas
as noites bebiam e se abraçavam a mulheres desgrenhadas,
cego Delfina tirou músicas bonitas de sua viola. Vieram
os meninos de sempre. E muita gente passou e deu
esmolas. Um bêbado estendeu uma cédula. Mas Bibio
não contava, como das vezes anteriores, as moedas que

44
caíam na lata. Nem se importava que a meninada se
chegasse muito perto, deixando-o quase sem espaço para
respirar. Diante dos olhos, as tranças voaram ao vento
e sentia, como numa presença física, o vestido acariciar-lhe
o ombro. Guiara cego Delfino por inúmeros pontos da
cidade, encontrara muitas meninas em ruas iluminadas,
nenhuma porém mais bela que a de tranças. Via-se na
sua roupa nova, que dona Ernestina estava costurando,
de bolsos nas calças e mangas compridas. A menina de
tranças surgia-lhe ao lado, encantada com sua importância
e valentia, e ele a dar sopapos no menino de roupa de
marinheiro, a exibir sua força. Segurou-a pela mão, mos-
trou-lhe a salina, levou-a para o alto do aterro e levantou o
braço numa saudação larga aos homens que trabalhavam
nos baldes, para mostrar sua popularidade ...
Bibio! Vamos, Bibio. Está tarde. Quanto foi o
apurado?
- Contei não ...
Está sentindo alguma coisa?
Nada não.
Aí tão calado ...
Era tarde e as casas fechavam suas janelas. O povo
rareava na rua. No bar, a conversa morria. Poucas
gargalhadas perdidas de fim de noite.
- Conta logo o dinheiro, Bibio, e vamos embora.
O apurado foi fraco?
Bibio jogou as moedas na calçada e foi juntando-as
dentro da lata, separando as cédulas.
Vinte e três e duzentos ...
Tire sua parte e vambora. O vento está forte.
Não demora a chover. Seu pai me falou que manhã
cedo precisa de você.
Na caminhada de volta, pelo arrabalde escuro, só
o cacete de cego Delfino dava sinal de vida.
Seu Delfino . . .
O que é?
A gente podia ir de novo lá naquela esquina, na
cidade.

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- O guarda proibiu.
A voz saiu resignada:
- Foi.
E até à salina não puxaram mais conversa.
Chegaram já noite alta. Turmas de tarefeiros, que
aproveitaram a claridade da lua para extraordinários de
tarefas, voltavam para suas casas, ferro-de-cova ao ombro.
Sobre os aterros, perfiladas e mudas, altas pirâmides de
sal grosso branquejavam ao luar.
Chegamos, seu Delfino.
Estavam próximos ao Gato Preto.
- Daqui posso ir só, Bibio. Até amanhã. Vá para
casa. Deus te abençoe.
Bibio andou alguns passos.
- Seu Delfino ...
Cego Delfino parou.
Que é, Bibio?
Lá na cidade, naquela esquina ...
O quê?
Nada.
Saiu chutando grânulos de sal grosso. Brilhavam
como cacos de vidro. O vento lufava forte e trazia do
puteiro gargalhadas de mulheres no porre.
Sentou-se sobre o aterro. As estrelas refletiam-se no
sal coalhado dos cristalizadores. Grupos de tarefeiros pas-
savam conversando. Um deles gritou:
Vai dormir, garoto! Aí fazendo o quê? ...
Uma grande paz branca envolvia a salina. As águas
claras das escoadeiras corriam em filetes como compridas
tranças.
Nelas Bibio pôs os olhos. E ficou olhando ...

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Chuvas caíram, em pancadas fortes, de amojadas

1 nuvens chegadas do mar.


Cajueiros floridos estendiam os galhos nodosos
para a amplidão, acumulavam forças para a grande safra
de frutos. O riacho engordou, engordou, transbordou
bonito pela planície de barro carago, lâmina alagadiça e
viscosa, onde a meninada ia em bandos esculpir calungos
gigantes.
Brabos sem tarefas subiam à cidade, à caça de serviço.
Mansos, com poucos quefazeres, espichavam-se em bate-
-papos no Gato Preto, jogavam onça no batente do grande
paiol, acocoravam-se pelos cantos, metiam-se em cacha-
çadas na Zona, espancavam mulheres. Os mais velhos,
antigos de mil safras, charqueados de muito cloreto, dei-
xavam-se ficar às janelas, espiando o tempo, sem pensar
nada e sem salários, coçando o queixo.
Pilhas de sal grosso despiam-se das crostas mondron-
gosas, poliam-se, niquelavam-se com os filetes d'água que
choravam, persistentes, dos cumes para as bases. Dois-três
homens aproveitavam o tempo para reforçar emprancha-
mentos com tábuas e arames novos. Desentulhavam
escoadeiras, desnatavam as bordas dos baldes dos salitros
impertinentes, ajeitavam o caminho para entrada dos ca-
minhões aos paióis, forravam o chão de barro escuro,
salitrado, pegajoso- o carago- que depois ao sol adqui-
riria dureza de pedra. Trabalhavam sem esperar paga,
curtindo fome, alimentando esperanças de serem vistos
com bons olhos e melhor aproveitados quando o sol vol-
tasse a brilhar.
Paióis gordos de sal, retelhados e empalhados contra
as águas, estufados, hibernando.
O moinho a pipocar gasguito, a moer dia e noite sal
grosso com ingredientes químicos para a apuração do
sal refinado, que homens experientes dosavam com ha-
bilidade.
Mulheres nas sacarias, costurando com agulhas enor-
mes, a trocar fuxicos e borrar o barro vermelho do chão
de grandes cusparadas.

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A safra ia a meio. Sabiam todos que aquelas chuvas
loucas tinham vida curta e o sol voltaria a brilhar com
a mesma intensidade e beleza. As águas levadas tornariam
à densidade de vinte e cinco graus beaumé, alimentariam
os chocadores. E elas chocariam o sal verde e voltariam
desovadas para o mar pelos caminhos das escoadeiras.
Chuvas de verão. Malucas chuvas despencadas sem
aviso. Não chegariam a amolentar o coração dos homens.
Desapareceriam sem rastros e a salina voltaria a parir tiras
e tiras de sal. Ferros-de-cova e chibancas transformariam
placas cristalinas de coalho em muitas pequenas pirâmides.
O tempo seria curto para mansos e brabos transportarem
tanto sal para o moinho. A planície de barro carago seca-
ria e voltaria a ser a avenida de Cristina Louca. Às tardi-
nhas, Mestre Nonato falaria a cego Delfino de seu sertão
e cumprimentaria tarefeiros que passassem à sua janela.
Dos cajueiros caíam frutos maduros. O céu abriu
muito azul. O sol espetava suas agulhas cegantes nas
pirâmides de neve. Água dos baldes volatilizava-se para
a saturação do sal.
A salina voltou a ser o formigueiro branco. Tarefei-
ros subiam e desciam pelos empranchamentos, a carregar
cestos e empurrar carros-de-mão. Filas de homens chega-
vam do sertão, com as filharadas e trastes, embiocavam-se
ao longo da nesga de sombra do grande paiol.
O cata-vento, paciente, jogava o leme em vaivém de
ferros velhos, no trabalho asmático e contínuo de bombear
água do mar para alimentar os chocadores.
E quando o sol descambava e o horizonte embele-
zava-se de nuvens vermelhas, Cristina descia o barranco,
banhava os pés nas águas-mães, saía a passeio, ramo nas
mãos, fita nos cabelos, cantava para o vento que lufava
das dunas.
E os homens que bebiam e falavam de suas vidas,
indiferentes à corrosão do cloreto, comidos de mazelas,
ficavam sentimentais.

50
2
Velho Alípio aproximou-se de cabeça baixa, arras-
tando os pés. Mestre Nonato, à janela, esperava
o cair da noite.
É o Alípio?
Boa-noite, Mestre.
Velho Alípio parecia mais envelhecido. Macerado,
barba de muitos dias, olhos inflamados, vermelhos, estria-
dos. Um de seus primeiros passeios de convalescente.
Piorara da vista, abandonara inclusive os serviços leves
que seu Honório lhe entregara. Um médico da Saúde
Pública, que aparecera para inspeção rápida nas raparigas
da Zona, fizera a caridade de examiná-lo. O povo se
reuniu curioso à janela de velho Alípio, cabeças empinadas,
olhos no médico, sentado na sala, a examinar-lhe a vista.
Há dias velho Alípio não se levantava da rede. A filha
respondia ao médico, esquiva, espantada, segurando o
punho da rede como em defesa, um pé escondendo o outro.
O doutor, rugas na testa, rodava a caneta nos dedos finos.
Ouviu tudo sem comentários. Examinou atento a vista
de velho Alípio, balançou a cabeça, acabou por ordenar
que o velho Alípio se afastasse da salina, procurasse espe-
cialista. Abriu a pasta, tirou um bloco de papel, escreveu
uma receita. E, na saída, o povo em debandada para
deixá-lo passar, foi preciso: "Saia daqui o mais breve
possível, senão o senhor cega".
À noite, muitos tarefeiros, inclusive Mestre Nonato,
foram visitá-lo. Fizeram cota para comprar o remédio
que o médico receitara. Velho Alípio avisou que se deci-
dira ir para a casa de um parente, na cidade. Para sua
terra jamais voltaria. "Lá não boto mais os pés. Sou
homem de vergonha." Julgava-se liquidado, temia passar
o fim de seus dias vivendo da caridade alheia, ele que nunca
carecera de esmolas. "Só me preocupo em deixar esta
menina sozinha no mundo." Sugeriram-lhe que procurasse
o Instituto. Respondeu com seu silêncio, embalando a
rede de leve, empurrando o pé na parede. Minutos depois
soltou baixinho, como para si: "Instituto ... "
Saíram comentando o mistério do passado de velho
Alípio, o que teria acontecido para que falasse tão mal de

51
sua terra. Recordaram a história antiga, surgida ninguém
sabia como: Velho Alípio matara a mulher, arrastava o
crime como um pesadelo. Chico Benedito garantia que
tinha sido com o auxílio da própria filha. Estavam ali na
salina fugindo. Guedegue contestou com muito respeito:
"Olha essa boca, Benedito. Tu assistiu, pra andr dizendo
uma coisa dessa?"
Os dias correram com suas chuvas loucas e velho
Alípio voltou a ser visto à janela, melhorando. Fazia pe-
quenos passeios às tardinhas, parava no Gato Preto, esco-
rava-se às janelas dos conhecidos para uma prosa.
Quer dizer que você deixa a gente, amigo Alípio?
Depois de amanhã arribo, Mestre. Acertei minha
conta com seu Honório. Fico só com uma obrigação com
Zé-Rodrigues. Pedi pra ele ter paciência. Não vou fugido.
Não é dívida muita.
Fica mesmo na cidade?
Tenho lá um parente. Me arranjou um cantinho.
Estou no fim, Mestre. É como Deus for servido ...
- E da vista?
Arde que é um nunca acabar de sofrer. Mas
graças a Deus passou a dor de cabeça. E já não choro
muito com a claridade do sol. O doutor falou pra eu usar
óculos escuros. A brancura é venenosa.
Tarefeiros passavam em grupos. Soltavam o boa-noite,
em saudação larga. Vinham do Gato Preto, iam para o
puteiro. Meninos chegavam do futebol. Discutiam, tro-
cavam tapas.
Mestre Nonato interrompeu a conversa com velho
Alípio para dar a ordem:
Vai te assear, Bibio. Cego Delfino está espe-
rando. Tua mãe todos os dias reclama esse atraso. . . Te
avexa!
Velho Alípio limpava os olhos com o lenço encardido.
Pois seu Alípio, eu também deixo isto. Vivo fa-
lando pra Maria. Estou resolvido. Só espero o fim da
safra.
- E como vai dona Maria rompendo o resguardo?

52
Sente umas tonturas, mas consegue andar segu-
rando na parede. A diarréia do cabrito é que não estanca.
Velha Anfrosina andou vendo ele e disse que não é de
perigo. Chora a noite toda. Acorda todo o mundo e até
Cristina pega a cantar ...
E voltou ao assunto:
- Pois desta vez largo isto, meu patrão. Não boto
mais os pés em salina. Ando bem aprendido. Volto pra
minha terra. Só espero o fim do verão. Lá eu tinha alguns
vinténs. E aqui no sal muito tenho é padecido. Perdi o
meu mais velho, a Cristina é minha cruz . . . O que ganhei,
seu Alípio? Estou resolvido, meu amigo.
Virou a cabeça para dentro da sala, ralhou com um
dos pequenos. E voltou às suas queixas, à conversa repi-
sada:
-- No sertão eu tinha meu povo. E aqui, Alípio?
Velho Alípio desviou a conversa:
Ouvi seu Honório dizer que doutor Penaforte
enjeitou cinco mil contos pela salina. Me parece muito
dinheiro.
Pra mim e pra você, que nunca vimos tanto.
Cinco mil contos o mar desova de cloreto para doutor
Penaforte numa safra gorda.
Pois seu Honório falou que doutor Penaforte
quase fecha negócio.
Então bote dinheiro nisso.
Mestre Nonato suspirou:
E quanto seu Honório lhe pagou de saldo, Alípio?
Menos de um conto. Descontou todos os dias em
que a salina ficou parada com as chuvas loucas. E também
uns bicos que eu devia. Minha certeza era que ele devia
me pagar mais, conforme o combinado. Não trabalho de
empreita. E pra tarefeiro sem empreita, a diária o senhor
sabe, Mestre, é cento e vinte cruzeiros. Descontou tam-
bém uns impostos e umas importâncias pro Instituto. Ga-
rantiu que era de lei. Eu não quis discutir, Mestre, mas
acho que as contas de seu Honório não estão certas. Havia
atrapalhação também nos apontamentos. Deve ter sido

53
engano. Não sou de crença que seu Honório seja homem
de engodo.
- Disso não digo nada. Também guardo as minhas
queixas. Largue isto, amigo Alípio. Eu não demoro. Só
espero o fim do verão. Preciso pagar uns bicos, liquidar
minha continha com Zé-Rodrigues, que já vai grande ...
Escurecia. O vento que descia das dunas trazia tre-
chos do cantar de Cristina Louca. Ela era um pontinho
escuro lá muito longe.
A voz da mulher veio do quarto, chamando o marido.
- Com sua licença, amigo Alípio. Vou ver o que
a Maria quer. Volto logo. O resguardo deixou a patroa
nervosa.
- Vou chegando, Mestre. Desculpe o incômodo.
Diga a dona Maria que eu passo aqui amanhã para as
despedidas.
Mestre Nonato ainda gritou do quarto:
- Pois volto pra minha terra, Alípio! Largo isto
aqui e só vejo sal em comida!
Velho Alípio saiu de cabeça baixa, protegendo os
olhos com o lenço, saudando a todos. Na Zona, as mu-
lheres penteavam-se às janelas, acendiam as muitas lam-
parinas para as farras da noite.
Mestre Nonato ouviu a porta da rua se abrir e bati-
das peló cacete no chão.
- Boa-noite para todos!
- Boa-noite, Delfino!

Manhãzinha cedo.
3 Mestre Nonato lavava o rosto no quintal, nu da
cintura para cima, pernas abertas, vasilha na mão.
O tarefeiro passou correndo do outro lado da cerca:
- Uma confusão dos diabos no Gato Preto, Mestre.
Mestre Nonato atravessou a casa em poucas passa-
das, ganhou a rua, rosto pingando. O mulherio apreciava
de longe. Junto ao Gato Preto, bloco compacto de tare-
feiros. Marchou para lá. Abriu brecha com os braços,
arredou a miuçalha:
- O que foi? Que frege é este?

54
Guedegue babava-se de raiva, agarrado por muitas
mãos. Zé-Rodrigues fazia comício na porta de sua venda,
a mulher abraçava-o pela cintura, "pelo amor de Deus,
meu filho, deixe de escândalo".
Mestre Nonato procurava inteirar-se do acontecido,
conhecer os detalhes.
- Foi no acerto de contas, Mestre. Quase se pegam.
Mestre Nonato girou no meio da roda. Sabia ser
de respeito. Apartara muitas brigas. Abriu os braços
para o povo:
- O que foi, minha gente? ... Calma.
Guedegue respirava difícil:
- Esse porqueira, Mestre, furta até de Jesus Cristo.
Zé-Rodrigues avançou:
- Dobre a língua, cachorro!
Com repelões procurava livrar-se dos braços de
dona Candoca:
Me larga, mulher!
Guedegue dava explicações a Mestre Nonato. E o
Mestre, braços estendidos como para voar:
- Vamos com calma, meus amigos.
Guedegue, agora livre, passeava nervoso no círculo
fechado, puxava o cós das calças com repelões violentos.
Tarefeiros, escorados em seus ferros-de-cova e picaretas,
a coçar bolhas e brotoejas, apreciavam em silêncio, curio-
sos. Dona Candoca procurava levar o marido para dentro
da bodega:
- Não faça escândalo, meu bem.
- Me solta, mulher! Só arredo quando esse peste
se sumir da minha frente.
A resposta veio rápida:
- É a mãe. Peste é a mãe.
Zé-Rodrigues livrou-se da mulher com um coice vio-
lento, marchou decidido para Guedegue, olhar injetado,
não respeitou o braço estendido de Mestre Nonato. Gue-
degue, ágil, armou-se de uma picareta. Zé-Rodrigues es-
tacou, trêmulo, bufando, na defensiva, rilhando os dentes:
- Cuide da menina Cristina, Mestre. Tem urubu
arrastando asa perto dela dia e noite ...

55
Como um raio que caísse, Mestre Nonato sentiu-se
suspenso no ar, braços caíram num abandono. Como
uma bala, Guedegue partiu para Zé-Rodrigues: a picareta
foi de encontro à parede. Choveu gente para dominá-lo.
Viu-se entulhado por muitos corpos. E babando, olhos
esbugalhados, no desvario do ódio:
Mato ele. Mato ele. Juro que mato.
Arrastaram-no para longe dali. Zé-Rodrigues entrou
na bodega, desabafado, sapecou murro sonoro no balcão:
- Cobro direito! Só compra aqui quem quer. E
ele não bota mais os pés na minha loja. Tenho lá medo
dessa bostinha de gente ...
Mestre Nonato, no mesmo lugar, sem ação, um frio
mortal a lhe gelar a espinha. Guedegue gritava ao longe,
levado pelo grupo de tarefeiros:
Mato ele! Liquido com ele!
O povo debandava, cochichos muitos, olhares esqui-
vos para Mestre Nonato.
Chegou seu Honório nos largos suspensórios:
O que aconteceu, Mestre?
Não respondeu. Virou-lhe as costas, saiu rumo de
casa, um vácuo dando-lhe tonteiras, não pensava nada,
olhos no chão. Aproximou-se Chico Benedito, puxou
conversa, tímido, solidário:
Este povo briga por nada, Mestre ...
Acompanhou-o até à porta de casa, falando sempre.
Mestre Nonato não dava pela presença do amigo, não
ouvia os cumprimentos que vinham de longe, "bom-dia,
Mestre!"
Entrou em casa, parou no meio da sala, olhar fixo
na parede. Meninos brigavam no quintal. A voz da mu-
lher no quarto:
- Já vai pro serviço, Nonato?
Arriou-se no tamborete. Sentia ligeiro tremor nas
mãos, batidas no coração mais rápidas. Limpou o suor
da testa com as costas das mãos. Nunca passara, em toda
sua vida, por vergonha maior, nem mesmo quando, tare-
feiro brabo, ouvira gritos na presença de todos na salina
Margarida. De há muito corria essa história de boca em

56
boca, mas nunca dera crédito. Guedegue sempre fora de
muita bondade e o povo não passava sem fuxicas mali-
ciosos. Agora o fuxico se transformava em escândalo,
toda a salina comentaria as palavras de Zé-Rodrigues. E
teria de enfrentar aquela gente, os olhos enviesados dos
companheiros. E como voltaria a encarar Guedegue?
Que resolução tomaria? Não teria coragem de chamar
Guedegue para uma explicação. Devia a ele muitos fa-
vores. Quando os maxixes apareciam e as rachaduras
dos pés inflamavam, era de Guedegue que se socorria.
Nunca dera ouvidos à língua comprida do povo. Mas
bem que Guedegue gostava de passeios para os lados do
riacho, manhãzinhas, quando Cristina ia aos banhos.
Vira-o uma ocasião dirigir-se ao barreiro carago, boca da
noite. Quem sabe a voz do povo escondia a verdade . . .
Guedegue tinha atitudes esquisitas. Inúmeras vezes fora
visto, alta madrugada, passeando pelas dunas. Zé-Rodri-
gues apenas falara alto o que todo mundo comentava
baixo. Lembrava-se agora que, no aniversário de Cris-
tina, fora Guedegue o primeiro a chegar, um corte de
chita debaixo do braço. Ouvira mais de uma ocasião seu
Honório comentar: "Guedegue não é gente. Pedaço de
bicho doido". Necessário tirar a prova, enfrentar a situa-
ção, observar os movimentos de Guedegue. Aquele jeito
alegre, andar bambo de jangadeiro, olhinhos espremidos,
não seriam de gente séria. Tiraria a prova e então Guede-
gue pagaria caro, tomaria uma resolução, talvez o ma-
tasse.
Mestre Nonato sentia, porém, apenas nostalgia e
abandono, leveza e cansaço, desejo de ficar ali sentado,
olhando o reboco da parede.
Ainda aí, Mestre?
Virou-se para a voz que vinha da janela.
- É você, Benedito? ...
Seu Honório mandou lhe chamar. A turma já
pegou no banzeiro.
Volto já, Benedito. Vou beber um café.
Depois saíram pelo barranco, rumo dos baldes.
Tarefeiros formigavam no vuco-vuco de suas tarefas.

57
Ninguém nas portas das casas. No Gato Preto, ainda
alguns curiosos.
- Mestre, qualquer dia largo isto. Vou de batida
pro Sul. Arribo e não deixo rastro. Largo até a mulher.
Isto é uma porqueira de vida, meu chefe ...
Mestre Nonato, cabeça baixa, caminhava devagar.
Benedito bateu-lhe no ombro:
Se importe não, Mestre. Seu Zé-Rodrigues man-
dou pedir desculpa.
- Hem?
Baixou de novo a cabeça, olhos no chão, pensando
em nada.

Bibio empurrou a porta do quartinho e entrou.


4 Encontrou cego Delfino deitado. Do grande paiol
chegavam surdas pancadas e vozes de homens:
"Despeja a porra do sal!" "Vai trazendo devagar, de-
vagar ... "
Ainda deitado, seu Delfino?
Cego Delfino levantava-se cedinho. Quando os ho-
mens entravam no grande paiol para as tarefas da manhã,
ele já lavara o rosto, enrolara a rede, e ficava quieto no
tamborete, do lado de fora, esperando Bibio para levá-lo
ao café.
- Dormindo ainda, seu Delfino?
Olhou para dentro da rede e recuou de espanto. Cego
Delfino, boca aberta, olhava para as telhas, braço pendido
para fora da rede, mão crispada segurando o cacete.
Bibio encostou-se duro à parede, entalado, bugalhos em
cima de cego Delfino, ali impassível, sem pestanejar, den-
tes à mostra, ponta da língua aparecendo, fio de baba a
correr. Desabalou na carreira, porta afora, peitou no ta-
refeiro que passava.
- Está cego, menino?
Apontava, recuava e apontava:
- Seu Delfino . . . Seu Delfino ...
O tarefeiro olhou-o intrigado, entrou no quartinho.
Bibio ficou esperando, passadas lentas para trás, em de-

58
fesa, dedo na boca, medo e espanto. O tarefeiro voltou
e soltou o berro:
Chega, gente! Cego Delfino morreu!
Bibio disparou na carreira rumo de casa. Tarefeiros
que passavam para os lados dos aterros aproximaram-se
no chouto ligeiro.
Em poucos minutos, magote de gente entulhava a
porta do quartinho. Os homens que socavam sal no gran-
de paiol perguntaram de lá: "Que esculhambação é essa?",
suspenderam o serviço e vieram correndo. Outros saí-
ram do Gato Preto trazendo copinhos de cachaça na mão.
Mulheres apareceram na rua, faziam pala sobre os olhos,
perguntavam-se o que havia acontecido. E raparigas, aos
bandos. A meninada abandonou a bola no campo de
futebol, misturou entre os grandes, curiosa, cabeças para
cima. A notícia corria rápida toda a salina. Tarefeiros
abandonavam os baldes. Romaria de gente muita, de
todas as direções. Obstruíam a porta, espraiavam-se como
em comício.
Chegou Mestre Nonato, nervoso, espantado, abriu
brecha entre o povo:
- Com licença. . . Com licença. . . Está morto
mesmo?
Aproximou-se da rede, balançou o punho:
- Delfino ...
Está morto, Mestre. Falá o quê!
Mestre Nonato, palidez transparecendo no rosto mo-
reno, circulou a vista pelos presentes. Uma mulher em-
purrou-o com os cotovelos. Trazia uma vela.
Na parede, um Coração de Jesus, desbotado, roído
de traças e comido pela maresia, sem- moldura, assistia
toda a cena. Mestre Nonato, sem ação, cruzava e des-
cruzava os braços, metia as mãos nos bolsos. A mulher
no trabalho paciente de colocar a vela nas mãos do morto.
- Quem tem fósforos?
Uma voz veio tímida:
Carece não, dona. Ele morreu dormindo. Nem
segura a vela.

59
Uma mão, porém, estendeu a caixa de fósforos e a
vela foi acesa. Ajoelhada, a mulher auxiliava cego Del-
tino a segurá-la. E ele parecia mais imponente, ali dei-
tado, vidrando as telhas, ausente.
Alguém cochichou:
--- Fecha os olhos dele. . . para a alma se acalmar.
A mão caiu no ombro de Mestre Nonato:
- Ele era um homem bom, Mestre. Meus pêsames.
Obrigado, Benedito.
A mulher puxava a ladainha. Cochichos. Conver-
saria tumultuada lá fora. Outra mulher pedia passagem.
Estendeu um lençol branco sobre o morto. Um tarefeiro
lembrou:
- Vou chamar padre Orlando e avisar seu Honório.
E gente chegando. Mestre Nonato retirou-se do
quartinho:
- Vou levar ele lá pra casa, providenciar o enterro.
Chegava seu Honório:
Como foi isso? Morreu ou foi ataque?
Zé-Rodrigues fumava charuto, nu da cintura para
cima. Mestre Nonato dirigiu-se para casa. Ia cuidar da
arrumação da sala para receber cego Delfina. Entrou e
foi gritando:
Morreu mesmo, Maria! Precisamos arrumar a
casa. Vão trazer o corpo para cá. Cadê Bibio?
Bibio fugira para o fundo do quintal. Escondera-se
no canto de cerca. Procurava fugir, não enfrentar a mor-
te de cego Delfina. Ali, junto ao poleiro das galinhas,
encolhido, estava bem longe dos olhos de cego Delfina.
Abertos, grandes, encarando as telhas. Lembrava-se da
morte do irmão mais velho, dormindo no caixão azul, na
sala, o corpo moído pelo peso de muitas sacas de sal. O
rosto pálido, tranqüilo, como se dormisse, o vento acari-
ciando-lhe os cabelos. Vira-o de perto e tivera quase a
certeza de que se o chamasse para brincar ele se levan-
taria, acordaria de seu sono. Então a morte sempre lhe
parecera assim calma e serena, como um sono bom.
Quando ouvia falar - que alguém fora encontrado morto,

61
lá para os lados das dunas, onde os crimes se sucediam,
era do irmão que se lembrava. Uma manhã, da janela,
vira dois tarefeiros conduzindo uma rede, o sangue gote-
jando na areia. Mestre Nonato discutia do lado de fora,
falava que o morto fora encontrado à beira do riacho,
onde se formavam as grandes marés, mutilado com muitas
facadas, o rosto retalhado de cortes. Não acreditou. O
morto teria o rosto tranqüilo, como se dormisse numa
grande paz, o vento acariciaria seus cabelos.
Cego Delfina mostrara-lhe agora outra dimensão da
morte. O braço estendido para fora da rede, segurando
o cacete, escangotado, olhos sem luz, vidrados nas telhas.
Nunca que o chamassem para ver outra vez cego Delfina.
Bibio!
Não respondeu. Encolheu-se, apertou os joelhos
com os braços.
O que está fazendo aí?
Quis falar. Apenas moveu os lábios.
- Saia daí.
Levantou-se devagar.
Eu não quero ver ele não, pai ...
Saia desse monturo.
Não quero ver mais ele ...
Então vá pro quarto. Fique lá.
No quarto, embiocou-se na rede, trêmulo, lençol co-
brindo os olhos. O irmão mais novo esperneava na rede
ao lado. Ouvia o zunzum de vozes na sala e corredor.
Homens falavam alto. O pai dava ordens.
- Mamãe!
A casa estaria cheia de estranhos, que muitas eram
as conversas. O irmão choramingava ao lado.
- Mamãe!
Dona Maria abriu a banda de porta:
O que é, Bibio?
- Ele já chegou, mãe?. . . Não quero ver ele não.
- Deixe de besteira. Fique aí quieto.
Enrodilhou-se como um caracol, lençol cobrindo a
cabeça fechou a rede com as varandas.

62
A romaria aumentava, invadia a cozinha. Em bre-
ve, chegaria cego Delfino, os olhos escancarados, grandes,
e se estenderia ali na sala para o velório. Viria muita
gente de outras salinas, dos mangues, igual de quando
do enterro do irmão mais velho. Só não viria a menina
de tranças, fita bonita a descer dos cabelos. Correriam
toda a salina e suas tranças voariam, voariam. . . Sauda-
ria os homens metidos no sal verde dos baldes. A meni-
na admirar-se-ia de sua importância, da roupa nova feita
por dona Ernestina, novinha ali dentro da mala. Os ami-
gos do futebol apreciariam de longe, jogo esquecido.
Iriam ao barreiro carago e, de mãos dadas, desceriam as
dunas na carreira, para o lado do mar, a areia entrando
nas dobras da roupa, e ela a sorrir, a sorrir ...
Sol alto, empinado no céu, cego Delfino descansava
na sala de Mestre Nonato, estirado no caixão preto enco-
mendado por seu Honório. Na velha roupa de brim.
Penteado. Os bicos dos sapatos cambaios destacavam-se
formando V. E, ali, na sua austeridade, o cacete ao lado,
no meio das poucas velas e flores, cego Delfino impunha
respeito e silêncio.
Veio um mundo de gente para o velório. Dona Ma-
ria, na cozinha, conversava com as amigas, todas presti-
mosas, ajudando. Filhos presos à sua saia, o mais novo
no colo. Mestre Nonato, no paletó de muitos remendos,
aparecia sisudo para as providências:
- Olha o café das visitas.
Recebiam pêsames, como se o morto fosse um pa-
rente.
Dona Maria contava às amigas virtudes do falecido:
Homem bom, minha filha . . . E tinha saber.
- Deixou parente?
Não sei.
Chegou padre Orlando. Empertigou-se diante do
morto, olhos baixos, na disciplina religiosa, de roquete e
estola, livro aberto, em orações mudas. Cabeças enchiam
corredor, cozinha, obstruíam a entrada da rua. O vento
zunia forte, apagava as velas.
Uma voz veio alteando:

63
"Capineiro de _meu pai...
Padre Orlando levantou a vista, fuzilou por cima
das lentes:
- Levem ela daqui.
Uma mão segurou Cristina pelo braço. Alguns mi-
nutos após, a voz chegava do quintal:
"Capine iro de meu pai .."
Bibio acordou, descobriu o rosto, abriu os olhos e
procurou acompanhar de ouvido os movimentos. Con-
versas sussurradas. Veio a mãe e ofereceu comida. Não
quis nada.
Faz tempo que chegou? ...
Um pedaço.
Continuou à escuta, adivinhando os rebuliços. Cego
Delfino estaria de olhos vidrados, ali na sala, pertinho,
boca aberta esperando ar, ponta da língua de fora, fio
de baba a correr. Conversas curtas no corredor, rezas de
mulheres. Dona Eufrosina estariá presente. Aparecia
com suas rezas em todas as tragédias. Rezara um tempão
junto ao corpo do irmão mais velho, ali na sala, suas
longas mãos de dedos compridos a correr o rosário. Sem-
pre lhe causara agonia olhar aquelas mãos. E a agonia
era maior quando os dedos tocavam-lhe o ombro: "Mais
devagar, Bibio". Os olhos de cego Delfino eram grandes.
As vezes ele os fechava, como num esforço para enxer-
gar. Nunca imaginara que ele os pudesse abrir tanto, no
desespero da morte, como se procurasse recuperar num
só instante todos os longos anos perdidos na escuridão
da cegueira. Então veio uma menina de tranças e fita
muito bonita e sorrindo chamou-o de Bibio. Pegou-lhe a
mão e levou-a para brincar. Ela ria com meiguice e acha-
va-o bonito. Puxou-a na carreira até às dunas, desceram
à beira do mar, apreciaram jangadeiros estendendo tar-
rafas na praia. Correram para o infinito. Depois saudou
os homens levantando os braços e a menina se admirava
de ele conhecer tanta gente grande. Admiração muita,
que ela abria os olhos, mais, mais e mais. Estendeu o

64
braço e a mão que lhe caiu no ombro era calosa, pesada,
trêmula, nervosa, unhas amarelecidas.
Acorda, Bibio ! Dormindo o dia todo ...
Dona Maria sacudiu o punho da rede. Silêncio.
Apenas briga dos irmãos, na cozinha.
Já foram. Teu pai não quis te acordar.
Levantou-se cauteloso. Sala vazia. Tamboretes e
caixões de querosene encostados às paredes. O cheiro de
vela rondava no ar. E a mesa no centro da sala ainda
guardava as proporções do corpo de cego Delfino, a di-
mensão de seus olhos. Pétalas murchas pelo chão.
Quer comer, meu filho?
Abriu a porta da rua e viu que toda a salina era uma
vasta solidão branca, e o vento uivava numa carícia, ar-
repiava a água dos baldes, trazia trechos picados do Capi
neiro. Sentou-se no batente de entrada e começou a que-
brar um graveto nos dedos para os lados dos aterros,
Guedegue sozinho, encolhido, murcho, encostado a uma
pilha de sal.
Lá, muito longe, nas dunas, alguém corria, cabelos
soltos ao vento.

As manhãs alvoreciam num quebrar de barra de


5 vermelho sangüíneo, céu esfiapado de capuchos.
E quando as primeiras janelas se abriam e no
puteiro as rameiras apareciam em suas portas, bocejando
ressacadas e despedindo-se dos fregueses da noite, já o
sol reverberava num pisca-pisca de espelho.
Tarefeiros iam e vinham pelos aterros, espalhavam-
-se no branco-verde da planície muito antes que se ouvisse
o apito distante da fábrica, no arrabalde da cidade, cha-
mando seus operários.
O sol ganhava as alturas, navalhava, cegava, sufo-
cava, espalhava-se em mil reflexos, feria com seus espinhos.
Baldes apinhados, ferros-de-cova e chibancas a que-
brar crostas espessas de sal fresco. Seu Honório nos
suspensórios largos, chapéu de grandes abas, óculos escu-
ros, à sombra do paiol, não arredava pé, com precisão

65
acompanhava o movimento de cestos e carros-de-mão que
subiam e desciam pelas pranchas amarradas em cordas e
arames.
Homens licenciados de tarefas, vítimas da corrosão,
padeciam as inchações dos maxixes e calos brancos arras-
tando-se pelas sombras dos paióis, estourando bolhas e
coçando brotoejas, sonolentos, modorrados, largados,
como atacados de lepra.
Muitas eram as redes armadas nos casebres para os
lados do puteiro. Ali se alojavam os brabos, matutos
descidos dos sertões. Metidos no caldo grosso do cloreto,
cobriam-se de mazelas, gemiam noite e dia com compres-
sas sobre os olhos para aliviar a ação venenosa do sal
verde. Mulheres socorriam-nos com meizinhas, auxiliavam
com mãos leves de enfermeiras.
Mestre Nonato, braço direito estendido para uma
ordem, - "Quebra direito!" -, esquerdo comandando
outra, - "Agüenta o cesto!" andava sobre os aterros,
quebrava o corpo para dar passagem, olhos experientes
metidos na água serena, a descobrir revências. Inspecio-
nava paióis, comportas - "Está vazando água!"
cercos, bomba do cata-vento.
Meninos corriam os baldes, barrigudos, bojas a
carregar muitos vermes, umbigos enormes, pés-de-pato,
membros de cambito, olhos inflamados como atacados de
tracoma - ofereciam água fresca, conduzindo quartinhas
na cabeça.
Nas sacarias, mascando e esparramando sonoras
cusparadas, buchos empinados a carregar filhos de muitos
meses, o mulherio circulava os últimos fuxicas.
Vez por outra, alguma chuva louca perdida des-
pencava sem aviso. O sol recolhia sua luz, nuvens se
formavam por encanto no céu aberto, despejavam água
doce sobre os chocadores, esculhambando a festa, espi-
chando para mais de trinta dias o período de safra.
Novidades, crimes, escândalos, pagodeiras, como as
chuvas loucas, vinham e iam sem deixar rastro.

66
Caíam as tardinhas, Cristina fazia seus passeios. Por
detrás dos casebres a bola surgia e eclipsava-se. Homens
seguiam em grupos vagarosos para o Gato Preto, arria-
vam-se à sombra boa dos paióis para os jogos de onça.
Mestre Nonato desfazia-se das canseiras escorado à
janela, cumprimentando os que passavam, saudoso de
cego Delfina para os seus desabafos.
Almas-de-gato, para os lados do riacho, volitantes,
descaíam e ziguezagueavam.
O cata-vento, solitário, range-rangia.

Chico Benedito era amigo de vadiações. Falavam


6 de chamego para os lados da cidade. Nos dias de
bebedeira batia na mulher e sumia-se de casa.
Voltava pela madrugada, cantando, descompondo meio
mundo.
Não apareceu às seis da manhã para o início da
tarefa. E lá para as sete, sol alto, a amásia corria os baldes
procurando-o. Informava que ele saíra noitinha e não
voltara.
Na véspera, chegara encachaçado, dera-lhe tabefes
e se fora. Por isto, ela passara a noite a resmonear, acu-
mulando descompostura para a manhã seguinte, quando
ele aparecesse, moído e ressacado, para o serviço. Mas
o dia clareou, a salina entrou no vuco-vuco e nem sinal de
Benedito. Ela então correu a vizinhança, os cercos, dis-
cutiu com raparigas da Zona, informou-se de muita gente.
Ao longo dos aterros, desvairada, gritou e puxou
os cabelos. Armou escândalo. Amigas vieram socorrê-la.
Eu quero meu homem!
Arrastaram-na para casa, que logo se encheu de gente.
A rua de casebres entrou em festa.
Estirou-se na rede:
Ai meu Deus! Eu quero meu nego. Quero o
meu macho.
Rodas de curiosos comentavam a ausência de Bene-
dito, debulhavam a novidade. E veio a magricela sarará,
barriga monstruosa, pernas de socó, afirmou que certa

67
vez vira Benedito conversando com uma negra, na praia.
As amigas apertaram a roda, olhos apitombados, pediram
detalhes. A sarará coçava o bucho sungando o vestido,
acrescentava que a negra tinha um dente de ouro e entrava
no mar levantando o vestido, na maior sem-vergonhice.
Não falei nada pra não vexar dona Gertrudes.
Não sou de fuxico. Cuido do que é meu.
A mulher, derramada na rede, acabava-se no lamento.
As amigas, esquecidas de suas obrigações, falavam e fala-
vam, entravam e saíam. Chegavam as que moravam
longe:
O que foi, criatura?
Uma achou de balançar o punho da rede, tímido
gesto de solidariedade. O choro ecoava alto, e depois
se sumia sentido em soluços baixinhos. As queixas alter-
navam-se às pragas:
- Negro nojento! Macho desgraçado! Cão do in-
ferno!
O sol subiu e às dez horas os homens suspenderam
o serviço. Nem sinal de Benedito. E dona Gertrudes
jogada com o seu sofrer, estirada na rede, pernas abertas,
vestido levantado, compostura indecente. Fuxicas se
espalhavam. Muitas eram as mulheres que agora conhe-
ciam a negra do dente de ouro. Velha Belarmina, escorada
à janela da vizinha, bola de fumo na bochecha, balançava
o pesado úbere:
- Conheço a diaba, minha filha. E não é de hoje.
Foi rapariga do sargento Joel. Já vi ela tomar banho nua
mais um magote de jangadeiros, na maior esfregação.
Aquilo lá presta!
Mestre Nonato entrou em casa, gritou pela mulher.
Ela veio correndo da casa da vizinha, arrastando chinelos:
Coitada de dona Gertrudes, Nonato. Eu estava
lá socorrendo ela ...
Bota a comida. Tenho de voltar antes das duas.
Uma revência que não tem tamanho . . . O diabo da água
está estragando o coalho.
- Dona Gertrudes, coitada ...

68
Mestre Nonato passou para a cozinha sem fazer
comentários. Dona Maria dirigiu-se às panelas, desviou
com o pé, de junto do fogão, o menino que engatinhava.
- Será que ele fugiu com a outra, Nonato? A do
dente de ouro?
Dente de quê?
De ouro.
Bebeu água. Pendurou o caneco e sentou-se à mesa.
- Francisco Benedito foi para o Sul, Maria.
A mulher abriu a boca, disse nada. Escorou-se ao
fogão. Mestre Nonato assoviava baixinho, cotovelos na
mesa, olhos metidos no fundo do prato. Zunzum de
gandaia na vizinhança. O menino que engatinhava meteu-
-se por debaixo da mesa, abraçou-se às pernas do pai.
Mestre Nonato, com o pé, afastou-o de leve.
Ele fugiu mesmo, Nonato? ...
Antes indagou:
- E a comida?
A mulher não se mexeu. Então Mestre Nonato abriu
os braços:
Anda, mulher! Bota essa comida.
Ela se virou para o fogão, ficou a mexer nas panelas
e a arrumar pratos. A zoada na vizinhança chegava pela
janela da rua e portas dos fundos. O chororô atravessava
a parede.
Chico Benedito foi pro Sul. Ontem me avisou ...
- E por que você deixou, Nonato? A pobrezinha
ficou sozinha, coitada ...
Mestre Nonato aumentou a voz, impaciente:
- E eu tenho lá nada com isso, mulher! Mal dou
conta da minha vida. Ele vivia falando em São Paulo.
Não acreditei. Cuido do que é meu e acabou.
Virou-se para a mulher, ali parada, prato de feijão
na mão:
E fica calada, hem. Nem um pio. Ela que trate
da vida.
Mas Nonato ...
69
- Bota a comida. E fecha a tramela. Ninguém tem
nada que ver com estrupício dos outros. Ela é uma quenga
da rede-rasgada, você sabe disso. É bom que desapareça
daí. . . Já te disse que não quero metida na casa dela.
Benedito fez muito bem. Também não demoro aqui. É
só terminar o último mês de safra. Deste inferno até
Delfino escapou. E traz a farinha, não fica aí dormindo.
Passou a comer de cabeça baixa. A mulher dirigiu-se
ao corredor.
- Pra onde vai?
Vou pra sala. . . Credo.
Chama os meninos pra dentro. Cadê Cristina?
- Saiu ...
Precisa dar um jeito na vida dessa menina. Acabar
com esses passeios idiotas. Ela tem juízo pra obedecer.
Leva este menino daqui.
O garoto voltava a lhe abraçar as pernas. A mulher
tirou-o de debaixo da mesa, saiu levando-o no braço.
Mestre Nonato comia devagar. Aumentava a con-
fusão na vizinhança. A mulher avisou a sala:
Guedegue veio de manhã pedir emprestado aquele
ferro-de-cova. Trouxe até uma fita pra Cristina.
- Você emprestou? ...
- Disse que pedisse a você.
Aquilo era outra novidade. Guedegue se chegava.
Amoitara-se depois do escândalo com Zé-Rodrigues.
Faltara alguns dias ao serviço, simulando doença. Passou
a andar de cabeça baixa, capiongo, mal cumprimentando
os conhecidos, fazia voltas para não se encontrar com ele,
Nonato. Cumpria as tarefas casmurro, metido em seus
pensamentos. Fugira das rodas de bate-papo, dos jogos
de onça. Era visto sempre alta noite para os lados das
dunas, em passeios solitários. Quando da morte de cego
Delfino, aproximou-se da janela, olhou o morto um bom
tempo, depois foi sentar-se no barranco, e ali ficou cismá-
tico, riscando o chão com graveto, até muito depois de
o enterro sair. Ninguém mais procurava Guedegue para
pedir favores. Aquela mudança de atitudes deu na vista

70
de todos. E o zunzum corria a salina: "Guedegue anda
com manha, estudando arte. Zé-Rodrigues que abra o
olho". Mas Zé-Rodrigues, na língua solta, continuou sem
temores, contava histórias desconformes sobre a vida pri-
vada de Guedegue. E repetia aos tarefeiros: "Mestre
Nonato que cuide da filha. Solta por aí ... " Bem que
suas desconfianças aumentaram. Vigiou os passos da filha
muitos dias, deu-lhe gritos, proibiu-lhe os passeios. Cris-
tina ouviu calada. Continuou, porém, na mesma vida.
Então foi esmorecendo nas ordens com o correr do tempo.
E a morte de cego Delfina, que alimentou os assuntos das
conversas por tantas e tantas noites, veio pôr um esque-
cimento em suas preocupações. Desapareceu inclusive o
acanhamento diante de Zé-Rodrigues e dos companheiros.
Maria ...
Estou aqui na sala, Nonato.
Vem cá.
A mulher aproximou-se, menino no braço a puxar-
-lhe o rosário sujo do pescoço.
- Diga pra ele que o ferro-de-cova eu vendi. Ele
quer se chegar ...
- O pobre trouxe até uma fita ...
- Leva os pratos. Bota os meninos pra dentro. Dê
o recado e pronto.
Levantou-se, foi à porta do quintal arrotando alto,
acendeu um cigarro. Conversas e choro de mulher se
acabando. Gente passava do outro lado da cerca, conhe-
cidos largavam a saudação:
-'Solzão, Mestre!
Continuou ali escorado à ombreira da porta.
Não vai descansar, Nonato?
Despertou com a pergunta da mulher. Jogou longe
a ponta de cigarro, apanhou o chapéu de sobre a mesa:
- Vou pro Gato Preto. Não agüento esse inferno
nos meus ouvidos. Chico Benedito fez muito bem. Vou
também largar isto. Bota a meninada pra dentro e fecha
a porta. Mande Bibio levar pro paiol a quartinha com
água fresca. E nem um pio, hem!

71
Abriu a porta da rua. A romaria estendia-se até o
alto do barranco das águas-mães. Não levantou a vista.
Alguém perguntou:
Já vai, Mestre?
Não procurou saber quem falara. Dirigiu-se ao Gato
Preto. O sol tinha de quente, brilhava em mil lâminas nas
pirâmides de sal enfileiradas ao longo dos aterros, vibrava
nas crostas de coalho dos baldes. Grânulos de sal grosso,
espalhados pelo chão, reverberavam como cacos de vidro.
Avistou o menino que passava correndo.
Bibio!
O que é, pai? ...
Passa já pra casa.
Ficou parado, olhar duro de repreensão, esperando
que o filho cumprisse a ordem. Depois continuou cami-
nho e entrou no Gato Preto, àquela hora deserto de fre-
gueses. Zé-Rodrigues veio lá de dentro pálitando os
dentes, escorou-se ao balcão:
O que manda, Mestre?
De costas para o balcão, apoiado nos cotovelos,
pernas cruzadas, Mestre Nonato olhava o tempo. Ouvia-
-se apenas o zunir do vento quente e o picar do moinho
a moer sal.
- Benedito deve andar na pagodeira, hem, Mes-
tre? ...
-É ...
Silêncio prolongado. Zé-Rodrigues mudou de assunto:
Quantos brabos foram admitidos, Mestre?
Quinze.
Estive vendo alguns deles ontem à noite. Muitos
gemiam com os pés em brasa. Um foi atacado da vista,
reclamava como bezerro sem mãe.
Zé-Rodrigues quebrou o palito, fez menção de jogá-
-lo ao chão. Mas os olhos caíram em Cristina, que passava
sobre o aterro. Paralisou o gesto, palpitando.
Mestre Nonato viu a filha, despistou, virou-se rápido,
procurou assunto:
$
72
Já recebeu cigarro Yolanda?
- Hem ...
Cigarro Yolanda...
Ah. . . Sim . . . Chegou . . . O senhor manda,
Mestre.

Nas horas de nenhuma freguesia, quando abria o

7 livro de contas sobre a mesinha, lamparina ao lado


bamboleando o fornaceiro, todo o seu desejo agu-
çava. Suspendia as somas, toco de lápis entre os dedos,
olhar morto na parede. O peito cabeludo branquejava de
pó fino de sal, trazido da casa do moinho pelo vento. E
de entre as sombras que a lamparina desenhava, gigantes
e confusas, surgiam as formas da menina Cristina. O
sangue latejava nas têmporas, surdez estranha zumbia-lhe
nos ouvidos. Com menino Daniel assim acontecera. Pal-
pitações, zonzeiras, desde quando o vira a banhar-se junto
ao cacimbão. E depois que lhe abafou o grito, no gesto
rápido e violento, e se sentiu satisfeito, entrou em grande
abatimento, os olhos boiaram num princípio de choro e
desespero. E quando, madrugada alta, conduziu-o nos
braços, ziguezagueando, procurando os ermos, para deitá-
-lo na amplidão do barreiro carago, pensou em continuar
para o mar, jogar-se nas ondas e nadar até se sumir no
suicídio.
Primeiro fora com a pretinha impúbere que vendia
tapiocas, na pequena salina para além dos mangues.
Encontrara-a sozinha, noite avançada, de volta para casa.
Pela vez primeira vieram palpitações, violenta dor de
cabeça. Na papa mole do mangue deu cabo da pretinha,
depois de tingir-lhe o vestido de sangue.
O tempo passou. Vagou por salinas. Jaburus em
becos de cafuçus e canelaus. Quebra-queixo e pés-de-mo-
leque em forrós jangadeiros. Prosperou nos comércios.
Chegado à São Francisco, a pretinha era apenas lem-
brança remota. E apareceu menino Daniel no seu cami-
nho ...
73
Acontecia passar dias e dias liberto da obsessão,
metido no seu comércio, carregando nas contas, apertando
nos pesos. De repente, noite alta, perdia o sono, olhos
grudados nas telhas, o vento a zunir nas frinchas das
portas, a mulher ao lado ressonando alto, olhar de deses-
pero de menino Daniel apertando-lhe o coração. Fazia
planos de mudança para bem longe, outra salina para
além dos mangues.
Veio porém Cristina, peitinhos soltos na transparên-
cia do vestido fino, e ele novamente despertou para a vida.
Abriu o armário para as fitas e presentes, uma bola para
Bibio. Mestre Nonato, sem compreender bem por quê,
viu crescer-lhe o crédito. "O senhor manda, Mestre."
Nos momentos de conflito de consciência, pensava
em chamar Mestre Nonato para uma conversa séria, cor-
tar-lhe o crédito, esquecer Cristina. Lutou heroicamente
consigo mesmo, passou semanas sem esperar as passagens
da menina para o riacho, atendia com muita prosa a fre-
guesia para não ouvir o Capineiro às tardinhas.

74
Um dia, viu Guedegue ao lado de Cristina, na pla-
nície do barreiro carago. Sufocou despeito e ódio num
desvario mal contido. Desejo insopitado de esganar o tare-
feiro.
Sempre ouvira aquelas conversas maliciosas, a des-
confiança de todos sobre as possíveis intenções de Guede-
gue. Passava adiante os fuxicas, ampliava-os, mordaz,
soltava risadas fortes. Não acreditava nas manias de
Guedegue. Suas esquisitices e manhas ficavam por conta
de possível idiotice. Mas aquela presença de Guedegue,
na solidão da planície, boquinha da noite, tirou-lhe a tran-
qüilidade, cobriu-o de um ódio surdo e o erotismo passou
a nadar nos olhinhos buliçosos. Daí por diante, todas as
noites, no quarto de mercadorias, conferindo contas, cis-
mava de olhos no vazio, Cristina despia a blusa fina e
esmagava os seios duros no peito cabeludo. Dedos nodosos
tamborilavam sobre o livro de contas, cadenciavam sua
angústia.
E o escândalo com Guedegue, sem motivo sério, foi
uma necessidade de um lenitivo para seus nervos.
Necessário desmascará-lo e vê-lo evitado por todos,
solitário no serviço, capiongo e vigiado, sem amigos.
Assim estaria melhor.
Sentiu-se então tranqüilo. A imaginação voava livre-
mente. Estudava planos. Mais remorso nenhum pelo que
acontecera a menino Daniel. Procurou Mestre Nonato.
Mandou recados. "Desculpe, Mestre, mas o negro preci-
sava de uma lição. Aqui o senhor manda." Aceitava
todas as desculpas de Mestre Nonato. Desviava o assunto
da dívida, deixava o Mestre à vontade, soltava boas piadas.
Mestre Nonato encolhia-se de agradecimento, falava de
seus longos anos de salina, da decisão de voltar à sua
terra. Ouvia sorrindo, compreensivo, e soltava alto, vol-
tando-lhe as costas, como encerrando a conversa: To-
lice, Mestre. Aqui o senhor manda. A casa é sua".

76
Pilhas de sal fresco e cristalino, recolhidas das
1 safras, embelezavam os aterros. Ali dormiriam
meses, enfrentariam ventos e chuvas, aguardariam
vez de serem demolidas pelas picaretas e tragadas pelo
moinho.
As águas-mães, lentas, sofridas depois da desova,
voltavam' às suas origens, numa pasmaceira de começo
de resguardo. O sol, nas manhãs de muito calor, escon-
dia-se por detrás de nuvens pesadas. O pé-d'água caía em
chicotadas violentas sobre a salina e lufava forte, encaro-
çando as coroas das dunas.
Fim de safra.
Mulheres, sem mais serviços nas sacarias, arregaça-
vam as saias, joelhos beijando os peitos bambos, pitavam,
pitavam, em longas cismas, diante das casas. Tarefeiros
dispensados faziam suas trouxas e iam com a filharada,
e de lembrança levando muitas mazelas, procurar serviço
nas fábricas da cidade. Subiam em jangadas para pescarias
em alto-mar. Espojavam-se nos mangues, para além do
riacho, na caça aos caranguejos e aratus. Muitos deles,
brabos de primeiras safras, atacados de maxixes, calos
brancos, coceira nos olhos e brotoejas, curtiam suas infla-
mações pelas casas das rameiras, em eróticas safadezas.
Arriavam-se por lá em tamboretes, insensíveis às incha-
ções, libidinosos, entregues ao tempo e à preguiça.
Apenas os mansos mais mansos, tarefeiros de muitas
safras e muitos sóis, continuavam metidos no cloreto.
Serviços para mais algumas semanas. Fim de safra, a
salina era um quadro de abandono. Um que outro que-
fazer nos paióis. Retelhamentos, substituição de ripas,
palhas novas de coqueiro. No grande paiol, acachapado
e comprido, grupos estendiam-se pela noite na arrumação
e desarrumação do sal, metidos em calções, sujos de pó
branco da cabeça aos pés, meio alcoolizados para manter
a sustância e neutralizar o aperreio da brotoeja. E, no
quartinho ao lado, antiga morada de cego Delfino, as
fornicações entravam novamente pela noite. Tudo era
permitido como despedida. E o Coração de Jesus, lem-

78
brança do cego Delfino, permanecia na parede, a assistir
com seu olhar corroído de maresias as safadagens sem fim.
Impúberes eram conduzidas ao quartinho e ali iniciadas
nas veredas da vida. Vinha de longe, de sua casa nos
confins dos mangues, menina Matilde, virgem puta de onze
anos, consumida de bolhas amarelas e tosse brava, rainha
de mil bolinagens. Puteiro silencioso, raparigas em de-
bandada atrás de homens. Entravam aos magotes no
quartinho, trabalhavam por qualquer preço. Ex-mulher-
-de-Chico-Benedito dentro do quartinho não tinha dono
nem querer. Bêbada e largada, entregava-se a meio mundo.
Desde que Chico a deixara, fizera amizade com a cachaça,
bebera todos os teréns, vivia aos emboléus, escândalos
sucessivos. Metia-se com a meninada e a diversos deles
apontara os caminhos da vida. Amanhecia dormindo sobre
os aterros. E no Gato Preto tarefeiros compravam seus
palavrões com doses de cachaça. Muitas e escandalosas
eram suas pagodeiras. Entrava, por vezes, em abatimento
e chorava encolhida pelos cantos, tranqüila e serena. Pro-
curava Guedegue e ninguém sabia o que conversavam.
Sentavam-se os dois nos barrancos altos para os lados dos
cercos, ali ficavam horas seguidas. Era a única amizade
de Guedegue. Por isto fuxicos circulavam. Mestre No-
nato crescia em suas desconfianças. Aquelas conversas
sem fim da ex-amásia-de-Chico-Benedito com Guedegue
guardariam malignidades. Proibiu a mulher e os filhos
de se aproximarem dela. E Mestre Nonato voltou, com
mais insistência, a maldizer a vida, e que finda a safra
voltaria para o sertão. Minha Cristina por aí, piorando
do juízo. A dívida aumentando no Gato Preto. O dinheiro
encurtando, bastante diminuído depois da morte de cego
Delfino. Possuía de seu muitos aperreies, calo no ombro,
rachaduras nos pés, marcas de maxixes nas canelas, vista
mais curta. Canseira da velhice chegando. A safra estava
no fim. Viriam meses seguidos de chuvas. Seu trabalho
passaria a ser leve, serviço de vigia, reparos no velho cata-
-vento, limpezas nas escoadeiras, coisinha aqui, mão
ligeira acolá. E conversas sem fim escorado ao balcão

79
do Gato Preto, recebendo diárias pela metade para O SuS-
tento de tudo. Elogiava velho Alípio, que voltava a
aparecer na salina, mudado, limpo da vista, disposto,
saldara inclusive sua dívida. Melhorado de vida, traba-
lhando no macio em fábrica de garrafas. E velho Alípio
lhe reforçava a decisão, "deixe isto, Mestre, salina não
é serviço pra vivente".
As noites desciam mais cedo numa sinfonia de
coaxos. Das biqueiras dos casebres a água gotejava numa
persistência de eternidade. O vento vibrava nas frinchas
de portas e janelas, de onde escapavam réstias de luz
pálida de lamparinas. As marés, quebrando na praia,
ribombavam profundo dentro do silêncio.
Mestre Nonato estendia-se na rede, pé na parede,
cismático, contava os pingos que caíam lá fora, esperando
o tempo passar ...

A velha segurou as varas, espichou o corpo, falou


2 para o outro quintal:
- Já sabe da novidade, dona Maria?
Dona Maria entortou a cabeça, peça de pano esticada
nas mãos. O bacorim se aproximou e o coice para ele se
afastar veio antes da pergunta:
- O que foi?
A velha grudava-se à cerca para transferir melhor
a novidade, pé suspenso, sola para cima. Dona Maria
prendeu o pano no arame e se aproximou coçando a viri-
lha, deixando no vestido marcas de dedos molhados:
Mas o que foi? ...
Seu Honório mandou Guedegue embora. Ouvi
no Gato Preto seu Zacarias falando ...
- O quê!
O pé da velha desceu e a unha do dedão coçou a
canela, desenhando riscos brancos. E a boca contou
entre as varas:
- Seu Zacarias disse que Guedegue nem discutiu.
Recebeu o saldo e foi embora. Seu Zé-Rodrigues falou

80
que por ele Guedegue podia ficar, não lhe batia a pas-
sarinha.
Continuaram debulhando a novidade. O sol tinia.
Dona Maria esqueceu as obrigações. Bacia cheia de
panos, ali perto, esperando. O bacorim grunhia, fazendo
voltas. E o pé da velha suspenso no ar, sola branca par-a
o tempo. O vento grudava-lhe o vestido no corpo, dese-
nhava os gomos das nádegas.
De tardinha, curvado sobre o alguidar, pernas abertas,
ensaboando o rosto e os peitos, Mestre Nonato contava
detalhes do acontecido. Dona Maria escorada ao ma-
moeiro, pé apoiado à canela, mão no quarto. Bibio metido
em briga com os irmãos, na cozinha. Vento úmido de
inverno. Céu escuro, carregado, nuvens bojudas como
favos.
- Mas Nonato, e o pobre foi pra onde?
Jogou água nas orelhas, puxou a toalha do arame.
Sei lá.
Enxugou os peitos, os sovacos, falou através da
toalha:
Seu Honório fez direito. Guedegue vivia aí pelos
aterros estudando arte. Depois da briga mais Zé-Rodrigues
parece até que endoideceu de uma vez. . . O xodó com
negra Gertrudes não podia ser de gente regulada. E você
conhece as histórias que corriam por aí . . .
- Sobre Cristina?
Mestre Nonato jogou fora a água do alguidar e
galinhas espalharam-se num espargir de penas e cocorocós.
Estendeu a toalha no arame, armou assovio, descon-
versou:
Vambora à janta.
Entrou. A mulher o seguiu, calada, prendendo os
cabelos. O quintal ficou deserto. Apenas o bacorim fos-
sava e grunhia e galinhas acercavam-se do poleiro. Mu-
lheres, nos outros quintais, recolhiam panos dos arames e
olhavam o tempo. E, para o lado de trás da cerca, alguns
poucos homens atravessavam o campo de futebol em
direção às suas casas.

81
Calmaria de sol poente em tarde de inverno, sem os
movimentos de tarefas terminadas de semanas atrás.
Dois-três acocorados à entrada do grande paiol. E, senta-
da no barranco, encachaçada, negra Gertrudes a lamentar
a ausência de Guedegue.
E a noite caiu, sem luar e sem estrelas, e ela veio
carpir à porta de sua antiga morada, como para matar
saudades. A meninada se chegou, fez roda em torno
dela. Mestre Nonato fechou a janela, recomendou à
mulher:
- Deixa ela pra lá. E chama o Bibio pra dentro.
Estirou-se na rede de corda, armada ali na sala. A
lamparina, sobre a cadeira, fumaçava. Meninos chorando
no corredor. O caçula no colo da mãe, a puxar-lhe os
cabelos. Cristina cantava no quintal. E o lamento de
negra Gertrudes entrando pelas frinchas da janela.
Maria.
- O que é, Nonato?
- Cadê Bibio? Chama ele pra dentro.
A mulher abriu a banda de porta e pôs a cabeça:
Bibio!
O menino entrou e procurou ligeiro a escuridão da
cozinha, fugindo da voz áspera:
Vai te aquietar, moleque.
Dona Maria fechou a porta, falou do vento forte e
úmido, foi ao quarto deitar o caçula, pediu silêncio num
psiu sonoro, voltou e ficou ali perto do marido, penteando
os cabelos. Mestre Nonato fumava, soltava espirais para
o teto. Conversas na rua. Mulheres que se acercavam de
negra Gertrudes para assistir seu drama. Uma sanfona
dava os primeiros acordes, para os lados do puteiro.
Maria ...
- O que é, Nonato?
- Seu Honório fez muito bem. O cabra estudava
arte. Dizia a todo o mundo que mataria Zé-Rodrigues.
Vivia rondando o Gato Preto. Não trabalhava direito.
Metido na cachaça e cochichando com essa rapariga.
Andava aluado. Fez muito bem seu Honório.

82
Dona Maria ouvia calada. Agora os lamentos de
negra Gertrudes alcançavam as distâncias, em desvarios
longos. Não mais Guedegue. Gritava por Benedito, "o
desgraçado me abandonou".
Mestre Nonato balançava-se de leve, pé empur-
rando a parede, olhos no teto, pensamentos voando.
- Maria ...
- O que é?
- Nos trovões de março já estaremos longe ...
Você quer ir?
Pro sertão?
- Lá a gente tinha de um tudo, lembra-se? Vou
largar isto, mulher. Desta vez é verdade. Seu Honório
anda me rondando, pedindo para eu ficar. Não dei garan-
tia. Quero anoitecer e não amanhecer. É só mais umas
semanas ... Vá logo se ajeitando, e de bico calado.
Dona Maria parou de se pentear:
É de vera mesmo, Nonato?
Antes, soltou algumas baforadas, jogou no chão o
toco de cigarro, ralhou alto para os filhos fazerem silêncio.
- Velho Alípio virou gente. . . Bastou largar isto.
E Chico Benedito fez muito bem. Deve andar na lordeza,
no Sul. No sertão a história é outra, Maria. Ainda planto
este inverno.
- Quanto a gente deve a seu Zé-Rodrigues?
- Uns dois contos ... Sei lá! Não se preocupe que
não faço como Benedito, que deixou dívida grande para
saldar. A gente sai daqui de cabeça levantada, dando
adeus para o povo.
A mulher arriscou uma ponta de preocupação:
- Mas. . . de que maneira a gente paga essa conta,
Nonato?
Respondeu nervoso, cortando o assunto:
- É comigo. Saio daqui em paz. Deixe que eu
resolvo.
Longo silêncio. Certamente haviam levado negra
Gertrudes para longe. A sanfona, para os lados da Zona,
aumentava os acordes. Chegou Cristina e ficou ali parada.

83
- Já comeu, minha filha?
Olhou para a mãe e balançou a cabeça, confirmando.
Mestre Nonato soltou a ordem:
Vá se deitar.
Cristina desapareceu no corredor escuro. Mestre
Nonato levantou-se e abriu a janela. O vento entrou
forte.
Será que tua irmã ainda está viva, Maria?
Desde que deixaram o sertão não receberam mais
notícias dela.
Bem capaz, Maria, que a gente vá encontrar
tudo diferente. Meu povo também não deu mais no-
tícia. Clodoaldo sofria do peito. Capaz de ter morrido.
E de seu Manezinho, se lembra dele?
Lembro.
Vivia com dor de cabeça, coitado. . . E compa-
dre Valério, por onde andará . . . Me deu muitos con-
selhos. Recordo bem suas palavras: "Salina é caiada
como cemitério ... "
Mestre Nonato olhava o céu, cismava. A mulher,
no banco, penteava os cabelos. Bibio brigava com os
irmãos, no corredor.
Me lembro, Maria, como se fosse hoje, do dia
em que chegamos na Margarida .
- Nem quero recordar .
Passei outro dia lá perto e vi o cajueiro ...
Falar nessas coisas me lembro logo do meu
filho . . . Nem é bom a gente soprar a cinza.
Um vulto passou. Mestre Nonato soltou a saudação:
É o Zacarias?! Boa-noite, Zacarias!
Depois entrou e estirou-se na rede, suspirando.
Passa um cafezinho, Maria.
A mulher levantou-se e já no corredor ouviu a
ordem:
- E pode ir logo se preparando. Nos trovões de
março já estaremos longe.

84
3
Dias e noites com ribombar de trovões e chicotear
de relâmpagos. Casebres acachapavam-se, salina
mergulhava no lamaçal.
Dona Maria acordava nas madrugadas, perdia o
sono. O marido ao lado ressonava em sopros fortes, a
biqueira, no quintal, sempre a despejar água na velha tina,
a goteira na sala cuspia sonoro na vasilha. A resolução
de Mestre Nonato de abandonar a salina e voltar para o
sertão era agora de todos os instantes. Nunca dera muita
crença ao desejo do marido, que vinha de anos atrás.
Desse desejo não participava. As recordações de sua terra
diluíam-se no passado, dela não guardava saudades. Adap-
tava-se facilmente em qualquer lugar, acomodava-se,
resignava-se, apegava-se às pequeninas coisas, indiferente
aos sofrimentos, tudo aceitava sem queixas. Dos grandes
padecimentos na salina Margarida procurava não relem-
brar, sobretudo porque lhe trazia aos olhos a imagem do
filho mais velho, chorando no seu colo debaixo do cajueiro,
estirado no caixão azul, na sala.
Abria os olhos nas madrugadas chuvosas e ficava
ouvindo o zunir do vento. No sertão, tudo teria de ser
novamente começado. E outra família viria habitar aquela
casa, pisar aquele chão, conviver com aquelas paredes.
Então perdia o sono e acompanhava os ruídos da chuva.
Uma noite, seu falecido pai desceu do cavalo, estirou
o braço para o rapaz que atravessava a praça da Matriz:
"Um bom moço, minha filha. Dou meu consentimento.
Filho de velho Augusto Nonato, Nonato de respeito, como
o pai. Nonato ... Nonato ... "
Despertou com pancadas na porta:
- Seu Nonato!
Balançou o punho da rede ao lado:
- Nonato. Estão batendo lá fora, Nonato.
Mestre Nonato revirou-se na rede. Sentiu no braço a
pressão dos dedos da mulher, sacudindo-o.
- O ... que ... é? ...
- Tem gente te chamando lá fora.
Meteu os pés e passou as mãos nos olhos para afu-
gentar o sono. O grito vinha da rua, seguido de pancadas
na porta: "Mestre Nonato! ô Mestre!"
- Que diabo será? Que horas são?
Dona Maria riscou o fósforo e olhou o velho desper-
tador, ali no chão no canto do quarto:
- Doze e vinte.
Fora, conversavam. E novamente as pancadas:
"Mestre Nonato! ô Mestre!"
Calçou os tamancos:
- Estou indo!
O caçula choramingou. Chegavam da Zona trechos
de música e risadas.
Vestiu as calças e abotoando-se saiu do quarto, pas-
sando por debaixo das redes armadas no corredor.
Veste a camisa, Nonato. Está chuviscando.
Sem ouvir o conselho, abriu a banda de porta. Sentiu
no rosto e no peito a friagem dos respingos.
- O que foi? ...
Dois homens ali à sua frente. O mais baixo infor-
mou:
- Mataram seu Zé-Rodrigues, Mestre ...
Recuou de espanto:
O quê, Misael!
- Dona Candoca encontrou ele junto ao balcão,
numa poça de sangue. Uma brecha na cabeça. Parece
que foi com barra de ferro ou picareta.
Dona Maria se chegava. Ouvia a conversa. Esco-
rou-se ao ombro do marido:
- Minha Nossa Senhora ...
Mestre Nonato paralisado, olhos duros. Grupos pas-
savam para o Gato Preto. No puteiro, a sanfona e as
risadas silenciavam. A novidade corria rápida.
Vou já pra lá, Misael.
Virou-se desnorteado, confuso:
- Minha camisa. A minha camisa. Vou até lá.
- Também vou ...
Não. E tranque a porta.

86
A mulher trouxe a camisa de meia. Vestiu-a porta
afora:
Vambora.
Procurou aproximar-se da porta do Gato Preto. Um
mundo de curiosos. Mulheres chegavam, conversas cochi-
chadas, vinham da Zona nos desbotados e suados vestidos
brilhantes.
Com licença . . . Com licença ...
Mestre Nonato ia furando, abrindo caminho. Na
porta, um guarda de sentinela.
Me chamo Nonato Aparecido da Silva. Sou mes-
tre tarefeiro, amigo do falecido.
Entra não, meu chefe. É ordem. E se afaste.
- Seu Honório está aí?
Sei lá quem é Honório . . . Arrede.
O praça levantou a cabeça, olhava por cima do povo:
Vão se espalhando! Desafasta!
Mestre Nonato sentiu-se sufocado no meio da mul-
tidão, perdido de Misael. Procurou conhecidos. Viu seu
Honório sair do Gato Preto, um homem ao lado, chapéu
de abas longas. Alguém comentou:
Deve ser delegado ou o doutor juiz ...
A notícia espalhava-se com o vento. Lamparinas
acesas em todas as casas. Luzinhas piscavam nas palho-
ças além do riacho, nos mangues. Na Zona, entretanto,
as luzes se apagavam.
Mestre Nonato abriu saída com os cotovelos. Diri-
giu-se ao aterro próximo para apreciar melhor. Ali, do
alto do barranco, homens assistiam em silêncio.
Boa-noite, Mestre.
É você, Zacarias. . . Boa-noite.
Acendeu um cigarro. Ofereceu outro. Ficaram fu-
mando, calados. Candeias e lamparinas lutavam contra
o vento e a chuvinha rala.
Me disseram que foi uma porrada bem na testa.
Mas por que isso, Mestre? .
- E eu sei, Zacarias .
Estão falando que foi o Guedegue. Brecha de
quatro dedos. Ele morreu com uma porção de fitas na

87
mão, parece que foi na hora em que arrumava o armari-
nho. . . Tem jeito de serviço do Guedegue. Só pode ter
sido ele ...
Mestre Nonato sentiu o calafriozinho subir pela
espinha. Continuou calado, fumando. E após algumas
fumaçadas:
E ele foi visto por aqui, Zacarias? ...
- Sei não. Mas só pode ser trabalho dele. . . A
cabeça de seu Zé-Rodrigues ficou que nem papa. Foi
mesmo para matar ...
O pressentimento cortou-lhe a tragada:
E negra Gertrudes? Por onde anda, Zacarias?
- Foi ela o quê, Mestre. Desde ontem que levaram
ela para a casa de velha Hermínia, no mangue. Não se
levanta da rede, vendo marmotas, sofrendo de ataques.
Coisas da cachaça ...
Mestre Nonato acendeu outro cigarro. Chegava um
carro, buzinando alto, espalhando o povo.
É a polícia, Mestre.
Raparigas, levadas pelo hábito, correram com a
aproximação do carro.
Mestre Nonato via diante dos olhos a figura de
Guedegue, minguada, encolhida, submissa, serviçal. Ho-
mem cheio de esquisitices. Passeios solitários pelas dunas,
altas horas da noite. Aproximava-se de Cristina quando
ela saía a passeio, dava-lhe presentes. Sempre muito pres-
timoso, "faço o seu serviço, Mestre". A briga feia com
Zé-Rodrigues. "Eu mato ele." Capiongo, crista mole, soli-
tário, cismas longas. Depois se chegando, pedindo de em-
préstimo um ferro-de-cova velho. A amizade com negra
Gertrudes. Os dois juntinhos, sentados nos barrancos,
ninguém sabendo o que conversavam.
Acho que a polícia agarra ele, Mestre.
Quem?
Guedegue ...
Ah!
Homens de chapéu entravam e saíam do Gato
Preto. O carro acendeu os faróis, voltou a buzinar, desli-
zando em marcha à ré.

88
A sirena gritou ao longe, fraquinha. O estrídulo
aumentou, vibrou na noite, surgiu uma ambulância. Ho-
mens de branco desceram. Guardas empurravam o povo,
abriam passagem.
- Vão levar o corpo, Mestre.
Parece.
Via agora diante dos olhos a dívida grande de quase
dois contos. Dona Candoca na certa abandonaria tudo,
não teria disposição e ciência para levar adiante os negócios
do marido. O Gato Preto seria fechado, viriam sindicân-
cias, caça ao criminoso, e se fosse novamente aberto seria
por mãos de outro dono. Quem cobraria sua dívida?
Nada tinha a ver com tamanha encrenca. Ficaria no seu
canto.
- Falou, Mestre?
Olhou para Zacarias, acordou:
Ahm? ...
Estão levando o corpo.
-É ...
Homens de branco conduziam a maca entre o povo.
Mestre Nonato sentia pulsações fortes, o sangue corria
gelado nas veias. Trabalho de Guedegue? A multidão
silenciara. E os gritos de dona Candoca ganhavam a am-
plidão da salina.
Melhor voltar para casa, trancar-se com os seus,
procurar de manhã seu Honório para se informar dos
detalhes.
- Boa-noite, Zacarias...
Já vai, Mestre?
Saiu de cabeça baixa, evitando conhecidos. Misael
descobriu-o:
- Eh, Mestre! Onde se meteu?
Não lhe deu ouvidos. E sem pensar nada entrou em
casa, arriou-se no tamborete. Dona Maria esperava-o. Os
meninos acordados, cabeças fora das redes.
- Manda a meninada dormir, Maria.
Ele mesmo gritou, nervoso:
Durmam!

89
Acendeu um cigarro. Pediu para a mulher passar
café.
Como foi isso, Nonato?
Abriu os braços:
- Sei lá! Estão dizendo que foi o Guedegue ...
Que estrupício, meu Deus ...
Dona Maria dilatou as órbitas, abriu a boca, coberta
de espanto.
E o café, mulher?
Essa hora?
- Passe o café.
A mulher saiu para o corredor escuro. Aproximou-se
Cristina, escorou-se à parede, silenciosa, olhos desmesu-
radamente abertos voltados para o pai.
Vá se deitar, minha filha. O que você quer de
pé esta hora?
Pai, perdi minha fita ...
- Vá dormir. Eu lhe dou outra.
Ficou só na sala, sem nada pensar, pernas estendidas,
olhos para o teto, batendo a cinza do cigarro.
Grupos passavam conversando.

Cosia-se aos cantos de parede, evitava a chuva.


4 Já se molhara bastante. Sentia cansaço e palpita-
ções. Gente transitava debaixo de guarda-chuvas.
E a chuva descia em fios dourados à luz dos faróis dos
carros.
Parou na esquina, encolhido, tímido, acocho no peito.
A rua era aquela, lembrava-se bem. Lá estava, defronte,
a poucos metros, a mesma casa de janelas largas. Silen-
ciosa e imponente debaixo da chuva. Fechada. Luz forte
vencia os vitrais e desenhava quadriláteros luminosos nas
pedras da rua. Estaria lá dentro? De tranças? E de longa
fita a descer pela cintura? Acocorou-se ao canto de
parede, no ângulo da esquina, abraçou as pernas. A dois
passos o poste, esguio, longo. Subiu a vista de manso,
fitou a lâmpada. Como de braços abertos, numa ofe-
renda, a lâmpada despejava luz no calçamento. Desceu a

90
vista, lentidão de lesma. Ali, justamente ali pertinho, cego
Delfino tocara músicas bonitas. Não chovia e a noite era
de muitas estrelas. Passou gente e deu esmolas. Lembra-
va-se da moeda que prendera debaixo do pé. E ela veio
correndo com outros meninos e se embeveceu com as
melodias de cego Delfino. Sentia-lhe o perfume, a barra
do vestido a lhe roçar o rosto, de leve, numa carícia.
O guarda, metido no oleado, parou na esquina em
frente, cassetete girando na mão. Fora aquele? "O senhor
não pode tocar aqui." "Pois vamos, Bibio." Nunca
mais a vira. Bem que procurara convencer cego Delfino
para nova tentativa, era ponto de muito movimento. Mas
a morte de cego Delfino esfriou-lhe as esperanças de rever
aquela rua. Difícil subir à cidade sozinho. Sem a com-
panhia de cego Delfino faltava-lhe coragem de enfrentar
aquele mundo confuso e barulhento. Entre as luzes, os
carros, o povo, as belezas das vitrinas sentia-se prote-
gido com a mão a segurar-lhe o ombro: "Vamos, Bibio".
Então, como consolo, ficaram os longos castelos na rede,
antes de dormir. Era quando seu heroísmo crescia muito
e ela, trêmula de admiração, assistia suas lutas, seus chutes
e suas largas saudações aos tarefeiros, numa exibição de
popularidade. O menino de roupa de marinheiro levara
inúmeras surras e ela batera muitas palmas. A mão a
correr de mansinho na borda da rede, como se acariciasse
longas tranças.
Cristina ficou triste, numa noite de chuva forte, e
entregou-se a um mutismo sem fim. Abandonou o ramo
verde, esqueceu o Capineiro. Madrugada alta saiu para a
rua e correu ao longo dos aterros, nua e desvairada. Nem
Mestre Nonato dominou-lhe os gritos. Trancaram-na no
quarto e seus berros ecoavam numa rouquidão esquisita.
O povo esqueceu a morte de Zé-Rodrigues, acontecida
um dia antes, para socorrer Cristina. Muita gente veio
assistir sua loucura, ensinar remédios, abraçar Mestre
Nonato, consolar dona Maria, sempre a chorar junto ao
fogão.
Amarrada dentro da rede, Cristina contorcia-se,
máscara de pavor nos olhos estriados, procurava fugir do

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braço que se aproximava como uma isca, fitas de todas as
cores entre os dMos. O abraço sufocava-a, aquele peito
cabeludo, branquejando de sal, deixava-a sem respiração.
No desespero, a tranca de ferro era a única solução. Lu-
tava contra as cordas que lhe prendiam o corpo. A mão
com muitas fitas coloridas aproximava-se-lhe do peito e
munida da tranca poderia partir aquele rosto de olhinhos
pequenos e faiscantes. Correria para a noite, liberta.
Vieram homens sérios e calados, no carro negro,
entraram no quarto. Era muito tarde e até o soldado que
montava guarda à porta do Gato Preto veio assistir. Dia
de muita tristeza, que todos eram amigos de Mestre No-
nato e se condoíam de seu silêncio. Tarefeiros vieram
de outras salinas, para além dos mangues, batiam-lhe no
ombro, "é isto, Mestre ... "
E depois que todos saíram, a casa ficou mais vazia,
a salina mais deserta e abandonada. Mestre Nonato
sentou-se na sala, olhos no chão, limpando o sujo das
unhas. Dona Maria, na cozinha, escorada ao fogão, desa-
tava seu sofrer. Os meninos sentados pelos cantos de
parede, encolhidos, brincadeiras esquecidas. Apenas o
caçula, na rede, dava sinal de vida, no choro sem fim.
E ele, Bibio, no fundo do quintal, junto ao galinheiro.
Ali o seu esconderijo. Nele se abrigava de todos os espan-
tos e tragédias. Defendera-se do irmão morto e dos olhos
sem vida de cego Delfino. E como das outras vezes, Mes-
tre Nonato foi buscá-lo. "Saia daí, Bibio. Sua irmã vai
voltar boa." Atravessou a casa e foi para a rua. Ninguém.
Deserta a salina, deserto o campo de futebol. E os amigos?
Apenas Zelito, na janela de sua casa, saudava-o numa
tímida solidariedade. E junto à porta do Gato Preto, fe-
chado desde a morte de seu Zé-Rodrigues, dois dias antes,
o soldado montava guarda, em passeios lentos.
A chuva engrossava. Carros passavam chiando nos
catabis. Gente apressada fugia da água. Na casa em
frente, nenhum sinal de vida. O guarda de oleado descia
a rua, rodando o cassetete, indiferente à chuva, cabeça
levantada, imponente.

92
Chegasse em casa teria de dar explicações. Puxavões
de orelha. "Por onde andou, moleque?" Aproveitara a
visita à irmã no casarão de toda uma rua. Não lhe permi-
tiram que visse Cristina. Ficou sozinho na sala de muitas
cadeiras, admirando a atitude silenciosa da mulher de
branco, sentada à mesinha, lá no canto. "Espere aí, meu
filho." Mestre Nonato entrou. Então, sozinho, olhou
para a rua e identificou a árvore frondosa do outro lado
da praça. Ali parara cego Delfino uma vez. Depois des-
ceram algumas quadras e cego Delfino tocou músicas na
rua de muito movimento, junto ao poste da esquina. De-
fronte, meninos brincavam de roda e as tranças dela voa-
vam, a fita a descer leve pela_cintura ...
Levantou a vista, viu o cassetete girando perto do
rosto.
Está aí fazendo o quê, garoto?
O guarda de oleado. Empertigado, duro, imponente
como uma estátua.
Acocorado como estava, recuou de mansinho, apoian-
do-se no chão, diante dos olhos duas botinas luzidias,
grandes, pretas. E o cassetete a girar . . .
Firmou-se nas pernas, num supetão, e desabalou na
carreira, atropelando o povo, perdeu-se na rua iluminada
e de muitos guarda-chuvas abertos.
O guarda, admirado, parou de rodar o cassetete.

!!!!_ A chuva descia compacta. O barreiro carago era


o " uma lâmina a se estender até o horizonte.
Baldes empapados d'água doce. Escoadeiras bar-
rentas, caudalosas. Toda a salina era uma paisagem cin-
zenta debaixo da chuva. Inverno pegado. Trovões no
nascente, novas e novas cargas desabando nas madrugadas.
Casa do moinho, armazém, paióis, rua de casas de taipa,
choupanas dos brabos, Zona tudo diminuído de ta-
manho, tiritante, sofrido. Apenas as pilhas de sal grosso,
branquinhas, cristalinas, polidas, enfeitavam a paisagem,
perfiladas e mudas.

93
Safra terminada. Tarefeiros sumidos. Quase todas
as casas fechadas. Rameiras da Zona debandavam para
outros pagos, caçavam homens em pensões dos arrabaldes
da cidade. As que ficavam, sem freguesia, procuravam
as praias e os mangues. Subiam em jangadas para forni-
cações em alto-mar. Esperavam a volta dos mariscadores
de caranguejos, lagostas e aratus, saias arregaçadas, lama
grossa alcançando os joelhos, para troca de amores por
mariscos e crustáceos. Impúberes, meninas de seios nas-
centes, comidas de coceiras e tosse brava, juntavam-se
aos moleques, ensinavam-lhes verdades da vida por dois
tostões.
Foi assim que um dia, fim de tarde chuvosa, Bibio
voltava para casa abraçado aos pães e foi seguro pelo
braço, no canto de cerca caída. Não usava tranças. Ca-
belos escorridos, olhos grandes, clavículas pontudas, ras-
gões no vestido muito sujo.
- Bichinho, me dê um pão desse ...
Me solta.
Ela olhou para os lados. Puxou-o para a moita perto.
Vem cá, meu bem.
Bibio sentiu-se abraçado, beijado. Procurava se
soltar, sufocava.
Eu grito. Me solta.
Ela lhe alisou os cabelos. Bibio apertava os pães
e tremia.
Venha, bichinho . . . Pegue aqui.
Sentiu na palma da mão o seio morno. Puxou-o
para si. Os pães caíram.
- Me dê o pão que eu deixo . . . Olhe.
Suspendia o vestido, guiava-lhe a mão para partes
íntimas, enlaçava-o com as coxas finas pontilhadas de
marcas de feridas. Sentiu então um pavor grande, lutou
desesperado, e enlameado, pães sujos, desabalou na car-
reira.
Sob a chuva muita a salina hibernava. A placa pensa
do Gato Preto parecia mais arriada. O soldado se fora.
Dona Candoca também, com suas trouxas e teréns. Dou-
tor Penaforte comprara a bodega e o Gato Preto passaria

94
a armazém para fornecimento aos tarefeiros na prox1ma
safra. De Guedegue nem notícias. A caça fora grande,
por todas as salinas, pela cidade. Boatos muitos. Mas
Guedegue sumira-se com o vento. E muitos ali na salina
juraram por sua inocência. Negra Gertrudes esqueceu
um dia a bebedeira para defender o amigo. Fez escândalo,
apontou nomes, envolveu muita gente na tragédia. Mes-
tre Nonato entrou na fila para os depoimentos. Do apu-
rado, ficou apenas o nome de mais um morto para engros-
sar a lista comprida dos assassinados.
A chuva caía a cântaros. Uma que outra mulher, na
tranqüilidade de sua janela, cismando para o tempo, olhos
mortos na paisagem cinzenta. Um que outro homem
acocorado junto ao grande paiol. Alguma puta velha,
cachimbando no batente de uma das casas da Zona. Até
mesmo o quartinho, de porta escancarada, abandonado
de visitas. No horizonte, o velho cata-vento era um farol
esguio e sem luz, perdido na bruma, voltado para o mar
aberto.
O barreiro carago era uma lâmina d'água. Lama
pegajosa e visguenta. Nela negra Gertrudes, vinda dos
mangues, encachaçada, espojava-se, escancarada e incons-
ciente.
Nos mata-pastos do campo de futebol os sapos
coaxavam. Meninos mais taludas, com o frio e as águas
recebiam a visita da puberdade e se reuniam nas moitas
para a iniciação no vício.
As almas-de-gato, escondidas e tiritantes, não se
aventuravam aos vôos moles às tardinhas.

Rápido estio.
6 Um sol frio e tímido surgiu de entre as nuvens.
Zacarias estendeu o pedaço de esteira sobre o ba-
tente do paiol e se sentou para fazer nada naquele fim
de manhã. Os poucos tarefeiros que escaparam das dis-
pensas em massa não mais punham a cabeça à janela.
Deixavam-se ficar nas redes esperando o tempo passar.

96
Zacarias ficoú ali assoviando baixinho, encolhido,
passeando com carícia os dedos nodosos sobre as muitas
cicatrizes de maxixes espalhadas pelos pés. Cada cicatriz
era urna história de muitos padecimentos. Aquela enorme,
que lhe levara o pedaço de unha, lembrava o maxixe gi-
gante contraído quando ainda tarefeiro brabo, de poucas
safras, chegado do interior, inexperiente e de pele fina.
Mais de mês a arrastar o pé inchado e disforme pelas
sombras dos paióis.
Levantou a vista e, contraindo as pálpebras, divisou
ao longe, corno urna sombra diluída, o velho cata-vento.
Quando chegou na salina, muitos anos atrás, dali mesmo
do batente do paiol, fosse dia chuvoso e de neblina cer-
rada, sabia se o cata-vento estava ou não parado, que a
vista era muito boa. Agora, tarefeiro manso, não seria
capaz de divisá-lo por inteiro, mesmo em dias de muita
luminosidade. A claridade intensa e cegante das épocas
de safras minara-lhe a vista.
Ouviu passos. Mestre Nonato saudava-o:
- Bom-dia, Zacarias.
Sente-se, Mestre. A esteira dá pra dois. Não
está molhada.
De pé estou bem, Zacarias.
Mestre Nonato vinha de calças arregaçadas, canelas
sujas de barro, pés enlameados.
Chego do riacho, Zacarias. Andei por lá veri-
ficando o estrago. Com o chuvão e a maré forte. . . O
mar anda mais brabo que em dia de lua nova. Nunca a
água subiu tanto. Falei para seu Honório que precisa
revisão geral nos aterros. Isto acaba mergulhado corno a
Praia Larga. E do prejuizão eu nem faço juízo.
Ouvi dizer que a Margarida também anda sofren-
do com as chuvas. A bicha foi mal construída. Os aterros
estão virando sorvete. Só que é peixe muito. Ando pen-
sando em ir lá amanhã mais compadre Nascimento, se
a Teresinha melhorar. Sarampão recolhido. Dei o pur-
gante que dona Odete ensinou. Resolveu nada, Mestre,
resolver lá o quê. Febrão. Um piado forte de fim de vida.

97
Se a bichinha melhorar vou mais compadre Nascimento
na Margarida. Quer ir também, Mestre? Me disseram
que cavala ali faz lama.
Nem me fale naquele estrupício, Zacarias. Não
sou de querer mal a ninguém. Mas minha vontade é que
a água leve tudo, por cima e pelas revências. Queria ver
a Margarida no atoleiro, sufocada na papa do carago e
do massapé. Lá paguei muitas vezes os meus pecados.
Ainda me lembro do meu primeiro dia de serviço. Deixei
a mulher com os dois meninos debaixo dum cajueiro e
fui carregar cestos. Me estrepei numa queda, ainda trago
a marca. Ouvi muita descompostura, muito desaforo.
Quando larguei de lá foi para não botar mais os pés. Meu
juramento tem valia. Sou de vergonha, Zacarias.
A São Jorge tirou este ano cento e oitenta mil
sacas de sal. E as pirâmides cobrem os aterros de ponta
a ponta. Seu Leopoldo anda contratando tarefeiro manso
para a outra safra. Conhece negro Dão?
Aquele de pé torto, da Deus-te-Guarde? Conheço.
- Pois seu Leopoldo mandou chamar ele. Também
estou pensando em voltar para lá. Clima de mangue. A
bichinha até que podia ficar boa. A gente formava uma
turma, Mestre. Trabalhar de empreita, na São Jorge, é
bem mais futuro.
Foi lá que lhe conheci, Zacarias. E parece que
você se esquece logo do passado. Pra São Jorge? Vou o
quê, Zacarias. Conheço aquilo. Quantos empreiteiros
saíram de lá brigados? A morte de Mundico dos Anjos,
boiando no Poço da Draga, foi serviço de quem? E o teu
primo, consumido de calos brancos, quem lhe deu ajuda?
O santo da São Jorge é como o da lua: só mostra um
lado. Só penso em largar isto e voltar pro sertão. De sal
estou bem aprendido. Seu Honório falou comigo, pediu
pra eu ficar. Não dei garantia. Estou com a menina no
Asilo, Zacarias. Não posso deixar a pobrezinha no aban-
dono. A Maria chora todos os dias. Aqui na São Fran-
cisco perdi o meu menino mais velho, Cristina amalucou
do juízo, mas pelo menos todo mundo me trata de

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boa paz. Se seu Honório dispensar minha conta no Gato
Preto ...
- Dispensar o quê?
Mestre Nonato desconversou:
- E para onde terá ido dona Candoca, Zacarias?
Andei ouvindo que ela se botou pro outro lado
da cidade, para casa de uns parentes. E Guedegue será
que foi ele, Mestre?
Sei não, Zacarias. Sei não. Eu falei pro doutor
o que eu sabia. E de verdade que eu não sabia nada.
Guedegue era sujeito de manias, mas não estendo a mão
para um juramento. Finado Zé-Rodrigues tinha também
suas violências. Comigo sempre foi de muita bondade, não
tenho o que me queixar. A gente nunca deve se meter
em encrenca dos outros. Quantos já se finaram aqui? ...
Guedegue era homem capaz de tudo, mas o finado, que
Deus me perdoe, possuía seus inimigos. Deixou rastro
desde quando negociava nas salinas do outro lado dos
mangues.
Puxou um cigarro:
Estou pensando, Zacarias: até que nesta safra
pouco foi o acontecido. Até que foi tudo muito normal.
Olhou o tempo:
- E por onde andará Chico Benedito. . . E de cego
Delfino, nunca apareceu um parente para saber notícia
dele. Nunca me falou na sua gente. Dizia só que tinha
sido vaqueiro e que perdeu a vista no sal. Calado com
seus acontecidos. Como velho Alípio ...
- Seu Alípio anda melhorado, vi ele por aqui outro
dia.
Mestre Nonato soltou algumas tragadas:
Vou chegando, Zacarias. A pancada d'água
vem aí.
Também vou, Mestre.
Zacarias levantou-se, enrolou a esteira, prendeu-a
debaixo do braço. Saíram conversando. Os trovões se
chegavam. Nuvens pesadas subiam do mar. Faíscas pin-
celavam o horizonte.

99
Mas Mestre ...
- Sim.
Cheguei a ver o corpo do finado. Ainda hoje me
assombra aquela visão. Estirado numa poça de sangue,
brecha grande na cabeça, a mão segurando uma porção
de fitas. . . Parece que andava arrumando o armarinho
e a pancada foi de surpresa.
Nem é bom a gente falar mais nisto, Zacarias.
Perto do Gato Preto, fechado e no abandono, placa
arriada, bamba, quase a cair, descobriram o homem que
passava sobre o aterro. Saudaram-no. E ele se chegou.
Como vai o São Jorge, Zé-Mílton?
Trocaram novidades. O tarefeiro falou das chuvas
muitas, do prejuízo de quase três mil sacas de sal. O in-
verno chegou ainda quando muito sal estava sendo cris-
talizado.
Seu Leopoldo ficou doido da vida. Dispensou
meio mundo, até mesmo velho Mestre Pedro Ramos entrou
na dança.
Zé-Mílton ...
- Diga, Mestre.
- A São Jorge conheço bem. O que tem de grande
tem de amaldiçoada . . .
Demoraram-se na conversa. A chuva surpreendeu-
-os. Chicoteante, rápida, cerrada. Dispersaram-se na
carreira.
Zacarias abrigou-se ao beiral do velho paiol de saca-
rias. Ali ficou, abraçado à esteira, vendo a chuva cair,
chicotear a vasta salina em vassouradas ligeiras. Pilhas
de sal grosso, perfiladas sobre os aterros, pareciam tiri-
tantes. Uma solidão e um abandono.
Ali consumira suas forças, sua vista. Enchera-se de
maxixes e calos brancos. O pau dos balaios deformara-lhe
o ombro. Brechas enormes enfeitavam-lhe a sola dos pés.
Nada tinha de seu. Quando chegou na salina, brabo e
cheio de esperanças, ouviu de velho Nocrato: "Cloreto
come que nem ferida braba, Zacarias".

100
A chuva afinava. A manhã de inverno espalhava por
toda a parte uma moleza, uma quebradeira de preguiça.
As pancadas d'água levaram todos para outros pagos.
Ficaram os mestres tarefeiros, curtidos e calejados de
muitas safras. Na pasmaceira e na preguiça esperariam
meses, revendo revências e limpando baldes, recebendo
metade de diária para o sustento, até que o sol voltasse
a brilhar em toda a sua luminosidade cegante e os magotes
de tarefeiros, vindos dos sertões e dos arrabaldes da cida-
de, de todas as idades, sadios e doentes, voltassem para as
novas safras.
Passou Mestre Nonato rumo de casa.
Ainda aí, Zacarias? Passei a chuva na casa de
Romualdo.
- Pelo jeito o tempo vai levantar ...
Parece.
Seu Honório já mandou descer o resto do sal pro.
armazém da cidade?
O caminhão levou tudo muito cedo. De sal moído
agora aqui na salina, amigo. Zacarias, só comprando ...
- Ouvi falar em encalhe.
- Também ouvi essa conversa, no começo da safra.
Mas já reparou, amigo Zacarias, que todos os anos doutor
Penaforte aparece com a mesma conversa de que o sal
está sem preço?
A São Jorge gritou até pelo jornal que andava
com um prejuizão medonho, por causa do encalhe, quan-
do os chefes de turma foram pedir melhor preço pelas
empreitas.
- Me lembro.
Zacarias, abraçado à esteira, com as pontas dos dedos
çoçava O queixo.
Mestre, não tem remédio que dê jeito ...
- De quê? ...
- A Teresinha. A bichinha está se consumindo no
sarampo.
Pra sarampo não tem remédio nem de doutor,
Zacarias. É reima de criança. Vai embora como vem.

101
Estou pensando em falar com seu Honório, ele
conhece um médico ...
- De doutor estou desiludido. Minha menina está
no Asilo sofrerido mais dia e dia, e cadê a ciência deles?
Ainda ontem levei pra ela umas fitas, que era o de que
mais gostava. Pois ela se assombrou e precisou dois en-
fermeiros para agarrar ela e amarrar. Não contei nada
pra Maria.
É sina, Mestre ...
Me conformo com os castigos de Deus, Zacarias.
A chuva voltava a engrossar. Despediram-se. Za-
carias cobriu-se com a esteira e marchou ligeiro para casa.
Mestre Nonato, indiferente aos pingos grossos, anda-
va devagar.

7
Noite fechada. Chuva constante, tamborilando no
telhado. Cusparadas de goteira no canto da sala.
O vento a entrar pelas frinchas da porta e janela.
Toda a salina dormia debaixo do aguaceiro e das tro-
voadas.
Mestre Nonato estirou-se na rede, armada na sala,
acendeu outro cigarro. Dona Maria, no tamborete, junto
à parede, remendava panos, a lamparina sobre o caixão
de querosene. Bibio encolhido no canto contava os pingos
da goteira.
- Maria ...

- Bota uma vasilha para aparar essa goteira.


A mãe ordenou ao filho:
Vá buscar uma panela, Bibio. Traga aquela de
aselha quebrada. Está no canto do fogão.
Bibio levantou-se sonolento, marchou para o corredor
escuro, passando por debaixo das redes.
Mestre Nonato embalava-se de leve. Os relâmpagos
clareavam em chicotadas rápidas.
A coitadinha está lá sozinha, hem, Nonato ...
Bibio voltou, pôs a panela no chão, e os pingos da
goteira mudaram de som.

102
- Lá é que ela devia estar há muito tempo, Maria.
Perdeu um tempão andando solta aqui na salina. Me
arrependo disso. Bem tinha razão velho Irineu. Disse
muita vez que a maresia para a moleira dela era muito
reimosa.
- E será que ela fica boa mesmo?
Primeiro soltou algumas tragadas e, apoiando a mão
no chão, impulsionou a rede.
- Você viu o doutor falar. A doença tem muita
dificuldade ...
Mestre Nonato lembrou-se da noite em que fora
assistir a tragédia de Zé-Rodrigues. Na volta vira a filha
ali na sala, olhar de angústia, "pai, perdi minha fita". Desde
então, Cristina ficou triste. E, alucinada, correu para a
rua, nua e possessa.
Nonato ...
Que é?
Seu Honório combinou tudo direito?
Sentou-se na rede, jogou a ponta de cigarro no chão,
pisou.
Falei pra ele na dívida. Até pensei em ficar
calado. Mas a gente tem que olhar pro direito. E eu
devia pro finado. Um conto e oitocentos é muito dinheiro.
Não sou de safadagens. Pois contei tudo a seu Honório.
Dona Maria suspendeu o trabalho, olhos no marido,
agulha paralisada. Mestre Nonato levantou-se, ajeitou o
punho da rede, voltou a deitar-se.
Me falou que ia pensar. Esculhambou o finado,
que ele me roubou nas contas. Não sou de crença. Finado
Zé-Rodrigues era meu amigo. Tinha suas brigas, mas não
era de carregar nas contas, pelo menos comigo. Tenho
certeza.
E seu Honório vai dispensar a dívida?
Sei lá! Só falei ...
Tossiu, ralhou com Bibio para deixar a panela em
paz.
Quer que eu fique para a outra safra. . . ln-
sistiu.

104
Justificou, áspero:
- O que eu posso fazer, mulher? A menina não
pode ficar largada no Asilo.
A trovoada ribombava, a chuva metralhava forte.
Mas a gente larga isto, Maria. É só a menina
voltar boa. Invernão como este vi poucos. O sertão está
nadando no aguaceiro. O que a gente ganhou saindo de
lá? Velho Alípio anda mudado, limpo da vista. Benedito
deve andar na grandeza, no Sul. Até Delfino fez muito
bem se finando. Zacarias meteu-se no cloreto primeiro do
que eu e só tem é padecido.
Silêncio longo. E o pinga-pinga lá fora.
A filha dele está muito doente de sarampo ...
A filha de quem?
A Teresinha, de Zacarias.
Ele me falou ...
Agora era dona Maria quem ralhava com o filho
para não brincar com a panela.
- Maria ...
Que é?
- Ouvi hoje de tarde Romualdo dizer que Guedegue
foi pro Amazonas.
Olhar de muita interrogação e curiosidade:
- E quem contou pra ele, Nonato?
Andou ouvindo essa conversa lá pela São Jorge.
Esbravejou:
- Larga a merda da panela, Bibio! Deixa a goteira
em paz.
Olhar duro de repreensão para o filho. Depois tossiu,
bocejou, reatou a conversa, olhos na lamparina:
Ainda estou na intenção que não foi ele ...
- E quem foi?
Sei lá. Quantos já se danaram aqui? Se lembra
do Policarpo, do Abel, do Cosme? E a mulher de Bene-
dives, no ano passado, se lembra? Todo o mundo botou
culpa no Antônio Pedro. Foi preso. E ele bem que estava
na sua inocência.
Alisou o calo do ombro, mondrongo desconforme:

105
- - Tem uma coisa me avisando que não foi Guede-
gue. . . E ajeita o pavio da lamparina, o fumaceiro está
muito grande.
Dona Maria abandonou o serviço e com um grampo
socou o pavio no bico da lamparina, diminuindo o lume.
Os trovões ribombavam longe. A chuva afinava. Silên-
cio grande. Ronco dos filhos nas redes, no corredor e
quarto. Pingos compassados da goteira.
Mestre Nonato soltou o berro, em pé, perto do filho:
Menino maluvido! Larga a porra dessa panela!
Já pra rede, vamos!
Bibio levantou-se, saiu escorando-se pela parede,
olhos no pai, sumiu-se no corredor. Mestre Nonato con-
tinuou recriminando:
- Este moleque anda com o cão nos couros. Ainda
lhe dou uma surra de cinturão para se ajeitar. Anda de
cabeça virada. Naquele dia que fomos ver Cristina, fugiu
e chegou noite alta, você aqui morrendo de agonia. No
dia em que chegou com os pães sujos de lama não dei
um ensino nele por causa de você.
- O bichinho ...
Não é mais. criança. Anda precisando de uns
consertos. Na próxima safra vai ter o que fazer. Está
taludo, precisa dar um fim à vadiagem.
Da cozinha, na rede armada quase sobre o fogão,
vestido e sujo como estava, Bibio ouvia as recriminações.
A mãe também se metia na conversa. Falaram muito
a seu respeito. Ouvia tudo com os olhos muito abertos,
coração pulsando forte.
Notou que a claridade da lamparina chegava à co-
zinha. Dirigiam-se para o quarto. Continuou atento à
conversa cochichada, agora sobre outros assuntos, inter-
rompida por longos silêncios. Os relâmpagos desapare-
ceram. Apenas a goteira na sala pinga-pingava lenta e os
mesmos roncos dos irmãos. E do galinheiro vinham coco-
rocós gasguitos. Então começou a alisar a borda da rede,
de leve. E como nas últimas noites, sentia na palma da
mão o contato morno de um seio túmido. O gesto era o
mesmo de quando acariciava compridas tranças, dedos

106
correndo, de mansinho, a borda da rede, em gostosa carí-
cia. A mão ia e vinha. A pele era macia e o seio crescia
para o agrado. Seus olhos eram grandes, clavículas pro-
nunciadas, cabelos escorridos. Abraçava-o, beijava-o, der-
rubava-o na lama, suspendia o vestido e guiava-lhe a mão
para os seus segredos.
A mão abandonou a borda da rede, desceu como
um animalzinho de muitas pernas, pousou na parte secreta
do corpo, como lhe ensinara Zelito, num dia em que fo-
ram banhar-se no riacho. E ela, os olhos muito grandes,
oferecia-se como uma flor, os cabelos lisos e sem brilho
transformaram-se em belas tranças louras. E ele a domi-
nava, louca a sua carícia, e a barra do vestido lhe cobria
o rosto, em rodopios violentos, até se perderem no in-
finito ...
Depois, abandonou-se numa lassidão e sentiu-se
envolto em grande paz.
A chuva voltava a cair, sonora. A goteira, na sala,
apressava as cusparadas.

108
M
estre Nonato subiu ao aterro.
Dormia a salina na manhã de inverno. Vapores
subiam dos baldes. Cinzentas dunas ondulavam
no lusco-fusco dos primeiros raios frios. Casebres fechados,
engelhados no sono.
Chutou o torrão mole de barro, que pingou frag-
mentado na água barrenta da escoadeira. Círculos de
pequeninas ondas abriram-se corno olhos. Ficou a obser-
vá-los. Velho Alípio, os olhos duas postas de sangue,
estriados, lenço a enxugá-los, "bom-dia, Mestre".
Acendeu o cigarro, foi e voltou, em passadas curtas.
O Gato Preto, pegado à casa do moinho, com sua placa
quase a cair. Cego Delfino, acocorado, encolhido, fetal,
viola e cacete ao lado. Zé-Rodrigues abria os braços, no
bocejo longo, cabelos do peito branquejando de sal moído,
"Mestre, aqui o senhor manda ... " Guedegue no passo
bambo de jangadeiro, ferro-de-cova às costas, "faço o seu
serviço, Mestre".
Acocorou-se voltado para a rua de casebres, braços
pendidos sobre os joelhos. Ali a sua casa, imprensada entre
outras, rnirradinha, sufocada, pegada à de Chico Benedito,
a tiritar de febre, maxixes muitos nos pés inflamados, "lar-
go isto e vou pro Sul, Mestre". E os homens passavam
conduzindo a rede, sangue do assassinado a gotejar no
chão. A viração soprou forte, fria, zoando na planície
"Daniel! Daniel!" O cortejo perdia-se dentro da noite, can-
deias pontilhavam os cristalizadores de luzinhas de sangue.
Tarefeiros jogavam onça, à sombra do grande paiol, coça-
vam suas mazelas, esfregavam os olhos inflamados, e seu
Honório tornava apontamentos, metido nos suspensórios,
eficiente, braço estendido a contar cestos e carros-de-mão
que carreavam sal dos baldes. Então negra Gertrudes
estendeu os braços para a amplidão, do alto do aterro,
clamou desvairada pelo seu homem. Corno urna pomba
da paz, procurava intervir, "vamos deixar de tolice, meu
povo". Os lábios do filho mais velho pediam socorro,
sacas de muitos quilos sufocavam-lhe o peito ...

110
Jogou fora a ponta de cigarro. Espreguiçou-se. Le-
vantou-se, desemperrando os nervos. Permaneceu ali sobre
o aterro, a fitar a vasta salina, o céu de chumbo. Nuvens
de carneirinhos traziam trechos picados do Capineiro, o
ramo murcho era um companheiro inseparável, "perdi
minha fita, pai ... " Ela corria em torno da mãe, debaixo
do cajueiro, e as tábuas podres e escorregadias do empran-
chamento estendiam-se como uma ponte imensa solta no
espaço, "despeje tudo naquela pilha e volte logo".
Acariciou o calo do ombro, lagarto imenso, herança
de anos e anos a carrear cestos de sal, vista curta, sinais
de maxixes e calos brancos, brechas profundas na sola dos
pés. Descobrindo-se da bruma, os casebres dos brabos e
a Zona das raparigas. Pagodeiras e acordes de violões,
mulheres desgrenhadas, peitos à mostra, a correr no des-
vario do porre. E chegava gente de longe, dos mais dis-
tantes confins dos mangues, cortejo silencioso de candeias
enfrentando a noite chuvosa para apreciar de perto a
tragédia de Zé-Rodrigues. Os pés se destacavam do caixão
e cego Delfino impunha respeito e silêncio com sua ausên-
cia. Guedegue apreciava da janela, capiongo, triste, talvez
fosse verdade o que o povo falava em cochichos malicio-
sos, "tem urubu arrastando asa perto de sua filha, Mestre".
A salina hibernava. Chocadores, escoadeiras, cercos
tudo um manancial de água doce. E os pingos ralos
a cair, a descer impertinentes. Inverno pegado. Lá tinha
seus teréns, roçado com milharal empendoado, "seu Ma-
nezinho, se lembra dele?" Tinha tranqüilidade, seus amigos
e bem viver, "salina só tem beleza por fora, ·Nonato. Rói
por dentro que nem rato".
Largo isto ...
Falando só, Mestre?
-Hem! ...
Virou-se, estudou posição, pigarreou:
- Bom-dia, Misael.
Estava rezando, Mestre?

Chuvarada muita, hem?

111
- Ora ...
Misael se foi, braços cruzados, encolhido, soprando
a friagem. Parou adiante, virou-se:
- A filha de seu Zacarias morreu de madrugada.
Sarampo. Já sabia, Mestre?
Não respondeu. Respirou fundo, acendeu outro cigar-
ro e, em passadas lentas, evitando poças d'água, marchou
para a casa do amigo.
O apito da fábrica, no subúrbio distante, chamava os
operários.

Impresso por
W. Roth & Cia. Ltda.
R. Professor Pedreira de Freitas, 580
Fones' 295-9684 e 295-9691
São Paulo

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