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Out. 2020

O J O R N A L D E L I T E R AT U R A D O B R AS I L

ARTE DA CAPA: JOANA VELOZO


2 | OUTUBRO DE 2020

O novo
Rascunho e desde 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal


da Editora Letras & Livros Ltda.

suas batalhas
CNPJ: 03.797.664/0001-11
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N
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o Brasil, a palavra li- ca, mesmo que de maneira microscópica num país Nina, Giovana Madalosso, Hen-
teratura e todo o seu imenso, dilatar a consciência dos leitores, abrir rique Rodrigues, Itamar Vieira instagram.com/jornalrascunho
entorno remetem, in- frestas para novas experiências diante da palavra Junior, Julia Dantas, Luiz Ruffa-
felizmente, a uma ideia escrita, fisgar desavisados, estimular os bons de- to, Marcelo Moutinho, Mariana
EDITOR
de resistência. Não é difícil enten- bates, apresentar a literatura brasileira, discuti-la, Ianelli, Socorro Acioli. Novos no- Rogério Pereira
der. Basta um simples olhar ao re- promovê-la. Enfim, enfrentamos muitas batalhas mes serão anunciados em breve.
dor: índices de leitura pífios (para a cada edição. E lutamos ferozmente pela vitória Neste início, estarão dispo- EDITOR-ASSISTENTE
Luiz Rebinski
não dizer ridículos, como mostra a cada uma delas. níveis no site todas as edições en-
a mais recente pesquisa Retratos É com este espírito (e não falemos das dificul- tre 2018 e 2020. Num processo EDITORA DE POESIA
da Leitura no Brasil), alfabetização dades que esta pandemia nos coloca) que o Rascu- contínuo, as demais edições serão Mariana Ianelli
precária, multidão de analfabetos, nho decidiu, mais uma vez, apostar na civilidade, atualizadas até a número zero, de EDITOR DE FICÇÃO
escolas sucateadas, professores ao no fortalecimento da cidadania, na oportunidade 8 de abril de 2000. A versão digital Samarone Dias
deus-dará, um governo (provi- ao outro, no gesto de ampliar as possibilidades de do Rascunho será uma referência
sório) que preza pela ignorância, leitura. Este número marca o crescimento da edi- para pesquisas sobre a literatura DIRETOR DE ARTE
Alexandre De Mari
violência e outras desumanidades. ção impressa de 32 para 48 páginas. Com isso, ob- brasileira nos últimos 20 anos.
Poderíamos enumerar uma lista gi- viamente, teremos ainda mais espaço à literatura, Para além da dedicação de REDAÇÃO | REDES SOCIAIS
gantesca das dificuldades que ron- às ideias, às boas batalhas. Sempre com o espírito dezenas de colaboradores (nes- João Lucas Dusi

dam o universo literário neste país crítico que marca a trajetória do Rascunho desde ta edição, por exemplo, cerca de DESIGN
que nos sufoca, seja pela violência, sua fundação. Novos colunistas e colaboradores (e 60 pessoas contribuíram de algu- Thapcom.com
abandono, corrupção, desprezo sem eles nada disso seria possível) chegarão em bre- ma maneira), o Rascunho passa a
IMPRESSÃO
dos governos e agora, literalmente, ve, como Noemi Jaffe, José Castilho e Nilma Lacer- ter um sistema de assinatura recor- Press Alternativa
pela fumaça das queimadas. Mas da, para citar apenas três nomes que estarão ao lado rente mensal para as versões digi-
do que adianta a teoria sem a ação, daqueles que já integram nossa equipe. tal e impressa. COLUNISTAS
Alcir Pécora
a reclamação sem o ato? Além de maior, o Rascunho também está Sabemos que diante dos Carola Saavedra
Ao ultrapassar os 20 anos mais bonito e elegante, com os providenciais ajus- inúmeros problemas e priorida- Eduardo Ferreira
de estrada, completados em tes realizados no projeto gráfico pelo talentoso Ale- des sociais que envolvem o Brasil, João Cezar de Castro Rocha
Jonatan Silva
abril, o Rascunho sempre esteve xandre De Mari e sua equipe do Estúdio Thapcom. um jornal de literatura contribui José Castello
diante desta palavra: resistência. Com a consolidação do Rascunho como de maneira quase imperceptível Luiz Antonio de Assis Brasil
Mas para além de resistir, sobre- veículo impresso, mesmo nestes tempos em que — uma aparente invisibilidade. Miguel Sanches Neto
viver, manter-se, seguir adian- publicações impressas agonizam, chegou a hora de Mesmo perante a esta suposta fra- Nelson de Oliveira
Raimundo Carrero
te ou qualquer outro verbo que também olhar com mais atenção para o mundo gilidade, o Rascunho segue acredi- Rinaldo de Fernandes
nos impulsione, o jornal nunca digital. Com isso, colocamos no ar em outubro o tando na capacidade que os livros, Rogério Pereira
abandonou a ideia de que é possí- novíssimo site rascunho.com.br, igualmente de- a literatura e as boas histórias têm Tércia Montenegro
Wilberth Salgueiro
vel contribuir com um Brasil di- senvolvido pela Thapcom. Além de todo o conteú- de reforçar a nossa cidadania e,
ferente deste que alguns tentam do da versão impressa, o leitor encontrará notícias com isso, contribuir de alguma COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
nos enfiar goela abaixo. Ao dedi- diárias, conteúdo exclusivo (resenhas, ensaios, en- maneira para o país diminuir cer- Adriana Lisboa
André Caramuru Aubert
car sua existência à literatura, aos trevistas) e uma plural equipe de cronistas, for- ta escuridão que o envolve. Esta é Carl Einstein
livros, à leitura, o Rascunho bus- mada por autores como Carolina Vigna, Claudia uma batalha que vale a pena. Carla Bessa
Delmore Schwartz
Fabio Silvestre Cardoso
Fernanda Nali
Gabriela Silva
Iara Machado Pinheiro

6 26
Jorge Ialanji Filholini
José Roberto Torero
Kathrin Rosenfield
Luís Augusto Fischer
Luis Marcio Silva
Luiz Horácio
Luiza Mussnich

Entrevista A atualidade de Dickens Márcia Ligia Guidin


Marcos Alvito
Marcos Pasche
Domenico Starnone Fabio Silvestre Cardoso
Maria Aparecida Barbosa

10 40
Maurício Melo Júnior
Rosalba Campra
Tomaz Amorim Izabel
Vanessa Brulon

ILUSTRADORES
Aline Daka
Conversas flutuantes Quarentenas Bruno Schier
Carolina Vigna
Natalia Borges Polesso José Roberto Torero Conde Baltazar

17 42
Dê Almeida
Denise Gonçalves
Fabio Abreu
FP Rodrigues
Joana Velozo
Kleverson Mariano
Márcia Gadioli

Inquérito Da interpretação Mariana Tavares


Miguel Rodrigues
Rafael Cairo
Tiago Ferro Rosalba Campra
Raquel Matsushita
Tereza Yamashita
OUTUBRO DE 2020 | 3

jonatan silva eduardo ferreira


VIDRAÇA TRANSLATO

Benedetti inédito MÚSICA E


dos fragmentos de memória que o inspiraram? Mais
um caso de soberana rebeldia do leitor/tradutor...
DIVULGAÇÃO Caetano recorda que o senhor português lhe pa-

TRADUÇÃO
recia “certo de conhecer melhor as intenções da mi-
nha composição do que eu”, o que, claro, chocaria
qualquer autor. Mas comenta, ao final do relato, re-
signado: “… eu já sabia então que as canções têm vida
própria e que outros podem revelar-lhes sentidos que
seu autor não teria suspeitado”. É assim que funciona.

A
Outra reflexão inspiradora vem de um texto de
música e a canção ofe- João do Rio, A musa das ruas, em que o autor discor-
recem farta substância re sobre os poetas populares, os trovadores da calça-
para a tradução e para da. Entre outros, menciona, com boa dose de ironia,
a reflexão que se pode o “Sr. Catulo”, “esteta da prosa popular”, compositor
No ano em que o uruguaio Mario Benedetti completaria cem construir sobre esse ofício. De fa- de canções com base em peças musicais preexisten-
anos, os leitores têm o que comemorar. Foi encontrado, em um to, a música, em suas diversas for- tes. Segundo o cronista carioca, Catulo sentenciava:
arquivo pessoal do escritor, um romance inacabado, com cerca de mas, representa campo fértil para “Há algumas dessas músicas que me fazem levar ho-
80 páginas. Com correções feitas à mão pelo próprio Benedetti, o uma série de processos tradutó- ras inteiras a interpretar-lhes os sentimentos, os quei-
material — encontrado após pedido de jornalistas para publicar rios. Alguns mais óbvios, como as xumes, as mágoas de que sofrem seus autores”.
cartas do escritor — está em análise para possível publicação. versões de canções de uma língua E Catulo não duvidava um segundo de seu ta-
a outra; outros mais sutis, como as lento nem do apuro certeiro de suas transcriações, as-
Leitura em queda distintas interpretações de uma le- severando que seu verso se adaptava perfeitamente à
Segundo levantamento do Retratos da Leitura no Brasil, o tra de música ou a composição da melodia, transmitindo exatamente o que dizia a mú-
mais importante indicador do consumo de literatura no país, letra sobre melodia preexistente. sica, com todas as suas cores.
o brasileiro está reduzindo o seu hábito de leitura. O principal Caetano Veloso, em seu Ver- Eis aí, ressalvados o deboche de João do Rio e a
vilão é o tempo gasto nas redes sociais. Entre 2015 e 2019, o dade tropical, relata experiência presunção do Sr. Catulo, um belo exemplo de tradu-
Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores. A queda foi maior entre vivida em Portugal, onde um se- ção intersemiótica. Algo bem mais complexo e, apesar
as classes A e B, com ensino superior. nhor, tido como alquimista, lhe das alegações de Catulo, bem mais impreciso do que a
ofereceu interpretação surpreen- já impossível tradução entre textos. Afinal, transformar
As cartas de Clarice dente (para ele, Caetano) da letra melodia em versos é processo que exige bons conhe-
Para celebrar o centenário de Clarice Lispector, a Rocco lança da canção Tropicália. O composi- cimentos de música e da linguagem poética. Especial-
Todas as cartas, que reúne a correspondência mantida pela tor se admirou ante a leitura que mente quando se tem a pretensão de ser preciso, ou,
autora com destinatários do calibre de João Cabral de Melo o alquimista português emprestou melhor, perfeito.
Neto, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e aos versos, “tudo […] tomado à le- E mesmo que não se tenha a ambição do subli-
Mário de Andrade. Com quase 900 páginas, o livro é um acervo tra e valorado positivamente”, sem me, já parece tarefa suficientemente abstrusa a iden-
fundamental para entender a vida e a obra de Clarice. nenhum reconhecimento dos tra- tificação de sentimentos e ideias na linha melódica e,
ços de ironia e denúncia política na sequência, sua transcrição em versos que se ajus-
Ano da gripe que o próprio autor lhes atribuía. tem ao compasso musical. Por isso as horas e horas
As historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, autoras de E, relata Caetano, não adian- que Catulo dedicava a esse trabalho, naqueles casos
Brasil: uma biografia, acabam de lançar A bailarina da morte: tou argumentar que o sentido mais difíceis...
a gripe espanhola no Brasil (Companhia das Letras). O livro “original” da letra era bem outro, No fim das contas, a tradução será sempre mais
se pretende como uma investigação da doença, sua história e muito mais sombrio e negativo. complexa quanto mais de perto a pretendamos ana-
consequências, além das semelhas com o coronavírus. Ante a contestação do autor, risos lisar. Haverá sempre algo vivo a levar em conta, algo
e sorrisos do alquimista, arremata- que transcende a letra morta ou mesmo a interpre-
Rosa e Rónai dos por um comentário instigan- tação mecânica de uma música. Como diria Rainer
A amizade e a admiração mútua entre Paulo Rónai e Guimarães te: “O que sabem as mães sobre os Maria Rilke, traduzir envolve identificar e preservar
Rosa parece ter passado ao largo da história da literatura seus filhos?”. De fato, o que sabe o movimento, o ritmo e a música do original. Preser-
brasileira. O volume Rosa & Rónai, organizado por Ana o autor sobre seu texto, para além var o calor de um organismo vivo.
Cecília Impellizieri Martins Zsuzsanna Spiry, e publicado pela
Bazar do Tempo, reúne ensaios, críticas e outros textos sobre o
autor de Grande sertão: veredas.

Polemista
A Companhia das Letras publicou a coletânea Notas de um
filho nativo, ensaios de James Baldwin, escritos entre 1940
rinaldo de fernandes
e 1950. Com tradução de Paulo Henriques Britto, o volume RODAPÉ
concentra textos nos quais o escritor reflete sobre a condição

O PERU DE NATAL,
humana e traz escritos adicionais de Teju Cole, Paulo
Roberto Pires e Edward P. James.

DE MÁRIO DE ANDRADE
Paz e literatura
Margaret Adwood, autora de O conto da aia, venceu em
setembro o Prêmio Richard C. Holbrooke. A premiação
leva em consideração as ações da escritora em prol de um
mundo mais pacífico e compassivo e é uma homenagem ao

O
diplomata que ajudou nas das negociações de paz na Bósnia
e Herzegovina, em 1995. conto O peru de Natal to ao próprio narrador. Este é às dor, são “dois mortos” — e vence
trata de um rito fami- vezes rebelde, desafeito às regras, o animal, que será devorado no
liar. Narrado em pri- aos ritos familiares (tanto que é ti- momento da ceia, enquanto o pai
meira pessoa, repassa as do por alguns como “um doido”). vai sendo preterido, até sair de ce-
Breves impressões de um filho no primei- Mas é também integrado, prote- na, até ser esquecido no desfecho
• A Global relança O menino • O paranaense Rodrigo Garcia Lopes acaba
ro Natal após a morte do pai. A fi- gido e protetor da figura materna. da comilança. O narrador ajuda
e o tuim, um dos textos de lançar seu sétimo livro de poemas,
gura do pai aparece ambígua no Quanto à simbologia: consagrado a abafar essa memória desconfor-
mais importantes de Rubem O enigma das ondas, pela Iluminuras. conto. Do ponto de vista do nar- ao rito do Natal e a outros ritos e tável do pai e até saboreia, junto
Braga. Publicada em 1958, a rador, o pai é uma memória a ser festas familiares, onde sempre é o com os nacos de peru, essa des-
crônica é considerada uma • Com tradução de Eric Nepomuceno, cultivada? Ou deve ser posta de la- prato principal, o peru é no con- lembrança momentânea do geni-
das obras-primas do gênero. Pedro Páramo, clássico de Juan do? Há silêncios, não ditos, na voz to emblema de confraternização tor. E buscará, ao final, o prazer
Rulfo, ganha neste mês uma nova narrativa. O que dá a entender ter e ainda de tensão. Especialmente de dividir uma champanhe com a
edição pela José Olympio.
RUBEM BRAGA POR OSVALTER

sido o pai um tipo comedido, até quando entre em disputa, na ho- namorada. Os laços familiares, as-
• A Leitura inaugurou a 14ª loja no estado avarento, ou mesmo opressor, do- ra da ceia, com a lembrança — sim, são vistos por Mário de An-
de São Paulo e se consolida como a maior minador. A mãe do narrador, por para o narrador um tanto tensa, drade como estreitos e frouxos, ou
rede de livrarias do Brasil, somando sua vez, é benevolente, agregado- inapropriada — da figura pater- assimétricos — com harmonias e
74 lojas físicas em todo o país. ra, impõe-se pelo carisma jun- na. Pai e peru, conforme o narra- dissonâncias.
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OUTUBRO DE 2020 | 5

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

MEMÓRIAS DE UM LADRÃO

A
Ilustração: Aline Daka
pedido do escritor Jo- e, de vez em quando, sentava-me
natan Silva, analista de para ler. Ao longo de muitas tar-
Literatura do Sesc, es- des, indo e voltando assombra-
crevo a lista dos cinco li- do pelas alamedas do jardim, eu
vros que mais marcaram minha li meu primeiro livro de Clarice.
formação. Diante da lista pronta, Logo que terminei a leitura de
tomo um susto: dois dos cinco li- G. H., porém, adoeci. Uma fe-
vros foram roubados. Sim, eu não bre violenta, calafrios, um cansa-
os comprei, ou ganhei de presen- ço forte. Meus pais estavam em
te, eu os roubei. Para me livrar da viagem. Minha avó Iracema cha-
indisposição que essa lembrança mou um médico. Doutor Wan-
produz em mim, venho aqui con- gler, ele se chamava. Um senhor
fessar meus pequenos crimes. de cabeça muito branca, ele-
Aos oito anos de idade, gante em seu paletó com grava-
roubei meu primeiro livro. Um ta, distinto e silencioso. Ele me
exemplar do Robinson Crusoé, examinou longamente, com de-
de Daniel Defoe, editado pela licadeza e cuidado. Depois disse
Organização Simões, do Rio de para minha avó: “Não se preocu-
Janeiro, em 1952. Eu o encontrei pe. Vai passar. É só uma paixoni-
na pequena biblioteca de minha te”. Não sei como, mas o doutor
Tia Enyci. Podia pedir o livro em- Wangler “leu” A paixão segundo
prestado, ela me emprestaria sem G. H. em meu corpo. Eu sofria
vacilar. Mas eu não queria um de uma paixão pelo livro que li.
empréstimo, eu queria tê-lo pa- Meu terceiro roubo foi mais
ra mim. Então, levado por um dramático. Aconteceu em 1972,
impulso que nunca sentira antes, quando eu ainda era um estudan-
trêmulo como um assassino, eu o te. Sempre com pouco dinheiro,
enfiei dentro de minha camisa e entrei na Livraria Leonardo Da
o levei para casa. Vinci, no centro do Rio — um
Meu roubo, sou obrigado a lugar quase sagrado, que eu volta-
dizer, valeu a pena. A leitura do va sempre a visitar. Os livros eram
Robinson Crusoe marcou minha importados, e por isso muito ca-
vida. Posso dizer até que, de certo ros. Eu ia à Da Vinci para só fo-
modo muito íntimo, eu nasci en- lheá-los e para sonhar. Um dia,
quanto o lia. Li o romance de De- esbarrei com um livro de Michel
foe, pela primeira vez, na varanda Foucault que me chamou a aten-
da casa de veraneio que meus pais ção. As palavras e as coisas pa-
tinham em Teresópolis, na monta- recia conter muitos segredos. Dei
nha. Eram as férias de verão. Lem- voltas pela livraria, fucei as prate-
bro que o li deitado em uma rede leiras, mas sempre voltava ao livro
nordestina que meu pai trouxera de Foucault. Até que, num ímpe-
do Piauí. Seria mais correto dizer: to, resolvi roubá-lo.
afundado na rede, nela mergulha- Não o escondi: simples-
do, como um fugitivo. mente o peguei, coloquei-o sob
Logo me identifiquei com o braço como se fosse meu, e saí.
a história daquele náufrago que Subi a Avenida Rio Branco a pas-
é obrigado a viver em uma ilha sos largos. Duas ou três quadras
remota, sozinho, onde deve re- depois, um homem me agarrou
construir sua vida a partir dos pelas costas. Era o segurança da
destroços de um navio. Renascer livraria. Limitou-se a dizer que
a partir do nada. Do zero. Aos oi- eu devia segui-lo. De volta à Da
to anos de idade, eu era um me- Vinci, Dona Vanna, a antiga pro-
nino tímido, arredio e, sobretudo, prietária, uma mulher com ares de
muito solitário. Também eu me grande atriz, me recebeu. Depois
sentia um náufrago. Logo me vi Nada disso me deteve. Fui do — o meu traz o número 0240. de ouvir o relato do segurança, pa-
em Robinson, logo nele encontrei ao caixa e, trêmulo, comprei de Nunca tinha lido Clarice. A capa ra meu espanto, limitou-se a me
um espelho em que me amparar. volta meu livro. Sim, dessa vez eu rosa, devo admitir, me provocou perguntar: “Você se interessa pe-
Através do livro, enfim, cheguei a paguei, e não roubei. Decidi en- uma mistura de repulsa e confu- las ideias do Foucault?”
mim. Enfim, cheguei ao que sou. tão — simplesmente porque de- são. Ela, indicava, eu imaginei, Quis saber que livros eu
Acabei perdendo meu velho cidi, sem nenhum outro motivo, uma “literatura para moças”. lia, se tinha o hábito de escrever,
exemplar do Robinson Crusoé. agindo agora como um ladrão de Uma rápida folheada no li- o que achava de Michel Foucault.
Mas não — talvez não seja exata- sentidos — que este “é” o livro vro, sem grande interesse e espe- No fim, muito calma, ela disse:
mente isso. Muitos anos depois, que me pertenceu. O livro amado rança, no entanto, me fisgou. Já na “Sinto que você precisa desse li-
no fim da década de 1990, já vi- que, tantos anos depois, voltou até abertura, o romance, que começa vro. Eu faço questão de lhe em-
vendo em Curitiba, reencontrei-o mim. E aqui está ele, a meu lado, com seis travessões, me perturbou. prestar. Quando você terminar
em um pequeno sebo do centro. me vigiando. Sim, é ele sim, ago- “estou procurando, estou procu- de ler, me devolve”. Não consegui
Admito: não há no livro nenhum ra tenho certeza. rando”, Clarice escreve logo de- aceitar seu empréstimo. Só con-
sinal, ou indício, de que ele seja o Meu segundo roubo aconte- pois dos travessões iniciais. Muito seguia dizer: “Não posso aceitar,
mesmo que me pertenceu. Tam- ceu dez anos depois. Aos 18 anos perdido, sem saber que rumo dar muito obrigado, não posso acei-
bém é inquietante a hipótese de de idade, ainda vivendo com meus à minha vida, naquele momento tar”. Largando o livro sobre a me-
que ele tenha me seguido até o Pa- pais em Copacabana, encontrei, também eu procurava. Não sabia sa da gerência, tratei de sair, com
raná. Na primeira página, há uma na biblioteca de minha falecida o que, mas procurava. passos largos de fugitivo. Anos
breve anotação, a lápis e muito irmã, Sandra, um exemplar de A E aí encontrei G. H. Na- depois, li muitos livros de Michel
apagada, em que consigo ler uma paixão segundo G. H., de Clari- quela época, tinha o hábito de Fouacult, mas nunca consegui ler
data: 27/3/52. Acima dela, um ce Lispector. Um exemplar da pri- passar as tardes no Jardim Botâni- As palavras e as coisas. O livro é,
nome, ilegível. Talvez seja Alfre- meira edição, da Editora do Autor, co do Rio de Janeiro. Caminhava até hoje, um vazio que trago den-
do, mas não estou certo. de 1964. Um exemplar numera- sozinho, entre as árvores imensas tro de mim.
6 | OUTUBRO DE 2020

entrevista
Domenico Starnone

“A vida interior
é um campo
de batalha”
No romance Segredos, Domenico Starnone apresenta
ao leitor um espelho partido de perspectivas,
recordações, desejos conflitantes e autoenganos

IARA MACHADO PINHEIRO | SÃO PAULO – SP

A
s narrativas de Domenico Starnone pa- O amor é a irrupção do im- simpáticos e os antipáticos, os ro- sos pensamentos. E, consequen-
recem organizadas por uma simetria tão previsto. Ele aparece quando me- mânticos e os cínicos, e por aí vai. temente, a necessidade-temor de
precisa quanto paranoica: é na própria nos esperamos e desordena todo erguer pontes que nos conectem
forma de domesticar a desordem que a o nosso universo, antes sob con- • Laços e Segredos têm três nar- às cabeças dos outros.
confusão transborda. Em seu mais recente roman- trole, como uma estrela desconhe- radores, três perspectivas e o
ce, Segredos, o leitor se depara com três narradores, cida. Embora se diga há séculos leitor encontra um estranho di- • Seus romances têm constitui-
como em Laços, uma provocação irônica sobre a que o fundamento do amor é a vertimento ao constatar que a ções simétricas na enunciação,
alteridade e a desconcertante variedade de interpre- visão, na verdade ele nos captura percepção de um mesmo fato é mas no enunciado se ocupam
tações que um mesmo fato pode comportar. por aquilo que nunca consegui- radicalmente diferente para os das confusões dos personagens.
O cerne da narrativa é um pacto traçado entre mos realmente ver de uma pessoa. envolvidos. Como a literatura Como é a coexistência entre a
o protagonista, Pietro, e Teresa, sua ex-aluna e ex-na- Daí a obsessão pela exploração do pode explorar a alteridade? ordem e a desordem na escrita?
morada, quando os dois se relacionavam: cada um outro, de seu corpo, de cada ges- Escolho sempre, de propósi- Sim, você diz geometria e é
contaria o pior de si para o outro. Depois que se se- to, da sua esfera mais íntima, de to, a narração na primeira pessoa. verdade, mas é uma geometria de
param, o pacto volta como uma danação para Pietro. sua interioridade inacessível. Mas Também tecnicamente, a narrativa fachada. Traço com cuidado um
Toda vez que algo de bom lhe acontece, ele projeta é uma exploração frustrante que do eu é sempre uma investigação perímetro, sugiro um itinerário.
um reaparecimento de Teresa para revelar o que ele no casamento, por resignação e sobre a nossa turbulenta clausura Mas faço isso para que o leitor ve-
teria de mais podre. Na paranoia do protagonista, a cansaço, se reduz a um melancóli- existencial e sobre as interrogações ja bem as rachaduras ao virar as
revelação teria efeitos devastadores na vida que co- co, e às vezes afetuoso, “te conhe- que derivam dela. Como realmen- páginas. Nada escapa à ordem da
meça a construir depois do rompimento com Teresa. ço como a palma da minha mão”. te somos? Bons, maus, corajosos, forma, muito menos a representa-
Na entrevista concedida ao Rascunho, Star- vis, fiéis, infiéis, inteligentes, estú- ção da desordem.
none apresenta um laboratório da criação de seus • Em Segredos, o protagonista pidos? Sou a peça de qual quebra-
protagonistas — um pouco canalhas e excessiva- parece encontrar um gozo insa- -cabeça? Amo, sou amado de volta, • Na sua escrita, assuntos densos
mente vaidosos, mas também portadores de certo tisfatório na constatação de que ajo em prol do melhor, sofro, pro- são entoados por certa ironia, o
encanto —, e destaca sua predileção pelo desenvol- é uma pessoa condenável, que voco sofrimento? E, posto esse frá- que desperta um riso nervoso
vimento narrativo do que chama de “pequeno su- coexiste com o prazer de ver su- gil eu, o outro como é? Melhor que no leitor. Como uma dose de
cesso”, isto é, uma discreta legitimação profissional as palavras serem bem recebidas eu? Pior que eu? Os neurônios-es- humor pode ser recurso para fa-
que convida à crença de ser dotado de excepciona- por uma plateia. Como a escrita pelho não nos ajudam muito. To- lar de coisas desconfortáveis e
lidade. No fundo, então, o que estaria em questão pode unir as tão distintas partes do realismo não pode senão narrar dolorosas?
é a aspiração por ser admirado e visto como único. que formam uma pessoa? os desvios e as inclinações do eu Em geral, atribuo ao eu
Na tentativa de repetir o mesmo ato que ge- Temos uma vida interior que se choca em outros eus. Tenho que narra uma tonalidade irôni-
rou a legitimação, os protagonistas de Starnone se que é um campo de batalha. Sus- pouquíssima confiança na autenti- ca e amigável. Mas logo essa to-
omitem de suas respectivas casas, o que abre mar- tentar, ao mesmo tempo, desejos cidade da terceira pessoa. É sempre nalidade começa a estridular por
gem para a gestação de rancores e sentimentos am- divergentes, inclinações capricho- e somente um eu que pode fazer do causa da substância do que é nar-
bivalentes por parte dos filhos e das companheiras. sas, sonhos irrealizáveis, urgências outro um você, um ele, um ela, ou rado. O estridor cresce e, toda-
O ambiente doméstico como lugar que também de elogios exige esforço. Somos cultivar um nós. via, o personagem continua com
guarda mesquinharias não tem como ser represen- como um leque de linhas de ten- aquele tom. O objetivo é obter
tado como porto seguro: as narrativas do autor pro- dências, frequentemente incon- • Parece possível traçar algu- um “eu” que, embora esteja con-
vocam ao expor uma concepção de seio familiar ciliáveis, e nunca sabemos com mas semelhanças temáticas en- tando péssimas coisas sobre si,
que não está resguardada do que o mundo de fora certeza se a coerência que damos tre seus três últimos romances: parece não perceber inteiramente
tem de hostil. Não há fuga bem-sucedida de nos- a nós mesmos — o “eu sou assim” encadeamento narrativo entre a gravidade delas. Aliás, quando
sos antepassados, muito menos de nós mesmos. — não vai se dissolver subitamen- lembranças, reflexões existen- está prestes a arrematar, se inter-
Diante dos labirintos inescapáveis, o autor italiano te, nos lançando à desordem. A li- ciais e eventos prosaicos são al- rompe, por oportunismo ou por
lança luz sobre os tortuosos becos sem saídas que teratura — desde sempre, hoje guns deles. Você diria que há assombro. Nas últimas três his-
formam uma pessoa. mais do que nunca — tem o dever um assunto principal que mo- tórias que escrevi, como o relato,
de investigar nossas ficções e nos ve sua escrita? bem ou mal, é concluído, é ne-
• Segredos se inicia com uma definição de amor manter alertas. Como? Para come- Sim. A angústia por estar- cessário olhá-lo de outro ângulo,
que nada tem de idílica. Amor profundo e de- çar, elaborando formas em que ca- mos inevitavelmente presos den- como os filhos em Laços, o Apên-
vastador é incompatível com matrimônio? Co- tegorias simplistas não funcionam tro de nossas cabeças, com nossas dice em Assombrações e Emma e
mo você vê o amor? mais, como os bons e os ruins, os recordações, nossas fantasias, nos- Teresa em Segredos.
OUTUBRO DE 2020 | 7

DIVULGAÇÃO

• Para os protagonistas de La- Trata-se de uma antiga ce- soas, raciocínios e devaneios. O
ços, Assombrações e Segredos, gueira em relação a si mesmo. cinema e a televisão, com o flu-
parece haver um certo descom- Hoje, no entanto, é extraordina- xo hipnótico de imagens e vozes,
passo entre o ambiente domés- riamente difusa graças à escola- exigem menos empenho. Em cer-
tico e o mundo de fora. Como rização e à espetacularização das to sentido, ler é cansativo.
você avalia a tensão entre esses nossas existências. Em Assom-
dois mundos, em especial neste brações e em outros textos, re- • O que a literatura italiana
momento em que vivemos? corro a um oximoro para falar tem produzido de mais signifi-
Nunca percebi o espaço do- sobre o assunto: “excepcionali- cativo atualmente?
méstico como uma fortaleza con- dade de massa”. Qualquer um de Temos uma boa pesquisa fi-
tra as insídias do mundo. Pertenço nós se sente fundamentalmente losófica, temos poesias consistentes,
a uma geração que viveu os limites único, e tudo bem. Os problemas temos uma narrativa muito variada
da crise da família e experimentou começam quando, graças a um e com um crescente protagonismo
soluções alternativas. Inutilmen- pequeno talento, aquela unicida- feminino. Em suma, me parece um
te. Embora enfraquecida, a família de nos induz a crer que temos do- período próspero. Por isso evito ci-
resistiu a ponto de — contra todas tes excepcionais. Um pouco em tar nomes, seriam muitos.
as evidências — persistir a ideia cada um dos meus livros, tentei
de que o núcleo familiar é o cam- contar a dolorosa oscilação entre • Aos 77 anos, que balanço vo-
po do amor, da fidelidade, da so- a ansiedade por grandeza e a sus- cê faz da sua geração? De que
lidariedade, uma articulada gama peita de ser minúsculo, confuso maneira ela contribuiu pa-
de valores diferentes da violência entre mil outros com a mesma ra um mundo um pouco mais
do mundo. Infelizmente, a famí- ansiedade. Frequentemente é a habitável?
lia coincide com o mundo. Nos falta de sucesso que nos exaspe- É doloroso admitir, mas
meus livros, a instituição familiar ra. Mas narrativamente me in- não, não conseguimos tornar
é um caldo turvo feito de bons teresso sobretudo pelo pequeno o mundo mais habitável. Nós
e maus sentimentos. Pais, mães, sucesso, aquele que acende es- tentamos, isso sim. No entan-
filhos e avós vivem em meio a peranças e cobre mal a medio- to, as desigualdades cresceram,
conflitos, confusões de amor e cridade; é o que acontece, por as comodidades excessivas de
ódio, mentiras, exatamente co- exemplo, com o avô de Assom- uma diminuta minoria são ca-
mo acontece na vida pública, na brações e Pietro, em Segredos. da vez mais um insulto ao sen-
escola, no trabalho, na política. Hoje, as redes sociais são o lu- so de justiça, as condições do
Mas, quando o mundo se mos- gar onde o exército dos excep- planeta pioraram. Claro, não
tra particularmente insidioso, os cionais manifesta maciçamente poucas coisas relevantes se veri-
laços parentais se fortalecem. O o próprio descontentamento. ficaram na segunda metade do
marido adúltero tenta reparar o século 20, seja no plano polí-
mal que fez e recebe um falso per- • Você parece se ocupar dos tico, seja no técnico-científico.
dão; a mulher desleal e mentirosa inocentes e compreensíveis en- Claro, vigiamos mais ativamen-
se dedica resignada à casa, o filho ganos que amparam a existên- te os poderes e seus abusos. Mas
pródigo volta em busca de con- cia. Qual o valor da vaidade? os últimos 20 anos foram dema-
forto e dinheiro. Em suma, a fa- A vaidade não é um valor. siado alarmantes. A globalização
mília resiste, mas apenas porque Pode ser, no máximo, um sinal de faz vazar água por todos os la-
A literatura dentro de casa a miséria material sofrimento, como todas as formas dos. Os nacionalismos levan-
tem o dever de e espiritual do mundo parece um de autoengano. taram a cabeça com a extrema
pouco mais suportável. direita. A migração em mas-
investigar nossas • A angustiada busca por con- sa motivada pelas guerras, pela
ficções e nos • Outro tema reincidente são senso de seus protagonistas miséria, pelas mudanças climá-
as marcas deixadas pelos pais é uma questão que atravessa ticas assusta, e a tendência dos
manter alertas.” nos filhos. Quais são os legados também a sua vida de escritor? fortes mostrarem os músculos
inescapáveis deixados pelo lu- Não é uma pergunta que aos mais fracos é cada vez mais
gar de origem? deveria ser feita a mim, mas sim frequente. Não sabemos quais
Não há nada em nós que a quem me conhece. Eu posso resultados culturais e políticos
não nos reconduza às nossas ori- lhe dizer apenas que escrever é virão das tecnologias que torna-
gens: a cadência da língua que fa- um contínuo colocar-se à prova, ram o mundo minúsculo e nos-
lamos, um modo de gesticular, a embocando em estradas sempre sos corpos e nossas mentes cada
preferência por certos cenários em mais árduas, ao meu ver. É mui- vez mais rastreáveis. Deixamos,
detrimento de outros, até mesmo o to bom se o consenso chega, mas em suma, um mundo no fio da
senso de humor. Nossa individua- é preciso evitar que ele nos blo- navalha, ameaçado por corren-
lidade, qualquer que ela seja, é um queie. São tristes os malabaristas tes e vórtices muito violentos.
precipitado. Somos o ponto mo- que repetem ao infinito o mesmo
mentâneo de chegada de uma lon- pequeno truque pelo qual foram • Vivemos um momento dos
ga e articulada cadeia preliminar, uma vez aplaudidos. mais difíceis da nossa história
que nos constitui por mais que a atual com a pandemia da co-
neguemos, por mais que nos rebe- • No Brasil, há uma eterna dis- vid-19. O que mais o assusta
lemos. A nossa história pessoal, no cussão sobre os baixíssimos no mundo de hoje?
fim das contas, é a história de como índices de leitura. Como é o A estupidez. E a ferocida-
usamos nosso patrimônio genético panorama na Itália? A literatu- de. O poder continua nas mãos
e histórico-ambiental, escolhendo ra contemporânea italiana res- de imbecis particularmente fero-
potenciar isso, silenciar aquilo. soa de maneira consistente na zes, que desprezam nosso único
sociedade? bem: a capacidade de ver além de
• Até que ponto os pais são res- Na Itália também se lê nossos próprios umbigos e tomar
ponsáveis pelos filhos? pouco, sobretudo se pensarmos providências.
Não colocaria limites. A res- quanta confiança depositamos na
ponsabilidade por dar a vida não escolarização de massa que suce- • Que conselho você daria a um
teria como não ser absoluta. Não deu a Segunda Guerra Mundial. jovem leitor?
poderia ser diferente, já que arre- O nexo escolarização-leitura não Ler não tanto livros que o
messamos nossas crias — frágeis, funcionou. As estatísticas dizem aquietem, mas livros que o agi-
mortais e, portanto, destinadas à que não só os estudantes, mas tem, irritem e incitem a olhar pa-
morte — em um mundo injus- também os professores, e os for- ra si mesmo e ao redor com olhos
Escrever é to e violento. Sim, os pais são res-
ponsáveis até o fim, por tudo. Não
mados em geral, não leem ou leem
pouco. A instrução, mesmo a mé-
diferentes.

um contínuo existe um grito mais dilacerante dio/alta, não necessariamente leva *Colaborou Rogério Pereira
colocar-se à prova, que o de Cristo quando diz: “Pai,
por que me abandonaste?”.
aos livros. A leitura exige tempo li-
vre e, sobretudo, um elevado grau
embocando em de colaboração da parte de quem
estradas sempre • A aspiração pela grandeza é
uma forma de não se ver como
lê. Com a sua imaginação e a sua
inteligência, o leitor deve transfor- > Leia na página 8 resenha
mais árduas.” medíocre e impotente? mar o fio da escrita em coisas, pes- do romance Segredos.
8 | OUTUBRO DE 2020

Jogo de
um jovem professor, escreve um
ensaio sobre a situação do ensi-
no que é bem acolhido pelos seus
pares. O processo da escrita é mi-
nimizado pelo próprio narrador,

perspectivas
que usa o diminutivo e outros ad-
jetivos que vão entoando o ritmo
cínico de quem se acha esperto
por domesticar o curso inespera-
do da vida. Quando ele começa a
ser bem visto por pessoas ilustres
e receber os afagos das plateias, o
escopo da narrativa se detém na
Em Segredos, Domenico Starnone narra a trajetória recepção das palavras do persona-
ascendente de um intelectual e discute a influência gem, ao passo que o trabalho em
si fica limitado a poucas linhas.
do núcleo familiar em seus descendentes Na rua, o tom tranquilo seduz o
público; em casa, aos olhos das
mulheres que o amam, o mesmo
IARA MACHADO PINHEIRO | SÃO PAULO – SP tom sinaliza a existência de uma
distância instransponível.
Os avanços em sua car-
reira costumam coincidir com

D
a sensação de que Teresa pode-
ividido em três partes, cada uma condu- ria aparecer, falar do seu segredo me o papel de espora para derivar
zida por uma perspectiva, Segredos, de e comprometer absolutamente lembranças anteriores e formado-
Domenico Starnone, é um exercício de tudo que ele havia conquistado. ras de seus narradores, alternada
alteridade, cômico e detestável. A pri- A imagem da ex-namorada vol- com reflexões sobre a vida, as ins-
meira e mais extensa seção é a narrativa edificante ta tanto para assombrá-lo quanto tituições, as regras — com uma
de um homem que alça um discreto sucesso co- para provocá-lo a se manter vigi- forma mais sofisticada e curiosa.
mo intelectual ao longo da segunda metade do sé- lante e se moldar segundo fórmu- Outro ponto comum dos
culo 20. Nas divisões posteriores, encontram-se os las que lhe permitam antecipar as últimos três romances do autor
restos da construção linear do primeiro narrador, reações alheias. A ambivalência da é o desenvolvimento das marcas
Pietro, seus pontos cegos e os efeitos exercidos nas paranoia instiga a pensar na boa que os pais deixam nos filhos. Os
vidas de duas mulheres que o amaram, a filha e Segredos dose de vaidade que a sustenta. três protagonistas são homens,
uma antiga e paradigmática namorada. DOMENICO STARNONE Afinal quanta energia direciona- napolitanos, nascidos no pós-
O romance abre com uma interessante de- Trad.: Maurício Santana Dias da a si mesmo não é necessária pa- -guerra e em lares com privações
Todavia
finição do amor: “Uma lava de vida bruta que ra considerar que alguém planeja econômicas e culturais. Com di-
149 págs.
queima a vida fina, uma erupção que anula a com- obscuramente arruinar uma vida ligência, encanto e um pouco de
preensão e a piedade, a razão e aos razões, a geo- pelo mero prazer de arruinar? sorte, eles conseguem se inse-
grafia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e rir com alguma notoriedade em
a pobreza, a exceção e a regra”. Em seguida o rela- Bonequinhas russas lugares ilustrados e cultos, bem
cionamento turbulento com Teresa, que antes fora No primeiro livro de Star- como alçam uma condição fi-
sua aluna, é sumarizado até que Pietro mencione none publicado no Brasil, Laços, nanceira mais favorável que a de
o pacto estabelecido entre os dois: o compartilha- também há o jogo das perspecti- origem. Os três saem da Nápoles
mento dos feitos mais pérfidos que cada um deles vas. A primeira parte do romance natal em direção às cidades mais
guarda dentro de si. Após o término da relação, ele é composta pelas cartas de Vanda, ricas do norte do país, e os três, de
começa construir o seu idílio de intelectual peque- uma jovem e desesperada esposa uma forma ou de outra, guardam
no burguês, consideravelmente diverso da defini- escrevendo para o marido que a lembranças dolorosas da violência
ção de amor da abertura. deixou. Na segunda parte, é a voz do primeiro lar.
A comicidade está na incapacidade do nar- do marido, Aldo, que relata a his- As heranças familiares, por-
rador de, justamente, ser capaz de ver alguma coi- tória de sua vida e o reencontro tanto, reverberam na forma que
sa que não ele mesmo. É um divertido paradoxo: com as cartas, tantos anos depois, esses personagens vão se cons-
enquanto o leitor se desconcerta ao encontrar o quando se depara com o aparta- truindo, nas maneiras de se por-
choque das perspectivas, o narrador-protagonis- mento completamente revirado tar em suas respectivas casas e na
ta se centra em si mesmo de tal modo que a histó- O AUTOR depois de férias de verão. No ro- esfera pública, nas trajetórias dis-
ria de sua vida trata unicamente dele e dos outros mance seguinte, Assombrações, tintas que buscam trilhar e nos
DOMENICO STARNONE
meramente em relação a ele. A impressão é refor- Danielle, um experiente artista abismos que sentem crescer en-
çada pelo foco narrativo que sempre volta a Pie- É jornalista, roteirista e escritor. que começa a ter de lidar com o tre o lugar de nascença e o que
tro, ainda quando sua filha ou Teresa conduzem a Nascido em Nápoles, atualmente vive esquecimento e a dissolução do eles vão aos poucos moldando.
organização do enredo. Por vezes, o delineamento em Roma. Já recebeu importantes prestígio, volta a sua cidade na- Há também outra forma para
da postura vaidosa soa quase que redundante, mas prêmios, como o italiano Strega. tal para cuidar do neto enquanto as heranças familiares, a que es-
talvez a vaidade o seja. Portanto, o fator detestável Além de Segredos, o autor tem a filha e o genro viajam a traba- ses protagonistas, tão carismá-
parece resultado estético de uma competente cria- publicado no Brasil seus dois romances lho. Todas as três divisões do li- ticos e prestigiados, deixam aos
ção de personagem. anteriores, Laços e Assombrações. vro são conduzidas pelo olhar de seus filhos. Embora tenham po-
Detestável mas ainda assim um pouco cô- Danielle, na última, no entanto, dido oferecer instrução e conforto
mico, porque a compreensível vontade de se ver ao invés de narrativa, se trata do material, as proles se tornam dis-
como um homem íntegro e honesto exige muitos diário e dos esboços de desenhos funcionais e problemáticas.
malabarismos morais. No modo de relatar a sua que o personagem realiza no de- Não que conhecimento já
história, Pietro não economiza em reflexões exis- correr do enredo. tenha prevenido alguém de ser
tenciais e ponderações relativas ao bem e ao mal. Em Segredos, além dos ân- um cretino, coisa que Starnone
Embora não deixem de ser pertinentes, elas nun- TRECHO gulos diferentes, há também essa parece sugerir com deboche re-
ca culminam na responsabilização por si mesmo Segredos transformação de uma das pers- finado. O curioso de encontrar
e pelas suas ações, porque há um externo maior e pectivas em um objeto presente os destinos dos filhos dos narra-
determinista. Os devaneios parecem, então, sub- em outra parte da história. Nesse dores é uma sugestão um tanto
terfúgios para jamais olhar a impotência de fren- No fundo, no fundo, o que caso, o leitor descobre que o rela- macabra de que a infelicidade é
te e manter uma distância saudável da podridão ela quis me sugerir? Quis me to de Pietro é parte de um e-mail um pouco incontornável. E mais,
constituinte de todo e qualquer sujeito. Em certo sugerir que, por causa das coisas enviado à Teresa, e que o ponto que a família é um organismo de
momento, Teresa afirma que Pietro sempre acha- de corte da primeira seção coin- equilibro delicado e precário, em
que confessáramos um ao outro,
va uma causa sociológica para seu sofrimento. É cide com a decisão dela de inter- que abnegação pode se tornar res-
curioso pensar nas convicções desse personagem tanto eu quanto ela tendíamos romper a leitura. As transições de sentimento e admiração desme-
também sob esse prisma: ele, que quer ser extraor- a nos considerar ruins. Mas o olhares e essas brincadeiras são dida pode virar inaptidão para se
dinário e teme ser medíocre, defende uma escola rumo que nossas vidas tinham um traço instigante da prosa de defrontar com insatisfações. Em
que seja capaz de levar em conta as desigualdades Starnone, que deixam a simplici- suma, a família não é branda, e
tomado dizia exatamente o
sociais na prática do ensino, sem desrespeitar ne- dade do andamento reincidente não há como jogar um sujeito no
cessidades distintas. contrário: nesse mundo ruim, dos seus livros — uma narrativa mundo sem antes imprimir nele
E no que consiste o sucesso de Pietro? Ele, nós éramos os bons. linear cuja alguma sutileza assu- uma boa dose de dor.
OUTUBRO DE 2020 | 9

miguel sanches neto


PERTO DOS LIVROS

ROMANCE CONSCIENTE

E
CARLOS MACEDO

m um ensaio clássico,
o mais engajado dos
escritores mundiais da
época, Jean-Paul Sartre
(1905-1980), definia como tarefa
da literatura doar uma consciência
infeliz ao fruidor: “fazer com que
ninguém possa ignorar o mundo e
considerar-se inocente diante de-
le” (Que é a literatura?). Embo-
ra haja um racismo horroroso no O avesso da pele
Brasil, poucos escritores e escrito- JEFERSON TENÓRIO
ras negros e negras conseguiram Companhia das Letras
189 págs.
oportunidades de produção lite-
rária para traduzir enquanto arte
da palavra as relações sociais desu-
manas de todo um grupo, o mais cor da pele atravessa nosso corpo
representativo do Brasil. Desde e determina nosso modo de estar
Recordações do escrivão Isaías no mundo”. A narrativa de Pedro
Caminha (1909), de Lima Bar- vem demonstrar o avesso da pele,
reto, a mecânica racista como for- a humanidade, a grandeza, os so-
ma de destruir biografias negras nhos, as decepções, o heroísmo de
vem sendo denunciada, mas ape- um grupo que é sempre julgado e
nas mais recentemente, com um eliminado, tanto do ponto de vis-
maior acesso à universidade e um ta social quanto vital, por sua cor.
maior debate sobre o tema da re- Mostrar o pai se divertin-
presentação, está surgindo uma do, os namoros certos e errados,
produção literária consistente que a descoberta de grandes autores,
denuncia a forma como os negros a paixão juvenil equivocada (com
são maltratados no país. uma moça branca), a união com
Este novo romance brasi- a esposa também sofrida, no bre-
leiro, que poderíamos chamar ve casamento, e depois o encon-
de romance consciente, come- tro amoroso com uma colega da
ça a contemplar visões internas escola com a marca de uma quase
do ponto de vista racial e trazem morte, todas estas vivências e ou-
uma marca política explícita. Es- tras dão uma densidade humani-
crever ficção é se posicionar sobre zadora a pessoas que são julgadas
as discriminações sofridas. Com a e previamente condenadas apenas
interligação mundial por meio das pela pele. Este movimento narra-
notícias, movimentos de direitos tivo, portanto, tem mais do que
de minorias de outros países for- a função de contar uma história,
talecem esta escrita étnica, que en- buscando antes dotar de espessu-
fim encontra espaço em grandes ras humanas corpos que são tidos
editoras. É um momento rico de Jeferson como alvos de ódio.
cartografia de escritores e escrito- Tenório, autor A condição negra retratada
ras de origem africana. de O avesso família negra, desde os sofrimen- catálogo de pequenos e grandes no livro não é genericamente bra-
Com uma produção até da pele tos passados pelos avós, a luta do preconceitos que são apresentados sileira, recai sobre ela o peso da lo-
agora mais local, no Rio Gran- pai para se fazer um professor de ao leitor, e que nos envergonha calização geográfica. Porto Alegre
de do Sul, Jeferson Tenório ga- português, e a consequente atua- enquanto sociedade, nos alertan- é definida como “uma cidade ra-
nha merecida projeção com seu ção sofrida nas escolas públicas de do para situações que muitas vezes cista”. Um pouco para frente, Pe-
romance O avesso da pele. En- periferia, até chegar ao tempo de fingimos não ver. O romance tem dro lembra: “No sul do país, um
quanto tipologia, tende a ser um Pedro, que cursa arquitetura. como mote desmontar estas situa- corpo negro será sempre um cor-
romance de formação. Como, A voz narrativa tem uma ções, tirando delas uma naturali- po em risco”. Esta intensificação
em uma sociedade impiedosa, grande suavidade, tão necessá- zação ou uma invisibilidade que do risco se concretiza no final, em
um intelectual negro pode cons- ria para constituir-se como afeto impendem que sejam combatidas. que Henrique Nunes, em um ato
truir a sua biografia. A grande ino- quando fala de temas tão tristes. Assim, trata-se de uma obra que lembra os princípios de resis-
vação que Tenório acrescenta ao Pedro não se coloca no romance com uma força progressista muito tência pela não violência prega-
gênero é que o narrador não po- como centro, destacando o con- grande, que se organiza a partir de dos por Mahatma Gandhi, se faz
de contar-se, pois está morto. De junto familiar de que faz parte, algumas palavras-chave: racismo, um herói para escancarar a rejei-
maneira estruturalmente simbó- tanto que, no final, em um mo- preconceito, cor da pele. Em um ção culturalmente introjetada no
lica, o romance começa e termina mento de orfandade traumática, momento de autoconhecimento imaginário da polícia e dos bran-
com o filho, distanciado fami- ele encontra apoio em uma tia que da mãe de Pedro, há esta consciên- cos em geral contra uma raça. O
liarmente, mexendo no armário era mais negra do que ele e ainda cia de um valor humano além da pai faz de sua crença na literatura
do pai morto. É com as poucas sofria discriminação pela obesida- aparência: “cada pessoa é uma pes- uma afirmação de civilização con-
coisas deixadas por este profes- de. É um momento mais do que soa e nunca deixem te diminuírem tra a barbárie que o vitimiza. A ce-
sor de escola pública, leitor de de afeto familiar, e sim de identi- porque você é negra, ela (Madalena, na final remete ao crime bárbaro
grande literatura, que o filho vai ficação com o grupo, o que vai de- que criou sua mãe) disse [...]. A da polícia norte-americana contra
ter que reconstruir a figura pa- sencadear a narrativa que o leitor pele fora nomeada, a existência ga- George Floyd e liga este romance
terna, preenchendo os vazios pa- acabou de ouvir. Com a vida e a nhara sobrenome”. Os conselhos ao grande movimento internacio-
ra que ela não seja silenciada. Por morte do professor de escola pú- do pai também eram neste senti- nal de direitos humanos.
isso, Pedro se dirige ao pai mor- blica Henrique Nunes (aliás, uma do. Quando Pedro tem nove anos, O avesso da pele é assim
to, Henrique Nunes, para con- experiência biográfica do próprio ouve a lição de que deviam lutar uma obra necessária, contunden-
tar-lhe o que seria a sua própria autor, professor de língua e litera- porque os brancos haviam tirado te, que nos reumaniza ao mesmo
vida. Contar para o outro, e para tura na rede pública de ensino de quase tudo deles. “É necessário tempo em que nos tira qualquer
si mesmo, neste simulacro de diá- Porto Alegre), conhecemos todo o preservar o avesso, você me dis- inocência diante da máquina ra-
logo, é ato catártico, uma recons- sistema de negação de seus fami- se. Preservar aquilo que ninguém cista que não para de destruir vi-
trução biográfica possível de uma liares pela cor de sua pele. Há um vê. Porque não demora muito e a das das mais diversas formas.
10 | OUTUBRO DE 2020

carola saavedra
CONVERSAS FLUTUANTES

DESEJO DE HABITAR O MUNDO


Ilustração: Carolina Vigna
Conversa
com Natalia
Borges Polesso

1.
Carola: Você vinha e aí você não veio. Você ia
para um evento em Frankfurt e a gente tinha te con-
vidado para uma leitura aqui, na universidade. Te-
nho a sensação de que é possível cristalizar este ano
nessa frase: você vinha e aí você não veio. Algo em
suspenso. Viagens que íamos fazer, pessoas que iam
chegar, acontecimentos, gestos interrompidos. Te-
nho vontade de escrever sobre isso, sobre o ano que
não aconteceu, mesmo sabendo que não sou capaz.

Natalia: Pois é, eu ia e não fui. Era pra eu es-


tar em. E posso completar com uma série de luga-
res. Me sinto frustrada. Eu e um monte de gente,
né? Mas a frustração é algo contornável, habitá-
vel até. Lógico que temos outras preocupações no
momento. É que por aqui o peso da realidade es-
magou muitos sonhos, adiou planos e matou gen-
te. São questões pessoais, políticas e sociais dessa
pandemia e das consequências de sua terrível ges-
tão pelos governos.

Carola: Sim, no Brasil a situação é tão assus-


tadora, e ao mesmo tempo, parte da longa noite dos
500 anos. Tenho pensado muito num (anti) poema
de Nicanor Parra. É sobre o Chile, mas poderia ser
qualquer lugar na América Latina. Os últimos ver-
sos ficam ressoando...

Chile
É engraçado ver os camponeses de Santiago do Chile
de cenho franzido
ir e vir pelas ruas do centro po e esse lugar. Como chegamos Carola: Eu acredito muito 3.
ou pelas ruas dos arrabaldes aqui? Acho que essa pergunta foi o na literatura (uma espécie de fé, eu Carola: Ano passado, no
preocupados-lívidos-mortos de susto guia do livro que entreguei no iní- diria). Acho que ela pode dar voz meu seminário sobre feminis-
por razões de ordem política cio do ano (que será publicado so- a quem não costuma ser ouvido, mo na América Latina, lemos
por razões de ordem sexual mente em 2021). De algum modo, contar histórias que ninguém con- um conto seu. Flor, flores, ferro
por razões de ordem religiosa essas inquietações vazam pro nos- tou, e também pode nos ajudar a retorcido, sobre essa menina que
dando como certa a existência so trabalho. Pensando em como ser pensar o que ainda não fomos ca- descobre a palavra “machorra” e
da cidade e de seus habitantes: realmente contemporânea, em co- pazes de imaginar, essa possibilida- vai atrás do seu significado, pra
embora esteja provado que os habitantes ainda não nasceram mo criar esse atrito com o tempo, de em nós. Ler e escrever literatura mim é um conto sobre a desco-
nem nascerão antes de sucumbir em como conseguir fazer, no inter- é pra mim uma forma de pensar berta das palavras que é também
e que Santiago do Chile é um deserto. valo das luzes, alguma captura ou o futuro, talvez (mas não sempre) a descoberta do mundo e dos afe-
Acreditamos ser país dar algum sentido a esse amontoa- um outro futuro. tos. Poucas vezes tive uma visão
e a verdade é que somos apenas paisagem. do de imagens e sensações que a “Como chegamos aqui?” tão clara da potência da litera-
gente chama de mundo ou de vida, É a pergunta que de um modo tura, não só da potência artísti-
Natalia: como disse a Angélica Freitas, em parece que encontramos um pro- ou de outro todos deveríamos ca, simbólica ou espiritual, mas
um dos poemas de seu livro novo, Canções de pósito pra arte (se precisamos de nos fazer (fiquei curiosa pra saber da potência num sentido prático
atormentar: um). Ao mesmo tempo, essas são do seu novo livro...). Acho que mesmo, de vida. Eu tinha dado
inquietações que moram em mim, é uma pergunta-chave, porque uma aula inteira sobre feminis-
“o meu país era uma pamonha que fazem parte de quem sou e do ela nos tira dessa ideia dos acon- mo, e depois lemos o seu con-
que um alienígena esfomeado meu desejo de habitar o mundo. tecimentos que surgiram de re- to em sala de aula, comentamos,
pôs no micro-ondas”. Tenho aberto esse arquivo pente, no nada. Nada surgiu do conversamos, e eu percebi que na-
queime-se. todos os dias; lido e relido. Hoje é nada, nem o vírus, nem a injus- da do que eu pudesse dizer ali, ne-
é um epitáfio possível. uma segunda-feira e o dia começou tiça, nem a morte. Mas ao mes- nhum conhecimento, nenhuma
pesado, porque sinto ainda um en- mo tempo em que te digo que teoria, nenhuma palavra seria tão
2. joo das imagens dos fundamenta- acredito na literatura como for- transformadora como o seu con-
Carola: Nestes últimos tempos me pergunto listas religiosos, sádicos, pedófilos, ma de construir mundos (passa- to. Falar nunca é o suficiente. A
constantemente, para que serve a literatura? Qual protestando na porta do hospi- dos e futuros), há momentos em literatura é um “saber dizer” por-
é o seu lugar? tal em Recife. Volto a me pergun- que me vem a sensação de que até que diz muito mais do que diz.
tar como chegamos neste ponto? isso tem um limite. O caso des-
Natalia: Eu também tenho me perguntado is- Corri os olhos numa reportagem sa menina, e de todas as meninas Natalia: Carola, primeira-
so com mais frequência. E às vezes bate um desâni- que dizia serem mais de 600 casos que ela representa, são tantas, é mente, obrigada pelas palavras, fico
mo, porque eu penso que há coisas mais urgentes, como o desta menina por ano no um desses momentos em que eu emocionada. Esse conto é realmen-
mais práticas e mais úteis, do que a arte. Contudo, Brasil. É terrível e ordinário. Esta- sinto que a palavra não dá conta. te sobre uma busca íntima. Nem
também é necessário elaborar. Ensaiar um registro, mos anestesiadas pela violência. É Há momentos, de imenso horror, é sobre as respostas (e no decor-
nem que seja pra consultas futuras. Pensar esse tem- um mecanismo. Ou a gente morre. em que a palavra não dá conta. rer do conto, a personagem obtém
OUTUBRO DE 2020 | 11

várias respostas pra sua questão). Eu me interesso muito em questões geográficas e


Ao contrário, é exatamente sobre quando digo geográfica, quero dizer de estar no mundo,
a procura e uma procura genuí- de criar tensões ao habitar o mundo, ao criar desloca-
na, uma curiosidade que move. É mentos. E eu creio que seja importante mesmo pen- Quando eu escrevo sinto um
profundo desejo de que as
nesse movimento que estava meu sar geograficamente, quero dizer, pensar nos espaços do
interesse. Tem uma citação do Ril- mundo e nos espaços que construímos ficcionalmente,
ke, que eu gosto muito e que diz
be patient toward all that is unsol-
a partir do nosso estar. Eu acho que observar a literatu-
ra desse modo, pode ser muito revelador. palavras e as questões que me
ved in your heart and to try to love
the questions themselves like locked Carola: Nossa geografia oficial é tão filha do co-
são caras para viver habitem
rooms and like books that are writ-
ten in a very foreign tongue (eu só
lonialismo, que mal conseguimos nos nomear. América
Latina cuja origem é Américo Vespúcio. Latina: pala-
também o mundo e possam ser
tenho a edição em inglês, mas po-
demos buscar uma tradução). Foi
vra filha de outras colonizações. América do Sul, que ex-
clui o México, América do Norte, que também exclui
compartilhadas e revividas.”
essa citação que me motivou na es- o México. América, continente que exclui todos os po-
crita deste conto. O Barthes, em Le vos originários. América, que nem mesmo ao continen-
degré zero de l’ecriture, diz que te pertence, apropriação de um único país. Muitas vezes
a escrita é um ato de solidarieda- me perguntam sobre a relação do Brasil com a Améri-
de histórica, uma função que ten- ca Latina, e eu tento explicar que o Brasil fica na Amé- faz com que todas as questões in- as minhas preferidas: Hanami: via-
ta estabelecer uma relação entre a rica Latina. Enfim, considerações que não têm nada a dividuais estejam imediatamente gem feita para observar o florescer
criação e sociedade, que é a forma ver com o seu comentário, mas eu precisava falar (risos). ligadas à política. A questão indi- das cerejeiras.
capturada em sua intenção huma- vidual, ampliada ao microscópio,
na de se embrenhar nos discursos 5. torna-se muito mais necessária, Natalia: Só consigo lembrar
históricos. Ou quase isso. Eu con- Carola: No livro mais recente de Judith Butler, há indispensável, porque uma outra de Jabberwocky, acho que o poe-
cordo. Quando eu escrevo sinto um ensaio em que ela fala sobre a distinção que fazemos história se agita no seu interior”. ma mais famoso de Lewis Carrol,
um profundo desejo de que as pa- entre aqueles que são sujeitos e merecem o luto e aque- de que gosto muito: Twas brillig,
lavras e as questões que me são ca- les que estão no lugar de objeto, e para os quais não há Natalia: Vou chamar de vol- and the slithy toves/ Did gyre and
ras para viver habitem também o luto. Ela começa o texto com uma citação do Cortázar, ta aqui na conversa a Gloria An- gimble in the wabe;/ all mimsy were
mundo e possam ser compartilha- então cito aqui Butler citando Cortázar: El lenguaje es- zaldúa. No ensaio To(o) Queer the the borogoves,/ And the mome raths
das e revividas. tá ahí y es una gran maravilla y es lo que hace de nosotros writer — Loca, escritora y chicana, outgrabe. Posso recitá-lo todinho
seres humanos, pero ¡cuidado! antes de utilizarlo hay que ela faz uma bela discussão sobre es- de cor.
Carola: Que bonita essa ori- tener en cuenta la posibilidad de que nos engañe, es decir, te nomear-se, adjetivar-se e sobre
gem do teu conto. Sempre me in- que nosotros estemos convencidos de que estamos pensando como isso, a depender de quem faz Carola: Adoro. Fiquei pen-
teressei mais pelas perguntas do por nuestra cuenta y en realidad el lenguaje esté un poco as marcações pode ser uma coisa sando, sei tão poucos poemas de
que pelas respostas, até porque pensando por nosotros, utilizando estereotipos y fórmulas boa ou ruim. Eu acho que esse de- cor, sinto falta. Vou aprender al-
não acredito em respostas defini- que vienen del fondo del tiempo y pueden estar completa- bate na literatura é sempre longo guns e recitar durante o dia en-
tivas, únicas. A resposta deixa sem- mente podridas. Estamos pensando por nossa própria e cheio de complexidades (o en- quanto lavo os pratos, passo o
pre algo sem resposta. Me lembrei conta? Questionar quem somos, o que vivemos, todos saio é inclusive contraditório em aspirador pela casa.
daquele livro do Neruda El libro os dias, exige coragem. seu interior). Eu acho importante
de las preguntas: “Hay algo más se nomear, se posicionar quanto ao 9.
triste en el mundo que un tren in- Natalia: Se pensar é um exercício diligente e, ao lugar de existência a partir de on- Carola: Drummond escre-
móvil en la lluvia?”. contrário do que se possa imaginar, altruísta. de produzimos, mas também acho veu um livro de aforismos O aves-
importante sinalizar que isso não é so das coisas, sobre saudades ele
4. 6. um aprisionamento. diz: “Também temos saudades do
Carola: Já conversamos al- Carola: Talvez pensar por conta própria exija vi- que não existiu/ e dói bastante”.
gumas vezes sobre a Gloria An- ver por conta própria. Carola: Ah, essa conver- Ah, e ele escreveu também (meu
zaldúa, ela se torna cada vez mais sa dá uma conversa por si só, um preferido): “O sol está a nosso ser-
importante para mim, e acho Natalia: Não creio. Penso que é justamente o con- livro, um tratado filosófico, um viço, porém não nos obedece”.
uma pena ela não estar publica- trário. Para pensar por conta própria é preciso antes de poema...
da no Brasil. Gosto especialmen- tudo compartilhar algo íntimo com o outro. Natalia: Eu sinto Fernweh
te do Light in the dark/Luz en Natalia: Vou deixar uma do Brasil que imaginei pro futuro.
lo oscuro, no qual ela desenvol- Carola: Sim com certeza, é lindo isso que você outra provocação para essa con-
ve o conceito de “Neplanta”, que diz, para pensar por conta própria é necessário com- versa futura, tenho escrito peque- 10.
seria uma espécie de entre-lugar, partilhar algo íntimo com o outro. Às vezes algo que nos textos no Instagram a partir de Carola: Acabo de descobrir
nas palavras dela: Perceiving some- está além das palavras. Mas eu pensei em outro signi- fotos que meu celular destaca alea- que o meu exemplar do Amora
thing from two different angles crea- ficado, “viver por conta própria” como a capacidade toriamente, desde que sejam ex- sumiu da minha estante, não me
tes a split in awareness that can lead de viver segundo o próprio desejo, e não o desejo im- ternas. Isso porque eu comecei a lembro mais para quem empres-
to the ability to control perception, posto pelos demais, pela religião ou pelo capitalismo. sentir muita falta de sair, de andar tei, se é que eu emprestei para al-
to balance contemporary society’s Penso muito nisso, no quanto o desejo é sequestrado por aí, viajar, saudades do antes de guém. Mas o fato é que sumiu.
worldview with the nonordinary pelo sistema capitalista, um desejo que vira consumo, tudo isso. Aí pensei nas fotos dos Fico ao mesmo tempo irritada (te-
worldview, and to move between morte, destruição. lugares, ao menos no feed. Pois, eis nho muito apego a certos livros) e
them to a space that simultaneou- que meu celular destaca uma foto contente de alguém ter carregado
sly exists and does not exist. I call en- Natalia: Isso sim. E nesta situação em que esta- de um trabalho de Adrian Piper, consigo essa leitura. Não deixa de
tering this realm “neplanta” — the mos metidas, mirar o desejo é uma atividade que exi- que vi no MoMa em 2018. É uma ser um ato político.
Nahuatl word for an in between ge dedicação e coragem mesmo. Porque... nossa... pode série de retratos em que o rosto das
space, el lugar entre medio. Anzal- ser muito perigoso. Esses dias me peguei pensando na pessoas está borrado, parece mes- Natalia: Eu tenho feito al-
dúa cria assim, ao nomeá-lo, um morte como plano de vida, entende? É tão triste. O que mo que foram apagados com uma gumas promessas a mim mes-
lugar de existência possível. nos espera? Converso bastante sobre o desejo e esses dias borracha, e sobre o borrão há sem- ma nessa quarentena, acho que
uma amiga disse que essa pandemia nos tirou os mo- pre a mesma frase: everything will o isolamento tem me feito pen-
Natalia: Qualquer pessoa mentos de êxtase, de festa, de estarmos menos tensas, be taken away. Na exposição, lem- sar em alguns limites, digo, tem
não branca e/ou não heteronor- porque é uma constante tentativa de manter a sanida- bro que na sequência, a gente po- me feito pensar em proposições
mativa e/ou não católica-cristã de, de manter a lógica, de manter a coerência. Não dá dia enquadrar nosso próprio rosto que antes eu não pensaria. Eu
vai habitar um vão colonial e vai pra ficar de boa. Isso cansa. Isso mata também. Mata a num espelho com a mesma frase. sou muito programática e pla-
ser atingida com mais ou me- gente ou mata algo na gente. Pensei em tirar uma foto, até pe- nejada. Tenho uma organização
nos intensidade por uma série de guei o celular, mas desisti. particular. Não digo, metódi-
violências a depender de suas in- 7. ca, mas bem particular. E gosto
tersecções. Cada vez mais eu en- Carola: Deleuze e Guattari, em Kafka, por uma 8. de projetar com segurança, mas
tendo que a experiência colonial é literatura menor: “A segunda característica das litera- Carola: Gosto muito de tenho feito esse exercício com
uma violência constante, prolon- turas menores é que nelas tudo é político. Nas ‘gran- pensar em palavras que só existem mais elasticidade. O que quero
gada, desumana. Mas é também des’ literaturas, pelo contrário, a questão individual em outros idiomas. Minha palavra dizer com toda essa explicação é
ela que nos obriga a criar esses es- (familiar, conjugal, etc.) tende a juntar-se a outras preferida em alemão é Fernweh, que pensei agora em te levar um
paços, a nomeá-los até, para que questões igualmente individuais, em que o meio so- significa saudades de um lugar que Amora, quando der, onde for.
sejam mais palpáveis em sua exis- cial serve de ambiente e de fundo, de tal maneira que não conhecemos e que está longe.
tência, para que possamos respirar nenhuma das questões edipianas é indispensável em Bom, saudades é a tal palavra que Carola: Sim! Quando der,
por um momento. E nós sabemos particular, nem absolutamente necessária, mas todas só existe em português. Faço cole- onde for.
quem sofre mais com as conse- elas fazem ‘bloco’ num vasto espaço. A literatura me- ção dessas palavras. Tenho um li-
quências dessa violência constante. nor é completamente diferente: o seu espaço, exíguo, vro que lista uma série delas, entre Natalia: Combinado.
12 | OUTUBRO DE 2020

Itinerário
DIVULGAÇÃO

crítico
A coletânea Seja como for mostra a
capacidade de Roberto Schwarz unir,
com acurada fundamentação histórica,
análise literária e comentário político

MARCOS PASCHE | RIO DE JANEIRO – RJ

E
m forma de coletânea ria do capitalismo (Maria Elisa O AUTOR Dados em âmbitos e em “histórica” uma fala do economis-
de entrevistas, de seleta Cevasco e Milton Ohata, 2007), ROBERTO SCHWARZ graus diferentes, os fatos expõem ta, que diagnosticou mudança de
de ensaios ou de análise Seja como for reúne, nos termos a gravidade do estigma ideológi- rumo do partido quando ele al-
coletiva, publicações re- do subtítulo, “entrevistas, retra- Nasceu em 1938, em Viena, na co que avança para a anulação in- cançou o poder central do país.
centes têm radiografado o percur- tos e documentos”, feitas com, fei- Áustria, chegando ao Brasil com telectual e a perseguição pessoal. Essa percepção complexa do que
so de alguns dos mais expressivos tos por e de Roberto Schwarz ao poucos meses de vida. É formado em E se em relação aos oponentes é complexo se verifica bem numa
nomes dos estudos literários bra- longo dos últimos 50 anos apro- Ciências Sociais pela Universidade de os episódios revelam arrogância cobrança que, embora inomina-
São Paulo (USP) e cursou mestrado
sileiros em atuação ou ainda in- ximadamente. Síntese aguda, o e ameaça, de Schwarz eles dão da, parece direcionada a Fernan-
na Universidade de Yale (EUA) e
fluentes. Saídos por editoras de volume dá relevo a fatores elemen- a ver a adesão ideativa que tan- do Henrique Cardoso quando das
doutorado na Universidade de Paris
diferentes portes e perfis, esses tra- tares da obra do crítico; sublinha III (França), ambos na área de estudos
to diz de uma aposta de vida. O eleições presidenciais de 2018,
balhos nem sempre circulam na sua produção para o teatro; real- de literatura. Lecionou literatura na Brasil oficial de então via no in- conforme se anota em Declara-
medida de sua relevância, e sua ça sua ativa participação no deba- USP e na Unicamp. Dentre outros, telectual marxista alguém incom- ção de voto: “Pensando em ami-
menção aqui é também desejo de te público; e contribui para que se publicou A sereia e o desconfiado, Um patível com o estado totalitário gos da vida inteira, eu diria que
notícia. Que eventuais lacunas se- perceba sua centralidade na crítica mestre na periferia do capitalismo de coisas, dentro do qual o pen- neste momento a neutralidade en-
jam lamentadas pelo que ignoro, literária brasileira. e Matinha versus Lucrécia. samento questionador é perigo tre Haddad e Bolsonaro é um erro
mas que no lapso também se per- Seja como for abre e fe- a ser eliminado. E se o país de histórico de grandes proporções”.
ceba a fertilidade do tipo de fazer cha com documentos, únicos no agora tem ânsias antidemocráti- Esse senso apurado de dis-
em destaque, a se perder de vista. volume. Além desses dois, inte- cas, algumas páginas de Seja co- cernimento se estende aos assun-
Designando a organiza- gram-no trinta e sete textos, di- mo for demonstram que as ideias tos literários, como no retrato de
ção e o ano entre parênteses, cito, vididos em duas seções — a do crítico permanecem no lugar José Guilherme Merquior, o críti-
portanto, Reflexão como resis- primeira agrupa entrevistas; a se- de oposição: “Há bastante em co liberal de quem Schwarz enal-
tência: homenagem a Alfredo gunda, breves textos sobre autores comum entre a vitória eleitoral tece a “reflexão tão numerosa e
Bosi (Augusto Massi, Erwin Tor- diversos (os retratos). O primei- de Bolsonaro, em 2018, e o gol- cosmopolita”, mas ressalvando-
ralbo Gimenez, Marcus Vinicius ro dos documentos referidos se pe de 1964. Nos dois casos, um -lhe o “conformismo combativo”.
Mazzari e Murilo Marcondes de situa como um preâmbulo, de- programa francamente pró-capi- E é nas entrevistas de maior
Moura, 2018); Antonio Candi- nominado Bastidores. O outro, tal mobilizou, para viabilizar-se, fôlego que se pode verificar o crí-
do 100 anos (Maria Augusta Fon- que conclui a obra, é situado no o fundo regressivo da sociedade tico em profundidade, confluin-
seca e Roberto Schwarz, 2018); conjunto dos retratos. Embora si- brasileira, descontente com os ru- do análise literária e comentário
[Antonio Carlos] Secchin: uma tuados como antípodas, o regis- mos liberais da civilização”, diz político, sempre com acurada
vida em letras (Maria Lúcia Gui- tro de perseguição ao crítico pelo Seja como for: entrevistas, em Cultura e política agora. fundamentação histórica. Nelas,
marães Fonseca e Godofredo de Departamento de Ordem Políti- retratos e documentos Schwarz tem a oportunidade de
Oliveira Neto, 2011); Luiz Cos- ca e Social (DOPS), na abertu- ROBERTO SCHWARZ Olhar dinâmico relatar percursos e defender po-
ta Lima: uma obra em questão ra, e a carta enviada a Antonio Duas Cidades/Editora 34 A orientação marxista de sições, mas sem que se ausente o
(Dau Bastos, 2010) e Luiz Cos- Candido, no desfecho, datam do 448 págs. Roberto Schwarz leva-o natural- confronto de ideias, como ocor-
ta Lima: um teórico nos trópi- período em que Schwarz esteve mente a posicionar-se à esquerda re em Machado de Assis: um de-
cos (Aline Magalhães Pinto, Ana exilado na França, entre 1969 e em meio a discussões e eventos co- bate, a melhor parte do livro. E é
Lúcia de Oliveira e Dau Bastos, 1978, quando no Brasil se radi- letivos. Mas se o marxismo é base em tais entrevistas que ele relacio-
2019); Razão nas letras: a obra calizava a violência da ditadura. geral para o raciocínio, a dialética na suas principais referências teó-
e o percurso de Roberto Acízelo Ambos os documentos ex- TRECHO de que partilha Schwarz dota-o de ricas, avalia a circulação de ideias
de Souza (João Cezar de Castro plicitam obstruções por mo- olhar dinamizado para avaliar fa- marxistas em meios intelectuais
Rocha e José Luís Jobim, 2019); tivação ideológica. O parecer Seja como for: entrevistas, tos e movimentos sem se deixar e, principalmente, comenta a for-
retratos e documentos
e 35 ensaios de Silviano Santia- ditatorial decorre da publica- guiar por dogmas — que são a mulação do conceito das “Ideias
go (Ítalo Moriconi, 2019). Em- ção do ensaio Cultura e política, absoluta ausência de guiamento. fora do lugar” e explica seus tra-
blemática, a lista é fartura e é falta, 1964-1969 na revista francesa Como discutir o significado Daí sua participação ativa e efeti- balhos sobre Machado de Assis,
e para lembrar um gênero e alguns Les temps modernes, em julho de social da arte sem cair no vamente crítica no campo da es- em quem vê “o menos brasileiro
nomes não contemplados por em- 1970, e tacha de “filosofia-pirata” querda brasileira, observando com dos escritores brasileiros. O maior,
sociologismo ou no marxismo
preitadas dessa natureza, pergun- o que vê no ensaio como plano lucidez excessos militantes de exi- mas o menos brasileiro”.
to, com base em longevidade, da esquerda para “desmorali- vulgar? Tratava-se de inventar lados que conspiravam “tentando Desde que Roberto Sch-
volume e importância laboral, zar instituições vigentes, valores um formalismo com significado derrubar a ditadura lá de Paris”. warz começou a publicar seus tra-
que serviço à área poderiam pres- tradicionais da sociedade: famí- social, que não pudesse ser Daí também as significativas re- balhos, ainda na década de 1960,
tar iniciativas semelhantes acerca lia, religião, sexo, dinheiro, per- ferências a Fernando Henrique suas concepções políticas e críti-
acusado de reducionismo.
de Flora Süssekind, Leyla Perrone- sonalidade etc.”. Já Peripécias de Cardoso, com quem diz ter im- cas — interessadas na interpreta-
-Moisés e Walnice Nogueira Gal- um doutoramento é a epístola em Embora Antonio Candido tenha portante dívida intelectual e de ção da forma literária com base
vão, para só ficar com três. que Schwarz narra a seu orienta- explicado e praticado esse ponto cujo governo identifica dificulda- em características e dinâmicas das
Já mencionado pela orga- dor os percalços enfrentados pa- de vista de maneira luminosa, des que, no entender do crítico, lá classes sociais brasileiras — conhe-
nização de um volume, Roberto ra defender sua tese, porque, na não estariam caso o governo fosse ceram diferentes fases de prestígio,
jamais vai se livrar da pecha
Schwarz é agora tomado em seu palavra do então doutorando, de outra orientação. Não menos o que não provocou deslocamento
itinerário crítico num livro por ele um dos avaliadores achou “ina- de sociologista, que é desses significativa é sua relação com o do autor de A sereia e o descon-
assinado. Como que complemen- ceitável” o que terminou por sair carimbos de que a ignorância Partido dos Trabalhadores, do fiado. Seja como for, portanto,
tando Candido, Schwarz & Al- em livro com o título de Ao ven- gosta. Há pessoas em cuja cabeça qual foi integrante e se manteve pode ser visto como itinerário de
vim: a crítica literária dialética cedor as batatas: forma literá- como eleitor, mas sem que isso o um crítico agudo e que há mais
não entra que alguém possa
no Brasil (Edvaldo A. Bergamo e ria e processo social nos inícios fizesse ignorar equívocos e contra- de cinco décadas vem confirman-
Juan Pedro Rojas, 2019) e, espe- do romance brasileiro, um dos discutir sem crime a relação dições petistas. No retrato que faz do sua capacidade de não perder
cialmente, Um crítico na perife- principais trabalhos do crítico. entre literatura e sociedade. de Paul Singer, Schwarz chama de urgências de vista.
OUTUBRO DE 2020 | 13

nelson de oliveira
SIMETRIAS DISSONANTES

MIRAGENS & METAMORFOSES (FINAL)


• Mário Almeida, o esquizofrê- todas as outras pessoas que tam- litoral, sou a mulher que beijo agora, sou meu ini- nho acesamente secretos, é Renas-
nico… Você caminhou e cami- bém sou eu. Porém, estes acon- migo e meu melhor amigo. As árvores que eu vejo cença Indígena, a força que envia
nhou e caminhou, acompanhou tecimentos foram ocultados, em sou todas elas. Sou a própria Coluna de Clara Sa- do passado, de volta, a cultura má-
litorais, atravessou serras e ser- sua maior parte, nas páginas desse rabanda, esse cordão de seres interligados viajando gica dos povos de Pindorama. É
tões, cruzou pântanos e flores- livro que se limita a me enunciar permanentemente através do infinito… essa milagrosa luz solar-lunar que
tas, afastou-se da civilização e da em alguns dos diversos momen- eu relanço sobre a Terra.
sanidade mental. Valeu a pena? tos da história do mundo. • Thot, você foi o chimpanzé de Antônio Luís
Amigo, eu mergulhei com- por muito tempo… Quais segredos você pode- • Caros leitores, essa entrevista
pletamente nas brenhas da natu- • Durante a leitura do roman- ria nos revelar sobre ele e a incrível luz solar-lu- continuou por mais alguns me-
reza, voltando ao centro de mim ce, o leitor logo aprende a nar da mitológica Atlântida? ses, talvez anos ou décadas, não
mesmo, porque não somos outra identificar e acompanhar teus Meu pelo de animal enigmático e transmu- tenho certeza se ela realmen-
coisa que não seja natureza. Vol- avatares… tante aquece as palavras-moléculas, tornando-as te terminou ou terminará…
tei a mim mesmo, que é o estado Então você se lembrará que mais velozes, esquenta as regiões conceituais mais Ou­­tros personagens pediram
de ser puramente toda a natureza eu sou o autor do relato fabuloso abstratas dos textos espiralados que compõem A a palavra e confessaram su-
ao mesmo tempo-espaço. Ao ca- ao rei da Ibéria no século 16, con- cachoeira das eras. Toda vez que o autor teori- as inquietações e seus desejos,
minhar sem descanso por todos tando tudo o que se passa nos la- za, em certas clareiras pensativas do texto, sobre os re­­­­­­velando novos e esotéricos
os litorais, florestas, serras, ao ba- birintos da civilização subterrânea fundamentos da linguagem, e se esboçam ventila- abis­­mos. Uma nuvem sinestési-
nhar-me nos rios e nas cachoeiras que sobrevive na cidade perdida da das hipóteses sobre a origem e a alma das letras e ca cobriu o continente. Enquan-
mais secretas, fui adquirindo gra- Amazônia, o tal relator que assina dos símbolos ideográficos do passado, é por força to conversávamos, do centro
dualmente a consciência das paisa- João Jorge dos Olhos de Gato. Sou da minha presença invisível que isso ocorre. Pois dessa nuvem ecoava uma fala xa-
gens, fui integrando minha mente também o índio que aparece inú- minha presença é um portal exato, um canal de mânica, eletrônica, em looping,
ao ser de tudo que é a natureza. meras vezes a Augusto Lopes, em condução a todas as memórias do cosmos. Como que repetia e repetia e repetia:
Colei-me a ela tão organicamen- diferentes fases de sua vida, trazen- real e sagrado inventor de todas as escritas huma- > A cachoeira das eras > Epo-
te, que ultrapassei as sensações da do-lhe todos os segredos mágicos nas, eu sou o ser-árvore-de-ligação-telepática entre peia pós-burguesa, pós-científica
matéria viva para ser um só com as necessários de que ele precisa pa- todos os homens e mulheres da Terra, todos os se- e pós-apocalíptica. > Reestrutu-
paisagens. Mimetizei-me ao máxi- ra continuar com otimismo e es- res vivos, entre os vivos e os mortos. Eu sou a for- ração de um mundo. > Narração
mo e hoje sou o próprio clima, a perança nesta vida. Sou todas as ça que traz de volta, com a facilidade dos pássaros, de uma coluna fantasmagóri-
atmosfera, um ser imenso que vê identidades, minha voz é simultâ- todas as cerimônias, línguas e costumes ancestrais ca de visionários que subverte os
o mundo simultaneamente através nea como a dos pássaros. Sou o ín- somente aparentemente perdidos. interiores de um Brasil mágico,
de todos os seres vivos: animais, dio andarilho contemporâneo em aterrorizante e sem fronteiras. >
aves, peixes, insetos, plantas, árvo- busca da Terra sem Males, fui um • Você é o antídoto para nossa sociedade enve- Viagem imóvel. > Orquestração
res. Sou o próprio solo, territórios, antigo bandeirante branco preda- nenada. É a cura orgânica e espiritual para nos- de sonhos e consciências. > Rap-
montanhas, levitando-me, um ser dor de índios nos sertões, fui um sa civilização doente e à deriva… sódia premonitória de uma evo-
orquestral, o ciclo das águas em to- peixe que pesquei e logo depois de- Quando, no final marítimo do romance, Au- lução subterrânea que está em
dos os seus estados. Na consciência volvi ao mar, fui uma formiga-ra- gusto Lopes e Clara Sarabanda chegam àquela re- andamento. > Grito de denúncia,
múltipla do mundo e das espécies, inha voadora que ontem avistei ao mota aldeia de pescadores do litoral do Ceará, sou revolta e redenção. > Descrição da
tornei-me um e todos, com meus entardecer, fui toda uma colmeia eu quem, através dos sonhos desse povo que perde- última batalha entre os anjos das
olhos sem limites, olhos de paisa- de seres que ainda serei e conti- ra completamente sua identidade ao longo do tem- trevas e da luz no interior das ci-
gem. Consagração. nuarei sendo por todos os tempos. po, repito, sou eu quem traz de volta os mitos, os dades, nas praias e nos sertões
Nada em mim pode ser contido rituais, as danças, as músicas e a própria língua ver- (Jari versus Juripari). > História
• João Jorge Ribamar, suas fei- apenas num corpo, numa alma, dejante de que eles, descendentes diretos de uma escrita segundo as diretrizes dos
ções e suas lições parecem ora sempre serei esse tecido-composi- nação indígena que ali também vivera, não se lem- mitos ameríndios e mais antigos.
muito antigas ora muito jovens, ção de muitos seres, sempre serei bravam mais. É pelo meu sopro atlântico que eles > Saga inquietante e poética de
oscilando no ritmo das marés. tudo o que é possível ser, até aque- ressurgem, renascem, se tornam índios outra vez. uma nova época. > Delírio e len-
Conte-nos um pouco sobre tua les seres que ainda não foram ima- Porque, ao me tornar a própria vasta brisa, o ar an- da. > A cachoeira das eras > Epo-
maldição. É verdade que você ginados. Sou o tigre que me ataca. tigo que eles respiram de novo, eu faço renascer tudo peia pós-burguesa, pós-científica
“sempre viveu na escuridão das A baleia que ao emergir do mar em o que estava morto e esquecido. Meu outro nome, e pós-apocalíptica. > Reestrutura-
noites sem luar”? seu salto avista minha silhueta no além de Thot, e de milhares de outros que mante- ção de um mundo. >
Vocês sabem: sou o estra-
nho que veio trazido num barco
de papiro, desnudo, sobrevoado
por pássaros do delta do Nilo, que Ilustração: Kleverson Mariano
também sou eu, eles sou eu, cuja
cabeça misteriosamente mantida
fora do corpo permaneceu viva e
falante, durante séculos, como orá-
culo para o povo egípcio; eu sou o
homem-deus cujo nome é sempre
impronunciável, que veio do ou-
tro lado do Atlântico, atravessou
o Mediterrâneo e chegou em res-
plendor tropical ao Egito antigo.
O índio de Pindorama que che-
gou há milhares de anos ao Egito
antigo, com sua voz de milhares de
pássaros da floresta. Essa foi minha
primeira aparição na obra do Car-
los Emílio. Igual a todos os perso-
nagens, eu reencarno e reapareço
em diferentes entidades. Eu sou
o menestrel dos segredos, o ser
de metamorfose contínua. Tam-
bém posso ocupar diferentes cor-
pos numa mesma época, podendo
até realizar grandes encontros se-
cretos, grandes festivais ocultos,
em alguma ilha do Pacífico, com
14 | OUTUBRO DE 2020

Vidas à margem
tor o que os personagens não po-
dem ou não sabem dizer, como os
seus medos e desejos ocultos.
Dentre estas vozes sobressa-
em-se a do “menino” e a da “tra-
vesti”, que, no entanto, também
Em romance de estreia, Raphael Vidal aposta em uma podem ser apenas dois lados do
linguagem fundamentada na oralidade carioca para mesmo espelho. O menino está no
começo e no fim do livro. A tra-
falar de personagens invisíveis da sociedade vesti perpassa as estações desta nar-
rativa intrincada e esfíngica como
uma Ariadne perdida no próprio
CARLA BESSA | BERLIM – ALEMANHA labirinto. O que a conduz, assim
como aos outros personagens, é a
necessidade desesperadora de en-

A
contrar uma saída. E é aí que seu
lgumas obras de arte são instantâneos do dia a dia dos per- destino se realiza como incongru-
indissociáveis da vida de sonagens. Assim é construído um ência: quanto mais eles correm pa-
seus autores. Sobretu- caleidoscópio de relatos e retra- ra encontrar uma porta de escape,
do no caso de trabalhos tos por vezes difícil de identificar mais se veem emparedados.
que refletem existências marginais até mesmo para o leitor mais ex-
e experiências tão extremas que a periente e ambicioso. É como se a Morte
expressão artística se torna uma escrita estroboscópica de Raphael O que une todas essas figu-
válvula de escape e um ato de li- Vidal lançasse apenas curtos flashs ras, sejam elas de fato portadoras
bertação. Assim ocorre, por exem- sobre a contínua movimentação de de histórias individuais distintas
plo, com a produção enquadrada seus anti-heróis, tornando visíveis ou apenas diferentes planos do
O AUTOR
no que ficou conhecido como Art as realidades daqueles que normal- mesmo corpo fragmentado em
Brut ou Arte Outsider, produzida mente atravessam o nosso campo sua constante mobilidade, é a sen- RAPHAEL VIDAL
por pessoas de fora do meio artísti- de visão sem ser vistos e que dei- sação de insignificância diante da
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É
co, a exemplo dos internos em hos- xam, quando muito, a lembrança finitude. E é, paradoxalmente, es- autor do livro infantil Livro do pai
pitais psiquiátricos. No Brasil, os difusa de um vulto que cruzou ra- ta consciência de que a cada pas- chato (2014), organizador e autor de
trabalhos mais conhecidos desse pidamente o nosso caminho. so avançamos para mais perto da Porto do Rio do início ao fim (2012).
tipo de arte são do artista plástico morte, é a iminência da paralisia Também publicou nas coletâneas
Artur Bispo do Rosário e da poe- O coro dos excluídos final que parece impulsionar os O meu lugar (2015), Larica carioca
ta Estela do Patrocínio, ambos in- Os personagens deste cur- personagens a continuar corren- (2015), 40 vozes do Rio (2016) e
ternos da Colônia Juliano Moreira, to romance são então os represen- do e prosseguir lutando. Conversas de botequim (2017). Algum
onde passaram a maior parte de su- tantes desta camada social quase A morte, evitada e desejada, lugar para cair e fechar os olhos
as vidas. Como destaca a psicana- invisível, os que não têm história. é punição e redenção num só mo- de vez é o seu primeiro romance.
lista e doutora em filosofia Viviane Há o menino da favela que solta vimento de chegada, é o território
Mosé, que publicou um livro com pipa de cima de uma laje e o “qua- onde toda a busca termina, o “lu-
a transcrição das falas de Estela, a se homem” (esse mesmo menino gar para cair e fechar os olhos de
poesia da interna era singular por- na passagem do tempo?), que, vez”. Lendo-se este pequeno mas
que “organizava a tensão gerada en- mal crescido, já... denso livro com atenção, nota-se
tre ordem e ausência de ordem de que é dela que se fala o tempo to-
forma delirante, móvel, fundada na entendia seu lugar. Desen- do. É ela, a morte, que está por
afirmação de sua fragmentação”. rolava seu trocado, lustrava, polia, trás do cerol feito pelo menino pa-
Delirante, móvel e fundada cuspia, as moedas no bolso, nada ra “derrubar as voadoras” alheias,
na afirmação de sua fragmentação mal. Tudo nos trinques pra esque- ela está por trás da pipa que se per-
é também a escrita de Raphael Vi- cer das lembranças. Rodava biros- de, está na resignação do homem,
dal em Algum lugar para cair e cas, balcões, muquifos. Inferninhos. “cuspido pela liberdade, largado
fechar os olhos de vez, seu pri- Pinçava com o olhar, curioso, ron- de apego”, na perseverança cansa-
meiro romance. Não que o escritor dando. Certo de que aquilo tudo va- da da travesti “abusada, (...) fin-
se insira entre os isolados da socie- lia para um prato. gindo ser a dona da banca com o
dade. Ao contrário, pelo que li, Vi- traçado no meio copo”. A finitu-
dal parece estar para a vida social Há a travesti cuja memória de de está na penumbra do quarto,
do Rio de Janeiro como a agitação menino (mais uma vez, o mesmo?) onde “sobre o colchão há alguém
na região portuária para o Mor- se perde no limbo “em que se trans- atormentado, encoberto, encolhi-
ro da Conceição, onde ele mora e formou o passado”. Ou o bêbado, do como um feto ainda no ventre
dirige a Casa Porto, fusão de res- “chumbado, tonto. Mamado”. O materno”, ou nas flores que voam
taurante, boteco e centro cultural. louco, o abandonado, rasgado, su- fazendo um espetáculo ao lado do
Mas fica evidente que o autor co- jo, jogado, estirado, duro, teso, liso. velho caído, “lambendo pedra”. A
nhece “de dentro” a realidade peri- Ou o jogador, o errante, o velho que morte é a companheira do “mole-
férica que retrata, a cada frase ele se perdeu tudo, o que não servia para que de rua cheio de fome e de se-
inscreve em meio aos seus protago- nada, o instrumentista. de”, do início ao fim:
nistas, figuras que vivem à margem Todas estas figuras podem
e se encontram em constante esta- ser lidas como existências individu- Aquele moleque cheio de fo-
do limítrofe: os moradores de rua, ais, mas também como diferentes me e sede adulteceu e fez morrer.
os desocupados, os que não se en- versões de uma mesma realida- Ainda se escuta o nome dele pela
caixam, os abandonados em cor- de. E fica-se com a impressão de janela, voando as sílabas pela esca-
reria pela cidade, essa “gente que que a intenção do autor é mesmo dinha que dá na rua. Desistiu, não
não sabe sofrer por faltar compa- não definir os contornos exatos de há nada mais: o bonde passou e ele
ração com o contrário”. Ou, como seus personagens porque incon- caiu nos trilhos. Esperou o Zé Ma-
ele diz em uma entrevista, trata-se tornáveis são os destinos daque- ria vir buscá-lo pelo pé. Lamentou
de uma “parcela da nossa popu- les que retratam. Assim, os rostos o tédio de aguardar a morte sem ao
lação da qual não guardamos ne- que emergem e desaparecem das menos um pito. E, quando ela che-
nhuma memória, nem números: páginas do livro em sucessão ver- gou, restou apenas carne: sua his-
os brasileiros que sobrevivem abai- tiginosa aparecem como máscaras, tória já escapara, ao lado dos seus
xo da informalidade”. os protagonistas somam vozes nu- mais chegados, pois que todos mor-
Com uma linguagem fun- ma espécie de coro dos excluídos. rem com a vida que se renova. — A
damentada na oralidade carioca, Aliás, na minha opinião, o de sétimo dia é quinta-feira.
percussiva e de ritmo lancinante, o romance só desenvolve sua verda-
autor, quase como um DJ, monta deira força quando lido como o Na morte, as pontas se
uma espécie de megamix narrativo canto de um coro teatral à moda unem e o destino do menino que Algum lugar para cair e
no qual os fragmentos das histó- do teatro grego: a fala de um cor- é um coro se realiza. Sua vida é fechar os olhos de vez
rias se inserem uns nos outros, so- po homogêneo, não individualiza- representativa para todos os que, RAPHAEL VIDAL
brepondo-se em alta velocidade do que comenta a realidade com como ele, morrem diariamente, Pallas
para compor uma justaposição de uma voz coletiva, revelando ao lei- insistindo em viver. 72 págs.
OUTUBRO DE 2020 | 15

luiz antonio de assis brasil


TRAMAS & PERSONAGENS

Ilustração: Denise Gonçalves


1.
Na vida, os espaços em que
estamos são indiferentes ao nosso
sofrimento ou à nossa felicidade.
É possível sentir a mesma angústia
num deserto ou num shopping.
A depressão pode ocorrer tanto
num dia úmido e nublado como
num dia primaveril. Mario Quin-
tana, contudo, tem lugares prefe-
renciais: “Sempre é melhor chorar
junto à lareira quente / Do que
na rua, ao desabrigo”. De qual-
quer forma não haverá escolha,
pois ter ou não ter lareira depen-
de da condição socioeconômica
da pessoa. Já um cavalheiro britâ-
nico à antiga consideraria vulgar
alterar seu mood de acordo com
o tempo meteorológico. Por isso
os ingleses resistiram, impávidos,
ao calor indiano. Os psicanalistas
sabem bem disso, focando-se na
variável interioridade de seu anali-
sando, enquanto o consultório te-

O LUGAR DA CENA, MAS NÃO SÓ


rá sempre as mesmas cortinas, a
mesma lâmpada ao lado do sofá,
a mesma caixa de lenços de papel.
Isso é na vida.

2.
Na ficção, constructo artifi-
cial, é diferente. No romance há sem experiência determina aleato- surpreendentes, pois eles passam uma trama de seus falsos amigos,
cenas; cenas são criadas pelo fic- riamente o lugar em que vai situar não só pelo olho e pela lente, mas e por isso foi sentar-se num par-
cionista, e as cenas acontecem em a cena, como se jogasse numa ro- pelo fio da consciência e da ideo- que, “debaixo de uma árvore, e ali
algum espaço. E o espaço preci- leta. Trata-se de um equívoco de logia do grande artista brasileiro. ficou ruminando sua cólera. Uma
sa ser inventado — ainda que ele composição, que pode provocar Assim também é na ficção. grande doçura parecia cair do alto
exista. Ainda que exista...? O pa- assimetrias no enredo. Há uma azul, puríssimo; o rumor da cidade
radoxo faz sentido pela percep- grande diferença entre colocar 5. chegava por fragmentos abafados,
ção individual: o Passeio Público uma cena íntima, para “discutir Incluam-se aqui, no concei- como se ficasse preso, enleado nas
de José de Alencar não é o mesmo a relação”, na iluminada algazar- to de espaço, porque acabam de- ramagens meio despidas”. O efei-
de Machado de Assis. As múlti- ra de uma churrascaria à uma da sempenhando o mesmo papel, os to retórico é o mesmo: tanto o es-
plas representações pictóricas da tarde ou num obscuro e tacitur- objetos ou seres inanimados que paço de Eça como de Balzac, um
mesma catedral de Rouen amplia- no bar às onze da noite. Uma ou pertencem ou estão no lugar: uma por reiteração, outro por contras-
ram a fama de Monet, e sobre es- outra cena pode dar certo é claro, janela, um tapete, um laptop, um te, potencializam o que se passa na
sa série disse Clemenceau: “Uma mas o andamento da conversa será teclado, uma máscara sanitária. interioridade da personagem. É es-
forma nova de olhar, de sentir...”. diferente, talvez não o melhor para Para todos os efeitos, são coisas colher. O importante é que não es-
Sartre reclamava, em As palavras, aquela narrativa, salvo se o intuito com que a personagem tem con- tejam ali por acaso.
que se sentiu traído quando co- seja causar oposição: relembre-se tato e, essencialmente, com elas
nheceu “pessoalmente” o Jardin uma cena de Mme. Bovary, em interage. Uma dúzia de belas tu- 7.
du Louxembourg, do qual ele lia que Flaubert põe o diálogo amo- lipas encarnadas adquirem uma Por último, Aristóteles po-
apenas as descrições literárias. Os roso entre Emma e o patife Rodo- aparência perversa no célebre poe- de ser de ajuda a ficcionistas do
romances distópicos ou de fan- phe num prédio em que chegam ma da enferma Sylvia Plath, aqui século 21. Dizia ele que as coisas
tasia, atualmente na moda, pas- os sons dos pregões de uma fei- na versão de Enrique Carretero: devem ser apresentadas em esta-
sam-se em lugares alterados do ra agrícola, os quais se intercalam do de ação. Alguém pode escrever:
futuro ou do passado. A ilha do grotescamente na fala de Rodol- Sua vermelhidão fala com minha ferida, combina com ela./ “Neste momento, estou sozinho
dr. Moreau dá-se numa ilha que phe. Diz o sedutor a Emma: — Elas são sutis: parecem flutuar, embora me afundem/ Perturban- no meu quarto, e estou pertur-
não existe. Em suma: se sempre “Uma centena de vezes eu quis do-me com suas súbitas línguas e sua cor,/ Uma dúzia de pesos de bado”. Embora correto, é muito
há um lugar em que as ações se partir, e, no entanto, eu a segui, chumbo vermelhos ao redor do meu pescoço. amador. Já uma escrita profissio-
desenvolvem, ele sempre terá uma fiquei./ ‘Estrume’/ — Assim co- nal dirá: “A solidão do meu quar-
intenção no conjunto da narrati- mo ficaria esta noite, amanhã, nos Uma pessoa saudável escre- to me perturba”. Neste caso, o
va. Impossível escapar disso. outros dias, toda a minha vida!” veria um poema bem diferente, abandono do espaço ganhou vida
talvez inferior. e drama, integrando-se no senti-
3. 4. mento da personagem. (E deixa-
Não se pode confundir os É possível perceber, por- 6. mos lá para trás dois medonhos
espaços em que ocorrem as ações tanto, que, na narrativa ficcional, O habitual é que o espaço li- verbos auxiliares, nada mau.) E é
com “cenários”, no antigo senti- não há espaço objetivo — assim terário reitere o estado emocional assim que se adquire a competên-
do teatral do termo. Os dramas da como na fotografia não há tema da personagem. Está em A mu- cia técnica. Se fosse possível dar
antiguidade, submetidos à unida- objetivo. Quando a fotografia se lher de trinta anos: “As manhãs uma sugestão, essa seria, e válida
de de tempo e de lugar, tinham vulgarizou, nos meados do sécu- brumosas, um céu de claridade fra- não apenas para o espaço ficcio-
um cenário, e ele precisava valer lo 19, e, particularmente, o retra- ca, nuvens correndo baixo sob uma nal: nos inícios da escrita literá-
para qualquer momento e humor to, Baudelaire condenou-a por sua abóbada cinzenta ajustavam-se ao ria, é preciso ter consciência dos
da peça. Isso chegou até a drama- objetividade, feita a propósito pa- estado de sua doença mental”. Tru- recursos utilizados; com o tem-
turgia francesa do século 17. Na ra retirar “o que sobra de digni- que do escritor: foi Balzac quem, po, esses recursos incorporam-se
ficção, as coisas não funcionam as- dade dos franceses”. Mas se trata a partir da enfermidade de Julie, às ferramentas autorais, as quais,
sim. O espaço nunca será um ce- de uma objetividade ilusória, co- criou ad hoc as tais manhãs cheias depois, serão utilizadas de modo
nário por uma razão bem simples: mo se sabe. O olho do fotógrafo de melancolia. É possível, entre- instintivo. Para brincar com o afo-
o ficcionista criará o espaço para irá dar sentido a um motivo que, tanto, pensar em casos em que o rismo clássico poeta nascitur, non
atender às intenções do conflito. sem essa mediação, poderá não di- espaço age por contraste: Artur fit, já parafraseado com excelência
Por isso, não há espaço “inocente” zer nada a outra pessoa. Sebastião Corvelo, de A capital!, de Eça de por Simone de Beauvoir: “Nin-
na ficção. Por vezes, o ficcionista Salgado nos mostra outros índios, Queirós, está louco de fúria contra guém nasce escritor, faz-se”.
16 | OUTUBRO DE 2020

wilberth salgueiro buquerque, Viviana Bosi.) Em raro,


algum poeta ou poema explicita dife-
SOB A PELE DAS PALAVRAS rença ou desavença com o ídolo luso
(ou com a musa-poeta carioca). Sem

[A GENTE...], DE
a radicalidade de Cabral, Ana Cristi-
na Cesar vai, todavia, em sentido afim
ao do recifense, pois ambos percebem

ANA CRISTINA CESAR


a vulgarização que a idolatria e a ilusão
de semelhança provocam.
O condensadíssimo poema pro-
voca, por sua vez, reflexões de outros
quilates: “A gente sempre acha que
é/ Fernando Pessoa”. A gente, como
se disse, pode ser o suposto “eu líri-
co”, como qualquer outra gente, ou-
a gente sempre acha que é muitos: “O mal que Pessoa fez à tra pessoa, outro poeta. A intensidade
Fernando Pessoa literatura é imenso. Aquela coisa do gesto reiterativo se fixa no advérbio
‘inspirada’, caudalosa, criou uma “sempre”: sem escapatória, o poeta fra-
É amplamente conhecido legião de poetastros que acredi- co, jovem, efebo (para usar terminolo-
o prestígio da obra de Fernando tam na inspiração metafísica. Até gia suspeita de Bloom), para tentar se
Pessoa no Brasil. Ao lado da reve- Drummond ficou assim no fim firmar na tradição deve se haver com
rência ao português modernista, da vida. Sei lá, foi preguiça...”. o poeta forte, consagrado, experiente.
há também um gesto como que Coerente, no entanto, tal decla- A mesmice da repetição esbarra, entre-
de resistência ao espectro do câ- ração, se pensada à luz da poéti- tanto, na incerteza do próprio móvel:
none. Marjorie Perloff alerta, em ca “antissubjetiva”, “antipessoal”, a gente “acha”, isto é, não tem convic-
O gênio não original, para o fa- “antilírica”, que, com todas as con- ção, prova, nada. Em “a gente acha que
to de que, “no mundo da poesia, tradições e os limites que o projeto é”, o verbo “ser” ecoa taxativo: a gente
a demanda pela expressão original comporta, Cabral procurou esta- não se parece, não imagina, não imita,
ainda resiste: esperamos de nossos belecer para sua obra. De fato, o a gente “é” o outro, à Rimbaud, sem
poetas que produzam palavras, ex- que se vê à exaustão são poetastros mediação. Por fim, ironia das ironias,
pressões, imagens e locuções irôni- que têm em Pessoa um modelo a gente acha que é alguém (“Fernando
cas que nunca ouvimos antes”. É que acham que seguem ou sutil- Pessoa”) que elaborou uma obra cujo
a tal demanda que os poetas res- mente imitam, porque, segundo alicerce repousa exatamente na ruptu-
pondem (ou deveriam responder) Ana C., “a gente sempre acha...”. ra, pulverização e/ou multiplicação da
quando procuram articular a von- A presença de Pessoa se po- persona poética (íntegra, tradicional,
tade da “expressão original” à pre- de, ainda, rastrear em poemas de coerente). Achar que se é alguém que
sença incontornável da tradição, Paulo Leminski (“dava pra ser aí se disfarçou incessantemente traduz já
presença que se faz visível muitas um rimbaud/ um ungaretti um o fracasso do desejo. (E, como a críti-
vezes por meio da citação, em suas fernando pessoa qualquer; Byron ca já explorou à exaustão, tudo se des-
múltiplas formas. era verdadeiro./ Fernando, pes- dobra e se adensa ainda no fato de o
Um exemplo de como se dá a soa, era falso”), Glauco Mattoso nome da pessoa em vista ter o nome
lida com a tradição é este curto, ga- (Simulado), Orlando Lopes (Au- Pessoa, dando margem a dubiedades,
lhofeiro, provocante e contunden- topsiucografia), Roberto Piva (Ode trocadilhos, especulações filosóficas
te dístico de Ana Cristina Cesar, a Fernando Pessoa), Felipe Fortuna em torno do duplo e da alteridade.)
pinçado de Inéditos e dispersos (Com uma AK-47), Waldo Motta A quebra do verso colabora para
(1985): “A gente sempre acha que é (Mar de tanto sangue e fel), Caeta- o estranhamento e para o efeito-sur-
/ Fernando Pessoa”. O que Ana C. no Veloso (Gosto do Pessoa na pes- presa, pois a “conclusão” da afirmação
resume em seu poema parece um soa) e tantos outros, como Afonso do verso inicial surpreende. Sentir-se,
sentimento, ou, antes, um com- Henriques Neto, Frederico Bar- achar-se o mestre Fernando Pessoa faz
portamento algo clicherizado de bosa, Sergio Cohn, Inaldo Caval- da “gente” alguém especial. O proble-
(em geral) jovens poetas que dese- cante, que citam Pessoa em seus ma, a um palmo do bom senso, é que
jam ser parecidos com o poeta que poemas, e evidentemente tais ci- a gente não é Fernando Pessoa. A ilu-
admiram, no caso, Pessoa. O tom tações se formalizam de modo são esboroa tão rapidamente quanto
irônico é óbvio. Mais óbvio quan- distinto. O mundo da poesia de dura a leitura do curtíssimo poema.
do a poeta finge se incluir no co- Pessoa se assemelha ao sertão de Mesmo — pensando de modo um
letivo “a gente”, ao mesmo tempo Rosa: “diverso diferente”, como, pouco mais sofisticado — que se te-
em que se exclui, se considerarmos quase consensualmente, a crítica nha no horizonte da afinidade o sen-
que “a gente” são os outros. Nesse considera. Essa extrema diversi- timento de, à semelhança de Pessoa
jogo, ela elucida o que, em seu úl- dade encontra correspondência na e seus heterônimos, se perceber múl-
timo depoimento gravado (e regis- diversidade de modos com que sua tiplo, fragmentado, diferente, o fato
trado em Escritos no Rio), diz: “O poesia é recebida e citada em nossa (o fogo-fátuo) é que é falso o equipa-
que quer dizer ‘olhar estetizante’? poesia brasileira, tornando utópi- rar-se ao monumento que atende pe-
Quando você estetiza, quer dizer, ca qualquer tentativa de “unificar” lo nome próprio de Fernando Pessoa,
quando você mexe num material uma compreensão acerca de recep- autor de Livro do desassossego (sob
inicial, bruto, você já constrói al- ção tão múltipla e complexa. a capa de Bernardo Soares).
guma coisa. Então, você sai, você A esse contexto de “ansieda- No entanto, o prazer e a glória do
finge, é a questão do fingimento de da influência” (Bloom) é que poema de Ana (Ana C., Ana Cristina,
novamente. Aí você sai do âmbito pertence e responde o poema de Ana Cristina Cesar) vêm exatamente
da Verdade, com letra maiúscula. Ana C. Com apenas dois versos da bem-sucedida espera de que “nossos
Você saca que ela nem existe, que e oito palavras, sem título, a poe- poetas produzam palavras, expressões,
ela nem pode ser transmitida. Na ta sintetiza a um tempo um sen- imagens e locuções irônicas que nunca
literatura, então, não há essa Ver- timento e uma prática. Noutras ouvimos antes”. Pessoa realizou tal ex-
dade”. Se há um poeta conhecido palavras, ela fala desse lugar de câ- pectativa, e Ana Cristina nesse poema
entre nós por ser um “poeta fingi- none que o autor de Mensagem e no conjunto de sua obra, a seu modo,
dor” (que finge tão completamen- ocupa, e do desejo que os pares- também. Não se trata de compará-los,
te, etc.), este é Pessoa. -poetas têm em afirmar o paren- pois Ana C. não acha que é Fernan-
No Brasil, inúmeros poetas, tesco ou intimidade com ele. (Algo do Pessoa. Quem acha isso é “a gente”.
cada qual a seu modo, elaboraram semelhante ocorre com a própria (Curiosamente, Pessoa não faz parte do
um diálogo com o célebre escri- Ana Cristina, cuja obra arrebanha Índice onomástico, de A teus pés, em
tor português. Nosso poeta-mor, uma legião de fãs, críticos e poe- que a poeta lista 23 nomes de escrito-
Drummond, por exemplo, fez tas, que sobre ela têm multiplicado res e amigos de algum modo presentes
sua homenagem em Claro enig- poemas e teses — ver estudos de no livro.) Entre a reverência, clássica, e
ma, no belíssimo Sonetilho do fal- Ana Cláudia Viegas, Annita Ma- a resistência, crítica, permanece atual o
so Fernando Pessoa. João Cabral lufe, Flora Süssekind, Italo Mori- diagnóstico de há décadas de Ana C.:
vai, contudo, noutra direção. Em coni, Josely Bittencourt, Luciana “A gente sempre acha que é/ Fernando
entrevista à Folha de S. Paulo, em di Leone, Maria Lúcia Camargo, Pessoa”. Talvez alguns achem demais, e
1991, declara, para desagrado de Regina Helena Lima, Virgínia Al- outros sejam de menos.
OUTUBRO DE 2020 | 17

inquérito
MIRA CERVINO

TIAGO FERRO

LONGE DE SER
AGRADÁVEL

A
trajetória literária do autor paulistano Tiago
Ferro não foi calculada. Sem nunca ter pen-
sado em ser escritor, começou a pôr palavras
no papel. “Não diria que há prazer na escrita.
Para mim é um processo de muita intensidade, o que
está longe de ser agradável”, conta. Hoje, é guiado pe-
las dúvidas — “o motor de tudo” — e se alimenta dos
incômodos para elaborar seus textos. Em 2018, lan-
çou seu primeiro romance, O pai da menina morta.
É um dos fundadores da editora digital e-galáxia e da
revista Peixe-Elétrico. Já publicou ensaios sobre cultura
nas revistas Piauí e Cult e no Suplemento Pernambuco.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?


Nunca havia pensado em ser escritor. Apenas co- Não diria que há prazer na escrita. Para
mecei a escrever.
mim é um processo de muita intensidade,
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Só vou ao computador quando já “escrevi” pa-
o que está longe de ser agradável.”
rágrafos completos na minha mente. Costumo ficar
muito mais tempo nesse processo de “escrita mental”
do que teclando.
Querer colocar de forma consciente suas pró-
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia? prias convicções políticas na boca de um personagem.
Estou estudando a obra do crítico Roberto Sch- Pode funcionar para um panfleto, nunca para a ficção.
warz no doutorado em história na FFLCH-USP. Por
isso não passo um dia sem ler algo relacionado à pes- • Que assunto nunca entraria em sua literatura?
quisa: Escola de Frankfurt, ideologia, crítica macha- Só vou descobrir quando parar de escrever.
diana, Brasil escravocrata. Esses são os grandes blocos
temáticos. • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou
inspiração?
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Do golaço do Maradona contra a Inglaterra
Jair Bolsonaro, qual seria? na Copa de 86.
Recomendaria que ele renunciasse.
• Quando a inspiração não vem...
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever? Meus textos nascem muito mais de incômo-
Escrevo do jeito que dá. Não sei se existe uma si- dos. Do atrito com a realidade é que surgem as
tuação externa ideal que torne a escrita mais fácil. ideias. E elas estão sempre por aqui. Mas nem to-
das merecem ser elaboradas.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Silêncio total. O que nem sempre é possível na • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de
Vila Madalena. convidar para um café?
Não recusaria um café com o Chico Buarque.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Não consigo relacionar muito bem a ideia de pro- • O que é um bom leitor?
dutividade no trabalho com escrita. Um dia sem escre- Não sei.
ver nada pode ser produtivo para a escrita de um livro
ou ensaio? Penso que sim. • O que te dá medo?
Enterrar as pessoas que eu amo.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Não diria que há prazer na escrita. Para mim é • O que te faz feliz?
um processo de muita intensidade, o que está longe de Os meus.
ser agradável.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
• Qual o maior inimigo de um escritor? As milhares de dúvidas são o motor de tudo.
Não ser lido.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
• O que mais lhe incomoda no meio literário? Não pensar em nada além da escrita.
A falta de mais debate crítico.
• A literatura tem alguma obrigação?
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção. Nenhuma.
Machado de Assis. Ainda há muito a ser desco-
berto na obra toda. • Qual o limite da ficção?
A arte não tem limites, mas sim um compro-
• Um livro imprescindível e um descartável. misso em questioná-los.
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Ma-
chado de Assis. É imprescindível que seja lido diver- • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse
sas vezes ao longo da vida. Não indicaria um livro que "leve-me ao seu líder", a quem você o levaria?
não tenha gostado. Hoje: Marx, Millôr e Dylan.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer • O que você espera da eternidade?


um livro? Que exista.
18 | OUTUBRO DE 2020

De rinocerontes,

DIVULGAÇÃO
aranhas e ruas
Três livros da literatura brasileira contemporânea
que jogam o leitor no abismo existencial, oferecendo
reflexões contundentes e explorando as dores humanas

JORGE IALANJI FILHOLINI | SÃO PAULO – SP


Cinthia Kriemler, autora de O sêmen do rinoceronte branco

U
m bom livro é aque- finição perfeita é de autoria da es- Em nossos planos, só uma falha. Não temos o
le que te carrega pa- critora Cidinha da Silva, em seu sêmen do rinoceronte branco.
ra dentro de uma casa livro O homem azul do deserto
abandonada e escura. (2018). No texto Cronista analógi- E Cinthia Kriemler não para aqui. A obra,
Sabemos que ali encontraremos ca de um tempo digital, a autora es- com 27 contos, retrata as complexas atmosferas da
os cômodos, cada qual divididos tabeleceu: “[...] o romance ganha contemporaneidade, ora contemplativos, ora in-
de diferentes formas, comprimen- o leitor por pontos e o conto, por tensificados. Casos estes como em Chiaroscuro, que
tos e larguras, sabemos que naque- nocaute, a crônica esgrima e vence abre o livro: “Não tem mais madrugada, Imacula-
la casa haverá banheiro, quartos, por W.O.”. E por que escrevi tu- da. Não tem, Fabrício — o seu corpo ainda está na
cozinha, sala, corredores, etc. O do isso? Para apontar que o mais minha cama. Quando você chegar — há de che-
que a convenção social nos de- recente livro de Cinthia Kriemler, gar, há de chegar, há de chegar —, vai trazer cheiro
monstrou. Ou o que a arquitetu- O sêmen do rinoceronte bran- de sangue para os nossos lençóis de alfazema e de
ra em sua história propôs. Mas, co, é marca da plena criatividade amor. Conspurcação”.
caminhando virgens no breu, da autora em manusear o tempo e As conturbadas relações familiares, exemplo de
não conseguiremos identificar, à espaço, elaborar complexidade nas Assim: “Sabe esta cicatriz no meu rosto? Última lem-
primeira impressão, como estão personagens, trazer os fatos atuais brança da minha mãe bêbada. Deixei cair sem que-
dispostos esses cômodos. Nem para as páginas, fruto de uma ob- rer uma das suas garrafas malditas. Ela me cortou
mesmo saberemos chegar nesses servadora das vidas e histórias da com o gargalo quebrado. Afundou, afundou, afun-
espaços. Confortáveis ou não, só nossa sociedade. dou até eu desmaiar”.
teremos noções quando o corpo Uma amostra desta capaci- Os tantos casos de preconceito, intolerância
sentir e responder. Para um leitor, dade literária de Kriemler está no e perseguição às religiões de matrizes africanas, pre-
as histórias narradas em O sêmen texto que leva o nome do livro. sente no conto Em nome: “Está amarrado em nome
do rinoceronte branco, de Cin- Nele, somos levados para 2018 e de Jesus! A cada altar quebrado. A cada estátua esti-
thia Kriemler, Aranhas, de Car- apresentados ao relato da morte do lhaçada. A cada flor pisada. A cada soco e pontapé
los Henrique Schroeder, e Rua de último macho da espécie de rino- que deram na menina mais linda do terreiro. A filha
dentro, de Marcelo Moutinho, cerontes brancos. Uma narrativa mais querida de Ogum. Mas foi em nome de Jesus”.
todos lançados em 2020, ultrapas- atenta e detalhista em desenvolver A iminência da morte em Dias de contagem:
sam as conotações atribuídas aos os últimos suspiros de Sudan — “A morte, esse lugar sem instruções. Onde estão as
gêneros literários, atravessando as o último rinoceronte branco, aos criaturas do meu afeto. A vida, esta passagem es-
páginas, transformando a leitura 45 anos, cujo sêmen será guarda- treita, autofágica”.
em vibrações corporais e mentais. do para futuramente ser utilizado. Além da solidão na velhice, apontado em Me-
Roland Barthes, em seu ar- Enquanto vamos acompa- sa posta: “Fui eu que propus o asilo. E repeti a ideia
tigo Escrever a leitura, presente em nhando a descrição, Kriemler dá dia e noite, como um mantra de ataque. Mas os
O rumor da língua (1984), atri- uma redobra à narrativa, amplia, mantras de defesa de mamãe foram mais imperati-
buiu que “ler é fazer o nosso cor- e nos revela as diversas situações vos. Os velhos são doentes de solidão”.
po trabalhar”. Ou também, no problemáticas tendo como mo- Os enredos de O sêmen do rinoceronte
mesmo artigo, mais abrangente, o te a violência humana, trazen- branco são muito bem desenvolvidos por uma au-
autor destacou: “Nunca lhe acon- do a já citada história do último tora que tem consciência da dor que a contempo-
teceu, ao ler um livro, interrom- exemplar da espécie de rinoceron- raneidade proporciona no nosso comportamento.
per com frequência a leitura, não tes brancos, passando por casos de Observações e escritas que causam efeitos colaterais.
por desinteresse, mas, ao contrá- estupros, assim como a da morte Um incômodo na alma, nos músculos. Kriemler
rio, por afluxo de ideias, excita- de Ágatha Vitória pela polícia no apreende o cotidiano, o hoje, a desolação e a or-
ções, associações? Numa palavra, Morro do Alemão. fandade sentimental, a escassez empática e a des-
nunca lhe aconteceu ler levantan- Uma análise precisa da hosti- confortante desigualdade social. Sua escrita aborda
do a cabeça?”. Foi o que aconte- lidade atual que permeia a humani- a latente expressão íntima e degenerada do sujeito
ceu, diversas vezes, com este que dade, composta pela forma literária atual. O sujeito atual decidido a atuar pela falsa so-
vos escreve, ao acompanhar as lei- de Kriemler, em uma escrita calca- lução de que “a gente dá um jeito na dor”.
turas das três obras aqui analisadas. da na crítica social e expressada pa-
ra refletir e discutir o agora: Teias literárias
Incômodo na alma O poeta Francisco Alvim escreveu: “Quer
No decorrer dos anos, em Podemos fechar os olhos. Mais ver?/ escuta”. Esta é a melhor definição para a lei-
debates incansáveis, ensaios in- uma vez. Essa é a nossa expertise. tura de Aranhas, novo livro de Carlos Henrique
termináveis, questionamentos em Podemos desligar a TV, tampar os Schroeder, ou melhor: quer ver? Escute os contos
entrevistas e inúmeros estudos, so- ouvidos, cobrir a cabeça. Podemos que fazem parte desta obra. O autor, como um arac-
mos abordados para responder a nos mudar para Paris. Ou para a nídeo descido do teto, por um fio de seda-escrita fa-
diferença de crônica e conto. Es- Finlândia. Quando voltarmos, tudo bricada por ele, chega ao nosso pé do ouvido e narra
sa discussão permeia a crítica e sua estará terminado. E olharemos pa- essas histórias, mexendo com os sentidos, emoções.
necessidade de categorizar os es- ra o genocídio de meninas e meninos Incomodando os nossos nervos cerebrais. E, quan-
critos de autoras e autores — jo- pobres com toda a piedade hipócri- do estamos embriagados com suas falas, vem Sch-
ga no Google para se certificar. Já ta que nos foi ensinada pelos nossos roeder e aplica o veneno. Este veneno se manifesta
escutei diversas definições, algu- pais e pelas nossas igrejas. E nos sen- logo no conto que abre o livro, Viúva-negra. Um
mas bastante humoradas, como taremos com um copo de cerveja, de relato de uma noite de um casal, a priori rotineira,
a de Ignácio de Loyola Brandão, vinho ou de uísque entre amigos que até o autor moldar sua teia. Volto à imagem, ambos
em que ele diz que a distinção de também terão acabado de voltar de as personagens degustando sua pizza e apreciando
conto e crônica é, justamente, o Berlim ou de Barcelona. E discutire- o seriado, almejando uma viagem turística pela Itá-
prazo de entrega. Para mim, a de- mos planos para reverter a extinção. lia. A narração, em sua grande parte por diálogos,
OUTUBRO DE 2020 | 19

prova a habilidade de Schroeder


em falar para vermos, pronto pa- Esses livros fornecem a raimundo carrero
ra levantar a quelícera e aplicar o pluralidade de sensações, PALAVRA POR PALAVRA
veneno, cujo efeito fatal sentimos com diálogos, epifanias,

COMPROMISSO
ao fim da leitura. expressão artística.
E ficaram assim, felizes, mas-
tigando seus pedaços de pizza en-

ESTÉTICO:
quanto assistiam ao seu seriado
favorito, e se imaginavam no Co-
liseu, na Fontana di Trevi, no Va-
ticano. O problema é que o câncer

PERSONAGEM
estava indeciso e não sabia qual dos
dois levar primeiro.
“Quer o último pedaço?”

NA LUTA REAL
Um exemplo primordial da
morfologia do livro de Schroeder
começa por ler o exoesqueleto dos
contos, uma forma do autor di-
fundir seus membros em nossas
mentes. Nos domar a partir das

U
teias em torno de nossas inter-
pretações. Agasalha o mistério, ma das características pular Brasileira, responsável, por
à espreita, escondida nas paredes mais fortes da Estética assim dizer, pelo romance de 30
íntimas das personagens. Cons- Popular Brasileira, de — acontece o mesmo — conside-
trói suas sedas complexas e, as- Jorge Amado, é fazer rando-se, sobretudo, que a família
sim, fica pronta para capturar o os protagonistas de seus roman- Badaró tem, na verdade, uma pre-
alimento, ou seja, a leitora e o lei- ces mais importantes sair da fic- sença muito forte na Bahia.
tor. Confundem-se de que as teias ção para a luta real da sociedade, Há aqui, porém, uma mu-
criadas na escrita de Schroeder mesmo que seja apenas uma es- dança de rota na Estética que
são de tamanhos únicos. O sêmen do rinoceronte branco tratégica literária estabelecida pe- estamos examinando, os prota-
Encontramos pelo livro tex- CINTHIA KRIEMLER lo compromisso que o autor selou gonistas são desta família aristo-
tos breves e longos, o que demons- Patuá desde cedo com a ideologia que crática baiana e não exatamente
128 págs.
tra a admirável capacidade do norteou toda sua obra. proletários e humilhados, como
autor em produzir ótimas narrati- É quase uma densa repor- ocorre nos livros anteriores. Es-
vas. Vide pelos enredos: De pare- tagem sobre movimentos de sub- ses personagens, no entanto, fo-
de, Aranha-lobo, Ciborgue, De rato, levação na Bahia, onde a maioria ram tão bem retratados e tão bem
Saltadora, Lince Americana, Mar- negra e pobre se lança em bus- representados em suas injustiças
rom, Cara de diabo, e a já citada ca de justiça social. E para não e agressões que o escritor sofreu
Viúva-negra. As espécies sendo as- deixar isso apenas na ficção, Jor- diversas ameaças de morte. Mas
pirações para descrever e criticar a ge Amado registrou também o os jagunços, sempre marginaliza-
conduta da rotina humana, em um real, de forma a dar veracidade dos, vindos dos miseráveis e hu-
emaranhado de boas ideias sendo aos seus personagens. milhados, usados pelo coronéis e
desenvolvidas em ótimas histórias. Assim ocorre com Antônio ricos, são personagens decisivos.
São contos que proporcionam o Balduíno, no principal roman- Não é por acaso que Terras
choque emocional, trazendo os ce do autor (Jubiabá), saindo das do sem fim é visto como um dos
desconhecidos destas vagas atitudes páginas do livro para liderar greves livros mais bem escritos do autor,
sombrias em que as aranhas-enre- em Salvador, mesmo que aí tenha mesmo que o princípio lembre
dos de Schroeder trazem à luz, co- muito de ficção. Mas este é um muito A educação sentimen-
mo neste trecho de De parede. detalhe decisivo para que se possa tal, de Flaubert, com a técnica
compreender perfeitamente a es- do olhar do personagem, recur-
Eu a vejo passar aqui na rua tética deste autor revolucionário, so que o escritor francês criou e
quase todos os dias e cerro minhas que mudou inteiramente o rotei- usou com maestria.
mãos, e chego a ouvir o som oco dos ro da literatura brasileira. Vejamos
meus socos no seu rosto. Um dia ela um dos trechos finais do romance: O apito do navio era como
me viu e cumprimentou. Respondi Aranhas um lamento e cortou o crepúsculo
com um aceno de cabeça. A coisa CARLOS HENRIQUE SCHROEDER Antônio Balduíno passara a que cobria a cidade. O capitão João
que mais odeio na Jéssica é ela ser Record noite descarregando um navio sueco Magalhães encostou-se na amura-
192 págs.
uma sapatona grande e forte. Eu que trazia material para a estrada da e viu o casario de construção
também sou uma sapatona gran- de ferro e que nas noites seguintes se- antiga, as torres da igreja, os telha-
de e forte, mas não me odeio. Tenho ria abarrotado de cacau. Carregava dos negros, ruas calçadas de pedras
vontade de lhe dar uma boa surra. um molho pesado de ferro quando, enormes. Seu olhar abrangia a va-
Uns socos. Uns chutes. Uns tapaços ao assar perto de Severino, um mu- riedade de telhados, porém da rua
naquele cabelo curtinho ou mesmo lato magricela, este lhe disse: só via um pequeno trecho onde não
arrancar-lhe uma orelha com uma — A greve do pessoal dos bon- passava ninguém.
mordida. Pegar uma cinta e dar-lhe des rebenta hoje…
nas costas. Ou uns beijos. Aquela greve era esperada há Na verdade, uma abertura
muito. Por diversas vezes o pessoal bem diferente daquela que se ve-
Somos presas fáceis na escri- da companhia que dominava a luz, rifica nos livros anteriores. Aqui,
ta de Schroeder. Somos aquele in- o telefone e os bondes da cidade ten- Jorge Amado faz uma volta nar-
seto do começo, ao pé do ouvido, tara se levantar em parede, pedindo rativa para, só depois, entrar di-
em meio à sua vasta teia de seda li- aumento de salário... reto no assunto a ser tratado.
terária, muito bem tecida por uma Em Capitães da areia, o narra-
fiandeira que potencializa a forma Em Capitães da areia, o fe- dor pega na mão do leitor e faz
de contar uma história. Nos seduz nômeno volta a acontecer quando com que ele entre no livro em
e nos mata. Ou melhor, na obra, Pedro Bala torna-se membro do companhia de João Grandão,
Carlos Henrique Schroeder sai de Partido Comunista, “perseguido que nos apresenta o trapiche, re-
nossos ouvidos e aplica o veneno pela polícia de cinco estados como sidência dos meninos e demais
paralisante. Não satisfeito, aguar- organizador de greves, como diri- personagens. Sem esquecer a no-
da fazer o efeito para, logo em se- gente de partidos ilegais, líder de ta de Zélia Gattai, alertando que
guida, nos devorar. Quer ver? sua classe, preso numa colônia...” certa vez Jorge Amado dormiu
Em Terras do sem-fim — ali para conhecer melhor o tra-
Rua de dentro que junto com Jubiabá e Ca- piche. Portanto, uma narrativa
> Leia em rascunho.com.br
a íntegra deste ensaio, que MARCELO MOUTINHO pitães da areia forma o núcleo realista, que reforça o que esta-
aborda também Rua de dentro, Record político da obra de Jorge Ama- mos dizendo sobre a Estética Po-
128 págs.
de Marcelo Moutinho. do, onde se revela a Estética Po- pular Brasileira.
20 | OUTUBRO DE 2020

Desterro,
assustadiços. Diogo, jesuíta, fanta-
siava sua vida ao lado de Bárbara;
o diplomata, para nosso espanto,
convence-se de que é herdeiro legí-

amores e
timo da fortuna de sua avó Bárba-
ra, doada à Igreja há mais de quatro
séculos. Ambos, se quisermos for-
çar semelhanças, padecem de falta

ilusões
de realismo, de certo espírito pue-
ril. Ambos, lá e cá, terão suas Bár-
Das terras bárbaras baras e sua descendência.
RICARDO DA COSTA AGUIAR
Tordesilhas O que resta
336 págs.
É fato que a existência de am-
Em Das terras bárbaras, de Ricardo bos é “minúscula”. “Quem é um ho-
mem perante o Estado?”, questiona
da Costa Aguiar, um diplomata e um o jesuíta. Segundo o diplomata, esca-
jesuíta se deparam com o erro, a fúria var a vida de Diogo o deixou perple-
xo. O leitor se pergunta, no decorrer
e as forças inóspitas do poder da leitura, se são assim espelháveis as
venturas e desventuras. Tem-se a sen-
sação um pouco incômoda de que o
MÁRCIA LIGIA GUIDIN | SÃO PAULO – SP autor se força a aproximá-los.
O grande valor comum que
resta a ambos os narradores são suas

L
memórias — a palavra escrita —,
idando com a estraté- diluem a tensão narrativa, já sus- que os imortalizaria como testa-
gia literária de “papéis pensa para trocar de narradores. mento. Não se pode melhorar uma
achados”, como fez, por obra com interpretações, por isso
exemplo, Machado de Identificação sinto que autor não alcançou essa
Assis em Esaú e Jacó e Memorial O narrador externo deseja grandeza ao introduzir o texto co-
de Aires, Ricardo da Costa Aguiar projetar-se no jesuíta português mo legado. O que fez, guardadas as
escolheu um narrador em primei- — seu avô. Suspende a própria diferenças, foi amenizar as dores de
ra pessoa (Diogo Vaz Aguiar), fala sempre com dois pontos pa- ambos os narradores: o diplomata
cujas memórias, manuscritas nu- ra introduzir as falas de Diogo. O desiste de acionar a Igreja, conven-
ma prisão do século 17, foram en- autor deseja, através do cruzamen- cido pela Cúria paulista, que seria ré
O AUTOR
contradas por acaso e febrilmente to, introduzir uma voz na outra e do processo. Porém, ganhará o belo
digitadas por um diplomata con- ligar a vida de ambos. O fato é que RICARDO DA COSTA AGUIAR consulado brasileiro em Roma, uma
temporâneo, alocado em Benim há duas narrativas que percorrem nova esposa e um filho — de nome
Economista e diplomata, nasceu
(antiga Costa dos Escravos), on- seus próprios caminhos, o que dá Diogo. O jesuíta, em degredo per-
em São Paulo (SP). Foi cônsul na
de há tão pouco a fazer que se no impulso de o leitor saltar pá- África do Sul e no Japão. Das terras
pétuo, transformou-se em fino co-
avizinha o tédio e a obsessão. Es- ginas sem ter de alternar o narra- bárbaras é seu primeiro romance.
merciante na Costa dos Escravos,
te narrador (externo), cujo nome dor. A do jesuíta sustenta-se por si famoso no Reino e na África.
de família é o mesmo do jesuíta lá só. A do narrador externo, decota- Ao fechar a narrativa, o di-
enterrado (narrador interno), so- da das referências aos “avoengos”, plomata dedica ao filho seu relato:
ma à edição das memórias do pa- contaria a simples história de uma “Honre a estirpe de seus velhís-
dre sua própria narrativa. Nesta, pesquisa genealógica em meio aos simos avós (...) e enobreça a li-
o principal eixo narrativo está na bastidores do Itamaraty. nhagem de seus netos”. Assim, o
longa pesquisa genealógica sobre O suposto parentesco justi- legado é compulsório.
esse antepassado, cujo túmulo co- fica todas as ações de um roman-
nheceu em Cotonou. ce histórico — com personagens Da tonalidade narrativa
São, assim, dois protagonis- fictícios e verdadeiros. Buscar do- O autor se esforça para re-
tas: padre Diogo, cujo trabalho de cumentos, genealogia e sepulturas criar na narrativa do jesuíta a tona-
catequese o estabeleceu na Santana em vários lugares é um trabalho lidade setecentista. Não creio que
de Parnaíba (SP) setecentista, vila do diplomata quase mais eficiente tenha conseguido, infelizmente,
precária e suja, tomada pela passa- do que os vários cargos que ocupa. exceto pelo uso de algum vocábu-
gem de entradas, bandeiras e indí- O brasileiro insiste na si- lo de época na frase. Mas vocábulos
genas escravizados, e o diplomata milaridade entre sua vida e a do são insuficientes. A sintaxe portu-
pesquisador que prestará grande jesuíta; mas, com biografias desse- guesa, barroca ou de hoje, não acei-
reverência à história do jesuíta. melhantes, o que avulta à primeira ta bem um gerundismo tão familiar
A estratégia da obra é sim- vista está na libido exacerbada de ao português do Brasil. Em muitas
ples, não há esforço para deslindar ambos com mulheres e amantes. passagens, o autor se esquece da in-
quem assume a voz narrativa, pois (A rigor, a paixão avassaladora do flexão adequada, e fica na prosódia
o layout do miolo registra em fon- jesuíta por Bárbara não é experi- brasileira contemporânea (que des-
tes bem diferentes as falas de um mentada pelo diplomata.) loca advérbios e pronomes e abusa
e de outro narrador. Aliás, esse la- São sórdidos os meandros de tempos verbais compostos):
yout óbvio da obra torna-se confu- da política do Itamaraty, hoje, ou TRECHO
so, talvez equivocado, sobretudo da catequese no interior do Brasil, Das terras bárbaras Eu pisava macio nas alcatifas
por ter de abrigar supostos roda- no século 17, em mãos da Compa- de seda. Junto à grande janela envi-
pés do autor que, do pé da página, nhia de Jesus. Com esse ponto de draçada, coloquei meu vaso de pimen-
migram para dentro da mancha contato (quase universal), equipa- Não, não fui fraco, e sim tão amarelo para sentir o gosto de casa
do livro. É este um problema de raram-se dois homens que não são astucioso. Fraco foi o jesuíta, sempre que a saudade apertava. Fili-
certos romances históricos atuais: nem heróis nem vítimas inocentes que se deixou esmagar. As pa servia leite fervido com canela, dei-
alguns autores fazem tantas pes- — cometeram seus crimes, acerca- xando um rastro exótico no ar.
caravelas furtavam a força dos
quisas que precisam encontrar um ram-se de corruptos e corruptores.
lugar para explicar, traduzir, justi- Diogo é devasso, é assassino, luta ventos e com isso chegavam Por isso, o leitor se confunde
ficar-se — o que tira o vigor e a contra tribos inimigas e mata (com aonde queriam. Fiz igual. e não encontra o sotaque do portu-
naturalidade do gênero romance. prazer) o marido de sua amante. O velhíssimo Diogo quis guês com que seria interessante de-
Nesta obra, além da tarefa O diplomata de carreira envolve- frontar-se. Difícil tarefa, mas vários
colocar uma tempestade no
de absorver rodapés, as páginas -se em desfalques, denuncia o che- romances históricos brasileiros con-
têm de lidar com o amor dos nar- fe, que odeia, tira licenças e recorre bolso e foi soprado para onde temporâneos têm sido bem-sucedi-
radores pelo latim, que as recheia ao pai advogado para resolver mui- menos esperava. Como ele, dos quanto à dicção portuguesa.
com citações e provérbios latinos tas pendências e problemas. fui mandado para terras A obra cumpre, decerto, seu
e suas inescapáveis traduções. Não Creio que, afinal, estão mal papel narrativo, e resta a nós escrito-
estrangeiras. Diferente dele, eu
creio que tais ornatos recorrentes comparadas vidas e profissões em res avaliar se foi vigorosa o suficien-
e didáticos fizeram bem à obra: épocas diferentes. Ambos os nar- me transformei — evitei sofrer te para a crítica ao poder avassalador
cansam o leitor, que deles foge, e radores são frágeis, emotivos e aquilo que mais temia. do Estado e da Igreja.
OUTUBRO DE 2020 | 21

alcir pécora Mas cada alternativa que imagi-


nava, logo me vinha o refluxo do
CONVERSA, ESCUTA desânimo. Que sabia eu de adoles-
centes? Que poderia acrescentar ao

AULAS DE LITERATURA
gosto que pudessem ter por games,
hip hop ou mangás? E porque li-
teratura atual tinha de ser a forma
mais adequada de levá-los à litera-
tura, se literatura, em seu sentido
Ilustração: Bruno Schier mais básico, não é um bem ime-
diatamente perecível, mas, bem ao
contrário, de longa duração?
Não sei exatamente quan-
do pensei que o melhor que eu
tinha a partilhar com eles não era
uma ideia pedagógica de literatu-
ra, mas sim a minha forma de li-
dar com a literatura que eu mais
amava. E então como naquele se-
mestre estava dando uma disci-
plina sobre o “Cancioneiro” de
Petrarca para a turma regular de
Estudos Literários, imaginei que
poderia tentar discuti-lo também
com a turma do Profis.
E foi o que fiz. Os alunos
das escolas públicas, alguns deles
vindos das periferias mais carentes
da região de Campinas, começa-
ram a ler sonetos escritos há mais
de 700 anos. Não usei nenhuma
tradução, a não ser para compa-
ração e crítica, e trabalhei sobre o
florentino antigo. Comecei tra-
duzindo palavra por palavra, com
eles, explicando as regras grama-
ticais básicas a cada caso, como se
fosse uma aula de língua estran-
geira — e a literatura, no fundo,
é sempre isso. Pouco a pouco, ia
também introduzindo as questões
pertinentes de versificação ou de
interpretação crítica dos poemas.
Com quatro horas sema-
nais da disciplina, devo ter de-
morado quase um mês para ler
com eles o soneto de abertura do

O
“Cancioneiro”, mas quando deci-
mês de março de 2020 aplicativos óbvios para os mais jovens. introdução à literatura para alu- dimos que era hora de passar para
ficará marcado como Curiosamente, em 2019, a “aula” foi assunto nos de um programa experimental o poema seguinte, vários dos alu-
aquele em que a pande- de uma publicação do Sesc, intitulada Arte da aula, (“Profis”) que começava naquele nos já estavam genuinamente co-
mia da covid-19 chegou ideada por dois professores: o historiador Joaci Perei- ano na Unicamp. Isso implicava movidos pela reflexão poética de
ao Brasil. Diante da calamidade, ra Furtado, da UFF (Universidade Federal Fluminen- em dar aulas para uma turma de Petrarca. Falavam dele até com
agravada pela inépcia governa- se), e o filósofo Denilson Soares Cordeiro, da Unifesp 120 alunos vindos de todas as es- mais intimidade do que eu julga-
mental, uma pequena data que (Universidade Federal de São Paulo). O livro reuniu colas da rede pública de Campi- ria adequado fazer, é verdade, mas
tinha para comemorar se esfu- entrevistas que eles fizeram com alguns professores nas, aceitos sem vestibular, com estavam certos de que a dimensão
mou no ar. É que, neste março de universitários, entre os quais me incluíram. Durante a condição de que tivessem no- espinhosa do amor e as armadi-
tão maus augúrios, completei 45 dois dias estive na companhia deles a falar de minha tas destacadas em sua escola de lhas de falar sobre ele, reveladas
anos como professor do Instituto atividade docente e me senti quase numa sessão de te- origem. Eram alunos que, na sua pelo soneto, tinham algo a dizer-
de Estudos da Linguagem (IEL) rapia, já que parte considerável de minha vida passou- maioria, jamais tiveram um mem- -lhes sobre a sua própria vida afe-
da Unicamp (Universidade Esta- -se justamente entre preparar e dar aulas. bro do núcleo familiar na Uni- tiva e a maneira de pensá-la. Para
dual de Campinas), incluindo os Falar com eles, ativou minha memória e posso di- camp, e que sequer pensariam em mim, foi mesmo um espanto vê-
dois anos que atuei como monitor zer que descobri muita coisa de que já não me lembra- prestar um vestibular no qual con- -los querer continuar a falar dos
de meu saudoso orientador, Ha- va ou sequer tinha perfeita noção. Percebi por exemplo corriam alunos provenientes das poemas até depois de terminada
quira Osakabe. que o que mais me animava a dar aulas não era co- melhores escolas do país. No en- a aula, e com não menos intuição
Essa confluência fortuita nhecer a matéria a fundo, mas, quase ao contrário, ter tanto, eram alunos inteligentes, ou inteligência do que faziam os
de datas acabou reforçando o as- dúvidas sobre ela e sentir-me compelido a estudá-la, com grande potencial, como evi- alunos regulares, apenas com me-
sunto da aula em minha cabeça. discutindo os eventuais tateios e avanços com os alu- denciava o seu histórico escolar. nos jargão literário, o que até me
Na verdade, tudo o que lhe dizia nos. E quando digo “estudar”, não significa entrar nu- Que não chegassem às melhores parecia uma vantagem.
respeito, de repente, ficou esqui- ma matéria nova querendo fazê-la confessar aquilo que universidades apenas demonstra Depois daquilo, fiquei certo
sito. Do ponto de vista dos alu- eu já sabia ou gostaria de ouvir. Mais uma vez, é qua- o quanto o Brasil joga fora os seus de que ao menos duas premissas
nos, era evidente que a pandemia se o inverso: significa estar disposto a ouvi-la contar o talentos, mergulhado como está eu podia assumir tranquilamente
reforçava os males da desigualda- que não tinha ideia, deixar que ela fale e evitar inter- num sistema estupidamente de- para as minhas aulas de literatura.
de social, sobretudo em termos de pretações precipitadas que não nasçam da escuta cui- sigual e, por isso, extraordinaria- A primeira é que não é preciso fa-
acesso à internet. Em relação aos dadosa de seus próprios termos. mente estúpido. cilitar nada para os alunos, sejam
professores, a internet também Alguém poderia ponderar que esse tipo de exer- Enfim, lá estava eu diante eles de colégios de elite, de esco-
acentuou uma desigualdade que cício intelectual só poderia ter êxito na sala de aula, desse público novo na Universi- la pública ou da periferia. Dada
passava quase desapercebida: os quando ela fosse composta de alunos bem prepara- dade, e cabia-me um curso de in- a disposição voluntária de apren-
professores mais velhos, como eu, dos, com sólida formação anterior. Parece lógico, mas trodução à literatura. O que fazer? der, todos estão aptos a ler bem
mostram muito mais dificulda- não é verdadeiro. Se a qualidade da formação favore- Pensei em diferentes hipóteses: dis- literatura. A segunda é que, se é
des em lidar com as aulas virtuais. ce uma visão mais abrangente e integrada das desco- cutir ficção que tematizasse proble- verdade que boas aulas podem
A experiência de sala de aula, que bertas oferecidas pelas obras literárias, o fundamental mas adolescentes, ou talvez prosa ser dadas a propósito de litera-
antes parecia uma grande vanta- para a reflexão sobre elas está mesmo na disposição de autores contemporâneos que tura ruim, também é certo que
gem, desapareceu diante da tela atual dos alunos, além naturalmente da do professor. não oferecesse grandes dificuldades uma obra-prima possui uma for-
do computador. Sem a presença Dou um exemplo, sempre fundado em minha expe- de leitura, ou, ainda, textos que os ça inerente que supera qualquer
dos alunos, os velhos professores riência pessoal. próprios alunos sugerissem, oriun- dificuldade de comunicação en-
viraram neófitos a tatear, aflitos, Em 2011, me voluntariei para uma disciplina de dos talvez de seu próprio ambiente. frentada pela aula.
22 | OUTUBRO DE 2020

Antípodas
Como o porto-alegrense Qorpo-Santo,
o inglês Lewis Carroll e o francês Júlio
Verne estão conectados por meio de
uma palavra estranha ao século 19

LUÍS AUGUSTO FISCHER | PORTO ALEGRE — RS

P
orto Alegre, sul do Brasil, estranhíssimo nome de Truque-
1866: um homem soli- truque. Ele bate numa porta cê-
tário e atormentado es- nica e, enquanto espera a resposta,
creve, freneticamente. fala sobre sua situação. Faz elogios
Está sendo processado por sua es- a si mesmo, mas teme despertar
posa, que o acusa de ser maluco. ciúmes com suas múltiplas quali-
Abre um processo contra ele, e um dades. Teme mesmo precisar fugir
juiz aceita a denúncia. Nosso escri- para longe. E diz:
tor é obrigado a se submeter a exa-
mes médicos em Porto Alegre e no Ainda se me metessem aqui e
Rio de Janeiro, com os melhores eu saísse lá no ponto oposto, onde ha-
médicos disponíveis. Os diagnós- bitam os nossos ... (pergunta para o
ticos são incertos, ele sofre. Tem público) como se chamam estes cujos
reações agressivas. E escreve. pés têm as solas dos sapatos voltadas
Em Porto Alegre hou- para a sola dos nossos? Hein? Anfí-
ve duas opiniões divergentes, e bios? Não. Isso é coisa que anda no
por isso indicaram a necessidade mar e em terra. Hermafroditas? Não:
de ir à Corte, onde esteve inter- isto é o que é macho e fêmea. Cabrito
nado por várias semanas, e mais não é. Não me posso lembrar.¹
uma vez o diagnóstico foi contra-
ditório, um médico votando pe- Ele queria a palavra “antípo-
la sua sanidade, outro pela sua das”, que não veio. Vieram duas
doença, e finalmente um tercei- outras também marcadas de pa-
ro, um superior hierárquico, ar- res, de combinações, de polarida-
bitrou a pendenga e ele foi solto, des — “anfíbio” e “hermafrodita”.
com um salvo-conduto, para re- Nas três palavras se registra um
tornar ao sul. Disse esse quinto sentido de oposição entre duas
doutor que o escritor não apre- partes, duas possibilidades.
sentava delírios, nem insanidade Antípodas. Palavrinha inte-
de imaginação, nem alucinações, ressante, que sugere um esquema
nem visões. Em suma: “O pacien- geral da terra — a Terra redonda, Uma das imagens mais conheci- vilhas. O autor se chamava Charles Lutwige Dodgson
te no seu enunciado apresenta um homenzinho aqui e outro no das o mostra talvez aos 30 anos, (1832-1898) e assinava Lewis Carroll. Existiu de fato
um acréscimo de atividade cere- ponto oposto, um com os pés vi- vestido com uma roupa digna, uma Alice na vida do escritor: era filha do deão Henry
bral que não pode exprimir um rados para os pés do outro. Bra- pose armada, tronco ereto, olhos Liddell, superior hierárquico do autor. Não era vis-
estado anormal do intelecto, se- sileiros e japoneses são antípodas, claros olhando agudamente para to como maluco, embora fosse claramente excêntrico.
não quando essa atividade supe- hoje dizemos sem problemas de a lente, barba e bigodes escuros, Professor de matemática, não foi um gênio nesse cam-
rexcitada por impressões externas compreensão. No tempo de nos- como o cabelo, que cobre uma po, mas produziu charadas e enigmas, com palavras e
reflete de certo modo sobre o cen- so conflitado escritor, a rotundi- fronte retangular clara, europeia. números, e publicou ao menos dois paradoxos lógicos
tro das percepções”. dade da Terra era já conhecida e Um homem bem sucedido, po- de algum interesse para a chamada “metalógica”. “Em
Trocando em miúdos: só de assimilada por pessoas letradas, co- demos acrescentar, em inter- seu diário menciona o uso de seu sistema mnemônico
vez em quando este doente per- mo era o caso. Ele se assinava José pretação óbvia dado o contexto para memorizar pi até 71 casas decimais”, diz Martin
de o controle. E como a “forma Joaquim de Campos Leão Qorpo- brasileiro de escravidão. Talvez Gardner, autor de famosa edição anotada do clássico.
monomaníaca da loucura” não se -Santo (1829-1883). Este último um homem tenso. Se não era visto como louco, é certo porém que
caracteriza por crises periódicas, e nome, composto estranho com Dá para imaginar que para o futuro argui uma possível pedofilia no solitário pro-
sim por aspectos contínuos, será grafia inesperada, era invenção esse homem, em 1866, a imagem fessor, que tinha uma forte predileção por estar com
o caso de soltá-lo, devolvê-lo ao sua e era uma autodefinição, nas- tão sintética e poderosa cifrada na meninas impúberes, a quem fotografou e desenhou,
convívio dos seus. O médico não cida de uma visão que diz ter tido: palavra “antípodas” tivesse um as- embora aparentemente sem chegar jamais às “relações
disse que não havia problemas, talvez numa das crises, ele foi avi- pecto de amplidão, de abrangên- naturais” que atormentaram José Joaquim. Sua apa-
mas afirmou que não era o caso de sado por uma voz de que deveria cia, de totalidade: estando em rência era assimétrica, “um ombro mais alto que ou-
mantê-lo encerrado no hospício. manter seu corpo santo, longe do Porto Alegre ou em qualquer ou- tro, seu sorriso era ligeiramente torto e o nível de seus
O episódio de internação pecado, longe das tentações repre- tra parte do planeta, estávamos to- olhos azuis não era exatamente o mesmo”, diz Gard-
ocorreu depois, em 1868. Volte- sentadas pelas mulheres. A soma dos, vizinhos e antípodas, com os ner, a partir de fotos. Era surdo de um ouvido, mui-
mos ao dia 14 de maio de 1866: dessa advertência com sua propos- pés sobre o mesmo planeta. An- to gago desde a infância, sofria de intensa enxaqueca
sai de sua pena uma peça para tea- ta de reforma ortográfica (ele tinha tes da popularização da fotografia, e teve crises de epilepsia.
tro. No total, em poucas semanas sido professor de primeiras letras e antes das imagens que atestam a Também usou pseudônimo, mas menos ama-
escreverá 17 pequenas peças, que concebeu uma suposta simplifica- forma da Terra, o termo nos inte- lucado do que o de Qorpo-Santo: “Lewis” é a forma
não ultrapassariam 20 ou 30 mi- ção da escrita de nossa língua, em grava a todos; mas imaginar gente inglesa para “Ludovicus”, em latim, Luís no nosso por-
nutos de cena, as mais extensas. que o som de C como Q seria gra- caminhando de cabeça pra baixo tuguês ou o “Lutwidge” que ele carregava; “Carroll” é a
Esta que nos interessa agora se fado com Q) deu esse resultado. devia dar vertigem. forma irlandesa para o latim “Carolus”, ou Carlos, ou
chamará As relações naturais. O te- Vivendo numa cidade dis- Poucos meses antes dessa seu “Charles”. Já Alice Liddell (quase little), a menina
ma é obscuro, as cenas são opacas. tante dos grandes centros euro- cena, em 1865, em Oxford, In- real, carregou seu nome da vida real para a ficcional.
Há humor, mas daquele tipo meio peus, e sem ter jamais viajado glaterra — menos de cem quilô-
travado: quem rir, vai também fi- para além do Rio de Janeiro, metros a oeste da capital, Londres Na toca do coelho
car espantado e talvez assustado. Qorpo-Santo estava em dia com —, um professor de matemática No capítulo inicial de Alice no país das maravi-
Ato segundo, primeira cena. muitas novidades de seu tempo. publica um livro que teria fama lhas, a curiosa e sagaz protagonista segue o coelho es-
Está em cena um homem, com o Por exemplo: foi fotografado. mundial: Alice no país das mara- tranho que vê passar apressado consultando o relógio.
OUTUBRO DE 2020 | 23

Ilustração: Conde Baltazar de crítico famoso. O isolado es- -Santo e de Carroll (bem próxi-
critor ganhou estudos e monta- mos de Dostoiévski, 1821-1881,
gens, carinhos que em vida não Alencar, 1829-1877, Machado
pôde ter. Precursor do teatro do de Assis, 1839-1908, e Dickens,
absurdo, surrealista antes do tem- 1812-1870). Seu romance Via-
po, inventor injustiçado, gênio gem ao centro da Terra foi pu-
incompreendido, de tudo se dis- blicado no mesmíssimo tempo das
se, com mais e menos razão, para outras duas obras aqui evocadas,
saudar aquilo que em seu tempo 1864. Não usou pseudônimo co-
foi apenas sintoma de alucinação. mo os outros dois escritores que se
Obra de imaginação perturbada, preocuparam em registrar os an-
seu teatro dá acesso sempre envie- típodas, mas igualmente os regis-
sado ao mundo cotidiano. trou. Aliás, fez mais: o desfecho do
Ninguém soube dessa obra romance leva os dois protagonis-
fora de um restritíssimo círculo de tas, o professor Otto Lidenbrock
conhecedores da Ensiqlopédia e seu sobrinho Axel, mais o guia
ou Seis meses de uma enfermi- Hans, desde a Islândia, onde pene-
dade, publicação que o próprio tram nas camadas interiores da ter-
autor conseguiu fazer na sua Por- ra por meio de um vulcão, depois
to Alegre nos anos finais de sua andam muito lá por dentro até saí-
vida, reunindo tudo que havia es- rem em outro vulcão, o Stromboli,
crito, inclusive as peças de teatro. na Sicília, uns cinco mil quilôme-
Mesmo seus contemporâneos e tros distantes do ponto original.
conterrâneos, portanto, não pu- É o que especula Alex,
deram ler sua obra; e se a alguém quando saem à luz do dia e não
ocorresse a necessidade de ler, em conseguem localizar sua nova po-
1866, algo sobre o Brasil, leria Jo- sição no planeta:
sé de Alencar (1829-1877), que
no anterior havia lançado um — Estamos na Ásia — de-
best-seller local, Iracema. clarei —, nas costas da Índia, nas
Já a Alice de Carroll teve a ilhas da Malásia, em plena Ocea-
sorte dos talentosos que vivem no nia! Atravessamos a metade do globo
centro geográfico do cânone. Es- e chegamos aos antípodas da Europa.
crevendo em inglês, a língua do
incontrastado império econômi- Só depois, quando inda-
co de seu tempo, Carroll viveu o gam de um pastorzinho que an-
apogeu do vitorianismo, aquela dava por ali, é que ficam sabendo
combinação de extremo poder pa- que estão no sul da Europa.
ra fora e extremo moralismo para Não é uma notável coinci-
dentro, às custas de opressão pe- dência? Não é de deixar o leitor
sada, contra os nativos das várias de hoje com as orelhas em pé es-
partes do globo em que o Império sa convergência em torno da pa-
Britânico exercia sua força, e con- lavra “antípodas”, tão particular e
tra os instintos e desejos sexuais. fortemente conectada à regulari-
Não precisou esperar para zação das viagens intercontinen-
ser lido. Assim que foi impresso tais naquele tempo? Três escritores
ganhou leitores em profusão, in- tão distantes entre si, dois de paí-
cluindo, dizem, a própria rainha ses centrais que compõem o cen-
Vitória e o jovem Oscar Wilde. tro do que de mais significativo e
Essa proeminência foi reforçada famoso a literatura produziu em
quando do lançamento do livro duas das mais relevantes línguas
Ela entra na toca logo depois dele. E, surpresa: a toca é na sua bolha mas exatamente no seguinte, Through the looking- literárias — as duas mais relevan-
imensa, inflete para baixo, e ela começa a cair, cair, cair. mesmo momento histórico, brin- -glass, and what Alice found tes no século 19 ocidental, se não
Alice pensa muito e sempre. Pensa até enquanto cai: car com o termo? Esse inespera- there (1871), geralmente conhe- de todo o planeta — e um escritor
do irmanamento dá o que pensar. cido em português como Alice de língua secundária no Ociden-
Gostaria de saber se vou cair direto através da Terra! através do espelho. Traduções te e praticamente irrelevante para
Como vai ser engraçado sair no meio daquela gente que Gênio incompreendido? começaram a aparecer em 1869 e a Terra, que ademais morreu des-
anda de cabeça para baixo! Os antipatias, acho (desta vez Qorpo-Santo não foi co- já alcançam, diz a página da Wi- conhecido em sua língua, em seu
estava muito satisfeita por não haver ninguém escutan- nhecido, nos rigorosos cem anos kipédia, 174 línguas. A história de país e mesmo em sua pequena ci-
do, pois aquela não parecia mesmo ser a palavra certa).² entre 1866 e 1966, salvo como Alice tem sido adaptada para um dade. São esses três, alinhados pela
um maluco; nos esfuziantes anos sem-fim de linguagens e formatos, palavra-conceito “antípodas” uma
No original, Carroll escreveu assim: 1960 sua obra teve melhor sor- pelo mundo afora. prova eloquente. Mas de quê?
te, graças em grade parte a Aníbal Qorpo-Santo vivia isolado A Terra estava ficando pe-
I wonder if I shall fall right trough the earth! How Damasceno Ferreira, que promo- socialmente, numa capital de pro- quena para aqueles homens ad-
funny it’ll seem to come out among the people that walk via suas peças como coisa singular, víncia que tinha certo traço cosmo- miráveis, lúcidos e serenos ou
with their heads downwards! The Antipathies, I think — que merecia atenção — mandou polita — havia umas duas dezenas perplexos e agitados, cosmopolitas
(she was rather glad there was no one listening, this time, datilografar e fazer cópias, repas- de consulados estrangeiros na ci- ou periféricos, sempre inventivos e
as it didn’t sound at all the right word) sou-as a intelectuais e críticos li- dade, forte presença de imigrantes atentos à metamorfose da vida na-
terários de sua cidade em busca germânicos e um porto de relati- quele tempo, em Paris, em algum
A solução da criativa tradução de Jorge Furtado e de parceiros de entusiasmo, en- va força, na capital mais meridio- ponto a cem quilômetros de Lon-
Liziane Kugland foi outra, recriando o trocadilho: frentou caras feias e indiferenças nal de um império imenso. Mesmo dres ou na remota Porto Alegre.
eloquentes, até que encontrou assim, devia ter imensas dificulda- Para eles, a rotundidade da Terra
Já pensou se eu caio direto e atravesso toda a Ter- amigos de teatro, em particular des para se informar, obter livros e era agora uma certeza cotidiana,
ra? Que estranho aparecer do outro lado do mundo no Antônio Carlos Sena, e finalmen- formular enfim sua leitura das coi- e os antípodas eram como que a
meio daquelas pessoas que andam de cabeça pra baixo, os te viu no palco pela primeira vez o sas, bem ao contrário do que ocor- prova final dessa sensacional ver-
ORIENTADOS, eu acho... (desta vez, ela ficou bem fe- que Qorpo-Santo concebeu e es- reu com Carroll. De todo modo, dade moderna.
liz por não ter ninguém ouvindo, porque essa palavra não creveu no isolamento de sua, vá lá, os dois se irmanam num trocadi-
parecia estar certa de jeito nenhum) loucura, eco do isolamento de sua lho, que os coloca em sintonia en-
cidade em relação mesmo às prin- tre si e com o planeta.
Veio a palavra “antipatias”, mas não veio “antípo- cipais praças culturais de seu país.
das”, à mente de Alice, na invenção do inglês e só por isso Só então ganhou edição em livro. Convergência
cosmopolita Carroll, professor meio amalucado e genial. Depois disso muita água Terá Qorpo-Santo lido Júlio
Já seu irmão de alma, quase seu antípoda, o porto-ale- rolou, e Guilhermino César, que Verne? Quase certamente não. E NOTAS
grense Qorpo-Santo — que é claro que não pode ter lido primeiro havia sido indiferen- Carroll, leu o francês? Talvez. Ju- 1. Texto ligeiramente modificado aqui, a partir
o livro da Alice —, ficou naquelas outras palavras parale- te ao texto dramático qorpo-san- les Gabriel Verne viveu entre 1828 da edição de Guilhermino César.
las, fazendo piada com a plateia. tesco, abençoou a montagem no e 1905 — outro contemporâneo 2. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges,
Por que ocorreu aos dois escritores, cada um palco, com seu poder e prestígio praticamente exato de Qorpo- edição Jorge Zahar Editor.
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a d a v e z m ais
rascunho.com.br CO JORNAL DE LITERATURA DO BRASIL
26 | OUTUBRO DE 2020

O mundo
ainda é
dickensiano
Romances e personagens do escritor
inglês Charles Dickens capturaram
o complexo sentido do século 19 e
ainda permanecem muito atuais

FABIO SILVESTRE CARDOSO | SÃO PAULO — SP

1. além do seu tempo. Dito de ou-


No século 21, para ser um tro modo, é mesmo possível afir-
artista, não bastam o talento, a mar que Dickens, a partir de sua
capacidade intelectual e a deter- ficção, soube estabelecer a mol-
minação inabalável para se man- dura a partir da qual todos nós
ter produtivo numa era de tantas imaginamos o drama da desigual-
distrações. O artista, acima de tu- dade; da injustiça; da insensibili-
do, precisa saber se posicionar po- dade; e do valor da manutenção
liticamente. Essa precondição faz do caráter, não importando a rea-
com que haja uma confusão sobre lidade que se impõe.
como endereçar a mensagem cor- A abordagem realista de sua
reta. De um lado, sobram bem- literatura, resta pouca dúvida, está
-intencionados que advogam as conectada ao fato de que Dickens
irresistíveis causas perdidas, mes- adotou o jornalismo como profis-
mo sem ter a capacidade ade- são. Como consequência disso, o
quada para esse tipo de engenho leitor tem a impressão de acom-
criativo; de outro, existem aqueles panhar a interpretação dos acon- Não, não se trata de um livro mas, é preciso reiterar, essa revolu-
que, sim, têm capital intelectual tecimentos históricos de grande que se notabiliza apenas em razão ção provocou o que há de mais pri-
para esse tipo de concepção artísti- relevo, como a Revolução France- de sua escrita sensível. Mas é exata- mitivo a partir dos expurgos e das
ca, porém sem ter algo de relevan- sa (Um conto de duas cidades), mente graças a essa maneira de se mortes que se justificavam confor-
te a dizer. Em síntese, são poucos ou do impacto da Revolução In- aproximar daqueles eventos que a me a vontade de poder se mostra-
os que conseguem reunir dois ele- dustrial (Tempos difíceis), ou, conquista da audiência está garan- va insaciável. Em tempo: Dickens,
mentos, que, à falta de melhor de- ainda, das consequências da ga- tida. E isso se prova genuíno tão lo- no romance, não faz alusão a qual-
finição, podem ser caracterizados nância por parte daqueles que só go os personagens vão se revelando quer um dos protagonistas históri-
como forma e conteúdo. pensam nos bens materiais (Uma enquanto a narrativa se desenvol- cos do período revolucionário, mas
A trama engrossa à medida canção de Natal). ve. É o caso de Madame Defarge, é flagrante a forma como o narra-
que se nota a escalada das ten- É inegável que toda essa por exemplo, que age sem qualquer dor rejeita a sedução da guilhotina,
sões sociais no Brasil e no mun- produção tenha força quando se hesitação ou misericórdia enquan- solução encontrada para alimentar
do. Enquanto cientistas políticos observa esse passado grandioso. Só to assiste ao jogo de decapitações os partidários do Terror.
e demais especialistas lutam pa- que é ainda mais notável que es- do terror revolucionário francês. O Em meio a passagens mar-
ra encontrar sentido de um pe- sa obra tenha apelo para os nossos autor mostra a anatomia daquele cantes a propósito da vilania de al-
ríodo marcado pela urgência de tempos conturbados. É a própria modelo processual: aos crimes co- guns de seus antagonistas e a uma
uma pandemia sem preceden- obra de Dickens que explica como metidos pela aristocracia, é preciso leitura cética acerca da vocação do
tes nos últimos anos, de repen- isso é possível. estabelecer o julgamento mais su- poder de quem assume a linha de
te, parece que os artistas jamais mário, sem qualquer nuance aos frente do processo revolucioná-
foram tão necessários como ago- 2. que são considerados culpados e, rio, Dickens ainda encontra es-
ra. Mas será que a cultura ofere- Um conto de duas cida- principalmente, impuros. paço para uma história de amor,
ce uma resposta? Esqueçam, por des é um livro que tem uma das Nesse sentido, vale a pena que, sim, é um sinal de como a es-
ora, as distopias. Quando se co- aberturas mais comentadas da li- ressaltar outra cena icônica do ro- perança prevalece e de como o ter-
loca reparo na obra de Charles teratura universal (sim, de novo, mance, quando o autor demonstra ror pode ser suplantado pelo afeto.
Dickens (1812-1870), seus ro- o cânone). Ali, Dickens parece fa- toda a sua capacidade de revelar a Numa época em que o ci-
mances e sua galeria de perso- zer um resumo de uma época con- força irresistível da Revolução que nismo é a marca registrada de
nagens parecem ter sido criados turbada, mas, porque sua escrita se avizinha: os barris de vinho que certa literatura afetada pelo hi-
sob medida para as circunstân- prevalece como um farol de bri- são derramados no chão, fazendo per-realismo, haverá certamen-
cias desta época. lho intenso, a sensação é de que com que a multidão passe a dis- te quem considere Um conto de
E o detalhe inescapável é que, o leitor está diante de uma síntese putar, palmo a palmo, a bebida duas cidades uma obra datada,
de acordo com o recorte crítico do do nosso tempo quando entra em que estava agora maculada, mas ou, mais exatamente, cafona. Ne-
momento, não era para ser assim. contato com o fragmento que re- que ninguém mesmo se importa- nhuma surpresa aqui. Se até mes-
Afinal, se existe um autor produzo a seguir: va porque o sofrimento era mui- mo para recomendar romances
que representa o cânone da pro- to e a fome e a sede fizeram com o clássicos a elite intelectual faz o
dução literária, podendo até mes- Aquele foi o melhor dos tem- que o povo agisse apenas por ins- rebaixamento dos clássicos², ima-
mo ser questionado pelas teorias pos, foi o pior dos tempos, aquela foi tinto, sem qualquer reminiscência gine só reconhecer o valor de um
decoloniais¹, este é Charles Dic- a idade da sabedoria, foi a idade da de humanidade ou de equilíbrio. romance tão popular — e, ainda
kens. Nascido em Portsmouth, insensatez, foi a época da crença, foi Pode-se dizer, também, que assim, tão original. Seria o fim.
na Inglaterra, em 1812, esse es- a época da descrença, foi a estação da este é o diagnóstico da Revolução
critor conseguiu de forma precisa luz, foi a estação das trevas, a prima- Francesa aos olhos de Dickens, que 3.
capturar o sentido de uma épo- vera da esperança, o inverno do de- apresenta a dualidade desse even- Na obra de Dickens, a ques-
ca tão complexa e singular co- sespero; tínhamos tudo diante de nós, to: sim, foi o melhor dos tempos, tão política ganha força na justa
mo o século 19. E é exatamente tínhamos nada diante de nós, íamos porque a imaginação, enfim, che- medida em que ela não se confun-
por isso que o escritor se estabe- todos para o paraíso, íamos todos di- gou ao poder, com seu ideário de li- de com uma questão partidária.
leceu como uma referência para reto para o sentido contrário. berdade, igualdade e fraternidade, Para tempos embrutecidos, isso
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Ilustração: Dê Almeida
e a dureza dos atos desse vilão tem te foi despachado para o colégio
a sua reação não apenas na trajetó- interno: contar as histórias para Na obra de Dickens,
ria de Gradgrind, mas nas vidas de seus colegas noite adentro, numa a questão política
Louisa, Tom e de Sissy Jupe. alusão a Mil e uma noites. Ne- ganha força na justa
Embora a crítica à institui- nhuma surpresa aqui: existe certa medida em que ela não
ção escolar seja traço marcante do tendência de os grandes roman- se confunde por uma
romance, é preciso lembrar, ainda, ces sempre renderem homenagem
que o coração está com os senti- à literatura, de Dom Quixote a questão partidária.
mentos da classe trabalhadora, Madame Bovary. O detalhe que
que vive em condições de extre- merece atenção aqui é o fato de
ma penúria enquanto os negócios Copperfield se tornar escritor.
prosperam. Dickens se posiciona Como em outros roman-
exatamente junto ao elo mais fra- ces de Charles Dickens, os perso-
co, apontando para os problemas nagens são divertidos e amargos;
desse desequilíbrio. E o dado mais cheios de vida e resignados à sua
pertinente, aqui, é o de que uma própria condição; arrogantes e vir-
solução para esse impasse repousa tuosos, de modo que não é absur-
justamente na educação das crian- do conceber toda essa invenção
ças — afinal, se houver outro ca- como um espelho da condição
minho, pode ser que as decisões humana e da vida em sociedade.
sejam tomadas não apenas por Nesse sentido, o autor pode não
interesse material, mas de acordo ser um historiador da vida priva-
com valores mais elevados. da, mas criou, com seus livros, to-
Em um ensaio sobre a obra do um ambiente que é propício
de Charles Dickens, a historia- para que a descoberta da intimi-
dora norte-americana Gertrude dade fosse possível. Uma intimi-
Himmelfarb assinala que o escri- dade que também passa a ser de
tor George Orwell desconfiava seus leitores, que se identificam
que Dickens conhecia muito pou- com o cenário e com as pessoas
co dos pobres, ressaltando que os que protagonizam suas histórias, a
personagens dickensianos eram tão ponto de imaginarmos, sim, que a
somente retratados como servos existência pode ter contornos dic-
cômicos, simbolizando de modo kensianos — sobretudo nos mo-
genérico a classe operária inglesa. mentos de grande dificuldade.
A provocação de Orwell só não Os sofrimentos do prota-
O AUTOR
atinge o alvo com perfeição por- gonista ao longo de seus anos de
que as soluções apresentadas por formação, no entanto, não o im- CHARLES DICKENS
Dickens nem sempre são redento- pedem de agir de forma eleva-
Nasceu em Portsmouth, na Inglaterra,
ras. Tempos difíceis é um doloro- da. Ou por outra, ele reconhece
em 1812. É autor dos romances
so exemplo dessa condição para os a importância daqueles que es- Um conto de duas cidades (1859),
personagens envolvidos na trama. tão ao seu redor, como é o caso Tempos difíceis (1854) e David
de Peggotty e sua família, que têm Copperfield (1850), entre outros.
pode significar uma concessão imperdoável — afinal, 4. devoção e carinho absolutos por Morreu em junho de 1870.
onde já se viu compactuar com aqueles que não estão Foi o próprio Dickens quem Copperfield. É um tipo de rela-
alinhados com os interesses corretos? A leitura da obra escreveu, no prefácio de David ção que não se mede apenas pe-
de Dickens mostra, no entanto, que o lado correto está Copperfield, que este livro é o los vínculos profissionais, mas é
associado a um determinado grupo, dos desvalidos, dos seu filho predileto. Romance de a marca de afeto que transcende
desassistidos, daqueles que foram desenganados desde formação, a obra recupera de for- até mesmo a relação de classe —
sempre. Uma palavra adequada para expressar o viés do ma original a jornada cheia de o que, nesse caso, seria percebi-
escritor seria a seguinte: caridade. Diferente do que se reviravoltas do personagem-títu- do como condescendente numa
possa supor, no entanto, isso se apresenta não com sen- lo, começando do seu nascimen- leitura contemporânea, encontra
timentalismo pueril; em vez disso, Dickens oferece uma to, passando pelo relacionamento nessa narrativa uma verdade que
“denúncia” em forma de romance em Tempos difíceis. com a mãe, da formatação de sua se torna legítima a partir da cria-
É outro romance cuja abertura poderia ser trans- visão de mundo, do turbilhão de ção artística de Dickens.
portada para sintetizar os dias que correm, sem qual- sentimentos que é a juventude, do Se em David Copper-
quer prejuízo. Senão, vejamos: desespero de se ver sem perspec- field a defesa das virtudes se tor-
tivas e com quase tudo acabado. na evidente graças à extensão
Agora, tudo o que eu quero são fatos. Ensine a esses Demasiadamente humano, David da história, em Uma canção de
garotos e garotas nada além dos fatos. Somente os fatos são Copperfield é Charles Dickens na Natal⁴ Dickens apresenta a for-
necessários para a vida. Cultive nada além disso, erradique sua maior forma, ou melhor, num ça de sua escrita também na for-
todo o resto. Você só pode formar a mente de animais pen- gigantesco romance — portanto, ma breve. Apesar da estrutura
santes com base em fatos: nada mais lhes servirá de nada. não se vai dizer aqui que é uma sín- simples, a obra pode ser lida co-
Este é o princípio sobre o qual crio meus próprios filhos, e tese de sua obra. Em vez disso, é mo um exercício de reflexão for-
NOTAS
este é o princípio sobre o qual crio essas crianças. Atenha- possível afirmar que é uma espécie te o bastante para quebrantar o
-se aos fatos, senhor³. de ajuste de contas do autor com mais rígido dos corações. O ci- 1. Para a crítica à obra de Dickens de acordo
com essa leitura, ver The decolonization
algumas de suas experiências pes- nema norte-americano⁵, nas úl- reader, editado por James D. Le Sueur (2003).
O responsável por esse discurso é ninguém me- soais. A respeito disso, em uma das timas décadas, adaptou este texto
2. Em entrevista, a atriz e escritora
nos que Thomas Gradgrind, outro dos personagens biografias mais recentes do escritor a partir da chave do humor ou Fernanda Torres afirmou que Guerra e
que integra a inestimável galeria de figuras arquetí- inglês, o autor Michael Slater colo- da paródia. As possibilidades de paz, de Tolstói, parece difícil, mas é uma
picas de Charles Dickens. Gradgrind é uma legião. ca em um dos capítulos o sugestivo um clássico são tamanhas, que novela das 9. A declaração foi concedida
para uma reportagem da Folha de S.Paulo a
Entre o passado e o futuro, é possível retomar exem- título The Copperfield Days. o texto permite essa recriação. propósito dos livros indicados para o período
plos que se utilizam dessa linguagem que se preten- Para além dessas lembran- Só que o acerto de contas do Sr. de isolamento social. O link completo está
de objetiva, mas que, no fundo, é somente a maçã ças, é interessante observar o Scrooge com os seus fantasmas é disponível a seguir: https://www1.folha.uol.
com.br/ilustrada/2020/05/guerra-e-paz-
envenenada do desprezo e da ausência de preocupa- quanto David Copperfield, o per- o exemplo preciso da visita cruel parece-dificil-mas-e-uma-novela-das-nove-
ção com o outro. Gradgrind é convincente porque, sonagem, se confunde com Char- do tempo em relação ao que to- diz-fernanda-torres.shtml
de uma só vez, é uma caricatura que simboliza a mais les Dickens, o autor. Não só pela dos nós fizemos — e também o 3. Tradução livre de Hard times, publicado
perfeita tradução daqueles que, com extrema presun- forma de conceber a vida, com que deixamos de fazer. pela Penguin Books em 2005, com introdução
ção, se imaginam atentos aos únicos acontecimentos atenção e cuidado para aqueles Mais do que um clássico da e notas de Kate Flint.
(fatos) que realmente importam na vida. Só que o va- cujos sentimentos falam mais al- literatura, cujas histórias um estu- 4. Embora com outras versões disponíveis
lor desses fatos é transitório. to, mas também o entendimento dioso pode se dedicar para fins de em português, utilizo aqui a última tradução,
publicada pela editora Companhia das Letras.
A escola de Gradgrind representa, na fictícia ci- dos livros como um refúgio pa- investigação teórica, Charles Dic-
dade de Coketown, um modelo do utilitarismo em ra as desventuras em série da má- kens, morto em 9 de junho de 5. Entre os filmes, vale a pena citar: Os
fantasmas contra-atacam, estrelado por
tempos de Revolução Industrial, época em que os nú- -educação. Aqui, além da menção, 1870, é um autor decisivo para Bill Murray e dirigido por Richard Donner; Os
meros e a precisão seriam mais determinantes do que entre outras obras, a Robinson o nosso tempo. Ao enfrentar di- fantasmas de Scrooge, estrelado por Jim
qualquer outro traço de cuidado ou mesmo de huma- Crusoé, vale a pena citar o estra- lemas que são comuns a todas as Carrey e dirigido por Robert Zemeckis; e a
comédia romântica Minhas adoráveis ex-
nidade. O romance de Dickens é forte porque mostra tagema que garante a proteção ao épocas, fica claro por que as obras- namoradas, filme estrelado por Mathew
as consequências inesperadas desse tipo de formação, jovem Copperfield quando es- -primas não envelhecem. McConaughey e dirigido por Mark Waters.
28 | OUTUBRO DE 2020

O fetiche da cor
TIMOTHY-GREENFIELD

As conferências de Toni Morrison reunidas em


A origem dos outros e A fonte da autoestima
discutem formação de identidade, racismo e literatura

LUIZ HORÁCIO | VIAMÃO – RS

E
u não te considero ne- trangeiro, O fetiche da cor, Con- A AUTORA os artifícios para justificar a do- mais azul (1970), por exemplo,
gro. Por muito tempo figurações de negritude, Narra o TONI MORRISON minação, o colonialismo? Toni seu primeiro livro, no qual aden-
alguns supostos amigos outro e O lar do estrangeiro, Toni Morrison lança as questões. Sem tra o território de jovens negras,
porto-alegrenses justifi- Morrison não apresenta novida- Foi a primeira mulher negra a ganhar respostas, recorre às suas memó- até então ignoradas pela História,
cavam nossa suposta amizade com des, aborda temas recorrentes ao o Nobel de Literatura, em 1993. Seu rias, a trechos de seus livros, à po- pela literatura, pelas artes de mo-
esta “bendita” frase. Tradução: não longo de sua vasta obra. Temas, livro de estreia foi O olho mais azul lítica e à história na tentativa de do mais amplo.
posso ter um amigo negro, decidi infelizmente, ainda presentes em (1970). Amada, de 1987, rendeu-lhe o entender a necessidade de alguns A obra de Toni Morrison
Pulitzer de melhor ficção. Escreveu
te branquear. Não existe lugar me- debates políticos no mundo in- oprimirem a tantos. Pode crer, é de contestação, combate aos
ensaios, literatura infantil, peças
nos racista, assim como não existe teiro; raça, medo, o movimen- desconfiado leitor, os poderosos preconceitos, ao poder opressor
de teatro e até um libreto de ópera.
doença menos grave. Grave é gra- to das populações, as migrações Morreu em agosto de 2019.
não dão ponto sem nó. — o que para nós, infelizmente,
ve e racismo existe em todo lugar. — arriscar a vida para tentar vi- Morrison reflete acerca do não traz nenhuma novidade, não
Vale lembrar que existe doença ver —, suas causas e consequên- que significa ser negro, a ideia de acrescenta nada à ética, tampou-
gravíssima. O Rio Grande do Sul cias; a xenofobia, a questão das pureza das raças, e mostra como co à estética “patropi”, pela qual
é um recanto extremamente racis- fronteiras, o desejo, o sonho das a literatura utiliza a cor da pele o branco já teve rosto pintado
ta. Tenho conhecimento de causa, pessoas de pertencerem a algum para descrever um personagem. de preto para representar negro
assustado leitor. Encontram-se ex- lugar, um lugar definitivo onde Os discursos abordam a questão e ator branco se submeteu ao uso
ceções, mas basta uma investiga- sejam acolhidas, sobretudo, com racial, a literatura, a política, a de fitas que puxassem seus olhos
ção para confirmar a regra. respeito e dignidade. história e, sobretudo, a formação e dessem “aval” ao personagem
No Brasil, onde brancos ju- Ao gastar tempo debatendo da identidade. oriental. Nada, no que se refere a
ram de pés juntos que não vive- raça, o ser humano simplesmente Branca, parda, preta? Ora, preconceitos, racismos, exclusão
mos num país racista, vigora o deixa à mostra toda sua mediocri- parda... Parda é a cor da vergonha, de qualquer ordem, desigualda-
racismo nojento, o racismo dis- dade. Raça, no que diz respei- do medo, do medo de ser. Como de, é capaz de trazer novidade ao
simulado e sua odiosa capacida- to ao ser humano, ainda tem ser forte sem conhecer e se orgu- cenário “patropi”.
de de traçar fronteiras. Tudo sob seu significado jogado num can- lhar da origem? O texto de Morrison, seja
o véu do cinismo. O racismo que to escuro e empoeirado à espera Os livros de Toni Morri- ficção, seja ensaio, é, em primeiro
veste o disfarce do descaso, da ne- de definição. Hipócrates, e lá se son, me refiro aos de não ficção, lugar, um texto dramático. Assim
gligência, da dissimulação. O Bra- vão mais de dois mil anos, afir- A origem dos outros são muito diferentes entre si — no o classifico, tenho consciência do
sil jamais foi o “patropi abençoado mava que homens de pele escu- TONI MORRISON título. No mais, seguem a temá- risco, e onde reside a emoção ra-
por Deus e bonito por natureza”. ra eram covardes, enquanto os de Trad.: Fernanda Abreu tica, com um intruso aqui, outro ramente sobra espaço para análise
Companhia das Letras
Óbvio que guarda regiões boni- pele clara eram os destemidos, os ali, mas regra é regra. crítica ou técnica. Nada de pejo-
152 págs.
tas por natureza, mas um país é valentes. Lamentavelmente, ain- rativo nessa análise, simplesmente
muito mais que um lugar, e es- da encontramos pessoas em nos- Obra combativa determino o ponto de observação.
tamos falando de um lugar on- so convívio que conservam essa A fonte da autoestima se- Desta perspectiva, destaco
de pululam praias particulares e ideia nefasta — dois mil anos, no gue a fórmula. Reunião de con- o ensaio no qual a autora descre-
escolas públicas. Professores são mínimo, de atraso. ferências proferidas na última ve sua pesquisa sobre o real Mar-
relegados ao plano mais inferior Para muitos, inclusive se- década, nos anos 1990 e início tin Luther King. Ainda na linha
possível. É um país excludente, o gundo Toni Morrison, raça diz dos anos 2000, parte do fatídico emotiva, temos sua louvação a Ja-
“patropi” das desigualdades. Ago- respeito à classificação de uma es- 11 de setembro, aborda questões mes Baldwin e uma oração ao 11
ra, também um país do retrocesso. pécie. Enquanto nós, somos todos pertinentes à língua e literatura, de setembro. Esses dois represen-
Temos um presidente racista, as- da mesma raça — a raça humana. imigração, função da crítica, do tam a parte constrangedora desta
queroso, negacionista, retrógrado, A autora, Prêmio Nobel de escritor, tipos de guerra e os in- reunião de textos.
belicoso, incapaz de lembrar o tí- Literatura de 1993, viaja no tem- findáveis disfarces da escravidão, Ao abordar o universo lite-
tulo do livro mais recente que tal- po em seus ensaios, misto de lite- e aqui também, o outro, o dife- rário, deduzo que por ser o mais
vez tenha lido; encheria a página ratura e história, trazendo à tona rente como uma ameaça. frequentado pela autora, A fonte
com adjetivos ao capitão patético questões de outros séculos, mas A fonte da autoestima O leitor encontra, na co- da autoestima alcança seu pon-
e seu barco continental à deriva. ainda presentes no mundo atual. TONI MORRISON
letânea, um relato denso porém to mais alto. Comenta, a partir do
Mas em fevereiro... “Em feverei- Ela faz uso da literatura, apresenta Trad.: Odorico Leal muito mais emocional do que ponto de vista da raça, da alteri-
ro/ tem carnaval”. Calma, apres- contraposições; a literatura do sé- Companhia das Letras uma análise crítica, facilmente dade, obras de William Faulkner,
sado leitor, sou negro, não sou culo 19 e sua abordagem roman- 456 págs. justificável porque resulta da ex- Karen Blixen e Chinua Achebe,
antibranco, sou apenas um ho- tizada da escravidão e a atualidade periência própria e, posso garan- entre outros. Analisa seus pró-
mem precavido. Racismo é tema com o racismo pseudocientífico. tir por conhecimento de causa, prios romances, o que torna bem
que não abandona a minha pauta. Morrison enfatiza a importância não se trata de causa fácil. Lutar ácido o odor cabotino e a ideia de
Enquanto lia e relia A ori- da literatura na formação da iden- contra o racismo é lutar contra o controle da obra.
gem dos outros, de Toni Morri- tidade racial dos Estados Unidos e pior inimigo, o idiota — só este Para concluir: os dois títulos
TRECHO
son, alguns episódios racistas que também como estratégia de com- opta pela humilhação, pela força; representam a coerência da obra, e
vivenciei desfilaram pelas pági- bate à desigualdade. É ou não é de A origem dos outros os policiais militares conseguem coerência tem compromisso com
nas. Tentarei deixá-los de lado, dar inveja? Por aqui, os botocudos combinar os dois fatores durante repetição. Tal característica não
mas, caso um deles aflore, com- economistas engendram planos a execução de seu ofício. implica irrelevância, são lâminas
Devia ser universalmente claro,
preensivo leitor, leve em con- para taxar e sobretaxar os livros. A origem do trabalho de afiadas e pontiagudas cutucando
sideração que o racismo, o ato Mas qual a razão para ta- tanto para quem vendia quanto Morrison está relacionado com a nossas feridas, nossa submissão.
racista, é inesquecível e sempre manha obsessão em distinguir ra- para quem era vendido, que a memória, mulheres negras subes- Acredito que os livros consigam
se faz lembrar. ça entre humanos? Quem são os escravidão era uma condição timadas, quando representadas, despertar consciências, princi-
outros? Qual motivo ou pretex- seja na ficção, seja na história, palmente as pesadas. Que ense-
desumana, apesar de lucrativa.
Questão racial to nos leva a “inventar” os outros? sempre em papéis subalternos. jem reflexões acerca do lugar de
A questão racial é o tema Por que a proximidade desses ou- Os vendedores certamente Semelhante ao texto anterior- cada um no mundo, e que ultra-
d’A origem dos outros. O livro tros representa medo, vários tipos não queriam ser escravizados; mente aqui abordado, a auto- passem essa seara, aparentemen-
é fruto da série de conferências de medo? Entre tantos medos, o os comprados muitas vezes ra aponta a relevância das obras te estática, para fazer com que os
que a autora proferiu em 2016, medo de perder nosso lugar no literárias como estratégia capaz leitores, conscientes do seu lugar,
cometiam suicídio para evitar
na Universidade de Harvard, nos mercado de trabalho, nossa iden- de subverter essa lógica. Encon- sintam-se estimulados a transfor-
Estados Unidos. Romantizando a tidade mais valiosa no mundo ca- o cativeiro. Sendo assim, como tramos também relato acerca da mar seu entorno num universo de
escravidão, Ser ou tornar-se o es- pitalista. Os outros talvez sejam funcionava a escravidão? criação de suas obras — O olho igualdade e aceitação.
OUTUBRO DE 2020 | 29

joão cezar de castro rocha dito do conceito de reificação não


deixaria de ser uma ilustração in-
NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO voluntária da força da intuição de
Lukács; ilustração involuntária e

LA CAMIONETA. OU: AS
perversa, pois agora é o próprio
conceito que se vê reificado, no
fetichismo acrítico da devoração

VIAGENS DE EDWARD SAID (1)


onívora, e por isso apaziguadora,
das ideias no mercado simbólico.
Raciocínio similar acompa-
nhou a leitura acre do esforço de
Raymond Williams; afinal, “Cam-
bridge não é a Budapeste revolu-
Um ônibus nas alturas Dizia, antes de sua justa in- de 1918 a maio do ano seguinte. cionária”, e, sobretudo, “Williams
Você pegou o ônibus literal- terrupção: ainda assim, o Said de A repressão, porém, foi feroz e, não é o militante Lukács, [mas]
mente nas alturas de um longo voo 1982 é implacável: sequestrada de em Berlim, em janeiro de 1919, um crítico reflexivo” (p. 207). Fo-
transatlântico. Como sempre, você seu espaço original, a teoria, por as- Rosa Luxemburgo e Karl Liebk- ra do lugar de origem, ao que tu-
se manteve fiel ao hábito: assegu- sim dizer, fora de lugar, tem subtraí- necht foram brutalmente assas- do indica, a teoria termina sendo
rar um assento de corredor, tirar os da a vitalidade que era assegurada sinados por grupos paramilitares domesticada — e a palavra é en-
sapatos, acomodar-se como pode, pelo atrito com as circunstâncias de de direita. fatizada por Said. Uma pitada de
avaliar o espaço de que não dispõe sua elaboração. Pense no Lukács Na Hungria de Lukács, a ra- crueldade fecha a conta: “É preci-
e começar a ler — ou a escrever. do final da década de 1910 e do dicalização política também esteve so dizer que as ideias [de Lukács]
Claro, até a hora do jantar, quando início do decênio seguinte. Nesse presente e teve consequências pro- foram originalmente formuladas
a única alternativa é escolher um conturbado período, o mundo vi- fundas. Em 21 de março de 1919, com o objetivo de realizar mais do
filme para disfarçar o incômodo. rou de ponta-cabeça. proclamou-se a República Soviéti- que abalar alguns poucos professo-
“Filmes do Mundo”: assim Não exagero. ca da Hungria, sob a orientação de res de literatura” (idem).
prometia a opção. Béla Kun e com apoio da União
Um título chama sua aten- O atrito como método Soviética. O autor de A teoria (De school bus a la camione-
ção. Trata-se de um documentá- A Primeira Guerra Mun- do romance (1920) ocupou na- ta: que tipo de viagem seria essa?)
rio; segundo a sinopse, a história dial (1914-1918) levou à reor- da menos do que o cargo de Mi-
de um school bus norte-america- denação da ordem mundial e ao nistro da Cultura. No entanto, no Viagem sem mapa?
no transformado em ônibus de colapso do modelo então domi- dia 1º de agosto o governo de Béla Você demorou a conciliar o
transporte público em países la- nante da democracia liberal, in- Kun foi deposto e interrompido o descanso com a emoção. Você ain-
tino-americanos: La Camioneta,1 capaz de incluir a emergência das experimento comunista. da não sabia, mas as imagens do
de Mark Kendall. Um ensaio de massas urbanas em seus rígidos documentário permanecerão em
Edward Said vem de imediato à sistemas eleitorais censitários. Na Reificação numa sua memória.
lembrança. Você fecha os olhos. O verdade, a democracia liberal era terra em transe A viagem foi longa: apro-
milimétrico jantar promete! uma bem azeitada máquina de ex- A atividade revolucionária, ximadamente 11 horas; além do
clusão política; no Brasil, esse ar- digamos, concreta, de Lukács de- translado para a cidade na qual vo-
(Poucas vezes você se como- ranjo oligárquico correspondeu à sempenhou um papel central na cê fará a palestra de encerramento
veu tanto diante da tela do avião ordem estabelecida pela Repúbli- perspectiva de Said sobre o desti- de um congresso na Universidade
— tela com polegadas medida. E ca Velha (1889-1930). no pálido de uma traveling theory. de Cambridge. Você será o keyno-
se surpreende. Como entender a A Grande Guerra que seria, Você me dirá se tenho razão: te speaker, como dizem. Não é a
intensidade de sua emoção?) no título célebre de H. G. Wells, primeira vez, porém você está an-
The war that will end war (1914), História e consciência de siosa. Muito. Tinha acabado de
Teorias em trânsito não pôde senão provocar novas ex- classe (1923), de Lukács, é jus- publicar um livro propondo uma
Em 1982 Edward Said pu- plosões de violência. No campo tamente célebre por sua análise teoria nova sobre relações cultu-
blicou um ensaio tão influen- da esquerda, a eclosão do confli- do fenômeno da reificação, uma rais em contextos assimétricos. Se-
te quanto polêmico, Traveling to produziu um terremoto, cujas condição universal que atinge ria sua primeira apresentação da
Theory. A abertura do texto escla- vibrações afetaram diretamente o todos os aspectos da vida numa teoria em inglês.
rece a questão-chave que inquieta- pensamento do filósofo húngaro. era dominada pelo fetichismo da A apreensão era inevitável.
va o crítico: “Assim como pessoas Criada em 1889, por inicia- mercadoria. Mesmo em português, o fracas-
e correntes críticas, ideias e teorias tiva de Friedrich Engels, a dissolu- (...) so é uma possibilidade real: como
viajam — de pessoa a pessoa, de ção da Segunda Internacional em Há, contudo, uma forma de saber se a palavra não faltará ou
contexto a contexto, de uma épo- 1916 sintetizou a divergência que experiência que representa concre- se o argumento, ao ser exposto,
ca para outra”.2 se mostrou decisiva. Ora, em tese, tamente tanto a essência da reifica- não passará de uma banalidade,
A análise de Said é severa: em a decisão da Internacional tinha ção quanto seu limite: crise (grifos constrangedoramente disfarçada
sua alfândega imaginária, o preço sido cristalina: em caso de eclosão meus, p. 199-200). com citações?
que se paga pelo deslocamento é da guerra, os trabalhadores, in- Não é tudo.
muito alto; no fundo, proibitivo, ternacionalistas por consciência Crise: palavra-imã que con- Sejamos honestos: não se
pois do destino à chegada sempre de classe, em lugar de aderirem densa e contém a complexidade e, espera que viajemos para ofere-
se perde o que mais importaria a um pertencimento automáti- por que não?, a perplexidade do cer teorias, mas, em geral, para
preservar. A teoria da reificação de co à nação, decretariam uma gre- momento histórico do pós-Pri- importá-las. Oswald de Andra-
Georg Lukács, tal como desenvol- ve geral de caráter transnacional, meira Guerra Mundial. A formu- de imaginou uma poesia de expor-
vida em História e consciência de idealmente acelerando processos lação do conceito de reificação tação; audácia ainda maior seria
classe (1923), favorece o estudo de revolucionários em toda a Euro- ocorreu numa circunstância par- conceber uma teoria de exportação.
caso para a reflexão do crítico. Em pa. Contudo, a realidade da guer- ticularmente agônica. Em outras
especial, Said se debruça sobre as ra frustrou os planos da Segunda palavras, a filosofia lukacsiana ela- (Oswald deu o pulo do gato
apropriações do conceito de reifi- Internacional, que se viu subver- borava, criticamente, um momen- com a antropofagia — claro está.)
cação por Lucien Goldmann, em tida em seus princípios pelo entu- to ímpar de crise. Pelo contrário, a
Le dieu caché (1953), e por Ray- siasmo nacionalista dos operários viagem de sua teoria ao porto se- Como seria o documentário
mond Williams no conjunto de em seus respectivos países. guro das elucubrações universitá- se o percurso fosse o avesso? Isto
sua obra, e mais particularmente Em 1917 a Revolução Bol- rias provocaria necessariamente a é, se la camioneta saísse da Guate-
em Problems in materialism and chevique estimulou experiências perda do vigor de sua gênese, de- mala para ser convertida em school
culture (1980). revolucionárias, com destaque pa- finida pelo desassossego. bus nos Estados Unidos?
Sem deixar de reconhecer a ra o caso alemão. Em 1918-1919, Said não fez questão de ser O que pensaria Edward
relevância e a agudeza da contri- por meio da Liga Espartaquista, sutil! Lucien Goldmann, “aluno e Said dessa inversão?
buição de Goldmann e Williams, liderada entre outros nomes por discípulo de Lukács”, escreve co-
ainda assim, o Said de 1982... Rosa Luxemburgo, obteve-se a mo “um acadêmico politicamente (Como? Guatemala?)
NOTAS
abolição da Monarquia e a ins- engajado”, mas nunca como “um
(Como? O Said de 1982? talação da República de Weimar. militante diretamente envolvi- 1. Eis a página oficial do filme: https:// Como sempre, você tem ra-
lacamionetafilm.com/.
Calma: em 1994, Said revisitou a Por um breve período de tempo, do” (p. 203). E para ter certeza de zão: coloco a Guatemala na frente
hipótese apresentada na década de estabeleceu-se a República Socia- que a diferença será sublinhada, 2. Edward Said. “Traveling Theory”. Moustafa do filme. Na próxima coluna, tra-
Bayoumi & Andrew Rubin (orgs.). The Edward
1980. Na próxima coluna, volta- lista da Baviera, também conhe- completou: “A Hungria de 1919 Said Reader. New York: Vintage Books, tarei de La camioneta.3
rei a esse ponto, trazendo à discus- cida como a República Soviética e Paris do pós-Segunda Guerra 2000, p. 195. Aproveite para assistir ao
são Traveling theory reconsidered; se de Munique. Os revolucionários Mundial são contextos muito di- 3. O filme pode ser visto aqui: https://www. documentário — uma autêntica
eu esquecer, me cobre.) mantiveram o poder de novembro versos” (p. 205). O trânsito eru- youtube.com/watch?v=dkVXSem54qU. viagem.
30 | OUTUBRO DE 2020

livro do mês

Chen Zhongshi por Fabio Abreu


NA TERRA DO CERVO BRANCO | CHEN ZHONGSHI

A China e
suas histórias
Épico e grandioso, o best-seller Na terra do
cervo branco é uma dinâmica enciclopédia
sobre o final do século 19 no país de Confúcio

MARCOS ALVITO | RIO DE JANEIRO – RJ

A
narrativa de Na terra do lho, a cor mais importante nos rituais religiosos.
cervo branco, best-seller Em seguida, as alminhas perturbadoras são fervi-
do chinês Chen Zhong- das até desaparecerem. Mas a linda mulher não se
shi, diz que a primeira recupera, tem um aborto e depois morre.
mulher de Bai Jiaxuan morreu no Bai Jiaxuan, a personagem mais importante
parto. A segunda sucumbiu à tu- do romance, conseguirá ter um casamento longo
berculose. Um mal desconhecido e feliz com sua sétima e definitiva esposa, Xincao.
matou a terceira. A seguinte foi Levará uma vida frutuosa e respeitável como che-
derrubada por uma doença cau- fe do clã. Nascem três filhos homens e uma filha,
sada pela dieta alimentar. Depois garantindo a continuidade da família Bai, uma das
disso, os boatos na aldeia do Cer- duas mais importantes da aldeia. A outra é enca-
vo Branco não paravam mais. Di- beçada por Lu Zilin, primo de Jiaxuan e a sua an-
ziam que o jovem Jiaxuan tinha títese. O livro é todo construído em torno destas
um pênis tão comprido que pode- duas famílias em um período que vai das últimas
ria dar a volta em sua cintura. E o décadas do século 19, momentos finais da dinastia
pior: seu membro teria uma pon- Qin, até 1949 com a tomada do poder pelo Parti-
ta em forma de dardo, que inje- do Comunista Chinês, com uma breve menção à
tava veneno e fazia suas mulheres “revolução cultural” da década de 1960. A arqui-
apodrecerem por dentro. Con- tetura da obra, em suas 850 páginas, é notável. A
vencer alguém a se casar com ele pequena comunidade com cerca de mil habitan-
tornou-se uma tarefa difícil e dis- tes é um microcosmo perfeito para percebermos
pendiosa, mas como dizia a mãe as transformações da China em um período tu-
de Jiaxuan: “Prefiro gastar toda a multuado que engloba a Independência, a guer-
nossa fortuna (…) a ficar sem des- ra civil e a chegada ao poder dos comunistas. A
cendentes”. É ela também que or- obra carece de debates políticos ou ideológicos, o
dena ao filho que ignore o luto de conflito entre os dois partidos é apresentado co-
três anos pela morte do pai. mo uma guerra suja pelo poder. Quem é visto co-
Afinal uma quinta mulher mo “lenda viva” é o sábio confucionista Mestre
aceita casar e servir ao seu marido, Zhu, desprendido das questões materiais a ponto
mas não na cama. Os casamen- de afirmar que “dinheiro em excesso atrai desgra-
tos eram arranjados pelos pais, ça”. Vivia com a esposa de forma austera e sim-
muitas vezes com a ajuda de ca- ples. Era de uma humildade à toda prova e votava
samenteiros encarregados de con- imenso desprezo às disputas políticas, que ironi-
sultar a família da noiva. Jiaxuan zava com tiradas inteligentes. Dizia que os dois
ignora o pedido da moça e se re- partidos eram dois tipos de macarrão feitos com
laciona com ela assim mesmo, farinhas ligeiramente diferentes.
acreditando que aquilo mostraria
que os boatos eram infundados. Rudeza do campo
Ela desmaia. Seu medo prevale- O próprio Chen Zhongshi “entrega” na epí-
ce e ela acaba enlouquecendo e se grafe: o que lhe interessa é a história do povo, sua
afogando. A sexta foi a mais be- vida cotidiana, seus costumes, suas crenças. O livro
la de todas, parecia uma atriz. Só acaba sendo uma enciclopédia da China profunda,
aceita ter relações com o marido milenar. Mas a narrativa não se derrama em lon-
depois que este faz um pretenso gas descrições. A trama é bem urdida e dinâmica,
tratamento voltado para o desa- as histórias são entrelaçadas, inesperadas e diverti-
parecimento do veneno peniano. das. Há sempre algo importante para acontecer, nós
São felizes por um breve período, a serem desatados, situações-limite, em uma pala-
mas logo ela começa a ter aluci- vra: suspense. As frases curtas, a simplicidade e a
nações e sonha com os espíritos criatividade do autor fazem com que a leitura seja
das outras mulheres atacando-a. fluente, capturando a atenção do leitor. O lirismo,
O marido convoca um exorcista, escasso, volta-se para a natureza e não para a rela-
homem tão misterioso que não ção entre os homens.
revelava seu nome. Ele vem “na Alguns elementos da cultura camponesa re-
velocidade do vento sobre uma cebem destaque. Toda a vida religiosa da aldeia gira
liteira carregada por fantasmas”, em torno do Templo dos Ancestrais. Lá não se en-
executa seus rituais e captura as tra sem fazer a devida reverência, repetida três ve-
almas nefastas das cinco esposas zes. Os ancestrais são vistos como o pilar moral e
falecidas, de onde se desprende religioso da comunidade. A preocupação da mãe de
um fedor que empesteia a casa. Bai Jiaxuan com a descendência se explica: uma fa-
Elas são colocadas em uma jarra mília sem descendentes não poderá reverenciar seus
tampada com um tecido verme- ancestrais. É ali que a aldeia se reúne não somente
OUTUBRO DE 2020 | 31

Farol
para celebrar seus rituais, mas também para receber as O AUTOR
comunicações mais importantes, para acordar regras de CHEN ZHONGSHI
condutas coletivas, tudo diante do silêncio vigilante da-
queles que vieram antes. Quando alguém se transforma Nasceu em 1942, na província chinesa

poético
em ancestral, seu funeral é um evento que pode durar de Shaanxi, ao Norte do país, onde está
mais de uma semana, dependendo das posses da famí- localizada a aldeia de sua obra-prima
lia. Contratam-se músicos para tocarem durante dias literária, Na terra do cervo branco
sem cessar. Aliás, o gosto por cantores e por uma for- — publicada originalmente em 1993
e editada pela Estação Liberdade
ma popular de ópera atravessa todo o livro — mesmo
em 2019. O romance, que vendeu
camponeses iletrados admiravam essa forma artística.
A rudeza da vida no campo é retratada de forma
mais de dois milhões de exemplares
na China e teve sua primeira versão
Coletânea O tempo adiado e outros
crua. A mortalidade infantil era tão alta que as crian-
ças, ao nascer, recebiam apelidos temporários como Po-
modificada pela censura, ganhou poemas, de Ingeborg Bachmann,
uma versão sem cortes em 2012.
trinho, Cachorrinho ou Coelhinho, ganhando nomes apresenta ao leitor brasileiro o imagismo
somente à época de entrar na escola, aos sete anos. As
que ficavam pelo caminho eram enterradas no curral e
de inspiração idílica da poeta austríaca
misturadas aos excrementos dos animais para forjar um
bom adubo para a terra a ser cultivada. É tudo muito
TOMAZ AMORIM IZABEL | SÃO PAULO – SP
direto, até grosseiro: em uma passagem se fala de um
cadáver sendo devorado por vermes de vários tama-
nhos. A vida era difícil, eram muitas as ameaças: seca,
banditismo, inundações, pragas de gafanhoto, epide- DIVULGAÇÃO

mias e até mesmo “bolas de fogo” caídas do céu que


destroem totalmente animais, casas e pessoas. Dizia a
lenda que a aldeia já havia sido destruída cem vezes, o
que aponta, exagero à parte, para a sua antiguidade.
Um tema tratado de forma aberta e nada delica-
TRECHO
da é o sexo. Surpreende a frequência de cenas sexuais:
“seios generosos”, “nádegas roliças”, “lábios quentes” e Na terra do cervo branco
quadris rebolando comparecem com frequência. Não
se pode dizer que sejam o ponto alto do romance. A Sua família gozava de uma
única cena em que aparece uma prática homossexual é
descrita na forma de uma perversão condenável. situação estável. Jamais passara
por grandes sucessos, tampouco
Personagens por grandes desgraças, com
O maior valor desta obra está na construção das exceção daquelas causadas
personagens. Com muito poucos atores na cena cen-
tral e inúmeros figurantes, o autor dá vida a seres de por desastres naturais, como
carne e osso que não somente são críveis e com perso- pragas e epidemias, ou

A
nalidades bem marcadas, mas se transformam ao lon- crises provocadas pela má
go do livro, evitando o maniqueísmo. Sendo assim, administração pública e por coletânea O tempo adia- nazificado cujo céu, segundo ela,
Negrinho, ou Lu Zaoquai, é um menino travesso que do e outros poemas que o viu de perto em sua Áustria
não gosta da escola, depois torna-se parte de um ban- políticos corruptos. Concluiu reúne conteúdos dos li- natal, “enegrece a Terra”.
do de salteadores, integra o Exército Nacionalista, vi- que a causa de tal estabilidade vros O tempo adiado e Este imagismo ou esta plas-
ra o principal discípulo de Mestre Zhu e por fim adere eram os princípios estabelecidos Invocação da Ursa Maior, publi- ticidade móvel é fruto de um jo-
à revolução comunista, que irá condená-lo à morte de por aquele ancestral. Era como cados em vida pela austríaca Inge- go de luzes quase barroco em suas
forma injusta. É um mundo de homens voltados pa- borg Bachmann, além de poemas imagens. Elas são claras, escuras,
ra a conquista não somente da riqueza e de posições se tais regras tivessem impedido escritos e veiculados de maneira crepusculares. O leitor vê tudo
de poder, mas sobretudo da honra e da reputação, que uma prosperidade imensa, mas esparsa até o fim da vida da escri- como se carregasse um candela-
valem ouro em uma sociedade face a face. A vingan- também tivessem evitado a tora. A seleção é representativa de bro em uma floresta escura. As
ça é altamente apreciada e exercida com requintes de completa falência financeira. sua obra poética, e a boa versão imagens bruxuleiam. Parte deste
crueldade, às vezes muitos anos depois. em português de Claudia Caval- efeito sem dúvida se deve ao uso
Às mulheres, que muitas vezes sequer são no- Ademais, fosse qual fosse a canti (tradutora de Georg Trakl e comum por Bachmann dos ver-
meadas, cabe o papel de reprodutoras que garantem a situação da família, a posição de Paul Celan) faz um esforço em bos conjugados no tempo presen-
continuação das linhagens, de donas de casa que lim- de chefe do clã, ocupada pelos nos trazer a clareza das imagens de te. As ações vão se desenrolando
pam, cozinham, fiam e tecem. É uma mulher, a mãe Bais, nunca fora abalada. Bachmann, respeitando sua sono- na medida em que são apresenta-
de Bai Jiaxuan, que diz: “Mulheres são como flores de ridade específica. O afastamento das ao leitor. As coisas não estão,
papel na janela: quando rasgam, as trocamos por ou- ocasional do sentido mais literal no entanto, paralisadas, como
tras”. Embora a tradução fale em “dote”, o que temos das palavras se justifica pela bus- natureza-morta, mas suspensas
é a “compra da noiva”, uma mercadoria essencial ne- ca de uma composição rítmica no presente, em tensão diante
gociada junto a seu pai, não sem que antes se consul- que faça justiça à lírica da autora de uma iminência. As coisas es-
te a compatibilidade dos mapas astrais. Com seus pés e que também funcione em nos- tão (não são) e provavelmente se
enfaixados, espera-se delas que falem pouco e façam so idioma. Além disso, o livro traz transformarão em breve (possivel-
muito. Chamam o sogro de Pai e a sogra de Mãe. Po- um posfácio também assinado por mente para pior). Um breve que
dem ser repudiadas pelos maridos, mas o contrário não Cavalcanti que, além de educati- nunca vemos chegar nos poemas,
ocorre. As exceções a este papel subalterno confirmam vo sobre a vida e a obra da autora, mas que é anunciado.
a regra: a linda Bai Ling larga a família para lutar na é delicado em sua tentativa de es- Se por um lado soa catastró-
guerrilha comunista e tem um fim trágico. Xiao’e, con- boçar um retrato que faça justiça fico, por outro também pode ser
cubina que trai seu senhor para fugir com Negrinho, vê histórica a essa que sem dúvida é entendido como uma estratégia
sua beleza motivar disputas sangrentas e mortais. É as- uma das maiores poetas de língua criativa de sobrevivência: adiar a
sassinada com uma lança de aço. Seu espírito incorpo- alemã do século 20. morte por mais uma noite através
ra em um humilde servidor, o que exige mais uma vez A primeira impressão causa- da literatura, como faz Sheheraza-
o recurso ao exorcista e suas práticas xamânicas. Mes- da pela coletânea é a de que a poe- de, impedir a dissolução comple-
mo assim, continua causando prejuízo e assola a aldeia sia de Bachmann reabilita um tipo ta do mundo anterior através de
com uma epidemia que só é acalmada depois que seu de imagismo de inspiração idílica. uma sabotagem silenciosa, como
cadáver é queimado e suas cinzas colocadas debaixo de Não há ingenuidade nesta reabi- faz Penélope. Talvez adiar tanto
um pagode erigido para este fim. litação, no entanto, pois a som- seja uma maneira de manter es-
Se o propósito de Chen Zhongshi consistia em bra da guerra ainda ameaça tudo. te precário ainda vivo. No poe-
fazer um retrato do povo chinês antes da grande vira- Essa insistência no natural precisa ma que dá título ao seu primeiro
da da segunda metade do século 20, a obra é um triun- ser entendida então como gesto de livro, e à coletânea, lemos no fim
fo completo. Envolvente como uma novela televisiva, coragem. Bachmann ousa reen- da primeira estrofe: “O tempo
rico em costumes e religião, temperado com violên- Na terra do cervo branco contrar a delicadeza e a beleza do adiado até nova ordem/ despon-
cia, sexo e pitadas de realismo mágico, tornou-se um repositório de imagens românticas ta no horizonte”.
CHEN ZHONGSHI
enorme sucesso na China e foi adaptado para a tele- Trad.: Ho Yeh Chia, Márcia Schmaltz e
da lírica alemã transfiguradas no Há uma esperança secreta
visão. Para quem desejar conhecer um pouco mais da Mauro Pinheiro seu atribulado século 20. Atribu- nesse “até nova ordem”, ou “auf
cultura chinesa tradicional, Na terra do cervo bran- Estação Liberdade lado sobretudo pelas guerras pro- Widerruf”, até a revocação — “So-
co é um livro imperdível. 864 págs. tagonizadas pelo mundo alemão mente a esperança ofuscada raste-
32 | OUTUBRO DE 2020

ja na luz”. A esperança se encontra no ao mito. Essa natureza mesma, A AUTORA nal. Fora do mundo humano, fora das relações em-
em um tipo de contragolpe que por mais que seja salva pela pala- INGEBORG BACHMANN pobrecidas da vida urbana, fora da idiotificação da
não é tanto retorno ao passado, vra poética, está marcada também propaganda como em Reclame, elas vêm desta flo-
mas seu resgate das mãos dos al- pelos traços tecnocráticas da guer- Nasceu na Áustria, em 1926, e resta localizada um pouco no passado, mas que se
gozes. Um nome mais preciso tal- ra e da Modernidade. O símbolo morreu na Itália, em 1973. Publicou lança no futuro, acendendo outras possibilidades.
vez seja ressurreição, retorno a historicizado desce à Terra co- seu primeiro livro de poemas
É isso que seduz e assusta nos poemas (sobre-
em 1953 e recebeu, em 1964, o
uma vida, mas posterior, já liberta mo a própria constelação de Ursa tudo nos dois primeiros livros), o posicionamen-
Prêmio Georg Büchner como
dos inimigos, como em Canções de Maior. Campo e céu são cultiva- reconhecimento pela sua obra. É
to estratégico deste feminino não apenas como voz
uma ilha: “Quando ressuscitares,/ dos no “suor dos motores”, tudo considerada uma das maiores vozes em primeira pessoa, mas como potência em movi-
quando eu ressuscitar,/ o carras- são rosas, mas em forma de tem- da língua alemã no século 20. mento, é isso talvez que ajuda a causar a impressão
co estará pendurado no portão,/ pestade “iluminada por espinhos”. de um feminino futuro (que tem laços profundos
o machado afundado no mar”. com o passado, mas que está na iminência de ultra-
No presente, no entanto, os car- Símbolo e alegoria passá-lo). A presença de todo um bestiário encan-
rascos ainda não desapareceram. Não será exagero chamar tado aponta também para outras maneiras de ver
A permanência de antigos dirigen- Invocação da Ursa Maior, que dá o mundo humano. São animais guardiões que res-
tes nazistas em posições de poder título ao segundo livro, de um dos guardam possibilidades de ser autênticas, como na
nas sociedades austríaca e alemã grandes poemas do século 20. A literatura e como no erótico, limitadas pelo “mun-
(assim como a presença camuflada imagem monstruosa, da ursa gi- do devastado” da guerra dos homens.
de sua ideologia nas mais diversas gantesca que baixa à terra vinda Esse imagismo alegórico é material, tem uma
esferas) reconhecidamente preo- das estrelas, resume um pouco a atenção metonímica aos detalhes: a resina gotejan-
cupou militantes, estudantes e ar- transformação estética e históri- do nas árvores como imagem do desejo, a carne
tistas no pós-guerra e os levaram ca do século. A destruição global úmida sobre as unhas como imagem da decadência.
à ação, muitas vezes radical. Bach- das condições de vida e dos mo- Mas apesar de sua profusão, congelada nesse presen-
mann é explícita: “Os carrascos de dos de produção não modernos, te da iminência (“Vem aí um grande fogo,/ vem aí
ontem/ bebem toda taça de ouro”. temporalidades alternativas, mar- um fluxo sob a Terra// Testemunhas seremos, cer-
cadas pela relação com os astros teza”), cada coisa tem seu lugar, cada imagem surge
Barbárie contínua em suas revoluções regulares (fases O tempo adiado e em um momento preciso e embora às vezes elas não
Para além do exemplo his- da Lua, posição das constelações outros poemas tenham relação direta entre si, há uma sequência
tórico próximo à autora, sua poe- no céu, duração do dia), dão es- INGEBORG BACHMANN de planos em funcionamento de forma que as ima-
sia se desdobra e diz também que paço à desorientação e à produção Trad.: Claudia Cavalcanti
gens ao mesmo tempo conservam sua independên-
Todavia
a guerra nunca terminou e que generalizada dos des-astres, astros 208 págs.
cia e compõem a narrativa mais ampla do poema.
seus absurdos inomináveis se deslocados, estranhados, irregula- Se for permitido fazer uma comparação des-
transformaram em coisa comum. res, imprevisíveis, como já aponta pretensiosa, a seguinte estrofe de Dias em branco
Visão de mundo compreensí- a etimologia da palavra. (Tage im Weiß), sua sequência precisa e espaçada, a
vel para um livro publicado em Também não é desimpor- substância comum das imagens e, ao mesmo tem-
1953, mas lamentavelmente co- tante que a constelação que desce po, seu mistério alegórico, a distância e a distorção
mum a um contemporâneo co- não é a do nobre herói Órion, mas da imagem apresentada pela memória, lembra —
mo o nosso, que imita certos a de Ursa, um animal, uma velha, em um movimento de câmera mais lento, mas se-
fenômenos passados e em que a uma fêmea. Sua descida é heroica melhante — O espelho, de Andrei Tarkovsky (uma
própria possibilidade de eventos apenas no início, pois logo em se- comparação entre as duas “poéticas”, sem dúvida,
verdadeiros parece que vai sen- guida ela é colocada em contexto renderia reflexões interessantes):
do bloqueada justamente pela pouco apropriado para sua gran-
sua multiplicidade e banaliza- deza. Ela está isolada da caça, na Nestes dias levanto-me com as bétulas
ção. Qual a grande guerra da vez? disciplina da coleira, fazendo tru- e penteio-me afastando da testa os cabelos de trigo
E a epidemia? E o conflito so- ques de circo para sobreviver, ali- diante do espelho de gelo.
cial? Qual grande incêndio, qual mentada apenas com pinhas que
grande enchente? Como no poe- — ela diz — são o mundo e so- Misturado com meu sopro,
ma Todos os dias: “A guerra não é mos nós, espinhos cobrindo talvez sentados no poema pelo cego de o leite em flocos.
mais declarada,/ mas mantida. O uma semente saborosa. Imagem, correntes nas mãos), chama mais Ele espuma fácil, tão cedo.
inaudito/ tornou-se ordinário”. portanto, que se inicia cósmica e uma lembrança das origens celes- E quando unto de ar o vidro, ressurge,
Outro recurso formal inte- termina mínima — passagem do tes deste mundo. A língua origi- pintado por um dedo de criança,
ressante, presente em quase toda símbolo à alegoria, texto arranca- nal, idêntica a seu referente, não teu nome: inocência!
sua poesia, é o enjambement sem do do contexto (ou texto em bus- existe mais, mas seus fragmentos Depois de tanto tempo.
que os substantivos são separados ca de um contexto). estão presentes, a serem buscados
dos verbos de ação. Não se tra- O último parágrafo res- com as garras da linguagem, ain- A geração do pós-guerra de que Bachmann e
tam de quaisquer substantivos, guarda, no entanto, uma hipó- da que encobertos por espinhos. outros poetas ao seu redor fazem parte é um pou-
mas daqueles que já não depen- tese, um segundo desvelamento. co como o homem que não pode morrer de Cur-
dem tanto de ação porque carre- A Ursa não vem sozinha, vem se- Imagens riculum Vitae (descendente, quem sabe, do conto
gam em si já uma pequena épica: guindo, quem sabe, estas pinhas O uso em alguns poemas de Caçador Graco, de Kafka). Por guerra, entendam-
“o herói”, “o fraco”, “nossa divin- que caíram antes — nós, nosso uma voz não necessariamente fe- -se não apenas as duas grandes guerras em território
dade”, “os imortais”, todos eles já mundo — dos grandes pinhei- minina (o alemão não marca tan- europeu, mas as guerras de colonização e indepen-
dizem algo sobre si. Isso reforça ros alados expulsos do céu. A to os gêneros e a tradutora é levada dência (presentes em Porto morto), todo o processo
a leitura de um presente na imi- referência bíblica é evidente, fo- muitas vezes a tomar decisões em bélico de modernização forçada do globo. Parido do
nência, sem que a ação de fato mos expulsos do jardim original, português que produzem inega- útero das máquinas (superação irônica do Futuris-
aconteça. Pelo contrário, o poe- mítico, para o mundo histórico, velmente efeitos de interpretação) mo), o homem vaga por um mundo parecido com
ma parece ser composto como mas aqui mesmo, insuspeitos, es- leva a pensar sobre a posição es- nada, preso a ele, pois tudo é este mundo, na espe-
um tipo de intervenção contra tão fragmentos daquele primeiro tranhada do feminino na lírica de rança, no entanto, de encontrar algo que ainda ou
a ordem precária, uma tentati- mundo, ou de um outro, futuro e Bachmann. Como em Terra ne- já não o seja mais. É uma figura de êxodo, o judeu
va de impedir este movimento redimido. Daí a ameaça dessa Ur- bulosa, trata-se sem dúvida de um errante transformado em imagem de toda uma ge-
(abrindo, quem sabe, esperanças sa, presa por correntes terrestres, feminino ligado a temas român- ração. (A proximidade desta visão de mundo e de
outras). O uso frequente do ge- de dentes roídos, mas que ainda ticos, a amada, a noite, a floresta, estética com as de Paul Celan, para além das afini-
nitivo no lugar do verbo, muitas mordem, na iminência de se sol- um feminino que ocupa junto à dades biográficas e históricas muito bem descritas
vezes com repetições do substan- tar e destroçar este mundo e reco- ursa, à coruja e aos outros animais por Cavalcanti no posfácio, é evidente.)
tivo, “fantasma dos fantasmas”, lher esses frutos do céu. um espaço não completamente Por isso, o trabalho insistente de escrever,
reforça essa ideia de repetição, jo- Novamente, se não é retor- capturado por esse presente, que simbolizar, é quase militante. Manter-se em bus-
go de espelhos, infinitização dessa no, é um tipo de reconhecimen- ocupa uma posição sobretudo ca daquela esperança é questão de vida ou morte,
pequena épica e, ao mesmo tem- to entre nós e a Ursa, aquele céu móvel. Esses temas e imagens são não é mero deleite estético. Afinal, como diz o eu-
po, dá a tudo um tom sagrado, espelhado e refletido nas pinhas colocados em movimento a par- -lírico de seu conto O trigésimo aniversário: “Não
como na Bíblia. Os nomes pesam daqui. Abandonados o céu e as tir dessa presença que é chamada e há mundo novo sem linguagem nova”. Ou no poe-
e já carregam suas histórias. correntes, resta o mundo todo. buscada pelos eu-líricos e que não ma Prólogo e epílogo, o alfa e o ômega da linguagem
Apesar do recurso a esse tom O nós-lírico que invoca, que ro- está sempre disponível, mas tem histórica: “Palavra, tem conosco/ terna paciência/
mítico e às imagens da natureza, ga pela Ursa (“manda descer pa- agência própria. Trata-se de ima- e impaciência. Esse semear/ precisa ter um fim”!
não há simbolismo no sentido tra- ra ver/ Filhos de Gandi”, como gens do feminino na posição de E mesmo que não estivermos mais aqui quando
dicional (com uma gramática re- em outra invocação semelhante), observadas, procedimento estra- o fogo adiado finalmente chegar, as palavras que
conhecível), nem outro grande não chama tanto por uma liber- tégico, pois ganham um dinamis- impediram um mundo e invocaram outro ainda
poder reinante que não a História. tação vinda dos céus (tampouco mo talvez maior do que em uma estarão aqui, para os que vêm: “Mas a canção so-
Não se trata portanto de um retor- dos seus profetas daqui, repre- posição de mero sujeito confessio- bre o pó depois/ nos ultrapassará”.
OUTUBRO DE 2020 | 33

Mundo
DIVULGAÇÃO

Entretenimento
e reflexão
Ponteando toda a trama, Ja-
vier Marías conta a evolução his-

dilacerado
tórica e cultural da Espanha e da
Inglaterra a partir da revolução dos
costumes das décadas de 1960 e
70. A iniciação sexual de Berta e de
Tom passa por este caminho. Am-
bos perdem a virgindade em mo-
A eterna queda de braço entre mentos fortuitos, mas plausíveis
liberais e conservadores é o pano para seu tempo, que depois se tor-
nam menores, insignificantes. Ao
de fundo de Berta Isla, novo contrário da condicionante histó-
romance de Javier Marías rica que permeia todo o romance.
Os países onde circulam os
protagonistas revivem pequenos
momentos de uma nova guerra
MAURÍCIO MELO JÚNIOR | BRASÍLIA – DF
fria. A Espanha luta por recons-
truir a democracia, estabelecer
novas liberdades, inclusive de

A
costumes, se livrando do terror
questão ressurgiu no anúncio das novas ca- franquista, aliás, é na resistência à
O AUTOR
tegorias de premiação do Jabuti: para 2020 ditadura que Berta acaba encon-
também a literatura de entretenimento se- trando seu amadurecimento po- JAVIER MARÍAS
rá contemplada no certame. Tudo bem, lítico e sentimental. A Inglaterra,
Nasceu em Madrid, em 1951. Formado
mas o que seria essa modalidade literária? Seus adep- por seu lado, vive a ascensão do
em Letras e especializado em Filologia,
tos defendem uma escrita que fale a todos, sem dis- conservadorismo de Margareth trabalhou como roteirista e tradutor
tinções intelectuais, o que parece impossível, algo Thatcher, a Dama de Ferro, que antes de publicar seu primeiro livro,
como contemplar gregos e troianos. Alguns escrito- resiste à greve dos mineiros, às Los dominios del lobo, em 1971. Entre
res do gênero dizem escrever para o porteiro do pré- pressões soviéticas, à Guerra das romances, ensaios e coletâneas de
dio onde moram. Afirmam que trabalham para uma Malvinas, ou Falkland, dependen- contos, escreveu mais de trinta obras.
população, digamos, menos afeita às condicionan- do do prisma. Aliás, pelo menos
tes culturais? Preconceito à parte, vale lembrar que oficialmente, Tom teria desapa-
ler é um exercício de compreensão e interpretação. recido nessa guerra, até voltar à
Enfim, seria mais meritório lutar por uma educa- vida, depois de uma clandestina
ção popular e qualificada. Bom, a discussão, como existência de anos como profes-
sempre, termina derivando por outros caminhos. sor primário em uma vila inglesa.
A verdade é que é possível conciliar entrete- Javier, enfim, trabalha com
nimento com qualidade literária. Graham Gree- dois universos que marcaram po-
ne, infelizmente um tanto esquecido, deu exemplos liticamente as últimas décadas
disso. Um excelente contador de história que sabia do século passado, a eterna que-
lapidar as frases, como o nosso Erico Verissimo. da de braço entre liberais e con-
Sim, sabemos da existência de escritores de enredo, servadores. E aí voltamos àquele
como Jorge Amado, e dos estetas, os que têm uma ponto onde o entretenimento dá
escrita capaz de encantar mesmo quando falam de o braço à reflexão. Os personagens
miudezas, mínguas, como Graciliano Ramos, e ain- que controlam as vidas de Berta
da os que combinam as duas pontas do barbante: e Tom são caricatos. Leem T. S.
Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, a lista é extensa. Eliot, citam o poeta, vestem ca- Berta Isla
O novo romance de Javier Marías aqui publi- pas de erudição, mas comportam- JAVIER MARÍAS
cado, Berta Isla, revela não um esteta — sua lingua- -se como conquistadores de filme Trad.: Eduardo Brandão
Companhia das Letras
gem é correta, leve, agradável, mas não recebe toques B mexicano. E resumem o libe-
552 págs.
de genialidades, não desperta o alumbramento do ralismo às camas e aos beijos. Ou
leitor. Por outro lado, o desenvolvimento do enre- seja, ao mesmo tempo em que tra-
do é perfeito, nos envolve, nos leva a transitar por balha um enredo consistente, en-
mais de quinhentas páginas sem cansaço ou enfado. volvente, Javier busca analisar o
Esse enredo conta de um casal, Berta Isla e ambiente onde transitam seus
Tom Nevinson, que se casa em Madrid, ainda muito personagens. E aí enxergamos um
jovem, em 1974. Ele, filho de pai inglês e mãe espa- mundo dilacerado pela hipocrisia, TRECHO
nhola, tem uma imensa capacidade de imitar qual- a fraude, um mundo inútil que
quer sotaque, graças à fluência em vários idiomas, e mói vidas e sentimentos na defesa Berta Isla
quando termina seus estudos em Londres é recruta- de uma ideologia caduca e vazia.
do pelo serviço secreto britânico. Para a mulher, ele Enfim, todo o andamento do Bom, o pai eles não podiam
se torna um esforçado diplomata que frequentemen- livro nos encaminha para perdas e
ver nem contente nem triste:
te precisa viajar para cuidar de sua segunda pátria, desilusões. O trabalho de espião na-
já que é espanhol de nascimento. No entanto, en- da acrescenta a Tom, além da segu- à medida que foram crescendo
volvido na trama do assassinato de uma namorada rança de um bom salário. A longa e fazendo perguntas, lhe
em Londres, Tom não conseguiu se esquivar da con- espera de Berta também não lhe contaram a versão oficial, a de
vocação para o M16 feita por um antigo professor. traz ganhos, além da desconfiança
Bertram Tupra, a do Foreign
O que parecia estar apascentado, com Berta com que passa a olhar o mundo a
acreditando nas viagens diplomáticas do marido, sua volta. No entanto, não estamos Office ou da Coroa, mais uma
sofre a reviravolta natural desse tipo de narrativa. diante de um escritor óbvio. Apesar baixa das Falkland, mais um
Numa apavorante tarde, onde acredita que um ca- de buscar divertir seu leitor, Javier dos mortos daquela guerra
sal de espiões frios queimaria seu filho no berço, a Marías quer deixar marcas, pon-
pequena e pouco heroica,
protagonista descobre o horror em que vive. E lo- tos para reflexões, e nos surpreende
go em seguida o marido some para somente rea- com um final onde prevalece a dú- um dos que lá tombaram
parecer, envelhecido e melancólico, anos depois. vida da esperança. Um escritor que e de que quase ninguém se
O que acontece nesse meio-tempo é a bri- usa a experiência para instigar o lei- lembra, naquele confronto
lhante construção de um quase anti-herói, na tor, e não apenas diverti-lo.
absurdo para maior opróbrio
verdade um anti007. Aquele agente charmoso, cer- Infelizmente, nossa litera-
cado por lindas mulheres e com licença para matar tura de entretenimento (existe?) dos militares e maior glória
está longe do universo de Tom Nevinson. A angús- se perde na descrição vazia de co- da arrogante Thatcher,
tia de viver uma mentira eterna o devasta e opri- tidianos muitas vezes medíocres. bons lucros lhe rendeu. Um
me. E ao descobrir como os fatos que lhes foram Talvez fosse mais útil se refletisse
desperdício de vidas, uns
impostos moveram os cordéis de seus dias, mesmo sobre o instigante mundo de con-
contra sua própria vontade, despe todo o glamour flitos que marca a formação da mortos desperdiçados, como
e sentido de sua existência. gente brasileira. costuma acontecer.
34 | OUTUBRO DE 2020

Ilustração: Miguel Rodrigues

Distinto outsider

Morto há 80 anos, Walter Benjamin Já nesse tempo de amizades Enfoque peculiar Benjamin introduz no dinamismo
intensas, Benjamin reivindicava Ainda em Munique, enga- da imagem dialética o elemento da
redefiniu o papel do ensaísmo crítico absoluta liderança intelectual, jado nos movimentos de juven- quietude, que assegura a unidade
e se tornou um dos intelectuais sem temer abruptos rompimen- tude, Benjamin conheceu Dora paradoxal do fluir da história reve-
tos com quem não o reconheces- Sophie Pollak, em 1914, e casou lado numa imagem aparentemen-
mais importantes do século 20 se como tal. Essa confiança no com a talentosa jornalista nascida te contingente. Benjamin é aberto
próprio valor intelectual que fez em Viena, depois da ruptura com a tantos impulsos que já não se po-
de Benjamin um scholar, não ex- a primeira noiva, Grete Rath, e o de mais falar de influência, nem de
KATHRIN ROSENFIELD | PORTO ALEGRE – RS clui o desbravador de novos ca- divórcio de Dora com o senhor Scholem ou Martin Buber, nem de
minhos — seu rigor filosófico Pollak. Graças ao dom hipnótico Hölderlin ou de Florens Christian
convivia com o espírito místico de Dora, Benjamin (um dos ra- Rang, nem de Asja Lacis, Brecht
e a imaginação artística. ros pacifistas da época) é declara- ou Adorno. Todos eles foram capi-

O
O savant de conhecimentos do inapto para o serviço militar e tais para Benjamin definir seu pró-
itenta anos depois da sua morte, Wal- enciclopédicos percebia a impor- escapa da Primeira Guerra Mun- prio estilo — ora em “proximidade
ter Benjamin cumpriu sua ambição de tância da cena vanguardista em dial (1914-1918) em Zurique, quase simbiótica”, ora em franca
se tornar o “primeiro crítico da literatu- Berlim, Zurique e Paris e desco- onde nasce seu filho Stefan. oposição às ideias dos amigos.
ra alemã”. Além disso, ele tem seu lugar briu o papel capital da linguagem Nesses anos de guerra, ele
entre os pensadores mais originais e citados de sua para o pensamento, operando prepara a tese de doutorado e seus Transgressão
época, e que recebe substanciais homenagens, co- uma guinada epistemológica; o primeiros grandes trabalhos — O O fio vermelho que vincu-
mo a recente biografia de Antonia Grunenberg, pensador moral e poético busca conceito de crítica de arte no roman- la as muitas fases e rupturas da vi-
Götterdämmerung – Aufstieg und Fall der deuts- saídas dos impasses políticos e so- tismo alemão, As afinidades eletivas da de Benjamin é sua curiosidade
chen Intelligenz 1900-1940. Walter Benjamin ciais, sem perder de vista as vir- de Goethe e o trabalho de habili- que se inflama com as margens e
und seine Zeit [Crepúsculo dos Deuses — Wal- tudes da tradição religiosa. Como tação sobre O drama barroco ale- os detalhes anódinos que os outros
ter Benjamin e sua época]1. Aproveitando a efe- defini-lo? Como historiador da mão. Essas publicações, no início desconsideram. Assim, por exem-
méride, este ensaio homenageia ao mesmo tempo religião e do misticismo judaico, dos anos 1920, já mostram o pe- plo, quando lê Hölderlin — não
Benjamin e o belo retrato que Grunenberg fez do crítico literário e da cultura, filó- culiar enfoque crítico e a delibe- como a maioria dos contemporâ-
autor, de sua obra e de toda a época contraditória sofo-sociólogo, editor e educador? ração com que Benjamin assume neos, que recuperaram os motivos
e destruidora em que o autor viveu. Esse homem de aparência seu lugar de distinto outsider. patrióticos para o nacionalismo
Benjamin nasceu em Berlim, em 1892, e aí professoral tinha nos projetos in- Cada novo ensaio é mais em ascensão, mas escolhendo justo
recebeu sua educação escolar — com uma marcante telectuais e políticos os mesmos um desafio ao pensamento estabe- dois poemas difíceis: Coragem de
interrupção de dois anos que passou em Haubinda, impulsos radicais que se mostra- lecido: por exemplo, no modo de poeta e Tolice, que falam dos aspec-
um internato com princípios educacionais novos, ram nas suas amizades, e pautava introduzir elos entre teologia, filo- tos elusivos da linguagem poética
cujo diretor, Gustav Wyneken, despertou o senti- suas ideias utópicas e metafísi- sofia e política, entre ética e estéti- que transporta o poeta e o leitor
do de liberdade e de comunidade nos seus alunos, cas no potencial revolucionário ca. As leituras intensas dos autores para uma outra dimensão, para
além da revolta da juventude contra a rígida tute- da arte. A riqueza de seus proje- do Renascimento judaico-filosó- além do mundo habitual, para um
la patriarcal que prevalecia nas instituições tradicio- tos, espraiados em vários sentidos fico (Franz Rosenzweig, Martin universo sem referências seguras.
nais do estado (e em parte também nas famílias). e entre disciplinas diversas, confi- Buber e Erich Unger, entre ou- O mesmo interesse pelo de-
Benjamin inicia seu percurso intelectual nos nou-o a uma dependência finan- tros) reforçam seu interesse pela talhe marginal prevalece também
movimentos de juventude até romper com Wyne- ceira que durou a vida toda — no dimensão messiânica e redento- nos estudos em Munique, onde
ken, em 1915, revoltado com o patriotismo bélico início dos pais, depois da (ex) ra que ele busca incorporar na sua nada o impressiona, fora um se-
do antigo mestre. Dessa época datam textos afo- mulher e dos amigos. Mas, ape- nova epistemologia; ela inflexiona minário sobre a penitência no cris-
rísticos como Metafísica da juventude e pequenos sar dessa dependência material, ele o entendimento convencional da tianismo primitivo (ele e quatro
tratados neomísticos hoje menos apreciados que sempre soube afirmar sua autono- crítica literária, da dialética hege- monges são os únicos inscritos);
outros textos do autor. mia intelectual. liana e do materialismo histórico. ele ama o olhar oblíquo induzi-
OUTUBRO DE 2020 | 35

do ora por assuntos bizarros, ora rários influentes na época. LEIA TAMBÉM Benjamin procura conjurar Londres e Oxford, e depois para os
por estados alterados (transe, êxta- Quando a guerra termina as impressões de sua viagem a Mos- Estados Unidos. A amizade oferece
se, embriaguez), ora por um estilo — com sangrentas batalhas de rua cou numa autoapresentação da ci- a ambos aquela redoma da reflexão
de pensamento caprichoso como e uma verdadeira guerra civil aba- dade em imagens condensadas: “A que lhes permite manter o equilí-
o do romântico Franz von Baader, lando Berlim de novembro 1919 conversa surreal com um emprega- brio em tempos difíceis: “Espero
cujo pensamento salta da tradição até os primeiros meses de 1920 do do hotel, o bonde, a decoração que logo possa me isolar contra tais
retórica medieval para considera- —, Benjamin tem 27 anos, pou- natalina e os brinquedos vendidos impressões [do fascismo parisiense]
ções modernas, sempre transgre- co afeto pela jovem República de nas ruas, um mapa da Europa na mergulhando no material do meu
dindo as fronteiras tradicionais Weimar e quase nenhum interesse perspectiva do comunismo, os ares trabalho”, diz Benjamin em outu-
entre gêneros e disciplinas. por política. Isso muda na prima- de vilarejo em algumas partes de bro 1937, atormentado pelo clima
Assim, ele examina com a vera de 1924, em Capri, quando Moscou, as igrejas...”. opressivo nas ruas.
mesma ávida curiosidade as Con- encontra Asja Lacis — a lituana Essa técnica será mais tar- O apoio financeiro do Ins-
fissões extáticas de um scholar como bolchevique abala e redirecionaria Ler o livro do mundo – Walter de levada à perfeição nos grandes tituto exerce certa pressão sobre
Martin Buber e as experiências toda sua visão de mundo, como o Benjamin romantismo ensaios sobre Paris — Capital do o estilo de Benjamin, cuja lógica
e crítica poética
esotéricas do círculo cosmogôni- próprio Benjamin confessa na de- Segundo Império, numa língua na poética é mais próxima de Höl-
co e em torno de Ludwig Klages e dicatória de Rua de mão única. MÁRCIO SELIGMANN-SILVA qual Benjamin se sente à vontade derlin do que da dialética de He-
Iluminuras
Alfred Schuler. Cada novo ensaio Asja, a diretora de teatro, a e numa cidade que lhe propiciou, gel ou de Marx — que Adorno lhe
238 págs.
busca abrir acessos não conven- mulher com convicções político- no entender do amigo Scholem, recomenda. Com seus onze anos a
cionais para obras conhecidas ou -revolucionárias e a mãe de uma um “processo de fermentação, menos e energia de sobra, Adorno
ignoradas, pregando o desmante- filha, abre o horizonte para uma de abertura e travessia para novas parece querer definir uma linha,
lamento dos hábitos acadêmicos, tarefa grandiosa e digna — a cons- margens que ele próprio mal vis- ora como “amigo-mecenas”, ora
de métodos consagrados e disci- trução de um novo mundo, que lumbrara”. O ensaio O surrealismo como “censor”, como observou
plinas delimitadas. Todas as ex- exige pôr-se à serviço de uma for- — Último instantâneo da inteli- Bruno Tackels, impondo a Ben-
periências marcantes o levam a ma radicalmente diversa de estado, gência europeia evidencia a guina- jamin certa “ortodoxia marxista”
inverter a perspectiva histórica, fazendo arte educativa e teatro de da política de seu pensamento, e a (um tanto rígida para o gosto de
positivista, humanista e totalizan- propaganda. A postura de pensa- tentativa de articular a concretude Giorgio Agamben). O estilo en-
te, privilegiando os elementos es- dor-mandarim é abalada: “Eu per- terrena com as dimensões mítica- saístico inovador de Benjamin e
tranhos ou negligenciáveis da vida tenço à última geração a receber -fantasmagórica e a transcendente. seu pensamento utópico, poético
e da arte; sua sensibilidade eleva a uma educação apolítica”, escreve Ele apresenta o núcleo dialético do e quase místico não se adequam
experiência estética a uma discipli- Benjamin, já atraído para dentro surrealismo como o amálgama da com facilidade ao programa do
na epistemológica que formaria o da órbita de Asja, que o introduz a embriaguez com a explosão revo- Institut für Sozialforschung.
centro da reflexão filosófica, des- Brecht e toda uma cena intelectual Passagem de Walter Benjamin lucionária — um potencial capaz A carta de 31 de maio de
tronando, por assim dizer, o pen- engajada em projetos políticos. A PIERRE MISSAC de transformar o abalo místico em 1935 dá a impressão que Ben-
sador racional desafiado por algo nova Rússia promete alternativas Trad.: Lilian Escorel inspiração profana —, uma teoria jamin ficou dividido entre duas
Iluminuras
excêntrico. Ele coloca a base epis- ao liberalismo ruinoso que os jo- que mais “tem o sabor do anar- influências “decisivas” — a de
256 págs.
temológica do conhecimento fi- vens intelectuais identificavam quismo de Auguste Blanqui e de Brecht, que foi um marco, embo-
losófico na linguagem — como com a República de Weimar — Georges Sorel, do que o de Marx ra tenha trazido “todas as aporias
mostram os ensaios Destino e ca- nesse ponto existe uma estranha e do partido comunista” e que os a esse trabalho [das Passagens]”, e
ráter, A relevância da linguagem no concordância de pensadores dos intelectuais, funcionários e líderes a de Adorno, que se opõe ao “mar-
lutilúdio e na tragédia ou A tarefa polos opostos do espectro político: russos ignoraram liminarmente. xismo vulgar” de Brecht e procura
do tradutor, entre outros. M. Heidegger, K. Jaspers e C. Sch- Em 1929, Benjamin con- superar essas aporias, para o Jornal
mitt, como também Joseph Roth, corda com História e consciência de Pesquisa Social poder aceitar o
Guerra intelectual B. Brecht e W. Benjamin. de classe, de Georg Lukacs, vis- manuscrito para publicação.
As múltiplas exigências (um Entre 1924 e 1926, Ben- lumbrando a superação da socie- Por mais que os amigos se
tanto tiranas) da vida intelectual, a jamin hesita entre planos de se dade e da cultura capitalistas pelas estimulem com reflexões em torno
liberdade afetiva (já muito moder- estabelecer como crítico inde- massas, enquanto os intelectuais, das Passagens, as exigências obje-
na) do casal e a dependência ma- pendente vinculado a uma edito- artistas e críticos se empenhariam tivas do Instituto obrigam Adorno
terial de Benjamin (ora dos pais, ra importante como Rowohlt ou, na educação e nas técnicas de or- a pressionar Benjamin a entregar
ora da fortuna de Dora Sophie, caso esse plano fracasse, o ingres- ganização e reestruturação. textos. Enquanto este já se alegra-
ora do trabalho da talentosa escri- so no partido comunista, na espe- Dez anos depois, suas Teses -se com a ideia de ver a segunda
tora, jornalista e tradutora) come- rança de poder estabelecer-se nos sobre o conceito de História apre- parte de seu Baudelaire publicado,
çam a dilacerar a jovem família no círculos intelectuais de Moscou. sentariam a História como inter- recebe a mensagem da “decepção”
início dos anos 1920. minável sucessão de catástrofes: do amigo com o enigmático esti-
Charlotte Wolf, amiga do Guinada do pensamento visão sombria, registrada sob o lo alusivo de Benjamin, que não
pensador alemão, anotou o drama Essa ideia irá se revelar ilu- choque do pacto de não agressão se conforma ao “modelo” teórico
do casamento dele nesses meses da sória durante a viagem a Moscou entre a Rússia de Stalin e a Ale- do Instituto de Pesquisa Social. A
redação do ensaio sobre As afini- em dezembro de 1926 (até feve- manha nazista concluído em 24 minuciosa carta de Adorno arro-
dades eletivas de Goethe (publica- reiro 1927), onde encontra Asja de agosto de 1939 pelos generais la falhas metodológicas e termina
do em Neue Deutsche Beiträge, no hospital; sem falar russo, ele Molotov e Ribbentrop. com o diagnóstico fatal: “Temas
em 1924). Benjamin admirando depende do companheiro de As- são reunidos, mas não elabora-
a escultora Jula Cohn, que nada ja, Bernhard Reich, como guia e Inconformismo dos”. Benjamin quase suplica que
quer com ele além da amizade, intérprete. Revela-se o ônus da e influências o texto seja publicado, ponderan-
mas mesmo assim mora com o distância crítica do outsider: Ben- Nos anos de 1930, as ami- do que: “Nesse formato poderia
casal (na casa dos sogros!) porque jamin é convidado a escrever um zades com Adorno e Gretl2 e com servir como base para discussão,
Benjamin “precisava da inatingi- verbete sobre Goethe para a Enci- Scholem e Brecht tornam-se ca- o que — por insuficientes que se-
bilidade de Jula”, enquanto Dora clopédia Soviética, mas a redação da vez mais a base para a sobre- jam seus parceiros locais — pode-
Sophie mantinha relações amoro- introduz coautores e dogmas polí- vivência material e intelectual de ria compensar em certa medida o
sas com Ernst Schön — um dândi ticos que tornam toda a apresenta- Benjamin e também uma fon- isolamento em que trabalho”.
elegante, amigo de juventude de ção benjaminiana irreconhecível. te de atritos, pois o pensamento É trágico ler essas linhas ho-
Benjamin e seu radical contrário. Embora tenha ficado fasci- peculiar de Benjamin — sempre je, sabendo que já não havia mui-
Ficcionalizando a própria vi- nado pela “reformulação de to- suspenso entre enfoques caleidos- to tempo para os ajustes finos. O
da, Benjamin redefine o papel do da a esfera do poder e do governo cópicos que desafiam o conceito Instituto está em apuros depois de
ensaísmo crítico e declara guerra [que] faz a vida aqui tão extraor- — não se conforma facilmente às alguns investimentos infelizes; a
intelectual a críticos consagrados dinária e plena de conteúdo”, exigências metodológicas mais fo- ajuda para Benjamin está por um
como Friedrich Gundolf ou Her- Benjamin percebeu também as cadas de seus amigos — nem as de fio; Adorno prevê que “uma nova
mann Cohen — quase proclaman- contradições gritantes da Revo- Scholem ou Asja Lacis, nem as de crise europeia é iminente”, e de re-
do sua vitória sobre eles. Esse traço lução Russa. “Cava-se dia e noi- Adorno, Gretl Karplus, Max Hor- pente o blefe dos líderes nazistas se
belicoso de rivalidade e luta intelec- te em busca de poder”, mas o que NOTAS kheimer e do grupo do Instituto transforma, de fato, em algo sério
tual sem dúvida pertence ao clima cresce exponencialmente é o “po- 1. A. Grunenberg, Götterdämmerung de Pesquisa Social. e fatal para Benjamin.
– Aufstieg und Fall der deutschen
intelectual da época, porém pro- der de iniciados, cujas decisões A amizade com Adorno co- Sete meses mais tarde, a
Intelligenz 1900-1940. Walter Benjamin
duziu na obra de Benjamin textos são tomadas com base em ru- und seine Zeit. Herder, 2018. Outra fonte meçou em Berlim, no início dos França é ocupada. Benjamin tenta
esquisitos; por exemplo, um elo- mores ou contatos pessoais”; tu- importante é Th. W. Adorno-W. Benjamin. anos 1920, e será mantida por cor- sua última fuga. Em 26 de setem-
Correspondência 1928-1940, Unesp, 2012.
gio fúnebre de Rainer Maria Rilke do favorece o “amplo poder dos respondência quando Benjamin bro 1940, ele escreve sua última
(1875-1926), que fala pouco e mal funcionários que decidem coisas 2. A imensa influência do pensamento de foge em março de 1933, um mês nota a Adorno, antes de cometer
Benjamin sobre Adorno é manifesta nas
de Rilke, enquanto faz um violen- das quais nada entendem, de mo- 121 cartas trocadas entre Adorno (1903-
após a chegada ao poder de Hitler, suicídio. O ensaio A Paris do Se-
to acerto de contas com Franz Blei do que conhecimento e expertise 1969) e Benjamin (1892-1940), entre 1928 e enquanto Adorno se muda com o gundo Império ainda esperava sua
(1871-1942), um dos críticos lite- se tornam dispensáveis”. 1940, ano da morte de Benjamin. Instituto de Pesquisa Social para publicação.
36 | OUTUBRO DE 2020

Um livro,
OS AUTORES
FOTOS: DIVULGAÇÃO

muitas
vozes O terrorista elegante
e outras histórias
MIA COUTO E JOSÉ
EDUARDO AGUALUSA

Escrito a quatro mãos, O terrorista Tusquets


160 págs.
elegante e outras histórias mistura
a poética de Mia Couto com a ironia MIA COUTO
de José Eduardo Agualusa Nasceu em Moçambique, em 1955. Escritor e biólogo,
recebeu diversos prêmios literários, entre os quais o
Camões, em 2013, e o Neustadt International Prize for
GABRIELA SILVA | PORTO ALEGRE — RS Literature, em 2014. E se Obama fosse africano? (2009),
Tradutor de chuvas (2011), O bebedor de horizontes (2017)
e O fio das missangas (2004) são alguns de seus livros.

A
literatura é um espaço mico. Racismo, machismo, his- ria, dor e a guerra formam o te-
de possibilidades que tórias escondidas e sentimentos cido vital das personagens. Velha
parte de ideias que con- guardados por muitos anos vão se Luzinha e Vitória vivem numa ci-
sideramos ilógicas. Nes- manifestando nas ações das perso- dade em que a violência domina
sas contrariedades surgem versos, nagens que transitam no ambien- as ruas. Um ladrão surge na noi-
narrativas, personagens e cenários te da prisão. Lourenço Laranjeira, te, espreita a moça que dorme sem
que se tornam parte do imaginá- o comissário de polícia; Lara, a in- saber o que se passa a sua volta.
rio dos leitores. Também é uma vestigadora; e Maggie, a agente O Lobo Mau traz sob a máscara
visitação ao imaginário de outros americana que vem pedir a cus- animalesca a verdadeira história
indivíduos. É por essa e outras ca- tódia do preso, formam as vozes de um amor, separado pela guer-
racterísticas que ela é insubstituí- que dialogam com Bentinho. Um ra e pela morte. Um homem que
vel, como diz Italo Calvino, ao homem que mistura a mística ca- se transforma em árvore, uma mãe
permitir a modificação da ma- pacidade de modificar a vida das que não suportou a dor de perder
neira de ver o próximo e a si mes- pessoas, consegue se comunicar o pai da única filha e uma menina
mo e por ser uma experiência de com os pássaros e ler os corações que descobre sua própria história
deslocamento e conhecimento. nos seus mais secretos sentimen- nas páginas do diário materno, re-
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Nós, leitores, visitamos as mais tos e lembranças. E é o amor que pleto de lembranças, sonhos e de-
diferentes fontes de inspiração, o condena à prisão, mais do que Nasceu em Huambo (Angola), em 1960. Jornalista e sejos. Toda a miséria e as perdas
formas de narrar o mundo, de ela- qualquer outro crime. A liberdade escritor, recebeu o Grande Prêmio de Conto Camilo causadas pela guerra assumem a
borar criaturas e imagens que nos é, para ele, a segurança de Faíza al Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores, forma do pai e da mãe de Vitória.
permitem a viagem a um univer- Garbh, irmã do dirigente do Esta- e o Prêmio Independente de Ficção Estrangeira,
so muitas vezes diferente do nos- do Islâmico, mulher por quem ele oferecido pelo jornal britânico The Independent, em Espaço de possibilidades
so. É esse o ponto fundamental havia se apaixonado. parceira com o Conselho de Artes do Reino Unido, em A graça que o mundo tem,
do livro O terrorista elegante e Em Chovem amores na rua 2007. O livro dos camaleões (2015), A rainha ginga entrevista realizada pela jornalis-
outras histórias, de José Eduar- do matador temos a história de (2014) e Barroco tropical são alguns de seus livros. ta Anabela Mota Ribeiro com Jo-
do Agualusa e Mia Couto. Baltazar Fortuna, um homem de sé Eduardo Agualusa e Mia Couto
A obra é composta por três quarenta e nove anos que resolve para o jornal português Público, fe-
narrativas curtas e uma entrevista matar as ex-amantes, “tomado por cha o livro. Independentemente
com os autores, além das ilustra- raivas antigas” que acabaram por do que foi construído nas narrati-
ções de Alex Cerveny. O terroris- lhe misturar os pensamentos. A vas, Agualusa e Mia Couto trazem
ta elegante, Chovem amores na rua narrativa se apresenta na forma de a memória de um passado, de Áfri-
do matador e Caixa preta são his- interlocução entre Baltazar e Ma- ca, entre Moçambique e Angola,
tórias construídas a partir da rea- riana Chubichuba, Judite Mali- onde nasceram e que são as fontes
lidade violenta que se ergue sobre mali e Ermelinda Feitinha. Todas de seus imaginários pessoais.
o mundo, dominando-o e condi- as sentenciadas tinham rancores Nas narrativas, escritas a
cionando os sonhos de homens e do Baltazar, que havia voltado pa- quatro mãos, histórias, imagens,
mulheres do nosso tempo, e tam- ra a cidade de Xigovia para cobrar vozes e uma vasta diversidade de
bém sobre o amor e suas diversas contas e apagar os amores que lhe cores, cheiros e memórias se mis-
formas e expressões. A obra é resul- pesavam. Apesar do nome de sor- turam, dão vida a uma terceira
tado de uma proposta de parceria te, Baltazar era um grande azara- memória, híbrida. Nas suas pala-
dos autores e as novelas já haviam do e que só causava desgostos nas vras, registram-se o conhecimen-
sido escritas para o teatro. São, mulheres, além de ser um falan- TRECHO
to da guerra, das diferenças raciais,
portanto, textos que resultam de te muito atrapalhado nas catego- de um Portugal que não é o dos
uma convivência intelectual e da rias gramaticais. Seu maior desejo O terrorista elegante sonhos e de uma África que luta-
amizade. E, segundos os autores, era ser nome de rua, o que acaba va por sua independência e uma
o livro contraria a ideia de que a por acontecer, a pedido das aman- — Sabes o que é o amor, meu pássaro? Muitos identidade descolonizada.
criação literária é um ato solitário. tes que, na solicitação ao secretá- Por ser um espaço de pos-
julgam que sabem, mas nem o perfume lhe
rio do município, justificaram por sibilidades, a literatura permite o
Narrativas ser uma “eterna lembrança”. Bal- distinguem. Eu mesmo, que conheci mais de mil alinhamento da poeticidade de
Charles Poitier Bentinho é tazar duplica-se e morre pela se- mulheres, quantas amei na verdade? Eu, mestre Mia Couto e da ironia de Agua-
a personagem que conduz a nar- gunda vez nos braços da filha de de espíritos, domador de dragões, tratei um lusa ao moldarem suas persona-
rativa O terrorista elegante. O ho- Emerlinda, que seu duplo não re- gens. Bentinho, Baltazar e suas
sem-fim de gente. As pessoas se queixavam de
mem negro é preso no aeroporto conhece. Amor, poesia e morte se mulheres, Velha Luzinha e Vi-
de Lisboa, acusado de um prová- misturam na história de Baltazar, dores diversas, incompetências sexuais, agonias tória, o som dos tiros, o terroris-
vel ato terrorista simultâneo aos que não viu nada além da sua pró- e desesperos, rugas e verrugas, invejas, rancores mo, a esperança do amor, o medo
que estavam acontecendo por to- pria imagem refletida na vaidade e maus odores, mas, vendo bem, quase todas da morte, tudo está nas linhas es-
da a Europa. “O poeta romântico que ostentava. critas pelos autores. O terrorista
sofriam era de falta de amor. E, de tanto tratar
e mestre em espíritos” era ango- A caixa preta é a última nar- elegante e outras histórias é um
lano e tinha sido combatente na rativa da tríade. Uma história de os outros, não me dei conta de que também eu livro de muitas vozes dentro e fo-
Síria, defendendo o estado Islâ- revés inesperado em que memó- vinha sofrendo do mesmo mal. ra de suas páginas.
OUTUBRO DE 2020 | 37

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

A FUMAÇA ENTRA NOS OLHOS


DIVULGAÇÃO

Caitlin Doughty, autora de


Confissões do crematório

S
moke gets in your eyes mitiva?) a validação dos rituais fu- antropólogas, advogadas, arquite- lecido lavam o corpo, segurando
foi uma recomendação néreos dentro de suas culturas. tas. Ressalta Doughty que tal ideia o cadáver no colo, posicionando-
da amiga escritora Lui- O capítulo mais espantoso pode ser considerada um ato radi- -o de forma que os vivos também
sa Geisler, em nossa últi- do livro, nesse sentido, talvez se- cal feminista: “Os corpos das mu- ficam encharcados com a água. A
ma viagem juntas no ano passado, ja o dedicado à Indonésia, espe- lheres estão com frequência sob o ideia de aninhar os mortos dessa
pelo projeto do Sesc Arte da Pala- cialmente à região de Tana Toraja, escopo dos homens, sejam nossos forma, de acordo com o antropó-
vra. Em português, entretanto, o onde em determinada data ocorre órgãos reprodutores, nossa sexua- logo Clifford Geertz, ‘se chama ser
título ficou Confissões do crema- um ma’nene’, ritual em que os tú- lidade, nosso peso ou nossa forma tegel — ou seja, ser capaz de fazer
tório. A autora, Caitlin Doughty, mulos são abertos para que as fa- de vestir. Existe uma liberdade en- uma coisa detestável, abominável
também se tornou conhecida pe- mílias possam rever seus mortos, contrada na decomposição, um e horrível sem hesitar, seguir em
lo volume Para toda a eternidade trocar suas roupas, conversar com corpo que fica bagunçado, caóti- frente apesar do medo e da repul-
— uma espécie de diário de expe- eles, tirar fotografias, etc. Como co e descontrolado. Essa imagem sa interiores’. As pessoas de luto
dições realizadas com o objetivo ressalta a autora, qualquer pessoa me agrada e me satisfaz, quando executam esse ritual para ficarem
de investigar rituais funéreos. de fora, o(a) leitor(a), por exemplo, visualizo o que vai acontecer com iklas, distanciadas da dor. Abraçar
Doughty escreve a partir de “não cresceu acreditando que os re- meu futuro cadáver”. e lavar o cadáver permite que elas
um lugar profissional: “Na minha lacionamentos familiares devem ter Na obra, aprendemos sobre encarem o desconforto de frente e
função de agente funerária eu des- continuidade depois da morte do as ñatitas de La Paz, com seus po- sigam para um lugar em que ‘seus
cobri que tanto limpar o corpo corpo. Para os habitantes de Tora- deres mágicos, e sobre os moder- corações já estejam livres’”.
quanto passar tempo com ele exer- ja, tirar alguém do túmulo anos de- nos columbários no Japão, que se Doughty questiona o cons-
cem um papel poderoso no pro- pois da morte não só é respeitoso (a preocupam com estratégias pa- trangimento que o luto traz
cessamento da dor. Isso ajuda as coisa mais respeitosa que eles po- ra minimizar a epidemia de ko- — justamente porque não apren-
pessoas a verem o cadáver não co- dem fazer, na verdade), mas funcio- dokushi — palavra que nomeia demos a lidar com esse tema. Além
mo um objeto amaldiçoado, mas na como uma forma importante de as “mortes solitárias”: porque há disso, numa sociedade tão voltada
como um belo receptáculo que já continuarem ligados aos mortos”. muitas pessoas idosas que morrem para a ambição e o “sucesso” como
abrigou seu ente querido.” O espa- O livro ainda se volta para sem que haja alguém para encon- a nossa, conviver com alguém que
ço do velório, portanto, recorda a questões sanitárias e seu impacto trar seus corpos ou, posteriormen- pareça mergulhar demais na pró-
necessidade de que exista algum no ambiente — como o grande te, ir orar em seus túmulos. “Há pria perda tende a provocar, em vi-
“lugar de segurança”, onde “é per- problema que as cremações tra- até empresas especializadas con- zinhos, colegas de trabalho e até
mitido falar da pessoa que se foi, zem, com a liberação de monóxi- tratadas por senhorios para limpar na própria família um desconfor-
chorar e demorar o tempo que for do de carbono, dióxido de enxofre o que ficou depois de um kodoku- to que gera segregação.
necessário nesse sentir”. e de mercúrio (proveniente das ob- shi”, comenta a autora. Há muitos estudos em psi-
Em Para toda a eternidade, turações dentárias) na atmosfera. Em Confissões do crema- cologia voltados para a efetiva-
diversos choques culturais nos le- Não são pontos sobre os quais pen- tório, o aspecto multicultural não ção do luto (recordo aqui apenas
vam à reflexão — já bastante cons- samos comumente — e ainda há é tão denso, mas mesmo assim po- o trabalho de Elizabeth Kübler-
tatada mas nunca o suficientemente muitas outras reflexões interessan- demos descobrir, por exemplo, -Ross), mas o tema persiste sen-
discutida — sobre como a morte se tes. Lembro o capítulo dedicado à que “quando uma morte acontece do um tabu ocidental. Conforme
transformou num tema proibido, compostagem humana — deno- na ilha indonésia de Java, a cida- Caitlin Doughty comenta em
na maioria dos países ocidentais. Ao minada, de uma forma mais poé- de toda é obrigada a comparecer seus livros, “nós escolhemos con-
passo que experimentamos um re- tica, recomposição —, que vem ao funeral. O corpo é desnudado, tinuar vendados, no escuro em re-
pulsivo assombro diante de práticas sendo praticada na Carolina do o maxilar é fechado com um pano lação às realidades da morte. No
como a do sepultamento celestial, Norte (EUA) num projeto capi- amarrado ao redor da cabeça e os entanto, a ignorância não é uma
no Tibete, não podemos deixar de taneado quase que exclusivamen- braços são cruzados sobre o peito. bênção — é só um tipo mais pro-
ver (com algum tipo de inveja pri- te por mulheres, dentre cientistas, Os parentes mais próximos do fa- fundo de pavor”.
38 | OUTUBRO DE 2020

CARL EINSTEIN
Tradução e seleção: Maria Aparecida Barbosa

A
estética africana foi uma lo 20, cuja tradução ao português Heimkehr Retorno a casa
fonte de inspiração para a editora Cultura e Barbárie es-
os artistas modernistas tá publicando em volumes. No Krieche der Erde. Prostar-se ao chão.
europeus. Assim como texto, ele busca redefinir os obje- Krümm dich der Wolke. Curvar-se às nuvens.
o pintor Picasso, igualmente os tivos da arte e suas tarefas, inclu- Willst du das, Mann? É isso que você quer, homem?
escritores Blaise Cendrars, Tris- sive sociais, didáticas e religiosas, In Scherben zerrieben, zum Irrsinn gezerrt. Em cacos estilhaçado, distendido à loucura.
tan Tzara e outros recebiam esses superando o monumentalismo Endloser Wanderer, allein. Andarilho incansável, só.
estímulos estrangeiros como po- clássico. Valorizava a criatividade Tod läuft dich an, Morte à espreita,
tencialidades fecundas à cultura formal da arte africana, a teoria Streut in rauchige Asche Dissipando em cinza e fumaça
europeia exaurida dentro do es- do cubismo, o engajamento polí- Aufriß und Ruhm. Grandeza e glória.
pírito imperialista, etnocêntrico. tico, o animismo do surrealismo, Junges leuchtet geehrt. Jovem brilha aclamado.
Durante a Primeira Guerra Mun- conforme exprime em suas refle- Jetzt nur Flecken, ein Wisch. Agora nódoa, mero borrão.
dial, o judeu alemão Carl Einstein xões críticas para a Documents Dies alles. É tudo.
(1885-1940) servia como militar — revista que editava em Paris, Schwankst Oscila.
na fronteira com a França. Gra- entre 1929 e 1931, juntamen- Und streifst kaum E mal roça
ças ao livro Negerplastik (1915), te com Bataille, Leiris e Rivière, Gras, das die Hüfte umgrünt. A grama, verdejante em torno.
publicado no Brasil pela edito- entre outros. Se Walter Benja- Keuche zum Himmel. Anelando aos céus.
ra da UFSC em 2013, esse escri- min exalta a “iluminação profa- Knochen, Feigen und Sklaven Ávidos por
tor e crítico de arte adquiriu fama na”, Carl Einstein fala de blocos Hungert es uns. ossos, figos e escravos.
de especialista em estética africa- de “a-causalidade” que cindem as Seele verloren, Alma perdida,
na e por isso foi chamado a dirigir hierarquias da realidade. läßt es den Le ichnam dir taumeln. Despenque logo o cadáver.
o acervo da administração colo- Hubert Roland e Klaus Kie- Deinen Schatten schreckt staubiger Abend. Suas sombras assusta a tarde poeirenta.
nial belga, em Bruxelas. Ali, ele fer, em respectivas pesquisas, in- Anderer Muscheln, Outros mariscos,
conheceu os relatos de linguistas dicam a gradual conscientização verschmäht und zergart, Rejeitados, podres,
e missionários que tinham trans- política de Carl Einstein, de solda- frißt er. Devora.
crito narrativas, preces e poemas do voluntário a simpatizante e em Schämen zerbricht dich. Desonra o destrói.
das línguas africanas geralmen- seguida a ativo comunista que de- Innen ermattet Derreado em espírito
te ao francês, material que, en- sempenha papel de destaque nas wirst du des Knaben Erde verspüren. Há de sondar a terra de menino.
tão, adaptava literariamente ao negociações para o fim da ocupa- Niemand grüßt. Ninguém saúda.
idioma alemão. Ao mesmo tem- ção alemã em Bruxelas no ano de Niemand ein Wort. Ninguém, uma palavra.
po, compunha poemas e os pu- 1918. Dessa rebeldia anarquista Nie ruft den Namen Nunca voz humana
blicava na conceituada revista Die ele dá ainda reiteradas provas, tan- Dir Stimme des Menschen. o chama pelo nome.
Aktion, no período 1916-17, e es- to na obra como na atuação en- Würge dir ein O caminho da fome
sa Dichtung (poesia) sintetiza sua tusiasta pela libertação espanhola Hungers Wege. O estrangula.
imersão na estética africana. Na durante a Guerra Civil, aliado à Aufwärts! da oben Acima! No alto
sequência, apresento minha tra- Coluna Durruti em 1936. klingende Türe. rangem portais.
dução de três desses poemas: Re- Há 80 anos, em cinco de VERHUNGERT. MORTO À MÍNGUA.
torno a casa, Noite e Doentes. julho de 1940, ele cometeu suicí- Himmel grüßt zart, O céu saúda brando,
Einstein escreveu também dio perto da cidade francesa Pau, Bietet dir Kommen und Schluß. Permite a entrada e fim.
a “peça teatral” Bebuquin, em a caminho da fronteira espanho-
prosa cubista. Sua obra de maior la, quando tomou conhecimento
fôlego é o ensaio A arte do sécu- da derrota francesa.

Kränke Doentes Nacht

I I Schlaf trägt in Baum,


Höhle knäuelt Cavidade infesta Klirrt Skelett.
Augapfel brandet in barometrigem Kanal. Globo ocular rebenta no canal barométrico. Vergrabenes Blut greift an. —
Verrostet schwimmt ein hohler Hammer in den Adern. Um martelo oco flui enferrujado pelas veias. Wenn Erde mondete gesichelt dem Gemüt,
Luft entzündet kuglig, O ar inflama em pústulas, Ergrünten Blätter Ohren,
Erstickt in Bändern Schlamms. Sufocado em-plastos de lama. Gestein bräch auf und Profetie der Höhle.
Schlingt bleiern hoch zur Schädelbrücke Enroscam plúmbeos à ponte da caveira Gedanken hämmern Beile.
Faltet an Zimmerdach Dobra no telhado do quarto Gestirn faßt Äste.
Verwirrten Kinderdrachen. Com embaraçadas pipas. Hund bellt fremden Schritt.
Ich klimme an der Schnur. Escalo o fio
Quirliges Insekt. Inquieto inseto.
Entschäle den Rïussel Tire o cascão do focinho Noite
In kurzbodigen Teich. Na poça rasa.
Mich ebnet Kränke in verspiegeltes Zergrauen. Doentes espelham meu próprio envelhecimento. Sono frutifica em árvore,
Pulsa carcaça.
II II Coalhado sangue difunde. —
Angst um den blinden Mond Medo cego de não ver a lua Se a Terra alua, míngua alento,
Röstet da Auge kurvender Eidechse. Queima o olho do lagarto curvo. Orelhas de folhas verdecem,
Aufschwillt mein Herz, Meu coração intumesce Pedra racha e profecia da caverna.
Ballont über Pflasterstein; Balão inflado na fria pedra; Pensar martela o torno.
Eitriger Erde Terra purulenta Planetas tocam grimpas.
Einpreßt er den Nabel. Ele aperta o umbigo. Ao passo estranho ladra o cão.
Ich werfe in den Schrecken Eu jogo horrorizado
— Querüber die Sichel — — por cima da foice —
In zackiges Seufzen des Skorpions. Num suspiro esquisito de escorpião.
Es verwankt verdorrten Horizont Horizonte mirrado vacila
Auf Seilen. em cordas bambas.

III III
Gitter umbohren Löcher Hastes perfurando veios
Der Gedanken. de pensamentos.
Vages Verwildern. Vaga decrepitude.
Hin. Avante.
OUTUBRO DE 2020 | 39

rascunho recomenda
DIVULGAÇÃO

Em quatro breves narrativas que


flertam com a distopia, a escritora e
filósofa gaúcha cria um microcosmo
literário para explorar o significado
do amor em um tempo incerto, flerta
com textos shakespearianos e propõe
inúmeras interrogações por meio
da solidão de seus personagens. A
obra, surgida a partir de um desenho Quatro passos
que a autora fez para compreender sobre o vazio
as comparações freudianas entre MARCIA TIBURI
Édipo e Hamlet, parece se apoiar Nós
na ideia de que a literatura é capaz 64 págs.
de compreender coisas que a ciência
demora para provar.

Em seu segundo livro de contos, o autor


potiguar reúne narrativas que vinha
escrevendo e reescrevendo há quase
duas décadas. Os textos, por meio de
um trabalho de linguagem atencioso,
Em 2014, após usar um lance histórico de Pelé na Copa de 70 como passeiam pelas facetas sombrias do ser
pano de fundo para contar um drama familiar em O drible, Sérgio humano. Na história que dá nome à
Rodrigues venceu o Portugal Telecom de Literatura, atual Oceanos, obra, vencedora do Prêmio Nacional
em duas categorias — Romance e Grande Prêmio. Já em sua Ignácio de Loyola Brandão de Literatura, Por que não
empreitada mais recente, que traz seis contos e uma novela, o escritor o enterro do cão pode significar algo enterramos o cão?
mineiro volta a dialogar com elementos enraizados no imaginário ainda pior do que conviver com seus THEO G. ALVES
popular — com destaque para a bossa nova. Na narrativa que dá restos, afinal, como o narrador sugere em Patuá
nome à obra, João Gilberto (1931-2019) chega de surpresa em uma Aniversário, “tropeço, manquejo, coxeio e 168 págs.
reunião descontraída do grupo encabeçado por Moraes Moreira A visita de João caminho de novo. Vivo? Vivo”.
(1947-2020): “Fazia um calor de melar cocaína, quase todo mundo Gilberto aos
no banho de mangueira, neguinho de sunga, Teresa Olho de Peixe, Novos Baianos
Baby e Pepita nuns deliciosos biquínis quase teóricos, de repente SÉRGIO RODRIGUES
me desce do táxi a porra de um coroa de terno preto carregando um Companhia das Letras Os três filhos estão criados e o marido
violão”. Além disso, o leitor é levado a conhecer a intimidade sexual de 144 págs. morreu. Com a casa somente para si
Capitu e Bentinho e passeia pela jornada da Taça Jules Rimet — que mesma, a narradora deste romance se
ficou em definitivo com o Brasil após a conquista de tricampeonato ocupa com atividades físicas, tarefas
em 1970, mas foi roubada em 1983 da sede da CBF. domésticas e um novo hobby, a pintura
— já que “velhos fazem coisas para
enganar a morte”. Quando o telefone
toca, porém, sua rotina é abalada. Do
outro lado da linha é Marfiza, irmã Cara Marfiza,
com quem não fala há uma década. A PAULO SALVETTI
partir desse contato, um turbilhão de Reformatório
memórias dá corpo à obra e tudo que diz 264 págs.
respeito ao desenvolvimento humano é
explorado — traumas, afetos e mistérios.

Melancolia A origem da água


CARLOS CARDOSO ANA CRISTINA BRAGA MARTES Em seu terceiro livro de poemas, a
Record Confraria do Vento autora mineira aborda a experiência
112 págs. 196 págs. da gestação — e outras questões que
vêm a reboque — sem a romantização
que normalmente acompanha o tema.
“Iniciarei sem medo,/ com a cabeça erguida/ “Meu intuito é retratar a loucura indo Apoiada em uma “terna violência”,
falarei em primeira pessoa,/ direi: eu! Eu além do lado depressivo e mórbido dos como aponta Prisca Agustoni no
digo.” Em trecho do poema que dá nome transtornos mentais, para mostrar um prefácio à obra, a voz dos versos
ao livro, Carlos Cardoso parece tentar outro lado, o da criatividade, da pulsão de parece tentar compreender as belezas e Continua a nascer
romper com a abordagem acadêmica que vida, ousadia e liberdade”, diz a socióloga assombros da maternidade e explorar MÔNICA DE AQUINO
busca separar autor e eu lírico. Em versos Ana Cristina Braga Martes, que estreou na qual é a posição tanto da mãe quanto Relicário
permeados pelo sentimento que batizou ficção com o romance A origem da água do filho após o ato de dar à luz um 76 págs.
a obra, o carioca deixa suas entranhas à — livremente baseado na vida da escritora novo ser humano.
vista, abordando esse mal-estar bastante mineira Maura Lopes Cançado, autora do
presente no século 21 de maneira pessoal. autobiográfico Hospício é Deus (1965). Na
“Hoje, o mundo vivencia uma melancolia narrativa de Ana Cristina, Laura nasce numa
generalizada. O estado melancólico está fazendo do interior do Brasil e desde cedo “E se tivéssemos feito tudo diferente?”
instalado no mundo e é necessário falar sobre precisa lidar com o domínio do masculino Apoiado em uma questão que martela a
esse sentimento, entrar para saber como ao seu redor. Expulsa de um colégio interno, cabeça de muita gente, o autor paulista
sair dele”, explica em entrevista à Tribuna casada e mãe ainda na adolescência, a cria um mundo de possibilidades em
de Minas. A manobra ousada, no entanto, protagonista tenta penetrar nos meios seu romance de estreia. Quando o Circo
cobra seu preço: “Releio meus versos/ e intelectualizados após vencer um prêmio Bosendorf se instala em Pausado, o
me aterrorizo com o que faço”. Apesar do literário e colaborar com um grande jornal. autointitulado “redator-repórter-editor-
ônus dessa expressão sincera, o conjunto — A realidade, porém, bate mais forte: aos 25 chefe-júnior” do jornal da cidade, Líbero,
que também traz a pedra como constância anos, ela se interna voluntariamente em se junta ao fiel Rubio para cobrir o O livro de Líbero
temática e homenageia nomes como Caio um hospital psiquiátrico — e a história vai acontecimento. O que deveria ser somente ALFREDO NUGENT
Fernando Abreu e Vinicius de Moraes — navegando águas cada vez mais profundas, mais um dia de trabalho, no entanto, se SETUBAL
recompensou o esforço ao vencer o prêmio passando por reflexões sobre loucura e transforma numa aventura surreal, na qual Intrínseca
de poesia da Associação Paulista de Críticos sanidade, saúde mental e institucionalização, o futuro — e suas diferentes versões — 256 págs.
de Arte (APCA) em 2019. entre outras. pode ser explorado.
40 | OUTUBRO DE 2020

QUARENTENAS
1.
Quando viu a patroa de ca-
ma, Elba deu prova de sua infinita
fidelidade e cuidou de dona Mer-
cedes como de uma filha. Fez-lhe
canjas, comprou-lhe remédios,
tirou-lhe a temperatura doze ve-
zes por dia. Acabou pegando a
doença e deve tê-la espalhado pa- JOSÉ ROBERTO TORERO
ra muita gente no ônibus de vol-
ta para casa. Ilustrações: FP Rodrigues
Dona Mercedes, por sua
vez, ficou inconsolável quando
Elba morreu. Ela sabia que tinha
trazido o vírus da Itália, depois de
uma bela viagem pelos vinhedos
da Toscana, e que contaminara El-
ba. Não se pode dizer que não te-
nha sido generosa. Mandou coroa
de flores e pagou caixão.
Mas o remorso continua
torturando dona Mercedes. Tan-
to que, cada vez que ela passa a
própria roupa, cada vez que ela faz
a própria comida, derrama uma
grossa lágrima. E, entre soluços,
pensa: “Será que a filha da Elba
não pode vir dar uma ajudinha?”

2.
Mimi tinha visto na te-
vê que, na quarentena da Itália,
as pessoas estavam cantando nas
sacadas. E Mimi sempre quis ser
cantora. Então preparou todos os
detalhes com esmero: escolheu
uma ária (“Sí, Mi Chiamano Mi-
mí”, da ópera La Boheme, de Puc-
cini), decorou a letra, ensaiou os
gestos no banheiro, preparou o
som, colocou seu melhor vestido
e apertou o play.
Mimi ainda está em dúvida
se os tomates, laranjas, pepinos,
bananas e até latas ervilha que fo-
ram atiradas em sua sacada foram
um pagamento ou uma crítica.

3.
O pastor Sales, da igre-
ja pentecostal “Na Arca de Noé
Sempre Cabe Mais Um” está
preocupado. De meia em meia
hora tira a própria temperatura.
A febre não passa.
“Será que peguei a coisa de
algum fiel?”
Ele deita em sua cama e olha
para o espelho do teto.
“E se eu desse uma benção
em mim mesmo?”
Ele ri da própria piada por
um segundo, mas logo volta a fi-
car tenso. Lembrou que Marilene,
cabeleireira devota, estava muito
pálida no último culto. E ela bei-
jou seus dedos depois de lhe en-
tregar um envelope com todo seu
aviso-prévio e dizer “Se Deus es-
tá conosco, não há nada a temer”.
O pastor Sales esfrega a mão
na calça até ela ficar vermelha.

4.
— Martim, o que são todas
essas folhas de papel com barban-
te na ponta?
— São minhas pipas, mãe.
Eu vou empinar elas quando aca-
bar a quarentena.
— Mas a quarentena ainda
pode demorar muito.
— Quanto?
— Não sei.
Martim fica sem saber o que
fazer. Mas, de madrugada, sonha
com a solução e se levanta.
OUTUBRO DE 2020 | 41

Quando a mãe de Martim acorda, vê que todas suores, salivas e gosmas. Não tem Assim que a mãe apaga a
as pipas estão amarradas nos ventiladores da casa e dan- mais que beijar homens de háli- luz, Matheus pergunta:
çam feito doidas no ar. tos insuportáveis, nem precisa to- — Será que o pai não gosta
car em suas peles secas, branquelas mais da gente?
5. e cheias de sardas senis. A mãe pensa um pouco e
Isabella é médica e trabalha num hospital que Ela continua cobrando o responde:
atende pacientes da pandemia. mesmo que antes. Mas a procura — Não, meu filho. É o con-
As pessoas do seu edifício, quando a veem chegan- cresceu muito. Linda Lux diz que trário.
do, sobem pelas escadas, aceleram o passo, desaparecem. nesta quarentena só ela e o iFood é
Isabella pega o elevador de serviço e vai para seu que saíram ganhando. E completa: 14.
apartamento. Tem um quarto e um banheiro só para “Estou até pensando em agenciar “Não existe problema, existe
ela, e evita chegar perto do filho e do marido, que só a umas meninas e fundar uma em- é oportunidade mal aproveitada”,
veem à distância. presa. Já tenho até o nome: iFodo.” diz uma plaquinha que fica na pa-
Em vez de receber parabéns, joinhas ou sorrisos rede da sala de Waldomiro.
por seu esforço, Isabella recebe olhares de medo e rai- 10. E ele está aproveitando a
va. Esses dias até passaram um bilhete por baixo de sua Aproveitando a moda, Bra- oportunidade.
porta. Dizia: “Mude-se deste prédio. Você vai matar to- silino decidiu fazer máscaras para Waldomiro vende vários re-
dos nós, sua assassina.” vender. Colocou a mãe, a esposa e médios infalíveis contra a covid-19.
até as filhas para costurarem. Por exemplo, há uma planta
6. As máscaras têm temas va- que solta uma fragrância que ma-
Um rapaz chora na janela. Uma semana atrás, ele riados. Listradas, com bolinhas, ta o vírus no ar. Pode parecer um
gritou para o médico: rosas para meninas, azuis para me- cacto comum, mas ele garante que
— Dá cloroquina pro meu pai! ninos, vermelhas para uns, verdes- se trata de uma rara planta da Co-
— Não é assim —, explicou o médico — nem -e-amarelas para outros, há umas reia do Sul, que acabou com a pes-
sempre se deve usar cloroquina. Ela pode acelerar o co- com os dizeres “Fora, Bolsonaro!” te por lá. Cada vaso: R$ 1.000.
ração e causar um enf... e outras com “É só uma gripezi- Há também um unguento
— Papo furado! Você deve ser de esquerda. O nha, mas eu me cuido”. para passar sobre a pele que mata
pessoal de esquerda é contra a cloroquina porque o Para fazer propaganda de o vírus ao menor contato. Pela cor
presidente é a favor. Tem que dar cloroquina pro meu seu produto, Brasilino e sua fa- e pelo cheiro, alguém pode pensar
pai. Você é um médico ou um assassino? mília só andam pelo bairro com que se trata de álcool em gel mis-
— Esse remédio não é uma uma cura. Ainda fal- suas máscaras. turado com suco de uva, mas é o
tam estud... A ideia deu muito certo. produto chinês que venceu o co-
— Olha o meu pai. Olha! Pior do que ele está, Brasilino ganhou bastante di- ronavírus em Wuhan. A embala-
só morrendo. nheiro. Para comemorar, até cha- gem de 100 ml custa R$ 338.
— Não vamos exagerar. Existem outros trata... mou um monte de amigos para Saindo dos preventivos e
O rapaz perde a paciência e sai batendo a porta. um churrasco neste domingo. “E indo para os curativos, Waldomi-
Uma hora depois, quando estava visitando o pai, aqui ninguém vai usar essa frescu- ro oferece pastilhas neozelandesas
deu-lhe uma grande dose de cloroquina que comprou ra de máscara, pô!” que acabam com o vírus se ele esti-
na farmácia. ver nos sete primeiros dias. O gos-
Agora o rapaz olha pela janela e chora de remor- 11. to, fique tranquilo, é igualzinho ao
so. Ele pensa que, se tivesse começado a dar a cloroqui- Vivinha brincava de bone- do Sonrisal. Preço: R$ 400 o tu-
na mais cedo, o pai ainda estaria vivo. ca no chão da sala enquanto os bo com 10 pílulas efervescentes.
pais viam o telejornal. O telejor- Importante: beba antes da última
7. nal dizia que mais de um milhão bolha subir.
Depois de dar banho em Rita, sua mãe foi procu- de brasileiros já tinham sido con- E, para quem já está com
rar uma calcinha para vesti-la. Mas não achou nenhuma. taminados e que mais de 50 mil tosse há bastante tempo, Waldo-
— Rita, você sabe onde estão suas calcinhas? pessoas já tinham morrido. miro manda por correio, em em-
— No meu hospital. Os pais pensavam que Vivi- balagem reforçada e envolta em
— Você tem um hospital? nha não prestava atenção no que plástico-bolha, um xarope espe-
— Tenho. Por causa da covid. os jornalistas diziam. Mas só até tacular usado num asilo de mon-
— Onde ele fica? ela pegar uma caixa de sapatos, co- ges beneditinos na Itália, onde não
— Ali. locar sua boneca ali dentro e co- houve uma morte sequer. Em no-
Então a mãe se abaixou e olhou embaixo da ca- meçar a brincar de enterro. me da honestidade e da completa
ma. Lá estavam todas as bonecas de Rita. E havia uma transparência, o comerciante in-
calcinha no rosto de cada uma. 12. forma que o xarope tem um sabor
Numa janela do edifício em pouco agradável, que parece vaga-
frente há um sujeito que está há mente uma mistura de óleo de fí-
8. quarenta dias, atrás das cortinas, gado de bacalhau com limão. Aos
Vivi Carvalho está em quarentena. Mas é con- usando um telescópio possante reticentes, Waldomiro lembra em
tra. Ela acha que as pessoas têm que sair para as ruas. para bisbilhotar a vida alheia. E a seu anúncio (veiculado nos mais
Muitos morrerão, é verdade, mas o país não pode pa- cada dia ele descobre, ou inventa, respeitáveis sites de apostas) que:
rar. No final das contas, vamos perder apenas um ou uma história para cada uma da- “Mais vale o amargo do remédio
dois por cento da população, e a maioria será de velhos. quelas janelas. que o amargor de perder um ente
Vivi acredita no direito inalienável de ir e vir do Hoje finalmente ele vai pa- querido. Este poderoso elixir custa
cidadão. E lembra que a igreja defende o livre arbítrio. rar. Completa quarenta textos e R$ 1.500, o que pode parecer caro.
Por isso diz que cada um, perante a lei e Deus, deve ter fazer mais de quarenta numa qua- Mas uma vida não tem preço”.
o poder de decidir se quer ficar em casa ou não. rentena não parece certo. Há que
Vivi não sairá de seu apartamento até que in- se respeitar o nome das coisas.
ventem uma vacina. Mas seus funcionários estão tra- Ele desmonta o telescópio
balhando a todo vapor na Carvalho & Filhos, uma lentamente, guarda-o com cuida-
próspera fábrica de urnas funerárias (ou, como diz o do na caixa e, aliviado, diz para si
povo, caixões). mesmo que por um bom tempo
O slogan da empresa é: “Carvalho & Filhos, com não quer mais pensar em doença.
você até o fim”. Mas aí tosse.

9. 13.
Linda Lux é uma garota de programa. Se bem O pai de Matheus trabalha
que ela prefere o termo microempreendora do setor num supermercado. Quando ele
quartiário, porque seu trabalho acontece no quarto. chega em casa, toma um banho
Linda Lux rapidamente se adaptou aos tempos da qua- comprido e depois janta sozinho.
rentena e passou a trabalhar apenas com videochama- Matheus está proibido de JOSÉ ROBERTO TORERO
das. O sujeito (ou sujeita) liga de seu próprio lar, ela subir nos ombros do pai e acaba-
Nasceu em Santos (SP), em 1963. Seu livro
atende em casa e faz o que cliente quiser por uma ho- ram-se os concursos de arroto. de estreia, O Chalaça, ganhou o prêmio
ra. O pagamento é feito antecipadamente, por transfe- A única coisa boa é que sua Jabuti na categoria romance em 1995.
rência bancária. Tudo rápido, prático, limpo e objetivo. mãe agora dorme no quarto com Também é autor de livros de não ficção
e de literatura infantojuvenil. Ao lado de
As coisas ficaram muito mais fáceis para Linda ele. E o pai dorme sozinho no Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-
Lux. Ela não tem mais que aguentar cheiros horríveis, quarto do casal. metragem Pequeno dicionário amoroso.
42 | OUTUBRO DE 2020

DA INTERPRETAÇÃO
ROSALBA CAMPRA
Tradução: Adriana Lisboa

Ilustração: Rafael Cairo


A Peter Ingwersen, por Århus

Há tempos imemoriais, sua es-


tirpe vem atravessando incólume per-
seguições e conspirações. Por que,
então, tanto desassossego? Um erro te-
rem se acreditado invulneráveis? A de-
mora de seu companheiro a inquieta.
E seu filho, estará a salvo no refúgio?
Talvez tenham se obstinado por
demais em ignorar os sinais de outro
ataque iminente. Mas não pode seguir
ignorando-os agora que o retumbar
da terra lhe anuncia o perigo cada vez
mais próximo; agora que distingue
com detalhe as escamas encouraçadas
do adversário e entende de quem é o
sangue gotejando na haste pontiagu-
da que também vai entrar por sua gar-
ganta e atravessar-lhe o coração.
Com a fugacidade de um relâm-
pago, em seu último alento alcança a
se condoer da sorte que espera seu fi-
lho, tão pequeno e desvalido, sozinho.
Um artista anônimo pintou essa
cena em 1497 numa nave da catedral
de Århus, em Jutland. Para desenco-
rajar devoções irresponsáveis, uma vez
foi coberta por uma mão de pintura
branca. Hoje, devidamente restaurada,
nela se pode ver o guerreiro vencedor
que, sem um único arranhão que hu-
milhe sua armadura, pisoteia a drago-
nesa agonizante, enquanto no ângulo
inferior esquerdo do afresco o dragão-
zinho se desespera numa caverna.
Caso sigam a interpretação ofi-
cial, os visitantes verão nele um sím-
bolo do Maligno, sempre capaz de se
ocultar, regenerar seu poder e regres-
sar para novos delitos. Mas poderiam
atrever-se a mirar com seus próprios
olhos, a ver simplesmente o que estão
vendo: a dor de uma inocente criatu-
ra órfã destinada à solidão.

ROSALBA CAMPRA
Nasceu em Córdoba (Argentina), em 1940. Publicou
obras de ficção, como Ciudades para errantes,
poesia e ensaios, como Territorios de la ficción: lo
fantástico. Desenvolveu uma importante carreira
acadêmica como catedrática de literatura latino-
americana na Universidade La Sapienza, em Roma
(Itália), onde reside.
OUTUBRO DE 2020 | 43

poesia brasileira
EDIÇÃO: MARIANA IANELLI

FERNANDA NALI * Ilustração: Márcia Gadioli


perco sono tarde da hora
contendas brasileiras todos os perigos, antes
estavam do lado de fora
terra quando renda agora
ao dono, [pateia a besta fera]
tudo por dentro
drena da porta
as vazantes, as correntes essa colônia — Medonha!
festa de riqueza! me apavora.

— o que nos resta?


uma FERNANDA NALI
fresta, Nasceu em Vitória (ES). É autora de Território
à venda inominado (2018), que recebeu o Prêmio de Obras
Literárias da Secretaria de Cultura do Espírito Santo.
gestante das sementes Cursa doutorado no programa de Teoria Literária e
luta nas trincheiras! Literatura Comparada da USP.

LUIZA MUSSNICH LUIS MARCIO SILVA

As paisagens continuam no mesmo lugar Orquestra Pitágoras moderno

as folhas rastejam pelo piso do pátio Toda noite me debruço sobre a janela que dá para levantar as paredes,
se acumulam, protegidas, à espera  [uma cidade desabitada. enxugar os entulhos
da rajada Penso que não cheguei a conhecer nada sobre os para abolir cavernas,
de rodopiar pelos ares  [moradores dos prédios que margeiam minha rua. tempestades e tragédias;
um disparo, o vento A história não tem importância nenhuma, você diz
assobiando para ruas desertas as coisas que mais amei na vida são imagens o homem constrói Tebas,
 [esparsas, perdidas. cemitérios e revoltas;
as construções interrompidas comportam-se como A dor se expande no tempo, não no espaço. o Pitágoras moderno
 [prédios bombardeados padece da própria história.
os pássaros continuam laboriosos Presto atenção no som das estrelas se movendo.
cantam com mais força Parece que alteraram a trajetória do planeta.
o eco se multiplica Abril dura um ano inteiro. Talvez junho se Honorários de meu pai
em silêncios letais  [transforme em dezembro. Fevereiro tem a
que se espalham feito pestes  [distância de um sonho. o terreno ele marcou hoje
Enxergo Saturno pela aba do chapéu que não sobe o muro, meio fio,
as paisagens continuam no mesmo lugar  [enfrenta mais o sol. assenta os portais,
do mesmo jeito vigas apontam para os trópicos,
você pode abrir as cortinas para ver Desfaço o coque para recuperar o lápis amarelo. quantas paredes!
são meus olhos que estão envelhecendo depressa É possível reger uma orquestra inteira
não a folha que amarela indiferente com um lápis amarelo. quanto segredo nas métricas
sempre no seu próprio tempo Improviso passos ao som de uma sonata de Mozart do pontalete e do lápis,
as montanhas já estavam aí milhões de anos antes o trajeto da sala percorrido com a vassoura em gala. das manhãs que abrem janelas!

talvez os vulcões entrem em erupção agora Não posso mais me perder por essa cidade quantas tardes
talvez eu esteja enganada então procuro esconderijos pelos corredores, atrás do meio-dia
o tempo não dará conta de tudo  [das portas, dos vestidos compridos assediam a pele
sinto por você algo antigo meus ouvidos se esquecem aos poucos dos sons da carcaça à caçamba!
quase extinto quase  [produzidos por uma rua.
uma solidão Talvez eu esteja ficando surda. não fosse este o tempo,
seriam as pirâmides, as catacumbas,
não consigo localizar a ferida O barulho da máquina de lavar também pode ser outros naipes de Versailles,
ouço os gritos  [uma música os incômodos de reinos.
as palavras que não se dizem assim como os alarmes que disparam
há muito sangue ao redor o cachorro pedindo alguma coisa a um fantasma. não fosse este o lugar,
seriam as malocas,
Uma vela está acesa no sétimo andar do prédio da as taipas,
[frente. as arengas de ágora.
Os pavios queimam mais devagar do que eu
[gostaria. mas fundada, enfim,
Um enterro. Um réquiem. da pedra à casa,
Enquanto isso lá fora rostos se cobrem
buracos se abrem. transita uma família
O céu azul é quase uma ofensa. desviando das paredes
sob telhados
Minha avó não foi feliz que se lhes caem
enquanto cruzava a Europa tremendo, temendo fujamos de Hamurábi.
e procurando uma bomba invisível
que também não consigo enxergar
daqui da janela
LUIZA MUSSNICH LUIS MARCIO SILVA
mas está caindo
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1991. Publicou em silêncio Nasceu em Franca (SP), em 1992. É
os livros de poesia Microscópio (2017), Para licenciado em Letras pela Unesp de Assis.
quando faltarem palavras (2018) e Lágrimas não em algum lugar tão longe Atualmente, reside em Franca, onde é
caem no espaço (2019), todos pela 7Letras. em algum lugar não longe daqui. professor de literatura.
44 | OUTUBRO DE 2020

DELMORE SCHWARTZ
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Ilustração: Tereza Yamashita

The dark and falling summer

The rain was full of the freshness


and the fresh fragrance of darkening grapes,
The rain was as the dark falling of hidden
And fabulous grapes ripening, great blue thunderheads moving slowly, slowly blooming.
The dark air was possessed by the fragrance of freshness,
By a scattered and confused profusion until
After the tattering began, the pouring down came
And plenitude descended, multitudinous:
Everywhere was full of the pulsing and fallen dark.

Verão chuvoso e escuro

A chuva chegava repleta do frescor


e da fresca fragrância das uvas escuras,
A chuva era como a escuridão que caía das uvas
Fabulosas, amadurecendo escondidas, grandes trovoadas azuis movendo-se
 [lentamente, lentamente a desabrochar.
A atmosfera escura tomada pela fragrância de frescor,
Por uma profusão confusa e dispersa, até que
Com tudo se despedaçando, veio a chuva forte
E a plenitude se espalhou, abundante:
Por toda parte, a pulsante escuridão que descia.

In the green morning, now, once more

In the green morning, before


Love was destiny,
The sun was king,
And God was famous.

The merry, the musical,


The jolly, the magical,
The feast, the feast of feasts, the festival
Suddenly ended A young child and his pregnant mother Uma criança e sua mãe grávida
As the sky descended
But there was only the feeling, At four years Nature is mountainous, Aos quatro anos a Natureza é montanhosa,
In all the dark falling, Mysterious, and submarine. Even Misteriosa e submarina. Mesmo
Of fragrance and of freshness, of birth and beginning.
A city child knows this, hearing the subway’s Uma criança da cidade sabe disso, ouvindo o barulho
Na manhã verdejante, agora, mais uma vez Rumor underground. Between the grate, Do metrô debaixo da terra. Entre as grades,

Na manhã verdejante, antes Dropping his penny, he learned out all loss, Depositando sua moeda, ele aprende tudo sobre perder,
Que o amor fosse destino, The irretrievable cent of fate, O irrecuperável centavo do destino,
O sol era rei,
E deus era famoso. And now this newest of the mysteries, E agora o mais novo dentre os mistérios,
Confronts his honest and studious eyes — Confronta estes olhos honestos e perscrutadores —
A felicidade, a música,
A alegria, a magia, His mother much too fat and absentminded, Sua mãe, excessivamente gorda e distraída,
A festa, a festa das festas, o festival Gazing far past his face, careless of him, Olhando para o infinito através dele, sem ligar para ele,
Subitamente terminou
Conforme o céu desceu His fume, his charm, his bedtime, and warm milk, Seus humores, seu charme, sua hora de ir para a cama, o leite morno,
E havia apenas a sensação, As soon the night will be too dark, the spring Tão logo a noite se torne escura demais, a primavera
Com a chegada da escuridão,
De aromas e de frescor, de nascimento e de início. Too late, desire strange, and time too fast, Bem tarde, o desejo estranho, o tempo muito ligeiro,
This first estrangement is a gradual thing O primeiro estranhamento chega aos poucos

(His mother once so svelte, so often sick! (Sua mãe, antes tão esbelta, sempre adoentada!
Towering father did this: what a trick!) O imponente pai fez isso: que belo ardil!)

Explained too cautiously, containing fear, Explicado com muita cautela, com temor,
Another being’s being, becoming dear: Um outro ser se tornando um ser, ficando querido:

All men are enemies: thus even brothers Todos os homens são inimigos: tanto que até mesmo irmãos
Can separate each other from their mothers! Podem afastar uns aos outros de suas mães!

No better example than this unborn brother Não há melhor exemplo do que este irmão por nascer
Shall teach him of his exile from his mother, Devo ensinar a ele sobre esse exílio em relação à mãe,

Measured by his distance from the sky, Medido pela distância dele desde o céu,
Spoken in two vowels, Pronunciado com três vogais,
I am I. eu sou eu.
OUTUBRO DE 2020 | 45

Tired and unhappy, you think of houses

Tired and unhappy, you think of houses


Soft-carpeted and warm in the December evening,
While snow’s white pieces fall past the window,
And the orange firelight leaps.
A young girl sings
That song of Gluck where Orpheus pleads with Death;
Her elders watch, nodding their happiness
To see time fresh again in her self-conscious eyes:
The servants bring the coffee, the children retire,
Elder and younger yawn and go to bed,
The coals fade and glow, rose and ashen,
It is time to shake yourself and break this
Banal dream, and turn your head
Where the underground is charged, where the weight
Of the lean buildings is seen,
Where close in the subway rush, anonymous
In the audience, well-dresses or mean,
So many surround you, ringing your fate, Will you perhaps consent to be
Caught in anger exact as a machine!
“méntre il vento, come fa, si tace”
Triste e cansado, você pensa nos lares
Will you perhaps consent to be
Triste e cansado, você pensa nos lares Now that a little while is still
Aquecidos com seus tapetes macios numa noite de dezembro, (Ruth of sweet wind) now that a little while
Enquanto flocos brancos de neve caem além da janela, My mind’s continuing and unreleasing wind
E crepita a luz alaranjada da lareira. Touches this single of your flowers, this one only,
Uma menina canta Will you perhaps consent to be
Aquela canção de Gluck na qual Orfeu implora à Morte; My many-branched, small and dearest tree?
Os mais velhos observam, exalando suas felicidades
Por ver o tempo renovado nos olhos confiantes da menina: My mind’s continuing and unreleasing wind
Os empregados trazem o café, as crianças se recolhem, — The wind which is wild and restless, tired and asleep,
Velhos e jovens bocejam e vão para a cama, The wind which is tired, wild and still continuing,
O carvão desvanece e brilha, rosa entre cinzas, The wind which is chill, and warm, wet, soft, in every influence,
Já é tempo de se sacudir e interromper este Lusts for Paris, Crete and Pergamus,
Sonho banal, e virar a cabeça Is suddenly off for Paris and Chicago,
Lá para onde se pagam as tarifas do metrô, lá onde se pode ver Judaea, San Francisco, the Midi
A força dos prédios elegantes, — May I perhaps return to you
Onde, preso ao movimento do metrô, anônimo Wet with an Attic dust and chill from Norway
Na plateia, bem ou mal vestido, My dear, so-many-branched smallest tree?
Com tantos à sua volta, ressoando seu destino,
Tomado pela raiva, tal qual uma máquina! Would you perhaps consent to be
The very rack and crucifix of winter, winter’s wild
Knife-edged, continuing and unreleasing,
Intent and stripping, ice-caressing wind?
Albert Einstein to Archibald MacLeish My dear, most dear, so-many-branched tree
My mind’s continuing and unreleasing wind
I should have been a plumber fixing drains Touch this single of your flowers, faith in me,
And mending pure white bathtubs for the great Diogenes Wide as the — sky! — accepting as the (air)!
(who scorned all lies, all liars, and all tyrannies), My many-branched, small and dearest tree.

And then, perhaps, he would bestow on me — majesty! Você talvez consinta em ser
(O modesty aside, forgive my fallen pride, O hidden majesty,
The lamp, the lantern, the lucid light he sought for “méntre il vento, come fa, si tace1”
All too often — sick humanity!)
Você quem sabe consinta em ser
Albert Einstein para Archibald MacLeish Agora que falta pouco
(Ruth da doce brisa) agora que falta pouco
Eu deveria ter sido um encanador para consertar vazamentos O vento incessante, preso em minha mente
E remendar banheiras limpidamente brancas para o grande Diógenes Toca só essa entre as suas flores, só essa,
(que desprezava todas as mentiras, todos os mentirosos e todas as tiranias), Você quem sabe consinta em ser
Minha querida arvorezinha cheia de galhos?
E então, talvez, ele me concedesse — majestade!
(Ó, modéstia à parte, perdoe meu orgulho decadente, Ó majestade oculta, O vento incessante, preso em minha mente
A lâmpada, a lamparina, a luz da lucidez que ele procurou — Vento que é selvagem e inquieto, adormecido e cansado,
Com tanta frequência — na humanidade enferma!) Vento que cansado e selvagem, contínuo
Vento que é gelado e quente, molhado e suave, que é influenciável,
Que anseia por Paris, Creta e Pérgamo,
Que de repente parte para Paris e Chicago,
Leia mais em Judeia, São Francisco e o Midi
rascunho.com.br — Poderia eu talvez regressar a você
Encharcado da poeira da Ática e com a friagem da Noruega
Minha querida, minha arvorezinha de tantos galhos?

DELMORE SCHWARTZ Você quem sabe consentisse em ser


Nasceu em Nova York (EUA), em 1913. O cabideiro e o crucifixo do inverno, o vento afiado e
Foi um dos mais perfeitos protótipos de Selvagem, incessante e preso,
poeta maldito. Jovem, foi visto como
um dos poetas mais promissores de sua Intencional, debulhador e friamente carinhoso?
geração, fez um sucesso meteórico, mas Minha querida, tão querida, arvorezinha de tantos galhos
morreu deprimido, alcoólatra e esquecido, O vento incessante, preso em minha mente
num quarto de hotel barato, com apenas
cinquenta e dois anos, em 1966. Entre os Toca só essa entre as suas flores, a fé em mim,
artistas explicitamente influenciados por Extenso como o — céu! — aceitando como o (ar)!
ele estão Saul Bellow (a quem apadrinhou Minha querida arvorezinha cheia de galhos?
no início da carreira, e que o usou como
personagem no romance Humboldt’s gift)
e os músicos Lou Reed e Bono Vox. 1. Citação de Dante, A Divina Comédia, Canto V, “Inferno.”
46 | OUTUBRO DE 2020

COLEÇÃO DE
LÍNGUAS CALADAS
VANESSA BRULON
Ilustração: Mariana Tavares

C
omeçou quando eu tinha com detalhes o gato vizinho: obser- Todos os dias, sentava-me o corpo para o velório — quan- mais aflita no bolso. Procurei me
uns oito anos. Analisava vava-o beber água; oferecia a mão diante da caixa de música e ad- ta experiência acumulada até ali. acalmar, passando os dedos de le-
um lagarto no quintal para ele lamber; fechava os olhos mirava minha coleção de línguas Gente era o bicho que me faltava. ve pelas rachaduras cavadas na lín-
da minha avó, e seu ra- para sentir melhor a língua que me caladas. Embalada pela Für Elise O defunto, ora minha avó, gua. Minha avó, tão silenciada,
bo se soltou do corpo. Autônomo, arranhava; cheguei a ensaiar segu- e pelo cheiro de podre, acompa- cheirava à morte fresca. Com to- morreu com a boca seca.
chicoteava o chão. Impressionou- rá-la, mas o bichano reagiu. nhava, como mãe zelosa, a lenta do o meu aparato, mãos em luva Vi nos olhos daquele ho-
-me o balé mal-assombrado, e quis À noite, acalmava-me pen- decomposição de cada uma delas. cirúrgica, afastei os parcos lábios. mem, espelhados de emoção, to-
saber se suas outras partes também sar nas melhores maneiras de ar- Sonhava com murmúrios Senti meus dedos afundarem de das as vidas que eu podia ter tido
bailariam independentes. Pisei de rancar língua de gato. Bicho difícil sincronizados e sombrios, que leve na língua ainda macia. Pensei e não tive; passados que não foram
leve sobre o corpo-sem-cauda e o gato, com aquelas unhas afiadas. me acordavam em sobressalto. nas palavras duras, no tom cor- meus. Afinal, ele disse:
cortei a língua fora com a faca de Mirabolei uma estratégia. Diziam coisas tão graves e pro- tante de sua voz. Com o bistu- — Lembra de mim?
picar cebolas. Separada do corpo, Na sua próxima visita (mal fundas, que eu não podia recor- ri, fui penetrando aos poucos, em Senti o vazio descer a gar-
ela não se moveu. sabia o que o esperava), prendi o dar ao amanhecer. movimentos delicados, quase co- ganta. Preservava línguas, mas
Guardei a língua na caixa de corpinho frágil entre as minhas As vozes também me des- mo último afago. Livrava-a do pe- não aquela, plácida na minha
música que herdei com a morte da pernas e ajoelhei em sua cabeça, pertavam para a urgência de man- so de ter como dizer. boca. As vozes do meu sono so-
minha mãe. Pousada sob a baila- sem colocar todo o meu peso para ter a minha coleção. O ímpeto de Passei o enterro com a lín- pravam no silêncio tudo o que eu
rina que rodopiava indiferente, a não esmagar o crânio. O bicho se preservar as línguas ameaçadas gua no bolso, depois de estancar precisava dizer. Mas não conse-
língua ficou escondida como um debatia derrotado. Com um ali- pelo apodrecimento fez-me apro- o resto de sangue em folhas de pa- guia dar som às palavras: calada,
bem precioso. cate, estiquei a língua ao limite. ximar da taxidermia. Estudava pel toalha. Ao longo do velório, juntei-me aos bichos.
Na escola, era exímia aluna Peguei a tesoura de jardim e cor- técnicas e procedimentos de pre- recorria a ela nos auges da tristeza
das aulas de biologia. Dedicava os tei, arrancando do gato um gru- servação da pele animal. Quando — sua textura me acalmava. No
recreios ao laboratório ou à biblio- nhido estridente. já não restavam livros que não ti- salão quase vazio, busquei na car-
teca. Comia o lanche sobre entra- Fui me aperfeiçoando no vesse de cor, minha avó compra- ne consolo humano.
nhas de sapos. Buscava entender domínio das línguas, no contro- va-me mais. Encher-me de livros Apertei-a com mais for-
a anatomia e suas correlações com le dos corpos a serem amputa- era o seu jeito de me dirigir a pa- ça quando fui abordada por um
a língua. A professora antecipava, dos, na higiene do procedimento. lavra. Com os grandes nomes da homem que se dizia meu pai.
com assustadora precisão, meu fu- Preocupei-me em expandir meu ciência, supria-me de pai e mãe. Em um reconhecimento remo-
turo de êxito no campo científico. perímetro de ação, para não gerar Foi já adulta que tive chance to, atualizei com marcas e rugas
VANESSA BRULON
O interesse por línguas au- suspeitas. Afeiçoei-me ao sangue, de tornar a coleção realmente va- as fotos espalhadas pela casa da
mentava, conforme me desen- à riqueza de texturas e formas, às liosa, quando da morte de minha minha avó. Nasceu em Niterói (RJ), em 1985. Mestre
e doutora em administração pública, é
volvia. Estendia o laboratório ao surpreendentes similaridades com avó. Tarefa simples cortar língua O homem falava comigo, professora adjunta da Universidade Federal
quintal da minha avó. Analisava alguns tipos de embutidos. de defunto, enquanto preparava e minha mão ia ficando cada vez do Rio de Janeiro (UFRJ).
OUTUBRO DE 2020 | 47

Ilustração: Raquel Matsushita

rogério pereira
SUJEITO OCULTO

UM CÁLCULO
PARA DEUS

D
izem que Deus é infi-
nito. Carreguei o peso
da eternidade por toda
a curta infância — este
espaço onírico que nunca acaba.
O Cristo pregado na sala, espe-
tado ao lado dos ramos bentos à
cabeceira da cama da mãe, nun-
ca profanada pelo pecado da carne
(o pai, quase sempre, a fartar-se na
cachaça ou em entranhas desco-
nhecidas), olhava-me talvez com
certa indiferença ou increduli-
dade. Quando Gauguin pintou
o seu Cristo amarelo, e as dóceis
camponesas ao redor, não descon-
fiava de que suas cores me ofus-
cariam os olhos daltônicos vida
afora. Nunca esqueço a manhã
de neblina e sol tímido ao desco-
brir a pintura num livro de orelhas
desbeiçadas nas estantes do velho
ônibus transformado em bibliote-
ca no maior parque de C. Eu era
criança, mas a sombra dos braços
crucificados me acompanhava pe-
las horas sonolentas dos dias. A ignorância — a falta de qual- todas as coisas”. Mas sempre achei a mãe muito carcaça, um animal ao relento
Atravessavam-me pensa- quer informação certeira sobre mais importante. Um raciocínio bastante ingê- abandonado aos urubus. A pança
mentos desconexos, atrapalhados e o paraíso — era mais reconfor- nuo. Até porque Deus é eterno. E a mãe, numa da máquina estava vazia. Nenhum
até indecentes, na tarde abafada em tante do que a vida ao redor: de manhã de sol, estava morta enroscada às cobertas. circuito, nenhuma peça, apenas o
pleno inverno, quando meu filho uma pobreza doída nas sovas que Então, eu multiplicava o primeiro mandamento nada habitava aquelas entranhas
— um menino magro de cabelos o pai nos entregava sem o míni- por outro que me causava certo incômodo: o sé- — uma corruíra eviscerada. Mas
e gestos desgrenhados — tentava mo remorso aparente. O jeito era timo — “não furtar”. Desde sempre furtei uvas, não poderia desprezar a possibili-
aguçar minha curiosidade em di- trilhar o caminho da igreja, agar- morangos, mimosas e ameixas no vizinho. Comia dade de impressionar meus cúm-
reção ao fim do mundo. O meteo- rar-se às barbas sagradas, não ti- escondido debaixo do porão, entre ripas, poeira plices no reino de Deus. Depositei
ro caiu onde hoje está o México, tubear diante da possibilidade de e ratos. O resultado da minha perdição chegava a calculadora na pasta plástica. E
dizia-me com o dedo em direção um milagre. O pulo desesperado à a sete. A aparente simplicidade do cálculo escon- segui em busca da salvação.
à tevê. O programa, talvez nestes salvação. No roteiro traçado com dia temores indescritíveis, mistérios insondáveis. De propósito, deixei a má-
canais em algum lugar desconhe- devoção estavam as modorrentas E só aumentava. Multiplicava o sétimo pelo no- quina de multiplicar mandamen-
cido do emaranhado digital, re- aulas de catequese. A ladainha en- no mandamento (“guardar castidade nos pensa- tos à vista dos demais. Você tem
produzia o ocaso dos dinossauros. volvia-nos numa crosta de tédio e mentos e nos desejos”), que tanto me assombrava uma calculadora! O olhar admi-
Coisa mais que sabida: a viagem ânsia pela liberdade. A magra pro- nas noites de descobertas. E minha perdição se rado enchia-me de orgulho, vai-
descontrolada do meteoro, a imen- fessora, a quem insistíamos cha- elevava a sessenta e três. As chances de o inferno dade e outros pecados. Absorvia
sa nuvem de poeira, as temperatu- mar de tia, dominava as palavras ser minha morada eram desoladoras. Ao chegar tudo com a empáfia sardônica
ras insuportáveis, o fim da comida, da Bíblia, desvendava cada segre- ao décimo mandamento (“não cobiçar as coisas dos vencedores. Mas a delícia do
a extinção de todos os dinossauros. do escondido nos versículos e nos alheias”), a danação era completa. Impossível não paraíso logo esvaiu-se em golfa-
Ou quase. Dizem que ainda estão resumia a sabedoria de Deus. Era cobiçar a roupa nova do menino ao lado, o tênis das de escárnio. Ao menor des-
por aí nas penas dos pássaros — al- por esta estrada que deveríamos brilhante, o boné multicolorido. cuido, M. — a menina loira de
go muito complexo para meus es- seguir: uma estrada sem pecados Ao embaralhar todos os mandamentos, os olhos azuis, que me fazia profanar
tropiados conhecimentos. Difícil ou tentações — nenhum desvio números cresciam absurdamente numa folha de o nono mandamento na ânsia dos
imaginar que o tico-tico jogado na nos levaria ao inferno. papel escondida entre preces e pedaços da Bí- dedos — escancarou a mentira. É
panela no almoço da infância era Entre tantas palavras ar- blia. Os cálculos não tinham qualquer sentido falsa. O espanto retumbou pelos
uma lasca de tiranossauro rex. caicas, o que mais me assustava prático ou transcendental. Eram mais um pas- vãos sagrados da igreja. Não fun-
Mas o que chama a aten- eram números ordinários, sim- satempo, uma pífia tentativa de um pragmatis- ciona. Não serve pra nada. Que
ção a ponto de me imobilizar é a ples, de fácil contagem. Na tábua mo ao desconhecido. ridículo. As frases, pilhérias de-
ideia daquele pedaço disforme de de salvação, os dez mandamen- Mas por mais ocupado que esteja, Deus sem- testáveis na língua de pequenos
ferro, níquel, rocha e solidão via- tos sobressaíam feito um dragão pre encontra tempo para colocar as coisas no seu de- demônios, saltavam de boca em
jando na imensidão do universo de fogo a bufar sobre nossas ca- vido lugar. De casa até a catequese, percorria alguns boca enquanto o arremedo de cal-
rumo à Terra. Um cavalo xucro beças piolhentas. Eram repetidos quilômetros a pé, desviando de pedras e do matagal culadora saltava de mão em mão.
solto num pasto sem fronteiras. com insistência de tempos em no carreiro que só alguns anos depois se transforma- Não havia cálculo possível para
E, ao fundo, no cenário vazio, a tempos, enfiados em meio a uma ria em rua. Numa tarde de sábado, cabisbaixo feito medir minha raiva e vergonha.
escuridão incontrolável, o infinito oração, a um novo ensinamento. um boi rumo ao matadouro, vi o retângulo plásti- Pensava nas ancestrais risa-
— o eterno infinito a nossa volta. Tudo se resumia a míseras (mas co brilhar sobre o capim, como se tivesse sido co- das de dentes de leite quando meu
Sem querer, solto uma frase des- infinitas) dez frases fixadas numa locado ali pela mão de Deus. Catei a calculadora filho, ainda de olho na extinção
cabida: “Como se Deus estivesse folha de papel na entrada da sa- com a pressa de um esfomeado. As teclas e seus nú- dos dinossauros, arrancou-me da
cortando a unha do dedão e um la celestial. Ali habitavam nossa meros eram macios. Apertei-as à espera do milagre nostalgia infantil ao perguntar:
fiapo se desprendesse em nossa di- salvação ou nossa desgraça ple- do cálculo. Nada. Um vazio imenso feito um me- “Sabia, pai, que é possível viajar
reção”. “O quê, pai?”, pergunta nas. Fazia cálculos imaginários teoro navegando pelo universo inundou a peque- no tempo?”. Sem entender a per-
meu filho, um tanto confuso com diante da possibilidade de um na tela. Pressionei afoito e com força todas as teclas. gunta, apenas o olhei com espanto
minha canhestra tentativa de me- pecado levar a outro, levar a ou- Nada. O nada se reproduzia. Contrariava um dos e respondi: “Sim. Eu sei. É por-
nosprezar a eternidade. tro, numa sequência abissal, pa- mais importantes preceitos filosóficos. Do nada vem que, assim como Deus, os núme-
A mãe tinha um pacto com ra, enfim, arder nas chamas do a desilusão. Nenhum número reluzia na tela. Meus ros também são infinitos. Ainda
Deus: livrar os filhos do inferno e inferno. Logo de cara, teria de cálculos não levavam a lugar algum. mais numa calculadora habitada
entregá-los ao aconchego divino. “adorar a Deus e amá-lo sobre Ao manusear a calculadora, descubro uma apenas por almas”.

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