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Mar. 2023

ARTE DA CAPA:
CAROLINA VIGNA
2 | MARÇO DE 2023

eduardo ferreira vincam o papel quanto à falta de


esteio para a transposição fidedig-
TRANSLATO na do fato à narrativa.
Ao mesmo tempo, parece

EL SUPREMO (3)
estar sempre em busca de um mé-
todo que seja capaz tanto de captar
corretamente a realidade quanto
desde 8 de abril de 2000
de inscrevê-la numa linguagem.
Em elucubrações inscritas em

C
Rascunho é uma publicação mensal
seu caderno privado, o supremo da Editora Letras & Livros Ltda.
ontinuo, nesta coluna, a tando que, em outras épocas, o arrisca uma saída: “Escrever ao CNPJ: 03.797.664/0001-11
série de reflexões iniciada escritor não era um indivíduo, mas mesmo tempo que visualizar as Caixa Postal 18821
em janeiro último sobre a um povo, um povo sagrado, que formas de outra linguagem com- 80430-970 | Curitiba - PR
grande obra do paraguaio redigia livros universais, códigos, posta exclusivamente por ima-
Augusto Roa Bastos, Yo el supre- oráculos: “Assim foram escritos gens, ou, dito de outra forma, rascunho@rascunho.com.br
mo. Como já tive ocasião de apon- os Livros Antigos. Sempre novos. por metáforas ópticas”. Uma no-
www.rascunho.com.br
tar, trata-se de livro que evoca uma Sempre atuais. Sempre futuros”. va linguagem ideográfica, talvez?
série de especulações sobre a relação Apesar de sua louvação aos Vê-se um elemento de fan- twitter.com/@jornalrascunho
entre a literatura e a tradução. antigos, aos autores coletivos e sua tasia, realismo mágico, se impor facebook.com/jornal.rascunho
Um dos aspectos que sobres- fidedigna criação, o supremo cri- na expressão do ditador, que pre- instagram.com/jornalrascunho
saem na leitura de Yo el supremo, tica veementemente a volubilida- tende ter inventado uma espécie
whatsapp (41) 99109.4352
aspecto esse destacado pela edito- de do texto: “Os papéis podem ser de caneta miraculosa com a qual
ra Milagros Ezquerro, é a refutação rasgados. Lidos com segundas, até buscaria atingir a “escritura vi-
do autor como dono e criador fun- com terceiras e quartas intenções. sível”. E, ainda assim, a realida-
EDITOR
damental do texto. Outro aspecto Milhões de sentidos. [...] Os fatos de se esquiva da narrativa, pois
Rogério Pereira
essencial é a contestação da lingua- não. Estão aí. São mais fortes que o concreto, na visão do supre-
gem como instrumento legítimo a palavra. Têm vida própria. Ate- mo, pode não passar de “escritu-
EDITOR-ASSISTENTE
para significar o concreto. nhamo-nos aos fatos”. ra-imagem que vai tecendo suas
Luiz Rebinski
Para Ezquerro, o persona- Embora pareça crer na pos- alucinações sobre o papel”.
gem compilador usurpa a função sibilidade de identificação ime- Como cogita o caudilho EDITOR DE FICÇÃO
do autor, implicando, com isso, a diata dos fatos, também critica em seu caderno privado, mesmo Samarone Dias
substituição das noções de criação, acidamente a capacidade da lin- a escrita mais visível e mais trans-
originalidade, inspiração e proprie- guagem de captar o real: “Pode- parente em relação ao objeto teria DIRETOR DE ARTE
dade privada pelos conceitos quase rias inventar uma linguagem na lá suas áreas de opacidade, dobras Alexandre De Mari
antagônicos de trabalho de segunda qual o signo seja idêntico ao ob- inescrutáveis, a depender do ân-
mão, plágio deliberado, imitação e jeto? Inclusive os mais abstratos e gulo e do campo de visão: “O DESIGN
bem coletivo. Assim, o compilador indeterminados. O infinito. Um que é inteiramente visível nunca Thapcom.com
seria o “artesão que elabora uma perfume. Um sonho. O Absolu- é visto inteiramente. Sempre ofe-
obra a partir de materiais que são to. Poderias fazer que tudo isso rece alguma outra coisa que exige IMPRESSÃO
propriedade de uma coletividade: se transmita à velocidade da luz? ainda ser olhada. Nunca se che- Press Alternativa
uma língua, uma História, uns mi- Não; não podes. Não podemos”. ga ao fim”. Assim também na tra-
tos, uma literatura, toda uma he- A desconfiança expressa pe- dução, o original nunca pode ser COLUNISTAS
rança cultural”. lo supremo atinge a tradução em apreendido — e muito menos Alcir Pécora
O próprio supremo, em seu seu sentido mais amplo. O di- trasladado — em sua inteireza. Eduardo Ferreira
caderno privado, anotou ideias so- tador aponta o dedo tanto à vo- Fato que não impede a busca in- Fabiane Secches
bre a questão da autoria, argumen- lubilidade dos significados que cessante de translucidez. João Cezar de Castro Rocha
José Castello
José Castilho
Luiz Antonio de Assis Brasil
Maíra Lacerda

rinaldo de fernandes Nilma Lacerda


Noemi Jaffe
RODAPÉ Olyveira Daemon
Ozias Filho

POESIA DESASSOSSEGADA
Raimundo Carrero
Rinaldo de Fernandes
Rogério Pereira
Tércia Montenegro

U
Wilberth Salgueiro

m poema é um horizonte entempes- ponto mais alto. Mas é um mar que a tormenta (que torna o horizonte
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
tado (Penalux, 2022) é um livro forte não afasta as angústias — é espe- “entempestado”), é outra metáfo-
Ana Cristina Braga Martes
e perturbador de uma estreante. Anali- lho da solidão: “Moro nesta ilha e ra a que a autora recorre reiterada-
André Argolo
ce Chaves, com personalidade, assume ela mora em mim/ sou eu e a trilha mente. E vem como um registro,
André Caramuru Aubert
um lirismo intenso, uma emoção viva em cada poe- de formigas que circula o jardim/ não raro ritmado com esmero, do
Bruno Inácio
ma — mas é sempre uma emoção pensada, cisma- [...]/ sou eu e meu medo do mar”. tumulto interior do eu lírico: “O
Bruno Nogueira
da com os sentimentalismos, razão pela qual eles são Um mar às vezes furioso, intimida- último amor quando curou-se/
Giovana Proença
expurgados de seus textos. A poesia de Analice per- tivo, que ameaça “engolir cidades”. curou-me tudo/ dos medos e das
Gustavo de Almeida Nogueira
turba pela constância de um vazio existencial, sen- O processo metafórico de Analice coragens/ dos ventos e das verti-
Jonatan Silva
do por vezes francamente desassossegada. Os poemas Chaves é singular, muito bem ela- gens”. Registre-se ainda o emprego
José Eduardo Gonçalves
mais angustiados estão entre os mais belos do livro. borado. Duas metáforas se desta- eficaz da antítese, o que torna al-
Luís Augusto Fisher
Há um encanto na forma como ela decifra a soli- cam em seus poemas: a do tigre e, guns poemas ainda mais expressi- Luiz Rebinski
dão, tópica reiterada em seu roteiro poético: “Eu tan- em especial, a do abismo. O tigre vos: “lá fora estou muito contente/ Márcia Lígia Guidin
to rasguei a garganta gritando o nome do amor/ eu aparece em Época de ventania na um intervalo entre chuvas/ [...]/ Paulo Paniago
tanto pedi que viesse/ eu [...] jurei que podia ser forte sua acepção mais corriqueira, co- aqui dentro eu tenho quase nada/ Simon Armitage
o quanto quisesse”. Por outro lado, dá um certo tu- mo “promessa de um susto” (co- e até estremeço de tão urgente”. E Stefania Chiarelli
multo no leitor o modo irônico como ela desconfia mo, em certo sentido, o do conto o recurso da metalinguagem, que
ou mesmo desautoriza o gesto amoroso: “Todo amor Bestiário, de Cortázar, citado pe- estrutura o bom poema final do li- ILUSTRADORES
que acaba é um espetáculo/ em auge de temporada/ la autora) — mas como a cidade vro. Um poema drummondiano, Aline Daka
de teatro lotado/ de holofote aceso/ Todo amor que está “lotada de tigres”, o significa- sobre os embates do poeta com Carina S. Santos
acaba é um espetáculo/ estridentemente ovacionado/ do da palavra alça voos e remete a palavra: “em algum momento Carolina Vigna
com os corpos pendendo para frente/ de gratidão”. ao desassossego e/ou dificuldade [...]/ vou encontrar a palavra de Conde Baltazar
Também são belos os poemas que retratam o mar, a da convivência humana. O abis- que preciso/ Pra dizer que o que Fabio Abreu
praia. É para o mar que umas tantas vezes o eu líri- mo, por sua vez, é signo do perigo, sinto é diferente do que alcanço”. Maíra Lacerda
co se dirige para flagrar imagens como: “Lanço esta do risco — ou do desafio de vi- A poesia de Analice Chaves é pa- Miguel Rodrigues
mensagem ao mar/ às trovoadas do Atlântico e aos ver: “[...] me disseram que minha ra ser degustada como um bom vi- Ramon Muniz
estômagos das baleias”. O caráter contemplativo da doença era gostar de andar nas qui- nho. Ou para ser lida ao som de Raquel Matsushita
poesia de Analice tem na configuração do mar o seu nas dos abismos [...]”. O vento, ou um rock angustiado. Tereza Yamashita
MARÇO DE 2023 | 3

JOÃO LAET

13
6
Entrevista: Frei Betto
Genealogia das mulas,
de Marília Kosby
André Argolo
Luiz Rebinski

14
Um álbum para Lady Laet,
de José Luiz Passos
Bruno Inácio

20
PATRÍCIA CANOLA
O manto de sílabas

9 17
Noemi Jaffe

Os ratos, de
Dyonelio Machado
Inquérito
Rita Carelli 35
Luís Augusto Fisher Agosto,
de Romina
Paula
ENEIDA SERRANO

Stefania Chiarelli

38
LEO AVERSA

Quatro contos
José Eduardo Gonçalves

22
Paiol Literário
40
Poemas
Edney Silvestre
Simon Armitage

DIVULGAÇÃO

30
A poesia de
33
Sátántangó, de
Samuel Beckett László Krasznahorkai
Gustavo de Bruno Nogueira
Almeida Nogueira

ARTE DA CAPA:
Carolina Vigna

Ilustração: Fabio Abreu


MARÇO DE 2023 | 5

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA
Ilustração: Carina S. Santos

MIL
ESTRELAS
CAIRÃO

E
stou em uma festa na casa de Hilda Lepora- estão felizes?”. Sinto vontade de cair. Enquanto se abaixa para catar os cacos, continua:
ce, a esposa de um deputado da oposição. Ela fugir. Aquele sujeito que está na “Alguma coisa está acontecendo”. Parece que as preo-
me convidou por gentileza, em agradecimen- casa da senhora Leporace e que cupações do ator contaminaram a todos, até os servi-
to à orelha que escrevi para seu novo livro de conversa com um velho ator não çais. Também a cozinha se assemelha a um calabouço.
poemas, “Impulsividade”. Vim, eu também, só por im- sou eu. Eu não sou isso. Realmente não estou bem, pois agora as coisas
pulso. Não conheço ninguém. Nada tenho a fazer aqui. Peço licença e vou ao ba- começam a girar. Acomodo-me em um banquinho,
Vim porque ando solitário e a vida de cronista é vazia. nheiro. Dou duas voltas na cha- peço um copo d’água e fecho os olhos. Não adianta:
Conto os minutos para me despedir, quando um ve. Agora percebo que suo. mesmo de olhos fechados, luzes espocam diante de
senhor narigudo, de cavanhaque vermelho, me aborda. Sento-me na borda da banheira. mim. A gorda cochicha para a garçonete: “Você está
“Permita-me aborrecê-lo. Mas não acha tudo isso um Olho em volta. Por que diabos o vendo? Também o senhor está percebendo”. A moça
absurdo?” Olho à nossa volta, tudo me parece banal e, velho surgiu para me despertar? insiste que é bobagem, que é só o uísque. “A vida es-
mais ainda, entediante. Nada mais previsível, além de Preferia o sono tolo dos crentes. tá debochando de nós”, filosofa.
estúpido, do que uma festa literária. A anestesia da normalidade. Em Pergunto, então, se ela conhece o ator de cava-
Como nada consigo dizer, o velho continua: “Ve- vez disso, não posso mais esque- nhaque vermelho. “Ah, o senhor Rodrigues? Ele apenas
ja só! Nosso pequeno planeta despenca no cosmos, mil cer das estrelas que despencam finge que é ator”. Ele finge? Apenas interpreta? “Finge
estrelas giram desgovernadas sobre nós. O universo se sobre nós. Não estou em um ba- para assustar os outros, ou para debochar. Na verdade,
desenrola como um tapete demente. O planeta está nheiro, mas em um abismo. ele é astrônomo”. As palavras da garçonete provocam
prestes a explodir. Enquanto isso, essa gente ri e bebe”. Ao abrir a porta, vejo de um curto em minha mente. Será que, apesar de tudo,
Apresento-me. Pergunto se é astrônomo, ou filó- longe o velho e me desvio. Escon- devo acreditar em sua teoria das estrelas?
sofo. “Deus me livre”, reage. “Sou ator.” Talvez me use do-me. Quero fugir, mas, para is- O mundo perde a estabilidade. Preciso ir em-
como plateia. Pode ser uma improvisação, um experi- so, preciso atravessar o salão e a bora. Lembro-me então de um lindo conto escrito
mento cênico, caso em que eu desempenho o papel in- senhora Leporace, ainda emocio- por uma aluna em que imensas pedras caem do céu.
voluntário de cobaia. “O senhor devia beber e relaxar”, nada com minhas palavras vazias, Esforço-me, mas o nome da aluna brilhante me esca-
pondero. Engasga. Seu rosto fica ainda mais vermelho me deterá. Estou preso. Até que pa. Lembro que seu relato me impressionou muito.
que o cavanhaque. Irá explodir? Irá despencar? avisto a garçonete dos uísques. Ela Agora me sinto dentro de seu conto. Só que aqui, em
Para acalmá-lo, e em má hora, pondero que é me encara e esboça um sorriso. vez de pedras, estrelas cairão. É tudo ainda mais grave.
tudo mesmo insensato, que a vida é difícil para todos “O senhor está bem?” — Recordo, então, que, no curso ginasial, um
e, por isso, nos refugiamos no mundo da lua. “A vida pergunta. “Não, não estou bem”, professor de literatura — chamado Rodrigues tam-
é uma piada, mas nada podemos fazer a respeito”, ar- admito. Pego minha terceira dose e bém, José Rodrigues, um grande professor — me
gumento. Entusiasma-se. Agora que o engasgo pas- dou um gole longo. A moça suge- aconselhou, por precaução, a me afastar da litera-
sou, me convida para uma caminhada pelo jardim. re que nos refugiemos um pouco tura. “Você é muito impressionável. Acreditará em
Sobre nós, um céu carregado de estrelas. Um fio in- na cozinha. “Lá há menos gente e todos os relatos que ler e sofrerá muito com isso. Me-
visível as sustenta. o senhor vai respirar melhor.” lhor evitar os livros.”
“Pois me entenda. Continue a olhar para o céu Diante da pia, uma mulher Sugeriu que eu cursasse uma carreira técnica, a
e entenda”, o velho insiste. “Pense no seu dia. Sim, o gorda lava pratos. Enquanto la- engenharia ou, quem sabe, a indústria, porque nelas
dia de hoje. Mais um dia sem importância, que ter- va, admira o céu através de uma eu ficaria menos exposto às fantasias. “Você já carre-
mina em uma festa ridícula.” Não deixa de ter razão. janela de serviço. Ignora-me. Vi- ga ilusões demais”, me disse. “Caso se aproxime da
Antes de encontrá-lo, eu já sentia o lodo em que pisá- ra-se, enfim, para a garçonete e literatura, cairá doente.” Vem-me, agora, a vontade
vamos. Percebia os automatismos, os rituais, as reve- comenta: “Nunca vi um céu tão de procurá-lo para rememorar os detalhes dessa con-
rências, as manias que cultivamos sem pensar e que, estrelado. Parece que as estrelas se versa. Infelizmente, ele já faleceu.
no entanto, nos tornam homens decentes. Não decen- multiplicaram”. É verdade que es- Decido dar um fim a essas fantasias e chamo
tes, mas ignóbeis. “O senhor não percebe que encena- tamos em Itaipava. Na montanha, um táxi. Ainda tento recordar o nome da aluna que
mos um teatro?” — ele insiste. “Que tudo isso é para o céu sempre parece mais próxi- escreveu o conto sobre as pedras que caem na Ter-
esquecer o grande desastre?” mo. Mas não tão próximo. ra, quando o motorista comenta: “O senhor notou
Uma garçonete nos oferece uísque. Odeio uís- “Há algo errado no céu”, que hoje as estrelas estão mais próximas?”. Só agora
que, mesmo assim aceito uma segunda dose. Eis o tea- diz, preocupada, a velha gorda. O eu o encaro pelo espelho do retrovisor. A barba ver-
tro. A moça tenta ser gentil e pergunta: “Os senhores assombro a leva a deixar um prato melha parece mais murcha, mas é ele. Desmaio.
6 | MARÇO DE 2023

entrevista
FREI BETTO
JOÃO LAET

Crônica de uma
morte anunciada
Ao narrar o drama dos índios waimiri-atroari nos anos 1970, Frei Betto descreve em
Tom vermelho do verde uma história atual, que poderia ser a dos yanomamis de hoje

LUIZ REBINSKI | CURITIBA – PR


MARÇO DE 2023 | 7

D
esde Quarup, a caudalosa e polifônica obra bre uma das nações mais atingi- por dia sofremos, através da gran-
de Antonio Callado, a opressão contra os po- das: a dos waimiri-atroari. de mídia e da publicidade, uma
vos indígenas no Brasil não era tratada de avassaladora deseducação políti-
forma tão enfática em um livro de ficção • Aliás, muitas outras histó- ca. Por isso é muito importan-
quanto em Tom vermelho do verde, o mais recente rias de massacres indígenas te que o governo Lula priorize a
romance de Frei Betto. são “desconhecidas” de gran- educação política do povo.
O tema não é novo, obviamente, mas o lança- de parte da população. Por que
mento do livro, no final de 2022, coincidiu tristemente relegamos aos indígenas uma • Sua produção literária é im-
com o drama dos yanomamis, grupo que tem sofrido nota de rodapé em nossa vida, pressionante, com mais de 70
com a falta de cuidados do Estado brasileiro e também principalmente nos dias de ho- livros publicados. Quanto de
com a exploração ilegal do garimpo em suas terras. je, em que simplesmente igno- Tom vermelho do verde seu tempo é dedicado à escri-
Mas o romance começou a ser gestado ainda ramos a existência deles? FREI BETTO ta? E como organiza as ideias
nos 1990, quando Frei Betto leu Massacre, um rela- Porque nossos materiais di- Rocco em relação aos gêneros literá-
208 págs.
to histórico escrito pelo padre Silvano Sabatini sobre dáticos folclorizaram os indígenas rios, já que tem livros de crôni-
“o extermínio de uma expedição amadora irresponsa- e jamais valorizaram suas culturas. cas, memórias, infantil, ficção e
velmente autorizada pela Funai”. “Aí me dei conta de São vistos como indolentes, im- não ficção?
que nenhum segmento da sociedade brasileira foi tão produtivos, selvagens (no sentido Sou muito disciplinado. Re-
reprimido pela ditadura quanto os povos indígenas”, de desprovidos de cultura e ética), servo 120 dias do ano só para es-
diz Frei Betto nesta entrevista ao Rascunho. “Então quando de fato são mais civiliza- crever. Não são seguidos, mas são
passei a ler, durante anos, tudo sobre uma das nações dos que nós brancos urbanos. sagrados. E sou um escritor com-
mais atingidas: a dos waimiri-atroari.” pulsivo. Não passo um dia sem es-
Trata-se de mais uma história de violência con- • Percebe-se que há um traba- crever algo.
tra os povos originários, negligenciada e ignorada pela lho minucioso de pesquisa no
sociedade brasileira: na década de 1970, a construção livro. Por que decidiu ficciona- • Um de seus livros mais co-
da BR-174 nas terras dos waimiri-atroari atinge catas- lizar a história e não optou por nhecidos, Batismo de sangue,
tróficas e imprevisíveis consequências à medida que um livro de não ficção? completou 40 anos da primei-
a floresta amazônica é arrasada e seus povos originá- Porque me encanta escrever ra publicação no ano passado.
rios são dizimados. ficção e, assim, ter mais liberdade A obra fala sobre os horrores da
No livro de Frei Betto, alguns dos momentos tanto no conteúdo quanto na es- ditadura militar nos anos 1970.
mais violentos vêm à tona quando os indígenas são tética. Foi o que Umberto Eco fez Como vê o livro hoje, num con-
Não me surpreende que
instigados a falar sobre a história de seu povo duran- em O nome da rosa e Vargas Llo- texto em que parte da popula-
te as aulas do casal de educadores Doroteia e Helvídio. sa no romance sobre Canudos, A parcela expressiva da ção pede a volta dos militares?
Os personagens foram inspirados no indigenista Egí- guerra do fim do mundo. população seja de direita. Batismo de sangue é um
dio Schwade e em sua esposa Dorothy, que forneceram Vivemos sob hegemonia documento contundente sobre
material sobre o massacre dos waimiri-atroari. • É interessante a ideia, no li- capitalista e 24 horas as atrocidades da ditadura mili-
Com mais de 70 livros publicados, Frei Betto se vro, de usar as aulas do casal de por dia sofremos, tar. Foi levado às telas de cine-
diz um escritor “muito disciplinado”. “Reservo 120 educadores Doroteia e Helví- ma pelo diretor Helvécio Ratton.
através da grande
dias do ano só para escrever.” A seguir, ele fala so- dio a indígenas para trazer à to- Ainda hoje jovens se informam
bre sua produção e por quê, mais de 500 anos após o na lembranças dos alunos sobre mídia e da publicidade, por ele do que significaram os 21
“descobrimento” do Brasil, continuamos a vilipendiar diversos assassinatos (inclusive uma avassaladora anos de obscurantismo imposto
quem chegou aqui primeiro. com napalm) nas tribos. Como deseducação política." pela ditadura.
lhe ocorreu usar esse recurso
para contar a história? • Na condição de teólogo, co-
Egídio Schwade, indigenis- mo analisa o discurso conser-
ta, foi quem me forneceu mate- vador de cristãos que, de forma
rial de primeiríssima mão sobre o contraditória, ignoram a con-
massacre dos waimiri-atroari. De- dição de penúria de milhares
dico o livro a ele e a Dorothy, sua de pessoas no país?
esposa, já falecida. É um discurso que nada
tem de cristão, apenas manipu-
• Tom vermelho do verde se co- em suas terras. Hoje, os invaso- • Em um dos trechos, um mi- • Você fez parte da equipe do la a linguagem religiosa para dar
necta de forma incrível à realida- res são os garimpeiros e os ma- litar faz o seguinte raciocínio: governo no primeiro mandato lustro ao seu ódio aos excluídos
de que vivemos hoje no Brasil ao deireiros. A questão sempre foi “Por que se confinar na caserna do presidente Lula, no come- e à naturalização da desigualda-
tratar de um fato histórico: a ma- econômica? se havia tantos cargos a serem ço dos anos 2000. Há alguma de social.
tança de um povo indígena nos Sim, o que historicamente ocupados nas estruturas da ad- chance de voltar a uma função
anos 1970 por conta da constru- predomina é a razão econômica. ministração pública?”. Décadas parecida com que já exerceu, já • Com o Brasil dividido, o que
ção de uma rodovia. Agora, ve- Mas há também razões de mero depois, foi esse o pensamento que o Brasil regrediu no com- espera do nosso futuro breve?
mos o drama dos yanomamis, preconceito étnico, como des- que dominou os militares no bate à fome? Essas diferenças podem ser di-
morrendo por falta de cuidados crevo em meu romance. Muitas governo Bolsonaro? Sou um feliz ING — Indi- luídas a médio prazo e o país
do Estado brasileiro, por conta vezes a cultura indígena foi con- Sem dúvida. Essa postura víduo Não Governamental. Mas voltar a uma certa normalidade?
da corrupção e interesses finan- siderada promíscua por mera ig- oportunista e aproveitadora pre- já disse a meu amigo Lula que O Brasil, desde a invasão
ceiros do garimpo. Como esses norância. Os colonizadores não dominou nas Forças Armadas na estou disposto a colaborar como portuguesa, colonialista, é um
dois fatos se conectam? querem entender a diversidade ditadura e no governo Bolsonaro. voluntário. país dividido. Enquanto houver
Conectam-se pela tragédia cultural e insistem em impor sua Milhares de militares tinham du- tamanha desigualdade social, ou
histórica de a chamada civiliza- visão de mundo, muitas vezes eli- plo salários, o da administração • Por sinal, o Brasil regrediu em seja, luta de classes, o país conti-
ção considerar os indígenas raça tista e segregacionista. pública e o soldo da caserna. diversas outras frentes: no meio nuará dividido.
espúria a ser extirpada de nos- ambiente, na educação, na saú-
sa sociedade. Há muitas formas • De que forma chegou ao tema • Por que parte da população de, nos índices de emprego e • Como viabilizar o mote “mais
de dizimar povos originários, se- do livro? E como foi a pesquisa ainda defende que os indígenas renda… Além disso, o gover- livros, menos armas”, propaga-
ja pelo massacre que descrevo em para escrevê-lo? não devem ter suas terras pre- no Bolsonaro incentivou a cir- do pelo presidente Lula, num
Tom vermelho do verde, seja pe- Li em 1998 o livro Massa- servadas e que precisam se in- culação de armas e a violência Brasil tão desigual e com uma
lo desamparo governamental que cre, do padre Silvano Sabatini, um tegrar à vida “moderna”? contra diversas minorias. Mas imensidão de analfabetos totais
permite o garimpo e grileiros in- relato histórico do extermínio de Por total ignorância do que ainda assim, praticamente me- e funcionais?
vadirem seus territórios, explorar uma expedição amadora irrespon- os povos originários representam tade dos brasileiros votou em Intensificando a alfabeti-
as riquezas ali encontradas e disse- savelmente autorizada pela Funai. como defensores e preservadores Bolsonaro nas últimas eleições. zação e o letramento, facilitan-
minar enfermidades. E me dei conta de que nenhum do meio ambiente e patrimônio Como analisa esse fato? do o acesso ao livro, valorizando
segmento da sociedade brasilei- cultural inestimável, dotados que Não me surpreende que mais a cultura e menos o entre-
• No livro, o start para a ma- ra foi tão reprimido pela ditadura são de uma cultura ancestral. Eles parcela expressiva da população tenimento. E reprimindo com ri-
tança do povo waimiri-atroa- quanto os povos indígenas. Então não precisam ceder ao consumis- seja de direita. Vivemos sob he- gor a necrocultura e os espaços
ri foi a construção da BR-174 passei a ler, durante anos, tudo so- mo para serem felizes. gemonia capitalista e 24 horas belicistas.
MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA

11ª
temporada

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e cobertura nas redes sociais do Rascunho.
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MARÇO DE 2023 | 9

Angústia
O AUTOR
Invisível angústia
DYONELIO MACHADO Esses elementos, suficien-
tes para dar a moldura do enre-
Nasceu em Quaraí (RS), em 1895. De
do, importam menos que o miolo

silenciosa
origem pobre, aproximou-se das letras
do relato, o dia que se passa na
trabalhando como servente num jornal.
Psiquiatra de formação, publicou
busca degradada pelo valor. No
contos e romances, como O louco enunciado, uma crescente e meio
do Cati, Endiabrados (Prêmio Jabuti invisível angústia está por tudo,
de 1981) e Os ratos, sua obra-prima. na vida daquela infeliz vítima de
Morreu em Porto Alegre, aos 89 anos. circunstâncias opressivas, brandas
O clássico Os ratos, de Dyonelio Machado, cada uma delas, devastadoras no Os ratos
DYONELIO MACHADO
ganha nova vida com certo descuido editorial conjunto, e nunca comandadas
por ele; de outro lado, algo como Todavia
192 págs.
aquela azia silenciosa vai enervan-
do o leitor, presa também ele, em
LUÍS AUGUSTO FISHER | PORTO ALEGRE – RS
seu cotidiano, de uma vida cujo
controle está igualmente longe
de sua capacidade de deliberação.
Mais de uma vez, discu-

M
tindo com alunos na faculdade,
ais do que impactar o castigam, em boa analogia com o vi surgir uma irritação viva com sive de vanguarda, como se vê na
tempo de seu nasci- enredo. (O protagonista do livro Naziazeno, uma vontade de sa- primeira edição de Os condena-
mento, a grande obra de 42 nem nome tem: é “o louco” cudir aquele pateta que se deixa dos, do vanguardista paulista Os-
conversa com o futu- e “o Cati”, sendo este o nome de manipular por tão pouco. Nessas wald de Andrade. Em que ajuda
ro, para dar testemunho de um sua localidade de origem.) O en- horas, eu tento sugerir que ali es- a esclarecer o leitor aquele juízo?)
mundo já passado ou para inda- redo de Os ratos é simples: casado tá uma forma de espelho: atire a
gar o mundo vindouro com seu e pai de criança pequena, Naziaze- primeira pedra quem de nós não Descuido editorial
próprio testemunho. Os ratos, no deve 53 mil-réis para o leiteiro, reage como ele ao lidar com suas Quanto ao mais, a edição
de Dyonelio Machado passa com que ameaça cortar o fornecimento; dívidas, com o carnê de presta- traz o texto integral, como seria de
folgas por essa prova. Lançado essa dívida o faz circular pela cida- ções, com a mesquinharia do ho- esperar, com um cuidado filológi-
em 1935, mantém interesse vivo, de (Porto Alegre) ao longo de rizonte de nosso cotidiano. co com estranhas falhas. Não fiz
permanente, ainda que discreto. um dia até finalmente al- Talvez por vício nasci- um exame total do caso, mas cito
A Todavia lançou em 2022 uma cançar o valor; na manhã do dessa mesma sala de aula, um exemplo. Na primeira página
bem-vinda reedição do clássico. seguinte, acordando, me parece que caberia, ca- do romance, lemos uma nota, as-
Ao contrário de escritores ele entreouve o leitei- da vez mais conforme passa sinada pelo editor, para a seguin-
da mesma geração que tiveram ro verter o precioso o tempo, um texto de aber- te passagem: “Um ou outro olhar
maior impacto imediato e maior líquido na vasilha; e tura ou algumas notas para de criança fuzila através as frestas
força de permanência, por conta- então ele dorme. dar conta de elementos que das cercas”. A nota diz: “Usar arti-
rem com edição de obras comple- uma vez foram nítidos mas go definido como regência da pa-
tas bem cuidadas ou por estarem agora são perfeitamente lavra através é um galicismo que
entre as leituras escolares regula- opacos. Quanto valeriam está hoje em desuso”.
res (como é o caso de um Mário hoje os 53 mil-réis da dí- Bem, é certo esse desuso.
de Andrade, de um Graciliano vida? Quem, tendo me- Fui consultar outras edições do ro-
Ramos, de um Erico Verissimo), nos de talvez 50 anos, mance, e, surpresa, todas trazem,
Dyonelio nunca contou com ve- quem é que sabe que os ali, a forma “através das frestas”, já
tores assim fortes de consagração. leiteiros daquele tem- com a preposição. Perguntei então
A obra de Dyonelio é re- po entravam pela por- a um colecionador letrado, Antô-
lativamente extensa, mas num ta dos fundos das casas nio Carlos Secchin, como estava
conjunto irregular. São vários ro- e vertiam, de um tarro, na primeira edição, e de fato lá es-
mances, um livro de contos (o vo- o tanto de leite que ca- tá mesmo “através as frestas”.
lume de sua estreia, em 1928) e da consumidor compra- Ora: se já na primeira pá-
algum ensaio; de tudo, apenas va? Que em 1930 as casas gina vem uma nota assim minu-
dois romances alcançaram leitura não tinham geladeira elétri- ciosa, que recupera a forma da
significativa — além de Os ratos, ca capaz de guardar o leite de primeira edição para falar de um
há O louco do Cati, de 1942. E um dia para o outro? problema já solucionado nas se-
nenhum dos dois se oferece com Agora, com a nova edi- guintes, seria de esperar que o li-
facilidade ao leitor que chega sem ção, não seria o caso de levar vro todo viesse crivado de outros
certa maturidade pessoal. em conta essas lacunas infor- esclarecimentos para casos análo-
O autor teve a sabedoria, mativas que o tempo cria, ofe- gos. Só que não: esta é a única e
provavelmente intuitiva, de com- recendo ao leitor que chega solitária nota ao texto, do come-
binar enredos de pouca drama- algum aporte elucidativo? Uma ço ao fim do livro. Então por que
ticidade (significativa mas nada prática editorial é dar o texto ori- ressuscitar esse problema, só este
óbvia, sem os apelos de um ro- ginal nu, sem mais, e o leitor que e não outros que existem (como a
mance histórico, ou de ação, de se esforce. A Todavia não ofere- atualização ortográfica, entre ou-
peripécia, de formação) com uma ce esclarecimentos assim, mas tros)? Faz algum sentido repor um
angulação narrativa singular. Nos reproduz, como posfácio, um problema como este, já superado
dois romances citados, a voz da ensaio de Davi Arrigucci Júnior na tradição editorial do romance?
narração se estrutura na tercei- já constante da edição da Plane- Em suma, a edição do texto
ra pessoa, mas o leitor não con- ta, de 2004. Ensaio correto, que me parece andar um pouco erran-
ta com o olhar distanciado de um oferece bons caminhos interpre- te. Só não é pior do que a primei-
ENEIDA SERRANO

narrador onisciente, daqueles que tativos, mas que nada ajuda nos ra frase da orelha, que assim diz,
entra e sai da interioridade de ca- pontos aqui mencionados. equivocadamente: “Montado
da personagem ou que se movi- (Na única nota ao seu texto, num burro, o leiteiro enfurecido
menta entre passado e presente. O o autor do posfácio cita um depoi- vai até a casa de Naziazeno Bar-
que o leitor sabe, ao ler, é quase mento de Iberê Camargo, gaú- bosa cobrar a dívida atrasada”. E
que apenas o que protagonista cho como Dyonelio, para abonar aqui retorna aquela minha de-
sabe, e nos dois casos se tra- a percepção de que a Porto Alegre manda por esclarecimentos edito-
ta de personagens de escas- dos anos 1940 “era ainda uma ci- riais sobre a época. Como eu vivi
sa capacidade de reflexão dade provinciana e conservadora” o tempo dos leiteiros que iam em
e de compreensão críti- quanto aos ideais estéticos. Verda- casa, sei perfeitamente que o lei-
ca, de mediação entre o de? Iberê faz um juízo que é, como teiro nunca montaria num burro
próximo e o distante, tudo o mais na vida, discutível; — o pobre animal estaria mas pu-
o trivial e o profundo. eu poderia lembrar que, nos mes- xando uma carroça com os tarros
No romance de 1935, em mos anos 1940, Porto Alegre via do precioso líquido, como aliás
seu raro nome o protagonista evo- o florescimento da editora Globo, se fica sabendo literalmente já na
ca uma azia, um daqueles males traduzindo deus e o mundo e pu- abertura do capítulo 2, que cita a
silenciosos que não matam, mas blicando escritores ousados, inclu- “carroça de leiteiro”.
10 | MARÇO DE 2023

alcir pécora
CONVERSA, ESCUTA

PATRIMÔNIO CULTURAL EM
A historiadora brasileira
Ana Maria Mauad, também da
UFF, trata dos cuidados com a

TEMPOS PÓS-COLONIAIS (3)


documentação fotográfica, cuja
análise consequente teria de le-
var em conta o valor atribuído
pela sociedade à imagem, bem
como a sua capacidade de engen-
drar narrativas. No caso de foto-
Ilustração: Miguel Rodrigues grafias públicas, Mauad acentua
que é preciso considerar todo o
processo de publicação, arquiva-
mento e guarda, pois, enquanto
registro de situações associadas ao
Estado, elas têm implicação na re-
definição de eventos históricos e
na sua inscrição na memória, com
ressonância no campo social. No
âmbito do Patrimônio, portanto,
as imagens não apenas recobrem
informes sobre o passado, mas
podem instaurar-se a si próprias
como monumentos, enquanto es-
forço de construção de símbolos a
ser lançados para o futuro.
Professora de História da
Arte em Coimbra, Luísa Trindade
considera, por sua vez, as caracte-
rísticas e propriedades da “imagem
desenhada” como instrumento das
áreas de Patrimônio arquitetônico
e urbanístico. Centrando-se nos
séculos 15 e 16 e nos territórios
relativos à ação portuguesa, ob-
serva que o desenho era entendi-
do como representação gráfica,
com propriedade verossímil, feita
na presença do objeto. No caso das
imagens de cidade, a imagem po-
deria tanto estar centrada na sua
materialidade física (urbs), como
na sua comunidade humana (ci-
vitas). Nos dois casos, para a auto-

P
ra, há uma eloquência própria dos
rossigo com a apresentação de Patrimó- termos parciais, cuja verossimi- O estudo seguinte é de Mi- mapas a ser considerada, na qual a
nios de influência portuguesa (Im- lhança precisava ser confrontada riam Tavares, da Universidade moldura técnica se funde à políti-
prensa da Universidade de Coimbra, com outras informações, tes- do Algarve, e ocupa uma posição co-social. Assim, quando se trata
2015), livro que serve de baliza históri- temunhos, gestos, imagens e bem original no volume já que de representação da civitas, apenas
ca para o reposicionamento dos estudos culturais vestígios arqueológicos. Eviden- acentua menos a diversidade dos Lisboa é desenhada, o que revela o
em países de língua portuguesa no âmbito dos de- ciou-se também a dimensão mo- novos olhares do que a necessida- nexo entre a ideia de cidade e a de
bates pós-culturalistas e decoloniais. numental atribuída aos próprios de de tratamento igualitário pa- centro de poder.
O segundo autor brasileiro a participar do documentos, o que Oliveira in- ra eles. Assim, após opor os filmes O arquiteto José Pessôa, da
livro é a historiadora Maria Fernanda Bicalho, da terpreta como disposição autori- de modelo hollywoodiano a uma UFF, observa que, desde o século
UFF, que trata dos novos recortes da área origina- tária de criar leituras específicas cinematografia africana divergen- 19, a arquitetura tem sido o prin-
dos dos estudos anglo-americanos a partir das dé- do passado e de impô-las aos pós- te, pensada como lugar possível cipal objeto do Patrimônio his-
cadas de 1980-90, cuja base historiográfica já não teros como universais. de poesia e, ao mesmo tempo, tórico nacional, com suas igrejas,
é a do “Estado-nação”. Ganham então relevo a his- O trabalho seguinte, de de revelação de uma história pe- palácios, castelos etc. sendo consi-
tória atlântica e a história global, com estudos de Sandra Xavier e Vera Marques riférica, mantida invisível, Tava- derados elementos privilegiados a
processos que transcendem regiões, Estados e na- Alves, ambas docentes de Coim- res constata que essa produção é fornecer identidade às nações. Por
ções. Para Bicalho, uma das consequências desse bra, também refere críticas meto- tratada como world cinema, isto isso mesmo, são o principal objeto
novo olhar foi a percepção de que as rotas impe- dológicas recentes, mas desta vez é, como se fosse etnografia e não de restauro e de ações de conserva-
riais eram, muitas vezes, controladas a partir de em relação aos trabalhos antropo- cinematografia. Mesmo visões ção. Pessôa ressalta, entretanto, que
áreas periféricas, o que afetava a noção de “Im- lógicos de campo, seja pela falta simpáticas a ela, tendem a repro- desde a Carta de Veneza, de 1964,
pério” pelo seu vínculo com famílias empresariais de polifonia dos dados, pelo par- duzir a visão da África como “pa- a noção de monumento histórico
locais. Rompia-se, assim, o modelo de descrição co questionamento de oposições raíso da etnografia”, aprisionada à mudou bastante, abrangendo tam-
historiográfica colonial baseado apenas na trans- como “nativo/ não nativo”, se- tradição. Ao fazê-lo, acabam por bém a arquitetura de prédios mais
ferência da experiência europeia. ja ainda pela falta de atenção dos negar-lhe subjetividade real, dis- modestos, urbanos e rurais. Nesse
O ensaio de Luís Filipe Oliveira, da Univer- pesquisadores para as relações de solvida em traços comunitários a novo contexto, sugere que a forma
sidade do Algarve, está também centrado em mu- poder dentro do próprio proces- ser preservados como memória mais adequada de se falar de um
danças recentes sofridas pela historiografia, mas so investigativo. Admitindo a per- à beira da extinção. Vale dizer, a Patrimônio arquitetônico comum
desta vez tendo em vista a crítica do valor instru- tinência dessas críticas, mas sem tendência predominante é a de aos países de língua portuguesa,
mental dos documentos e do monopólio da in- abrir mão das exigências de pes- não ver o cinema africano como poderia partir das considerações
vestigação científica do passado. A partir delas, os quisa quotidiana e de envolvimen- lugar de criação e de pensamen- do arquiteto brasileiro Lúcio Cos-
documentos deixaram de ser vistos como “natu- to com as comunidades estudadas, to de indivíduos independentes, ta segundo a qual, pela ampla mis-
rais”, que falavam por si mesmos, o que fez com as autoras referem o surgimento com capacidade de abandonar o tura de influência e de autonomia
que o núcleo da investigação histórica passasse de novas práticas etnográficas, lugar de objeto para se tornar su- nos edifícios coloniais, os “modos
a ser o caráter discursivo, construído, das repre- cujo propósito seria o de superar jeitos do próprio presente. Para a de ser” portugueses ali encontra-
sentações. Com isso, o historiador passou a so- oposições esquemáticas, em favor autora, isso é efeito de uma ideia dos “foram sempre brasileiros”.
frer a concorrência não apenas de antropólogos e de um olhar mais sutil para a di- condescendente da cultura afri- Trata-se, contudo, de uma fórmu-
sociólogos, mas de críticos literários, arquivistas, nâmica colonial, fazendo emergir cana, a qual, no fundo, confirma la conciliatória que, a meu ver, difi-
jornalistas etc. Ou seja, com a mudança do esta- vozes dissonantes, narrativas di- o discurso hegemônico de defesa cilmente chegaria a ser considerada
tuto dos documentos, estes deixaram de entregar vergentes, conflitos de interesse, de uma cultura que não é capaz satisfatória em termos contempo-
o mundo ao historiador, para lhe fornecer apenas políticas incompletas etc. de sobreviver sozinha. râneos. Disso, falo mais tarde.
MARÇO DE 2023 | 11

Sem sair
Na fazenda, depois de cres- e, muitas vezes, simplória. Assim,
cer, era da cidade; na cidade, a força do relato sobre o aborto
mesmo adulta, era da fazenda. não consentido será diluída por
“Uma eterna deslocada, sempre aquele excesso. (Creio que Lacer-

do lugar
na contramão”. da, observador arguto, se refere à
possibilidade de autoficção). Po-
Tom narrativo rém, a primeira pessoa onisciente
A extensa lembrança dos anos em memórias não cria autobio-
traz como tarefa louvar no cenário grafia por si só — que, na terceira
quase idílico, pai, mãe, avós, bisa- pessoa, ganharia mais intensidade.
Saudade não viaja bem, de Lu Lacerda, vós; estes personagens trazem consi- Saudade não viaja bem Correndo o risco de me re-
LU LACERDA
é um romance correto, mas sem grande go muitas sentenças morais. O leitor
terá de construir suas personalida- Record
petir ao ler tantas obras femininas
contemporâneas, lembro que a li-
investimento temático ou estilístico des através dessas sentenças — que 208 págs.
teratura feita por mulheres foi defi-
se estendem por toda a obra. nida há mais de 50 anos por Gilda
de Mello e Souza como uma cons-
MÁRCIA LÍGIA GUIDIN | SÃO PAULO – SP Cada um é responsável pela trução de “olhar míope” — que
interpretação que dá a seus proble- enxerga com precisão somente o
mas. Tanta gente ruim para morrer que está perto, incapaz de ver cla-
e que morre é o gado. (avó) ramente longe da janela. Creio que

E
Amizade e lealdade com filho algumas de nossas escritoras ainda
m interessantes páginas nha mãe brincava: Hoje é dia de não é virtude, é obrigação. (a mãe) não superaram essa miopia.
iniciais, a narradora, em virar criança grã-fina. (...) Bem ao Um gênio já disse que a vida Nesta narrativa, por exem-
primeira pessoa, des- contrário das galochinhas e das bo- só deveria ir até onde fosse a digni- plo, os olhos de tudo o que está
creve uma crua cena de tas do dia a dia, tão confortáveis, dade. (bisavó) na fazenda, nos vestidos, nos ves-
aborto forçado em Saudade não eu me via aprisionada em meus sa- — O que é ingênua, pai? tígios, na toalha da mesa remete
viaja bem, romance de estreia de patos de festa. [Ser ingênua] é doce ou amargo? a uma literatura ainda sem fôlego
Lu Lacerda. Infelizmente, não vai — Mais doce que amargo. Gente para seguir em grandes questões.
muito além: um romance femi- Histórias de boa-fé extrema é ingênua; gen- Como se fosse obrigatório, mui-
nino correto, sem grande investi- quase autônomas te que não percebe nuvens pesadas é tas autoras ainda se equilibram na
mento temático ou estilístico. Creio até que se poderia ingênua. (o pai) miudeza das descrições:
ler esta obra como duas narrati-
Eu grávida, sem poder ter o vas. A que trata do aborto carre- A filha, extremamente ape- (...) vestido de linho rosa, o
filho. Quando meu namorado foi ga, na amargura da jovem mulher, gada à mãe, relativiza seu alcoo- mais bonito que a vi usando a vida
me buscar, muito cedo ainda, me a confirmação do peso patriarcal lismo (a mãe acordava com as toda. Tinha decote quadrado, mangas
deixei levar (...) numa espécie de sobre os não apaniguados — no bochechas rosadas). E o pai, mes- muito curtinhas e um pouco armadas,
transe. (..) Minha recordação me caso, essa moça do sertão, que se mo, liderando autoridade pa- o que ficava bem em seus braços ma-
leva ao momento em que eu esta- pôs a namorar um riquinho ca- triarcal em todas as esferas (até na gros e longos. Era justo até a cintura,
va deitada, de pernas abertas, num rioca. A casa dele, de família ri- altura da barra dos vestidos), pare- e a partir dali, algumas pregas bem
lugar tão feio e tão frio. Tudo pio- ca e proeminente, “era belíssima”, ce condescender com isso. A nar- largas se abriam, indo até a altura do
rou quando o médico mandou que as pessoas usavam “roupas finíssi- radora, então, se alonga na tristeza joelho. Era esse o comprimento mais
eu abrisse ainda mais as pernas (...) mas”; nas paredes, Tarsilas e Por- infinita da mãe: talvez a perda de curto que meu pai permitia.
tinaris; e, no pescoço da mãe do um filho, talvez a frustração de vi- A AUTORA
Seria oportuno desenvol- moço, um “babador” de diaman- ver enterrada numa fazenda. Caras autoras (e não falo
ver o tema (ainda pouco tratado tes. Assim, diante da nordestina, Diferentemente do que LU LACERDA somente sobre Lu Lacerda), des-
na literatura feminina, mas re- há um herdeiro que deveria bri- afirma o editor Rodrigo Lacer- Nasceu na Bahia e vive no Rio de
crevam menos decotes e mangas,
cém-valorizado pela autoficção lhar. Nitidamente, a narradora da na orelha do romance, mes- Janeiro. É jornalista, formada pela e alonguem-se nas razões sociais
da francesa Annie Ernaux em O se vê desconcertada diante de ta- mo sob “anos e anos de silenciosa Faculdade da Cidade, em 1994. de o comprimento não passar do
acontecimento). Entretanto, os ças de cristal e tanto luxo. Cabe depuração desses temas”, não ve- Estudou literatura brasileira na Oficina joelho. Não usem um viés didá-
efeitos emocionais do aborto so- a esse namorado (a quem mais?), jo elaboração sólida neste rela- Literária Ivan Proença. Saudade não tico na cena, das mais comuns,
bre a narradora-personagem per- apavorado com a reação dos pais, to. A nostalgia rural é excessiva viaja bem é seu romance de estreia. de como preparar a cocaína —
manecem vagos porque alternados contratar, conduzir e pagar todo o que conheceu (quem mais?) pe-
com longos trechos (biográficos?), procedimento cirúrgico, que con- BRUNO RYFER las mãos do namorado rico. Tudo
que relembram sua infância rural sertará seu futuro: fica meio maniqueísta.
na Bahia: deles, emerge a figura
altiva do pai, da mãe, das avós na Ele, o também “dono da gravi- Ele tirou o pó branco de um
rotina entre o gado e a natureza. dez”, sem piedade, estava com o po- saquinho, pegou um prato, aqueceu,
A narradora, ainda sob o der nas mãos daquilo que era meu; colocou ali a droga e, depois de sepa-
efeito da sedação, passa a relem- (...) O que mais me perturbava era rá-la com um cartão de crédito, fez
brar a infância na fazenda onde se saber que eu não mandava no meu as linhas formando meu nome; cer-
criou, e, num andamento crono- corpo. (pág. 27) O aborto foi à reve- tamente aquilo para ele significava
lógico regular, estende a lembran- lia de meu desejo, mas fiz. Não que- uma homenagem.
ça à vida adolescente no Rio de ria? E por que consenti? (pág.75.)
Janeiro, aonde viera estudar. A temática feminina de li-
Não é fácil conectar a me- Ao leitor fica a impressão bertação e poder (ostensiva numa
mória aos efeitos psicológicos do de que a personagem, mesmo das epígrafes autora: Pela autono-
aborto de um filho que (talvez) narrando, subjuga-se por se sen- mia de todas as mulheres) anula-se
não se quisesse perder. Quer di- tir de fato inferior. Resigna-se (co- quando o comprimento do vesti-
zer, o leitor não encontra ecos de mo costuma acontecer com não do, o aborto forçado, o tempero
ligação temática entre a infância poderosos na sociedade “cordial” da casa, o alcoolismo e a cocaína
na roça e o aborto. Talvez seja ape- brasileira). A personagem, parece, — tudo emerge nas mãos dos ho-
nas uma questão de construção, já usará essa frustração (afinal, escre- mens. Bisavó, avó, mãe e a pró-
que os relatos se alternam. ve uma narrativa) para, de manei- pria narradora não conseguem,
O que sobressai, entretan- ra um tanto pueril, valorizar a sem levante nem rebelião, forças
to — insistente —, é a certeza de pregressa vida rural. para conduzir o próprio destino.
que, sobretudo diante das vicissi- Assim, não se trata de um Se a autora pretendeu expor
tudes da vida na cidade, a vida na romance de formação ou de em- maturidade e autoconhecimento
fazenda é sempre melhor e inspira- poderamento feminino; o leitor feminino no presente em que nar-
dora. Quando vinha o fotógrafo, a infere que nada mudou nem mu- ra, talvez não tenha sido, ainda,
narradora mostra o antagonismo: dará: um aborto compulsório é bem-sucedida. Terminamos de
apenas mais uma das violências ler a obra e nos perguntamos: se-
Eu e meus irmãos nos arru- urbanas que contrariam o lirismo rá que apenas o registro em livro
mávamos tanto que nos transfor- atávico do campo. Assim, a me- das vicissitudes do clássico patriar-
mávamos exatamente naquilo que mória vale só como conforto, não calismo faz de uma mulher uma
não éramos. Perdíamos o nosso ar será vingança nem trará poder a fortaleza? Creio que não. “A sau-
meio rústico, nossa autenticidade, quem narra — é apenas um anti- dade não viaja bem”, como disse
talvez o melhor que tínhamos. Mi- go paradoxo campo-cidade. na obra a avó de Maria Clara.
12 | MARÇO DE 2023

olyveira daemon
SIMETRIAS DISSONANTES

LIGUE OS
>>>Uma avaliação cem >ele mesmo >exigir pagamento terária >design inteligente >astro-
por cento SINCERA de um li- de direitos autorais >>>No livro logia >homeopatia e psicanálise}
vro >>>Quantos escritores real- Homo Deus >Yuval Harari fala

PONTOS (2)
mente têm a coragem de querer? de IAs acionistas trilionárias que >>>Encontrei minha fun-
>>>Quantos leitores realmente dominam o sistema financeiro ção neste mundo >encher o saco
têm a coragem de oferecer? internacional… dos cossacos >>>Torquato Neto
diria >“desafinar o coro dos con-
>>>Por conta do minicur- >>>Pretendem fazer um elo- tentes” >>>Jamais serei um Tor-
so de férias Mundo-Vertigem: de- gio literário? >Duas formas básicas quato Neto >então vou de “encher
lírios da linguagem, decidi reler >>>1. Aplaudir uma obra vaiando o saco dos cossacos” mesmo
>>>Assim falou Asas Lusco-Fusco >a insis- dois romances brasucas lançados outras obras >Por exemplo: o con-
tente voz em minha cabeça: há mais de vinte anos >Encrenca to Mandrake >de Rubem Fonse- >>>Fazendo o quê? >>>Re-
(2002), de Manoel Carlos Karam, ca >põe no chinelo tudo o que os lendo o breve romance Papéis
>>>Literatura brasileira contemporânea e Adorável criatura Frankens- epígonos já publicaram >E os epí- de Maria Dias >de Luci Collin
>muitos medianos >poucos mediúnicos tein (2003), de Ademir Assunção gonos de Rubem Fonseca sabem >>>O que é a vida de uma pes-
>>>Qual não foi minha surpre- disso >>>2. Aplaudir uma obra soa? >>>Uma linha reta contí-
>>>Umberto Eco >no ensaio Obra aberta sa ao encontrar >no final do texto sem desmerecer outras obras >Ci- nua em direção à morte? >>>Ou
>sugere que há basicamente dois tipos de escritor das orelhas dessas duas obras-pri- vilizadamente >É mais saudável uma sequência descontínua de
>>>1. O escritor que busca escrever os livros que mas fora de catálogo >minha >mais agradável… >Porém mui- eventos que podem ser rearran-
o público quer ler (literatura-artesanato) >>>2. própria assinatura… >>>O que to menos prazeroso >Vocês sabem jados ao sabor da memória alea-
O escritor que busca formar um público para demonstra que o pronome pos- >gostoso mesmo é escarnecer >Vi- tória? >>>Sendo assim, quantas
os livros que ele está escrevendo (literatura-ar- sessivo MINHA >na frase an- va a vaia, galera >Yabba dabba doo! personas-eventos aleatórias ca-
te) >>>Mas Umberto Eco não viveu o suficiente terior >não faz o menor sentido >É fogo no parquinho! bem numa pessoa-sequência des-
pra conhecer o terceiro tipo >>>3. A inteligência >>>MINHA de quem, mané?! contínua? >>>Uma só Maria Dias
artificial >que veio estragar a dança das crianças >>>Há mais de vinte anos você >>>Crítica literária é ciên- ou cinco solitárias Marias Dias?
>obrigando-as a voltar à fundamental pergunta nem existia >>>Tua memória es- cia ou pseudociência? >>> É cer- >>>Ou uma atriz Maria Dias in-
>>>O que é literatura? >>>O que é arte? >>>O tá certíssima nessa natural traição tamente ciência >mas não uma terpretando cinco papéis Marias
que é criatividade? >>>Quem escreveu aqueles tex- ciência universalista >igual a física Dias? >>>Nesse romance inven-
tos foi OUTRO >>>Alguém que >a química e a astronomia >>>É tivo e muito divertido >Luci Ma-
>>>Como saber se uma pessoa que se com- já deixou de escrever textos-de- uma ciência que sofre o peso da ria Dias Collin espalhou cenas de
porta virtuosamente é mesmo virtuosa >e não uma -orelha há muito tempo >>>Al- subjetividade do valor estético >tão cinco — ou de uma, ou de muitas
pessoa viciosa simulando uma virtude? >>>Como guém-fantasma >que você nem volúvel >filho da inconstância da outras? — personagens intrigantes
saber se uma pessoa que se comporta viciosamente chegou a conhecer em profun- História >>>O que hoje é consi- >configurando múltiplos misté-
é mesmo viciosa >e não uma pessoa virtuosa simu- didade >>>{Falando sério >espe- derado sem importância amanhã rios num jogo de esconde-escon-
lando um vício? >>>O problema das virtudes e dos ro que não haja nenhuma relação poderá ser considerado funda- de >>>Um romance fora da curva
vícios é análogo ao problema das inteligências arti- de causalidade entre aquela assi- mental >e vice-versa >>> Crítica >mas não fora de catálogo >feliz-
ficiais >>>Alan Turing nos avisou que não importa natura e o fato de os maravilho- literária é uma ciência cujas ver- mente >>>Mays uma precyosida-
o grau de sofisticação da tecnologia envolvida: ho- sos Encrenca e Adorável criatura dades (sempre provisórias) po- de da muy essencyal & dysparatada
je ou amanhã >jamais poderemos afirmar que de- Frankenstein já estarem fora de dem virar dogmas >e geralmente byblioteka do LunaLaby [Labora-
terminada máquina é inteligente >>>Tudo o que catálogo >>>Mesmo assim >seu viram >como acontece na filosofia töryo de Lyteratura Lunätyka]
poderemos afirmar >por meio do Teste de Turing eu fosse vocês >pensaria duas ve- e na religião >>>Tomados todos
>é que determinada máquina exibe um compor- zes antes de me convidarem pra os cuidados >crítica literária cer- >>>Um livro espanto-
tamento inteligente >>>Penso que o mesmo va- escrever um texto de orelhas} tamente é ciência >>>{Exceto pa- so nos põe no centro do univer-
le pras pessoas >>>A menos que desenvolvamos a ra o doutor Sheldon Lee Cooper so >>>Planetas >estrelas >galáxias
habilidade da telepatia {sonho com isso há déca- >>>Quero ver o que vai >prêmio Nobel de física >que não distantes >durante a leitura tudo
das} >em momento algum jamais podemos afir- acontecer quando o ChatGPT vê muita diferença entre crítica li- gira ao nosso redor
mar que determinada pessoa é virtuosa ou viciosa
>>>Tudo o que podemos afirmar é que determi-
nada pessoa exibe um comportamento virtuoso ou
vicioso >>>É óbvio que essa conclusão atinge for-
temente os textos literários >pobrezinhos >>>Os
textos literários são expressões de um autor >uma
forma de comportamento simbólico >>>Muitos
leitores incompetentes adoram determinar o cará-
ter nobre ou repulsivo de um autor >analisando as Ilustração: Aline Daka
ficções e os poemas desse autor >>>E obviamente
cometem os equívocos mais bizarros >>>Pessoas
adoram simular virtude nas redes sociais e tam-
bém >no caso dos escritores >nos livros que pu-
blicam >>>No jogo social nada impede que um
escritor misógino >homofóbico >racista >fascis-
ta >imperialista {ou tudo isso} publique ficções e
poemas politicamente corretíssimos >>>A pági-
na do Word e as livrarias aceitam tudo >até mes-
mo o oportunismo lucrativo >>>Se a proverbial
“coragem de desagradar” dos modernistas não faz
mais sucesso nem paga boleto >então >na arrisca-
da busca por elogios e dobrões de ouro >praticar
a fingida “coragem de agradar” parece ser uma es-
tratégia mais eficiente >certo?

>>>Comigo >trabalho acadêmico >se não ti-


ver sido escrito pelo ChatGPT >eu nem folheio

>>>Em breve >com o avanço da Inteligência


Artificial >todo escritor se transformará no Amigo
do Escritor >>>Explico >na hora do chope o Ami-
go do Escritor sempre aparece com uma “ideia ge-
nial” >por exemplo >pra um romance ou uma saga
em cinco volumes >e passa uma hora fornecendo
detalhes >tentando convencer o escritor a escrever
a tal história >com o argumento óbvio de que “nós
dois vamos ficar ricos, meu chapa”
MARÇO DE 2023 | 13

Um conciso
DIVULGAÇÃO

vulcão
Nos breves poemas de Genealogia
das mulas, estão as opressões
que combatemos: do machismo,
do racismo, do elitismo

ANDRÉ ARGOLO | ATIBAIA – SP

O
Google existe pra gen- contrário, é exigente e proporciona
te que não sabe o que é uma leitura de potencial transfor-
uma mula. Antigamen- mador o tempo todo. “Um certo
te enciclopédias davam modo de ver”, não é isso?
conta. Outras vezes pesquisei e Estão nos textos as opressões
soube, mas esqueço. Isso é co- que combatemos, todas, do ma-
A AUTORA
mum entre as coisas com as quais chismo, do racismo, do elitismo, Outra: este exemplo, além
não lido sempre. Não reconhece- postos de maneira inaugural, e es- MARÍLIA KOSBY de mais uma mostra da tal con-
ria uma mula, nem que acordasse sa é a característica que, para este cisão que me admira, revela que
É doutora em antropologia social pela
e a encontrasse tomando café na resenhista, define o que se pode a poeta é implacável consigo pró-
Universidade Federal do Rio Grande
cozinha, um dia (“bom dia, quem apontar como boa poesia. É mais do Sul. Autora de Os baobás do fim
pria, uma indicação de que não
é você?” — pergunta que ouviria do que o gosto-não-gosto, mas do mundo (Novitas, 2011) e Mugido
simplesmente aponta o mun-
de volta ou antes). Essa ignorância uma característica mais pro cien- [ou diários de uma doula], (Garupa, do “errado” como se estivesse fo-
ou burrice me foi salva pelo Goo- tífico, pro fato. Um traço, uma 2017), livro finalista do Jabuti 2018. ra dele: “Fazer um livro/ esganar
gle, que mostrou explicações da busca de dizer o mundo do mo- Segundo seu lattes, é professora algumas árvores com/ as próprias
mula. Mas antes de tudo fui sal- do mais próprio e, portanto, no- na Universidade Federal do Pampa mãos”. Vou fabricar plaquinhas e
vo pela poesia, que me provocou vo, se a gente parte do princípio e em seu percurso acadêmico pregar isto na porta de cada casa
a necessidade de saber do que não que cada pessoa, cada ser, é abso- desenvolveu pesquisas ligadas às editorial e na testa de cada autor e
me surpreende na cozinha, nem lutamente única e infinita. culturas afrodescendentes no Brasil. autora desse mundo.
vive no jardim aqui de casa. “Tombou uma árvore/ so- Nasceu em Arroio Grande (RS).
Mulas são animais híbridos, bre a estrada atrás de mim/ muitas A coleção
a filha da égua com o jumento ou voltas do mundo atrás”. Há de se A Peirópolis nos mandou
da jumenta com o cavalo, que se escrever muito verso na vida para além do livro pedido, Genealo-
acasalam de um modo geralmente alcançar alguns resultados assim, gia das mulas, a coleção toda da
forçado pelo humano. Onde bro- a concisão imensa de um signi- qual faz parte. Foi gentil, mas leio
ta poesia disso? Da violência dessa ficado tão largo. E simples, não? isso com a intenção da própria cria-
coisa, justamente. E da transfor- Nenhum palavrão nessa estrofe ção dessa série de livros, exclusiva-
mação, sempre. inicial do sexto poema do livro. mente de autoras contemporâneas,
A poeta Marília Kosby usou As mulas entram aqui e ali, identidade visual bem marcante,
como epígrafes das sete partes do mas os poemas não giram direta- coordenada pela também poeta e
livro Genealogia das mulas tre- mente em torno desses animais. importante pensadora brasileira
chos de um texto do folclorista, Os temas são variados. Há ver- Ana Elisa Ribeiro (cronista deste
especializado na cultura gaúcha, sos com combinações de pala- Rascunho). É preciso, por honesti-
Luiz Carlos Barbosa Lessa — ou- vras como “civilização furreca” dade, não esconder que sou muito
tra ignorância da qual o Google e “admoestação alfabetizadora”, fã dela, das suas produções acadê-
me salvou. Esse texto, Receita para ou seja, o hibridismo de registros micas e literárias, no mínimo.
fazer mulas, é duro à beça. Revela, da língua. E no todo, o sentido Há de não se entender na-
não sei dizer se naturalizada ou cri- da violência imposta pelo siste- Genealogia das mulas da do mercado editorial para não
ticamente, a violência do processo ma sentadaço no ouro, no poder MARÍLIA KOSBY perceber que há uma coragem ad-
de criação desses animais híbridos. nuclear e na propriedade. Mulas, Peirópolis mirável da Peirópolis em rodar mil
104 págs.
Tomei nessa leitura o hibri- historicamente abusadas no tra- exemplares de cada um dos oito tí-
dismo como uma das chaves de balho pesado, impedidas de pro- tulos que fazem parte da coleção
leitura dos poemas de Kosby. criar, de criar. Mulas e burros, que Biblioteca Madrinha Lua, inspirada
a gente usa pra xingar. na poeta Henriqueta Lisboa. É li-
Potencial transformador Os poemas não são gran- vro pra caramba, pra armazenar, dis-
Na forma e no conteúdo, des, mas se expandem pelo o que a tribuir, necessariamente vender pra
os poemas trazem versos e estro- poeta deseja exprimir e comunicar poder viver e publicar outros livros.
fes que ora criam imagens e jeitos também. Mas o que me salta mais Marília Kosby está ao la-
de dizer o mundo mais oníricos e fortemente é sua concisão, que TRECHO do, na coleção, de Mariana Ianelli
não usuais, ora metem dedos em emerge como vulcões em estrofes. Genealogia das mulas (cronista do Rascunho), Adriane
feridas, denunciam, desabafam de Não é a regra do livro, nem Garcia, Fernanda Bastos, Aman-
forma mais direta, como também por ser um dos poucos poemas da Ribeiro, Regina Azevedo, Lí-
é característico da poesia mais pu- com título nem por ser curtíssi- Já me quebrei toda ria Porto e Lubi Prates. É mais um
blicada e recitada na atualidade. mo: dois versos. Mas... “cólera/ os dois braços de uma vez espaço importante no meio edito-
Em nenhum sentido, a poeta abre a água pode acabar/ com tudo”. e a cara por consequência rial brasileiro dedicado à escrita das
mão da criação de ritmo dos ver- A concisão, mesmo quando num mulheres, como têm feito o selo
as mãos fraturadas empurrando
sos e da escolha cuidadosa das pa- poema grande que empilha ver- Auroras, a Primavera Editorial, a
lavras, para que isso aconteça. Não sos ou estrofes de ampla signifi- o chão em vão Absurtos, entre algumas outras ca-
entendo nada de mulas. Nem de cação compactada, é o grande quebrei a cara sas, citando também a livraria de-
poesia. Quem entende de poesia, lance da poesia como gênero: faz dos colegas e os cascos no chão dicada à autoria feminina, a Gato
afinal, se poesia não é para se en- o entender e o sentir se fundirem, Sem Rabo, em São Paulo. Tudo
pedrento de minas
tender? Mas sei o suficiente para implodirem e explodirem ao mes- parte de um movimento de cons-
intuir que isso que ela faz não é fá- mo tempo, não há química e física me esfolei no ouro toda trução & desconstrução, até que as
cil, não é gratuito, sem querer. Pelo que explique em fórmula. trago quebrado um pulmão injustiças sociais sejam ruínas.
14 | MARÇO DE 2023

O som enérgico
to tanto da biografia quanto de
suas memórias.
A busca pelo que contar e
de que maneira contar é norteada

da ausência
por um desejo quase infantil de
proteção e acalento. Lucy quer o
carinho da mãe ausente e encon-
trar, em meio à sua pesquisa, algo
que a torne tão especial quanto a
música, ainda que no fundo saiba
Em Um álbum para Lady Laet, de José Luiz Passos, Um álbum para Lady Laet que para Lady Laet nada se com-
JOSÉ LUIZ PASSOS
filha escreve biografia sobre mãe que mal conheceu Alfaguara
para à música.
Não por acaso, a constru-
128 págs.
ção de José Luiz Passos coloca a
música em evidência na narra-
BRUNO INÁCIO | UBERLÂNDIA – MG
tiva das mais diferentes formas.
Além das letras, das gravações e
dos festivais já citados, os solos
de guitarra aparecem como ele-

A
FERNANDA FIACOMINI mentos capazes de transmitir
TRECHO
criatividade e as extra- desde a doçura até a fúria. Nessa
vagâncias de músicos, Um álbum para Lady Laet mesma condição, lugares e obje-
sobretudo os dos anos tos ganham personalidade e fun-
1980, se mantêm como Segui calada diante do hall ções próprias, como o túmulo de
uma rica fonte para páginas de li- Marylin Monroe e o famoso le-
vros, tanto os biográficos quanto abafado, fixada no olho mágico treiro de Hollywood.
os ficcionais. As tramas movidas a que só me lembrava o Brasil. E por falar em personagens,
álcool, drogas e ataques de estre- Ele tinha sido minha primeira dentre os que aparecem ao longo
lismo têm um espaço fixo, pratica- visita, justo Saboia, a me do livro, os mais interessantes —
mente incontestável, em livrarias e além de Lucy e Lady Laet, é claro
bancas de revista. estrear o novo arranjo, vazando — são Saboia e Pablo. O primei-
Se mesmo os artistas do cli- pela fresta a imagem ao mesmo ro, o ex-empresário da cantora, é
chê “minha vida é um livro aber- tempo espremida e maçante da repleto de contradições: em al-
to” despertam tanta curiosidade, minha “subida” na vida. guns momentos, soa protetor e
o que esperar de uma cantora de empático, enquanto em outros
sucesso da qual pouco se sabe a parece ambicioso, frio e distan-
respeito? Essa é a primeira das te, como se a sua única preocu-
muitas perguntas propostas por pação fosse (e talvez seja) o livro
Um álbum para Lady Laet, de pronto. Não lida bem com nega-
José Luiz Passos. tivas, mas sabe como utilizar pa-
A trama tem como protago- lavras carinhosas e presentes para
nista Lucineide (também chama- obter o que deseja.
da de Lucy), uma brasileira que Já Pablo, provavelmente,
vive em Los Angeles, nos Estados é o que tem melhor desenvolvi-
Unidos, e é filha de Lady Laet, do dia. Aposta que ela é tua guia” mento ao longo da trama, à ex-
cantora símbolo da contracultu- não servem apenas para estabele- ceção das protagonistas. Tem
ra brasileira dos anos 80. cer uma relação entre a artista e o embates interessantes com Saboia
Lucy tem pelo caminho a que acabou de ser narrado, mas e um papel essencial nas transfor-
difícil tarefa de escrever uma bio- também como um meio criativo e mações vivenciadas por Lucy ao
grafia sobre a sua mãe, mulher eficiente de apresentar os anseios, longo do romance.
com quem pouco conviveu e de as obsessões e o estado de espírito
quem quase não sabe a respeito. A da cantora em cada momento de Ilustrações
ideia partiu de Saboia, ex-empre- sua carreira e de sua vida pessoal. Outro ponto que chama a
sário de Lady Laet e um dos ami- Também é a partir do olhar atenção no livro são as ilustrações
gos mais próximos de Lucy. mais atento para essas letras que feitas pelo próprio autor e colo-
Já na premissa está um dos Lucy conhece e compreende um cadas no início de cada capítu-
muitos acertos do autor: apresen- pouco mais sobre aquela mulher lo. Em geral, fazem referência a
tar uma biógrafa que pouco sabe que se estabeleceu como ícone elementos presentes na narrativa,
a respeito da biografada. A situa- da contracultura, mas não como sem cair no óbvio. Não são sim-
ção inusitada faz com que os fa- mãe amorosa e presente. Assim, ples versões ilustradas daquilo que
tos sobre Lady Laet cheguem fica possível perceber a dedicação pouco antes foi colocado em pa-
devagar, capítulo a capítulo, can- de Lucy à biografia como uma es- lavras, mas sim convites a novas
ção a canção, numa atmosfera pécie de acerto de contas com o perspectivas e à observação de as-
que se aproxima da de um docu- seu passado e com a sua relação pectos subjetivos dessa história
mentário. É aqui que o autor abre com Lady Laet. tão enérgica e convidativa.
espaço para o ensaio e dá voz a As imagens quase sempre
memórias tão convincentes, que Não-pertencimento focadas em detalhes sugerem um
vez ou outra é possível se esque- Lucy, uma brasileira nos paralelo com Lady Laet, persona-
cer que Lady Laet é, na verdade, Estados Unidos, se vê como es- gem que se mostra pouco a pou-
uma personagem fictícia. trangeira em muitos sentidos. Es- co, no mesmo ritmo em que Lucy
Muito disso também se de- tá deslocada, insegura e pouco à consegue avançar na biografia e
ve aos elementos introduzidos vontade. Num primeiro momen- pensar a respeito da própria vida.
O AUTOR
ao longo da narrativa, como de- to, ainda se dá ao trabalho de fin- Assim, com capítulos cur-
talhes sobre gravações e festivais, JOSÉ LUIZ PASSOS gir que está satisfeita com o pouco tos e movimentos certeiros, José
menções sutis a Gilberto Gil, Tim que sabe a respeito da mãe. Mas Luiz Passos constrói uma narra-
É autor de cinco
Maia, Bob Dylan, Beatles e Rol- como péssima fingidora que é, tiva em que passado e presente
romances e vencedor
ling Stones e trechos de entrevistas do Grande Prêmio
não convence ninguém. ocupam o mesmo espaço tem-
da própria Lady Laet e do guitar- Portugal Telecom
Dentre os muitos símbolos poral, na busca por uma história
rista Mão de Gato. de Literatura, atual da rebeldia de Lady Laet há um desconhecida e um afeto nega-
As canções escritas e inter- Oceanos, com O que ganha bastante destaque na do. Um álbum para Lady Laet
pretadas pela cantora também sonâmbulo amador. história: uma foto em que a can- é sobre música, contracultura e
aparecem diversas vezes e desem- Também foi finalista dos tora aparece estirada no colo de os anos 1980, mas, sobretudo,
penham uma importante função prêmios Jabuti e São quatro homens. A imagem pro- um convite para acompanhar
narrativa. Trechos como “A músi- Paulo, com O marechal de voca em Lucy grande desconfor- uma estrangeira de si mesma
ca barata me visita. E me conduz. costas. Vive entre Recife, to e desencadeia uma resistência na tentativa de compreender o
Para um pobre nirvana à minha Austin e Los Angeles. ao lado festeiro da mãe, como se passado e repensar possibilida-
imagem” e “Aposta na tristeza to- a filha quisesse retirar esse aspec- des para o futuro.
MARÇO DE 2023 | 15

Luto e (re)
nascimento
Romance de estreia de Silvana Tavano é escrito com muita clareza, O último sábado de julho
sem excessos, de modo direto (sem rodeios), mas também poético amanhece quieto
SILVANA TAVANO
Autêntica
126 págs.
ANA CRISTINA BRAGA MARTES | SÃO PAULO – SP

PAULO VITALE

Restaurar a vida
Para quem quiser conhecer
o luto como um fenômeno psica-
nalítico, a leitura de Luto e me-
lancolia, de Freud, em paralelo
com O último sábado de julho
amanhece quieto, cai como uma
luva para acompanhar cada etapa
do processo de perda do objeto A AUTORA
amado, elaboração e ressignifica-
ção da perda, processo em que o SILVANA TAVANO
luto deixa de ser passivo para ser Nasceu em São Paulo (SP), em 1957.
ativo. Elaborar o luto equivale a É escritora e jornalista, formada
restaurar a vida no sentido cotidia- pela Escola de Comunicações e
no, cognitivo e afetivo. Enfrentar Artes da USP, com pós-graduação
o luto é lidar com a perda se re- em Formação de Escritores pelo
construindo a partir dele. Instituto Superior Vera Cruz. É autora
Além de tradutora, Beatriz de diversos livros infantis e juvenis,
também escreve. Escrever é tentar entre eles Creuza em crise – quatro
compreender a morte de Cristia- histórias de uma bruxa atrapalhada;
Como começa? e Psssssssssssssiu!,
no, registrar cada uma das vezes
indicado ao Jabuti, em 2013, e
em que planejou contar a ele so-
premiado com o João de Barro de
bre sua gravidez, de lidar com Literatura para Crianças. Alguns de
pessoas e relações difíceis e, so- seus títulos foram publicados na
bretudo, buscar a si mesma. Ela Argentina, México, Coreia, Japão,
escreve fragmentos da vida em Itália, Alemanha, Suécia e Turquia. O
forma de poemas. Por isso, o livro último sábado de julho amanhece
tem um narrador em terceira pes- quieto é seu romance de estreia.
soa, mas os poemas são escritos

B
em primeira pessoa. Os capítulos
eatriz engravida e es- balho. A diferença às vezes atra- breves com parágrafos longos tra-
pera o momento certo palha, mas não impede o amor. zem os diálogos incrustrados na
para compartilhar sua Com a morte do marido, res- narrativa, sem marcação e sem
enorme alegria com o ta o apoio dos amigos, da mãe, verbos dicendi, o que funciona
marido. Mas o tempo se acelera do pai. Amigos com os quais se muito bem para dar uma voz ín-
diante da morte e atravessa a vida dá bem, mas também se indis- tima ao narrador em terceira pes-
do casal deixando tudo ao revés. põe; a mãe com quem nunca te- soa, que tende a ser mais distante.
Beatriz não pôde contar, o pai do ve uma boa relação — marcada Nos meses de gestação, os-
seu filho morreu sem saber. Grá- por ressentimentos e ausências; cilando entre a elaboração do lu-
vida e viúva, ela recapitula consi- e um pai quase idolatrado, o que to e a não aceitação, Beatriz se
go mesma todas as vezes em que a impede de compreender a de- movimenta entre a vida e a mor-
planejou ter dito a ele: estou grá- cisão da sua mãe pela separação. te até poder receber seu filho e
vida, para sentir o abraço e a ale- Nenhuma relação é simples, nem recuperar a própria voz: “A cabe-
gria plena que viria em seguida. de mão única. A reaproximação ça de Beatriz escorrega pelo len-
Isso ela imaginou durante os me- da mãe ocorre paralelamente ao çol branco (...) Dalí vê surgirem TRECHO

ses de gravidez e, possivelmente, seu afastamento da melhor ami- palavras quase-aqui-ele-já-encai- O último sábado de julho
prosseguiu sua vida imaginando, ga. Uns vêm, outros vão. xado (...) e se entrega aos sons”. amanhece quieto
porque é assim que a mente lida A morte trágica do mari- O livro é escrito com muita
com a incompletude. Luto é tran- do deixa um rastro interminável clareza, sem excessos, de modo di-
Recém-nascido, o sol acende
sição, e O último sábado de ju- de perguntas (por quê?, como se- reto (sem rodeios), mas também
lho amanhece quieto, romance ria se ele soubesse?). Inicialmen- poético. Há trechos em espanhol, a janela e abre os olhos de
de estreia de Silvana Tavano, ter- te, Beatriz desenvolve um quadro língua paterna de Beatriz que, no Beatriz. O último sábado de
mina com o nascimento do bebê semicatatônico. Emudecida, ela livro, soa melodiosamente. No que julho amanhece quieto, são
trazendo a promessa de restaura- apenas ouve, evasiva, as pessoas pesem os saltos da marcação tem-
6h40, ela está sozinha na
ção de uma perda incalculável. falando em sua volta: você pre- poral, e de as memórias serem in-
Beatriz é uma mulher de cisa elaborar o luto. O que ela tercaladas com relatos no presente, cama de casal. Minutos depois
classe média, tradutora, recém consegue, de fato, é rememorar, em nenhum momento o leitor se se perguntará: aonde ele foi?
viúva de um médico (Cristia- vivenciar internamente o mo- perde, nem se desprende da leitu- Mas antes de chamar por ele,
no). O casal tem hábitos, valo- mento em que conheceu o mari- ra. Ao contrário, ele se deixa levar
antes de pegar o celular para
res e padrões de consumo da sua do, a importância que a medicina pelo fluxo da prosa e do verso, pe-
classe (se deita numa banhei- tinha na vida dele e como ela o lo ritmo sonoro na escolha das pa- ver as horas, antes de sentir
ra para relaxar), que passa pela admirava — uma admiração que lavras, pela velocidade trágica do o lençol incômodo sobre o
descrição de ambientes e comi- imaginava ser para sempre por- luto e, ao mesmo tempo, por um corpo quente, antes de tudo,
das (sabe preparar uma salada que a única coisa que realmente tipo de esperança que, não aber-
grávida, ela sussurra, e a
de queijos), viagens ao exterior. ela quer, no momento da perda, tamente declarada ao longo do li-
Mas o universo de Beatriz são é “alimentar a parte de Cristiano vro, se faz presente no momento lembrança a desperta com a
os livros e, o do marido, é o tra- que agora vive dentro dela”. em que Beatriz se torna mãe. mesma alegria da descoberta.
16 | MARÇO DE 2023

wilberth salgueiro estreito com os poemas, em sua maioria com le-


tra cursiva e toda minúscula, reforçando o espírito
SOB A PELE DAS PALAVRAS escolar dos poemas em suporte de “livrinho casei-
ro”, sem lombada e com dois grampos apenas, en-

BARRA PESADA,
quanto explora com intensidade os efeitos visuais,
provável herança da poesia concreta. Ao longo das
páginas, outras referências e alusões vão se justa-

DE ANDRÉ BUENO
pondo. Marx, Mautner, Bressane, Polari, Torquato
se dão as mãos nessas “líricas idílicas juvenis”, “líri-
ca de pedaços”, entre utopias e revoluções, medos e
melancolias, com linguagem coloquial e cortes ci-
nematográficos à maneira de Oswald: “mas cumé
qui podi a noite/ a festa poemas tão prontos/ olhos
dengues tequilas/ cheiros beijos tragadas/ alta/ altís-
em 1968 Durante um ano, de no- sima madrugada/ mas cumé qui podi a vida (...)”.
eu não sabia nada vembro de 1968 a novembro de Um fragmentado calidoscópio vai se colando nos
de história 1969, a TV Tupi exibiu a famosa versos: “depois da bossa nova/ chanchadas arena
política novela Beto Rockfeller, de grande cinema novo/ cpc poesia concreta/ ligas campone-
socialismo audiência e com algumas inova- sas golpe militar/ greves festivais passeatas/ oficina
guerrilha ções no formato folhetinesco. O experiências/ contraculturas/ diários prisões hos-
tortura rapaz de 14 anos, como boa par- pícios/ torturas outros fatos/ atos/ da ordem bur-
te da população brasileira, acom- guesa/ na qual reconheço meu rosto/ e o teu (...)”.
em 1968 panhava a trama com pitadas de Em paralelo a festas e corpos em trânsito, a vida nos
eu tinha 14 anos comédia, enquanto o governo se- anos de chumbo misturava música, cinema, teatro,
estava diante do vídeo questrava, torturava, matava os literatura — Arena, CPC, Oficina. Movimentos so-
vendo beto rockfeller tais “subversivos comunistas”, ciais e populares passam a ser combatidos: golpe,
cheio de saudade com apoio inclusive de grande prisões, torturas: “falava-se em porrada/ mortes”,
seco pra chorar parte dessa população, que dela- se diz em Barra pesada.
tava cidadãos suspeitos de atua- A principal objeção que se faz à poesia margi-
de 64 a 68 rem contra o regime que, afinal, nal é notadamente a supremacia do relaxo em relação
sem saber de nada defendia a Tradição, a Família, a ao capricho (Leminski). Questão de valor e, portan-
dava pra sentir Propriedade. (Semelhanças com o to, de critérios. Acontece, porém, que esta é uma
a barra no ar: governo de ultradireita que se en- poética do medo, da emoção, rápida, performática,
sumiu um professor cerrou em dezembro de 2022 não como uma blitz, que quer captar o instante, deixan-
marido da professora são coincidências.) do a “estética” em segundo plano. O cerebralismo,
primária O próprio autor do poema, o antilirismo, o internacionalismo e o pragmatismo
anos mais tarde, em 1984, em típicos de um Cabral ou do Concretismo ficam em
depois parceria com o colega Fred Góes, suspenso. A primazia, nos anos 1970, é a necessida-
sumiu o professor publica um volume da popularís- de imperiosa de registrar a memória do tempo —
de matemática sima, entre universitários sobretu- memória da resistência, dirá o historiador José Luiz
delatado pelo professor do, coleção Primeiros passos, com o Werneck da Silva em A deformação da história ou
de física título O que é geração beat, em para não esquecer (1985):
no fim que traçam um panorama do con- a muitas memórias coletivas foi imposto o silên-
sumiram os meninos texto histórico de então: cio, como a dos intelectuais punidos pela ditadura. A
do grêmio ginasial outras memórias coletivas foi imposto o esquecimen-
falava-se em porrada Se depois de [19]68 houve to, como a dos militantes de esquerda, da guerra re-
mortes um forte refluxo nos Estados Uni- volucionária. Muitas vidas humanas também foram
e a palavra subversivo dos e na Europa, no Brasil houve esquecidas ou até mesmo silenciadas definitivamente
comunista uma tragédia. Uma parte da juven- pela ditadura, dentre os que “fizeram vivendo” as me-
soava mais perigosa tude da classe média aderiu ao mi- mórias da resistência.
que qualquer tabu lagre, botou plástico de universidade Walter Benjamin, em conhecido trecho das
zona proibida nos carros, e foi curtir sambão joia conhecidas teses Sobre o conceito de história, diz: “a
das fantasias em bares da moda. Outra parte des- verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O
infantis e adolescis bundou, mas um desbunde diferen- passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja
te, porque os nossos desbundados não irreversivelmente, no momento em que é reconheci-
era, como sei agora, conseguiram se politizar, não conse- do”. Nos poemas de Brasa Brasil e em particular em
a realidade guiram avançar, mas no geral vive- Barra pesada, André Bueno ilustra, em versos, esse fi-
uma barra pesada ram suas utopias, envolvendo sexo, losofema, ao fixar (guardar na memória, no poema)
impossível de retocar drogas e rockn’roll, pelo menos, co- o passado e reconhecê-lo (tomando conhecimento
mo uma forma de inconformismo efetivo dele) no momento possível. O adulto de 25
Esse poema de André Bueno pertence ao li- diante da caretice vigente. Enfim, anos, em 1979, recorda o adolescente de 14 anos,
vro Brasa Brasil, de 1979. Em cinco estrofes, com uma terceira parte da juventude da que vai tendo contato, em meio a suas “fantasias/ in-
nítida marcação temporal, e versos curtos, diretos, classe média, vinda direto do mo- fantis e adolescis”, com a barra pesada da ditadura,
objetivos, referenciais, desde o título Barra pesa- vimento estudantil, uniu-se a vete- até 1968, e depois, no fim e agora. O leve humor de
da, se faz um retrato de época da ditadura militar ranos militantes da esquerda para Beto Rockfeller e das fantasias convivia com o pesa-
no Brasil. O título do livro, aliás, também con- tentar o caminho da luta armada díssimo horror da delação, do sequestro, da porrada,
firma que o olhar do então jovem poeta está bem contra a ditadura militar. da tortura, das mortes.
antenado com seu entorno: se o termo “brasa” se No início de seu clássico livro Retrato de épo-
associa ao significado de Brasil, considerando a A voz lírica no poema, ten- ca — poesia marginal, anos 70 (1981), Carlos Al-
cor vermelha da madeira pau-brasil (étimo lírico tando decifrar o que acontecia à berto Messeder Pereira afirma: “Acredito, portanto,
e controverso), de modo similar lembra o contex- volta, ganha respaldo e explicação que o ‘retrato de época’ a que se refere o título deste
to incandescente, perigoso, bélico do regime au- nas reflexões ensaísticas do pro- trabalho diz respeito tanto ao objeto analisado quan-
toritário. Um país em brasas. fessor de literatura e teoria lite- to ao pesquisador que realizou a pesquisa”. O poema
Se o leitor toma por baliza a data da publi- rária da UFRJ, com doutorado de André Bueno tem, para usar terminologia da pro-
cação, quando elabora o poema o jovem — com sobre Torquato Neto e conheci- sa ficcional, um narrador memorialista, que repensa
14 anos em 1968 — agora em 1979 tem 25 anos. do por sua predileção pelo ma- o adolescente que foi, entre ingênuo e desinforma-
Adolescente, “não sabia nada/ de história/ políti- terialismo histórico-dialético, do, e o adulto que é, ou era no momento, militante
ca/ socialismo/ guerrilha/ tortura”, possivelmente como se verifica em suas aulas e e esclarecido. Ao se pensar como sujeito histórico no
por conta da censura e do controle de informações em textos, feito Formas da crise mundo, e seu processo de conscientização e de trans-
(“a palavra subversivo/ comunista/ soava mais pe- — estudos de literatura, cultu- formação, o poeta diz a um tempo de si mesmo, de
rigosa”). Dos 11 aos 14 anos, do golpe de 1964 ra e sociedade (2002). sua geração e de todos que, mesmo diante de barras
ao endurecimento geral com a decretação do AI- O poema e o livro como bem pesadas, conseguem se retocar. Para recordar gí-
5 em 13 de dezembro de 1968, o estudante, ain- um todo são exemplos do “poe- ria antiga, saber retocar-se é uma brasa, mora? E, ven-
da “sem saber de nada”, ia percebendo “a barra no mão” da poesia marginal, con- do o Brasil de outrora e de agora, nada impossível.
ar”, com o desaparecimento sistemático de profes- forme expressão de Cacaso. Em
sores e alunos “do grêmio ginasial”, alunos em ge- Brasa Brasil, os desenhos de Ci- Em memória e honra de todas as vítimas da di-
ral com militância política. ça Fittipaldi dialogam de modo tadura. Sem anistia!
MARÇO DE 2023 | 17

PATRÍCIA CANOLA

• Qual escritor — vivo ou mor-

inquérito to — gostaria de convidar para


um café?
Eita. Hilda Hilst acho que
RITA CARELLI
daria um café memorável. De pre-
ferência na casa dela, rodeada de

O CORAÇÃO
cães, gatos e livros.

• O que é um bom leitor?

NA BANDEJA
Aquele que sente prazer
lendo.

• O que te dá medo?
Não ter coragem de escrever
tudo o que ainda desejo. Gente pas-

E
sando fome. A ganância humana.
m 2022, a atriz e escri- • Que leitura é imprescindível no
tora Rita Carelli venceu seu dia a dia? • O que te faz feliz?
o Prêmio São Paulo de Atualmente? Bula de remédio fi- Banho de cachoeira. Banho
Literatura com Terra- toterápico pra virose de criança! de mar. Beijo na boca. O riso das
preta, seu romance de estreia. O minhas filhas.
livro narra a história de uma ado- • Se pudesse recomendar um livro
lescente que deixa a vida de estu- ao presidente Lula, qual seria? • Qual dúvida ou certeza guiam
dante num colégio de classe média Não vou mentir dizendo que seu trabalho?
em São Paulo para morar em uma não adoraria ver Lula lendo Terrapre- Não se trata de uma certeza,
aldeia indígena do Alto Xingu. ta. Ficaria feliz também se ele lesse os mas o Prêmio São Paulo de Lite-
O prêmio foi essencial para últimos livros que organizei de Ailton ratura atribuído ao meu primei-
que a autora reafirmasse sua cren- Krenak: A vida não é útil e Futuro ro romance, Terrapreta, (mesmo
ça na literatura que produz. “Foi ancestral, mas acho que ele anda bem sabendo como as circunstâncias
fundamental para eu acreditar que servido de livros, pois achei as dicas de dos prêmios também são muito
o que estou escrevendo faz sentido leitura que ele deu no fim de ano ex- relativas e não podem funcionar
também para outras pessoas”, diz. celentes: Torto arado, de Itamar Viei- como norte para a produção de
Sua trajetória na escrita vem ra Junior, e Um defeito de cor, de Ana ninguém), foi fundamental para
da infância, quando ser escritora Maria Gonçalves — duas narrativas eu acreditar que o que estou es-
já era um desejo. “Lembro de ver- fundamentais sobre o Brasil. crevendo faz sentido também para
balizar isso pela primeira vez aos outras pessoas. Que vale o esfor-
oito anos de idade em resposta a • Quais são as circunstâncias ideais • Qual o maior inimigo de um escritor? ço de trazer à tona as histórias que
uma daquelas fatídicas perguntas para escrever? O medo. Em várias de suas fantasias: medo ando carregando dentro.
de adulto: ‘O que você quer ser Uma noite bem dormida, poder de não ser bom o suficiente, medo de não conse-
quando crescer?’”, relembra. tomar café à vontade, uma casa vazia, guir chegar no final do que está escrevendo, me- • Qual a sua maior preocupa-
Além de escritora e atriz, Ri- não ter uma obra no vizinho, um re- do de olhar pra dentro de si mesmo, medo do que ção ao escrever?
ta também é ilustradora e diretora cém-nascido e nem ameaças de golpe irá encontrar no abismo da escrita, medo de mos- Encontrar as palavras para
de cinema e de teatro. Ela nasceu de estado a cada semana no país. En- trar para os outros o que encontrou ali... Deixo a descrever o cerne das coisas que
em São Paulo, em 1984, e estudou fim, tudo o que me falta nesse momen- lista para ser completada pelos que nos leem e que estou tentando compartilhar: sen-
Letras na Universidade Federal de to, mas escrever também se alimenta de também escrevem. timentos, imagens, sentidos. Co-
Pernambuco e teatro na Escola In- tudo isso, existe em fricção com a vida mo trabalho muito com a matéria
ternacional de Teatro Jacques Le- e não nas “circunstâncias ideais”. De • O que mais lhe incomoda no meio literário? memória, tenho frequentemente
coq, em Paris. qualquer forma, duas ou três delas se- Não ser respondido por uma editora. É claro a sensação de tentar pegar peixes
riam bem-vindas. que os editores têm suas próprias questões, excesso com as mãos. Encontrar as pala-
• Quando se deu conta de que de originais, etc. Mas quando enviamos um manus- vras que me parecem certas é cap-
queria ser escritora? • Quais são as circunstâncias ideais crito para apreciação de alguém, é como se colocás- turar seu brilho sem sufocá-las.
Me lembro de verbali- de leitura? semos nosso coração em uma bandeja. O silêncio é
zar isso pela primeira vez aos oi- Imagino que uma praia deserta doloroso demais para quem se expõe dessa maneira. • A literatura tem alguma obri-
to anos de idade em resposta a daquelas de desenho, com uma rede gação?
uma daquelas fatídicas perguntas entre dois coqueiros. • Um autor em quem se deveria prestar mais Acho que qualquer ação
de adulto: “O que você quer ser atenção. nossa no mundo pede uma pos-
quando crescer?”. Por essa épo- • O que considera um dia de traba- Mais do que um autor, eu ficaria de olho no tura ética. Com os objetos de ins-
ca comecei a fazer meus primei- lho produtivo? movimento dos escritores indígenas. Tem muita piração de nosso trabalho, com
ros livros: inventava as histórias, A redação de duas laudas bem coisa bonita ainda para nascer dessa seara, muitas as relações que cultivamos pa-
escrevia, ilustrava e encadernava. escritas, daquelas inspiradas, mas tam- histórias para serem contadas. ra o nascimento dele, com o tipo
É verdade que eu também queria bém bem pesadas e medidas, consisten- de imaginário que estamos culti-
ser arqueóloga, astronauta, bom- tes com o todo e que a gente sente que • Um livro imprescindível e um descartável. vando... Sou dessas pessoas que
beiro e cantora... Mas o bom de vão figurar no resultado final. E, às ve- Descartável eu não sei, devo ter esquecido por acreditam que a vida é mais im-
ser escritora — e atriz (minhas zes, a redação de um único parágrafo, falta de espaço do HD, mas imprescindível é difí- portante do que a arte. Acho que a
duas profissões) — é que nelas a mas dos bonzudos, que nos tiram de cil citar um só. Dessa vez fico com Uma aprendiza- arte pode muito, mas não se pode
gente pode ser tudo isso! um impasse, desbloqueiam um mo- gem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, fazer qualquer coisa por ela.
mento improdutivo, nos apontam o ru- que movimentou águas profundas dentro de mim.
• Quais são suas manias e ob- mo da trama ou resolvem com maestria • Qual o limite da ficção?
sessões literárias? uma cena que estava sem contornos. A • Que defeito é capaz de destruir ou compro- Acho que o limite da ficção
Ler. O tempo todo, sempre quantidade de linhas escritas em um dia meter um livro? está próximo desse lugar que eu
que possível, tudo o que me cai produtivo de trabalho varia muito, mas Subestimar os leitores. Um mal começo. Pro- tateei acima. Quando a gente faz
nas mãos. Tenho tentado acom- a sensação é sempre parecida: desperta lixidade. reverência à vida, o limite da fic-
panhar cada vez mais a produção o tesão de seguir escrevendo. ção se expande.
nacional contemporânea, espe- • Que assunto nunca entraria em sua literatura?
cialmente da literatura feita por • O que lhe dá mais prazer no pro- Hummm... Acho que dificilmente escreveria • Se um ET aparecesse na sua
mulheres, mas a oferta — feliz- cesso de escrita? sobre extraterrestres. Mas quem sabe? frente e pedisse “leve-me ao seu
mente — está cada vez mais in- Ah, o prazer! Esse ingrediente líder”, a quem você o levaria?
tensa e rica e não está dando para fundamental pra fazer esse troço tão di- • Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou Hahahahaha, olha os ETs
ficar totalmente em dia. Tinha fícil, lento, dessocializante e não remu- inspiração? aí! Levaria o cabeçudo ao meu
mania de ler três ou quatro livros nerado que é escrever um romance. Cito Do dedão do meu pé direito. Ele curiosa- tio, ao meu txai, Ailton Krenak.
simultaneamente: um romance, alguns cumes de ocitocina: descobrir mente se empina quando eu caminho. Achei que Íamos gostar de ouvir as histórias
um livro de poesia, um de contos coisas que eu já sabia, mas que não sabia era um bom complemento de descrição de um per- do visitante ao pé do fogo do seu
e um de não ficcional, mas esse ainda que sabia; ser levada pela história sonagem mesmo sem saber o que isso quer dizer. quintal. E quem sabe eu fizesse
hábito anda meio em desuso com para algum lugar imprevisto; me afei- um livro sobre elas depois?
duas filhas pequenas, pois a cabeça çoar a um personagem como se ele exis- • Quando a inspiração não vem…
já não dá conta de desembaralhar tisse fora das páginas. Pensando bem, Escrever mesmo assim. Revisar, reler o que • O que você espera da eterni-
todos os fios e o tempo de leitura essa lista também poderia se aplicar, em foi escrito, corrigir. É preciso colocar a cabeça no dade?
anda mais limitado. outra escala, aos prazeres da leitura. coração do texto para que ela volte no dia seguinte. Nada.
18 | MARÇO DE 2023

josé castilho
LEITURAS COMPARTILHADAS

OS IMPRESCINDÍVEIS
as capas, inclusive nos indicando
profissionais para realizar os tra-
balhos editoriais. Cada visita era
um aprendizado e um incentivo a
continuar no ramo editorial. Ini-

A
ciante, sentia-me parte.
notícia da decretação de falência da livra- Ilustração: Tereza Yamashita Tive a mesma acolhida,
ria Cultura, aparentemente encerrando do ponto de vista editorial e de
um longo processo judicial que levantou mercado, quando nos anos ini-
contínua polêmica no setor editorial e li- ciais da Editora Unesp, da qual
vreiro, com diferentes leituras das razões que leva- fui editor-executivo desde 1988 e
ram à perda de mais uma livraria de referência num presidente de 1993 a 2015, pro-
país que é muito pobre neste quesito, me fez pen- curei Alfredo Weiszflog da icôni-
sar novamente no difícil cenário em que se move ca Melhoramentos. Alfredo era o
este setor há muitos anos. principal nome internacional de
Como estou desde o final dos anos 1970 nossa indústria editorial naque-
no mundo editorial, é inevitável não invocar o le período e interessava ao proje-
incontável contingente de homens e mulheres to da Unesp abrir relações com o
envolvidos com o fazer do livro. Os chamo de im- mundo do livro na América La-
prescindíveis e eles e elas fazem parte da minha lon- tina e no âmbito da Feira do Li-
ga estrada pelo mundo do livro e da leitura. Pelo vro de Frankfurt. Ele jamais se
espaço dessa coluna, deixarei de comentar vários recusou a compartilhar comigo
segmentos que fazem parte dessa cadeia que pro- informações, orientações e apre-
duz conhecimento vital, lúdico e científico. Não sentações de grandes editoras e de
comentarei os outros imprescindíveis: autores, bi- executivos internacionais do se-
bliotecários, mediadores de leitura, professores, e tor, inclusive junto à referencial
me fixarei na cadeia produtiva e distributiva. Escola do Livro de Frankfurt,
Ao fazê-lo, quero tocar em tema muito deba- inspiração para a Universidade
tido nas entrelinhas e em pequenos círculos, mas do Livro da Fundação Editora
pouco utilizado em textos. Dentre as tantas causas Unesp, que criei em 1999.
que determinam o atual mal-estar do mercado edi- Comecei a vida editorial em
torial, há algumas que vão além das óbvias questões um tempo que todos os editores
econômicas ou das sempre interrompidas políti- eram leitores e, como início e final
cas públicas que afetam o setor. Pouco se olha pa- dessa corrente de letras, incorpo-
ra dentro, para os valores éticos, como a empatia e ravam no seu negócio largas fatias
o respeito ao próximo, ou a algumas características de boa vontade de compartilhar
comportamentais, como a visão sistêmica do negó- o que sabiam. Talvez o compar-
cio na sua totalidade, a proatividade do coletivo, a tilhamento seja comum em ou-
escuta das divergências confluindo a um diálogo tros meios empresariais, mas nas
com base na crítica que é base para o crescimento editoras e livrarias havia uma cer-
saudável. Sem nunca deixar de ter sido um negó- ta abertura para se entender que o
cio empresarial, envolvendo competição, busca de sucesso de seu negócio estaria vin-
lucratividade e melhor produtividade, “fazer o li- culado ao sucesso do negócio do
vro”, pelo menos na minha experiência pessoal dos outro, porque o objeto comum,
primeiros vinte anos, foi algo que envolveu algu- que é o livro, sendo também mer-
mas polegadas a mais de valores e comportamentos cadoria, transcende este conceito
que entendiam o coletivo como algo fundamental por ser uma das partes mais ex-
para o conjunto da cadeia e para o desenvolvimen- pressivas da cultura e do conheci-
to de cada uma das empresas. mento. Entender essa dualidade é
O mundo que comentarei já está distan- deter o pensamento sistêmico, ou
te no tempo, mas é importante relembrá-lo, res- holístico, que deveria ser pré re-
gatar algumas formas de agir se quisermos um quisito para as funções do setor.
mercado editorial e livreiro regulado por e entre Mais do que generosidade,
seus integrantes, o que requer uma ética e um fator que também compunha es-
comportamento mais condizentes ao bem que sas personalidades que citei, pen-
se produz, o livro. Um desses valores éticos, a “ponto”. Não me recordo de ne- so que havia um espírito da época
Muito precisa ser feito para um crescimen- empatia com os pares, e que ex- nhum vendedor tentar empurrar em que se exercia o pensamento
to mais sustentável, com maior cumplicidade e pressava um comportamento dife- compras excessivas que pudes- sistêmico, explícito no comporta-
compartilhamento que vá além de interesses lo- rente do praticado hoje (e afirmo sem comprometer o nosso frágil mento das lideranças em compar-
calizados. A discrepância de ações comerciais, por isso de maneira geral, salvo as ex- negócio. Faziam o oposto, e me tilhar, orientar e preservar a cadeia
exemplo, entre os descontos praticados para gran- ceções), pensava o coletivo ao recordo, por exemplo, das visi- no seu todo. Não era um mun-
des redes de venda de livros e para pequenos e mé- tratar do particular, a ajuda mú- tas semanais do sr. Wilson (des- do de anjos e querubins, mas vejo
dios livreiros é algo avassalador para a manutenção tua não era apenas retórica, mas culpe se confundo o nome), da aquele período como um grande
de um negócio com sustentabilidade. Não é pos- operativa. Encontrei este agir em Perspectiva, que metodicamente pacto não escrito de um setor que
sível que o mesmo livro seja vendido com 30% de muitas das editoras quando come- analisava os livros da editora nas se preservava e aos seus.
desconto para uns e com 60% ou mais para outros. cei essa longa jornada na Livraria e nossas prateleiras, nos ajudava a É certo que o cenário hoje é
Da mesma forma, somente um mercado excessiva- Editora Kairós em São Paulo. Pe- perceber as tendências, recolhia o outro, fruto da revolução digital
mente desregulado no seu agir pode abrir espaço quena livraria, núcleo de artistas e que não havia saído em determi- e da mudança de paradigmas nos
para dezenas de feiras de livros venderem lança- autores, ponto de poetas e exposi- nado tempo ou nos sugeria expor negócios desde que os conselhos
mentos ou catálogos inteiros com 50% ao público, ções, a Kairós era dirigida por três melhor o que analisava ser o mais editoriais se mudaram para a an-
evidentemente comprometendo o ciclo distributi- jovens neófitos no ramo. promissor para o nosso negócio. tessala da Bolsa de Valores, con-
vo regular que são as livrarias, incluindo as virtuais. Como as principais edito- Quando iniciamos a ati- forme escreveu Peter Weidhaas,
É preciso deixar de atribuir as mazelas do se- ras nos tratavam comercialmen- vidade editorial da Kairós e em- ex-diretor da Feira de Frankfurt.
tor apenas às geralmente deletérias políticas eco- te na atividade de livreiros? Com bora navegando no mesmo tipo Mas o objeto da indústria edi-
nômicas governamentais, que realmente afetam muito cuidado e a responsabili- de catálogo de uma das mais re- torial e livreira é o mesmo. Sua
a indústria e o comércio de um bem tão pouco dade de quem sabe, ou seja, nos ferenciais editoras da época, a natureza requer, como o meio
prestigiado no Brasil. Mas é preciso também re- orientando do que era essencial Brasiliense, seu presidente e edi- ambiente, um diálogo onde se en-
fletir sobre o próprio fazer editorial e livreiro na ter nas prateleiras, do que ven- tor, Caio Graco Prado, jamais me xergue mais a floresta que a árvore
sua dinâmica coletiva e reconstruir alguns pro- dia mais, do necessário cuidado negou uma conversa de orienta- isoladamente. Para isso é preciso
cedimentos que aparentemente são triviais, mas com a quantidade do estoque, e ção, chegando a detalhes do que resgatar valores e comportamen-
que no cotidiano da sustentabilidade dos negó- da análise cotidiana de quais os era mais promissor editar naque- tos que os verdadeiros editores
cios do conjunto da cadeia produtiva e distributi- gêneros literários ou de ensaios le período e de como editar, os e livreiros saberão identificar na
va são fundamentais. que venderiam melhor naquele cuidados, os projetos gráficos, contemporaneidade.
LANÇAMENTO
COMPRE
NO SITE DA
EDITORA

“Rogério Pereira é da família dos escritores que estão sempre


remexendo suas próprias feridas, que, singulares em sua
manifestação, transformam-se, por conta da linguagem, em
experiências comuns a um enorme contingente de pessoas.
Pereira nos fornece um texto único, profundo, lírico,
atemporal, que nos arrebata e comove, sem nunca ser piegas.”

Luiz Ruffato – organizador

“Carregamos todos
várias marcas. Tenho
uma cicatriz enorme
na perna direita. O pai
ostenta algumas pelo
corpo — um pedaço
de lenha a voar do
machado, um coice de
um cavalo vingativo. A
mãe tinha um corte que
se estendia pela sola do
pé esquerdo. Meu irmão
já despencou algumas
vezes do telhado onde
tenta ganhar a vida.
Mas não há com que
se preocupar: nenhuma
cicatriz resiste à morte.”
20 | MARÇO DE 2023

noemi jaffe
GARUPA

O MANTO DE SÍLABAS

N
o livro A literatura e os deuses, Roberto Ilustração: Conde Baltazar
Calasso fala de um deus indiano revesti-
do com um manto feito de sílabas. Es-
se manto, segundo a mitologia indiana,
protege o mundo; se ele se desfizer, o mundo acaba.
Temos falado sobre o risco de o mundo se
extinguir em função do aquecimento global, dos
desastres ambientais e das guerras. Mas não temos
falado sobre o manto de sílabas que está se desfa-
zendo diante dos nossos olhos; um deus que está
ficando nu, enquanto o mundo vai ficando despro-
tegido de sílabas até se destruir.
Por que esse manto de sílabas protegeria o
mundo?
Porque as sílabas são o ritmo do mundo, de-
las é que são feitas as palavras, as canções e os poe-
mas, elas são a primeira expressão, a produção da
linguagem (nosso casco, concha, nossa tinta e ni-
nho) em estado de nascimento e, aos poucos, tam-
bém em estado de maturação, quando as sílabas se
reúnem para formar signos — as palavras — e suas
combinações rítmicas — frases, poemas, preces e
ritos. Das sílabas — de início balbucios fisiológicos
de fome, medo e desejo, imitação dos ruídos da na-
tureza, da cidade e das palavras dos adultos — nas-
ce a percepção da vida como linguagem e ritmo.
Ritmo do sono, da escuridão e da luz, de quando
as coisas começam e terminam, do ontem, hoje e
amanhã, das pausas, das viagens, ritmo da morte
— tudo acompanhado de palavras, marcadoras rít-
micas. São as palavras que nos permitem, além de
acompanhar os ritmos, inventar outros; são essas
formas rítmicas que permitem aos seres inventar
encontros e relações e inventar a si mesmos como
indivíduos e sociedade. Se os humanos criaram as
palavras, as palavras criaram os humanos. E preci-
sam continuar nos criando.
O ritmo e as palavras são nossos guardiães,
são eles que revestem o planeta, como uma cama-
da de ozônio sobre o solo, com uma película ver-
bal. Enquanto houver poemas, preces e canções
numa língua, ela sobreviverá e renascerá, porque
eles são o eixo em torno do qual giram as outras forma essas palavras eram pro- Mas elas estão se extinguindo.
linguagens, como a ciência, a informação, o co- nunciadas e por que são as úni- Os discursos inumeráveis estão em processos
mércio e a economia. Cada pequena comunidade, cas de que ela se lembrava. Essas mais lentos ou mais rápidos de desritmização e as sí-
por menor que seja e por mais dificuldades que te- três palavras, afinal, definem a labas estão perdendo sua razão de ser. Em primeiro
nha, tem seus poemas, canções e preces. Cada ser máquina nazista: “rápido, aten- lugar, a voz: a voz escrita (emojis, figurinhas, abre-
quer criar a língua, precisa ter suas palavras secre- ção, chamada”). viações, ícones de todos os tipos) vem substituindo
tas e sagradas, cada ser tem sua magia encantató- Todos nossos relaciona- a voz falada e passamos a nos relacionar com o ou-
ria e encantada, senão não existe mais. No nó de mentos são ritmadamente mar- tro cada vez menos pela voz, mas pelo texto. É certo
cada descoberta científica está uma pergunta poé- cados por palavras: são elas que que o texto escrito tem ritmos, inúmeros também,
tica, absurda e sem explicação. Nas pesquisas hu- despertam lembranças, seduzem mas despossuídos do som, que modula, nuança e per-
manistas, sempre há (ou deve haver) uma metáfora ou repelem, revelam o que quere- sonifica o ritmo. A voz online, em que cada pessoa
inicial, uma dúvida de base ficcional e fantasiosa. mos esconder, criam empatia ou obrigatoriamente fala uma de cada vez, também está
Se não houver, não se pode confiar nela. antipatia. Os ritmos verbais são os homogeneizando e centralizando os ritmos coletivos,
Na psicanálise, a reencenação do trauma pela gestos da fala e os gestos são os rit- os diz-que-diz, as alturas e tons, a balbúrdia, as tosses,
palavra é o caminho para a cura. O lapso revelador, mos do corpo. Na representação os pigarros, as simultaneidades dos grupos. A rapidez
o chiste ou o ato falho são como poemas insurgen- verbal da vida, na tragédia, na co- e pragmatismo das relações virtuais (não tão condi-
tes; o lado oculto aparecendo do nada. Sessões de te- média, feiras públicas, circos, nos cionadas a imprevistos) simplifica as orações, as pa-
rapia são ritmos e condicionam a linguagem a eles; anfiteatros, em palcos montados lavras e as emoções, descoladas das expressões faciais
o tempo de uma sessão dura uma hora e setenta com palha ou pedaços de madei- e do olhar. Essa simplificação, é claro, diminui as sí-
anos e esses setenta anos precisam caber nessa hora. ra, nas cavernas e diante de bolas labas e, portanto, os ritmos. A ausência de simulta-
Nos templos de todos os credos cada reza de cristal são os ritmos das pala- neidade na virtualidade impede e dispensa os ritmos
tem seu tempo, precisa ser recitada com seus rit- vras que anunciam a sorte ou o desconhecidos e imprevistos.
mos, porque os ritmos das palavras imitam os rit- azar, a continuidade ou o fim, a A perda da prosódia, da musicalidade, do som
mos do cosmos e das divindades. Sem as palavras manutenção ou a revolução. Não da voz, a perda dos rituais coletivos, da poesia falada
inseridas em ritmos não se embala o mundo e não consigo pensar em um relaciona- e escrita, das canções, das histórias, dos circos, das
se transcende. mento amoroso que não tenha festas é a perda de um certo mundo, em que os rit-
Em disputas, manifestações, guerras e re- por trás uma rima, uma canção, mos — os conhecidos e os desconhecidos, repetidos
voluções, é o ritmo da linguagem que define o um filme, qualquer ritmo poético ou improvisados, necessários ou casuais — imitam
bem ou o mal. Basta escutar as falas de um dita- e nem em um grande movimen- o cosmos e definem encontros. Nas sílabas, enquan-
dor ou de um democrata para distinguir os rit- to político, da extrema esquerda to as consoantes obstruem a respiração, a vogal a
mos. (Minha mãe só lembrava de três palavras à extrema direita. estende, combinando as limitações humanas com as-
pronunciadas pelos soldados nazistas, durante sua É por isso que são as sílabas pirações ao infinito e o outro; sem elas, ficamos con-
estada em um campo de concentração: “Schnell”, que sustentam o mundo e é do finados à mesmice e ao eu e o manto de sílabas do
“Achtung”, “Celapple” e sei exatamente de que manto de Deus que elas jorram. deus indiano se desfaz de desgosto.
MARÇO DE 2023 | 21

rascunho recomenda
Depois de publicar em 2019 o livro de contos O grito da O idioma que usamos todos os dias
borboleta, o jornalista e escritor curitibano João Lucas Dusi no Brasil é explicado pelo professor,
estreia na narrativa longa com o picaresco O diabo na rua. Os pesquisador e escritor Caetano W.
personagens freaks e as referências à cultura pop e à literatura, Galindo em Latim em pó. Tradutor
presentes nos contos, também marcam este romance. Após ganhar de autores como James Joyce e Thomas
um importante prêmio literário de Portugal, Pingo decide que Pynchon, Galindo reconstitui a história
é hora de abandonar as ilusões da sobriedade e abraçar, uma vez de nosso idioma e fala sobre os desvios,
mais, o caos. A prostituta transexual Melissa, fã de Guimarães muitas vezes considerados “errados”,
Rosa e Shakespeare, e as lembranças de Maria, ex-namorada do que formam e modificam a língua desde
protagonista, povoam as páginas da narrativa. A prosa frenética, sua criação. Começando pela Europa Latim em pó
calcada na intertextualidade e com fortes marcas de oralidade, O diabo na rua e pelo latim, com especial atenção a CAETANO W. GALINDO
espelha o interior de um personagem insuportavelmente cheio de JOÃO LUCAS DUSI Roma, passando pela Reconquista e pelo Companhia das Letras
si. De alguém que, traumatizado, busca redenção nos piores lugares Rua do Sabão colonialismo na África e na América 232 págs.
176 págs.
possíveis — com destaque para as ricas descrições de cenários Latina, o autor traça um panorama amplo
curitibanos e algumas muitas incursões por lugares oníricos. e compreensível da nossa língua materna.

DIVULGAÇÃO

Instalada em um cemitério de
Parelheiros, na região periférica rural
a 50 km do centro do município de
São Paulo, a Biblioteca Comunitária
Caminhos da Leitura tem sua história
contada por Bel Santos Mayer no livro
Parelheiros, Idas e Vi(n)das — Ler,
viajar e mover-se com uma biblioteca
comunitária. Com pouco mais de
uma década de existência, a biblioteca Parelheiros, idas
vem deixando suas marcas não só na e vi(n)das
comunidade local como também em BEL SANTOS MAYER
toda a cidade. As mais imediatas estão Solisluna e Emília
relacionadas ao acesso à leitura literária 320 págs.
daqueles que passaram a frequentá-la.

Para onde atrai o azul é um


romance sobre as contradições dos
relacionamentos amorosos e dos laços
familiares. Narrado de forma lírica,
o livro de estreia de Jessica Cardin
descreve a paixão entre um professor de
literatura, Heitor, e sua aluna Heloise —
e como a relação avança para armadilhas
psicológicas, intelectuais e emocionais.
A protagonista e narradora descobre que Para onde atrai o azul
o impulso amoroso, o comportamento
JESSICA CARDIN
autodestrutivo e o sentimento de Quelônio
inadequação são frente e verso da página 184 págs.
de um mesmo livro.

Nos contos de Desprazeres


existenciais em colapso, Bruno Inácio
(colaborador do Rascunho) propõe
uma reflexão sobre a iminência da
morte. As 25 narrativas apresentam
personagens em meio a conflitos
sociais ou psicológicos, por meio
Notícia de um naufrágio Depois será tarde
de uma linguagem crua e ácida em
LUIZ ANDRIOLI LUCIANA ANNUNZIATA
que o escritor dá vida a situações
Prosa Nova Reformatório
173 págs. 120 págs.
de violências cotidianas. Inácio é Desprazeres
autor também dos livros Gula, ira e existenciais em colapso
todo o resto (2015) e Devaneios e BRUNO INÁCIO
Autor de coletâneas de crônicas e contos, além Nos 15 contos que compõem Depois alucinações (2017), publicados de Patuá
de livros de não ficção, Luiz Andrioli estreia será tarde, Luciana Annunziata capta o forma independente. 72 págs.
no romance com Notícia de um naufrágio. instante em que a vida cotidiana, acossada
A história acompanha a ascensão e queda de pela entropia implacável, descamba “pelas
um jornalista em busca da própria narrativa, pirambeiras da morte”. Como em A estação A história da arte é um assunto que
reescrevendo sua história em um contexto das moscas, onde a narradora, abandonada sempre fascinou a escritora Elvira Vigna.
turbulento e perigoso. A saga do protagonista aos poucos pelo marido, que prefere a Junto com a filha, Carolina Vigna, a
acontece enquanto ele vive um momento companhia de literatura russa, passa os dias consagrada autora brasileira, morta em
familiar delicado. Seu pai, comerciante de trepada numa mangueira. Já em Algo sobre 2017, frequentava cursos e exposições. O
um bairro tradicional de Curitiba, enfrenta as plantas, o protagonista só se aproxima resultado desse passeio conjunto por artistas
sérios problemas de saúde. Ao recuperar do pai pela ausência. O instante em que e obras está em Uma história da arte. O
suas memórias de infância em manuscritos a morte se intromete na vida é flagrado livro reúne textos que abordam desde os
e objetos esquecidos na casa onde cresceu, o em espaços confinados, do congelador desenhos rupestres até as manifestações
jornalista descobre segredos que aproximam à fazenda, passando por apartamentos e contemporâneas. “Esse foi um livro que Uma história da arte
a figura paterna das aventuras de Robinson condomínios. Aqui a morte se sente tanto começou de uma maneira muito gostosa CAROLINA VIGNA
Crusoé, livro que o acompanha desde as nos embates psicológicos quanto nos sociais e nossa. Nós duas íamos sempre juntas a & ELVIRA VIGNA
primeiras leituras. O romance foi premiado — da incomunicabilidade entre indivíduos exposições, cursos, etc. Foi dificílimo, para Cepe
no concurso Outras Palavras, promovido ao choque entre classes. E, embora paire mim, terminar. Minha mãe ficou doente 340 págs.
em 2020 pela Secretaria de Estado da por estas narrativas uma ameaça de terror, a no meio do livro”, conta Carolina, que é
Comunicação Social e da Cultura do Paraná. escrita é embalada em ironia. colaboradora do Rascunho.
22 | MARÇO DE 2023

MINISTÉRIO
DO TURISMO
APRESENTA

Edney
LEO AVERSA

Silvestre
R
einterpretar fatos históricos ficcionalmente
por meio de dramas pessoais. Essa tem sido
a “missão” de Edney Silvestre desde que es-
treou como escritor, em 2009, com o sur-
preendente romance Se eu fechar os olhos agora.
O livro, que entrelaça fatos históricos e polí-
ticos a uma trama policial, venceu os prêmios Jabu-
ti e São Paulo de Literatura. O que ajudou Edney a
construir uma carreira sólida na literatura brasileira.
“Não teria tido a carreira que venho tendo, não
teria a confiança para seguir em frente se eu não ti-
vesse ganhado esses prêmios”, diz o autor, que foi o
quarto convidado da 11ª temporada do Paiol Lite-
rário, realizado pelo Rascunho com o patrocínio do
Itaú por meio da Lei Rouanet.
Nascido em Valença, no interior do Rio de Ja-
neiro, o jornalista e escritor foi uma criança tímida e
“desajustada”, que encontrou nos livros uma espécie
de redenção. A estreia na literatura, no entanto, foi
adiada para depois dos 50 anos por conta de uma su-
posta “falta de voz literária”, identificada por um edi-
tor que leu um dos originais de Edney.
Análise que se mostrou equivocada a cada no-
vo livro do escritor. Autor de 11 livros, entre eles os
romances A felicidade é fácil e Vidas provisórias e
do livro de narrativas breves Pequenas vinganças,
suas obras foram publicadas na Inglaterra, França,
Sérvia, Holanda, Itália e Portugal.
Correspondente internacional da Globo, Ed-
ney cobriu os atentados terroristas de 11 de Setem-
bro, além de ter realizado reportagens no Iraque,
Cuba, Vale da Morte (EUA) e América Central. À
frente do programa Globonews Literatura, entre-
vistou, entre outros escritores, José Saramago, Nadi-
ne Gordimer, Mario Vargas Llosa, Orhan Pamuk,
Adélia Prado, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribei-
ro e Salman Rushdie.

• Ficção e História • Ampliar a E o prédio ficava em uma praça onde também mora- pessoas como eu. Aí fui juntando,
Sempre acreditei que ler é realidade va a bibliotecária. Então a gente batia na porta da casa tanto o prazer de ler Jack London
um grande prazer. Mas é muito Quem, da minha geração, da bibliotecária, pedia a chave emprestada e pegava o quanto o de ler Thomas Mann.
mais que isso. Na literatura de fic- pegou tanto a ditadura militar que bem entendesse, deixava anotado e devolvia os li-
ção, vejo retratos históricos e de quanto o governo Collor, foi pro- vros depois. O que aconteceu, é que, lendo desordena- • Um garoto
época que são mais acessíveis e fundamente transformado e teve damente, eu lia por prazer. E eram livros de aventuras. diferente
mais amplos que aqueles que en- sua vida virada de cabeça para bai- Eu achava que era o úni-
contramos nos livros de História. xo por conta desses acontecimen- • Jack London co jovem infeliz, desajustado, na-
Rapidinho, citando clássicos: Vic- tos. Sempre acreditei que essa era Então cheguei ao Jack London sem saber quem quela cidade onde tudo parecia
tor Hugo, você sabe muito mais uma das tarefas importantes para era o Jack London. Não fazia ideia de quem ele era. Ape- se encaixar. E ao ler Tonio Krö-
sobre aquele período da França — eu fazer em minha literatura. Você nas comecei a ler Caninos brancos. Aí descobri um ger, descobri que havia reflexo do
o século 19 — através desse au- abre as portas para o jogo íntimo americano chamado Ernest Hemingway. E fiquei en- mundo nas pessoas, nas páginas
tor, do que por meio dos livros de — como Balzac fazia. E ao mesmo cantado, mas também não tinha ideia de quem ele era. dos livros. Antes eu lia apenas por
História. Você sabe muito mais do tempo, você faz um painel sobre É que não estudávamos autores estrangeiros. Estudá- ler mesmo. A minha irmã, sim, na
Brasil em uma certa época, através o que estava acontecendo em vol- vamos mais Rachel de Queiroz, Machado de Assis, etc. época já lia Tolstói. Eu nem che-
de Graciliano Ramos. Você tam- ta daqueles personagens. gava perto. Mas comecei a ler e
bém sabe muito mais sobre o Bra- • Thomas Mann a escrever porque era um garoto
sil dos coronéis do cacau por meio • Prazer Lá pelos 14 anos, eu era um rapaz magrelo, desa- raquítico, doente, que não con-
da literatura de Jorge Amado. Por- Quando comecei minha jeitado e desajustado. Estava perdido naquela cidade, que seguia caminhar direito, então
que você junta a história pessoal caminhada na literatura, lia por é linda, mas ainda assim eu estava perdido. Lá todo mun- ficava muito na cama. E me da-
com a História com “H” maiús- puro prazer. E lia de tudo. Nós do parecia ser feliz, mas eu não era. Não conseguia ser vam livros. E foi aí que comecei
culo. E todas as histórias se entre- tínhamos uma biblioteca públi- feliz. E aí li um livro, de um autor de quem nunca tinha a fantasiar mundos. E como não
laçam juntamente com as histórias ca em Valença [município do Rio ouvido falar. O livro se chamava Tonio Kröger, e o autor conseguia falar direito, tinha pro-
íntimas. Essa é minha crença. de Janeiro onde o autor nasceu]. era Thomas Mann. Aí eu pensei, meu Deus, há outras blemas de fala, descobri que pode-
MARÇO DE 2023 | 23

REPRODUÇÃO/ YOUTUBE

próximo encontro
8/março
19h30
Jarid Arraes

ria escrever. E para completar o quadro, sou disléxico. • Se eu fechar os


Mas quando escrevia, não tinha esse problema. Então olhos agora
o mundo se abriu para mim. Tinha anotações daquilo
que viraria a ser o romance Se
• Memórias de Adriano eu fechar os olhos agora. Não
Junto tudo isso para responder sobre a importân- se chamava assim. Publiquei o
cia da literatura de ficção. Os autores e o leitores têm o livro em 2009, mas comecei a
mesmo tipo de empatia, às vezes. Você descobre em um escrevê-lo uns seis anos antes.
autor ou autora algo que você não sabe nem nomear. Evito fazer releituras porque Escrevi e parei no meio, porque
Lembrei agora quando descobri Memórias de Adria- achei que a tarefa era grande de-
no, da Marguerite Yourcenar, fiquei tão encantado que tenho medo de não encontrar mais para mim. Quando a his-
passei semanas sem conseguir ler mais nada. Eu tinha tória começou a se mover para
uns 19 anos. É um livro tão completo, tão pulsante,
que passei um tempo afastado da leitura.
a mesma mágica da primeira trás, para a ditadura de Getú-
lio, depois para os exemplos de

• Conselho da dona Odete


leitura. E não será a mesma opressão no mundo rural, para
o Império no Brasil... Achei que
Por ser disléxico e ter outros vários problemas,
não conseguia ter um bom desempenho em gramáti-
coisa certamente." era demais para as minhas ferra-
mentas. E parei. Mas não sabia
ca. Mas tive uma professora, dona Odete Coutinho da que estava fazendo um truque
Silveira, que chegou para mim e disse: “Não se preo- LEO AVERSA
comigo. Parei e não fiquei an-
cupe com gramática, você escreve bem e não neces- gustiado. Acho que essa parada
sita da gramática. Mas precisa de leitura”. Então ela durou um ano.
completou: “Leia, leia muito. E leia de tudo: biogra-
fia, romance, poesia”. • Fazendo sentido
E aí dei de cara com uma
• A magia da primeira leitura epígrafe, que tinha tudo a ver
Hoje não costumo revisitar esses livros que foram com o que eu queria contar:
importantes para mim. Esses tempos, no entanto, abri “Os mortos não ficam onde es-
uma exceção. Por ter que participar de um debate, reli tão enterrados”. Trata-se de uma
Gabriela, cravo e canela. E fiquei encantando. Desco- frase do autor inglês John Ber-
bri que realmente é um belíssimo romance. Também ger. E aí entendi tudo. Você é
evito fazer releituras porque tenho medo de não encon- perseguido a vida inteira por
trar a mesma mágica da primeira leitura. E não será a aqueles fantasmas da infância.
mesma coisa certamente. Tanto que Gabriela não foi. E era tudo ligado a um perío-
Na segunda leitura, descobri um outro livro. do de enorme esperança para
mim e para o mundo inteiro,
• Início da escrita que foi o período do primeiro
Quando era adolescente, escrevia e publicava em ano no espaço, com Iuri Gaga-
dois jornais da minha cidade. Quando me mudei para rin. Teve o Papa João XXIII, o
o Rio de Janeiro, com 16 para 17 anos, tive uma vida primeiro pontífice que se voltou
muito seca, tinha que trabalhar e estudar para poder aos pobres e necessitados. Havia
me sustentar. Nessa época o que eu escrevia era pura- no Brasil também as tentativas
mente catártico. Não era nada literário. E também tra- de construção democrática, ha-
duzia, era um dos trabalhos que eu fazia. E por traduzir, via o grande Paulo Freire. E is-
acabei indo trabalhar na Bloch Editores, e dali passei so começou a voltar para mim,
para a reportagem. até perceber que era disso que eu
queria falar. Então consegui ter-
• Primeiras histórias minar o livro e dar o título de Se
Sempre escrevia algumas coisas. Por exemplo, eu fechar os olhos agora.
publiquei um conto em uma revista histórica chama-
da Ficção. Mas eu tinha que sobreviver e não me ocor- • GloboNews
ria que escritor fosse uma profissão. Aí, lá pelos meus Literatura
30 e poucos anos, escrevi um romance experimental, Eu conduzia o programa
que dei o título de Oh, oh, oh Babilônia, era um li- GloboNews Literatura, que me
vro de histórias que se interligavam. Depois descobri dava a oportunidade de entre-
que um grande autor cubano tinha feito isso, num li- vistar fabulosos autores e auto-
vro chamado Três tristes tigres — e feito fabulosa- ras. Entrevistei Adélia Prado,
mente bem. Na época eu não tinha lido o Guillermo José Saramago, Norman Mai-
Cabrera Infante, mas foi algo parecido com o livro de- ler, etc. Esse convívio me dava
le que eu tentei fazer. enorme prazer. E eu era cronis-
ta d’O Globo e publiquei dois
• Sem voz livros de crônicas, um deles
Apresentei o manuscrito a um editor na épo- com várias inéditas, que é Ou-
ca, um ótimo editor. Ele foi muito sincero comigo, tros tempos, e Dias de cachor-
disse que eu escrevia bem, mas que não tinha uma ro louco, que escrevi enquanto
voz. Ele me aconselhou a continuar a escrever, etc. morava em Nova York.
Aquelas coisas que os editores falam para se livrar da
pessoa... Continuei escrevendo, mas achando que • Finalmente a voz
aquele não poderia ser o meu caminho porque eu Mas romance, eu tinha
não tinha voz. feito aquela tentativa com Oh,
oh, oh Babilônia e havia essa
• Ponto de virada Quando aconteceu o 11 de Setembro, maldição pesando sobre minha
Quando aconteceu o 11 de Setembro, muita muita coisa interna em mim mudou. Mas cabeça: a voz, a voz, a voz... De-
coisa interna em mim mudou. Mas o sinal mais for- pois de escrever Se eu fechar os
te de que eu necessitava, foi minha vontade de escre- o sinal mais forte de que eu necessitava, olhos agora, deixei o livro guar-
ver um livro, minha vontade de virar escritor. Então
eu pensei, não vou virar um escritor, ou sou ou não
foi minha vontade de escrever um livro, dado por um tempo. Aí quando
fui relê-lo, concluí que realmente
sou um escritor. minha vontade de virar escritor." eu tinha uma voz literária.
24 | MARÇO DE 2023

LEO AVERSA

• O empurrão de
Saramago
Mas essa busca foi com-
pletamente inconsciente. Meu
incentivo veio de uma entre-
vista que fiz com José Sarama-
go. Ele contou que havia escrito
Levantado do chão até a me-
tade de um jeito, e em segui-
da passou a escrever de maneira
completamente diferente. Acho
que dentro de todo escritor, há
um momento em que ele se en-
contra com ele mesmo. É a tal
da voz, que é a maneira de con-
tar o que se quer contar. Pode
ser que, para os escritores da
indústria americana de livros,
que estudam técnicas de cons-
trução, de busca de estilo, isso
não faça sentido. Mas o estilo
está dentro do escritor.

• Prêmio São Paulo


Tomei um susto muito
grande quando ganhei o Prêmio
São Paulo de Literatura. Eu nem
ia à premiação porque achava
que era impossível vencer. Ain-
da naquela época o livro tinha
recebido algumas críticas muito
ferinas. Pensei, vou lá pra quê?
Aí a Livia Garcia-Roza, maravi-
lhosa autora, me disse “vá, você
vai encontrar outros escritores, é
uma convivência boa”. E eu fui.

• Perplexidade • A felicidade é fácil • Personagens


E estou lá sentado ao lado No caso do meu segundo transitórios
da Claudia Lage, esperando que romance, A felicidade é fácil, eu Minha esperança é a de que eu
anunciassem os vencedores. E eu tinha um recorte de jornal que fa- possa contribuir para que se com-
não ouvi quando chamaram meu lava do sequestro de uma criança preenda melhor o nosso país. Por-
nome. A Claudia me deu uma em São Paulo — e essa criança era que estou contando histórias que
sacudida. Acho que nas fotos dá imediatamente assassinada, por- você não encontra nos livros de não
para ver como estou com uma que era a criança errada. Foi o se- ficção. O que se passa com os bra-
expressão de perplexidade. E fi- questro de uma criança errada que sileiros expatriados não é um tema
quei mais perplexo ainda quan- nem a mídia nem as autoridades que interesse. O que sente uma mo-
do descobri, depois, que eu tinha deram a menor importância, por- Pequenas vinganças ça de 18 anos, sozinha em uma cida-
vencido por unanimidade. que era um menino filho de ca- EDNEY SILVESTRE de do interior dos Estados Unidos,
seiros. Isso me comoveu muito e Globo trabalhando como faxineira em vá-
160 págs.
• Jabuti eu carreguei esse recorte por anos. rios lugares? E não conseguindo falar
Quando ganhei o Prêmio a língua. E não é por incapacidade
Jabuti, estava na redação fazendo • Era Collor intelectual, mas sim pela tensão em
alguma reportagem, e o G1 pu- Aí comecei a estruturar, que a pessoa vive, como a tensão de
blicou a relação dos vencedores. mas queria estruturá-lo dentro Acompanhe fugir da polícia o tempo todo. Na
Para minha surpresa, eu tinha do lodaçal que foi o governo Fer- no canal do época dos exilados brasileiros, a Di-
vencido na categoria de Melhor nando Collor. Sabia que sempre YouTube do tadura do país colocava espiões nas
Romance. Era o mesmo ano de há uma correlação entre a corrup- Paiol Literário embaixadas e violava correspondên-
um livro lindo do João Ubaldo ção entre as faixas sombrias que cia. Muitas pessoas não recebiam as
Ribeiro, chamado O albatroz cercam uma nação e aquilo que se cartas que eram enviadas por seus
azul, que eu adoro. É um livro reflete num cidadão. Nunca teria pais, irmãos, mulheres e amigos. E
até subestimado. Eu achava que havido o sequestro dessa criança isso não é comentado.
o João Ubaldo iria ganhar o Ja- em outras épocas, não haveria ti-
buti. E fiquei encantado de estar do tantos suicídios, por exemplo. • Pequenas vinganças
ao lado dele. E foi naquela Era Collor que se Em uma das narrativas breves
iniciou a diáspora brasileira. Não de Pequenas vinganças, utilizei uma
• Prêmios que não houvesse pessoas que fos- história ocorrida na minha família.
incentivam sem trabalhar e estudar fora do O meu bisavô foi um voluntário da
Não teria tido a carrei- país antes disso, mas ali se ini- pátria. Ele voltou da Guerra do Pa-
ra que venho tendo, não teria a ciou com mais força. E eu, já co- • Diáspora raguai como herói, com uma me-
confiança para seguir em frente se mo correspondente nos Estados Então eu tinha muita von- dalha. Mas, subitamente, sumiu de
eu não tivesse ganhado esses prê- Unidos, tinha conhecido cente- tade de falar sobre a diáspora bra- casa. E era um pai doce. Só muitos
mios. E o prêmio fez toda dife- nas de expatriados. sileira, que começa com o Collor. anos depois foram descobrir os res-
rença em relação à maneira com Mas claro que havia exemplos an- tos mortais dele em uma maloca de
que passei a ser visto. Toda vez • Expatriados teriores, inclusive de pessoas que- pedra. Tornou-se um ermitão, que
que sou citado, mencionam essas Uma das personagens surgi- ridas, amigos meus, que foram vivia de raízes, caça, pesca, em uma
premiações. É um clichê, mas sou das em A felicidade é fácil, já é al- exilados pela Ditadura. E eu me maloca de pedra. Ele abandonou a
muito grato por esses prêmios. guém que pretende sair do país. É toquei que algumas das pessoas família sem nunca dizer o porquê. E
uma moça jovem, a Bárbara. Em- que foram exiladas eram como nunca ninguém comentou isso, só
• Urgência bora seja coadjuvante, ela é filha eu: jovens de 19, 20 anos e que só se comentava a história. E eu estava
Eu tenho uma urgência. Já do motorista assassinado durante voltaram depois dos 30 anos. Eu lendo sobre as atrocidades que foram
estreei com mais de 50 anos. Não o sequestro. Enquanto escrevia o encontrei outro país quando vol- cometidas na Guerra do Paraguai, e
tenho tanto tempo assim pela livro, fui aprendendo a lidar com tei depois de 12 anos fora. A dor finalmente me toquei no que tinha
frente. Se eu tivesse estreado tal- a minha memória e a maneira de do expatriamento, o esvaziamento acontecido com aquele homem bom
vez aos 26, 27 anos, poderia ter construir o meu romance, com as interno, a saudade das coisas mais que havia virado uma criatura mons-
mais calma. Tenho algumas ur- anotações, pesquisas, datas e horá- banais, tudo isso me marcou. Eu truosa, que degolava crianças e solda-
gências então. rios, com nomes de personagens... queria muito escrever sobre isso. dos de outros países.
MARÇO DE 2023 | 25

raimundo carrero
LUTA VERBAL
Eu tenho uma urgência. Já estreei

O SILÊNCIO
com mais de 50 anos. Não tenho
tanto tempo assim pela frente. Se
eu tivesse estreado talvez aos 26,

É DOR E
27 anos, poderia ter mais calma.

• Indiferença aos
mais pobres A SOLIDÃO
SUFOCA
Desde sempre temos uma
classe dominante indiferente às ne-
cessidades dos pobres, dos famin-
tos, dos iletrados, analfabetos. Há
uma intencionalidade em deixar
as pessoas com fome, sem escola,

É
sem saúde, sem moradia. Por que
eu digo isso? Porque dinheiro exis- comum rotularem o conde
te. Então por que ele não chega às Tolstói, raivosamente, de con-
pessoas? Um homem como o padre servador e reacionário, mora-
Júlio Lancellotti é visto como inimi- lista, misógino e retrógrado.
go porque defende os mais necessita- Tudo por conta de suas posições duras e
dos. Mas talvez o que falta perceber firmes com relação à obra de arte ou à ar-
é que existem liberais, pessoas na di- te simplesmente. Uma das suas conside-
reita, que são pessoas decentes, ób- rações mais debatidas e, por isso mesmo,
vio que tem. E pessoas que também mais questionadas é a seguinte:
querem o bem comum. Mas onde
estão essas pessoas? Como foi pos- A arte, em nossa sociedade, tornou-se
sível chegar a esse ponto que chega- tão pervertida que não somente a ruim veio
mos, à indiferença do poder público, a ser considerada boa, mas até mesmo a no-
que constrói, junto a viadutos, par- ção de que é a arte se perdeu. Desse modo,
tes pontiagudas para que as pessoas para falar de arte na nossa sociedade, é pre-
não durmam ali? Ninguém esco- ciso, antes de tudo, distinguir a verdadeira
lhe dormir embaixo de um viaduto arte de falsificações.
• Narrativas breves x romance porque é um prazer estar ali. Dessa
Não sei para onde vou quando começo escrever. perversidade as pessoas tinham ver- Falsa ou verdadeira, o que é arte?
A vantagem da narrativa breve é que posso entrar em gonha e hoje elas não têm mais. Para este monumental escritor, um sinal
inúmeros universos diferentes — a Guerra do Para- irrefutável que distingue a arte verdadei-
guai, Brasília, Suécia, etc. Ela permite isso. No roman- • Apoio à direita ra da falsificada é o contágio. Se um ho-
ce, você vai se expandindo. Tudo vale. Desde que você Quando tivemos a ditadura mem, sem nenhum esforço de sua parte
encontre o tema que te emocione. Passo pelo menos militar, havia muita crueldade, pri- e sem mudança de sua situação, após ler,
um ano escrevendo um romance, se não mais, às ve- sões, tortura, pessoas desaparecidas, ouvir ou ver uma obra de outro homem,
zes dois, até três anos. Mas enquanto isso, também es- isso não significava que o Brasil to- experimentar um estado de espírito que
crevo outras coisas. do fosse assim. Mas os militares, va- o une a outro homem e a outros que per-
le lembrar, eram apoiados por boa cebem o objeto da mesma forma que ele,
• Pandemia parte da classe média. O ditador então o objeto que evoca tal estado é um
Acompanhei a pandemia com o receio de perder Emílio Garrastazu Médici, o mais objeto de arte. Por mais poético, realis-
o juízo. Teve um momento, lá na TV Globo, onde eu sangrento de todos, foi aplaudido de ta, notável ou divertido que um objeto
trabalhava, que todos com mais de 59 anos foram man- pé quando foi ver um jogo no Ma- seja, não será um objeto de arte a menos
dados trabalhar de casa. E eu tinha medo de que esse racanã. Então não é algo que brotou que evoque em alguém aquele sentimen-
isolamento me fizesse mal. Então adotei alguns recur- subitamente por causa das redes so- to, totalmente diferente de qualquer ou-
sos. Por exemplo: eu fazia a barba todo dia, arrumava a ciais. Isso já existia, como o apoio à tro, de felicidade ou de união espiritual.
cama, acordava de madrugada, tipo 5 da manhã, e saía ditadura militar existiu. Não pode- Opinião inquietante, muito in-
para caminhar à beira da praia. Todo dia. Tomei como mos esquecer isso. quietante, escrita num livro que Tols-
boia para sobrevivência a rotina. E tinha meu trabalho. tói pretendia revolucionário, elaborado
• Jornalismo num trabalho exaustivo de 15 anos co-
• Perversidade Sempre acreditei que o jorna- locando em debate a sua própria obra,
Para mim, um dos piores momentos do ex-presi- lismo me dava a oportunidade espe- inclusive Guerra e paz, sem dúvida o
dente [Bolsonaro] foi quando ele, publicamente, debo- tacular de conhecer o mundo, claro, maior painel sobre a condição huma-
chou de pessoas com falta de ar por conta da covid-19. mas especificamente de conhecer o na da ficção. Tolstói, porém, nunca re-
Quem já acompanhou uma pessoa numa situação simi- Brasil. Fui para o Norte, Amazô- cuou diante dos críticos e manteve as
lar sabe o quanto é doloroso, o quanto isso é angustiante. nia, Rondônia, conheci brasileiros suas ideias sobre a Arte, embora tenha
Agora imagine se você é um pai, um irmão, um marido e brasileiras extraordinários. E pes- reconhecido que mudou muito de opi-
vendo o presidente do seu país debochar da dor do seu soas ditas comuns. Por exemplo: nião enquanto escrevia o livro.
ente querido. O que eu percebi ali, é que havia algo além estou falando de uma farmacêu- Hoje, O que é arte? é encontrado
da alegada burrice dessa criatura. Há uma perversidade, tica em Belo Horizonte que criou somente nas obras completas do escritor,
há uma maldade nisso, uma intenção de derrubar, de ferir. um projeto para tornar o sequestro sempre em russo, as vezes em alemão. A
um crime hediondo a partir do se- edição brasileira mais recente é de 2010
• Caminhando sobre escombros questro e do vil assassinato da filha com tradução de Bete Torii para a Nova
Quando algumas pessoas falavam em genocídio, dela. Uma mulher, entre aspas, “co- Fronteira. Mas é imprescindível e neces-
não era exagero. Havia uma política para destruir um mum”. Conheci um rapaz em Ron- sário para os estudiosos deste tema sem-
povo. Você acaba com as crianças, você não lhes dá dônia, piauiense de origem, que pre apaixonante.
condições de vida, de alimentação, você envenena o processou e conseguiu que o prefei- Ainda assim, para o exame de estu-
ambiente em volta delas. Eu ainda estou sob o impacto to da cidade de Ariquemes devol- dantes apressados recomenda-se a leitura
de tudo o que nos aconteceu: essa junção de pandemia, vesse o dinheiro que foi recebido urgente de suas novelas mais curtas, em
com essa criatura no poder e tudo o que ele representa. para construir uma estrada que li- traduções exemplares da José Aguilar, em
Esse rancor, essa perversidade, essa maldade... eu tenho gava à capital do Estado e que ficou papel bíblia. Guerra e paz é um romance
tentado escrever sobre isso, porque de certa forma eu incompleta. Ele fez isso. Ele não é solitário nas suas mais de duas mil páginas
sou um sobrevivente de uma situação terrível e preci- um herói, é um brasileiro comum sobre a dor e a solidão de viver nos escom-
samos falar disso. Mas ainda não sei como eu vou fa- que resolveu usar a cidadania como bros da condição humana. Não é possível
lar sobre isso na ficção. Escrevi uma peça, que tem um arma. Isso o jornalismo me deu. E ser escritor, por exemplo, sem o estudo das
pouco disso, que eu chamei de Grande hotel abismo, eu nunca conseguiria escrever o que obras deste grande russo, mesmo quando
cujo subtítulo é “Caminhando sobre escombros”. Que escrevo se não tivesse essa experiên- não concorda com ele. Todo livro de ficção
é o que estamos fazendo agora. cia jornalística. é um pouco de Guerra e paz.
26 | MARÇO DE 2023

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

EVITAR AS MOLDURAS
Ilustração: Raquel Matsushita

U
m exercício de liberda- jam dispostas de modo que não olhe- to como ponto geométrico de origem a sua infinitude, numa espécie de
de artística, por mais mos para elas por muito tempo; nós da cena em uma relação imaginá- ramificação para dentro da cena,
ousado que seja, costu- as utilizamos de uma tal maneira ria com o espaço real, mas os fatos do texto visual. Desfoques, escu-
ma esbarrar no limite que podemos jogar com o ir e vir do intrometem-se para desconstrução a recimento das bordas, trabalho
objetual: há espaços que definem nosso comando da cena/(visão) [sce- reação inicial: o olho/eu [eye/I] não intenso com contrastes ou profun-
a dimensão da obra, seu tamanho, ne/(seen)]. Um guarda de um mu- pode se mover dentro do espaço re- didades são modos de fazer o olho
área de atuação e existência. E, em- seu nacional de arte que seguia os tratado (que se oferece precisamen- “trabalhar” no interno da imagem,
bora extravasamentos aconteçam visitantes com um cronômetro veri- te para tal movimento), ele só pode tentando resolver dúvidas, com-
no sentido receptivo (é imprevi- ficou que eles dedicavam uma média mover-se de um lado a outro, até parar as áreas visuais — esquecen-
sível o quanto uma estética pode de dez segundos a cada pintura — os pontos onde ele encontra a mol- do, assim, os limites instaurados.
reverberar, em sua contemporanei- mais ou menos a mesma média de dura. O inevitável reconhecimento A operação é semelhante à do final
dade ou além), um(a) artista lida duração de uma tomada no cinema pelo sujeito das regras da moldura aberto na literatura: o leitor se en-
sempre com recortes, mais ou me- clássico de Hollywood. Ficar muito pode, todavia, ser adiado por meio carrega de completar algo e, com
nos desagradáveis, porque restriti- tempo com uma única imagem é ar- de várias estratégias, que incluem isso, sente que o texto continua
vos. Quanto mais clássica a obra, riscar perder o comando imaginário dispositivos ‘de composição’ para se processando. O texto resolvido
então, mais ela parece se confor- do olhar, abandoná-lo a este outro desviar o olho da margem de en- por inteiro esgota a própria men-
mar sem questionamentos à grade ausente a quem pertence por direito quadramento. A “boa composição” sagem e, com isso, torna-se irre-
imposta para o seu funcionamen- — a câmera. A imagem então não pode, portanto, ser nada mais nada levante. Tal princípio serve para
to: fronteiras se estabelecem com mais recebe o nosso olhar, reafir- menos que um conjunto de disposi- qualquer linguagem.
pedestais, nichos, lombadas, pal- mando a nossa centralidade funda- tivos para prolongar nosso comando Há um valioso livro de Vic-
cos... No caso da imagem estáti- dora; ela antes, por assim dizer, evita imaginário do ponto de vista, nossa tor Stoichita, L’instauration du
ca, a moldura surge como um item nossa contemplação, confirmando a auto-afirmação; um dispositivo pa- tableau (1999), que desenvolve
quase indispensável. Mas não é so- sua obediência ao outro. ra retardar o reconhecimento da au- um debate sobre enquadramen-
mente uma estrutura de apoio, um tonomia da moldura, e a autoridade tos, principalmente na pintura,
suporte, que ela representa: a mol- Como os limites — as mar- do outro que ela significa. A “com- para quem se interessa pelo as-
dura vira uma borda para o olhar, gens, os extremos — são ditados posição” (e de fato o interminável sunto. Por enquanto, deixamos
e, ao refreá-lo, incomoda. pelo(a) autor(a) da obra, incons- discurso sobre a composição — cri- somente mais um trampolim re-
Talvez para evitar essa sen- cientemente buscamos escapar ticismo formalista) é, portanto, um flexivo, a respeito de como, afi-
sação, a maioria das pessoas se de sua armadilha. Olhar em de- meio de prolongar a força imaginá- nal, toda iniciativa de classificar,
habitua a percorrer imagens ve- masia para uma imagem é se tor- ria da fotografia, o seu poder real de de fechar as definições dentro de
lozmente. Victor Burgin, teóri- nar enquadrado por ela, engolido agradar, e pode ser nisso que ela so- uma categoria (de gênero, estética,
co e artista nascido nos EUA em por seu mundo, como certa per- brevive há tanto tempo, dentro de materialidade) traz aborrecimen-
1941, comenta a respeito desse fe- sonagem de Lygia Fagundes Telles, uma variedade de racionalizações, tos. Limites são coisas antipáticas
nômeno, no artigo Olhando foto- capturada numa tapeçaria... Vic- como um critério de valor na arte não apenas para um criador, que
grafias, publicado em Thinking tor Burgin continua: visual de modo geral. se vê constrangido a operar den-
photography (Londres, 1982), tro de protótipos favorecidos pe-
livro que ele organiza: O constrangimento que Eis aqui uma reflexão im- lo mercado ou pela tradição, mas
acompanha a contemplação exces- portante: algumas técnicas de igualmente para o receptor da
Olhar uma fotografia além de sivamente demorada de uma foto- composição “prendem” mais a obra, que recebe “mais do mes-
um certo período de tempo é procu- grafia surge de uma consciência do atenção justamente porque dis- mo”. Em última instância, meca-
rar uma frustração: a imagem que à sistema de representação de perspec- farçam as fronteiras do enquadra- nismos rígidos de definição, onde
primeira vista dava prazer tornou- tiva monocular como uma sistemá- mento, ou da moldura. Em vez quer que surjam, podem ter valor
-se pouco a pouco um véu por trás do tica ilusão. A lente organiza toda de apontar para as divisas da ima- didático ou institucional — mas
qual agora desejamos ver. Não é um informação de acordo com as leis gem, os lugares onde ela termina, são um verdadeiro anticlímax no
fato arbitrário que as fotografias se- de projeção que localizam o sujei- determinadas estratégias simulam processo artístico.
MARÇO DE 2023 | 27

Uma espécie
versões abundam. Em geral, com
finais infelizes para as mulheres.
Talvez Andrea seja uma delas.
Na pequena Esquel, por ve-

de família
zes a ideia de família equivale ao
lugar em que uma mãe desiste da
dedicação esperada e abandona
marido e filhos pequenos sem mo-
tivo aparente; outras, ao espaço em
que a melhor amiga da filha mor-
Ao abordar o luto, o romance Agosto, da argentina Romina Paula, ta fica como adotada em seu lugar
surpreende pela linguagem escolhida e pelo tom adotado por alguns dias. Tudo plausível,
nem tudo garantia de felicidade.

Que horror, que espanto, e eu


STEFANIA CHIARELLI | RIO DE JANEIRO – RJ
escondida atrás do muro, que paté-
tico, a história da minha vida: as
DIVULGAÇÃO pessoas formam famílias enquanto
eu me oculto atrás de um arbusto.
TRECHO
E pior, espio.
Agosto
O trecho evidencia a funda
autoironia da narradora, que a ca- Sentiria muita falta da sua
da tanto ri de si mesma antes de
gargalhar dos outros, não caindo gata também se eu fosse agora.
na cilada de se levar a sério demais. E de seus pais. Estou para trás,
Outro grande trunfo da necessito uma família, quero
narrativa é essa voz que se cons- uma família e, de algum modo,
trói em diálogo com o ser ausente.
Emilia fala consigo enquanto se em certa medida, sinto que estou
dirige a Andrea. O uso da segun- usurpando a sua, ao mesmo
da pessoa no texto, endereçando tempo não, até porque é certo
dúvidas e confissões à amiga mor- que é um intercâmbio e que,
ta funciona muito bem como su-
porte para essa reflexão incessante, evidentemente, alguma coisa lhes
como na cena da despedida: dou, algo devo dar, estou como
adotada. Sinto que assim não
Foi por isso que, então, me co- posso voltar, assim como estão as
movi para dentro, uma comoção in-
terna, como se algo, suas cinzas, se coisas, se volto, volto quebrada.
abismassem, como se caíssem dentro de
mim também, como se tivessem caído

A
de costas para dentro, sem gravidade.
A AUTORA
morte de um ser amado Fogo e gelo, extremos que tocam tos narrados. E é nesse momento
nos irmana no desam- a carne em igual medida: lábios ROMINA PAULA A comoção para dentro diz que chamam a atenção as falhas na
paro. Perder alguém traz partidos, pele queimada do frio, muito do romance. Um livro em tradução, que vão de palavras não
Nasceu em Buenos Aires (Argentina),
uma dor aguda, brutal, fumaça saindo pelas bocas, sensa- torno da perda de um ser amado empregadas em português (dize-
em 1979. Atriz, diretora, dramaturga e
dilacerante. Na literatura, colocar ção de imobilidade. escritora, publicou os romances ¿Vos
pode facilmente escorregar no me- mos fumantes e não “fumador”) a
em palavras essas sensações não é Esta é uma viagem de du- me querés a mí? (2005) e Acá todavia
lodrama. Não aqui. Romina Pau- múltiplas escorregadas na transiti-
novidade, sendo a morte um te- plo movimento; um para fora de (2016), ainda não traduzidos no Brasil. la monta os curtos 37 capítulos vidade verbal, para ficar em pou-
ma dos mais relevantes na arte de Buenos Aires e outro para dentro Também dirigiu o filme De nuevo do livro com mão segura e amplo cos exemplos. Um romance tão
todos os tempos. Em pleno sécu- da mente da protagonista e narra- otra vez (2019). Agosto foi adaptado domínio narrativo, de modo a re- bem escrito mereceria mais cuida-
lo 21, como extrair desse lugar-co- dora. Emilia é uma personagem para o cinema sob o título La muerte tardar o momento em que o gol- do na tradução e na revisão, pa-
mum algo inédito, ou pelo menos encantadora, intensa em suas con- no existe y el amor tampoco (2019), pe vai chegar. Quando chega, nos ra que o belo projeto editorial da
uma perspectiva renovada? O ro- tradições e inquieta diante de cer- com direção de Fernando Salem. desmonta no pequeno, no deta- Moinhos possa de fato propor es-
mance Agosto, de Romina Paula, tezas que duram menos de quinze lhe, no que fere a carne. Porque se diálogo com a literatura de paí-
surpreende pela linguagem esco- minutos. “O mesmo que me atrai a saudade não é grandiloquente, ses próximos, como a Argentina.
lhida e pelo tom adotado para é o que me deprime, esse é o dile- não atinge tom maior. Ela se faz Em Agosto, Romina Paula
narrar um luto. Primeiro de seus ma”, assinala. Quer o ex-namora- presente nos objetos que ficam pe- escapa do óbvio, e sempre que pa-
escritos traduzidos no Brasil, é o do Julián, mas também a vida de lo caminho, na jaqueta da amiga rece prestes a cair na previsibilida-
segundo romance da autora, pu- mulher independente na capital; que agora muda de corpo, no ade- de, dá um salto e oferece a outra
blicado em 2009 na Argentina. tem vontade de ficar imóvel para sivo mal colado em cima da mesa margem. Quem acompanha esse
Nele acompanhamos o retorno sempre no quarto da amiga que se de estudos, nos CDs e filmes anti- ziguezague pelas paragens desérti-
da personagem Emilia à peque- foi, mas precisa partir e retomar a gos que contam histórias de outro cas do espaço patagônio também
na Esquel, na Patagônia argen- vida. Humana, muito humana na tempo, na antiga passagem de ôni- fica um tanto aturdido. Não à toa,
tina, cidade em que nasceu e de constatação do caráter imponde- bus encontrada no bolso da roupa. a narradora utiliza por duas vezes
onde partiu para construir a vida rável dos desejos. Um tempo que nunca termina de a imagem do malabarismo, de um
em Buenos Aires. Ela vive na capi- acontecer, como o próprio funcio- constante esforço para atingir um
tal com o irmão Ramiro e namora Vida familiar namento das lembranças, que se equilíbrio precário dentro do mo-
há algum tempo Manuel, um de Ao mesmo tempo, um rato movimentam de forma aleatória, vimento. Esquivando-se também
seus amigos. No dia 28 de agosto, se instala na cozinha de seu apar- às vezes mais em função de uma do modelo do romance de forma-
a jovem irá participar do espargi- tamento na capital argentina, des- cena de Caindo na real (um dos fil- ção, que pressupõe uma aprendi-
mento das cinzas da amiga An- pertando a sanha exterminadora mes dos anos 1990 citados ao lon- zagem definitiva, Agosto enfrenta
drea, morta há cinco anos. na locatária e no irmão. Seriam go do livro) do que na solenidade com coragem a ideia do inacaba-
O frio é intenso nessa par- os roedores uma família?, inda- oficial de um álbum de fotos. mento, da vida em processo:
te mais meridional da América do gam-se. Matar os animais e re-
Sul, e se faz presente no título se- virar a casa pelo avesso se torna Oralidade Nunca vou terminar de sa-
co como a temperatura cortante uma obsessão, quase como se fos- O recurso do tom confessio- ber exatamente o que eu quero e
do lugar. Esse é um agosto que vai se também possível perscrutar as nal atravessa essa viagem de luto, que talvez eu esteja me equivocan-
se arrastar: o frio deprime, as noi- entranhas da vida familiar. Mas dando a ver a presença da orali- do sempre, e então nem ir nem fi-
tes são longas, fazendo com que o afinal, o que seria mesmo uma fa- dade do texto, que acompanha car, nem nada, nem estar, nem estar.
mês de inverno assinale no con- mília? Mais que um grupo amo- de perto a intimidade da perso-
fuso calendário emocional a da- roso e coeso, muitas vezes o espaço Agosto nagem. Sequer saberemos a cau- Voltar para casa é também
ta da despedida, em que o corpo do dissenso e da violência, como ROMINA PAULA
sa real da morte de Andrea, que retomar esse fio partido, lidando
da amiga será retirado do túmulo demonstram algumas situações Trad.: Ellen Maria Vasconcellos figura como elipse. Importa mais com as faltas e silêncios que pas-
para cremação, vencido o prazo le- reais incorporadas ao longo do ro- Moinhos o como se narra do que propria- sam a nos constituir, na lenta tare-
gal em que poderia ser exumado. mance: assassinatos, traições, per- 158 págs. mente os (poucos) acontecimen- fa do amadurecimento.
28 | MARÇO DE 2023

nilma lacerda e maíra lacerda


CALEIDOSCÓPIO

CALEIDOSCÓPIO: UMA TEXTURA

N
Ilustração: Maíra Lacerda
o campo da arte, uma da literatura, Nilma Lacerda, em
poética é fruto do re- Cartas do São Francisco: con-
corte de um olhar so- versas com Rilke à beira do rio,
bre o mundo. Uma sustenta o ponto de vista de que
vez estabelecida, traduz uma visão “a literatura para crianças e jo-
passível de se expandir continua- vens é literatura, e ponto final”.
mente, em direção à totalidade do Ética e estética vinculam-se, de
real. Em sentido lato, o vocábulo forma estreita, na criação da obra
significa “sistema poético de um de arte, independentemente de
escritor, um artista, uma época, seu leitor implícito.
um país”. Tal sistema é depreen- Se Adorno não sustenta
dido no contexto de uma textura, inteiramente a impossibilidade
na trama alcançada pelo diálogo de arte após Auschwitz, se Jel-
entre os elementos acima expos- la Lepman, a bibliotecária ale-
tos, ademais de outro, ao qual o mã de origem judia responsável
brasileiro Antonio Candido atri- pela fundação do Internatio-
bui papel essencial: o público. nal Board on Books for Young
Ao referir-se à literatura co- People, acredita que livros para
mo tudo o que, em dada época, crianças e para jovens podem de,
se chama de literatura, o francês alguma forma, contribuir para a
Antoine Compagnon corrobo- humanização do mundo; se, na
ra a visão de que o público — os esteira do colombiano Fernan-
que tomam a obra como fruição do Cruz Kronfly, a literatura co-
e estimulam sua produção — será mo experiência partilhada com as
em última análise quem reconhe- novas gerações atende ao desejo
cerá ou não o lugar de tal obra à de que não venham a ser da ma-
época de sua elaboração. Não é in- neira como nós, adultos, nos ve-
comum, por outro lado, haver ca- mos em nossas sombras perversas
sos em que públicos posteriores (o e destrutivas; se essas se mostram
que implica circunstâncias poste- igualmente nossas convicções,
riores) concedam o lugar devido a que rumo tomar nas encruzilha-
obras incompreendidas ou igno- das contemporâneas?
radas previamente. O Guesa, de Menos que refúgio ou in-
Sousândrade, e Úrsula, de Ma- tervenção, a literatura ergue-se
ria Firmina Reis, são eloquentes como possibilidade de nomina-
exemplos de tal situação. ção do impossível. Sensibilizar as
No livro seminal Proble- pessoas para essa potência e essa
mas da literatura infantil, Ce- necessidade é o possível de nos-
cília Meireles mostra serem as sa ação. Se formar leitores e lei-
crianças as responsáveis por de- toras de literatura nada tem a ver
limitar a literatura que desejam do factual, tem por finalidade re- no auge da vanguarda da com cruzada, tampouco é atitude
ler. A autora considera acertado, considerar aquilo que parece evi- relação palavra e imagem nas vã. Se não se pode assegurar be-
portanto, conceber tal produção dente. Nesse ponto, convergem narrativas, em lugar da palavra nefício real para o humano com
a posteriori, isto é, reconhecer co- os pensamentos de Bruner e de simplesmente escrita. [...] Estão en- o acesso maciço de jovens e crian-
mo literatura para crianças e jo- Umberto Eco: a literatura não é tre os textos mais interessantes e ex- ças aos bens de leitura, pouco ha-
vens aquilo que é lido por elas chave para qualquer enigma, mas perimentais no uso de técnicas de verá a esperar da ausência de tal
com utilidade e prazer. Em mar- um percurso a partilhar na bus- multimídia, combinando palavra, contato. Intermediar a relação
ço de 2021, o artigo É livro para ca de soluções para ele. Evidente imagem, forma e som. entre esses sujeitos e obras que,
crianças? Mas é literatura?, des- que o quinhão do qual se toma efetivamente, desvelem as apa-
ta mesma coluna, discutiu o as- posse é o que está ao alcance das A singularidade do viver rências, afigura-se como atitude
pecto da utilidade, distinguindo mãos, no momento do encontro. adolescente, compreendendo uma sensata e desejável. Que sugestões
livros com função de alfabetiza- Neste caleidoscópio, lan- parte ainda criança e outra já adul- deixar, portanto, em relação ao
ção, de transmissão de conheci- çamos o olhar com especial aten- ta, é base para Marina Colasanti tema e contribuição ao percurso?
mentos sociais ou científicos e ção para a literatura destinada aos propor diverso ângulo para a per- Alguma ousadia às livrarias
os livros cuja leitura traz, como públicos infantil e juvenil. Quem cepção de uma literatura consu- na exposição mesclada de obras
razão de ser, o reconhecimento nos acompanha na coluna já sabe mida por esse sujeito: de literatura, com destaque a li-
da própria humanidade, condi- que, a partir de dois lugares dis- vros do movimento crossover,
ção primordial da literatura, na tintos porém complementares, a (...) a expressão “leitura juve- que dilui as fronteiras tradicio-
visão de Jean-Paul Sartre e An- designer e a teórica buscam refle- nil”, nivelando aquilo que não pode nais do público leitor e se desti-
tonio Candido. Assumida por tir sobre texto e imagem, sobre ser nivelado, seria um equívoco gra- na a uma audiência diversificada
ambos como “fator indispensá- poética e materialidade na com- ve se não trouxesse embutido dentro e intergeracional. Nas escolas,
vel de humanização”, a experiên- posição de objetos de leitura vol- de si outro conceito: o de um leitor menos temor em fugir às listas
cia da literatura é capaz de tornar tados, inicialmente, a crianças e jovem não por idade ou crescimento, e às interpretações corriqueiras e
tangível o imaginário. jovens. Por demandarem consti- mas em relação ao seu próprio per- o necessário ânimo para buscar
Nesse diapasão, Bartolo- tuição diversa do livro destinado curso de leitura. experiências significativas de lei-
meu Campos de Queirós en- a adultos, a colaboração de Peter tura, em atenção aos próprios e
corpa um dos mais arrojados Hunt mostra-se importante baliza Antonio Ventura, professor, urgentes questionamentos con-
projetos de leitura literária no para nossas reflexões. O pesquisa- escritor e editor espanhol, corro- temporâneos. Teóricos cada vez
país, ao conceber o Manifesto pa- dor evidencia o papel crucial que bora a perspectiva de Marina na mais dispostos a uma desterrito-
ra o Movimento por um Brasil ilustração e materialidade exer- visão de “uma leitura juvenil”, is- rialização da literatura serão tam-
Literário, em que um país mais cem na constituição do livro in- to é, “uma forma de ler que tem a bém bem-vindos ao grupo. Esses
digno se anuncia na fruição da li- fantil e da concepção da literatura ver com esse momento — a ado- caminhos funcionam como au-
teratura, direito de e para todos. como experiência total, que pos- lescência”. Tomando em consi- têntica convocatória ao público
Na percepção do norte-america- sibilita uma relação sensorial en- deração o caráter do discurso e para exercer de forma corajosa
no Jerome Bruner, a literatura é tre sujeito e objeto. Os livros para respondendo à pergunta sobre a o trabalho de borrar fronteiras e
o discurso que, fora das amarras crianças estão concepção prévia do destinatário provocar autores.
MARÇO DE 2023 | 29

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL HQS

Vencedora do prêmio Pulitzer, a HQ Maus transformou Essa coletânea de contos de


a maneira como se enxerga a literatura, os quadrinhos horror traz textos dos autores
e o Holocausto. Trinta anos depois do lançamento Cláudia Lemes, Cristhiano
da obra, Art Spiegelman revisita seu livro mais Aguiar, Duda Falcão, Flávia
aclamado. MetaMaus vai a fundo nas perguntas que Muniz, Flávia Reis, Márcio
Maus tem evocado ao longo do tempo — por que o Benjamin, Nathália Xavier
Holocausto? Por que ratos? Por que quadrinhos? — e Thomaz, R. F. Lucchetti. A
fornece um documento essencial sobre a gênese deste organização é de Oscar Nestarez.
importante romance gráfico. O livro é acompanhado Indicado para jovens leitores,
por um DVD com Maus em versão digital, incluindo o livro ainda traz paratextos Mundos paralelos: horror
links para um vasto arquivo de áudios (em inglês) MetaMaus explicando o gênero conto, o que
ORG.: OSCAR NESTAREZ
com entrevistas entre Art Spiegelman e seu pai — ART SPIEGELMAN é horror e um breve resumo sobre Globo
um sobrevivente dos campos de concentração —, Trad.: Érico Assis cada uma das histórias do livro. 128 págs.
Quadrinhos na Cia.
documentos históricos e uma grande variedade de
356 págs.
cadernos de anotações e esboços do autor.
Aos 21 anos, Mallory Quinn precisa
REPRODUÇÃO trabalhar. Recém-saída da reabilitação,
a jovem consegue um emprego na
casa de Ted e Caroline Maxwell, que,
aos olhos da vizinhança, levam uma
vida perfeita. Sua principal função
é tomar conta de Teddy, o filho de
cinco anos dos dois. Ela constrói laços
sinceros com Teddy, um menino doce
e tímido que nunca abandona seu Desenhos ocultos
caderno e seu lápis. Os desenhos são
JASON REKULAK
sempre os mesmos, mas um dia, algo trad.: Jaime Biaggio
diferente surge no papel: um homem Intrínseca
em uma floresta, arrastando o corpo 384 págs.
inerte de uma mulher. A partir daí, as
ilustrações de Teddy vão se tornando
cada vez mais sinistras.

Um dos maiores escritores brasileiros


de todos os tempos, João Guimarães
Rosa explorou a origem e as muitas
possibilidades das palavras como
poucos. Nessa fantasia escrita por
Marcílio Godoi, ele conduz o jovem
leitor ao rico imaginário do autor
mineiro em busca do maravilhoso “pé
de palavras”, a Linguageira. Um livro
que mistura gêneros narrativos como
João e o pé de sertão
a crônica em um tom que não esquece
MARCÍLIO GODOI
da poesia de Rosa. Uma excelente
Miguilim
porta de entrada ao universo do autor 120 págs.
de Sagarana.

Neste novo livro da coleção


Presente de Vô, a personagem título,
Temporina, encontra o vô Cambeva
(de A oficina do Cambeva)
após as lembranças dela saírem
pela janela. Temporina descobre
Cuspa três vezes Colaboração horizontal o sumiço de suas memórias da
DAVIDE REVIATI NAVIE E CAROLE MAUREL infância acompanhada de Deolinda
Trad.: Rogério de Campos Trad.: Renata Silvera e Tuzébio, que a visitavam. E ao
Veneta Nemo
perder suas lembranças, ela também
568 págs. 144 págs. Temporina
perde a cor. Na tentativa de restaurar
JÚLIA MEDEIROS E
as memórias da amiga, Cambeva
NATÁLIA GREGORINI
Cuspa três vezes gira em torno de Guido, “Colaboração horizontal” é um conta com a ajuda de Zalém e ÔZé
Moreno (conhecido como “Grisù”) e termo usado para descrever os Calunga, de Maria Metade e das 44 págs.
Katango, um grupo de jovens que cresceram relacionamentos românticos e sexuais Sonhambulantes, que fazem esforços
juntos no subúrbio rural. Eles frequentam a que algumas mulheres francesas para trazer de volta a cor dela.
escola sem qualquer entusiasmo e seu tempo é tiveram com membros das forças da
feito de bares, bilhar, passeios de carro e noites Ocupação alemã, durante a Segunda
esfumaçadas à beira do rio. Uma família Guerra Mundial. Nesta graphic novel Edimilson Pereira de Almeida
de nômades eslavos vive nas proximidades, centrada na mulher, criada pela dupla é hoje um dos principais poetas
em uma casa em ruínas. “Os ciganos, todos Carole Maurel e Mademoiselle Navie, em atividade no Brasil. Nesta
ladrões e sem Deus”, dizem os vizinhos, com o tabu de “dormir com o inimigo” é Coletânea com 25 poemas, ele
desprezo. Entre os ciganos, está Loretta, explorado por meio da história de um apresenta os bichos a partir de
uma menina selvagem, uma criança velha caso tórrido e proibido. Em junho uma perspectiva diferente da
ou uma bruxa… Ambos, os “gajes” (como de 1942, Rose — cujo marido é que costumamos ver em outras
são chamados os não ciganos) e os ciganos, prisioneiro de guerra — intervém para obras. O trabalho de linguagem
confiam mais no corpo e nos gestos do que evitar a captura de sua vizinha judia faz com que as crianças pensem
nas palavras. Continuam a circular para não e inicia acidentalmente uma relação e saiam do “lugar-comum”. Os Cada bicho um seu canto
parar e pensar, repetem seus ritos por instinto secreta com o oficial investigador poemas — ilustrados pelo artista
EDIMILSON DE
de sobrevivência. E o leitor é convidado alemão, Mark. Este romance gráfico Edson Ikê — foram inspirados ALMEIDA PEREIRA
a olhar e imaginar cenas nunca vistas, aborda o tema ainda sensível de como na obra do poeta espanhol FTD
pensamentos nunca ditos. e quem é aceitável amar. Federico García Lorca. 40 págs.
30 | MARÇO DE 2023

A
obra do irlandês Samuel filtrada em quase todos os gêneros
Beckett (1906-1989) nos quais o irlandês exerceu expe-
chegou precocemen- rimentação. Se essa experimenta-
te ao Brasil no meio da ção significa forçar o limite das
década de 1950 com Esperando definições desses gêneros até que
Godot, apenas dois anos após a es- os críticos lhes atribuíssem adje-
treia da peça que causara frisson tivações como as de antirroman-
no Théâtre de Babylone de Paris. ce ou antiteatro, um componente
O resto é história: seguindo o rit- constante dessa pressão implosiva
mo global, o Beckett dramaturgo está certamente afiliado ao poé-
continua marcando presença nos tico. Emprego o poético aqui em
mais diversos palcos do nosso país, seu sentido mais comum, rela-
de montagens amadoras a gran- cionado aos atributos da poesia
des espetáculos, de peças filmadas quando se quer distingui-la da
a performances e instalações. Nas prosa: as ênfases de ritmo, sono-
primeiras décadas dessa relação, o ridade, circularidade, repetição
texto de suas peças ganhava trata- e variação sob medida precisa
mentos variados, muitas vezes já — procedimentos formais que
engatilhados para uma determina- prevalecem sobre o caráter disser-
da concepção de encenação. Não tativo e comunicativo da prosa.
foi senão aos poucos que o leitor Uma outra constante da
brasileiro ganhou versões em sua produção beckettiana em diversos
própria língua de obras que per- gêneros que também pertenceria
tencem a uma produção tão rica ao poético é a criação de imagens
em gêneros literários e meios artís- por toda sua obra; em outras pa-
ticos — romances, contos, peças lavras, a fabricação imagética que
radiofônicas e televisivas, um mé- não serve à narrativa romanesca
dia-metragem, poesias — quanto ou à ação dramática das peças,
extensa, cobrindo nada menos do que abole progressões de enredo
que seis décadas. e concatenações de eventos. Es-
Traduções aqui e acolá de ses momentos configuram-se em
seus romances escritos no imedia- uma autonomia e completude si-
to pós-guerra — como os impor- milares à do poema, e sua intru-
tantes Molloy de Léo Schlafman são nos gêneros de raiz dramática
(1988), Malone morre de Pau- ou épica opera uma implosão das
lo Leminski (1986) e O inomi- respectivas formas tradicionais.
nável (1989) de Waltensir Dutra Um dos grandes interesses em
— chegavam-nos como uma pa- Poesia completa é o de encon-
radoxal novidade atrasada. A vi- trarmos esses elementos poéticos
rada do século trouxe uma brusca não em um laboratório a servi-
guinada em nossa relação com o ço do teatro ou do romance, mas Samuel Beckett
irlandês; a partir de um crescen- em sua terra natal. por Fabio Abreu
te grupo de especialistas em sua Entrar em contato com es-
obra, testemunhamos nas duas úl- te arco de seis décadas de produ-
timas décadas uma produção tão ção poética possibilita ao leitor
ampla quanto cuidadosa das tra- acompanhar as mudanças esté-
duções de seus textos. ticas da trajetória beckettiana de
Entre as novas facetas dos modo a um só tempo mais con-
Becketts brasileiros que chega- densado e nítido. Os escritos que
ram recentemente, a do Beckett alçaram Beckett à fama datam do
poeta talvez seja a menos conhe- imediato pós-guerra: a peça Espe-
cida entre nós. As tentativas de rando Godot (1952) e sua trilogia
reunião de sua obra poética da- de romances supracitada foram
tam de 1961 e arrastam-se pelas publicadas entre os anos de 1951
décadas em coletâneas e edições e 1953. Este período marca uma
que deixaram muito de fora, se- virada que é comumente relacio-
ja por decisões editoriais, seja pe- nada a uma estética programática
la dificuldade de estabelecimento de fracassar, de empobrecimento
de textos definitivos. Em 2012, da linguagem e das possibilidades
os acadêmicos beckettianos Seán tradicionais dos gêneros; uma vi-
Lawlor e John Pilling organizaram rada à qual se atribui a adjetivação
o volume The collected poems of por vezes pouco precisa de mini-

Qual é a
Samuel Beckett (Grove Press), a malista. Para trás, um jovem es-
edição mais completa da produ- critor penando para encontrar sua
ção poética já feita até o presente, voz e destacá-la de figuras do alto
complementada por um rico tra- modernismo, especialmente a de
balho de contextualização e forne- James Joyce, de quem foi secretá-

palavra
cimento de notas. É nesse volume rio e amigo; à frente, um trabalho
que o poeta, professor e tradutor de concisão e apuração de uma
Marcos Siscar e a especialista em linguagem cada vez mais por um
tradução beckettiana Gabriela fio, seguindo o programa de uma
Vescovi se basearam para compor “literatura da despalavra” confor-
o trilíngue (francês, inglês e por- me elaborado em uma carta ale-
tuguês) Poesia completa, lança- mã de 1937. Há muitos fios soltos
do pela Relicário no ano passado. nessa demarcação categórica das
fases de sua produção — procu-
O poético rarei destacar alguns deles — mas,
A poesia não apenas inau- no todo, ela é certamente a mais
gura as obras publicadas de Bec- adequada à organização geral de
kett com Whoroscope, datado uma edição de seus poemas. Em traduções do francês e do inglês, obra
de 1930, como também a encer- Seguindo o arranjo crono-
ra no ano de sua morte, 1989, no lógico do volume organizado por poética de Samuel Beckett ganha edição
par Comment dire e what is the Seán Lawlor e John Pilling, Poesia trilíngue à altura de sua experimentação
word. Mas isso talvez não passe completa apresenta três grandes
de mera coincidência ou curiosi- partes: o Pré-guerra, o Pós-guerra
dade biográfica. O que importa e os Últimos poemas. Na primei- GUSTAVO DE ALMEIDA NOGUEIRA | CAMPINAS – SP
ressaltar é que a poesia aparece in- ra, encontramos o livro Ossos
MARÇO DE 2023 | 31

de Eco e outros precipitados dernismo de T. S. Eliot e de James Joyce. Seu poema Já em Watt — concluído em
(1935), duas seções de poemas es- de estreia, Horoscóputa (Whoroscope), é exemplar de 1948, mas composto majoritaria-
parsos reunidos e mais uma ainda, sua produção à época. As notas para esse texto tomam mente entre 1942 e 1944, enquanto
Poemas 1937-1939. Esta última quase duas páginas inteiras não sem motivo: trata-se o autor, que participara da resistência
encerra o que é provavelmente a de um sarcástico e impressionante tour de force poético francesa, escondia-se no sul do país
mudança mais brusca de sua tra- que amarra discussões científicas, prostituição, astro- — a relação com a tradição filosó-
jetória: são os primeiros poemas logia e detalhes obscuros da biografia de René Descar- fico-literária é outra. Na maior par-
escritos em francês, língua com a tes — tudo girando em torno do idiossincrático gosto te do romance, as referências deixam
qual Beckett produzirá quase a to- do francês por ovos parcialmente chocados. de ser explícitas e passam a integrar
talidade de suas obras no imediato As traduções desses primeiros poemas enfrentam as vozes de tal modo que a distân-
pós-guerra. Uma diferença notá- com precisão e atenção notáveis a complexidade das ca- Poesia completa cia ou a mediação das distinções en-
vel é a redução drástica (por vezes madas intertextuais, recriando um Beckett não somen- SAMUEL BECKETT tre personagem, narrador e intertexto
a zero) da dependência de jogos te em português, mas muito brasileiro, em termos que Trad.: Marcos Siscar e Gabriela são colocadas continuamente em xe-
Vescovi
intertextuais em relações ora de enveredam pelos becos locais da língua para encontrar que. Aqui, toda a erudição é dissolvi-
Relicário
paródia, ora de celebração da tra- os correspondentes do baixo e do escatológico envelo- 296 págs.
da por uma memória em estilhaços
dição literária — recurso onipre- pados pelo humor ácido e crítico do irlandês. A tradu- que deforma os acontecimentos ou-
sente nos escritos iniciais. tora Gabriela Vescovi comenta o trabalho de verter essa trora já mal vistos e falha não somen-
A parte destinada à produ- fase beckettiana para o português: te na narração, mas, antes, no próprio
ção do pós-guerra inicia-se com nomear dos objetos.
dois poemas marcados histori- O principal desafio inerente à tradução do primei- O enredo enxuto pelo qual
camente — com precisão rara ro Beckett foi a dificuldade de compreender os poemas Beckett ganharia fama é reconhecí-
na obra beckettiana — em tor- e as imagens propostas em sua totalidade, considerando vel: um sujeito chamado Watt, do
no de sua experiência de traba- todos os (vários) recursos usados pelo autor e as camadas qual pouco sabemos, viaja até os apo-
lho na Cruz Vermelha irlandesa de leitura possíveis. Como há muitas referências e alu- sentos de um certo senhor Knott, so-
em Saint-Lô, comuna francesa sões externas distintas, além de uma seleção lexical com- bre o qual ele — assim como o leitor
da Normandia. Seguem-se poe- plexa, a leitura dos poemas para tradução demandou um — pouco sabe; presta serviços no tér-
mas que compõem os adendos trabalho longo e lento, de decodificação também, para reo da casa, depois no primeiro an-
do romance Watt, escrito du- que, então, fosse possível começar a pensar o poema em dar; por fim, deixa o local, ainda sem
rante a Segunda Guerra, e um português. O segundo desafio era conseguir recuperar o Murphy saber nada de concreto sobre aque-
constante da peça radiofônica máximo de recursos possível e (tentar) criar uma malha SAMUEL BECKETT le para quem trabalhara, apesar de
Words and music (1962). Essa se- de significantes tão rica quanto a original em português, Trad.: Fábio de Souza Andrade seus esforços inesgotáveis de inves-
Companhia das Letras
ção conta ainda com os Seis poe- sem fugir às imagens poéticas propostas e ao nexo de ca- tigação. Este não-encontro é refleti-
272 págs.
mas: três publicados em revista, da poema, evidentemente. do em um outro desencontro que é
somados a outros três que con- o centro do livro: aquele entre pala-
têm dois originais cada — em in- A seção Poemas 1937-1939 traz uma virada na vra e coisa, sintetizado com agudez e
glês e francês. O que temos no poética beckettiana. O poema que a inaugura ilustra de aflição na passagem sobre um pote:
livro, portanto, são quatro varia- modo conciso a notável mudança de estilo:
ções: duas de Beckett e duas dos Olhando para um pote, por
tradutores para o português. elas chegam exemplo, pensando num pote [...]
O destaque da seção Úl- diferentes e mesmas era em vão que Watt repetia, Po-
timos poemas é a série gaiteados com cada uma é diferente e o mesmo te, pote. [...] Pois não era um pote,
(mirlitonnades) constituída por com cada uma a ausência de amor é diferente quanto mais olhava, quanto mais re-
dois conjuntos, em francês e in- com cada uma a ausência de amor é a mesma fletia, tanto mais ficava convencido
glês, o primeiro datando dos fins disso, de que não era um pote, nem
dos anos 1970. Como bem ex- Em sua correspondência, Beckett chegou a con- um pouco. Parecia um pote, era qua-
plicado em nota, a palavra mirli- fessar que a miríade de intertextos em seus poemas ini- se um pote, mas não era um pote do
ton refere-se a uma flauta infantil ciais era um reflexo de terem sido escritos de maneira Watt qual se pudesse dizer, Pote, pote, e se
precariamente construída e a ex- facultativa, distinguindo-os de sua produção a partir SAMUEL BECKETT sentir reconfortado.
pressão “vers de mirliton” designa de 1937, que se constituiria como obras escritas por Trad.: Fábio de Souza Andrade
Companhia das Letras
versos despretensiosos ou ridícu- uma necessidade de expressão. As repetidas manifesta- Sem “socorro semântico”, o
378 págs.
los. De extensões mínimas, essas ções de insatisfação com seus escritos atravessam toda romance apresenta séries combina-
poesias encerram uma condensa- a vida do irlandês; levando-as a sério ou não, é notá- tórias de palavras que ora esgotam as
ção do celebrado tragicômico bec- vel o quanto suas obras iniciais dependem do manu- possibilidades sintáticas de determi-
kettiano em pequeníssimas doses. sear de notas de leituras diversas. Estabelecendo uma nadas expressões, ora se emaranham
Os gaietados em inglês, produzi- outra relação com a tradição literária e filosófica, es- em fios infinitos — com destaque
dos já na década de 1980, seguem sa transformação encarna uma mudança estética geral para aquela em que o personagem
a mesma toada. Exemplificamos e sintomática da literatura do pré ao pós-guerra, dei- Arsene maldiz gerações inesgotáveis
com o mais curto deles: “contem- xando para trás os projetos monolíticos do alto mo- pela fórmula
pla tua bunda e escreve” (sim, fim dernismo. Nas obras de Beckett a partir de 1937, esse
do poema), em paródia ao ver- modernismo se dissolveria cada vez mais em um eco E a pobre velha terra piolhenta,
so de um soneto de 1580 escrito longínquo, identificável, porém tornado amorfo por minha terra e a de meu pai e de mi-
por Sir Philip Sidney, “look in thy uma memória e um sujeito em detritos. nha mãe e do pai de meu pai e da mãe
heart and write” (“contempla teu de minha mãe e da mãe de meu pai e
coração e escreve”). Após uma sé- Romances [...]. Uma merda.
rie de breves epitáfios, o livro con- Este mesmo processo pode ser visto na distin-
clui com os dois últimos escritos ção de dois de seus romances recentemente publicados: Essas combinatórias tornam-
O AUTOR
de Beckett, o par Como dizer Murphy (1938) e Watt (1953, mas escrito durante a -se uma intrusão que emperra o de-
(Comment dire) e qual é a pala- Segunda Guerra), ambos traduzidos por Fábio de Sou- SAMUEL BECKETT senvolvimento linear do enredo e
vra (what is the word). Compostos za Andrade e lançados no ano passado pela Compa- traz à tona a materialidade sonora
Nasceu em Foxrock (Irlanda), em
brilhantemente por uma gagueira nhia das Letras. Murphy é o primeiro romance que da linguagem como em uma corro-
1906. Compôs suas obras em inglês
que busca aflitiva e insistentemen- Beckett conseguiu publicar; o primeiro romance escri- e francês. Sua produção abarca
são poética.
te encontrar a palavra final, que to, Dream of fair to middling women, não encontrou seis décadas, começando em 1930 A expressão que almeja esgo-
não vem, não seria exagero dizer editora que o acolhesse no início dos anos 1930 e por e concluindo-se em 1989, ano de tar sabendo da impossibilidade de
que esses poemas sintetizam o tra- vontade do autor só veio ao público postumamente. sua morte em Paris. Conhecido por esgotamento e a expressão cada vez
balho de uma vida toda dedicada O leitor acostumado à concisão beckettiana encontra- Esperando Godot (1953), peça que lhe mais enxuta, empobrecida e míni-
à experimentação textual. rá em Murphy um Beckett muito diverso: um nar- alçou à fama internacional, Beckett ma partem de questões semelhantes
rador irônico e continuamente intrusivo constrói sua explorou os mais diversos gêneros ou, talvez, espelhadas. Da palavra
Transformação narrativa com uma prolixidade que parece inesgotável, literários e artísticos: romances, que não se encontra com o objeto
Um breve passeio pe- cerzindo intertextos com uma erudição de alcance es- contos, peças radiofônicas e e que é repetida incessantemente,
televisivas, um média-metragem e
las notas fornecidas pela edição paço-temporal imensa, servindo-se de — e celebrando Beckett chega à busca pela palavra-
poesias. Filho último do modernismo,
de Poesia completa nos revela — alguns dos grandes satíricos da prosa, como Law- -última que não virá. Essa busca,
o irlandês passa a partir do pós-guerra
o quanto a obra beckettiana se rence Sterne, Rabelais, Flaubert e, naturalmente, Joyce. a explorar os limites das convenções
sintetizada em seu último poema,
transformou ao longo dessa ex- Trata-se talvez da obra mais cômica do irlandês. Essa literárias dentro do que é chamado Comment dire, que volta em sua au-
tensa trajetória. O jovem Beckett comicidade é garantida a partir da distância que o nar- de uma estética do fracasso. Foi totradução em what is the word, e
da década de 1930 é marcado rador toma de seu texto para melhor satirizá-lo por laureado com o Nobel de literatura que agora volta para nós em Como
por uma erudição precoce casa- meio do livre manuseamento de intertextos, como em em 1969, acontecimento do qual se dizer e uma vez mais em qual é a pa-
da com a afiliação ao alto mo- uma paródia do romance de ideias. lamentou em diversas ocasiões. lavra — que se espalhe.
32 | MARÇO DE 2023

Renovação lírica
Tradução da totalidade dos poemas em fragmento
de Anacreonte mostra o vigor e a inteligência de
um grande poeta da Antiguidade grega
Fragmentos completos
ANACREONTE
PAULO PANIAGO | BRASÍLIA – DF Trad.: Leonardo Antunes
Editora 34
448 págs.

N
ão sei se o leitor pôs re- Lacunas revestidas O mar implacável com on-
paro, mas, toda tradu- Às vezes, no andamento dos trabalhos, é das negras e turbulentas soa mui-
ção do grego clássico mesmo o caso preencher lacunas e tomar cer- to potente, se não me equivoco, a
vem cheia de palavras- tas liberdades, como Antunes faz na tercei- qualquer tempo. Essa a vantagem
-valise, auroras dedirróseas, qual- ra versão do fragmento 346, quando chega a de se deparar com trabalho tão
quer coisa com sabor doceamargo inserir uma estrofe inteira, anotada entre col- minucioso. Em que pese a possi-
(em vez de agridoce, vai ver que chetes, justamente para demarcar as diferen- bilidade, que sempre existe, de o
por conta da contagem de sílabas ças entre “invenção” e os fragmentos restantes. leitor pouco afeito a contagem de
para os tais metros poéticos), issos pés e metros arcaicos se sentir algo
amplitroantes, aquilos belofluen- [Foram-se as naus velozes, negras, marginalizado, se tiver por exem-
tes, outros tantos auriluzentes e que antes se viam nessas praias. plo pouca familiaridade com dí-
que tais? Tudo bem, relaxe e des- Foram-se os muros da cidade.] metros trocaicos acataléticos e
frute, se possível. É sempre um quejandos, alternâncias de glicô-
alento à inteligência saber que os A próxima estrofe, da qual muito pou- nios e ferecrácios, ufa. Ou se tiver
tradutores não cessaram de pro- co sobra de texto, também foi preenchida pe- pouca competência para entender
duzir material qualificado para re- la imaginação inventiva do tradutor. a sinalização nada amistosa da sú-
cuperar o que resta de importante mula métrica ao fim do livro, o
vindo dos primórdios do que se [Ora de] noite [junto ao fogo que gera um volume extra que só
O AUTOR
conhece como uma das principais já não se] vê [em mãos o vinho] iniciados saberão escandir. O meu
vertentes da civilização ocidental, doce e [encorpado como o mel,] argumento é que mesmo esse lei- ANACREONTE
ou seja, o pensamento e a poesia tor pouco afeito a tantos detalhes
A tradição de estudiosos costuma
da Grécia clássica. Verdade, o original pode ser inteira- terá como se beneficiar da leitura,
dizer que Anacreonte nasceu na cidade
O trabalho meticuloso é mente diferente, mas talvez algo da mesma se souber passar um pouco à mar-
de Teos, na Ásia Menor, por volta do
de Leonardo Antunes, professor, linha de raciocínio permaneça, uma vez que gem da discussão que tem obje- 6o século a.C. Os habitantes fugiram
poeta e tradutor, que se debruçou o sujeito revirou toda a obra do avesso para tivo, afinal muito justificável, de depois de um ataque do general Ciro
sobre a poesia lírica de Anacreon- lhe compreender o modo de raciocínio. Tal- auxiliar estudantes de grego ou de e fundaram Abdera, na Trácia, em
te e lhe traduziu os Fragmentos vez não fossem essas palavras usadas no tex- tradução interessados em apren- 540 a.C. e como existe menção aos
completos, seguidos das Ana- to de Anacreonte, mas algo do sentido é bem der nuances e cuidados dos pro- episódios na poesia de Anacreonte,
creônticas. Ele havia traduzido possível que tenha se mantido. Aqui é o ter- blemas do ofício. supõe-se que ele tenha acompanhado
Sófocles, Édipo tirano, lança- ritório das conjecturas, das hipóteses a serem O que de fato pode configu- a expedição. Considerado um dos
do em 2018, e faz o mesmo neste consideradas e o poder de adivinhação do tra- rar dois senões do livro são as ten- mais importantes poetas líricos
momento pelas epopeias de Ho- dutor é talvez parte dos talentos que lhe con- tativas de Antunes de ir um pouco da Grécia antiga, ao lado de Safo
e Píndaro, Anacreonte teve a obra
mero, Ilíada e Odisseia. fere o acervo acumulado de conhecimentos a além do alcance. É sabido que ele
compilada em cinco volumes, dos
Há relatos de que Anacreon- respeito do passado grego. estabelece o trabalho no rastro quais restaram apenas poemas em
te tenha passado temporada na cor- O sentido muitas vezes pode ser jus- do projeto tradutório dos irmãos estado fragmentário, além de um
te de Polícrates, em Samos, quando tamente a ambiguidade. O fragmento 382, Campos, os poetas concretistas conjunto de poemas tardios, feitos
disputou supostamente com o ti- por exemplo, diz: “Tendo paixão pela cho- que cunharam a expressão trans- entre 100 e 600 d.C. à sua moda ou
rano o amor de Esmerdes, e outra rosa lança”, que o tradutor explica poder se literar para empreender algumas em homenagem a ele, chamados
temporada na corte de Hípias, em tratar de duplo sentido: “É possível que a invenções sagazes no projeto de de Anacreônticas, e que também
Atenas. Circulou um bocado, em lança lacrimosa seja parte de uma descrição verter grande poesia para o por- foram incorporados ao volume.
resumo, numa época em que viajar sexual, talvez de um falo vertendo sêmen”. tuguês e que os situa em patamar
era mais do que transtorno. Assim avançavam os gregos, suponho que elevado na história da literatura
A edição bilíngue, além do rissem como nós das mesmas tolices. Às ve- (também por isso, claro, quan-
original grego dos fragmentos zes, a referência é tão direta que fica impos- do não pela inteligência poética
restantes da poesia dedicada ao sível não ver sugestão, como no fragmento própria, que não era nada pouca),
vinho, ao amor, à juventude per- 393: “Ares audaz gosta de uma lança firme”. mas as iniciativas que Antunes to-
dida e à velhice ligeiramente fora Somos bobos igual. ma em duas ousadias tradutórias,
do padrão, porque celebrada a to- nos fragmentos 359 e 376, não
do vapor por Anacreonte (embora Lado mais grave resultam bem resolvidas. O que
exista fragmento em que reclame Como se trata de Grécia antiga, mes- Leonardo Antunes entende como
do entusiasmo de um amante jo- mo o mais jovial e divertido dos poetas vai “molde concretista” é justamen-
vem que afinal lhe fadiga), conta encontrar espaço para se dedicar a temas ás- te o problema que os concretistas
TRECHO
ainda com comentário minucio- peros, como a ideia de que a morte é solução apontavam na poesia de Apollinai-
so do tradutor que sempre aju- para uma vida repleta de problemas. É o que re, certa tendência a representações Fragmento 395
da o leitor a entender um pouco aponta Antunes no comentário ao fragmento gráficas de efeitos tautológicos, pa-
melhor o contexto da poesia e da 347b. E não se trata de qualquer morte, mas ra a qual torciam o nariz. Minhas têmporas: já grisalhas.
cultura gregas do período da An- aquela por afogamento, o que para um gre- São pormenores muito pe-
tiguidade. Por exemplo, há men- go tem peso extra, porque o corpo não será quenos para o volume de empenho Já está branca minha cabeça.
ção às Targélias, festividade agrícola encontrado para receber ritos fúnebres ade- e trabalho de peso que abrilhantam Grácil juventude não mais
em homenagem a Targélio, divin- quados. O poema diz: a comunicação entre culturas tão me acompanha. Velhos, os dentes,
dade menor, na qual se praticava o distintas no tempo e espaço como a e do doce tempo da vida
pharmakós, exílio, espancamento Ouço aquela moça que se grega e a brasileira, que aos poucos
ou sacrifício ritual de um ou mais reconhece facilmente preenche lacunas, como pode e dá, já não muito mais a mim resta.
indivíduo(s) que fosse(m) o(s) mais muitas vezes lamentando das traduções faltantes dos gregos É por isso que muitas vezes
feio(s) encontrado(s) na sociedade e culpando seu destino: de alto quilate. Ainda bem. É quase choro por temor de ir ao Tártaro.
local. Pobres dos chamados feios, possível ouvir o murmúrio da voz Do Hades certamente é terrível
ou seja, a maioria de nós. O objeti- “Sofreria menos, mãe, poética de Anacreonte a convocar
vo era supostamente justo: “Expiar se me carregasse para leitores de qualquer época para a o interior; penosa, pra lá
os males que afligiam ou podiam o implacável mar e suas grande festa (e o grande problema) a descida e além disso é certo
afligir a região”. Ah, tá bom. ondas negras, turbulentas. que é estar vivo. que quem desce nunca mais sobe.
MARÇO DE 2023 | 33

REPRODUÇÃO

luiz antonio de assis brasil


O CÂNONE NA MOCHILA

ENSAIOS,
DE MONTAIGNE
1. quinhentos e oitenta”. Estamos,
É pena que Montaigne se- mesmo, perante o intelectual que
ja conhecido apenas por meio de já venceu as ostentações e vaida-
frases pinçadas de sua obra maior, des. Um belo exemplo perante o
Os ensaios, as quais circulam nas esnobismo de alguns meios de
redes sociais de autoajuda. Hu- hoje, inclusive quando comen-
manista do Renascimento, Mi- tam Montaigne.
chel de Montaigne desenvolvia
pensamentos complexos, muitas 5.
vezes autorreferenciais, mas qua- Um aspecto que ressalta de
se sempre recorrendo a autores da Ensaios é a defesa do livre-arbí-
Antiguidade greco-romana, e não trio. Isso, hoje, seria uma platitu-
só. Essa complexidade, contudo, de. Mas pensemos na Europa, no
não significa hermetismo. Obede- período: tratava-se de uma ousa-
ce a uma lógica interior derivada dia, de um crime, até. Não esque-
da relação de causa-e-efeito dos ar- çamos: Galileu e Giordano Bruno
gumentos, e, por isso, pedem um ainda seriam condenados por suas
pouco de concentração, numa ideias, e a inquisição portuguesa
época descabeçada como a nossa. só seria extinta em 1821. Talvez
nem precisemos ir tão longe nem
2. tão distante no tempo. E é com
Sim, há quem se queixe das essa liberdade que ele examina
inúmeras citações em latim, mas vários temas, e todos me impres-
temos de entender que o latim cir- sionam. E atenção: usa a primei-
culava como língua corrente para ra pessoa, tal como Agostinho de
expressão das ideias. Boa provi- Hipona, que terá sua coluna aqui
dência, considerando a multipli- no Rascunho. Considero mui- Montaigne,
cidade de línguas em formação e to saudável esse uso, o qual ve- autor de
dialetos que circulavam pela Euro- jo retornar à Universidade depois Os ensaios
pa. Ademais, sem susto: as tradu- de um tempo de anátema. Aliás,
ções vêm logo a seguir às citações. textos que fizeram a Humanidade
E não será má ideia aprender a do- transformar-se, esses, todos usa-
ce fluência musical dessas frases, ram a primeira pessoa. Devido va o estudo de queimar pestanas, lho Mundo com o Novo, e, nesse
mesmo que não saiba o que pos- à natural limitação do espaço da à maneira de um Dr. Fausto me- cômputo, o Velho sai em imen-
sa significar, em português, a pa- coluna, escolhi os dois temas que tido numa biblioteca, Montaig- sa desvantagem. A Europa só fazia
lavra latina “rosa”. mais me esmagam pela sua luci- ne faz uma alerta aos mestres: que guerrear contra seus semelhantes,
dez. Um se refere à educação das tivessem cuidado com os alunos e sempre por motivos políticos e
3. crianças, e o outro, aos aboríge- que se dedicassem a ler obsessiva- econômicos, e nisso praticando
Para já, o título, Os Ensaios, nes da América [leia-se: do Bra- mente devido a um temperamen- barbáries inenarráveis; na Amé-
que devemos interpretar de modo sil]. Terei de usar paráfrases, dado to melancólico e antissocial; isso rica, usavam da mesma atrocida-
radical: são tentativas a que se pro- que as citações ocupariam um ta- poderia significar uma falta de ca- de sobre os indígenas. Já a guerra,
põe o filósofo, sem pretensão de es- manho enorme. pacidade de convivência. Aliás, o quando acontecia entre os “cani-
crever de modo cabal e definitivo. próprio Montaigne unia a cultura bais”, era por motivos nobres e,
Humildade? Não. Inteligência. Es- 6. à prática, tendo assumido funções numa linguagem de hoje, seria
se caráter de provisoriedade aparece Sobre a educação dos jo- administrativas em sua cidade. possível dizer: derivados não na
aqui e ali, como um espírito que va- vens — Impressiona ler este en- cobiça, mas na honra.
ga nos subtextos, nas interrogações saio, pois poderia ser assinado por 7.
e perplexidades que partilha conos- qualquer pedagogo do nosso sé- Dos coches e Dos canibais — 8.
co. Com suas constantes dúvidas, culo. Montaigne execra o ensino No primeiro, Montaigne faz-se Montaigne é, assim, um in-
ele nos traz um frescor juvenil para de seu tempo, todo baseado na gracioso brincando com um título telectual que foi além dos princí-
um autor do século 16. autoridade do professor e na ig- de propaganda enganosa: ele nos pios humanistas, atingindo um
norância do aluno. Nada de en- fala, na verdade, dos índios e, no estágio perigoso de livre-pensar
4. cher o aluno de conhecimentos segundo, também dos índios, cla- que o remete às portas do Ilumi-
A nota inicial é de uma sim- que ele tem de decorar; a melhor ro, mas a partir da perspectiva do nismo, chegando, inclusive, a su-
plicidade infantil: “Quero que me atitude magisterial é fazer com canibalismo. Um dado importan- perá-lo com uma ideia atual: o
vejam aqui em meu modo sim- que o docente chegue por si mes- te: lembremos que Europa conhe- da solidariedade ou, como está
ples, natural e corrente, sem po- mo ao conhecimento e que, antes cia o Novo Mundo havia poucos na moda dizer, empatia. Sua lei-
se nem artifício: pois é a mim que de tudo, possa duvidar. Duvidar, anos, que, assim, se tornava uma tura, além de ser um belo exercí-
retrato. Meus defeitos, minhas em vez de acreditar, é a única for- total novidade, o que não impe- cio intelectual, significa adquirir
imperfeições, minha forma natu- ma de adquirir conhecimento. dia os “homens civilizados” de ma- relativizar as inovações culturais
ral de ser, hão de se ler ao vivo, Ele não queria que só o profes- tar e destruir, à busca do ouro e da de nosso tempo, mostrando-nos
tanto quanto a decência pública sor tivesse o direito de inventar ou prata. O que ele nos diz em am- que somos os mesmos desde que
me permitiu”. E diz que se vivesse falar; antes disso, deve mais ou- bos os ensaios é, sim, escrito pe- nos conhecemos como Huma-
a “doce liberdade” dos indígenas, vir do que falar. E utiliza a ima- lo mesmo homem, e esse homem nidade; o que falta são pessoas
certamente teria se apresentado gem da instrução do tipo funil condena o massacre que o homem que nos mostrem isso com clare-
nu, com o corpo pintado: “Assim, na cabeça do aluno, em que abo- branco [ele dizia “europeus”] rea- za, simplicidade e força. Michel
Leitor, sou eu mesmo a matéria mina a ação dos professores que lizava, sem a menor solidarieda- de Montaigne é uma dessas. Por
desse livro”. Quem pensa que is- metem no funil todo o conheci- de, sobre civilizações mais antigas essas e outras razões que o leitor
so foi escrito em 2023, atente pa- mento. Mas suas preocupações de e sábias, que apenas querem viver descobrirá. Por sua atualidade e
ra a assinatura: “De Montaigne, natureza psicológica são atuais: suas vidas em paz. Com que auto- força, Os ensaios merecem ir pa-
neste primeiro de março de mil, numa época em que se valoriza- ridade faziam isso? Compara o Ve- ra nossa mochila.
34 | MARÇO DE 2023

Rajadas
Harlem também eram envolvidos mundo dos brancos, que a rele-
com a corrente de pensamento ba- gou um local de privações como
tizada de New Negro — Novo a 116th Street. Seu filho, Bub, li-
Negro — cujos integrantes defen- da com a solidão enquanto a mãe

de vento
diam a recusa das Leis Jim Crow, trabalha. O zelador Jones nutre
de segregação racial. uma obsessão pela protagonista,
É na herança histórica deste a ponto de tentar atacá-la, e ali-
cenário ambíguo, entre a repressão menta planos de vingança após a
e a resistência, que a trajetória de rejeição. A mulher de Jones, Min,
Lutie Johnson e de seus vizinhos luta para não ser expulsa pelo ma-
Em A rua, Ann Petry apresenta as é contada. Com o marido enfren- rido violento, a ponto de procurar
assombrosas consequências das tando dificuldades para conseguir
trabalho, no cenário pós-Depres-
um curandeiro. Por último, temos
a sra. Hedges, que administra um
tensões raciais nos Estados Unidos são em que homens negros foram prostíbulo enquanto se debate
os principais afetados pelo desem- com as cicatrizes de um incêndio,
prego, Lutie é obrigada a aceitar do qual foi a única sobrevivente.
GIOVANA PROENÇA | TAUBATÉ – SP o cargo de empregada na casa de Com frequência, ela convida Lu-
uma abastada família, deixando o tie para trabalhar em seu bordel.
esposo e o filho.
Antes disso, a família abri- Calvário

O
ga órfãos para receber auxílios do Dois personagens represen-
potencial transgres- governo, mas a presença do pai de tam o calvário das esperanças de
sor da literatura — o Lutie, alcoólatra incorrigível, faz Lutie. Ainda iludida pela possi-
que torna a arte capaz o casal perder esta renda. O ca- bilidade de ascensão social, den-
de desafiar a repressão samento se despedaça devido à tro da lógica meritocrática que
— é materializado em A rua. O distância e a protagonista sente o aprendeu com os patrões, ela se
romance de Ann Petry foi o pri- peso da solidão da mulher negra, anima quando o músico Boots
meiro livro publicado por uma termo que se popularizou nas úl- Smith a convida para cantar com
autora negra a bater a marca de timas décadas dentro do feminis- sua banda. Porém, a oportunida-
1 milhão de exemplares vendidos mo interseccional. de esconde as intenções sexuais
nos Estados Unidos. A publicação de Boots e de Junto, homem
aconteceu em 1946, em meio à se- A rua Descrição fantasmagórica branco que enriqueceu no Har-
gregação racial que ainda impera- ANN PETRY Na rua que dá título ao li- lem. Lutie resiste ao interesse dos
va em grande parte do país. Trad.: Cecília Floresta vro, somos apresentados a Lutie, homens em explorá-la, mesmo
Carambaia
A protagonista, Lutie John- que caminha com dignidade em que esta seja a sua única oportu-
352 págs.
son, só se sente humana no Har- meio à forte ventania do Harlem. nidade de deixar a 116th Street.
lem. No bairro, ela está a salvo Em busca de um apartamento As implacáveis rajadas de
da hostilidade das pessoas bran- que possa bancar para viver com vento do Harlem são um símbolo
cas. O território oferece um lo- o filho, ela acaba em um prédio da animosidade da rua, mas tam-
cal seguro do olhar incriminador decadente na 116th Street. A des- bém de transformação. Esta, con-
do mundo branco, conforme per- crição fantasmagórica da rua e de tudo, é desoladora. É doloroso ver
cebido por Lutie, mas também seus habitantes beira o estilo góti- o despedaçar das esperanças de
representa uma gama de adversi- co americano, profundamente en- Lutie, ainda que sua tragédia seja
dades para a personagem, além de raizado na literatura do país. anunciada. Se na abertura da nar-
uma clausura para as suas ambi- Caracterizada como bela, rativa ela busca conquistar a sua
ções de ascensão social. virtuosa e digna, Lutie é, por ex- independência; ao fim, ela se per-
Localizado em Manhattan, celência, como as heroínas dos cebe condenada a 116th Street.
o Harlem é historicamente vincu- romances ingleses dos séculos 18 Em sua visão, há muitos algozes:
lado à cultura afro-americana. Na e 19. Ela enfrenta uma série de os brancos, os homens que a dese-
narrativa de Petry, a desolação da intempéries devido à sua situação jam, as mulheres que a invejam —
vizinhança é explicada pelos efei- A AUTORA vulnerável, e é ameaçada por per- todos sintetizados pela rua. Nesse
tos da Grande Depressão, na qual sonagens inescrupulosos e forças sentido, a queda de Lutie se asse-
ANN PETRY
os negros foram os maiores afeta- sociais. Não é um exagero apon- melha ao senso trágico experimen-
dos pelas restrições econômicas. Nasceu no estado de Connecticut tar que os grandes antagonistas tado por muitas das personagens
Anteriormente, o Harlem foi re- (Estados Unidos), em 1908. Foi do romance são o capital e a he- de Toni Morrison, primeira escri-
ferência no acolhimento de afro- escritora e jornalista. Em 1946, o seu gemonia branca. tora negra laureada com o Nobel.
-americanos que deixavam o Sul primeiro romance, A rua, é publicado. Na década de 1940, quan- Lutie revida às opressões
dos Estados Unidos, visando fugir O livro foi o primeiro publicado por do A rua surgiu pela primeira com um ato de violência. A cons-
uma autora negra a vender mais de
da segregação, que agia com mais vez, as letras norte-americanas es- trução da narrativa de Petry traz
um milhão de cópias nos Estados
brutalidade na região. tavam inundadas pelo solipsismo ecos de De passagem (1929),
Unidos. Morreu, aos 88 anos, em 1997.
Petry demonstra como a he- — ou seja, a crença de que a úni- romance da escritora afro-ame-
gemonia branca via no bairro uma ca realidade existente é aquela do ricana Nella Larsen, também am-
nova oportunidade de segregação, indivíduo que a percebe. Isso im- bientado no Harlem. O livro foi
restringindo ali as manifestações pactou, nas obras do período, em recentemente editado pela Pen-
da cultura e a própria existência de uma maior exploração da interio- guin-Companhia. No fim da tra-
pessoas negras, de modo que Lutie ridade das personagens. Por outro ma, Irene Redfield — outrora uma
expressa o desconforto fora da loca- TRECHO lado, o caráter social desta literatu- mulher exemplar, assim como Lu-
lidade, devido à recriminação dos A rua ra permaneceu oculta para grande tie — é tomada por sua própria re-
brancos por sua simples presença. parte dos críticos. Contudo, difi- volta, em movimento semelhante
Mas o Harlem — ponto cilmente a denúncia do racismo e ao da protagonista de Petry.
central do romance — foi apro- Um vento frio de novembro de problemáticas de classe, mos- Em A rua, Ann Petry apre-
priado pelos afro-americanos co- soprava na 116th Street. A tradas por Petry, passam impunes senta as assombrosas consequên-
mo símbolo de resistência. A corrente sacolejava as tampas ao leitor contemporâneo. cias das tensões raciais, por meio
partir da década de 1920, o lo- Nesse sentido, a estória de da representação da degradante
das latas de lixo e sugava pelas
cal torna-se o centro cultural de A rua é contada por um narrador 116th Street — símbolo das afli-
um grupo de artistas e intelectuais janelas abertas as persianas, impessoal, com acesso aos pen- ções de Lutie Johnson. O futuro
de vanguarda, engajados com as que batiam contra as janelas; samentos íntimos do elenco do luminoso projetado pela prota-
problemáticas raciais e com a re- esse vento espantou grande romance. Um grande acerto de gonista, longe das armadilhas da
consideração formal e estética. O Ann Petry reside na exploração rua, é enterrado pela hegemonia
parte das pessoas da rua na
movimento, conhecido como a dessa interioridade, que ora colo- branca e pelo machismo. Com
Renascença do Harlem, deu no- quadra entre as Seventh e ca a ótica dessas personas como o desfecho da narrativa, a tragé-
vos contornos ao modernismo Eighth Avenues, a não ser por uma lente para o leitor, refletin- dia de Lutie está completa. Mas
norte-americano. Entre eles, es- alguns pedestres apressados do as suas psiques, ora emprega o a trajetória de Ann Petry e de seu
tavam nomes como Langston realismo cru e objetivo. romance, que continua a sen-
que se curvavam num esforço
Hughes, W. E. B Du Bois e Zora O prédio é um mosaico de sibilizar mais de um milhão de
Neale Hurston. Muitos dos prin- de expor a menor superfície indivíduos que lutam contra o de- leitores, demonstra o potencial
cipais expoentes da Renascença do possível ao seu assalto violento. sajuste social. Lutie se ressente do desafiador da literatura.
MARÇO DE 2023 | 35

O jardim de satã
Sátántangó, do húngaro László Krasznahorkai, é um romance opressivo,
escrito em sentenças longas que se estendem por linhas e mais linhas

BRUNO NOGUEIRA | UBERABA – MG

U
ma vila abandonada, mente retratado. Isso, de fato, relativiza seu poder, ao Se a Hungria, antes de
vítima de chuva e es- mostrar seus limites temporais, humanos, mas pare- 1945, era parte do Império Aus-
curidão constantes; um ce quase aquilo que, em inglês, poderia ser chamado tro-Húngaro, que durante a Se-
grupo de pessoas pou- de cop out. O hype era grande demais, e o personagem gunda Guerra se aliou à Alemanha
co confiáveis e pouco capazes de não poderia estar à altura; é difícil imaginar que, mes- de Hitler, chegando a permitir a
dar confiança; uma vida pobre nu- mo quando retratado em seu ápice, ele poderia ser tão execução de centenas de milhares
ma região decrépita, sem qualquer grandioso quanto o mito formado a seu redor, e a obra de judeus húngaros, a chegada da
perspectiva de melhora; apesar de nos faz duvidar de Kurtz, e questionar a grandeza que União Soviética e a derrubada do
tudo, uma esperança: a aparente os outros personagens atribuem a ele. Reich se tornaram promessa de
ressureição de um homem que, O Irimiás de Krasznahorkai, por outro lado, é uma vida nova; mas embora a ter-
todos acreditam, é capaz de mu- um personagem que se mostra de modo significativa- rível dominação nazista tenha si-
dar seus destinos. Assim vivem mente mais complexo. Vemos de perto as falhas de seu Sátántangó do superada, a promessa soviética
os personagens de Laszlo Krasz- caráter, seus limites, seus problemas, mas ainda assim LÁSZLÓ KRASZNAHORKAI não foi capaz de dar ao povo hún-
nahorkai em Sátántangó: numa percebemos a razão pela qual os outros personagens de- Trad.: Paulo Schiller garo aquilo pelo que ansiavam.
Companhia das Letras
escuridão úmida e opressiva, on- positam nele sua confiança. É claramente um homem A “terra prometida” pelos novos
227 págs.
de, inesperadamente, parece sur- que se destaca entre os seus de alguma forma, mas isso dominadores do país parece nun-
gir uma esperança. não o transforma em alguém capaz de ignorar as for- ca ter sido alcançada, sendo, em
Nenhuma descrição curta ças que controlam o mundo em que vive. vez disso, um lugar de escassez e
como a que ofereço acima seria Não se poderia dizer que Sátántangó é um li- pouca segurança. Seria possível
capaz de transmitir o poder opres- vro de grandes esperanças. Os personagens, além de enxergar no caminho dos perso-
sivo da ambientação de Kraszna- sua situação precária, não são um grupo unido. Não nagens uma alegoria: a busca por
horkai, cuja qualidade e natureza há confiança ou solidariedade entre eles, e isso, soma- uma terra prometida encontra na-
sombria me lembraram o Cora- do à sua situação precária, torna difícil acreditar em da mais que um mundo tão precá-
ção das trevas, de Conrad. Juro seu futuro, e nos pegamos duvidando de Irimiás mes- rio quanto o anterior.
que, a certo ponto, era como se mo nos momentos em que ele parece o mais confiá- Claro, essa leitura não tem a
meus próprios ossos se umedeces- vel. Na taverna do minúsculo povoado abandonado, pretensão de “explicar” o roman-
sem diante da chuva incessante aranhas que nunca são vistas trabalham incessante- ce. Uma das características desse
que alaga as páginas do roman- mente, a tal ponto que qualquer um que caia no so- tipo de obra é, justamente, a im-
ce — e isso não se deve apenas às no acaba acordando envolto em teias tão leves quanto possibilidade de reduzi-la a uma
descrições do mundo em que es- uma camada de pó; da mesma maneira, fica sempre única explicação, e, no caso de
sas personagens vivem, mas tam- a sensação de que o destino desses personagens é tão Sátántangó, há até mesmo uma
bém se manifesta na forma que o insidioso quanto as aranhas, e que bastará o mínimo série de elementos místicos, reli-
O AUTOR
autor decidiu dar às frases desse descuido para que ele mais uma vez os enrede numa giosos e sexuais que atravessam
seu primeiro romance. Sentenças situação precária. LÁSZLÓ KRASZNAHORKAI os outros temas presentes no tex-
longas se estendem por linhas e to. Com a tateante suposição de
Nasceu em Gyula (Hungria), em 1954.
mais linhas, deixando o próprio Ressonâncias obscuras uma alegoria feita acima, preten-
É um romancista e dramaturgo
leitor sem fôlego. É verdade que, Outro elemento interessante da obra de Kraszna- húngaro conhecido pela complexidade
do apenas indicar como, embora
em alguns casos, sua extensão che- horkai são as diversas referências históricas e religiosas. e melancolia contida em suas obras,
seja fácil supor no romance uma
ga a ser tão grande que as frases se Essas referências, opacas mais pelo sentido que têm no frequentemente descritas como simples crítica à dominação mili-
tornam confusas (me pergunto se texto que pela impossibilidade de apontar relações com distópicas e pós-modernas. Vários tar do país e à escassez advinda da
o húngaro, idioma notoriamente o mundo, fazem com que o romance lembre a literatu- de seus romances, incluindo os dois Guerra Fria, o autor não é cego
complexo, tem mais recursos que ra produzida em tempos de opressão, como se o autor primeiros, Sátántangó e Az ellenállás para a complexidade dos conflitos
o português para conectar os ele- buscasse sussurrar algo que não poderia dizer em voz al- melankóliája foram adaptados para o que moldaram a história da Hun-
mentos que, conforme as frases ta sem perigo. É verdade que a obra foi lançada durante cinema pelo diretor húngaro Béla Tarr. gria, nem para o papel que a Ale-
se prolongam, se tornam mais e o domínio soviético sobre a Hungria, e, em um de seus manha nazista teve em afundar a
mais numerosos), mas isso acon- capítulos (cuja atmosfera sombria, somada a uma situa- qualidade de vida do povo húnga-
tece pouquíssimas vezes, e se os ção burocrática dificilmente compreensível, lembra o ro, com o aval dos próprios líderes
referentes gramaticais se perdem, Kafka de O castelo) as forças militares aparecem como do país — até porque a influência
o leitor consegue se localizar pe- poder em relação ao qual a desobediência seria perigo- nazista, por certo, foi sentida na
lo contexto. As frases longas, que síssima — mesmo para um personagem com tanta ca- própria família judaica do autor.
revolvem sobre si mesmas como pacidade e recursos como Irimiás; contudo, embora a Essa multiplicidade de
uma espiral, conseguem também situação real possa ter de fato inspirado esses elemen- TRECHO interpretações possíveis, sem
ressoar algo da sensação de fal- tos, seria superficial atribuir peso demais a ela, uma vez dúvida, é um dos trunfos de Sá-
Sátántangó
ta de direção que os personagens que Krasznahorkai é conhecido pela obscuridade e me- tántangó e torna impossível redu-
parecem sentir conforme espe- lancolia de suas obras, mesmo em romances publicados zir a obra a associações históricas.
ram alguém capaz de lhes apon- muito depois do fim da União Soviética. À direita deles, acima da terra As relações individuais dos perso-
tar um caminho. Além disso, não me parece que Sátántangó sim- sem vida, enlameada, a cerca nagens são contextualizadas por
A existência desse alguém é plifica ou recusa as complexidades políticas de seu tem- um mundo de escassez e pobre-
de quinze ou vinte metros,
outro elemento que me lembrou po, graças a certas referências mencionadas. Quando za, mas são também moldadas por
d’O coração das trevas. Em Sá- Irimiás indica aos moradores do povoado que visitará flutuava, agitando-se com religião, desejo sexual, e todo tipo
tántangó, assim como na obra de uma fazenda que, espera, poderá lhes dar muitos fru- delicadeza, um véu branco de relação interpessoal — com a
Conrad, existe um personagem al- tos, os moradores abandonam o povoado em peregri- transparente que, devagar, possível exceção de relações amo-
çado a status quase mítico — mas, nação até uma fazenda, alguns em carroças, alguns a pé. rosas, uma vez que, ao que parece,
como se de maneira respeitosa,
ao que me parece, Krasznahorkai Quando encontram a fazenda que buscavam, encon- nenhuma relação exposta nessas
concretiza a existência desse per- tram um lugar decrépito, abandonado. Depois de al- se deixasse cair. Não tiveram páginas sombrias mereceria um
sonagem de maneira muito mais gum tempo, um deles se revolta, e diz: “Ele prometeu a oportunidade de expressar adjetivo como esse. Não é sem
efetiva que o próprio Conrad. que reergueria a nova Canaã para nós!... Vejam! Olhem! surpresa ao verem, espantados, motivo, considerando essa com-
Na obra do autor britânico, a tão Essa é a nossa Canaã [...] Ele nos atraiu para... para esse plexidade, que apesar de o livro
que no instante em que tocou
anunciada grandeza de Kurtz aca- lugar arruinado”. Canaã, difícil ignorar, é a terra pro- não ser tão extenso, o filme sobre
ba mitigada pela velhice em que metida aos judeus segundo a Bíblia, de maneira que es- ao chão, a “coisa como um véu” a obra feito por Béla Tarr se pro-
ele se encontra quando é efetiva- sa referência parece carregada de sentido. simplesmente se desfez em nada. longa por mais de sete horas.
Revolução BAIXE
dos Bichos G R ÁT I S
O clássico de Orwell em
uma edição exclusiva. gazetadopovo.com.br/revolucaodosbichos
MARÇO DE 2023 | 37

O homem
homens flutuantes, em busca
de algum entendimento de sua
missão na Terra — se é que exis-
te. Nos dois romances, ao passo

revoltado
em que a trama avança, seus pro-
tagonistas se tornam ainda mais
perdidos, distantes do ponto ini-
cial. Quando Raison reata com a
esposa, depois de uma década vi-
vendo como estranhos na mesa
Aniquilar, de Michel Houellebecq, é uma Aniquilar casa, há uma espécie de retomada
MICHEL HOUELLEBECQ
história obsessiva e magistral, que retrata Trad.: Ari Roitman
e reencontro com o homem que
já foi, o que não é suficiente para
com crueza a decadência ocidental Alfaguara
480 págs.
mantê-lo no prumo — algo que
McEwan também usaria em So-
lar e Na praia, obras sobre ho-
JONATAN SILVA | CURITIBA – PR mens partidos ao meio.

Surpresa apocalíptica
Albert Camus em uma das

A
passagens de L’homme révolté
TRECHO
matéria-prima da lite- como Florent-Claude Labrouste, diz que o tal homem revoltado é
ratura de Michel Hou- o depressivo e impotente de Sero- Aniquilar aquele que aprende a dizer não.
ellebecq é exatamente tonina, é o estereótipo do peque- Raison é esse homem, porém, co-
a mesma que pontuou no-burguês e do sujeito líquido. Uma densa névoa afogava o varde. Todas as suas negativas são,
toda a obra, literária e cinema- As suas identidades estão diluídas na realidade, travestidas de afir-
tográfica, de Pasolini: a condição naquilo que consomem: o pri- vale do Saône, eles quase se mações. Mesmo desprezando o
humana. Em um de seus poemas, meiro, a sua vaidade, e o segundo, atrasaram para chegar à estação trabalho e a família, Paul é inca-
Versos finos como traços de chuva, o uma quantidade assombrosa de Mâcon-Loché TGV. Paul chegou paz de exteriorizar as suas reais in-
polemista italiano parece resumir remédios. Os dois, portanto, não a considerar a ideia de trocar a tenções de rompimento com tudo
tudo o que o colega francês pro- estão longe de Michel Renault, de o que o cerca, algo que Fanshawe,
duziu até agora: “É preciso con- Plataforma, que também trabalha passagem pela internet para não de Paul Auster, consegue perpe-
denar/ severamente quem/ crê para o governo francês e embarca ter que viajar no mesmo trem trar com naturalidade, em Trilo-
nos bons sentimentos/ e na ino- para a Tailândia em busca de tu- que Aurélien e Indy, mas acabou gia de Nova York.
cência”. Quando publicou, em rismo sexual, ou de Jed Martin, o desistindo. Eles também estavam Houellebecq retrata com
2015, Submissão, Houellebecq artista de O mapa e o território. sobriedade o ocidente preso em
maximizou a sua experiência de Houellebecq não está inte- na primeira classe, mas não no obrigações e convenções. Es-
subversão. O romance, que nar- ressado nas questões postas, mas mesmo vagão; era sexta-feira, dia sas amarras sociais dão a liga de
ra uma França governada pelo ra- na maneira como aquilo que co- 1 de janeiro, o fim de semana Aniquilar: são elas que permi-
dicalismo islâmico, cuja ascensão nhecemos, como mundo e lite- estava longe de acabar, e o trem tem que peças tão díspares se co-
aconteceu em 2022, seria a chave ratura, se dissolve à medida que lem em uma narrativa tão crua
para o atentado contra os jornalis- ser moderno significa abrir mão ia partir praticamente vazio. sobre a decadência iminente do
tas do semanário satírico Charlie da identidade e do lugar social. O sistema capitalista. O livro não
Hebdo naquele ano e que resultou próprio escritor não acredita em se pretende profético — embo-
na morte de 12 pessoas. Era Hou- nacionalidade. Sob seu ponto de ra Plataforma e Submissão tam-
ellebecq quem estampava a capa vista, o que realmente importa é bém não e acabaram por ser —,
do periódico em 7 de janeiro. a individualidade e, por isso, o es- no entanto, o olhar aguçado do
Aniquilar, a investida mais gotamento do caráter identitário escritor talvez enxergue o que a
recente do escritor, guarda algu- é tão presente. maioria de seus leitores não pos-
mas semelhanças com seu irmão sa. E é aí que reside o grande
mais famoso: ambos tratam da Não-lugar trunfo do autor, a surpresa apo-
França à beira de um ataque de O esfacelamento dos cor- calíptica, devastadora.
nervos. Aqui, não é mais um es- pos, que em muitos dos livros de Aniquilar é menos catas-
DIVULGAÇÃO

tado absolutista e teocrático, mas Houellebecq são o ápice das histó- trófico, porém, não deixa de ser
um governo imbecilizado pelas re- rias, em Aniquilar é uma retóri- catártico e impressionista. Naque-
des sociais e pelo radicalismo de ca metafórica, porém, não menos le que pode ser o último livro de
uma direita midiatizada. Desta forte ou contundente. Raison, co- Michel Houellebecq — ao me-
vez, o anti-herói de Houellebecq mo seu sobrenome presume, está nos é o que deixa a entender os
é Paul Raison, um funcionário do chegando à idade da razão de Sar- agradecimentos —, o mundo pa-
alto escalão do Ministério da Eco- tre, entretanto, com duas décadas rece não ter mais solução. Tudo o
nomia, um homem em um esta- de atraso. Esse é o propulsor do que havia sido ensaiado ao longo
do metaforicamente vegetativo, seu deslocamento no tempo e no de sua obra chega ao ápice da im-
vivendo em um vazio existencial. espaço, habitando um lugar, um possibilidade de solução. E por-
Seu casamento com Prudence es- não-lugar, com o qual não tem que — como dizia Pasolini: “Que
tá na corda bamba — na verdade, qualquer pertencimento. tudo isso seja banal/ nem lhe pas-
apenas existe burocraticamente Não é ao acaso que o centro sa de longe pela mente:/ com efei-
—, seu pai está perto da morte — dramático do livro passe de Paris to, que seja assim ou assado/ não
o único motivo pelo qual a famí- para o interior — o mesmo movi- lhe dá nenhum proveito” — o ser
lia volta a se reunir — e os irmãos mento que Labrouste executa em humano não aprendeu a enxergar
Cécile e Aurélien — uma católica Serotonina —, em uma região a sua própria ruína.
fervorosa e eleitora da Marine Le idílica, onde a arrazoada família
Pen, e um restaurador de tapeça- viveu por muitos anos, um ce-
ria enfiado em um casamento, no nário parecido com o que Wim
mínimo, abusivo —, e, enquanto Wenders cria em Os belos dias de
tenta equacionar toda essa confu- Aranjuez. Lá, cara a cara com seu
O AUTOR
são pessoal, Raison precisa lidar o próprio passado, Raison não se
surgimento de um comediante de reconhece nos pôsteres do quar- MICHEL HOUELLEBECQ
televisão capaz de assumir a lide- to, nos discos e livros que ainda
É um dos mais celebrados e polêmicos
rança na corrida eleitoral contra o estão como havia deixado. Nesse
escritores da atualidade. Nascido em
ministro Bruno Juge, chefe direto museu de si mesmo, o protago- 1956, recebeu em 2019 a Legião de
do protagonista, e tentar neutra- nista aprofunda as diferenças com Honra, a mais importante distinção
lizar um grupo terrorista. Cécile e Aurélien. francesa, e venceu em 2010, com
Em Aniquilar, Houelle- De alguma maneira, ele O mapa e o território, o Prêmio
becq cria um ambiente niilista é como Roland, o personagem Goncourt. É autor, entre outros,
e sensível, observando cuidado- principal de Lições, o mais re- de As possibilidades de uma
samente a dissolução do mundo cente romance de Ian McEwan. ilha, Partículas elementares e
que conhecemos. Raison, assim Tanto um quanto o outro são Extensão do domínio da luta.
38 | MARÇO DE 2023

JOSÉ EDUARDO
JOSÉ EDUARDO GONÇALVES
Nasceu em São João del-Rei (MG). É jornalista,
editor e escritor. Autor dos livros Cartas do paraíso
(Mazza, 1998) e Vertigem (Record, 2003), organizou

GONÇALVES
o livro Ofício da palavra (Autêntica, 2014). É um
dos editores da revista literária Olympio. Os contos
aqui publicados integram o livro Pistas falsas, a ser
lançado em breve pela Patuá.

Ilustrações: Ramon Muniz

A PISCINA

M
inha mulher quer
construir uma pisci-
na no jardim. Peque-
na, ela diz. O jardim
fica na parte de trás de nossa casa
e era, quando compramos o lote,
um emaranhado de árvores fru-
tíferas e de mato que crescia sem
controle desde que a proprietá-
ria falecera. Compramos o lote
das filhas a um bom preço e cons-
truímos a casa onde moramos há
quase trinta anos. Só nós dois e o
vira-latas que recolhemos da rua
em um dia de ventania. O jardim
não existia, foi surgindo aos pou-
cos. Primeiro, arrancamos o ma-
to. As árvores despontaram em
sua imponência, ainda que algu-
mas já não dessem frutos. Por isso,
demos fim ao enorme abacateiro,
depois de três anos sem um único
abacate perfeito. O tronco está to-
do bichado, não vai mais dar fruto
e periga até cair, disse o jardineiro
em sua sentença acolhida de ime-
diato por minha mulher. Depois, vem ter mais de cinquenta anos da árvore. Eu resisto à ideia enquanto posso, sem nem passei ao Lobsang Rampa, depois
foi o fim da goiabeira que ficava de vida e todos os anos dão jabuti- mesmo saber por quê. Somos apenas nós dois. Nunca ao Krishnamurti, até trocar tudo
na divisa com o vizinho à direita. cabas saborosas, com personalida- tivemos filhos, desistimos depois de anos de tentativas. por Burroughs, Henry Miller, Bu-
As goiabas, preciso reconhecer, es- des distintas. A jabuticabeira que Só nós dois e a cachorra, que veio bem depois. Agora kowski, Verlaine e outros pirados,
tavam sempre podres por dentro. fica quase encostada à varanda é a que estamos envelhecendo, sinto que minha mulher mas isso já é outra história. Quero
Sem o abacateiro e a goiabeira, a mais exuberante, tem galhos lon- não quer ir mais à piscina do clube do bairro. Ela não dizer que eu fazia as coisas do meu
grama foi aparada e compramos gos e é muito pródiga em frutos diz isso claramente, mas eu não enxergo outra explica- jeito. Meus amigos bebiam muito,
sacos de pedras roliças e de tama- pequenos, de casca lisa e fina. As ção para o fato de ela querer uma piscina quando pode- mas eu bebia mais. Certa noite,
nhos variados que espalhamos em jabuticabas mais deliciosas são as mos usar uma que está a menos de quinhentos metros depois de muita farra, saímos pa-
torno de uma fonte de pedra-sa- da árvore mais recolhida, a menos de distância. Eu também não gosto da companhia de ra ouvir os cachorros latindo lá do
bão que agora orna o jardim, bem visível, encoberta pela arrogância estranhos, do alvoroço de crianças e daquela urgên- alto do morro da antena. A lem-
no lugar onde antes estava o aba- da mais frondosa. Apesar da apa- cia que as pessoas demonstram ter em relação ao lazer. brança daquela sinfonia canina
cateiro, mas que nunca funcionou rência frágil, esta árvore apresenta Costumava aceitar a ida ao clube com resignação, sem me arrepia. Na descida do mor-
a contento. A laranjeira, plantada frutos grandes, de um roxo quase alegria, mas nem isso mais se cogita. Ela quer uma pis- ro, a moto surgiu à frente do car-
logo em nosso primeiro ano, não preto. A mais tímida das árvores cina pequena. O jardim ficou muito bonito, depois de ro como um fantasma moribundo
cresceu o que deveria e também fica em posição intermediária en- anos de paciente elaboração. O mato sumiu por com- e foi preciso um movimento brus-
foi eliminada. A amoreira resiste, tre as outras duas e não se importa pleto. Agora são vasos grandes de cerâmica e muitas co e seguro para se desviar dela e
quase encostada ao muro que faz em dar cria todos os anos. Às ve- flores, coloridas. Azaleias, bromélias, beijinhos, dálias, não despencar no abismo ao la-
a divisa da casa com o terreno da zes ela falha, parece preguiçosa em agapantos, pacovas, orquídeas, rabo de raposa, clúsias, do. Não sei como consegui aquela
prefeitura. O pé de limão não teve seu labor. Suas frutas são peque- lavandas, dasilírios, suculentas e até uma pata de ele- proeza. O sujeito da moto se safou
a mesma sorte: cedeu espaço para nas e têm a casca mais grossa, mas fante que nunca vingou direito. O mato selvagem foi ileso e nós também. Bateu um si-
a trilha de pedras maiores que liga a polpa é consistente e tem mui- dizimado, pedras floresceram sobre a grama, já é pos- lêncio estrondoso entre nós, de-
a varanda dos fundos até a casinha to sumo. As três se completam, sível identificar com facilidade quando a cachorra faz pois o Dilson — irmão mais velho
da cachorra. Assim a gente não suja cúmplices de um território que, suas necessidades. Está tudo limpo, bem arrumado, de da Doris, com quem me casei —
os pés na grama molhada, foi o que aos poucos, vai se moldando e per- uma beleza ordenada que me deixa quieto, mais cala- disse apenas cara, você nos salvou,
a minha mulher disse. O jardinei- dendo o ar selvagem e febril, que do do que já sou. Tudo tão certo que algo parece dis- e a gente começou a rir, de nervo-
ro — este já era outro, o primeiro tanto nos encantou no início. Pe- sonante, fora do lugar. Nem sempre a vida tinha sido so e alívio, primeiro baixinho, de-
tinha sumido — ficou em silên- quena, diz a minha mulher. Uma assim. Fui bem arruaceiro e até irresponsável, na juven- pois às gargalhadas. Saí dali como
cio. Como uma espécie de com- piscina que vai receber a luz do sol tude. As regras eram desrespeitadas com certa frequên- o herói improvável que jamais fui.
pensação, minha mulher plantou em grande parte do dia — desde cia. Meus amigos (nenhum deles era flor que se cheire) Aquilo me deixava alucinado de
uma pitangueira na lateral esquer- que cortemos uma das jabutica- me chamavam de “o louco da estepe” — sim, teve uma uma alegria inexplicável. Lembro
da do jardim. Como se vê, já é um beiras. Duas já não são suficientes? época que eu andava com o livro do Herman Hesse de- daquela noite e observo os antú-
jardim. O problema agora são as É assim que ela responde à minha baixo do braço, perguntando já leu? pois leia, sua vida rios no fundo do quintal. É prová-
três enormes jabuticabeiras. De- argumentação contrária ao corte vai mudar. A minha não mudou nada. Enchi daquilo e vel que eles sobrevivam à piscina.
MARÇO DE 2023 | 39

O PAI, O FILHO

O
meu pai passou da con- que eu olhei com atenção para os
ta. Ele agora me pediu seus sapatos, limpos e engraxados.
para engraxar os seus sa- Aquilo me intrigou. Eram os sa-
patos, acredita? Eu me patos mais brilhantes que eu ja-
neguei a fazê-lo, claro. Ele me dis- mais vira. Confesso que me deu
se que seria bom aprender a fazer uma tristeza assim miúda ao pen-
alguma coisa útil. Eu não penso a sar nas razões que levariam meu
mesma coisa, nem sei o que seria pai a me pedir algo que ele já fazia
útil. Ele insistiu, voltou a se refe- tão bem. Meu pesar durou pou-
rir a sapatos engraxados. Eu disse co. Então eu disse a ele que talvez
a ele que, se era para fazer alguma pudesse fazer aquilo, um dia. Fa-
coisa, havia coisas mais interessan- lei por falar. Talvez eu só quisesse
tes a serem feitas, como ajudar os interromper aquela conversa que
pássaros que entravam na biblio- me parecia sem sentido, talvez fos-
teca a encontrar o caminho de saí- se a sensação de que certas coisas
da. Esta não é uma boa ideia, ele são inescapáveis. O fato é que ago-
replicou, nem mesmo razoável, ra os sapatos não se desgrudam de
pois os pássaros costumam se re- mim. Eles estão comigo o tempo
fugiar nas estantes mais altas. Os todo, mesmo quando estou dor-
pássaros e os livros são imprevisí- mindo, pois não deixo de sonhar
veis, ele falou. Seria mais sensato, com eles. Sofro quando os ima-
ele sugeriu, começar com ativi- gino sujos e maltratados. Um dia
dades mais ao meu alcance. Co- terei de cuidar deles. É o que me
mo cuidar dos sapatos. Foi então resta. O legado das ninharias.

A BALEIA

N
unca entendi muito
bem as baleias. Até ser
engolido por uma de-
las. Foi assim. Numa
de minhas escapadas solitárias,
afastei-me da praia mais do que
o habitual. Eu devia estar muito
atordoado para não perceber que
tinha ido longe demais. O bar-
co foi destruído em um temporal
imprevisto, e eu, lançado ao mar
sem qualquer esperança de sobre-
vivência, tal a violência das ondas.
Ela me salvou antes que eu afogas-
O LOBO se. Agora não quero sair de Eloá.

V
Aqui tenho tudo de que preciso,
ocê pode contar como eram Os uivos são assim, eu queria di- até o carinho materno que sempre
esses uivos? Eu sabia que zer. Prestem atenção: assim. E não me faltara. Retribuo como posso.
essa pergunta iria surgir. dizia. Eu não conseguia dizer na- Retiro e devolvo ao mar todo o li-
Se havia uma questão pa- da que alguém cioso de sua dúvi- xo que ela consome com ingenui-
ra a qual eu deveria me preparar, era da pudesse colocar um pingo de fé. dade —plásticos, tubos, seringas,
aquela. Inevitável. Por isso, pensei Como contar algo novo, que não embalagens, pneus, uma parafer-
nela durante os dias que antecede- se entende e não se nomeia? nália sem fim. Mantenho-a assea-
ram ao depoimento. Eu era o autor Eles tinham paciência, me da, sem os entulhos indigestos.
solitário da denúncia, cabia a mim olhavam em silêncio, enquan- Alimento-me dos peixes que ela
justificá-la. Agora, quando a per- to eu me debatia entre mexer os generosamente me oferta. Não
gunta se coloca da forma como a braços, abrir a boca ou bater os sei se um dia voltarei a terra fir-
imaginei, direta e sem meios-tons, pés em sintonia com a minha de- me. Em noites de lua, Eloá per-
calo-me. Tento encontrar alguma sarmonia. Nenhuma palavra me mite que eu vá até a entrada de
palavra que dê conta daquilo. Por acudia. Até que, subitamente, me sua boca e admire o vácuo escu-
que só eu fora capaz de ouvir os ui- agachei no piso de cerâmica fria, ro do céu. Eu digo a ela: Querida,
vos? Não uma, não duas, mas por os braços tesos como patas, as per- nunca entendi bem o universo.
três noites consecutivas? nas arqueadas como patas, eu que-
Tentei responder com al- ria dizer como eram os uivos e as
guma coisa que parecesse plausí- palavras não vinham, então eu fiz
vel, mas foi um fracasso. Gaguejei. aquilo. Foi como expulsar um cor-
Tropecei nas sílabas que se mistu- po estranho, sendo eu já tão estra-
raram e saíram de um jeito irreco- nho naquela posição esquisita, na
nhecível, fazendo com que caretas saliva grossa a encher a boca, nos
de espanto e incredulidade me mi- olhos queimando, na pele que eu
rassem como se estivéssemos na- sentia escura e peluda. Uivei. Es-
quela brincadeira de quem pisca tão ouvindo agora? É isso o que
primeiro, olhos fixos esperando eu escuto nas noites em que vocês
que eu fraquejasse. Meu rosto fi- dormem seus sonos velhos, desa-
cou ruborizado, senti a vermelhi- paixonados. Não identificam esse
dão que surgia junto ao calor que animal? Não são capazes ainda de
me assaltava sem que eu pudesse ouvir? No segundo uivo reconhe-
fazer nada para conter a intromis- ci, afinal, uma fome que já não ca-
são indevida. Meu corpo invadido, bia em mim. Eles ainda tentaram
fustigado pela vergonha e ridículo. se safar, mas eu fui mais rápido.
40 | MARÇO DE 2023

SIMON ARMITAGE
Mist

Who does it mourn?


What does it mean,
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert such nearness,
gathering here
on high ground
while your back was turned,
drawing its net curtains around?
Featureless silver screen, mist
November is water
in its ghost state,
We walk to the ward from the badly parked car all inwardness,
with your grandma taking four short steps to our two. holding its milky breath,
We have brought her here to die and we know it. veiling the pulsing machines
of great cities
You check her towel, soap and family trinkets, under your feet,
pare her nails, parcel her in the rough blankets walling you
and she sinks down into her incontinence. into these moments
into this anti-garden
It’s time, John. In their pasty bloodless smiles, of gritstone and peat.
in their slack breasts, their stunned brains and their baldness,
and in us, John: we are almost these monsters. Given time
the edge of your being
You’re shattered. You give me the keys and I drive will sleep
through the twilight zone, past the famous station into its fibreless fur;
to your house, to numb ourselves with alcohol. you are lost, adrift
in hung water and blurred air,
Inside, we feel the terror of dusk begin. but you are here.
Outside we watch the evening, failing again,
and we let it happen. We can say nothing.
Névoa
Sometimes the sun spangles and we feel alive.
One thing we have to get, John, out of this life. A quem ela vela?
O que representa,
essa proximidade,
Novembro essa reunião, aqui,
em terras altas
Do carro mal estacionado vamos para a enfermaria enquanto suas próprias costas se viram,
com sua avó dando quatro passos curtos para cada dois nossos. para puxar as cortinas rendadas?
Nós a trouxemos para cá para morrer e sabemos disso. Tela prateada sem recursos, a névoa
é água
Você confere a toalha, o sabonete e as bugigangas dela, num estado fantasmal,
corta as unhas, acomoda-a em cobertores rústicos, toda voltada para si,
e ela naufraga na incontinência. segurando o hálito de leite,
dissimulando as máquinas das
Está na hora, John. Nos pálidos e pastosos sorrisos delas, grandes cidades a pulsar
nos seios flácidos, nos cérebros aturdidos e nas cabeças carecas, sob seus pés,
e em nós, John: nós somos em parte estes monstros. emparedando-a
dentro desses momentos
Você está despedaçada. Você me passa as chaves e eu dirijo dentro desse não-jardim
rumo ao crepúsculo do dia, passando pela famosa estação de arenito e turfa.
até sua casa, para nos entorpecermos de álcool.
Com o tempo
Dentro, sentimos começar o terror do anoitecer. a extremidade de seu ser
Fora, observamos a noite caindo novamente, vai dormir, lá
e nós deixamos acontecer. Não conseguimos dizer nada. dentro de sua pele sem fibras;
você está perdida, à deriva
Às vezes o sol cintila e nos sentimos vivos. em água suspensa e ar turvo,
Alguma coisa a gente precisa tirar, John, desta vida. mas está aqui.

Paper aeroplane Aviãozinho de papel

The man sitting next to me on the flight O sujeito sentado ao meu lado, no avião
was reading a blank book, keen eyes lia um livro em branco, os olhos atentos
panning left to right across empty leaves, fingers indo da esquerda para a direita pelas páginas vazias, os dedos
turning from one white space to the next. virando de uma página em branco para a seguinte.

Sometimes he’d nod agreeably or shake his head, Algumas vezes ele parecia concordar, balançava a cabeça,
or painstakingly underline some invisible text ou marcava, meticuloso, algum texto invisível
with red ink, or decorate the margin com tinta vermelha, ou decorava a margem
with an exclamation mark or asterisk. com um sinal de exclamação ou asterisco.

It was a hefty-looking tome, hand-stitched Era um volume parrudo, costurado a mão


but wordless front and back and down the spine. mas sem nada escrito na capa, contracapa ou lombada.
Coming in to land he laid the silver ribbon-marker Antes de pousarmos, ele enfiou um marcador prateado
between two bare pages to save his place. entre duas páginas vazias, para guardar seu lugar.

I was wearing noise-cancelling headphone, Eu estava usando tampões de ouvidos,


listening to fine mist. When he leaned across escutando a névoa suave. Quando ele se inclinou sobre
and shouted, “Forgive the intrusion, but mim e falou alto, “Desculpe a intromissão, mas
would you sign this for me? I think it’s your best”. você autografaria o livro para mim? Acho que é o seu melhor”.
MARÇO DE 2023 | 41

The shout

We went out
into the school yard together, me and the boy
whose name and face

I don’t remember. We were testing the range


of the human voice:
he had to shout for all he was worth,

I had to raise an arm


from across the divide to signal back
that the sound had carried.

He called from over the park — I lifted and arm.


Out of bounds,
he yelled from the end of the road,

Poem from the foot of the hill,


from beyond the look-out post of Fretwell’s Farm —
And if it snowed and snow covered the drive I lifted and arm.
he took a spade and tossed it to one side.
And always tucked his daughter up at night. He vanished from sight, went on to be twenty years dead
And slippered her the one time that she lied. with a gunshot hole
in the roof of his mouth, in Western Australia.
And every week he tipped up half of his wage.
And what he didn’t spend each week he saved. Boy with the name and face I don’t remember,
And praised his wife for every meal she made. you can stop shouting now, I can still hear you.
And once, for laughing, punched her in the face.

And for his mum he hired a private nurse. O berro


And every Sunday taxied her to church.
And he blubbed when she went from bad to worse. Nós saímos
And twice he lifted ten quid from her purse. juntos para o pátio da escola, eu e o garoto
de cujo nome, e rosto
Here’s how they rated him when they looked back:
sometimes he did this, sometimes he did that. não me lembro. Testávamos o alcance
da voz humana:
ele tinha que berrar o mais alto que pudesse,
Poema
eu tinha que levantar um braço
E se nevasse e a neve cobrisse a entrada desde o outro lado da cerca para mostrar
ele pegava a pá e limpava o caminho. que o som chegara lá.
E sempre ninava sua filha à noite.
E deu-lhe uma chinelada quando ela mentiu. Ele berrou desde o alto do parque — eu levantei o braço.
Desde além dos arrabaldes,
E a cada semana dava para a esposa metade do salário. ele gritou lá do fim da estrada,
E o que não gastava a cada semana ele poupava.
E elogiava sua mulher por cada refeição preparada. lá do pé da colina,
E uma vez, porque ela riu, socou-a no rosto. desde além da guarita da fazenda Fretwell,
eu levantei o braço.
E para sua mãe contratou uma enfermeira.
E toda semana a levava à igreja. Ele sumiu de vista, foi-se para encontrar a morte, vinte anos depois
E ele chorou quando ela passou de mal a pior. com um buraco de bala
E por duas vezes surrupiou dez libras de sua bolsa. no céu da boca, na Austrália Oriental.

Eis o que disseram dele quando olharam para trás: Garoto cujo nome e rosto eu não me lembro,
algumas vezes era de um jeito, outras vezes de outro. você já pode parar de berrar, eu ainda posso ouvi-lo.

Evening Noitinha

You’re twelve. Thirteen at most. Você tem doze, no máximo treze anos.
You are leaving the house by the back door. Você sai de casa pela porta dos fundos.
There’s still time. You’ve promised Ainda há tempo. Você prometeu
not to be long, not to go far. não demorar, não ir longe.

One day you’ll learn the names of the trees. Um dia você aprenderia os nomes das árvores.
You fork left under the ridge, Você pega a encruzilhada esquerda sob a serra, SIMON ARMITAGE
pick up the bridleway between two streams. pega a trilha entre dois riachos. Nasceu em Huddersfield
Here is Wool Clough. Here is Royd Edge. Aqui é Wool Clough. Aqui é Royd Edge. (Inglaterra), em 1963. Talvez o
mais celebrado poeta inglês em
atividade, escreve uma poesia
The peak still lit by sun. But O sol ainda ilumina o pico. Mas formalmente rigorosa, marcada
evening. Evening overtakes you up the slope. a tarde. A tarde te alcança na encosta. pela observação do cotidiano e
pela passagem do tempo. O tom, às
Dusk walks its fingers up the knuckles of your spine. O crepúsculo passa os dedos pelos nós de suas costas. vezes sombrio, pode ser também
Turn on your heel. Back home Inverter os passos. De volta, em casa, cínico ou mesmo irônico.

your child sleeps in her bed, too big for a cot. sua filha dorme na cama, já grande para o berço.
Your wife makes and mends under the light. Sua esposa tricota e cose sob a luz.
You are sorry. You thought Você pede desculpas. Pensou
it was early. How did it get so late? que ainda era cedo. Como ficou tão tarde?
42 | MARÇO DE 2023

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

VERA
LÚCIA DE
OLIVEIRA
VERA LÚCIA DE OLIVEIRA
É escritora e professora associada de Literatura portuguesa e
brasileira na Università degli Studi di Perugia (Itália). Tem diversos
livros de poesia e ensaios; participou de antologias poéticas em
vários países, tendo recebido muitos prêmios. Entre os ensaios:
Poesia, mito e história no modernismo brasileiro (Unesp, 2015);
Um avesso de país: representações da narrativa brasileira
contemporânea (Pontes, 2020). Entre os livros de poesia:
Geografie d’ombra (Fonema, 1989); O músculo amargo do mundo
(Escrituras, 2014); Minha língua roça o mundo (Patuá, 2018); Ero in
un caldo paese (Fara, 2019), Esses dias partidos (Patuá, 2022).

Veja mais em
rascunho.com.br
MARÇO DE 2023 | 43

rogério pereira
SUJEITO OCULTO

Ilustração: Bruno Schier

O CÃO LARANJA

Q
uando não sei muito branco, pendurada de ponta-ca- não ter conseguido evitar a mor- conseguia equilibrar-se nas qua-
bem o que fazer, olho beça numa parede cinza. te prematura. Mães não entendem tro patas. A urina escapava-lhe
para lugar nenhum e Pensava neste cachorro la- que a batalha com a morte é sem- com facilidade. O corpo camba-
volto ao passado. Uma ranja quando o veterinário disse pre uma batalha perdida. leava na agonia do fim. Pelos cál-
fuga a um mundo que há mui- que era uma decisão a ser toma- Depois, a mãe também culos, poderia viver mais uns dois
to deixou de existir, mas está o da. Eu não tinha de tomar ne- morreu soterrada pelo câncer ou três anos. Pelos cálculos, mi-
tempo todo presente, arranhan- nhuma decisão. Nunca fui muito — esta espécie de cão faminto e nha irmã poderia viver mais uns
do meu corpo magro e em fran- bom nisto: tomar decisões. Esta- selvagem. Coisas estranhas tei- sessenta anos. A vida não é justa
co declínio. Estávamos diante de va ali por um imenso amor, este mam em nos soterrar de tempos nem para cães, nem para irmãs.
um homem miúdo, notadamente sentimento que às vezes nos le- em tempos. O veterinário era um sujei-
tímido, mas conhecedor do cam- va ao céu dos cachorros, mesmo Em silêncio continuei até to afetuoso. Acarinhou o corpo
po de batalha. “É uma decisão a sem acreditar em céu e nunca ter definirem todos os detalhes da molenga de M., conversou baixi-
ser tomada”, disse com convicção. possuído um animal de estima- eutanásia. Nada muito comple- nho com ela como se as palavras
Depois, outras palavras se acumu- ção. Continuar com as tentativas xo. Seria cremada. Poderíamos pudessem aliviar um pouco da
laram na pequena sala um tanto de tratamento ou submeter M. à ficar com as cinzas ou seriam des- dor. Ao lado, R. sofria imensa-
claustrofóbica decorada com fo- eutanásia canina: esta era a deci- cartadas num depósito sanitá- mente. Eu, sem saber muito bem
tos de animais e rações variadas. são a ser tomada. Os medicamen- rio. Uma empresa especializada o que fazer, apenas observava em
Ela, ao meu lado, não disfarça- tos não davam sinais de que um se encarregaria de tudo. O vete- silêncio e pensava num cachor-
va o pânico e a tristeza. Eu, num milagre pularia o muro em dire- rinário iria buscar e entregar M., ro laranja. Sempre penso neste
mutismo covarde diante da mor- ção aos fundos da casa, onde a ca- cujo nome em grego significa a cachorro laranja — meu animal
te, pensava num cachorro laranja. dela grande e amorosa agonizava. boa mãe. Já em hebraico, é água e de estimação inexistente. Tenho
A professora nunca descon- Então, o fim menos doloroso en- vindo de Deus. Se palavras fazem a vantagem de que ele só morrerá
fiara de que eu era um idiota cro- treolhava como a melhor saída. algum sentido, ela estaria voltan- comigo. Será minha companhia
mático. Ou evitava escancarar Quando não há saídas, a pior aca- do a Deus — cachorros também até o fim dos dias. Nem todo cál-
diante dos demais a minha igno- ba sendo a melhor, por mais con- têm direito ao paraíso divino. Afi- culo é injusto.
rância — uma das tantas que me traditório que nos pareça. nal, os humanos não são nossos O último abraço envolveu
acompanham desde sempre. Eu Entre idas e vindas em fra- melhores amigos em nenhum lu- M. em direção ao carro estacio-
não sabia as cores, não as enxer- ses curtas, agônicas e carregadas gar. Menos ainda na eternidade. nado diante do portão. O vete-
gava, não as vislumbrava na des- de uma tristeza imensa, decidiu- Nada como o melhor amigo a nos rinário a carregou com cuidado.
graçada vida infantil. Um arco-íris -se pela eutanásia. Eu apenas ob- acompanhar na modorra celestial. Ela não se opôs ao último cari-
era um urubu zombando de mim servava em silêncio. Minha irmã M. estava nos fundos do nho. Aninhou-se com delicade-
entre nuvens. Um dia, pintei um tinha horror a cachorros. Ao me- quintal — espaço onde recebia za, na certeza de que nunca mais
cachorro de laranja. Não sei exata- nor latido, encolhia-se em busca carinhos e atenção quando a casa retornaria à algazarra familiar dos
mente com que cor gostaria de lhe de algum refúgio. É fácil entender: se transformava num espaço rui- fins de semana, animados a chur-
tingir o pelo no papel ordinário um dia, fora atacada por uma can- doso e amoroso. Os netos chega- rascos, partidas de truco e conver-
da escola pública. Mas, aos meus zoada no terreiro da casa da avó vam à casa dos avós arrulhando sas em que todos falam aos gritos
olhos daltônicos, tortos e desgra- materna. Era apenas uma meni- feito pombos famintos. M. se sa- e ao mesmo tempo, numa gosto-
çadamente estúpidos, laranja (que ninha indefesa soterrada por qua- cudia toda em volta da criançada. sa algaravia.
até hoje não sei muito bem de que tro ou cinco cachorros. O pânico Era grande e meio desajeitada. A Quando M. partiu, restou a
cor se trata; comparo-a às frutas instalou-se no corpo até o dia em boca imensa expelia apenas uma tristeza num choro amparado nos
na quitanda) me parecia uma co- que morreu jovem, aos 27 anos, grossa e pegajosa baba. As mordi- ombros da mãe. Ao lado, eu es-
loração adequada àquele típico num hospital frio e silencioso. Ali, das involuntárias eram raras. Era quadrinhava o vazio do quintal.
guapeca escolar. Pintava de laran- minha mãe uivou para a lua feito uma festa em volta de uma cadela. Em breve, as crianças estariam
ja sem pensar na cor, sem imagi- uma cadela ferida ao saber que a Quando o veterinário che- por ali. O incômodo silêncio se-
nar que estivesse tingindo o cão jovem filha havia morrido. Nun- gou, não havia nenhuma crian- ria quebrado pela alegria a pulsar
com cores inexistentes. Queria ca se esquece o urro de uma mãe ça na casa. A morte é coisa dos na ânsia da vida.
apenas demonstrar uma seguran- que perde seu filhote. Talvez seja a adultos. M. respirava com difi- Antes de ir embora, notei
ça que nunca tive. Se fosse pin- mistura da dor da saudade com o culdade contra o piso frio e indi- vários cães a latir nos terrenos vi-
tor, minha obra seria uma tela em sentimento de incompetência de ferente ao seu sofrimento. Já não zinhos. Um deles era laranja.

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