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Manual !

! Contextualização literária 51

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2. Livro do Desassossego
# «O Livro sem fim»
O Livro do Desassossego não é um livro. Este paradoxo é
$ mais um dos muitos que percorrem a obra de Pessoa ou, se
quisermos, será um oxímoro1. É sem dúvida um conjunto de
projetos de livro, iniciados em momentos vários da vida de
5 Pessoa, e, em cada um deles, o Livro anterior transforma-se
noutro livro sem perder o que antes tinha sido escrito para
esse futuro livro nunca terminado nem organizado. O Livro
é de certo modo o que cada leitor quiser, podendo ser arru-
mado das mais diversas formas, como tem sido ao longo dos
10 anos e dos editores. [...]
Pessoa escreve-o desde o início da sua carreira literária. São
de 1913 os primeiros textos que lhe são destinados, e logo
surge a interrogação sobre a natureza do que escrevia [...]: Amadeo de Souza-Cardoso,
«Este livro é só um estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em Máquina de Escrever, 1917.
15 todas as direções.»
Nuno Júdice, op. cit., pp. 4-6. 1 Oxímoro: recurso expressivo que
associa duas palavras com signi-
ficados logicamente opostos ou
incompatíveis.
«Texto ao rés do chão da vida» 2 Ficto: fingido, simulado.
3 Mansardas: vãos do telhado de
[O] Livro do Desassossego é um texto que Fernando Pessoa nunca teve, material,
um edifício aproveitados para
fisicamente, diante dos olhos. Assim, e só por isso, sendo dele é ainda mais nosso do habitação; águas-furtadas.
que normalmente são os seus outros textos. Quer isto dizer que o Livro do Desas-
Ideias fundamentais:
sossego, mau grado a sua narratividade truncada, os seus espaços de ausência, a sua
• O Livro, apesar de se afigurar uma
5 inorganicidade expressiva, oferece ao leitor um texto paradoxalmente contínuo e narrativa incompleta, cortada, com
saturado [...], texto que cria o seu mal-ficto2 autor Bernardo Soares e lhe confere «espaços de ausência», e de apre-
uma espessura que Pessoa, imaginando-o e desejando-o enquanto escrita, nunca sentar uma estrutura aparentemen-
te desorganizada, surge, parado-
teve ocasião de contemplar. [...] xalmente, aos olhos do leitor como
Que existe no Livro do Desassossego que não conheçamos dos outros textos de um todo completo, consistente e
coerente.
10 Pessoa? Talvez só isto: [...] o Livro comporta todos os textos de Fernando Pessoa, • O «Livro comporta todos os textos
todas as suas mais características tonalidades desde o ultrassimbolismo sonambú- de Fernando Pessoa» e, conse-
lico dos jovens anos até ao simbolismo (ultra também, ou menos ultra) de fim de quentemente, as várias e distintas
influências e características, ma-
percurso e vida. O que, há trinta anos, a análise estilística minuciosa e inovadora de nifestadas na sua obra ao longo
Jacinto do Prado Coelho se esforçou por nos mostrar, sem poder, apesar de tudo, da vida.
• A diversidade e a unidade do uni-
15 articular num só movimento a diversidade e a unidade do universo de Pessoa, ofe- verso pessoano são expostas num
rece-se, por assim dizer, ostensivamente, numa trama única, sem artifício visível, «texto natural», «sem artifício visí-
neste texto natural e organicamente tecido com todos os textos espetacularmente vel», composto por todos os textos,
simultaneamente «autónomos» e
autónomos e unilateralmente unificados que nós chamamos Caeiro, Reis, Campos, «unificados», representativos dos
mas também António Mora ou Fernando Pessoa ele-mesmo. Supertextualidade heterónimos e do ortónimo, dis-
tintos mas interligados por um
20 ou infratextualidade pessoana? Nem uma coisa nem outra. Apenas texto ao rés do elemento comum e constante: Fer-
escritório, ao rés do chão da vida de quem só habitou mansardas3 rentes ao infinito, nando Pessoa.
texto onde vem inscrever-se, sem efeitos de premeditação visível, uma visão do • Não se trata de uma interpretação
para além do texto ou oculta no
mundo, dos outros, de um sujeito que se observa observando-os e observando-se texto, feita pelo próprio Pessoa,
até aos limites da esquizofrenia. mas sim de um texto que expõe
uma visão do mundo, dos outros e
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Gradiva, 2008, pp. 113-121. de si próprio, onde todos dialogam.
Um texto de quem buscou inces-
santemente o infinito.

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