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Manual !

! 50 Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

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Contextualização literária
# 1. Bernardo Soares: semi-heterónimo

O «eu» e o «outro»
$ Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado
exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo
desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um
ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofri-
5 mento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofri-
mento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.
Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordina-
riamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse
especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interes-
10 sando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de
feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele. [...]
Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas – a par de
ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me
teve realmente por amigo – percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para
1 «Livro do Desasocego»: orto-
15 lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me
grafia original. doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um
2 Guarda-livros: empregado do
comércio que tem por função
psicólogo, fiquei do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me
fazer o registo da contabili- aproximou de si – a publicação deste seu livro.
dade e das transações do esta-
belecimento. Fernando Pessoa, «Prefácio», in Richard Zenith (ed.), Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soa-
res, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 31-33.

O «outro» e o «eu»
Talvez Soares não tenha estado associado [às] primeiras tentativas
de um texto narrativo, mas a necessidade de se afastar do que poderia
ser uma exposição autobiográfica tenha decidido Pessoa a encontrar
um personagem para lhes dar uma outra autoria. No entanto, não se
5 trata em rigor de um heterónimo, e quando publica outros excertos
em fases diversas da sua vida, embora refira que se trata de trechos do
«Livro do Desasocego»1, composto por «Bernardo Soares, ajudante de
guarda-livros na cidade de Lisboa», o seu nome aparece associado a
essas publicações, o que nunca sucede quando publica em nome dos
10 heterónimos. [...]
[H]á uma tendência que, à medida que o personagem Soares ganha
corpo, nos faz ver cada vez mais Pessoa à sua transparência, o que se
deve a pontos coincidentes das duas biografias: a do guarda-livros2 e a
do empregado de comércio na Baixa. Talvez seja essa pulsão «censu-
15 rada» para revelar aspetos de si próprio que tenha levado Pessoa a nunca
conferir a Bernardo Soares o estatuto de heterónimo, inventando para
ele um meio-caminho entre a ficção e a realidade.
Nuno Júdice, «Prefácio», in Ivo Castro (coord.), Obra Essencial de Fernando Pessoa,
Livro do Desassossego, vol. 3, Lisboa, INCM/Alêtheia/Expresso, 2015, pp. 4-6.

Joshua Benoliel, Rua da Bica de Duarte Belo


e Início da Calçada da Bica Pequena, 1915.
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