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– O poema de 

Fernando Pessoa que leremos a seguir tem estreita relação com os heterônimos, o intrigante
fenômeno de desdobramento de sua personalidade literária em outros “eus”, por assim dizer, que é tanto uma das
marcas de sua obra, quanto um dos fortes motivos de sua fama. É evidente que os versos se referem ao “múltiplo eu”,
se é lícito assim dizer, do poeta e que são, em certa medida, uma tentativa de decifrar o fenômeno, no fundo alheio à
vontade do próprio Pessoa. O poema foi escrito em agosto de 1930, ou seja, quanto faltavam cerca de 5 anos para a
morte do poeta e este, na maturidade artística, coloca em versos uma meditação sobre si mesmo. Nisso, entrevemos
sua mente. Os versos curtos, pontuados, levam a suspeitar de uma sucessão de “insights”, cada um deles como que
provocado pelo verso anterior. Em outras palavras, o poema se desdobra também, diante do autor, que ao buscar
refletir – no sentido etimológico desse verbo, ligado à idéia do espelho – sobre si mesmo, reproduz, mesmo num poema
ortônimo como este, o nascimento dos heterônimos. É como uma armadilha na qual cada tentativa de escape aperta
ainda mais o laço. Ouçamos o próprio Fernando Pessoa dizê-lo, nos versos deNão sei quantas almas tenho.

O poema de fernando pessoa, não sei quantas almas tenho, remete nos para uma autoanalise por parte do sujeito
poetico. O mesmo apresenta se com varias”almas”, como se o seu interior fosse um labirinto no qual tem dificuldade em
se encontrar a si proprio. Ou seja, tenta expressar atraves de heterónimos mas acaba solitario e triste pois na verdade
não consegue ser ele mesmo.

– “quem ve é so o que ve,/Quem sete não é quem é,”-antítese-marca ainda mais esta oposiçao viver/pensar.
”Quem ve “ é aquele que vive so a vida e não a pensa (sente). “Quem sente não é quem é”- quer dizer que o
pensamento impede a açao na vida. Reforça o que dissemos anteriormente, que viver e pensar se tornam
inconciliáveis.

– “Por isso alheio, vou lendo/ Como paginas o meu ser”-metafora- A vida foi racionalizada, foi reduzida a
linguagem escria, transferida para os seus personagens literários ,que acabam por viver a sua vida por si, por deixa lo a
um canto, reduzido quase a nada enquanto individualidade.

– Esta primeira estrofe mostra aspectos da famosa despersonalização de Fernando Pessoa. Ele diz não saber quantas almas
tem, porque mudou a cada momento. Esta instabilidade é, no entanto, uma instabilidade de vida e não tanto uma instabilidade de
"almas". Certo é que Pessoa, por sempre se expressar por outras vozes (heterónimas ou pseudónimas), neste momento já não se
reconhece - tudo lhe foi sempre estranho, porque colocou sempre em outras vozes os seus problemas. Esta exteriorização das coisas
na sua vida torna-o estranho à própria vida - parece-lhe que foi outro que a viveu. Claro que este sentimento é uma protecção
psicológica de Pessoa, de se recolher para dentro para não sofrer com a solidão.  
A expressão "De tanto ser, só tenho alma", sendo curiosa, parece de fácil expressão. Pessoa quer dizer que não sente ter vida, mas só
alma - ou seja, a sua vida foi (e é) toda pensada, toda racionalizada. Como sempre passou para pensamento tudo o que lhe acontecia,
tudo o que sente é na alma, e parece que nada sente no corpo. Esta divisão corpo/alma é essencial no todo da obra de Pessoa e
reflecte uma das características da mesma - a extrema racionalização, o reduzir de todos os impulsos a uma inteligência recusando as
emoções puras.  
Mas Pessoa sabe que a vantagem de tudo ser inteligência tem desvantagens: "Quem tem alma não tem calma", diz ele. Quer dizer
que quem pensa não tem paz - eis um novo princípio de grande importância: é inconciliável pensar e viver, ou se vive sem pensar ou
se pensa sem viver. Viver a vida ou pensar a vida é um oposto que sempre desafia Pessoa.  
"Quem vê é só o que vê, / Quem sente não é quem é," marca ainda mais esta oposição viver/pensar. "Quem vê" é aquele que vive só
a vida e não a pensa (sente). "Quem sente não é quem é" - quer dizer que o pensamento impede a acção na vida. Reforça o que
dissemos anteriormente, que viver e pensar se tornam inconciliáveis.

– Pessoa sentindo essa oposição pensar/viver transforma-se no papel, nas personagens dos seus heterónimos. E os
heterónimos nascem das necessidades da sua vida - são filtros para o que vai acontecendo. À medida que são apresentados desafios a
Pessoa, ele enfrenta-os indirectamente pelos seus filtros literários, pelas suas personagens literárias. Por isso ele diz que os sonhos e
desejos é "do que nasce" e não dele. Ele como que apenas assiste à passagem da sua vida, porque se recusa vivê-la simplesmente.
Tudo é analisado, dissecado, e tudo por isso se torna falso, uma ilusão de realidade simbolizada.  
Pessoa é "diverso, móbil e só". Ou seja, multiplica-se, viaja, e está no final sozinho, sem salvação. Esta instabilidade, redução do um
aos muitos, acaba por significar que ele deixa de sentir - "Não sei sentir-me onde estou". A vida é-lhe estranha e como a vida os
sentimentos. Deixar de sentir é também deixar de viver - é alienar-se de tudo, proteger-se da vida, dos perigos, de tudo, para se
recolher dentro de si, e por detrás dos seus personagens literários.

– "Alheio" ele lê então "como páginas" o seu "ser". Isto reforça o que vimos dizendo. A sua vida confunde-se com a sua obra
- tanto que Pessoa diz ler como páginas o seu ser. A vida foi racionalizada, foi reduzida a linguagem escrita, transferida para os seus
personagens literários, que acabam por viver a sua vida por si, por deixá-lo a um canto, reduzido quase a nada enquanto
individualidade.  
Pessoa-ele-mesmo apenas prevê e esquece. É uma espécie de pivô, de centro físico de tudo o resto, mas quase sem actividade. Ele é
apenas uma "nota à margem" do livro que foi a sua vida. Alheio ao seu Destino (foi Deus que o escreveu), ele já não distingue quem
nele viveu as coisas.

– - Retiremos deste poema a grande solidão de Pessoa - já reduzido a apenas uma nota de margem na vida (e na sua obra).
Pessoa era a pessoa real, passando o pleonasmo, mas aqui torna-se evidente que a pessoa real foi obliterada, desmultiplicada em
muitos outros, até que quase nada restasse do original. Nada para pensar, e sobretudo nada que sentisse o mundo à sua volta. Pessoa-
ele-mesmo morreu para o mundo e já nada sente, e sobretudo o que sente é que a vida já não pode ser vivida senão por intermédio de
um outro seu. E isto quer dizer que nele mesmo a esperança de viver estava definitivamente perdida"

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