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Jan. 2020

O J O R N A L D E L I T E R AT U R A D O B R A S I L

ARTE DA CAPA: ALEXANDRE RAMPAZO


2 | JANEIRO DE 2020

translato
EDUARDO FERREIRA

TRADUÇÃO
A tradução envolve análise —
separação, decomposição, divisão em
partes constituintes — e, sucessiva-
mente, síntese, construção, recons-

E CRIAÇÃO trução — recomposição das partes,


rearranjo, nova montagem de elemen-
tos formadores.
A escritura literária implica com-
desde 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal


preender a alma humana de maneira a da Editora Letras & Livros Ltda.
mais ampla. Exige que a vastidão do

S
CNPJ: 03.797.664/0001-11
erá mais fácil criar do divisar os entroncamentos e seguir pensamento tome conta da pena, mes-
que traduzir? A criação bom trecho de cada ramal, verifican- mo que por momentos fugazes. Caixa Postal 18821
é livre, imaginativa e, do sua adequação ao contexto, ao A tradução literária demanda CEP: 80430-970
naturalmente, sofrida. público-alvo e, até mesmo, ao gosto mergulho na alma individual do au- Curitiba - PR
Exige o esforço da invenção. Exi- específico ou às exigências do editor. tor do original, com sobrevoos sobre
ge o empenho de evitar a repeti- A escritura autoral de fic- seu tempo, sua época, seu mundo, RASCUNHO@RASCUNHO.COM.BR

ção, bem como a lucidez de usar ção não tem limites claramente suas leituras, seus outros textos. WWW.RASCUNHO.COM.BR
as boas fontes com comedimento, identificáveis, a não ser as de- A criação literária permite quase
TWITTER.COM/@JORNALRASCUNHO
contornando as bordas do plágio. marcações ditadas pelo contexto qualquer transgressão, admite diversas
A tradução, por seu turno, cultural — geralmente incontor- transações textuais e aceita o desregra- FACEBOOK.COM/JORNAL .RASCUNHO

caracteriza-se pelos limites do ori- náveis, senão pelos gênios mais mento como princípio. Exige, por outro INSTAGRAM.COM/JORNALRASCUNHO
ginal. Há que observar balizas es- intrépidos e inovadores. lado, a transfusão do sangue do autor,
pecíficas para que o texto se possa À tradução compete lidar que se torna o fluido vital do texto.
classificar como tradução legíti- com textos e significados transfi- Na tradução, a transgressão tem
EDITOR
ma, sem derrapar para o terreno gurados pelo tempo e pela diver- que ser regrada, para que não extrapo-
da “tradução livre”, ou do uso do sidade e intensidade das sucessivas le seu sentido mais seguro e mais es- Rogério Pereira
original como mera inspiração pa- interpretações. Não basta fixar-se trito. Há algo no original que não se
ra a construção de texto novo. A na mera miragem do texto duro pode defraudar, sob pena de sua dis- EDITOR-ASSISTENTE
tradução, em suma, precisa prestar inscrito no papel, que este não lhe solução e, enfim, desaparecimento. A Samarone Dias
contas ao original. Pagar os royal- dirá muito, em especial se muito tradução, mais do que tudo, repre-
ties devidos; e os devidos respeitos. deslocado no tempo e no espaço. senta a promessa de eternidade para o COMERCIAL
A criação livre dispensa bar- A criação literária possibilita texto primeiro. Representa esperança
comercial@rascunho.com.br
reiras e balizas. O autor tem dian- ao autor abrir comodamente o baú de vitória sobre o tempo implacável.
te de si a total liberdade de visão e de memórias, para usá-las à vontade O autor precisa escrever menos
engenho, mas necessita suficiente e sem peias. Possibilita lançar mão que ler, para acumular suficiente esto- COLUNISTAS

descortino para entabular escritura de toda a amplitude da visceral ener- fo a que possa dar vazão no momento Alcir Pécora
viridente, atilada, sob pena de cair gia narrativa do pensamento. Pos- devido; o tradutor precisa interpretar Eduardo Ferreira
na mesmice que embota a literatura. sibilita adotar atitude sobranceira, menos que ler, para deixar-se embeber João Cezar de Castro Rocha
A tradução literária preci- acima do bem e do mal, sobrepu- do espírito do original e de seu autor. Jonatan Silva
sa identificar quantos livros cabem jando inclusive a força centrípeta da Qual dos dois terá diante de si a tare- José Castello
dentro de um mesmo texto. Precisa realidade que nos sustém e subjuga. fa mais difícil?
Mariana Ianelli
Miguel Sanches Neto
Nelson de Oliveira
Raimundo Carrero

rodapé Rinaldo de Fernandes


Rogério Pereira
RINALDO DE FERNANDES Tércia Montenegro
Wilberth Salgueiro

UM CONTISTA
ris, opera um intertexto com Juliette,
a protagonista amoral e assassina do
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
romance do Marquês de Sade. Por úl-
timo, da quinta vertente de O olhar André Caramuru Aubert

DO NOSSO tardio de Maria, a do conto como


um quase documento folclórico, aponto
as narrativas que incorporam o humor
Anna Apolinário
Antonio Munró Filho
Carolina Vigna

TEMPO (3)
e mesmo o anedotário cearense (o con- Daniel Falkemback
tista é de Fortaleza): O homem que com- Derek Mahon
prou a felicidade, ambientado na capital
Faustino Rodrigues
cearense e com um protagonista que,
Iván Carvajal
empregado pobre de um escritório,
decide fazer um pacto com o Diabo João Almino

A
terceira vertente do livro tal, onde lhe cortam a barriga — e para ficar rico, tem dois narradores: o Luiz Paulo Faccioli
O olhar tardio de Ma- desta, bizarro parto, salta uma ga- primeiro faz o relato do núcleo cen- Marcelo Degrazia
ria, do cearense Carlos linha. Destaco da quarta vertente tral da história e o segundo, como um Maria Eugenia Boaventura
Gildemar Pontes, é a do livro, a das obras metaficcionais ridículo inspetor, intervém e procura Mauricio Vieira
das narrativas fantásticas, na me- ou de inspiração pós-moderna, três fazer correções na narrativa do primei- Patrícia Galelli
lhor tradição do realismo fantásti- contos: Em nome do pai, sobre um ro; Papagai n’areia quente é sobre um
Rafael Gutiérrez
co hispano-americano: Perfil de um filho que, na infância, sofre maus- homem que constrói casas (é proprie-
Wladimir Saldanha
homem comum, tratando de um in- -tratos do pai e, já adulto, dele se tário de uma vila) com o dinheiro que
divíduo que, involuntariamente, vinga, integrou a coletânea Capitu arrecada, travestido de mendigo, nas
engoliu uma aranha (esta encon- mandou flores: contos para Ma- ruas de Fortaleza, especialmente no ILUSTRADORES

tra no estômago dele cupins que chado de Assis nos cem anos de bairro pobre do Pirambu; conto que Alexandre Rampazo
estão lhe transportando os neurô- sua morte (organizada por mim retrata a avareza com humor (o “Papa- Conde Baltazar
nios), alegoriza a alienação; O es- em 2008), e é uma reescritura do gai n’areia quente” do título é o apeli- Denise Gonçalves
pelho traz uma protagonista que, relato machadiano Pai contra mãe; do, gritado pela garotada nas ruas, do FP Rodrigues
num isolamento narcísico, iludi- Minha gente, narrado do ponto de falso mendigo, que também toma pe- Paula Calleja
da por um espelho, perde a noção vista de um cavalo, é recriação do dradas). Carlos Gildemar Pontes é um
do tempo; O homem que botava conto homônimo de Guimarães contista consistente, de escrita poéti-
DESIGN
ovo, humorado, é quase uma ane- Rosa e foi incluído na coletânea ca, cujas narrativas se inserem nas
dota sobre um indivíduo que nas Quartas histórias: contos basea- vertentes centrais do conto contem- Thapcom.com
noites põe ovo e que se enovela na dos em narrativas de Guimarães porâneo. Pelas situações que aborda e
existência, se intrigando com a na- Rosa (que organizei em 2006); A pelas formas que adota, é, plenamen- IMPRESSÃO
morada e acabando num hospi- missionária, que se passa em Pa- te, um contista do nosso tempo. Press Alternativa
JANEIRO DE 2020 | 3

6
Entrevista
15
Inquérito
16
Ensaio
28
Conto
Jarid Arraes Nara Vidal João Cabral e os vulcões Marcelo Degrazia

vidraça eu, o leitor


JONATAN SILVA cartas@rascunho.com.br

LEITORA AO MAR

Residência literária Após ler as matérias sobre Moby


OCEANOS DAS Dick do Rascunho de agosto, me
MULHERES
em Xangai A brasileira Nara Vidal (leia Inquérito
animei finalmente a ler o livro.
Estou maravilhada! Obrigada
na página 15) foi uma das três pelo incentivo.
Estão abertas as inscrições para a Residência Literária de Xangai. escritoras premiadas pelo Oceanos. O Cristina Souza • Belo Horizonte – MG
O programa seleciona escritores para ficarem em setembro romance Sorte (Moinhos) ficou em
e outubro na cidade chinesa, e oferece passagens aéreas, terceiro lugar. A primeira colocação BUMERANGUE
hospedagem e um subsídio diário equivalente a R$ 25,00. Para foi para Luanda, Lisboa, Paraíso, Mais uma vez a crônica que
concorrer, deve-se solicitar um formulário de inscrição para o da angolana Djaimilia Pereira de desmente suavidades do gênero:
Consulado-Geral do Brasil em Xangai (laura.xu@itamaraty. Almeida (Companhia das Letras). Bumerangue não voa, de Rogério
gov.br). As inscrições terminam em 31 de março. A iniciativa A portuguesa Dulce Maria Cardoso Pereira, na edição de novembro,
já recebeu 100 escritores de 37 países. Paulo Scott foi um dos venceu com Eliete — A vida com pungente ilustração da Raquel
autores contemplados em 2019. normal, ainda inédito por aqui. Matsushita. Senti o bumerangue
na minha perna. Minha admiração
INÉDITO POLÊMICA NA FLIP pela persistência nas convicções e
A Dublinense publica no primeiro A escolha da poeta excelência do trabalho.
semestre The house on Mango norte-americana Nilma Lacerda • Rio de Janeiro – RJ
Street, obra máxima da norte- Elizabeth
americana Sandra Cisneros. A Bishop como ASSINANTE FELIZ
tradução será de Natalia Borges homenageada da Assinei o Rascunho a partir da
Polesso. The house on Mango Festa Literária indicação de um amigo e confesso
Street narra a um ano na vida Internacional de que não me arrependi de modo
de Esperanza, uma menina Paraty (Flip) causou algum, muito pelo contrário,
mexicana de 12 anos vivendo em polêmica. Parte pelo pretendo renovar a minha assinatura.
Chicago e que começa a encarar fato em si de ser estrangeira, parte Marcelo Menezes • Serra Talhada – PE
as dificuldades de amadurecer em pela defesa que a escritora — que
um país que não é o seu. morou 15 anos no Brasil — fez da OBRA DE ARTE
ditadura militar. Apesar de todas Descobri o Rascunho pelo
AOS AMANTES DO FUTEBOL as críticas e ameaças de boicote, a Instagram. Comecei a visitar o site,
A Approach Comunicação estreia no segmento editorial. A curadora Fernanda Diamant não gostar do que lia e aos poucos me
iniciativa, comandada por Sergio Pugliese e Marcos Eduardo recuou da decisão. apaixonei. Acabo de receber minha
Neves, inclui o selo Museu da Pelada, voltado para o futebol. As primeira edição impressa (novembro)
três obras no prelo têm ligação com o esporte: são duas biografias ABUSO e, acreditem, estou abismado. Como
— de Marilene Dabus, primeira mulher a cobrir futebol no A mexicana Elena Poniatowska pude não descobrir esse jornal antes.
Brasil, e do artilheiro uruguaio Loco Abreu, ídolo do Botafogo revelou que seu primeiro filho Minha gratidão a toda a equipe por
— e crônicas do ex-jornalista Oldemário Touguinhó sobre seu nasceu fruto de um estupro. O essa obra de arte editorial. O Brasil
melhor amigo, o Pelé. agressor seria Juan José Arreola, que precisa de iniciativas assim.
morreu em 2001. O ato aconteceu Giovani Miguez • Rio de Janeiro – RJ
EL MAESTRO em 1954, quando Poniatowska
María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges, envolveu-se em mais frequentava oficinas de criação NAS REDES SOCIAIS
uma polêmica devido ao espólio do maestro. A controvérsia se literária de Arreola. “Eu não sabia o Acabei de receber meu primeiro
deu após o presidente eleito da Argentina afirmar que criará um que era um sedutor”, disse ao El País, exemplar do Rascunho e o devorei
museu em homenagem ao autor d’O Aleph. O acervo seria criado “e ele o era com as suas alunas. O em pouco tempo. Conteúdo
a partir de originais doados pelo empresário Alejandro Roemmer. que aconteceu eu determinaria como excelente e muito apropriado
A polêmica começou depois de Kodama afirmar que os itens que um abuso de um homem adulto pra quem, como eu, só leu obras
irão compor o museu são “todos roubados”. A viúva ficou irritada com uma moça deslumbrada, que, consagradas e ainda não se encantou
por não ter sido consultada a respeito da homenagem. “Todos além disso, saiu de um convento e, com a literatura que está acontecendo
fazem o que querem: ninguém pergunta a ninguém e nem respeita é horrível dizer, mas eu não sabia o agora. Um abrir de olhos necessário!
ninguém. Assim é esse país”, disse. que estava acontecendo”. Tatiana Mendonça • Instagram

Um projeto como o de vocês é uma


escola não estatal (graças a Deus)
BREVES fazendo o trabalho que o Estado
nunca fará — educar de fato.
• A Skyline Produções • O Prêmio Barco a vapor de
João Possiano • Instagram
comprou os direitos de literatura infantil e juvenil está
adaptação para o cinema da com inscrições abertas até
novela Mônica vai jantar, 31 deste mês. O vencedor
do baiano Davi Boaventura. recebe R$ 40 mil e tem o livro
A direção será de Pedro publicado pela SM Educação.
Guindani, responsável pelos • No final de fevereiro está programada Acesse: http://bit.ly/BAVPR.
filmes Raia 4 e Desvios. a publicação pela Companhia das
Letras do segundo volume da trilogia • A Companhia das Letras levou a
• A Rádio Londres publica O assassinato do comendador, maioria dos prêmios literários da
neste mês o romance Marcas do japonês Haruki Murakami. Associação Paulista de Críticos
de nascença, de Arnon de Artes (APCA). Com destaque
Grunberg, autor de Tirza e • E em janeiro, sai A barata, novela para Crocodilo, de Javier A.
O homem sem doença. A satírica de Ian McEwan em que Contreras, escolhido como melhor arte da capa:
uma barata é transformada no Romance. A gaúcha Luísa Geisler ALEXANDRE
edição conta com tradução
RAMPAZO
direta do holandês de Primeiro Ministro britânico. A levou o prêmio na categoria
Mariângela Guimarães. tradução é do Jório Dauster. Juvenil com Enfim, Capivaras.
4 | JANEIRO DE 2020

a literatura na poltrona
JOSÉ CASTELLO

A PRIMAZIA DA PAIXÃO
ça. Pergunta que, como um troféu,
não abandono mais. Por que, se de-
sejam se dedicar à literatura, ou às
artes, por que tantos rapazes e mo-
ças acabam se voltando, em vez dis-
Ilustração: FP Rodrigues so, para o jornalismo cultural? Era
o meu caso. Desde os dez ou onze
anos, quando descobri a poesia de
Vinicius de Moraes, meu primeiro
poeta, e depois, quando cheguei à
prosa de Daniel Defoe, Albert Ca-
mus e Franz Kafka, meus primeiros
prosadores favoritos, eu sabia que
queria me tornar escritor.
Por quê, então, o jorna-
lismo? Necessidade de dinhei-
ro imediato, timidez, baixo amor
próprio... É uma pergunta ines-
gotável, como são todas as gran-
des perguntas, que sempre exigem
grandes respostas, respostas in-
completas, às vezes até contraditó-
rias, e que, no entanto, fazem um
jornalista avançar. Uma pergunta
até hoje incômoda, já que, passa-
dos mais de 40 anos e com muitos
livros publicados, ainda não tenho
certeza da resposta.
Nos primeiros anos de re-
pórter, tive um chefe que, sempre
que se irritava comigo, me dizia.
“Por quê, em vez de ir direto para
a literatura, você veio para uma re-
dação?”. Sempre que me via com
um romance, ou um livro de poe-
mas nas mãos, o que era quase
sempre, debochava muito de mim.
Não, ele dizia, talvez o jornalismo
não fosse para mim. Meu chefe
acreditava que, porque eu me en-
volvia demais com meu objeto de
trabalho, meu trabalho de repórter
se deformava. Perturba esses che-
fes pragmáticos, muitas vezes, que
seus repórteres tenham uma rela-
ção sentimental e apaixonada com
o assunto de que tratam. Que não
o vejam, antes de tudo, como ob-
jeto frio de investigação. Que se
envolvam com o que fazem, per-
dendo assim a objetividade que a

D
ou um salto de vol- atravessou o século 20 e que viria “Boa tarde”, se limitou a dizer, com uma voz ainda imprensa tanto cultua.
ta ao passado. No ano a falecer seis anos depois. E lá fui mais hesitante do que aquela que me atendera ao te- Creio, ao contrário, que es-
de 1978 — eu era um eu, inseguro, levando comigo to- lefone. Com grandes dificuldades, apoiando-se em sa primazia da paixão não só não é
jovem repórter de 27 da a minha ignorância, além de um banquinho, continuou a fuçar as prateleiras mais um defeito, ou um obstáculo, mas é
anos —, o doce Alfredo Schleu- meia dúzia de referências vagas. baixas, e se esqueceu de mim. Esperei. Nas comemo- condição essencial para a formação
mer, meu chefe de reportagem E daquilo eu tinha que produzir rações, espera-se que o repórter passe em revista a vi- de um competente jornalista cul-
no Diário de Notícias, me pediu um artigo, simples efeméride, co- da do homenageado, sua obra, suas conquistas, suas tural. Para a formação de qualquer
uma entrevista com Raul Bopp, mo chamamos, nas redações, os decepções. Mas como vasculhar a bagagem de um jornalista. Sem esse vínculo afetivo,
um importante, mas já esquecido, aniversários e as datas a celebrar. homem que, para mim, continuava trancada? um repórter cultural não se forma.
poeta modernista. A pauta indi- Em minhas breves ano- Bopp foi muito paciente comigo. Depois de Penso até hoje, e cada vez mais, que
cava, apenas, um número de te- tações, nada mais que rabiscos, encontrar o livro que procurava, sentou-se, suspi- o jornalismo só pode ser entendido,
lefone, nada além disso. Naquela havia uma referência ao Cobra rou e disse: “Vamos lá, o que você quer mesmo?”. só faz sentido, se o vemos com uma
época — como ainda hoje, admi- Norato, poema capital do mo- Expliquei, trêmulo, que o jornal esperava que eu es- aventura. Uma viagem através do
to logo — eu não conhecia mui- dernismo, em que Bopp trabalha crevesse um artigo que lhe servisse de homenagem. desconhecido e, sobretudo, do Ou-
to bem a obra de Bopp. Uma voz com as lendas e mitos da Ama- Mas, admiti, eu me sentia completamente despre- tro. Isso é coisa que não se faz fria-
roufenha, com pausas alarmantes zônia, e que eu nunca tinha li- parado para isso e, na verdade, não sabia por onde mente. As emoções estão em jogo
e chiados que eu não sabia a que do. Hoje — em 2019, quando a começar. Um entrevistado mais impaciente teria se todo o tempo. O próprio repórter
atribuir, se à idade avançada, ou à Amazônia pega fogo — me per- erguido e me dito: “Então mande seu chefe enviar se coloca em risco.
qualidade da ligação, agendou um gunto: não terá chegado a hora um repórter preparado”. Destoando da imagem do Entrevistando poetas como
encontro, em uma livraria do cen- de enfim ler? Como quase sem- “grande poeta” solene, Bopp, ao contrário, me pro- Raul Bopp, aprendi que, se prati-
tro do Rio de Janeiro para duas ou pre acontece no jornalismo, não pôs: “Nesse caso, vamos começar pelo princípio”. cado só com pragmatismo e obje-
três horas depois. havia tempo para procurar o li- Ele me falou de sua vida e de sua poesia, como se tividade, o jornalismo não passa
Mas quem era Raul Bopp? vro e, mesmo que houvesse, nu- me desse uma aula. Levei um gravador e, apesar da de uma máquina que fatia e regu-
Eu lembrava, vagamente, dos la- ma década dominada pela poesia passagem do tempo, em um velho K-7, alguma coi- la a realidade. O jornalismo dis-
ços que ligavam sua poesia ao concreta, provavelmente eu não sa ainda hoje consigo ouvir de sua fala. tante e raivoso, cheio de ódio, que
modernismo e ao movimento conseguiria comprá-lo. Uma hora depois, saí da livraria com uma fi- hoje tantos praticam com abnega-
antropofágico. Era muito pou- Então me enchi de coragem ta gravada, um grande carinho por aquele velho poe- ção, comprova isso. Há uma pa-
co para uma entrevista, eu sabia e, agarrado a minha pauta, fui as- ta, um desejo imenso de ler Cobra Norato (o que lavra estranha talvez, mas precisa,
disso. No departamento de pes- sim mesmo a seu encontro. Um logo que pude tentei fazer, com grandes dificulda- que define, talvez, o que lhe falta:
quisa do jornal, encontrei precá- senhor baixinho e curvo, desca- des) e uma pergunta: “Por que me meti a fazer jor- delicadeza. Sem sutileza e paciên-
rias referências ao escritor gaúcho, belado, de aparência débil, me es- nalismo cultural?”. Pergunta que, se nunca consegui cia, não conseguimos nos aproxi-
que nasceu no fecho do século 19, perava entre as estantes da livraria. responder, a partir daí nunca mais me saiu da cabe- mar da verdade.
6 | JANEIRO DE 2020

entrevista
JARID ARRAES
DIVULGAÇÃO

Eu não sou
s o z i n h a tas. Eu cresci lendo os cordéis deles, as poesias do meu
pai, pegando os livros de poesia do meu pai empresta-
dos. Também lembro da influência da minha avó pa-
terna. Teve uma fase da minha infância, acho que eu
tinha uns sete anos, em que eu ficava perguntando pa-
ra ela o significado de todas as palavras. Se alguém fa-
Obra de Jarid Arraes é soco no estômago do preconceito lava alguma coisa na televisão, eu perguntava. Eram
tantas palavras seguidas, que acho que ela se cansou e
em tempos de “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” aí me deu um dicionário de presente, com dedicató-
ria e tudo. Eu li esse dicionário por anos, tive ele até
adulta. Então sempre digo que minha família estimu-
ANTONIO MUNRÓ FILHO | RIO DE JANEIRO – RJ lou demais a minha relação com a literatura e com as
palavras. Já a minha primeira lembrança com a poe-
sia, a mais marcante, foi de uma vez quando eu estava
voltando da escola na garupa da moto de meu pai e eu

F
azer literatura no Brasil Paulo (SP), também publicou As Clube de Escrita para Mulheres disse para ele que estava aprendendo sobre poesia na
atual é, antes de tudo, lendas de Dandara (2016), obra em São Paulo, espaço no qual ela escola, sobre Manuel Bandeira e o poema do porqui-
um ato de resistência. em que dá vida à companheira de e outras escritoras experimentam nho-da-índia. Aí meu pai disse que ia declamar dois pe-
Essa é uma das tantas Zumbi dos Palmares na luta con- e desenvolvem textos sob o olhar daços de duas poesias que eu ia adorar. E declamou “no
formas possíveis para apresentar tra a escravidão no Brasil. Na fal- crítico de um grupo focado na es- meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra
Jarid Arraes. Incentivada a ler des- ta de registros oficiais adequados, crita feminina. no meio do caminho” e “apedreja essa mão vil que te
de muito jovem pela mãe e apre- Jarid fabulou uma trama reple- afaga, escarra nessa boca que te beija”. Eu ri, fiquei com
sentada aos cordéis pelo pai e pelo ta de magia e que poderia mui- • Como o mundo da literatu- nojo, fiquei maravilhada. Foi aí que me apaixonei fei-
avô, não é difícil imaginar o por- to bem ser indicada como leitura ra surgiu na sua vida e quando to doida pela poesia. Para me descobrir como escrito-
quê do nome dessa escritora ar- para os estudantes brasileiros e de- e como foi a sua descoberta de ra foi uma caminhada nada linear. Desde que comecei
retada, nascida em Juazeiro do mais leitores. que você é uma escritora? Como a ler como hábito e como paixão, já comecei a escre-
Norte, no Ceará, ter despontado Pelo seu trabalho mais re- foi sua primeira lembrança com ver. Eu tentava escrever como Augusto dos Anjos e o
como uma das vozes mais ativas cente, Redemoinho em dia a poesia ou um livro na mão? máximo que conseguia era um amontoado de palavras
da literatura brasileira contempo- quente (contos, 2019), Jarid le- A literatura entrou na minha vi- que catava no dicionário. Isso ainda adolescente. Nun-
rânea. Não é à toa que, dos qua- vou o prêmio da Associação Pau- da de duas formas. Uma mais sin- ca parei de escrever, mas a ideia de ser escritora e publi-
tro livros publicados por ela até lista de Críticos de Artes (APCA). gela, mas que considero a base car era totalmente não considerada. Na minha cabeça,
o momento, dois são dedicados No livro, a escritora mais uma vez de tudo, que foi por meio de mi- era algo tão impossível que não era nem pensado. Só
à literatura de cordel: Heroínas dá lugar de destaque para mulhe- nha mãe, que lia livros para mim quando comecei a pensar em questões sociais, em fe-
negras brasileiras (2017) e Um res “invisíveis”, numa espécie de quando eu era bem pequena. De minismo, principalmente no feminismo negro, perce-
buraco com meu nome (2018). cegueira seletiva que ainda persiste tanto que ela lia e relia os livros, eu bi que nunca tinha lido nenhuma escritora negra. Aí
No primeiro, uma grande e neces- no Brasil em pleno ano de 2019. decorava tudo e contava as histó- que as coisas mudaram. Porque li a primeira escritora
sária homenagem a todas as mu- É da periferia marcada por injusti- rias de volta do jeito que eram es- negra da minha vida, Conceição Evaristo, e aí me pa-
lheres da história do Brasil que ças sociais que as protagonistas das critas. E também foi minha mãe receu possível que eu fosse escritora. Porque já não era
foram “esquecidas” pela narrati- 30 narrativas falam. São vozes de quem me ensinou a ler, antes do um mundo feito só de escritoras com sobrenomes tais,
va oficial; no segundo, Jarid mer- pessoas que não aceitam mais o si- que seria o tempo escolar. Então, de lugares tantos e que não se pareciam comigo em na-
gulha em suas origens e faz poesia lêncio imposto pela desigualdade. com essa base formada, veio a lite- da. Conheci outras autoras, até mesmo bem parecidas
com uma realidade nada poética. Talvez seja por isso que Jarid tenha ratura de cordel do meu avô e do comigo, e isso realmente me fez entender que eu po-
A escritora, que hoje vive em São se tornado uma das fundadoras do meu pai, ambos cordelistas e poe- deria um dia publicar. Por isso digo que foi uma cami-
JANEIRO DE 2020 | 7

JARID ARRAES

nhada nada linear, porque saber dos demais. Não tem nada mais
disso muda uma parte, mas não o recompensador do que escrever
todo, então eu tive que desbravar algo porque sei que não é apenas
um monte de coisas. A sensação sobre uma carreira de escritora e
de “eu sou escritora” veio mesmo encontrar pessoas que leem e ca-
quando as primeiras pessoas com- minham comigo nessa vontade de
praram meu primeiro cordel e co- coletividade. Eu não sou sozinha,
meçaram a comentar sobre ele. então muita coisa é possível.

• Qual a importância e influên- • Em Redemoinho em dia quen-


cia de seu avô, Abraão Batista, te você dá voz e vez a uma série
e de seus pais, na sua formação de mulheres de vidas simples,
como leitora e escritora? muitas delas marginalizadas,
Meu avô é uma das pessoas mais ar- mas de força interior e sabedo-
tisticamente influentes na minha vi- ria impressionantes. Quem são
da. Na literatura, ele não só é uma essas mulheres, qual a impor-
referência para mim como corde- tância delas na sua trajetória e
lista e poeta, como foi alguém que como é transformá-las em lite-
me presenteou com livros. Livros ratura e levá-las para o mundo?
que dialogavam com questões mi- São mulheres do sertão do Cea-
nhas. Como uma vez em que eu rá, do Cariri, minha terra. São
estava com medo de atravessar a mulheres inspiradas em mulhe-
chácara no escuro e poucos dias de- res que vi passar, também inspi-
pois ele me deu um livro sobre me- radas em certos “arquétipos” de
do com a dedicatória “o medo é do mulheres caririenses, mas sobre-
tamanho que se faz”. Como xilo- tudo em mulheres do sertão cea-
gravador, sempre o admirei imen- rense como elas são de verdade,
samente, é um grande artista. Até sabe? Diversas de mil maneiras,
mesmo quando fui lançar meu li- pessoas de camadas. Essas mulhe-
vro na França, em todas as cidades res escritas no Redemoinho são
por onde passei, tinha xilo e cordel importantes para mim porque
dele em exposições. Meu pai tam- elas me ensinam histórias que
bém foi uma excelente influência, não aprendi antes. Eu me mudei
porque me mostrou a literatura re- para o sudeste, fiz toda a minha
belde, me mostrou poesia concreta, vida, e só depois que fui enten-
punk, nem aí, que falava em latri- der minha relação com o Cariri e
na, e cordel com título Os 500 anos com as mulheres do Cariri, sendo
que invadiram o Brasil. E também eu também uma mulher do ser-
foi da estante dele que peguei meus tão, do Cariri. Escrever essas pro-
livros favoritos de poesia na época, tagonistas foi muito bonito, foi
de Carlos Drummond de Andrade, importante para minha voz lite-
Paulo Leminski e Ferreira Gullar. rária. Hoje sinto que me encon-
Se eu não acreditasse ser possível
Meu avô também fundou o Centro trei de um jeito filosófico. Isso transformar a sociedade, não escreveria.”
de Cultura Popular Mestre Noza, lá não é possível, mas poeticamen-
no Cariri, e cresci naquele lugar. En- te falando. O Redemoinho me
tão hoje olho para isso tudo e pen- trouxe maturidade e compasso. acesso enquanto estava crescendo, ter sido contada. E, olha, para mim é muito com-
so que sorte eu tive. Foi muita sorte. depois quando passei a ter acesso a plicado me pensar como referência. Isso é algo tão
Tenho que fazer algo com isso, sabe? • Em Redemoinho é possível no- mais livros fui priorizando coisas complexo para mim que já pensei em mil formas
tar certa recorrência à queda de mais contemporâneas. Mas acho de falar sobre isso e nenhuma me parece boa o bas-
• O Brasil é um país mestre em várias personagens que, muitas que sua interpretação está certa tante. O que sei é que quero construir as coisas pen-
empurrar para debaixo do tape- vezes, têm dificuldades em se le- para vários contos. sando em como elas vão reverberar coletivamente.
te as diversidades, sejam elas ra- vantar sozinhas ou ficam à espe- Quero fazer coisas que importem de alguma forma.
ciais, ideológicas, religiosas e de ra de auxílio. Qual a relevância • Já em Heroínas negras brasi-
orientação sexual. Como é ser dessas quedas e o que elas po- leiras em 15 cordéis você traz de • Em As lendas de Dandara você trabalha
mulher, negra e nordestina no dem evidenciar em seus contos? volta à vida mulheres importan- elementos mitológicos para dar vida a uma
universo literário amplamente Não tinha parado para pensar que tes da nossa história que foram mulher forte, determinada e que poderia tran-
dominado por homens brancos tem bastante gente caindo. Levan- relegadas a um esquecimen- quilamente ser colocada ao lado do próprio
do Sudeste e Sul do país? do em consideração que meu livro to seletivo. Como foi o proces- Zumbi dos Palmares em relevância histórica.
Há lados péssimos e lados mara- anterior se chama Um buraco com so de pesquisa sobre todas elas? Qual a importância desse trabalho na sua tra-
vilhosos. Os lados péssimos são meu nome, acho que deve ter uma Você percebe que, hoje, seu no- jetória como escritora e como foi a receptivi-
os lados relacionados aos tipos de coisa aí, né? Agora pronto. Se al- me também passa a ser referên- dade desse livro especificamente?
ofensas, exclusões e “pequenas” guém tiver uma interpretação, gos- cia para uma legião de mulheres As lendas de Dandara foi o meu primeiro livro,
violências que se sofre. Já vivi mui- taria de ouvir. Num clube de leitura que escrevem e que ainda rece- foi também a primeira vez que eu escrevi prosa, e
tas situações absurdas, é verdade, sobre o Redemoinho, um partici- bem muitas portas fechadas na não sabia que ele seria um livro “para todas as ida-
mas a maior parte das coisas que pante disse que interpretou um dos cara? Como é para você se tor- des” quando estava escrevendo-o. Eu era totalmen-
me deixa cansada e indignada está contos — o que tem um buraco nar uma referência? te inexperiente, já tinha sucesso com a literatura de
nas práticas recorrentes de exclu- causado pela chuva e um coitado O processo de pesquisa foi difícil, cordel, mas um livro era algo completamente novo.
são. Como os eventos em que to- cai dentro — como uma metáfora porque o pouco material a respei- As lendas de Dandara me obrigou a aprender tu-
dos os convidados são homens, ou para depressão. Achei incrível, por- to delas era de difícil acesso. Pe- do que eu sei hoje sobre ser escritora. Também foi
todos os convidados e convidadas que não escrevi pensando nisso, mas di ajuda para bastante gente para com ele que aprendi a trabalhar com as redes para
são brancos, ou quando nordesti- de que importa se eu pensei de pro- encontrar trabalhos acadêmicos e divulgar meu trabalho e, juntando isso ao fato de
nos são chamados sob uma ótica pósito, vai que pensei sem querer? também contei com pessoas do que esse livro era mesmo necessário, como eu sabia
estereotipada. Entre outras coi- movimento negro. Mas foi um que era, ele esgotou em poucos meses — indepen-
sas. E isso cansa de um jeito tre- • Senti em alguns de seus contos processo bonito, de preenchimen- dente, vendendo só pelo meu site. Depois que ele foi
mendo. Mas continuo discutindo uma certa semelhança às mulhe- to, de sentir que eu estava fazen- para uma editora e que outros livros meus vieram,
tudo isso, porque, se eu não acre- res de Clarice Lispector — vidas do algo útil e necessário, usando ele continuou me levando além. Foi meu primei-
ditasse ser possível transformar que não são vistas nem cuida- o que eu sabia fazer para algo que ro livro traduzido para outra língua, o francês, e eu
a sociedade, não escreveria. Pois das pelo Estado, mas que falam era maior do que meu próprio fui lançar na França em várias cidades. Também vai
então entram os lados maravilho- muito sobre todos nós enquan- ofício. Sempre repito que se eu virar um especial na televisão. É um livro que não
sos. E ser quem sou me dá coisas to brasileiros. Você é leitora de tivesse conhecido essas mulheres acaba, que já teve muitas reimpressões e que se en-
incríveis, porque tem muitas ou- Clarice? Esse sentimento de mi- negras enquanto crescia, na escola, caminhou sozinho para seu público. Ele é bem dife-
tras pessoas parecidas comigo, ou nha parte procede? muita coisa na minha cabeça te- rente do meu estilo de escrita de hoje, mas, sei lá, ao
que se identificam com o que fa- Eu fico bastante feliz quando sou ria sido diferente. Então o que eu mesmo tempo ele está escrito exatamente como pre-
lo, penso e escrevo, ou ainda que comparada com escritoras e escri- esperava e ainda espero é que es- cisava ser escrito, porque ele tem um tom de lenda,
não se parecem comigo, mas que tores dessa forma, muito obriga- se livro continue cumprindo esse que é a proposta toda da coisa. Então acho até que
também acreditam em coisas si- da. No caso de Clarice, nunca li papel de romper barreiras e con- tudo deu certo do começo ao fim, como se tivesse
milares, e esses encontros são lin- nenhuma de suas obras, não tive tar a nossa história como deveria que ser. Claro que isso não existe. Mas que coisa, né?
8 | JANEIRO DE 2020

JARID ARRAES

prateleira
NACIONAL
Quero construir as
coisas pensando
em como elas A tensão e o humor desesperado
vão reverberar marcam o livro de estreia da poeta
coletivamente.” alagoana, que ficou com o segundo
lugar no Prêmio Literário Biblioteca
Nacional 2019. Não é sem alguma
graça, por exemplo, que o eu lírico
solicita: “nossa senhora do foco,/
não dê minha alma como perdida”.
Na contramão da clemência, e com
a violência anunciada pelo título da Veludo violento
obra, fica o aviso: “cuidado comigo/
NATASHA TINET
sou a parte do sonho/ que você não
Imprensa Oficial
lembra/ monólito negro e suspenso/
Graciliano Ramos
entre o grito e o abismo/ cuidado
102 págs.
comigo/ e finja que eu não te avisei”.

Em mais uma incursão ao que


considera o melhor e o pior da
literatura brasileira, o crítico literário e
professor de escrita criativa Rodrigo
Gurgel se embrenha em um lodaçal
— de Alberto Rangel a Cassiano
Ricardo, nas décadas de 1920 e 30
— para garimpar e analisar algumas
pérolas, separando-as das produções
vazias ou ideológicas. A obra faz parte Percevejos, ideólogos
de uma série, ainda em andamento, — e alguns escritores
que já conta com dois volumes: RODRIGO GURGEL
Muita retórica — pouca literatura Vide Editorial
(de Alencar a Graça Aranha) e 310 págs.
Redemoinho em dia quente Esquecidos & superestimados.
JARID ARRAES
Alfaguara
128 págs.
No delicado terreno da poesia,
sentimento e razão se confundem
— é o que se evidencia nos
versos do médico e músico
• O que a fez deixar Juazeiro do Norte e se um espaço para mulheres. É uma
Lincoln Fabricio, que traz um eu
mudar para São Paulo? Como é a sua vida na iniciativa de fortalecimento femi- lírico tão melancólico quanto
maior cidade do país, como foi a adaptação e nino, de organização e direta inter- irônico para tratar de coisas do
do que você mais sente falta da sua terra natal? ferência das mulheres na literatura coração, passando por questões
Vim morar em São Paulo porque meu trabalho co- e na sociedade. cotidianas e filosóficas. Às vezes
mo escritora já estava dando muito certo. Eu rece- fatalista, como quando diz que Frases do nada sobre um
bia muitos convites, mas nem sempre os eventos • Recentemente, você passou a “envelhecer é não conseguir mais pouco de quase tudo
tinham orçamento para as passagens e hospeda- fazer a curadoria do selo Feri- achar os desenhos nas nuvens”, LINCOLN FABRICIO
gem. E pensei que vivendo em São Paulo seria bem na. Como tem sido essa vivên- a voz poética também consegue Kotter
mais fácil, até porque as coisas acontecem no Su- cia de garimpar novos talentos enxergar alguma graça, no fim das 140 págs.
contas: “O poeta,/ Como vive muito
deste, tudo parte daqui, e as passagens que saem de literários que, assim como você,
o errado,/ Geralmente está certo”.
São Paulo para os locais próximos também são mais estão por aí à espera da grande
baratas. Apesar dessa centralização, gostei muito chance para sacudir a literatura
de vir para cá. Amo morar aqui, tenho o privilégio brasileira contemporânea?
de trabalhar em casa, o que com certeza aumenta É incrível publicar escritoras iné-
Em sintonia com as tendências
os níveis de sentimento positivo, e nem considero ditas e também editar. Editei os da produção literária atual,
que teve adaptação, parece que já vim pronta. Pro- dois livros lançados, depois do Ecléa Bosi não se prende a um
blemas mesmo só tive com casos de discriminação, meu, e foi maravilhoso trabalhar gênero específico nestes 22
vezes em que pessoas de São Paulo riram do meu junto com as autoras. A Ferina relatos sobre velhos operários,
sotaque ou concluíram coisas a respeito de mim por tem essa característica de aproxi- imigrantes e outros personagens
causa dele. E o que mais sinto falta do Cariri com mação, principalmente pela com- anônimos da vida brasileira. Em
certeza é o deboche que usamos nas expressões fa- preensão de tudo que envolve ser um misto de conto e crônica
ladas e a comida. Eita tristeza! uma escritora que está publicando que resvala na poesia, a autora
pela primeira vez, ser mulher no mostra como crianças pobres Velhos amigos
e homens operários lutaram
• Foi na capital paulista que você criou o Clu- mercado editorial, muitas vezes — ECLÉA BOSI
pela felicidade em Parma, na
be de Escrita para Mulheres, espaço no qual, como no caso das autoras publica- Ilustrações: Odilon Moraes
Itália, ou como a natureza pode
entre outras coisas, encoraja seus pares a es- das pela Ferina — ser nordestina, Ateliê
perecer tanto em Hiroshima, no
creverem e a compartilharem seus textos entre negra, lésbica. Eu me sinto imen- 117 págs.
Japão, quanto em São Paulo.
si. Fale mais sobre esse trabalho e a relevância samente feliz, agradeço a Lizan-
dele num momento político em que “meninos dra Magon de Almeida, editora
vestem azul e meninas vestem rosa”? da Ferina e da Pólen, por sempre
Criei o Clube da Escrita Para Mulheres em 2015, abraçar projetos que importam. “O futuro foi ontem”, escreve Márcia
logo depois de publicar meu primeiro livro, pensan- Denser na orelha deste que é o
do em ter um grupo em que mulheres que escrevem • Qual é (ou quais são) os seus segundo romance de Otto Leopoldo
ou querem começar a escrever possam fazer exercí- atuais livros de cabeceira? O Winck. Ao mapear os sonhos que
cios de escrita, compartilhar o que criam, ler umas seu preferido? E aquele título energizaram os jovens na década de
para as outras e receber apoio, sem que ninguém ali que recomenda fortemente? 1960, revisitando gírias, costumes e
referências que ocupavam a capital
mate seus planos, sem que ninguém exija uma voz Atualmente estou lendo A ori-
paranaense da época, o escritor se vê
que não é sua, um ritmo que não é seu. Não tem gem dos outros: seis ensaios so-
obrigado a — por consequência do
uma hierarquia ou professora, a gente escreve junta. bre racismo e literatura, de Toni AI-5, para dar um exemplo — destruí-
Eu e a Anna Clara de Vitto mediamos apenas por Morrison. Meu livro preferido é A Que fim levaram
los. Essa narrativa de ascensão e
uma questão de ter sempre alguém para organizar, rosa do povo, de Carlos Drum- todas as flores
queda é representada, aqui, por
mas a ideia é todas juntas e construindo. A partir do mond de Andrade. E recomendo um trio de jovens que iria mudar o
OTTO LEOPOLDO WINCK
Clube, várias participantes já publicaram. E o Clu- fortemente O diário de Bitita, de Kotter
mundo — e acaba se deparando
296 págs.
be é um projeto de extrema importância porque é Carolina Maria de Jesus. com a crueza da realidade.
JANEIRO DE 2020 | 9

tudo é narrativa
TÉRCIA MONTENEGRO

A DISCIPLINA DA DOR
emoções existe como pressão teórica, mas ainda mui-
to distante, no exercício prático.
Bem representativa da separação é a imagem que
temos quando o casal se afasta um pouco da mesa
do restaurante e vê: “No meio do jardim decadente,
uma fonte extinta”. Em momento posterior, teremos

J
á faz algum tempo, escrevi so foco de estudo é Gaby, com um a oportunidade de analisar como a simbologia da água
um longo ensaio sobre os personagem pintor mergulha- está associada à vida, ao fluxo da juventude e ao sexo;
contos de Lygia Fagundes do em narrativa fragmentada por da mesma forma, jardins, bosques e demais espaços
Telles. Eu o intitulei em retalhos de memórias. O artista com densa vegetação, na escrita de Lygia, adquirem a
ressonância com um livro da au- vive no constante conflito de dei- conotação de misticismo e, em alguns casos, anúncio
tora, A disciplina do amor, com- xar-se ou não aprisionar por uma de morte. A frase citada, então, é uma dupla ilustra-
posto por fragmentos biográficos, mulher mais velha, que pode su- ção do fim do relacionamento entre Eduardo e Alice.
literários e ensaísticos. O ensaio prir suas necessidades financeiras. Separação inconformada ainda é o tema de Ve-
passou por algumas vicissitudes, O que nos interessa nesta histó- nha ver o pôr do sol, conto de suspense que alterna os
até que — cedendo ao apelo pri- ria, porém, é sobretudo Mariana, papéis: dessa vez é o homem, Ricardo, quem se vê
mordial de todo texto, que é o de que demonstra um rigor esparta- preterido pela companheira, Raquel. Em determina-
ser lido — eu decidisse desmem- no de produtividade, enquanto do momento, sua expressão de apertar os olhos, num
brá-lo para publicá-lo aqui no Gabriel, o pintor infantilizado já indício de tensão vingativa, é exatamente a mesma
Rascunho. Ele não segue neces- desde o apelido Gaby, dado pela da personagem Alice, em A ceia. Ricardo, porém, é
sariamente o roteiro original, mas mãe, adota uma concepção meio calculista, um verdadeiro disciplinado a esconder as
continua firme na intenção de ho- budista para se entregar ao desâ- emoções, o desejo agressivo. Todo o seu rigor e pla-
menagear Lygia Fagundes Telles, nimo: “(...) no dia em que os ho- nejamento o fazem ter êxito no plano macabro con-
agora ao longo de algumas edições mens descobrirem que melhor do tra a ex-namorada.
nesta coluna. Usaremos, portan- que viver é não viver. Melhor do No livro A estrutura da bolha de sabão, tam-
to, como trampolim o livro cita- que pintar, deixar a tela em branco. bém achamos uma história com uma cena de encon-
do, que em diversas passagens traz O papel em branco. A perfeição”. tro muito parecida com a de Venha ver o pôr do sol
uma reflexão sobre o rigor como Neste conto, as figuras fe- — embora neste texto de agora, A testemunha, o epi-
oposição ao extravasamento emo- mininas são fortes e representati- sódio aconteça entre dois amigos, Miguel e Rolf, que
cional. O compromisso social de vas de atitudes que encontramos escondem um ressentimento do passado, uma emoção
manter o controle é visto pela es- em outras histórias de Lygia: há a que vai se tornar o elemento motivador de um assas-
critora como uma espécie de co- esposa de Gaby, velha e manipu- sinato frio. O diálogo abaixo, pontuado por expecta-
vardia, diante da grande coragem ladora; há Mariana, a namorada tivas quase infantis, é muito parecido ao de Raquel e
que é expor-se em fragilidades: jovem, enérgica e impositiva — e Ricardo, em Venha ver o pôr do sol:
há a mãe de Gaby, tão doce em
(...) coragem da cólera, da seus carinhos, mas dissimulada, Enveredaram por uma rua escura, quase deserta.
tristeza — ô Deus! — até nos en- traidora do marido. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre
terros as pessoas tão contidas, tão O entra-e-sai dessa mãe cheia as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura
exemplares. Se controlando para de compromissos é visto como um da água. Rolf parou de assobiar.
não chorar alto porque se o choro indício de mau comportamento: — Ainda está longe?
fica forte, já vem alguém com a pí- “O pai devia saber que mulheres — O quê?
lula, a injeção, o analista: fechar as assim agitadas não podem mes- — O restaurante, rapaz.
portas, as janelas, os buracos. Até os mo ser fiéis”. Dessa forma, o cri- — Ah, fica logo depois da ponte — disse Miguel. E
anjinhos de Giotto se desesperaram tério de uma aparência respeitável, inclinou-se para amarrar o cordão do sapato. — Conheço
diante de Jesus crucificado, lá estão junto com uma atitude controlada, tanto esse rio, eu morava aqui perto quando criança. (...)
eles no céu, arrancando os cabelos, os era uma espécie de exigência im- Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bol-
olhos inundados de lágrimas. Mas o posta à mulher, se não quisesse ficar sos, um pouco encolhido. Miguel então veio por detrás e
homem tem que ficar no nível, sem “falada”. Em vários textos de Lygia, ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-
transbordar. encontramos a ressonância desse -o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-
compromisso, principalmente re- -o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito
A disciplina de uma dor que presentada por uma personagem afogado, se engasgando.
se nega ou reprime em nome das mais velha, que se torna opressora
aparências é ponto marcante em ou fiscalizadora da juventude. Em Aqui também, o assassinato é uma explosão do
várias personagens de Lygia. Se- Gaby, entretanto, a esposa do pro- personagem que até então permanecia controlado, su-
guimos este fio condutor para a tagonista aparece como um reflexo focando os sentimentos na disciplina da dor. E igual-
análise dos contos desta autora, de sua mãe: é sensual e luxuriosa, mente ocorre uma reviravolta de vermos o personagem
observando que a definição de dor deixando-o mesmo aborrecido. que inicialmente era mais frágil, ou representava a víti-
pode englobar inúmeras situações A jovem disciplinada identifica- ma, tornar-se superior e forte por seu gesto de vingança.
trágicas, relacionadas a perdas, -se com a figura correta, “de prin- Na mesma linha de companhias ameaçadoras,
frustrações, remorsos ou loucura. cípios”; entretanto, embora Gaby encontramos Daniela, a misteriosa esposa de Ed, no
Para começar numa gra- a admire, está casado com a velha conto O jardim selvagem. Sempre com a mão direita
de cronológica, partiremos do que lhe lembra a mãe. inexplicavelmente metida numa luva, Daniela atira no
livro O jardim selvagem, publi- Em outro conto deste volu- cão da chácara sob o pretexto de que ele estaria doente
cado pela primeira vez em 1965. me, A ceia, há também uma mu- e “a doença sem remédio era o desafino, o melhor era
A maioria dos contos desta obra lher com idade para ser mãe de acabar com o instrumento para não tocar desafinado”.
“migrou” para outros volumes de seu companheiro: é justamente É assim, com esse rigor associado a uma metáfora mu-
Lygia, coletâneas ou seletas de tex- esta a impressão que tem o gar- sical, que Daniela se volta friamente contra qualquer
tos impressos ao longo dos anos. E çom a servi-los, num restauran- tipo de existência imperfeita, o que apavora a peque-
vários contos de outros livros tive- te quase deserto. O encontro é na narradora desta história, ao saber que o seu tio Ed
ram trajetória semelhante, após te- uma tentativa de “despedida mais adoecera: “Quando Conceição veio me anunciar que
rem se esgotado os títulos em que digna”. Alice, após 15 anos de ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça.
foram publicados pela primeira convívio com Eduardo, foi aban- Mas aquele primeiro susto que levara quando me dis-
vez. Assim, visto que a própria au- donada, e agora o antigo parcei- seram que estava doente fora um susto maior ainda”.
tora promove uma circulação de ro está de casamento marcado Até aqui, as análises feitas já apontam para um
seus escritos, aos poucos também com uma jovem, Olívia. Incon- traçado do tema da disciplina como um elemento de
nos sentiremos à vontade para en- formada com a separação, Alice opressão comportamental, associado à frieza, ao as-
caminhar a análise dos contos de embriagou-se e fez escândalos nas sassínio, ou mesmo à simples frustração de uma vi-
maneira menos temporal, apro- ocasiões em que tentaram conver- da regulada por regras. As personagens que fogem a
fundando as associações entre as sar. Dessa vez, não será diferen- esse perfil, entregando-se à sinceridade expressa de
obras. Por enquanto, porém, co- te: embora ela tente manter-se suas emoções, podem ser vistas como loucas em al-
mecemos de maneira disciplinada. calma, logo chora e se humilha, guns textos, mas certamente são mais autênticas e
O primeiro texto em que diante de Eduardo. Alice é outra menos “covardes”, como frisou Lygia, no trecho que
constatamos a pertinência de nos- mulher para quem a disciplina das citamos no início deste ensaio.
10 | JANEIRO DE 2020

Mário e seu
Pirralho social, em 1914, com informações sobre
uma festividade no Conservatório, como índice da
presença ali do Oswald. Esquece que este ficou afas-
tado desta revista de 1912 a 1915. Também não há

contraponto
nenhuma vinculação dele com a coluna Registro de
Arte, do Correio Paulistano, sobre eventos similares.
Ao comentar a chegada do futurismo no
Brasil, a preocupação é afastar a possibilidade de
Oswald ter trazido um manifesto, na bagagem de
volta da Europa, em 1912. Por outro lado, insinua
O AUTOR
que, sem qualquer comprovação, este teria trazido
Em busca da alma brasileira, de para José Veríssimo o livro I poeti futuristi, apenas JASON TÉRCIO

Jason Tércio, apresenta deslizes porque o crítico era conhecido do tio Herculano.
Jornalista formado pela Universidade
A respeito da colaboração na Papel e Tinta (1920),
histórico-factuais ao mapear a onde Mário “ingressou definitivamente na trilha de
Gama Filho, trabalhou e colaborou em
diferentes órgãos do Rio de Janeiro,
trajetória de Mário de Andrade escritor jornalista”, esqueceu também de dizer que São Paulo e Brasília, além de ter
o convite para esta colaboração partiu de Oswald, uma experiência de quatro anos na
diretor da revista junto com Menotti del Picchia. BBC de Londres. É autor de Segredo
MARIA EUGENIA BOAVENTURA | CAMPINAS – SP Abandona a história da vida do Mário pa- de estado — O desaparecimento
ra comentar a leitura e a recepção do Manifesto de Rubens Paiva (2011) e A pátria
da poesia do pau-brasil. Equivocadamente decla- que o pariu (1994), entre outros.
ra que a nova pintura de Tarsila não tinha nada a

A
nova biografia de Má- novo trabalho e à cidade, bem co- ver com as ideias da poética oswaldiana (p. 185),
rio de Andrade, assi- mo a sua profunda melancolia. pois não considera que a pintora, antes de conhe-
nada por Jason Tércio, cer Oswald, até pelo menos 1923, era uma artis-
anuncia muitas novi- Deslizes ta acadêmica, aluna de escolas convencionais na
dades — algumas não tão novas Neste trabalho louvável de França. O mesmo tom peremptório e rasante foi
assim, como a procura da alma pesquisa, gostaria de comentar al- usado para associar Miramar e o Pau-brasil à in-
brasileira, e vem acompanhada guns pontos: a figura de H; o con- fluência direta de Blaise Cendrars (p. 184 e 202).
de orelha, quarta capa, mais um traponto oswaldiano; as derrapadas Esse poeta e o romancista Valery Larbaud apre-
posfácio elogiosos. histórico-factuais; a falta de evidên- sentaram o casal Tarsiwald ao mundo cultural pa-
Montada em nove capítu- cia de certas suposições interpreta- risiense, portanto não se sustenta a afirmação de
los e uma introdução, mistura a tivas; e a questão da alma brasileira. que Oswald buscava freneticamente, nos famo-
linguagem de ficcionista, histo- Aquele personagem per- sos cafés, autógrafos dos escritores, com o intui-
riador, biógrafo, folhetinista e de maneceu misterioso, como o seu to de conseguir aproximação.
conversa informal, perpassando nome. Notícias suas aparecem pe- A conferência de Oswald na Sorbonne, em
todas as fases da vida e obra do la primeira vez, ao mencionar o 1923, aconteceu em parceria com esta Universida-
poeta em registro de exaltação. É Clube XV, onde o escritor supos- de, a Academia Brasileira de Letras e com o supor-
um trabalho extenso num esfor- tamente encontraria H, compa- te do embaixador Sousa Dantas, amigo do poeta,
ço de abrangência, a fim de retra- nheiro de congregação, na página diferente do que informou o jornalista. A questão
tar uma personalidade muito rica 49 da biografia, e vão até o segun- da Antropofagia, da mesma forma, é vista de mo-
e comentar cada obra. Talvez um do capítulo, em pequenos pará- do superficial sem qualquer análise, apenas como
dos seus trunfos tenha sido a per- grafos isolados (reprodução de cenário para mostrar a atuação “desastrosa” dos
sistência em percorrer a fortuna trechos de cartas, cartões), que- seus criadores: “A segunda dentição da Revista de
crítica do biografado e conden- brando o ritmo da narrativa, Antropofagia foi a fase porra louca dos antropófa-
sá-la. Reconhece-se ao longo do suspendendo o discurso, possi- gos […] em vez de propostas, ideias, e textos li-
texto a chamada literatura consa- velmente para chamar atenção, terários, o que os antropófagos mais criavam era
grada sobre o escritor. despertar curiosidade. Todavia, o difamação […]” (p. 303-04). Arrola versões co-
Ao recuperar a história fa- jornalista não estende o assunto, o nhecidas e inconsistentes sobre o surgimento do
miliar, religiosa e escolar, desce a que seria esperado numa biografia movimento (p. 279), mas sabe-se hoje que a ideia
pormenores: procura esclarecer o — o H desaparece sem explica- surgiu ao longo de 1927, através dos debates com
nome da avó, a profissão do tio ções, e nem mesmo sua abrevia- Plínio Salgado (Carta antropófaga) e Oswald (An-
paterno e a do pai. Recupera as tura consta do índice onomástico. tologia), nas páginas do Correio Paulistano — para
passagens pelo Ginásio Nossa Sra. Em compensação, um ou- maiores esclarecimentos, conferir Feira das quin-
do Carmo e pelo Conservatório tro personagem quase não sai de tas: crítica e polêmica nas crônicas oswaldianas
de Música, onde Mário começou cena, funciona involuntariamen- (2008), de Roberta Fabron Ramos.
a estudar piano e terminou como te como contraponto, para o bem Há alguns lapsos de pequena importância,
professor; o engajamento nas ati- ou para o mal. Reina ora fantas- como a informação do primeiro endereço da re-
vidades religiosas, sem deixar de magoricamente, ora como espe- vista Klaxon, rua Uruguai, anunciado como sendo
registar o gosto pela vida munda- lho, fazendo com que o biógrafo o escritório de Guilherme de Almeida (p. 152),
na (concertos, bares, saraus, etc.). abandone o seu tema central, in- mas na realidade foi a residência de Marinete Pra-
Reconstitui os ambientes da casa terrompa a narrativa, como fez do. Da mesma forma, na rua Direita n. 5, não
da Lopes Chaves, a participação ao introduzir H — algumas ve- funcionava o escritório de Guilherme de Almei-
na Semana de 1922, os projetos zes numa dicção propositadamen- da, e sim de Antônio Carlos Couto de Barros e
de pesquisa, a colaboração nos di- te rebaixada (ver p. 71, 72, 158, Tácito de Almeida. Por falar neste periódico, não
ferentes periódicos, a recepção crí- 163-66, 184). Estamos falando há comprovação de que Graça Aranha tenha pa-
tica dos seus livros, a colaboração de um outro companheiro, o de go o último número em sua homenagem, como
na Revolução de 1932, o Depar- jornada intelectual, ao longo do afirma o biógrafo. Na realidade, toda a Klaxon foi
tamento de Cultura, a ida para o processo de modernização estéti- financiada pelo grupo modernista (Graça Aranha
Rio de Janeiro, a volta para São ca: Oswald de Andrade. incluído), por assinantes e pela venda nas livra-
Paulo, etc. Enfim, segue os passos Insiste em retrucar informa- rias. Por sinal, a realização deste número de cele-
de Mário ao longo da vida, utili- ções conhecidas a respeito dessa bração, teve defesa enfática do autor de Paulicéia
zando-se de farta documentação ligação. Gasta muito tempo pa- desvairada na sua correspondência com Bandei-
ou ficcionalizando. ra datar o primeiro encontro. Em ra e nas Crônicas de Malazartes.
Chamo atenção para o cui- 1917, como Oswald declarou nas Por último, queria observar que o título do
dado em rastrear as doenças, as suas memórias, teria sido o início livro decorre da absoluta identificação do jorna-
viagens pelo Brasil, a situação fi- desta conturbada amizade, ou an- lista com o seu objeto de estudo, tomando como
nanceira, e traçar a rede de ami- tes? É muito possível que na pro- norte a epígrafe de autoria do poeta, retirada de
gos, quer em São Paulo, quer no vinciana São Paulo dos anos 10 do uma carta de 1924 a Carlos Drummond de An-
resto do país. Rede esta que, quase século 20, com tão poucos espaços drade. Esta metáfora parece ter sido levada ao pé
sempre, estava atrelada a um pro- socioculturais disponíveis, os dois da letra, na vã esperança de, ao final do livro, con-
jeto intelectual e artístico. Destaco tenham se cruzado, apesar do con- seguir determinar a alma brasileira.
o período de “exílio” na então ca- trastante estilo de vida de cada um Em busca da alma brasileira atende, com
pital do país, quando se fica saben- e o círculo de amizades também as ressalvas apontadas acima, aos leitores que de- Em busca da alma brasileira
do detalhes das reuniões com este diferente. Mas isto não quer dizer sejam conhecer mais uma história de vida e de tra- JASON TÉRCIO
pessoal, as bebedeiras do Mário, a que teria existido antes uma apro- balho de uma figura icônica da cultura brasileira Sextante
mudança de casa, a inadaptação ao ximação maior. Recorre à coluna do século 20. 542 págs.
JANEIRO DE 2020 | 11

perto dos livros


MIGUEL SANCHES NETO

RETRATOS (DESFOCADOS) DO BRASIL

O
CHICO CERCHIARO

enfraquecimento e lo- deusa do amor e do sexo, numa


go o fim da ditadura referência rasa à cultura clássi-
militar liberaram a li- ca. A transformação da figura de
teratura brasileira pa- Dionísia em Amazona mostraria,
ra fazer leituras do período. O tom numa leitura mais crédula, o aflo-
trágico com desejos de ser épi- rar da mulher brasileira como um
co foi o mais comum, quase exi- ser livre das amarras sociais. De
gência de matérias tão traumáticas esposa a amante e depois mode-
como tortura, morte, desapareci- lo, ela se insurgiria como respos-
mento, prisão e exílio. Do escritor ta à liberação sexual (fim dos anos
se esperava um engajamento sério 1960) atrasada aqui por causa da
nas questões políticas, o que levou nossa circunstância política de
à criação de um herói recorrente natureza repressora.
no período — o jornalista — es- Identificamos assim o pri-
pécie de justiceiro da escrita, tan- meiro componente perturbador
to na ficção quanto nas memórias. da ordem, a sexualidade, patroci-
A fase das alegorias — que era um nada pelos barões da comunica-
código literário para leitores inteli- ção em busca de novos leitores,
gentes, o que livrava os autores da uma vez que o mercado de mate-
censura, por natureza linear e bur- rial erótico e pornográfico estava
ra — já estava vencida. se abrindo no país. Com conexões
Mas outras respostas foram com estes transgressores, os em-
dadas, fugindo a estes dois padrões. presários da comunicação não se
Uma delas foi a paródia como arma afastavam do poder militar já des-
de desconstrução de um agora que milinguido, mas ainda com cre-
não fazia o menor sentido. Neste ti- denciais potentes. No centro do
po de livro, o autor renuncia a to- país: banqueiros e militares, po-
da forma de messianismo social e der econômico e poder repressor
literário para zombar do país como — uma mistura perigosa. É den-
um todo, sem perdoar nenhum dos tro do sistema que surge, narrado
grupos sociais envolvidos na farsa também em registro de escracho,
que é nossa existência. o movimento de resistência polí-
Nos anos de repressão, mes- tica, simbolizado em uma organi- ças, tudo no enredo é reciclagem de lugares-comuns
mo quando ditos democráticos, zação secreta sob o nome de OBA sobre o período, elevado a uma potência programa-
tal como agora, surge sempre um — Organização dos Bancários ticamente inverossímil. Com audácia narrativa, Sér-
sentimento relativista de pátria. Anarquistas. A sigla é uma brin- gio Sant’Anna se vale dos recursos do pior best-seller
Enaltecer a pátria é uma forma de cadeira com a turma do oba-oba, para compor este retrato absurdo do Brasil, numa
justificar atos autoritários contra uma esquerda festiva e sem norte promiscuidade de grupos sociais, interesses, ideo-
pessoas e grupos que possam atra- político, que se aloja no interior logias e valores. A linguagem também se aproxima
palhar a marcha triunfal dos po- do grande monstro financeiro. do mau gosto deste tipo de livro, caindo na cafoni-
derosos. A palavra Brasil se faz um Em uma das ações, um dos inte- ce de gírias, trocadilhos, metáforas horríveis, inver-
manto mágico que acoberta tudo, grantes, o sociólogo Carlos Alber- sões pretensamente literárias de palavras e outros
restando ao escritor ridicularizar os to Bandeira, não deixa de cobrar cacoetes do gênero, num relato ao gosto do públi- Amazona
seus elementos de representação. indevidamente para si o pagamen- co nascido de “escândalos sexo-político-policiais”. SÉRGIO SANT’ANNA
Assim deve ser lido Amazo- to pela renúncia que significa a sua A obra não retrata pessoas com uma lente Companhia das Letras
na, romance de Sérgio Sant’Anna, militância — uma história tão re- realista, embora vejamos as suas silhuetas, mas cria 304 págs.
publicado originalmente em petida décadas depois. O raciocí- personagens, sendo o próprio autor-narrador um
1986. Nesta obra, tudo é paró- nio do sociólogo que se locupleta deles. O formato tem autonomia para convocar
dico, o que o liberta do sociolo- com o dinheiro da chantagem fei- estes tipos, que existem prontos. Assim, todas as
gismo não raro estudantil em que ta à filha do banqueiro explica to- coincidências narrativas, que são um erro no ro-
caíram muitos escritores contem- da uma linhagem de corrupção mance-arte, funcionam aqui como receita de uma
porâneos seus. Já pelo título, há nos quadros progressistas a que as- escrita zombeteira sobre um país que entrava na
uma referência clara à selva, aos sistimos nos últimos anos: “Se um modernidade pela emulação das peças do entre-
mitos do colonizador, embora o ativista se vê impedido, pela socie- tenimento. Numa grande velocidade narrativa, a
romance se apresente em quase to- dade opressora que ele combate, história da Amazona vai num crescendo até a mo-
do o seu transcurso vinculado ao de ganhar honestamente a sua vi- dernidade — de esposa pacata a modelo erótica —
presente daquele então. da, nada mais natural de que retire que poderia representar a abertura para o país do
A ideia de uma pátria em de expropriações revolucionárias futuro, mas, no último capítulo, nas partes em itá-
que as mulheres reinam reapare- uma cota para a sua manutenção lico, ela volta a ser a representação de um feminino
ce em vários momentos dos tex- pessoal”. Não há, portanto, heróis primitivo, e aquele hoje se sobrepõe aos tempos da
tos sobre a nacionalidade porque neste romance rapsódico, em que colonização. Há uma continuidade entre o agora e
funciona como um contraponto se emenda uma ação na outra, em o passado selvagem que só percebemos no desfecho
à civilização patriarcal. Digamos que os casais aceitam traições, em em aberto. Continuamos um país primitivamente
que é um mito da pureza mater- que as mortes se sucedem em es- moderno, e isto é maior do que qualquer conquis-
na do Novo Mundo a alimentar cala de filme B de Hollywood, tu- ta civilizacional. Esta paralisia histórica é o que nos
as narrativas fundadoras. Sérgio do para zoar de uma palavra que distingue como nação, pois mantemos uma cone-
Sant’Anna coloca esta imagem se tornou pejorativa: pátria. xão com eras obscurantistas que (ai de nós!) cicli-
dentro de uma lógica de pulp fic- Do assassinato da filha do camente se manifestam.
tion, pois a Amazona do título é banqueiro em pleno cemitério, Negando a lógica realista, Sérgio Sant’Anna
uma mulher linda e sensualizada no enterro de seu amante fran- reescreve Macunaíma, de Mário de Andrade, ago-
que cavalga corpos, não só mas- cês que foi queimado pela polícia, ra a partir da trajetória de uma mulher primitiva-
culinos. Em uma sucessão artifi- da tentativa de retomada do gol- mente moderna, neste retrato de um Brasil sem
cial de episódios, a pacata esposa pe por um general caquético, que nenhum caráter. É nesta matriz que Amazona de
se faz uma modelo cujo nudismo orienta um piloto militar a que- inscreve, forjando enredos e temporalidades para
ganha a capa de revistas e jornais. brar a velocidade da luz com um nos representar farsescamente, mesmo que em um
O nome desta personagem é Dio- avião Mirage sobre os prédios do contexto que era para ser trágico. Haverá melhor
nísia, por si só um estereótipo, a Rio, destruindo milhares de vidra- definição do Brasil?
12 | JANEIRO DE 2020

simetrias dissonantes
NELSON DE OLIVEIRA

MAIS SETE LIVROS IMAGINÁRIOS


Algum lugar em parte alguma Treze Duzentas mil horas O lhos cor - de - rosa e
de Dandara Zumbi dos Palmares de Anita Garibaldi de Mestre Valentim frios: Nostradamus e os limi-
A coreana Dandara Zumbi dos Palmares e o Premiada com o Goncourt Um rapaz estabelece um tes da linguagem
vietnamita Antoine de Saint-Exupéry são os nomes pelo romance Sólidos gozosos vínculo afetivo com uma lagarti- de Carmen Miranda
fortes de um ramo da ficção científica contemporâ- & solidões geométricas, de Ani- xa. Um alienígena visita a infân- A Pequena Notável foi uma
nea batizado de new superweird. As bizarrices de seus ta Garibaldi tínhamos em por- cia numa praça de cidadezinha do das primeiras comentaristas, na
livros atualizam as esquisitices grotescas das famige- tuguês brasileiro apenas o breve interior. Comentários soltos, sem França, da obra do filósofo aus-
radas weird fictions da era de ouro das revistas pulp. Zás-Trás, sobre o baiano Emil narrador ou contexto, tentam dar tríaco naturalizado brasileiro, cuja
Mistura de gêneros (ficção científica, horror Zátopek, único corredor a ven- conta de uma tragédia eletrodo- sentença “Acerca do que não se
e policial), o multipremiado Algum lugar em par- cer, numa mesma Olimpíada, os méstica. Um lobisomem reavalia pode falar, deve-se calar” equivale
te alguma revela duas metrópoles distintas que, no cinco mil metros, dez mil metros e suas prioridades enquanto dirige ao “Penso, logo existo” de Pavlov
entanto, ocupam o mesmo espaço geográfico. Os a maratona. Agora a autora nos le- numa estrada deserta, pouco an- e ao “E = mc2” de Pasteur.
moradores de uma cidade são obrigados por lei a ig- va de volta à Grandíssima Guerra, tes do ano-novo. No início dos anos 50, Car-
norar os moradores da outra. O equilíbrio se rom- a primeira, num romance igual- Mestre Valentim lança mais men Miranda leu dois artigos em
pe quando um investigador de Macondo (uma das mente breve, porém um pouco uma coletânea de histórias curtas, alemão, sobre o silêncio, a lógi-
cidades) decide caçar um assassino em Santa Ma- menos instigante. a maioria curtíssima, sobre pes- ca e a mística em Nostradamus
ria (a outra cidade). A jornada dos irmãos Rio- soas comuns tocadas pelos misté- (1503-1566), e se entusiasmou
Esse é o segundo romance de Dandara pu- baldo e Bentinho — interessados rios do cotidiano. São onze contos com a doutrina desse filósofo pra-
blicado no Brasil. Quatro anos atrás saiu pela al- na mesma garota, Sinhá Vitória em que a solidão, a crueldade e a ticamente ignorado, na época, pe-
ternativa Abracadabra Editorial o maravilhoso e — faz da “ópera sórdida e féti- morte expõem o lado sombrio de la tradição francesa.
escatológico A maldição do macho (1998), ro- da” narrada anteriormente por cada um, suas feras internas. “O O presente volume reúne os
mance de estreia da autora. Porém, sua obra-prima, Hemingway e Proust, entre mi- ser humano é como uma flores- quatro ensaios em que a autora re-
Babel Babilônia (2000), ainda não se materializou lhares de outros, um pesadelo ta: você olha de fora, e a floresta visa a filosofia desenhada no Trac-
em nosso português brasileiro. Mas tudo indica que enfadonho. Semanas após en- é aquela maravilha; mas você en- tatus logico-philosophicus, de
não demorará muito. gravidar Sinhá Vitória, Bentinho tra, e lá dentro você dá com on- 1521, e nas Investigações filosó-
morre na guerra. Riobaldo retor- ças, cobras, escorpiões”, comenta ficas, publicadas postumamente.
Corrida de elevador na quase dois anos depois, sem um dos personagens. Aos que começam a to-
de Antônio Francisco Lisboa o braço direito, de um conflito Porém, nem tudo é melan- mar contato com o pensamento
Reflexo do aumento da expectativa de vida, que, na opinião geral, era para colia nesse pequeno universo de de Nostradamus, sobre os limi-
a velhice está cada vez mais presente na literatura. ser coisa rápida. descrições e diálogos concisos. Em tes dinâmicos do conhecimento
A nova novela de Antônio Francisco Lisboa, au- Treze seria uma obra-pri- A estrutura da bolha de sabão, e dos jogos de linguagem, as aná-
tor dos cultuados Putaquipariu (rapsódia, 1974) ma, se a linguagem fosse mais a conversa do pai com o filho, na lises de Carmen Miranda serão
e No caminho, com Caminha (poemas, 1987), intensa. É certo que o narrador volta da aula de catecismo, é diver- de muita ajuda. Suas reflexões
narra as peripécias de um professor aposentado, neutro e formal — batizado de tida, ensolarada. E em Felicidade expõem até mesmo as dúvidas e
nas ruas de São Paulo. protocolar por Modesto Carone, clandestina, conto que encerra a os erros de percurso de um via-
Irreverente até a medula, Corrida de elevador ao se referir à obra de Frank Zap- coletânea, a nota de esperança em- jante que, mais de cinco séculos
corre na contramão da tendência de contos, nove- pa — consegue reduzir a guerra e purra as sombras pra longe. Talvez atrás, começava a mapear um no-
las e romances melancólicos sobre o final da vida, da a vida a uma sucessão de eventos para o próximo livro. vo território humano.
qual os melhores exemplos são Minha supermãe se neutros e formais. Mas hoje em
matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Fer- dia esse já não é um recurso esti-
reira, e O professor aloprado, de Cristovão Tezza. lístico muito eficiente.
Gilgamesh Tupinambá, o septuagenário de
Ilustração: Joana Velozo

Antônio Francisco Lisboa, não para quieto. Adepto A mãe das aves
da terapia peripatética, está sempre em movimento, de Maria Quitéria de Jesus
pegando ônibus, metrô e elevador ao acaso e pre- Não há escritor ou frequen-
gando peça nas pessoas. “Eu também sou um pro- tador de oficina de criação literá-
dutor de disparates, e me alegra saber que existem ria que não conheça o Decálogo
outros por aí”, confessa a outro aposentado. Sua er- do Perfeito Contista, do uruguaio
rância quase macunaímica, pontuada por delírios e Yasunari Kawabata (1878-1937).
cópulas atrapalhadas, é uma lufada de ar fresco no Durante muito tempo, levei bas-
salão abafado da ficção contemporânea. tante a sério esses dez manda-
mentos sobre a arte do conto. Até
Por que o mundo não se esforça descobrir, pasmado, que o Decá-
pra me fazer feliz? logo é na verdade uma brincadei-
de Chiquinha Gonzaga ra, um exercício de ironia. Quem
A nova coleção de poemas de Chiquinha me avisou foi Maria Quitéria de
Gonzaga reúne na mesma medida peças líricas, Jesus, em artigo de jornal. A mes-
em que o flash subjetivo surge da fragmentação, e ma Maria Quitéria de Jesus, tra-
peças narrativas, protagonizadas por faunos e fadas dutora e professora, que agora
da cena contemporânea. estreia na ficção curta com uma
Se para o filósofo polonês Arthur Schope- estonteante coletânea.
nhauer o momento atual é líquido, para a autora gaú- A mãe das aves traz dezeno-
cha é sólido, líquido e gasoso, em igual medida. Isso ve narrativas impressionantes, po-
já estava bastante claro em seus livros anteriores: os voadas de bizarrices e dominadas
romances Back in the USSR, Matando gigantes e pelo registro cultural de diferentes
Amália atrás de Amália, a coletânea de contos Fan- regiões das Américas. A contista
fic e a de poemas O fruto maduro da civilização. conseguiu atravessar com elegân-
Nossa Chiquinha Gonzaga poeta é irresistível cia a sombra de Borges e Ro-
nas peças narrativas, que revelam o grão de doçu- sa, para encontrar do outro lado
ra que as situações patéticas sempre oferecem. Dos seu próprio modo de expressar o
poemas herméticos, os melhores são os que tam- grotesco da existência miúda. Os
bém oferecem esse olhar afetuoso. monstrinhos tresloucados de Ma-
Que a fragmentação discursiva é antipática por ria Quitéria de Jesus, tão cheios de
natureza, não resta dúvida. Poetas fragmentadores têm luxúria e pesadelo, são uma origi-
ojeriza ao leitor menos traquejado nos jogos literários. nal contribuição ao extenso bes-
Então, resulta no mínimo provocativa essa junção de tiário ao qual pertencemos, todos
opostos, essas delicadas ternuras fragmentadas. nós, seres multiformes.
JANEIRO DE 2020 | 13

Tupinilândia é aqui
DIVULGAÇÃO

Samir Machado de Machado


apresenta um parque de diversões
entre o passado e o presente do Brasil

DANIEL FALKEMBACK | CURITIBA – PR

P
ara se pensar num livro cionar, através de seu parque, para novos caminhos
chamado Tupinilân- possíveis segundo seu pensamento. No entanto, ele
dia, no caso, o roman- não é exatamente o herói da narrativa de Samir Ma-
ce do escritor Samir chado de Machado. Desde o prólogo do romance,
Machado de Machado, é funda- que se passa entre os anos 1930 e 40, o futuro em-
mental começar por seu título. presário adota uma postura entre alianças com for-
A palavra em si, “Tupinilândia”, ças autoritárias, como o governo Vargas, e seu desejo
nos remete tanto à ideia de uma de combater o fascismo, inclusive como soldado na
“terra” quanto à de “tupiniquim”, Segunda Guerra Mundial. De modo bem brasileiro,
ou seja, ao grupo indígena com o Flynguer enriquece por vezes com apoio daqueles que
qual Pedro Álvares Cabral se de- poderia ter atacado antes. No fim da ditadura militar,
parou quando aportou no sul da com a esperança da redemocratização, ele resolve, en-
O AUTOR
Bahia em 1500. O tupiniquim tão, levar adiante sua fantasia à Walt Disney ao tornar genheiro responsável pelo controle
também se tornou, de maneira concreto o projeto de Tupinilândia. Contudo, ao lon- SAMIR MACHADO DE MACHADO central das instalações que propõe
curiosa, um epítome comum do go da narrativa, até a sua segunda parte, que se pas- o desligamento da energia como
Nascido em Porto Alegre (RS),
povo brasileiro, mas num sentido sa em tempos recentes, vemos como esse sonho tão solução. No filme, a personagem
em 1981, é escritor, roteirista e
pejorativo. Não deixa, portanto, individual não pode se tornar real sem consequên- designer. Foi um dos fundadores
é representada por um ator negro,
de ser no mínimo irônico o uso da cias muito mais coletivas do que se poderia imaginar. da Não Editora, pela qual lançou a Samuel L. Jackson, e é morta ao
palavra na composição do nome novela O professor de botânica, tentar resolver um problema cria-
do parque de diversões pelo escri- Matéria-prima do pop em 2008. Além de Tupinilândia, do por ela mesma; daí a referência
tor, de um parque que é autorita- Ainda, na primeira parte, outras personagens, romance pelo qual recebeu o da personagem em Tupinilândia.
riamente construído no meio da como o jornalista Tiago, os filhos de Flynguer, Beto Prêmio Minuano de Literatura, A diferença aqui é que Johan não
floresta amazônica, ainda no fim e Helena, e as crianças que são os filhos desta, che- também publicou Piratas à vista morre, como já indica a resposta
da ditadura militar, com o objeti- gam a conhecer Tupinilândia em um evento-teste, (2019), Homens elegantes (2016), que João Amadeus Flynguer lhe
vo de reconstruir o passado nacio- junto com uma série de convidados. Nessa pré-aber- vencedor do Prêmio Açorianos, dá: “Não diga isso. Eu vou ficar
e Quatro soldados (2013).
nal (e o futuro) de forma lúdica. tura, tudo dá errado. Num primeiro momento, os aqui com você. [...] É a mim que
É com base na história desse problemas que parecem ser apenas falhas no caríssi- Kruel quer, mais do que qualquer
parque que o penúltimo roman- mo sistema de controle informatizado do parque re- outro”, ao se referir ao general in-
ce do autor gaúcho se volta. No velam ser indícios de um plano de sabotagem de um tegralista Newton Kruel. Portanto,
início dos anos 1980, com o Bra- dos funcionários em conjunto com integralistas alia- ao contrário de John Hammond,
sil rumando para a abertura polí- dos à linha mais dura da ditadura, contrária à aber- dono do Jurassic Park, ele decide
tica, um empresário milionário de tura política promovida no período. Assim, o parque não usar outra pessoa como meio
família estadunidense, João Ama- tão bem descrito em detalhes (por vezes até didá- de se manter vivo.
deus Flynguer, constrói um par- ticos demais) pelo narrador, ao gosto de qualquer Mais um paralelo possível
que de diversões em segredo, sob nostálgico dos anos 1980, cai nas mãos de fascistas se dá a partir do vilão de Michael
proteção do então governo militar como aqueles contra os quais seu proprietário com- Crichton, Dennis Nedry, o pri-
de João Figueiredo. Batizado de bateu décadas antes. Apesar dessa derrota, as perso- meiro a perder a vida. Em com-
Tupinilândia, funcionaria como nagens principais conseguem escapar, com a exceção paração, no romance brasileiro, o
uma celebração da identidade na- do Flynguer pai. Na segunda parte, então, descobri- vilão permanece vivo, sendo a ori-
cional e da nova democracia que mos o que acontece com o lugar abandonado nas gem de todo o conflito até a se-
se aproximava. Tanto no prólogo mãos dos integralistas: o arqueólogo Artur Alan Flin- gunda parte. Além disso, ele não
quanto na primeira parte do livro guer, parente distante dos Flynguer milionários, re- é um adversário não humano, co-
temos mais conhecimento dos an- torna ao local com fins de pesquisa e descobre uma mo os dinossauros soltos em Ju-
tecedentes do projeto no mínimo pequena sociedade parada no tempo, criada pelos rassic Park como consequência
megalomaníaco de Flynguer: sua fascistas a partir de suas famílias. São consequências dos atos de Nedry. Assim, fica
fascinação pelas ideias e fantasias que nos fazem recordar distopias, como as de Geor- mais claro que, em Tupinilândia,
de Walt Disney e também gran- ge Orwell e Aldous Huxley, mas também da nossa a questão relevante é muito mais
de interesse em iniciativas como própria realidade social e política. social e histórica, não sendo uma
Fordlândia, a cidade fracassada Entre ficção científica, histórica e também mera disputa entre o bem e o mal.
de Henry Ford no meio da Ama- fantasia, como outros romances de seu autor, Tu- Por fim, é relevante desta-
zônia brasileira, criada para dimi- pinilândia é uma narrativa que “transforma em li- car que, apesar de ter sido recen-
nuir seus custos pela produção teratura a matéria-prima do pop”, além de virar “de temente o vencedor do 2º Prêmio
própria de borracha. Por uma es- ponta-cabeça os clichês dos romances de aventura”, Minuano de Literatura, atribuí-
tranha combinação desses dois de acordo com a orelha do livro. Contudo, alguns do pelo governo estadual gaúcho,
elementos, surge o último gran- dos ditos clichês estão ainda presentes no texto e são o romance de Samir Machado de
de projeto do industrialista: cons- às vezes repensados de maneira interessante; outras Machado ainda não parece ter
truir um parque de diversões no vezes, não. Essa permanência faz com que o mani- sido apreciado pela crítica e pe-
meio do Pará, que seria também queísmo das relações desmantelado nos primeiros los leitores em geral como mere-
uma espécie de mundo paralelo. capítulos reapareça em alguns momentos do enre- ce. Embora problemas possam
Suas instalações não teriam apenas do, porém em menor grau. ser apontados por um ou outro
brinquedos voltados para a histó- Em compensação, é importante ressaltar tam- leitor, trata-se de uma narrativa
ria e a identidade brasileiras, sob bém as várias reflexões sutis acerca da literatura com bem concebida que demonstra a
patrocínio apenas de marcas na- que o livro dialoga. Por exemplo, na primeira parte, competência e a criatividade de
cionais, mas também toda uma um dos funcionários do parque, Johan, diz aos outros seu autor. Com certeza, o poten-
nova concepção de país que servi- que pensavam em soluções para fugir dos invasores: cial da integração de gêneros tão
ria de modelo para as futuras gera- “já vi filme americano o bastante pra saber que, nessas distintos atrelada a uma aborda-
ções e também, de certa maneira, situações, o negrão é sempre o primeiro que se fode”. gem interessante da nossa histó-
para seus contemporâneos. Aí há uma referência dentre tantas outras a Jurassic Tupinilândia ria em suas contradições pode ser
Num momento em que o Park, de Michael Crichton, do qual se retira uma das SAMIR MACHADO DE MACHADO a fonte de livros fundamentais
Brasil saía de uma longa ditadura epígrafes do romance de Samir Machado de Macha- Todavia para nós, como bem nos mostra
militar, Flynguer parece nos dire- do. Tal qual o John Arnold de Crichton, Johan é o en- 454 págs. Tupinilândia.
14 | JANEIRO DE 2020

conversa, escuta
ALCIR PÉCORA

INSTRUÇÕES URGENTES

Ilustração: Paula Calleja


PARA SOBREVIVER AOS
TEMPOS DE GUERRA (4)

A
guerra do presente segue a todo vapor, te ou muscularmente cansado, mas
sem sinais de que vá amainar nos próxi- você pode sentir moleza e até exaus-
mos anos. Isso justifica que eu continue tão ao fazer exercício.
a buscar formas de convívio e de sobrevi- O que é preciso, qualquer que
vência razoável no folheto do Dr. Clegg? Acredito seja o trabalho, é mudar de atividade
que sim. Como sabem os leitores da coluna, o fo- para alguma coisa que irá exercitar os
lheto de sua autoria intitulado How to keep well músculos que você não usa durante o
in Wartime, editado pelo Gabinete Churchill, na dia de trabalho, e nem serão usados
Londres sitiada de 1943, pretendia instruir a popu- durante as ocasiões de desfile da Guar-
lação sobre procedimentos saudáveis que poderiam da ou nas obrigações da Defesa Civil.
ajudá-la a suportar as duríssimas circunstâncias da Para a maioria de nós, exercí-
Segunda Guerra. Hoje, traduzo o quarto capítulo, cio é essencial para a saúde. Se pos-
intitulado Mantenha corpo e mente ativos. sível, alguma forma de exercício
deveria ser feita diariamente ao ar
Aqueles que podem ir à praia durante a guer- livre. Uma maneira de fazer isso é
ra são sortudos. Além de tomar sol e ar puro, podem levantar meia hora mais cedo e ir a
banhar-se. Há poucas maneiras de exercitar melhor o pé parte do caminho para o trabalho.
corpo do que nadar, seja no mar, no rio ou em pisci- Se você não estiver muito cansado ao
nas. A tentação, entretanto, é exagerar. É estúpido fi- fim do dia, você poderia fazer o mes-
car na água até os dedos ficarem brancos ou azuis. E mo na volta. Durante esta guerra,
realmente não faz sentido exibir-se para os amigos e muitas pessoas começaram a ir traba-
parentes seja nadando até muito longe, seja com uma lhar de bicicleta e se sentiram melhor.
frequência excessiva.
Quando você se exercita a pé, de bicicleta, na- Diante dessa observação do
dando ou cuidando do jardim, há sempre um sinal Dr. Clegg, me ocorreu pensar se
que lhe dirá se você está exagerando — o da fadiga essas tantas bicicletas disponíveis
que se torna exaustão. Isso é muito diferente do can- pela rua poderiam ser usadas em
saço saudável posterior ao exercício, que lhe dá uma nossa guerra contemporânea. Ca-
sensação de relaxamento. A exaustão significa que vo- ramba, não é pouco armamento!
cê se fez mal em vez de bem. O próximo tópico assina-
lado pelo Dr. Clegg é: Músculos
Dr. Clegg também dá lições atinentes ao tó- são feitos para ser usados. Diz
pico Feriados em casa: ele que “as massas de músculos no
braço, perna, coxa, costas e bar-
Para o tempo livre e os feriados, você deveria de- riga não são apenas ornamentais.
sejar duas coisas. A primeira é relaxamento. A segun- Estão ali para ser usadas. Se não o
da é mudança. A mudança irá ajudá-lo a relaxar. E são, cedo ou tarde, você vai saber
não precisa ser uma mudança drástica. disso”. Isso soa um pouco amea- panhias de seguro afirmam que gor- Simetricamente, Dr. Clegg
çador para mim. “Reumatismo é dos não vivem tanto como os magros. também faz Advertências aos
Eis o que ele sugere: uma queixa comum no país e uma muito magros. Embora admita
precaução é manter juntas e mús- Admito que sutileza não é que, para a saúde, “ser muito ma-
Deve fazer anos que você não visita certo lugar culos em movimento para que o o forte do Dr. Clegg, mas é fa- gro é um pouco melhor do que ser
bacana apenas 5 ou 6 km de onde você vive. Você não sangue flua livremente através de- vor não confundir as suas adver- muito gordo”, ele está longe de ser
deve ter ido a um concerto ou ao teatro por meses, ou les. Os seus músculos estão fican- tências, feitas em 1943, segundo fanático da magreza:
mesmo anos. Talvez você nunca tenha pensado em dar do definidos? Você consegue ficar as indicações científicas mais acei-
um pulo na biblioteca pública. de pé com os joelhos juntos e to- tas na época, com o reles bullying Em mulheres jovens, especial-
car as pontas dos dedões com as a gordos. Saúde é arma nossa, mente, magreza não é vantagem.
E continua: pontas dos dedos? Tente. Nos fins bullying é baixaria inimiga. Infelizmente, nos últimos anos se
de semana, quando puder, ande, tornou moda para garotas e jovens
Não gaste todo o seu tempo com bilhar e cartea- pedale, nade, escave, reme — e Se você está com sobrepeso e mulheres ser magras, e elas usual-
do em atmosferas pesadas e enfumaçadas. Faça algo di- curta. Não adie. Comece agora, e sente que a sua saúde não está em mente dão um jeito de comer mui-
ferente. Há muitas coisas a fazer que trarão mudança não se preocupe ao sentir alguma cima, procure um médico antes de to pouco, com ou sem racionamento.
e renovação para a sua vida, mesmo quando a guerra rigidez no início.” fazer algo a respeito. E, em qual- Mulheres jovens, especialmente, de-
torna aconselhável passar o feriado em casa. Dr. Clegg não está dando quer caso, não tome pílulas para veriam comer a porção completa,
mole pra ninguém neste quarto ca- emagrecer ou remédios para a ti- porque a tuberculose é mais comum
O tópico seguinte é: Aproveite ao máximo pítulo. E ainda reserva uma séria Ad- reoide sem receita médica. Mui- entre elas do que entre outras pessoas.
o tempo livre. Segundo o Dr. Clegg, isso vertência aos obesos. Diz ele que tas pessoas já morreram por tomar A subalimentação, especialmente de
comprimidos que supostamente as gordura, permite um avanço maior
é absolutamente necessário para relaxar men- se você está com sobrepeso, é fariam emagrecer. da tuberculose.
talmente e fisicamente durante a semana de trabalho preciso começar o exercício gradual- O conselho habitual para os
normal. A melhor maneira de fazê-lo varia de acordo mente, e aumentá-lo gradualmente. obesos que querem emagrecer é di- E encerra o tópico alertan-
com as circunstâncias. Se o seu trabalho exige gran- É verdade que algumas pessoas são zer-lhes para comer menos, espe- do que “não existe isso de ‘alimen-
de força braçal, seus músculos estarão cansados e o que gordas por natureza. Em outras, a cialmente doces e amidos. Nos dias tos emagrecedores’”.
talvez você mais precise seja apenas descansar. Se o seu obesidade pode ser resultado de um atuais de racionamento, entretanto, Assim, camaradas, saúde
trabalho o obriga a ficar de pé o dia todo, ou envolve excesso de alimentação e de falta de qualquer ajuste na dieta tem de ser tem a ver com exercício físico
repetição monótona, você provavelmente precisa de al- exercício. Um homem chamado Da- feita com muito cuidado. Natural- e mente tranquila. A fórmula é
guma mudança, como andar, mais do que descansar. niel Lambert deve ter batido o recor- mente, você não precisa comer toda singela, mas não há nada mais
Aliás, meninas e mulheres devem usar saltos baixos de de obesidade. Ele pesou 330 kg e a sua porção de doces. Concentre-se temido pelo inimigo reacionário
para andar ou ficar em pé. Se você passa o dia senta- a medida de sua cintura chegou a em fazer mais exercícios e começá- do que um corpo em forma e um
do num escritório ou loja, você não estará fisicamen- 286 cm. Morreu antes dos 40. Com- -los gradualmente. espírito livre.
JANEIRO DE 2020 | 15

inquérito
NARA VIDAL
DIVULGAÇÃO

PEDAÇO DE LOUCURA

“A
cada desconforto, a Murilo Mendes. Shakespeare está
cada questionamen- sempre ao lado de Cervantes, nu-
to, a cada falta de ar. É ma briga eterna pelo argumento
sempre aí que eu que- do legado. Kafka está ao lado de
ro escrever”, conta Nara Vidal, que Euclides da Cunha, e acho que is-
estreou no romance com Sorte e so o incomoda. Dou a Camus a
levou o terceiro lugar no Prêmio companhia de Anaïs Nin, Capo-
Oceanos de Literatura 2019. For- te ao lado de Bishop — que no
mada em Letras pela Universidade momento está um pouco tímida,
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e não quer sair da estante, e por aí
mestre em Artes pela London Met vai. A coisa não tem fim, mas tem Sorte
University, a autora mineira — que uma razão de ser na minha cabeça. NARA VIDAL
hoje vive na Inglaterra — abriu Quando essa estranha ordem se al- Moinhos
mão das exatas desde cedo e enve- tera, acho que é sinal de que o tex- 100 págs.
redou pelo caminho das letras, ten- to desandou. Apago o que escrevi,
do lançado livros infantojuvenis. reorganizo a prateleira e começo
Além de sua obra premiada neste de novo. Sei que é um pedaço de
ano, publicou as narrativas breves loucura, mas também sei que não
de A loucura dos outros (2016) e estou sozinha nesses desatinos. Eu
Lugar comum (2015). pelo menos admito o delírio.

• Quando se deu conta de que • Que leitura é imprescindível


queria ser escritora? no seu dia a dia?
Para mim é o verbo que está Poesia toda noite antes de dormir.
muito acima do substantivo. Sem- Jornal de manhã. Todo o resto na
pre que escrevo é algo que vem de hora que dá.
uma vontade de dizer. Substitui-
ria a pergunta por “quando se deu • Se pudesse recomendar um
conta de que queria escrever”. A livro ao presidente Jair Bolso-
cada desconforto, a cada ques- naro, qual seria?
tionamento, a cada falta de ar. É Desculpa, mas essa me parece uma • O que mais lhe incomoda no • Quando a inspiração não vem...
sempre aí que eu quero escrever. pergunta de enorme inutilidade. meio literário? Alguma atividade ligada à arte: assistir a um filme,
Escrever sempre será um proces- Claramente o homem não lê. O puxa-saquismo e a vaidade que balé, exposição em companhia das crianças, que é
so e sempre corremos o risco de extrapola limites e se transforma sempre mais interessante. Correr ou caminhar tam-
perdê-lo de vista. Escrever nunca • Quais são as circunstâncias em inveja de olhos cegos e vesgos bém ajudam a refrescar ideias.
é uma garantia. Mas, para pon- ideais para escrever? e em espuma no canto da boca.
tuar uma origem, ainda menina A luz e o silêncio das quatro da • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de
meu interesse era nas letras, nas manhã. Trabalho bem quando • Um autor em quem se deve- convidar para um café?
palavras, nos idiomas. Nunca na o mundo ainda está suspenso. ria prestar mais atenção. Shakespeare. Tenho muitas perguntas pra ele. Sylvia
matemática, por exemplo. Isso me Gosto da ideia de ter me anteci- Eu acho essa pergunta um pou- Plath. Tenho muitas perguntas pra ela. Mas o que eu
faz pensar numa professora de quí- pado como se fosse possível viver co pretensiosa e pontuada por um prefiro mesmo para um café ou um jantar ou uma
mica da escola secundária. Numa um pouco do dia antes de todo sopro de arrogância que não se en- garrafa de vinho é a companhia de gente que ri, que
manhã de prova eu era a última mundo. Geralmente é um mo- caixam na posição que eu ocupo. escuta, que conversa e de preferência que esteja viva.
que restava na sala. A prova tinha mento produtivo. Mas, como leitora, gostaria de su-
dez perguntas e eu ainda estava na gerir Adriane Garcia, Jeferson Te- • O que é um bom leitor?
primeira. Essa professora olhou o • Quais são as circunstâncias nório e Juliana Diniz. É o que explora além do óbvio, além do que ditam
relógio — já era quase meio-dia ideais de leitura? as livrarias e a imprensa.
— e me perguntou: “Nara, você Um sofá confortável, silêncio, • Um livro imprescindível e um
acha que vai trabalhar com alguma crianças ocupadas, um café ou um descartável. • O que te dá medo?
coisa no campo da química?”. Fui vinho tinto. Eu raramente desisto de uma O tempo passando nos meus filhos.
categórica: “Nunca!”. Ela pegou a leitura. Por isso, se não consigo
minha prova, disse para eu não me • O que considera um dia de avançar, o livro morre para mim. • O que te faz feliz?
preocupar com a matéria, mas in- trabalho produtivo? Imprescindíveis são muitos e vá- O tempo passando nos meus filhos.
vestir cada vez mais no português Pode ser uma pesquisa para deter- rios, ainda bem!
e na literatura. Anos depois, lan- minado livro que tenha se apro- • Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
cei meu primeiro livro adulto na fundado e ramificado. Pode ser • Que defeito é capaz de des- A certeza de que a minha pátria é a minha língua. A
minha cidade e ela estava lá. Me um parágrafo que me deixa com truir ou comprometer um livro? dúvida se a minha língua é a minha pátria.
contou do orgulho que sentia por vontade de não parar de escrever. A pretensão literária, o moralismo e
mim como professora de quími- Pode ser um conjunto de pará- o uso gratuito de ações ou palavras. • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
ca. Uma dessas educadoras que en- grafos num ritmo mais acelerado. É uma preocupação com algo aparentemente tão
xergam a pessoa dentro do aluno. Pode também ser uma mostra de • Que assunto nunca entraria simples, mas tão difícil de fazer: contar uma história.
arte, uma passagem de um livro em sua literatura?
• Quais são suas manias e ob- ou um balé. Qualquer assunto entraria na mi- • A literatura tem alguma obrigação?
sessões literárias? nha literatura. Nenhuma. Ela é livre como toda arte deve ser.
Quando escrevo no meu escritó- • O que lhe dá mais prazer no
rio, minha mesa fica de frente pa- processo de escrita? • Qual foi o canto mais inusi- • Qual o limite da ficção?
ra a parede com estantes. Gosto Me surpreender com a trama ou tado de onde tirou inspiração? O final.
de organizar os livros e o esque- resolver um problema que eu Um documentário sobre os pio-
ma é um pouco esquisito: Plath criei. O ponto final é um grande res assassinos em série da Grã-Bre- • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse
ao lado de Hughes, que está es- alívio também. tanha que mostrava um homem “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
premido por Clarice, que esbar- que matava suas vítimas e cozi- A ninguém, mas convidaria para um café, um tin-
ra o ombro com Ferrante ao lado • Qual o maior inimigo de um nhava os corpos. Mas há leveza to para que me contasse da vida dele.
de Woolf, que se apoia em T. S. escritor? também e geralmente os gestos,
Eliot. Lygia está perto de Drum- A ansiedade, a vaidade, o excesso as vozes e o andar das pessoas me • O que você espera da eternidade?
mond, que está perto de Cabral e de autoconfiança. trazem muitas ideias. Que ela seja apenas uma ideia descabida.
16 | JANEIRO DE 2020

Ilustração: Conde Baltazar

Um poeta
entre vulcões
Os poemas equatorianos de João
Cabral de Melo Neto, reunidos
em Viver nos Andes, apresentam
imagens concretas e concisas

IVÁN CARVAJAL | QUITO – EQUADOR

E
m alguma ocasião, o es- sentido surgida de uma economia
critor Javier Vásconez verbal alheia a qualquer eloquên-
me surpreendeu ao con- cia. Cabral repudiava tanto a ora-
tar-me que o poeta, um tória como o barroquismo.
homem magro e silencioso, costu- “Duas palavras podem defi-
mava visitar sua livraria El Crono- nir o conjunto da poesia de João
pio que funcionava até o final dos Cabral de Melo Neto: coerência
anos 1970 no bairro La Mariscal. e densidade”, assinala João Al-
Terá sido em meados de 1994, mino no início do seu lumino-
quando soubemos que tinha sido so ensaio O domador de sonhos e
concedido o Prêmio Rainha Sofia outras imagens da pedra que de-
de Poesia Iberoamericana a João dica ao poeta2. Estes dois atribu-
Cabral de Melo Neto, o grande tos, coerência e densidade, são o
poeta que foi embaixador do Bra- resultado da busca de uma poéti-
sil no Equador entre 1979 e 1981. ca peculiar que Almino denomina sileiro, à caatinga ou ao sertão, à sua vegetação, sua e que em parte continuam ainda
Vásconez se lembrava que aque- “construtivista”. Esta característi- aridez ou seus rios. A voz poética de João Cabral hoje: pobreza, humilhação, mar-
le senhor austero chegava à livra- ca da poética de Cabral, sem dú- parece surgir dessas terras. Um poema, Fazer o seco, ginalização, submissão à dureza de
ria e, ainda que lhe fosse oferecida vida, está vinculada à sua atenta fazer o úmido, de A educação pela pedra, poderia trabalhos mal remunerados. A for-
uma confortável poltrona que fi- percepção de determinadas ten- nos servir para ilustrar este matiz da sua poética: miga — o inseto — torna-se sím-
cava num canto, preferia se sentar dências vanguardistas das artes “A gente de uma capital entre mangues, gente de bolo do trabalhador submetido
num banco de madeira. Folhea- plásticas e da arquitetura do sécu- pavio e de alma encharcada, se acolhe sob uma a um tipo de servidão; é ao mes-
va alguns livros, em silêncio. Pou- lo 20. Cabral costumava afirmar música tão resseca que vai ao timbre de punhal, na- mo tempo a imagem da redução
cos, muito poucos sabiam, então, que Le Corbusier havia exerci- valha./ (…)// A gente de uma Caatinga entre se- ao mínimo e paradigma do esfor-
que em Quito vivia um dos maio- do maior influência nele do que cas, entre datas de seca e seca entre datas, se acolhe ço. Custa viver e mais ainda tra-
res poetas da língua portuguesa e qualquer poeta, crítico ou filóso- sob uma música tão líquida que bem poderia exe- balhar nas alturas, onde falta o ar,
da América Latina. Um poeta fo; com tal asseveração certamen- cutar-se com água”.4 onde a atmosfera é rarefeita. Co-
que, além do mais, como tinha te queria destacar a importância Podemos imaginar o poeta quando chega a mo pesa o colosso, a montanha,
assinalado Ángel Crespo e Pilar que a “arquitetura” do poema ti- Quito, 2.850 metros sobre o nível do mar. Antes, sobre o índio que habita nas altu-
Gómez Bedate um par de déca- nha para ele. Tal poética outorga durante o longo período que viveu na Europa cum- ras? O poeta, que sente a angús-
das antes, era “o escritor brasileiro privilégio à construção do poe- prindo missões diplomáticas na Espanha, Londres tia da falta de oxigênio, o imagina
contemporâneo mais diretamen- ma antes que à expressão da sub- ou Genebra, terá contemplado cordilheiras nevadas correndo sempre em busca do ar
te relacionado com a vida e a lite- jetividade do poeta. João Cabral, e, possivelmente, terá atravessado algumas delas. Mas para levar no bolso.
ratura espanhola”1, que conhecia em uma entrevista à revista Cader- é diferente viver nas alturas, onde a neve começa so- A asfixia por falta de ar nas
profundamente a tradição poéti- nos de Literatura Brasileira (1996), bre os 4.000 metros. Quando Cabral chega a Quito, alturas se assemelha ao afogamen-
ca que ia de Mío Cid y Gonzalo manifestou que nunca sentiu uma quando passa por Riobamba em direção ao Chimbo- to no mar, a boca angustiada de
de Berceo até Jorge Guillén e seus “necessidade interior” de expres- razo já tem 60 anos. Quanto lhe terá custado respirar! quem sofre esta falta de ar é a mes-
contemporâneos. O que, soma- sar-se, razão pela qual a escritura Os poemas de Viver nos Andes são apresenta- ma. “Era do Recife, este afogado”,
do à sua grande poesia, justificava dos poemas lhe exigia muito tra- dos como um recorrido por um trecho da cordilhei- diz o poema. O verso fala de quem?
plenamente que se lhe concedes- balho3. A sua poesia não tem na- ra. Desde uma janela em Quito o poeta contempla Por acaso, do poeta ao que lhe fal-
se o referido Prêmio Rainha Sofia. da de confessional, de exposição o Cotopaxi, um “perfeito cone de neve” que por si ta o ar nas alturas do Chimborazo
Essa imagem de sobriedade e de emoções pessoais. Isto não quer só, no quadrilátero de vidro, poderia ser tomado ou de outro afogado que lhe vem
extrema concentração do homem dizer, no entanto, que nos poemas como modelo de geometria e construtivismo. O à lembrança? O laço entre os “afo-
que se sentava no banco da livraria de Cabral não exista uma poten- poeta ascende até o Chimborazo, pelo menos até gados submarinos” e os “sobrean-
nos mostra o espírito do poeta de te imaginação combinada com os páramos do colosso. Os poemas são sequências dinos” estabelece a conexão entre
Viver nos Andes, os dez poemas es- uma inteligência inquisitiva so- de uma trajetória pelo Corredor dos Vulcões, como os Andes e o Nordeste brasileiro,
critos durante sua estada no Equa- bre a condição humana. Existe ne- os manuais de geografia e os guias de turismo cos- entre a massa imponente da mon-
dor que aparecem publicados no les um singular olhar da terra, da tumavam denominar as duas ramificações paralelas tanha e a borda do oceano, entre a
seu livro Agrestes (1985). No paisagem, do deserto, ou dos rios da Cordilheira dos Andes que atravessam o Equa- neve e os depósitos de açúcar.
conjunto de poemas que Cabral ou as montanhas, e com eles, dos dor. Essa paisagem andina se apresenta em imagens
dedicou à nossa paisagem andi- seus habitantes que, mais além muito concretas e concisas; basta indicar as duas Homem pouco vulcânico
na transparecem alguns compo- da aparente secura da expressão grandes montanhas, o Chimborazo e o Cotopaxi, É costume considerar que
nentes centrais da sua poética. O poética, provocam um constan- para convocar o silêncio dos vulcões, que — por existe uma faceta política na poe-
primeiro, sem dúvida, é a preocu- te desafio ao leitor, obrigando-o a agora — renunciaram à oratória, que “aprenderam sia de João Cabral relacionada
pação construtiva do texto poético, deter-se em cada verso, na inespe- a ser sem gritar-se”. Mas a imponente geografia da justamente com as imagens geo-
o equilíbrio formal, a concretiza- rada repetição de vocábulos ou a cordilheira contrasta com o habitante do páramo gráficas, com as paisagens, com a
ção das imagens, a ausência de ele- invenção de termos, ou nas notas de altura, o “índio formiga”, e com o animal que — pedra — não é em vão que, quem
mentos ornamentais. A sobriedade de humor ou ironia. depois da conquista espanhola — se tornou emble- sabe, seu livro mais importante se
de sua poesia tem relação com uma mático dos pajonales, a ovelha. chame A educação pela pedra.
rara sabedoria, com uma capaci- Cabral em Quito A concisão da imagem “índio formiga” tem No caso de Viver nos Andes esta
dade de unir em umas quantas li- Em qualquer paisagem que que ver com as condições sociais que se impuse- política é evidente, não somen-
nhas a interiorização da paisagem, se construa nos poemas de João ram aos índios andinos como consequência da con- te pela menção ao “índio formi-
a meditação sobre a circunstância Cabral haverá uma reminiscên- quista ibérica, condições que continuaram com a ga”, mas pela caracterização dos
humana vinculada à geografia e à cia ou uma referência, implícita república e que seguiam existindo, apesar da moder- vulcões: “De cada lado do ‘Cor-
história, e uma insólita criação de ou explícita, às do Nordeste bra- nização do país, quando Cabral esteve no Equador, redor’/ estão deitados; morta é a
JANEIRO DE 2020 | 17

O arquiteto
oração, é o vociferar, o deslavar-se; hoje não são ora-
dores, não.// Hoje são mansas fotografias,/ apren-
deram a ser sem berrar-se;/ o tempo ensinou-lhes o
silêncio”. Este poema, além do mais, começa com

no Equador
dois versos: “Dá-se que um homem pouco vulcâni-
co/ habita o ‘Corredor dos Vulcões’”. Este “homem
pouco vulcânico” é, logicamente, o poeta João Ca-
bral, mas poderia ser também o silencioso índio que
habita nos páramos de altura. Como seja, não é um
“orador”, não é um demagogo, não grita. O Chim-
borazo, como sabemos, é um vulcão apagado. O Co-
topaxi, ao contrário, nos ameaça permanentemente Coletânea bilíngue marca o centenário
com uma possível erupção que seria catastrófica, co- de João Cabral de Melo Neto
mo já o foram algumas no passado, registradas desde
o século 16 ao 19. De fato, mais recentemente, em
2015, o vulcão voltou a entrar em atividade. Além do JOÃO ALMINO | QUITO — EQUADOR
Cotopaxi, o Tungurahua e o Reventador erupciona-
ram nos últimos anos. Mais ao sul, se contemplam
as fumarolas do Sangay. Isto é, ainda existem vulcões

C
que vociferam, que não são somente mansas fotogra- omemora-se em 9 de poemas que integrariam seu conheci-
fias. Mas o maior de todos, o imponente, o Chimbo- janeiro de 2020 o cen- do e festejado livro A escola das fa-
razo, parece surdo e mudo. tenário de nascimen- cas, que foi finalizado no Equador e
Justamente, o Chimborazo é o que provem de to de João Cabral de publicado no Brasil em 1980.
outra linha desta faceta “política” de Viver nos Andes, Melo Neto, um dos maiores poe-
pois os poemas de João Cabral dialogam com Meu de- tas brasileiros de todos os tempos, Apuro estético
lírio sobre o Chimborazo, de Simon Bolívar (1822), que membro da Academia Brasilei- A poesia de João Cabral, con-
pode ser considerado um poema em prosa. Em dois ra de Letras e reconhecido in- tundentemente substantiva, tem forte
poemas, o Libertador é citado. Sobre o primeiro deles, ternacionalmente pelos Prêmios apelo visual. Nela, porém, a paisagem
Um sono sem frestas, é possível interpretar que João Ca- Neustadt e Reina Sofia de Poe- não é apenas paisagem. Dos vulcões
bral alude ao poema de Bolívar pela associação que sur- sia Iberoamericana. É momento equatorianos ele extraiu, por exem-
ge entre o sono provocado pela anestesia, a sonolência propício para relembrar sua pas- plo, o tema do silêncio, em acepções
que ocasiona a falta de ar nas alturas e o delírio. Mas sagem pelo Equador, quando aqui que se podem interpretar como filo-
junto a esta associação tem outra que estabelece certa foi embaixador de 1979 a 1981, e sóficas, existenciais ou políticas. No
oposição a ela, pois o poema começa com a imagem seus poemas equatorianos. poema No páramo, a “geografia do
da terra morta, dos sonhos dos mortos na clausura das Associa-se em geral a obra Chimborazo”, em coma, “está sur-
suas celas. O poema de João Cabral conclui que esse so- de João Cabral ao Nordeste do da e muda”. No Corredor dos vulcões,
nho compacto perdeu as chaves do discurso de Bolívar. Brasil, especialmente a seu Per- “morta é a oração, é o vociferar”, e os
Com isso, a referência a Bolívar se desloca de Meu de- nambuco natal, e também à Espa- vulcões “aprenderam a ser sem berrar-
lírio sobre o Chimborazo a outros discursos ou ensaios nha, sobretudo a Sevilha, cidade -se;/ o tempo ensinou-lhes o silêncio”.
seus, talvez o Discurso de Angostura (1819) ou a Carta que está no título de um de seus li- No poema Uma enorme rês deitada, es-
da Jamaica (1815), nos quais o Libertador expõe sua vros mais conhecidos, Sevilha an- creve: “nada vi em ti, Chimborazo,/
ideia de uma unidade ou federação hispano-america- dando (1989), dividido em duas que ensine o falar dó de peito,/ pré-
na que seria o fundamento de uma sólida democracia. partes — Sevilha andando e An- -microfones, deputado”. Era “só ca-
Cabe anotar, no entanto, que enquanto para João Ca- dando Sevilha. É pouco lembrada, paz de ensinar silêncio/ ou sono...//
bral o Chimborazo impõe silêncio, no Delírio de Bolí- porém, a produção poética de Ca- Tão sem discurso como a pedra/ é tua
var — que vem também desde as terras baixas do (rio) bral relacionada ao Equador, em- monstruosa ovelha,/ que para remoer
Orinoco e ascende ao nevado seguindo os rastros de La bora ela tenha sido publicada em o silêncio/ no mais alto dos Andes dei-
Condamine e Humboldt — é a voz do Infinito e do seu livro Agrestes, de 1985. São ta”. Ou em O Chimborazo como tribu-
Tempo que se dirige ao herói para assinalar-lhe seu des- dez poemas reunidos em uma se- na: “É estranho como esta montanha/
tino: “diga a verdade aos homens”. No último poema de ção intitulada Viver nos Andes. não deixe que nem mesmo o vento/
Viver nos Andes, o Chimborazo se transforma em palan- Estes dez poemas são, pela possa cantar nos órgãos dela/ ou fazer
que — impõe silêncio, nem sequer o vento pode cantar primeira vez, publicados em livro silvar seu silêncio”.
em seus órgãos, mas quem sabe esse profundo silêncio exclusivo, em edição bilíngue (por- O livro está ilustrado com repro-
preserve a montanha como altíssima tribuna reservada tuguês-espanhol) que conta com duções de obras da extraordinária ar-
pelo tempo “para um Bolívar que condene/ a quem fe- ensaios críticos de dois importan- tista equatoriana Araceli Gilbert, cujo
cha a América ao fermento”. tes poetas contemporâneos: o bra- rigor construtivista é da família da poe-
Mas a atmosfera rarefeita, a geografia surda e mu- sileiro Antonio Carlos Secchin, um sia de João Cabral. O escritor Alfredo
da dos Andes equatoriais se torna caixa de ressonân- dos principais estudiosos da obra Pareja Diezcanseco dizia que seu geo-
cia da sóbria poesia de João Cabral de Melo Neto. de João Cabral, e o equatoriano metrismo abstrato, “com um estilo de
Ivan Carvajal, que é também o res- forma sintética e clara”, “no es sentimen-
ponsável pelas exímias traduções. tal”. Poderia ter dito o mesmo sobre a
Ao chegar a Quito, interes- poesia de Cabral, que ele conhecia, ten-
IVÁN CARVAJAL
sei-me em descobrir a qual janela do sido chanceler equatoriano durante
É um dos mais destacados e reconhecidos poetas e ensaísta o seu poema O corredor de vulcões o período da missão de Cabral em Qui-
equatorianos. É autor, entre outros, dos poemas Del avatar,
Parajes (Prêmio Nacional de Literatura Aurelio Espinosa Pólit), Los
se referia ao mencionar “a geome- to e havendo incluído livros do poeta
amantes de Sumpa, Inventando a Lennon, La ofrenda del Cerezo, tria do Cotopaxi,/ que até minha brasileiro na coleção que doou à biblio-
La casa del furor. Sua obra poética publicada foi compilada em janela de Quito,/ com seu cone teca da Pontifícia Universidade Católi-
Poesia reunida 1970-2014 (2015). Como ensaísta, publicou os
livros A la zaga del animal imposible, Ensayos sobre poesia
perfeito e de neve,/ vem lembrar- ca do Equador (PUCE).
ecuatoriana en el siglo XX, Trasiegos y Universidad, Sentido y -me que a boa eloquência/ é a de De fato, a poesia de João Ca-
crítica, além de numerosos artigos em livros coletivos e revistas. falar forte mas sem febre”. Tive a bral, de grande apuro estético, não é
sorte de encontrar na Embaixa- sentimental e é pouco lírica. Nela a
da em Quito o Senhor Alfonso própria subjetividade é objetivada. Ele
NOTAS Montúfar, que já era funcioná- é engenheiro e arquiteto de uma lin-
1. Crespo, Ángel y Pilar Gómez Bedate, Realidad y forma en la
rio nos tempos de João Cabral, guagem seca, densa, concisa e precisa,
poesía de João Cabral de Melo Neto, publicado na Revista de quando a Chancelaria estava muitas vezes trepidante, como trem
Cultura Brasileña, Madrid, No. 8, março de 1964; p. 5. noutro endereço. Contou-me que reflete as imprecisões da estrada,
2. Almino, João, El domador de sueños y otras imágenes de la ele que, logo no primeiro dia de para fazer aguçar a sensibilidade de
piedra. La construcción de la poética de João Cabral de Melo Neto trabalho, o poeta pediu para que seus leitores. Num poema de Tercei-
desde Pedra do sono hasta Educação pela pedra, en Tendencias
de la literatura brasileña. Escritos en contrapunto (pp. 184-221),
fosse mudada a localização de sua ra feira (1961), há versos reveladores
Buenos Aires, Leviatán, 2010. mesa para que ficasse em frente à de sua poética: “Falo somente com o
3. Cadernos de Literatura Brasileira. No. 1 (Número dedicado a janela que dava para o Cotopa- que falo:/ com as mesmas vinte pala-
João Cabral de Melo Neto), Brasilia, 1996. Neste número, além da xi. Também fez a gentileza de me vras...// Falo somente do que falo:/ do
entrevista a Cabral, publicam-se uma resenha biográfica do poeta passar cópias datilografadas de seco e de suas paisagens...”. São ele-
e se reproduzem alguns textos seus, fotografias, artigos sobre ele
e o ensaio A lição de João Cabral (pp. 62-105). poemas de Cabral, um deles com mentos também do livro Viver nos
correções a mão feitas pelo poe- Andes, no qual a dimensão concre-
4. João Cabral de Melo Neto, “Fazer o seco, fazer o úmido / Hacer
lo seco, hacer lo húmedo”, La educación por la piedra (Prólogo, ta e cujo fac-símile é reproduzido ta, mineral, de sua poesia encontra ex-
traducción y notas de Pablo del Barco), Madrid, Visor, 1982, pp. 56-57. no livro. São primeiras versões de pressão na topografia equatoriana.
18 | JANEIRO DE 2020

sob a pele das palavras


WILBERTH SALGUEIRO

COLÓQUIO,
DE ANTONIO CARLOS SECCHIN
LEIA TAMBÉM
Em certo lugar do país te, haja vista que em cada um de- narrador (alter ego do poeta, pro-
se reúne a Academia do Poeta Infeliz. les há uma acusação diferente; (d) fessor, crítico e acadêmico Anto-
por fim, a voz maior do poema é, nio Carlos Secchin) quando logo
Severos juízes da lira alheia, claro, aquela que fala em todo o no começo se refere, zombetei-
sabem falar vazio de boca cheia. poema, e que não é obviamente o ramente, a estes “juízes da lira
autor, mas uma máscara que este alheia”: “sabem falar vazio de bo-
Este não vale. A obra não fica. elabora para cada poema. ca cheia”. Mais à frente, dirá que
Faz soneto, e metrifica. Essa orquestra de vozes, uni- essa “turma toda rosna”, explici-
das na caretice e distintas nos as- tando o bestialógico de tais infeli-
E esse aqui, o que pretende? pectos que “criticam”, ganha seu zes assertivas.
Faz poesia, e o leitor entende! contraponto mais irônico na es- As falas finais daqueles aca-
trutura regular dos dísticos que HÁLITO DAS PEDRAS dêmicos (estrofes 9, 10 e 11) con-
Aquele jamais atingirá o paraíso. se repetem, assim como na regu- Antonio Carlos Secchin firmam o verniz purista-formal
Seu verso contém a blasfêmia e o riso. laridade monotonizante das ri- Penalux
que defendem para a poesia, en-
162 págs.
mas emparelhadas e consoantes tendendo-a como “fino esmeril”,
Mais de três linhas é grave heresia, (à exceção de “rosna” e “prosa”) “coisa pura” e recusando misturas
pois há de ser breve a tal poesia. e ainda no esquema rítmico tam- insólitas e que possam ser chocan-
bém regular (exceto o dístico ini- tes. Alguns desses aspectos foram
E o poema, casto e complexo, cial). Os doze dísticos, as dezenas apontados na dissertação de Ro-
não deve exibir cenas de nexo. de rimas soantes e o metro asse- drigo Silveira (UFRJ, 2010) sobre
melhado dão a Colóquio um tom a “poética desconfiada” de Secchin.
Em coro a turma toda rosna de ladainha, lenga-lenga, ramer- não tem vez. Entre tantos poetas, Valho-me do adjetivo “desconfia-
contra a mistura de poesia e prosa. rão. A ideia de “colóquio”, como lembremos Gregório de Matos, da” do mestre para reiterar o óbvio:
“reunião, ger. de especialistas, em Oswald de Andrade e Leila Míc- um reconhecido estudioso de João
Cachaça e chalaça, onde se viu? que se discutem e confrontam in- colis, craques do riso que abalam Cabral, poeta de poetas, feito Sec-
Poesia é matéria de fino esmeril. formações e opiniões pessoais so- o império do siso. No dístico se- chin, jamais endossaria tantas pa-
bre determinado tema” (Houaiss), guinte, 6, a heresia se dirige ago- tacoadas. Aliás, seguindo a lição de
Poesia é coisa pura. também entra no pacote das cha- ra a poemas longos, de “mais de Procura da poesia, em que Drum-
Com prosa ela emperra e não dura. laças, pois “colóquio” é nome que três linhas”, como se “brevidade” mond faz um receituário de coisas
rivaliza com “congresso”, “simpó- em poesia fosse sinônimo de ta- a não fazer em poesia/poemas (que
É como pimenta em doce de castanha. sio” e afins, quando se trata de, manho ou garantia de qualidade. ele mesmo fez em sua obra), em
Agride a vista e queima a entranha. por exemplo, reunir especialistas Para ficarmos sempre com ape- Colóquio algo semelhante ocorre,
para discutir o tema da poesia. nas três contraexemplos, regis- pois na sua obra Secchin faz sone-
E em meio a gritos de gênio e de bis No Colóquio de Secchin, o tremos os muitos e belos poemas tos antológicos (Linguagens), poe-
cai no sono e do trono o Poeta Infeliz. conjunto das vozes acadêmicas longos e a um tempo sintéticos mas hilários Poema para 2002),
expressa formulações antiquadas, de Walt Whitman, de Mário de eróticos (Mulher nascida de meu so-
ultrapassadas, ortodoxas, precon- Andrade, de Haroldo de Cam- pro), experimentais (Quase soneto
ceituosas, conservadoras, mora- pos. Não satisfeito, este acadêmi- aposentado), políticos (Disk-mor-
Os doze dísticos de Colóquio falam do listas, tacanhas. Não surpreende co, pudibundo, mal disfarça seu te), surpreendentes (Noite na taver-
assunto mais frequente ao longo da história que o Poeta que representa tal moralismo avesso ao erótico, ao na) etc., bem na contramão do que
da poesia: a própria poesia. Sim, há o amor, conjunto seja Infeliz. O dístico 3 corpo, à vida pulsando em pala- tais tristes acadêmicos acreditam.
a morte, a natureza, as revoluções, o cotidia- traz de supetão um ataque estúpi- vras, quando no dístico 7 defen- Evidentemente, o poema
no etc., mas nenhum deles supera em termos do e rasteiro ao soneto e à forma de o “poema casto”, isto é, avesso Colóquio cria um estereótipo do
estatísticos a metapoesia. Todos esses temas fixa, que “metrifica”, sendo uma a prazeres sexuais, a tal ponto poeta (ou do crítico...) antiquado,
e outros tantos têm, sem dúvida, múltiplas “obra [que] não fica”, ou seja, su- que nem tem a ousadia de pro- desinformado, conservador. Se,
ramificações e interseções, e a expressão de jeita ao ostracismo e esquecimen- nunciar “cenas de sexo”, trocan- em ambientes arejados de pesqui-
cada um deles atende, com mediações, aos to: salve, Camões, Bilac e Glauco, do a expressão pela similarmente sa e produção poética, esses clichês
também multifacetados movimentos da his- e toda uma tradição que vem re- sonora “cenas de nexo”. Quan- não colam, não nos enganemos
tória a que pertencem. Noutras palavras, ca- inventando o soneto, fixando-o, to perderia a história da poesia contudo: o senso comum — na
da época terá suas formas de metapoemas. sim, como a mais clássica e flexí- sem os versos picantes de Boca- política, na poética, na cultura, na
No caso do metapoema de Secchin, es- vel das formas líricas! ge, Hilda Hilst e Waldo Motta? arte, na vida — está aí em torno,
tamos diante de uma obra contemporânea, O dístico 4 se dedica a O fragmento 51. Atrás do com a maioria silenciosamente gri-
tendo vindo a lume em Todos os ventos, afrontar poemas que são com- espelho, de Minima moralia, traz tando “gênio” e “bis” para políti-
de 2002 — e isto espanta. Espanta porque preensivos, claros, inteligíveis, considerações de Theodor Adorno cos e artistas que, amparados em
o poema, com refinado humor, nos faz ver que se comunicam com seu lei- sobre a escrita em geral, e a escrita mídias globais e na gigantesca má-
que ainda contemporaneamente reina o senso tor, em vez do gesto que distan- de poemas não escapa a tais con- quina da indústria cultural, repre-
comum entre leitores de poesia que, em tese, cia, hermético, elitista, superior. siderações: “Quem quiser evitar os sentam a “leviandade vulgar” de
deveriam ter sobre ela uma refinada reflexão. Poetas amados como Pessoa, Ban- clichês não pode restringir-se a pa- que Adorno falou acima.
Se os “acadêmicos” (ou “críticos” ou “poetas”) deira e Leminski devem parte da lavras, se não quiser sucumbir à le- No belíssimo Na antessala,
perpetuam tais opiniões, que dirá um leitor sedução que provocam ao enge- viandade vulgar (...) É raro uma que abre seu recente livro Desdi-
que não é, digamos, do ramo? nho de fazerem poemas que sedu- palavra isolada ser banal (...). Os zer (2017), depois de homenagear
O chamado eu lírico aqui se pulveri- zem pela cumplicidade amiga que clichês mais repugnantes são com- três de suas referências (Pessoa,
za, dando-se a ver de modos distintos: (a) de pactuam: “o leitor [os] entende”, e binações de palavras (...) e isso va- Drummond, Cecília), o poeta ar-
imediato, há uma espécie de narrador, que gosta de entendê-los, sentindo-se le até para a construção de formas remata em octossílabos (verso pre-
apresenta e ironiza os “juízes da lira alheia” parte daquilo que o afeta. inteiras”. As falas dos acadêmicos ferido de Cabral): “O desavisado
nas estrofes 1, 2, 8 e 12; (b) nas demais es- A invectiva do dístico 5 é sobre poesia soam patéticas des- leitor/ não espere muito de mim./
trofes, em itálico, os próprios juízes ganham risível, ao articular o sucesso (o de as palavras e os sintagmas até o O máximo, que mal consigo,/ é
voz, emitindo seus valores e vaticínios; (c) “paraíso”) à poesia séria, deixan- conjunto dos valores estéticos, que chegar a Antonio Secchin”. Poe-
poderíamos admitir que em cada um dos do explícito que o humor, na Aca- são de uma indigência constrange- tas, chegar ao que se é: eis a más-
oito dísticos em itálico há um juiz diferen- demia do Poeta Infeliz (pudera...), dora. Fica evidente a posição do cara maior — a grande meta.
JANEIRO DE 2020 | 19

nossa américa, nosso tempo


JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

MUSEUS E A HISTÓRIA
DO FUTURO: FUNERAIS
E PROJETOS (1)
Uma visita não planejada As fileiras francesas iniciaram sua campanha compreendendo que a estratégia
Imagine que você se encontra em Moscou e dis- no dia 24 de junho de 1812, ou seja, durante o ve- russa supunha aguardar a chega-
põe de apenas três dias livres: claro, serão dedicados à rão! Em marcha acelerada, o exército napoleôni- da do inverno para então atacar
peregrinação usual aos museus da cidade. co invadiu o território russo e no dia 17 de agosto a grande armée, Napoleão inicia
Imagine ainda que esta é a sua segunda viagem atacou a importante cidade de Smolensk, que foi um retorno desesperado à França.
a Moscou; portanto, algumas visitas incontornáveis já tomada sem combates de monta, e isso em boa me-
foram devidamente realizadas: claro, um dia dedicado dida pela incomum estratégia adotada pelas tropas (Mao Zedong afirmaria um
aos ícones na Galeria Tretyakov, além de um panora- do Czar: recuos sistemáticos, a fim de evitar o con- século mais tarde: quem cerca, está
ma multissecular da pintura russa, nessas peregrinações fronto direto com as forças numericamente muito cercado; quem sitia, está sitiado...)
apressadas que somente evidenciam o muito que não superiores do exército inimigo. Nesses recuos, ade-
se pôde ver; outro dia imerso no Museu de Arte Mo- mais, adotou-se um procedimento radical: plan- Cada vez mais rigoroso, o
derna, isto é, entre tantas possibilidades, um dia imer- tações eram destruídas; pastos, arrasados; cidades, inverno foi um aliado decisivo
so na coleção das obras de Kazimir Malevich em todas incendiadas. Desse modo, Napoleão não poderia das tropas russas que, agora, não
as suas fases. E, por certo, você não deixou de se incor- reabastecer adequadamente seus soldados. Tudo se mais recuavam, porém caçavam
porar às enigmáticas filas, devidamente organizadas, passa como se o exército russo se metamorfoseasse os soldados invasores. No dia 14
para contemplar por um breve instante o Mausoléu num corpo guerrilheiro. de dezembro, sofrendo uma tem-
de Lenin. Breve, bastante: a fila nunca para, especial- No caminho de Moscou, os franceses sagra- peratura de 38 graus negativos,
mente diante do corpo do líder revolucionário, numa ram-se vitoriosos na sangrenta Batalha de Borodino, somente 10 mil homens consegui-
metáfora involuntária do tempo e seu fluxo incansável. em 7 de setembro, com 80 mil mortos ao final do ram refugiar-se em solo francês. O
Por que não assistir a uma missa ortodoxa que acaba dia. O exército russo foi derrotado, mas não aniqui- que teria sido o triunfo definitivo
de começar no momento em que você entra na Praça lado, como Napoleão desejava — e essa diferença se- de Napoleão converteu-se numa
Vermelha? A Catedral de São Basílio pode aguardar. rá decisiva e levará ao colapso das forças francesas. Na derrota da qual nunca se recupe-
Pois bem: em seu retorno à cidade, você decide semana seguinte, a 14 de setembro de 1812, Napo- rou totalmente.
se perder (um pouco — não muito mais do que isso) leão entrou triunfante — embora não triunfalmen- Contudo: Napoleão foi der-
e caminhar sem rumo. te — em Moscou. Seu plano parecia desenvolver-se rotado não por ter invadido a Rús-
a contento: uma campanha relâmpago, de modo a sia no inverno, porém por não ter
(Mas, devagar com o passo: o perímetro, previa- explicitar sua superioridade, obrigando o Czar Ale- aniquilado, a tempo, numa cam-
mente palmilhado, oscilava entre duas estações de metrô). xandre a assinar um acordo de rendição. Para tan- panha suficientemente célere, o
to, Napoleão liderou uma tropa de 690 mil homens exército russo. O Czar Alexandre
Um edifício imponente chama sua atenção: você fiéis à mística do grande e invencível general. Mís- pôde então rejeitar as propostas de
sobe as escadas e descobre um improvável museu, por tica, aliás, que empolgou a um filósofo sistemático paz, pois para ele a guerra não ha-
assim dizer, monográfico, pelo menos considerando sua como Hegel; para o autor de A fenomenologia do via ainda terminado; afinal, o re-
denominação: Museu da Guerra Patriótica de 1812. espírito assistir ao general equivalia a um espetácu- sultado definitivo dependeria da
lo universal e transcendente, seria como presenciar entrada em cena do mais impor-
(Como assim?) o próprio “Espírito do mundo a cavalo”. A grande tante aliado russo: o inverno.
armée secundava o “Espírito” com uma impressio-
Um átimo de hesitação: valerá a pena passar as nante cavalaria e nada menos do que 1.420 canhões. (No tabuleiro de xadrez da
poucas horas de que você não dispõe num espaço evi- guerra, os russos venceram por
dentemente destinado ao tipo de ufanismo nacionalista, (A ontologia nunca esteve tão bem armada.) Zugzwang. Tradução do alemão
cujas consequências são sempre funestas? Mas por que enxadrístico: se correr, o bicho
não arriscar? Se nada se aproveitar, você pode fazer como Além dos recuos, seguidos da política de ter- pega; se ficar, o bicho come.)
o desocupado lector cervantino e simplesmente fechar o ra devastada, autênticos grupos de guerrilha foram
livro! Ainda é cedo e hoje os museus fecham mais tarde. organizados: as “unidades volantes”, assim chama- Em outras palavras, nunca
Avante? das porque atacavam o exército regular napoleôni- havíamos pensando na Campa-
co e imediatamente desapareciam; aliás, expediente nha Russa com uma perspectiva
Museu como antropologia também usado na Espanha, durante a resistência à que não fosse a do Napoleão der-
E eis que o inesperado faz uma surpresa: as ho- ocupação francesa. rotado. Por que nunca fomos ca-
ras, muitas, que você passou no Museu da Guerra Pa- Retornemos ao 14 de setembro de 1812: Na- pazes, pelo menos, de imaginar
triótica de 1812 seguem em sua memória. O espaço é poleão se instala em Moscou e certamente acredita outro olhar? Por que tão poucos
o território de uma celebração do exército russo e, por ter alcançado sua maior vitória — e ele não triun- de nós já escutaram o nome do
extensão, da defesa do ideal de um império em expan- fou poucas vezes! Seguindo os protocolos da guerra, general Kutuzov?
são contínua. Sem dúvida, tal ufanismo interessa aos envia um emissário ao Czar Alexandre, pois, senhor
projetos de um Vladimir Putin. de Moscou, o que poderia restar ao império russo? (Como é possível que não
Ainda assim... Hora de iniciar as negociações de paz, que, natu- o tenhamos visto inclusive ao ler
O acervo do Museu, com destaque para sua ex- ralmente, seriam favoráveis aos interesses franceses. Guerra e paz?)
posição permanente, desmoraliza uma versão consagra- Nessa constelação histórica, nessa encruzilha-
da que, no entanto, finalmente percebemos ser absurda da de impérios, a exposição permanente do Museu Ainda
e que só repetimos porque nunca paramos um segun- torna-se pura experiência antropológica: entende- Atônita, você deixa a expo-
do sequer para refletir. mos o absurdo da versão na qual sempre acredita- sição permanente do Museu da
mos: Napoleão invadiu a Rússia no inverno... Guerra Patriótica de 1812, po-
(O mesmo segundo que você parou diante da excep- Os painéis da exposição celebram a astúcia, não rém não consegue sair do edifí-
cional fachada do Museu da Guerra Patriótica de 1812?) da Razão hegeliana, porém do Czar Alexandre, no cio: há uma exposição temporária
fundo, do general Mikhail Kutuzov: simplesmente o imperdível: a construção da ima-
Reiteramos que o grande erro de Napoleão Bona- Czar se recusou a receber o emissário de Napoleão e gem de Vladimir Lenin como au-
parte foi ter invadido a Rússia em pleno inverno. Uma e nem sequer cogitou a rendição. Seu exército não foi têntico ícone revolucionário.
outra vez — não é mesmo? Ora, como teria sido possí- aniquilado, logo, poderia ser recomposto e com ple- Na próxima coluna, trato
vel que Napoleão fosse ele mesmo se tivesse tomado tal no acesso aos víveres não mais acessíveis aos franceses. dessa exposição, na qual foram
decisão? Nem precisaria ser um estratego brilhante; bas- Após cinco longas semanas numa Moscou colocados em paralelo impac-
taria conhecer a história: em 1709, o Rei Carlos XII, da estéril, e sem condições de manter as tropas no de- tantes cenas dos funerais de Le-
Suécia, perdeu seu exército devido aos rigores da estação. vastado território inimigo, e, sobretudo, finalmente nin e de Stálin.
20 | JANEIRO DE 2020

Modos de romper a névoa


Em Cerração, Alexei Bueno remira as perdas e o envelhecimento
aliando motivos clássicos à poesia de circunstância

WLADIMIR SALDANHA | SALVADOR – BA

C
omo sempre ocorre nos livros de Alexei maiúscula inicial, marcando com das, a de Cabral lida como exce-
Bueno, o mundo de hoje é pulsante na esse gesto seu afastamento de van- ção a 1945, o que até certo ponto
métrica rigorosa e, por alguma referên- guardas tornadas convenção. Há é equívoco, e a de Lêdo sim-
cia mais ou menos evidente, a cidade do uma austeridade na expressão poé- plesmente não lida, pelo grande
Rio de Janeiro funciona como índice desse mundo. tica de Alexei, certo sentido de gra- equívoco de tomá-la como para-
Em Cerração, o novo título do autor, é ela que ve- vidade da poesia, mas isso nunca o digmática do que nunca foi: as
mos quando revisita alguns motivos clássicos, como impediu de combinar registros, usar tendências restauradoras que, na
o das forças naturais — a chamada “deusa natu- calão ou visitar qualquer tema da década seguinte, 1950, viram sur-
ra”, pela nomenclatura das “tópicas” proposta por sensibilidade, inclusive os mais car- gir no seu próprio meio (a Revis-
Ernst Curtius — “Sobre este velho Rio de Janeiro/ nais — sobre o ato sexual, vejam-se ta Brasileira de Poesia) a ruptura
O AUTOR
.../ Tormentas caíram, dando ao chão um cheiro” Voto e uma mórbida Orgia calcária. agressiva do Concretismo. O de-
(Meteorologia). Eis a grande cidade praiana conver- Como situar essa poesia na bate seria depois subtraído por ALEXEI BUENO
tida em lodaçal pelas inundações de 2018 (o autor libérrima — e, apesar, tão policia- uma falsa antinomia, a da nova
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1963. É poeta e
apõe datas de escrita), que repercute na comparação da — “contemporaneidade”? Por estética antidiscursiva, como úni-
tradutor, tendo também organizado antologias e obras
com a morte hospitalar do Poema agônico: “... mais certo modo de ver, as escolhas for- co caminho possível. completas de vários autores, entre literatura brasileira
digna é a tempestade/ Que rasga a tarde com o seu mais devem ser representativas da É quando alguns fatos lite- e portuguesa. Sua bibliografia conta ainda com
ronco uivo,/ E arranca troncos e inunda a cidade”. fragmentação, da dispersão que, rários ocorrem, à beira da década livros de crítica da arte, história literária e patrimônio
A coletânea não é tão desolada como A árvo- em Alexei, aparecem nos temas — 1990 e na sua primeira metade — histórico — área em que também atuou como gestor.
re seca (2006) ou As desaparições (2009), nem tão e o fazem descair, às vezes, para a um deles, Alexei Bueno. Sua obra
imagética como a bem anterior Em sonho (1999). apatia de uma Cançoneta desconexa hoje realizada, à qual se soma Cer-
Detendo-se no desfazimento das formas e na cor- — “Não quero mais coisa alguma/ ração, faz com que o impasse ini-
rupção do corpo, o novo livro é uma “vida passada Nem os livros, nem mais nada” – cial do revisionismo da Geração de
a limpo” — quando quase sempre o poeta encon- ou usar a velha saída demiúrgica de 1945 se resolva em outros termos,
tra sentidos desconexos e dispersão. Alguns títulos certa Comédia, pela qual “um de- que não o do desvio retificador ou
falam por si: Inversão, Fragmentos, Desastre, Uns ca- mônio, um demônio galhofeiro,/ o da intensificação de aspectos já
cos. Alexei está sem dúvida mais perplexo ante o in- Criou num dia só o mundo intei- divergentes, mas o do salto crítico
sondável da “ordem das coisas”, menos categórico ro”. Qual o problema com essa poe- para uma continuidade indefinida-
— “Para onde? Lá alguém o sabe?”. Ainda confor- sia, além do termo de comparação mente reiterável — porque sempre
me as tópicas de Curtius, a carência de sentido se- que o autor oferece a si mesmo, em atualizável. A amálgama do clássi-
ria o “mundo às avessas”, mas também há no livro face da exuberante produção ante- co e do cotidiano, levada a extremo
o motivo do “ancião no menino” (nos versos de In- rior? Perde para si e para uns pou- nesse novo livro, é algo impensável
fância, O encontro) e outros tantos. cos; ganha de livrarias inteiras. para o gosto parnasiano, mas tam-
O poeta que ruma para os 60 anos se sente O problema não está em bém o é para o mainstream con-
noturnal e já ouve ecos de “nunca mais” (em Mito- Alexei Bueno, mas na possibi- temporâneo em geral. Não à toa o
logia). Poderia ser contraditado pelo de 30 que, nos lidade que sua poesia ajudou a próprio Lêdo Ivo, em uma de suas Cerração
versos livres de A juventude dos deuses (1996), co- abrir para novas escritas, ao pre- últimas declarações, feitas no Ras- ALEXEI BUENO
meçava afirmando: “Tudo o que se passou/ é men- ço de todas as incompreensões. cunho [ao participar do Inquéri- Patuá
tira/ Porque o que é o ser/ Não pode nunca mais Recuando um pouco, é preciso to, edição 150], alinhando Bueno 152 págs.
deixar de sê-lo”. A poesia se faz dessas oscilações: e lembrar que entre nós o Parnaso provocativamente a grandes poetas
não se contradiz, pois sempre está abrindo uma no- atrofiou o Simbolismo, demitin- canônicos, que era preciso lhe pres-
va angulação, modulada pela própria vida, pela cul- do-o do papel inventivo que teve tar mais atenção.
tura e pela atitude assumida diante do tempo. Agora no resto do mundo. A linha osci- Faz sentido: hoje a poesia
TRECHO
a meditação sobre o envelhecimento encontra em lante entre as estéticas parnasiana mais celebrada se vale antes do
Cerração elementos da poesia mais circunstancial: e simbolista, de onde o autor de mero anúncio de bandeiras do que Cerração
o dia da limpeza de um parque, o anônimo que chu- Cerração retirou sua linguagem, de verdades biográficas levadas a
ta um rato na rua, ou a morte do barbeiro amigo: foi excessivamente distendida em realizações estéticas. Tantas vezes Seu eu pudesse guardar a tua mão,
“Com isso, aonde os meus fios voarão?”. uma evolução literária isolada da costuradas às pressas, vão erguidas
Em saltos que lhe soam muito naturais, o América Latina — esta mais co- ao calor da hora e conforme a dire- Tua pequena mão dentro da minha,
passado se atualiza nos temas de Orfeu e Eurídi- nectada com a Europa na maioria ção do vento, quando Alexei Bue-
ce ou no da legenda de São Lourenço, martirizado hispânica — e encerrada apenas no está entre ambulantes, vadios, Por certo esta acharia que detinha
com fogo — e advertindo a seus algozes sobre o la- com o Modernismo de1922. prostitutas, mendigos — a um de-
do menos tostado. O arco amplíssimo de tempo- Em 1945, vinte anos após les chama “meu mendigo”, e la- A própria Criação.
ralidades diz muito da própria escrita do autor, e a ruptura modernista, uma nova menta quando percebe sua falta
clarifica suas opções formais. geração pretendia fazer o balanço (A boa hora). São os “reis do Rio”,
Alternando com certa regularidade livros de de ganhos e perdas. Foram jovens que agora “no WhatsApp/ man-
verso livre e medido, na primeira forma adota o de eruditos (Domingos Carvalho da dam fotos com o tacape”. Este é Fosse um navio, enxergaria a amarra
matriz salmodiada, verso livre de largo fôlego, co- Silva, Darcy Damasceno e outros) o poeta que seus contemporâneos
mo se nota em suas odes, a exemplo do já citado os que mais fácil caíram na tenta- tantas vezes julgaram passadista. Mais poderosa a encadeá-lo ao cais,
A juventude dos deuses (1996). Quando faz ver- ção neoparnasiana (mas apenas na O grande problema do que
so medido, sua metrificação é firme sem ser pétrea, obra inicial, que os estigmatizou). é velho ou novo em poesia jamais Se uma criança, o canto da cigarra
porque não abusa de recursos caros aos parnasia- Já então, porém, alguns talentos irá se resolver em termos evoluti-
nos, como a criação artificial de ditongos. Mestre individuais desenvolviam voz pró- vos de supressão de formas, como Pulsando mais e mais.
do ritornelo, repetindo versos marcantes ou rimas pria a partir do cânone comum de se tratássemos de tectonismos ou
para obter efeitos diversos, é extremamente musical condensação e racionalidade, ou, extinção de espécies animais. Coe-
ao retomar a tradição da estrofe composta, quando diversamente, voltando-se a ele- rente com o projeto original de As
combina uma medida maior a uma menor, do que mentos surrealistas que deitavam escadas da torre (1984), este no- Se um santo, o céu distante que o extasia,
há muitos exemplos neste Cerração (veja-se Can- raiz no Simbolismo: o primeiro vo Cerração, com seu belo traba-
ção mínima, no destaque). caso é o de João Cabral, o segun- lho editorial de sucessivas folhas Se um avarento, todo o ouro da terra,
do o de Lêdo Ivo; e nem um nem de guarda com gansos selvagens
Opções formais outro sem pontos de intersecção rompendo a névoa, parece ofere- Soldado, o aviso sobre o fim da guerra...
Livre ou medido, o poeta volta, desde as pri- entre si e com os demais. cer a metáfora visual da trajetória
meiras publicações, ao padrão pré-modernista da São grandes obras realiza- literária de seu autor. Mas ela está vazia.
JANEIRO DE 2020 | 21

Corpos solitários
Olívia decreta a morte do
nosso pai como o fim de sua existên-
cia. Mas é o contrário, ao morrer
que esse pai começa a existir.

Sombra do autoritarismo
O corpo interminável, de Claudia Lage, Pode-se dizer que o Brasil
ainda não é resolvido com a sua
evoca a angústia e o mistério que permearam história autoritária. A anistia da-
a ditadura militar — e ainda ecoam da nos anos de 1980 teve como
contrapartida o “perdão” dos al- O corpo interminável
gozes. Naquele momento, eles CLAUDIA LAGE
FAUSTINO RODRIGUES | BELO HORIZONTE – MG saem de cena, sem quaisquer pu- Record
nições mais severas, em nome de 195 págs.
uma transição democrática “len-
ta, gradual e segura”. Somente nos

O
corpo interminável, to em que o livro se mostra ainda últimos anos, com a Comissão da
de Claudia Lage, é in- mais delicado e sensível, pois man- Verdade, fundada em 2011, co-
tenso. Ao abordar a tém a atenção à continuidade do meçou-se a mexer de modo mais
ditadura militar brasi- corpo no interior da narrativa. sistemático nos documentos da
leira (1964-1985), fala para os dias Tais palavras são evocadas ditadura, escancarando muitas
de hoje. A autora consegue evocar tanto para falar das sevícias sofri- das atrocidades cometidas ao lon-
os ecos do regime autoritário pa- das por uma guerrilheira aprisiona- go do regime — crimes já conhe-
ra além de uma perspectiva pura- da nos porões da ditadura quanto cidos pelas bocas de alguns de seus
mente política e social. Transcende para mencionar a gravidez de outra sobreviventes, porém não tão do-
a descrição de ações de guerrilhei- guerrilheira, ou mesmo a de Meli- cumentados. A ferida dos que vi-
ros, de suas trajetórias, suas perso- na, uma das personagens principais veram de perto o autoritarismo,
nalidades — e a possível criação de que, imediatamente, não tem qual- sofrendo imediatamente com ele,
heróis e mitos — preocupando-se quer relação direta com o regime ainda não estava cicatrizada.
em evidenciar como que mesmo militar. As angústias derivadas por Podia-se tranquilamente
aqueles que não viveram o auto- este corpo são sempre presentes. cruzar na rua com um torturador
ritarismo colhem os frutos de sua À medida que as páginas aposentado. E, com ele, a sombra
vigência. Na trama, o mistério so- avançam, o leitor se habitua com do “nada deve ser dito” — ou “di-
bre a formação dos sujeitos-perso- as divisões entre os capítulos, nar- ga o que quero ouvir”. Ou mes-
nagens se sobrepõe. rados pelas distintas personagens. mo assistir a uma homenagem ao
Claudia Lage apresenta uma E, embora sejam diferentes, com verdugo do DOI-Codi em pleno
narrativa repleta de pausas. Ema- formas de narrar características, Congresso Nacional, pouco de- A AUTORA
ranha histórias e evoca esse mis- próprias, não há qualquer quebra pois de sua morte tranquila, em
tério por trás de vidas direta e da narrativa. Pelo contrário, o li- uma cama de hospital qualquer, CLAUDIA LAGE
indiretamente ligadas ao perío- vro permanece bastante homogê- com o soldo de uma vida garan- Escritora e roteirista, publicou
do autoritário. O corpo mutila- neo — e, sem dúvidas, a maneira tido. O espectro autoritário ainda o livro de contos A pequena
do por sessões de tortura, exposto como conduz a história por meio assombrava. Não por acaso, recen- morte e outras naturezas, bem
na descrição de uma fotografia en- do corpo interminável é o que temente, apelaram a ele. Ao indi- como o romance Mundos de
contrada pelo casal Melina e Da- contribui para isso. víduo mediano que sofreu com a Eufrásia, finalista do Prêmio São
niel, mesmo morto, não termina Nesse caso, uma aparente ditadura resta engolir em seco. Paulo de Literatura, em 2010.
ali. Ele se prolonga no tempo, tor- solidão dos personagens se des- Não há heroísmo fácil no li- Escreveu, ainda, Labirinto da
nando-se interminável. taca. Não que não haja solida- vro de Claudia Lage. Isso porque palavra, com ensaios-crônicas
sobre literatura e criação literária,
Curioso é que mesmo com riedade, principalmente ao se não é um livro sobre heróis. Con-
tendo recebido o Prêmio de
pausas intercalando períodos cur- confrontar as histórias de Meli- sequentemente, não há redenção
Literatura de Brasília e finalista do
tos e longos, sem sentenças e con- na e Daniel, e as diferentes for- por parte dos sobreviventes da di- Prêmio Portugal Telecom. Seus
clusões por parte dos personagens mas como seus respectivos pais tadura — a gravidez de Melina roteiros podem ser vistos na TV
— belo artifício para reforçar a re- lidaram com a ditadura. Porém, o não é isso. O sofrimento se pro- Globo, Conspiração Filmes, entre
levância do mistério em si — o li- sofrimento imposto pelo período paga no tempo, simbolizado nas outras produtoras. Atualmente,
vro se mostra dinâmico. Claudia autoritário, ao marcar o corpo, é marcas no corpo, visíveis ou não, ministra cursos de roteiro e criação
expõe a deformidade do corpo sentido apenas por aquele que de- intermináveis, sim. literária no Rio de Janeiro (RJ).
torturado física e psicologicamen- tém o corpo. Por isso as dores da
te, prolongando-o no tempo, no clausura e tortura, embora sempre Angústia
decorrer dos anos. Logo, após po- muito bem descritas, não podem A angústia, no caso, faz-se
sicionar-se diante da morte, seria ser totalmente compartilhadas — bastante presente. Aliás, ela é essen-
comum admitir a parada. O fim. e tal impossibilidade angustia. O cial para a história na medida em
Porém, diferentemente, o corpo tom introspectivo da narrativa, que os personagens têm de lidar
mostra-se interminável. nesse caso, conduz bem o leitor. com os corpos, seja no esforço de
Mas a solidão não se confi- reconstruir o passado e tentar iden-
E se eu enlouquecer, e daí, den- gura apenas no claustro dos porões. tificar o destino da mãe guerrilheira,
tro da loucura estou salva, estou sã, A vida de Daniel com sua escrita e como no caso de Daniel, seja para li-
dentro da loucura posso sonhar, sonho livros, de Melina, com a fotogra- dar com o futuro, com a gravidez de
com o útero que me tiraram, eu o ve- fia, revelam isso. Ademais, Anto- Melina e as incertezas sobre como
jo, eu o seguro, eu o coloco de volta nio, pai de Daniel, exilado em será a vida a partir de então.
em meu corpo. O vão que me deixa- Portugal, é descrito por Olívia, sua O curioso é que essa an-
ram é restituído, o espaço, eu o ocupo, filha, como uma pessoa completa- gústia confere solidez à narrativa,
e dentro dele posso ter um filho, um mente só, que se tornou metódica à vida dos personagens. Não há
filho que crio com as minhas próprias e ríspida ao longo do tempo. Pra- certeza quanto a nada, ao passado mento se prolonga pelo tempo,
mãos, ou nem precisa ser uma criação ticamente incomunicável e em al- e futuro — salvo a certeza quan- pontuando as dúvidas dos indiví-
de carne, uma criação, o que me é de- guns aspectos intratável. to à incerteza. A conformidade a duos e interferindo em suas vidas.
vido, a loucura não, o sonho. O mesmo se passa com o avô este fato, diante de tanta angús- O corpo interminável é
de Daniel, que o criou após o su- tia, não é clara para os persona- um retrato do Brasil de hoje. Um
Como forma de reforçar a miço de sua mãe, guerrilheira. Não gens. Porém, consoante o avanço Brasil angustiado com sombras
narrativa nessa direção, Claudia, havia diálogo com o neto. Óbvio, da leitura do texto, tal conformi- do passado a se movimentarem
para conferir o caráter de perpetui- tudo isso pelo prisma do olhar do dade mostra-se vigorosa para o lei- em uma democracia que balança
dade do corpo, faz remissão a pa- narrador-protagonista, em primeira tor propriamente dito. em sua legitimidade. No espelho,
lavras como “vômito”, “vísceras”, pessoa. Tal solidão, de todos os per- Desse modo, o leitor sa- o temor de um autoritarismo, não
“cavidade”, “reentrâncias”, “fisga- sonagens, reforça a ideia do misté- be que não haverá solução quan- mais efetivado por meio do siste-
da”, entre outras. E o faz sem que rio na trama. Um mistério que se to aos dilemas suscitados. E isso ma, do aparelho do Estado, mas,
persevere um tom de profundida- sobrepõe a tudo. Não se podia fa- não importa. Em seu lugar, tem-se agora, sobretudo, pela angústia do
de apelativa, como forma de con- lar, mesmo com o passar do tempo. um movimento perpétuo — nova- indivíduo comum quanto ao seu
duzir e prender o leitor à trama. Engole-se a angústia, vivendo-se mente, reforçado pela ideia de não futuro. Claudia Lage faz um ma-
Pelo contrário, é neste momen- com ela de modo sufocante. perenidade do corpo. Esse movi- nifesto que tem de ser lido.
22 | JANEIRO DE 2020

Seja bem-vinda, Olga A AUTORA

OLGA TOKARCZUK

Nasceu em Sulechów, Polônia,


em 1962. Formada em Psicologia

Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, pela Universidade de Varsóvia,


é escritora, editora e ativista do
mostra a potência literária da ganhadora do Nobel feminismo e de causas ambientais.
Autora de mais de uma dezena
de livros, entre poesia, novelas e
contos, mereceu vários prêmios
LUIZ PAULO FACCIOLI | PORTO ALEGRE – RS
importantes, entre eles o Man
Booker International Prize em
2018 e culminando com o Nobel
de Literatura no mesmo ano.

A
presentar a obra de uma teve tempo de pensar, a Sociolo- gar ao Nobel de Literatura, aos
escritora até então des- gia ainda não conseguiu analisar, 57 anos, quinto polonês a rece-
conhecida, mas que a História sequer começou a in- ber tal honraria, é exemplar tam-
acaba de ganhar o No- terpretar. A arte caminha sempre bém do quanto a obra reflete a
bel de Literatura, é algo que não alguns passos à frente do andar autora e sua circunstância, e de
acontece todo dia. Tivesse o maior da humanidade, e é ela a primei- quanto a premiação se deveu a
prêmio literário do planeta caído ra a sentir e refletir seus anseios, esse aspecto. Ainda estudante
nas mãos — e na conta bancária conflitos e tendências. Voltemos de Psicologia, Tokarczuk traba-
— de um gigante como Philip ao caso do cantor e compositor lhou como voluntária num asilo
Roth ou Amós Oz, ambos solene- Bob Dylan, que mereceu o Nobel para adolescentes com proble-
mente ignorados até perderem sua de Literatura em 2016 “por ter mas comportamentais. Depois
chance em definitivo ao partirem criado novas expressões poéticas de formada, atuou por alguns
deste mundo, ou Ian McEwan dentro da grande tradição mu- anos como terapeuta até aban- que fica entre o escritor e sua obra, mas justamen-
ou Paul Auster, esses ainda vivos sical americana”. A singeleza da donar a profissão em favor da te no terreno que fica entre o texto e seu leitor”.
e portanto no páreo, mas cuja justificativa encerra um concei- literatura. Autoproclamada dis- Substitua-se “conto” por qualquer outro gênero,
notoriedade não tem comovido to sofisticado e inovador: a can- cípula de Carl Jung, admite que ou mesmo por “obra”, e a premissa continuará va-
a Academia Sueca, uma questão ção popular elevada à condição o suíço influencia sua obra lite- lendo; contudo, em se tratando de um Nobel, ela
prosaica não assaltaria o resenhis- de literatura; o texto que se can- rária. Personagem controversa, fica provisoriamente suspensa.)
ta desde o primeiro contato com ta, mesmo quando não seja exata- Tokarczuk é vegetariana, ativis- Num remoto vilarejo ao sul da Polônia, na
a obra de Olga Tokarczuk: o que mente poesia, a ela pode, sim, ser ta não só no feminismo, mas em fronteira com a República Tcheca, uma professora
há nela para merecer um Nobel equiparado. Noutras palavras, o causas ambientais, e de esquer- de inglês dedica seus dias de aposentada ao estudo
de Literatura? Resolvida a ques- mérito artístico de certas canções da. Embora aclamada pela crítica da astrologia, enquanto lê e traduz poemas do inglês
tão, solucionado então o proble- está definitivamente reconhecido, e bem-sucedida comercialmen- William Blake (1757-1827) e toma conta de casas
ma, com a possibilidade ainda de sob a chancela do Nobel de Dy- te na Polônia, vem sendo ataca- da vizinhança deixadas a seu cuidado, quando o ri-
se discordar humildemente da es- lan. Não é pouco, não é bobagem, da em seu país por grupos que gor do inverno afasta dali proprietários e inquilinos
colha. Obviedade, contudo, não mas essa é uma outra discussão. a consideram anticristã, antipa- por temporada. Vegetariana convicta, morando só
combina com literatura, muito Seria inevitável que um triota e promotora do ecoterro- e preferindo a companhia dos animais à dos huma-
menos com prêmios literários. E prêmio de tal magnitude tivesse rismo. Como se vê, polêmica é o nos, Janina Dusheiko vive às turras com os caçado-
menos ainda com o Nobel. lá suas polêmicas. Ganhadora da que não falta na vida dessa sim- res numa zona onde a caça, mesmo quando ilegal,
Comecemos pelo fim: o edição de 2018, Olga Tokarczuk pática aquariana que não mostra é tolerada e até incentivada. Não contente em sa-
Nobel não é apenas um prêmio esperou um ano para ser agraciada a idade debaixo de seus inusita- botar armadilhas para animais silvestres, vai à polí-
literário, pois não se limita a pre- junto com o vencedor de 2019, o dos e graciosos dreadlocks. cia denunciar “assassinatos” de animais e enfrenta
miar uma obra melhor dentre as austríaco Peter Handke, por conta ela mesma os “assassinos” com autoridade inflamada
melhores que a ele concorrem em de um escândalo de assédio sexual Uma das grandes em defesa da vida. Os poucos moradores do lugar a
determinado ano, desde o lon- que explodiu no colo do comitê Pouco se conhecia Olga têm por uma velha maluca a insistir numa causa que
gínquo 1901 inaugural. Pressu- da Academia. Processos tramitan- Tokarczuk fora da Polônia até ali quase mais ninguém leva a sério. A cada visita à
põe-se que todos os ganhadores do na Justiça, ânimos serenados o advento do Nobel. Primeiro e delegacia, ela evoca seus direitos de cidadã para exi-
tenham, no mínimo, excelência li- em Estocolmo e Paris, Tokarczuk único livro da autora publicado gir o registro de ocorrências que a polícia desdenha
terária, em que pese alguém pos- foi finalmente anunciada como no Brasil, Os vagantes está fo- por considerar descabidas, além de cobrar o devido
sa argumentar que, quanto a esse merecedora do Nobel “por uma ra do catálogo da Tinta Negra, andamento de suas questões.
quesito, Bob Dylan não esteja no imaginação narrativa que, com que o lançou em 2014. Para rea- Narrado em primeira pessoa por Janina, Sobre
mesmo patamar de, por exemplo, paixão enciclopédica, representa presentá-la ao público brasileiro, os ossos dos mortos começa na madrugada escu-
um José Saramago. Para o próxi- o cruzamento de fronteiras como a Todavia escolheu Sobre os os- ra em que Esquisito bate à sua porta pedindo ajuda:
mo ano, se dois dos já menciona- forma de vida”. A ironia da esco- sos dos mortos, publicado ori- Pé Grande, com quem Janina tem sérias desavenças
dos acima fizerem parte da lista lha não está na costumeira e exem- ginalmente em 2009 e adaptado justamente por ser caçador e desprezar seus amigos
de indicações, quem se arriscará plar concisão da justificativa, que para o cinema por Agnieszka inumanos, está morto (dentre outras excentricidades,
a considerar McEwan melhor ou esconde também o viés político Holland em Rastros, de 2017. É Janina, que detesta o próprio nome, tem o hábito de
mais excelente do que Auster? Tal- do qual se falará adiante, mas na também um de seus títulos mais apelidar os outros de acordo com suas personalida-
vez a saída para uma saia justíssi- biografia de quem teve o prêmio emblemáticos, algo que o rese- des). Agora os dois vizinhos, únicos que restam vivos
ma dessas esteja entre os motivos atropelado por um episódio dessa nhista só foi descobrir após ler o naquele fim de mundo gelado onde até os telefones
que têm levado a Academia a fugir natureza: Olga Tokarczuk é femi- livro e ir em busca das referências celulares reinam para funcionar, têm de tomar algu-
de escolhas estritamente literárias nista de carteirinha. Além disso, biobibliográficas aqui usadas. A ma providência. Eles empreendem então uma aven-
para assumir decisões mais abran- tendo já merecido outras pre- pergunta que acompanhou a lei- tura na neve para chegar à casa do morto e lá decidem
gentes ou, vá lá, mais “políticas”, miações importantes ao longo da tura — o que há ali para mere- preparar o corpo para o velório antes que consigam
que é afinal um critério, e, conve- carreira, uma em especial, o Ger- cer o Nobel — foi sobejamente avisar as autoridades. Vários indícios levam Janina a
nhamos, ele se equivale a qualquer man-Polish International Prize respondida ao serem encontra- imaginar que a morte de Pé Grande não tenha sido
outro de caráter extraliterário tão em 2015, é “um reconhecimento das notáveis coincidências en- natural, mas provocada, e de uma forma algo gro-
despudoramente usados em prê- estendido a pessoas especialmen- tre a biografia de Tokarczuk e tesca. Outros caçadores irão morrer, todos em cir-
mios de menor relevância, embora te empenhadas na promoção da a da protagonista de sua nove- cunstâncias misteriosas, desafiando a capacidade de
sempre se o negue com indignada paz, desenvolvimento democráti- la. (Amós Oz se escandalizaria investigação de uma polícia não acostumada a lidar
veemência. O Nobel, pelo menos, co e entendimento mútuo entre as ao saber que um fã dos mais ar- com esse tipo de ocorrência. Enquanto se suspeita
não o nega, além de refinar tal op- pessoas e nações da Europa”. Na- dorosos especula aqui atentando que o tráfico ilegal de peles e até a máfia estejam por
ção com argumentos via de regra da combina menos com assédio contra um de seus mais preciosos trás das mortes, Janina está convencida que se trata
inquestionáveis. sexual do que essas credenciais, e ensinamentos. Quando discor- de uma vingança dos próprios animais contra seus al-
Se o Nobel visa a alcançar e há inclusive quem especule que a re sobre o tema da autobiogra- gozes. E mais não se poderá aqui avançar sob pena de
premiar o que está além das fron- escolha foi também uma tentativa fia, a que dedica várias páginas trair o futuro leitor. Não se imagine, contudo, uma
teiras da literatura é também por- de salvar a reputação da Academia do magistral De amor e trevas, trama de suspense convencional: thriller existencial
que a literatura, ela mesma, não depois do abalo sofrido. Oz sentencia: “quem procura a e suspense ecológico são duas das classificações pou-
está sujeita a fronteiras, antes o A trajetória de Tokar- essência de um conto no espa- co ortodoxas que a crítica vem adotando.
contrário. A literatura se desdo- czuk, desde o lançamento do ço que fica entre a obra e o seu A novela se divide em 17 capítulos, cada qual
bra e se expande sempre quando primeiro livro, uma coletânea autor comete um erro: é muito tendo como epígrafe uma citação de William Blake.
mostra o que a Filosofia ainda não de poemas, em 1989, até che- melhor procurar não no terreno Nas pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, a
JANEIRO DE 2020 | 23

AGENCIA GAZETA

prateleira
NACIONAL

Os vários “personagens-alfabeto”
deste livro de estreia passeiam sem
muita eira nem beira. Ou, como
melhor explicaria o pichador P,
fã de Albert Camus: “a existência
humana no mundo é um absurdo
de proporções míticas”. É nesse
carnaval de ilusões que figuras
despersonalizadas transitam,
chamadas X, M, S, R, em uma cidademanequim
experiência estética radical.
ANDRÉ CÚNICO
Para Julie Fank, que assina o
VOLPATO
posfácio da obra, trata-se de
Moinhos
um “antirromance, um romance-
176 págs.
ruína, uma cidade-narrativa”.

Esta coletânea faz um balanço


de duas décadas de publicações
de Mauro Ventura, ganhador
dos prêmios Esso e Embratel
prosa de Tokarczuk, pelo menos no quanto se pode
de jornalismo. Além de crônicas
avaliar a partir da ótima tradução de Olga Bagińska- inéditas e narrativas que resultam
Shinzato, feita diretamente do polonês, conjuga natu- da junção de várias outras, o
ralidade e requinte estilístico de uma forma que só o livro traz textos publicados no
grande texto literário alcança, num discurso que flui Jornal do Brasil, nos blogs No
com serenidade e limpidez enquanto arrebata o leitor Front do Rio e DizVentura, d’O PorVentura
em vários momentos de pura beleza. Falou-se antes da Globo, e no Facebook. O conjunto MAURO VENTURA
excelência literária indispensável a um ganhador do da obra, que vai da comédia Editora 106
Nobel; quanto ao aspecto formal, não há o que se dis- ao drama, arrancou elogios de 238 págs.
cutir: só pelo que realiza em Sobre os ossos dos mor- nomes como Luis Fernando
Sobre os ossos dos mortos Verissimo e Nelson Motta.
tos, Olga Tokarczuk já pode reclamar seu lugar entre
os grandes prosadores de sua geração. OLGA TOKARCZUK
Janina Dusheiko é uma personagem riquíssima Trad.: Olga Bagińska-Shinzato
de possibilidades que Tokarczuk explora com desvelo Todavia
256 págs.
de artesã. A “imaginação narrativa”, a “paixão enciclo- Neste estudo minucioso, o
pédica”, o “cruzamento de fronteiras como forma de professor da Universidade Federal
vida”, atributos usados na justificativa para o Nobel, de Alagoas (Ufal) Marcos Alexandre
comparecem na criação de um tipo impagável, que usa Faber faz um recorte da poesia
produzida em Pernambuco, mais
a astrologia para se situar num mundo do qual se dis-
especificamente da designada
tancia paulatinamente à medida que se recolhe a suas “Geração 65”. O movimento, que
esquisitices. Uma figura que de fato rompe com qual- manteve suas raízes no estado
quer estereótipo de normalidade, mas também a ativis- e ainda guarda certo ineditismo
ta de uma causa na qual sinceramente acredita e para junto ao público brasileiro, conta A poesia da geração 65
a qual luta com as armas das quais dispõe — quantas com nomes como Alberto da MARCOS ALEXANDRE FABER
vezes um lunático já mereceu tal fama justamente por Cunha Melo, Ângelo Monteiro, Cepe
conta de seu idealismo. Há também um lado mítico Marcus Accioly, Jaci Bezerra e 370 págs.
que não se vincula diretamente à astrologia tampou- Lucila Nogueira, entre outros.
co a qualquer religiosidade, e tem mais a ver com os
sortilégios da natureza num cenário inóspito em boa
parte do ano. Janina vive períodos de isolamento, re-
laciona-se com os animais de uma forma peculiar e é Os aliciadores de Lourenço Dutra
atormentada por visões de gente morta. Ela sofre de não são pensadores paranoicos
algo que chama de “minhas moléstias” sem especificar ou personagens às voltas com
quais sejam, ainda que pareçam enfermidades físicas inquietações existenciais, mas dois
acionadas por algum gatilho emocional. TRECHO homens que saem de Brasília para
o interior da Bahia atrás de votos
O mais cativante em Janina, contudo, é seu ana- Sobre os ossos dos mortos para o governador. O substrato
cronismo pungente: ele se impõe como uma forma de
dessa narrativa despretensiosa
resistir ao andar desenfreado do mundo contemporâ- é feito de bares, ciganos, gente
neo, e o leitor é instado a refletir se as convicções da ve- Se tivesse examinado nas
desocupada, delegados e Os aliciadores
lha maluca não fazem mesmo sentido nos complicados Efemérides o que acontecia no políticos locais. Nessa jornada, o
LOURENÇO DUTRA
dias de hoje. Finalmente chegamos aqui ao aspecto po- céu naquela noite, nem me absurdo que subjaz ao universo da
Penalux
lítico do Nobel de Olga Tokarczuk. São dois fatores, na politicagem vem à tona, com toda
deitaria para dormir. Entretanto, 219 págs.
realidade, mas eles se complementam. O primeiro é a sua desgraça e hilaridade típicas.
luta pela defesa da vida, da natureza e dos direitos dos caí num sono muito profundo;
animais, um tema candente da atualidade que vem ge- recorri ao chá de lúpulo e tomei
rando discussões e mobilizando gente em todo o pla- ainda dois comprimidos de
neta, algo que não se pode mais desprezar e considerar Nos contos d’A mulher que ri,
valeriana. Por isso, quando fui
“coisa de maluco”. O segundo é a figura de Tokarczuk Thays Pretti traz vozes femininas
— e, por extensão, seu alter ego Janina Dusheiko — acordada no meio da noite pelo que, além do riso, também
contrapondo-se ao ultraconservadorismo e nacionalis- som — violento, excessivo, e por choram, cuidam, mentem, sentem,
mo em ascensão na Europa, especialmente na Polônia isso agourento — de alguém alegram-se, sentem ciúmes, são
sob o governo de Andrzej Duda. Ainda que não nos vaidosas, desconfiam. São seres
batendo na minha porta, não humanos, basicamente, com
comova ou que pensemos de forma diferente, a simples
existência de um movimento de oposição a um mode- consegui me recompor. Levantei todo o redemoinho de sensações
que nos é próprio. Ao humanizar
lo que afronta conquistas da civilização ao longo dos às pressas e fiquei em pé junto essas figuras, removendo-as do
séculos propicia um exercício dialético imprescindível A mulher que ri
da cama, vacilando, pois o corpo escopo da idealização, a autora
à manutenção da estabilidade democrática. recai em “uma urgência que
THAYS PRETTI
sonolento, trêmulo, não conseguia
É a resistência, palavra adotada aqui no Brasil de- não pode ser adiada”, conforme
Patuá
pois das últimas eleições presidenciais, vinda dos confins dar o salto da inocência do sono a poeta Mayara Blasi registra
98 págs.
gelados da Polônia e levando o Nobel de Literatura. para a vigília. na quarta capa da obra.
24 | JANEIRO DE 2020

Geração Homer Simpson


Por curiosidade, algumas
datas: o livro é de 1910. Em 1938,
Otto Hahn e Fritz Straßmann des-
cobrem a fissão nuclear. Em 1942,
o projeto Manhattan, na Univer-
sidade de Chicago, consegue reali-
Com brilho e talento inigualáveis, livro de zar a primeira reação em cadeia de
fissão nuclear. O objetivo deles era
J. H. Rosny Aîné anuncia a morte da humanidade construir a primeira bomba atômi-
ca. A vida imita a arte.
Rosny tem o meu senso de
CAROLINA VIGNA | SÃO PAULO – SP
humor. Por vários momentos até
parece que o autor trabalhou na
política brasileira: “Os Últimos
Homens tinham uma sensibili-

U
m dia desses vou escrever uma história um brilho e talento inigualáveis. dade limitada e quase nenhuma
da arte a partir da morte. É um tema que O autor acreditaria realmente imaginação”.
me fascina há muito. O primeiro “arti- nessa anunciada morte cósmica? O que mais me impressio-
go” que publiquei na vida, nos Cader- Sabemos das suas hesitações. nou em A morte da Terra não foi
nos de Psicanálise da Sociedade de Psicologia Clínica Numa primeira versão, o escritor exatamente uma descrição possí-
do Instituto de Psicanálise (maio de 1984), ainda terminava o livro assim de modo vel de nosso fim, mas uma des-
pré-adolescente, escrito aos 12 anos de idade e pu- que, digamos, corresponde ao tom crição muito apurada e atual de
blicado aos 13, foi sobre a morte. É uma bobagem do título. Depois, numa versão pos- como morremos em vida:
própria de alguém com essa idade, mas demonstra a terior, como se entendesse salvar a
antiguidade da minha obsessão com o tema. sua própria esperança, o escritor Mas ninguém acreditava que
O bom é que eu não estou sozinha nessa. O Egi- acrescentou uma derradeira frase. A morte da Terra os homens do Terras Vermelhas fos-
to Antigo construiu toda uma civilização e uma cultu- Confesso que aqui, do alto J. H. ROSNY AÎNÉ sem passíveis de pânico, seu tempe-
ra em torno de tentar vencer a morte. E quem nunca? do meu pessimismo com a nossa Trad.: Julia da Rosa Simões ramento era ainda menos emotivo
Os romanos — como em o Sacro Império Ro- espécie, eu prefiro a versão sem o Piu que o do Fontes Altas: capazes de
128 págs.
mano-Germânico — consideravam que a gente só acréscimo do autor. Além do quê, tristeza, eram incapazes de pavor.
morria de verdade mesmo quando era esquecido. fiquei com um sabor estranho na
Para morrer, era preciso entrar em contato com as boca, como se fosse algum tipo de Lembra que eu comentei
águas do rio Lete, o rio do esquecimento. O Lete fi- censura ou retrocesso. que meu primeiro texto publica-
ca no Hades, o gélido submundo greco-romano. Es- A história conta a morte da do foi sobre a morte? Era exata-
se negócio de inferno quentinho é bem mais recente. humanidade, mais do que do pla- mente sobre essa ideia, de que se
Com o passar do tempo, essa preocupação neta. O planeta padece pela falta de não nos emocionamos, se não per-
passou também à aparência e criamos um merca- água, mas outras possibilidades de mitimos que a vida nos invada, é
do consumidor de cirurgias plásticas, cosméticos e vida se apresentam, especialmente mais ou menos a mesma porca-
maquiagem. Atire a primeira pedra quem nunca umas “estranhas criaturas magnéti- ria de estarmos já mortos. Eu era
comprou um creminho, ah vá. cas que se multiplicavam no planeta pré-adolescente, relevem a falta
Entretanto, é recente a preocupação de que tal- enquanto a humanidade declinava”. de profundidade de pensamento.
vez, só assim talvez, a gente não seja tão importante Ou seja, quem morre somos nós, Ainda assim, é uma questão que
para o planeta e que hmm, veja você, há uma forte pos- não a Terra como um todo. me impacta desde sempre. Rosny
sibilidade da nossa espécie ser extinta por ação autoin- Temos essa mania de achar descreve essa sensação melhor do
fligida. Não que isso mude o mundo, mas a “palavra que somos importantes ao pon- que qualquer tratado psicanalítico:
do ano” de 2019 do Dicionário Oxford é “emergência to de, com o nosso fim, decretar-
climática”. Não muda, mas é um indicativo relevante. mos o fim do planeta inteiro. Nós As pessoas passaram a viver
Um dos movimentos organizados de preser- bem que tentamos, destruindo o num estado de doce, triste e extre-
vação ecológica mais antigos do mundo, o Conser- ambiente e outras espécies, mas ma passividade. O espírito de cria-
O AUTOR
vation Movement (EUA), foi fundado em 1890. não somos tão competentes as- ção extinguiu-se, ou só se manteve,
O Greenpeace foi fundado em 1976. Isso foi on- sim, felizmente. J. H. ROSNY AÎNÉ por temperamento, em alguns in-
tem. A própria Ecologia como ciência é recente. É Rosny chega ao ponto de es- divíduos. De seleção em seleção, a
Foi um dos pioneiros da ficção
dos anos 1700 e alguma coisa. Segundo a enciclo- fregar na nossa cara, mais de um humanidade adquiriu uma voca-
científica, tendo começado sua
pédia, consideramos como pioneiros o microsco- século atrás, o que fazemos hoje e carreira literária ao lado do irmão,
ção para a obediência automática,
pista Antoni van Leeuwenhoek (1632–1723) e o para onde nossas ações atuais nos Justin François Boex. Escreveu e, portanto, perfeita, às leis imutá-
botânico Richard Bradley (1688-1732). conduzirão: sozinho 106 livros e, com o veis. A paixão se tornou rara, o cri-
Sim, eu sei que 1700 aconteceu há séculos, li- irmão, outros 47. A maioria é um me inexistente.
teralmente, mas em termos de história humana is- A sombra da decadência pre- tanto quanto apocalíptica ou,
so não é nada. É um piscar de olhos. Pouco tempo cedera de longe as catástrofes. Em como diz Eduardo Bueno no (...) Assim, nada vinha aba-
atrás nós ainda estávamos queimando bruxas na fo- épocas muito distantes, nos primei- posfácio de A morte da Terra, lar a apatia dos Últimos Homens.
gueira ou afirmando que a Terra é plana. Não, pera. ros tempos da era radioativa, já se “sob tons crepusculares”. Os que melhor escapavam do ma-
J. H. Rosny Aîné nasceu em 1856 e faleceu em observava a diminuição das águas: rasmo geral eram os indivíduos me-
1940. No entanto, seu livro A morte da Terra chega muitos cientistas previam que a hu- nos emotivos, que nunca tinham
a assustar de tão atual. Sua primeira publicação, em manidade morreria devido à seca. amado ninguém, nem a si próprios.
1910, tem o mérito de ter sido a primeira, obviamen- Mas que efeito essas previsões podiam Estes, perfeitamente adaptados às
te, mas teve a infelicidade de não contar com o pre- ter sobre povos que viam montanhas leis milenares, demonstravam uma
fácio do Mia Couto e o posfácio do Eduardo Bueno. cobertas de geleiras, inúmeros rios perseverança monótona, alheios a
Mia Couto que, aliás, é biólogo por forma- percorrendo as terras, mares imen- todas as alegrias e a todos os pesares.
ção, nos lembra de nossa fragilidade enquanto sos banhando os continentes? A inércia os dominava: evitavam a
espécie, antes mesmo de mergulharmos na estra- depressão excessiva e as decisões brus-
TRECHO
nhamente próxima história de Rosny: Ou seja, o autor descreve com cas. Eles eram o produto perfeito de
precisão a turma que nega o aqueci- A morte da Terra uma espécie condenada.
A Terra pode morrer. A Humanidade pode de- mento global. A surpresa é ele não
saparecer. O Futuro não é um tempo garantido. Estes falar nada sobre os terraplanistas. Os homens dessa poderosa época Ou seja, é a geração Homer
são avisos que nos chegam a partir de vozes que po- Em um registro um pouco Simpson, que se satisfaz com a ro-
voam este livro. São vozes de gente estranha com no- mais pitoresco, Rosny também tiveram uma vida árida. A tina trabalho-televisão-cerveja. Já
mes estranhos. Vozes que parecem distantes no tempo. prevê o celular: “Targ levaria um poesia magnífica e misteriosa eu aqui estou com o Ferreira Gul-
Mas que são vozes nossas, que habitam o nosso tempo ondífero móvel, que podia receber estava morta. Não havia mais lar: a arte existe porque a vida não
presente e que carregam temores que são bem atuais. e transmitir a voz humana a mais vida selvagem, nem mesmo basta. Chamo a atenção para o
de mil quilômetros”. trecho “produto perfeito de uma
Mia Couto ainda nos conta sobre uma altera- Ainda não conseguimos as antigas terras quase livres, espécie condenada”. Rosny fala da
ção do autor que modifica o livro inteiro. controlar a fusão atômica, como que formavam os bosques, as espécie como um todo, mas pode-
fazemos com a fissão, mas Rosny charnecas, os pântanos, as estepes mos extrapolar esse conceito para
Morte da humanidade parece otimista a respeito da físi- e as campinas da era radioativa. outras áreas, como classes traba-
Não creio que Rosny desejasse ser o autor de ca nuclear: “O vencedor se apode- lhistas, eleitores ou qualquer ou-
uma profecia apocalíptica. A morte da Terra apre- rou até mesmo da força misteriosa O suicídio acabou sendo a mais tro segmento da sociedade. Nossa
senta-se como uma simples história, redigida com que une os átomos”. temível doença da espécie. passividade nos condena.
NÃO ENCONTRAMOS
JEITO MELHOR DE FALAR SOBRE
JORNALISMO PROFISSIONAL.

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26 | JANEIRO DE 2020

Unidos pela escrita


rio, sempre generoso, parece mais sim tão superficial mesmo quan-
preocupado em comentar ou fa- do nós japoneses a falamos [...]
zer elogios da obra de seu amigo: o português é muito mais condi-
“Minhas saudações. Recebi com zente conosco”. No final da car-
muita alegria sua obra O mar- ta, Mishima comenta que chegará
tírio de São Sebastião. Acredi- ao Rio antes de Carnaval e que
Reunião da correspondência entre Yukio Mishima e Yasunari to ser outro trabalho seu que traz depois pretende continuar para a
um sorriso ao peito”. Só de manei- Argentina, mas não há mais refe-
Kawabata retrata uma amizade atravessada pela literatura ra fugaz conseguimos captar algu- rências sobre esta viagem.
ma referência a sua própria obra,
como na carta de 15 de fevereiro Contexto
RAFAEL GUTIÉRREZ | RIO DE JANEIRO – RJ
de 1953: “Li com profundo inte- Entre a troca de cartas dos
resse o debate na Multidão [debate escritores podemos conhecer al-
entre Katsuichiro Kamei, Yoshie guns detalhes do mundo literário
Hotta e Yukio Mishima sobre a japonês da época. Destaco dois: o

E
m uma carta datada de como na carta de 23 de setem- criação literária que incluía uma primeiro, a existência de um tor-
27 de maio de 1961, Ya- bro de 1963: “Recebi ontem o crítica da obra Após o ferimen- neio de Go entre literatos. Em no-
sunari Kawabata faz um seu O marinheiro que perdeu to de Kawabata]. Por achar insí- vembro de 1953, Kawabata está
“pedido despudorado” as graças do mar, que me foi en- pido ter minha verdadeira forma participando do torneio e conta
para seu amigo Yukio Mishima: viado por Kamakura. Comecei a tão bem compreendida e disseca- que teve o azar de enfrentar Saka-
“[...] lhe peço: não me importo ler ontem tarde de noite e termi- da, imagino que logo terei de pas- kiyama (campeão entre os escri-
que seja bem simples, mas você nei hoje, invejo sua argúcia e pen- sar por uma metamorfose”. tores e autor de diversas histórias
concordaria em escrever-me uma so que gostaria de me inspirar em Ao longo da correspondên- relacionadas ao jogo), mas que
recomendação? Vou pedir que en- você, mas nunca poderei atingir cia fica claro também o desejo conseguiu ganhar, perdendo pos-
viem seu texto à Academia, junta- seu patamar”. Embora Mishima nos dois escritores de serem tra- teriormente para o mestre Shofu.
mente com os outros documentos seja bem mais novo que Kawa- Kawabata—Mishima. duzidos e divulgados no ociden- O próprio Kawabata é autor de
necessários, depois de tê-lo tradu- bata — mais de 20 anos —, sua Correspondência 1945–1970 te, mas, ao mesmo tempo, uma um grande romance sobre o jogo,
zido para o inglês ou francês”. precocidade e intensa produção o YASUNARI KAWABATA E YUKIO certa dúvida sobre a forma em O mestre de Go. Segundo, a prá-
Kawabata se refere a uma reco- colocaram muito cedo no centro MISHIMA que suas obras poderiam ser re- tica conhecida como kandzume à
mendação para a Academia do da vida intelectual e literária do Trad.: Fernando Garcia cebidas e interpretadas. Kawaba- qual Mishima se refere ironica-
Prêmio Nobel de Literatura. Sete Japão de mediados do século 20. Estação Liberdade ta escreve em outubro de 1956: mente como “enlatado”. O kan-
256 págs.
anos depois, em 1968, Kawabata “Aparentemente sairá também a dzume consiste no costume das
se tornaria o primeiro japonês a Personalidades distintas tradução para o francês de meu editoras de reservarem um quar-
ganhar o Prêmio. Suas personalidades con- Mil tsurus, baseada na tradução to de luxo em algum hotel para
Na resposta de Mishima, ele trastantes — um tímido e con- alemã. Mas o que será de obras que os escritores trabalhassem em
envia o que chama de “esboço” es- tido, o outro excêntrico e aberto como O país das neves e Mil retiro, sem restrições; prática que
crito diretamente em inglês. “Nas — fica de entrada em evidên- tsurus uma vez traduzidas para o Mishima deve “sofrer” no verão
obras do senhor Kawabata”, escre- cia na troca de cartas. Em geral, Ocidente? Ouço dizer que as edi- de 1951 e sobre a qual comenta:
ve Mishima, “a delicadeza se une Mishima é muito mais expressi- toras e os book reviewers encon- “Nunca passei um verão tão di-
à elasticidade, a elegância a uma vo, inclusive quantitativamente é tram problemas para interpretar vertido [...] dancei, andei a cavalo,
consciência das profundezas da ele quem mais escreve. Sobretu- as obras da forma adequada”. passeei de barco e, além de beber,
natureza humana; sua claridade do nos primeiros anos da corres- Na resposta de novembro da- consegui trabalhar ainda o dobro
oculta uma tristeza imensurável, pondência entre ambos, quando quele ano, Mishima comenta de em relação ao ano passado”.
são obras modernas e ainda assim o jovem autor confessa aberta- modo mais irônico sobre o as- Apesar de estarem atraves-
inspiradas diretamente pela filo- mente para seu mestre suas dú- sunto e sobre sua relação com os sando um conturbado momento
sofia solitária dos monges do Ja- vidas, angústias e desejos. Em OS AUTORES tradutores de sua obra: “Os es- político, não aparecem nas cartas
pão medieval”. Mishima termina carta de julho de 1945, Mishi- tadunidenses não são assim tão referências explícitas a respeito.
sua recomendação afirmando que ma, então com 20 anos, comenta estúpidos e creio que entenderão Nesse sentido, tanto as notas co-
Kawabata, mais do que qualquer brevemente o contexto de inten- o que precisa ser compreendido. mo as biografias cronológicas dos
outro escritor japonês, estaria qua- sificação da guerra e seu translado Por outro lado, os europeus é autores e o posfácio que acompa-
lificado para o prêmio. para o Arsenal de Koza, na Facul- que têm a cabeça dura, e temo nham a edição da correspondên-
As duas cartas, assim como dade de Direito da Universida- que lhes falte uma capacidade cia funcionam em conjunto como
o texto integral da recomendação de de Tóquio, onde deve exercer de compreensão flexível o bas- um bom suporte ao leitor para re-
de Mishima, fazem parte do livro sua nova função como bibliotecá- tante para a literatura japonesa construir o contexto japonês do
Kawabata—Mishima. Corres- rio. Uma função perfeita para ele, [...] Cortei laços com o tradutor pós-guerra e o lugar destes escri-
pondência 1945–1970, publica- diz, pelo tempo que poderia de- Weatherby, pois discutia demais tores nesse campo de forças.
do pela editora Estação Liberdade dicar à escritura: “A guerra só faz YASUNARI KAWABATA sobre assuntos financeiros. Ago- Entrelinhas é possível en-
em 2019, com tradução do japo- se tornar mais violenta, de mo- ra precisarei encontrar um novo contrar certas ideias que parecem
Nasceu em Osaka, em 1899.
nês de Fernando Garcia, introdu- do que minha escrivaninha para tradutor. Não chego a crer que antecipar o que seria um desfecho
Primeiro japonês a receber o
ção de Shoichi Saeki e posfácio de trabalhos de literatura começou todos os estrangeiros sejam neu- trágico no caso de Mishima, co-
Prêmio Nobel de Literatura, é
Donatella Natili. repentinamente a se estreitar. Só considerado um dos maiores
róticos como Weatherby a res- mo destaca Donatella Natili no
A primeira das cartas, de resta espaço para um mero ma- representantes da literatura oriental peito de dinheiro”. posfácio. Em uma das primeiras
Kawabata para Kimitake Hiraoka ço de papéis. Mesmo para usar a do século 20. É autor de Beleza e O Brasil não fica fora do cartas da correspondência, de 18
(nome de batismo de Yukio Mi- caneta meu cotovelo esbarra em tristeza (1964), Kyoto (1962), A casa campo da experiência de Mishi- de julho de 1945, Mishima es-
shima) é de 8 de março de 1945. algo, e não posso movimentá-lo das belas adormecidas (1961), ma, embora seja mais generoso creve: “Não é possível, talvez, re-
A última da correspondência é de como quero. Não sei se trabalhar entre outros. Suicidou-se em 1972. com os brasileiros e sua língua. conhecer também na literatura a
Yukio Mishima para Yasunari Ka- como um louco em tempos assim O escritor visita o Brasil em 1952 existência de limites da experiên-
wabata com data de 6 de julho de de fato satisfaria aos deuses da li- depois de passar uma temporada cia, limites não ultrapassáveis e
1970, cinco meses antes de seu teratura. Tenho apenas a cons- em Nova York. Fica hospedado na que fogem do domínio da expe-
suicídio na sala de comando do ciência fervorosa de que satisfaço fazenda de Toshihiko Tarama, ne- riência literária (como Rilke a en-
Acampamento Ichigaya das For- a algo ou alguém”. E em outra to do Imperador Meiji, que havia tendia)? Não chegará o momento
ças de Autodefesa do Japão. mensagem de julho de 1947 con- emigrado ao Brasil em 1947. Des- em que serei obrigado a fazer a es-
O conjunto de textos retra- fessa: “E se eu realmente tivesse de Lins, no interior de São Paulo, colha penosa de realizar, fora do
ta 25 anos de uma intensa amiza- em mim um demônio, o que me Mishima escreve para Kawaba- âmbito da literatura, as minhas
de atravessada inteiramente pela impediria de abandonar a escola ta comentando sobre o modo de visões literárias fatalistas?”.
literatura. O que começa como e o lar e lançar-me por inteiro a ser dos brasileiros: “Já quanto à No caso de Kawabata, não
uma típica relação de admiração uma vida de literatura de acordo América do Sul, me apraz sobre- há muitos indícios que permi-
e respeito entre um aprendiz (Mi- com meu alvedrio?”. YUKIO MISHIMA maneira o nível de descontração tam prever sua decisão pelo sui-
shima) e um mestre (Kawabata), Já Kawabata, ao longo da dos brasileiros. Não há um bando cídio em abril de 1972. Talvez
Nasceu em Tóquio, em 1925.
vai se transformando rapidamen- correspondência, aparece mais re- tão simpático como esse, mesmo alguma pista se esconda na última
Uma das personalidades mais
te em uma relação de intimidade, servado. Suas cartas, embora afe- considerando os japoneses que mensagem para Mishima — de
populares do Japão no século
e a hierarquia que podia existir no tuosas, revelam pouco sobre seus 20, estreou na literatura aos 19
aqui vivem, agradáveis com seu 13 de junho de 1970: “Embo-
início parece se inverter a favor pensamentos, intimidade (além anos de idade. É autor, entre ares de despreocupação [...] Em ra as pessoas todas digam que te-
do aprendiz, tal como demons- de detalhes sobre sua saúde) ou, outros, de Confissões de uma relação à língua nativa, o portu- nho aspecto saudável, parece que
tra o episódio da recomendação inclusive, sobre seus métodos de máscara (1948), Sol e aço (1970) guês, apesar de ter muitas vogais, ao menos meu espírito envelhece
para o Prêmio Nobel ou comen- trabalho, frustrando um pouco a e da tetralogia Mar da fertilidade a pronúncia é muito próxima do [...] é tal como você diz; é duro,
tários posteriores de Kawabata, curiosidade do leitor. Pelo contrá- (1969-1970). Suicidou-se em 1970. japonês, de modo que não soa as- não é mesmo?”.
JANEIRO DE 2020 | 27

sujeito oculto
ROGÉRIO PEREIRA

CAMARÃO NÃO COME FLOR


Quando a tarde cortava mais da
metade do dia, os preços eram re-
duzidos. Algumas plantas mos-
travam fadiga, um cansaço que se
estendia aos nossos corpos, equi-
librados sobre caixas de feira. Até
a chegada da noite e do pai, tínha-

Q
ILUSTRAÇÃO: GIRASSÓIS, DE VAN GOGH

uando acaba a in- mos de nos livrar de toda a carga.


fância? Íamos sem- Uma ou outra flor podiam voltar
pre juntos. O silêncio à chácara onde morávamos e tra-
nos acompanhava de balhávamos. Ali, recomeçávamos
casa até a movimentada rua de res- a semana à espera do próximo do-
taurantes a vender polenta e fran- mingo. Teríamos sempre duas op-
go gorduroso a turistas felizes. ções: o Deus da mãe ou as flores
Não havia inquietações, pergun- do pai. O pai agora se aproxima
tas. Eram desnecessárias. Apenas da morte — o azedo da cachaça
quietude e obediência. Durante a sempre vence no final. Comprarei
semana, plantávamos e colhíamos crisântemos amarelos para decorar
flores. Aos domingos, as vendía- o caixão. O cheiro do crisântemo
mos. Algo mecânico e trivial. morto é insuportável. Ele não me-
Tínhamos de passar par- rece minha eternidade de plástico.
te do dia santo agarrados à sobre- Cozinho com pouca habili-
vivência. Nossa cruz balançava dade e algum interesse. Até pou-
na cabeceira da cama. Ora Jesus co tempo antes da derrota plena
nos protegia. Ora samambaias para o câncer, a mãe espalhava
nasciam na coroa de espinhos. uma frase pela boca banguela:
Quando não estávamos na igreja “Não gosto de camarão”. Sem-
entranhados na crença da mãe, as pre que faço macarrão com ca-
grandes latas cheias de flores nos marão (uma rima pobre para um
envolviam num abraço nada cari- prato razoável), ouço as palavras
nhoso. Às vezes, íamos aos cemi- da mãe a cutucar meus ouvidos:
térios. Os crisântemos são boas “Não gosto de camarão”. Um dia,
companhias aos mortos. Vendía- meio sem assunto, perguntei-lhe:
mos flores coloridas para embe- “Por que não gosta de camarão?”.
lezar a morte alheia. O sol logo A resposta levou-me de encontro
as matava também. Flores mor- à placa a balançar nos domingos
tas a fazer companhia a defuntos. tediosos, a um diálogo interrom-
A equação sempre dava errado. pido: “Não sei. Nunca comi”.
Quando a mãe morreu, decidi en- Alguns domingos são eter-
feitar o caixão ordinário (uma fi- nos. Saímos de casa no mesmo ho-
na lâmina de madeira) com flores rário. O pai, a mãe e o silêncio na
de plástico. A eternidade artificial dianteira. Eu e o irmão entre flo-
foi o carinho possível quando na- res e o ronco bestial do motor na
da mais importava. traseira. A Kombi era um pouco
Chegávamos bem cedo. A melhor que os pangarés que deixá-
cidade a despertar na vagareza pre- ramos na roça. A chegada a C. nos
guiçosa do fim de semana. O pai, entregou um barulho indestrutível.
ainda azedo pela cachaça do sába- Ao chegarmos diante do restauran-
do à noite, dirigia a velha Kombi te, a mãe me entregou a marmita e
da floricultura. (Há algum tem- me deu todas as orientações conhe-
po, aposentaram a Kombi. Entre cidas. “Você já pode ficar sozinho
lamúrias saudosistas, muitos la- aqui.” Não reagi à solidão. Preci-
mentaram o fim do carro de de- sávamos aumentar as vendas. Ca-
sign reto e pouco criativo. Senti da um em cada canto. Espalhados.
apenas que parte da minha infân- peixe a nadar por entre mesas ba- giava as flores. Éramos cúmplices No fim do dia, seríamos recolhi-
cia segue presa numa Kombi velha rulhentas. Não lembro o nome na na miséria cotidiana. “Camarão é dos. Organizei a menor floricultura
e barulhenta.) Nós, aninhados en- placa esbranquiçada na qual um bom, mãe?”, perguntei uma vez. do mundo e esperei. Às vezes, pas-
tre latas na parte traseira. O ronco imenso camarão balançava. Era ri- “O quê?”, a quase-resposta seca so pela avenida assustadora. Agora,
do motor ao fundo nos impulsio- dículo: barbatanas, chapéu e um não me surpreendeu. A mãe era me parece uma simples rua, com
nava para um lugar aonde nunca cínico sorriso. Perto do meio-dia, assim: árida com as palavras, um restaurantes de péssimo gosto e lo-
queríamos chegar. A mãe ao lado os clientes famintos começavam soco sempre lhe saía da boca. “Ca- jas de móveis frágeis.
pai. Víamos a silhueta dos corpos a chegar. Em geral, famílias com marão é gostoso?”, repeti. A per- Fiz tudo direito. Caprichei
que se suportavam na angústia dos crianças ruidosas, aparentemen- gunta flutuou pelo ar e perdeu-se nas embalagens com jornal ve-
dias. Eu e a mãe ficávamos juntos. te felizes. O almoço ia até tarde. entre duas azaleias. lho, não errei o troco, olhei para
O pai seguia com meu irmão pa- Muita gente entrava e saía, sempre Quando a menina loira apa- baixo sempre que me miravam de
ra outro lugar — cemitérios e ruas observada pelo camarão de pro- receu, a colher estava na tortuo- frente, quase não falei. Apenas es-
movimentadas eram nossos pon- porções assimétricas. Nunca ha- sa distância da marmita e a boca. tendia as flores. E não tive de di-
tos de venda. No fim do dia, o pai via comido camarão. Mas tinha Congelada no ar, carregava algo co- vidir a marmita com ninguém.
voltava sacolejando na Kombi. Às certeza de que o dono do restau- mo arroz, feijão e ovo. Lembro da O camarão gigante permanecia
vezes, estava bêbado. rante exagerara um bocado. E me voz fina, meio esganiçada: “Eu que- pregado na placa. Famílias passa-
O improviso tinha método. parecia algo um tanto indigesto. ro as amarelas, papai”. A mãe en- vam. O domingo parecia não ter
O carregamento de flores — em Torcíamos pelo crustáceo rolou as flores num jornal velho e fim. O tempo passa mais devagar
latas, pequenos potes de barro ou assombroso. Quanto mais gente as entregou à menina. Acho que tí- quando se está sozinho. Quando
plástico, xaxins — precisava cha- no restaurante, melhor para nós. nhamos a mesma idade. Mas muita já não havia quase mais nada pa-
mar a atenção. Sem saber do dal- Muitas famílias saíam de lá, atra- coisa nos separava. E sabíamos dis- ra vender, o ruído da Kombi sur-
tonismo severo fincado em meus vessavam a rua e compravam al- so. O homem estendeu o dinhei- giu. A mãe desceu, pegou-me pela
olhos, eu tinha de construir um gumas flores. Só me incomodava ro e recusou o troco. Tínhamos de mão. O irmão estava aninhado
provisório jardim à beira da calça- um pouco quando chegavam exa- aprender a conviver com a piedade na quentura do motor. Ainda ti-
da. A capenga floricultura ficava tamente no momento do meu alheia. Pai e filha atravessaram no- ve tempo de olhar mais uma vez
próximo a um restaurante de fru- almoço. A mãe enrolava uma mar- vamente a rua. Uma mulher os es- para o bizarro camarão.
tos do mar. Era como um intruso mita num pano branco. Dividía- perava diante do restaurante. A infância acaba num fim
no bairro de italianos. A polenta mos a comida fria em partes iguais. Dávamos sorte. Quase sem- de tarde de domingo quando o
e o frango afugentavam qualquer Enquanto um comia, o outro vi- pre vendíamos todas as flores. sol também nos abandona.
28 | JANEIRO DE 2020

EM NOME DO PAI
MARCELO DEGRAZIA Praça Matriz — que cruzávamos triz, para comprar o seu exemplar Olhei para Eusébio com um
chupando o néctar dos hibiscos ro- reservado. Alguns deles iam parar princípio de culpa, eu não tinha
Ilustração: Denise Gonçalves sas —, púnhamos os assuntos em depois em minhas mãos. Eu ad- forças para me opor a uma inicia-
dia, trocávamos gibis e figurinhas mirava esse sobrevivente da selva, tiva dos Andretti. Eusébio olhou
de jogadores da Copa 70. Na ver- que encantava os animais com o para o chão.
dade, eu mais ouvia do que falava, magnetismo de seu caráter reto,

E
Entreguei o gibi, que ainda
ram três irmãos, o mais A sua provocação para es- pois os dois anos a mais de Eusé- justo e generoso. cheirava a tinta fresca, e os outros
velho recém atingira ses era: bio, além de prudência, lhe davam Eu já brincava de Tarzan se acercaram do irmão mais velho,
a maioridade, o caçu- — Já vai pra casa, mulher- histórias que eu nem sonhava co- desde a antiga casa, mas, com o um de cada lado.
la devia ter uns quatro zinha? nhecer. Toda vez que contava um novo verde da natureza produzido — Nossa! — disse Arqui-
anos a menos. Não tinham irmã, Um olhar apimentado e o caso dos Andretti floreava o que pela Ebal, me senti ainda mais pró- medes, visivelmente impressiona-
e isso para eles era mais um atri- caldo Andretti engrossava. Mas os podia, não se importando de re- ximo da personagem. A rica varia- do com a beleza da revista. — Essa
buto de sua virilidade. garotos cruzavam reto e empertiga- peti-lo quantas vezes eu pedisse. ção dos matizes, nas páginas, dava eu ainda não vi. — E passou a fo-
— Andretti que se preza dos, mudos. Ele então atirava um Quando algum bestalhão mexia às folhagens de minhas brincadei- lheá-la com entusiasmo.
não bota mulher no mundo — osso para um velho desafeto, que o comigo, apartava como protetor. ras uma vivacidade insuspeitada, — Nem eu — disse Ed-
dizia o pai deles. devolvia de longe no mesmo tom Era verão, nos demoramos insólita, exótica até. Na memória mundo já pegado ao irmão.
Já a mãe, na banca do Mer- desaforado. Perto de Jonas, alguns na saída do colégio porque eu ne- e no papel. Queria parar e admirar Jonas fez o mesmo pelo ou-
cado onde vendia peixes, avisava ainda zombavam dos fugitivos. gociava com um colega a figu- melhor os quadrinhos, uma chu- tro lado, formando a malíssima
nos sábados de manhã ao estripar Arquimedes, o mais velho, rinha do Pelé, a mais valiosa do va de cores que era uma festa pa- trindade, como também eram co-
um jundiá: era o demônio, vivia de faca na cin- álbum, por três da Seleção uru- ra os olhos. Mas o primo, sempre nhecidos. Durante um minuto,
— Prendam suas cadeli- tura atrás de um motivo. Quando guaia. Essas delongas nos faziam no controle dos nossos passos, me que se arrastou feito uma lesma
nhas, porque os meus cachorri- se abria uma clareira nos bailes do avançar o meio-dia. Sabíamos empurrava pelas orelhas. ao cruzar a calçada, admiraram as
nhos estão soltos. Cassino, ele pulava no centro, apal- quando nos atrasávamos porque — Mais depressa. — Eu po- imagens. Riam num tom crescen-
Edmundo, o do meio, ven- pando o ar com a peixeira surru- o trânsito morria e não se avistava dia apenas ver as figuras. te. As expressões, que no início pa-
dia maconha por toda cidade. Fa- piada na banca da mãe. Segundo uma única alma nas calçadas. En- Andávamos nisso, quando, reciam de um interesse genuíno,
zia as entregas de cinquentinha, e, as vozes, tinha rasgado o couro de tão tínhamos que correr, para evi- na esquina anterior à Praça Ma- ganharam traços de fanfarronice.
chispando pela faixa preta, deixava um milico num Baile do Chope, e tar as amolações na chegada em triz, demos de cara com a trinca Logo a revista nas mãos deles já era
atrás uma nuvem azulada de óleo de dois rivais antigos, em brigas por casa. Às vezes o pai me fazia almo- dos Andretti. A simples visão de um joguete de puro divertimento.
queimado. Não se podia olhar sé- causa de parceiras de dança. çar sozinho, na mesa da cozinha, um deles já era perturbadora, mas — Olha a tanguinha dela!
rio para ele, que ele logo encara- Também tinha a sua sen- e isso me tirava o chão. Quando o vê-los juntos, como agora, era se- — disse Arquimedes afinando a
va: “Quer casar comigo?”. Levava tença: atraso sacrificava o almoço, o pai melhante à aparição dos bandidos voz, referindo-se possivelmente à
sempre um cabo de aço na jaque- — Não jogo nem bebo, o me esperava com o relho pendu- do velho oeste no Cine Contur- Jane, mas não era de se duvidar
ta. Matara um engraxate por es- meu vício é mulher. rado no espaldar da cadeira, e isso si. Apenas semelhante, porque no que caçoasse da tanga do herói.
trangulamento, diziam, mas isso No futebol da várzea, atrás me tirava o couro. calor do sol a pino, na luz de água — Uau! — fez Edmundo
nunca foi provado. da igreja ou no Sovaco da Cobra, Mas nessa vez, Eusébio pu- fervente desse meio-dia, o sus- no mesmo tom, como se apontasse
Seguindo o rastro do pai, se e nos bailes de Carnaval ou de De- xou da pasta um gibi especial do to veio acompanhado de uma vi- para uma imagem fora das páginas.
gabava: butantes no Caixeiral, se houvesse Tarzan. Era o primeiro núme- rada nas tripas. Instintivamente, Jonas manteve uma aten-
— Só mulher bota a mão confusão, podíamos apostar sem ro em cores do herói, com a capa diminuímos o passo, e a conver- ção aparentemente inocente pelos
em mim. erro: tinha Andretti no meio. plastificada, num papel mais gros- sa morreu. Cruzei a rua anterior quadrinhos. Mas, algum tempo
Jonas, o caçula, já aprontava — Mas o pior deles é o pai so do que as edições ordinárias. à calçada deles olhando as figuras depois, ele também já parecia ex-
na saída dos colégios. Suas vítimas — dizia Eusébio. Eusébio mostrava-se feliz e orgu- — não via nada —, procurando citado com outra coisa.
preferidas eram os filhinhos de pa- Eu voltava do colégio com o lhoso. Havia anos acompanhava controlar o tremor das mãos. Arquimedes tirou os olhos
pai com mochilas novas, roupas primo. Ele morava duas casas de- as aventuras do homem-macaco: Subimos no meio-fio e o da revista e os fixou em Eusébio:
limpas e bem passadas, os cabelos pois da nossa. No longo estirão pa- todo mês corria até a banca do Fé- Arquimedes disse: — Venham com a gente,
assentados com gomalina. ra vencer as sete quadras e mais a lix, num dos cantos da Praça Ma- – Deixa eu ver a revista. vamos lendo a revista.
JANEIRO DE 2020 | 29

Minhas tripas, que já esta- — Arqui, olha só o tama- — Não vai dar pra terminar, sionomia dele não traía nenhum serviria de consolo àquela violên-
vam viradas, se reviraram. nho do gorila — disse Jonas. nos empresta ela? sinal de emoção que não fosse cia, chocante também por sua
— M-mas nós temos que ir — É uma gorila, seu idiota Jonas sorriu com escárnio: uma expectativa irônica, e com aparente gratuidade, e toda fora
pra casa — disse Eusébio com voz — disse Edmundo. — Tu vai é vender a revista traços de sadismo, como se esti- de lugar, embora a prisão ali perto.
de suco de laranja do céu, aguado. — Como é que tu sabe? dele, seu calavera. vesse ali não apenas para segurar o Caminhamos mais meia
— Ainda não almoçamos. A pequena discórdia me deu — Não te mete! — ralhou gibi. Sua satisfação parecia apoia- quadra, nossos passos já próxi-
— Não demora — disse Ar- a esperança de que uma briga en- Edmundo. da em outro ponto. mos do normal, quando Eusébio
quimedes. — É só uma voltinha tre eles provocasse um tom de ini- A voz de Eusébio perdeu Quando finalmente viraram disse num tom abafado de triste-
no quarteirão, o tempo de ver a re- bição ou seriedade favorável a nós. força outra vez: a última página, Eusébio disse: za e raiva:
vista. — E se dirigiu para a calçada Os desacordos aumentaram, cada — Mas eu ainda não li. — É aí que o pai de vocês... — O pai deles matou um
que juntava com a nossa e levava um prevendo sequências diferen- — Não enrola — disse Ed- ele ainda tá preso? homem.
para os confins da cidade. tes para os episódios. No clímax mundo. — A gente viu que vocês Arquimedes era alto, tinha Ao alcançarmos a praça, o
Edmundo e Jonas foram das divergências, quando Arqui- vinham lendo. um rosto quadrado e a mão pare- episódio ainda girava na minha
atrás. Se quiséssemos recuperar medes folheou com brusquidão Eu me arrisquei, mas a voz cia uma raquete de pingue-pon- cabeça. Que pessoas afinal eram
o gibi, não nos sobrava alternati- uma página, Edmundo reagiu, saiu mais da garganta que do peito: gue. Ele a fechou num instante, essas, eles e nós, tão distantes do
va senão ir com eles. Eu evitava agressivo: — A gente tava só olhando me entregou o gibi, agarrou Eu- homem-macaco? Uns pela falta,
olhar o primo. Ele já havia to- — Ainda não li o último ba- as figuras. sébio pela gola da camisa e levou outros pelo excesso. Sua imagem,
mado o meu partido em outras lão, volta atrás! Depois de um silêncio mas- o outro braço para trás, como se por um momento, cobriu a luz
ocasiões; agora, segurando a pas- — É um tartamudo — dis- cado a chiclete, Arquimedes disse: puxasse a corda de um motor po- do sol; tão espessa que me cegou.
ta contra a cintura, ia calado. Eu se Jonas num tom de desforra. — Não te preocupa, devol- tente que já fosse roncar. A seguir, Eusébio, de repente, como que se
também. Lembrei o livro do Pi- Edmundo, já que seu irmão vo amanhã, na esquina. impulsionou o punho para frente, dando conta de que não tinham
nóquio, o trecho em que o meni- mais velho não cedia, tentou ele Diante da possibilidade de rápido e certeiro. O golpe explo- roubado a pedra mais preciosa de
no de pau se desvia do caminho, mesmo voltar a página, mas co- encontrá-los outra vez, o medo de diu no plexo solar do primo, que sua coleção, parou um instante e
contra as recomendações do velho mo Arquimedes segurava firme a perder o gibi se dissipou. Era um se dobrou sobre si mesmo. guardou o Tarzan na pasta, entre
Gepeto, para seguir os homens do revista, rasgaram a folha. tipo de pacto que eu nem Eusébio Arquimedes disse alguma os livros do colégio. Eu, instintivo,
circo. Aqui, ao contrário, não era Arquimedes empurrou Ed- gostaríamos de fazer. coisa, Jonas ainda cuspiu em Eu- me inclinei para o lado e arran-
uma escolha sob a sedução de mundo contra o muro de uma das Já bem próximos da ou- sébio. Em seguida, soltando gra- quei a corola de um hibisco ro-
moedas de ouro ou de um futuro casas, já bem próximos da esquina: tra esquina, mas ainda no meio cinhas, atravessaram a rua na sa, prendi-a entre os lábios e fui
brilhante no picadeiro. Era uma — Olha aí, seu imbecil! — do inferno, Eusébio extraiu das direção do presídio. em silêncio, com o olhar no arco
frágil resistência, mais certo uma E virando o rosto para o ombro, próprias veias um dedal de san- O primo, com o veneno do monumento central da praça,
aderência, para não ceder de todo falou na direção de Eusébio: — gue frio: queimando no estômago, abria e sentindo na língua o néctar amar-
a pedra preciosa. Ó, não fui eu que rasguei, foi es- — Amanhã a gente se vê, aí fechava a boca em falso, repetidas go do meio-dia.
Eles na frente, nós imedia- se analfabeto. vocês terminam de ler. vezes, feito um pardal sedento em
tamente atrás, seguíamos para o Eusébio, a voz mais forte Ao chegarmos na esquina, convulsões de morte. Ainda en-
arrabalde de São Donato. Os An- que da outra vez, pediu cuidado, Arquimedes propôs: curvado, o rosto tinto de sangue,
dretti moravam para além da pri- era o primeiro número da nova — Então vocês esperam, abraçado à própria barriga, lutava
são da cidade, onde o pai deles coleção, e tinha sido caro. enquanto a gente olha. com o mundo — por um gole de
mofava já havia alguns anos. O Edmundo se desculpou, De costas para a calçada da ar. Ele ficou assim, de costas pa-
forte calor do sol era outro mo- mas Jonas zombou de sua preo- prisão, os três realinharam-se lado ra o presídio por longos segundos,
tivo de sufocação, minha cami- cupação: a lado para seguirem as imagens. sem outra reação que digerir o gol-
sa, já ensopada de suor nas axilas, — É o dinheirinho do pa- De tempos em tempos, Arqui- pe, com ganidos secos e abafados.
grudava nas costas. Era a rua de pai, é? medes perguntava se podia vi- Quando se viu em condi-
nossos bisavós, tive a esperança de Em seguida dobramos a es- rar a página, e assim que recebia ções — os olhos pequenos e mo-
que um deles aparecesse na janela. quina à direita, naquele enorme ‘n’ a anuência dos outros, imprimia lhados —, pegou de mim o gibi e
Fantasiei uma corrida até lá, de- que parecia não ter fim. Com al- um gesto ríspido como se fos- a pasta — eu a recolhera do chão
pois de arrancar o gibi das mãos gum alívio, notei a prisão banha- se arrancar a folha. Demoravam- enquanto ele lutava pelo ar — e
de Arquimedes numa valentia ci- da de amarelo-ferrugem na outra -se tanto que eu podia imaginar o tomou o rumo da Matriz para MARCELO DEGRAZIA
nematográfica. Mas os avós, assim esquina, mais cem metros e tudo atraso de minha chegada em casa. concluirmos o ‘n’. Em silêncio, re-
Nasceu em Itaqui (RS). É autor do livro de
como os vizinhos e os cães das ca- estaria resolvido. Por suas expressões, apostava que tomamos o caminho de casa, no contos A bandeira de Cuba, vencedor
sas, não apareciam. A rua, a cada Alguns passos adiante, Ar- somente Jonas e Edmundo liam sentido contrário ao de Arquime- do Prêmio Paraná de Literatura (2017) em
passo, mais deserta e abafada. quimedes levantou os olhos dos o gibi. Arquimedes parecia ter o des e seus irmãos. sua categoria. Em nome do Pai integra
uma segunda leva de histórias também
De vez em quando, um deles quadrinhos para o vazio à sua olhar suspenso entre as figuras e a Eu não conseguia dizer na- ambientadas na fictícia São Donato.
disparava uma interjeição aguda. frente: ponta de seu próprio nariz. A fi- da. Não sabia que palavra ou gesto Reside em Nova Petrópolis (RS).

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30 | JANEIRO DE 2020

DEREK A lighthouse in Maine Um farol no Maine

MAHON
Edward Hopper Edward Hopper

It might be anywhere, that ivory tower Poderia estar em qualquer lugar, aquela torre de marfim
reached by a country road. Granite and sky, à qual se chega por uma pequena estrada. Granito e céu,
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert it faces every which way with an air ela olha para todos os lados com um ar
of squat omniscience, intensely mild, de espessa onisciência, intensamente terna,
a polished Buddha figure warm and dry figura polida de um Buda quente e seco
beyond vegetation; and the sunny glare escondida no mato; e o brilho do sol
striking its shingled houses is no more batendo nos telhados de suas casas não é mais
celestial than the haze of the world. celestial do que neblina do mundo.
Kinsale
Built to shed light but also hoarding light, Feito para emitir luz e também para armazenar luz,
The kind of rain we knew is a thing of the past — it sits there dozing in the afternoon ele fica lá, sonolento, à tarde,
deep-delving, dark, deliberate you would say, above the ocean like a ghostly moon sobre o oceano, como uma lua fantasmagórica,
browsing on spire and bogland; but today patiently waiting to illuminate. esperando pacientemente para iluminar.
our sky-blue slates are steaming in the sun, You make a left beyond the town, a right, Vire à esquerda depois da vila, à direita,
our yachts tinkling and dancing in the bay you turn a corner and there, ivory-white, dobre a esquina e então, branco-marfim,
like racehorses. We contemplate at last it shines in modest glory above a bay. ele brilha, em sua recatada glória, sobre a baía.
shining windows, a future forbidden to no one. Out you get and walk the rest of the way. Dali você sai e anda pelo resto do caminho.

Kinsale

O tipo de chuva que conhecíamos é coisa do passado —


profunda, sombria, você diria até mesmo deliberada, NOTAS The chinese restaurant in Portrush
a navegar por picos e pântanos; mas, hoje, 1. Mayo é um condado no noroeste da Irlanda.
nossas ardósias cor de azul-celeste fervem ao sol, 2. Pequena cidade costeira no extremo norte Before the first visitor comes the spring
nossos veleiros tilintam e dançam na baía da Irlanda. softening the sharp air of the coast
como cavalos de corrida. Contemplamos, até que enfim, 3. O wolfhound irlandês é uma raça de cães de in time for the first seasonal ‘invasion’.
janelas a reluzir, um futuro a ninguém vedado. grande porte. É quase inexistente no Brasil. Today the place is as it might have been,
gentle and almost hospitable. A girl
strides past the Northern Counties Hotel,
light-footed, swinging a book bag,
and the doors that were shut all winter
Everything is going to be all right Tudo vai dar certo against the north wind and the sea mist
lie open to the street, where one
How should I not be glad to contemplate Como eu poderia não ficar feliz ao contemplar by one the gulls go window-shopping
the clouds clearing beyond the dormer window as nuvens se dissipando além da janela do sótão, and an old wolfhound dozes in the sun.
and a high tide reflected on the ceiling? e a maré alta refletida no forro?
There will be dying, there will be dying, Haverá mortes, haverá mortes, While I sit with my paper and prawn chow mein
but there is no need to go into that. mas não precisamos falar disso agora. under a framed photograph of Hong Kong
The lines flow from the hand unbidden As linhas fluem espontaneamente da mão, the proprietor of the Chinese restaurant
and the hidden source is the watchful heart; a fonte oculta é o coração vigilante; stands at the door as if the world were young,
the sun rises in spite of everything o sol nasce, apesar de tudo, watching the first yacht hoist a sail
and the far cities are beautiful and bright. e as cidades ao longe são belas e brilham. — an ideogram on sea cloud — and the light
I lie here in a riot of sunlight Eu aqui deitado, nesse tumulto ensolarado of heaven upon the hills of Donegal;
watching the day break and the clouds flying. A observar a aurora e as nuvens que voam. and whistles a little tune, dreaming of home.
Everything is going to be all right. Tudo vai dar certo.
O restaurante chinês em Portrush2

Antes do primeiro visitante chega a primavera


suavizando o ar cortante da costa,
The Mayo Tao O Tao de Mayo1 em tempo para a primeira “invasão” da temporada.
Hoje o lugar está como provavelmente já foi,
I have abandoned the dream kitchens for a low fire Abandonei as cozinhas dos sonhos pelo fogo baixo digno e quase hospitaleiro. Uma garota
and a prescriptive literature of the spirit; e uma literatura impositiva do espírito; passa caminhando diante do hotel North Counties,
a storm snores on the desolate sea. a tempestade ronca no mar desolado. ligeira, balançando a sacola com livros,
The nearest shop is four miles away. A loja mais próxima está a quatro milhas daqui. e as portas, que estiveram fechadas por todo o inverno
When I walk there through the shambles Quando eu caminho através da algazarra protegendo-se do vento do norte e da névoa do mar
of the morning for tea and firelighters da manhã, em busca de chá e acendedor de lenha agora abrem-se para a rua, onde, uma
the mountain paces me in a snow-lot silence. a montanha me segue com o silêncio da neve. por uma, as gaivotas inspecionam as vitrines
My days are spent in conversation Meus dias são vividos em conversas e um velho wolfhound3 cochila ao sol.
with deer and blackbirds; com veados e melros;
at night fox and badger gather at my door. à noite, raposas e texugos se reúnem na minha porta. Eu, sentado com meu jornal e meu camarão chow mein,
I have stood for hours Fiquei por um bom tempo sob uma foto emoldurada de Hong Kong,
watching a trout doze in the tea-gold dark, olhando uma truta a dormitar no escuro dourado, enquanto o proprietário do restaurante chinês
for months listening to the sob story por meses ouvindo a história triste permanece na entrada, como se o mundo fosse leve,
of a stone in the road — the best, de uma pedra no caminho — a melhor, observando o primeiro iate içar as velas
most monotonous sob story I have ever heard. mais monótona história triste que jamais ouvi. — um ideograma nas nuvens acima do mar — e a luz
do firmamento sobre as colinas de Donegal;
I am an expert on frost crystals Virei especialista em cristais de neve ele assobia uma canção, sonhando com seu lar.
and the silence of crickets, a confidant e no silêncio dos grilos, um confidente
of the stinking shore, the stars in the mud — do cheiro forte da costa, das estrelas no lodo —
there is an immanence in these things há uma imanência nessas coisas
which drives me, despite my scepticism, que me leva, a despeito de meu ceticismo,
almost to the point of speech, quase ao ponto do discurso,
like sunlight cleaving the lake mist at morning como a luz do sol penetrando a neblina do lado de manhã
or when tepid water ou quando a água, tépida
runs cold at last from the tap. sai finalmente fria da torneira.
DEREK MAHON
I have been working for years Tenho trabalhado por anos Nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1941. É um dos principais nomes da
on a four-line poem num poema de quatro linhas atual poesia irlandesa. Conhecido por um lirismo contido, quase seco, e por
versos equilibrados, com frequência metrificados e rimados. Outra marca de
about the life of a leaf; sobre a vida de uma folha; Mahon são suas reinterpretações, em poesia, de pinturas (como em Um farol
I think it might come out this winter. talvez o termine neste inverno. no Maine, baseado numa tela de Edward Hopper, incluído nesta seleção).
JANEIRO DE 2020 | 31

poesia brasileira PATRÍCIA GALELLI


EDIÇÃO: MARIANA IANELLI banho de ruína

I.
vento entre o latido dos ouvidos,
os pelos na ponta da escuta —
o cão não morde os mentidos.
a carne como se dela despregasse alívio químico, crua, estrias regressivas
— saudade do corpo esganiçado do país que ainda não conhecia as ninha-
das de barranco em solavanco de precipícios, as facas de escutar, as raspas
de esperar
MAURICIO VIEIRA : vento entre os grunhidos de tímpanos, atestado advertido, tempo histó-
rico num altar — tempo histórico emperrado, o tempo debaixo do cas-
co dos asnos.
Sidarta Agostinho Newton
O que uma árvore não faz? II.
ácido enfaixado de miss brazil
polui num riso cinza os montículos de dias
Campos de Pierre Rabhi do cadafalso, nem que a coincidência exata na noite de fim de mata
: acaso objetivo do fogo.
Pierre, o campo está cansado : lama tóxica — vale ao demente mais do que gente.
Respira com dificuldade : óleo no estômago dos peixes.
Como quem empurra uma pedra colina acima foi-se com o boi e as cordas a prótese auditiva
: a escuta pantanosa habita o músculo da ruína.
Pierre, no meio da traqueia a pedra estancou
Não sai com a enxada, tampouco com o trator III.
Ela agora é um morro ácido gasoso se espalha nas fronteiras,
às margens do entre-lugar da américa latina,
Logo na garganta o grito teimoso ácido que faz nascer a virulência — a violência avermelhada que é ver uma
Rompendo as cordas empacou mulher descalça, uma mulher com os cabelos cortados à força por homens
: cena empedrada na anestesia do léxico — não sou um animal selvagem
Pierre, o campo está em farrapos na vitrine, é meu latido o bicho empalhado na garganta,
Na camisa de força de glifosato fosso queimado da palavra que não diz.
O espantalho enlouqueceu Pierre
Está desempregado IV.
água de ruína faz mal
A prima Vera se atrasou, Pierre, passou para a pele, mal
Estações inteiras com o polegar para cima para o cabelo, mal
Mas ninguém lhe deu ouvidos nem carona para as unhas, mal
Então perdeu o trem, e a pé, cansou para seguir os dias, mal
Agora é só polegar pra baixo para o banho de ruína que eu tomo, uivando,
calcário de saliva, palavra cimentada na boca
Ontem um deserto bateu o recorde com máxima de sessenta graus : o país e os vizinhos na boca de um sapo-vulcão,
Superado hoje por um outro ostentando estátuas de sal o mal
é um hábito coletivo mais do que a morte, a ruína PATRÍCIA GALELLI
Polegar para baixo para o campo para nós : o farelo nebuloso que sai de um ouvido que late.
É escritora, artista-
(O campo somos nós) pesquisadora e jornalista.
V. Publicou Carne falsa (2013),
A natureza odeia a plantação a ruína tem cacos de memória, farelos de verdade, blocos de tijolos despe- Cabeça de José (2014; Prêmio
Elisabete Anderle de Incentivo
Ela aguarda para ter mando de campo daçados da justiça que não foi. à Cultura da Fundação
Que penetramos com nosso alterado grão a ruína é a casa continuada do grunhido vindo do tímpano-precipício. Catarinense de Cultura), o
A semente, código genético com cadeado, banho de ruína, política pública na era dos esquecimentos — livro de artista Um bicho que
(2015/2016) e participou do
Algoritmo fadado a dar errado saúde preventiva, terapia, raspa a pele, enruga a carne. selo Formas Breves com
: traz à tona entre os destroços os documentos da barbárie. Gávea (2014).
Reflete o que somos o campo árido
Com o próprio pão ingratos
Se antigamente havia o culto
Um ritual de agradecimento
Hoje em dia há o glifosato
ANNA Impiedoso,
Em alquimia com o sol transformava em fruto APOLINÁRIO dissolve os relógios.
Extrai hoje a raiz do solo exausto que seiva bruta Inesperada fera,
No floema dos galhos secos já nada se mistura enfeitiça a memória.

Midas transmuta em pedra o vegetal Talismã Espanta o apocalipse,


Crescerá devastando impérios seu amor mineral acende três palavras mágicas
Aceleradamente Nas mãos de um anjo nas entranhas da eternidade.
Feito a pedra que rola morro abaixo o mineral mistério
onde o desejo se enraíza Sob os cílios insinua-se,
Agora podemos Pierre agora o grito sai e diabólico, floresce indecifrável.
Quando sobre nós a pedra rola cruel e escura ferida
Sobre o campo estanca no coração de Deus.
Códex
Aqui jaz o campo
A natureza passa R.E.M. Uma canção toma de assalto a minha boca
Seu amor vegetal irá aumentar e estilhaça a paz que não queremos. ANNA APOLINÁRIO
Mais vasto que impérios e mais devagar Dentro dos livros, Dentro da casa que erguemos,
Nasceu em João Pessoa (PB)
interminável, vive. não há mordaça que baste: em 1986. Poeta, pedagoga,
o sonho cresce selvagem no sangue. organizadora do Sarau
Entre os lírios da língua, selváticas, de autoria feminina.
MAURICIO VIEIRA Autora de Solfejo de Eros
alucinante, flutua. Um verso acende molotovs na língua, (2010), Mistrais (2014) e
Nasceu em Santo André (SP), em 1978. Autor de verve virulenta inventa a rebelião. Magmáticas medusas (2018).
Árvoressencias e Manual onírico de jardinagem No precipício das pupilas Um gatilho para o tumulto, Participou da antologia Sob
(poesia), A árvore oca (romance), e La lyre africaine a pele da língua: Breviário
(teatro). Organiza o ciclo internacional de leituras A atreve-se, entre corpos pacatos e obedientes, poético brasileiro (2019), org.
descoberta do outro. Edita arvoressencias.com em insanas acrobacias. um acorde eriça a revolução. Floriano Martins.

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