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EDITORIAL

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este mês, iniciamos o vigésimo aniversário de fundação da APPOA.
Reconhecemos os efeitos deste ato ao longo de uma trajetória e
nos surpreendemos ao nos depararmos com sua vigência e trans-
missão em momentos e lugares inesperados. Como devem ser as forma-
ções do inconsciente, as quais procuramos dar lugar e reconhecer o impos-
sível que as organiza.
A aposta numa instituição que trabalhasse fortemente a circulação
transferencial e a íntima articulação com a Polis, sem perder o rigor neces-
sário, pode ser medida pelo lugar que a Associação constituiu nestes anos e
pela responsabilidade que cada membro se sente imbuído, ao referir-se a
sua filiação institucional e aos laços que estabeleceu com a comunidade.
Ética com uma análise e com a história da psicanálise. Travessia em aberto,
como não poderia deixar de ser.
Abertura para novas perguntas que possibilitam revisar os conceitos
de uma prática. Por isto, este ano retornamos aos fundamentos, as interro-
gações sobre Neuroses e Psicoses. Sem buscar uma palavra final, mas
deixando-nos trabalhar pelas contribuições que vem da clínica e do discurso
do Outro. Adiantando um pouco algumas de nossas atividades previstas:
nossa Jornada de Abertura será sobre o tema do Ciúme. Relendo Freud e
conversando sobre a APPOA retomará o texto sobre Schreber. Estaremos
lendo, ao longo do ano, o Seminário 3, de Lacan, As psicoses. Nosso Qua-
dro de Ensino mostra uma diversidade e riqueza temática que marca um
estilo. Sem falar no Congresso da Convergência que acontece em maio, na
Argentina e mesmo nas diversas atividades articuladas com outras institui-
ções.
Este início de ano também está marcado pela renovação da Mesa
Diretiva, onde uma nova gestão estará encarregada de conduzir a APPOA
nos próximos dois anos.
Não é por acaso que esta edição do Correio está dedicada à escrita
da experiência, com contribuições de membros e interlocutores convidados.
Pois é com a escrita que podemos pensar o que se inscreve, com o que foi
dito, ao longo de uma trajetória.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 1


SEÇÃO TEMÁTICA RODRIGUES, M. ...Et al. Palavras-iscas.

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oderíamos pensar que quando o tema de trabalho é a escrita, os PALAVRAS-ISCAS
psicanalistas nem sempre se sentem à vontade. Afinal, não foi sobre
ela que Freud fundou sua disciplina, mas antes sobre o que poderia Marieta Madeira Rodrigues
ser tomado como um anátema: a fala. Tal distinção, abordada por vezes Paulo Gleich1
como uma oposição, já fez correr bastante tinta e, porque não acrescentar, Simone Moschen Rickes
bastante saliva também, associando-se a humores variados – desde brigas
entre posições empedernidas e que marcaram época (lembramos aqui espe- “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
cialmente a querela entre Derrida e Lacan), até paixões amorosas e promes- pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha –
sas de casamento eterno (nos enlaces entre Freud e a literatura, sobretudo). morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha,
De um tempo para cá, no entanto, a inclusão do significante “escrita” poder-se-ia com alívio, jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-
no vocabulário psicanalítico tem demonstrado sua relevância e fecundidade, palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever
abrindo um amplo leque de questões a serem trabalhadas. Também por isso, distraidamente”. (Clarice Lispector – Água Viva)
esse número do correio da APPOA e o de março serão ambos dedicados a

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questões concernentes a essa temática. enina-bonita-do-laço-de-fita escreve, escreve, escreve. Escreve so
“Escritas da experiência” é o título de uma rede de pesquisa, coorde- bre suas experiências como usuária da rede de saúde mental.
nado por Ana Costa. Herança do seminário Passagens, lugar de trânsito Escreve sobre medicações e internações. Escreve sobre as pes-
entre os litorais da psicanálise, e que permitiu a constituição de um espaço soas que a cercam. Escreve suas fantasias. Não tem dificuldade alguma
aberto para o pensamento – uma u-topia, como diria Edson de Sousa, um de para escrever: seu texto é fluido, quase derramado no papel. O que lhe custa
nossos inspiradores nesse trabalho1. O topos em causa é o da experiência é terminar o escrito. Parece que só para de escrever por alguma razão exter-
que nos concerne como analistas: lugar de encontro com o outro/Outro, no na a ela: a hora de ir embora, o fim do caderno. Não conclui. Compartilha
qual convocamos o sujeito a advir. Que isso possa se dar na escuta da esse traço do interminável com os que escrevem com ela. Até o dia em que
transferência não apenas no consultório, mas em espaços tidos como não uma isca caiu sobre ela, ou melhor, sobre seu caderno... Mas antes de
usuais para o exercício da práxis analítica, é o que podemos acompanhar prosseguir com sua história, façamos uma curta viagem ao território onde ela
nos textos que aqui se encontram; fieis à letra freudiana na aposta de que o se inscreve.
inconsciente se dá a ler aonde houver um analista disposto a cifrá-lo e decifrá- É ao redor de uma grande mesa, numa sala localizada na labiríntica
lo. construção centenária que caracteriza o Hospital Psiquiátrico São Pedro,
em Porto Alegre, que se reúnem, semanalmente, os participantes da Oficina
Maria Cristina Poli e Simone Rickes de Escrita. Esses sujeitos, oriundos de unidades do Hospital ou de territóri-
os localizados fora de seus muros, sejam eles loucos ou não, compartilham,

1
O Seminário Passagens, hoje transformado em núcleo Passagens – sujeito e cultura, foi
1
por muitos anos coordenado por Ana Costa, Edson de Sousa e Lucia Pereira. Estudande de Psicologia da UFRGS e aluno do percurso de Escola da APPOA.

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naquele espaço, um laço comum a todos: as letras. Lá, são convidados a mais encontrado. Algumas semanas depois do sumiço do Saco – e da con-
deixar suas marcas sobre o papel, a produzir um registro possível, um traço fecção de um novo –, ao buscar o caderno de um dos escreventes, eis que
singular que diga algo de sua subjetividade. A escrita produzida neste territó- nos deparamos com o velho Saco, que estava escondido, espremido entre
rio, assim como seus habitantes, é plural. Não está em jogo, ali, a produção cadernos do arquivo da Oficina! Resolvemos, então, juntar suas palavras às
literária socialmente valorizada – embora isso não esteja excluído do hori- do novo. Na operação de transpor as palavras do Saco antigo para sua nova
zonte do trabalho –, mas sim a possibilidade de inscrever alguma marca morada, o Oficineiro deixou cair, sem querer, sobre o caderno da Menina-
singular que possa ser testemunhada pelos colegas, cujas impressões, ao bonita-do-laço-de-fita, uma palavra: “minha história”! Menina-bonita-do-laço-
retornarem a quem escreve, demandam que o autor suporte os efeitos de de-fita ficou tão contente em encontrar-se com aquela palavra-isca que pronta-
seu escrito no outro. mente pediu cola para fixá-la em seu caderno: a palavra agora era sua. Na-
quele momento podia dispor não só das palavras que lhe vinham à cabeça
“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra (que não eram poucas), mas também dessa “minha história” que o Oficineiro
pescando o que não é palavra”. deixara cair quando mudava as palavras de um Saco para outro. Escreveu e
escreveu – entre folha e papel, cola e tesoura, palavra e isca – uma história,
Para que o trabalho se desenrole, os oficineiros se valem de vários sua. Até que a história... acabou! Ali registrou um fim, uma interrupção no
dispositivos, que funcionam como iscas para que algo venha a se produ- interminável, um alívio.
zir: essas iscas podem ser um texto, uma música, uma visita a um lo- Foi a partir da ausência do Saco de Palavras que pudemos aperceber-
cal, uma conversa... O Saco de Palavras, criado coletivamente em um nos de seu lugar na Oficina. No encontro em que demos com sua perda, logo
dia em que a inspiração resistia a visitar a Oficina, constitui-se num decidimos fazer um novo Saco, mas não sem antes escrever um texto sobre
pequeno “reservatório” de iscas. Para compô-lo, recortaram-se palavras o “sumiço” do Saco de Palavras. Dentre os escritos que brotaram, destaca-
e frases de revistas que, a partir de então, passaram a morar no Saco, à ram-se as palavras do Bardo, oficinante-cantor, que surpreendeu-nos ao falar
espera de que alguém as retirasse para inspirar seu trabalho. Ora cada de sua relação com o Saco: “O Saco é importante para nós e será sempre
um retira uma palavra e escreve algo a partir dela; ora um participante importante, porque através do Saco de Palavras tinha muito a nos ajudar no
escolhe uma palavra para que outro possa com ela se inspirar; ora inven- desempenho da oficina. Parece brincadeira, mas o Saco de Palavras é para
ta-se um jogo com as palavras do Saco, para então desdobrá-las nos mim um saco de respostas para a minha memória e para meus amigos
escritos. motivo de diversão e razão”.
Freud, em um de seus derradeiros textos – “Construções em análise”,
“Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coi- de 1937 –, se põe a pensar sobre esse modo de proceder do analista que,
sa se escreveu”. diante de um fragmento de história primitiva “esquecido” pelo paciente, oferta
algo, uma palavra, para que ele possa transpor o abismo e seguir no trabalho
Em um dos encontros, a notícia de que o armário no qual são guarda- da associação livre. Para Freud, a “construção constitui apenas um trabalho
dos os materiais de trabalho havia sido saqueado recebeu os participantes preliminar” (p. 294), um trabalho que deve desaguar na recuperação da con-
da Oficina; tinha-se reavido o material, mas o Saco de Palavras não fora dição de recordar por parte do paciente. “O caminho que parte da construção

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do analista deve terminar na recordação do paciente...” (p.300). Desta feita, de volta a palavra rejeitada pelo Poeta, os oficineiros-analistas, inspirados
um saco de respostas para a memória pode ser um reservatório importante por Freud, aceitam seu gesto, deixando ao curso do trabalho os desdobra-
de palavras-iscas para construções. Nele se encontram as tábuas e os pre- mentos que possam vir a acontecer.
gos capazes de construir a ponte para uma travessia diante do abismo aber-
to pela ausência das palavras. Nele se encontra a isca que permite pescar o “Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a”.
fio da meada e retomar a infinita tessitura da rede de palavras que nos abriga
diante dos impasses da vida. Um Saco de Palavras que inspira escreventes ímpares, como o
oficinante-cantor que não se furta a homenagear seus colegas, entre eles o
“Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a personagem Saco de Palavras. Um Saco-personagem que permite a um
palavra fora”. Poeta pescar palavra para devolvê-la, dispensá-la. Uma palavra que cai do
Saco e encontra guarida nas recordações e nas letras da Menina-bonita-do-
Mas nem toda palavra que emerge desse reservatório fisga uma laço-de-fita. Acasos, acolhidas. Da acolhida do acaso, acabamos por nos
memória. Assim como “só o curso ulterior da análise nos capacita a deci- tornar “doutores” neste trabalho em oficina, pois dela depende a abertura
dir se nossas construções são corretas ou inúteis” (p.300), só o transcur- necessária aos desdobramentos demandados pela complexidade dos obje-
so dos encontros decide sobre a operatividade de uma palavra pescada do tos psíquicos, “incomparavelmente mais complicados do que os objetos
“saco de respostas”. Freud nos diz que aquilo que decide sobre a pertinência materiais do escavador, e [sobre o qual] possuímos um conhecimento insu-
ou não de uma construção não está na aquiescência ou recusa do ficiente do que podemos esperar encontrar, de uma vez que sua estrutura
analisante, e sim no trabalho que ela inaugura ou na indiferença que dela refinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa” (p.294). Misteriosas
decorre. Em outro encontro, durante nova rodada de “pesca” de palavras também são as palavras que o Saco nos oferece, quando delas nos vale-
do Saco, o Poeta fisgou a palavra “ladrões”. Olhou-a, pensou um pouco e, mos, assim como o são os desdobramentos que elas produzem em quem
com uma expressão de estranheza, devolveu-a ao Saco, para então dele as recebe e os efeitos que são colhidos quando os escritos por elas inspira-
retirar outra. Àquela palavra-construção, o Poeta, com seu gesto, disse dos são compartilhados. Nesse terceiro tempo – do compartilhamento – não
um rotundo “não”. Freud, ao problematizar a negativa de um analisando raro uma palavra, lida ou escutada distraidamente, se oferece a alguém como
ante uma construção, afirma que freqüentemente se trata de uma “resis- isca, trazendo mais palavras à tona e, assim, alimentando as redes de pala-
tência que pode ter sido evocada pelo tema geral da construção que lhe foi vras, memórias e construções que vão se tecendo em torno da mesa que
apresentada, mas que, de modo igualmente fácil, pode ter surgido de al- reúne os escritores da Oficina. E não raro já não sabemos bem qual a pala-
gum outro fator da complexa situação analítica” (p.297). Não nos é possí- vra-isca-origem que fez começar a tessitura da rede, pois no compartilhamento
vel, portanto – senão no a posteriori – situar o porquê da recusa do Poeta: as palavras transitam fácil de boca em boca, de caderno em caderno, adqui-
talvez algum peixe-memória tenha mordido aquela isca, mas o pescador rindo múltiplas ressonâncias.
não estava preparado para içá-lo; talvez a presença dos oficinandos-ouvin- Compartilhar as construções parece ser o que ampara o movimento
tes, que receberiam suas palavras, o tenha inibido a discorrer sobre o da escrita na Oficina. Cada escrito, com suas particularidades, encontra
assunto... São inúmeras as possibilidades. Assim como o Saco recebe guarida nos cadernos de cada um e no olhar e na escuta de oficinantes e

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SEÇÃO TEMÁTICA RIECK, M. B. Restos discursivos.

oficineiros, mesmo que não sejam bem compreendidos, mesmo que não RESTOS DISCURSIVOS
tenham rima, mesmo que não tenham razão aparente. Como nos diz Freud:
“...os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das constru- Maíra Brum Rieck
ções que erguemos no curso de um tratamento psicanalítico – tentativas de

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explicação e de cura...” (p. 303). A marca deixada no papel, no caderno de unca houve um tempo em que se pensa no presente sobre o mundo
cada um, é uma tentativa de inscrição que se registra, e que retorna aos vivido. Pilhas de livros e artigos sobre o início da modernidade e
oficinantes a partir do compartilhamento. Sejam quais forem as formas com seus efeitos que perduram até hoje; o fim do patriarcado e as novas
que se dá essa tentativa de inscrição – formas que variam desde poesias a configurações familiares, a criação do self-made man e sua incapacidade de
músicas, passando por ensaios e escritos autobiográficos até garatujas ou criação de passado ou futuro; fim das castas e demarcações definidas; ilu-
repetições de números –, é no compartilhamento entre pares-escritores, nos são de criação do nome próprio. Parecemos saber tudo o que há para saber
efeitos da acolhida desses escritos, que se dá a possibilidade de encontrar sobre o tempo em que vivemos e, ao mesmo tempo, parecemos cada vez
um lugar outro para aquilo que, para todos os sujeitos, não cessa de não se mais distantes de “sair” do mundo para “entrar” nele. Fazer parte do mundo
escrever. enquanto sujeito, sujeito ao mundo.
É claro que não há como parar de pensar nisso se quisermos enten-
“O que salva então é escrever distraidamente”. der de onde falamos. Talvez seja apenas uma questão de cegueira daquele
que fala em seu tempo e não pode ver o que só no futuro poderá ser visto,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: mas o que chama atenção é o fato de que os discursos se repetem muito, e
pouca coisa se modifica. Escreve-se muito, lê-se muito pouco e o que se lê
FREUD, S. “Construções em análise” (1937). In: Obras Completas. Rio de Janei- é uma repetição de tudo o que foi dito. Na tentativa de produzir algo novo,
ro, Imago, 1980. v. 23.
produz-se sempre o mesmo.
LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
É claro que não há um texto final ou um texto sagrado. Um texto
sempre remete a outro texto, mas a questão é saber quando uma escrita
tem valor de escrita propriamente. Quais os textos que fazem marcas na-
queles que os lêem e por quê.
Talvez hoje os escritos tenham valor de fala, fala vazia. Talvez haja
tanta repetição justamente porque a velocidade do capitalismo impede que
experienciemos a realidade a ponto de não criarmos mais nada, nem mes-
mo nós mesmos enquanto sujeitos. A questão é saber quando um texto tem
valor de ato que remete o sujeito ao sem sentido, ao impossível da alteridade,
ao desamparo – e não mais ao narcisismo, ao idêntico.
Foi na busca por restos discursivos do social que comecei a trabalhar
na Ong ALICE (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação), que

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tem por objetivo fazer circular no centro social discursos marginalizados. liares do que estrangeiras. Desejam, antes de tudo, transmitir. Transmissão
Moradores de Rua, prostitutas, velhos, presidiários, loucos, hoje, têm seus ao Outro e aos outros que se tornou possível porque a história está sendo
discursos restritos à vitimização. Discurso do politicamente correto que não publicada em capítulos na revista “Norte, cultura no sul do mundo”, lida por
cria nada. aqueles que vivem no “centro” social.
Desse projeto nasceu “Mariposa, uma Puta História”, oficina de escri- Essa transmissão as obriga a lembrar, a falar, a errar por caminhos
ta com prostitutas de Porto Alegre, coordenada por mim e pela jornalista desconhecidos de si mesmas. Caminhos estrangeiros que são sempre
Rosina Duarte. Não entendíamos por que a prostituição continua sendo, num imprevisíveis, numa constante quebra de espelho, na medida em que o que
mundo rodeado por apelos sexuais 24 horas por dia, uma profissão margina- encontram na escrita não são respostas, mas buracos. Contar histórias para
lizada, apesar de o sexual, como nos mostra Michel Foucault, ser o centro que as leiam as direciona insistentemente ao que Jacques Lacan chamou
do enigma humano há pelo menos três séculos. de impossibilidade da relação sexual, encontro impossível com a alteridade,
Claramente, o que causa desconforto não é o discurso sobre sexo falado mas um impossível que não podemos deixar de buscar para continuarmos
por essas profissionais. Livros como o de Bruna Surfistinha viraram best- sendo sujeito do desejo. No impossível como única possibilidade, a busca
sellers. Estão na moda festas de classe média em prostíbulos, onde mulheres em si mesma acaba sendo o objeto de desejo e a própria vida.
dançam “como putas” e realizam suas fantasias; cursos dados por prostitutas Transmitir a letra, o buraco, o ponto de interrogação é se deparar com
em despedidas de solteiras para “ensinar” mulheres a seduzirem seus parcei- as lacunas da narrativa. Cria, no presente, o passado com sua dívida e o
ros, serem mais femininas. Todos parecem querer saber o que as prostitutas futuro com seu eterno não-saber. Retira do futuro a possibilidade imaginária
têm a dizer, querem saber seus segredos, os enigmas do outro sexo. Mas do gozo e abre-se portas para um desejar (intransitivo) com possibilidade de
ninguém parece querer ouvi-las quando falam desde uma posição de sujeito. criação. De uma maneira que possamos transformar o mundo e não nos
Sem segredos sórdidos ou de vítima, tornam-se invisíveis e desinteressantes. adequarmos a enunciados que não dizem do sujeito em questão.
Não há o que consumir num discurso onde há alguém que fala. Walter Benjamim nos ensina que o saber e o conhecimento vêm do
O objetivo desse grupo era que pudessem mostrar a seus leitores compartilhamento da narrativa. Ao narrar, o narrador fala a alguém de sua
imaginários que o que são está para além da profissão que escolheram, está experiência e o inclui na narrativa. Aquele que escuta entra nela para perdê-
nas lacunas da escrita. Através da fala, de uma conversa informal, a narrativa la e sair transformado. Tradição compartilhada que vem de uma sabedoria
passa a ter valor de experiência. E, no compartilhamento, fala com valor de originada na experiência de vida. A transmissão é essa narrativa. É o que
escrita. Do testemunho ao testamento, deixam registradas suas histórias esse grupo de mulheres faz: transmite experiências que estavam condena-
encarnadas pela personagem Fran, a prostituta, ou Ana Maria, “como é co- das a cair no vazio da história oficial.
nhecida pelos íntimos”. Se os discursos de um tempo são amarrações que produzem forma,
A personagem e a história são um mosaico de todas elas. Ficção unidade, onde algo fica necessariamente de fora, o objetivo desse projeto é
misturada com realidade, diz de todas, mas não é nenhuma. O leitor imagi- buscar justamente esse Real do agora para poder, se não compreendê-lo,
nário é o estrangeiro, que desconhece a outra delas mesmas que não a transformá-lo continuamente, ao invés de ser vivido como trauma. Que a
prostituta. Desejam que as vejam com suas dúvidas, contradições e ambi- escrita tenha valor de ato para essas mulheres, que tenha valor propriamen-
güidades, suas dores, sonhos e alegrias. Mostrar que são muito mais fami- te de uma escrita.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: OFICINANDO ENREDOS DE PASSAGENS:


O ENCONTRO DO ADOLESCER
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:
EM SOFRIMENTO COM A TECNOLOGIA1
Edições Graal, 18 ed., 2007.
BENJAMIM, W. “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:
Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tatiane Reis Vianna
7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).

E
sse trabalho busca investigar como se deu o desdobramento de en-
redos e narrativas numa oficina de informática com jovens em atendi-
mento ambulatorial no Centro Integrado de Atenção Psicossocial
(CIAPS) do Hospital Psiquiátrico São Pedro, refletindo também sobre os
impasses e passagens subjetivas que ali se evidenciaram.
Entendemos a narrativa, a partir da leitura de diferentes autores, como
essa costura de tramas: enredos no tempo e espaço que possibilitam que a
experiência, enquanto “travessia da existência” (Larrosa, 2002), possa ser
produzida. São histórias que constituímos e nos constituem e que ensejam
ou não o desdobrar de outras. Estamos denominando como enredos esses
pequenos fragmentos de interesse em um ou outro assunto, temas que se
enlaçam no tempo e espaço com a história singular de cada um, produzindo
a trama narrativa.
O CIAPS é serviço de saúde mental que atende crianças e adolescen-
tes ambulatorialmente e em internações breves. Nesse serviço, muitas ve-
zes encontramos jovens marcados por empobrecimento de laços constitutivos,
com fragilidades de diferentes ordens nas suas estruturações subjetivas, e,
sobretudo, marcados por mandatos sociais estigmatizantes.
Consideramos a adolescência como um momento estrutural em que
as narrativas do Outro, como alteridade simbólica constituinte do sujeito,
são colocadas mais intensamente em questão. Assim, as saídas do adoles-
cimento, quando ocorrem, podem se dar em uma via de realização desses

1
Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado com esse mesmo nome, apresen-
tada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFRGS em agosto de 2008.

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mandatos. Contudo, podem também atualizar mudanças que incidam na Tratava-se da história de um gato chamado ‘Epaminondas’ e de seu dono,
condição narrativa desses sujeitos, ou seja, na posição diante da qual se ‘Gabriel’:
reconhecem em relação a essa alteridade simbólica e, decorrentemente, Era uma vez um gato muito brincalhão. Ele tinha um dono chamado
enunciam sua história e o seu destino. Gabriel. Gabriel era um menino muito exibido. Epaminondas era um gato
Assim, o desafio do trabalho com crianças e adolescentes em sofri- branco e muito fofo que adorava leite, comer peixe e correr atrás de borbole-
mento, neste contexto social e institucional, tem nos convocado a buscar tas (Vicente).
novas alternativas, como a introdução das tecnologias digitais, que possam Esse gato, segundo Anelise, era tímido.
ter alguma incidência na condição narrativa desses jovens2 . Certo dia, conta Davi, Epaminondas, o gato, tombou com outro gato,
Para isso levamos em conta o fato de que essas tecnologias tomam chamado House, que significa ‘casa’. Davi explica que esse gato tinha esse
a cena social hoje, incorporando-se ao desejo e à forma de relacionar e nome porque ficava o tempo todo dentro de casa. House, só saía de casa
operar dos coletivos, ao mesmo tempo, que disponibilizam novas oportuni- para incomodar os outros gatos. Vicente refere que House era chato e
dades de conexão, compartilhamento e representação. bobalhão e só gostava de fazer maldade para os outros. Anelise menciona
Entendemos que o modo de operar das tecnologias digitais tem o que Epaminondas ficou amigo de House.
potencial de provocar flexibilizações em fronteiras rígidas, tais como: dentro/ Davi segue a história contando que Gabriel foi para escola e deixou
fora hospital, singular/coletivo, realidade material/realidade virtual. Essas seu gato em casa. Menciona que na escola inventou de fazer uma historinha
flexibilizações, ao serem tomadas num espaço de escuta e compartilhamento, sobre o gato, baseada no futuro dos dois.
nos convidam a problematizar o que já está dado, tanto em relação às narra- Anelise acrescenta que Gabriel pensou em deixar os dois famosos.
tivas dos usuários, como àquelas que constituem os trabalhadores. Assim, Davi continua boa parte da história: Quando terminou a aula, ele foi
torna-se possível produzir novas inscrições que digam desses deslocamen- direto para casa. Quando chegou, viu a casa toda revirada. Foi logo chaman-
tos de posições, dessas passagens. do: – Epaminondas!.
Descreveremos a seguir uma história criada pelos jovens num chat e Gritou tão alto que sua mãe ouviu-lhe e disse:
publicada, posteriormente, no blog do Projeto. Esta, foi denominada por eles – Por que você está gritando, filho?
como “O menino e o Gato”. Gabriel respondeu:
Davi3 assume a liderança da construção dessa história, iniciando a – Olha só, mãe, o que Epaminondas fez.
mesma, que foi sendo complementada por Vicente e também por Anelise. E você não viu nada?
A mãe respondeu:
– Mas como eu iria ver, se eu estava dormindo?
Gabriel, muito esperto, respondeu:
2
Desde 2004, a equipe do CIAPS e a UFRGS (Pós-graduação em psicologia Social e pós-
– E você não ouviu o barulho?
graduação em Educação) vêm introduzindo as tecnologias digitais no repertório das – Quer saber!
tecnologias de saúde do serviço através de um projeto de extensão denominado “Oficinando Não.
em rede”.
3
Os nomes citados nessa narrativa são fictícios. “Foi uma bagunça!!”

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Estimulo a Vicente participar e ele me dita: recursos, a partir da tecnologia digital, tem tido como efeito uma multiplica-
– Epaminondas deixou restos de comida espalhados! Soltou pêlo nos ção dessas vias enunciativas e, decorrentemente, dos múltiplos sentidos
móveis!. que a narrativa ali produzida pode ensejar. É o que podemos analisar a partir
Gabriel ficou muito brabo com Epaminondas porque ele teve que dessa e de outras oficinas.
limpar tudo! Um dos recursos, que aparece nesse Chat e em outros, é a possibili-
Davi segue novamente a história: dade de escolher um Nick (‘apelido’ na língua dos Chats), a partir do qual os
– Mas, depois de muito tempo, eles resolveram... Quando foram para participantes se apresentam. Anelise escolhe se apresentar como Gremistinha;
o quintal, viram Epaminondas e House estragando a grama. Maria, mãe de Davi, como Clarck; Vicente, pelo seu apelido, Vi. Esse artifício dos nicks
Gabriel ficou louca e disse: possibilita que, para além dos personagens construídos na história, eles
– O que eu faço para eles pararem, filho? próprios possam se constituir como personagens, multiplicado, com isso,
Gabriel pensou e disse: suas possibilidades identificatórias e enunciativas.
– Deixa comigo, mãe. Quando eu ler a historinha que fiz sobre Em relação aos personagens criados na ficção construída (Epami-
Epaminondas, ele vai parar de bagunçar. nondas, House e Gabriel) vemos o quanto esta relação com o traço, que
Gabriel chamou Epaminondas: muitas vezes os identifica diante do Outro, está presente. Epaminondas, na
– Sente-se quieto que eu vou ler uma historinha sobre você. construção de Anelise era tímido. House, assim como Davi, gostava muito
Epaminondas sentou-se e ouviu seu dono falar. Depois de ouvir tudo de ficar em casa. House, segundo Vicente, era chato e bobalhão e só gosta-
aquilo, Epaminondas nunca mais fez bagunça em casa ou qualquer outro va de fazer maldade para os outros, discurso muito parecido com o dizer da
lugar. Sobre o que falava a história? Eu não sei. É um mistério! família de Vicente em relação a ele.
Também parece relevante, o lugar no qual é colocado o adulto da
(Blog oficinandoemrede) história: alguém que dorme e não vê nada da bagunça armada ao mesmo
tempo em que convoca o jovem à tarefa de fazer pará-la. Talvez essa passa-
A construção dessa história coloca em questão o fazer histórias, uti- gem possa estar evidenciando, por um lado, o esvaziamento das funções de
lizando-se para isso de temas surgidos nos enredos que vinham sendo fala- referência na vida de alguns, por outro, a convocação para que produzam
dos em encontros anteriores, como aqueles sobre amizade e o interesse uma saída para situações construídas nessa história através do desfecho
pelos bichos. que resolvem dar.
Se uma das características da narrativa, como mencionam Toufani e A saída de casa com os amigos como algo que “bagunça” a orga-
Moraes (2003), é a polissemia (multiplicidade de sentidos que contém) e a nização familiar, convocando a um novo ordenamento mais simbólico, lem-
polifonia (várias vozes atuando simultaneamente4 ), a utilização de alguns bra também o lugar que os semelhantes acabam ocupando na construção
desse lugar Outro na passagem adolescente. Alteridade que acaba colo-
cando em questão o lugar de origem, convocando os jovens a ter que se re-
4
situar diante da sua história e dos lugares de referência até então constitu-
Caracterizadas pelas distintas posições enunciativas do sujeito, por exemplo, enquanto
narrador, personagem, leitor, etc. ídos.

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SEÇÃO TEMÁTICA VIANNA, T. R. Oficinando enredos de passagens...

Leva-nos a pensar sobre esse momento de passagem, este trânsito Entretanto, é, sobretudo, o mistério do que está escrito que possibili-
entre campos distintos, eu/Outro, familiar/social, que o adolescer convoca. ta o desfecho da história e que aparece como nó central da trama da narra-
Tal delimitação vem a se efetivar, como lembra Costa (1998), ou através dos tiva construída. Escritura essa que, na nossa leitura, aparece como metáfora
atos ou através da produção de uma ficção que possa representar o sujeito do Outro. Essa alteridade simbólica que, pela sua antecipação, possibilita a
nesse encontro de heterogêneos, ficção que ao mesmo tempo diga desse inscrição psíquica de um sujeito, mas que só se torna possível, como nos
processo de alienação /separação do Outro. lembra Costa (1998), “no próprio ato de produzir uma ficção”.(p.62)
A viabilização de escuta e o tornar disponível diferentes suportes Talvez Davi, enquanto um dos principais escritores dessa história
objetivam possibilitar que os diferentes sujeitos possam construir-se nessas coletiva estivesse nos falando dessa convocação à escritura, tão própria do
tramas, nessa escritura. Assim, o desenrolar dessa história, atualiza-nos adolescer, como também dos impasses e desejos ali colocados.
algumas questões como: ‘Estariam eles falando, principalmente Davi, do
efeito que o criar histórias sobre o seu presente e futuro poderia ter para REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
eles?’ ‘Estariam falando sobre expectativas em relação a sua vida (Como COSTA, Ana Maria M. A Ficção de si mesmo: interpretação e ato em psicanálise.
fala Anelise – tornar-se famosa, ou como Davi – tranqüilizar-se ao se reco- Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
nhecer numa história?).’ LARROSA, Jorge. Notas sobre a Experiência e o Saber da Experiência, Revista
Brasileira de Educação n.19, jan./fev./mar./abr. 2002.
Observamos que Davi, nos momentos de busca individual nas ofici-
TOUFANI, I.V; MORAES, J. A Família Narrada por Crianças e Adolescentes de
nas, parecia bastante ocupado no resgate de histórias: a história da ONG
Rua: a ficção como suporte do desejo. Psicologia USP, São Paulo, v. 1, n. 14,
mantenedora do abrigo onde morava, como também da oficina de serigrafia
p.1-14, 2003.
que estava freqüentando, a história do fundador dessa ONG e a história do
Grêmio. Essas histórias pareciam dizer de uma busca singular de um traço
que lhe possibilitasse tramar sua filiação simbólica, busca essa que vai leva-
lo a atos como a fuga do abrigo (à procura de sua família de origem) e seu
conseqüente afastamento das oficinas no decorrer do ano.
Esse processo nos remete a pensar na função da constituição de
uma narrativa pessoal, da constituição de “uma ficção de si”, como mencio-
na Costa (1998) como “o que possibilita dar suporte ao corpo lhe possibili-
tando amparo no circuito das relações e no circuito das identidades” (p.121).
Essa ficção, sempre inconclusa e impossível de ser totalizada, é que
permite que o singular de cada um possa vir a se incluir numa ordem coleti-
va. Processo que se torna mais trabalhoso (mas não impossível) para jovens
como Davi, cuja apropriação de sua história, das marcas simbólicas que o
singularizam, está dificultada em função do abandono familiar e da
institucionalização.

18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 19
SEÇÃO TEMÁTICA GURSKI, R. Labirintos juvenis...

LABIRINTOS JUVENIS NA ATUALIDADE1 O paulista Alexandre Stokler, diretor e professor de teatro, em 2004,
com o filme “Cama de Gato”, levou para o cinema uma espécie de versão
Roselene Gurski nacional do “Laranja Mecânica”. O resultado do trabalho foi o que Calligaris
(2004), em uma de suas crônicas da Folha de São Paulo, chamou de uma

A
questão inicial para este trabalho construiu-se a partir de uma extraordinária imagem da adolescência contemporânea.
constatação: a presença cada vez mais significativa de delitos e situ- Com relação ao material da mídia, trabalhei com um acontecimento
ações de violência extrema praticados por jovens ditos de classe recente ocorrido na Barra da Tijuca, bairro típico da nova classe média alta
média e alta noticiados na mídia. Verificamos a repetição dessas situações do Rio de Janeiro. Em março de 2007, um grupo de jovens que se divertia
nas notícias de jornais e revistas, nas escolas e também na clinica; passei a pelas ruas, resolveu agredir uma trabalhadora que estava na parada do ôni-
me interrogar sobre o quê das experiências destes jovens poderia estar bus, a doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto. A justificativa foi de que
retornando sob o manto de atos bizarros. Quais poderiam ser os vetores de pensavam tratar-se de uma prostituta3 .
episódios violentos protagonizados por adolescentes que não padeciam de Além destes acontecimentos e filmes, sublinho que há um significati-
privações sociais extremas? vo material sobre o tema. Depois do lançamento de “Laranja Mecânica”, nos
Recolhi como material de discussão2, além de um grupo de notícias anos 70, parece que o fantasma da gangue de jovens delinqüentes tomou
veiculadas por jornais entre os anos de 1997 a 2007, algumas produções vulto de fato nas histórias cotidianas de nossas cidades. Passadas quase
fílmicas cujas temáticas tratavam desta problemática. É preciso dizer que o três décadas da produção do filme, vivemos no Brasil, no ano de 1997, uma
diálogo com as produções da cultura não significou em nenhum momento a situação que lembra algumas nuances da narrativa.
aceitação do teor das noticias de modo tácito, mas, sim um caminho de Refiro-me ao episódio ocorrido em Brasília, que acabou por vitimar em
excelência para pensar as problematizações do tempo de agora. pleno 21 de abril o Índio Galdino. O pataxó Galdino Jesus dos Santos estava
Embalada pela idéia de que seria mais interessante buscar os pontos na cidade para as comemorações alusivas ao dia. Ele dormia em frente a uma
cegos dos atos juvenis que vem nos interpelando do que chegar a uma redu- parada de ônibus quando cinco rapazes, todos oriundos de famílias de classe
ção totalitária do “mal” que aflige os jovens de classe média (Adorno, 2003), média e alta de Brasília4 , passando por lá, tiveram a idéia de queimá-lo.
escolhi o ensaio como inspiração de escrita. O inusitado do ato foi a justificativa que deram: “só queríamos dar um
Nas produções cinematográficas, depois do clássico “Laranja Mecâ- susto em um mendigo. Não sabíamos que era um índio5 ”. Ora, o que será
nico”, de Stanley Kubrick, lançado na década de 70, surgiram outras narrati- que estava em questão para estes jovens? Um mendigo é uma pessoa de
vas que discutiam os rumos de jovens de classe média com trajetórias su- valor humano menor? O que afinal outorga valor a uma vida? Por que se torna
postamente delinqüentes.

1 3
Fragmentos do trabalho “Labirintos Juvenis”, apresentado na IV Jornada do LAPPAP – Ver reportagem “Agressão à doméstica choca o país”, Zero Hora, 26/06/2007, p.44.
4
Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política, no Instituto de Psicologia da UFRGS Dentre os cinco rapazes estava o filho de um juiz federal e o enteado de um ex-ministro do
em de agosto de 2008. Superior Tribunal Eleitoral.
2 5
Este trabalho é parte de minha tese de doutorado em Educação (Gurski, 2008). Dignidade incendiada, Revista Isto É, 30/04/97.

20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 21
SEÇÃO TEMÁTICA GURSKI, R. Labirintos juvenis...

possível desumanizar a tal ponto o sujeito das margens? Acaso alguns sujei- tirar a vida de um adolescente de 17 anos que se desentedera com um dos
tos seriam mais matáveis (no sentido de extermináveis) do que outros? rapazes por causa de uma ex-namorada, mostram cálculo e frieza. Os diálo-
(Agamben, 2002)? gos flagrados pelos investigadores revelam que eles chegaram a calcular
Este episódio parece ter despertado a consciência de que a violência, como escapar de uma punição: – O advogado que eu conheço absolveu um
sempre associada às classes menos privilegiadas, não se configura em uma cara que matou a mulher com 75 facadas nas costas” (Jornal Correio
prerrogativa de pobres e negros. Braziliense, 11.04.07).
Em “Cama de Gato”, vemos que ao longo da narrativa, o diretor apre- Quer dizer, o que começou como uma briga de ciúmes e rivalidade
senta jovens envolvidos em uma espécie de vácuo de valores e referências, entre dois rapazes quase se transformou em tragédia. Imbuído de raiva o
cuja maior dificuldade parece ser encarregar-se dos efeitos de seus atos. As jovem que planejava o assassinato do rival disse a um amigo em diálogo na
experiências relatadas seguem um ritmo alucinado, no qual parece não so- Rede: “Eu vou matar ele essa semana. Eu não quero pesar pro lado de
brar muito tempo, nem espaço para a reflexão, tampouco para o silêncio. ninguém”, ao que o outro respondeu “pra fazer o mal tem q te a manha
Em nome do prazer e da diversão – fala que se repete ao longo do filme – o veeiih... cabeça fria...tem que ser na filosofia de makiavel ... pasa no carro
trio que protagoniza a história comete atos cujos efeitos são realmente fa- sem placa...mete 5 silver point. Amanhã vai tá tudo do mesmo jeito. A gente
tais. Um aspecto pontuado pelo diretor é uma pergunta sobre o lugar dos tá d boa e eu q fui agredido to na boa (Jornal Correio Braziliense, 11.04.07)”.
adultos. Onde estão as famílias destes jovens? Nas palavras de Maria Isabel Pojo do Rego (2004), Brasília vem se
A história explora, especialmente, o que deveria ter sido o primeiro dia consolidando como uma cidade com altos índices de violência urbana, fato
de aula na universidade dos recém chegados à faculdade. Porém, ao invés surpreendente para uma cidade planejada e construída como símbolo de
de passar pelo rito de ingresso, típico deste momento, o trio não vai para a progresso.
faculdade e, vive este dia com os elementos que, de algum modo, estão O interessante é que dentre os números da criminalidade do Planalto,
licenciados a eles: drogas, festas, bebidas, sexo e violência. os casos de jovens de classe média e alta envolvidos são cada vez mais
Como será que os jovens acabaram nesse lugar? Que condições de numerosos. O que será que faz a “ilha da fantasia”, redenção do poder, sím-
nosso tempo se apresentam ou se ausentam para produzir sujeitos cujas bolo de um país que vai (ou ia?) para frente, sucumbir a uma criminalidade
atitudes fazem pensar nessa espécie de vácuo de experiência? Quais condi- cujas origens não estão referidas ao sempre citado desfavorecimento sócio-
ções produzem essa “pouca” densidade subjetiva? Há realmente um empo- econômico?
brecimento da experiência na vida destes jovens? Pelas falas reproduzidas nos jornais, os jovens que planejavam o as-
A fim de ilustrar a discussão, trago fragmentos de uma notícia publicada sassinato estavam convictos da impunidade, já sabiam inclusive com quem
no Jornal Correio Braziliense em abril de 2007. A notícia trata de um episó- falar para livrá-los das conseqüências do ato que planejavam executar. Lem-
dio, no qual um grupo de rapazes planejou pela Internet o assassinato de bramos que posições como essas revelam traços do antigo “clientelismo6 ”,
outro. O crime só não ocorreu porque a policia interceptou a ação antes:
“Treino em clube de tiro, munição com alto poder destrutivo, plano de se-
qüestro e até lugar para jogar o corpo. Os detalhes do planejamento traçado 6
Para outros detalhes sobre o tema ver “Carnavais, Malandros e Heróis” de Roberto Damatta,
em conversas pela Internet por 4 jovens da classe média de Brasília, para Ed. Rocco, 1997.

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SEÇÃO TEMÁTICA GURSKI, R. Labirintos juvenis...

velho conhecido nacional que, além de pautar atos ilícitos de nossos efebos, o terreno dos modos de representação na esfera pública, subtraindo, com
estão cotidianamente presentes na condução da política brasileira. isso, um dos lugares importantes para a legitimação das subjetividades ado-
Neste sentido, parece que a solução dos jovens “aprendizes de lescentes.
Maquiavel” está bem de acordo com o que vivenciam: os pais não se furtam Analisar o dialeto violento destes jovens a partir da noção de esvazia-
em dar um jeitinho, mostrando que é preciso sempre evidenciar “com quem mento da dimensão da experiência é também uma forma de interrogar como
se está falando”. operamos e transmitimos a falta na atualidade (Costa, 2007)? Sua transmis-
Na cena final, os três rapazes vão para o lixão de São Paulo. São são acontece nas relações entre adultos e jovens, entre pais e filhos? Como
Paulo a capital brasileira do dinheiro, da velocidade e do sucesso. Lugar dos os adultos lidam com o par desejo e falta? Qual relação pode ser estabelecida
vencedores, paradigma maior da Modernidade. Ainda que emoldurada por entre o empobrecimento da experiência e a falta da falta nas transmissões?
luxo e riquezas, sabemos que não há abundância que apague a necessida- De todo modo, importa, sobretudo, perguntarmo-nos como construir
de de um espaço para guardar os restos. Assim, mesmo sendo o espaço do experiências que sejam potentes para o sujeito e seus laços. Será que não
que não vale mais, o lixão de uma cidade marca um lugar, o lugar do dejeto; é possível constituir nenhuma espécie de novo nas relações atuais? Se por
pois foi para lá que, os três, após discutirem sobre o que fazer com os um lado, resta claro que, várias condições da cultura produzem efeitos na
cadáveres, decidiram levá-los. subjetivação, por outro, não é demais questionar se não se pode reinventar
O que significa para o trio do filme, discutir questões caras as suas novos laços a partir de outras configurações.
vidas em meio aos escombros e detritos? Será que o para além das mar- Como disse Contardo Calligaris7 , em recente visita a Porto Alegre,
gens, a beira da cidade, acaba sendo um lugar de inscrição juvenil na atua- nossa tarefa talvez seja inventar uma outra estética de vida para que, talvez,
lidade? O que fazem com a pouca densidade e o vazio que se produz a partir dela derivem modos de experiências éticas que sejam potentes para o sujei-
das condições do laço social atual? to e seus laços.
Desde o conceito de experiência em Walter Benjamin (1933; 1936), Isso talvez seja parecido com o que se propõe a partir de um ensaio:
pergunto-me que questões se constroem em tempos de ausência de condi- ensaiar sempre abre a possibilidade de uma nova experiência com o presen-
ções para que se dê uma experiência? Vivemos realmente este esvaziamen- te. Ensaiar no pensamento, na escrita e na vida é não renunciar a uma
to ou a experiência se apresenta de outros modos? O que os atos de vanda- constante reflexão (Larrosa, 2004); é não tomar a notícia como um dado, é
lismo e violência inscrevem? Qual espécie de experiência afinal estaria sub- ler nas letras das linhas e entrelinhas. Assim, se o ensaio tem a ver com os
traída da vida destes jovens? pontos cegos do objeto (Adorno, 2003), ensaiar seria como experimentar
Uma das fortes hipóteses com a qual trabalhei refere-se à urgência uma relação com a falta e com o real que suporte o inacabado e o não todo.
dos jovens em confirmar a inscrição de si através das diferentes formas de A idéia deste escrito foi ensaiar um outro modo de ver as problema-
se fazer representar no social. Tal necessidade psíquica, própria da opera- tizações acerca da violência juvenil de nosso tempo. Um modo de pensar as
ção adolescente, somada ao empobrecimento das condições de construção
da experiência e ao esvaziamento do espaço público como espaço legítimo
de representação, acabou por incrementar a dimensão das escritas violen- 7
Refiro-me aqui a palestra proferida pelo psicanalista durante o Seminário de Altos Estudos
tas na adolescência de nosso tempo. De alguma forma, tal situação reduziu Fronteiras do Pensamento, em 04/08/08, Porto Alegre.

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SEÇÃO TEMÁTICA REIS, M. G. P. Transmissão da catástrofe...

questões dos jovens que suporte, simultaneamente, articular o saber e a TRANSMISSÃO DA CATÁSTROFE: TRANSCENDER EM
falta. Um modo de lidar com a tensão própria que caracteriza a juventude, PALAVRAS AS FRONTEIRAS DO HOMEM
criando labirintos que, mesmo na ausência de uma saída derradeira, sejam
vias possíveis de serem percorridas. Marcia Giovana Pedruzzi-Reis1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: “[...] Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que o
ADORNO, T. W. “O ensaio como forma”. In: ______. Notas de Literatura I. São sono não fuja de mim, mas ouço os ruídos: este apito ao longe eu sei que é
Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003, p. 15- 45.
de verdade, não é da locomotiva do sonho. É o apito do trenzinho da fábrica,
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
que trabalha dia e noite. Uma longa nota firme, logo outra, mais baixa de um
Editora UFMG, 2002.
semitom, logo a primeira nota de novo, mas curta, truncada. Esse apito é
BENJAMIN, W (1933). “Experiência e pobreza”. In: _________. Magia, técnica,
arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119. importante; é, de certo modo, essencial: tantas vezes já o ouvimos, ligado
______. (1936). “O Narrador”. In: _____. Magia, técnica, arte e política. Obras ao sofrimento do trabalho e do Campo, que se tornou seu símbolo, evoca
escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. diretamente a idéia do Campo, assim como acontece com certos cheiros,
CALLIGARIS, C. “Cama de Gato”. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 set. 2004, certas músicas.
Caderno Mais. Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pesso-
COSTA, A. M. “Escritas da experiência”. Seminário Especial. Programa de Pós- as. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama
graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de
Porto Alegre: UFRGS, out. 2007. (comunicação oral) acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa
GURSKI, R. Juventude e Paixão pelo Real: problematizações sobre experiência fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e
e transmissão no laço social atual. Porto Alegre: UFRGS, 2008, (Doutorado
logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna,
em Educação).
física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta
LARROSA, J. “A operação ensaio. Sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamen-
coisa para contar, mas bem me apercebo de que elas não me escutam.
to, na escrita e na vida”. Revista Educação e Realidade, vol. 29, n. 1, p. 27-43,
jan./jun. 2004. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não esti-
REGO, M. I. P. (2004). Brasília: sede da violência urbana vesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio.
Disponível em: http://www.urbanidades.unb.br/artigos_brasilia_violencia_urbana.htm Nasce então, dentro de mim, uma pena desolada, como certas mágo-
Acesso em 01 de abril de 2007. [10 p.] as da infância que ficam vagamente em nossa memória; uma dor não tempe-
rada pelo sentido da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas,

1
Psicóloga, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional,
Instituto de Psicologia, UFRGS. Membro do LAPPAP – Laboratório de Pesquisa em Psicaná-
lise, Arte e Política, da UFRGS.

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SEÇÃO TEMÁTICA REIS, M. G. P. Transmissão da catástrofe...

uma dor dessas que fazem chorar as crianças. Melhor, então, que eu torne Já aqui se apontam perguntas fundamentais: o que é experiência em
mais uma vez à tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de que psicanálise? O que é transmissão, e o que se transmite de uma experiên-
acordei, acordei mesmo. cia? O que se transmite em uma narrativa escrita na primeira pessoa? E o
O sonho está na minha frente, ainda quentinho; eu, embora desperto, que reside neste intervalo entre a vivência da catástrofe e sua representa-
continuo, dentro, com essa angústia do sonho; lembro, então, que não é um ção? A experiência, a priori, é tema benjaminiano por excelência, quem se
sonho qualquer; que, desde que vivo aqui, já o sonhei muitas vezes, com debruçou sobre a problematização da modernidade, no intervalo entre o em-
pequenas variantes de ambientes e detalhes. Agora estou bem lúcido, recor- pobrecimento da experiência autêntica, bem como das narrativas originais, e
do também que já contei o meu sonho a Alberto e ele me confessou que a transformação histórica ocorrida com a memória, a história e as identida-
esse é também o sonho dele e o sonho de muitos mais; talvez de todos. Por des coletivas e individuais. Falamos da experiência no sentido substancial
quê? Por que o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em nos- do termo, que, repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada
sos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não escu- por uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cada
tam? [...]” Primo Levi. É isto um homem? (1958; 1988). geração, na continuidade de uma palavra transmitida. Esta palavra tem a
dimensão de algo maior do que a simples existência individual; transcende e

O
prelúdio deste texto nos coloca diante de um angustiante sonho, porta, simultaneamente, esta existência, referindo-se ao elemento simbólico
transportando-nos para o acontecimento absolutamente mais (Gagnebin, 2006, pp.50). Benjamin (1992), ao se deter profundamente a res-
avassalador do século XX. O italiano Primo Levi, um dos sobreviven- peito deste declínio da capacidade de trocar experiências, curiosamente, e
tes do Holocausto, foi o sujeito do sonho, e autor do prólogo, marcando com não por acaso, assinalará no justo ponto da Guerra – a Primeira, processo
sua escrita uma escolha. Talvez uma escolha do tipo que não se escolhe, aprofundado ainda mais na Segunda – o início de um processo que nunca
mas que nos escolhe. Levi optou por empreender a árdua tarefa de adentrar mais parou: “não é verdade que no final da guerra as pessoas voltavam mu-
nas profundezas das lembranças que o marcaram, de tentar representar o das dos campos de batalha? E não vinham mais ricas, mas sim mais pobres
irrepresentável, de transmitir uma catástrofe de natureza única, humanamente em experiência comunicável. O que dez anos mais tarde inundaria a literatu-
inexplicável, uma experiência abundante e intransferível. A catástrofe por ra sobre a guerra, era tudo menos a experiência que se transmite de boca
excelência da humanidade, nas palavras de Seligmann-Silva (2000, pp.75). em boca”.
Ao deparar-me com a narrativa inaudita do sonho que se repete, capitulei, A perda da experiência acarreta, pois, outro grande desaparecimento:
encontrando nesta escrita alguns elementos para pensar a transmissão de o das formas tradicionais de narrativas. Segundo Benjamin (1992), a verda-
experiências, o testemunho, e o papel que a escrita opera diante destes deira essência da narrativa contém em si uma dimensão utilitária, tecida na
intentos, elementos estes marcados, neste caso, justamente pelo intervalo substância da vida vivida, que se traduz na sabedoria, sabedoria esta que
entre a catástrofe e sua representação. Proponho, aqui, pensar o texto como não se gasta – conserva toda a sua força e pode ser ainda explorada muito
criação cultural, que extravasa o campo da clínica, do singular – tempo depois de narrada. A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico
compartilhamento que faz um recorte, onde o eu se apaga, e, ao circular, faz da verdade, justamente a sabedoria, está a morrer. Esta sabedoria não diz
emergir uma questão em comum entre narrador e ouvinte. A psicanálise se respeito aos grandes acontecimentos a serem transmitidos, mas à sabedo-
aproxima, pois, como paradigma para pensar estes elementos. ria recolhida no singelo do dia – ou da guerra. Sobre isso, nos diz Gagnebin

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SEÇÃO TEMÁTICA REIS, M. G. P. Transmissão da catástrofe...

(2006, pp.54): “esse narrador [...] não tem por alvo recolher os grandes fei- testemunha um ouvinte, apto a ouvir e compartilhar esta sabedoria, a partir
tos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo da credibilidade que possa atribuir à narrativa. Assinalará Benjamin (1987)
que não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem que é a partir da transmissão ao outro, numa dimensão de alteridade, que a
sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer; dentre estes experiência se cria e recria. Apropriamo-nos de nossos registros de vivência
elementos, localiza-se o sofrimento indizível da Guerra, por exemplo, numa somente através desta transmissão testemunhada. Ou seja: é no
transmissão daquilo que a ‘História oficial’ deixa no anonimato, tarefa esta compartilhamento, na narrativa de algo que é do mais íntimo, que se convoca
que se traduz numa paradoxal transmissão do inenarrável”. o ouvinte, ou leitor, a uma experiência compartilhada, vindo a tocar o mais
Primo Levi, no sonho cujo cenário é o Campo de Auschwitz da Segun- universal da experiência, moldando-a no justo ponto em que aquele que nar-
da Guerra, contrapõe a felicidade intensa por ser finalmente possível narrar ra pode perceber o que lhe é singular como um singular partilhado. Ao me
suas experiências de horror ao – este sim – verdadeiro desespero por que questionar a respeito do legado escrito deixado por Levi, deparo-me com
passa ao perceber que seus ouvintes levantam-se e embora se vão. Gagnebin uma bifurcação: ao mesmo tempo em que parece submetido a uma exigên-
(2006, pp.57), a respeito deste sonho, lembra-nos que, ao fazer uso da pala- cia de transmissão e de reconhecimento das marcas do passado, algo em
vra, teríamos nós, geração posterior aos herdeiros do massacre, que fazer seus questionamentos sugere a ousadia de uma re-escritura do futuro, num
essa função de ‘terceiro’ na relação torturador-torturado, ao restabelecer um movimento de não apenas escrever o passado, mas desenhar o destino de
espaço simbólico onde estes testemunhos possam circular. Acerca disso, forma outra, talvez se ofertando para diferentes e novas cicatrizes – quiçá
magistralmente, explica: “deveria ser esta a função dos ouvintes, que, em transformando a marca no real em uma cicatriz simbólica.
vez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, não “A nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a ani-
querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua quilação de um homem”, nos diz Primo Levi. Temos demarcado, até aqui,
própria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem ainda que os eventos da Guerra colocam-se como anteparo que fere esta capaci-
tranqüila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmi- dade de testemunhar. Mas que marcas são estas, afinal, deixadas por uma
tida em palavras diferentes. [...] Testemunha não é só aquele que viu com os catástrofe como a Guerra, tal como um flagelo da humanidade, e que tornava
próprios olhos [...] mas também aquele que não vai embora, que consegue mudos e pobres em experiência seus sobreviventes? Que evento é este que
ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem baliza a capacidade humana de narrar – e, conseqüentemente, de ouvir?
adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade Gagnebin (2006) nos dirá que aquilo que estes homens vivenciaram não po-
ou compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida dia mais ser assimilado em palavras. Mas o que é isso? Seligmann-Silva
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva (2000), ao falar da Segunda Guerra como um poderoso buraco-negro da His-
do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esbo- tória, eleva-a ao estatuto de divisor de águas que reorganiza toda a reflexão
çar uma outra história, a inventar o presente”. cientifica e historiográfica acerca do que é o real e sobre a possibilidade de
A tradição de uma transmissão oral autoriza narrador e ouvinte a in- sua representação. O horror e a exterminação metódica do Holocausto tor-
corporar ao seu próprio relato a experiência do outro, propiciando um encon- nam-no um objeto que escapa à representação, um evento literal, justamen-
tro de experiências temporal e geograficamente distantes, de experiências te por este caráter de excesso de realidade que o marca. Afirma o mesmo
tanto individuas quanto coletivas. É um imperativo, pois, que deva servir por autor que na base da representação de uma experiência está a capacidade

30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 31
SEÇÃO TEMÁTICA REIS, M. G. P. Transmissão da catástrofe...

de universalização da representação, impossível diante da singularidade deste angústia, enfim, de não encontrar num terceiro a resolução deste “paradoxo
evento-limite. Perante a ausência de limites deste objeto, como então repre- da experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por
sentar algo que vai além da própria capacidade de imaginar? Mas não nos formas simples de narrativa” (Seligmann, 2000, pp.8) .
aproximamos aqui, justamente, da definição freudiana de trauma? Frente a essa repetição e diante da necessidade de simbolização
Freud, contemporâneo a isso, nas Conferências Introdutórias (1915- desta literalidade que resiste brava à representação das metáforas, encon-
1917) a respeito da Fixação em Traumas, deter-se-á no estudo das experiên- tramos a escrita. Nosso sobrevivente, Primo Levi, preso ao contraditório em
cias traumáticas dos sobreviventes da Primeira Guerra, que, atormentados seu sonho, no intervalo entre o imperativo da necessidade de narrar acerca
por suas lembranças, ainda assim não eram capazes de dizer qualquer pa- da catástrofe vivida e a “impossibilidade de dar forma ao que transborda sua
lavra a respeito do que viram, impossibilitados de colocar suas lembranças capacidade de pensar (Seligmann, 2000, pp.83)”, muito embora seu pesade-
em uma ordem simbólica. Em conclusões parecidas, Freud falará de trau- lo torne-se cruelmente real, de alguma forma narra, transmite e marca a
ma; Benjamin, de choque. Freud, assim, definirá o trauma como uma expe- História com suas experiências. A escrita parece, pois, operar num trabalho
riência que traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estí- do trauma, no sentido de libertação de imagens do passado, as quais fogem
mulo grande demais para ser absorvido, ocasionando um adiamento ou ao controle da consciência, da memória, da própria História. Não mais inse-
incompletude do que se sabe: assim, trata-se da incapacidade de recepção ridos em uma tradição de memória e narrativa viva e oral – Levi, nós – seria,
de um evento transbordante, que ultrapassa os limites de nossa percepção, quiçá, preciso inventar outras estratégias de compartilhamento e testemu-
ocasionando uma ferida na memória na qual não ocorre uma experiência nho, bem como de conservação e mecanismos de lembrança? Aqui, memó-
plena do fato vivenciado. Há ali, pois, a impossibilidade de uma resposta e ria e esquecimento se entrelaçam e alternam, num movimento onde ao lem-
elaboração simbólica frente à experiência de choque, em especial sob a brar, e escrever, adentra-se o campo da linguagem e transforma-se o literal
forma de palavra, pelo sujeito. Cathy Caruth (1995, citada por Seligmann- em figurativo, para assim encontrar-se o esquecer, em que através do teste-
Silva, 2000) dirá que o evento traumático não é assimilado de forma plena munho pode-se alçar a libertação desta cena traumática do passado,
naquele dado momento, mas tardiamente, acontecimento este de complexa recontada sob novo enredo. E não seria mesmo o lembrar uma forma de
temporalidade, numa possessão repetida daquele que o experienciou. As- esquecer? E não seria mesmo o narrar uma forma de transcender em pala-
sim, entende-se que a catástrofe deixará marcas as quais, por estarem gra- vras as fronteiras do homem? E não seria, enfim, através da escrita, possível
vadas, retornarão. A partir desta noção, Freud traçará a relação deste trauma tocar o passado e produzir efeitos de cicatrização e criação do novo?
com as memórias que insistem em se repetir – pelo automatismo da repeti- Mais do que isso, a escrita, como forma de inscrição na História e na
ção próprio da experiência traumática – mas que ao mesmo tempo resistem Cultura, tem função de luta contra o esquecimento e a denegação de um
em serem compartilhadas. A vivência deste transbordante acarreta posterior- horror que não pode e não deve repetir-se, uma tarefa ética e política no
mente uma compulsão à repetição da cena traumática (Seligmann, 2000, sentido de sua rememoração – de uma memória ativa que transforma o pre-
pp.84) – compulsão esta que, acredito, encontramos na repetição do sonho sente, no intuito crítico de recusar a repetição da destruição no mundo con-
de Levi, num retorno constante às cenas sem limites do Holocausto, traduzidas temporâneo. Levi parece, enfim, num primeiro esforço tentar dizer o indizível,
talvez pela angústia de precisar narrá-las, mas não conseguir; angústia de numa elaboração simbólica do trauma que lhe permitisse continuar a viver
transformar a literalidade do real das cenas que vive em algo de simbolizável; (Gagnebin, 2006), e, simultâneo a isso, parece operar como testemunha de

32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 33
SEÇÃO TEMÁTICA SEÇÃO ENSAIO

algo que não poderia – nem deveria – ser apagado da memória da humanida- “O OSSO JOGADOR”
de. Benjamin denuncia transformações históricas que remetem à perda da
memória e da capacidade de compartilhamento. Diante disso, talvez do ca- Christiane de Macedo Bittencourt
samento entre a psicanálise e Benjamin, surja o mais fundamental: a possi-

A
bilidade de criação do novo. Trata-se, pois, de inventar outras formas de cordou feliz. Era dia quente, vestiu a calça curta furada que já havia
memória e de narração, que a própria prática psicanalítica, por si só, nos dá passado pelo mais velho e a camisa rabona, presa por um só botão.
exemplo, visto que pode ser compreendida como uma nova forma de aproxi- Como sempre fazia foi procurar a galinha. Ele a criara desde bem
mação da dinâmica do lembrar e do esquecer, uma nova situação em termos pintinho, acariciava as penas, dava água e comida.
narrativos de fala e escuta, que permita ao sujeito fugir do enclausuramento O irmão acordou mais velho nesse dia e a mãe prometeu galinhada.
da repetição (Gagnebin, 2008, pp.61). De igual modo, permitamo-nos pensar Ele tremera não havia galinha ali que não a sua.
de que forma a psicanálise pode atuar como um dos recursos da cultura na A mãe ordenou que fosse pedir a panela grande, da tia, emprestada.
recuperação da experiência, bem como o que tem a ela a oferecer quando da Cada palavra sua retumbava como uma ordem do quartel, tamanha dureza
análise de testemunhos tais como o de Levi, que por outra via possivelmente em mulher tão franzina.
não encontrasse voz. Saiu em disparada para ver se não perdia nada, acontecimento algum.
Quando voltou ela já estava lá deitada no para-peito, sangrando a go-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: tas finas no balde de lata.
BENJAMIN, W. (1987). Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol. 1. 3º Enterrou a panela na cabeça, não queria deixar seus olhos verem o
Edição. São Paulo: Editora Brasiliense. que viu, nem os outros testemunharem suas lágrimas.
_____. (1992). O narrador. In: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Relógio Sua dor ecoou panela a dentro.
D’Água Editores, Lisboa, Portugal. O cheiro da comida enrolava as tripas desde cedo da manhã.
GAGNEBIN, J. M. (2008). Walter Benjamin: memória, história e narrativa. Em: De dentro vinha uma gosma espessa até a beira da garganta. Ele cuspia
Revista Mente, cérebro e filosofia nº7 – O homem no caos do capitalismo grosso na areia quente e deixava o olhar fixo no cuspe até secar. Com uma
moderno. São Paulo: Editora Dueto. varinha circulava a gosma. Nada mais preenchia sua cabeça, isso era tudo.
_____. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34. Nem a pobreza da família lhe parecia motivo para tanta crueldade.
FREUD, S. (1915-1917). Conferência XVIII: Fixação em Traumas – O inconscien- Mais tarde foi chamado para vir à mesa. O irmão comeu metade do
te. Em: Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição standard brasi- peito e com um ar satisfeito o convidou para jogar o osso jogador.
leira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: O vencedor deveria comer a outra metade.
Editora Imago. Sua dor ao ver o osso partir-se só encheu-lhe de coragem, nada podia
LEVI, P. (1988). É isto um homem. Rio de Janeiro: Editora Rocco. obrigá-lo a comer esta galinhada.
NESTROVSKI, A. & SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). (2000). Catástrofe e Represen-
Tomou então a faca afiada e cravou com toda profundidade no pesco-
tação. São Paulo: Editora Escuta.
ço do irmão.
SELIGMANN-SILVA, M. (2000). A história como trauma. Em: _____. (2000). Catás-
Ao virar-se para trás ainda o viu sangrando a gotas finas no colo da mãe.
trofe e Representação. São Paulo: Editora Escuta.
1
Psicanalista.

34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 35
RESENHA RESENHA

EDUCAÇÃO E FUNÇÃO PATERNA Em “A educação e o lugar dos ideais”, Carlos Kessler aborda a educa-
ção na dimensão escolar, a partir de seu trabalho na formação de professo-
RODRIGUES, Fátima e GURSKI, Roselene. Educação e res. Propõe discutir a educação considerando-a como parte integrante do
função paterna. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008
104p. processo civilizatório, dependente da veiculação dos ideais na cultura. Ana-
lisa e alarga a função do professor, comparando-o a um agente cultural que

E
“ ducação e função paterna” é um livro que transmite a seus alunos que “estudar é uma viagem”. E viajar é preciso.
inova pela ampla e consistente discus- Em “A novela familiar contemporânea e a educação”, Roséli Cabistani
são que faz entre Psicanálise e Educa- analisa algumas das transformações que têm passado a instituição familiar,
ção. Apresenta seis artigos e cada um deles, particularmente, a família brasileira, partindo do que mudou no novo código
por um viés diferente, mas igualmente original, civil. Lembra que o declínio da autoridade paterna não é nada recente e
traz questões muito bem articuladas que contri- discute com propriedade, o que ainda nos faz tratar essa questão como
buem muito, não só, para quem trabalha nessa atual.
interface. Em “Admirável mundo novo”, Eda Estevanell Tavares afirma que a ca-
O texto de Roselene Gursky, autora e pacidade do ser humano de criar o novo não está dada a priori, não é congê-
organizadora dessa publicação: “Pais ou mestres? Notas sobre as fronteiras nita. Situa o significante do Nome-do-Pai como o operador que encadeia a
da família e da escola na educação contemporânea”, traz à tona um debate tradição e a invenção, ou seja, a produção de novos significados. A autora
sobre a especificidade do ato educacional num cenário de erosão da autori- situa o encontro com o novo como corolário de uma procura de um significante
dade parental. Examina os efeitos nada promissores que a intervenção da que responda sobre o enigma da origem. Aponta para a metáfora paterna, a
escola, nos dias de hoje, tende a fazer, a saber, pela via da suplência. possibilidade de inovação e discute o lugar do pai transmissor de saber e
Roselene faz um recorrido histórico sobre o nascimento da educação não como detentor absoluto. Um significante novo vem para sustentar a liber-
infantil até essa escola que conhecemos na atualidade, ou seja, como uma dade subjetiva e impulsionar o sujeito a seguir recobrindo o real que persiste,
instituição formal de ensino. Demonstra a passagem da educação pública, alargando o domínio simbólico.
comunitária e aberta, destinada a integrar as crianças na sociedade, visando Em “Estruturar para não marginalizar: quando a educação começa a
à inserção na coletividade para uma outra que visa basicamente ao desenvol- ser possível”, Silvia Molina e Ivone Alves abordam como as operações pulsionais
vimento de aptidões. Paralelamente à análise histórica da educação, a auto- inscritas numa rede significante, capacitam a criança a transitar no mundo
ra analisa as mudanças na estrutura da família, abordando o individualismo simbólico. Demonstram o intenso percurso que a criança faz até chegar a
atual, a partir das mudanças nos preceitos educativos e políticos. Finaliza uma instância sociocultural, onde se localiza a instituição escolar que deve-
seu trabalho lançando novas reflexões, a partir de uma abordagem crítica con- rá ser primariamente estruturante e secundariamente educativa.
sistente sobre o processo corrosivo que sobrepõe o valor da verdade compro- As autoras desenvolvem detalhadamente o processo de apropriação
vada cientificamente às expensas da transmissão que o professor pode viabilizar do traço gráfico a partir das vivências corporais significantes no laço com o
desde a sua experiência. Diz: esse processo “foi gradativamente esvaziando Outro primordial, além de darem conta das passagens que a criança vai
o lugar de autoridade das diferentes instituições educativas” (p. 28). experienciando na aquisição do domínio do ato de desenhar. Com isso estão

36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.. 37
RESENHA AGENDA

apresentados e articulados os pré-requisitos da constituição psíquica para JANEIRO– 2009


que a criança possa lidar com as exigências educativas atuais.
Por último, Fátima Lucília Vidal Rodrigues, que também organizou Dia Hora Local Atividade
08, 15, 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Eventos
essa publicação, apresenta seu trabalho intitulado: “Escrita e psicose: a 22 e 29
importância de um terceiro”. A autora se vale de sua vasta experiência como 08 e 22 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva
professora da rede pública para apresentar e discutir suas reflexões sobre a 09 e 23 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicos
09, 16, 14h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista
importância de uma apropriada intervenção por parte do professor com as 23 e 30
crianças com funcionamento psicótico. Para isso, recorre à origem da escri- 19 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão do Correio
ta e a alguns pontos de sua história, discutindo as suas diferentes aborda-
gens na escola e o seu conceito na teoria lacaniana. Trabalha sobre as
singularidades do texto de um aluno que escrevendo, se “inscreve” numa
escritura.
CALENDÁRIO DE EVENTOS 2009
Desejo-lhes uma ótima leitura!
Data Atividade
Beatriz Kauri dos Reis 04 de abril Jornada de Abertura
08, 09 e 10 de maio Congresso de Convergencia
29, 30 e 31 de maio Relendo Freud
27 de junho Jornada do Instituto APPOA
08 de agosto Jornada do Percurso de Escola
21 de setembro Jornada do Percurso em Psicanálise de Crianças
17 e 18 de outubro Jornada Clínica

PRÓXIMO NÚMERO

ESCRITA E PSICANÁLISE

38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. 39
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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S U M Á R I O
EDITORIAL 1 N° 176 – ANO XVI JANEIRO – 2009 ISSN 1983-5337

SEÇÃO TEMÁTICA 2
PALAVRAS-ISCAS
Marieta Rodrigues
Paulo Gleich
Simone Moschen Rickes 3
RESTOS DISCURSIVOS
Maíra Brum Rieck 9
ESCRITAS DA EXPERIÊNCIA
OFICINANDO ENREDOS DE PASSAGENS:
O ENCONTRO DO ADOLESCER EM
SOFRIMENTO COM A TECNOLOGIA
Tatiane Reis Vianna 13
LABIRINTOS JUVENIS NA ATUALIDADE
Roselene Gurski 20
TRANSMISSÃO DA CATÁSTROFE:
TRANSCENDER EM PALAVRAS
AS FRONTEIRAS DO HOMEM
Marcia Giovana Pedruzzi-Reis 27

SEÇÃO ENSAIO 35
“O OSSO JOGADOR”
Christiane de Macedo Bittencourt 35

RESENHA 36
EDUCAÇÃO E FUNÇÃO PATERNA 36

AGENDA 39

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