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INÊS249
FUTURO DO
RAP EM SALA
Auxilia no processo
ensino-aprendizagem
PRESENTE
e permite ampliar o
repertório de mundo e
a apreciação estética
O QUE É NARRAR?
A diferença entre Como a inteligência artificial está mudando
contar um fato e
construir uma narrativa
a forma de produzir textos e interferindo no
conteúdo que você consome e compartilha
ENTREVISTA
A paraense MONIQUE MALCHER reivindica lugar das mulheres nordestinas: “na ciência, na sabedoria e na resistência”
NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br
C
om licença poética a Lulu E as ondas trazem, lá do Pará,
Santos, tomo suas palavras Monique Malcher, que chega ao
e reordeno seus versos panteão da boa literatura nacional
para apresentar esta revista com fôlego e raça. Tanto que seu
que está se renovando, em contínuo primeiro livro, Flor de Gume, de
processo de atualização, ficando cara ganhou um Jabuti.
ainda mais dinâmica e relevante. A Maurício Silva, recém-chegado,
agora Escrita Viva – Conhecimento nos ensina como foi a trajetória da
Prático - Língua Portuguesa e norma para o uso do português vra, trará, todo mês, suas impressões
Literatura chega com energia total, no Brasil. Foi esse caminho das sobre a língua e educação. Ana Maria
com pessoas e ideias novas, revigo- pedras que permitiu (e permite) Haddad Baptista será nossa resenhis-
rando o que de melhor entregamos termos gestado um Machado de ta, apresentando obras e aspectos
com a Conhecimento Prático - Língua Assis, capaz de transformar uma literários, analisados por quem conhe-
Portuguesa e Literatura e transfor- casa em personagem, assim des- ce profundamente o ofício. Leonardo
mando todo o restante em valiosa taca Roberto Sarmento Lima, ou Garzaro, editor, cronista, apresenta-se
experiência. Mas calma! Assim como propiciarmos que o rap auxilie no em um texto versátil sobre traduções e
as ondas do mar que sempre voltam, ensino-aprendizagem, evidencia belezas do nosso português, enquanto
nossos melhores colaboradores per- Fábio Roberto Ferreira Barreto. Ninil Gonçalves, artista da palavra e
manecem firmes e fortes em seus E, como uma onda, tem gente da fotografia, tem o remédio para os
postos, trazendo conteúdos cada vez que vai, tem gente que fica, como males da vida: poesia. E Márcia Fusaro,
mais necessários. Heloísa Buarque de Hollanda, a multifacetada, vai fundo ao demons-
E como tudo que é bom pode ficar nova ocupante de uma cadeira na trar como a literatura, a arte e a ciência
ainda melhor, com muita alegria in- ABL, que já foi de Nélida Piñon, andam de mãos dadas.
formamos que a periodicidade desta lembra Juarez Ambires. Assim vamos construindo nossa histó-
publicação – que carinhosamente Tantos gêneros e tantos tipos textu- ria. Aliás, é ela que preserva a língua.
chamaremos apenas de Escrita Viva ais cabem no mesmo balaio? Como Da oralidade às telas, é por meio de
– agora será mensal. Sim! Todo mês eles dialogam? É ao que responde narrativas que criamos a nossa iden-
estaremos em bancas ou na sua casa Aline Fernanda Camargo Sampaio tidade. Por isso, esta edição começa
com o mesmo olhar atencioso para a em Contexto. Coisas da língua, diria com o "Amendoim" de Ivy Menon – ex-
nossa querida Língua Portuguesa e Divanize Carbonieri, autora potente, -boia-fria que hoje é apontada como
suas interfaces. que ensina o que é narrar. uma das grandes revelações da litera-
Nesta reestreia, nossa capa traz um É… o aprendizado nunca termina. Disso tura brasileira – e encerra com a re-
assunto que está no pensamento e na tem certeza Márcio Scarpellini Vieira, flexão da contadora de histórias Paula
boca de todo mundo: a inteligência e assim exemplifica em artigo sobre Pagú, sobre a importância e o prazer
artificial. Abrahão Costa de Freitas formação continuada. Já Cristiane dessa arte milenar.
foi verificar como essa tecnologia Alves, escritora e Preta, como gosta de
vai afetar o nosso dia a dia, o nos- ser chamada, mostra as múltiplas in- O convite está feito: mergulhe nessas
so desenvolvimento. Ficaremos à terpretações linguísticas e legislativas ondas em que a escrita é viva!
mercê de robôs inteligentíssimos? em Lugar de Fala.
Sobreviveremos a esse tsunami? Ou E há muito mais: Anabelle Loivos Mara Magaña
será o começo do fim? Considera, uma especialista da pala- Editora
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COLUNAS FIXAS
PRESENTE
e permite ampliar o
09. Sobreimpressões
repertório de mundo e
a apreciação estética
O QUE É NARRAR?
Discursos de ódio
A diferença entre Como a inteligência artificial está mudando
contar um fato e
construir uma narrativa
a forma de produzir textos e interferindo no
conteúdo que você consome e compartilha
ENTREVISTA
na ordem do dia
A paraense MONIQUE MALCHER reivindica lugar das mulheres nordestinas: “na ciência, na sabedoria e na resistência”
Amendoim
Era tempo de colheita, quando
as taturanas enlouqueciam de
vontade de envenenar a pele
das crianças pobres, como nós ©1
O
caminhão de carroceria nas coxas e virávamos a colheita de nina. Precisava esperar que eu “cres-
aberta se retorcia pela es- pernas e vagens para cima. E íamos cesse um pouco mais” para poder me
trada de chão esburacada. para as próximas. Quilômetros andan- namorar. Meu rosto queimou. E me
Gostava de imaginá-lo do feito arcos. Com as costas voltadas vi. Li de novo a cartinha. Esforcei-me
serpente desesperada no sol da ma- para o sol. para fazer o número dois. Limpei-me
nhã, faminta, a procurar caminho para As taturanas levavam, todo dia, um com o bilhete. Leve, o papel não fez
a mesa. Idêntica preocupação minha e amigo para o hospital. Crianças, como barulho quando caiu no buracão.
dos meus irmãos: se não trabalhásse- eu e meus irmãos, queimávamos de Edson morreu na rua. Começou
mos, não teríamos comida. Gritávamos febre deitados debaixo de alguma a beber depois que o pai mandou
a cada solavanco. Menos de 12 anos, e sombra, esperando terminar o dia para a irmãzinha, adolescente, morar na
já estávamos na colheita do amendoim. irmos embora. Tínhamos direito ao zona. Mais de duas décadas se pas-
Eu estava apaixonada pelo Edson, salário das horas trabalhadas, antes saram e eu o encontrei na rodoviária.
que trabalhava na lavoura de amen- do acidente com as lagartas peludas. Pediu-me que lhe pagasse um café,
doim, quando as taturanas enlouque- E água, servida sempre morna, com um cigarro, uma coxinha. Paguei. Uma
ciam de vontade de envenenar a pele gosto de gasolina. As ínguas imensas lágrima teimava me denunciar. Ri, e
das crianças pobres, como nós. Não nas virilhas e axilas. A determinação lhe disse do meu prazer em revê-
tínhamos defesa contra elas. Lá, foi a de aguentar chegar em casa. Se tudo -lo. Contaram-me que ele “levou uns
primeira vez que soube que poderia corresse bem, no outro dia a mesma tiros”, numa briga pra defender a irmã,
“ganhar feito homem” se me manti- coisa. Confesso que, de vez em quan- lá no bordel. Na perna direita. Não foi
vesse no grupo da frente, como os do, sonhava ser atacada por taturanas, ao médico. A gangrena lhe apodreceu
peões. Não sei se conseguem com- para ficar em casa descansando. a perna e terminou o serviço come-
preender o que era “arrancar amen- Bem, estava apaixonada pelo Edson, çado pela morte, quando todos ainda
doim”. As touceiras firmes no chão um rapaz franzino de 16 anos. Negro. acreditávamos no futuro. Inclusive ele.
explodiam vagens, presas às raízes, Lindo. Tocava violão e cantava aquelas Cinquenta e dois anos passados,
que guardavam os grãos. músicas tristes de amores que não sinto as dores das queimaduras das
A nós cabia andar abaixados qua- deram certo. Eu sonhava. Lembro-me taturanas. Ouço o violão do Edson.
se até o chão, com as mãos, como que, quando soube do meu interesse Releio o bilhete dele. E sei que muita
chaves torquês, que se agarravam por ele, Edson me mandou um bilhete. coisa, no Brasil, só mudou o tempo e
aos caules do amendoim. Metíamos Corri ler escondida dentro do banheiro os endereços.
tração e arrancávamos a moita, de (casinha) no fundo do quintal. Ele me Ainda morremos de fome
uma vez só. Depois, batíamos a terra dizia que eu era linda, mas muito me- (e matamos).
©1: GLOBALP / ISTOCKPHOTO.COM
A AUTORA IVY MENON (Ivanilda Maria Menon) é escritora, advogada, pós-graduada em Filosofia e Teoria do Direito, bacharela
em Teologia e ex boia-fria. Autora dos livros: Flores amarelas (poesia, prêmio do I Concurso Carioca de poesia, Editora Multifoco,
2006), Matemática das algemas (poesia, e-book, Camino Editorial, 2021), Asas de terra e sangue (crônicas, Editora Arribaçã, 2021)
e, em parceria com Angela Zanirato, o romance Mar fechado – Mar Aberto, pela Rizoma Projetos Editoriais (no prelo).
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MEMÓRIA DA LÍNGUA
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LÍNGUA DIGITAL
Voz sintética já é
realidade nos audiobooks
O primeiro audiobook a utilizar a inteligência artificial é da
plataforma Skeelo. A escolha recaiu sobre o best-seller
A lei da atração: O Segredo, de Rhonda Byrne, colocado
em prática (LeYa), de Michael J. Losier. A tecnologia
foi empregada na narração da obra, que utiliza voz
sintética. Inicialmente, o projeto envolve apenas livros
de não ficção. É preciso dar tempo ao tempo para que
a tecnologia se aprimore e consiga trazer vozes de
múltiplos personagens e diferentes entonações ao longo
de uma história de ficção. Essa novidade promete baratear
os custos e o tempo da produção. Os ensinamentos de Losier
sobre como podemos utilizar a lei de atração a nosso favor já
venderam milhões de exemplares em todo o planeta. As lições
ensinam também a afastar aquilo que não desejamos. A obra
está disponível nos planos premium do Skeelo e pode ser en-
contrada apenas no app, disponível para Android e iOs.
OUTRA LÍNGUA
(Puerto Rico) e Criatura (Uruguai).
Obra O autor Éfren Geraldo reuniu espé-
colombiana cies reais e imaginárias, provenien-
tes de interesses, preferências e
ganha tradução histórias de vida próprias e alheias,
E
ra uma vez um soldado do tê-la magoado; porém, se a senhora
quartel vermelho que resol- for mestre, pense que lecionar é uma
veu escarnecer dos profes- dádiva que os professores nunca
© DZAIN/MIDJOURNEY
A AUTORA ANABELLE LOIVOS CONSIDERA é doutora em Letras - Literatura Comparada pela UFF, pós-doutora pela USP (FFLCH) e professora
associada à Faculdade de Educação da UFRJ. Dedica-se a pesquisas nas áreas de Educação (com ênfase em História da Educação e Memória)
e Letras (com ênfase em Literatura Comparada, em Didática Especial da Língua Portuguesa e suas Literaturas e em Práticas Pedagógicas e
Estágios Supervisionados). É membro do corpo de pesquisadores e sócia do ILTC - Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência.
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ESCRITA VIVA 11
de ciência, de sabedoria e de resistência. Porém, Jarid foi além de editora… uma amiga que ganhei
a visão colonial não nos vê assim. Sou neta de mu- nesse processo. O livro ia ser publicado por um
lheres ribeirinhas, mas sou também mulher ribei- pequeno financiamento coletivo. Nesse período,
rinha. Mesmo as nascidas na cidade são dos rios. conheci Jarid no clube de escrita que ela coordena
É uma identidade forte e complexa. Um dos meus e, coincidentemente, ela estava procurando uma
olhos é asfalto, e o outro é planta. Muitas das avós autora do Norte para publicar. Pediu para ler o li-
paraenses/nortistas também exercem o papel de vro e se apaixonou por ele, depois disso o livro foi
alfabetizar suas crianças e as de outras pesso- publicado pelo selo Ferina, que na época estava na
as, era o que minha vó materna fazia. Não é uma editora Pólen – hoje se chama Jandaíra – e conti-
história exclusiva de minha família. Inclusive, nua sendo a casa editorial do livro.
em um dos contos, a avó alfabetiza o avô depois
de ele já ser um homem idoso. Nossas matriarcas Uma das suas declarações mais potentes foi “(…)
sempre foram mulheres intelectuais, mas nunca Antes do meu nome ser retirado daquele envelo-
foram respeitadas como tal. Es- pe roxo ontem… ouvia a voz de
se foi um dos questionamentos Elza Soares enquanto chorava
que busquei trazer para a com- agarrada ao meu livro. Eu vou
plexidade das personagens de
“Não vejo as mulheres escrever até o fim, cantava na
Flor de Gume. do Norte como à beira licença poética. Nunca senti o
que fisicamente se inscreveu.
As histórias do livro remetem
da sociedade, pois Minha pele repuxava de meu
à violência contra as mulhe- isso pressupõe que o rosto, como se o osso fosse
res, ao silenciamento delas, às
dores, mas também à resistên-
centro esteja em outro ser minha nova casa, e muitas
vezes foi. Meu rio foi o tutano
cia, ao renascimento… Fala-se lugar. Sempre fomos das coisas, as margens. Só que
muito nas mídias sobre o as- centro também, de estive sempre desgarrada no
sunto, há campanhas contra o meião das águas, onde mui-
feminicídio etc. Entretanto, dez ciência, de sabedoria tos não querem estar, onde o
mulheres são assassinadas por e de resistência. afogamento e o banco de areia
dia no Brasil, segundo dados do mandam. Meus pés de acerolei-
Monitor da Violência. Como isso Porém, a visão colonial ra me levaram de cada dor que
deve impactar (ou impacta) a não nos vê assim” me rasgou até esse desmaio
arte em geral? que me trouxe de volta para um
É o que sempre falo, parece mundo em que meu nome é re-
cansativo para algumas pessoas que a literatura tirado do envelope roxo”. Passado um ano e alguns
traga repetidamente esses temas, mas nunca me messes dessa emoção, como está a carreira de Flor
canso de escrever sobre. Através do livro vi uma do Gume? Você esteve em Boston, para falar do li-
grande rede de profissionais da educação e da vro, não é? Como foi a experiência?
psicologia levando para seus ambientes e proje- O Flor de Gume ainda me parece um livro que
tos esses temas. Isso me anima, mesmo sabendo foi lançado mês passado, ele segue encontrando
que temos muito trabalho pela frente. Existe um muitos leitores e projetos, isso me deixa extrema-
forte impacto não só nas mulheres e nos homens, mente feliz. Já estamos na terceira reimpressão. A
mas também nas crianças e nos adolescentes que viagem pra Boston foi uma ótima oportunidade de
reconhecem no livro a vida do interior e se sentem provar meu ponto sobre a literatura que faço ser
representados. também universal, sentida de modos diferentes,
mas compreendida. Foi lindo estar nas bibliote-
Jarid Arraes (1), escritora das mais importantes cas e conhecer leitores imigrantes, além das duas
da atualidade, editou e fez a orelha do seu livro. turmas de gênero em Harvard que se emocionaram
Como se deu essa relação? bastante ao comentarem sobre o livro. Penso que
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DA
NORMA
AO USO
Como se deu
o processo de
uniformização
e simplificação
do português
utilizado no
Brasil
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14 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA ©
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á mais de 60 anos, a
já que interferia taxionômico que, a partir de
Nomenclatura Gra- diretamente no modus então, deveria servir de mo-
matical Brasileira delo a nossos gramáticos.
(NGB) era adotada tanto pa-
faciendi de nossa Contudo, não foram poucos
ra o ensino programático nas gramaticografia e os gramáticos que, prove-
escolas quanto para os exa- nientes da geração anterior,
instaurava um rígido
mes de admissão e seleção, rebelaram-se contra o que
seja nas universidades, seja padrão conceitual e consideravam certos exces-
nos concursos públicos, con- taxionômico que, a sos e incoerências da nova
forme rezava a Portaria nº terminologia, como é o caso
36, de janeiro de 1959, assi- partir de então, deveria de Napoleão Mendes de Al-
nada por Clóvis Salgado, en- servir de modelo a meida1, que, embora tenha
tão Ministro da Educação e adaptado sua gramática, a
Cultura do governo de Jusce- nossos gramáticos” partir da década de 1960,
lino Kubitschek. Esse docu- aos ditames da nova nomen-
mento, que serviria, nos anos clatura, manifestou-se pron-
posteriores, como referência tamente contrário a uma
para a padronização das categorias gramati- uniformidade terminológica que, segundo suas
cais e outros conceitos linguísticos próprios do próprias palavras, fora criada “com desrespei-
português utilizado no Brasil, resultou do tra- to à tradição e ao bom senso, quando não à pró-
balho intenso de alguns dos principais nomes pria disciplina” (p. 6).
de nossa gramaticografia e linguística, como
O PAPEL DO GRAMÁTICO
Antenor Nascentes, Clóvis do Rêgo Monteiro,
Cândido Jucá (filho), Rocha Lima, Celso Cunha, Sem uma filiação teórica definida e inse-
Antônio José Chediak, Serafim Silva Neto e Síl- rindo-se nas políticas linguísticas do Estado
vio Elia, todos eles comprometidos com o pro- Brasileiro, a NGB é, na verdade, segundo Lau-
jeto de uniformização e simplificação de nossa ro Baldini, um documento que resulta na redu-
nomenclatura gramatical, baseando-se em três ção do papel social do gramático, uma vez que,
princípios fundamentais: a exatidão científica ao impor uma transformação e uma padroni-
do termo, sua vulgarização internacional e sua zação do discurso gramatical, obriga-o a ser
tradição na vida escolar brasileira. uma espécie de “comentarista” da nomencla-
Oficializada em 1959, a NGB – como ficou tura. O gramático, portanto, perde espaço e im-
mais conhecida – promoveu uma considerável portância dentro da dinâmica social na qual se
inflexão no processo de construção das gramá- inscreve o saber metalinguístico, e a gramáti-
ticas brasileiras, já que interferia diretamen- ca passa, muitas vezes, à condição de um mero
te no modus faciendi de nossa gramaticografia repositório de dados linguísticos previamente
e instaurava um rígido padrão conceitual e arrolados pela nomenclatura oficial. Imbuído
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NOTAS REFERÊNCIAS
1 Napoleão Mendes ALMEIDA, Napoleão Mendes de. CUNHA, Celso. Gramática do Portu- -Filologia-Linguística. Revista Anpoll,
de Almeida Gramática Metódica da Língua guês Contemporâneo. Rio de Janei- São Paulo, n. 8, p. 29-39, jan./jun.
(1911-1998) Portuguesa. São Paulo: Livraria Aca- ro: Padrão, 1980. 2000.
dêmica, 1943. FÁVERO, Leonor Lopes; MOLINA,
Gramático, filólogo e profes- ORLANDI, Eni P. Língua e Conheci-
sor brasileiro de português e AMORIM, Marcelo da Silva. NGB Márcia. As Concepções Linguísticas mento Linguístico: Para Uma História
latim. Fundador dos cursos de e NGP: Uma Comparação entre no Século XIX: A Gramática no Brasil. das Ideias no Brasil. São Paulo:
português e latim por corres- Nomenclaturas. Domínios de Lingua- Rio de Janeiro, Lucerna, 2006. Cortez, 2002.
pondência, colaborou com O gem. Revista Eletrônica de Linguísti- GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos SILVA, Maurício. Gramática da
Estado de S. Paulo e é autor ca, Uberlândia, n. 4, p. 1-20, 2009. Estudos do Português no Brasil: A Língua Portuguesa no Brasil: um
de alguns livros relacionados
BALDINI, Lauro. A NGB e a Autoria Gramatização Brasileira. In: GUI- estudo da gramaticografia brasileira
com a gramática e a filologia
no Discurso Gramatical. Línguas e MARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni pré-NGB (1930-1960). In: ASSUN-
portuguesa, que lhe atribuí-
Instrumentos Linguísticos. Campinas, Puccinelli (orgs). Língua e Cidadania: ÇÃO, Carlos; FERNANDES, Gonçalo;
ram o título de personalidade
v. 1, n. 1, p. 97-107, jan./jun. 1998. O Português no Brasil. Campinas: KEMMLER, Rolf (orgs.). Tradition and
influente nesta área, como
BECHARA, Evanildo. A Tradição Gra- Pontes, 1996, p. 127-138. Innovation in the History of Linguis-
Gramática metódica da língua
portuguesa, Gramática latina e matical Luso-Brasileira. Confluência. ORLANDI, Eni P. Metalinguagem e tics. Münster: Nodus Publikationen,
questões vernáculas. Rio de Janeiro, n. 10, p. 66-76, 1995. gramatização no Brasil: Gramática- 2016, p. 347-355.
ESCRITA VIVA 17
Uma casa
brasileira
com certeza Texto de Roberto Sarmento Lima
“Quero começar,
como quem não quer
nada, com a descrição
de um microcosmo:
trata-se de uma casa
que aparece em um
romance que ainda
faz muito sucesso,
sobretudo por causa
de certos olhos
misteriosos de mulher”
T
eria passado pela cabeça daquele escri- da primeira, tal e qual. Vista inicialmente por
tor que viveu no século 19 fazer de uma fora, deduz-se que a casa seja simples, espaço-
casa o retrato do Brasil? Pior: do Brasil sa e naturalmente confortável, trazendo uma
daquele tempo e, por incrível que pareça, de ho- inspiração das antigas casas-grandes da épo-
je também, sem mudar praticamente quase na- ca da colonização portuguesa, como disse Gil-
da? Na casa onde vamos entrar é possível que berto Freyre, no seu Casa-grande & senzala1,
encontremos o que há de mais doentio e per- de 1933. Realmente, não há luxo; há espaço pa-
verso na sociedade brasileira — um vasto painel ra tudo nessa casa apresentada pelo narrador:
da nação. Isso é o que vamos ver. O instinto de
crítico reconhece que ele tinha razão nas suas “[...] é o mesmo prédio assobradado, três ja-
elucubrações. nelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas [...]. Tenho chacarinha, flores, le-
À MESMA IMAGEM E SEMELHANÇA
gume, uma casuarina, um poço e lavadouro.”
Quero começar com a descrição de um micro-
cosmo: trata-se de uma casa que aparece em um Comparando, essa casa do romance se pare-
romance de muito sucesso ainda, sobretudo por ce bastante com as casas daqueles tempos an-
causa de certos olhos misteriosos de mulher. tigos no Brasil, como esta que Gilberto Freyre
Lançado em 1899, o livro ainda seduz leitores. descreve:
Nele, seu narrador, em idade mais avançada,
projetou a casa de modo a torná-la semelhan- “A casa-grande de engenho que o colonizador
te àquela em que viveu durante a adolescên- começou, ainda no século XVI, a levantar no Bra-
cia. A ideia era que a segunda, em outro lugar sil [...] alpendre na frente e dos lados [...] Paredes
da cidade, tivesse a mesma compleição física grossas. Alicerces profundos.”
ESCRITA VIVA 19
Alicerces profundos! Comprova-o a pro- “O meu fim evidente era atar as duas pontas
gressão da nossa história. A imagem desse da vida, e restaurar na velhice a adolescência.”
alpendre (copiar ou varanda, como quei-
ram chamar, de acordo com a região que se Numa atitude quase religiosa, o narrador
focaliza) mais a potência dessas paredes — se vê a si próprio no encontro com o Desco-
metáfora de nosso processo civilizatório, nhecido, que lhe reservou desamparo:
resistente a mudanças — continuam a as-
sombrar, persistem como obsessão nos dias “Pois, senhor, não consegui recompor o que
atuais. Aliás, no Brasil, a continuidade cega foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
dos valores — volta ao passado, retrocesso, fisionomia é diferente.”
retorno — parece entranhar-se em tudo que
é objeto cultural presente aqui. Isso se refle- Quase um mártir que procura descanso,
te na própria linguagem do narrador: esse homem reflete sobre sua via-crúcis per-
corrida até ali. Como não se segurar às pare-
“A casa em que moro é própria; fi-la construir des grossas, protetoras, da antiga casa? Não
de propósito, levado de um desejo tão particu- lhe restou alternativa, senão repetir esse
lar que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, passado, ao menos na aparência de uma ca-
há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no sa senhorial, com ares de convento. Gilber-
Engenho Novo a casa em que criei na antiga Rua to Freyre faz notar que em muitas das casas
de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e velhas da era colonial “estava-se como em um
economia daquela outra, que desapareceu.” convento português — uma grande fazenda
com funções de hospedaria e de santa casa”.
A casa é própria (sinal de que o narra- Declara o antropólogo pernambucano:
dor está bem de vida e deseja perpetuar-se
nessa imagem, que vem desde a adolescên- “Se a casa-grande absorveu das igrejas
cia). A sua reprodução serviu para mostrar e conventos valores e recursos de técnica,
que as elites só se sentem seguras quando também as igrejas assimilaram caracteres da
andam para trás, apegando-se ao passado casa-grande: o copiar, por exemplo. Nada mais
que teria dado certo... para elas mesmas, interessante que certas igrejas do interior do
evidentemente. Reprodução, conservação, Brasil com alpendre na frente ou dos lados como
restauração, analogia, parecença: o texto se qualquer casa de residência. Conheço várias —
recobre desse vocabulário do campo semân- em Pernambuco, na Paraíba, em São Paulo.”
tico das similaridades, as quais conferem
mais estabilidade ao narrador circunspec- O próprio Machado de Assis, nesse seu
to e avesso a mudanças: Dom Casmurro, resolveu lembrar, por uma
observação do tio Cosme — outro que faz da
“O mais é também análogo e parecido.” casa de Mata-cavalos uma hospedaria, junto
com a prima Justina e o agregado José Dias —,
Chicoteado embora pelos instáveis mo- que “a Igreja brasileira tem altos destinos”, e,
mentos com que não contava enquanto du- nessa mistura bem nacional de religião com
rou o casamento que naufragou, ele não vida social e política, alude ao fato de que “um
quer ver cair o seu mundo de alicerces pro- bispo presidiu a Constituinte e o Padre Feijó
fundos e paredes grossas; não quer vê-lo su- governou o império...”. Não admira, pois, que
cumbir ante os embates, os imprevistos e as o agregado dessa família, o queridíssimo Jo-
surpresas que, no decorrer, lhe causaram sé Dias, no capítulo 61, numa demonstração
choque. Daí a tentativa, mesmo assim, de clara de que está integrado ao mundo senho-
reconciliar-se com o passado: rial que a casa representa, solte esta máxima
ESCRITA VIVA 21
NOTAS
ESCRITA VIVA 23
E
stamos vivenciando um contínuo com o mais abismal dos pandemia cresceu enormemente
momento na história da hu- seres. Nesse contexto de grave crise a compra de livros pela internet, e
manidade que tem a saúde sanitária, muitos amores e amizades muitas pessoas que não tinham esse
como elemento fundamen- se esfacelaram nesse exercício de hábito acabaram gostando do que ex-
tal de busca de felicidade numa so- compreender o outro na sua totali- perimentaram. A literatura não tem a
ciedade doente em muitos aspectos. dade, já que esse contato passou a função de salvar vidas, mas cada um
A pandemia trouxe muitos agravan- ser contínuo, diário e total. se apropria de algo de acordo com
tes sociais, psicológicos e econô- Aos poucos os hábitos foram mu- suas necessidades; e muitas vezes
micos, mas ainda não sabemos os dando nesse isolamento social, e essa apropriação vem em forma de
reflexos que isso trará daqui a algum quando menos percebemos estáva- remédio no sentido que ameniza an-
tempo, pois a história nos ensina que mos olhando de forma diferente para gústias, ansiedades, pensamentos re-
outros efeitos de uma situação des- um facho de luz que invadia o vão petitivos e até o tédio. O poeta Percy
sa dimensão serão verificados com da janela e criava um desenho na Bysshe Shelley, no seu fundamental
mais precisão somente mais adiante. parede ou no chão. Pesquisas dizem ensaio Uma defesa da poesia, diz que
Outro fato que ficou evidente nesse que as pessoas começaram a es- “o cultivo da poesia nunca deve ser
processo de compreensão de um crever mais, principalmente relatos mais desejado do que em períodos
instante caótico foi o extremismo po- biográficos. O desenho, a fotografia quando, de um excesso de princípio
lítico e religioso diante de questões e a música retomaram antigos espa- egoísta e calculista, a acumulação
que há muito foram devidamente es- ços esquecidos. Percebemos que ali de materiais da vida externa excede
clarecidas pela ciência. Até mesmo estavam alguns remédios para uma a quantidade de poder capaz de as-
a suposta cura para tal enfermidade doença de fora cujo contexto causa- similá-los às leis internas da natureza
foi questionada por questões ideoló- va a doença interna. humana”. Certamente que Shelley
gicas. O remédio contra a ignorância Precisávamos de uma reeducação se refere às questões materiais que
é o conhecimento e a consciência dos sentidos? A velocidade da vida envolvem a vida, mas isso também se
sobre a estrutura dos fatos e no moderna e a imposição de necessi- direciona à possibilidade de um olhar
modo como eles se constroem. dades trazem nas asas um voo que se que se volta para si, justamente por
O remédio que tanto queríamos contenta com o óbvio e o servilismo ter que se distanciar das questões
para uma solução rápida não existia mercadológico. O isolamento des- materiais devido ao ato primordial de
e ficamos meses trancados em casa construiu provisoriamente esse pro- preservar a vida no isolamento. Essa
com a morte varrendo as ruas vazias. cesso, a inércia pousou sobre o corpo, situação foi contestada pelos segui-
Uma das soluções encontradas para e os olhos viram-se aprisionados ante dores do negacionismo que não acei-
que a loucura não nos sufocasse quatro paredes, tendo na fresta de tavam o isolamento e queriam voltar
foi começar a olhar para si e para uma janela semiaberta um pouco de ao contato social para continuar seus
o mínimo espaço (quase) sadio ao esperança em forma de luz. As pe- ganhos materiais, mesmo com tantas
redor. A interiorização e a busca de quenas coisas que passavam desper- pessoas morrendo ao redor.
si tornaram-se mecanismos funda- cebidas começaram a ser notadas. O O poeta inglês fala especificamen-
mentais para espantar a ansiedade filósofo Henri Bergson dizia que uma te de poesia em seu ensaio, mas,
que muitas vezes rumava à loucura. educação dos sentidos é necessária como sabemos, poesia é o elemento
Enquanto o remédio para a doença para compreendermos nossa vida de efeito estético/subjetivo “contido”
não era criado, o ser humano come- ao nos relacionarmos com o espaço em algo, e não apenas o que se de-
çou forçadamente uma busca pelo ao redor e “essa educação tem por nomina como “beleza estética” numa
remédio da ressignificação das rela- finalidade harmonizar meus sentidos obra artística; e esse “algo” pode ser
ções com o espaço e com o convívio entre si, restabelecer entre seus dados muito variável. A função poética dita
por Shelley não se instaura apenas “a literatura confirma e nega, propõe vida. Rorty escreveu sobre isso no
na escrita e leitura de poesia, mas no e denuncia, apoia e combate, forne- ensaio “Fogo da vida” e, nesse texto,
elemento mimético proporcionado cendo a possibilidade de vivermos ele afirma que “como quer que tenha
pelas artes para se ressignificar as dialeticamente os problemas”. Não é sido, agora gostaria que tivesse pas-
coisas ao nosso redor. Desde o início por acaso que a arte, a educação e sado mais tempo da minha vida com
da humanidade o homem busca a re- a cultura são os primeiros alvos dos versos”. Muito além de terapêutica, a
presentação mimética, seja nas pin- governos ditatoriais. literatura e as artes, em geral, trazem
turas rupestres, seja na estética dos Segundo Aristóteles, a arte deve em si um processo de reflexão sobre
objetos utilitários. A arte teve uma buscar a essência profunda das coi- o Ser e tudo aquilo que ele vivencia,
função importantíssima para muitas sas e não copiar sua mera aparência. constituindo assim um processo de
pessoas no período mais crítico des- Isso já nos fornece uma possibili- conscientização que, segundo Paulo
ta última pandemia. Obviamente que dade imensa de reflexão sobre os Freire, nunca deve se findar por estar
para muita gente a arte continuou elementos simbólicos ali tratados. em contínua transformação.
não significando nada, mas a arte Esse suposto remédio que a arte traz No meu primeiro texto desta colu-
não tem essa função específica de escondido às vezes pode ser amargo, na da revista, escolhi o tema da arte
cura ou de didatismo para explicar já que a arte não quer ser uma pílula como remédio aos males da vida e
as coisas de modo diferente. Pierre mágica de autoajuda, mas sim um trouxe brevemente algumas reflexões
Francastel nos diz que algumas ve- caminho de descobertas que vai se sobre a necessidade desse medica-
zes a sociedade foi “mais bem ana- abrindo como na “Máquina do mundo” mento em tempos tão árduos. A pró-
lisada” por artistas do que por histo- de Drummond. pria revista e toda a sua diversidade
riadores ou sociólogos, justamente O filósofo pragmático Richard de informações e reflexões voltadas
pela neutralidade de posicionamento Rorty, acometido por um câncer e já às artes e às linguagens não deixam
ideológico que contém tal análise. ciente pelos médicos da ineficácia de ser um remédio numa época de
Os livros de autoajuda também do tratamento, lia compulsivamen- poucos suplementos literários que
foram muito procurados durante o te os poemas de Shelley. O filho de possibilitam um diálogo pleno desta
isolamento pandêmico, mas eles não Rorty, ao ver o pai lendo um poeta área com todas as formas de arte.
abordam especificamente a mímesis romântico, questionou-o se os livros
tratada por Aristóteles, e a funciona- de conteúdos filosóficos ou que re-
REFERÊNCIAS:
lidade desses livros está atrelada ao metiam à espiritualidade não fariam
ato de oferecer “pílulas mágicas” para mais sentido naquele momento difícil. BERGSON, Henri. Memória
dissipar dores, além de se tornar um O filósofo respondeu ao filho que e vida. Martins Fontes: São
Paulo, 2006.
nicho de mercado bem rentável para somente a poesia trazia um alento e
CANDIDO. Antonio. Vários
alguns. A literatura não é remédio, completou: “suspeito que nenhum escritos. Ouro sobre azul:
contrariando o título deste texto, mas efeito comparável poderia ser pro- Rio de Janeiro, 2011.
ela possibilita o desencadeamento vocado pela prosa.” Muitas vezes a FRANCASTEL, Pierre. A
de profundas reflexões sobre a vida, poesia foi tida como “perfumaria”, na Realidade figurativa. Pers-
pectiva: São Paulo, 1973.
já que os elementos simbólicos tec- qual a sua utilidade era embelezar e
RORTY, Richard. The fire
nicamente oferecidos pelas figuras enfeitar a vida ou sentimentos nobres of life. Poetry Foundation,
de linguagem têm papel fundamental por meio da linguagem. A filosofia Chicago, 18 nov. 2007.
Disponível em: https://
na estruturação textual. Falamos aqui pragmática tem o conceito de que o www.poetryfoundation.
inicialmente de literatura, mas isso pensamento produzido teoricamente org/poetrymagazine/arti-
vale para todas as artes, uma vez que tenha uma eficácia para resolução cles/68949/the-fire-of-life.
Acesso em: 15 fev. 2023.
para todas elas existe uma organiza- de determinado problema, e um de
SHELLEY, Percy Bysshe.
ção técnica/teórica que envolve seu seus maiores representantes coloca Uma defesa da poesia e
©1: DEDRAW STUDIO / ISTOCKPHOTO.COM
desenvolvimento. Antonio Candido a poesia como um “remédio” para o outros ensaios. Landmark:
São Paulo, 2008.
afirma em O direito à literatura que Ser no momento mais difícil de sua
©1:
O AUTOR NINIL GONÇALVES é poeta, professor, fotógrafo e capista de livros. Graduado em Letras, mestre e doutor em Educação.
Publica nas áreas de poesia, fotografia e ensaios literários. Poesia: Absorções (2011), Repleta Ausência (2020), além de participar de
algumas coletâneas. Fotografia: Cristina nos Olhos (2014), Cristinidades (2015), Cristinas, Terezas, Marias, Anas (2015); e um ensaio fotográfico
no livro trimestral da ABL (2018). Ensaios: Poéticas do Ensaio (2019), Estética do Labirinto (2019), Educadores Paulistas (2022), entre outros.
ESCRITA VIVA 25
O feminismo
vai tomar chá
às quintas
A “velhinha antenada”, como ela se
autodenomina, mantém relação entre
cultura e desenvolvimento, com foco
na poesia, na produção periférica e
nos meios digitais
A
décima mulher a preencher para lá é fato nem corriqueiro, nem antigo nos mais
de condignamente uma vaga no es- de cem anos da ABL. Com isso, já antes da
paço cultural mais reverenciado de posse, figura ao lado de outros professores,
nossas letras, a Academia Brasileira de Le- como Cleonice Berardinelli e Alfredo Bosi,
tras (ABL), fundada em 1897, é Heloísa Buar- ambos infelizmente já de saudosa memória.
que de Holanda. Ela passa a ocupar a cadeira Referimo-nos ainda a outros mestres, em his-
30, que foi de Nélida Piñon, falecida no ano tórico mais escolar do termo. Além do magis-
passado. O pleito foi quase a totalidade dos tério, as atividades que a levam à Academia
votos. Dos trinta e oito possíveis, Heloísa ob- são as de ensaísta, crítica literária, curadora
teve 34, prova acima de tudo do seu prestígio de exposições e pesquisadora. Na formação
intelectual. É prova ainda do reconhecimen- universitária, Heloísa vem das Letras, curso
to por uma luta engajada que envolve temas que frequentou na PUC do Rio. Sua formação
cruciais do nosso presente. Heloísa vem de na licenciatura é o Grego Clássico, a Anti-
uma geografia essencial do pensamento bra- guidade. Na sequência dos estudos, todavia,
sileiro, que é a universidade. Trabalhou anos ela se volta para o contemporâneo e nisto
com Teoria da Cultura, na Escola de Comu- vem entre nós a se notabilizar, a se tornar
nicação da Universidade Federal do Rio de referência.
Janeiro. Veio a se tornar, depois, professora O conhecimento, como se vê, é o que está na
emérita da instituição. Nela, iniciou no ma- base do seu renome, da sua envergadura inte-
gistério em 1964, com a ditadura já em curso. lectual. É, por exemplo, no Brasil, um dos íco-
Como professora que foi e é, na Academia nes do nosso movimento feminista (ver box
faz parte do círculo dos grandes mestres uni- As três ondas), do qual é militante histórica,
versitários que ascenderam à casa, o que não referência entre nós há bem cinco décadas.
“VELHINHA ANTENADA”
que está na base na esteira de Antonio Candido,
têm direito à literatura e ela
Sobre o feminismo ou não, a do seu renome, da pode, sim, ser instrumento de
verdade é que Heloísa é a mu- sua envergadura ascensão para talentos diver-
lher dos livros. Ela gosta do ob- sos. Quando pouco, ela é meio
jeto e da sua edição. Dirige há
intelectual. É, por de autoconhecimento e, por is-
tempos a Aeroplano Editora, li- exemplo, no Brasil, um so, é de fato necessária.
gada à Universidade Federal do Assim, buscando quebrar
Rio de Janeiro (UFRJ). De modo
dos ícones do nosso os paradigmas conservadores
algum, todavia, está na contra- movimento feminista, da universidade, Heloísa or-
mão do presente. Tem verda- ganiza e dirige o “Programa
deiro interesse por tecnologia
do qual é militante Avançado de Cultura Contem-
e é uma conhecedora das suas histórica, referência porânea”, na UFRJ. Coordena
competências, da importância ainda, multitarefa que é, o “Fó-
entre nós há bem
da internet e dos espaços posi- rum M” – espaço aberto para o
tivos e motivados que ela pode cinco décadas” debate sobre as questões que
abrir. Brincando, ela mesma diz envolvem a mulher na univer-
que é “uma velhinha antenada”. sidade. Segunda coordenação
Ainda segundo ela, a tecnologia e a internet sua recai paralela e brilhantemente sobre
não promoveram a superação do livro, su- o “Laboratório de Tecnologias Sociais do
as referências altamente positivas. Em seu Projeto Universidade das Quebradas”. Es-
universo existencial, inclusão é um vocábu- se laboratório, na sua vez, encarrega-se da
lo necessário, de verdadeira importância. aplicação de cursos de extensão da UFRJ
Eis então o porquê de o livro ser essencial nas periferias do Rio. Com isso, o que se
nas mãos dos mais humildes, dos postos à busca é estender aspectos da cidadania
margem. Conforme a professora, o domínio para áreas mais distantes, onde o braço
da palavra para os destituídos é inclusão, e do Estado tem ação parcial, limitada. Pre-
os mais pobres gostam do livro, querem-no. senciais ou remotos, os cursos de extensão
Mente quem diz o contrário. das Quebradas difundem os valores ante-
Para algumas representações burguesas, riormente elencados e tentam dar vez e
a palavra tem vínculo com outras serven- voz à gente local para suas manifestações
tias, representa outros valores. Pode ser a de literatura, música e outros conteúdos.
ESCRITA VIVA 27
Para a nossa mais nova acadêmica, se não menos mais progressista. Dessa forma, en-
houver contatos sérios e rompimentos sin- tretanto, para Heloísa nada de se pensar que
ceros, não se transpõe uma estrutura de do- periféricos são coitados, vazios de conteúdos
minação. Os periféricos, na vez deles, ficam e incapacitados de os criar. Longe disso. Bom
ainda mais submetidos à falta de opção que senso e competência são poderes bem distri-
o tráfico e o crime armado lhes impõem, mas buídos que chegam a todos os endereços. No
também o Estado burguês. Agindo assim, teor de suas palavras, brancos privilegiados
este não justifica as causas históricas da como ela têm de promover a divisão dos bens
sua criação que prometeu na origem ser ao recebidos social e historicamente. A aber-
tura epistemológica da universidade, do co-
nhecimento acadêmico para isso é essencial,
e Heloísa generosamente ao fato se filia.
As três ondas
POESIA NO TOPO DAS CRIAÇÕES
Movimento feminista é a história do
feminismo e de pensadoras feministas. Neste perfil, caberiam ainda e por fim
De acordo com a data, a cultura e o país, menções à Heloísa dos anos sessenta e seten-
feministas ao redor do mundo tiveram ta, figura atuante, corajosa e pública. À épo-
muitas vezes diferentes causas e objeti- ca, suas ações, à medida que se põem contra
vos. A maioria das historiadoras feministas a ditadura, mais se abrem à poesia, que, para
ocidentais defende que todas as ações ela, é a maior de todas as criações. Ela chega
organizadas que trabalham pela obtenção ao parecer de que a mesma poesia é prima-ir-
dos direitos da mulher devem ser consi- mã da filosofia e, por isso, ensina a pensar e
deradas movimentos feministas. Mesmo precisa ser praticada. Devido ao fato, naque-
que as ações não usem o termo “feminis- le episódio, volta-se para a poesia marginal.
mo” para se apresentar, devem ser vistas O Rio torna-se assim uma geografia de ação
como prática feminista. Outros estudiosos e os poetas marginais reinam na contramão,
já defendem que o termo deva ficar restri- na contraordem, na contracultura. São Pau-
to aos movimentos feministas modernos lo, na sua vez e na oposição a isso, está com
e a suas extensões. Esses pesquisadores os poetas do Concretismo (ver box Poesia
utilizam o termo “protofeminismo” para
também é imagem) que pregam o fim do
descrever movimentos mais antigos.
verso. Heloísa, entretanto, congraça-se com
A história dos movimentos feministas os marginais de sua quase terra natal. Des-
modernos no Ocidente é dividida em três se modo, foi das primeiras vozes a teorizar o
ondas. Cada uma é descrita como pre- movimento, a buscar filiações, a levá-lo à uni-
ocupada com diferentes aspectos dos versidade e a confraternizar com os seus poe-
mesmos temas ligados à mulher e sua tas, sob suspeita, na Academia.
história. A primeira onda refere-se ao mo-
Assim, Cacaso, Chacal, Leminski e outros
vimento desde o século 19 até o começo
estão em sua vida e tornam-se amigos de
do 20, que lidou majoritariamente com o
sempre. A poesia, parte tão especial e mate-
sufrágio das mulheres, direitos trabalhis-
rialmente frágil do movimento, passou a ser
tas e educacionais para elas e as meninas.
para ela um oásis em meio à repressão mi-
A segunda onda (décadas de 1960 a 1980)
litar. Papel, mimeógrafo, grampo, tesoura
lida com a desigualdade das leis, com as
desigualdades culturais e com o papel da eram a base de uma produção artesanal. A
mulher em sociedade. Já a terceira onda insistência estava no fato de que, segundo a
(fim da década de 1980 e começo da dé- concepção do grupo, a literatura não depen-
cada de 2000) é vista como uma continu- dia de Gutenberg. Queria se dizer com isso
ação da segunda e como uma resposta às que ela não dependia da imprensa, de uma vi-
falhas nela percebidas. são capitalista que a enquadrara até então. A
ESCRITA VIVA 29
Será o
princípio
do fim?
Máquinas e assistentes virtuais
otimizam o acesso à informação,
potencializam o armazenamento
de dados, produzem textos
e resolvem cálculos a uma
velocidade que o cérebro
humano não consegue atingir.
Mas a IA pode argumentar,
refletir, raciocinar?
R
ecentemente, nos vimos às voltas
com assistentes virtuais inteligen-
tes, especialmente com o ChatGPT1,
capaz de responder a perguntas e produzir
textos com uma velocidade inimaginável,
que levaram a um questionamento inevitá-
vel: essa ferramenta irá substituir os seres
humanos? Será o princípio do fim?
A ficção científica, sempre dois passos,
ou três, à frente, já nos presenteou com ro-
bôs inteligentes substituindo funções só
possíveis para humanos. Ou mesmo seres
artificiais criados para substituir o ho-
mem quando alguma ação fosse perigosa
para ele. Mas, apesar do avanço da tecnolo-
gia, nada havia abalado tanto a sociedade
como o GPT. Ele é realmente a primeira ma-
nifestação da IA que pode mudar o rumo da
história. Da nossa história.
Vivemos em uma época na qual as rela-
ções do humano com o mundo são constru-
ídas a partir de um regime de informação
© PHONLAMAIPHOTO / ISTOCKPHOTO.COM
ESCRITA VIVA 31
ESCRITA VIVA 33
34 CONHECIMENTO
ESCRITA VIVA PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
ESCRITA VIVA 35
fica quase que impossível podemos falar nos impactos da tecnologia sobre
a nossa vida como se isso fosse resultado de algo
construir um sentido que não criamos.
para o mundo. Situações A dependência quase absoluta que temos hoje dos
artefatos digitais é resultado de ações humanas que
extremas como a recente transferiram para as máquinas parte considerável das
pandemia de covid-19 tarefas que antes fazíamos.
36 Escrita Viva
ESCRITA VIVA 37
OM
O.C
OT
PH
CK
TO
/ IS
CK
TO
BS
©E
O som que vem dos guetos auxilia no processo
de ensino-aprendizagem e permite ampliar o
repertório de mundo e a apreciação estética
O
rap é um gênero musical oriundo dos ingleses Rhythm And Poetry. Em outras pa-
guetos, que, contudo, desperta o in- lavras, é arte, que cumpre, como ensina An-
teresse de todos os segmentos so- toine Campagnon, as duas funções sociais da
ciais. As pessoas que pertencem às classes literatura: entreter e conhecer (ver box Cul-
subalternizadas identificam-se com o dis- tura hip-hop e o ensino-aprendizagem)
curso de letras desse estilo; as demais os- A inserção do rap na escola precisa consi-
cilam entre a admiração sincera, o olhar derar esses dois prismas. Em breve análise
exótico e a discriminação racial/social. A de uma produção (algumas rimas, na verda-
abordagem temática dos versos dos rappers de) do rapper Emicida, em intervenção du-
suscita sempre a discussão. rante o Prêmio Multishow 2013, é possível
Além de discurso de protesto e de crítica demonstrar como a inserção desse gênero po-
social, o que provoca diferentes reações, o rap ético permite ampliar o repertório de mundo
é um discurso poético: é uma palavra forma- e, ao mesmo tempo, amplificar a apreciação
da pelo processo de abreviação dos termos estética.
sentidos, dialogando
PH
COESÃO E COERÊNCIA
1) Amarildo
Posto que é um gênero poético, o leitor pre- A despeito de o nome Amarildo ser usa-
cisa de algumas chaves atinentes a esse par do como estratégia de rima interna (“sil” ×
(coesão e coerência), que, embora seja bastan- “ril”), seu emprego, para além de um enge-
te imbricado, tem cada qual uma individuali- nho poético, denuncia mais uma vítima da
dade no que concerne à tessitura discursiva. violência policial.
ESCRITA VIVA 39
Depois de receber uma abordagem da nos direitos humanos para o Brasil, afir-
Unidade Policial Pacificadora (UPP) na Ro- ma a Anistia Internacional.
cinha, Amarildo desapareceu. O homem foi
torturado até a morte; mas até o presente 3) Mães de Maio
momento a família não sabe do paradeiro de Movimento fundado depois das mor-
seu corpo ou de seus restos mortais, portan- tes de 564 pessoas, no estado de São Pau-
to impossibilitada de sepultamento digno. lo, durante dez dias do quinto mês de
Infelizmente, Amarildo é apenas uma 2006. Em 2022, 16 anos depois do episó-
parte de um todo, violento e opressor, con- dio, os crimes continuavam impunes. A
tra pretos e pobres; a repercussão do caso
se deu, sobretudo, pelas campanhas “Cadê o
Amarildo?” e “Somos todos Amarildo”. Des-
ta última participaram Caetano Veloso e
Marisa Monte, entre outros artistas.
Em 2016, houve a condenação de 12 po-
liciais e a denúncia de 25 militares. O ma-
Cultura hip-hop e o
jor da polícia militar Edson Raimundo dos ensino-aprendizagem
Santos, condenado por torturar até a mor-
Criado nos guetos de Nova Iorque, entre o final
te Amarildo, foi reintegrado à corporação.
dos anos de 1960 e início de 1970, sob influên-
O Estado, até ano passado, nove anos após a
cia jamaicana, o hip-hop, que tem em DJ Koll
ocorrência, não havia indenizado a família
Herc e Afrika Bambaataa seus primeiros gran-
(a sentença é de 2016 também).
des expoentes, difundiu-se pelo mundo.
Quatro elementos são a base do hip-hop:
2) Candelária e Carandiru
DJ (Disco Jóquei), que seleciona as músicas,
“Nós não esqueceu da Candelária, nem do
muitas vezes de sua autoria, remixadas; Dança
Carandiru”. Os termos em negrito, além de
(B-Boy e B-Girl, homens e mulheres que dan-
sonoramente estabelecerem um interessan-
çam); MC (Mestre de Cerimônia), que faz uso da
te trabalho de assonância e aliteração, não
palavra; Grafitti (a arte visual), que faz os regis-
foram selecionados apenas por esse aspecto
tros em paredes, especialmente urbanas. Mas
estilístico, mas para fazer uma denúncia. também há outros, como o quinto elemento, o
Do prefácio de Racionais MC’s Sobreviven- Conhecimento (bastante difundido também).
do no Inferno, de Acauam Silvério de Olivei-
No Brasil, ainda nos anos de 1970, eclode pelas
ra, pesquisador de literatura e professor
grandes capitais. Nélson Triunfo, por meio
adjunto da Universidade de Pernambuco,
do elemento dança, é um dos precursores
destacam-se dois excertos sobre os termos:
do movimento. Atualmente, alguns dos mais
1) “quatro militares dispararam contra cer- proeminentes artistas do hip-hop no País são
ca de cinquenta crianças nas escadarias da os rappers Racionais MC’s, Negra Li, Emicida,
igreja da Candelária, no Rio de Janeiro”. 2) Drika Barbosa, Criolo, bem como os grafiteiros
“São Paulo foi palco daquela que é considera- Os Gêmeos, Nina Pandolfo, Kobra, Aline Bispo
da a mais violenta e brutal ação do sistema e também os DJs KL Jay e Cinara Martins, além
prisional brasileiro: o massacre do Carandi- dos dançarinos B-Boy Pelezinho e B-Girl Miwa.
ru”. Foram 111 detentos assassinados.
O rap, “como elemento de maior visibilidade
Uma decisão da justiça brasileira anulou no interior do movimento hip-hop”, segundo o
o julgamento contra os 74 policiais envolvi- antropólogo José Carlos Gomes da Silva, bem
dos no massacre do Carandiru em 1992. Em como por se constituir como poesia, vale uma
outras palavras, até hoje ninguém foi preso reflexão acerca de seus aspectos temáticos,
por conta dos crimes cometidos. Essa deci- composicionais e estilísticos; por conseguinte,
são representa um duro golpe na justiça e para o processo de ensino-aprendizagem.
ESCRITA VIVA 41
Vazante de
um nordestino
Autor cria trilogia dos saraus com
retirante periférico como protagonista
O
romancista José Marques Aos 66 anos, Zé Sarmento recusa
Sarmento, ou, melhor a aposentadoria. Seu novo projeto
ainda, Zé Sarmento, como consiste na trilogia dos saraus. O reti-
é conhecido no universo rante-periférico do atual romance de
literário, é um lavrador nordestino e Zé Sarmento é Vazante: lá e cá – uma
um operário periférico. Da Paraíba declaração de amor ao livro, à leitura,
© ARQUIVO PESSOAL
para São Paulo, fez arado nas artes e à poesia e aos saraus (escrito em um
colheu frutos na prosa e na “prosia” mês). Após lutar para subsistir, nas
(como ele intitula suas performances narrativas da tetralogia, as persona-
nos saraus paulistanos). gens permanecem em batalhas diá-
Autor de 13 livros publicados (11 rias para viver, mas, nesse momento,
impressos e 2 e-books), Zé Sarmento em uma nova dimensão: a da poesia. ram sua visita. Trata-se do projeto
foi alfabetizado aos 14 anos. Desde É poética a prosa do autor de “todo aluno de escola pública me-
então, ele, que já lia o mundo, não Vazante. Também o é, inclusive, a rece um escritor no pé do ouvido”.
parou de ler nem de escrever. Um intervenção que Zé Sarmento faz para Enquanto os pés do Zé Sarmento
dos projetos ousados desse traba- divulgar seu novo romance, o primeiro percorrem escolas, as suas mãos
lhador (do campo e da cidade) das (e único publicado ainda da trilogia digitam Encarniçados, terceiro livro
palavras foi a criação da tetralogia do dos saraus): Vazante. Cumprindo o da trilogia dedicada à poesia pro-
migrante nordestino (sobre)vivendo estipulado pelo Programa de Ação duzida na e pela periferia.
na grande metrópole paulistana. Cultural (PROAC), o autor tem realiza- Aprisionado, segundo romance
A leitura desses quatro romances, do literopalestras em escolas públi- da sequência, já está pronto e tem
com os quais Sarmento coroou sua cas, distribuindo livros a estudantes e data de lançamento: novembro de
carreira artística (até agora), é uma a salas de leitura e bibliotecas. 2023; João Pinheiro, ilustrador de
empreitada que vale cada folha virada Entre maio e junho, a agenda de Zé Vazante (assim como do festejado
pelo leitor. Os enredos de Paraisópolis, Sarmento ficou reservada para as es- Carolina), está finalizando as ilustra-
caminhos de vida e morte, de Bixiga, colas e a biblioteca do seu bairro (“da ções da nova obra de Zé, narrativa
um cortiço dos infernos, de Ângela, um sua quebrada”, como prefere se ex- em homenagem ao movimento do
jardim no vermelho e Os Miseráveis da pressar o escritor sobre sua região). A slam (competição de poesia que, de
seca (que foi escrito ao longo de 20 Biblioteca CEU Cantos do Amanhecer, tão presente na cena literária brasi-
anos) são histórias ambientadas em as EMEFs CEU Cantos do Amanhecer, leira, recebeu até prêmio do Jabuti:
contextos da exclusão pela ótica de Jornalista Paulo Patarra e Fagundes Fomento à Leitura para o Slam da
quem pertence ao povo. Varella, todas em São Paulo, recebe- Guilhermina, ano passado).
O AUTOR FÁBIO ROBERTO FERREIRA BARRETO é professor da rede municipal de ensino e mestre em Literatura pela Universidade de São Paulo.
ESCRITA VIVA 43
relação
habilidades mais valorizadas pelo
mercado de trabalho. Quando falamos em
proficiência em comunicação, estamos nos
referindo à capacidade de produzir e com-
delicada
preender textos, dos mais diversos gêneros
discursivos, desde um e-mail corporativo
até uma bula de remédio.
As aulas de língua portuguesa devem
desenvolver a capacidade de comunicação
Presente nas provas – oral e escrita – dos alunos. Para tal fina-
do Enem e demais lidade, é importante que os alunos sejam
expostos aos mais variados gêneros, prin-
vestibulares, os gêneros cipalmente àqueles que têm grande circu-
discursivos versus tipos lação no nosso cotidiano, incluindo os que
fazem parte do universo virtual, tais como
textuais devem ser os posts de redes sociais, os blogs, os vídeos
objeto de estudo acurado do YouTube, os e-mails etc. Crígina Cibel-
le Pereira, doutora em estudos da Lingua-
no ensino da língua gem, sugere, em Gêneros textuais e modos de
organização do discurso: uma proposta para a
Texto de Aline Fernanda Camargo Sampaio sala de aula (p. 29), partir dos gêneros textu-
ais mais familiares, para depois explorar
ESCRITA VIVA 45
amigos, se é uma canção ou um manual técnico primeiro parágrafo. O restante do texto é con-
da máquina de lavar. Esse conhecimento é apre- siderado o corpo e tem como função dar mais
endido durante a nossa vida pela experiência detalhes que ajudam na compreensão do lead.
linguística. O texto é, então, a forma que nós, Além desses elementos, a notícia tem título, no-
sujeitos, encontramos para colocar a língua em me do autor, nome do veículo em que está sendo
funcionamento em nosso contexto discursivo. reproduzida, pode ter subtítulo, imagem, legen-
Os gêneros são as maneiras de a língua funcio- da, gráficos etc.
nar que nós elaboramos e construímos em for- Sob essa perspectiva, vale salientar que um
ma de texto e eles cumprem uma função social. texto deve manter a coerência no uso de ele-
Por sua vez, o tipo textual remete à estrutu- mentos próprios ao gênero, ou seja, se estamos
ra, ao funcionamento da constituição estrutu-
ral do texto. Dizemos, então, que o tipo textual
faz parte da estrutura interna da configuração
do texto e que um texto de um determinado gê-
nero discursivo pode ter em sua configuração
vários tipos textuais.
Coerência e coesão
Nossas escolhas lexicais, sintáticas, de registro lin
Um romance literário, por exemplo, pode ter guístico (formal, informal, uso de gírias etc.) fazem
passagens mais narrativas ao relatar um acon- parte da organização do enunciado e são determi
tecimento na trama; passagens mais descriti- nadas pelo gênero que estamos produzindo.
vas ao descrever os cenários e os personagens;
Essas escolhas se relacionam com a coerência e a
passagens mais dissertativas/argumentativas
coesão do texto, pois um texto só é coeso se suas
quando o narrador, por exemplo, avalia as ações
partes estão corretamente ligadas, se há progres
e os sentimentos dos personagens. são textual e se a coerência é validada dentro de
ENTENDENDO AS DIFERENÇAS um contexto situacional, dependente do gênero
discursivo em que aquele texto é manifestado.
Para compreender melhor a relação entre os
Em textos do gênero literário, por exemplo, é
gêneros discursivos e o tipo textual, podemos
comum que haja a presença de outros gêneros
citar como exemplo o gênero discursivo notí-
textuais, o que pede outras escolhas linguísticas.
cia. Um dos objetivos da notícia é transmitir
Nesse caso é preciso respeitar essas alternâncias
informações sobre fatos, tanto de fatos passa- de gênero dentro do texto para que as escolhas
dos (“3% dos candidatos a deputado federal não sejam adequadas e pertinentes.
compareceram no último debate”) quanto de fa-
Marcuschi, no mencionado Gêneros textuais:
tos futuros (“Teremos o primeiro eclipse lunar
definição e funcionalidade, enfatiza a possibilidade
do século amanhã à noite”).
da existência de diversas sequências tipológicas
As notícias têm como características a clare-
que dão origem ao tipo textual em um único texto.
za e a objetividade na forma como transmitem A questão que se coloca é a de que o gênero é
as informações, elas primam pelos detalhes e “armadura comunicativa preenchida por sequên
procuram responder às seguintes perguntas: cias tipológicas”, ou seja, é preciso conhecer o tipo
O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? textual (a partir das sequências tipológicas predo
O gênero notícia tem a predominância de se minantes no gênero) para fazer o uso adequado
quências narrativas que formam o tipo textual dos elementos da coesão. Por exemplo, em um
da narração, mas, diferente de um conto, a nar- texto do tipo argumentativo, como um editorial ou
ração da notícia é realizada por meio de uma artigo de opinião, é esperado o uso de conectivos,
linguagem de cunho objetivo e impessoal. tais como pois, porque, além disso, no entanto, a
Como todos os gêneros, a notícia tem um for- fim de que etc., para estabelecer relações de sen
mato específico, trata-se do lead e do corpo. No le- tido entre as ideias e sustentar a argumentação.
ad encontramos as informações que respondem É também a partir da identificação das sequências
às perguntas citadas e, geralmente, trata-se do tipológicas predominantes no texto de um deter
ESCRITA VIVA 47
Mergulho na
literatura de
Antônio Torres
Três romances celebram os 50 anos
do escritor baiano, um dos maiores
nomes da escrita contemporânea:
Essa terra, O cachorro e o lobo e
Pelo fundo da agulha, ganhador do
Prêmio Jabuti de 2006
interessante. Ou seja, memórias de ainda mantém a sua personalidade vados não por nossa vontade, mas
personagens que retornam aos seus bem viva, preserva características por questões circunstanciais que
lugares de origem: “Vinte anos para fundamentais, uma serena altivez, obrigaram a certas trilhas jamais
a frente, vinte anos para trás. E eu no um discreto orgulho, uma transpa- imaginadas por nós? Ouçamos,
meio, como dois ponteiros eterna- rente fidalguia” (p. 169). uma vez mais, Antônio Torres: “Se
mente parados, marcando sempre a Ao final da leitura dos três roman- esta casa está cheia de fantasmas,
metade de alguma coisa – um velho ces, algumas indagações perpas- em plena luz do dia, ainda não dá
relógio de pêndulo que há muito sam e ressoam a nós, leitores, como: para dizer. Mas por via das dúvidas,
perdeu o ritmo e o rumo das horas. em que medida estamos prepara- vou abrir todas as janelas e dei-
Eis como me sinto e não apenas dos para nos deparar com nosso xar o sol entrar. Sol, luz, muita luz.
agora, agora que já sei como tudo percurso pretérito? Em que medida, Antes que eu me assombre com
terminou” (p. 21). a cada dia que passa, poderemos ter a minha própria sombra” (p. 81).
De um modo geral as persona- certeza, nunca absoluta, de que o Irresistivelmente nos perguntamos:
gens dos livros fazem comparações nosso presente poderia ser diferen- como adentrar, de verdade, em
dos espaços que ocupavam em te? O que de fato foi uma escolha nosso subterrâneo? Dostoievski, do
seu passado, relacionando-as com nossa? Em que medida somos le- Olimpo, sorri ironicamente…
© MATHEUS DIAS / DIVULGAÇÃO
A AUTORA ANA MARIA HADDAD BAPTISTA é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP), com pós-doutoramento em História da
Ciência pela Universidade de Lisboa e PUC/SP, onde se aposentou. Pesquisadora e professora dos programas de pós-graduação Educação, stricto
sensu, da Universidade Nove de Julho de São Paulo. Possui dezenas de livros e ensaios publicados no Brasil e no exterior. professoraanahb@gmail.com
ESCRITA VIVA 49
O que é
narrar?
Entender a diferença entre contar um
fato e construir uma narrativa é a base
para separar relatos de produção literária
Q
uem narra conta alguma coisa. Mas não é visto como algo tão relevante a ponto de
contar qualquer coisa seria o mesmo ser contado. Como o próprio nome indica, são
que narrar? Depende. O site História “histórias sem graça”, que se referem àquelas
sem graça, por exemplo, ficou famoso ao publi- pequenas ações que realizamos cotidianamen-
car breves relatos anônimos como estes: te, às vezes sem prestar muita atenção nelas, e
sobre as quais não sentimos a necessidade de
“coloquei a mão no bolso procurando meu ce- conversar com quem está próximo de nós.
lular, não achei, e depois lembrei que estava na A brincadeira se torna engraçada porque
minha mochila.” todos(as) nós temos internalizada a noção de
que apenas eventos extraordinários – pelo me-
“hoje eu achei um grampo na pia do banheiro da nos em certa medida – merecem ser contados.
faculdade, coloquei ele no meu cabelo. chegan- Diante de relatos desinteressantes como os
do na sala, tirei o grampo do cabelo e coloquei mostrados pelo site, normalmente fazemos a
em cima da mesa. esqueci ele lá.” pergunta: “e daí?”. No fundo, pensamos que al-
guém só contaria algo assim porque logo a se-
A princípio, os trechos mencionados pode- guir falaria de coisas mais interessantes.
riam ser considerados narrativas porque cor- O psicólogo Jerome Bruner, no ensaio The
respondem à organização de determinados narrative construction of reality (A construção
eventos numa sequência, em que alguns vêm narrativa da realidade), afirma que construí-
antes e outros depois. Essa organização é rea- mos a nossa realidade por meio das narrativas
lizada por quem os está contando: a pessoa que que nos são contadas e recontadas desde o nas-
narra, também chamada de narrador(a). No en- cimento. Como muitas delas foram considera-
tanto, seu caráter narrativo se enfraquece pe- velmente repetidas, elas já não nos parecem
lo fato de que os eventos narrados são comuns narrativas, mas programações que fazemos
demais para despertar verdadeiro interesse. sem nem mesmo nos dar conta. Retomando a
A proposta inusitada do site é justamente nomenclatura utilizada pelos pesquisadores
conferir importância àquilo que geralmente Roger Schank e Robert Paul Abelson, Bruner
ESCRITA VIVA 51
Outra possibilidade é o “modo dramático”, que uma posição vantajosa (boa sorte). A trajetória
pressupõe o uso intenso de diálogos, tornando da personagem reúne, assim, uma movimenta-
o texto narrativo semelhante a uma peça de te- ção de queda e, posteriormente, de ascensão.
atro. Ernest Hemingway e Dorothy Parker, por Rapaz encontra moça ou moça encontra ra-
sua vez, escreveram inúmeras narrativas a par- paz. Logo no início, o(a) protagonista encontra
tir desse método. alguém por quem se apaixona (ou algo que lhe
Embora menos comuns do que os outros ti- parece muito satisfatório), experimentando
pos, narrações em segunda pessoa – tu, você – momentos de felicidade (boa sorte). Em segui-
também podem ser encontradas. Nesse caso, a da, algum obstáculo se interpõe, acarretando a
história parece estar sendo contada para o(a) perda do ser ou objeto amado, o que faz com que
protagonista, sem se concentrar, contudo, em ele(a) vivencie instantes de infelicidade (má
eventos relativos a uma terceira pessoa, mas sorte) até recuperar o amor/objeto ou encon-
naqueles em que ele(a) está envolvido(a). Muito trar outro equivalente (boa sorte). O seu traje-
mais raras ainda, mas não inexistentes, são as to começa com a ascensão, passa pela queda e
narrativas nas pessoas do plural – nós, eles(as). termina em nova ascensão.
Geralmente se utilizam esses tipos menos re- Cinderela. No início, Cinderela se encon-
correntes para fins específicos. Por exemplo, tra numa situação bastante desfavorável, pois
pode-se empregar a narração em segunda pes- seus pais morreram e ela está vivendo na com-
soa quando se quer imprimir um tom acusatório panhia da madrasta e suas filhas, que a maltra-
ou impositivo à narração. tam (má sorte). Num determinado momento, ela
Escolhida a voz narrativa, haveria ainda a recebe a visita de sua fada-madrinha, que pau-
necessidade de se determinar o tipo de história latinamente lhe oferece as condições para par-
a ser contada. Numa série de vídeos no YouTu- ticipar do baile no castelo, no qual conhecerá o
be, é possível encontrar palestras do escritor príncipe (boa sorte). A ascensão de Cinderela é
estadunidense Kurt Vonnegut Jr.1, nas quais gradual até o relógio bater as doze badaladas
ele discorre sobre os seis tipos mais comuns de da meia-noite, depois das quais começa seu mo-
enredo. Essa teria sido a primeira proposta que vimento de queda abrupta até a posição de onde
ele apresentou para uma pesquisa de mestra- saiu (má sorte). No entanto, num último desdo-
do em antropologia, que acabou sendo rejeitada bramento, o príncipe a reencontra, o sapatinho
pelos seus professores e substituída por outra. se encaixa em seu pé e eles vivem felizes para
No entanto, Vonnegut expôs os conhecimentos sempre (boa sorte), naquilo que se caracteriza
reunidos nesse estudo em eventos e entrevistas como uma nova e definitiva ascensão.
sobre escrita criativa. Hamlet. Assim como Cinderela, Hamlet co-
Nessas apresentações gravadas, ele frequen- meça numa situação desfavorável, mas, ao con-
temente aparece desenhando, num quadro ne- trário dela, não conhece nenhuma ascensão.
gro, um gráfico com dois eixos. O eixo vertical Seu pai está morto e sua mãe tem um novo ma-
teria como extremos a boa e a má sorte e seria rido, irmão do rei falecido (má sorte). Hamlet se
intersectado, no meio, pelo eixo horizontal, que encontra com o fantasma do pai, que lhe revela
representaria, por sua vez, o progresso da nar- ter sido assassinado pelo novo monarca, pedin-
rativa do início ao fim. A partir disso, são traça- do-lhe que vingue a sua morte (má sorte). Ham-
das linhas referentes ao desenvolvimento das let hesita, dividido entre realizar a promessa
seguintes tramas: que fez ao fantasma e não agir, pois não tem cer-
Humano num buraco. No início da narrati- teza de que se trata mesmo de seu pai (má sorte).
va, o(a) protagonista se encontra numa situação No caminho da vingança, Hamlet mata amigos
favorável (boa sorte), mas, durante o desenro- e inimigos, perde a namorada e a mãe e também
lar dos eventos ficcionais, sofre algum tipo de morre (má sorte). Vonnegut representa esse ti-
revés que o lança numa condição desfavorável po de história como uma linha reta e contínua
(má sorte) até que algo faz com que retorne a partindo de uma situação de infelicidade.
ESCRITA VIVA 53
Os fascinantes
diálogos
entre áreas do
conhecimento
A busca do belo e da poesia,
presentes na arte, é também
inerente ao processo de criação
na ciência, e sempre fascinou
pensadoras e pensadores notáveis
M
esmo em uma época intacta, a exemplo de outros dicioná- existir quando a questão é vista pelo
perpassada por tantas rios referenciais do nosso idioma. viés contemporâneo, atravessado por
tecnologias, em que é Virando as páginas do pesado vo- um excesso de formações centradas
possível fazermos con- lume, encontro à página 1.124 os prin- em especializações separadoras do
sultas on-line instantâneas sobre prati- cipais alcances de sentido da palavra conhecimento. Mas nem sempre foi
camente qualquer assunto, por incrível (ou “verbete”, aos que preferirem o assim. No período clássico grego, por
que pareça, ainda mantenho na minha termo dicionaresco) que nos manterá exemplo, promover interfaces entre
biblioteca, talvez movida por algum conectados neste espaço que aqui áreas do conhecimento era a regra,
indiscernível afeto, um exemplar do iniciamos: interface. Da longa série de não a exceção.
clássico Dicionário Aurélio da Língua definições trazidas pelo Aurélio, inte- Por esses diálogos entre saberes
Portuguesa. Edição em capa dura, de ressam-nos especialmente as duas é que teceremos, aqui, presentes e
1999, plena virada de século, portanto, primeiras: “1. Dispositivo físico ou futuras reflexões. Ousando, quem
onde se lê “Século XXI” logo abaixo do lógico que faz a adaptação entre dois sabe, suscitar mudanças que possam
título. Anunciava-se ali o novo milênio, sistemas; 2. Conjunto de elementos levar a cabo novos olhares e atitudes
buscando ainda resguardar a tradição comuns entre duas ou mais áreas do cotidianas mais abrangentes que o
de um dos mais respeitados dicio- conhecimento, de interesse etc.: A mundo contemporâneo nos cobra
nários da nossa Língua Portuguesa; interface entre a física e a química.” com urgência.
2.128 páginas de um acervo lexical já Definição anunciadora de algo Promover interfaces entre variadas
revisto e atualizado em várias edições que para muitos é um desafio, para áreas do conhecimento pode, de fato,
posteriores desde então. As mais re- outros uma arte: tecer diálogos en- revelar-se um exercício fascinante.
centes, inclusive, com disponibilidade tre áreas do conhecimento. Ao que Não somente pelas descobertas trans-
para acessos digitais. Bom lembrar, no parece, quanto mais aparentemente formadoras que isso pode gerar, mas,
entanto, que a aura de sobriedade do distantes as áreas, mais fascinante o para além, pela poesia de vida a en-
bom e velho Aurélio ainda se mantém intento. O desafio, contudo, parece volver tais alcances intelectuais eman-
cipatórios. Para citar exemplos que o espaço na ciência!” Evidente que não ciência se tocam. Poeta e cientista
podemos aprofundar futuramente, se trata de, ingenuamente, negar-se se equivalem. Espécie de resposta
saber que a arte de Picasso foi influen- a importância disso. Por outro lado, os ao verso “Como domar a astúcia do
ciada por conceitos do filósofo e ma- processos de elaboração científica de infinito?”, dito por Marco Lucchesi,
temático Henri Poincaré e pela teoria Einstein também envolviam o exercício também um profícuo poeta das in-
de espaço-tempo quadridimensional da arte musical, e isso não é devida- terfaces, em um dos belos poemas
desenvolvida por Einstein, como atesta mente lembrado ou enaltecido. Ele de seu livro Hinos Matemáticos.
Arthur Miller em Einstein, Picasso: spa- aprendeu a tocar violino por influência Celebrando, pois, o infinito, ouça-
ce, time and the beauty that causes ha- da mãe, talentosa pianista. Ambos mos Clarice Lispector em A desco-
voc. Que Einstein, assim como Picasso, costumavam, inclusive, fazer duetos berta do mundo, neste derradeiro
também foi influenciado por Poincaré, para executar sonatas de Mozart, ou- exemplo que cito como um convite
mas também amava música clássica tro gênio por quem o Nobel de Física a compartilharmos outras futuras in-
e teve vários violinos ao longo da vida, tinha imensa admiração. “A música de terfaces aqui neste espaço: “O senti-
aos quais sempre atribuía o apelido Mozart é tão pura e linda que eu a vejo mento de beleza é o nosso elo com
afetuoso de “Lina”, nos revela Walter como reflexo da beleza interna do pró- o infinito. É o modo como podemos
Isaacson, em Einstein: sua vida, seu uni- prio universo”, teria dito certa vez a um aderir a ele. Há momentos, embora
verso. Que o matemático Poincaré, por amigo Miller, como lemos em sua obra. raros, em que a existência do infinito
sua vez, foi intenso defensor da leitura A música não era mero entrete- é tão presente que temos uma sen-
de textos literários e do estudo da nimento para Einstein. Ajudava-o a sação de vertigem. O infinito é um
gramática como formação fundamen- pensar sobre questões mais com- vir a ser. É sempre o presente, indivi-
tal aos que quisessem se tornar bons plexas. Sempre que se via diante de sível pelo tempo. Infinito é o tempo.
cientistas, que pode ser conferido em algum impasse ou dificuldade de Espaço e tempo são a mesma coisa.
seus Ensaios Fundamentais. Não pare- raciocínio lógico, voltava-se à música Que pena eu não entender de física
ce fascinante? para conseguir desfazer entraves de e matemática para poder, nessa mi-
pensamento. Costumava tocar violino nha divagação gratuita, pensar me-
A BUSCA DO BELO na cozinha, às vezes tarde da noite, lhor e ter o vocabulário adequado
Para alguns pode até não ser no- improvisando melodias enquanto ra- para a transmissão do que sinto.”
vidade, mas, se assim for, então por ciocinava sobre problemas científicos
que só se dá relevância, em geral, complicados.
ao fato de Einstein haver se dedica- A busca do belo e da poesia presen-
do à física e à descoberta da Teoria tes na arte, mas, lembremos, também
REFERÊNCIAS
da Relatividade? Por que se fala de inerentes ao processo de criação na
Picasso somente como pintor? E de ciência, é algo que sempre fascinou ISAACSON, Walter. Einstein: sua vida,
Poincaré principalmente como mate- pensadoras e pensadores notáveis. seu universo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 34.
mático? Provavelmente porque, em Afinal, para além de seu imenso al-
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do
algum momento, deixou-se de lado a cance científico, o que se manifesta mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.
bela relevância das interfaces do co- na famosa fórmula da Teoria da 291-292.
nhecimento. Relatividade (E=mc²), senão um em- LUCCHESI, Marco. Hinos matemáticos.
São Paulo: Tesseractum, 2022. p. 17.
Alguém pode, ainda, argumentar: prego sígnico equivalente àquele da
MILLER, Arthur I. Einstein, Picasso: space,
“Mas o fato de Einstein haver elabo- poesia? Ou seja, traduzir o intraduzível, time and the beauty that causes havoc.
rado a Teoria da Relatividade é muito dizer o indizível, o infinito, por meio New York: Basic Books, 2008.
mais importante! Mudou a física e a da elegância de uma máxima síntese. POINCARÉ, Henri. Ensaios Fundamentais. Rio
de Janeiro: Contraponto-PUC/Rio, 2008.
maneira como entendemos o tempo e Neste denso exercício criativo, arte e
A AUTORA MÁRCIA FUSARO é doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com pós-doutoramento em Artes (UNESP), mestra em História
da Ciência (PUC-SP), especialista em Língua, Literatura e Semiótica (USJT). Professora e pesquisadora dos programas de pós-graduação em
Educação da Universidade Nove de Julho, em São Paulo. profmarciafusaro@gmail.com
ESCRITA VIVA 55
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Formação continuada
De volta para
o futuro! É mais que necessário definir o
que é formar-se continuamente, e
as linguagens são o caminho para
Texto de Marcio Scarpellini Vieira
deixarmos as amarras do passado,
construindo pontes no presente
O
lá, professor do século 21! Lembra quan-
do, na nossa época, para ler um livro
precisávamos ir à biblioteca da cidade? Tantas opções, que faltam decisões, tanto a
Ah, a nossa época! fazer, a ler, a aproveitar; centenas de histórias
Qual é a nossa época? A nossa época é a épo- disponíveis no streaming, que, de tanto procu-
ca das inteligências artificiais, dos jogos on- rar, desistimos de ver um filme e vamos… shorts.
-line, da ficção que virou realidade, dos carros As linguagens culturais parecem estar mudan-
autônomos, dos hologramas, da violência nas do. Vídeos curtos, séries longas. Tantas opções,
escolas, da evasão no ensino básico, do analfa- tantas depressões.
betismo funcional e das profissões que já exis- São necessárias atualizações tecnológicas,
tem na prática, mas não na academia. são necessárias atualizações comportamentais.
Ah, a nossa época! Esta é a nossa época! Ambí- Necessárias atualizações. Tantas, que aceleram
gua, desafiadora e certamente incrível! Incrível, o pensamento. Faltam nomes às profissões, so-
pois muitas vezes parece não ser crível aquilo bram nomes aos diagnósticos.
que vemos: “quando penso que já vi de tudo…” Precisamos atualizar aplicativos, são tantos
Esta nossa época ainda não tem nome, mas aplicativos, aliás. Atualizar. Voltar para o atual,
sabemos que a quantidade de conhecimento voltar para o agora.
acumulado no mundo dobra a cada 20 meses, a Eis o desafio: Não viver no passado, pois “os
tecnologia salta quilômetros à frente todos os cachorros de ontem não conseguem caçar os co-
dias, a grande novidade de hoje cedo está desa- elhos de hoje” (antigo provérbio Gonja, tribo do
tualizada ao final do dia, e em todo o globo a no- oeste africano), e não viver no futuro. Afinal,
tícia já foi veiculada imediatamente. passado não existe, e futuro também não. Existe
Esta é a nossa época, épica. o presente, mas também o presente do passado,
ESCRITA VIVA 57
ESCRITA VIVA 59
Confesso: errei
Por duas décadas, recusei as
simpatias de Ano-Novo. Conversando
com uma tradutora do esloveno,
percebi que estava errado CKPHO
TO.CO
M
E / ISTO
OUCH
© NAT
M
inha família sempre contraram o ângulo certo, lua de um traduções da Odisseia, me decidindo
gostou de simpatias de lado, turistas do outro, três, dois, um, entre Frederico Lourenço, Odorico
Ano-Novo. Tenho dúvi- e todo mundo abaixou a calça, subiu Mendes ou Trajano Vieira. Encomendo
das se alguma vez elas a saia, desceu os shorts por alguns a obra e aguardo ansioso pela entrega
deram certo. Minha mãe, claro, vai segundos, que foram suficientes enquanto, nas redes sociais, cada qual
responder que sim e me chamar de para garantir a sorte daquele ano. exibe a própria família toda vestida de
descrente: todos estarem bem, com Menos eu. Talvez tenha sido naquele branco. Abro feliz o pacote e me sento
saúde, é a maior prova. Meu pai, notei dia que começou minha adolescên- para ler enquanto os noticiários ainda
depois que cresci, prefere participar cia, com a escolha de uma sorte que exibem imagens da queima de fogos
a argumentar contra. É mesmo mais fosse apenas minha. em Copacabana, ou do réveillon dos
fácil. Tenho memórias muito antigas Passei a recusar os costumes da famosos, ou do que os videntes espe-
dos meus parentes pulando as sete família, criei tradições pessoais, para ram para o ano que se inicia. O ano é
ondas do mar, equilibrando-se sobre desespero da minha mãe, que temia novo, mas começa sempre igual.
o pé direito na hora da contagem me ver atirado em um fosso de azar As boas edições trazem notas do
regressiva, comendo uma colher – ou “má sorte” (ela não diz “azar” tradutor, comentários do processo. E,
de lentilha. Tem mais: sementes de para não atrair). Ao invés da lentilha claro, uma diagramação confortável
romã à tarde, folhas de louro na car- e das folhas de romã, decidi não para a leitura. Joyce foi lido na tradu-
teira, cores especiais para as roupas comer carne alguns dias antes da ção de Caetano Galindo. Dom Quixote,
íntimas – amarelo para dinheiro, ver- ceia. Adotei um banho de sal grosso, li na tradução de Ligia Cademartori,
melho para amor. E nada de jantar emprestado das tradições africanas. porém tinha à disposição a tradução
peru ou frango no primeiro de janeiro, Assisto à missa na tarde do 31 de de Ernani Ssó, Sergio Molina, António
pois as aves ciscam para trás! Novas dezembro. Lavo os chakras indianos. Feliciano de Castilho, entre tantos
superstições se acrescentam a cada Decidi que fogos de artifício eram outros. Para ler Shakespeare, não
ano e nenhuma é abandonada. obrigatórios. E, para apoiar meus faltam tradutores, entre eles, o grande
Lembro de um fim de ano, na praia, planos literários, passei a iniciar o ano Machado de Assis, que, dizem, tradu-
em que inventaram de mostrar a bun- com a leitura de um clássico, obriga- zia dando sempre uma ajudinha para
da para a lua – após saltarem as sete toriamente uma obra maior que um o autor original.
ondas, com o pé direito, comendo tijolo, um dos títulos que todo mundo Comentei recentemente sobre esse
lentilha. Tios e tias, primos e primas conhece, mas pouca gente de fato hábito com a Mojca Medvedšek, tra-
procuraram um local discreto, que leu da primeira à última página. dutora do esloveno para o português.
permitisse ao afortunado reflexo lunar Falei da minha família no Ano-Novo,
incidir diretamente nas nádegas, po- UMA VERDADEIRA ODISSEIA do hábito de ler um clássico (comecei
rém sem que os quarenta mil curiosos Nos primeiros dias do ano, enquan- 2023 com Guerra e Paz, na tradução
que estavam na praia dessem uma to algum atrasado ainda solta fogos de Rubens Figueiredo), falei despre-
espiadinha. Em algum momento, en- e estão todos de ressaca, pesquiso tensiosamente sobre a importância
de escolher uma boa tradução ao logo incorporavam: “o único País a ga- Gonçalves pela casa, se emocionan-
ler um clássico. Escolher o tradutor nhar cinco Copas do Mundo”, “o maior do com o Hino Nacional e reafirman-
certo, pesquisar o processo. Ela se rio do mundo”, “a maior biodiversida- do que o português era o idioma mais
surpreendeu. Não sabia que havia de”. E, ocasionalmente, diziam que o bonito do mundo. Talvez eu estivesse
tantas traduções das mesmas obras português era o idioma mais bonito errado, por todos esses anos! Talvez
para o português. E me explicou que, do mundo, o que, pelo sim, pelo não, eu tenha perdido diversas oportuni-
na Eslovênia, há em geral uma ou sempre me pareceu verdade. dades pelo tantinho de sorte que dei-
outra versão e que vem do inglês ou Se nunca vi grandes vantagens em xei escapar ao recusar pelas últimas
do francês. As traduções diretas são correr por aqui o maior rio do mundo décadas – Céus! – a colher de lenti-
raras, uma dezena de traduções dis- (faria diferença se fosse o segundo?), lha, as folhas de louro e a cueca ama-
poníveis é uma utopia. Os eslovenos, ou termos a maior biodiversidade (se rela. Levo as mãos ao rosto e penso
em geral, estão privados de conhecer fosse a terceira, porém mais bem pre- que meus primos, se estão melhor
as palavras do príncipe da Dinamarca servada, não seria melhor?), fiquei en- de vida, certamente é porque suas
ou as tiradas do Sancho em seu pró- cantado ao perceber uma vantagem nádegas foram corretamente ilumi-
prio idioma. Uma tragédia! direta no nosso idioma. É decisivo! Faz nadas pelo reflexo lunar nos últimos
Fiquei intrigado com os comentá- toda a diferença, para a riqueza do vinte anos: uma vantagem inegável!
rios da Mojca e escrevi para tradu- português, o imenso número de fa- Cada pedaço de peru, degustado
tores de outros idiomas, como o fin- lantes. Para os escritores, os estudio- no primeiro de janeiro, de repente
landês, o letão e o basco, com quem sos, para os leitores, ter tantos livros embola meu estômago, explicando
trabalho na editora Rua do Sabão. é fundamental! E passei a dar razão o dia em que perdi os óculos, aquela
Eles confirmaram a informação. aos meus avós em tudo. Claro que é vez que me atrasei na prova, quando
Nunca havia me dado conta de que maravilhoso termos o rio Amazonas desencontrei de um conhecido por
utilizarmos um idioma que está entre por aqui. Vamos cuidar dele! E a bio- apenas um minuto.
os dez mais falados no mundo, por diversidade é um patrimônio nacional, Tomei uma decisão: a partir de
mais de 250 milhões de pessoas, nos como a língua portuguesa, os idiomas agora, vou participar de tudo. Quem
traz justamente essa vantagem. Para indígenas, as praias, as cataratas e o sabe, se eu passar a dobrar a apos-
além da rica literatura brasileira, te- enorme território! Viva! ta – duas colheres de lentilha, o
mos uma gama imensa de traduções Foi minha avó que começou com dobro de fogos de artifício, pular a
à disposição. as simpatias de Ano-Novo, e viveu até noite inteira só na perna direita –, eu
Vou confessar algo: eu gosto dos o último dos seus dias fazendo o que recupere o tempo perdido em cinco
entusiastas pelo Brasil. Quisera eu ser bem entendia, do jeito que queria, ou seis anos. E a lua, claro! Em uma
um deles. Meus avós, talvez por conta sem se incomodar com ninguém. De década, no máximo, tudo se ajeita.
da infância varguista, eram ufanistas. bem consigo, de bem com o mundo. Vou até passar a cantar o clássico de
Batiam no peito para dizer “o quinto Satisfeita com seus galhinhos de Francisco Alves, “que tudo se realize,
maior território mundial”, “as praias arruda atrás da orelha, um pote de no ano que vai nascer…”, antes de mais
mais lindas do mundo”, “a maior flo- sal grosso atrás da porta da frente, nada para agradecer pelo nosso lindo
resta tropical do planeta”. Quando queimando um incenso quando al- português. Porque esse português é
descobriam algo novo sobre o País, guém olhava torto. Cantando Nelson bonito… Ah, como ele é bonito…
O AUTOR LEONARDO GARZARO é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou
dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com tradução para
inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. É consultor de
literatura brasileira das editoras Interzona, da Argentina; Arlequin Ediciones, do México; e Corredor Sur, do Equador. O guardião de nomes, seu último
romance, foi elencado como um dos melhores livros de 2022 pelo Suplemento Literário Pernambuco.
ESCRITA VIVA 61
Nem tudo
Leis sempre têm múltiplas
interpretações, por isso
que é legal
é preciso cuidado com o
uso das palavras, escritas,
faladas ou sugeridas
é legítimo,
lícito ou
permitido
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Texto de Cristiane Alves
O
Direito é um mar de interpretações de escritas, faladas ou sugeridas. E palavra não é
leis, letras, atitudes e intenções. Não rígida, é o que fala e o que cala, é o que se fala ao
sou da área, mas observo as leis e os ho- contrário, é gesto.
mens. O Direito não é norteado apenas por re- Por lei, no Brasil, ofender ou constranger al-
gras estabelecidas e registradas para serem guém por sua origem ou raça é crime1 passível
obrigatoriamente seguidas; é sentido, o Direi- de reclusão e indenização por dano moral. Pes-
to tem de fazer com que as regras criem corpo soas perguntam se brancos podem se benefi-
e andem, como diria Michelangelo a Davi. ciar dessa mesma lei tipificadora de racismo
As leis em si são bidimensionais, são letras ou injúria racial. Digo sempre que sim, a mim
frias, nós que vivemos sob as leis é que as hu- parece óbvio, a lei deixa claro que a questão é a
manizamos. Nem tudo que é humano pode ser injúria, não estabelece à qual raça. Mas a dúvi-
interpretado igualmente, somos cosmos indi- da também é pertinente. A dúvida é clareadora
viduais, milhões deles. no sentido em que demonstra que muitos não
O que é legítimo aqui pode não ser permiti- sabem que têm uma raça. É como a discussão
do nos Estados Unidos; o que é legal aqui po- sobre sotaque. O paulista acha que não tem, o
de não ser lícito na Rússia. O que é lícito aqui brasileiro crê com afinco que não possui esse
pode não ser legal na Coreia do Norte. É por grave defeito, o mesmo faz o estadunidense em
isso que as leis são propostas por cada povo, relação ao inglês do resto do mundo.
com base em sua realidade e vivência. Não po- Outro desconforto corriqueiro é o uso de ad-
de ser entendida sob olhar alheio ao contexto. jetivos como negro ou preto. Na mesma linha
Um fator importante no Direito é a lin- de pensamento do “sou humano“, muitos atri-
guística. A proficiência no uso das palavras, buem ao outro a não humanidade. Assim, ser
deria ter se tornado esmeralda, mas não é. Direi- As meninas não eram tão necessárias, indo, era
to é intenção, é entrelinhas, é subliminaridade, uma boca a menos. E que fossem cedo, porque
tudo junto e misturado. Então, ser o “neguinho” alimentar, vestir e cuidar de uma criatura para
num contexto carinhoso não é o “neguinho” car- depois ela ir morar em outra casa, era investi-
regado de ódio e humilhação. O mesmo se dá pa- mento caro e desperdiçado.
ra todas as outras formas de tratamento. As meninas comiam depois dos meninos, to-
Aí questionam o motivo de ninguém se ofen- mavam banho depois também, na mesma água
der por ser chamado de “branco” ou “japonês”, servida. Em caso de doenças, os meninos eram
outra pergunta muito carregada de autorres- cuidados mais. Eram necessários na lida. As
postas. Como o assunto é complexo e a vida ca- filhas também, mas davam trabalho. Meninas
rece de levezas, proponho uma leitura menos nasciam para dar trabalho. Melhor casar cedo.
assertiva, uma vez que as subjetividades colo- O trabalho dali em diante era do marido. Proble-
cam asas em nossa mente tantas vezes atadas ma resolvido.
à realidade… Aos dez anos Cecéu queria brincar, mas tinha
que cuidar da casa, lavar e engomar as roupas
A SINA DE CECÉU
do marido. Se não fizesse apanhava feito crian-
“Quando Cecéu casou tinha apenas dez anos ça, que de fato era, mas que era mulher porque
de idade. O marido era 28 anos mais velho. Ele nessas horas de servir, era toda mulher para
não conversou com Cecéu, não perguntou, não aquele homem. E ninguém queria reclamação,
namorou como namoram muitas moças antes nem mãe, nem pai, nem marido, nem ninguém.
de casar. Pediu permissão ao pai da menina. Era assim pra todo mundo. Normal.
No sertão do Ceará da década de 1930 as fa- Manoel era português, comerciante. Cecéu
mílias eram grandes. Lá e no Brasil rural todo. tinha nem o que reclamar. O primeiro filho veio
As moças casavam cedo e tinham filhos até não antes dos 11 anos, depois mais 15. Aos 24 anos
poder mais ter. Por sorte ou azar, morriam mui- eram 16 filhos, com os gêmeos.
tos. Mas viviam muitos também, mesmo que por Quando engravidou pela última vez, já esta-
pouco tempo. A vida era dura. va farta de parir. Pensava que dar à luz um fi-
Cabia à mulher fornecer à família a força de lho preto, mais um, era impor uma pena de
trabalho. Úteros cativos para o trabalho escravo vida, que se agravava conforme o tempo sobre
ESCRITA VIVA 63
OS TÍTULOS CAMPEÕES
ESCRITA VIVA é uma publicação trimestral da EBR _ Empresa
por Mara Magaña EM SUAS CATEGORIAS Brasil de Revistas Ltda. ISSN 2595-6485. A publicação não se
responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou por
qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último de
FICÇÃO ESTRANGEIRA inteira responsabilidade dos anunciantes.
ANO 8 - EDIÇÃO 97
DIRETORA EDITORIAL
Ethel Santaella
PUBLICIDADE
GRANDES, MÉDIAS E PEQUENAS AGÊNCIAS E DIRETOS
Flores Para publicidade@escala.com.br
Algernon
REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração,
Autor: Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta
Daniel Keyes Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
Editora: Aleph Solução Publicidade, Beth Araújo.
Páginas: 288
COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
FICÇÃO NACIONAL GERENTE Paulo Sapata
U
m dia minha avó me con- O fato é que ninguém ama igual,
tou histórias de lobos e vive igual ou conta história igual. O
bruxas, e eu nunca mais contador de histórias cria imagens
esqueci. Com você foi as- que nos ajudam a despertar, a viajar
sim também? nas sensações e a ativar, nos ouvin-
Que bom, o mais bonito da vida é ter tes, os sentidos: paladar, audição,
histórias para ouvir e poder contar, em tato, visão e olfato – sinestesia.
qualquer idade e momento de vida. ©1
Quando narramos, trazemos ele-
De todas as escolhas e caminhos DESPERTAR! mentos significativos, como olhares
para contar histórias, o mais importan- Da tradição oral, ao pé das rodas de que falam, gestos, ritmo, entonação,
te é não perder de vista que o principal fogueiras, nós, seres simbólicos e nar- expressão facial, silêncios que in-
foco é o texto literário. E, se falamos rativos por excelência, despertamos o comodam no melhor sentido. Esses
de sala de aula, trazer para esse palco melhor no fantástico e lúdico do in- mecanismos criativos proporcionam
o encantamento e o gosto pela leitura consciente coletivo. Contar histórias é uma interação direta com o público
através delas. acarinhar a alma! Várias terapias, como e implicam improvisação e inter-
Podemos, claro, criar repertório de a biblioterapia, já nos convidaram para pretação daqueles que participam
vocabulário com as histórias, abrir para esse caminho. desse encantamento literário.
o lúdico, entender o mundo, aprender, Ler muito, criar repertório, conhecer O contador pode recriar, modifi-
usar vozes, performances e adereços…, outras culturas e gêneros em seus car o conto junto com seu auditório,
mas é sempre o texto o saboroso ca- textos e contextos é primordial para conservando algumas partes do
minho a trilhar com nossos ouvintes. um contador de histórias trabalhar texto para não perder a proposta
Afinal, contar histórias é a mais antiga várias performances. Assim como narrativa. Criar, sem deixar de res-
e moderna declaração de amor à hu- o ilustrador, somos coautores das peitar a obra.
manidade. Conte uma história e abra histórias que nos propomos a narrar,
os portais do mundo! dando nosso estilo, interpretação e E ENTROU POR UMA PORTA…
Saberemos, ao adentrar essa arte, direcionamento, sem perdermos a Assim como abrimos portais, é
que, com as histórias, teremos valores referência do texto estudado. Cada necessário fechar também.
de vida e sociedade, resgate de nosso um a seu modo, adentra o universo A fechadura pode ser parecida
ser mais íntimo e caro, nossa infância, encantado de ler, reler e recontar. com a abertura dos portais literários.
nossas sombras, o alicerce de nossa Você, adulto, tente contar a história Nada precisa ser encerrado como
estrutura emocional. Quando as conta- de Cinderela numa roda com crianças. um fim, mas como o início de muitas
mos, utilizamos uma forte ferramenta Depois peça para escreverem no papel prosas, linguagens e engrenagens,
para fazermos as pazes com as nossas essa narrativa de tradição popular tão que nos despertam ao mais humano
narrativas de vida. A contação de histó- conhecida, então verá como cada uma e potente que jamais devemos per-
ria nos conecta com nossos antepas- recorda à sua maneira, trazendo seu der, cada um com seu cada um, na
©1: BIELIOLA / ISTOCKPHOTO.COM
sados, dando asas para a criação. conteúdo interno. arte de contar uma boa história!
A AUTORA PAULA PAGÚ (Paula Gardenia Lucena Gallego) é mestranda do programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, professora
orientadora de Sala de Leitura, Coordenadora dos projetos AEL (Academia Estudantil de Letras) Grêmio Estudantil e Imprensa Jovem em sua unidade
escolar, formadora da Prefeitura Municipal de São Paulo. Formada em Letras, Filosofia e Pedagogia, além de psicopedagoga e psicanalista em estágio.
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