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ENEM Conhecer os distintos GÊNEROS TEXTUAIS e suas estruturas é essencial para uma boa redação

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Conhecimento Prático - Língua Portuguesa e Literatura

INÊS249

FUTURO DO
RAP EM SALA
Auxilia no processo
ensino-aprendizagem

PRESENTE
e permite ampliar o
repertório de mundo e
a apreciação estética

O QUE É NARRAR?
A diferença entre Como a inteligência artificial está mudando
contar um fato e
construir uma narrativa
a forma de produzir textos e interferindo no
conteúdo que você consome e compartilha

ENTREVISTA
A paraense MONIQUE MALCHER reivindica lugar das mulheres nordestinas: “na ciência, na sabedoria e na resistência”

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Histórias conhecidas da mitologia grega,
contadas de forma divertida, incluem
a luta de Perseu contra a Medusa, a
maldição do Rei Midas, a criação da
primeira mulher Pandora e a aventura
de Belerofonte em domar Pégaso.

Nathaniel Hawthorne, nome importante


na literatura americana, cativou leitores
e críticos famosos com esta prosa
simples mas rica, onde as clássicas
aventuras mitológicas, contadas há mais
de 20 séculos, são apresentadas por ele
com sensibilidade e imaginação.

NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br

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editorial

Uma escrita nova.


E viva! Num indo e vindo infinito,
nada do que foi será…

C
om licença poética a Lulu E as ondas trazem, lá do Pará,
Santos, tomo suas palavras Monique Malcher, que chega ao
e reordeno seus versos panteão da boa literatura nacional
para apresentar esta revista com fôlego e raça. Tanto que seu
que está se renovando, em contínuo primeiro livro, Flor de Gume, de
processo de atualização, ficando cara ganhou um Jabuti.
ainda mais dinâmica e relevante. A Maurício Silva, recém-chegado,
agora Escrita Viva – Conhecimento nos ensina como foi a trajetória da
Prático - Língua Portuguesa e norma para o uso do português vra, trará, todo mês, suas impressões
Literatura chega com energia total, no Brasil. Foi esse caminho das sobre a língua e educação. Ana Maria
com pessoas e ideias novas, revigo- pedras que permitiu (e permite) Haddad Baptista será nossa resenhis-
rando o que de melhor entregamos termos gestado um Machado de ta, apresentando obras e aspectos
com a Conhecimento Prático - Língua Assis, capaz de transformar uma literários, analisados por quem conhe-
Portuguesa e Literatura e transfor- casa em personagem, assim des- ce profundamente o ofício. Leonardo
mando todo o restante em valiosa taca Roberto Sarmento Lima, ou Garzaro, editor, cronista, apresenta-se
experiência. Mas calma! Assim como propiciarmos que o rap auxilie no em um texto versátil sobre traduções e
as ondas do mar que sempre voltam, ensino-aprendizagem, evidencia belezas do nosso português, enquanto
nossos melhores colaboradores per- Fábio Roberto Ferreira Barreto. Ninil Gonçalves, artista da palavra e
manecem firmes e fortes em seus E, como uma onda, tem gente da fotografia, tem o remédio para os
postos, trazendo conteúdos cada vez que vai, tem gente que fica, como males da vida: poesia. E Márcia Fusaro,
mais necessários. Heloísa Buarque de Hollanda, a multifacetada, vai fundo ao demons-
E como tudo que é bom pode ficar nova ocupante de uma cadeira na trar como a literatura, a arte e a ciência
ainda melhor, com muita alegria in- ABL, que já foi de Nélida Piñon, andam de mãos dadas.
formamos que a periodicidade desta lembra Juarez Ambires. Assim vamos construindo nossa histó-
publicação – que carinhosamente Tantos gêneros e tantos tipos textu- ria. Aliás, é ela que preserva a língua.
chamaremos apenas de Escrita Viva ais cabem no mesmo balaio? Como Da oralidade às telas, é por meio de
– agora será mensal. Sim! Todo mês eles dialogam? É ao que responde narrativas que criamos a nossa iden-
estaremos em bancas ou na sua casa Aline Fernanda Camargo Sampaio tidade. Por isso, esta edição começa
com o mesmo olhar atencioso para a em Contexto. Coisas da língua, diria com o "Amendoim" de Ivy Menon – ex-
nossa querida Língua Portuguesa e Divanize Carbonieri, autora potente, -boia-fria que hoje é apontada como
suas interfaces. que ensina o que é narrar. uma das grandes revelações da litera-
Nesta reestreia, nossa capa traz um É… o aprendizado nunca termina. Disso tura brasileira – e encerra com a re-
assunto que está no pensamento e na tem certeza Márcio Scarpellini Vieira, flexão da contadora de histórias Paula
boca de todo mundo: a inteligência e assim exemplifica em artigo sobre Pagú, sobre a importância e o prazer
artificial. Abrahão Costa de Freitas formação continuada. Já Cristiane dessa arte milenar.
foi verificar como essa tecnologia Alves, escritora e Preta, como gosta de
vai afetar o nosso dia a dia, o nos- ser chamada, mostra as múltiplas in- O convite está feito: mergulhe nessas
so desenvolvimento. Ficaremos à terpretações linguísticas e legislativas ondas em que a escrita é viva!
mercê de robôs inteligentíssimos? em Lugar de Fala.
Sobreviveremos a esse tsunami? Ou E há muito mais: Anabelle Loivos Mara Magaña
será o começo do fim? Considera, uma especialista da pala- Editora

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ENEM Conhecer os distintos GÊNEROS TEXTUAIS e suas estruturas é essencial para uma boa redação

97
COLUNAS FIXAS

30. Nosa capa


Conhecimento Prático - Língua Portuguesa e Literatura

05. Abre Alas


EDIÇÃO 97 - PREÇO R$ 17,00

O começo do fim? Paixão e colheita


de amendoim
A inteligência artificial otimiza o aces-
06. Aperitivo
so à informação, potencializa o arma-
Fique por dentro
zenamento de dados, resolve cálculos dos acontecimen-
e até produz textos que chamam a tos do mundo da
atenção a uma velocidade inatingível Língua Portuguesa
para o cérebro humano. Mas pode a e da Educação
FUTURO DO
RAP EM SALA
Auxilia no processo

IA refletir, raciocinar e argumentar?


ensino-aprendizagem

PRESENTE
e permite ampliar o

09. Sobreimpressões
repertório de mundo e
a apreciação estética

O QUE É NARRAR?

Discursos de ódio
A diferença entre Como a inteligência artificial está mudando
contar um fato e
construir uma narrativa
a forma de produzir textos e interferindo no
conteúdo que você consome e compartilha

ENTREVISTA
na ordem do dia
A paraense MONIQUE MALCHER reivindica lugar das mulheres nordestinas: “na ciência, na sabedoria e na resistência”

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24. Foco
Poesia como
remédio contra os
10. Entrevista 18. Literatura males da vida
Em Dom Casmurro,
43. Literal
de Machado de As- Trilogia dos Saraus,
sis, a casa, tomada de Zé Sarmento
como protagonista,
revela de que forma 48. Resenha
Livros e seus sen-
o escritor construiu 38. Língua Viva tidos
uma realidade, à luz O rap em sala de aula
do mundo social auxilia no processo
54. Interfaces
do qual faz parte, Diálogos entre as
ensino-aprendizagem áreas do conheci-
ontem e hoje e permite ampliar o mento
repertório de mundo e
A paraense Monique 26. Perfil a apreciação estética 60. Lusamérica
Malcher, prêmio Jabu- Variações sobre a
ti de contos 2021 com
seu primeiro livro, Flor 44. Contexto beleza da língua
portuguesa
de Gume, reivindica Gêneros discursivos
versus tipos textuais:
62. Lugar de fala
o lugar das mulheres Um espaço de
nortistas, “que é o da um dos temas mais
inclusão das vozes
ciência, da sabedoria cobrados do ENEM pretas, periféricas,
e da resistência, e não indígenas...
à margem da socie- 50. Linguarude 65. Estante
dade”, frisa A diferença entre con- Lançamentos lite-
tar um fato e construir rários do mês
14. Gramática Heloísa Buarque de uma narrativa
66. Reticências
Como se deu o pro- Hollanda é a nova
cesso de uniformiza- imortal da Academia 56. Diálogos Contação de his-
tórias: o melhor do
ção e simplificação Brasileira de Letras, Formação contínua fantástico e lúdico
do português utiliza- na cadeira que foi de e as linguagens: uma no inconsciente
do no Brasil Nélida Piñon volta para o futuro coletivo

4 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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abre alas
Reflexão de Ivy Menon

Amendoim
Era tempo de colheita, quando
as taturanas enlouqueciam de
vontade de envenenar a pele
das crianças pobres, como nós ©1

O
caminhão de carroceria nas coxas e virávamos a colheita de nina. Precisava esperar que eu “cres-
aberta se retorcia pela es- pernas e vagens para cima. E íamos cesse um pouco mais” para poder me
trada de chão esburacada. para as próximas. Quilômetros andan- namorar. Meu rosto queimou. E me
Gostava de imaginá-lo do feito arcos. Com as costas voltadas vi. Li de novo a cartinha. Esforcei-me
serpente desesperada no sol da ma- para o sol. para fazer o número dois. Limpei-me
nhã, faminta, a procurar caminho para As taturanas levavam, todo dia, um com o bilhete. Leve, o papel não fez
a mesa. Idêntica preocupação minha e amigo para o hospital. Crianças, como barulho quando caiu no buracão.
dos meus irmãos: se não trabalhásse- eu e meus irmãos, queimávamos de Edson morreu na rua. Começou
mos, não teríamos comida. Gritávamos febre deitados debaixo de alguma a beber depois que o pai mandou
a cada solavanco. Menos de 12 anos, e sombra, esperando terminar o dia para a irmãzinha, adolescente, morar na
já estávamos na colheita do amendoim. irmos embora. Tínhamos direito ao zona. Mais de duas décadas se pas-
Eu estava apaixonada pelo Edson, salário das horas trabalhadas, antes saram e eu o encontrei na rodoviária.
que trabalhava na lavoura de amen- do acidente com as lagartas peludas. Pediu-me que lhe pagasse um café,
doim, quando as taturanas enlouque- E água, servida sempre morna, com um cigarro, uma coxinha. Paguei. Uma
ciam de vontade de envenenar a pele gosto de gasolina. As ínguas imensas lágrima teimava me denunciar. Ri, e
das crianças pobres, como nós. Não nas virilhas e axilas. A determinação lhe disse do meu prazer em revê-
tínhamos defesa contra elas. Lá, foi a de aguentar chegar em casa. Se tudo -lo. Contaram-me que ele “levou uns
primeira vez que soube que poderia corresse bem, no outro dia a mesma tiros”, numa briga pra defender a irmã,
“ganhar feito homem” se me manti- coisa. Confesso que, de vez em quan- lá no bordel. Na perna direita. Não foi
vesse no grupo da frente, como os do, sonhava ser atacada por taturanas, ao médico. A gangrena lhe apodreceu
peões. Não sei se conseguem com- para ficar em casa descansando. a perna e terminou o serviço come-
preender o que era “arrancar amen- Bem, estava apaixonada pelo Edson, çado pela morte, quando todos ainda
doim”. As touceiras firmes no chão um rapaz franzino de 16 anos. Negro. acreditávamos no futuro. Inclusive ele.
explodiam vagens, presas às raízes, Lindo. Tocava violão e cantava aquelas Cinquenta e dois anos passados,
que guardavam os grãos. músicas tristes de amores que não sinto as dores das queimaduras das
A nós cabia andar abaixados qua- deram certo. Eu sonhava. Lembro-me taturanas. Ouço o violão do Edson.
se até o chão, com as mãos, como que, quando soube do meu interesse Releio o bilhete dele. E sei que muita
chaves torquês, que se agarravam por ele, Edson me mandou um bilhete. coisa, no Brasil, só mudou o tempo e
aos caules do amendoim. Metíamos Corri ler escondida dentro do banheiro os endereços.
tração e arrancávamos a moita, de (casinha) no fundo do quintal. Ele me Ainda morremos de fome
uma vez só. Depois, batíamos a terra dizia que eu era linda, mas muito me- (e matamos).
©1: GLOBALP / ISTOCKPHOTO.COM

A AUTORA IVY MENON (Ivanilda Maria Menon) é escritora, advogada, pós-graduada em Filosofia e Teoria do Direito, bacharela
em Teologia e ex boia-fria. Autora dos livros: Flores amarelas (poesia, prêmio do I Concurso Carioca de poesia, Editora Multifoco,
2006), Matemática das algemas (poesia, e-book, Camino Editorial, 2021), Asas de terra e sangue (crônicas, Editora Arribaçã, 2021)
e, em parceria com Angela Zanirato, o romance Mar fechado – Mar Aberto, pela Rizoma Projetos Editoriais (no prelo).

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aperitivo da Redação

Ataques às escolas crescem dados tornam-se mais alarmantes


nos últimos dois anos ainda quando se verifica que 14 des-
ses ataques ocorreram nos últimos
Na parede do banheiro de uma crime. Em nenhum dos dois casos, dois anos.
escola privada da zona leste de felizmente, houve qualquer dano O número de suspeitas e ameaças é
São Paulo, a ameaça colocou aos estabelecimentos e ninguém impreciso, porque ainda é necessária
alunos, professores e direção em saiu ferido. Os nomes menciona- uma sistematização mais apurada.
pânico. Segundo Pedro, aluno do dos são ficcionais para preservar a Porém, desde os últimos eventos,
terceiro ano médio, o aviso era identidade dos entrevistados. forças de segurança de todas as ins-
de que, naquele mesmo dia, uma Mas o outro lado da moeda é cruel tâncias têm empreendido esforços
bomba colocaria o prédio no chão. e violento. Desde 2002, 25 escolas em mapear e agir preventivamente
O professor Renato informou que brasileiras sofreram ataques, de para evitar novas ocorrências. No
a escola foi esvaziada e que nada acordo com a nota técnica Extre- estado da Bahia, segundo em núme-
foi encontrado. Algo parecido mismo violento em ambiente esco- ro de ataques, atrás apenas de São
também aconteceu em um colégio lar, de Michele Prado do Monitor Paulo, por exemplo, nove adoles-
do Rio de Janeiro: uma promessa do debate político no meio digital, centes suspeitos de envolvimento e
de massacre pichada na parede projeto de pesquisa realizado pelo propagação de ameaças de ataques
do banheiro dos meninos, com a Grupo de Políticas Públicas para o contra escolas foram apreendidos
indicação da data planejada para o Acesso à Informação da USP. Os em apenas dois dias, em abril.

MEMÓRIA DA LÍNGUA

© MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA


Herança africana do português brasileiro
Nkisi, escultura
A herança africana responde por uma gran- Eckhout, datada de 1641, vídeos – em um da República
Democrática do
de parte da constituição do português que deles, o poeta, compositor e cantor Tom Zé Congo faz parte
da exposição.
se fala no Brasil. Diversas culturas, línguas e interpreta “Acalanto de Ouro Preto”, poema
falares oriundos até da luta dos povos, que de Murilo Mendes, que consta em Contem-
para cá foram trazidos, compõem nossa plação de Ouro Preto, de 1954, uma belís-
diversidade linguística. “Heranças Africanas sima foto Orixanlá - Ifé de Pierre Verger – e
no Português do Brasil” é a terceira parte esculturas iorubas, mostrando como a língua
da exposição “Português do Brasil”, a princi- propicia interfaces múltiplas com a arte.
pal do Museu da Língua Portuguesa, em São Do ponto de vista linguístico, aprende-
Paulo, e uma série de artigos publicados em -se que “a língua portuguesa irradiou-se
seu portal, sobre a memória da nossa língua, pelo Brasil com a ocupação do litoral, o
desde quando surgiu, no noroeste da penín- avanço por entre os rios amazônicos e a
sula ibérica, passando também pela presen- entrada pelos sertões e cerrados, além da
ça indígena. Nesse terceiro arco narrativo, descoberta das minas e a ida ao sul e aos
como é denominado, conta-se a história pampas. Assim, pouco a pouco a língua
a partir das ondas de tráfico de portuguesa foi se modificando,
africanos escravizados. Há gráficos emergindo progressivamente ca-
SAIBA
que ilustram a rota comercial de MAIS: racterísticas inexistentes no por-
escravos aqui, telas, como “Homem tuguês de Portugal”. Um passeio
negro”, do artista holandês Albert histórico-linguístico imperdível.

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LENDO AGORA
LÍNGUA CURIOSA
Ernani Terra

© FOTOPERSBUREAU DE BOER, NL /COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


Doutor em Língua Portuguesa,
Pelé vira professor e autor de diversos livros
nas áreas de língua portuguesa,

verbete de gramática da língua portuguesa,


literatura, leitura e produção de textos.

dicionário “Estou lendo Pessoa: uma


Quer definir algo como extraordinário? Já pode dizer
biografia, do norte-americano que
assim: “Esse menino é o Pelé da robótica.” No dicio-
nário Michaelis, o adjetivo, que pode ser masculino vive em Lisboa Richard Zenith,
ou feminino, teve sua inclusão oficializada no final de publicado pela Companhia das
abril. Segundo o livrão, Pelé significa “que ou quem Letras, com tradução de Pedro
em virtude de sua qualidade, valor ou superioridade Maia Soares. Estou gostando
não pode ser igualado a nada ou a ninguém, assim
muito. Embora seja um catatau de
como Pelé, apelido de Edson Arantes do Nasci-
mento (1940-2022), considerado o maior atleta de mais de 1.100 páginas, a leitura
todos os tempos.” O dicionário ainda dá os seguintes flui e se lê o livro em pouco tempo.
exemplos: “Ele é o Pelé do basquete, ela é a Pelé do Os capítulos são
tênis, ela é a Pelé da dramaturgia brasileira, ele é o curtos, o que faz
Pelé da medicina.” Como sinônimos, ensina que são
com que sempre
“excepcional, incomparável e único”.
se queira saber
o que vem depois,
como numa novela
ou minissérie.”
Autismo e os professores Título: Pessoa: uma biografia
Editora: Companhia das Letras
Autismo para Educadores: plexo e necessário para a Páginas: 1.160
meu aluno é autista, e agora?, sociedade quando se fala de
da psicanalista, psicoem- pessoas com necessidades
brióloga, consultora DISC especiais. “Seria mais inte-
(ferramenta de avaliação
comportamental) e constela-
ressante se todos se colo-
cassem no lugar das famílias
Rita lee, presente!
dora familiar sistêmica Cintia e das pessoas que sofrem a Irreverente, transgressora, letrista incompa-
Castro, pretende ser um guia exclusão. Porque é, sim, um rável (ela preferiria de mão cheia), pintora,
para os educadores com o sofrimento muitas vezes não autora infantil… Quantas Ritas cabem em Rita
intuito de auxiliar na prática ser aceito por ter alguma pe- Lee? A multiartista, que nos deixou em maio
docente, no dia a dia, no culiaridade. E, se pararmos passado, ganhou uma exposição só dela de
processo de aprendizagem para analisar, quem não tem cartuns e caricaturas. A ideia foi do presi-
de educar as crianças com algo peculiar?”, questiona. dente da Associação dos Cartunistas do
espectro autista e, ao mesmo Brasil, JAL, que reuniu as homenagens pos-
tempo, toda a turma. O livro tadas por diversos cartunistas no blog oficial
reúne discussões e reflexões do Troféu HQMIX, com o título “Rita Leenda!
sobre o tema inclusão com o A ovelha negra entre as nuvens brancas”.
objetivo de educar e cons- Já são mais de 50 cartuns, mas a
cientizar a sociedade como quantidade de desenhos pode au- SAIBA
MAIS:
um todo, além do ambiente mentar. “Rita continuará com suas
educacional. Para a autora, a músicas embalando desenhistas
inclusão é um tema com- em seus trabalhos de traços feitos
com lápis dançantes”, diz o comu-
nicado da Associação.

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aperitivo

LÍNGUA DIGITAL

Voz sintética já é
realidade nos audiobooks
O primeiro audiobook a utilizar a inteligência artificial é da
plataforma Skeelo. A escolha recaiu sobre o best-seller
A lei da atração: O Segredo, de Rhonda Byrne, colocado
em prática (LeYa), de Michael J. Losier. A tecnologia
foi empregada na narração da obra, que utiliza voz
sintética. Inicialmente, o projeto envolve apenas livros
de não ficção. É preciso dar tempo ao tempo para que
a tecnologia se aprimore e consiga trazer vozes de
múltiplos personagens e diferentes entonações ao longo
de uma história de ficção. Essa novidade promete baratear
os custos e o tempo da produção. Os ensinamentos de Losier
sobre como podemos utilizar a lei de atração a nosso favor já
venderam milhões de exemplares em todo o planeta. As lições
ensinam também a afastar aquilo que não desejamos. A obra
está disponível nos planos premium do Skeelo e pode ser en-
contrada apenas no app, disponível para Android e iOs.

OUTRA LÍNGUA
(Puerto Rico) e Criatura (Uruguai).
Obra O autor Éfren Geraldo reuniu espé-
colombiana cies reais e imaginárias, provenien-
tes de interesses, preferências e
ganha tradução histórias de vida próprias e alheias,

em nove países para criar um inventário iconográfico


das plantas. Ele forma uma espécie
Sumario de plantas oficiosas, ven- de diário imaginário sobre presen-
cedora do Prêmio de Não Ficção ças e ausências, representações
Latinoamérica Independiente em e perplexidades da flora em um
2022, ganhará edição em nove momento de extrema dificuldade.
países latino-americanos pelas Geraldo quis montar uma conste-
editoras organizadoras do prêmio. lação de ornamentos conhecidos e
Entre as casas de publicação, a desconhecidos, árvores, alimentos,
editora Fósforo, representante do venenos e seres vegetais. Segun-
Brasil, também irá publicar o livro, do ele, tudo vem da memória e da
somando-se às outras oito – El experiência, mas também de várias
Cuervo (Bolívia), Godot (Argentina), representações literárias, científicas
Libros del Fuego (Venezuela), Luna e artísticas que mostram que as
Libros (Colômbia), Elefanta (Mé- plantas se movem e aproveitam a
xico), El Fakir (Ecuador), Trabalis sua grande inteligência para o fazer.

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sobreimpressões
Reflexão de Anabelle Loivos Considera

A fábula do mestre Discursos de


ódio dão o tom
e do soldado às redes sociais

E
ra uma vez um soldado do tê-la magoado; porém, se a senhora
quartel vermelho que resol- for mestre, pense que lecionar é uma
veu escarnecer dos profes- dádiva que os professores nunca
© DZAIN/MIDJOURNEY

sores – sim, porque para ele entenderão. Respeito os mestres, mas


verdadeiro professor é mestre. E não não os professores que carimbam
aceita receber salário se está fazen- diplomas, que não conhecem a arte
do greve. de ensinar. Uma lástima!!!”
Era uma vez uma professora que Professora trabalhada no “tapinha-
não estava num dia muito bom e man- -não-dói”: “Perdão, Sr. Soldado,
dou o soldado parar de ler telenovela realmente não falamos da mesma
no quartel. E que quem anda verda- coisa. Essa distinção entre mestres
deiramente salvando vidas inteligen- e professores serviu para vender fo-
tes são esses grevistas vermelhos, Professora #chateada: “Totalmente tonovela, mas é tão descabida! Ar-
como a cor de sua corporação. infeliz a sua fala, senhor. Professores condicionado não é benefício, é ne-
Foi mais ou menos assim que acon- estão há 40 dias ‘sem trabalhar’, mas cessidade para espaços de menos de
teceu: o soldado estava todo cheio de ocupando escolas e desenvolvendo 20 m2 e 50 pessoas juntas. Lecionar
si, de medalhas e de coturnos, em seu atividades de greve junto à comu- nunca foi uma dádiva, do mesmo
posto no alto da torre do quartel ver- nidade. Estão também há 10 anos modo que ser bombeiro também não
melho. Para passar o tempo, resolveu sem ter reajuste salarial. No entanto, é: trata-se de exercer uma profissão
botar fogo nas redes sociais. Foi logo neste exato momento, estão tentando com dignidade e respeito. Professores
dizendo na página do colégio público ‘salvar a vida’ inteligente na escola, estão, sim, preocupados em ganhar o
do filho: “Eu sei que vão me criticar para que ela sobreviva extramuros. As pão seu de cada dia, pois já abolimos
pela minha opinião, mas os servido- categorias tinham que se unir contra a escravatura desde o século 19, mas
res da Educação estão há mais de o real inimigo, que é o descalabro do ainda há pessoas que entendem o
um mês sem trabalhar e vão receber Estado, e não investir em picuinhas magistério como missão. Ensinar não
como se estivessem nas salas de aula. classistas e desnecessárias como se faz por amor à camisa, senhor. Se
Mas e os aposentados, que deram a essa levantada pelo senhor, soldado. faz por convicção política e afeto ao
vida por mais de 30 anos de trabalho, Uma lástima.” conhecimento democrático. Espero
recebem o quê? Nada, né? Isso é um Soldado do quartel vermelho, que seus filhos tenham ótimos pro-
absurdo. Parece mesmo que o certo vermelhinho de raiva: “Você se de- fessores e que suas reservas contra a
virou errado, pois no final há uma pre- finiu bem, professora, servidores da classe caiam por terra quando o se-
miação para os grevistas (aumento de Educação não são mestres. Mestres, nhor se der conta de que a luta de um
salário e abono de greve), e para os para mim, ensinam em qualquer lugar é a luta de todos.”
aposentados, nada. Mestre de verda- e nas piores condições. Mestre divide Era uma vez uma rede social. Era
de ensina! Os servidores da Educação o saber, professor só pensa em seu uma vez um discurso de ódio. Havia lá
querem coisas que não existem nem benefício, ar condicionado etc. Se a um botão de unfollow. Foi aí que essa
em escolas particulares!” senhora é professora, me desculpe fábula terminou.

A AUTORA ANABELLE LOIVOS CONSIDERA é doutora em Letras - Literatura Comparada pela UFF, pós-doutora pela USP (FFLCH) e professora
associada à Faculdade de Educação da UFRJ. Dedica-se a pesquisas nas áreas de Educação (com ênfase em História da Educação e Memória)
e Letras (com ênfase em Literatura Comparada, em Didática Especial da Língua Portuguesa e suas Literaturas e em Práticas Pedagógicas e
Estágios Supervisionados). É membro do corpo de pesquisadores e sócia do ILTC - Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência.

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entrevista
Monique Malcher

“ESCREVO COMO QUEM


CRAVA PALAVRAS NO
TRONCO DE UMA ÁRVORE
COM UM CANIVETE”
A literatura dessa paraense vem para ficar
gravada no panteão das grandes obras atemporais,
inquisidoras, perenes, como as florestas e os rios
por Mara Magaña

10 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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A
s muitas Moniques que andam por aí, palavras, para que elas possam ser ferramentas
a escritora, a artista plástica, a an- de questionamentos, sonhos e absurdos. Quan-
tropóloga, a jornalista, nascidas em do escrevo nada pode me tocar e posso exercer
Santarém, no Pará, netas de uma ribeirinha, diversos olhares e gestos em relação ao mundo.
agora plantadas na urbanidade de São Paulo, Escrevo como quem crava palavras no tronco de
ganham o mundo, mas não saem das margens uma árvore com um canivete.
de rios profundos. Flor de Gume, seu primeiro
livro, atesta isso. As 37 histórias que garan- E desde quando você escreve? Quando soube que is-
tiram o Jabuti na categoria Conto, em 2021, so era uma parte indissociável da Monique Malcher?
navegam nas águas de seu estado, e de lá apre- Escrevo desde que aprendi com minha vó mater-
sentam meninas, mães, avós, num entrecruza- na o sabor de contar histórias. A escrita, pra mim,
mento de gerações e suas vivências sofridas. nasce da oralidadade. Eu admirava a forma co-
A violência perpetrada contra as mulheres é mo ela contava histórias e plantava a importância
a guia mestra dessas tramas, que resgatam desse movimento nas reuniões na casa antiga do
até os cadernos de suas avós, entre cenas re- bairro do Mapiri, em Santarém. Ela conseguia fazer
ais e ficcionais. A escrita, para Monique Mal- as crianças mais barulhentas ficarem em silêncio.
cher, é um projeto político de estar no mundo Brincávamos de buscar objetos. “Ganha quem achar
e nasceu da oralidade das contações de histó- algo que faça o barulho da tempestade.” E foi assim
rias ouvidas no bairro de Mapiri. Sua literatu- que aprendi a correr em busca do som e do sentir
ra é fluida, seu discurso é faca afiada e poético das coisas do mundo. Passei então a contar minhas
ao mesmo tempo, suas colagens – são delas as histórias faladas e depois escritas.
ilustrações que ajudam a navegação de Flor do
Gume – reivindicam o lugar das mulheres nor- Flor de Gume dilacera e nos conecta com nossa
tistas, que é o da ciência, da sabedoria e da re- ancestralidade, apresenta um mundo não co-
sistência, e não à margem da sociedade, frisa. nhecido por grande parte dos brasileiros. E isso
desconcerta… Como foi conceber esses 37 con-
Monique, você é um dos casos raros, na literatura tos que une gerações, o feminino e suas lidas, as
brasileira, que, com o primeiro livro, ganha um Ja- mulheres silenciadas, até a regeneração que só
buti e alça voos primordialmente destinados aos a natureza permite?
grandes nomes. Como foi isso? Quais sentimentos Foi um processo longo que envolveu pesquisa sub-
que uma artista com a sua poeticidade latente jetiva de minhas recordações, mas grande parte foi
acessa num momento assim? uma elaboração etnográfica de cadernos de minhas
Grandes escritas podem também não ganhar prê- avós, entrevistas com mulheres paraenses e mi-
mios, importante que a gente sempre se lembre nhas pesquisas sobre alienação parental e violência
disso. Nunca esteve no meu radar, nem mesmo doméstica. Já que sou antropóloga também e são
como sonho, ganhar um prêmio… mesmo que ga- temas que sempre me nortearam. Levei três anos
nhar o Jabuti tenha sido um dos dias mais felizes para terminar a primeira versão do livro.
da minha vida como escritora. A felicidade vem de
ser lida ainda mais e ter a possibilidade de chegar Você utiliza “a voz” dos rios, da terra, da floresta, pa-
a diversas pessoas e lugares. Na ocasião pensa- ra o diálogo entre suas várias personagens, mulheres
va muito em todas as escritoras do Norte que se- tidas, muitas vezes, como à beira da sociedade. E cria
guem batalhando para serem lidas. Sinto que esse um tecido literário dos mais potentes da contempo-
prêmio também tem um sabor coletivo. raneidade. Vem do Pará, de Santarém, da periferia de
Santarém… Fale um pouco dessa trajetória e de como
Por que você escreve? a neta de ribeirinhos se encantou com a palavra.
Escrevo porque acredito na escrita como um Não vejo as mulheres do Norte como à beira da
projeto político de estar no mundo. Vejo a escri- sociedade, pois isso pressupõe que o centro este-
ta como o balanço de minha língua elaborando ja em outro lugar. Sempre fomos centro também,

ESCRITA VIVA 11

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entrevista
Monique Malcher

de ciência, de sabedoria e de resistência. Porém, Jarid foi além de editora… uma amiga que ganhei
a visão colonial não nos vê assim. Sou neta de mu- nesse processo. O livro ia ser publicado por um
lheres ribeirinhas, mas sou também mulher ribei- pequeno financiamento coletivo. Nesse período,
rinha. Mesmo as nascidas na cidade são dos rios. conheci Jarid no clube de escrita que ela coordena
É uma identidade forte e complexa. Um dos meus e, coincidentemente, ela estava procurando uma
olhos é asfalto, e o outro é planta. Muitas das avós autora do Norte para publicar. Pediu para ler o li-
paraenses/nortistas também exercem o papel de vro e se apaixonou por ele, depois disso o livro foi
alfabetizar suas crianças e as de outras pesso- publicado pelo selo Ferina, que na época estava na
as, era o que minha vó materna fazia. Não é uma editora Pólen – hoje se chama Jandaíra – e conti-
história exclusiva de minha família. Inclusive, nua sendo a casa editorial do livro.
em um dos contos, a avó alfabetiza o avô depois
de ele já ser um homem idoso. Nossas matriarcas Uma das suas declarações mais potentes foi “(…)
sempre foram mulheres intelectuais, mas nunca Antes do meu nome ser retirado daquele envelo-
foram respeitadas como tal. Es- pe roxo ontem… ouvia a voz de
se foi um dos questionamentos Elza Soares enquanto chorava
que busquei trazer para a com- agarrada ao meu livro. Eu vou
plexidade das personagens de
“Não vejo as mulheres escrever até o fim, cantava na
Flor de Gume. do Norte como à beira licença poética. Nunca senti o
que fisicamente se inscreveu.
As histórias do livro remetem
da sociedade, pois Minha pele repuxava de meu
à violência contra as mulhe- isso pressupõe que o rosto, como se o osso fosse
res, ao silenciamento delas, às
dores, mas também à resistên-
centro esteja em outro ser minha nova casa, e muitas
vezes foi. Meu rio foi o tutano
cia, ao renascimento… Fala-se lugar. Sempre fomos das coisas, as margens. Só que
muito nas mídias sobre o as- centro também, de estive sempre desgarrada no
sunto, há campanhas contra o meião das águas, onde mui-
feminicídio etc. Entretanto, dez ciência, de sabedoria tos não querem estar, onde o
mulheres são assassinadas por e de resistência. afogamento e o banco de areia
dia no Brasil, segundo dados do mandam. Meus pés de acerolei-
Monitor da Violência. Como isso Porém, a visão colonial ra me levaram de cada dor que
deve impactar (ou impacta) a não nos vê assim” me rasgou até esse desmaio
arte em geral? que me trouxe de volta para um
É o que sempre falo, parece mundo em que meu nome é re-
cansativo para algumas pessoas que a literatura tirado do envelope roxo”. Passado um ano e alguns
traga repetidamente esses temas, mas nunca me messes dessa emoção, como está a carreira de Flor
canso de escrever sobre. Através do livro vi uma do Gume? Você esteve em Boston, para falar do li-
grande rede de profissionais da educação e da vro, não é? Como foi a experiência?
psicologia levando para seus ambientes e proje- O Flor de Gume ainda me parece um livro que
tos esses temas. Isso me anima, mesmo sabendo foi lançado mês passado, ele segue encontrando
que temos muito trabalho pela frente. Existe um muitos leitores e projetos, isso me deixa extrema-
forte impacto não só nas mulheres e nos homens, mente feliz. Já estamos na terceira reimpressão. A
mas também nas crianças e nos adolescentes que viagem pra Boston foi uma ótima oportunidade de
reconhecem no livro a vida do interior e se sentem provar meu ponto sobre a literatura que faço ser
representados. também universal, sentida de modos diferentes,
mas compreendida. Foi lindo estar nas bibliote-
Jarid Arraes (1), escritora das mais importantes cas e conhecer leitores imigrantes, além das duas
da atualidade, editou e fez a orelha do seu livro. turmas de gênero em Harvard que se emocionaram
Como se deu essa relação? bastante ao comentarem sobre o livro. Penso que

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Força da natureza
Flor de Gume (editora Jandaíra, em sua terceira
reimpressão) não aceita camisa de força. É teme- Tem outros contos seus publicados em algumas
rário classificá-lo apenas como livro de contos, antologias. O conto é sua maior expressão? Tem
pois a poesia nele se infiltra como afluentes dos planos para um romance? Poesias?
rios que navega ou como travessas que desembo- Nenhum gênero é minha maior expressão. O
cam nas ruas que trafega. sentimento poético é minha maior expressão.
Dividido em três fases, “Os nomes escritos nas E a palavra que me diz o que ela vai ser. Não me
árvores, os umbigos enterrados no chão”, “Quando importo muito também com o que ela vai ser, mas
os lábios roxos gritam em caixas de leis hermé- com a dança que faz. Meu próximo livro será um
ticas” e “O reflorestar do corpo, o abandonar das romance, já que precisamos rotular assim para
pragas”, intercala histórias de meninas, mães, avós, as questões práticas de venda e distribuição, mas
todas elas mulheres que sofrem com a violên- eu gosto de pensar nele como uma pedra que es-
cia, com o silenciamento. A palavra de Malcher é tou esculpindo.
cortante como gume: “Meu corpo conhecia todo
tipo de dor com objetos diferentes. Sandália, livro, Você também é artista plástica… O próprio
prato, folha, galho, cadeira, controle de TV e quase Flor de Gume tem colagens suas. Como
sempre chute com soco” (pág. 45). Ou: “Não é
acontece, para você, essa interface entre
exclusividade das casas serem assombradas, mu-
literatura e artes plásticas?
lheres são também. Isso conheço bem” (pág. 79).
As duas coisas conversam demais, em ambas meu
Pode-se ler o livro em sequência linear ou esco- modo de criar não segue muitas vezes uma linha
lher qual momento quiser, pois, mesmo separa- esperada. Gosto de manipular imagens e, por is-
dos, conversam entre si, estão conectados por so, amo escrever e colar. A diferença talvez esteja
um forte fluxo narrativo. Há uma personagem, em como me sinto fazendo essas atividades. Es-
Sílvia, que passeia pelas várias etapas da vida, ou
crever me causa incômodo e colar me causa rela-
melhor, navega nesses rios amazônicos, em dife-
xamento. Amo as duas sensações.
rentes momentos, e está presente em quase todas
as histórias. É através de suas memórias, de seus
Você tem conseguido viver das artes, em geral?
sentimentos e de suas percepções que navega-
É um desafio extremo, mas sim. Vivo das artes
mos nessas águas. A literatura de Monica Malcher
hoje, pago minhas contas inteiramente com a li-
é indomável, como toda força da natureza.
teratura e as artes plásticas. O que envolve uma
gama de trabalhos e muita organização para dar
certo. Ainda não é algo que eu possa respirar
esses momentos são trocas e que esses lugares totalmente tranquila, mas finalmente sou uma
precisam muito de nós; observar e compreender artista vinda das periferias que tem provado o
um mundo que existe e é forte. sabor do que é ter acesso, pois privilégio nunca
soube o que é.
Qual o olhar da mulher de hoje para a menina
Monique? Quais as recordações que você tem O que vem por aí?
dessa fase? Tenho sempre vários projetos em andamento, sou
Eu ainda sou a minha ancestral mais antiga, inquieta, hahaha. Mas o que eu pretendo termi-
minha criança. Não há uma separação eviden- nar em breve é o novo livro, que não posso falar
te entre nós. Pois quando era criança já escrevia muito sobre, mas vai se passar no Amazonas.
sabendo da responsabilidade de escrever e hoje
me divirto com o processo das coisas como uma NOTA
erê. Se vemos nossa criança apenas como passado
1 J arid Arraes
penso que nos sobra o endurecimento. Recordo a
Escritora, cordelista e poeta brasileira, autora dos
pequena Nique que amava sentar à mesa e sentir a livros As Lendas de Dandara, Heroínas Negras Bra-
sileiras em 15 cordéis, Um buraco com meu nome e
folha em branco antes de escrever nela para pre- Redemoinho em dia quente. Atualmente vive em São
encher tudo. Nunca sosseguei até preencher tudo. Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres.

ESCRITA VIVA 13

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gramática
NGB

Texto de Maurício Silva

DA
NORMA
AO USO
Como se deu
o processo de
uniformização
e simplificação
do português
utilizado no
Brasil

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14 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA ©
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“Oficializada em 1959, a
NGB – como ficou mais
conhecida – promoveu
uma considerável
inflexão no processo
de construção das
gramáticas brasileiras,

H
á mais de 60 anos, a
já que interferia taxionômico que, a partir de
Nomenclatura Gra- diretamente no modus então, deveria servir de mo-
matical Brasileira delo a nossos gramáticos.
(NGB) era adotada tanto pa-
faciendi de nossa Contudo, não foram poucos
ra o ensino programático nas gramaticografia e os gramáticos que, prove-
escolas quanto para os exa- nientes da geração anterior,
instaurava um rígido
mes de admissão e seleção, rebelaram-se contra o que
seja nas universidades, seja padrão conceitual e consideravam certos exces-
nos concursos públicos, con- taxionômico que, a sos e incoerências da nova
forme rezava a Portaria nº terminologia, como é o caso
36, de janeiro de 1959, assi- partir de então, deveria de Napoleão Mendes de Al-
nada por Clóvis Salgado, en- servir de modelo a meida1, que, embora tenha
tão Ministro da Educação e adaptado sua gramática, a
Cultura do governo de Jusce- nossos gramáticos” partir da década de 1960,
lino Kubitschek. Esse docu- aos ditames da nova nomen-
mento, que serviria, nos anos clatura, manifestou-se pron-
posteriores, como referência tamente contrário a uma
para a padronização das categorias gramati- uniformidade terminológica que, segundo suas
cais e outros conceitos linguísticos próprios do próprias palavras, fora criada “com desrespei-
português utilizado no Brasil, resultou do tra- to à tradição e ao bom senso, quando não à pró-
balho intenso de alguns dos principais nomes pria disciplina” (p. 6).
de nossa gramaticografia e linguística, como
O PAPEL DO GRAMÁTICO
Antenor Nascentes, Clóvis do Rêgo Monteiro,
Cândido Jucá (filho), Rocha Lima, Celso Cunha, Sem uma filiação teórica definida e inse-
Antônio José Chediak, Serafim Silva Neto e Síl- rindo-se nas políticas linguísticas do Estado
vio Elia, todos eles comprometidos com o pro- Brasileiro, a NGB é, na verdade, segundo Lau-
jeto de uniformização e simplificação de nossa ro Baldini, um documento que resulta na redu-
nomenclatura gramatical, baseando-se em três ção do papel social do gramático, uma vez que,
princípios fundamentais: a exatidão científica ao impor uma transformação e uma padroni-
do termo, sua vulgarização internacional e sua zação do discurso gramatical, obriga-o a ser
tradição na vida escolar brasileira. uma espécie de “comentarista” da nomencla-
Oficializada em 1959, a NGB – como ficou tura. O gramático, portanto, perde espaço e im-
mais conhecida – promoveu uma considerável portância dentro da dinâmica social na qual se
inflexão no processo de construção das gramá- inscreve o saber metalinguístico, e a gramáti-
ticas brasileiras, já que interferia diretamen- ca passa, muitas vezes, à condição de um mero
te no modus faciendi de nossa gramaticografia repositório de dados linguísticos previamente
e instaurava um rígido padrão conceitual e arrolados pela nomenclatura oficial. Imbuído

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gramática
NGB

de um poder legal, a NGB representaria


o encerramento de uma ampla etapa de
Português brasileiro
nossa gramaticografia – com implicações × purismo idiomático
consideráveis até mesmo no estatuto au-
A aprovação da NGB foi também responsável
toral do gramático (como assevera Eni
pelo aprofundamento de uma importante dis-
Orlandi) – e o início de uma nova fase que,
cussão, que já vinha sendo travada, com mais
se por um lado marca a decadência de um
assiduidade, ao longo de toda a primeira meta-
ideário gramatical específico, delibera-
de do século 20, em torno das especificidades
damente assentado na normatividade dos
do português aqui utilizado, adensando ainda
fatos da língua, por outro lado assinala mais a dicotomia entre os defensores das ca-
a intercorrência de teorias linguísticas racterísticas próprias do português “brasileiro”
– sobretudo com o advento do Estrutura- e os adeptos do purismo idiomático, segundo
lismo – que dariam novo rumo a nossa es- o pesquisador e professor de semântica e
critura gramatical. pesquisador de estudos urbanos da Unicamp,
Com efeito, data dos anos que sucedem Eduardo Guimarães. De qualquer maneira,
a década de 1960 o surgimento de uma embora a unificação dos termos gramaticais
série de fatos circunstanciais que per- pudesse representar um ganho, no sentido
mitiram uma mudança de paradigma na de uma homogeneidade, com repercussões
gramaticografia brasileira, fatos que pa- na própria identidade linguística nacional – já
recem ter sido mais responsáveis pelo que se tratava, inclusive, de se diferenciar da
desenvolvimento do descritivismo gra- Nomenclatura Gramatical Portuguesa (NGP),
matical do que pelo arrefecimento com- aponta o professor doutor Marcelo da Silva
pleto do normativismo, fazendo com que Amorim –, parece que quem mais se condoeu
ambos os domínios da gramática passas- com esse fato foram mesmo os gramáticos,
sem a conviver nem sempre de forma pa- como sugerido antes, que se sentiram preju-
cífica. Cronologicamente falando, tais dicados em sua autonomia. Segundo Orlandi,
fatos poderiam ser identificados, além da em “Metalinguagem e gramatização no Brasil”,
própria elaboração da NGB, como a inclu- “com a NGB os gramáticos foram despossu-
ídos de seus lugares de autor que tinham no
são da linguística no currículo do curso
século XIX quando poderiam dizer (e nomear)
de Letras de renomadas universidades –
a língua portuguesa no Brasil, via discussões
como a Universidade de São Paulo (1965)
teóricas, decisões terminológicas, análises
e a Universidade de Campinas (1971) –,
gramaticais dos fatos da língua que se fala
a aprovação da nova Lei de Diretrizes e
desse lado do Atlântico. A NGB cristalizou a
Bases dos Ensinos Fundamental e Médio
gramática, ou melhor, reduziu a gramática a
(1971) e o desenvolvimento de estudos lin- uma nomenclatura fixada e o gramático per-
guísticos de inspiração estruturalista, deu seu estatuto de autor, de criador, ou, pelo
tudo isso culminando no aparecimento menos, perdeu sua forma de autoria: ele só
de gramáticos que, a exemplo de um Cel- pode repetir” (p. 32).
so Cunha (Gramática do Português Contem-
Dos últimos anos do século 19 até a metade do
porâneo, 1970) ou um Evanildo Bechara
século 20, a gramaticografia brasileira caracte-
(Moderna Gramática Portuguesa, 1961), tor-
rizou-se, sobretudo, por um saber metalinguís-
naram possível a institucionalização de tico que acusava um lastro positivista de cunho
uma “nova” gramaticografia nacional e lusitano e trazia como principais marcas desse
prepararam o terreno para um processo ideário linguístico as querelas linguísticas, as
de proliferação gramatical, cujos princí- reformas ortográficas e as discussões lexicais
pios teóricos vão do enfoque funcionalista acerca dos estrangeirismos, afirma Bechara
ao descritivista, passando pelas aborda- em A Tradição Gramatical Luso-Brasileira, o
gens pragmáticas ou interacionistas. que, aliás, resultaria na escrita de gramáticas

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inspiradas nos fundamentos científicos largas concessões a teorias de
advindos dos estudos linguísticos eu- natureza enunciativa e discursiva. A
ropeus institucionalmente legitimados, citada gramática de Celso Cunha é
lembram Leonor Fávero e Marcia Moli- um exemplo dessa “versatilidade”
na; além disso, esse período celebrizou- teórica, já que se trata de uma obra
-se pela adoção de novas propostas cuja intenção era, entre outras, a
linguísticas, pautadas, sobretudo, na de apresentar os fatos da língua de
fatura literária de alguns modernistas, forma sistemática, seguindo deli-
dando novos contornos a nossa grama- beradamente a Nomenclatura Gra-
ticografia, como explico em “Gramática matical Brasileira e reafirmando seu
da Língua Portuguesa no Brasil: um propósito de “valorizar os meios
estudo da gramaticografia brasileira expressivos do idioma” (p. 10).
pré-NGB (1930-1960)”. Após esse longo Apoiando ou não as novas diretrizes
período, o que se verificou – também da NGB, o fato é que a maioria dos
como repercussão da NGB – foi a pro- gramáticos que produziram a partir
O AUTOR
dução de gramáticas, cujos princípios da segunda metade do século 20 MAURICIO SILVA
teóricos vão do enfoque estruturalista adotou – até por força da legislação possui doutorado e
ao funcionalista e ao descritivista, pas- – as diretrizes do novo documento, pós-doutorado em
Literatura Brasileira
sando pelas abordagens pragmáticas seguindo de perto aquele princípio pela Universidade de
ou interacionistas, como são exemplos que, porventura, estava na gênese São Paulo, é professor
do Programa de
as gramáticas de Celso Cunha (Gra- de todo esse movimento: o respeito Mestrado e Doutorado
mática do Português Contemporâneo, às normas, em benefício de uma em Educação da
Universidade Nove de
1970) ou de Evanildo Bechara (Moderna regularização de nossa linguagem Julho e do Programa
Gramática Portuguesa, 1961). escrita padrão. Nesse sentido, tanto de Mestrado e
Doutorado em
Muitas dessas gramáticas inspiraram- Bechara (que defende a ideia de Literatura e Crítica
-se na novidade que era, no Brasil, uma língua exemplar) quanto Cunha Literária da Pontifícia
Universidade Católica
as teorias estruturalistas, procurando (que defende a de norma objetiva) de São Paulo, atuou
articular conceitos como os de regis- são, ainda uma vez, modelares como pesquisador da
Biblioteca Nacional
tro idiomático, variantes discursivas, nesse propósito, já que ambos do Rio de Janeiro
normas linguísticas etc. com conceitos se inserem numa discussão mais (2012 a 2013) e como
pesquisador­-residente
como os de fatos de linguagem, papel ampla de utilização da norma culta, da Biblioteca
do sujeito na produção do discurso, conferindo à escola o papel de Brasiliana Guita e
José Mindlin da
importância da interação sociolinguísti- ensinar e divulgar o(s) registro(s) de Universidade de São
ca e outras, fazendo ainda, mais tarde, prestígio da sociedade brasileira. Paulo (2016-2017).

NOTAS REFERÊNCIAS

1 Napoleão Mendes ALMEIDA, Napoleão Mendes de. CUNHA, Celso. Gramática do Portu- -Filologia-Linguística. Revista Anpoll,
de Almeida Gramática Metódica da Língua guês Contemporâneo. Rio de Janei- São Paulo, n. 8, p. 29-39, jan./jun.
(1911-1998) Portuguesa. São Paulo: Livraria Aca- ro: Padrão, 1980. 2000.
dêmica, 1943. FÁVERO, Leonor Lopes; MOLINA,
Gramático, filólogo e profes- ORLANDI, Eni P. Língua e Conheci-
sor brasileiro de português e AMORIM, Marcelo da Silva. NGB Márcia. As Concepções Linguísticas mento Linguístico: Para Uma História
latim. Fundador dos cursos de e NGP: Uma Comparação entre no Século XIX: A Gramática no Brasil. das Ideias no Brasil. São Paulo:
português e latim por corres- Nomenclaturas. Domínios de Lingua- Rio de Janeiro, Lucerna, 2006. Cortez, 2002.
pondência, colaborou com O gem. Revista Eletrônica de Linguísti- GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos SILVA, Maurício. Gramática da
Estado de S. Paulo e é autor ca, Uberlândia, n. 4, p. 1-20, 2009. Estudos do Português no Brasil: A Língua Portuguesa no Brasil: um
de alguns livros relacionados
BALDINI, Lauro. A NGB e a Autoria Gramatização Brasileira. In: GUI- estudo da gramaticografia brasileira
com a gramática e a filologia
no Discurso Gramatical. Línguas e MARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni pré-NGB (1930-1960). In: ASSUN-
portuguesa, que lhe atribuí-
Instrumentos Linguísticos. Campinas, Puccinelli (orgs). Língua e Cidadania: ÇÃO, Carlos; FERNANDES, Gonçalo;
ram o título de personalidade
v. 1, n. 1, p. 97-107, jan./jun. 1998. O Português no Brasil. Campinas: KEMMLER, Rolf (orgs.). Tradition and
influente nesta área, como
BECHARA, Evanildo. A Tradição Gra- Pontes, 1996, p. 127-138. Innovation in the History of Linguis-
Gramática metódica da língua
portuguesa, Gramática latina e matical Luso-Brasileira. Confluência. ORLANDI, Eni P. Metalinguagem e tics. Münster: Nodus Publikationen,
questões vernáculas. Rio de Janeiro, n. 10, p. 66-76, 1995. gramatização no Brasil: Gramática- 2016, p. 347-355.

ESCRITA VIVA 17

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literatura brasileira
Dom Casmurro

Uma casa
brasileira
com certeza Texto de Roberto Sarmento Lima

Uma morada não é apenas uma morada, em


se tratando de ficção romanesca. Tomada
em seu protagonismo, ela pode revelar
como o escritor construiu uma realidade, à
luz do mundo social de ontem e de hoje. Eis
a lição deste ensaio, que visita o interior
desse complexo em Machado de Assis

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© CANICULA1 / ISTOCKPHOTO.COM

“Quero começar,
como quem não quer
nada, com a descrição
de um microcosmo:
trata-se de uma casa
que aparece em um
romance que ainda
faz muito sucesso,
sobretudo por causa
de certos olhos
misteriosos de mulher”

T
eria passado pela cabeça daquele escri- da primeira, tal e qual. Vista inicialmente por
tor que viveu no século 19 fazer de uma fora, deduz-se que a casa seja simples, espaço-
casa o retrato do Brasil? Pior: do Brasil sa e naturalmente confortável, trazendo uma
daquele tempo e, por incrível que pareça, de ho- inspiração das antigas casas-grandes da épo-
je também, sem mudar praticamente quase na- ca da colonização portuguesa, como disse Gil-
da? Na casa onde vamos entrar é possível que berto Freyre, no seu Casa-grande & senzala1,
encontremos o que há de mais doentio e per- de 1933. Realmente, não há luxo; há espaço pa-
verso na sociedade brasileira — um vasto painel ra tudo nessa casa apresentada pelo narrador:
da nação. Isso é o que vamos ver. O instinto de
crítico reconhece que ele tinha razão nas suas “[...] é o mesmo prédio assobradado, três ja-
elucubrações. nelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas [...]. Tenho chacarinha, flores, le-
À MESMA IMAGEM E SEMELHANÇA
gume, uma casuarina, um poço e lavadouro.”
Quero começar com a descrição de um micro-
cosmo: trata-se de uma casa que aparece em um Comparando, essa casa do romance se pare-
romance de muito sucesso ainda, sobretudo por ce bastante com as casas daqueles tempos an-
causa de certos olhos misteriosos de mulher. tigos no Brasil, como esta que Gilberto Freyre
Lançado em 1899, o livro ainda seduz leitores. descreve:
Nele, seu narrador, em idade mais avançada,
projetou a casa de modo a torná-la semelhan- “A casa-grande de engenho que o colonizador
te àquela em que viveu durante a adolescên- começou, ainda no século XVI, a levantar no Bra-
cia. A ideia era que a segunda, em outro lugar sil [...] alpendre na frente e dos lados [...] Paredes
da cidade, tivesse a mesma compleição física grossas. Alicerces profundos.”

ESCRITA VIVA 19

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literatura brasileira
Dom Casmurro

Alicerces profundos! Comprova-o a pro- “O meu fim evidente era atar as duas pontas
gressão da nossa história. A imagem desse da vida, e restaurar na velhice a adolescência.”
alpendre (copiar ou varanda, como quei-
ram chamar, de acordo com a região que se Numa atitude quase religiosa, o narrador
focaliza) mais a potência dessas paredes — se vê a si próprio no encontro com o Desco-
metáfora de nosso processo civilizatório, nhecido, que lhe reservou desamparo:
resistente a mudanças — continuam a as-
sombrar, persistem como obsessão nos dias “Pois, senhor, não consegui recompor o que
atuais. Aliás, no Brasil, a continuidade cega foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
dos valores — volta ao passado, retrocesso, fisionomia é diferente.”
retorno — parece entranhar-se em tudo que
é objeto cultural presente aqui. Isso se refle- Quase um mártir que procura descanso,
te na própria linguagem do narrador: esse homem reflete sobre sua via-crúcis per-
corrida até ali. Como não se segurar às pare-
“A casa em que moro é própria; fi-la construir des grossas, protetoras, da antiga casa? Não
de propósito, levado de um desejo tão particu- lhe restou alternativa, senão repetir esse
lar que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, passado, ao menos na aparência de uma ca-
há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no sa senhorial, com ares de convento. Gilber-
Engenho Novo a casa em que criei na antiga Rua to Freyre faz notar que em muitas das casas
de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e velhas da era colonial “estava-se como em um
economia daquela outra, que desapareceu.” convento português — uma grande fazenda
com funções de hospedaria e de santa casa”.
A casa é própria (sinal de que o narra- Declara o antropólogo pernambucano:
dor está bem de vida e deseja perpetuar-se
nessa imagem, que vem desde a adolescên- “Se a casa-grande absorveu das igrejas
cia). A sua reprodução serviu para mostrar e conventos valores e recursos de técnica,
que as elites só se sentem seguras quando também as igrejas assimilaram caracteres da
andam para trás, apegando-se ao passado casa-grande: o copiar, por exemplo. Nada mais
que teria dado certo... para elas mesmas, interessante que certas igrejas do interior do
evidentemente. Reprodução, conservação, Brasil com alpendre na frente ou dos lados como
restauração, analogia, parecença: o texto se qualquer casa de residência. Conheço várias —
recobre desse vocabulário do campo semân- em Pernambuco, na Paraíba, em São Paulo.”
tico das similaridades, as quais conferem
mais estabilidade ao narrador circunspec- O próprio Machado de Assis, nesse seu
to e avesso a mudanças: Dom Casmurro, resolveu lembrar, por uma
observação do tio Cosme — outro que faz da
“O mais é também análogo e parecido.” casa de Mata-cavalos uma hospedaria, junto
com a prima Justina e o agregado José Dias —,
Chicoteado embora pelos instáveis mo- que “a Igreja brasileira tem altos destinos”, e,
mentos com que não contava enquanto du- nessa mistura bem nacional de religião com
rou o casamento que naufragou, ele não vida social e política, alude ao fato de que “um
quer ver cair o seu mundo de alicerces pro- bispo presidiu a Constituinte e o Padre Feijó
fundos e paredes grossas; não quer vê-lo su- governou o império...”. Não admira, pois, que
cumbir ante os embates, os imprevistos e as o agregado dessa família, o queridíssimo Jo-
surpresas que, no decorrer, lhe causaram sé Dias, no capítulo 61, numa demonstração
choque. Daí a tentativa, mesmo assim, de clara de que está integrado ao mundo senho-
reconciliar-se com o passado: rial que a casa representa, solte esta máxima

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em tom solene: “O mundo também é igreja
para os bons...”. Boa é a igreja, para ele, cla-
ro, já que a casa abrigou esse fiel desde mui-
to cedo, dando-lhe teto, comida e segurança
econômica.
Hoje, na linguagem popular, diz-se de um
grupo fechado de amigos, ou de cúmplices em “Aliás, no Brasil, a
algum negócio, que eles formam uma igreji- continuidade cega dos
nha... Tudo muito suave nesse diminutivo,
adequado ao “intimismo à sombra do poder” valores — volta ao passado,
— expressão com a qual Thomas Mann2, re- retrocesso, caminho de volta
tomada depois por Lukács3, designou o am-
biente político da Alemanha (mas bem que
— parece entranhar-se em
serve para nós também) como lugar de conci- tudo que é objeto cultural
liações feitas pelo alto, pelas classes dirigen-
tes e aristocráticas, excluindo as iniciativas
presente no nosso entorno”
populares na condução dos destinos da socie-
dade. Nesse estabelecimento de paralelo com
a cultura brasileira, o narrador de Dom Cas- seja a mais conservadora, a começar pela
murro ignora o que não lhe interessa, se o que adoção do latim nas suas mais difundidas ex-
tem pela frente veio de baixo principalmen- pressões jurídicas.
te, e fecha-se no seu subjetivismo extremado,
DOMUS, DOM, DONO
encarcerado na casa que mandou construir
à imagem e semelhança da de Mata-cavalos. Por isso foi que esse dono da casa do En-
Desse modo, não haveria metáfora melhor, genho Novo, que atende pelo nome de Bento
para tal conexão simbólica representativa Santiago, então viúvo, advogado de forma-
do autoexílio e conservadorismo de classe, do ção, bem-nascido em uma família abastada
que uma casa que reproduz outra, mais anti- de Itaguaí, até gostou do apelido que recebeu
ga, em todos os seus aspectos e atmosfera. do rapaz do trem da Central, aquele mesmo
É verdade que, hoje, findo o Império, es- que lhe leu poemas que deram bocejos, tal co-
ses traços estão bastante esmaecidos — ou mo aparece no primeiro capítulo do romance.
dispersos, disfarçados — na cena urbana do Era noite. O trem voltava da cidade para o
país, mas seus remanescentes culturais con- subúrbio, onde moravam ambos, sem se co-
tinuam assombrando o pensamento cotidia- nhecerem efetivamente, a não ser “de vista
no brasileiro. Como diz o próprio narrador, a e de chapéu”. Eram mutuamente estranhos.
fisionomia é diferente, mas, mantido intoca- Resolvendo apresentar-se àquele senhor de
do até agora o rosto dos senhores, nada há a ares respeitáveis, o jovem praticamente co-
comemorar. mandou a conversação: falaram da lua e dos
O tom de modernidade — que instaura o ministros — natureza e política, coisas que
reino das dissoluções, dos descentramentos nunca se arranjaram bem por aqui —, e, por
e das rupturas que brigam com o roteiro da fim, saiu este último assunto: poesia. Ao que
continuidade — avisa que esse narrador, ao parece, não agradou muito (“os versos po-
contrário, é renitente e não entrega fácil o de ser que não fossem inteiramente maus”),
jogo que o atropela. Continua, resiste, pois. apesar da dissimulação algo cínica do ou-
Esse narrador não é, definitivamente, mo- vinte, que pôs no embuste discreto toda a
derno! E talvez das profissões escolhidas, sua presença. Mas o rapaz, claro, percebeu
ainda mais durante o Império, a de advogado o enfado que causou no outro e, ressentido,

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literatura brasileira
Dom Casmurro

meteu “os versos no bolso”. O “meu poeta do


trem” (perceba-se aí a ironia do narrador!)
terminou por apelidar o vizinho de “Dom
Casmurro”, designação que “afinal pegou”
e, de quebra, ainda serviu de título ao livro
de memórias que estava preparando. Títu-
lo que, dado pelo ocupante do andar de bai-
xo, agradou o de cima. Por outras palavras: Tudo
o rapaz, mesmo aborrecido, serviu a seu se-
nhor. O escravo aguenta as chibatadas que
igual, tudo
lhe dão e ainda contribui para a santa paz permanece
da casa-grande.
As nossas elites não sabem
Isso é resultado da assimetria que sepa-
por que admiram ou cultivam
ra as classes sociais no Brasil: de um lado,
o gosto por retratos e paisa-
o ofendido (no caso, o rapaz poeta, que se
gens europeus, incorporados
sentiu desprestigiado durante a leitura dos à arquitetura e à decoração
seus versos), enquanto, de outro, o ofensor, de casas e edifícios. Até hoje,
ainda que não o tivesse premeditado (o ho- possivelmente, sob certas con-
mem mais velho, de vida econômica com- dições. Creem apenas que isso
pletamente resolvida e próspera). O jovem confere elegância e requinte. É
se ressente da ofensa, mas aquele que po- uma marca distinta e distintiva
deria ter-se ofendido com o apelido (“Nem de classe essa adaptação a
por isso me zanguei”) não se chateou, por- modelos de fora, desde que te-
que é regra que, como diz um provérbio an- nham prestígio internacional. O
tigo, o que vem de baixo não atinge. Classe crítico Antonio Candido atribui
fechada no seu poderoso “intimismo à som- isso aos recalques que cons-
bra do poder” — eis o que Thomas Mann tituíam nosso sentimento de
inferioridade, ranço do atraso
que nos humilhava.
As casas se superpõem: a de
Mata-cavalos e a do Engenho
Novo. “Diz-se que o Brasil é um
“Nesse estabelecimento de país novo; sim, é um país novo
em algumas partes, virgem
paralelo com a cultura brasileira, mesmo, mas em outras é
o narrador de Dom Casmurro um país velho”, afirmou outro
pensador, Joaquim Nabuco, no
ignora o que não lhe interessa, seu O abolicionismo, de 1883.
se o que tem pela frente veio de A escravidão, esse sistema
injusto criticado por Nabuco,
baixo principalmente, e fecha-se certamente entranhada na nos-
no seu subjetivismo extremado, sa memória e na nossa cultura,
nos acompanha, a ponto de até
encarcerado na casa que acharem natural que as coisas
mandou construir à imagem e se passem como se passam,
“porque já se diluiu no sangue”,
semelhança da de Mata-cavalos” completa Nabuco, numa ex-
pressão adornada de clichês.

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poderia aplicar a nós também, se nos tivesse paredes da sala principal. Lá continua-
lido —, os que estão de cima nem reparam nos riam reinando, absolutos, gloriosos, como
que estão embaixo, a não ser muito casual- se fossem o espelho do ocupante:
mente, quando um deles aparece fisicamente
à sua frente. Num trem, por exemplo. “Nos quatro cantos do teto as figuras das
Por seu turno, o agregado José Dias, outro estações, e ao centro das paredes os meda-
“dependente” desse jogo de poder, sabe que lhões de César, Augusto, Nero e Massinissa,
Bento Santiago logo será o dono de tudo. É com os nomes por baixo... Não alcanço a ra-
um senhor, no sentido pleno do termo: o ter- zão de tais personagens. Quando fomos pa-
mo originário latino para isso é “domus”, “ca- ra a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim
sa do senhor”, “família”, de onde saem “dom” decorada; vinha do decênio anterior. Natural-
(o dos títulos eclesiásticos ou de nobreza), mente era gosto do tempo meter sabor clássi-
“domínio”, “dominação”, “dominador”, “do- co e figuras antigas em pinturas americanas.”
mingo” — e “domicílio”, casa, endereço! Até
mesmo o substantivo “dom”, talento inato Uma casa é, pois, mais do que uma ca-
pelo qual alguns se distinguem da massa hu- sa. É um estado de alma, um desejo, uma
mana. Em tudo se aspira ao elevado, ao supe- reminiscência, e um sonho que não quer
rior. E foi assim que a alcunha que recebeu do saber de dissipar-se. A pretensão de Ben-
“meu poeta do trem” não o desagradou; até tinho, concretizada na casa definitiva do
mesmo o embeveceu. Engenho Novo, não pretende esgotar-se.
Na casa do Engenho Novo mandou também Pretende ficar. Daí, certamente, terem as
reproduzir, além da arquitetura e da aparên- suas paredes grossas de convento e ali-
cia externa da velha casa de Mata-cavalos, cerces firmes assegurado a esse senhor
os medalhões de certos senhores do passa- enraizamentos culturais profundos. Com
do clássico romano que ornamentavam as certeza uma casa brasileira.

NOTAS

1 Casa-Grande & Senzala 2 Paul Thomas Mann 3 G


 yörgy Lukács ou
Editora Maya & (1875-1955) Georg Lukács
Schmidt, 1933 Escritor, romancista, ensa- (1885-1971)
Livro do sociólogo bra- ísta, contista e crítico social Filósofo, crítico literário e
sileiro Gilberto Freyre, do Império Alemão. Tendo historiador literário húnga-
que apresenta a impor- recebido o Nobel de ro. Como crítico literário,
tância da casa-grande na Literatura de 1929, é con- Lukács foi especialmente
formação sociocultural siderado um dos maiores influente, sendo reconhe- O AUTOR ROBERTO
brasileira, assim como a da romancistas do século 20. cido como o precursor dos
SARMENTO LIMA é
senzala na complementa- Autor de A Montanha Má- estudos sociológicos da
ção da primeira. [+QR] gica, Doutor Fausto, Morte literatura ficcional.
professor titular da área
em Veneza, entre outros. de Estudos Literários da
Universidade Federal de
Alagoas. Tem doutorado em
Literatura Brasileira, com
REFERÊNCIAS a tese O narrador ou o pai
fracassado: revisão crítica e
CANDIDO, Antonio. Literatura Paulo: Global, 2003. LINK modernidade em Vidas secas.
e cultura de 1900 a 1945 LUKÁCS, Georg. Thomas Mann Em 1986, recebeu o Primeiro
(panorama para estrangeiros). e a tragédia da arte moderna. 1. Casa- Prêmio do Concurso
In: CANDIDO, Antonio. Literatura In: LUKÁCS, Georg. Ensaios Grande & Nacional Manuel Bandeira,
e sociedade: estudos de teoria sobre literatura. Trad. de Carlos Senzala com o ensaio Manuel
e história literária. 5. ed. rev. Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Bandeira: o mito revisitado,
São Paulo: Companhia Editora Janeiro: Civilização Brasileira, publicado como livro no
Nacional, 1976. p. 109-138. 1968. p. 191-249. ano seguinte. Desde 2009,
é articulista fixo da revista
FREYRE, Gilberto. Casa-grande NABUCO, Joaquim. O Conhecimento Prático Língua
& senzala: formação da família abolicionismo. 2. impr. Brasília: Portuguesa e Literatura, da
brasileira sob o regime da Senado Federal, 2010. (Edições Editora Escala, de São Paulo.
economia patriarcal. 48. ed. São do Senado Federal, v. 7).

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foco

Remédio?! uma continuidade que foi rompida pela


Quando a poesia e outras manifestações própria descontinuidade das necessi-
dades do meu corpo, enfim, reconstruir
artísticas tornam-se necessárias para aproximadamente a totalidade do

o combate aos males da vida objeto material”.

LIVROS, LIVROS A MANCHEIAS


Durante o período mais crítico da

E
stamos vivenciando um contínuo com o mais abismal dos pandemia cresceu enormemente
momento na história da hu- seres. Nesse contexto de grave crise a compra de livros pela internet, e
manidade que tem a saúde sanitária, muitos amores e amizades muitas pessoas que não tinham esse
como elemento fundamen- se esfacelaram nesse exercício de hábito acabaram gostando do que ex-
tal de busca de felicidade numa so- compreender o outro na sua totali- perimentaram. A literatura não tem a
ciedade doente em muitos aspectos. dade, já que esse contato passou a função de salvar vidas, mas cada um
A pandemia trouxe muitos agravan- ser contínuo, diário e total. se apropria de algo de acordo com
tes sociais, psicológicos e econô- Aos poucos os hábitos foram mu- suas necessidades; e muitas vezes
micos, mas ainda não sabemos os dando nesse isolamento social, e essa apropriação vem em forma de
reflexos que isso trará daqui a algum quando menos percebemos estáva- remédio no sentido que ameniza an-
tempo, pois a história nos ensina que mos olhando de forma diferente para gústias, ansiedades, pensamentos re-
outros efeitos de uma situação des- um facho de luz que invadia o vão petitivos e até o tédio. O poeta Percy
sa dimensão serão verificados com da janela e criava um desenho na Bysshe Shelley, no seu fundamental
mais precisão somente mais adiante. parede ou no chão. Pesquisas dizem ensaio Uma defesa da poesia, diz que
Outro fato que ficou evidente nesse que as pessoas começaram a es- “o cultivo da poesia nunca deve ser
processo de compreensão de um crever mais, principalmente relatos mais desejado do que em períodos
instante caótico foi o extremismo po- biográficos. O desenho, a fotografia quando, de um excesso de princípio
lítico e religioso diante de questões e a música retomaram antigos espa- egoísta e calculista, a acumulação
que há muito foram devidamente es- ços esquecidos. Percebemos que ali de materiais da vida externa excede
clarecidas pela ciência. Até mesmo estavam alguns remédios para uma a quantidade de poder capaz de as-
a suposta cura para tal enfermidade doença de fora cujo contexto causa- similá-los às leis internas da natureza
foi questionada por questões ideoló- va a doença interna. humana”. Certamente que Shelley
gicas. O remédio contra a ignorância Precisávamos de uma reeducação se refere às questões materiais que
é o conhecimento e a consciência dos sentidos? A velocidade da vida envolvem a vida, mas isso também se
sobre a estrutura dos fatos e no moderna e a imposição de necessi- direciona à possibilidade de um olhar
modo como eles se constroem. dades trazem nas asas um voo que se que se volta para si, justamente por
O remédio que tanto queríamos contenta com o óbvio e o servilismo ter que se distanciar das questões
para uma solução rápida não existia mercadológico. O isolamento des- materiais devido ao ato primordial de
e ficamos meses trancados em casa construiu provisoriamente esse pro- preservar a vida no isolamento. Essa
com a morte varrendo as ruas vazias. cesso, a inércia pousou sobre o corpo, situação foi contestada pelos segui-
Uma das soluções encontradas para e os olhos viram-se aprisionados ante dores do negacionismo que não acei-
que a loucura não nos sufocasse quatro paredes, tendo na fresta de tavam o isolamento e queriam voltar
foi começar a olhar para si e para uma janela semiaberta um pouco de ao contato social para continuar seus
o mínimo espaço (quase) sadio ao esperança em forma de luz. As pe- ganhos materiais, mesmo com tantas
redor. A interiorização e a busca de quenas coisas que passavam desper- pessoas morrendo ao redor.
si tornaram-se mecanismos funda- cebidas começaram a ser notadas. O O poeta inglês fala especificamen-
mentais para espantar a ansiedade filósofo Henri Bergson dizia que uma te de poesia em seu ensaio, mas,
que muitas vezes rumava à loucura. educação dos sentidos é necessária como sabemos, poesia é o elemento
Enquanto o remédio para a doença para compreendermos nossa vida de efeito estético/subjetivo “contido”
não era criado, o ser humano come- ao nos relacionarmos com o espaço em algo, e não apenas o que se de-
çou forçadamente uma busca pelo ao redor e “essa educação tem por nomina como “beleza estética” numa
remédio da ressignificação das rela- finalidade harmonizar meus sentidos obra artística; e esse “algo” pode ser
ções com o espaço e com o convívio entre si, restabelecer entre seus dados muito variável. A função poética dita

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©1:

Reflexão de Ninil Gonçalves

por Shelley não se instaura apenas “a literatura confirma e nega, propõe vida. Rorty escreveu sobre isso no
na escrita e leitura de poesia, mas no e denuncia, apoia e combate, forne- ensaio “Fogo da vida” e, nesse texto,
elemento mimético proporcionado cendo a possibilidade de vivermos ele afirma que “como quer que tenha
pelas artes para se ressignificar as dialeticamente os problemas”. Não é sido, agora gostaria que tivesse pas-
coisas ao nosso redor. Desde o início por acaso que a arte, a educação e sado mais tempo da minha vida com
da humanidade o homem busca a re- a cultura são os primeiros alvos dos versos”. Muito além de terapêutica, a
presentação mimética, seja nas pin- governos ditatoriais. literatura e as artes, em geral, trazem
turas rupestres, seja na estética dos Segundo Aristóteles, a arte deve em si um processo de reflexão sobre
objetos utilitários. A arte teve uma buscar a essência profunda das coi- o Ser e tudo aquilo que ele vivencia,
função importantíssima para muitas sas e não copiar sua mera aparência. constituindo assim um processo de
pessoas no período mais crítico des- Isso já nos fornece uma possibili- conscientização que, segundo Paulo
ta última pandemia. Obviamente que dade imensa de reflexão sobre os Freire, nunca deve se findar por estar
para muita gente a arte continuou elementos simbólicos ali tratados. em contínua transformação.
não significando nada, mas a arte Esse suposto remédio que a arte traz No meu primeiro texto desta colu-
não tem essa função específica de escondido às vezes pode ser amargo, na da revista, escolhi o tema da arte
cura ou de didatismo para explicar já que a arte não quer ser uma pílula como remédio aos males da vida e
as coisas de modo diferente. Pierre mágica de autoajuda, mas sim um trouxe brevemente algumas reflexões
Francastel nos diz que algumas ve- caminho de descobertas que vai se sobre a necessidade desse medica-
zes a sociedade foi “mais bem ana- abrindo como na “Máquina do mundo” mento em tempos tão árduos. A pró-
lisada” por artistas do que por histo- de Drummond. pria revista e toda a sua diversidade
riadores ou sociólogos, justamente O filósofo pragmático Richard de informações e reflexões voltadas
pela neutralidade de posicionamento Rorty, acometido por um câncer e já às artes e às linguagens não deixam
ideológico que contém tal análise. ciente pelos médicos da ineficácia de ser um remédio numa época de
Os livros de autoajuda também do tratamento, lia compulsivamen- poucos suplementos literários que
foram muito procurados durante o te os poemas de Shelley. O filho de possibilitam um diálogo pleno desta
isolamento pandêmico, mas eles não Rorty, ao ver o pai lendo um poeta área com todas as formas de arte.
abordam especificamente a mímesis romântico, questionou-o se os livros
tratada por Aristóteles, e a funciona- de conteúdos filosóficos ou que re-
REFERÊNCIAS:
lidade desses livros está atrelada ao metiam à espiritualidade não fariam
ato de oferecer “pílulas mágicas” para mais sentido naquele momento difícil. BERGSON, Henri. Memória
dissipar dores, além de se tornar um O filósofo respondeu ao filho que e vida. Martins Fontes: São
Paulo, 2006.
nicho de mercado bem rentável para somente a poesia trazia um alento e
CANDIDO. Antonio. Vários
alguns. A literatura não é remédio, completou: “suspeito que nenhum escritos. Ouro sobre azul:
contrariando o título deste texto, mas efeito comparável poderia ser pro- Rio de Janeiro, 2011.
ela possibilita o desencadeamento vocado pela prosa.” Muitas vezes a FRANCASTEL, Pierre. A
de profundas reflexões sobre a vida, poesia foi tida como “perfumaria”, na Realidade figurativa. Pers-
pectiva: São Paulo, 1973.
já que os elementos simbólicos tec- qual a sua utilidade era embelezar e
RORTY, Richard. The fire
nicamente oferecidos pelas figuras enfeitar a vida ou sentimentos nobres of life. Poetry Foundation,
de linguagem têm papel fundamental por meio da linguagem. A filosofia Chicago, 18 nov. 2007.
Disponível em: https://
na estruturação textual. Falamos aqui pragmática tem o conceito de que o www.poetryfoundation.
inicialmente de literatura, mas isso pensamento produzido teoricamente org/poetrymagazine/arti-
vale para todas as artes, uma vez que tenha uma eficácia para resolução cles/68949/the-fire-of-life.
Acesso em: 15 fev. 2023.
para todas elas existe uma organiza- de determinado problema, e um de
SHELLEY, Percy Bysshe.
ção técnica/teórica que envolve seu seus maiores representantes coloca Uma defesa da poesia e
©1: DEDRAW STUDIO / ISTOCKPHOTO.COM

desenvolvimento. Antonio Candido a poesia como um “remédio” para o outros ensaios. Landmark:
São Paulo, 2008.
afirma em O direito à literatura que Ser no momento mais difícil de sua

©1:

O AUTOR NINIL GONÇALVES é poeta, professor, fotógrafo e capista de livros. Graduado em Letras, mestre e doutor em Educação.
Publica nas áreas de poesia, fotografia e ensaios literários. Poesia: Absorções (2011), Repleta Ausência (2020), além de participar de
algumas coletâneas. Fotografia: Cristina nos Olhos (2014), Cristinidades (2015), Cristinas, Terezas, Marias, Anas (2015); e um ensaio fotográfico
no livro trimestral da ABL (2018). Ensaios: Poéticas do Ensaio (2019), Estética do Labirinto (2019), Educadores Paulistas (2022), entre outros.

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perfil
Heloísa Buarque de Hollanda

Texto de Juarez D. Ambires

O feminismo
vai tomar chá
às quintas
A “velhinha antenada”, como ela se
autodenomina, mantém relação entre
cultura e desenvolvimento, com foco
na poesia, na produção periférica e
nos meios digitais

A
décima mulher a preencher para lá é fato nem corriqueiro, nem antigo nos mais
de condignamente uma vaga no es- de cem anos da ABL. Com isso, já antes da
paço cultural mais reverenciado de posse, figura ao lado de outros professores,
nossas letras, a Academia Brasileira de Le- como Cleonice Berardinelli e Alfredo Bosi,
tras (ABL), fundada em 1897, é Heloísa Buar- ambos infelizmente já de saudosa memória.
que de Holanda. Ela passa a ocupar a cadeira Referimo-nos ainda a outros mestres, em his-
30, que foi de Nélida Piñon, falecida no ano tórico mais escolar do termo. Além do magis-
passado. O pleito foi quase a totalidade dos tério, as atividades que a levam à Academia
votos. Dos trinta e oito possíveis, Heloísa ob- são as de ensaísta, crítica literária, curadora
teve 34, prova acima de tudo do seu prestígio de exposições e pesquisadora. Na formação
intelectual. É prova ainda do reconhecimen- universitária, Heloísa vem das Letras, curso
to por uma luta engajada que envolve temas que frequentou na PUC do Rio. Sua formação
cruciais do nosso presente. Heloísa vem de na licenciatura é o Grego Clássico, a Anti-
uma geografia essencial do pensamento bra- guidade. Na sequência dos estudos, todavia,
sileiro, que é a universidade. Trabalhou anos ela se volta para o contemporâneo e nisto
com Teoria da Cultura, na Escola de Comu- vem entre nós a se notabilizar, a se tornar
nicação da Universidade Federal do Rio de referência.
Janeiro. Veio a se tornar, depois, professora O conhecimento, como se vê, é o que está na
emérita da instituição. Nela, iniciou no ma- base do seu renome, da sua envergadura inte-
gistério em 1964, com a ditadura já em curso. lectual. É, por exemplo, no Brasil, um dos íco-
Como professora que foi e é, na Academia nes do nosso movimento feminista (ver box
faz parte do círculo dos grandes mestres uni- As três ondas), do qual é militante histórica,
versitários que ascenderam à casa, o que não referência entre nós há bem cinco décadas.

26 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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Mas, no início dos anos oitenta, Heloísa pas- contemplação, o refrigério do espírito, o
sa a ter nova visão. O episódio é o de sua es- alimento da alma, tudo, menos o palpável
tadia em Colúmbia, em pesquisa para o seu ou a atitude inovadora em termos sociais.
pós-doutorado em Sociologia da Cultura. O Em certa mentalidade burguesa, é aberta-
fato mais uma vez indica o seu constante di- mente instrumento natural de exclusão,
álogo com e entre áreas das Humanidades. é arma da manutenção de privilégios de
Nos Estados Unidos, ela aprofunda sua visão classe, da sustentação de um quadro so-
do nosso movimento feminista e o reconhe- cial que se quer inalterado. Para Heloísa,
ce como representação de aspectos únicos. a palavra (literária ou não) é para todos, e
Na atualidade, é, sem engano, a maior re- a gente do subúrbio a lê com competência
ferência teórica das nossas feministas. De e a faz com interesse. O tempo para os po-
2020 para cá, está na edição do bres ou para as classes médias
seu quarto título que historia e ricas é quem depura. Separa
e teoriza essa cultura que, no “O conhecimento, primeiro os empenhos persis-
mundo e aqui, já conheceu fases tentes; depois, os talentos ver-
e é das mais importantes1. como se vê, é o dadeiros. Todos, entretanto,

“VELHINHA ANTENADA”
que está na base na esteira de Antonio Candido,
têm direito à literatura e ela
Sobre o feminismo ou não, a do seu renome, da pode, sim, ser instrumento de
verdade é que Heloísa é a mu- sua envergadura ascensão para talentos diver-
lher dos livros. Ela gosta do ob- sos. Quando pouco, ela é meio
jeto e da sua edição. Dirige há
intelectual. É, por de autoconhecimento e, por is-
tempos a Aeroplano Editora, li- exemplo, no Brasil, um so, é de fato necessária.
gada à Universidade Federal do Assim, buscando quebrar
Rio de Janeiro (UFRJ). De modo
dos ícones do nosso os paradigmas conservadores
algum, todavia, está na contra- movimento feminista, da universidade, Heloísa or-
mão do presente. Tem verda- ganiza e dirige o “Programa
deiro interesse por tecnologia
do qual é militante Avançado de Cultura Contem-
e é uma conhecedora das suas histórica, referência porânea”, na UFRJ. Coordena
competências, da importância ainda, multitarefa que é, o “Fó-
entre nós há bem
da internet e dos espaços posi- rum M” – espaço aberto para o
tivos e motivados que ela pode cinco décadas” debate sobre as questões que
abrir. Brincando, ela mesma diz envolvem a mulher na univer-
que é “uma velhinha antenada”. sidade. Segunda coordenação
Ainda segundo ela, a tecnologia e a internet sua recai paralela e brilhantemente sobre
não promoveram a superação do livro, su- o “Laboratório de Tecnologias Sociais do
as referências altamente positivas. Em seu Projeto Universidade das Quebradas”. Es-
universo existencial, inclusão é um vocábu- se laboratório, na sua vez, encarrega-se da
lo necessário, de verdadeira importância. aplicação de cursos de extensão da UFRJ
Eis então o porquê de o livro ser essencial nas periferias do Rio. Com isso, o que se
nas mãos dos mais humildes, dos postos à busca é estender aspectos da cidadania
margem. Conforme a professora, o domínio para áreas mais distantes, onde o braço
da palavra para os destituídos é inclusão, e do Estado tem ação parcial, limitada. Pre-
os mais pobres gostam do livro, querem-no. senciais ou remotos, os cursos de extensão
Mente quem diz o contrário. das Quebradas difundem os valores ante-
Para algumas representações burguesas, riormente elencados e tentam dar vez e
a palavra tem vínculo com outras serven- voz à gente local para suas manifestações
tias, representa outros valores. Pode ser a de literatura, música e outros conteúdos.

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perfil
Heloísa Buarque de Hollanda

Para a nossa mais nova acadêmica, se não menos mais progressista. Dessa forma, en-
houver contatos sérios e rompimentos sin- tretanto, para Heloísa nada de se pensar que
ceros, não se transpõe uma estrutura de do- periféricos são coitados, vazios de conteúdos
minação. Os periféricos, na vez deles, ficam e incapacitados de os criar. Longe disso. Bom
ainda mais submetidos à falta de opção que senso e competência são poderes bem distri-
o tráfico e o crime armado lhes impõem, mas buídos que chegam a todos os endereços. No
também o Estado burguês. Agindo assim, teor de suas palavras, brancos privilegiados
este não justifica as causas históricas da como ela têm de promover a divisão dos bens
sua criação que prometeu na origem ser ao recebidos social e historicamente. A aber-
tura epistemológica da universidade, do co-
nhecimento acadêmico para isso é essencial,
e Heloísa generosamente ao fato se filia.
As três ondas
POESIA NO TOPO DAS CRIAÇÕES
Movimento feminista é a história do
feminismo e de pensadoras feministas. Neste perfil, caberiam ainda e por fim
De acordo com a data, a cultura e o país, menções à Heloísa dos anos sessenta e seten-
feministas ao redor do mundo tiveram ta, figura atuante, corajosa e pública. À épo-
muitas vezes diferentes causas e objeti- ca, suas ações, à medida que se põem contra
vos. A maioria das historiadoras feministas a ditadura, mais se abrem à poesia, que, para
ocidentais defende que todas as ações ela, é a maior de todas as criações. Ela chega
organizadas que trabalham pela obtenção ao parecer de que a mesma poesia é prima-ir-
dos direitos da mulher devem ser consi- mã da filosofia e, por isso, ensina a pensar e
deradas movimentos feministas. Mesmo precisa ser praticada. Devido ao fato, naque-
que as ações não usem o termo “feminis- le episódio, volta-se para a poesia marginal.
mo” para se apresentar, devem ser vistas O Rio torna-se assim uma geografia de ação
como prática feminista. Outros estudiosos e os poetas marginais reinam na contramão,
já defendem que o termo deva ficar restri- na contraordem, na contracultura. São Pau-
to aos movimentos feministas modernos lo, na sua vez e na oposição a isso, está com
e a suas extensões. Esses pesquisadores os poetas do Concretismo (ver box Poesia
utilizam o termo “protofeminismo” para
também é imagem) que pregam o fim do
descrever movimentos mais antigos.
verso. Heloísa, entretanto, congraça-se com
A história dos movimentos feministas os marginais de sua quase terra natal. Des-
modernos no Ocidente é dividida em três se modo, foi das primeiras vozes a teorizar o
ondas. Cada uma é descrita como pre- movimento, a buscar filiações, a levá-lo à uni-
ocupada com diferentes aspectos dos versidade e a confraternizar com os seus poe-
mesmos temas ligados à mulher e sua tas, sob suspeita, na Academia.
história. A primeira onda refere-se ao mo-
Assim, Cacaso, Chacal, Leminski e outros
vimento desde o século 19 até o começo
estão em sua vida e tornam-se amigos de
do 20, que lidou majoritariamente com o
sempre. A poesia, parte tão especial e mate-
sufrágio das mulheres, direitos trabalhis-
rialmente frágil do movimento, passou a ser
tas e educacionais para elas e as meninas.
para ela um oásis em meio à repressão mi-
A segunda onda (décadas de 1960 a 1980)
litar. Papel, mimeógrafo, grampo, tesoura
lida com a desigualdade das leis, com as
desigualdades culturais e com o papel da eram a base de uma produção artesanal. A
mulher em sociedade. Já a terceira onda insistência estava no fato de que, segundo a
(fim da década de 1980 e começo da dé- concepção do grupo, a literatura não depen-
cada de 2000) é vista como uma continu- dia de Gutenberg. Queria se dizer com isso
ação da segunda e como uma resposta às que ela não dependia da imprensa, de uma vi-
falhas nela percebidas. são capitalista que a enquadrara até então. A

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rapidamente percebeu o talento maior. Não

Poesia também muito depois, o movimento reconhece os li-


mites da sua fugacidade e ocorre a dispersão,
é imagem o enquadramento noutras ordens. Uma pau-
ta, entretanto, se firmará e, em nossa leitura,
O Concretismo é um movimento artístico
Heloísa será entre nós um dos seus mais for-
brasileiro que se inspirou na arte abstrata
tes legatários.
da Europa do século 20 e que teve na poe-
Sua eleição para a nossa Academia Brasi-
sia a sua maior expressão. A poesia concre-
leira de Letras dá-lhe maior visibilidade e,
tista propõe a abolição do verso tradicional
e inclui o elemento visual. Para o poeta na extensão, ao legado recebido. Ela, contu-
concreto, além de palavra e de som, a do, também o criou, também o estendeu, es-
poesia é também imagem. Começou a ser tudou, sentiu, pensou, divulgou. Palavras
praticada no Brasil com a publicação da que se registraram nesse perfil tentam apre-
Revista Noigrandes, em 1952. Ela é produ- ender Heloísa, mas, graças a ela e a outros,
ção dos poetas Décio Pignatari e Haroldo estão presentes nas pautas que tendem a se
e Augusto de Campos – expoentes dessa revelar mais humanizadas que outras. Se o
vertente artística no Brasil. No entanto, o Movimento Modernista vai falar em cotidia-
Concretismo oficialmente se iniciaria no no, em vida comum e despojada, entre nós
Brasil apenas em 1956. À época, sua base dos anos setenta para cá, a referência é o caos
foi a Exposição Nacional de Arte Concreta, urbano e a periferia ou a quebrada. Nela, está
no Museu de Arte Moderna de São Paulo. a maior parte das minorias que vão se desco-
brindo sempre maiorias. Heloísa sabe desses
fatos todos e sempre convida à reflexão so-
bre eles. Sabe que os seus desdobramentos
gritam e fazem sofrer os mais vulneráveis.
arte literária nascera antes disso e sem isso As palavras estão na boca de muitos, mas na
viveria. Nessa acepção, a literatura não de- consciência de uns poucos. Atentemos para
pendia dos meios oficiais, não precisava do elas: exclusão, inclusão, mulher, negro, ín-
seu consentimento ou da anuência da ordem. dio, homossexualidade, teoria digital, direi-
Por meio desse modo de se ver a arte, vivia- to, acessibilidade etc., etc.
-se o desbunde, termo muito em voga à épo-
ca. Vivia-se uma liberdade muito tocada pelo
movimento hippie que por aqui se estenderia
um pouco mais.
A palavra de ordem era, em essência últi-
ma, juventude, e Heloísa com sua sensibili-
dade tão social percebia um conceito e ainda
outros, como feminismo, com os quais a nos- NOTA

sa esquerda ainda não sabia lidar, quanto


1 Heloísa afirma já estarmos na
mais a ditadura tão repressiva. No episódio, o quarta onda do Movimento
sinal visível de sua ação foi a organização de Feminista. Há livros
incontornáveis seus sobre o
uma antologia. A publicação ocorre em 1976 assunto, como Pensamento
feminista hoje: perspectivas O AUTOR JUAREZ DONIZETI
e o conteúdo do livro é obviamente a poesia decoloniais; Pensamento
AMBIRES é doutor em Literatura
marginal. O título ao qual se chega é 26 poe- feminista brasileiro: formação e
Brasileira pela USP, professor de
contexto; Pensamento feminista:
tas hoje, na atmosfera irreverente e coloquial conceitos fundamentais; língua portuguesa na Faculdade do
Explosão feminista: arte, Comércio de São Paulo, professor de
que se queria. Parte da seleção será a poesia cultura, política e universidade. literatura em curso de especialização
de Ana Cristina César, cuja pessoa e escri- na Faculdade de Direito de São
Bernardo do Campo e revisor para
ta Heloísa conhecera há pouco, mas na qual editoras. juarez.ambires@yahoo.com

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capa
Inteligência artificial

Será o
princípio
do fim?
Máquinas e assistentes virtuais
otimizam o acesso à informação,
potencializam o armazenamento
de dados, produzem textos
e resolvem cálculos a uma
velocidade que o cérebro
humano não consegue atingir.
Mas a IA pode argumentar,
refletir, raciocinar?

Texto de Abrahão Costa de Freitas

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“A digitalização do mundo
redesenhou nossa ordem social,
promovendo uma revolução
cognitiva que deu outro sentido à
psicologia humana e novos rumos
à vida cotidiana das pessoas”

R
ecentemente, nos vimos às voltas
com assistentes virtuais inteligen-
tes, especialmente com o ChatGPT1,
capaz de responder a perguntas e produzir
textos com uma velocidade inimaginável,
que levaram a um questionamento inevitá-
vel: essa ferramenta irá substituir os seres
humanos? Será o princípio do fim?
A ficção científica, sempre dois passos,
ou três, à frente, já nos presenteou com ro-
bôs inteligentes substituindo funções só
possíveis para humanos. Ou mesmo seres
artificiais criados para substituir o ho-
mem quando alguma ação fosse perigosa
para ele. Mas, apesar do avanço da tecnolo-
gia, nada havia abalado tanto a sociedade
como o GPT. Ele é realmente a primeira ma-
nifestação da IA que pode mudar o rumo da
história. Da nossa história.
Vivemos em uma época na qual as rela-
ções do humano com o mundo são constru-
ídas a partir de um regime de informação
© PHONLAMAIPHOTO / ISTOCKPHOTO.COM

que regula e controla parte significativa


daquilo que conhecemos como realidade.
Muito do que conhecemos ou imagina-
mos conhecer sobre o mundo à nossa vol-
ta é produto de um conjunto de estratégias
digitais imaginadas e concebidas com o
único propósito de nos transformar em
animais de consumo de dados.

ESCRITA VIVA 31

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capa
Inteligência artificial

Imersos nesse regime de informação, nos


imaginamos tão autênticos e criativos que
Eletros inteligentes
nem nos damos conta do quanto a nossa auten- A comodidade que a tecnologia nos trouxe pa-
ticidade e criatividade são determinadas por rece tão óbvia e incontestável que quase nunca
um intricado sistema de algoritmos que nos paramos para pensar no sistema de dominação
escapa ao controle. que ela oculta.
O conjunto de truques e artimanhas digi- Incorporados ao nosso cotidiano, os aplicativos
tais utilizados nesse processo de construção de busca, os assistentes de voz e os smart apps
de informação e conhecimento deixa evidente são quase como “membros da família”. Poucos
o que muitos se recusam a admitir: o mundo conseguem imaginar a existência sem o auxílio
digital controla e regula as ações e relações do luxuoso de um smartphone ou de um chatboot.
mundo vivido. Acontece que esse luxo todo tem um custo, que
Essa coação sistêmica do regime da infor- vai muito além do valor que pagamos por este
mação transforma a comunicação em um sis- ou aquele dispositivo e/ou aplicativo. A comodi-
tema de vigilância, que tem como regra aquilo dade e conveniência que eles nos trazem tam-
que Byung Chul-Han chama de “paradoxo da bém vêm acompanhadas de olhos e ouvidos
sociedade da informação”. Aprisionadas nas que saltam das paredes para as máquinas.
informações, as pessoas não percebem o siste- A casa inteligente se transforma em uma es-
ma de vigilância constante ao qual estão atre- pécie de prisão digital que monitora e controla
ladas nem se dão conta de que não são elas que minuciosamente o nosso dia a dia. O robô-aspi-
estão livres, mas as informações. rador, que nos ajuda na limpeza daqueles canti-
A lógica da exibição transforma a dominação nhos inacessíveis à vassoura, também mapeia a
em uma ilusão de transparência, que oculta nossa casa. A cama inteligente, conectada aos
as intenções de um regime de informação ca- seus muitos sensores, vigia inescrupulosamente
da vez mais abrangente e totalitário. Enquan- o nosso sono.
to nos imaginamos em liberdade, nossa vida é Qualquer inocente olhadela em um site de busca
cada vez mais submetida a um controle quase ou plataforma de streaming expõe sem pudores
que total de ações e comportamentos (ver box nossos hábitos, gostos e desejos mais secretos.
Eletros inteligentes). Contrariando as previsões de guerra entre
Para nos dar uma ideia de como esse proces- humanos e máquinas, o domínio da inteligência
so se naturalizou em nosso cotidiano, a ponto artificial sobre a humanidade tem se instaurado
de já nem percebermos o quanto ele é perver- de maneira bem mais sutil e imperceptível do
so e impiedoso, Byung Chul-Han utiliza como que sugerem os filmes de ficção baseados em
exemplo pontual a loja da Apple em Nova Ior- catástrofes ou distopias apocalípticas.
que. Erguida como um templo da transparên-
cia, é um enorme cubo de vidro que, embora
“sugira liberdade e comunicação ilimitada”, na
realidade “incorpora a dominação impiedosa
RACIONALIDADE DIGITAL
da informação”.
Aberta dia e noite, é no subsolo que as ven- Embora ao longo do tempo a nossa espécie
das acontecem. Para o filósofo, esse detalhe, tenha se tornado cada vez menos vulnerá-
aparentemente banal, deixa claro o que to- vel aos caprichos e às vontades da nature-
dos nós já sabíamos: “a transparência nunca é za, a partir da primeira revolução industrial
transparente.” a maioria de nossas atividades passou a ser
Por isso, para falar em inteligência artificial, controlada por um número cada vez maior
é preciso não apenas entender o que ela repre- de máquinas e artefatos tecnológicos.
senta e significa, mas também revelar o poder Com isso, a noção que a maioria de nós tem
cada vez maior da caixa-preta algorítmica2. do tempo e da relação com as pessoas passou

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“Nas últimas décadas, o
a ser regida e determinada pelas máquinas e por acesso quase ilimitado
aquilo que elas nos levaram a inventar e imagi-
nar. Para medir o tempo inventamos o relógio, aos artefatos digitais criou
para nos relacionarmos com as pessoas imagi- uma orgia no consumo
namos comunidades que nada têm a ver com a
noção ancestral que tínhamos delas: grupos li- de informações, que
gados por um conjunto de tradições locais e es- pode ter espalhado as
tabelecidos a partir de uma economia de trocas
e favores voltados para a subsistência.
primeiras sementes de uma
Nas comunidades imaginadas do século 21, catástrofe futura. A mesma
a percepção que se tem da sociedade e do outro
já não é mais a mesma. O regime da informação
embriaguez da informação
transformou por completo a relação que tínha- que nos maravilha e
mos com o mundo e com as pessoas. A digitaliza-
ção do mundo redesenhou nossa ordem social,
assombra pode nos
promovendo uma revolução cognitiva que deu desconcertar e entontecer”
outro sentido à psicologia humana e novos ru-
mos à vida cotidiana das pessoas.
A transição do mundo agrícola para o mun-
do da indústria e, posteriormente, do mundo própria concepção do que é humano foi ba-
industrial para o mundo digital instituiu di- ralhada com o advento do big data4.
ferentes tipos de racionalidade, provocando A ideia de que tudo pode ser transfor-
mudanças muito sutis na forma como produzi- mado em dados, de preferências pessoais
mos, distribuímos e assimilamos informação e a biologia do corpo humano, transformou
conhecimento. o dataísmo5 em uma espécie de euforia
Nas últimas décadas, o acesso quase ilimita- que beira o desatino e pode levar a uma cri-
do aos artefatos digitais criou uma orgia no con- se do saber, da cultura e da inteligência.
sumo de informações, que pode ter espalhado as O saber total dataísta é um tipo de conhe-
primeiras sementes de uma catástrofe futura. cimento que corrompe e invalida o pensa-
A mesma embriaguez da informação que nos mento, porque, como diz Byung Chul-Han,
maravilha e assombra pode nos desconcertar e “não é alcançado pela narração ideológica,
entontecer. mas pela operação algorítmica”.
O avanço implacável da digitalização do mun-
O REGIME DA INFORMAÇÃO
do produziu, de maneira impensada e imprevisí-
vel, um novo tipo de racionalidade que substitui Se, como quer Foucault em As palavras
a lógica do discurso pela precisão dos dados, e as coisas, “o ser humano é uma invenção
tornando obsoleta toda e qualquer ideia de ação cuja data recente a arqueologia de nosso
comunicativa (ver box Machine Learning3) pensamento mostra facilmente”, a inte-
Diante disso, chegamos à desconcertante con- ligência artificial é um subproduto dessa
clusão de que a racionalidade digital não funda- invenção que aos poucos vai amadurecen-
menta nada, apenas calcula. A massa pura de do e extrapolando os limites do natural pa-
informações com a qual trabalha é tão volumosa ra criar um real imaginado que ultrapassa
que ultrapassa aquilo que Hiroki Azuma chama as fronteiras e os limites do corpo e inau-
de “racionalidade limitada dos indivíduos”. gura um novo capítulo na história de nos-
Isso não apenas entorpece a comunicação sa relação com as máquinas.
entre as pessoas, mas também invalida os an- Um capítulo no qual a digitaliza-
tigos pressupostos e postulados sobre o que é ção do mundo e o regime da informação
informação, conhecimento e aprendizagem. A transformaram por completo a ideia de

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capa
Inteligência artificial

seus recursos se tornem cada vez mais acessí-


veis para nós e com o mínimo esforço possível.
A inclusão do big data nesse processo de aquisi-
ção de conhecimento é a mais recente conquis-
ta desse modo de aprimoramento de nossas
habilidades cognitivas. Um processo que passa
a ser posto em risco, porque a racionalidade di-
gital é em tudo oposta à racionalidade humana.
Os dataístas podem até argumentar que a
inteligência artificial ouve atentamente melhor
do que a inteligência humana. Mas há muitos
outros aspectos envolvidos nesse processo que
precisam ser levados em consideração.
O aprendizado das máquinas e os assistentes
virtuais inteligentes como Siri, Alexa, Cortana,
Bixby e ChatGpt podem até otimizar o acesso
Machine learning à informação e potencializar o armazenamento
de dados e informações por meiode algoritmos
A criação da racionalidade digital e da inteligên-
poderosos capazes de produzir textos ou resol-
cia artificial é uma aventura que teve seu início
ver cálculos em uma velocidade que o cérebro
há cerca de 70 mil anos, quando aconteceu a
humano jamais conseguiria atingir. Mas quais
revolução cognitiva que levou o ser humano ao
são as premissas e os pressupostos que funda-
topo da cadeia evolutiva. Isso nos permitiu ex-
mentam esse tipo de racionalidade? É possível
pandir nossa capacidade de dialogar para além
dizer que a inteligência artificial argumenta,
do objeto e possibilitou a troca e o compartilha-
reflete, raciocina?
mento de informações essenciais para nossa
sobrevivência enquanto espécie. Se levarmos em conta que a racionalidade
digital substitui o aprendizado discursivo pelo
A capacidade de transmitir informações sobre
aprendizado das máquinas, a resposta é um
algo que não existe no mundo físico não apenas
claro e sonoro não. Algoritmos não fundamen-
ampliou as nossas habilidades de cooperação,
tam, apenas calculam. Portanto, não são ca-
mas também possibilitou a criação de um mun- pazes de aprender, uma vez que o conceito de
do imaginado que nos levou à fabricação de fundamentação está entrelaçado ao conceito de
mitos, lendas e civilizações. aprendizado.
A partir daí a nossa história passou a ser deter- Argumentos são aprimorados e aperfeiçoados
minada por uma série de pequenas revoluções no processo discursivo, que, em última instância,
que pouco a pouco foram modificando a nossa é dinâmico, dialógico e intersubjetivo. Algoritmos
percepção do mundo e de nós mesmos. são otimizados no processo maquinal. Por isso,
A última e mais significativa foi a revolução cien- não produzem, apenas arremedam argumentos.
tífica, que há aproximadamente 500 anos nos Nesse sentido, o aprendizado das máquinas
deu a consciência de nossa própria ignorância e seria apenas um simulacro do aprendizado no
acendeu em nós o desejo pela descoberta. sentido literal do termo, um daqueles imposto-
Nosso fascínio pelas máquinas nasce desse res dos contos borgeanos andando em círculos
desejo de criar condições para que o mundo e à volta de ruínas circulares.

34 CONHECIMENTO
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“A ordem digital aniquila as
nuances linguísticas que Essa visão behaviorista, típica do dataísmo,
garantem a pluralidade parte do pressuposto de que o comportamento
das pessoas pode ser prognosticado e conduzido
de pensamento e pontos de modo exato e que a ideia de ser humano autô-
de vista e, em última nomo e independente há tempos já deveria ter
sido abolida.
instância, compromete Para a psicóloga social estadunidense
significativamente a Shoshana Zuboff, o que está em jogo na contra-
posição entre esses dois tipos de racionalidade
ideia que temos de nós é “a expectativa do ser humano de ser senhor de
mesmos, do mundo e da sua própria vida e autor de sua própria experi-

sociedade como um todo” ência”. A racionalidade digital põe em risco “a


experiência interior da qual formamos a vonta-
de de querer e o espaço público no qual agimos
segundo essa vontade”.
racionalidade e a concepção que tínhamos do Por mais que se queira, o mundo não pode ser
mundo e de nós mesmos. Conceitos como lingua- explicado apenas com um bocado de informa-
gem e pensamento foram revisitados e revistos, ções, isso porque após um certo número delas
provocando um enorme mal-estar entre leigos e perde-se o foco e as ideias começam a ser ofusca-
acadêmicos. das, comprometendo o entendimento do mundo.
Ao contrapor a racionalidade digital à racio- Essa falta de fundamento do mundo digital
nalidade comunicativa, o regime da informação dissolve a solidez do ser e compromete aquilo
deixa claro de que lado está e assume sem pudo- que há de mais significativo na racionalidade
res uma concepção do humano que, no limite, comunicativa: a capacidade de lidar com o im-
nos torna obsoletos e defasados. previsível, o imponderável.
Para os dataístas, o indivíduo autônomo que A racionalidade digital tem na eficiência e na
age de maneira livre e soberana não passa de produtibilidade o seu principal trunfo, mas so-
uma ficção. Sua capacidade de pensar e produ- zinha é incapaz de prever os resultados da ação
zir linguagem nada tem de autossuficiente e, humana sobre a realidade e de que maneira esta
em última instância, é produto da sociedade em ação intervém no mundo da linguagem.
que ele vive. A ordem digital aniquila as nuances linguís-
O cientista da computação estadunidense ticas que garantem a pluralidade de pensa-
Alex Pentland põe um pouco mais de lenha nessa mento e pontos de vista e, em última instância,
fogueira, quando afirma, sem maiores rodeios, compromete significativamente a ideia que te-
que “está na hora de abandonar a ficção do indi- mos de nós mesmos, do mundo e da sociedade
víduo como unidade fundante da racionalidade como um todo.
e reconhecer que nossa racionalidade, em gran-
PARA ALÉM DA RACIONALIDADE
de medida, é determinada pela estrutura social
circundante”. Uma constatação que contrapõe Na concepção de mundo dataísta, a ação co-
de maneira bastante desencantada a racionali- municativa só é possível nos limites de uma
dade comunicativa à racionalidade digital e evi- quantidade abarcável de dados, para além disso
dencia uma clara preferência por esta última. a capacidade humana de entendimento seria in-
Como a racionalidade comunicativa tem por capaz de processar mais informações.
princípio a autonomia e a liberdade do indiví- O problema com esse tipo de visão é que ela
duo, eleger o regime da informação como modelo desconsidera não apenas a diversidade huma-
de racionalidade torna a liberdade do indivíduo na, mas também a capacidade que temos de dar
obsoleta e confisca sua capacidade de pensar de continuidade e coerência narrativas às informa-
maneira crítica e autônoma. ções. A reivindicação de validade que sustenta

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capa
Inteligência artificial

“Sem uma pitada de Leis da


mistério, o pensamento robótica
perde sua razão de ser e Para o filósofo da informação Pierre Lévy, nós não

fica quase que impossível podemos falar nos impactos da tecnologia sobre
a nossa vida como se isso fosse resultado de algo
construir um sentido que não criamos.

para o mundo. Situações A dependência quase absoluta que temos hoje dos
artefatos digitais é resultado de ações humanas que
extremas como a recente transferiram para as máquinas parte considerável das
pandemia de covid-19 tarefas que antes fazíamos.

demonstram como a O problema é que com o avanço do big data e da


inteligência artificial estamos bem próximos de
simples contagem de transferir até mesmo as nossas decisões pessoais

números nos dá conta do e de foro íntimo para as máquinas.


Nessecontexto,apreocupaçãocomocrescentepoder
quanto as narrativas são dasmáquinasecomapossibilidadedequeelasvenham
importantes” a dominar o mundo e a sociedade humana é mais do
que legítima.
Essarelaçãoconflituosacomasmáquinas,contudo,não
é uma novidade em nossa história recente. Muito antes
de conexões e trocas interpessoais que com-
que o medo das máquinas se tornasse moda, muitos
põem o nosso tecido social.
artistas e intelectuais exploraram o tema dando a ele
O data mining6 pode até encontrar soluções
maior ou menor relevância.
otimizadas para alguns conflitos e problemas
pontuais da sociedade, mas sua visão da hu- Seguindo essa trilha de apreensão, Isaac Asimov
manidade como um sistema social calculável cria, no clássico Eu, robô, publicado em 1950, as
três leis da robótica. Isso em uma época em que
desconsidera o fato de que, a despeito de nossa
os estudos de robótica ainda engatinhavam e a
capacidade limitada de processar informações,
inteligência artificial não passava de ficção.
temos uma consciência factual da realidade
que nenhuma máquina poderá alcançar. As três leis da robótica:
Claro que à primeira vista pode-se imaginar 1ª Um robô não pode ferir um humano ou
que o big data e a inteligência artificial tenham permitir que um humano sofra algum mal.
uma capacidade ilimitada de processar infor- 2ª Os robôs devem obedecer às ordens dos
mações e, portanto, tomariam decisões mais humanos, exceto nos casos em que essas
sensatas e inteligentes que os humanos. ordens entrem em conflito com a primeira lei.
Acontece que a sensatez humana vai mui- 3ª Um robô deve proteger sua própria existên-
to além da simples capacidade de armazenar cia, desde que não entre em conflito com
e processar informações. Nossa racionalidade as leis anteriores.
extrapola a racionalidade aditiva e cumulativa
Em uma época em que a racionalidade digital e a inteli-
do data mining (ver box Leis da robótica).
gênciaartificialjáfazempartedenossocotidiano,essas
A racionalidade digital elimina a contin-
leispodemparecersupérfluasouatémesmoingênuas.
gência e ambivalência presentes em qualquer Mas de uma forma ou de outra elas refletem a legítima
informação e transforma tudo em dados e al- preocupaçãodeumaparcelaconsideráveldapopula-
goritmos calculáveis e previsíveis. Sociedade ção,queaindavêcomcertadesconfiançaopoderioque
e cultura transformam-se em dados quanti- asmáquinasvêmconquistandoemumasociedadecada
ficáveis e narrativas transformam-se em vez mais tecnizada e cada vez menos racional.
informações.

36 Escrita Viva

   


Claro que à primeira vista pode-se ima- que “o dataísmo é uma forma porno-
ginar que o big data e a inteligência artifi- gráfica de conhecimento que anula o
cial tenham uma capacidade ilimitada de pensamento”.
processar informações e, portanto, toma- Sem uma pitada de mistério, o pen-
riam decisões mais sensatas e inteligen- samento perde sua razão de ser e fica
tes que os humanos. quase que impossível construir um O AUTOR
ABRAHÃO COSTA DE
Acontece que a sensatez humana vai sentido para o mundo. Situações ex- FREITAS é escritor,
muito além da simples capacidade de ar- tremas como a recente pandemia de formado em Letras,
com especialização
mazenar e processar informações. Nossa covid-19 demonstram como a simples em Jornalismo
racionalidade extrapola a racionalidade contagem de números nos dá conta do Internacional
pela PUC/SP e
aditiva e cumulativa do data mining (ver quanto as narrativas são importantes. Educomunicação
box Leis da robótica). Sociedade e cultura são muito mais pela ECA/USP, com
larga experiência no
A racionalidade digital elimina a con- do que dados quantificáveis e é preci- magistério, lecionando
tingência e ambivalência presentes em so ir além do medo e respeito pelas má- para o Ensino
Fundamental, Médio
qualquer informação e transforma tudo quinas para se perceber o quanto lhes e Superior. Também
em dados e algoritmos calculáveis e previ- falta a força da orientação. atuou como tradutor
de língua inglesa e
síveis. Sociedade e cultura transformam- espanhola e produtor
-se em dados quantificáveis e narrativas de eventos culturais.
NOTAS
transformam-se em informações.
1 ChatGPT
Como o numérico e o narrativo são O GPT (Generative Pre-trained Transformer) é uma
ordens completamente distintas, pro- técnica avançada de processamento de linguagem
natural usada para treinar o modelo de inteligência
duz-se uma crise de identidade que, no li- artificial. O treinamento é realizado por meio da ex-
LINKS
mite, pode conduzir a um vazio sem fim. posição do modelo a grandes quantidades de texto,
para que ele possa aprender a reconhecer e gerar 1. ChatGPT
Falta ao data mining e à inteligência respostas precisas a partir das perguntas que são
feitas a ele. [+QR].
artificial aquela pitada de erotismo que
2 Caixa-preta algorítmica
faz do pensamento algo cativante e sedu- Determina o funcionamento desses algoritmos e
tor. Talvez por isso, Byung Chul-Han diga seus impactos. Isso significa entender como os
algoritmos tomam decisões e como os dados são
processados. Muitas empresas de tecnologia man-
têm seus algoritmos em segredo, o que dificulta a 3. Machine
REFERÊNCIAS análise e a fiscalização por parte de reguladores e Learning
pesquisadores.
3 Machine Learning
ANTUNES, Ricardo. O camara.leg.br/propostas- É um subconjunto da inteligência artificial que
privilégio da servidão: o novo legislativas/2236340. Acesso permite que um sistema aprenda e melhore
proletariado de serviços na era em: 31 abr. 2023. de forma autônoma usando redes neurais e
digital. São Paulo: Boitempo, FERRY, Luc. A Revolução aprendizado profundo, sem ser programado
2018. Transumanista. Barueri: Manole, explicitamente, alimentando-o com grandes
2018. quantidades de dados. [+QR] 4. Big Data
ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. São
Paulo: Editora Exped, 1978. FOUCAULT, Michel. As palavras 4 Big Data
e as coisas. São Paulo: Martins Conjunto de dados maior e mais complexo, espe-
BARONE, Dante. Sociedades cialmente de novas fontes de dados. Esses con-
Artificiais: A Nova Fronteira da Fontes, 1995.
juntos de dados são tão volumosos que o software
Inteligência nas Máquinas. 1. ed. HAN, Byung-Chul. Infocracia: tradicional de processamento de dados simples-
Porto Alegre: Bookman, 2003. Digitalização e a crise da mente não consegue gerenciá-los. No entanto, es-
BAUMAN, Zygmunt. democracia. Rio de Janeiro: ses grandes volumes de dados podem ser usados
Vozes, 2022. para resolver problemas de negócios que você não 5. Dataísmo
Capitalismo Parasitário. Rio de
conseguiria solucionar antes. [+QR]
Janeiro: Jorge Zahar: 2010. HAUGELAND, John. Artificial
Intelligence: The Very Idea. 5 Dataísmo
BRASIL. Câmara dos
Massachusetts: The MIT Press, Vem do latim data, que significa “dados”. É um mo-
Deputados. Projeto de Lei nº vimento crescente na sociedade atual, que usa os
1985.
21/20, de 7 de julho de 2021. dados como base para todo tipo de escolha e toma-
Estabelece fundamentos, PENTLAND, Alex Paul. Física da de decisão, com o objetivo de alcançar praticida-
princípios e diretrizes para social: como boas ideias se de, exatidão e economia de tempo e recursos. [+QR]
espalham – lições de uma nova 6. Data Mining
o desenvolvimento e a 6 Data Mining
aplicação da inteligência ciência. Nova Iorque: Penguin
Processo em que a tecnologia é utilizada para loca-
artificial no Brasil; e dá Press, 2014.
lizar padrões, conexões, correlações ou anomalias
outras providências. Brasília: ZUBOFF, Shoshana. A era do em uma grande quantidade de dados, permitindo
Câmara dos Deputados, 2021. capitalismo da vigilância. Rio de encontrar problemas, hipóteses e oportunidades
Disponível em: https://www. Janeiro: Intrínseca, 2021. com mais facilidade. [+QR]

ESCRITA VIVA 37

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língua viva
Hip-hop

OM
O.C
OT
PH
CK
TO
/ IS
CK
TO
BS
©E
O som que vem dos guetos auxilia no processo
de ensino-aprendizagem e permite ampliar o
repertório de mundo e a apreciação estética

Texto de Fábio Roberto Ferreira Barreto

O
rap é um gênero musical oriundo dos ingleses Rhythm And Poetry. Em outras pa-
guetos, que, contudo, desperta o in- lavras, é arte, que cumpre, como ensina An-
teresse de todos os segmentos so- toine Campagnon, as duas funções sociais da
ciais. As pessoas que pertencem às classes literatura: entreter e conhecer (ver box Cul-
subalternizadas identificam-se com o dis- tura hip-hop e o ensino-aprendizagem)
curso de letras desse estilo; as demais os- A inserção do rap na escola precisa consi-
cilam entre a admiração sincera, o olhar derar esses dois prismas. Em breve análise
exótico e a discriminação racial/social. A de uma produção (algumas rimas, na verda-
abordagem temática dos versos dos rappers de) do rapper Emicida, em intervenção du-
suscita sempre a discussão. rante o Prêmio Multishow 2013, é possível
Além de discurso de protesto e de crítica demonstrar como a inserção desse gênero po-
social, o que provoca diferentes reações, o rap ético permite ampliar o repertório de mundo
é um discurso poético: é uma palavra forma- e, ao mesmo tempo, amplificar a apreciação
da pelo processo de abreviação dos termos estética.

38 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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Sou Brasil, Amarildo, luta e glória
Não deixa que acorda ao meio-dia da história
O que dá branco na memória, não “Rap, portanto,
Eu vim converter fome de pão em sede de vitória é uma expressão
Meus olhos são os que viram guerra
Meus pés são os pés das ruas de terra poética que, assim
como qualquer
Meu samba é ligeiro, um raio
enunciação, apresenta
OM

E minha voz ecoa nos guetos,


O.C
OT

sentidos, dialogando
PH

Todo apoio ao Mães de Maio


CK
TO
/ IS

com a tradição oral,


CK
O
ST

O sonho e a luta ainda são reais


Mais que notas, as nossas são musicais presente em todas as
Obrigado, Sabotage; valeu, Sérgio Vaz comunidades linguísticas,
Poesia maloqueira pra calar o capataz
especialmente, no caso
Nós não esqueceu da Candelária, nem do Carandiru brasileiro, de tradições
Aí, meu canto é da reforma agrária, tru africanas, indígenas e
Com toda força que possui
Nossa vitória veio pra ser bela
nordestinas”
Tipo as mulher preta que a TV exclui
A coerência, ensina Ingedore Grünfeld
Villaça Koch, uma das maiores linguistas
A escola bakhtiniana1, dentre tantas ou- que já tivemos, é um princípio de interpre-
tras contribuições, apresenta três carac- tabilidade, fica fora do texto; em outras
terísticas do texto: composição, conteúdo e palavras, o leitor precisa compreender a
estilo. São esses conceitos que, efetivamente, mensagem que o autor quis comunicar. Pa-
nos permitem classificar o texto de Emicida ra tanto, algumas marcas precisam estar
como uma rap, abordagem pertinente para o dentro do texto, o que se denomina coesão.
trabalho didático: São interdependentes, mas a estraté-
I) composto de versos (e, por conseguinte, gia coesiva, no processo interno de pro-
estrofes, como todos os gêneros da poesia). dução textual com signos (verbais ou não
II) apresentando como conteúdo uma de- verbais), deve considerar que existem, no
núncia (ou várias?); posicionando-se como conhecimento prévio do interlocutor, pos-
um representante de todos os que são vitima- sibilidades de apreensão das pistas textu-
dos pela sociedade a que se refere. ais oferecidas, para que a coerência seja
III) em um estilo (valendo-se de rimas ex- estabelecida externamente ao texto.
ternas e internas, assonância, aliteração, re-
petição, gírias, registros informais de língua, Vamos analisar a construção de senti-
marcadas no texto, que lhe são muito caracte- dos da poesia do rap de Emicida, entre coe-
rísticos de um gênero poético específico). são, coerência e elementos da versificação.

COESÃO E COERÊNCIA
1) Amarildo
Posto que é um gênero poético, o leitor pre- A despeito de o nome Amarildo ser usa-
cisa de algumas chaves atinentes a esse par do como estratégia de rima interna (“sil” ×
(coesão e coerência), que, embora seja bastan- “ril”), seu emprego, para além de um enge-
te imbricado, tem cada qual uma individuali- nho poético, denuncia mais uma vítima da
dade no que concerne à tessitura discursiva. violência policial.

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língua viva
Hip-hop

Depois de receber uma abordagem da nos direitos humanos para o Brasil, afir-
Unidade Policial Pacificadora (UPP) na Ro- ma a Anistia Internacional.
cinha, Amarildo desapareceu. O homem foi
torturado até a morte; mas até o presente 3) Mães de Maio
momento a família não sabe do paradeiro de Movimento fundado depois das mor-
seu corpo ou de seus restos mortais, portan- tes de 564 pessoas, no estado de São Pau-
to impossibilitada de sepultamento digno. lo, durante dez dias do quinto mês de
Infelizmente, Amarildo é apenas uma 2006. Em 2022, 16 anos depois do episó-
parte de um todo, violento e opressor, con- dio, os crimes continuavam impunes. A
tra pretos e pobres; a repercussão do caso
se deu, sobretudo, pelas campanhas “Cadê o
Amarildo?” e “Somos todos Amarildo”. Des-
ta última participaram Caetano Veloso e
Marisa Monte, entre outros artistas.
Em 2016, houve a condenação de 12 po-
liciais e a denúncia de 25 militares. O ma-
Cultura hip-hop e o
jor da polícia militar Edson Raimundo dos ensino-aprendizagem
Santos, condenado por torturar até a mor-
Criado nos guetos de Nova Iorque, entre o final
te Amarildo, foi reintegrado à corporação.
dos anos de 1960 e início de 1970, sob influên-
O Estado, até ano passado, nove anos após a
cia jamaicana, o hip-hop, que tem em DJ Koll
ocorrência, não havia indenizado a família
Herc e Afrika Bambaataa seus primeiros gran-
(a sentença é de 2016 também).
des expoentes, difundiu-se pelo mundo.
Quatro elementos são a base do hip-hop:
2) Candelária e Carandiru
DJ (Disco Jóquei), que seleciona as músicas,
“Nós não esqueceu da Candelária, nem do
muitas vezes de sua autoria, remixadas; Dança
Carandiru”. Os termos em negrito, além de
(B-Boy e B-Girl, homens e mulheres que dan-
sonoramente estabelecerem um interessan-
çam); MC (Mestre de Cerimônia), que faz uso da
te trabalho de assonância e aliteração, não
palavra; Grafitti (a arte visual), que faz os regis-
foram selecionados apenas por esse aspecto
tros em paredes, especialmente urbanas. Mas
estilístico, mas para fazer uma denúncia. também há outros, como o quinto elemento, o
Do prefácio de Racionais MC’s Sobreviven- Conhecimento (bastante difundido também).
do no Inferno, de Acauam Silvério de Olivei-
No Brasil, ainda nos anos de 1970, eclode pelas
ra, pesquisador de literatura e professor
grandes capitais. Nélson Triunfo, por meio
adjunto da Universidade de Pernambuco,
do elemento dança, é um dos precursores
destacam-se dois excertos sobre os termos:
do movimento. Atualmente, alguns dos mais
1) “quatro militares dispararam contra cer- proeminentes artistas do hip-hop no País são
ca de cinquenta crianças nas escadarias da os rappers Racionais MC’s, Negra Li, Emicida,
igreja da Candelária, no Rio de Janeiro”. 2) Drika Barbosa, Criolo, bem como os grafiteiros
“São Paulo foi palco daquela que é considera- Os Gêmeos, Nina Pandolfo, Kobra, Aline Bispo
da a mais violenta e brutal ação do sistema e também os DJs KL Jay e Cinara Martins, além
prisional brasileiro: o massacre do Carandi- dos dançarinos B-Boy Pelezinho e B-Girl Miwa.
ru”. Foram 111 detentos assassinados.
O rap, “como elemento de maior visibilidade
Uma decisão da justiça brasileira anulou no interior do movimento hip-hop”, segundo o
o julgamento contra os 74 policiais envolvi- antropólogo José Carlos Gomes da Silva, bem
dos no massacre do Carandiru em 1992. Em como por se constituir como poesia, vale uma
outras palavras, até hoje ninguém foi preso reflexão acerca de seus aspectos temáticos,
por conta dos crimes cometidos. Essa deci- composicionais e estilísticos; por conseguinte,
são representa um duro golpe na justiça e para o processo de ensino-aprendizagem.

40 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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fundadora Débora Maria da Silva, que perdeu
o filho, lembra que “foi muito difícil”.
Este é o nome também do movimento Ma-
dres de Plaza de Mayo, de mulheres que se “(…) o rap é constituído de
reúnem na Praça de Maio para exigir escla- recursos composicionais de
recimentos sobre seus filhos desaparecidos
durante a ditadura militar recente da Argen- outros gêneros da poesia.
tina, entre 1976 e 1983. Ainda hoje, encon- Ignorar a competência dos
tram-se todas as quintas, às 15h, para fazer
uma passeata de protesto.
rappers, como estilistas da
palavra, é um exotismo que
4) Sérgio Vaz
A rima estabelecida entre “Vaz” e “capataz”
não deve ser reproduzido.
não é aleatória. Se este último termo remete Tal perspectiva tem muito
à opressão escravocrata e, também, latifun-
diária, que visava a silenciar os oprimidos,
mais a ver com uma visão
o sobrenome do poeta é associado ao oposto preconceituosa de arte do que
disso: o barulho pela liberdade. Conhecido co-
com uma concepção de arte”
mo Poeta da Periferia, Sérgio Vaz é cofunda-
dor do Sarau da Cooperifa e, atualmente, um
dos poetas mais conhecidos do Brasil. Emici-
da escreveu o prefácio de seu último livro, Flo-
MARCAS NÃO PRESTIGIADAS
res da Batalha, lançado em abril deste ano.
No trato com a palavra poética, Emici-
5) Sabotage da recorre a elementos estilísticos de for-
Há 20 anos, Sabotage foi executado em São mas não prestigiadas da língua, como gírias
Paulo. Artista multifacetado, deixou apenas (“tru”, “tipo”), concordância em desacordo
um disco solo, que virou um legado do rap na- com a norma culta (verbal: “nós não esque-
cional: Rap é Compromisso. Além disso, atuou ceu”; nominal: “as mulher”). Tais marcas de-
como ator. correm da urgência expressiva (e, também,
da coerência) de um homem negro oriundo
6) Poesia Maloqueira de periferia (“meus pés são os pés das ruas
Ao aludir ao poeta Sérgio Vaz, faz referên- de terra”, “voz dos guetos”), que expressa sua
cia também ao Coletivo Poesia Maloquerista, indignação contra a opressão policial (“Can-
que, desde 2002, se reúne e tem publicações. delária”, “Carandiru”, “Mães de Maio”), a
Trata-se de um dos muitos coletivos de litera- concentração de terras (“canto da reforma”)
tura espalhados pelo Brasil. e o racismo estrutural (“as mulher preta que
a tv exclui”).
A letra da intervenção de Emicida – prodi- O rapper, de forma muito elaborada, ex-
gioso no improviso – pode sugerir a impressão plora outras possibilidades interessantes de
de que ele elaborou o rap naquele momento. A composição poética. A metáfora em “não dei-
ideia é reforçada pela alternância entre as xa que acorda ao meio-dia da história” é uma
vozes de Emicida e de Caetano Veloso, que, alusão à construção de falsas narrativas, nas
juntos, cantaram um medley (“Tropicália”, quais foram ignoradas as contribuições dos
“Abraçaço”, “Haiti” “A Bossa Nova é Foda”, “O povos negros (bem como dos indígenas) pa-
Hip-Hop é Foda”), no qual o rapper faz perfor- ra a criação do Brasil, além de omitir a car-
mances (uma delas com mais características nificina e o genocídio cometido por brancos/
de improviso). europeus em nome de uma civilização. Aliás,

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língua viva
Hip-hop

“Quatro elementos são a base


do hip-hop: DJ (Disco Jóquei), que
seleciona as músicas, muitas
vezes de sua autoria, remixadas;
Dança (B-Boy e B-Girl, homens
e mulheres que dançam); MC
(Mestre de Cerimônia), que faz É sugestivo, ao abordar o rap, fazer uma se-
leção de composições de nomes clássicos do
uso da palavra; Grafitti (a arte gênero, como Racionais MC’s, Sabotage, por
visual), que faz os registros em exemplo, mas também trazer outros mais
novos (não menos potentes), como Gustavo
paredes, especialmente urbanas” Pereira Marques, um dos principais rappers­
da atualidade, o Djonga, e o próprio Emicida,
por exemplo. Além de ser sensível para son-
dar potentes rappers como Cocão Avoz e Fino
Du Rap, por exemplo.
a polissemia de sentidos das palavras em “o A questão é não rotular o rap por ser pro-
que dá branco na memória, não” é outro re- dução cultural de preto, pobre, excluído, não
curso: esse verso sugere não apenas uma re- por sua potência literária, mas, especialmen-
ferência a um ditado popular condizente com te na escola, valer-se dos instrumentos de
o texto poético do rapper, em sua totalidade, análise crítica apropriados para amplificar
mas também diz respeito à narrativa branco- as competências discursivas e estéticas dos
-europeia, que ignora e/ou menospreza a im- educandos. Contribui para o crescimento in-
portância de outros povos. dividual do estudante, bem como para o for-
Rap, portanto, é uma expressão poética que, talecimento da cultura da diversidade.
assim como qualquer enunciação, apresenta
sentidos, dialogando com a tradição oral, pre-
NOTA REFERÊNCIAS
sente em todas as comunidades linguísticas,
especialmente, no caso brasileiro, de tradi- 1 Em suas reflexões, o russo COMPAGNON, Antoine. Literatura
ções africanas, indígenas e nordestinas. Mikhail Mikhailovich Bakhtin para quê? Belo Horizonte: Editora
(1895-1975), um dos teóricos UFMG, 2009.
São muitas as semelhanças composicio- mais importantes da linguagem KOCH, Ingedore Grünfeld Villaça.
nais do rap com o repente, por exemplo; tam- do século 20, desenvolveu e O texto e a construção de sentidos.
aprimorou uma teoria inovadora São Paulo: Contexto, 2003.
bém, guarda um paralelo de transmissão de e incitante, perpassando
RACIONAIS MC’s. Sobrevivendo no
saberes com os povos africanos, não raro sen- pelo estudo do indivíduo por
meio de questões relativas à inferno. São Paulo: Companhia das
do o rapper associado, nos contextos urbanos teoria geral da literatura e da Letras, 2018.
cultura, pelo desenvolvimento SILVA, José Carlos Gomes da. Rap
das metrópoles, à figura do griot, nas cultu- histórico de ambas, concluindo na cidade de São Paulo: juventude
ras africanas. com a análise do povo e negra, música e segregação urba-
sua produção cultural. na. Uberlândia: UDUFU, 2015.
Além dessas características, o rap é cons-
tituído de recursos composicionais de outros
O AUTOR FÁBIO ROBERTO FERREIRA
gêneros da poesia. Ignorar a competência dos
BARRETO é mestre em Literatura pela
rappers, como estilistas da palavra, é um exo- Universidade de São Paulo (USP) e professor
tismo que não deve ser reproduzido. Tal pers- de língua portuguesa da Secretaria Municipal
de Educação de São Paulo (SME-SP). Autor
pectiva tem muito mais a ver com uma visão de artigos sobre literatura, gramática e
preconceituosa de arte do que com uma con- metodologias de ensino em publicações
acadêmicas, periódicos especializados e
cepção de arte. jornais e revistas destinados ao público geral.

42 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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literal!
Reflexão de Fábio Roberto Ferreira Barreto

Vazante de
um nordestino
Autor cria trilogia dos saraus com
retirante periférico como protagonista

O
romancista José Marques Aos 66 anos, Zé Sarmento recusa
Sarmento, ou, melhor a aposentadoria. Seu novo projeto
ainda, Zé Sarmento, como consiste na trilogia dos saraus. O reti-
é conhecido no universo rante-periférico do atual romance de
literário, é um lavrador nordestino e Zé Sarmento é Vazante: lá e cá – uma
um operário periférico. Da Paraíba declaração de amor ao livro, à leitura,

© ARQUIVO PESSOAL
para São Paulo, fez arado nas artes e à poesia e aos saraus (escrito em um
colheu frutos na prosa e na “prosia” mês). Após lutar para subsistir, nas
(como ele intitula suas performances narrativas da tetralogia, as persona-
nos saraus paulistanos). gens permanecem em batalhas diá-
Autor de 13 livros publicados (11 rias para viver, mas, nesse momento,
impressos e 2 e-books), Zé Sarmento em uma nova dimensão: a da poesia. ram sua visita. Trata-se do projeto
foi alfabetizado aos 14 anos. Desde É poética a prosa do autor de “todo aluno de escola pública me-
então, ele, que já lia o mundo, não Vazante. Também o é, inclusive, a rece um escritor no pé do ouvido”.
parou de ler nem de escrever. Um intervenção que Zé Sarmento faz para Enquanto os pés do Zé Sarmento
dos projetos ousados desse traba- divulgar seu novo romance, o primeiro percorrem escolas, as suas mãos
lhador (do campo e da cidade) das (e único publicado ainda da trilogia digitam Encarniçados, terceiro livro
palavras foi a criação da tetralogia do dos saraus): Vazante. Cumprindo o da trilogia dedicada à poesia pro-
migrante nordestino (sobre)vivendo estipulado pelo Programa de Ação duzida na e pela periferia.
na grande metrópole paulistana. Cultural (PROAC), o autor tem realiza- Aprisionado, segundo romance
A leitura desses quatro romances, do literopalestras em escolas públi- da sequência, já está pronto e tem
com os quais Sarmento coroou sua cas, distribuindo livros a estudantes e data de lançamento: novembro de
carreira artística (até agora), é uma a salas de leitura e bibliotecas. 2023; João Pinheiro, ilustrador de
empreitada que vale cada folha virada Entre maio e junho, a agenda de Zé Vazante (assim como do festejado
pelo leitor. Os enredos de Paraisópolis, Sarmento ficou reservada para as es- Carolina), está finalizando as ilustra-
caminhos de vida e morte, de Bixiga, colas e a biblioteca do seu bairro (“da ções da nova obra de Zé, narrativa
um cortiço dos infernos, de Ângela, um sua quebrada”, como prefere se ex- em homenagem ao movimento do
jardim no vermelho e Os Miseráveis da pressar o escritor sobre sua região). A slam (competição de poesia que, de
seca (que foi escrito ao longo de 20 Biblioteca CEU Cantos do Amanhecer, tão presente na cena literária brasi-
anos) são histórias ambientadas em as EMEFs CEU Cantos do Amanhecer, leira, recebeu até prêmio do Jabuti:
contextos da exclusão pela ótica de Jornalista Paulo Patarra e Fagundes Fomento à Leitura para o Slam da
quem pertence ao povo. Varella, todas em São Paulo, recebe- Guilhermina, ano passado).

O AUTOR FÁBIO ROBERTO FERREIRA BARRETO é professor da rede municipal de ensino e mestre em Literatura pela Universidade de São Paulo.

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contexto
Leitura e Produção Escrita

© ALEKSEI MOROZOV / ISTOCKPHOTO.COM


Uma N
a cultura contemporânea, a profi-
ciência na comunicação é uma das

relação
habilidades mais valorizadas pelo
mercado de trabalho. Quando falamos em
proficiência em comunicação, estamos nos
referindo à capacidade de produzir e com-

delicada
preender textos, dos mais diversos gêneros
discursivos, desde um e-mail corporativo
até uma bula de remédio.
As aulas de língua portuguesa devem
desenvolver a capacidade de comunicação
Presente nas provas – oral e escrita – dos alunos. Para tal fina-
do Enem e demais lidade, é importante que os alunos sejam
expostos aos mais variados gêneros, prin-
vestibulares, os gêneros cipalmente àqueles que têm grande circu-
discursivos versus tipos lação no nosso cotidiano, incluindo os que
fazem parte do universo virtual, tais como
textuais devem ser os posts de redes sociais, os blogs, os vídeos
objeto de estudo acurado do YouTube, os e-mails etc. Crígina Cibel-
le Pereira, doutora em estudos da Lingua-
no ensino da língua gem, sugere, em Gêneros textuais e modos de
organização do discurso: uma proposta para a
Texto de Aline Fernanda Camargo Sampaio sala de aula (p. 29), partir dos gêneros textu-
ais mais familiares, para depois explorar

44 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

ESC97_44-47_Contexto.indd 44 01/06/2023 00:23


outros, possibilitando aos alunos uma inserção constantemente; eles surgem e se modificam
cada vez maior na sociedade. na cultura em que estão inseridos.
Tendo em vista a Base Nacional Comum Cur-
GÊNEROS DISCURSIVOS VS. TIPOS TEXTUAIS
ricular (BNCC), o texto deve ser o objeto de es-
tudo principal no ensino de língua, mas, para Sobre a diferença entre gênero e tipo textual,
isso, é preciso que o professor identifique suas Marcuschi tece as seguintes ressalvas: “a) Usa-
características e faça escolhas e ajustes neces- mos a expressão tipo textual para designar uma
sários para cada nível em que atua (do Ensi- espécie de construção teórica definida pela na-
no Fundamental ao Médio). É necessário que o tureza linguística de sua composição (aspectos
docente selecione textos de diversos gêneros lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
discursivos, considerando as intenções e as fi- lógicas). Em geral, os tipos textuais abrangem
nalidades dos atos comunicativos. Em outras cerca de meia dúzia de categorias conhecidas
palavras, o professor deve identificar quais são como: narração, argumentação, exposição, des-
as habilidades de leitura e de produção escrita crição, injunção. b) Usamos a expressão gênero
determinadas na base para aquele ano ou ciclo textual como uma noção propositalmente va-
e então analisar se o material está ou não ade- ga para referir os textos materializados que
quado para dar conta do objetivo desejado. encontramos em nossa vida diária e que apre-
De acordo com Marcuschi1, em Produção tex- sentam características sociocomunicativas
tual, análise de gêneros e compreensão, o texto é definidas por conteúdos, propriedades funcio-
“uma identidade concreta e realizada mate- nais, estilo e composição característica. Se os
rialmente e corporificada em algum gênero tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêne-
textual”. O mesmo autor diz também em outro ros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros
trabalho seu, Gêneros textuais: definição e funcio- textuais seriam: telefonema, sermão, carta co-
nalidade, que “(…) os gêneros textuais surgem, mercial, carta pessoal, romance, bilhete, re-
situam-se e integram-se funcionalmente nas portagem jornalística, aula expositiva, reunião
culturas em que se desenvolvem. Caracterizam- de condomínio, notícia jornalística, horóscopo
-se muito mais por suas funções comunicati- (…) carta eletrônica, bate-papo por computa-
vas, cognitivas e institucionais do que por suas dor, aulas virtuais e assim por diante.”
peculiaridades linguísticas e estruturais”. São, portanto, tipos de texto a narração, a
Nota-se aí uma forte ligação entre o gênero, a argumentação, a exposição, a descrição e a in-
cultura e a sociedade. Podemos fazer uma ana- junção. Lembramos que um mesmo tipo textu-
logia com a preparação de um bolo. Quando o al pode aparecer em diferentes gêneros e que
preparamos, podemos colocar a massa em uma também encontramos textos que apresentam
forma com o formato que escolhermos, como de gêneros híbridos.
coração, redondo, quadrado, retangular etc. O O gênero diz respeito a como abordamos um
gênero, em seu sentido mais amplo, é como a for- determinado tema, além de determinar os mo-
ma do texto, sem a qual não seria possível que dos de organização do discurso e a seleção dos
circulasse na sociedade, pois o seu formato é recursos linguísticos usados, isto é, o estilo. No
imprescindível para isso. entanto, os gêneros não são um dado, eles não
Nesse sentido, é importante enfatizar que ca- existem a priori, eles são construídos na intera-
da gênero apresenta características específi- ção comunicativa e são frutos de uma situação
cas sobre sua produção, recepção e circulação, comunicativa interacional de uma dada cultu-
e são essas propriedades que diferenciam um ra, configurando-se como um saber intuitivo
gênero do outro. Embora o gênero determine a nos falantes daquela língua.
estrutura, isto é, a tipologia textual, a sua fun- Qualquer falante de língua portuguesa sabe
ção é a de permitir a circulação e a usabilidade reconhecer se um determinado texto é uma te-
do texto. Justamente por estarem relaciona- lenovela ou uma bula de remédio, se é uma re-
dos ao uso é que os gêneros discursivos mudam ceita de bolo ou uma conversa espontânea entre

ESCRITA VIVA 45

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contexto
Leitura e Produção Escrita

amigos, se é uma canção ou um manual técnico primeiro parágrafo. O restante do texto é con-
da máquina de lavar. Esse conhecimento é apre- siderado o corpo e tem como função dar mais
endido durante a nossa vida pela experiência detalhes que ajudam na compreensão do lead.
linguística. O texto é, então, a forma que nós, Além desses elementos, a notícia tem título, no-
sujeitos, encontramos para colocar a língua em me do autor, nome do veículo em que está sendo
funcionamento em nosso contexto discursivo. reproduzida, pode ter subtítulo, imagem, legen-
Os gêneros são as maneiras de a língua funcio- da, gráficos etc.
nar que nós elaboramos e construímos em for- Sob essa perspectiva, vale salientar que um
ma de texto e eles cumprem uma função social. texto deve manter a coerência no uso de ele-
Por sua vez, o tipo textual remete à estrutu- mentos próprios ao gênero, ou seja, se estamos
ra, ao funcionamento da constituição estrutu-
ral do texto. Dizemos, então, que o tipo textual
faz parte da estrutura interna da configuração
do texto e que um texto de um determinado gê-
nero discursivo pode ter em sua configuração
vários tipos textuais.
Coerência e coesão
Nossas escolhas lexicais, sintáticas, de registro lin­
Um romance literário, por exemplo, pode ter guístico (formal, informal, uso de gírias etc.) fazem
passagens mais narrativas ao relatar um acon- parte da organização do enunciado e são determi­
tecimento na trama; passagens mais descriti- nadas pelo gênero que estamos produzindo.
vas ao descrever os cenários e os personagens;
Essas escolhas se relacionam com a coerência e a
passagens mais dissertativas/argumentativas
coesão do texto, pois um texto só é coeso se suas
quando o narrador, por exemplo, avalia as ações
partes estão corretamente ligadas, se há progres­
e os sentimentos dos personagens. são textual e se a coerência é validada dentro de
ENTENDENDO AS DIFERENÇAS um contexto situacional, dependente do gênero
discursivo em que aquele texto é manifestado.
Para compreender melhor a relação entre os
Em textos do gênero literário, por exemplo, é
gêneros discursivos e o tipo textual, podemos
comum que haja a presença de outros gêneros
citar como exemplo o gênero discursivo notí-
textuais, o que pede outras escolhas linguísticas.
cia. Um dos objetivos da notícia é transmitir
Nesse caso é preciso respeitar essas alternâncias
informações sobre fatos, tanto de fatos passa- de gênero dentro do texto para que as escolhas
dos (“3% dos candidatos a deputado federal não sejam adequadas e pertinentes.
compareceram no último debate”) quanto de fa-
Marcuschi, no mencionado Gêneros textuais:
tos futuros (“Teremos o primeiro eclipse lunar
definição e funcionalidade, enfatiza a possibilidade
do século amanhã à noite”).
da existência de diversas sequências tipológicas
As notícias têm como características a clare-
que dão origem ao tipo textual em um único texto.
za e a objetividade na forma como transmitem A questão que se coloca é a de que o gênero é
as informações, elas primam pelos detalhes e “armadura comunicativa preenchida por sequên­
procuram responder às seguintes perguntas: cias tipológicas”, ou seja, é preciso conhecer o tipo
O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? textual (a partir das sequências tipológicas predo­
O gênero notícia tem a predominância de se­ minantes no gênero) para fazer o uso adequado
quências narrativas que formam o tipo textual dos elementos da coesão. Por exemplo, em um
da narração, mas, diferente de um conto, a nar- texto do tipo argumentativo, como um editorial ou
ração da notícia é realizada por meio de uma artigo de opinião, é esperado o uso de conectivos,
linguagem de cunho objetivo e impessoal. tais como pois, porque, além disso, no entanto, a
Como todos os gêneros, a notícia tem um for- fim de que etc., para estabelecer relações de sen­
mato específico, trata-se do lead e do corpo. No le- tido entre as ideias e sustentar a argumentação.
ad encontramos as informações que respondem É também a partir da identificação das sequências
às perguntas citadas e, geralmente, trata-se do tipológicas predominantes no texto de um deter­

46 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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escrevendo uma carta, ela deve ser do começo ao Cada gênero requer, portanto, o uso de de-
fim organizada de acordo com as característi- terminados elementos e a exclusão de outros:
cas desse gênero (estrutura, elementos, lingua- uma receita não faz uso do cabeçalho (data da
gem, formato). A quebra dessa linha isotópica, publicação, cidade do escritório da equipe de
isto é, da coerência dos elementos figurativos redação, nome do jornalista, e-mail etc.) pre-
do gênero, causará problemas na compreensão sente em um artigo de jornal. Essas informa-
textual. Se o autor está escrevendo uma reda- ções são necessárias para o texto do jornal,
ção do Enem e no meio do seu texto usa elemen- mas são excluídas no caso do texto da receita,
tos da linguagem oral, sem uma justificativa porque não cumprem uma função comunica-
que peça isso, o texto deixará de ser coerente. tiva adequada neste último.
A própria escolha do vocabulário reflete es-
sa condição. No texto oral do gênero conversa
espontânea é comum usarmos vocabulário e
conectivos próprios da fala, enquanto em um
minado gênero que podemos reconhecer texto científico escrito usaríamos um vocabu-
o uso de elementos linguísticos adequados lário próprio do meio científico da área e mais
para estabelecer a coerência em uma dada próximo da formalidade. A própria organiza-
situação comunicativa. Para que uma se­ ção do texto é diferente: enquanto na fala há
quência seja compreendida como um texto, maior liberdade na sequência das ideias, na
é preciso que ela apresente progressão, ou escrita, dependendo do gênero, é necessário
seja, que o texto apresente novas informa­ ter maior linearidade em sua organização.
ções, as quais podem ser marcadas textu­
almente por meio de conectivos, tais como
por outro lado, de acordo com fulano etc.
Em um texto narrativo, como uma fábula, por
exemplo, a preocupação maior poderia ser a
regra da não contradição, tomando o cuida­
do de não apresentar fatos que contrariam
NOTAS
algo exposto anteriormente.
Desse modo, podemos dizer que os gêneros 1 Luiz Antônio Marcuschi (1946-2016)
A AUTORA
podem ser definidos como uma forma de Linguista e professor universitário brasileiro conhecido
especialmente por seus trabalhos sobre linguística tex­ ALINE
ação, um tipo de forma de vida, conforme tual, gêneros textuais e análise da conversação. FERNANDA
propõe o linguista Adair Bonini2: “Gêneros 2 Adair Bonini CAMARGO
SAMPAIO é
não são apenas formas. Gêneros são formas Professor de linguística e língua portuguesa na Univer­
diretora escolar
sidade do Sul de Santa Catarina. Mestre e doutor em
de vida, jeitos de ser. Eles são molduras da Linguística pela Universidade Federal de Santa Cata­ na Prefeitura
Municipal de
ação social. Eles são ambientes de aprendiza­ rina, autor de Gêneros textuais e cognição: um estudo
Sorocaba. Mestra
sobre a organização cognitiva da identidade dos textos e
do. Eles são locais onde o significado é cons­ de vários artigos publicados em revistas especializadas. em Educação e
Linguagem pela
truído. Gêneros moldam os pensamentos que
USP, especialista
formamos e as comunicações pelas quais REFERÊNCIAS em Docência no
interagimos. Gêneros são os lugares familia­ Ensino Superior,
graduada e
res que alcançamos para criar ação comuni­ BONINI, A. O conceito de nalidade. In: BEZERRA, M. A.; licenciada em
cativa, inteligível com outros e são os signos gênero textual/discursivo: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, Letras/Português
teorias versus fenômeno. In: A. R. (Orgs.). Gêneros textuais pela USP,
que usamos para explorar o desconhecido.” CRISTÓVÃO, V. L. L.; NASCI­ e ensino. 3. ed. Rio de Janei­ pesquisadora do
MENTO, E. L. (Org.). Gêneros ro: Lucerna, 2002. Grupo DiCLiME-
Assim, se nos comunicamos pela língua textuais: teoria e prática.
PEREIRA, C. C. et al. Gêneros USP (Diversidade
Londrina: Moriá, 2004.
e nos expressamos por meio dos textos, textuais e modos de organi­ Cultural,
MARCUSCHI, L. A. Produção zação do discurso: uma pro­ Linguagem, Mídia
os gêneros discursivos moldam a manei­ textual, análise de gêneros posta para a sala de aula. In: e Educação)
ra como nos expressamos e organizamos e compreensão. São Paulo: PAULIUKONIS, M. A. L.; SAN­ e professora
Parábola Editorial, 2008. TOS, L. W. (Org.). Estratégias universitária.
nossas ideias, arquitetando a forma como MARCUSCHI, L. A. Gêneros de leitura: texto e ensino. Rio alinefcsampaio@
pensamos linguisticamente. textuais: definição e funcio­ de Janeiro: Lucerna, 2006. gmail.com

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resenha

Mergulho na
literatura de
Antônio Torres
Três romances celebram os 50 anos
do escritor baiano, um dos maiores
nomes da escrita contemporânea:
Essa terra, O cachorro e o lobo e
Pelo fundo da agulha, ganhador do
Prêmio Jabuti de 2006

© MATHEUS DIAS / DIVULGAÇÃO


D
iante de tantos desafios, trabalho. Com isso, como ter tempo linhas de fuga. Sob outro prisma,
em escala mundial, que para ler? Lembremos do bom e a concorrência com a literatura é
a contemporaneidade velho Marx quando faz referência à quase desleal: redes sociais e tan-
atravessa, a literatura é educação dos sentidos. tas outras coisas que exigem muito
obrigada, queiramos ou não, a ca- A literatura, conforme é largamen- pouco ou quase nada das subjetivi-
minhadas desafiadoras e valentes. te sabido, é uma linguagem que dades. Em especial, se admitirmos
Por um lado, porque hoje em dia ler exige, entre outras coisas, intros- com Bergson, suas diversas cama-
é quase um luxo e privilégio de pou- pecção. Retiro interior. Ler é um ato das profundas que escamoteiam a
cos. Por quê? Não se trata da velha que exige a solidão essencial, por superficialidade.
e desgastada ladainha de que o lembrarmos o nosso fascinante e Trilogia Brasil (Editora Record,
brasileiro não lê, ou de que o livro no tão esquecido Blanchot. Como criar 2022) é a reunião de três romances
Brasil é um produto caro. Tudo isso espaços de solidão individual e cós- do escritor Antônio Torres, lançado
são fantasmas do passado e que mica para ler? Eis a grande questão! recentemente como uma espécie
jamais foram fundamentados como O tempo. O tempo dos relógios de comemoração aos 50 anos de
deveriam. Portanto, falsos. A grande sociais – infelizmente soberano – percurso do autor na literatura. Um
verdade, para os lúcidos, é que a subtrai margens para existirmos de convite à leitura, mesmo que tenha-
humanidade, talvez, nunca tenha forma mais plena ou, como diriam mos pouco tempo para tal. São li-
sido tão explorada e escravizada no Deleuze e Guattari, encontrarmos vros com um ponto em comum bem

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Reflexão de Ana Maria Haddad Baptista

interessante. Ou seja, memórias de ainda mantém a sua personalidade vados não por nossa vontade, mas
personagens que retornam aos seus bem viva, preserva características por questões circunstanciais que
lugares de origem: “Vinte anos para fundamentais, uma serena altivez, obrigaram a certas trilhas jamais
a frente, vinte anos para trás. E eu no um discreto orgulho, uma transpa- imaginadas por nós? Ouçamos,
meio, como dois ponteiros eterna- rente fidalguia” (p. 169). uma vez mais, Antônio Torres: “Se
mente parados, marcando sempre a Ao final da leitura dos três roman- esta casa está cheia de fantasmas,
metade de alguma coisa – um velho ces, algumas indagações perpas- em plena luz do dia, ainda não dá
relógio de pêndulo que há muito sam e ressoam a nós, leitores, como: para dizer. Mas por via das dúvidas,
perdeu o ritmo e o rumo das horas. em que medida estamos prepara- vou abrir todas as janelas e dei-
Eis como me sinto e não apenas dos para nos deparar com nosso xar o sol entrar. Sol, luz, muita luz.
agora, agora que já sei como tudo percurso pretérito? Em que medida, Antes que eu me assombre com
terminou” (p. 21). a cada dia que passa, poderemos ter a minha própria sombra” (p. 81).
De um modo geral as persona- certeza, nunca absoluta, de que o Irresistivelmente nos perguntamos:
gens dos livros fazem comparações nosso presente poderia ser diferen- como adentrar, de verdade, em
dos espaços que ocupavam em te? O que de fato foi uma escolha nosso subterrâneo? Dostoievski, do
seu passado, relacionando-as com nossa? Em que medida somos le- Olimpo, sorri ironicamente…
© MATHEUS DIAS / DIVULGAÇÃO

as geografias de quando retornam.


A capacidade narrativa de Antônio
Torres é muito grande. Os livros pos-
suem fluidez. Conduzem os leitores
© DIVULGAÇÃO

“Se esta casa está


à continuidade dos desfechos bem
amarrados pelo autor. Para quem cheia de fantasmas,
gosta do discurso direto, ou seja, de em plena luz do
diálogos entre as personagens, é
dia, ainda não dá
um lago sem fim, ao mesmo tempo
em que somos capturados pela ex- para dizer. Mas por
celente escritura de Antônio Torres. via das dúvidas,
Um exemplo estrutural de pontua-
vou abrir todas as
ção, pausas, descrição de espaços e
personagens, numa atmosfera agra- janelas e deixar o
dável e sedutora: “Antes de deixar sol entrar. Sol, luz,
a sala dou uma olhada de soslaio muita luz. Antes que
no retrato oval de meu avô, que
continua na parede principal, bem eu me assombre
ao centro, quer dizer, onde sempre com a minha
esteve, posando para a posteridade. própria sombra”
Impressionante: mesmo desbotado,
carcomido pelo tempo, o retrato

A AUTORA ANA MARIA HADDAD BAPTISTA é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP), com pós-doutoramento em História da
Ciência pela Universidade de Lisboa e PUC/SP, onde se aposentou. Pesquisadora e professora dos programas de pós-graduação Educação, stricto
sensu, da Universidade Nove de Julho de São Paulo. Possui dezenas de livros e ensaios publicados no Brasil e no exterior. professoraanahb@gmail.com

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© MIKHAIL SELEZNEV / ISTOCKPHOTO.COM
linguarude
Caráter narrativo

O que é
narrar?
Entender a diferença entre contar um
fato e construir uma narrativa é a base
para separar relatos de produção literária

Texto de Divanize Carbonieri

Q
uem narra conta alguma coisa. Mas não é visto como algo tão relevante a ponto de
contar qualquer coisa seria o mesmo ser contado. Como o próprio nome indica, são
que narrar? Depende. O site História “histórias sem graça”, que se referem àquelas
sem graça, por exemplo, ficou famoso ao publi- pequenas ações que realizamos cotidianamen-
car breves relatos anônimos como estes: te, às vezes sem prestar muita atenção nelas, e
sobre as quais não sentimos a necessidade de
“coloquei a mão no bolso procurando meu ce- conversar com quem está próximo de nós.
lular, não achei, e depois lembrei que estava na A brincadeira se torna engraçada porque
minha mochila.” todos(as) nós temos internalizada a noção de
que apenas eventos extraordinários – pelo me-
“hoje eu achei um grampo na pia do banheiro da nos em certa medida – merecem ser contados.
faculdade, coloquei ele no meu cabelo. chegan- Diante de relatos desinteressantes como os
do na sala, tirei o grampo do cabelo e coloquei mostrados pelo site, normalmente fazemos a
em cima da mesa. esqueci ele lá.” pergunta: “e daí?”. No fundo, pensamos que al-
guém só contaria algo assim porque logo a se-
A princípio, os trechos mencionados pode- guir falaria de coisas mais interessantes.
riam ser considerados narrativas porque cor- O psicólogo Jerome Bruner, no ensaio The
respondem à organização de determinados narrative construction of reality (A construção
eventos numa sequência, em que alguns vêm narrativa da realidade), afirma que construí-
antes e outros depois. Essa organização é rea- mos a nossa realidade por meio das narrativas
lizada por quem os está contando: a pessoa que que nos são contadas e recontadas desde o nas-
narra, também chamada de narrador(a). No en- cimento. Como muitas delas foram considera-
tanto, seu caráter narrativo se enfraquece pe- velmente repetidas, elas já não nos parecem
lo fato de que os eventos narrados são comuns narrativas, mas programações que fazemos
demais para despertar verdadeiro interesse. sem nem mesmo nos dar conta. Retomando a
A proposta inusitada do site é justamente nomenclatura utilizada pelos pesquisadores
conferir importância àquilo que geralmente Roger Schank e Robert Paul Abelson, Bruner

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VOZ NARRATIVA
as chama de scripts, pois funcionam mesmo
como roteiros ou instruções para se realizar No que se refere à escolha da voz narrati-
uma determinada ação. A mesma noção está, va, existem várias possibilidades. Um relato
inclusive, na base da invenção dos aplicativos na primeira pessoa do singular – eu – pode nos
de inteligência artificial, que são programados aproximar mais da história, parecendo uma es-
para executar funções por meio de guias assim. pécie de confissão. Mas há pelo menos duas al-
Exemplos de scripts, nas sociedades huma- ternativas para uma narração desse tipo. Na
nas, são o modo como nos comportamos num primeira delas, a história pode ser contada por
restaurante ou na escola, ou ainda como co- um(a) narrador(a)-protagonista, que tem co-
memos determinados alimentos. Isso signifi- mo foco principal eventos relativos à sua pró-
ca que eles variam de cultura para cultura e, pria vida. Na segunda via, a narração advém de
às vezes, mesmo de época para época, mas de uma personagem secundária, que não pretende
modo geral padronizam os comportamentos de priorizar o que acontece consigo mesma, mas
indivíduos que vivem no mesmo contexto. Para o que se passa com o(a) protagonista, atuando
Bruner, os scripts servem de pano de fundo para como uma espécie de testemunha. Em ambos os
as narrativas de fato, mas não têm, em si mes- casos, a narração vai se restringir ao que o(a)
mos, grande potencial narrativo (por já terem narrador(a) sabe ou presencia.
se tornado extremamente familiares). Segun- Se o objetivo for acompanhar simultanea-
do ele, temos uma narrativa propriamente di- mente as ações de diversas personagens, uma
ta apenas quando há uma quebra desses scripts. narração em terceira pessoa – ele, ela – parece
Em outras palavras, a narrativa pressupõe ser a escolha mais apropriada. O(a) narrador(a)
alguma interrupção da ordem. São os fatos que em terceira pessoa tende a ser onisciente,
escapam da rotina que geram em nós a neces- mas existem diferentes graus de onisciên-
sidade de contá-los. Se, no caminho para o tra- cia. Há os(as) chamados(as) narradores(as)
balho, por exemplo, não nos acontecer nada de observadores(as), que são aqueles(as) que se
diferente do que acontece todos os dias, dificil- restringem a contar o que as personagens fa-
mente teremos vontade de relatar aos nossos zem, como se as observassem de fora. Mas há
colegas alguma coisa sobre esse trajeto. De ma- também aqueles(as) que nos relatam o que elas
neira inversa, quando surge uma ocorrência pensam e sentem, e essa seria a onisciência
que interrompe a série de movimentos e atos plena. Contudo, resta ainda uma terceira pos-
cotidianos, como um acidente ou engarrafa- sibilidade: a onisciência seletiva, em que o(a)
mento inesperado, provavelmente falaremos narrador(a) em terceira pessoa segue a cons-
dessa experiência. ciência de uma única personagem. Assim como
Isso se aplica ao dia a dia das pessoas, seres acontece com as narrações em primeira pes-
narrativos que somos, mas se intensifica ainda soa, na onisciência seletiva, só seria possível
mais no que se refere às narrativas literárias. O saber o que essa personagem sabe ou descobre.
fazer literário abrange a intensificação desses A partir do Modernismo, surgem também for-
procedimentos internalizados e a elaboração mas de narrar em que a figura do(a) narrador(a)
voluntária de situações que sejam capazes de perde espaço ou desaparece. Um exemplo é o flu-
aguçar a curiosidade do(a) leitor(a) até a con- xo de consciência, que provoca a sensação de
clusão do relato. Na literatura, narrar não sig- estarmos acompanhando os pensamentos da
nifica simplesmente contar uma história, mas personagem conforme eles vão sendo produzi-
decidir quem vai contá-la, de que modo, a partir dos por sua mente. Podem parecer desconexos
de qual momento e com qual objetivo. A organi- e fragmentados, além de nos serem apresen-
zação do que está sendo narrado e a linguagem tados sem a mediação de um(a) narrador(a).
empregada também precisam passar pelo cri- Virginia Woolf e James Joyce estão entre os
vo do(a) escritor(a) no processo da escrita. principais nomes a empregar essa técnica.

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linguarude
Caráter narrativo

Outra possibilidade é o “modo dramático”, que uma posição vantajosa (boa sorte). A trajetória
pressupõe o uso intenso de diálogos, tornando da personagem reúne, assim, uma movimenta-
o texto narrativo semelhante a uma peça de te- ção de queda e, posteriormente, de ascensão.
atro. Ernest Hemingway e Dorothy Parker, por Rapaz encontra moça ou moça encontra ra-
sua vez, escreveram inúmeras narrativas a par- paz. Logo no início, o(a) protagonista encontra
tir desse método. alguém por quem se apaixona (ou algo que lhe
Embora menos comuns do que os outros ti- parece muito satisfatório), experimentando
pos, narrações em segunda pessoa – tu, você – momentos de felicidade (boa sorte). Em segui-
também podem ser encontradas. Nesse caso, a da, algum obstáculo se interpõe, acarretando a
história parece estar sendo contada para o(a) perda do ser ou objeto amado, o que faz com que
protagonista, sem se concentrar, contudo, em ele(a) vivencie instantes de infelicidade (má
eventos relativos a uma terceira pessoa, mas sorte) até recuperar o amor/objeto ou encon-
naqueles em que ele(a) está envolvido(a). Muito trar outro equivalente (boa sorte). O seu traje-
mais raras ainda, mas não inexistentes, são as to começa com a ascensão, passa pela queda e
narrativas nas pessoas do plural – nós, eles(as). termina em nova ascensão.
Geralmente se utilizam esses tipos menos re- Cinderela. No início, Cinderela se encon-
correntes para fins específicos. Por exemplo, tra numa situação bastante desfavorável, pois
pode-se empregar a narração em segunda pes- seus pais morreram e ela está vivendo na com-
soa quando se quer imprimir um tom acusatório panhia da madrasta e suas filhas, que a maltra-
ou impositivo à narração. tam (má sorte). Num determinado momento, ela
Escolhida a voz narrativa, haveria ainda a recebe a visita de sua fada-madrinha, que pau-
necessidade de se determinar o tipo de história latinamente lhe oferece as condições para par-
a ser contada. Numa série de vídeos no YouTu- ticipar do baile no castelo, no qual conhecerá o
be, é possível encontrar palestras do escritor príncipe (boa sorte). A ascensão de Cinderela é
estadunidense Kurt Vonnegut Jr.1, nas quais gradual até o relógio bater as doze badaladas
ele discorre sobre os seis tipos mais comuns de da meia-noite, depois das quais começa seu mo-
enredo. Essa teria sido a primeira proposta que vimento de queda abrupta até a posição de onde
ele apresentou para uma pesquisa de mestra- saiu (má sorte). No entanto, num último desdo-
do em antropologia, que acabou sendo rejeitada bramento, o príncipe a reencontra, o sapatinho
pelos seus professores e substituída por outra. se encaixa em seu pé e eles vivem felizes para
No entanto, Vonnegut expôs os conhecimentos sempre (boa sorte), naquilo que se caracteriza
reunidos nesse estudo em eventos e entrevistas como uma nova e definitiva ascensão.
sobre escrita criativa. Hamlet. Assim como Cinderela, Hamlet co-
Nessas apresentações gravadas, ele frequen- meça numa situação desfavorável, mas, ao con-
temente aparece desenhando, num quadro ne- trário dela, não conhece nenhuma ascensão.
gro, um gráfico com dois eixos. O eixo vertical Seu pai está morto e sua mãe tem um novo ma-
teria como extremos a boa e a má sorte e seria rido, irmão do rei falecido (má sorte). Hamlet se
intersectado, no meio, pelo eixo horizontal, que encontra com o fantasma do pai, que lhe revela
representaria, por sua vez, o progresso da nar- ter sido assassinado pelo novo monarca, pedin-
rativa do início ao fim. A partir disso, são traça- do-lhe que vingue a sua morte (má sorte). Ham-
das linhas referentes ao desenvolvimento das let hesita, dividido entre realizar a promessa
seguintes tramas: que fez ao fantasma e não agir, pois não tem cer-
Humano num buraco. No início da narrati- teza de que se trata mesmo de seu pai (má sorte).
va, o(a) protagonista se encontra numa situação No caminho da vingança, Hamlet mata amigos
favorável (boa sorte), mas, durante o desenro- e inimigos, perde a namorada e a mãe e também
lar dos eventos ficcionais, sofre algum tipo de morre (má sorte). Vonnegut representa esse ti-
revés que o lança numa condição desfavorável po de história como uma linha reta e contínua
(má sorte) até que algo faz com que retorne a partindo de uma situação de infelicidade.

52 CONHECIMENTO PRÁTICO - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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Kafka. No livro Metamorfose, é contada Essas estruturas podem susten-
a história de Gregor Samsa, que um dia ao tar narrativas com diferentes tipos
acordar percebe ter se transformado num de personagens em distintos con-
inseto (má sorte). Sua família se assusta textos. As próximas escolhas do(a)
num primeiro momento, depois o aceita, escritor(a) envolveriam exatamen-
mas o mantém trancado no quarto e, por te as personas a percorrer tais arcos
fim, passa a odiá-lo (má sorte). Em decor- e os espaços e tempos nos quais elas
rência de uma maçã que apodrece em seu se movem. Pode parecer simples, mas
dorso, Samsa­acaba morrendo sozinho em talvez não haja nada mais complica-
seu quarto (má sorte), o que traz alívio pa- do, pois como saber quais sujeitos e A AUTORA
ra seus familiares. Para Vonnegut, a histó- situações atrairão mais interesse? É DIVANIZE
CARBONIERI
ria de Gregor Samsa também não conhece possível pensar em todos esses passos é doutora em
ascensão, porém ele a representa como uma para a construção da narrativa e, ain- Letras pela USP
e professora de
linha que sai de um ponto de má sorte e da assim, elaborar uma história inca- literaturas de língua
aponta para baixo, o que significaria que o paz de capturar os(as) leitores(as). A inglesa na UFMT, em
Cuiabá. É autora de
fim do protagonista é ainda pior do que o seu atividade literária do narrar é, por is- dez livros, entre eles,
começo. so mesmo, uma arte que, mesmo utili- Entraves (poesia,
2017), contemplado
Ícaro. Quando a história mítica se inicia, zando estruturas e procedimentos já com o Prêmio Mato
Ícaro está preso no labirinto na companhia conhecidos, precisa reinventar-se a Grosso de Literatura;
Passagem estreita
de seu pai (má sorte). Para fugir, ele constrói cada vez, com o objetivo de proporcio- (contos, 2019),
asas com penas de gaivotas e cera, que fun- nar o surgimento de algo novo. finalista do Prêmio
Jabuti; A ossatura do
cionam, permitindo que ele e seu pai voem rinoceronte (poesia,
para a liberdade (boa sorte). Contudo, entu- 2020), vencedor do
Prêmio Flipoços;
siasmado com a sensação de voar, ele quer ir NOTA
Nojo (contos, 2020)
e Nave alienígena
cada vez mais alto, e o calor do sol acaba der- (contos, 2022). É
1 Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007)
retendo a cera de suas asas, causando a sua Escritor estadunidense de ascendência também autora
dos infantis Vira e
queda e morte (má sorte). A história de Íca- germânica. Com uma carreira de mais
de 50 anos, Kurt publicou 14 romances, mexe, um pet (2021)
ro apresenta o oposto da trajetória desenha- 3 coletâneas de con- e Insight dos insetos
tos, 5 peças de teatro e (2021). Integra o
da em Humano num buraco, pois envolve um 5 trabalhos de não fic- Coletivo Literário
movimento de ascensão seguido de queda. ção, com várias coletâ- Maria Taquara,
neas sendo publicadas ligado ao Mulherio
Abaixo, um esquema resumido das seis após a sua morte. das Letras – MT.
tramas:

Humano num buraco queda – ascensão

Rapaz encontra moça/


ascensão – queda – ascensão
Moça encontra rapaz

ascensão gradual – queda REFERÊNCIAS


Cinderela
abrupta – ascensão BRUNER, Jerome. The narrative
construction of reality. Critical inquiry,
Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.
Hamlet infelicidade contínua
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista
na ficção. Trad.: Fábio Fonseca de Melo.
queda da infelicidade para uma Revista USP, n. 53, 2002, p. 166-182.
Kafka HISTÓRIA sem graça. Disponível em:
situação ainda pior https://historiasemgraca.tumblr.com/.
VONNEGUT, Kurt. Case Western Reserve
Ícaro ascensão – queda University. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=4_RUgnC1lm8.

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interfaces

Os fascinantes
diálogos
entre áreas do
conhecimento
A busca do belo e da poesia,
presentes na arte, é também
inerente ao processo de criação
na ciência, e sempre fascinou
pensadoras e pensadores notáveis

M
esmo em uma época intacta, a exemplo de outros dicioná- existir quando a questão é vista pelo
perpassada por tantas rios referenciais do nosso idioma. viés contemporâneo, atravessado por
tecnologias, em que é Virando as páginas do pesado vo- um excesso de formações centradas
possível fazermos con- lume, encontro à página 1.124 os prin- em especializações separadoras do
sultas on-line instantâneas sobre prati- cipais alcances de sentido da palavra conhecimento. Mas nem sempre foi
camente qualquer assunto, por incrível (ou “verbete”, aos que preferirem o assim. No período clássico grego, por
que pareça, ainda mantenho na minha termo dicionaresco) que nos manterá exemplo, promover interfaces entre
biblioteca, talvez movida por algum conectados neste espaço que aqui áreas do conhecimento era a regra,
indiscernível afeto, um exemplar do iniciamos: interface. Da longa série de não a exceção.
clássico Dicionário Aurélio da Língua definições trazidas pelo Aurélio, inte- Por esses diálogos entre saberes
Portuguesa. Edição em capa dura, de ressam-nos especialmente as duas é que teceremos, aqui, presentes e
1999, plena virada de século, portanto, primeiras: “1. Dispositivo físico ou futuras reflexões. Ousando, quem
onde se lê “Século XXI” logo abaixo do lógico que faz a adaptação entre dois sabe, suscitar mudanças que possam
título. Anunciava-se ali o novo milênio, sistemas; 2. Conjunto de elementos levar a cabo novos olhares e atitudes
buscando ainda resguardar a tradição comuns entre duas ou mais áreas do cotidianas mais abrangentes que o
de um dos mais respeitados dicio- conhecimento, de interesse etc.: A mundo contemporâneo nos cobra
nários da nossa Língua Portuguesa; interface entre a física e a química.” com urgência.
2.128 páginas de um acervo lexical já Definição anunciadora de algo Promover interfaces entre variadas
revisto e atualizado em várias edições que para muitos é um desafio, para áreas do conhecimento pode, de fato,
posteriores desde então. As mais re- outros uma arte: tecer diálogos en- revelar-se um exercício fascinante.
centes, inclusive, com disponibilidade tre áreas do conhecimento. Ao que Não somente pelas descobertas trans-
para acessos digitais. Bom lembrar, no parece, quanto mais aparentemente formadoras que isso pode gerar, mas,
entanto, que a aura de sobriedade do distantes as áreas, mais fascinante o para além, pela poesia de vida a en-
bom e velho Aurélio ainda se mantém intento. O desafio, contudo, parece volver tais alcances intelectuais eman-

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Reflexão de Márcia Fusaro

cipatórios. Para citar exemplos que o espaço na ciência!” Evidente que não ciência se tocam. Poeta e cientista
podemos aprofundar futuramente, se trata de, ingenuamente, negar-se se equivalem. Espécie de resposta
saber que a arte de Picasso foi influen- a importância disso. Por outro lado, os ao verso “Como domar a astúcia do
ciada por conceitos do filósofo e ma- processos de elaboração científica de infinito?”, dito por Marco Lucchesi,
temático Henri Poincaré e pela teoria Einstein também envolviam o exercício também um profícuo poeta das in-
de espaço-tempo quadridimensional da arte musical, e isso não é devida- terfaces, em um dos belos poemas
desenvolvida por Einstein, como atesta mente lembrado ou enaltecido. Ele de seu livro Hinos Matemáticos.
Arthur Miller em Einstein, Picasso: spa- aprendeu a tocar violino por influência Celebrando, pois, o infinito, ouça-
ce, time and the beauty that causes ha- da mãe, talentosa pianista. Ambos mos Clarice Lispector em A desco-
voc. Que Einstein, assim como Picasso, costumavam, inclusive, fazer duetos berta do mundo, neste derradeiro
também foi influenciado por Poincaré, para executar sonatas de Mozart, ou- exemplo que cito como um convite
mas também amava música clássica tro gênio por quem o Nobel de Física a compartilharmos outras futuras in-
e teve vários violinos ao longo da vida, tinha imensa admiração. “A música de terfaces aqui neste espaço: “O senti-
aos quais sempre atribuía o apelido Mozart é tão pura e linda que eu a vejo mento de beleza é o nosso elo com
afetuoso de “Lina”, nos revela Walter como reflexo da beleza interna do pró- o infinito. É o modo como podemos
Isaacson, em Einstein: sua vida, seu uni- prio universo”, teria dito certa vez a um aderir a ele. Há momentos, embora
verso. Que o matemático Poincaré, por amigo Miller, como lemos em sua obra. raros, em que a existência do infinito
sua vez, foi intenso defensor da leitura A música não era mero entrete- é tão presente que temos uma sen-
de textos literários e do estudo da nimento para Einstein. Ajudava-o a sação de vertigem. O infinito é um
gramática como formação fundamen- pensar sobre questões mais com- vir a ser. É sempre o presente, indivi-
tal aos que quisessem se tornar bons plexas. Sempre que se via diante de sível pelo tempo. Infinito é o tempo.
cientistas, que pode ser conferido em algum impasse ou dificuldade de Espaço e tempo são a mesma coisa.
seus Ensaios Fundamentais. Não pare- raciocínio lógico, voltava-se à música Que pena eu não entender de física
ce fascinante? para conseguir desfazer entraves de e matemática para poder, nessa mi-
pensamento. Costumava tocar violino nha divagação gratuita, pensar me-
A BUSCA DO BELO na cozinha, às vezes tarde da noite, lhor e ter o vocabulário adequado
Para alguns pode até não ser no- improvisando melodias enquanto ra- para a transmissão do que sinto.”
vidade, mas, se assim for, então por ciocinava sobre problemas científicos
que só se dá relevância, em geral, complicados.
ao fato de Einstein haver se dedica- A busca do belo e da poesia presen-
do à física e à descoberta da Teoria tes na arte, mas, lembremos, também
REFERÊNCIAS
da Relatividade? Por que se fala de inerentes ao processo de criação na
Picasso somente como pintor? E de ciência, é algo que sempre fascinou ISAACSON, Walter. Einstein: sua vida,
Poincaré principalmente como mate- pensadoras e pensadores notáveis. seu universo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 34.
mático? Provavelmente porque, em Afinal, para além de seu imenso al-
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do
algum momento, deixou-se de lado a cance científico, o que se manifesta mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.
bela relevância das interfaces do co- na famosa fórmula da Teoria da 291-292.
nhecimento. Relatividade (E=mc²), senão um em- LUCCHESI, Marco. Hinos matemáticos.
São Paulo: Tesseractum, 2022. p. 17.
Alguém pode, ainda, argumentar: prego sígnico equivalente àquele da
MILLER, Arthur I. Einstein, Picasso: space,
“Mas o fato de Einstein haver elabo- poesia? Ou seja, traduzir o intraduzível, time and the beauty that causes havoc.
rado a Teoria da Relatividade é muito dizer o indizível, o infinito, por meio New York: Basic Books, 2008.
mais importante! Mudou a física e a da elegância de uma máxima síntese. POINCARÉ, Henri. Ensaios Fundamentais. Rio
de Janeiro: Contraponto-PUC/Rio, 2008.
maneira como entendemos o tempo e Neste denso exercício criativo, arte e

A AUTORA MÁRCIA FUSARO é doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com pós-doutoramento em Artes (UNESP), mestra em História
da Ciência (PUC-SP), especialista em Língua, Literatura e Semiótica (USJT). Professora e pesquisadora dos programas de pós-graduação em
Educação da Universidade Nove de Julho, em São Paulo. profmarciafusaro@gmail.com

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diálogos

© GVARDGRAPH / ISTOCKPHOTO.COM
Formação continuada

De volta para
o futuro! É mais que necessário definir o
que é formar-se continuamente, e
as linguagens são o caminho para
Texto de Marcio Scarpellini Vieira
deixarmos as amarras do passado,
construindo pontes no presente

O
lá, professor do século 21! Lembra quan-
do, na nossa época, para ler um livro
precisávamos ir à biblioteca da cidade? Tantas opções, que faltam decisões, tanto a
Ah, a nossa época! fazer, a ler, a aproveitar; centenas de histórias
Qual é a nossa época? A nossa época é a épo- disponíveis no streaming, que, de tanto procu-
ca das inteligências artificiais, dos jogos on- rar, desistimos de ver um filme e vamos… shorts.
-line, da ficção que virou realidade, dos carros As linguagens culturais parecem estar mudan-
autônomos, dos hologramas, da violência nas do. Vídeos curtos, séries longas. Tantas opções,
escolas, da evasão no ensino básico, do analfa- tantas depressões.
betismo funcional e das profissões que já exis- São necessárias atualizações tecnológicas,
tem na prática, mas não na academia. são necessárias atualizações comportamentais.
Ah, a nossa época! Esta é a nossa época! Ambí- Necessárias atualizações. Tantas, que aceleram
gua, desafiadora e certamente incrível! Incrível, o pensamento. Faltam nomes às profissões, so-
pois muitas vezes parece não ser crível aquilo bram nomes aos diagnósticos.
que vemos: “quando penso que já vi de tudo…” Precisamos atualizar aplicativos, são tantos
Esta nossa época ainda não tem nome, mas aplicativos, aliás. Atualizar. Voltar para o atual,
sabemos que a quantidade de conhecimento voltar para o agora.
acumulado no mundo dobra a cada 20 meses, a Eis o desafio: Não viver no passado, pois “os
tecnologia salta quilômetros à frente todos os cachorros de ontem não conseguem caçar os co-
dias, a grande novidade de hoje cedo está desa- elhos de hoje” (antigo provérbio Gonja, tribo do
tualizada ao final do dia, e em todo o globo a no- oeste africano), e não viver no futuro. Afinal,
tícia já foi veiculada imediatamente. passado não existe, e futuro também não. Existe
Esta é a nossa época, épica. o presente, mas também o presente do passado,

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que é a lembrança do que já foi, e existe o presente conteúdos e saberes a serem ensinados e a for-
do futuro, que é a criação do que ainda será. ma de ensiná-los.
O presente de viver o presente é a dádiva que Diante da complexidade do nosso público e,
desejo compartilhar com você, caro amigo pro- portanto, da complexidade dos conteúdos a se-
fessor ou amigo leitor. Aproveite este presente e rem transmitidos e, acrescento, da complexi-
viva intensamente o desafio de viver hoje! dade que é a nossa própria existência em um
momento único na história da humanidade, é
ATUALIZAÇÕES DISPONÍVEIS
mais que necessário definir especificamente
Em meio a um mundo de novidades que o mer- do que se trata formar-se continuamente, per-
cado educacional oferece à comunidade escolar, manecer adequando a forma às necessidades
das lousas digitais do início dos anos 2000, pas- essenciais para o desempenho da docência de
sando pelas plataformas, realidade aumentada, forma relevante para a geração que está sob nos-
QR-Codes, além das ondas ou modas pedagógi- sa responsabilidade.
cas, professores e gestores estão sempre diante Aqui, penso ser fundamental expor o quanto
do desafio de estarem atualizados profissional- é importante retomarmos o papel do professor,
mente, mas também de filtrarem os modismos e dando alguns passos atrás na posição cultural-
se anteciparem ao que de fato será tendência pe- mente posta ao docente. Hoje é comum termos
rene na educação. a posição do professor como um tutor, um co-
Assim, é evidente que uma boa formação bá- nector entre o aprendiz e o conhecimento a ser
sica e na licenciatura, apesar de serem deter- aprendido, colocando-se, ou sendo colocado, em
minantes, não são definitivas, carecendo de uma posição de não ser o detentor do conheci-
formação contínua e continuada durante toda a mento, mas esse conector, esse condutor entre o
vida do profissional de educação. discente e o conhecimento.
Acredito que seja necessário, portanto, ali- Pois bem. No tempo em que vivemos, de fato,
nhar o ponto de partida da análise sobre as esco- não é possível deter todo o conhecimento sobre
lhas entre tantas possibilidades, de formações quaisquer áreas do saber, mas se, ao levantar-
continuadas, formais ou informais, visto que mos da cama, não tivermos algum conhecimen-
formações devem contribuir para refinar a for- to a transmitir aos nossos alunos, não há por
ma do professor, informando-o adequadamente que nos lançarmos à sala de aula, ao ambiente
para que não fique deformado! escolar. Algo devemos comunicar, algo devemos
carregar em nós mesmos, que seja relevante e
FORMAÇÃO CONTINUADA
importante aos nossos alunos.
A formação continuada de professores é um Penso que não é possível abrirmos mão de que
conceito repetidamente presente nos contextos somos detentores, sim, de conhecimentos im-
docentes e de planejamento escolar, mas talvez portantes e, se não fosse assim, não teríamos
ainda não seja amplamente ou totalmente com- qualquer orgulho da nossa profissão docente.
preendido nas mais amplas hipóteses e possi- Devemos ter o que comunicar, e isso deve ser
bilidades disponíveis e necessárias diante da objeto da nossa formação continuada. Novos
complexidade do trabalho docente necessário conteúdos, novas abordagens, novas formas de
para a formação do professor que deve servir à comunicar aquilo que já sabemos, os conteúdos
geração que está em nossas escolas e que atua- que absorvemos em nossas licenciaturas e que
rá produtivamente na sociedade em um futuro são legalmente ou objetivamente necessários
muito próximo. aos nossos alunos.
Nós, professores, temos, a meu ver, duas ta- Dominar os nossos conteúdos e saber como
refas incrivelmente óbvias e complexas ao ensiná-los é preponderante e básico para a nos-
mesmo tempo: conhecer o nosso aluno, ou me- sa lida como professores. É disso que nossa pro-
lhor, os nossos alunos, visto que são diver- fissão é majoritariamente proposta e definida.
sos e distintos, e conhecer profundamente os Assim, dominar os nossos conteúdos é condição

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diálogos
Formação Continuada

primeira para nos assumirmos como professo-


res. Sim, é necessário dispormos de conheci-
mentos amplos e atualizados sobre nossas áreas
de conhecimento, e já que aqui estamos a falar
principalmente para docentes de linguagens,
umas das áreas mais amplas e atualizáveis dos
Desenvolvendo
conhecimentos, é tarefa árdua estar atualizado as formas
de todas as demandas de um objeto de conheci-
As formas de ensinar são diversas; também foram
mento que é vivo e mutável enquanto estamos a e são atualizadas, pois são e serão atualizáveis.
estudá-lo, mas é possível e necessário. Desenvolver formas adequadas de ensino de-
Tarefa primeira ao docente de linguagens: es- pende diretamente da qualidade da formação
tar atualizado quanto ao objeto de estudo. Ta- docente e da atenção dada à formação continua-
refa primeira, capítulo dois: estar atualizado da, levando-se em consideração todos os pontos
quanto à forma de ensinar o objeto de estudo. anteriores. O ensino das linguagens carece de
Ambas as dimensões dessa questão devem ser adequações constantes, pois é fenômeno insepa-
objeto de ocupação do professor, sendo que, acre- rável das mudanças humanas e sociais.
dito, o conhecimento acerca da forma de ensinar As linguagens são o caminho para voltarmos
seja a mais complexa dimensão a ser aprendida, para o futuro, deixarmos as amarras do passado,
pois depende profundamente do conhecimento construindo pontes no presente. As formas de ab-
sobre os estudantes e como eles aprendem, so- sorver as próprias linguagens e de ensiná-las aos
bre os contextos necessários à aprendizagem, o alunos irá mudar ao longo da carreira docente,
que inclui os sistemas e modelos de ensino. por força das suas características próprias.
Conhecer profundamente os nossos alunos, Esteja atento aos sinais que os alunos lhe ofere-
as suas realidades, é necessário e fundamental cem. Saiba como estão se comunicando e sob
para a efetividade do nosso trabalho. Seus con- quais plataformas estão comunicando. Quais
textos culturais, econômicos e familiares são recursos, ferramentas, gêneros e estilos estão uti-
insumos e ferramentas para que possamos pla- lizando. Aproprie-se deles, e vamos desenvolver
nejar ações educativas efetivas que resultem em linguagens que tornem possível comunicar e en-
aprendizagens significativas e determinantes sinar o que de fato deve ser ensinado aos alunos!
para um bom futuro no destino de nossos alunos.
Esta deve ser a busca definitiva em nossas
escolhas sobre formação continuada: quais fer-
ramentas e práticas irão de fato e de verdade
contribuir positivamente para a criação e ges- desprezado, nem sequer menosprezado, ao
tão de ambientes de aprendizagem que serão custo de, caso seja ignorado, comprometer to-
produtivos e frutíferos no bom solo da aprendi- do o processo seguinte.
zagem dos nossos alunos.
AMBIENTE DE APRENDIZAGEM
Sim, bom solo, pois nossos alunos são alunos
deste tempo, e são bons solos, assim como eram os O ambiente de aprendizagem escolar não
solos de tempos anteriores. São diferentes, mas pode ser apenas uma ideia física, mas uma
serão frutíferos se neles forem lançadas boas se- ideia transcendente, em que toda ação tenha
mentes, cuidadas e geridas da forma adequada. como objetivo final a aprendizagem. Toda ação
Antes ainda desse primeiro passo, há um no ambiente escolar deve ter o objetivo final
“passo zero”, que é o conhecimento prévio e ante- de promover um ambiente interno aos indiví-
rior a toda a ação docente: o autoconhecimento. duos e coletivo ao grupo de atores escolares,
O entendimento, a compreensão da identida- criando uma atmosfera que inspire a busca de
de do professor, suas origens, seus pressupos- conhecimento de si, do outro, do objeto a ser
tos e suas intenções. Esse passo não pode ser aprendido e do próprio processo de aprender.

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Pensando nessa perspectiva, é evidente à satisfação prévia das necessidades básicas de
que o primeiro ator a ser levado a aprender proteção, alimentação e saúde fisiológica, confor-
deve ser o professor, pois a este cabe o encar- me verificamos na hierarquia de necessidades
go de ensinar. Ensinar pressupõe aprender, de Maslow1, princípio já conhecido pelo poeta ro-
e aprender sempre, visto que, ainda que os mano Juvenal: “mens sana in corpore sano.”
conteúdos e os professores sejam repetida- Manter o corpo e a psique saudáveis é condição
mente os mesmos, não o são os alunos. mínima para a aprendizagem. Esse princípio vale
Assim como os conhecimentos humanos para qualquer indivíduo, professores ou alunos.
estão praticamente dobrando em 20 meses Por vezes, o trabalho docente parece exaurir
ou menos, cada turma em que iniciarmos o as capacidades e forças físicas e psicológicas
nosso trabalho será diametralmente diferen- de professores e das equipes escolares, diante
te da anterior, ainda que esteticamente não o de um mundo cada vez mais complexo e repleto
pareça. Para essa comparação, basta que vo- de ambiguidades. Nossos alunos também estão
cê observe os hábitos culturais das turmas no em um mundo de rápidas transformações, em
6º ano e as do 7º ano da sua escola. Observe as que muitas vezes não conseguem as respostas
diferenças de consumo cultural, as diferen- ou os direcionamentos de que precisam para te-
ças de preferências linguísticas. Claro que é rem um desenvolvimento cognitivo e acadêmico
necessário considerar a diferença etária, fa- adequado.
ça esse filtro. Teremos claro o quanto são di- Assim, é premente encontrarmos alternati-
ferentes e o quanto é desafiador e necessário vas para uma boa saúde geral e também laboral.
levar em consideração tais diferenças para, Atividades físicas adequadas, ambiente físico
então, termos um planejamento docente em de trabalho limpo, organizado e equipado, boas
que realmente possamos confiar. noites de sono, alimentação saudável, tudo isso
Saber quem somos e quem são nossos alu- faz parte (e uma grande parte!) de uma vida pro-
nos também faz parte da formação continua- dutiva e aprendedora!
da docente. A saúde emocional antecede a aprendizagem.
Então, relaxe, medite, tenha momentos de con-
FORMANDO CONTINUAMENTE O DOCENTE
templação e, se necessário, procure ajuda mé-
Cabe ao professor o interesse primário, dica, terapêutica. O burnout é uma condição que
a consciência primária da necessidade de vem afetando cada vez mais professores, sugan-
estar se formando ao longo de sua vida pro- do as energias, a saúde física e as capacidades
fissional. Para que esse processo aconteça, cognitivas. Fique atento aos sinais que o seu cor-
é fator preponderante que a saúde física e po e a sua mente dão. Temos um sistema lindo de
emocional do professor também seja objeto alarmes e indicativos! Esquecimentos constan-
de atenção contínua. tes, cansaço que não passa, entre outros sinais
Sem uma base fisiológica e psicológica sau- podem estar dizendo alguma coisa sobre a sua
dável, não haverá o desenvolvimento saudável saúde mental e emocional.
de aprendizagens, visto que nossa capacida-
de aprendedora está intimamente conectada REFERÊNCIA

IMBERNÓN, Francisco. Formação Continuada


de Professores, Porto Alegre: Artmed, 2010.
NOTA

1 A Pirâmide de Maslow é uma teoria criada pelo psicólogo Abraham


O AUTOR MÁRCIO SCARPELLINI VIEIRA é
Maslow, publicada em 1943 em seu livro A Teoria da Motivação Huma-
na. Essa teoria pressupõe que as ações humanas nascem de uma mo- administrador de empresas, cientista social e
tivação inata para atender às nossas necessidades e são ordenadas pedagogo. Mantenedor e diretor-executivo
de maneira hierárquica. Segundo ela, cada indivíduo do Colégio Ouro Preto – São Paulo/SP. Diretor
tem de realizar uma “escalada” hierárquica de necessi- da Allbe Soluções Educacionais. Professor,
dades para atingir a sua plena autorrealização. Existem palestrante e formador, participando de forma
as necessidades primárias (básicas), que são as fisioló- ativa em programas de formação docente no
gicas e as de segurança, e as necessidades secundá- Brasil, Angola e Moçambique, além de promover
rias, que são as sociais, estima e autorrealização. eventos que conectam cultura e educação.

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lusamérica

Confesso: errei
Por duas décadas, recusei as
simpatias de Ano-Novo. Conversando
com uma tradutora do esloveno,
percebi que estava errado CKPHO
TO.CO
M
E / ISTO
OUCH
© NAT

M
inha família sempre contraram o ângulo certo, lua de um traduções da Odisseia, me decidindo
gostou de simpatias de lado, turistas do outro, três, dois, um, entre Frederico Lourenço, Odorico
Ano-Novo. Tenho dúvi- e todo mundo abaixou a calça, subiu Mendes ou Trajano Vieira. Encomendo
das se alguma vez elas a saia, desceu os shorts por alguns a obra e aguardo ansioso pela entrega
deram certo. Minha mãe, claro, vai segundos, que foram suficientes enquanto, nas redes sociais, cada qual
responder que sim e me chamar de para garantir a sorte daquele ano. exibe a própria família toda vestida de
descrente: todos estarem bem, com Menos eu. Talvez tenha sido naquele branco. Abro feliz o pacote e me sento
saúde, é a maior prova. Meu pai, notei dia que começou minha adolescên- para ler enquanto os noticiários ainda
depois que cresci, prefere participar cia, com a escolha de uma sorte que exibem imagens da queima de fogos
a argumentar contra. É mesmo mais fosse apenas minha. em Copacabana, ou do réveillon dos
fácil. Tenho memórias muito antigas Passei a recusar os costumes da famosos, ou do que os videntes espe-
dos meus parentes pulando as sete família, criei tradições pessoais, para ram para o ano que se inicia. O ano é
ondas do mar, equilibrando-se sobre desespero da minha mãe, que temia novo, mas começa sempre igual.
o pé direito na hora da contagem me ver atirado em um fosso de azar As boas edições trazem notas do
regressiva, comendo uma colher – ou “má sorte” (ela não diz “azar” tradutor, comentários do processo. E,
de lentilha. Tem mais: sementes de para não atrair). Ao invés da lentilha claro, uma diagramação confortável
romã à tarde, folhas de louro na car- e das folhas de romã, decidi não para a leitura. Joyce foi lido na tradu-
teira, cores especiais para as roupas comer carne alguns dias antes da ção de Caetano Galindo. Dom Quixote,
íntimas – amarelo para dinheiro, ver- ceia. Adotei um banho de sal grosso, li na tradução de Ligia Cademartori,
melho para amor. E nada de jantar emprestado das tradições africanas. porém tinha à disposição a tradução
peru ou frango no primeiro de janeiro, Assisto à missa na tarde do 31 de de Ernani Ssó, Sergio Molina, António
pois as aves ciscam para trás! Novas dezembro. Lavo os chakras indianos. Feliciano de Castilho, entre tantos
superstições se acrescentam a cada Decidi que fogos de artifício eram outros. Para ler Shakespeare, não
ano e nenhuma é abandonada. obrigatórios. E, para apoiar meus faltam tradutores, entre eles, o grande
Lembro de um fim de ano, na praia, planos literários, passei a iniciar o ano Machado de Assis, que, dizem, tradu-
em que inventaram de mostrar a bun- com a leitura de um clássico, obriga- zia dando sempre uma ajudinha para
da para a lua – após saltarem as sete toriamente uma obra maior que um o autor original.
ondas, com o pé direito, comendo tijolo, um dos títulos que todo mundo Comentei recentemente sobre esse
lentilha. Tios e tias, primos e primas conhece, mas pouca gente de fato hábito com a Mojca Medvedšek, tra-
procuraram um local discreto, que leu da primeira à última página. dutora do esloveno para o português.
permitisse ao afortunado reflexo lunar Falei da minha família no Ano-Novo,
incidir diretamente nas nádegas, po- UMA VERDADEIRA ODISSEIA do hábito de ler um clássico (comecei
rém sem que os quarenta mil curiosos Nos primeiros dias do ano, enquan- 2023 com Guerra e Paz, na tradução
que estavam na praia dessem uma to algum atrasado ainda solta fogos de Rubens Figueiredo), falei despre-
espiadinha. Em algum momento, en- e estão todos de ressaca, pesquiso tensiosamente sobre a importância

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Reflexão de Leonardo Garzaro

de escolher uma boa tradução ao logo incorporavam: “o único País a ga- Gonçalves pela casa, se emocionan-
ler um clássico. Escolher o tradutor nhar cinco Copas do Mundo”, “o maior do com o Hino Nacional e reafirman-
certo, pesquisar o processo. Ela se rio do mundo”, “a maior biodiversida- do que o português era o idioma mais
surpreendeu. Não sabia que havia de”. E, ocasionalmente, diziam que o bonito do mundo. Talvez eu estivesse
tantas traduções das mesmas obras português era o idioma mais bonito errado, por todos esses anos! Talvez
para o português. E me explicou que, do mundo, o que, pelo sim, pelo não, eu tenha perdido diversas oportuni-
na Eslovênia, há em geral uma ou sempre me pareceu verdade. dades pelo tantinho de sorte que dei-
outra versão e que vem do inglês ou Se nunca vi grandes vantagens em xei escapar ao recusar pelas últimas
do francês. As traduções diretas são correr por aqui o maior rio do mundo décadas – Céus! – a colher de lenti-
raras, uma dezena de traduções dis- (faria diferença se fosse o segundo?), lha, as folhas de louro e a cueca ama-
poníveis é uma utopia. Os eslovenos, ou termos a maior biodiversidade (se rela. Levo as mãos ao rosto e penso
em geral, estão privados de conhecer fosse a terceira, porém mais bem pre- que meus primos, se estão melhor
as palavras do príncipe da Dinamarca servada, não seria melhor?), fiquei en- de vida, certamente é porque suas
ou as tiradas do Sancho em seu pró- cantado ao perceber uma vantagem nádegas foram corretamente ilumi-
prio idioma. Uma tragédia! direta no nosso idioma. É decisivo! Faz nadas pelo reflexo lunar nos últimos
Fiquei intrigado com os comentá- toda a diferença, para a riqueza do vinte anos: uma vantagem inegável!
rios da Mojca e escrevi para tradu- português, o imenso número de fa- Cada pedaço de peru, degustado
tores de outros idiomas, como o fin- lantes. Para os escritores, os estudio- no primeiro de janeiro, de repente
landês, o letão e o basco, com quem sos, para os leitores, ter tantos livros embola meu estômago, explicando
trabalho na editora Rua do Sabão. é fundamental! E passei a dar razão o dia em que perdi os óculos, aquela
Eles confirmaram a informação. aos meus avós em tudo. Claro que é vez que me atrasei na prova, quando
Nunca havia me dado conta de que maravilhoso termos o rio Amazonas desencontrei de um conhecido por
utilizarmos um idioma que está entre por aqui. Vamos cuidar dele! E a bio- apenas um minuto.
os dez mais falados no mundo, por diversidade é um patrimônio nacional, Tomei uma decisão: a partir de
mais de 250 milhões de pessoas, nos como a língua portuguesa, os idiomas agora, vou participar de tudo. Quem
traz justamente essa vantagem. Para indígenas, as praias, as cataratas e o sabe, se eu passar a dobrar a apos-
além da rica literatura brasileira, te- enorme território! Viva! ta – duas colheres de lentilha, o
mos uma gama imensa de traduções Foi minha avó que começou com dobro de fogos de artifício, pular a
à disposição. as simpatias de Ano-Novo, e viveu até noite inteira só na perna direita –, eu
Vou confessar algo: eu gosto dos o último dos seus dias fazendo o que recupere o tempo perdido em cinco
entusiastas pelo Brasil. Quisera eu ser bem entendia, do jeito que queria, ou seis anos. E a lua, claro! Em uma
um deles. Meus avós, talvez por conta sem se incomodar com ninguém. De década, no máximo, tudo se ajeita.
da infância varguista, eram ufanistas. bem consigo, de bem com o mundo. Vou até passar a cantar o clássico de
Batiam no peito para dizer “o quinto Satisfeita com seus galhinhos de Francisco Alves, “que tudo se realize,
maior território mundial”, “as praias arruda atrás da orelha, um pote de no ano que vai nascer…”, antes de mais
mais lindas do mundo”, “a maior flo- sal grosso atrás da porta da frente, nada para agradecer pelo nosso lindo
resta tropical do planeta”. Quando queimando um incenso quando al- português. Porque esse português é
descobriam algo novo sobre o País, guém olhava torto. Cantando Nelson bonito… Ah, como ele é bonito…

O AUTOR LEONARDO GARZARO é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou
dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com tradução para
inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. É consultor de
literatura brasileira das editoras Interzona, da Argentina; Arlequin Ediciones, do México; e Corredor Sur, do Equador. O guardião de nomes, seu último
romance, foi elencado como um dos melhores livros de 2022 pelo Suplemento Literário Pernambuco.

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lugar de fala
Legislação e Linguística

Nem tudo
Leis sempre têm múltiplas
interpretações, por isso

que é legal
é preciso cuidado com o
uso das palavras, escritas,
faladas ou sugeridas

é legítimo,
lícito ou
permitido

© RYANJLANE / ISTOCKPHOTO.COM
Texto de Cristiane Alves

O
Direito é um mar de interpretações de escritas, faladas ou sugeridas. E palavra não é
leis, letras, atitudes e intenções. Não rígida, é o que fala e o que cala, é o que se fala ao
sou da área, mas observo as leis e os ho- contrário, é gesto.
mens. O Direito não é norteado apenas por re- Por lei, no Brasil, ofender ou constranger al-
gras estabelecidas e registradas para serem guém por sua origem ou raça é crime1 passível
obrigatoriamente seguidas; é sentido, o Direi- de reclusão e indenização por dano moral. Pes-
to tem de fazer com que as regras criem corpo soas perguntam se brancos podem se benefi-
e andem, como diria Michelangelo a Davi. ciar dessa mesma lei tipificadora de racismo
As leis em si são bidimensionais, são letras ou injúria racial. Digo sempre que sim, a mim
frias, nós que vivemos sob as leis é que as hu- parece óbvio, a lei deixa claro que a questão é a
manizamos. Nem tudo que é humano pode ser injúria, não estabelece à qual raça. Mas a dúvi-
interpretado igualmente, somos cosmos indi- da também é pertinente. A dúvida é clareadora
viduais, milhões deles. no sentido em que demonstra que muitos não
O que é legítimo aqui pode não ser permiti- sabem que têm uma raça. É como a discussão
do nos Estados Unidos; o que é legal aqui po- sobre sotaque. O paulista acha que não tem, o
de não ser lícito na Rússia. O que é lícito aqui brasileiro crê com afinco que não possui esse
pode não ser legal na Coreia do Norte. É por grave defeito, o mesmo faz o estadunidense em
isso que as leis são propostas por cada povo, relação ao inglês do resto do mundo.
com base em sua realidade e vivência. Não po- Outro desconforto corriqueiro é o uso de ad-
de ser entendida sob olhar alheio ao contexto. jetivos como negro ou preto. Na mesma linha
Um fator importante no Direito é a lin- de pensamento do “sou humano“, muitos atri-
guística. A proficiência no uso das palavras, buem ao outro a não humanidade. Assim, ser

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branco é normal, é humano, ser negro é ofen- “Ser um ‘preto de alma
sivo, “desnatural”, sub-humano. Daí o medo de
ofender alguém por chamá-lo de negro. O des- branca’ não é elogio e tentar
conforto é ofensivo, mas é legítimo e permitido. nos fazer negar nossa cor
É comum e aceitável a substantivação do ad-
jetivo; Simone neguinha, nunca Simone branca também não. Entretanto,
(ou branquinha). Certamente, aos que defen- chamar alguém de preto
dem o não identitarismo racial, esses apelidos
carecem de explicação. Mas importa dizer que
(ou negro) PODE ter caráter
não, não é ofensivo ser negro. Tampouco deveria de injúria, dependendo da
ser elogio ser branco.
Ser um “preto de alma branca“ não é elogio e
intenção. Rumamos agora aos
tentar nos fazer negar nossa cor também não. vieses do ‘mimimi’, pois que se
Entretanto, chamar alguém de preto (ou negro)
PODE ter caráter de injúria, dependendo da in-
não é errado, não é e pronto, e
tenção. Rumamos agora aos vieses do “mimimi”, tudo o mais é vitimismo”
pois que se não é errado, não é e pronto, e tudo o
mais é vitimismo.
Não, Direito não é geologia, em que o berilo po- sem nome de ser. Cecéu casou por ordem do pai.
© RYANJLANE / ISTOCKPHOTO.COM

deria ter se tornado esmeralda, mas não é. Direi- As meninas não eram tão necessárias, indo, era
to é intenção, é entrelinhas, é subliminaridade, uma boca a menos. E que fossem cedo, porque
tudo junto e misturado. Então, ser o “neguinho” alimentar, vestir e cuidar de uma criatura para
num contexto carinhoso não é o “neguinho” car- depois ela ir morar em outra casa, era investi-
regado de ódio e humilhação. O mesmo se dá pa- mento caro e desperdiçado.
ra todas as outras formas de tratamento. As meninas comiam depois dos meninos, to-
Aí questionam o motivo de ninguém se ofen- mavam banho depois também, na mesma água
der por ser chamado de “branco” ou “japonês”, servida. Em caso de doenças, os meninos eram
outra pergunta muito carregada de autorres- cuidados mais. Eram necessários na lida. As
postas. Como o assunto é complexo e a vida ca- filhas também, mas davam trabalho. Meninas
rece de levezas, proponho uma leitura menos nasciam para dar trabalho. Melhor casar cedo.
assertiva, uma vez que as subjetividades colo- O trabalho dali em diante era do marido. Proble-
cam asas em nossa mente tantas vezes atadas ma resolvido.
à realidade… Aos dez anos Cecéu queria brincar, mas tinha
que cuidar da casa, lavar e engomar as roupas
A SINA DE CECÉU
do marido. Se não fizesse apanhava feito crian-
“Quando Cecéu casou tinha apenas dez anos ça, que de fato era, mas que era mulher porque
de idade. O marido era 28 anos mais velho. Ele nessas horas de servir, era toda mulher para
não conversou com Cecéu, não perguntou, não aquele homem. E ninguém queria reclamação,
namorou como namoram muitas moças antes nem mãe, nem pai, nem marido, nem ninguém.
de casar. Pediu permissão ao pai da menina. Era assim pra todo mundo. Normal.
No sertão do Ceará da década de 1930 as fa- Manoel era português, comerciante. Cecéu
mílias eram grandes. Lá e no Brasil rural todo. tinha nem o que reclamar. O primeiro filho veio
As moças casavam cedo e tinham filhos até não antes dos 11 anos, depois mais 15. Aos 24 anos
poder mais ter. Por sorte ou azar, morriam mui- eram 16 filhos, com os gêmeos.
tos. Mas viviam muitos também, mesmo que por Quando engravidou pela última vez, já esta-
pouco tempo. A vida era dura. va farta de parir. Pensava que dar à luz um fi-
Cabia à mulher fornecer à família a força de lho preto, mais um, era impor uma pena de
trabalho. Úteros cativos para o trabalho escravo vida, que se agravava conforme o tempo sobre

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lugar de fala
Legislação e Linguística

a Terra. Seus dezesseis filhos vieram ao mundo


“É comum e aceitável a
por culpa da culpa cristã. Menos o primeiro. Os substantivação do adjetivo;
primogênitos nascem sempre de uma esperança
Simone neguinha, nunca
sem sentido e impossível para os pretos.
Infelizmente, ou não, as mães pretas sempre Simone branca (ou branquinha).
creem que darão à luz a remissão de um sistema Certamente, aos que defendem
que nunca se dobra. Nos dobra na força do braço,
do laço, do ódio, do olho. Mas nascemos todos os o não identitarismo racial, esses
dias e todos os dias alguém crê que parirá a cura apelidos carecem de explicação.
para a vida que nos promete a morte indigna.
O último parto foi diferente. Não teve promes- Mas importa dizer que não, não
sa de cura, só angústia, e em algum momento é ofensivo ser negro. Tampouco
gritaria de fome; outro choro por algum desejo
insaciável. Cecéu sentia remorso por trazer ao
deveria ser elogio ser branco”
mundo outro inocente para sofrer. Sentia re-
morso também por não estar feliz, nem triste,
propriamente. O parto era ao mesmo tempo um O mais velho já tinha 15, ele e os outros maiores
fardo, um alívio e uma desgraça. foram enviados para parentes donos de terras,
O pai não se importava, desde que não lhe re- para trabalhar a vida toda. As meninas maiores
clamassem as dores da fome, nem os desejos das foram casadas com quem viesse pedir. Os me-
vísceras contorcidas pelo que não tinham pa- nores entregues às famílias com posses que os
ra consumir. Não sabia ser pai porque não teve apadrinhavam, sempre separados. Uns viraram
tempo de ser filho, já que os próprios genitores quase filhos, outros cresceram para servir.
morreram em um acidente, enquanto ainda era Minha mãe, Raimunda Lúcia, teve sorte. Não
um bebê. Parece que a mãe não tinha compro- foi escrava. Era quase da família. Foi apadrinha-
misso com a prole, como tinha com o cônjuge. Se da aos dois anos por dona Francisquinha. Viveu
ele, caminhoneiro que era, viajava, ela esposa de lá até se casar com meu pai, por vontade e gosto,
caminhoneiro, viajava também. Dizia que mu- aos 18 anos.
lher de viajante precisava vigiar. Sabia das arti- Meu pai era barbeiro, como seu pai, função
manhas que enredavam os homens. herdada de pai para filho, como quase tudo an-
Ao morrerem juntos, deixaram três filhos. O tes das escolas técnicas. E foi em Barra Mansa
último foi meu avô. Nasceu filho, cresceu filho in- que meus pais se conheceram. Foi lá que nasci,
completo e por toda a vida reivindicou o direito de no barraco azul vigiado pelo Rio Paraíba, os pás-
filiar, mesmo àqueles aos quais deveria ser pai. saros, e os bichos do mato.”
Manoel morreu de infarto. O novo marido de
Cecéu veio logo depois, porque nem era bom mu- (Trecho do livro A Saudade mora em Barra Mansa,
lher sozinha. As crianças foram sendo dadas em homenagem ao meu amigo, o cartunista João
uma a uma. O Jão queria a mulher, queria o co- Bosco Costa)
mércio, queria até responsabilidade. Mas filho
de outro homem, queria não.
A AUTORA CRISTIANE ALVES é professora
de geografia, especialista em Educação
NOTA
Especial na área de Altas Habilidades e
gestora ambiental. Feminista, mulher negra
1 A injúria racial consiste em ofender a honra de al- na luta antirracista, é colunista do portal GGN.
guém, valendo-se de elementos referentes à raça, Cristiane também é autora de Vida Maria,
cor, etnia, religião ou origem; o crime de racismo lançado pela editora Terra Redonda em 2021,
atinge uma indeterminada coletividade de pessoas, Nossas Vidas Pretas, da Desconcertos (2021),
discriminando toda a integridade de uma etnia. [+QR] e Atrás da Porta, da editora Essencial (2022).

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por Mara Magaña EM SUAS CATEGORIAS Brasil de Revistas Ltda. ISSN 2595-6485. A publicação não se
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ANO 8 - EDIÇÃO 97

DIRETORA EDITORIAL
Ethel Santaella

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Algernon
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Daniel Keyes Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
Editora: Aleph Solução Publicidade, Beth Araújo.
Páginas: 288
COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
FICÇÃO NACIONAL GERENTE Paulo Sapata

Autor: Menalton Braff IMPRENSA comunicacao@escala.com.br


Editora: Reformatório
Páginas: 152
Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP
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Telefone: (+55) 11 3855-2100

Culpa, redenção, FILIADA À IMPRESSÃO E ACABAMENTO

liberdade e arte Amar, Verbo


Intransitivo
OCEANO
INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA.
Nós temos uma ótima
Autor: Mário de
Menalton Braff, autor premiado – tem, entre Andrade impressão do futuro
outros, um Jabuti em sua coleção, com À Editora: Nova RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Grá-
Fronteira fica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os
Sombra do Cipreste, sua estreia na literatura Páginas: 200 resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.
em 2000, e um Machado de Assis, da Fun-
2023
dação Biblioteca Nacional, por Além do rio NÃO FICÇÃO
dos sinos, lançado em 2020 –, mostra com REALIZAÇÃO
DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo • COORDENA-
Tocata e Fuga a quatro vozes o porquê de DORA-EXECUTIVA: Juliana Klein – Mtb. 48.542 •
EDITORA DE CONTEÚDO: Mara Magaña - lingua-
ser tão laureado. Um dos maiores ficcionis- portuguesa@fullcase.com.br • DIAGRAMAÇÃO:
Wellington Zanini • REVISÃO: Adriana Giusti • CON-
tas contemporâneos, Braff traz com Tocata SELHO EDITORIAL: Abrahão Costa de Freitas, Ana
e Fuga a quatro vozes um questionamento Maria Haddad Baptista, Anabelle Loivos Considera,
Cristiane Alves, Divanize Carbonieri, Fábio Roberto
pouco discutido nessas paragens: é possível (11) 2809-5910 Ferreira Barreto, Leonardo Garzaro, Márcia Fusaro,
fullcase.com.br Márcio Scarpellini Vieira, Maurício Silva, Ninil Gon-
recuperar alguém privado de sua liberdade? çalves, Roberto Sarmento Lima, Simone Strelciunas
O poder
O romance, classificado como experimental, da cura
Goh. REDAÇÃO: Abrahão Costa de Freitas e Márcio
Scarpellini • COLABORADORES: Aline Fernanda
faz do contraponto a espinha dorsal de sua Autor: Reginaldo Camargo Sampaio, Ana Maria Haddad Baptista, Ana-
belle Loivos Considera, Cristiane Alves, Divanize Car-
estrutura, à maneira do Contraponto, de Al- Manzotti bonieri, Fábio Roberto Ferreira Barreto, Ivy Menon,
Editora: Petra
dous Huxley, e Caminhos cruzados, de Erico Páginas: 176
Juarez Donizeti Ambires, Leonardo Garzaro, Márcia
Fusaro, Márcio Scarpellini Vieira, Maurício Silva, Ninil
Verissimo, seu conterrâneo. É por meio da Gonçalves, Paula Gardenia Lucena Gallego, Roberto
Sarmento Lima. AGRADECIMENTO: Saraiva.
fragmentação que adentramos o mundo de AUTOAJUDA
quatro personagens (um advogado, um di-
retor de presídio, um detento e sua mãe). A FALE CONOSCO
história é fruto de suas palestras realizadas, As Cinco DIRETO COM A REDAÇÃO
a convite da Fundação de Amparo ao Preso Linguagens do redacao@escala.com.br
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reticências
Reflexão de Paula Pagú

Ora, direis, contar histórias…


Essa arte milenar, que nos acompanha desde a antiguidade,
envolve improvisação, interação e elementos agregados

U
m dia minha avó me con- O fato é que ninguém ama igual,
tou histórias de lobos e vive igual ou conta história igual. O
bruxas, e eu nunca mais contador de histórias cria imagens
esqueci. Com você foi as- que nos ajudam a despertar, a viajar
sim também? nas sensações e a ativar, nos ouvin-
Que bom, o mais bonito da vida é ter tes, os sentidos: paladar, audição,
histórias para ouvir e poder contar, em tato, visão e olfato – sinestesia.
qualquer idade e momento de vida. ©1
Quando narramos, trazemos ele-
De todas as escolhas e caminhos DESPERTAR! mentos significativos, como olhares
para contar histórias, o mais importan- Da tradição oral, ao pé das rodas de que falam, gestos, ritmo, entonação,
te é não perder de vista que o principal fogueiras, nós, seres simbólicos e nar- expressão facial, silêncios que in-
foco é o texto literário. E, se falamos rativos por excelência, despertamos o comodam no melhor sentido. Esses
de sala de aula, trazer para esse palco melhor no fantástico e lúdico do in- mecanismos criativos proporcionam
o encantamento e o gosto pela leitura consciente coletivo. Contar histórias é uma interação direta com o público
através delas. acarinhar a alma! Várias terapias, como e implicam improvisação e inter-
Podemos, claro, criar repertório de a biblioterapia, já nos convidaram para pretação daqueles que participam
vocabulário com as histórias, abrir para esse caminho. desse encantamento literário.
o lúdico, entender o mundo, aprender, Ler muito, criar repertório, conhecer O contador pode recriar, modifi-
usar vozes, performances e adereços…, outras culturas e gêneros em seus car o conto junto com seu auditório,
mas é sempre o texto o saboroso ca- textos e contextos é primordial para conservando algumas partes do
minho a trilhar com nossos ouvintes. um contador de histórias trabalhar texto para não perder a proposta
Afinal, contar histórias é a mais antiga várias performances. Assim como narrativa. Criar, sem deixar de res-
e moderna declaração de amor à hu- o ilustrador, somos coautores das peitar a obra.
manidade. Conte uma história e abra histórias que nos propomos a narrar,
os portais do mundo! dando nosso estilo, interpretação e E ENTROU POR UMA PORTA…
Saberemos, ao adentrar essa arte, direcionamento, sem perdermos a Assim como abrimos portais, é
que, com as histórias, teremos valores referência do texto estudado. Cada necessário fechar também.
de vida e sociedade, resgate de nosso um a seu modo, adentra o universo A fechadura pode ser parecida
ser mais íntimo e caro, nossa infância, encantado de ler, reler e recontar. com a abertura dos portais literários.
nossas sombras, o alicerce de nossa Você, adulto, tente contar a história Nada precisa ser encerrado como
estrutura emocional. Quando as conta- de Cinderela numa roda com crianças. um fim, mas como o início de muitas
mos, utilizamos uma forte ferramenta Depois peça para escreverem no papel prosas, linguagens e engrenagens,
para fazermos as pazes com as nossas essa narrativa de tradição popular tão que nos despertam ao mais humano
narrativas de vida. A contação de histó- conhecida, então verá como cada uma e potente que jamais devemos per-
ria nos conecta com nossos antepas- recorda à sua maneira, trazendo seu der, cada um com seu cada um, na
©1: BIELIOLA / ISTOCKPHOTO.COM

sados, dando asas para a criação. conteúdo interno. arte de contar uma boa história!

A AUTORA PAULA PAGÚ (Paula Gardenia Lucena Gallego) é mestranda do programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, professora
orientadora de Sala de Leitura, Coordenadora dos projetos AEL (Academia Estudantil de Letras) Grêmio Estudantil e Imprensa Jovem em sua unidade
escolar, formadora da Prefeitura Municipal de São Paulo. Formada em Letras, Filosofia e Pedagogia, além de psicopedagoga e psicanalista em estágio.

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A profundidade das emoções humanas em duas
peças icônicas do mestre das narrativas curtas.

Para Tchekhov, a força que impulsiona intriga


e ação numa história é a vida interior banal dos
personagens. Para ele, o enredo nem precisa
existir, e essa nova dramaturgia rompeu
com as regras do gênero vigentes no século
XIX. Em “A Gaivota”, Tchekhov nos mostra
personagens em busca de amor e felicidade,
mas que se mantêm fechados em seu mundo,
sem considerar diferentes pontos de vista.
Já em À beira da estrada, a ternura surge
na decadência de um proprietário de terras
arruinado pelo álcool. Ambas as peças mostram
a importância do fluxo da vida para tornar
sublime esses escritos.

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A inesquecível obra-prima
que nos leva a refletir
sobre o amor e seus sacrifícios

Um dos grandes e mais conhecidos


romances do século XIX, o clássico
de Alexandre Dumas Filho, A Dama
das Camélias, conta a história do
amor impossível entre o jovem de
família burguesa, Armand Duval,
e a mais desejada cortesã de Paris,
Marguerite Gautier.
De caráter autobiográfico, a obra é
uma resposta do autor à hipocrisia
dos bem nascidos. Ela retrata os
conflitos entre
a paixão e a convenção social,
abordando temas como a doença, a
morte e a redenção.

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