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Nº 133 - Março 2017 - www.suplementopernambuco.com.

br

HALLINA BELTRÃO
ROBERTO PIVA

UM PASSEIO PELA SÃO PAULO DO POETA E PELAS CONTRADIÇÕES DE SUA OBRA XAMÂNICA
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
Governador

É
Paulo Henrique Saraiva Câmara

sobre Roberto Piva, poeta xamã, Pedro Lemebel que trata da complexa relação Vice-governador
Raul Henry
que falamos no texto principal desta de amor e rejeição entre um homem cisgênero
edição. Piva, um poeta que sempre e uma mulher transexual durante a ditadura no Secretário da Casa Civil
Antonio Carlos Figueira
correu por fora dos grupos poéticos Chile – episódio histórico que também marca a
dos anos 1960 e 1970 – ainda que ficção de Roberto Bolaño. Deste, resenhamos o COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
tenham tentado enquadrá-lo em livro O espírito da ficção científica, que reúne temas que Presidente
diversas caixinhas. Um artista que, em sua cruzada seriam vistos em toda sua obra posterior. Também Ricardo Leitão
contra e mediocridade, se valeu de elementos não movida pela ditadura, a escritora portuguesa Dulce Diretor de Produção e Edição
hegemônicos para erigir seus poemas. Com isso, Maria Cardoso nos faz pensar, na entrevista do Ricardo Melo
ganhou a imagem de subversivo. O que o texto de mês, sobre a relação entre escritor e literatura. Diretor Administrativo e Financeiro
capa desta edição nos traz é essa necessidade de não A partir desta edição, deixamos de contar com Bráulio Meneses
nos deixarmos levar pelas aparências e discursos a colaboração do romancista Raimundo Carrero
já propagados e continuar a visitar a obra do poeta. como um de nossos colunistas. Carrero passa a
E visitar sua biblioteca, em São Paulo, presevada dirigir o jornal cultural Cenas, dedicado à literatura.
por esforços envidados com a ajuda de leitores, por A ele e à sua equipe, nossa certeza de pleno êxito
Uma publicação da Cepe Editora
meio de uma campanha financeira no site Catarse. no desenvolvimento do novo projeto. Contamos, a Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Também nesta edição, uma resenha sobre a partir desta edição, com a colaboração do escritor Pernambuco – CEP: 50100-140
antologia Olhos de azeviche, que se sobressai no Everardo Norões como nosso colunista. Norões, Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
mercado pela proposta de reunir ficções de 10 um dos nomes mais expressivos de nossa ficção,
autoras negras. Uma forma de acompanharmos foi vencedor do prêmio Portugal Telecom (atual SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
o cada vez mais sólido movimento de escritores Oceanos) com seu livro de contos Entre moscas. Luiz Arrais
afro-brasileiros para resgatar seu protagonismo EDITOR
artístico. Ainda trazemos uma ficção inédita de Uma boa leitura a todas e todos. Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hallina Beltrão e Janio Santos
TRATAMENTO DE IMAGEM
Fernanda Miranda, Juan Pablo Villalobos, Juliana Bratfisch, Agelson Soares
doutoranda em escritor, autor de Te doutoranda em REVISÃO
Letras (USP), atua vendo um cachorro Teoria e História Maria Helena Pôrto
com formação Literária (Unicamp), COLUNISTAS
de docentes autora do texto de Everardo Norões. José Castello, Marco Polo e Mariza Pontes
para educação capa desta edição
PRODUÇÃO GRÁFICA
étnico-racial Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
e Sóstenes Fernandes
Aleksandra Kollontai (1872-1952), revolucionária russa, autora de Bases sociais da questão feminina; Bartyra Soares, MARKETING E VENDAS
escritora pernambucana, autora de Enigma; Pedro Lemebel (1952-2015), escritor, cronista e artista plástico chileno, autor de Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
Essa angústia louca de partir; Ricardo Viel, jornalista e editor da revista Blimunda (Instituto José Saramago) E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
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BASTIDORES
JANIO SANTOS

Também somos Juan Pablo Villalobos


*
Fui almoçar com Jordi Soler, escritor mexicano que
mora, como eu, há muito tempo em Barcelona. Contei

do lugar onde os
Em dezembro de 2003, no México, peguei as malas da crise de escrita que eu estava enfrentando. Falei
e fui morar em Barcelona. Tinha ganho uma bolsa da que estava cogitando localizar meu novo romance
União Europeia para estudar um doutorado em Teo- em Barcelona. Que eu queria escrever sobre o que
ria Literária e Literatura Comparada. Planejava ficar ficava perto de mim. Que estava cansado de narrar
dois anos. Máximo três. Mas os planos mudaram um desde o afastamento, desde a distância, que gostaria

filhos crescem
pouco: até hoje, fevereiro de 2017, ainda não voltei. de experimentar, na cotidianidade, aquilo sobre o que
estava escrevendo. Mas que eu sentia pudor (vergonha,
* constrangimento). Que não tinha certeza de estar legi-
Fui morar num apartamento com dois argentinos. timado para escrever sobre Barcelona. Aí, Jordi falou:

Há anos na Espanha, um
Os colegas do doutorado eram peruanos, colombia- – A gente também é do lugar onde os filhos crescem.
nos, brasileiros, mexicanos e catalães. Na metade das
festas, eu ia comprar mais vinho e cerveja nas lojas *
certo mexicano se questiona dos paquistaneses. E, quando precisava de alguma
coisa aleatória (um caderno, um parafuso, uma bola
Mas, peraí: eu não ia deixar de ser um escritor me-
xicano, isso era impossível. Aliás, eu não queria. Eu

sobre a identidade de sua de pingue-pongue), era só caminhar até o chinês


da esquina. As praças do bairro estavam cheias de
queria era incorporar na minha escrita outras influ-
ências, outras tradições literárias, outras maneiras de

escrita. E cria No voy a


okupas italianos, alemães, franceses (descendentes falar o espanhol, outros sotaques, outros olhares. Eu
dos famosos squatters ingleses). Cheios, eles, de ca- queria que minha perspectiva e meu ponto de vista

pedirle a nadie que me crea,


chorros. E logo eu conheci uma brasileira. (Típico.) como pessoa no mundo fossem congruentes com os
Fiquei com ela. E fiquei em Barcelona. dos meus narradores. Eu queria era fazer uma literatura
mestiça. A literatura da Barcelona da imigração, uma

premiado livro que chega ao *


Passaram os anos e eu escrevi três romances me-
literatura da miscigenação.

país em outubro xicanos: Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal


e Te vendo um cachorro. O tema deles era o México. Os
personagens eram mexicanos. O narrador também.
*
Criei um personagem chamado Juan Pablo Villalo-
bos, mexicano. Mandei-o morar em Barcelona para
O cenário, o contexto, o pano de fundo, tudo era fazer um doutorado em Teoria literária e Literatura
mexicano. Mas, quando ia começar escrever meu Comparada. Imaginei que ele alugava um quarto num
quarto livro, 11 anos depois de deixar o México, eu apartamento de dois argentinos. E logo alterei a per-
não era mais só mexicano. E isso começou a ser gunta clássica com a que começa toda ficção. Em vez
um problema. De repente, achava que continuar de me perguntar “o que aconteceria se...”, questionei-
escrevendo a partir dessa perspectiva era incon- -me: “o que teria acontecido se...”.
gruente. Que não era honesto. Eu tinha virado muitas
outras coisas: expatriado, imigrante, pai de dois *
brasileirinhos que também eram mexicanos, mas, O que teria acontecido se eu tivesse caído nas mãos
principalmente, catalães. Eu precisava achar outro de uma rede criminal transnacional, quando eu fui
ponto de vista. morar em Barcelona?

* *
Além do mais, nesses 10 anos, o México também O resultado é No voy a pedirle a nadie que me crea. Um
tinha mudado. O México não era mais aquele país romance policial misturado com autoficção sobre os
onde eu morava, aquela pátria que eu conhecia. limites do realismo. Um romance humorístico que
Dentro de mim, o México estava deixando de ser um contém uma reflexão sobre os limites do humor. Um
espaço real de interação para virar um cantinho de romance com personagens mexicanos, mas também
lembranças. Um lugar, até, imaginário. Cada vez que catalães, argentinos, italianos, chineses ou paquista-
eu colocava a bunda na cadeira para escrever, sentia neses. Um romance mexicano, sim, mas também um
que o cenário do enredo escorregava entre minhas romance mestiço, global, cosmopolita. E, para mim, o
mãos. Eu pressentia o perigo iminente de tornar mais importante: um romance com o qual trilhei um
folclórico, exótico, aquele que tinha sido meu lar. caminho para continuar a escrever. A edição brasileira
de No voy a pedirle a nadie que me crea será publicada pela
* Companhia das Letras em outubro de 2017, com tra-
Li nos cadernos do artista mexicano Gabriel Oro- dução de Sérgio Molina. No voy a pedirle a nadie que me crea
zco: “Não gosto de ir muito longe de casa com o ganhou o Prêmio Herralde 2016, o mesmo prêmio que
objetivo de fazer uma obra de arte. Eu odeio o exótico ganharam, entre outros, Os detetives selvagens de Roberto
nesse sentido. Quero que minha arte esteja perto de Bolaño, O mal de Montano de Enrique Vila-Matas e O
mim e eu perto do que me rodeia”. passado de Alan Pauls.
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RESENHA

Um bolero seco A tarde caía rápido em Cajón Del Maipo. O sol foi in-
terceptado pelos morros e a luz se amoleceu pelas
sombras rasantes de cor laranja. Carlos tirava foto-

para deixar o
grafias, tomava medidas e fazia planos estranhos do
terreno somando metros e perímetros com réguas de
cálculo. Não era sobre plantas o seu trabalho? Sobre
botânica ou flores ou algo parecido? Ela não entendia
direito, não entendia dessas coisas universitárias.

amor apodrecer
Preferia não perguntar para não falar bobagem.
Preferia se fazer de louca, já que ele achava que ela
era boba respondendo sempre: depois te explico.
Por isso deixava ele trabalhar tranquilo, via que
se abaixava sobre o caminho, de barriga no chão.
Trecho de Tengo miedo Olhava como subia e descia a ladeira uma e outra
vez, olhava o precipício, olhava a hora, contava

torero, romance chileno os minutos, ficava pensando, voltava para olhar e


retomava suas anotações. Tentava não interromper,

ainda sem edição no Brasil


fingindo ler a revista Vanidades que tinha levado. A
mesma revista que sabia de cor e que alguma de
suas amigas bichas esqueceu na sala feita de caixotes
em sua casa e da qual ela se apropriou ao descobrir
Pedro Lemebel (Tradução de Alejandra Rojas C.) uma reportagem sobre Sarita Montiel. Posso botar
uma música, toureiro? Carlos levantou o olhar dos
papéis. Como sempre, a Louca o surpreendeu com
sua alucinada fantasia barroca, com aquela ma-
nia de enfeitar até o mais insignificante momento.
Boquiaberto, ficou olhando para ela trepada numa
pedra com a toalha de mesa amarrada ao pescoço,
simulando uma maja banhada de pássaros e anji-
nhos. Garbosa, com seus óculos de gata, sedutora
mordendo uma florzinha, com as mãos enluvadas
de amarelo e os dedos crispados no ar imitando o
gesto andaluz. Divertindo-se olhou pra ela, fazendo
um parêntesis em seu sério trabalho. E foi ele quem
apertou a tecla do rádio cassete, participando como
espectador do tablao, para vê-la girar e girar movida
pela dança, ficando para sempre aplaudindo esses
gestos, esses “beijos bruxos” que a Louca lhe jogava,
apreciando esses lenços carmim que flutuavam em
sua volta, requebrando como um caule na força dessa
dança pé de chinelo, no sapateio descalço na terra
molhada, sobre o limo “verde de verde limón, de verde
albahaca, de verde que te quiero verde como el yuyo verde de
tanta espera verde y negra soledá”.
Nunca mulher alguma tinha provocado tamanho
cataclismo em sua cabeça. Nenhuma tinha con-
seguido desconcentrá-lo tanto, com tanta loucura
e leveza. Não lembrava nenhuma namorada, das
muitas que rondaram seu coração, capaz de fazer
esse teatro por ele, ali, em pleno campo, sem mais
espectadores que as montanhas engrandecidas pela
sombra do crepúsculo. Nenhuma delas, falou ele
baixinho, com os olhos baixos e confusos. Tentava dos ônibus, onde essa esfregação de panturrilhas
recuperar o pulso de sua emoção. Procurava voltar era sintoma de outra coisa, uma proposta para tocar,
ao raciocínio frio dos números e das equações de amassar e esfregar uma sucuri na rota sem pedágio.
tempo que requeria a elaboração do seu plano. O Por isso congelou a cena e retirou a perna com um
dia avançava rápido e não haveria uma segunda gesto recatado e se aconchegou na janela como uma
oportunidade para corrigi-lo. Por isso lhe pedia, pombinha, deixando-se envolver pelo esgotamento
por favor, que por um instante, apenas meia hora, luminoso daquele dia.
deixasse de olhar assim para ele, com essa lavareda Ao chegar, o bairro parecia um vilarejo de provín-
escura queimando sua virilidade, demandando seu cia, apenas iluminado por umas poucas luzes que se
carinho. Que por favor parasse a música, essa fita salvaram dos apedrejamentos. As crianças corriam
cassete pressagiando desgraça, esse disco de bordel pela rua se esquivando do carro, e, na esquina, a
antigo ensanguentando a tarde por antecipação. mesma patota de jovens submersos na nuvem azeda
Que depois poderia ouvi-lo quantas vezes quisesse, da erva. No ar intumescido do anoitecer, se ouviam
mas agora era urgente terminar o trabalho. A luz os rádios tocando o rock brega de Led Zeppelin, os ar-
já é tênue, faltam algumas fotos e temos tempo só pejos revolucionários de Silvio Rodriguez e o ressoar
até as seis. vibrante do flash noticioso no armazém da esquina:
Na viagem de volta quase não falaram. Ela dormiu
junto à janela e ele a cobriu com sua blusa cor de Cooperativa, a rádio da maioria. Manola Robles informa:
pimenta. Na realidade, ela não dormia, só estava Um comunicado do Ministério da Casa Civil declara que
de olhos fechados para se repor de tanta felicidade a invasão domiciliar executada hoje pelos serviços de
e poder retornar sem drama à sua realidade. Era segurança do país, em várias favelas, teve como objetivo
muita emoção para um dia só e preferia não falar, a apreensão de armas de grosso calibre, assim como
não dizer nada para não entorpecer essa alegria. numeroso material impresso chamando à rebelião. O
Estava quieta, embalada pelo barulho do motor, material pertence ao movimento Frente Patriótico
quase sem respirar, quando sentiu as mãos de Carlos Manuel Rodríguez.
agasalhando-a com a tepidez da lã de sua blusa.
Assim, extasiada, se fingiu de bela adormecida para Uff! Baby, finalmente chegamos. É preciso tirar
cheirar a vertigem erótica de sua axila fecunda, essa as coisas do carro com cuidado porque... Shhh!
fragrância de maratona, de vestiário esportivo no Carlos pediu silêncio para ouvir atento as notícias
côncavo cheiroso de seu corpo, deixando-a zonza, da rádio. Ela também ouviu, mas não se preocupou.
incitando seus dedos de tarântula a deslizar-se pelo Nenhuma notícia poderia ofuscar esse romântico
banco do carro até tocar essas coxas duras, tensas momento do adeus. Por isso, pegou seu chapéu
por causa do acelerador. Mas se conteve, não podia amarelo com flores silvestres, juntou as tralhas
aplicar no amor as lições sujas da rua. Não podia do piquenique, entrou em casa e subiu pela esca-
confundir, nem mal interpretar os contínuos toques, da, esperando que Carlos subisse atrás dela para
sem querer, da perna de Carlos em seu joelho. Não despedir-se. Mas o violento barulho do acelerador
era a mesma eletricidade pornô vivenciada dentro fez com que ela voltasse e mal conseguisse ver a
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HALLINA BELTRÃO

traseira do carro virando a esquina, numa fuga


apressada, como se com essa abrupta partida fu-
gisse do seu romance campestre, de seus cheiros
Como sempre, a Se sentia constrangida com essa cortesia de menino
educado. Se não fosse por isso, se não fosse porque
gostava tanto dele, afloraria sua alma vagabunda e
de malva e rosa.
Nada é perfeito, falou fechando a porta, colo-
cando as flores na água, abrindo todas as torneiras
louca o surpreendeu ordinária e mandaria tudo à merda. Não a assustava
ficar sozinha de novo porque, certamente, não faltaria
o vagabundo que, por um prato de comida, pagaria
para que esse ressoar de cataratas soltasse o nó
fluvial que se acumulava em seu peito. Nada é ideal, com sua fantasia com uma boa foda. De fato, nunca faltavam os ga-
rotões que, se fingindo de amáveis, carregavam as

barroca, com
insistiu sentindo o calor da tristeza umedecendo sacolas da feira, e depois de fechar a porta, dentro de
seu olhar, descolorindo a aquarela azul das flores casa, ela não precisava fazer nem dizer nada porque
murchas que esperavam o orvalho amargo e teatral eles, sem rodeios, diziam: então, já que você mora

aquela mania de
do seu pranto. Mas não conseguiu chorar, por mais sozinho, quem sabe, podemos nos divertir, ando louco
que tenha se esforçado em lembrar canções tristes de vontade. Nunca faltavam os passageiros do toque
e arpejos sentimentais, não podia desaguar o oce- de recolher, esses maconheiros que ficavam até tarde
ano atormentado de sua vida. Esse bolero seco que
emanava tantas letras de amores peregrinos, tanta
lírica dor de cotovelo, de amor barato, hemorragia
enfeitar até o mais reunidos nas esquinas sem poder voltar pra casa com
medo de serem presos. Sobravam os desempregados
que por umas moedas, por um cigarro, por uma cama
de amor com “tinta sangre”, maldito amor, “yo que todo
te lo di”, “tu querias que te dejara de querer”, “tu te quedas yo
me voy”, “tu dijiste que quizás”, “tu me acostumbraste y por
simples momento quente lhe faziam o favor sem trâmite. E ela não pre-
cisava de muito verso e esforço para que a quisessem
apenas por um momento. Não precisava esgotar-se
eso me pregunto”. Amores de folhetim, de panfleto grato. Alguém tão enigmático, capaz de ir embora desse tentando parecer fina e elegante. Não era necessário
amassado, amores perdidos, revirados na dança jeito, sem dar nem tchau. Achando que pode pegar tecer olhares de coração para que Carlos, só de vez
triste do marica sozinho, o marica faminto de “besos e largar, como se fosse um objeto, uma caixa a mais em quando, a abraçasse como amigo, deixando-a
brujos”, o marica drogado pelo tato imaginário de que faz parte da decoração. Sempre falando: depois tão excitada, que se sentia culpável por desejar esse
uma mão pandorga tocando o céu turvo de sua car- eu explico, você não entende, amanhã conversamos. corpo proibido. Tudo seria mais fácil se não tivesse que
ne, o marica infinitamente preso pela lepra boiola Acreditava que era uma bicha bobinha, apenas um suportar o feitiço de sua presença. Voltaria a vadiar na
em sua gaiola, o viadinho frufru aprisionado em porão para guardar caixas e pacotes misteriosos? O que rua pegando vagabundos e ereções momentâneas com
sua teia de aranha melancólica de maquiagens e está achando esse pirralho de merda? Será que pensava o arpão de sua pesca milagrosa. E o amor, enluvado
embelecos, o marica fifi alinhavado nos pespontos que ela não percebia? Que reuniões de barbudos eram nesse nome amaldiçoado, deixaria apodrecer com
de sua própria trama. Tão sozinho em seu casulo, aquelas em sua casa? Por que tanto estudar? Se fingia os restos do piquenique, com os ossos do frango que
que nem conseguia chorar sem ter um espectador de zonza só por causa dele. Se aguentava tanta lorota fermentariam nessa ladeira do Cajón del Maipo. Onde
apreciando o esforço de encenar uma lágrima. sobre os livros das caixas era porque estava lhe fazendo nunca voltaria, onde jamais voltaria a dançar como
É como devolver pérolas ao mar, concluiu sacudindo um favor. Mas não suportaria humilhações. O que uma velha ridícula para esse malnascido.
as flores, espalhando faíscas de vidro no ar carnava- está achando esse pentelho abobado? Que pode me
lizado pelo seu gesto travesti. Carlos não merece nem tratar assim? Acha que porque é universitário, bonito Tengo miedo torero foi o único romance que o chileno
uma lágrima, nem mesmo uma gota. De jeito nenhum e jovem e com esses olhos tão... Só por ele se fingia de Pedro Lemebel (1952–2015) lançou em sua carreira
desperdiçaria a joia de sua tristeza com alguém tão in- dama, só porque esses olhos amáveis a intimidavam. literária. A tradução ainda não tem editora no Brasil.
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ENTREVISTA
Dulce Maria Cardoso

Uma romancista
influenciada pela
memória do exílio
Sucesso em Portugal, escritora fala do lugar da literatura
em sua existência e conta como seu começo na escrita
se relaciona com o retorno ao país após a ditadura
DIVULGAÇÃO

Você tinha 11 anos quando teve que deixar


tudo em Luanda e vir para Portugal. Foi
uma partida comentada em família, deu
tempo de pensar no que ficaria para trás?
Meus pais não eram muito de conversar,
mas de repente estávamos em guerra, e
a guerra civil era muito notória, as coisas
fechavam, as escolas fechavam, as lojas
fechavam, não havia pão. E os vizinhos
iam todos embora. Claro que mesmo uma
criança percebe que não há retorno. E o
meu pai também percebeu, mas não podia
perder a esperança. Dizíamos: a escola
fechou. E ele dizia: não tem problema, vai
abrir outra vez.

O fato de nunca mais ter voltado a Angola


tem a ver com o medo de mexer com
lembranças dolorosas?
Não, isso não, eu estaria disponível para
arriscar. Tem que ver com a questão de que
os convites que tive foram sempre vindos
de instituições ligadas ao regime, e de
alguma maneira acho que não faz sentido
aceitar, já que estou sempre a criticar o
poder político angolano.

Ou seja, voltar não é algo que descarte.


não com tanta qualidade e profundidade, a Sim, claro, a partir do momento em que
Entrevista a Ricardo Viel questão dos retornados – aqueles portugue- seja uma democracia.
ses que, por conta da descolonização, vol-
Está sentada à mesa com a família, sabe que é taram da África para Portugal praticamente Isso de pensar “preciso decorar” não
a última refeição naquela casa, naquele país, com a roupa do corpo. Cerca de meio milhão foi já a decisão de alguém que quer ser
naquela vida. Lá fora há uma guerra, os vizi- de pessoas desembarcaram em Lisboa em escritora? Reter para depois contar.
nhos foram embora, e chegou o momento de poucos meses. No princípio, acho que o que eu queria
partir. Era 1975, em Luanda, capital da Ango- Até esse romance, Dulce havia publica- era não esquecer. Queria guardar aquilo
la, então colônia portuguesa, e Dulce Maria do Campo de sangue (2002), Os meus sentimentos sempre comigo. Sabia que nunca mais
Cardoso tinha 11 anos. Como não conhecia a (2005) e O chão dos pardais (2009), todos eles voltaria, ou, pelo menos, que tão cedo não
palavra “memorizar”, disse para si mesma que premiados e editados no Brasil, mas foi com voltaria, e sabia que aquilo que estava a ver
precisava “decorar” - como fazia na escola - o o livro sobre os efeitos da descolonização nunca mais veria. Mais tarde, quando cá
que estava vivenciando. Era preciso guardar que a escritora chegou ao grande público cheguei, é que foi mais nesse sentido: um
consigo os cheiros, as pessoas, a paisagem, os e viu sua obra ser traduzida a mais de uma dia eu vou contar esta história.
últimos instantes, porque intuía que aquela dezena de línguas.
partida significaria o fim de muita coisa. Numa tarde em Lisboa, concedeu esta en- E depois vem essa coisa tão engraçada
Dulce Maria Cardoso cresceu, tornou-se trevista em que diz que a literatura não é o que você conta, que, como não sabia
escritora, e em 2011 publicou O retorno, livro centro da sua vida, mas, sim, os seus afetos, e como se tornar escritora, foi aprender a
que foi um marco não só na sua carreira, mas que, se nunca mais publicasse, não se sentiria escrever à máquina.
na literatura do seu país. Até então, ninguém frustrada, porque muito do que gostaria de (Risos) Foi assim: quero ser escritora.
havia tratado a partir da ficção, pelo menos dizer já está dito. Qual é o curso para ser escritora? Eu
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Sempre contei que Não quero ter


minha história com um estilo. Talvez
a escrita tinha a ver minha identidade
com a volta ao país. se constitua tão
Então, acho que fora da escrita,
esperavam que eu que ter um estilo
falasse do retorno não me interessa
perguntava para qualquer sobre os retornados. Já se E escrever, poderia Nem quero. Não são parecidos repita. Dificilmente aquela
adulto que achava que podia falava nisso... Foi um livro deixar de escrever? e não pretendo isso. Não fragmentação de O chão dos
saber, e todos me respondiam muito aguardado, não foi? Escrever tem que ver com pretendo ter aquilo que se diz pardais torna a acontecer, como
mais ou menos o mesmo: Como de alguma maneira ter alguma coisa para dizer. que é um estilo, em que se dificilmente o coro do Campo
não havia curso. Durante eu ia contando a história de A minha maneira de me pega numa folha e se pensa: de sangue. Ou seja, dificilmente
anos, isso me angustiou como comecei a escrever e relacionar com o mundo passa ah, aqui está ele. Talvez a as coisas tornam a acontecer,
profundamente. Médico tinha a relacionava com o fato de pela escrita e, se calhar, é quase minha identidade se constitua porque dificilmente eu vou
curso, advogado tinha curso, ter vindo para cá (Portugal), impossível eu não sentir essa de tal maneira fora da escrita estar interessada naquelas
como é que escritor não tinha? acho que as pessoas ficaram pulsão. Neste momento, ainda também, que nunca me personagens outra vez, e
Então, um dia, vi num filme sempre à espera de que um dia tenho coisas que quero fazer. interessou isso. Quer dizer, as personagens de alguma
um escritor a datilografar e escrevesse sobre isso. Como se, Mas se um dia deixar de ter... Da interessa-me que as pessoas maneira ditam a maneira como
achei: é isso. Eu tinha 14 anos ao contar a história de que tive mesma maneira que demorei que eu amo me reconheçam eu falo delas. Isso vê-se nos
e convenci os meus país e um acidente grande e fiquei imenso tempo para publicar, no meio da multidão, isso meus contos. Tenho contos
me colocaram num curso. muito tempo hospitalizada, não escrever não me aflige. interessa-me muito. E que com linguagem de internet,
ou que estive para morrer Como contei, desde criança saibam, vendo um bocadinho com linguagem rural, com
Mas, se você queria ser afogada, ficassem à espera (de quis ser escritora, mas demorei de qualquer coisa minha, linguagem quase bíblica, com
escritora, o caminho mais fácil um livro). Tudo isso é verdade, até os 37 anos para publicar, e identificar. Agora, que um linguagem administrativa, e
era ter ido estudar literatura, mas eu nunca escrevi sobre nem nunca me abeirei de uma leitor leia uma frase minha e não há nenhum que eu diga:
não? Porque foi fazer Direito? isso. A vida das pessoas é feita editora, de um crítico ou de saiba que sou eu? Cada livro gosto mais desse estilo do
Não quis. Quando pude de muitas peripécias, mas um professor para tornar isso me fala de coisas tão diferentes, que do outro. Não, eles estão
escolher, eu já sabia que havia nem todas são aproveitadas possível. A única coisa que que seria muito estranho eu adequados, no meu ponto de
pessoas que sempre tinham na literatura, servem para fazia era concorrer a concursos estar sempre a escrever da vista, àquilo que eu estava a
estudado os livros e achei que uma proposta literária que eu anônimos, e aí até havia mais mesma maneira. Seria como querer dizer naquela altura.
isso me iria limitar muito, que queira partilhar. Por exemplo, a ideia do prêmio como uma se eu fosse a todas as ocasiões
eu ficaria muito formatada. esses dois acontecimentos maneira de ganhar dinheiro, da vida com a mesma roupa. Pensa na sua obra no
da minha vida, o de ter tido já que tinha desistido da O estilo é uma coisa exterior, o futuro, em como a escritora
Quando foi estudar Direito, uma acidente muito grave e de advocacia. Da mesma maneira que é importante, penso eu, é o será lembrada?
imaginava que seria uma ter estado a morrer afogada, que, sabendo que era o que eu que tem para se dizer. É-me bastante indiferente.
advogada que escreveria eu lembro-me de tudo. queria, pude estar tranquila sem Espero que as pessoas
livros, pensava em conciliar? me mexer até os 37, posso estar É como se cada livro exigisse próximas recordem mais
Sempre achei que o que eu O último romance que você tranquila agora, muito mais um estilo diferente, então. pelas gargalhadas que dei,
iria ser era escritora, mas publicou é de 2011 e teve muito tranquila. Porque, na verdade, E sirva para aquilo que estou pelos jantares que gostava
tinha que fazer um curso, até sucesso. O seu próximo é muito alguma das coisas que eu queria a trabalhar. Por exemplo, o de fazer, pelas festas, e que
porque fazia parte de uma esperado, mas você parece que dizer, já as disse. Já têm o seu desafio maior de O retorno foi digam que eu gostava muito
vontade dos meus pais que eu não tem pressa. Lembro que caminho. Se eu puser tudo o ter encontrado aquela voz de dançar. Os livros vão estar
respeitava. Eles não puderam uma vez me disse que, se não que já escrevi, tirando as coisas de um adolescente, eu que aí, se estiverem, e as pessoas
estudar e tiveram um grande publicasse mais nada... avulsas, já é imenso. sou muito mais velha (que vão continuar a ler ou não ler,
desgosto por isso. Deram-me Já estava bem. Há aquelas o narrador) e nunca fui um e dizer coisas ou não, mas isso
a oportunidade e eu sentia que pessoas que dizem que Possivelmente, muitos leitores rapaz, evidentemente. Agora, é-me mais indiferente. Quer
lhes devia fazer. E também nasceram para escrever, que estão à espera disso. o que é que me interessa andar dizer, se os livros continuarem
era uma maneira de ser mais sem escrever morreriam. Eu Talvez até gostassem. Mas o que aqui a escrever só livros como a fazer o que têm feito até aqui,
independente, se tivesse uma não. Eu gosto de escrever, acho é que me interessa? Já está feito. adolescente? Ou escrever ótimo. Senão, também, segue-
licenciatura, tornar-me-ia mais que é o que faço melhor, mas a livros com uma linguagem se o curso natural, enquanto
capaz no mercado de emprego. escrita não é o centro da minha É verdade, os seus livros, tão poética como Os meus alguém se lembrar de nós
vida. O centro da minha vida embora haja alguns assuntos sentimentos? Naquela altura, não estamos esquecidos, não
Numa entrevista de 2009, são os meus afetos, isso é que recorrentes, em termos e para aquele tema, aquilo morremos completamente.
portanto dois anos antes de me faria parar de viver. Se eu de estrutura, de forma interessava-me. Achei que Os livros não são o autor,
sair O retorno, perguntam se perdesse todas as pessoas que de narrar, eles não têm estava certo, mas agora já não são uma coisa que o autor
não iria escrever um romance eu amo, sucumbiria. semelhança nenhuma. me interessa. Dificilmente fez, mas não são o autor.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

Everardo
NORÕES
Às vezes, um texto que elegemos é tão cativante, seu país, fez o recitativo dos poemas de Nazim
que nos apropriamos dele e o tornamos nosso, Hikmet. Um deles, Passeio ao entardecer, tem uma
íntimo. É o que confessou Carlos Drummond de estrofe que diz assim:
Andrade no prefácio que fez ao Poemas. Era o pri-
meiro livro de Joaquim Cardozo, editado em 1947 As lâmpadas do merceeiro se acenderam,
pelos amigos, em comemoração ao seu aniversário o cidadão armênio nunca perdoou
de 50 anos. Drummond comentou o espanto que que tenham degolado seu pai
lhe havia causado a leitura de A nuvem Carolina. Mais sobre a montanha curda.
tarde, numa entrevista, contou tratar-se de um Mas ele te ama,
dos poemas de sua preferência. Nele, é narrada porque também nunca perdoaste

Das nuvens
a conversa entre o poeta de Signo estrelado e uma aqueles que marcaram com essa mancha negra
nuvem com gestos de mulher, no seu “voo viúvo o rosto do povo turco.(...)
de uma asa”. Um diálogo nada estranho para um
artista como Joaquim Cardozo, para quem inter- O Ministério da Cultura da Turquia gravou o Oratório.
pretar acenos de uma nuvem era algo pertinente. Sabe-se, no entanto, que na edição oficial do CD foi

plácidas e de
Ele, que considerava possível tudo transformar em mantido dessa estrofe apenas o verso As lâmpadas do
linguagem, a ponto de ter cogitado gravar os sons merceeiro se acenderam. Os outros foram suprimidos, numa
do movimento das ondas do mar para traduzi-los acrobacia da censura para tentar encobrir uma alusão
em palavras. ao episódio do massacre dos armênios pelos turcos.

mau agouro
Pensar “nuvens” e “preferências” me ocor- No holocausto, ocorrido em 1915, foram assassina-
reu ao assistir, numa “nuvem” internéti- das mais de 1 milhão de pessoas. Meio século após
ca” do Youtube (https://www.youtube.com/ sua morte, os versos de Nazim Hikmet continuavam
watch?v=e32iN2rmUXs), ao Oratório Nazim, da au- impedidos de voar livremente, como as gaivotas de
toria de um pianista e compositor de origem turca, seu Mar de Mármara.
Fazil Say, que já se apresentou na sala Osesp, de São Introdutor do verso livre na poesia turca, foi ele
Paulo, em maio de 2015. Descobri que o homena- quem abriu a poética de sua língua à modernidade.

A imagem do branco no geado no Oratório Nazim, que dá título à composição,


era o poeta turco Nazim Hikmet (1902–1963). A
Apesar de ter sido um dos mais importantes autores
do século XX, em razão de sua ideias, passou mais de

céu une poetas e faz pensar


peça, composta para as comemorações de seu 15 anos em prisões. Uma delas, a de Bursa, é a mesma
centenário, teve sua estreia num espetáculo gran- onde o estudante norte-americano Billy Hayes esteve
dioso, do qual participaram a Orquestra Sinfônica preso e dela se evadiu em 1975, história que serviu de
sobre o Brasil de hoje da Presidência da República da Turquia e o Coro
Polifônico do Estado. Foi regida pelo próprio autor,
roteiro ao filme Midnight Express.
Nazim Hikmet, como Joaquim Cardozo, também
Fazil Say. Genco Erkal, o mais consagrado ator de foi “apaixonado” por uma nuvem. Seu conto A
ZENIVAL/DIVULGAÇÃO

POESIA EM ÁUDIO
Marco Celina de Holanda é celebrada em CD com seleta de
Polo poemas declamados por vozes femininas da cultura de PE
A poeta Celina de Holanda Maria de Lourdes Hortas,
(imagem, 1915-1999) foi Eugênia Menezes, Adriana Paes
homenageada com o lançamento Barreto, Lucila Nogueira, Lourdes
do CD Celina de Holanda e as Mulheres Sarmento, Marina Nogueira e
da Terra . São 50 poemas nas Tereza Tenório. A iniciativa é
vozes de Vernaide Wanderley, uma coprodução das secretarias
Maria Pereira Albuquerque, de Cultura e de Educação da
Myriam Brindeiro, Fátima prefeitura do Cabo-PE com a

MERCADO Ferreira, Socorro Torres, Tereza


Helena, Dione Barreto, Andréa
Nordestal Editora. A direção
artística é de Jorge Lopes. Celina

EDITORIAL Mota, Zuleika Ferreira, Ceci


Alencar, Cida Pedrosa, Marcela
de Holanda teve sua obra poética
publicada pela Cepe Editora, no
Cavalcanti de Albuquerque, livro Viagens gerais.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com relevância
cultural nos vários campos do
conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham os
seguintes requisitos: originalidade, correção,
coerência e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero da


criação artística ou área do conhecimento
científico, consideradas fundamentais para o
nuvem amorosa é a história de um lugar imaginário, da Turquia e motivado pela recente Revolução de
patrimônio cultural;
“o país da Flauta”. Nele, o personagem Seyfi, o Outubro. Maiakovski, Nazim Hikmet e Joaquim
Negro, é o senhor de tudo: montanhas, caravanas Cardozo observavam o poeta não como um ser
de camelos e imensas pastagens. De sua cobiça, social ocioso, mas um operário do verso. E a poesia, 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
apenas havia escapado o deslumbrante jardim de uma atividade tão importante quanto as forjas das sem as modificações necessárias à edição e que
Aïchê. Seyfi faz de tudo para se apropriar dele e, maquinarias modernas. contemplem a ampliação do universo de leitores,
para manter o domínio sobre todas as terras, chega A respeito de Nazim Hikmet, anotei no livro Melhores visando a democratização do conhecimento.
a pedir ao Diabo que o destrua. Mas Aïchê decide mangas que de sua prosódia nos chegam versos,
enfrentar Seyfi com o apoio de amigos como a maçãs, amêndoas, nuvens.E os sons das flautas da
Lebre, o Pombo e, sobretudo, uma Nuvem. A nuvem Anatólia continuam a celebrar o homem sentado II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
amorosa é um conto metafórico que incita a pensar contra a parede branca da prisão, que canta: Meu país: sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
sobre as lutas que nos movem e revela o quanto Bedredin, Sinan, Yunus Emre e Sakary,cúpulas de chumbo, proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
a força de uma escrita poética pode ser capaz de chaminés de fábricas – todos trabalhos de meu povo... sobre a publicação.
despertar sentimentos. Numa viagem à Turquia, experimentei alguma
Nazim Hikmet e Joaquim Cardozo foram contem- intimidade com coisas ou pessoas parecidas com
porâneos. É bem possível que tenham tido conheci- as que figuram na grande epopeia desenhada pelo III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
mento um do outro, embora sobre isso não se tenha autor de A nuvem amorosa. Numa loja de tapetes, no papel A4, conforme a nova ortografia, devidamente
registro. Sabemos da amizade entre Nazim Hikmet interior do país, partilhei com um professor turco a revisados, em fonte Times New Roman, tamanho
e o poeta russo Vladimir Maiakovski, que também emoção trazida pela leitura dos poemas do autor de 12, páginas numeradas, espaço de uma linha e meia,
teve sua “nuvem”, a do poema A nuvem de calças, no A nuvem amorosa. Desse encontro, trouxe um tapete sem rasuras e contendo, quando for o caso, índices
qual escreveu (na tradução de Manuel de Seabra) que de oração e a recomendação para ler o romance
e bibliografias apresentados conforme as normas
Memed, meu falcão, de Yasar Kemal (1923-2015), outro
Se quiserem, grande clássico da literatura. técnicas em vigor. A Cepe não se responsabiliza
serei apenas carne louca No ano passado, mais de meio século após a por eventuais trabalhos de copidesque.
e, como o céu, mudarei de tom, morte de Nazim Hikmet, foi publicada pela Edi-
se quiserem, tora 34 a primeira tradução brasileira de seu livro IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
serei impecavelmente delicado, Paisagens humanas do meu país. Seu tradutor, Marco
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
não serei homem, mas uma nuvem de calças! Syraiama, foi o vencedor do prêmio Jabuti 2011,
pela tradução de um outro clássico da literatura violência e as diversas formas de preconceito.
Os dois amigos conviveram em meio aos es- turca, O livro de Dede Korkut.
critores do movimento futurista russo, no início Embora pareça paradoxal, a leitura de um livro de V Os originais devem ser encaminhados à
dos anos 20. Nessa época, Nazim Hikmet morou poemas, vindo de uma Turquia que nos repercute tão Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
na antiga União Soviética, fugido da perseguição, distante, quem sabe nos fará compreender melhor seguir, sob registro de correio ou protocolo,
após ter tomado parte na luta pela independência essa nuvem de mau agouro que ora atravessa o Brasil.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não serão


devolvidos.

VII É vedado ao Conselho receber textos provenientes


de seus conselheiros ou de autores que tenham
vínculo empregatício com a Companhia Editora
de Pernambuco.
LIÇÕES PORTUGUESAS MERCADO

Editora publica obra de auto- Com reformas amplas e significativas, editoras lançam Companhia Editora de Pernambuco
ajuda de Fernando Pessoa mão de formas alternativas para poder atravessar a crise Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
A editora Tinta da China lança Dois ex-funcionários da Cia. Brasileira do Livro, diante da CEP 50100-140
o livro Como Fernando Pessoa das Letras deverão lançar nova crise é preciso se reinventar. É
Recife - Pernambuco
pode mudar a sua vida, de Carlos (e enxuta) editora no segundo o que está fazendo o mercado
Pittela e Jerônimo Pizarro. semestre deste ano. Duas editorial brasileiro com estruturas
Entre as lições (acredite): como profissionais que pertenceram mínimas, mas eficazes, e meios
desrespeitar acordo ortográfico, à extinta Cosac Naify também alternativos. São exemplos disso
como interpretar narizes, como criaram a pequena Ubu. A o comércio online, transformar
reinventar o futebol. A obra quer Carochinha funciona com os impressos em e-books, o
desmistificar a imagem de que apenas dois editores e dois apelo ao crowdfunding (tipo de
Pessoa era um sujeito isolado estagiários. A Jujuba tem três financiamento on line antecipado).
e fantasmagórico, mostrando funcionários e setores financeiro As coedições também são vistas
como era atento ao mundo e e de divulgação terceirizados. como modelo de dividir custos e
cheio de projetos e sonhos. Segundo o presidente da Câmara reaquecer o mercado.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

CAPA

HALLINA BELTRÃO

O xamanismo que
Piva chama de poesia

As contradições do poeta São quatro da tarde e saio caminhando pelas ruas do


centro de São Paulo desejando recolher o que resta de
Quando lemos grande parte da bibliografia sobre o
autor, temos a impressão de que sua recepção desde

ainda contaminam a
uma cidade não vivida que apenas imagino a partir o lançamento de Paranoia foi se delineando como um
dos livros de Roberto Piva. Num sopro nostálgico, caso mais ou menos isolado: primeiro, na década
identifico esquinas míticas, bares reformados, pré- de 1960, um silêncio moralizador da crítica conco-
produção literária do Brasil dios, parques, estátuas, mas os dentes da memória
rangem bem-afiados e o tempo pesa demais na pai-
mitante com uma leitura que o filia diretamente ao
Surrealismo; depois, na década de 1970, a estranha
sagem. Esse garoto ouvindo pela milésima vez Deu união entre sua produção e os demais 25 poetas da
Juliana Bratfisch onda, caminhando pela Praça da República, nada se antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda;
parece com aqueles jovens que perambulavam por ali nas décadas seguintes, a “cooptação” de sua poesia
60 anos atrás, sempre com um livro de Lorca, Artaud, pela literatura homoerótica; por fim, a posição que
Ginsberg ou Jorge de Lima nas mãos. Numa última ele ocuparia desde o lançamento de suas Obras reunidas
tentativa delirante, me detenho em um detalhe da pela Editora Globo, a conquista de um público mais
paisagem: olho para o topo do Edifício Copan, mas amplo e uma eterna redescoberta.
ali tampouco estão Polén e Luizinho gozando todo Sua poesia, entretanto, nunca deixou de ser lida,
o esperma do universo. O pouco que resta desse principalmente nos meios jovens da contracultura. No
delírio nostálgico que nasce da leitura de uma obra ensaio publicado na Coleção Ciranda da Poesia, publicado
talvez possa ser encontrado no meu destino, o se- em 2012 pela editora da UERJ, Sergio Cohn explicita
gundo andar do número 108 da Avenida São João, a importância da descoberta de Piva em sua própria
na Biblioteca Roberto Piva, onde se encontram hoje formação e relata as inúmeras tardes passadas na Bi-
reunidos os livros, alguns manuscritos e rastros de blioteca Mário de Andrade pesquisando referências
uma obra poética importantíssima, no entanto, mais guiadas pelos livros de Piva e Willer, copiando à mão
conhecida pelo culto à figura do autor excêntrico que poemas dos autores que encontrava. Enquanto editor
pelo estudo sistemático de seu texto. da revista Azougue, Sergio Cohn sempre esteve atento
Se tentarmos inseri-lo em uma história da poesia não apenas em publicar os poemas de Piva em diversos
brasileira a partir da década de 1960, Piva resiste como números da revista, incitando a formação de novos
uma voz destoante, mas talvez o silenciamento em leitores, como também em abrir espaço ali para a
relação à sua obra e o boicote que tem se propagan- circulação de poetas que conviveram no mesmo pe-
deado dentro dessa história precisem ser reavaliados. ríodo, elegendo suas referências literárias como uma
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

baixo orçamento, parece ter sido de suma importância


para a circulação da poesia de Piva entre os leitores
desse gênero (além de um novo período de publicações
inéditas do autor que se inicia com Abra os olhos & diga
Ah!, em 1975). Um outro movimento que parece fun-
damental colocarmos nessa conta seria a publicação
de sua Antologia poética pela editora L&PM, em 1985, de
ampla circulação no mercado editorial. Sua recepção,
portanto, parece ter sido menos subterrânea do que se
propaga, acompanhando o mercado editorial de sua
época e formando assim novos leitores de poesia a cada
surto editorial. É inegável, entretanto, que o estudo de
sua obra no meio universitário realmente seja recente e
possivelmente consequência do lançamento das Obras
reunidas pela editora Globo.
Quando entro na sala em que estão sendo organi-
zados em diversas estantes os mais de cinco mil livros
da biblioteca, vislumbro a importância de manter
esse espaço, conservando a unidade do acervo do
autor, que propicia uma leitura mais consistente de
sua obra. Consultados sobre a tentativa malograda
de vender a biblioteca para instituições universitá-
rias, tanto Gustavo Benini, detentor dos direitos e ex-
-companheiro de Piva, como Gabriel Kolyniak, editor
da Córrego – editora encarregada da publicação dos
inéditos – e responsável pelo espaço na Avenida São
João, chamam a atenção para a burocracia existente
e para o risco de diluição da biblioteca do poeta em
coleções maiores, acentuando a falta de interesse por
parte das universidades em obras sobre xamanismo,
candomblé, umbanda e ocultismo, fundamentais para
compreendermos a poesia de Piva.
Piva costumava dizer que a poesia é sempre uma
expressão xamânica e em diversas entrevistas retomou
a definição de Octavio Paz de que a poesia é a perversão
do corpo para justificar sua posição. Dos surrealistas,
da geração beat, dos clássicos como Dante e Rimbaud,
do xamanismo de Mircea Eliade, dos cantos xamânicos
dos índios navajos e das diversas outras obras menos
ortodoxas que compõem sua biblioteca, talvez o mais
importante tenha sido sua capacidade de transmutar
todas as suas leituras em experiência vital, para só
assim transportá-las ao corpo do poema. Sobre o longo
intervalo entre a publicação de Piazzas e Abra os olhos &
diga Ah!, 12 anos nos quais ele afirma ter ficado sem
escrever poesia, Piva dizia que, como escrever era
muito desgastante, se fazia necessário “cair na vida,
entre um livro e outro, para recolher experiências, para
poder transformar alquimicamente a matéria-prima
em pedra filosofal”1. Piva também costumava dizer
que não acreditava em poeta experimental que não
tivesse uma vida experimental. As frases sucessivas,
que parecem indicar uma identificação total e trans-
parente entre o sujeito poético e o sujeito empírico, se
confrontam com uma poesia em que se faz apresen-
tação (e não representação) do biográfico, na qual há
sempre a interferência de um fora (suas experiências
literárias e experiências vividas ou imaginadas) na
composição do poema. Quando lemos a transmutação
de um encontro amoroso singular, imaginado ou vivido
tradição partilhada. Não por acaso, o primeiro volume
da Coleção Postal, editada recentemente em parceria entre
a Azougue e Cozinha Experimental, é uma antologia
A poesia de Piva por Piva, em Ganimedes 76, por exemplo, nos deparamos
com uma reatualização constante da arte do encontro
que se dá a cada nova leitura que se faz de seu poema:
da poesia de Piva. Uma coleção por assinatura (que
lembra em alguma medida tanto a qualidade como o
modo editorial de Massao Ohno), cujo primeiro livro
parece tentar Teu sorriso
olhinhos como margaridas negras
é dedicado à poesia de Piva, não deixa de conter as
sementes de um projeto editorial que nasceu na década equacionar de meu amor navegando na tarde
batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de fuligem

forma complexa
de 1990 sob o signo dessas leituras. cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão rococó
Quando lemos diversas entrevistas de Piva, notamos força de um corpo frágil como âncoras
muitas expressões repetidas por ele que também se gostei de você eu também

forças estéticas e
tornaram clichês de sua recepção. Em uma dessas amanhã então às 7
expressões, num tom oscilante entre ressentimento e amanhã às 7
certo orgulho, ele dizia não ser marginal, mas margina- tudo começa agora num ritual lento & cercados de gardênias de pano
lizado, principalmente por não ter pactuado nem com
a universidade, nem com a esquerda militante, estando
por muito tempo afastado do centro dos debates mais
existenciais. É de Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde de São Paulo
Como um desejo espetacular tão dopado de coragem
marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti
acalorados de sua época. Como consequência dessa
marginalização a que ele teria sido relegado, persiste a
ideia de que teria demorado décadas para que houvesse
atualidade gritante assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem 2

Escrever parece ter sido a forma privilegiada de sus-


um amplo reconhecimento crítico e editorial de sua me parece serem justamente suas afinidades com a tentar vertiginosamente a singularidade do seu desejo,
obra, que culminou no relançamento da edição de contracultura o que garantiu e garante seu reconheci- de dar continuidade infinita ao prazer da experiência
Paranoia pelo Instituto Moreira Salles, em 2000. mento atual no cenário da poesia brasileira. de sedução, criando a possibilidade de que o leitor
Em grande medida, é comum que um escritor margi- Sua inclusão em 26 poetas hoje, por exemplo, anto- também possa viver de algum modo esse encontro.
nal mantenha sua marginalidade como uma estratégia logia heterogênea que buscava reunir tanto poetas E sabemos o quanto a literatura de Piva leva a sério
de distinção, o que acaba sendo finalmente também mais velhos que estavam com livros há muito tempo o poder da própria literatura. Certamente, em seus
uma estratégia de autopromoção pela lógica da inver- esgotados, como uma geração mais jovem, em grande poemas, encontramos diversas referências literárias,
são de valores. Mesmo essa posição de marginalizado, medida de poetas cariocas, que investia na circulação mas Fernando Pessoa, Mario de Andrade, Dante, Sade,
portanto, talvez pudesse ser matizada hoje em dia, pois de seus escritos através de edições alternativas e de Lautréamont, Rilke, Michaux, entre tantos outros,
12
PERNAMBUCO, MARÇO 2017

CAPA

aparecem menos como marcas de erudição do que


como signo de um encontro e de uma autoafirma-
ção. Lidos por Piva, esses autores saem das páginas,
Escrever, para o poesia xâmanica & bio-alquímica publicado pela primeira
vez na Revista Azougue, em 1996.
Há muitos inéditos ainda: todos os poemas lidos por
transpostos constantemente para a cidade febril, para
orgias coletivas e vistos, através de uma erotização de
tamanha intensidade, são espelhos de uma imaginação
poeta, talvez fosse Piva no documentário Antes que eu me esqueça, de Jairo
Ferreira, permanecem inéditos em livro, assim como
as duas séries completas recuperadas pela pesquisa-
ardente. Basta pensarmos como Mario de Andrade
em sua obra, por exemplo, torna-se um personagem a forma de manter dora Ibriela Bianca Sevilla em sua tese de doutorado,
Corações de Hot Dog e Out Door, sem contar o conteúdo,

a singularidade do
maldito e plenamente erotizado, despojado da capa do ainda a ser explorado, dos quase 20 cadernos que
nacionalismo, perambulando pela noites de São Paulo. estão sob os cuidados de Gabriel. Parte desse material,
Todos os autores, livros e leituras são convocados para porém, deve interessar apenas aos pesquisadores ou

desejo, continuar
atuar de forma anárquica pela cidade. leitores especializados, como é o caso das cadernetas
Uma obra que, como escreve Eliane Robert Moraes de capa preta que abrigam uma primeira versão do
no posfácio do segundo volume das Obras reunidas, su- processo de escrita de Piazzas.
põe uma equação bastante complexa na tentativa de
sustentar um discurso poético que se volta tanto para
as necessidades do coletivo, como para as inúmeras
o prazer das suas Existe um rigor no controle da obra publicada que
estaria em franca oposição ao desregramento que Piva
protagonizou em vida (ou da imagem excêntrica que
demandas do desejo e para as derivas sem fim da aluci-
nação, é de uma atualidade estonteante. Nessa tentativa
de equacionar forças estéticas e existenciais, sua voz
experiências ainda prevalece quando pensamos em Piva). Pois, se
é verdade que o desregramento era seu modo de viver
e discursar sobre a poesia, também é verdade que
poética tão singular se faz resistência contra qualquer * sua obra publicada em vida é um conjunto orgânico
sistema de vida baseado na moral, através da trans- É um desafio gerir o espaço idealizado por Gabriel e bem-organizado. Sergio Cohn, no ensaio que integra
gressão, na escolha das relações homossexuais contra Kolyniak e pela comissão formada pelos poetas e a coleção Ciranda da Poesia, lembra a experiência de
o casal heterossexual, reprodutor e consumidor; do amigos de Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e formatação e feitura do Ciclones, a convite do poeta
xamanismo e do candomblé contra o catolicismo; das Antonio Fernando de Franceschi, mas a iniciativa, Fabio Weintraub, na editora Nankin: “De um lado,
drogas alucinógenas não como alienação, mas como com todas as dificuldades que podem surgir, ainda me ele sabia da dificuldade que poderia haver em ter
um ritual necessário para se libertar do real cotidiano e parece uma alternativa fundamental para pensarmos outro convite para publicar seus textos; por isso não
opressor. É uma escrita que insiste obsessivamente na acervos de escritores. Por mais que uma instituição queria perder a chance de publicar os poemas que
subversão das regras morais e estéticas como um modo renomada talvez tenha melhores condições de pre- considerava importantes. De outro, conversávamos
singular de atravessar o século XX sem envelhecer, servação das obras, o conjunto e a ambientação se horas a fio sobre a ideia de que um livro precisa ser
ainda que saibamos que o coito anal, ou quaisquer ou- perdem. Um pesquisador ou um leitor entusiasta que conciso para se comunicar rapidamente com o leitor”3.
tras formas de transgressão das normas, infelizmente, irá frequentar a biblioteca depois de sua inauguração Piva parecia construir seus livros menos como uma
esteja muito distante de derrubar o capital. poderá transitar entre todas as referências da poesia recolha de poemas produzidos no período que precede
O livro O limite da navalha, de Italo Diblasi, publica- de Piva sem dificuldade, sentindo que faz parte de a publicação do que como projetos bem-estabelecidos
do em 2016 pela Garupa, é o mais próximo em que uma comunidade. Verdade seja dita, mesmo quem e conscientes. Talvez pensasse em livros muitas vezes
chego a perceber qualquer reverberação de Roberto nem sequer se interessa pela poesia de Piva pode portáteis para carregar consigo pela cidade, para ler
Piva na poesia que está sendo produzida hoje em dia. se beneficiar com a iniciativa de tornar acessível na cama com seus amantes ou levar nas suas viagens
O que mais me impressiona nesse primeiro livro de sua biblioteca. Nas duas horas em que estive com à Ilha Comprida ou Mairiporã. Mas essas são apenas
Italo é uma mesma fome de leituras e experiências Gabriel, fomos batendo papo, falamos muito sobre hipóteses que sua biografia nos permite elaborar.
transmutadas no corpo de seus poemas, alcançando Piva, é claro, mas transitamos também por outras De todo modo, havia rigor na construção das séries
com isso uma dicção singular na poesia que tem tantas leituras em comum, das edições de Bataille e de poemas e seus manuscritos não desmentem a
sido escrita hoje em dia. Tendo gravado em 2014 dos surrealistas aos livros de Aleister Crowley, pas- seriedade que tinha em relação à sua obra.
um vídeo no qual Italo recita um poema da terceira samos pelas estantes de filosofia, literatura italiana e Em uma entrevista realizada por Ademir Assump-
parte de Ciclones para o “Empreste sua voz para um religiões. A impressão que eu tenho é de que nenhum ção (publicada em livro na série Encontros da Azou-
poeta morto”, projeto de curadoria do poeta Ricardo leitor sairia ileso da forte personalidade que essa gue), Piva afirmou que Oswald de Andrade sabia que,
Domeneck, a referência explícita da leitura da obra biblioteca preserva. quando morre um pajé, morre uma biblioteca viva.
de Piva também aparece nesse seu primeiro livro, no Consultado sobre a manutenção do espaço, Gabriel O contexto dessa afirmação, ligada à importância
único poema dedicado a alguém: diz que a ideia é promover cursos e criar um formato dada por Oswald quanto à manutenção da cultura
de assinaturas em que os colaboradores receberiam indígena, claramente destoa do que estou prestes
Erosofia como contrapartida publicações com artigos, tradu- a afirmar. Penso que, talvez, entretanto, possamos
para Roberto Piva, no inferno ções e inéditos de Piva. O volume Antropofagias e outros distorcer a frase de Oswald se acreditarmos que
escritos foi um dos brindes de quem havia colaborado quando uma biblioteca como a de Roberto Piva
Uma lição de amor com o projeto em sua fase inicial quando foi feito um renasce – principalmente através de cada leitor que
para serpentes arrecadamento coletivo através do site Catarse. Tal atualiza esse legado –, é também um pajé que renas-
ou a peçonha livro pode ser encontrado no site da Editora Córrego, ce com ela. É preciso, entretanto, que deixemos de
contra os afetos assim como a edição de uma plaquete inédita, Carta lado o folclore que circunda o autor de Paranoia, para
higienizados aos alunos. Nesses volumes, temos alguns ensaios, começarmos a efetivamente ler sua obra, buscando
em paranoia poemas inéditos, incluindo uma série de poemas, compreender como o discurso de um autor sobre sua
Pongo Dombo – Mala na mão & asas pretas, cujo subtítulo própria produção pode muitas vezes enfraquecer as
os infrarrealistas foi utilizado posteriormente no segundo volume das leituras que sua poesia proporciona. Seus inéditos
estão com Blake Obras reunidas da Globo. e sua biblioteca podem ser elementos de suma im-
em sua Jerusalém Investir em inéditos em livro também foi a op- portância para sustentar essas leituras que começam
de místicos erotizados: ção feita pelos editores da Azougue e da Cozinha a se estabelecer.
Experimental na seleção que compõe o primeiro
por Eros contra a caridade volume da Coleção Postal. Grande parte dos poemas 1. Do livro Os dentes da memória, de Camila Hungria e
pela diferença contra o uniforme ali presentes foram publicados em revistas e edições Renata D’Elia. Editora Azougue, p. 94
por Shiva contra a cruz.2 há muito tempo esgotadas, como é caso de San Paulo’s 2. Em O limite da navalha. Editora Garupa, p. 33
improvisation, estreia de Piva na Antologia dos Novíssimos 3. Sergio Cohn. Roberto Piva (Col. Ciranda da Poesia).
Com a inversão da fórmula de contraposições “con- editada por Massao Ohno, em 1961, ou de Manifesto da EdUERJ, p. 59.
tra X por Y”, presente nos manifestos Os que viram a
carcaça, esses últimos três versos de Italo – a opção por
Eros, pela diferença e por Shiva, contra a caridade, o
uniforme e a cruz – talvez procurem nos ensinar uma
lição de amor ou ao menos um princípio de delicadeza: O que ler de Roberto Piva
devemos bombardear o horizonte através dos nossos
sonhos, antes que nos universalizemos no senso co- COXAS (1979) – Adolescentes mágicos do su-
mum (recebendo, com isso, os méritos de termos todas
José Juva búrbio, sexo e subversão. Clube Osso & Li-
as virtudes do mundo, para parafrasear um verso de berdade. A orgia como fascinante forma de
Paranoia). Lembro que este é um livro escrito durante José Juva, poeta pernambucano, é autor de Wat- iniciação cósmica. Narrativa em ruptura com a
as Jornadas de Junho de 2013, período em que o país su (Cepe Editora, 2016) e de Deixe a visão chegar: a narrativa por uma poética da aventura: a busca
protagonizou uma das maiores manifestações de sua poética xamânica de Roberto Piva (Multifoco, 2012). do Andrógino Antropocósmico.
história moderna e também viveu a desilusão de ver
suas demandas, seu léxico e suas formas de protesto PARANOIA (1963) – Derivas psicogeográficas CICLONES (1997) – Êxtase e vivência dos lugares
cooptados pelo senso comum. Italo conseguiu im- pela cidade de São Paulo, permeadas de aluci- de poder, entrega em profundidade às respirações
primir essa força de insurreição ao escrever um livro nação, delírio e deboche. Antropofagia das ver- da natureza sagrada. Energias máximas conden-
que nos mostra que nossa única opção continua sendo tigens surrealistas e da dicção beat, uma porrada sadas em grãos e estilhaços de visões. Poesia da
afirmarmos a singularidade do nosso desejo, antes que atrás da outra. Também em diálogo com Federico viagem xamânica, vida autêntica no encontro com
sejamos engolidos pelos afetos higienizados que con- Garcia Lorca de Um poeta em Nova York. as realidades não humanas do planeta.
tinuam a ser a regra das relações que nos atravessam.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

HALLINA BELTRÃO
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

RESENHA

A visão como Há alguns meses atrás, discursando nas Nações


Unidas, a romancista Chimamanda Adichie disse
que em sua língua (igbo) a palavra amor é ifunanya, e

instrumento
sua tradução literal é VER: “Gostaria de sugerir hoje que
este é um tempo para uma nova narrativa, uma narrativa em
que nós realmente possamos ver aqueles sobre quem falamos”,
afirma a escritora nigeriana, partindo de sua língua
para dizer um tempo presente, trans-atlântico.

de liberdade
O olhar, como tessitura de afeto, sem mediações
à representação, acende em Olhos de azeviche. Água
doce que lava os olhos, podendo dilatar pupilas de
quem sempre se vê refletido no cânon – pois, no
cenário literário brasileiro altamente conservador
Livro Olhos de azeviche e elitista, ver exige fraturar os espelhos eurolimi-
tados de narciso.

reúne 10 autoras negras em Publicada pela editora Malê, com apresentação


de Fernanda Felisberto sob o título “Selfie: Eu Mulher

um olhar além do cânone


Negra Escritora”, a antologia já nasce histórica. Dez
autoras negras reunidas em livro, encrespando
um corpo-corpus diferente das diversas antolo-
gias disponíveis no mercado editorial, nas quais
Fernanda Miranda a política subjazendo seleções segue afirmando os
velhos silenciamentos que atravessam o literário
no Brasil. A mais recente, lançada pela Companhia
das Letras e organizada por Adriana Calcanhotto,
propõe um recorte do nosso tempo que se abstém
de vozes negras ou periféricas – um “agora como
nunca” anacrônico, monocromático.
A maioria das autoras reunidas em Olhos de azevi-
che tem obras individuais em circulação crescente
de público e crítica. Diversos contos não são iné-
ditos, mas inédito é o encontro dessas vozes em
livro. São elas: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva,
Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda
Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Lia
Vieira, Miriam Alves e Tais Espírito Santo.
Dez escritoras negras que estão renovando a literatura bra-
sileira – eis o portentoso subtítulo da antologia. Re-
novando: gerúndio com tom imperativo, verbo bom
para pontuar essa desejada circulação de ares na
literatura brasileira. Por qual razão textualidades
que articulam gênero e raça como lugar de enunciação
teriam a pujança de renovar a literatura nacional?
O gerúndio dá pistas, com seu feitio de ação
contínua. A escrita se insurge no corpo de suas
autoras, por mais que preexista um corpus canônico
que sempre o negou. Por isso mesmo, o sentido
potente do subtítulo sugere o gosto de um novo
tempo em feitura, fortalecendo a fratura no unís-
sono de vozes (masculinas, brancas, das classes
dominantes) que majoritariamente narram a li-
teratura brasileira.
A inscrição autoral do corpo negro no discurso
literário funda novas sintaxes, porque tangencia
a ficcionalização da experiência de sujeitos que
estiveram por muito tempo exclusos da ordem
discursiva – escritos nela como meros objetos. goria contos pela obra Olhos d’água. Evaristo escreve
Novas sintaxes, de vozes desemparedadas, propondo poemas, contos, romances, e é doutora na área de
outras perspectivas de ver o humano - quiçá capaz Literatura Comparada. Seus livros têm sido tradu-
de tecer uma política das suas próprias potências. zidos e publicados fora do país e angariado uma
São 20 contos e mundos a mais, cada qual ali- fortuna crítica crescente. Ela tem constituído um
nhavando um ponto de acesso. As narrativas nos lugar autoral contra-hegemônico dentro do edifício
levam a uma estrada cognitiva de muitos enredos, literário nacional, formalizando o conceito de es-
cuja porta de entrada é amorosa, porque o afeto, crevivência em seus textos: “A nossa escrevivência não
sempre bom lembrar, é revolucionário: “Preta, a pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’ e,
saudade tem a sua cor (...) eu só passei pra dizer sim, para incomodá-los em seus sonos injustos”.
que te amo. Você ainda é minha festa”. Afeto-grafia A voz, formalizando espaços de liberdade para os
de Ana Paula Lisboa. organismos, ressoa em Pixaim, conto em primeira
Seguindo as páginas, ouvidos atentos em Trutas, pessoa de Cristiane Sobral, lembrando que o cabe-
trilha sonora dos Racionais MC’s riscando a arma lo, para além da moda e da estética, é a superfície
lírica de mais um rapaz comum da periferia. Igual que mais intensamente performatiza as políticas
aqueles outros cinco, Os meninos do morro do lagartixa, de representação afirmativa e de amor-próprio
cinco jovens que saíram animados para comemorar para as mulheres negras: em cada enredo capilar,
o primeiro salário de um deles, sem saber do trecho uma arena cotidiana. “O meu cabelo era a carapaça das
Negro Drama que lhes esperava covardemente minhas ideias, o invólucro dos meus sonhos, a moldura dos
emboscado dentro de uma viatura policial - “Olha meus pensamentos mais coloridos”, diz a personagem,
quem morre, então veja você quem mata. Recebe o mérito, a num fértil diálogo com o texto de Alice Walker
farda, que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é “cabelo oprimido é um teto para o cérebro”.
cultural”. Os meninos, corpos negros furados com Sem teto para a ficção, em Guarde segredo, Esme-
111 tiros disparados pela polícia num dia comum ralda Ribeiro ressuscita o escritor Lima Barreto,
em São Paulo, são os personagens com nome e reescreve seu personagem Cassi Jones, e afia as
sobrenome da ácida crônica de Cidinha da Silva, facas de Clara dos Anjos, que deliciosamente vinga
tomando a narrativa como espaço de luto e de luta. muitas mocinhas sem agência de tantas histórias
Conceição Evaristo está presente na antologia do nosso cabedal literário. O romance Clara dos
com os contos Di Lixão e Amores de Kimbá. Escritora Anjos, de Lima Barreto, é uma forte denúncia do
conceituada, recentemente contemplada com o preconceito racial da sociedade, vivenciado por
prêmio Faz diferença – O Globo, com seu mais uma jovem mulher negra do subúrbio carioca.
novo livro de contos Histórias de leves enganos e pare- Encantada pelo canalha Cassi Jones, que a seduz
cenças e em 2015, premiada com o Jabuti na cate- e abandona grávida e humilhada, Clara é vítima de
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ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

violentos preconceitos de uma ordem social sexista


e estruturalmente racista. Sua trajetória é de tama-
nho emparedamento, que, ao final do romance,
Segundo Evaristo, história de amor em primeira pessoa vivida durante
um congresso de escritores em Havana. Texto tátil-
-amor, temperado. Bom pra quem morde, arranha,
como se falasse em nome de todas as mulheres em
iguais condições, conclui em desespero: “— Nós não
somos nada nesta vida”. Aí que, pensando a literatura
a escrevivência dedilha a carne da palavra encontro.
Miriam Alves, autora do romance Bará, na trilha
do vento (2015), está presente na antologia com os
em ato, ressalta o gesto do conto de Esmeralda
Ribeiro: criar um lugar de agência para o feminino não pode ser lida contos Os olhos verdes de Esmeralda e Alice está morta,
que traz um Orfeu revisitado. Textos de apurada

para ninar a casa-


negro, que guerreia com quem queira lhe destruir tessitura, com personagens femininas complexas
a existência. Facas afiadas, avocar o contempo- e marcantes. No primeiro, linhas de amor lésbico
râneo como episteme pode ser um mecanismo escrito entre duas mulheres negras, Esmeralda

grande, mas para


instigante de ler o passado. Armada das palavras e Marina, alvos de uma sociedade homofóbica,
de Esmeralda, Clara dos Anjos mata Cassi Jones às constituída, nos termos de Judith Butler, por uma
facadas. Final feliz? Redenção? Não se trata disso. matriz heterossexual que gera os padrões reco-
Mas, sim, da abertura para outros matizes, outras
paisagens imaginárias possíveis, que concebem a
feminilidade negra inscrita em personagens que
incomodá-la em nhecidos de inteligibilidade dos gêneros, e todo o
tempo pratica o alterocídio. Entre beijos, amassos,
juras, companheirismo e entrega, o amor encontra
são sujeitos de seus desfechos.
Esse olhar azeviche também repousa na expe-
riência da criança negra. De Geni Guimarães, dois
seus sonos injustos seus jeitos. Mas, um dia, o amor cruza uma viatu-
ra policial. Os olhos verdes de Esmeralda já havia sido
publicado em Mulher Mat(r)iz – Prosas de Miriam Alves
fragmentos do livro de contos Leite de peito (1988), “Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena (2011). Nas linhas do conto, a vista do cotidiano
estão republicados na antologia. Em Primeiras lem- ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali representando uma contemporâneo – violento, machista, homofóbico,
branças, ouvimos uma conversa entre mãe e filha: raça digna de compaixão, desprezo. Quis sumir, evaporar, racista – revela a mesma sociedade que matou
“Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta?”. não pude”. Frases que imediatamente me remetem Luana Barbosa no ano passado, uma mulher ne-
Numa narrativa contínua, Metamorfose põe a infân- a outra menina negra de nossa literatura brasileira: gra, jovem, mãe, estudante, lésbica, brutalmente
cia negra em perspectiva a partir do processo de a Bitita, com Carolina Maria de Jesus narrando a assassinada por policiais militares no interior de
violência subjetiva que vinha ligado ao acesso à infância negra no pós-abolição: “As escolas admitiam São Paulo. Certas narrativas precisam ser retidas
escolarização. A menina, protegida pelo amor da as alunas negras. Mas, quando as alunas negras voltavam na memória, vertidas em metáfora. Olhe o real
família, um dia vai pra escola e lá percebe “que a das escolas, estavam chorando. As professoras aceitavam os (literário) ao seu redor: quais vidas importam?
narrativa da professora não batia com a que nos fizera a Vó alunos negros por imposição”. Olhos de azeviche, vias de afeto. O que este olhar
Rosária. (...)” Depois de ouvir o discurso da pro- Lia Vieira, algumas páginas seguintes, vem ado- diz de seus espelhos? O que diz de nós? Do tempo
fessora sobre o negro escravo, construído como çar de lazer a carne-malícia-coração do leitor em A que vivemos? Lava, lacrimeja os olhos. Dilata as
covarde, submisso e subalterno, a menina amiúda: paixão e o vento e Os limites do moinho, este último uma pupilas. Amplia as miras.
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RESENHA

Corram para
DIVULGAÇÃO

ver onde estão


as estrelas
Em romance póstumo,
Roberto Bolanõ faz a sua sci-
fi latino-americana possível
Schneider Carpeggiani

I am a motherfuckin Starboy turo Belano é alter ego de Roberto Bolaño, também


The Weeknd nascido em 1953 e exilado primeiro no México e
depois na Espanha. Pela vida inteira, pela obra
Um poeta pode suportar tudo. O que equivale a inteira, Bolaño se colocou como fugitivo dessa vio-
dizer que um homem pode suportar tudo. Enri- lência, dessa verdadeira violência, e do barulhento
que Martín era homem, poeta e também chileno silêncio que acompanhava o toque de recolher a cair
morando (ou talvez exilado) em Barcelona. Atuava sobre as ruas de Santiago após 1973. A história de
como colaborador da revista Preguntas & respuestas, E.M. é relatada em Enrique Martín, um dos contos de
jornal barato que se dedicava a cobrir óvnis, fantas- Chamadas telefônicas, lançado originalmente em 1997.
mas, aparições marianas, cultos pré-colombianos
e outras aparições paranormais, que num relance ***
de liberdade poderíamos etiquetar como ficção Planet Earth is blue and there’s nothing I can do
científica (ou sci-fi, como E.M. preferia escrever). David Bowie
Por um tempo, enviou ao conterrâneo Arturo Be-
lano (esse, sim, sabemos um exilado) estranhos ***
cartões-postais com numerações misteriosas, que Lembrei Enrique Martín, a tristeza de Enrique
poderiam ser lidas como código de conversa entre Martín, as colaborações que ele escrevera para seu
o remetente e algum, quem sabe, E.T. (se você jornal especializado em sobrenatural, nas nume-
não compreende, coloque a culpa em algo fora rações misteriosas enviadas a Belano, nas nume-
da órbita do banal, mas repasse a culpa, repasse rações na parede quando do seu suicídio, das suas
a incompreensão). tentativas de fazer contato, durante a leitura de O
E.M. foi encontrado morto em seu quarto com espírito da ficção científica, recém-lançado romance
as paredes todas rabiscadas por equações (659983 póstumo de Bolaño, escrito em meados dos anos
+ 779511 - 336933, coisas assim, inexplicáveis). 1980. Um dos primeiros exemplares terminados
Pouco antes, havia participado de um congresso da sua produção alucinante e obsessiva, que cor-
de escritores de ficção científica em Madri e dei- responde da década de 1980 até sua morte, em
xado sob a guarda de Belano uma caixa cheia de 2003. Aqui, a ficção científica do título é justamente
escritos, que passou dois anos fechadas, mas que isso: espírito, mas não no sentido de essência,
no lugar de qualquer revelação sobre sua morte de constituição, mas de assombração. Talvez a
trazia apenas poemas. Maus poemas. assombração de E.M. Não se trata de livro de sci-fi
É possível dizer que E.M. vivia como exilado na tradição norte-americana de um Philip K. Dick,
em Barcelona porque nascera no mesmo ano de e, sim, da possibilidade de contato, do fantasma
Belano, 1953. Fazia parte de uma geração que con- do contato – e a possibilidade de contato talvez
tava com 20, 20 e poucos anos, quando do 11 de seja uma das facetas da ficção científica, gênero
setembro chileno. Uma geração que da violência, dependente da falsa ilusão que é possível quebrar
da verdadeira violência, não poderia escapar. Ar- o realismo com aliens assassinos e naves coloridas
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

primeiro parágrafo é o relato de um germe prestes a


alastrar sua praga: “A primeira vez que Jean-Claude
Pelletier leu Benno von Archimboldi foi no Natal de
1980, em Paris, onde fazia estudos universitários
de literatura alemã, aos dezenove anos de idade. O
livro era D’Arsonval. O jovem Pelletier então ignorava
que esse era parte de uma trilogia (formada por O
jardim, de tema inglês, A máscara de couro, de tema
polonês, assim como D’Arsonval era, evidentemente,
de tema francês), mas essa ignorância ou esse vazio
ou esse desleixo bibliográfico, que só podia ser
atribuído à sua extrema juventude, não subtraiu
em nada o deslumbramento e a admiração que
o romance lhe causou”. Deslumbramento e ad-
miração, palavras que aqui merecem ser frisadas.
Detetives selvagens e 2666 são dilatações de uma
busca que Bolaño parece ter tomado como mote
para sua produção a partir de Estrela distante (1996),
primeira obra-prima da sua carreira. Estrela distante
cobre os momentos que antecedem o golpe de
Pinochet e percorre as décadas seguintes, com as
lembranças e as derrapagens dessas lembranças.
O escritor desaparecido é Alberto Ruiz-Tagle ou
talvez Carlos Wieder (duplo, em alemão), um ho-
mem que, assim como Cesárea Tinajero e Benno
von Archimboldi, se tornou célebre por sua meta
bem-sucedida em tornar-se invisível. E talvez a
busca pelo invisível diga muito sobre o que um dia
o autor acreditou ser o “espírito” da ficção científica

***
“– Quer dizer que você sonhou com a Thea von
Harbou…
– Sim, era uma moça loura.
– Mas você algum dia viu uma foto dela?
– Não.
– Como soube que era a Thea von Harbou
– Não sei, adivinhei. Era como a Marlene Dietrich
cantando A resposta está no vento do Bob Dylan, sabe?
Uma coisa estranha, aterrorizante, mas muito pró-
xima, não sei como, mas próxima.”
Roberto Bolaño, em O espírito da ficção científica.

***
Talvez a melhor chave de leitura para O espírito
da ficção científica não seja pensar nele como um
romance. Mas como um arquivo, um arquivo onde
Bolaño parece ter inserido todas as ideias que um
dia atravessariam suas grandes obras: a vida de jo-
vens escritores, o fascínio pelos grandes mestres, a
crítica aos grandes mestres, a busca pelo invisível
como sintoma de uma geração e a sombra de “uma
coisa estranha, aterrorizante, mas muito próxima”.
a cortar o céu. Mas não é possível pensar fora do
universo. Não é possível pensar fora de casa, como
Juan Rulfo um dia decretou ao começar o romance
O espírito da Acredito que o lançamento de O espírito da ficção
científica seja crucial nesse momento de ascensão da
direita em que obras distópicas da ficção científica
mais importante da literatura de língua espanhola
moderna, Pedro Páramo, como inevitável retorno
para casa. Para o pai.
ficção científica do século XX estejam sendo redescobertas como
alegorias/prenúncios dos dias que correm. Bolaño
foi engenhoso ao subverter as leituras das grandes

*** é um arquivo distopias de língua inglesa. No lugar de escrever fic-


ção científica com enredos aterrorizantes, coloca-

no qual Bolaño
O que podemos imaginar sempre existe, em outra escala, em -os em histórias lidas por seus personagens, em
outro tempo, nítido e distante, como num sonho pesadelos que os perseguem e nas miragens que
Ricardo Piglia costumam acometer todos aqueles que buscam

semeou os temas
em algum momento fazer contato com algo ou
*** alguém. Conta essas histórias como se elas fossem
O espírito... consiste numa sequência de desven- uma espécie de cenário oco, você tem a porta e
turas de jovens escritores latino-americanos per-
didos na América Latina. Um deles é fascinado
pelos grandes mestres da ficção científica norte-
que marcariam sua nada por dentro. Um lugar de visitação, mas não
de convívio. Não se habita um sonho, não se habita
uma memória, não se conversa com o invisível,
-americana e passa o dia lhes escrevendo uma vã
correspondência. Nas mensagens, faz referência a
um Comitê Norte-Americano de Ficção Científica
obra posterior ainda que essas ações nos persigam o tempo inteiro.
É insuportável viver sob o signo de um sintoma e
sobre isso Bolaño escreveu a vida inteira.
Pró-Flagelados do Terceiro Mundo. Penso nessas no período em que escreveu o Manifesto do In- O espírito dessa ficção científica me faz lembrar
cartas como pedidos de socorro, SOS, como tenta- frarrealismo (que em Detetives... recebeu o nome de a epígrafe que o autor usou no seu livro Amberes (de
tivas de contato. Como a numeração que E.M. um “realismo visceral”). A personagem de Cesárea faz 2002, ainda inédito no Brasil), citando uma frase
dia espalhou, sem jamais ter conseguido ele próprio pensar numa ligação do Infrarrarealismo/realismo de David O. Selznick: “La vida concluye en el mo-
escrever qualquer romance de ficção científica, visceral com o grupo Estridentista, que fundou a mento en que se la fotografía. Es casi un símbolo
deixando como legado apenas poemas. Repito: vanguarda mexicana, tendo como lideranças os de Hollywood. Tara no tenía habitaciones en su
maus poemas. nomes de Maples Arce, Germán Arzubide e Arque- interior. Era sólo una fachada”.
A tentativa de fazer contato é a marca mais forte les Vela. Esses autores pregavam uma renovação É como se o melhor da ficção científica latino-
das grandes obras deixadas por Roberto Bolaño. poética ao lado de um conteúdo social. Ou seja: -americana (e quando falamos latino-americana
Cesárea Tinajero, musa-mãe dos jovens poetas era um grupo formado por escritores crentes na aqui destacamos o histórico comum e recente de
mexicanos, desaparecida desde a década de 1920, relação entre vida e arte, perspectiva presente no ditaduras que é quase sinônimo dessa expressão)
é sua personagem célebre e espécie de sustenta- Manifesto Infrarrealista e em toda obra posterior fosse não um alumbramento do que poderia ser o
ção do romance que o consagrou, Detetives selvagens de Bolaño.   futuro, mas uma fuga do passado que resulta em
(1998). O possível reencontro com essa figura mítica 2666, outro romance póstumo de Bolaño, parte maus sonhos durante a noite (a violência, a verda-
salvaria da desolação todos os poetas do underground também da tentativa de fazer contato com um deira violência, da qual não se escapa nem mesmo
mexicano dos anos 1970, do qual Bolaño fez parte escritor, o alemão Benno von Archimboldi. O seu dormindo). Era assim que Bolaño via estrelas.
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pernambucana Celina de Holanda, reúne Cau Gomez e vencedor do I Prêmio Sebastião Uchoa Leite, em coedição da
seus livros publicados O espelho e a rosa Cepe Nacional de Literatura (categoria Cepe Editora e Cosac Naify, com Dez
(1970); A mão extrema (1976); Sobre esta infantojuvenil), este livro aposta na sonetos sem matéria, Antilogia, Isso
cidade de rios (1979); Roda d’água (1981) invenção, com trato cuidadoso da fantasia não é Aquilo, e Obras em dobras. Inclui
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de baixa patente recrutada pela Pernambuco de Literatura (parceria
Companhia das Índias Ocidentais para Cepe/Fundarpe), desenvolve contos Moacir Santos foi professor de Baden Powell,
servir em seu exército no Brasil. O que aprofundam olhares sobre a Roberto Menescal, Sérgio Mendes, João
autor, jovem dinamarquês de origem existência humana, tendo a memória e Donato, Nara Leão, Eumir Deodato e Carlos
camponesa, descreve num diário os a morte como um retrato antigo entre Lyra, entre outros. Conhecido pelo virtuosismo,
estertores da presença holandesa escombros, um olhar sensível sobre tocava saxofone, piano, clarineta, trompete,
em Pernambuco, entre 1644 e 1654, personagens e narradores que garante banjo, violão e bateria. Vivendo desde 1967 nos
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Dom Helder leu no programa Um olhar na segunda metade do século XX, Garcia a Ilusão e a Desilusão, a Paixão Amorosa
sobre a cidade, da Rádio Olinda, tratando esteve no centro do furacão da política e o Amor, o Desamparo e a Depressão,
de temas políticos e injustiças sociais, brasileira, envolveu-se com as novas são abordados neste livro que entrelaça
paralelamente a textos em que falava de tecnologias jornalísticas, escreveu livros as teorias psicanalíticas com as questões
religião, atitudes sociais, amor, e suas e ainda teve tempo para formar toda filosóficas, buscando compreender as
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Análise da situação da TV aberta Amanda Mansur (Orgs)
no Brasil e caminhos futuros. O
impacto das novas tecnologias, O Baile Perfumado marcou a retomada
concorrência com a internet e a do cinema pernambucano, abriu
TV por assinatura, interatividade caminho para novos diretores, adotou
e multiprogramação, importância uma estética de qualidade com baixo
das novelas e telejornais como custo, e influiu na cena, que passou
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19
PERNAMBUCO, MARÇO 2017

REPRODUÇÃO

INÉDITOS Bartyra Soares

RECIFE ANTIGO

Trazida pelo vento da tarde


no Recife de relíquias
a chuva mata a sede das poças
de ruas de reentrâncias partidas.

Os bairros se contraem friorentos


agasalhando-se no crepúsculo antecipado,
mergulhando em puídas lembranças
contidas nos sobrados, tantos já em ruínas.

Enquanto em vasilhas e tachos,


a água das goteiras continua
ritmando o transcurso das horas.

CIDADE MAURÍCIA

Durante alguns dias


quando houve no cerne
do abismo a queda do sol
deglutido por horas incertas
na repetida caminhada
para o outro hemisfério,
os habitantes da cidade
tingida de cinza e solidão
sabiam que naquelas noites
absurdo seria esperar estrelas.

Das janelas semiabertas em vigília


a luz era fragmentar-se de asas
escoando-se para a escuridão.

EXPECTATIVA
SOBRE A OBRA
Só não são absurdas as noites
Os poemas integram de agosto porque algumas estrelas
o livro Recife em tom insinuam sua frágil tepidez
menor, que será lançado pelas janelas abertas em vigília
no fim deste mês dos que ainda levam na planta dos pés,
pela Cepe Editora. embutida a crença de que o Recife,
um dia, possa nas nossas mãos
a primavera depositar
20
PERNAMBUCO, MARÇO 2017

INÉDITOS
Aleksandra Kollontai
Tradução de Priscila Marques

Lutadoras da Revolução Russa


Para a Grande Revolução de Outubro, quem do front vermelho. Se amarrassem uma faixa Algum dia os historiadores escreverão so-
foram elas? Indivíduos? Não, uma massa, vermelha no braço, significava que estavam bre o que fizeram essas heroínas anônimas,
dezenas, centenas de milhares de heroínas correndo para o posto médico para socorrer mortas no front, executadas pelos brancos
anônimas que caminharam lado a lado com o front vermelho contra (Aleksander Fyódo- (Exército Branco, pró-czarista), que aguen-
operários e camponeses em nome da bandei- rovich) Kiérenski, que ficava em Gátchina. taram a miséria extrema dos primeiros anos
ra vermelha, com o lema dos sovietes, através Trabalhavam na comunicação. Grandes coisas da Revolução e mesmo assim não largaram
das ruínas do ódio só passado religioso e são criadas com prazer, alegria e sentimento, a bandeira vermelha do poder dos sovietes
tsarista em direção a um novo futuro... mas nós éramos uns parafusinhos na classe e do comunismo.
Se olharmos para o passado, veremos es- geral da revolução. Elas, essas heroínas anônimas, mortas em
sas massas de heroínas anônimas nos dias Nos vilarejos, as camponesas solteiras (as nome de uma nova vida para os trabalhadores
de Outubro em cidades famélicas, em vilas que foram enviadas para o front) tomavam nos dias do Grande Outubro, receberam a
destituídas e espoliadas pela guerra... Paninhos a terra dos proprietários e purificavam os primeira reverência da jovem União, em que
na cabeça (ainda eram incomuns os lenços nobres ninhos daqueles “senhores” que há agora a juventude constrói, alegre e satisfeita,
vermelhos), saias puídas, casacos remenda- séculos estavam sentados neles… a base do socialismo.
dos… Jovens e velhas, trabalhadoras e solda- Quando lembramos os dias de Outubro, não Involuntariamente, porém, sobre esse mar
das, camponesas e donas de casa, da camada vemos rostos individuais, mas uma massa. Sem de cabeças femininas com seus lenços e que-
pobre da cidade. Raras, muito mais raras na- número, como se fossem ondas de gente. E para pes gastos, erguem-se as imagens daquelas
queles dias eram as mulheres empregadas, onde quer que se olhe, por toda parte há mu- mulheres que receberão especial atenção do
SOBRE A OBRA
da intelligentsia. Mas também havia mulheres lheres: nos comícios, reuniões, manifestações... historiador quando, daqui a muitos anos, ele
Texto do livro A revolução da intelligentsia entre aqueles que carregaram Ainda sem ter total clareza do que queriam, for escrever a respeito de como o Grande
das mulheres (Boitempo), a bandeira vermelha na vitória de Outubro: do que pretendiam. Mas já sabiam perfeita- Outubro ocorreu e se desenrolou com seu
com escritos de autoras professoras, funcionárias de escritórios, jovens mente: não aguentamos mais guerra. Tam- inspirador Lenin.
russas sobre emancipação universitárias, estudantes ginasiais, médicas. bém não queriam saber dos proprietários, dos Em primeiro lugar, está a imagem da fiel
feminina, feitos durante a Caminhavam alegres, abnegadas, assertivas. ricos às suas custas... O grande mar de gente companheira de armas de Lenin, Nadiêjda
Revolução Russa de 1917. Para onde quer que fosse, lá iam elas. No front? ficou agitado em 1917, e nele havia muitas e Konstantínovna Krúpskaia. O modesto vestido
Quepe na cabeça, e logo se tornavam soldadas muitas cabeças femininas... cinza e seu costumeiro esforço por permanecer
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

ARTE SOBRE IMAGEM DE REPRODUÇÃO

Quando lembram
Outubro de 1917,
não se veem rostos
individuais. Mas
havia muitas,
muitas cabeças
femininas no front
para o partido. Ao trabalho, mulheres! Em defesa
dos sovietes e do comunismo.
Quando discursava nas reuniões ainda ficava
nervosa, não tinha autoconfiança, mas fascinava a
todos. É uma das que carregaram sobre os ombros
toda a dificuldade de estabelecer os fundamentos
para o engajamento amplo e massivo das mulheres
na revolução, que lutou em duas frentes: por um
lado, pelos sovietes e o comunismo e, por outro,
pela emancipação da mulher. Klavdia Nikolaeva
e Konkordia Samoilova, mortas (de cólera) em
seus postos de trabalho revolucionário em 1921,
são dois nomes aos quais estão indissoluvelmente
ligados os primeiros passos do movimento das
mulheres trabalhadoras, especialmente em Lenin-
grado. Konkordia Samoilova foi uma trabalhadora
abnegada como não há, uma boa oradora, que
sabia encantar o coração do proletariado. Todos
que com ela trabalharam não se esqueceram e por
muito tempo não se esquecerão dela. Era simples no
tratamento, com sua vestimenta modesta, exigente
no cumprimento das decisões tomadas e, por isso,
rígida tanto consigo quanto com os outros.
Uma posição especial ocupa a figura encantadora
e delicada de Inessa Armand. Ela foi responsável
pelo trabalho do partido na preparação de Outubro
e, depois, introduziu muitas ideias criativas para
as ações com as mulheres. Apesar de toda sua
feminilidade e delicadeza no tratamento com as
pessoas, Inessa Armand era inexorável em suas
convicções e sabia se manter firme naquilo que
considerava correto, mesmo quando se tratava de
opositores bastante fortes. Após os dias de Outu-
bro, ela dedicou sua energia à construção de um
amplo movimento de mulheres trabalhadoras. As
assembleias de delegados são sua cria.
Varvára Nikoláevna Iákovleva prestou enormes
serviços nos difíceis e decisivos dias de Outubro.
No fogo das batalhas de barricadas, ela demonstrou
uma rigidez digna de um líder do partido. Muitos
camaradas diziam na época que sua firmeza e
inabalável coragem faziam voltar o vigor aos que
estavam abalados e inspiravam os que perdiam o
ânimo. “Ir em frente”, até a vitória.
Começamos a nos lembrar das imagens femini-
nas do Grande Outubro e como, em um passe de
à sombra, entrar na sala de reunião sem ser percebi- Tavritcheski, no soviete, depois, na casa de (Matilda) mágica, reavivam-se na memória novos nomes e
da, sentar-se atrás de uma coluna. Mas ela mesma Kchesínskaia e, enfim, nos salões de Smolni. Nas rostos. Será possível desconsiderar naqueles dias
vê, ouve e observa tudo para transmitir a Vladimir mãos, um bloco de anotações; ao redor, buzinavam, a figura de Viera Slútskaia, uma trabalhadora ab-
Ilitch, acrescentar comentários precisos e buscar um importunavam, buscavam uma resposta rápida e negada na preparação de Outubro, morta por uma
pensamento racional, correto e necessário. exata, uma ordem do camarada no front, os trabalha- bala de cossacos no primeiro front vermelho perto
Nadiêjda Konstantínovna não discursava nos dores, trabalhadoras, guardas vermelhos – membros de Petrogrado?
turbulentos comícios com milhares de pessoas, do partido, membros dos sovietes... Podemos nos esquecer de Evgenia Boch, de na-
nos quais o povo decidia a grande disputa: unir-se Stássova tinha muitas responsabilidades, mas, tureza ardente, fervorosa, sempre entusiasmada
ou não ao poder dos sovietes? Mas ela trabalhou se algum camarada estivesse necessitado ou so- para a batalha? Foi morta no posto revolucionário.
incessantemente, foi o braço direito de Vladimir frendo naqueles dias turbulentos, ela respondia de Seria possível deixar de mencionar aqui dois no-
Ilitch e às vezes fazia nas reuniões do partido uma forma breve, até seca, e fazia o que era possível. mes intimamente ligados à vida e à atividade de V.
observação curta, mas de peso. Nos momentos Vivia atolada de trabalho, mas sempre a postos. No I. Lenin, suas companheiras de armas e irmãs Anna
mais difíceis e perigosos, nos dias em que muitos entanto, não se enfiava na linha de frente, à vista. Ilinitchna Elizárova e Maria Ilinitchna Uliánova?
camaradas fortes perdiam o ânimo e começavam Não gostava de alvoroço à sua volta, a preocupação ...E a vivaz, sempre apressada camarada Vária,
a ter dúvidas, Nadiêjda Konstantínovna se manti- não era com ela mesma, mas com o trabalho. das oficinas ferroviárias de Moscou? E a traba-
nha igualmente convicta, confiante da justeza do O grande e amado trabalho do comunismo, moti- lhadora têxtil Fiódorova, de Leningrado, com seu
trabalho iniciado e com fé na vitória. Ela irradiava vo pelo qual esteve no exílio, contraiu doenças nas doce rostinho sorridente e seu destemor quando a
uma crença inabalável, e essa firmeza de espírito, prisões tsaristas... Na lida, era forte como um sílex, situação chegou ao ponto de exigir que ficasse nas
oculta sob rara discrição, sempre encorajava a todos de aço. E, para a infelicidade dos camaradas, tinha barricadas debaixo de tiros?
que se juntavam aos companheiros de armas do a sensibilidade e a empatia que só as mulheres de Será que estamos considerando todas elas? E
grande criador de Outubro. grande alma têm. quantas “anônimas”? Todo um exército de mu-
Ao lado, surge outra imagem: também uma antiga Klavdia Nikolaeva era uma trabalhadora, chão de lheres heroínas de Outubro. Podemos esquecer
companheira de armas de Vladimir Ilitch, sua fiel fábrica, dos estratos mais baixos. Ainda em 1908, seus nomes, mas a abnegação delas vive na própria
escudeira nos distantes anos de trabalho clandestino, nos anos da reação, juntou-se aos bolcheviques. vitória de Outubro, nas conquistas e realizações de
precisa condutora das decisões do partido, por muitos Exílio, prisão... Em 1917, voltou a Leningrado e se que as mulheres trabalhadoras usufruem na União.
anos secretária do Comitê Central, Elena Dimítrievna tornou o coração da primeira revista das mulheres É claro e indiscutível que, sem a participação das
Stássova. Testa larga e alva, rigor e capacidade de trabalhadoras, A Comunista. Ainda jovem, era toda mulheres, Outubro não poderia ter levado a bandeira
trabalho incomuns, rara habilidade de “perceber” impulsividade e impaciência. Mas segurava firme vermelha à vitória. Glória à mulher trabalhadora, que
as pessoas que devem ser “lançadas” ao trabalho. a bandeira. E dizia com coragem: É preciso trazer caminhou sob a bandeira vermelha em Outubro.
Assim se via sua figura alta e forte, no princípio, em as mulheres trabalhadoras, soldadas e camponesas Glória a Outubro, o emancipador das mulheres!
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

RESENHAS
DAANIEL ARAÚJO/ ACERVO CEPE

Ao tempo presente, a
reedição de A história da
Revolução de Pernambuco
em 1817 nos lembra um
passado que ainda nos
constitui enquanto povo.
Auxilia a reposicionar a
imagem do Nordeste no
imaginário coletivo do
país, pois se a república
usou fartamente a
figura dos inconfidentes
(sobretudo Tiradentes)
como símbolo dos seus
ideais, o movimento
pernambucano foi
muito mais consistente e
complexo que o mineiro,
na sua proposta de
emancipação política.
Testemunha e agente da
história, Muniz Tavares
escreveu um documento
que nos ajuda a entender
nossa identidade, a
ver com criticidade as
dinâmicas discursivas
do nascimento da
república e que
mostra a importância
de Pernambuco
na formação da
identidade nacional.
A atual edição da
Cepe é a quinta que a
obra recebe. E conta
com as extensas notas e
esclarecimentos feitos

Para entender Um evento histórico


é um símbolo que
participa da formação da
de quem esteva no olho
do furacão: o autor foi
umas das figuras mais
civilização, corrompem
os costumes?” (p. 337).
A importância dos
pelos historiadores
Maximiano Lopes
Machado (1821-1895)

melhor o passado
identidade coletiva de atuantes da Revolução. ocorridos de 1817 não se dá e Manuel de Oliveira
um povo. E compreender Ao lançar, em 1840, A apenas por ter sido o único Lima (1867-1928).
as dinâmicas inerentes história da Revolução de movimento emancipatório

e o presente
a ele é fundamental, Pernambuco em 1817, ele que foi além da fase de
para que possamos tentou resgatar os fatos conspiração. Foi alvo
repensar o passado e suas ocorridos e apontar erros de diversas disputas
influências no presente. e acertos do movimento, de interpretação ao
Reedição histórica marca Esse é, talvez, o
prisma mais importante
ainda que em um tom
abertamente partidário
longo da história, na
qual historiadores
celebração dos 200 anos da a ser visto na reedição
de A história da Revolução de
da Revolução. Muniz traz
uma visão em sintonia
monarquistas tentaram
minimizar a importância
Revolução de 1817 em PE Pernambuco em 1817, lançada com as discussões do movimento –
pela Cepe Editora para humanísticas atuais ao notadamente Francisco
marcar o bicentenário de lamentar, por exemplo, Adolfo Varnhagen (História
Igor Gomes
um marco significativo na que os pernambucanos Geral do Brasil antes de sua
história do país - ainda não tenham conseguido separação e independência
que sua simbologia careça libertar os povos de Portugal), e João
de ser reconhecida fora do escravizados (atitude Manuel Pereira da Silva HISTÓRIA
território pernambucano que, segundo ele, (História da Fundação do
de forma ampla. pretendiam tomar): “Em Império Brasileiro). Esses A história da Revolução
Assinada pelo boa fé, quem poderá esforços apontam para Pernambucana em 1817
historiador e religioso negar que a escravatura a necessidade, naquela Autor - Francisco Muniz Tavares
Francisco Muniz Tavares é o mais terrível dos época, de fortalecer a Editora - Cepe
(1793-1876), a análise flagelos que martirizam unidade imperial e mitigar Páginas - 550
revela a narrativa inerente o Brasil, retardam a narrativas emancipatórias. Preço - Não definido
FABIO SEIXO/ARQUIVO PERNAMBUCO

MERCADO EDITORIAL
Mariza Silviano Santiago é o primeiro autor a lançar livro
Pontes pelo Selo Suplemento Pernambuco, neste mês
Quando dos seus 80 anos Pernambuco, editado pela
em 2016, Silviano Santiago Cepe e coordenado pelo editor
(foto) revelou que gostaria de do jornal, o jornalista Schneider
escrever sobre quem importa Carpeggiani. O lançamento
na literatura brasileira. Primeiro acontece com sessão de
foi Machado, roman à clef sobre autógrafos na Livraria da
o “bruxo do Cosme Velho”. Travessa, em Ipanema, no dia
Agora, ele lança Genealogia da 28 deste mês. O próximo livro

NOTAS ferocidade, longo ensaio sobre


um grande romance do século
do selo, em preparação, trata-
se do 1º volume da Antologia

DE RODAPÉ XX - Grande sertão: veredas,


de Guimarães Rosa. O livro
fantástica da República Brasileira, a
cargo de José Luiz Passos, que
inaugura o selo Suplemento será lançado no 2° semestre.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO

PRATELEIRA
O DRAMA ÉTICO NA OBRA DE
GRACILIANO RAMOS – LEITURAS A
PARTIR DE JACQUES DERRIDA
O autor defende a leitura conjunta e
articulada das obras de Graciliano Ramos,
como Vidas secas e Memórias do cárcere, e do
filósofo francês Jacques Derrida. O elo
entre ambas se dá na semelhança com que
problematizam conceitos e colocam a questão
da alteridade e sua relação com a linguagem,
a política e a produção do conhecimento.

Autor: Gustavo Silveira Ribeiro


Editora: UFMG
Páginas: 252
Preço: R$ 43

OS MENINOS DA RUA PAULO


O clássico húngaro, que já virou filme e peça

Uma maravilha difícil Ideias em voz baixa teatral, ganha edição da Companhia das Letras,
com tradução e prefácio do grande crítico Paulo
Rónai. A partir da história de meninos que
Eis uma obra desafiadora à em última instância, ao O poeta e crítico John nos leva a pensar sobre brigam por um pedaço de terra onde se pode
crítica: O método Albertine, da fracasso. Em Carson, esse Yau é americano e como o eu poético brincar à vontade, a obra trata da passagem
canadense Anne Carson. fracasso atinge um nível descende de chineses. (que nasce junto com o para a vida adulta e dos desafios inerentes
O livro, que chegou ao performático interessante A questão relativa poema) se relaciona com ao processo de amadurecimento. Também
Brasil recentemente via porque, no contato com O a essa herança – o escritor; as referências questiona as causas da guerra ao mostrar o
Edições Jabuticaba, trava método Albertine, percebemos talvez uma forma de a Pollock e Drummond comportamento de adolescentes de Budapeste.
uma queda de braço com que nossas leituras sempre intertextualidade – é em uma relação bonita
Em busca do tempo perdido, de deixam algo para trás. uma das marcas do seu e complexa; a presença
Proust. O ponto óbvio que Em sua, é preciso insistir livro Sotto voce, lançado do erudito e do comum
une ambos é Albertine, a sempre na obra literária. há pouco tempo pela no mesmo poema. A que
personagem encarcerada Ler e reler esse livro é algo Jabuticaba. O nome do interessar, é boa leitura
pelo narrador da obra do mais que recomendado. livro é uma expressão para todos os volumes
autor francês. Em tom de (Igor Gomes) latina para o ato de vocais. (Igor Gomes) Autor: Ferenc Molnár
observações ensaísticas, baixar a voz como Editora: Companhia das Letras
O método… é dividido em forma de enfatizar Páginas: 272
duas partes: na primeira, uma frase. O livro Preço: R$ 39,90
são elencadas 59 reflexões é um todo coerente
rápidas sobre a figura de com essas ideias. Pois, FRAGMENTOS SOBRE POESIA E LITERATURA 1797–
Albertine na trama; na 2ª quando observada 1803 SEGUIDOS DE CONVERSA SOBRE POESIA
parte, há apêndices com como um todo, a obra Inédito em português, o crítico literário, poeta
reflexões mais extensas e apresenta justamente e editor alemão foi traduzido por Constantino
profundas. Mas reduzir o uma declaração Luz de Medeiros. Schlegel influenciou os
livro a isso é um equívoco em tom suave, que movimentos literários europeus do século
tremendo. O jogo ficcional enfatiza a feitura da XIX, a partir de reflexões sobre a vida e a
na obra de Carson mais poesia, às vezes de representação artística, a unificação de todos
parece, nas entrelinhas, forma metalinguística. os gêneros literários, e a confrontação de
uma aula de leitura – não Essa ideia, me parece, diferentes perspectivas sobre o papel da arte.
porque emula um ensaio une os temas que
sobre um clássico, mas FICÇÃO aparecem em Sotto POESIA
porque nos mostra a voce: a definição da
falácia que é tentar domar O método Albertine identidade tanto Sotto Voce
uma obra de arte. De como Autora - Anne Carson pela presença da Autor - John Yau
a teoria e o distanciamento Editora - Jabuticaba ancestralidade quanto Editora - Jabuticaba
do do seu objeto de análise Páginas - 45 pela ausência de Páginas - 60 Autor: Friedrich Schlegel
são esforços fadados, Preço - R$ 20 características – que Preço - R$ 20 Editora: Unesp
Páginas: 555
Preço: R$ 84

BALADAS PROIBIDAS
Relato de fatos reais vividos por Gabriel Godoy,
jovem que saiu do interior de São Paulo para
EVENTO LITERÁRIO REVOLUÇÃO 1 REVOLUÇÃO 2 a capital e virou traficante. Posteriormente,
ficou conhecido como “o rei do ecstasy”.
Proximidade com o Reedição marca o Olhos negros percorre os Em um relato sobre sua ascensão e queda,
Carnaval adia Bienal bicentenário de 1817 cenários do movimento o protagonista conta ao jornalista Bolívar
Torres detalhes da vida de luxo, obtida com o
Prevista para este mês, a III Bienal O ABCdário da Revolução Republicana Outro livro que será relançado comércio de drogas em meio a mortes, prisões
Internacional do Livro do Agreste de de 1817, acrescido de gravuras durante as comemorações pelo e extorsões, e choca ao deixar evidente que esse
Pernambuco, em Garanhuns, foi e comentários de viajantes, bicentenário da Revolução universo é algo de fácil acesso aos jovens.
novamente adiada. Originalmente testemunhas e historiadores, será Pernambucanade 1817 - no
prevista para setembro de relançado pela Cepe Editora no dia Museu da Cidade do Recife,
2016, ela passou para março 12, no Museu da Cidade do Recife. sdia 12 - é Olhos negros. Assinado
de 2017 por conta da crise O ABC inclui índice Arquitetônico, pela romancista e historiadora
econômica. O motivo da segunda Ortográfico, Bélico, Botânico, Maria Cristina Cavalcanti de
transferência foi a proximidade Eclesiástico, Etnográfico,Jurídico, Albuquerque, a obra teve sua Autores: Gabriel Godoy
com o Carnaval. Serão mais de Poético e outros. Na ocasião, primeira edição em 2010 pela e Bolívar Torres
100 editoras reunidas. Espera- serão abertas as comemorações Bagaço. No livro, uma narradora Editora: Record
se a visita de cerca de 200 mil pelo bicentenário do movimento percorre os cenários recifenses em Páginas: 210
pessoas nos 5 dias do evento. libertário, a partir das 16h. que se desenrolou a revolução. Preço: R$ 39,90
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PERNAMBUCO, MARÇO 2017

José
CASTELLO HALLINA BELTRÃO

Tempestade de palavras
Não tenho suportado a leitura do noticiário. todos se sentem mais confortáveis em meio parece, em nosso estranho mundo de hoje,
Também não tenho assistido aos telejor- à zoeira e ao falatório, em que todas as vozes uma garantia de pureza. A mais preciosa
nais. Navegar na rede frequentemente me se dissolvem, em que basta falar por falar, proteção. Uma garantia de verdade. Basta
sufoca. Embora a realidade não ande nada sem quase nada dizer, e você se sentirá de- falar – se pensa – e a verdade aparece.
agradável, não me refiro aos fatos em si – até safogado. No ruído infernal de hoje, a pala- O mundo contemporâneo exige de nós,
porque não acredito na existência dos fatos vra é desvalorizada, passa a valer qualquer sobretudo, isso: que falemos, não importa
em si. Mas o que se passa comigo então? coisa. O importante é dizer e escrever, não o quê, mas que não deixemos de falar. O
A vida contemporânea está contaminada importa o quê. O importante é tagarelar e ditado se inverte: agora é em boca fechada
por um crescente tagarelar, um falatório gritar. “Falemos”, nos ordena a grande voz. que entra mosca. É sobre as bocas fecha-
dispersivo e opressivo que não chega a lugar Não, a solidão não representa um perigo. das que recaem a suspeita e a maledicên-
algum. Asfixiado pelo excesso de palavras, Ao contrário: mais do que nunca, ela é a pos- cia. Protesta Baudelaire, dois séculos antes
afogado em declarações, denúncias e in- sibilidade do pensamento próprio. A possi- de nós: “Desejo principalmente que meu
sinuações, com frequência me lembro de bilidade do próprio pensamento. “Por certo, maldito jornalista me deixe divertir-me à
Mordássov, a cidade imaginaria criada por o tagarela, cujo supremo prazer é falar do alto minha maneira”. Recorda-se, a propósito,
Fiodor Dostoievski na novela O sonho do titio, de uma cátedra ou de uma tribuna, correria de La Bruyère, o moralista francês do século
que li na tradução de Paulo Bezerra para a o risco de tornar-se um completo louco na 17, quando este se refere à “infelicidade
editora 34; um vespeiro de fofocas, intrigas ilha de Robinson”, prossegue Baudelaire imensa de não poder estar só”. Podemos
e mexericos que, em nossa vida diária, se em suas meditações. Nos dias de hoje, os acrescentar: de não poder estar quieto. Pois
resume em uma palavra da moda: delação. solitários e os silenciosos são vistos com o silêncio e o recolhimento parecem cada
Estamos todos afundados nas almofadas do grande suspeita. Se não falam, é porque eles vez mais suspeitos.
salão de Mária Alieksándrovna, a primeira escondem algum segredo. Se eles preferem Na era dos talk shows, das celebridades
dama do fuxico e da intriga em Mordássov. estar sozinhos, pensa-se ainda, é porque a e das selfies, a solidão e o silêncio se tor-
Nessa algazarra, a verdade que se dane – presença do outro os ameaça e denuncia. nam perigosos. Em nosso mundo em rede,
importam os efeitos e a repercussão. Em resumo: o solitário se transforma em a compulsão à exposição se dissemina.
Nesse estado de desânimo, que é crescente um suspeito. A própria solidão – a própria “Quase todas as nossas desgraças nos vêm
e não é só meu, chego, por mero acaso, à ausência do crime – seria a prova do crime. de não sabermos ficar em nosso quarto”,
A solidão, o capítulo 23 de O spleen de Paris, de “Não vou impor a meu jornalista as virtu- diz Baudelaire, citando Pascal – mas ele não
Charles Baudelaire – que leio na tradução de des de Crusoé”, diz Baudelaire, “mas peço- está certo de que a frase seja exatamente
Leda Tenório da Motta para a editora Imago. -lhe que não envolva no decreto acusatório de Pascal e, no entanto, isso não o afeta. O
Baudelaire dá a seu livro um subtítulo inspi- os amantes da solidão e do mistério”. Aque- mundo contemporâneo valoriza também a
rador: Pequenos poemas em prosa. Sim, porque le que muito fala e que, assim, assume o precisão – ainda que ela não passe de um
é da poesia, de fato, que se trata. Em nosso papel de acusador, não corre perigo porque, jogo de cena, como no caso das estatísticas,
mundo ríspido e agressivo, de gritaria, de ao menos aparentemente, “tudo expõe, tudo que engessam a verdade, mas nem sempre
tagarelice e de ódio, nunca precisamos tanto mostra”. Aquele que está sempre acompa- a carregam. Na época das pesquisas de opi-
da suavidade dos poetas. E também de seu nhado parece nada temer, nada ter a escon- nião e das sondagens, devemos confessar
silêncio. Em meu socorro, Baudelaire viaja der, já que se encontra sob a vigilância e a abertamente, até mesmo escandalosamente,
desde o século 19 até nossos dias – século tutela de tantos olhares alheios. Protegido nossos segredos, ideais e posições. Nada
19, a propósito, que me deu outra figura por um escudo de palavras, o falador se pode ficar escondido. Até das crianças se
decisiva em minha sofrível formação, o esquiva e se fortalece. As palavras deixam exige que sejam falantes, extrovertidas e que
próprio Dostoievski. Detenho-me em suas de ser um meio de expressão e se tornam “interajam” com seus coleguinhas, ou logo
anotações. Eles me oferecem a chance de um meio de intimidação. Transformam-se serão tidas como esquisitas e talvez doentes.
um caminho. E me ajudam a entender por em armas. Em nosso mundo frenético, ler um poeta
que, ultimamente, tenho preferido ficar em Diz Baudelaire a respeito dos falantes e como Charles Baudelaire nos permite, por
silêncio e sozinho. dos prolixos: “Não os lastimo, porque adi- algum tempo, respirar. Respirar e silenciar.
“Um jornalista filantropo me diz que a vinho que suas efusões oratórias lhes re- Sair um pouco da atmosfera de Mordássov
solidão é ruim para o homem”, começa Bau- servam volúpias iguais àquelas que outros – abandonar a tempestade de palavras que
delaire. “Defendendo sua tese, cita, como retiram do silêncio e do recolhimento; mas desaba sobre nós. Deixar um pouco de lado
todos os incrédulos, as palavras dos Pais da os desprezo”. Ter a palavra sempre exposta as confidências e as incontinências de Má-
Igreja.” A superstição diz que o demônio – como em A carta roubada, de Edgar Alan ria, levantar-se de seu sofá de fofoqueiras,
prefere os lugares áridos e vazios – e que a Poe, que Jacques Lacan transformou em e finalmente estar sozinho, o que pode ser
solidão, em consequência, lhe seria fértil. um caso exemplar em célebre seminário mais inspirador? Se não inspirador, pelo
No mundo contemporâneo, de fato, quase -, desnudar-se, exibir-se, promover-se menos consolador.

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