Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
br
HALLINA BELTRÃO
ROBERTO PIVA
UM PASSEIO PELA SÃO PAULO DO POETA E PELAS CONTRADIÇÕES DE SUA OBRA XAMÂNICA
2
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
É
Paulo Henrique Saraiva Câmara
sobre Roberto Piva, poeta xamã, Pedro Lemebel que trata da complexa relação Vice-governador
Raul Henry
que falamos no texto principal desta de amor e rejeição entre um homem cisgênero
edição. Piva, um poeta que sempre e uma mulher transexual durante a ditadura no Secretário da Casa Civil
Antonio Carlos Figueira
correu por fora dos grupos poéticos Chile – episódio histórico que também marca a
dos anos 1960 e 1970 – ainda que ficção de Roberto Bolaño. Deste, resenhamos o COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
tenham tentado enquadrá-lo em livro O espírito da ficção científica, que reúne temas que Presidente
diversas caixinhas. Um artista que, em sua cruzada seriam vistos em toda sua obra posterior. Também Ricardo Leitão
contra e mediocridade, se valeu de elementos não movida pela ditadura, a escritora portuguesa Dulce Diretor de Produção e Edição
hegemônicos para erigir seus poemas. Com isso, Maria Cardoso nos faz pensar, na entrevista do Ricardo Melo
ganhou a imagem de subversivo. O que o texto de mês, sobre a relação entre escritor e literatura. Diretor Administrativo e Financeiro
capa desta edição nos traz é essa necessidade de não A partir desta edição, deixamos de contar com Bráulio Meneses
nos deixarmos levar pelas aparências e discursos a colaboração do romancista Raimundo Carrero
já propagados e continuar a visitar a obra do poeta. como um de nossos colunistas. Carrero passa a
E visitar sua biblioteca, em São Paulo, presevada dirigir o jornal cultural Cenas, dedicado à literatura.
por esforços envidados com a ajuda de leitores, por A ele e à sua equipe, nossa certeza de pleno êxito
Uma publicação da Cepe Editora
meio de uma campanha financeira no site Catarse. no desenvolvimento do novo projeto. Contamos, a Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Também nesta edição, uma resenha sobre a partir desta edição, com a colaboração do escritor Pernambuco – CEP: 50100-140
antologia Olhos de azeviche, que se sobressai no Everardo Norões como nosso colunista. Norões, Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
mercado pela proposta de reunir ficções de 10 um dos nomes mais expressivos de nossa ficção,
autoras negras. Uma forma de acompanharmos foi vencedor do prêmio Portugal Telecom (atual SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
o cada vez mais sólido movimento de escritores Oceanos) com seu livro de contos Entre moscas. Luiz Arrais
afro-brasileiros para resgatar seu protagonismo EDITOR
artístico. Ainda trazemos uma ficção inédita de Uma boa leitura a todas e todos. Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
BASTIDORES
JANIO SANTOS
do lugar onde os
Em dezembro de 2003, no México, peguei as malas da crise de escrita que eu estava enfrentando. Falei
e fui morar em Barcelona. Tinha ganho uma bolsa da que estava cogitando localizar meu novo romance
União Europeia para estudar um doutorado em Teo- em Barcelona. Que eu queria escrever sobre o que
ria Literária e Literatura Comparada. Planejava ficar ficava perto de mim. Que estava cansado de narrar
dois anos. Máximo três. Mas os planos mudaram um desde o afastamento, desde a distância, que gostaria
filhos crescem
pouco: até hoje, fevereiro de 2017, ainda não voltei. de experimentar, na cotidianidade, aquilo sobre o que
estava escrevendo. Mas que eu sentia pudor (vergonha,
* constrangimento). Que não tinha certeza de estar legi-
Fui morar num apartamento com dois argentinos. timado para escrever sobre Barcelona. Aí, Jordi falou:
Há anos na Espanha, um
Os colegas do doutorado eram peruanos, colombia- – A gente também é do lugar onde os filhos crescem.
nos, brasileiros, mexicanos e catalães. Na metade das
festas, eu ia comprar mais vinho e cerveja nas lojas *
certo mexicano se questiona dos paquistaneses. E, quando precisava de alguma
coisa aleatória (um caderno, um parafuso, uma bola
Mas, peraí: eu não ia deixar de ser um escritor me-
xicano, isso era impossível. Aliás, eu não queria. Eu
* *
Além do mais, nesses 10 anos, o México também O resultado é No voy a pedirle a nadie que me crea. Um
tinha mudado. O México não era mais aquele país romance policial misturado com autoficção sobre os
onde eu morava, aquela pátria que eu conhecia. limites do realismo. Um romance humorístico que
Dentro de mim, o México estava deixando de ser um contém uma reflexão sobre os limites do humor. Um
espaço real de interação para virar um cantinho de romance com personagens mexicanos, mas também
lembranças. Um lugar, até, imaginário. Cada vez que catalães, argentinos, italianos, chineses ou paquista-
eu colocava a bunda na cadeira para escrever, sentia neses. Um romance mexicano, sim, mas também um
que o cenário do enredo escorregava entre minhas romance mestiço, global, cosmopolita. E, para mim, o
mãos. Eu pressentia o perigo iminente de tornar mais importante: um romance com o qual trilhei um
folclórico, exótico, aquele que tinha sido meu lar. caminho para continuar a escrever. A edição brasileira
de No voy a pedirle a nadie que me crea será publicada pela
* Companhia das Letras em outubro de 2017, com tra-
Li nos cadernos do artista mexicano Gabriel Oro- dução de Sérgio Molina. No voy a pedirle a nadie que me crea
zco: “Não gosto de ir muito longe de casa com o ganhou o Prêmio Herralde 2016, o mesmo prêmio que
objetivo de fazer uma obra de arte. Eu odeio o exótico ganharam, entre outros, Os detetives selvagens de Roberto
nesse sentido. Quero que minha arte esteja perto de Bolaño, O mal de Montano de Enrique Vila-Matas e O
mim e eu perto do que me rodeia”. passado de Alan Pauls.
4
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
RESENHA
Um bolero seco A tarde caía rápido em Cajón Del Maipo. O sol foi in-
terceptado pelos morros e a luz se amoleceu pelas
sombras rasantes de cor laranja. Carlos tirava foto-
para deixar o
grafias, tomava medidas e fazia planos estranhos do
terreno somando metros e perímetros com réguas de
cálculo. Não era sobre plantas o seu trabalho? Sobre
botânica ou flores ou algo parecido? Ela não entendia
direito, não entendia dessas coisas universitárias.
amor apodrecer
Preferia não perguntar para não falar bobagem.
Preferia se fazer de louca, já que ele achava que ela
era boba respondendo sempre: depois te explico.
Por isso deixava ele trabalhar tranquilo, via que
se abaixava sobre o caminho, de barriga no chão.
Trecho de Tengo miedo Olhava como subia e descia a ladeira uma e outra
vez, olhava o precipício, olhava a hora, contava
HALLINA BELTRÃO
barroca, com
insistiu sentindo o calor da tristeza umedecendo sacolas da feira, e depois de fechar a porta, dentro de
seu olhar, descolorindo a aquarela azul das flores casa, ela não precisava fazer nem dizer nada porque
murchas que esperavam o orvalho amargo e teatral eles, sem rodeios, diziam: então, já que você mora
aquela mania de
do seu pranto. Mas não conseguiu chorar, por mais sozinho, quem sabe, podemos nos divertir, ando louco
que tenha se esforçado em lembrar canções tristes de vontade. Nunca faltavam os passageiros do toque
e arpejos sentimentais, não podia desaguar o oce- de recolher, esses maconheiros que ficavam até tarde
ano atormentado de sua vida. Esse bolero seco que
emanava tantas letras de amores peregrinos, tanta
lírica dor de cotovelo, de amor barato, hemorragia
enfeitar até o mais reunidos nas esquinas sem poder voltar pra casa com
medo de serem presos. Sobravam os desempregados
que por umas moedas, por um cigarro, por uma cama
de amor com “tinta sangre”, maldito amor, “yo que todo
te lo di”, “tu querias que te dejara de querer”, “tu te quedas yo
me voy”, “tu dijiste que quizás”, “tu me acostumbraste y por
simples momento quente lhe faziam o favor sem trâmite. E ela não pre-
cisava de muito verso e esforço para que a quisessem
apenas por um momento. Não precisava esgotar-se
eso me pregunto”. Amores de folhetim, de panfleto grato. Alguém tão enigmático, capaz de ir embora desse tentando parecer fina e elegante. Não era necessário
amassado, amores perdidos, revirados na dança jeito, sem dar nem tchau. Achando que pode pegar tecer olhares de coração para que Carlos, só de vez
triste do marica sozinho, o marica faminto de “besos e largar, como se fosse um objeto, uma caixa a mais em quando, a abraçasse como amigo, deixando-a
brujos”, o marica drogado pelo tato imaginário de que faz parte da decoração. Sempre falando: depois tão excitada, que se sentia culpável por desejar esse
uma mão pandorga tocando o céu turvo de sua car- eu explico, você não entende, amanhã conversamos. corpo proibido. Tudo seria mais fácil se não tivesse que
ne, o marica infinitamente preso pela lepra boiola Acreditava que era uma bicha bobinha, apenas um suportar o feitiço de sua presença. Voltaria a vadiar na
em sua gaiola, o viadinho frufru aprisionado em porão para guardar caixas e pacotes misteriosos? O que rua pegando vagabundos e ereções momentâneas com
sua teia de aranha melancólica de maquiagens e está achando esse pirralho de merda? Será que pensava o arpão de sua pesca milagrosa. E o amor, enluvado
embelecos, o marica fifi alinhavado nos pespontos que ela não percebia? Que reuniões de barbudos eram nesse nome amaldiçoado, deixaria apodrecer com
de sua própria trama. Tão sozinho em seu casulo, aquelas em sua casa? Por que tanto estudar? Se fingia os restos do piquenique, com os ossos do frango que
que nem conseguia chorar sem ter um espectador de zonza só por causa dele. Se aguentava tanta lorota fermentariam nessa ladeira do Cajón del Maipo. Onde
apreciando o esforço de encenar uma lágrima. sobre os livros das caixas era porque estava lhe fazendo nunca voltaria, onde jamais voltaria a dançar como
É como devolver pérolas ao mar, concluiu sacudindo um favor. Mas não suportaria humilhações. O que uma velha ridícula para esse malnascido.
as flores, espalhando faíscas de vidro no ar carnava- está achando esse pentelho abobado? Que pode me
lizado pelo seu gesto travesti. Carlos não merece nem tratar assim? Acha que porque é universitário, bonito Tengo miedo torero foi o único romance que o chileno
uma lágrima, nem mesmo uma gota. De jeito nenhum e jovem e com esses olhos tão... Só por ele se fingia de Pedro Lemebel (1952–2015) lançou em sua carreira
desperdiçaria a joia de sua tristeza com alguém tão in- dama, só porque esses olhos amáveis a intimidavam. literária. A tradução ainda não tem editora no Brasil.
6
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
ENTREVISTA
Dulce Maria Cardoso
Uma romancista
influenciada pela
memória do exílio
Sucesso em Portugal, escritora fala do lugar da literatura
em sua existência e conta como seu começo na escrita
se relaciona com o retorno ao país após a ditadura
DIVULGAÇÃO
Everardo
NORÕES
Às vezes, um texto que elegemos é tão cativante, seu país, fez o recitativo dos poemas de Nazim
que nos apropriamos dele e o tornamos nosso, Hikmet. Um deles, Passeio ao entardecer, tem uma
íntimo. É o que confessou Carlos Drummond de estrofe que diz assim:
Andrade no prefácio que fez ao Poemas. Era o pri-
meiro livro de Joaquim Cardozo, editado em 1947 As lâmpadas do merceeiro se acenderam,
pelos amigos, em comemoração ao seu aniversário o cidadão armênio nunca perdoou
de 50 anos. Drummond comentou o espanto que que tenham degolado seu pai
lhe havia causado a leitura de A nuvem Carolina. Mais sobre a montanha curda.
tarde, numa entrevista, contou tratar-se de um Mas ele te ama,
dos poemas de sua preferência. Nele, é narrada porque também nunca perdoaste
Das nuvens
a conversa entre o poeta de Signo estrelado e uma aqueles que marcaram com essa mancha negra
nuvem com gestos de mulher, no seu “voo viúvo o rosto do povo turco.(...)
de uma asa”. Um diálogo nada estranho para um
artista como Joaquim Cardozo, para quem inter- O Ministério da Cultura da Turquia gravou o Oratório.
pretar acenos de uma nuvem era algo pertinente. Sabe-se, no entanto, que na edição oficial do CD foi
plácidas e de
Ele, que considerava possível tudo transformar em mantido dessa estrofe apenas o verso As lâmpadas do
linguagem, a ponto de ter cogitado gravar os sons merceeiro se acenderam. Os outros foram suprimidos, numa
do movimento das ondas do mar para traduzi-los acrobacia da censura para tentar encobrir uma alusão
em palavras. ao episódio do massacre dos armênios pelos turcos.
mau agouro
Pensar “nuvens” e “preferências” me ocor- No holocausto, ocorrido em 1915, foram assassina-
reu ao assistir, numa “nuvem” internéti- das mais de 1 milhão de pessoas. Meio século após
ca” do Youtube (https://www.youtube.com/ sua morte, os versos de Nazim Hikmet continuavam
watch?v=e32iN2rmUXs), ao Oratório Nazim, da au- impedidos de voar livremente, como as gaivotas de
toria de um pianista e compositor de origem turca, seu Mar de Mármara.
Fazil Say, que já se apresentou na sala Osesp, de São Introdutor do verso livre na poesia turca, foi ele
Paulo, em maio de 2015. Descobri que o homena- quem abriu a poética de sua língua à modernidade.
POESIA EM ÁUDIO
Marco Celina de Holanda é celebrada em CD com seleta de
Polo poemas declamados por vozes femininas da cultura de PE
A poeta Celina de Holanda Maria de Lourdes Hortas,
(imagem, 1915-1999) foi Eugênia Menezes, Adriana Paes
homenageada com o lançamento Barreto, Lucila Nogueira, Lourdes
do CD Celina de Holanda e as Mulheres Sarmento, Marina Nogueira e
da Terra . São 50 poemas nas Tereza Tenório. A iniciativa é
vozes de Vernaide Wanderley, uma coprodução das secretarias
Maria Pereira Albuquerque, de Cultura e de Educação da
Myriam Brindeiro, Fátima prefeitura do Cabo-PE com a
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:
Editora publica obra de auto- Com reformas amplas e significativas, editoras lançam Companhia Editora de Pernambuco
ajuda de Fernando Pessoa mão de formas alternativas para poder atravessar a crise Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
A editora Tinta da China lança Dois ex-funcionários da Cia. Brasileira do Livro, diante da CEP 50100-140
o livro Como Fernando Pessoa das Letras deverão lançar nova crise é preciso se reinventar. É
Recife - Pernambuco
pode mudar a sua vida, de Carlos (e enxuta) editora no segundo o que está fazendo o mercado
Pittela e Jerônimo Pizarro. semestre deste ano. Duas editorial brasileiro com estruturas
Entre as lições (acredite): como profissionais que pertenceram mínimas, mas eficazes, e meios
desrespeitar acordo ortográfico, à extinta Cosac Naify também alternativos. São exemplos disso
como interpretar narizes, como criaram a pequena Ubu. A o comércio online, transformar
reinventar o futebol. A obra quer Carochinha funciona com os impressos em e-books, o
desmistificar a imagem de que apenas dois editores e dois apelo ao crowdfunding (tipo de
Pessoa era um sujeito isolado estagiários. A Jujuba tem três financiamento on line antecipado).
e fantasmagórico, mostrando funcionários e setores financeiro As coedições também são vistas
como era atento ao mundo e e de divulgação terceirizados. como modelo de dividir custos e
cheio de projetos e sonhos. Segundo o presidente da Câmara reaquecer o mercado.
10
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
CAPA
HALLINA BELTRÃO
O xamanismo que
Piva chama de poesia
ainda contaminam a
uma cidade não vivida que apenas imagino a partir o lançamento de Paranoia foi se delineando como um
dos livros de Roberto Piva. Num sopro nostálgico, caso mais ou menos isolado: primeiro, na década
identifico esquinas míticas, bares reformados, pré- de 1960, um silêncio moralizador da crítica conco-
produção literária do Brasil dios, parques, estátuas, mas os dentes da memória
rangem bem-afiados e o tempo pesa demais na pai-
mitante com uma leitura que o filia diretamente ao
Surrealismo; depois, na década de 1970, a estranha
sagem. Esse garoto ouvindo pela milésima vez Deu união entre sua produção e os demais 25 poetas da
Juliana Bratfisch onda, caminhando pela Praça da República, nada se antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda;
parece com aqueles jovens que perambulavam por ali nas décadas seguintes, a “cooptação” de sua poesia
60 anos atrás, sempre com um livro de Lorca, Artaud, pela literatura homoerótica; por fim, a posição que
Ginsberg ou Jorge de Lima nas mãos. Numa última ele ocuparia desde o lançamento de suas Obras reunidas
tentativa delirante, me detenho em um detalhe da pela Editora Globo, a conquista de um público mais
paisagem: olho para o topo do Edifício Copan, mas amplo e uma eterna redescoberta.
ali tampouco estão Polén e Luizinho gozando todo Sua poesia, entretanto, nunca deixou de ser lida,
o esperma do universo. O pouco que resta desse principalmente nos meios jovens da contracultura. No
delírio nostálgico que nasce da leitura de uma obra ensaio publicado na Coleção Ciranda da Poesia, publicado
talvez possa ser encontrado no meu destino, o se- em 2012 pela editora da UERJ, Sergio Cohn explicita
gundo andar do número 108 da Avenida São João, a importância da descoberta de Piva em sua própria
na Biblioteca Roberto Piva, onde se encontram hoje formação e relata as inúmeras tardes passadas na Bi-
reunidos os livros, alguns manuscritos e rastros de blioteca Mário de Andrade pesquisando referências
uma obra poética importantíssima, no entanto, mais guiadas pelos livros de Piva e Willer, copiando à mão
conhecida pelo culto à figura do autor excêntrico que poemas dos autores que encontrava. Enquanto editor
pelo estudo sistemático de seu texto. da revista Azougue, Sergio Cohn sempre esteve atento
Se tentarmos inseri-lo em uma história da poesia não apenas em publicar os poemas de Piva em diversos
brasileira a partir da década de 1960, Piva resiste como números da revista, incitando a formação de novos
uma voz destoante, mas talvez o silenciamento em leitores, como também em abrir espaço ali para a
relação à sua obra e o boicote que tem se propagan- circulação de poetas que conviveram no mesmo pe-
deado dentro dessa história precisem ser reavaliados. ríodo, elegendo suas referências literárias como uma
11
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
forma complexa
de 1990 sob o signo dessas leituras. cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão rococó
Quando lemos diversas entrevistas de Piva, notamos força de um corpo frágil como âncoras
muitas expressões repetidas por ele que também se gostei de você eu também
forças estéticas e
tornaram clichês de sua recepção. Em uma dessas amanhã então às 7
expressões, num tom oscilante entre ressentimento e amanhã às 7
certo orgulho, ele dizia não ser marginal, mas margina- tudo começa agora num ritual lento & cercados de gardênias de pano
lizado, principalmente por não ter pactuado nem com
a universidade, nem com a esquerda militante, estando
por muito tempo afastado do centro dos debates mais
existenciais. É de Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde de São Paulo
Como um desejo espetacular tão dopado de coragem
marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti
acalorados de sua época. Como consequência dessa
marginalização a que ele teria sido relegado, persiste a
ideia de que teria demorado décadas para que houvesse
atualidade gritante assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem 2
CAPA
a singularidade do
maldito e plenamente erotizado, despojado da capa do ainda a ser explorado, dos quase 20 cadernos que
nacionalismo, perambulando pela noites de São Paulo. estão sob os cuidados de Gabriel. Parte desse material,
Todos os autores, livros e leituras são convocados para porém, deve interessar apenas aos pesquisadores ou
desejo, continuar
atuar de forma anárquica pela cidade. leitores especializados, como é o caso das cadernetas
Uma obra que, como escreve Eliane Robert Moraes de capa preta que abrigam uma primeira versão do
no posfácio do segundo volume das Obras reunidas, su- processo de escrita de Piazzas.
põe uma equação bastante complexa na tentativa de
sustentar um discurso poético que se volta tanto para
as necessidades do coletivo, como para as inúmeras
o prazer das suas Existe um rigor no controle da obra publicada que
estaria em franca oposição ao desregramento que Piva
protagonizou em vida (ou da imagem excêntrica que
demandas do desejo e para as derivas sem fim da aluci-
nação, é de uma atualidade estonteante. Nessa tentativa
de equacionar forças estéticas e existenciais, sua voz
experiências ainda prevalece quando pensamos em Piva). Pois, se
é verdade que o desregramento era seu modo de viver
e discursar sobre a poesia, também é verdade que
poética tão singular se faz resistência contra qualquer * sua obra publicada em vida é um conjunto orgânico
sistema de vida baseado na moral, através da trans- É um desafio gerir o espaço idealizado por Gabriel e bem-organizado. Sergio Cohn, no ensaio que integra
gressão, na escolha das relações homossexuais contra Kolyniak e pela comissão formada pelos poetas e a coleção Ciranda da Poesia, lembra a experiência de
o casal heterossexual, reprodutor e consumidor; do amigos de Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e formatação e feitura do Ciclones, a convite do poeta
xamanismo e do candomblé contra o catolicismo; das Antonio Fernando de Franceschi, mas a iniciativa, Fabio Weintraub, na editora Nankin: “De um lado,
drogas alucinógenas não como alienação, mas como com todas as dificuldades que podem surgir, ainda me ele sabia da dificuldade que poderia haver em ter
um ritual necessário para se libertar do real cotidiano e parece uma alternativa fundamental para pensarmos outro convite para publicar seus textos; por isso não
opressor. É uma escrita que insiste obsessivamente na acervos de escritores. Por mais que uma instituição queria perder a chance de publicar os poemas que
subversão das regras morais e estéticas como um modo renomada talvez tenha melhores condições de pre- considerava importantes. De outro, conversávamos
singular de atravessar o século XX sem envelhecer, servação das obras, o conjunto e a ambientação se horas a fio sobre a ideia de que um livro precisa ser
ainda que saibamos que o coito anal, ou quaisquer ou- perdem. Um pesquisador ou um leitor entusiasta que conciso para se comunicar rapidamente com o leitor”3.
tras formas de transgressão das normas, infelizmente, irá frequentar a biblioteca depois de sua inauguração Piva parecia construir seus livros menos como uma
esteja muito distante de derrubar o capital. poderá transitar entre todas as referências da poesia recolha de poemas produzidos no período que precede
O livro O limite da navalha, de Italo Diblasi, publica- de Piva sem dificuldade, sentindo que faz parte de a publicação do que como projetos bem-estabelecidos
do em 2016 pela Garupa, é o mais próximo em que uma comunidade. Verdade seja dita, mesmo quem e conscientes. Talvez pensasse em livros muitas vezes
chego a perceber qualquer reverberação de Roberto nem sequer se interessa pela poesia de Piva pode portáteis para carregar consigo pela cidade, para ler
Piva na poesia que está sendo produzida hoje em dia. se beneficiar com a iniciativa de tornar acessível na cama com seus amantes ou levar nas suas viagens
O que mais me impressiona nesse primeiro livro de sua biblioteca. Nas duas horas em que estive com à Ilha Comprida ou Mairiporã. Mas essas são apenas
Italo é uma mesma fome de leituras e experiências Gabriel, fomos batendo papo, falamos muito sobre hipóteses que sua biografia nos permite elaborar.
transmutadas no corpo de seus poemas, alcançando Piva, é claro, mas transitamos também por outras De todo modo, havia rigor na construção das séries
com isso uma dicção singular na poesia que tem tantas leituras em comum, das edições de Bataille e de poemas e seus manuscritos não desmentem a
sido escrita hoje em dia. Tendo gravado em 2014 dos surrealistas aos livros de Aleister Crowley, pas- seriedade que tinha em relação à sua obra.
um vídeo no qual Italo recita um poema da terceira samos pelas estantes de filosofia, literatura italiana e Em uma entrevista realizada por Ademir Assump-
parte de Ciclones para o “Empreste sua voz para um religiões. A impressão que eu tenho é de que nenhum ção (publicada em livro na série Encontros da Azou-
poeta morto”, projeto de curadoria do poeta Ricardo leitor sairia ileso da forte personalidade que essa gue), Piva afirmou que Oswald de Andrade sabia que,
Domeneck, a referência explícita da leitura da obra biblioteca preserva. quando morre um pajé, morre uma biblioteca viva.
de Piva também aparece nesse seu primeiro livro, no Consultado sobre a manutenção do espaço, Gabriel O contexto dessa afirmação, ligada à importância
único poema dedicado a alguém: diz que a ideia é promover cursos e criar um formato dada por Oswald quanto à manutenção da cultura
de assinaturas em que os colaboradores receberiam indígena, claramente destoa do que estou prestes
Erosofia como contrapartida publicações com artigos, tradu- a afirmar. Penso que, talvez, entretanto, possamos
para Roberto Piva, no inferno ções e inéditos de Piva. O volume Antropofagias e outros distorcer a frase de Oswald se acreditarmos que
escritos foi um dos brindes de quem havia colaborado quando uma biblioteca como a de Roberto Piva
Uma lição de amor com o projeto em sua fase inicial quando foi feito um renasce – principalmente através de cada leitor que
para serpentes arrecadamento coletivo através do site Catarse. Tal atualiza esse legado –, é também um pajé que renas-
ou a peçonha livro pode ser encontrado no site da Editora Córrego, ce com ela. É preciso, entretanto, que deixemos de
contra os afetos assim como a edição de uma plaquete inédita, Carta lado o folclore que circunda o autor de Paranoia, para
higienizados aos alunos. Nesses volumes, temos alguns ensaios, começarmos a efetivamente ler sua obra, buscando
em paranoia poemas inéditos, incluindo uma série de poemas, compreender como o discurso de um autor sobre sua
Pongo Dombo – Mala na mão & asas pretas, cujo subtítulo própria produção pode muitas vezes enfraquecer as
os infrarrealistas foi utilizado posteriormente no segundo volume das leituras que sua poesia proporciona. Seus inéditos
estão com Blake Obras reunidas da Globo. e sua biblioteca podem ser elementos de suma im-
em sua Jerusalém Investir em inéditos em livro também foi a op- portância para sustentar essas leituras que começam
de místicos erotizados: ção feita pelos editores da Azougue e da Cozinha a se estabelecer.
Experimental na seleção que compõe o primeiro
por Eros contra a caridade volume da Coleção Postal. Grande parte dos poemas 1. Do livro Os dentes da memória, de Camila Hungria e
pela diferença contra o uniforme ali presentes foram publicados em revistas e edições Renata D’Elia. Editora Azougue, p. 94
por Shiva contra a cruz.2 há muito tempo esgotadas, como é caso de San Paulo’s 2. Em O limite da navalha. Editora Garupa, p. 33
improvisation, estreia de Piva na Antologia dos Novíssimos 3. Sergio Cohn. Roberto Piva (Col. Ciranda da Poesia).
Com a inversão da fórmula de contraposições “con- editada por Massao Ohno, em 1961, ou de Manifesto da EdUERJ, p. 59.
tra X por Y”, presente nos manifestos Os que viram a
carcaça, esses últimos três versos de Italo – a opção por
Eros, pela diferença e por Shiva, contra a caridade, o
uniforme e a cruz – talvez procurem nos ensinar uma
lição de amor ou ao menos um princípio de delicadeza: O que ler de Roberto Piva
devemos bombardear o horizonte através dos nossos
sonhos, antes que nos universalizemos no senso co- COXAS (1979) – Adolescentes mágicos do su-
mum (recebendo, com isso, os méritos de termos todas
José Juva búrbio, sexo e subversão. Clube Osso & Li-
as virtudes do mundo, para parafrasear um verso de berdade. A orgia como fascinante forma de
Paranoia). Lembro que este é um livro escrito durante José Juva, poeta pernambucano, é autor de Wat- iniciação cósmica. Narrativa em ruptura com a
as Jornadas de Junho de 2013, período em que o país su (Cepe Editora, 2016) e de Deixe a visão chegar: a narrativa por uma poética da aventura: a busca
protagonizou uma das maiores manifestações de sua poética xamânica de Roberto Piva (Multifoco, 2012). do Andrógino Antropocósmico.
história moderna e também viveu a desilusão de ver
suas demandas, seu léxico e suas formas de protesto PARANOIA (1963) – Derivas psicogeográficas CICLONES (1997) – Êxtase e vivência dos lugares
cooptados pelo senso comum. Italo conseguiu im- pela cidade de São Paulo, permeadas de aluci- de poder, entrega em profundidade às respirações
primir essa força de insurreição ao escrever um livro nação, delírio e deboche. Antropofagia das ver- da natureza sagrada. Energias máximas conden-
que nos mostra que nossa única opção continua sendo tigens surrealistas e da dicção beat, uma porrada sadas em grãos e estilhaços de visões. Poesia da
afirmarmos a singularidade do nosso desejo, antes que atrás da outra. Também em diálogo com Federico viagem xamânica, vida autêntica no encontro com
sejamos engolidos pelos afetos higienizados que con- Garcia Lorca de Um poeta em Nova York. as realidades não humanas do planeta.
tinuam a ser a regra das relações que nos atravessam.
13
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
HALLINA BELTRÃO
14
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
RESENHA
instrumento
sua tradução literal é VER: “Gostaria de sugerir hoje que
este é um tempo para uma nova narrativa, uma narrativa em
que nós realmente possamos ver aqueles sobre quem falamos”,
afirma a escritora nigeriana, partindo de sua língua
para dizer um tempo presente, trans-atlântico.
de liberdade
O olhar, como tessitura de afeto, sem mediações
à representação, acende em Olhos de azeviche. Água
doce que lava os olhos, podendo dilatar pupilas de
quem sempre se vê refletido no cânon – pois, no
cenário literário brasileiro altamente conservador
Livro Olhos de azeviche e elitista, ver exige fraturar os espelhos eurolimi-
tados de narciso.
RESENHA
Corram para
DIVULGAÇÃO
***
“– Quer dizer que você sonhou com a Thea von
Harbou…
– Sim, era uma moça loura.
– Mas você algum dia viu uma foto dela?
– Não.
– Como soube que era a Thea von Harbou
– Não sei, adivinhei. Era como a Marlene Dietrich
cantando A resposta está no vento do Bob Dylan, sabe?
Uma coisa estranha, aterrorizante, mas muito pró-
xima, não sei como, mas próxima.”
Roberto Bolaño, em O espírito da ficção científica.
***
Talvez a melhor chave de leitura para O espírito
da ficção científica não seja pensar nele como um
romance. Mas como um arquivo, um arquivo onde
Bolaño parece ter inserido todas as ideias que um
dia atravessariam suas grandes obras: a vida de jo-
vens escritores, o fascínio pelos grandes mestres, a
crítica aos grandes mestres, a busca pelo invisível
como sintoma de uma geração e a sombra de “uma
coisa estranha, aterrorizante, mas muito próxima”.
a cortar o céu. Mas não é possível pensar fora do
universo. Não é possível pensar fora de casa, como
Juan Rulfo um dia decretou ao começar o romance
O espírito da Acredito que o lançamento de O espírito da ficção
científica seja crucial nesse momento de ascensão da
direita em que obras distópicas da ficção científica
mais importante da literatura de língua espanhola
moderna, Pedro Páramo, como inevitável retorno
para casa. Para o pai.
ficção científica do século XX estejam sendo redescobertas como
alegorias/prenúncios dos dias que correm. Bolaño
foi engenhoso ao subverter as leituras das grandes
no qual Bolaño
O que podemos imaginar sempre existe, em outra escala, em -os em histórias lidas por seus personagens, em
outro tempo, nítido e distante, como num sonho pesadelos que os perseguem e nas miragens que
Ricardo Piglia costumam acometer todos aqueles que buscam
semeou os temas
em algum momento fazer contato com algo ou
*** alguém. Conta essas histórias como se elas fossem
O espírito... consiste numa sequência de desven- uma espécie de cenário oco, você tem a porta e
turas de jovens escritores latino-americanos per-
didos na América Latina. Um deles é fascinado
pelos grandes mestres da ficção científica norte-
que marcariam sua nada por dentro. Um lugar de visitação, mas não
de convívio. Não se habita um sonho, não se habita
uma memória, não se conversa com o invisível,
-americana e passa o dia lhes escrevendo uma vã
correspondência. Nas mensagens, faz referência a
um Comitê Norte-Americano de Ficção Científica
obra posterior ainda que essas ações nos persigam o tempo inteiro.
É insuportável viver sob o signo de um sintoma e
sobre isso Bolaño escreveu a vida inteira.
Pró-Flagelados do Terceiro Mundo. Penso nessas no período em que escreveu o Manifesto do In- O espírito dessa ficção científica me faz lembrar
cartas como pedidos de socorro, SOS, como tenta- frarrealismo (que em Detetives... recebeu o nome de a epígrafe que o autor usou no seu livro Amberes (de
tivas de contato. Como a numeração que E.M. um “realismo visceral”). A personagem de Cesárea faz 2002, ainda inédito no Brasil), citando uma frase
dia espalhou, sem jamais ter conseguido ele próprio pensar numa ligação do Infrarrarealismo/realismo de David O. Selznick: “La vida concluye en el mo-
escrever qualquer romance de ficção científica, visceral com o grupo Estridentista, que fundou a mento en que se la fotografía. Es casi un símbolo
deixando como legado apenas poemas. Repito: vanguarda mexicana, tendo como lideranças os de Hollywood. Tara no tenía habitaciones en su
maus poemas. nomes de Maples Arce, Germán Arzubide e Arque- interior. Era sólo una fachada”.
A tentativa de fazer contato é a marca mais forte les Vela. Esses autores pregavam uma renovação É como se o melhor da ficção científica latino-
das grandes obras deixadas por Roberto Bolaño. poética ao lado de um conteúdo social. Ou seja: -americana (e quando falamos latino-americana
Cesárea Tinajero, musa-mãe dos jovens poetas era um grupo formado por escritores crentes na aqui destacamos o histórico comum e recente de
mexicanos, desaparecida desde a década de 1920, relação entre vida e arte, perspectiva presente no ditaduras que é quase sinônimo dessa expressão)
é sua personagem célebre e espécie de sustenta- Manifesto Infrarrealista e em toda obra posterior fosse não um alumbramento do que poderia ser o
ção do romance que o consagrou, Detetives selvagens de Bolaño. futuro, mas uma fuga do passado que resulta em
(1998). O possível reencontro com essa figura mítica 2666, outro romance póstumo de Bolaño, parte maus sonhos durante a noite (a violência, a verda-
salvaria da desolação todos os poetas do underground também da tentativa de fazer contato com um deira violência, da qual não se escapa nem mesmo
mexicano dos anos 1970, do qual Bolaño fez parte escritor, o alemão Benno von Archimboldi. O seu dormindo). Era assim que Bolaño via estrelas.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
REPRODUÇÃO
RECIFE ANTIGO
CIDADE MAURÍCIA
EXPECTATIVA
SOBRE A OBRA
Só não são absurdas as noites
Os poemas integram de agosto porque algumas estrelas
o livro Recife em tom insinuam sua frágil tepidez
menor, que será lançado pelas janelas abertas em vigília
no fim deste mês dos que ainda levam na planta dos pés,
pela Cepe Editora. embutida a crença de que o Recife,
um dia, possa nas nossas mãos
a primavera depositar
20
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
INÉDITOS
Aleksandra Kollontai
Tradução de Priscila Marques
Quando lembram
Outubro de 1917,
não se veem rostos
individuais. Mas
havia muitas,
muitas cabeças
femininas no front
para o partido. Ao trabalho, mulheres! Em defesa
dos sovietes e do comunismo.
Quando discursava nas reuniões ainda ficava
nervosa, não tinha autoconfiança, mas fascinava a
todos. É uma das que carregaram sobre os ombros
toda a dificuldade de estabelecer os fundamentos
para o engajamento amplo e massivo das mulheres
na revolução, que lutou em duas frentes: por um
lado, pelos sovietes e o comunismo e, por outro,
pela emancipação da mulher. Klavdia Nikolaeva
e Konkordia Samoilova, mortas (de cólera) em
seus postos de trabalho revolucionário em 1921,
são dois nomes aos quais estão indissoluvelmente
ligados os primeiros passos do movimento das
mulheres trabalhadoras, especialmente em Lenin-
grado. Konkordia Samoilova foi uma trabalhadora
abnegada como não há, uma boa oradora, que
sabia encantar o coração do proletariado. Todos
que com ela trabalharam não se esqueceram e por
muito tempo não se esquecerão dela. Era simples no
tratamento, com sua vestimenta modesta, exigente
no cumprimento das decisões tomadas e, por isso,
rígida tanto consigo quanto com os outros.
Uma posição especial ocupa a figura encantadora
e delicada de Inessa Armand. Ela foi responsável
pelo trabalho do partido na preparação de Outubro
e, depois, introduziu muitas ideias criativas para
as ações com as mulheres. Apesar de toda sua
feminilidade e delicadeza no tratamento com as
pessoas, Inessa Armand era inexorável em suas
convicções e sabia se manter firme naquilo que
considerava correto, mesmo quando se tratava de
opositores bastante fortes. Após os dias de Outu-
bro, ela dedicou sua energia à construção de um
amplo movimento de mulheres trabalhadoras. As
assembleias de delegados são sua cria.
Varvára Nikoláevna Iákovleva prestou enormes
serviços nos difíceis e decisivos dias de Outubro.
No fogo das batalhas de barricadas, ela demonstrou
uma rigidez digna de um líder do partido. Muitos
camaradas diziam na época que sua firmeza e
inabalável coragem faziam voltar o vigor aos que
estavam abalados e inspiravam os que perdiam o
ânimo. “Ir em frente”, até a vitória.
Começamos a nos lembrar das imagens femini-
nas do Grande Outubro e como, em um passe de
à sombra, entrar na sala de reunião sem ser percebi- Tavritcheski, no soviete, depois, na casa de (Matilda) mágica, reavivam-se na memória novos nomes e
da, sentar-se atrás de uma coluna. Mas ela mesma Kchesínskaia e, enfim, nos salões de Smolni. Nas rostos. Será possível desconsiderar naqueles dias
vê, ouve e observa tudo para transmitir a Vladimir mãos, um bloco de anotações; ao redor, buzinavam, a figura de Viera Slútskaia, uma trabalhadora ab-
Ilitch, acrescentar comentários precisos e buscar um importunavam, buscavam uma resposta rápida e negada na preparação de Outubro, morta por uma
pensamento racional, correto e necessário. exata, uma ordem do camarada no front, os trabalha- bala de cossacos no primeiro front vermelho perto
Nadiêjda Konstantínovna não discursava nos dores, trabalhadoras, guardas vermelhos – membros de Petrogrado?
turbulentos comícios com milhares de pessoas, do partido, membros dos sovietes... Podemos nos esquecer de Evgenia Boch, de na-
nos quais o povo decidia a grande disputa: unir-se Stássova tinha muitas responsabilidades, mas, tureza ardente, fervorosa, sempre entusiasmada
ou não ao poder dos sovietes? Mas ela trabalhou se algum camarada estivesse necessitado ou so- para a batalha? Foi morta no posto revolucionário.
incessantemente, foi o braço direito de Vladimir frendo naqueles dias turbulentos, ela respondia de Seria possível deixar de mencionar aqui dois no-
Ilitch e às vezes fazia nas reuniões do partido uma forma breve, até seca, e fazia o que era possível. mes intimamente ligados à vida e à atividade de V.
observação curta, mas de peso. Nos momentos Vivia atolada de trabalho, mas sempre a postos. No I. Lenin, suas companheiras de armas e irmãs Anna
mais difíceis e perigosos, nos dias em que muitos entanto, não se enfiava na linha de frente, à vista. Ilinitchna Elizárova e Maria Ilinitchna Uliánova?
camaradas fortes perdiam o ânimo e começavam Não gostava de alvoroço à sua volta, a preocupação ...E a vivaz, sempre apressada camarada Vária,
a ter dúvidas, Nadiêjda Konstantínovna se manti- não era com ela mesma, mas com o trabalho. das oficinas ferroviárias de Moscou? E a traba-
nha igualmente convicta, confiante da justeza do O grande e amado trabalho do comunismo, moti- lhadora têxtil Fiódorova, de Leningrado, com seu
trabalho iniciado e com fé na vitória. Ela irradiava vo pelo qual esteve no exílio, contraiu doenças nas doce rostinho sorridente e seu destemor quando a
uma crença inabalável, e essa firmeza de espírito, prisões tsaristas... Na lida, era forte como um sílex, situação chegou ao ponto de exigir que ficasse nas
oculta sob rara discrição, sempre encorajava a todos de aço. E, para a infelicidade dos camaradas, tinha barricadas debaixo de tiros?
que se juntavam aos companheiros de armas do a sensibilidade e a empatia que só as mulheres de Será que estamos considerando todas elas? E
grande criador de Outubro. grande alma têm. quantas “anônimas”? Todo um exército de mu-
Ao lado, surge outra imagem: também uma antiga Klavdia Nikolaeva era uma trabalhadora, chão de lheres heroínas de Outubro. Podemos esquecer
companheira de armas de Vladimir Ilitch, sua fiel fábrica, dos estratos mais baixos. Ainda em 1908, seus nomes, mas a abnegação delas vive na própria
escudeira nos distantes anos de trabalho clandestino, nos anos da reação, juntou-se aos bolcheviques. vitória de Outubro, nas conquistas e realizações de
precisa condutora das decisões do partido, por muitos Exílio, prisão... Em 1917, voltou a Leningrado e se que as mulheres trabalhadoras usufruem na União.
anos secretária do Comitê Central, Elena Dimítrievna tornou o coração da primeira revista das mulheres É claro e indiscutível que, sem a participação das
Stássova. Testa larga e alva, rigor e capacidade de trabalhadoras, A Comunista. Ainda jovem, era toda mulheres, Outubro não poderia ter levado a bandeira
trabalho incomuns, rara habilidade de “perceber” impulsividade e impaciência. Mas segurava firme vermelha à vitória. Glória à mulher trabalhadora, que
as pessoas que devem ser “lançadas” ao trabalho. a bandeira. E dizia com coragem: É preciso trazer caminhou sob a bandeira vermelha em Outubro.
Assim se via sua figura alta e forte, no princípio, em as mulheres trabalhadoras, soldadas e camponesas Glória a Outubro, o emancipador das mulheres!
22
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
RESENHAS
DAANIEL ARAÚJO/ ACERVO CEPE
Ao tempo presente, a
reedição de A história da
Revolução de Pernambuco
em 1817 nos lembra um
passado que ainda nos
constitui enquanto povo.
Auxilia a reposicionar a
imagem do Nordeste no
imaginário coletivo do
país, pois se a república
usou fartamente a
figura dos inconfidentes
(sobretudo Tiradentes)
como símbolo dos seus
ideais, o movimento
pernambucano foi
muito mais consistente e
complexo que o mineiro,
na sua proposta de
emancipação política.
Testemunha e agente da
história, Muniz Tavares
escreveu um documento
que nos ajuda a entender
nossa identidade, a
ver com criticidade as
dinâmicas discursivas
do nascimento da
república e que
mostra a importância
de Pernambuco
na formação da
identidade nacional.
A atual edição da
Cepe é a quinta que a
obra recebe. E conta
com as extensas notas e
esclarecimentos feitos
melhor o passado
identidade coletiva de atuantes da Revolução. ocorridos de 1817 não se dá e Manuel de Oliveira
um povo. E compreender Ao lançar, em 1840, A apenas por ter sido o único Lima (1867-1928).
as dinâmicas inerentes história da Revolução de movimento emancipatório
e o presente
a ele é fundamental, Pernambuco em 1817, ele que foi além da fase de
para que possamos tentou resgatar os fatos conspiração. Foi alvo
repensar o passado e suas ocorridos e apontar erros de diversas disputas
influências no presente. e acertos do movimento, de interpretação ao
Reedição histórica marca Esse é, talvez, o
prisma mais importante
ainda que em um tom
abertamente partidário
longo da história, na
qual historiadores
celebração dos 200 anos da a ser visto na reedição
de A história da Revolução de
da Revolução. Muniz traz
uma visão em sintonia
monarquistas tentaram
minimizar a importância
Revolução de 1817 em PE Pernambuco em 1817, lançada com as discussões do movimento –
pela Cepe Editora para humanísticas atuais ao notadamente Francisco
marcar o bicentenário de lamentar, por exemplo, Adolfo Varnhagen (História
Igor Gomes
um marco significativo na que os pernambucanos Geral do Brasil antes de sua
história do país - ainda não tenham conseguido separação e independência
que sua simbologia careça libertar os povos de Portugal), e João
de ser reconhecida fora do escravizados (atitude Manuel Pereira da Silva HISTÓRIA
território pernambucano que, segundo ele, (História da Fundação do
de forma ampla. pretendiam tomar): “Em Império Brasileiro). Esses A história da Revolução
Assinada pelo boa fé, quem poderá esforços apontam para Pernambucana em 1817
historiador e religioso negar que a escravatura a necessidade, naquela Autor - Francisco Muniz Tavares
Francisco Muniz Tavares é o mais terrível dos época, de fortalecer a Editora - Cepe
(1793-1876), a análise flagelos que martirizam unidade imperial e mitigar Páginas - 550
revela a narrativa inerente o Brasil, retardam a narrativas emancipatórias. Preço - Não definido
FABIO SEIXO/ARQUIVO PERNAMBUCO
MERCADO EDITORIAL
Mariza Silviano Santiago é o primeiro autor a lançar livro
Pontes pelo Selo Suplemento Pernambuco, neste mês
Quando dos seus 80 anos Pernambuco, editado pela
em 2016, Silviano Santiago Cepe e coordenado pelo editor
(foto) revelou que gostaria de do jornal, o jornalista Schneider
escrever sobre quem importa Carpeggiani. O lançamento
na literatura brasileira. Primeiro acontece com sessão de
foi Machado, roman à clef sobre autógrafos na Livraria da
o “bruxo do Cosme Velho”. Travessa, em Ipanema, no dia
Agora, ele lança Genealogia da 28 deste mês. O próximo livro
DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO
PRATELEIRA
O DRAMA ÉTICO NA OBRA DE
GRACILIANO RAMOS – LEITURAS A
PARTIR DE JACQUES DERRIDA
O autor defende a leitura conjunta e
articulada das obras de Graciliano Ramos,
como Vidas secas e Memórias do cárcere, e do
filósofo francês Jacques Derrida. O elo
entre ambas se dá na semelhança com que
problematizam conceitos e colocam a questão
da alteridade e sua relação com a linguagem,
a política e a produção do conhecimento.
Uma maravilha difícil Ideias em voz baixa teatral, ganha edição da Companhia das Letras,
com tradução e prefácio do grande crítico Paulo
Rónai. A partir da história de meninos que
Eis uma obra desafiadora à em última instância, ao O poeta e crítico John nos leva a pensar sobre brigam por um pedaço de terra onde se pode
crítica: O método Albertine, da fracasso. Em Carson, esse Yau é americano e como o eu poético brincar à vontade, a obra trata da passagem
canadense Anne Carson. fracasso atinge um nível descende de chineses. (que nasce junto com o para a vida adulta e dos desafios inerentes
O livro, que chegou ao performático interessante A questão relativa poema) se relaciona com ao processo de amadurecimento. Também
Brasil recentemente via porque, no contato com O a essa herança – o escritor; as referências questiona as causas da guerra ao mostrar o
Edições Jabuticaba, trava método Albertine, percebemos talvez uma forma de a Pollock e Drummond comportamento de adolescentes de Budapeste.
uma queda de braço com que nossas leituras sempre intertextualidade – é em uma relação bonita
Em busca do tempo perdido, de deixam algo para trás. uma das marcas do seu e complexa; a presença
Proust. O ponto óbvio que Em sua, é preciso insistir livro Sotto voce, lançado do erudito e do comum
une ambos é Albertine, a sempre na obra literária. há pouco tempo pela no mesmo poema. A que
personagem encarcerada Ler e reler esse livro é algo Jabuticaba. O nome do interessar, é boa leitura
pelo narrador da obra do mais que recomendado. livro é uma expressão para todos os volumes
autor francês. Em tom de (Igor Gomes) latina para o ato de vocais. (Igor Gomes) Autor: Ferenc Molnár
observações ensaísticas, baixar a voz como Editora: Companhia das Letras
O método… é dividido em forma de enfatizar Páginas: 272
duas partes: na primeira, uma frase. O livro Preço: R$ 39,90
são elencadas 59 reflexões é um todo coerente
rápidas sobre a figura de com essas ideias. Pois, FRAGMENTOS SOBRE POESIA E LITERATURA 1797–
Albertine na trama; na 2ª quando observada 1803 SEGUIDOS DE CONVERSA SOBRE POESIA
parte, há apêndices com como um todo, a obra Inédito em português, o crítico literário, poeta
reflexões mais extensas e apresenta justamente e editor alemão foi traduzido por Constantino
profundas. Mas reduzir o uma declaração Luz de Medeiros. Schlegel influenciou os
livro a isso é um equívoco em tom suave, que movimentos literários europeus do século
tremendo. O jogo ficcional enfatiza a feitura da XIX, a partir de reflexões sobre a vida e a
na obra de Carson mais poesia, às vezes de representação artística, a unificação de todos
parece, nas entrelinhas, forma metalinguística. os gêneros literários, e a confrontação de
uma aula de leitura – não Essa ideia, me parece, diferentes perspectivas sobre o papel da arte.
porque emula um ensaio une os temas que
sobre um clássico, mas FICÇÃO aparecem em Sotto POESIA
porque nos mostra a voce: a definição da
falácia que é tentar domar O método Albertine identidade tanto Sotto Voce
uma obra de arte. De como Autora - Anne Carson pela presença da Autor - John Yau
a teoria e o distanciamento Editora - Jabuticaba ancestralidade quanto Editora - Jabuticaba
do do seu objeto de análise Páginas - 45 pela ausência de Páginas - 60 Autor: Friedrich Schlegel
são esforços fadados, Preço - R$ 20 características – que Preço - R$ 20 Editora: Unesp
Páginas: 555
Preço: R$ 84
BALADAS PROIBIDAS
Relato de fatos reais vividos por Gabriel Godoy,
jovem que saiu do interior de São Paulo para
EVENTO LITERÁRIO REVOLUÇÃO 1 REVOLUÇÃO 2 a capital e virou traficante. Posteriormente,
ficou conhecido como “o rei do ecstasy”.
Proximidade com o Reedição marca o Olhos negros percorre os Em um relato sobre sua ascensão e queda,
Carnaval adia Bienal bicentenário de 1817 cenários do movimento o protagonista conta ao jornalista Bolívar
Torres detalhes da vida de luxo, obtida com o
Prevista para este mês, a III Bienal O ABCdário da Revolução Republicana Outro livro que será relançado comércio de drogas em meio a mortes, prisões
Internacional do Livro do Agreste de de 1817, acrescido de gravuras durante as comemorações pelo e extorsões, e choca ao deixar evidente que esse
Pernambuco, em Garanhuns, foi e comentários de viajantes, bicentenário da Revolução universo é algo de fácil acesso aos jovens.
novamente adiada. Originalmente testemunhas e historiadores, será Pernambucanade 1817 - no
prevista para setembro de relançado pela Cepe Editora no dia Museu da Cidade do Recife,
2016, ela passou para março 12, no Museu da Cidade do Recife. sdia 12 - é Olhos negros. Assinado
de 2017 por conta da crise O ABC inclui índice Arquitetônico, pela romancista e historiadora
econômica. O motivo da segunda Ortográfico, Bélico, Botânico, Maria Cristina Cavalcanti de
transferência foi a proximidade Eclesiástico, Etnográfico,Jurídico, Albuquerque, a obra teve sua Autores: Gabriel Godoy
com o Carnaval. Serão mais de Poético e outros. Na ocasião, primeira edição em 2010 pela e Bolívar Torres
100 editoras reunidas. Espera- serão abertas as comemorações Bagaço. No livro, uma narradora Editora: Record
se a visita de cerca de 200 mil pelo bicentenário do movimento percorre os cenários recifenses em Páginas: 210
pessoas nos 5 dias do evento. libertário, a partir das 16h. que se desenrolou a revolução. Preço: R$ 39,90
24
PERNAMBUCO, MARÇO 2017
José
CASTELLO HALLINA BELTRÃO
Tempestade de palavras
Não tenho suportado a leitura do noticiário. todos se sentem mais confortáveis em meio parece, em nosso estranho mundo de hoje,
Também não tenho assistido aos telejor- à zoeira e ao falatório, em que todas as vozes uma garantia de pureza. A mais preciosa
nais. Navegar na rede frequentemente me se dissolvem, em que basta falar por falar, proteção. Uma garantia de verdade. Basta
sufoca. Embora a realidade não ande nada sem quase nada dizer, e você se sentirá de- falar – se pensa – e a verdade aparece.
agradável, não me refiro aos fatos em si – até safogado. No ruído infernal de hoje, a pala- O mundo contemporâneo exige de nós,
porque não acredito na existência dos fatos vra é desvalorizada, passa a valer qualquer sobretudo, isso: que falemos, não importa
em si. Mas o que se passa comigo então? coisa. O importante é dizer e escrever, não o quê, mas que não deixemos de falar. O
A vida contemporânea está contaminada importa o quê. O importante é tagarelar e ditado se inverte: agora é em boca fechada
por um crescente tagarelar, um falatório gritar. “Falemos”, nos ordena a grande voz. que entra mosca. É sobre as bocas fecha-
dispersivo e opressivo que não chega a lugar Não, a solidão não representa um perigo. das que recaem a suspeita e a maledicên-
algum. Asfixiado pelo excesso de palavras, Ao contrário: mais do que nunca, ela é a pos- cia. Protesta Baudelaire, dois séculos antes
afogado em declarações, denúncias e in- sibilidade do pensamento próprio. A possi- de nós: “Desejo principalmente que meu
sinuações, com frequência me lembro de bilidade do próprio pensamento. “Por certo, maldito jornalista me deixe divertir-me à
Mordássov, a cidade imaginaria criada por o tagarela, cujo supremo prazer é falar do alto minha maneira”. Recorda-se, a propósito,
Fiodor Dostoievski na novela O sonho do titio, de uma cátedra ou de uma tribuna, correria de La Bruyère, o moralista francês do século
que li na tradução de Paulo Bezerra para a o risco de tornar-se um completo louco na 17, quando este se refere à “infelicidade
editora 34; um vespeiro de fofocas, intrigas ilha de Robinson”, prossegue Baudelaire imensa de não poder estar só”. Podemos
e mexericos que, em nossa vida diária, se em suas meditações. Nos dias de hoje, os acrescentar: de não poder estar quieto. Pois
resume em uma palavra da moda: delação. solitários e os silenciosos são vistos com o silêncio e o recolhimento parecem cada
Estamos todos afundados nas almofadas do grande suspeita. Se não falam, é porque eles vez mais suspeitos.
salão de Mária Alieksándrovna, a primeira escondem algum segredo. Se eles preferem Na era dos talk shows, das celebridades
dama do fuxico e da intriga em Mordássov. estar sozinhos, pensa-se ainda, é porque a e das selfies, a solidão e o silêncio se tor-
Nessa algazarra, a verdade que se dane – presença do outro os ameaça e denuncia. nam perigosos. Em nosso mundo em rede,
importam os efeitos e a repercussão. Em resumo: o solitário se transforma em a compulsão à exposição se dissemina.
Nesse estado de desânimo, que é crescente um suspeito. A própria solidão – a própria “Quase todas as nossas desgraças nos vêm
e não é só meu, chego, por mero acaso, à ausência do crime – seria a prova do crime. de não sabermos ficar em nosso quarto”,
A solidão, o capítulo 23 de O spleen de Paris, de “Não vou impor a meu jornalista as virtu- diz Baudelaire, citando Pascal – mas ele não
Charles Baudelaire – que leio na tradução de des de Crusoé”, diz Baudelaire, “mas peço- está certo de que a frase seja exatamente
Leda Tenório da Motta para a editora Imago. -lhe que não envolva no decreto acusatório de Pascal e, no entanto, isso não o afeta. O
Baudelaire dá a seu livro um subtítulo inspi- os amantes da solidão e do mistério”. Aque- mundo contemporâneo valoriza também a
rador: Pequenos poemas em prosa. Sim, porque le que muito fala e que, assim, assume o precisão – ainda que ela não passe de um
é da poesia, de fato, que se trata. Em nosso papel de acusador, não corre perigo porque, jogo de cena, como no caso das estatísticas,
mundo ríspido e agressivo, de gritaria, de ao menos aparentemente, “tudo expõe, tudo que engessam a verdade, mas nem sempre
tagarelice e de ódio, nunca precisamos tanto mostra”. Aquele que está sempre acompa- a carregam. Na época das pesquisas de opi-
da suavidade dos poetas. E também de seu nhado parece nada temer, nada ter a escon- nião e das sondagens, devemos confessar
silêncio. Em meu socorro, Baudelaire viaja der, já que se encontra sob a vigilância e a abertamente, até mesmo escandalosamente,
desde o século 19 até nossos dias – século tutela de tantos olhares alheios. Protegido nossos segredos, ideais e posições. Nada
19, a propósito, que me deu outra figura por um escudo de palavras, o falador se pode ficar escondido. Até das crianças se
decisiva em minha sofrível formação, o esquiva e se fortalece. As palavras deixam exige que sejam falantes, extrovertidas e que
próprio Dostoievski. Detenho-me em suas de ser um meio de expressão e se tornam “interajam” com seus coleguinhas, ou logo
anotações. Eles me oferecem a chance de um meio de intimidação. Transformam-se serão tidas como esquisitas e talvez doentes.
um caminho. E me ajudam a entender por em armas. Em nosso mundo frenético, ler um poeta
que, ultimamente, tenho preferido ficar em Diz Baudelaire a respeito dos falantes e como Charles Baudelaire nos permite, por
silêncio e sozinho. dos prolixos: “Não os lastimo, porque adi- algum tempo, respirar. Respirar e silenciar.
“Um jornalista filantropo me diz que a vinho que suas efusões oratórias lhes re- Sair um pouco da atmosfera de Mordássov
solidão é ruim para o homem”, começa Bau- servam volúpias iguais àquelas que outros – abandonar a tempestade de palavras que
delaire. “Defendendo sua tese, cita, como retiram do silêncio e do recolhimento; mas desaba sobre nós. Deixar um pouco de lado
todos os incrédulos, as palavras dos Pais da os desprezo”. Ter a palavra sempre exposta as confidências e as incontinências de Má-
Igreja.” A superstição diz que o demônio – como em A carta roubada, de Edgar Alan ria, levantar-se de seu sofá de fofoqueiras,
prefere os lugares áridos e vazios – e que a Poe, que Jacques Lacan transformou em e finalmente estar sozinho, o que pode ser
solidão, em consequência, lhe seria fértil. um caso exemplar em célebre seminário mais inspirador? Se não inspirador, pelo
No mundo contemporâneo, de fato, quase -, desnudar-se, exibir-se, promover-se menos consolador.