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ARTE DA CAPA: ANDRÉ DUCCI

#88 | NOVEMBRO DE 2018 www.candido.bpp.pr.gov.br JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

LITERATURA POP BRASILEIRA

Autores surgidos
nos anos 2000
trouxeram novas
referências à
literatura brasileira,
aproximando a
ficção de outras
manifestações da
cultura de massa

FICÇÃO | Vilma Arêas • UM ESCRITOR NA BIBLIOTECA | Laurentino Gomes • PENSATA | Antonio Carlos Secchin
2 NOVEMBRO DE 2018

O
termo “literatura pop” é ne-
buloso até mesmo para escri-
tores que se encaixam nesse
pretenso subgênero literário. Mas se a
terminologia é ainda difusa, as narra-
tivas que assimilaram referências da
cultura pop são bem presentes na li-
teratura brasileira. Principalmente em
livros de autores que estrearam a par-
CARLA FORMANECK
tir dos anos 2000.
É isso que o escritor Santia-
go Nazarian — ele mesmo um “autor da maneira como fazemos hoje, atra- Laurentino Gomes (foto), que parti- portagem, o jornalista e escritor Mar-
pop” — mostra em reportagem que vés de redes sociais e celulares”, diz cipou em agosto do projeto Um Escri- cio Renato dos Santos ouviu traduto-
é destaque desta edição. Entre outras Raphael Montes, um dos autores ou- tor na Biblioteca. Durante a conver- res e acadêmicos sobre a importância
questões, Nazarian e seus pares discu- vidos por Nazarian. sa, Laurentino comenta sua trajetória da obra do autor inglês. Já o repór-
tem como o cinema, a TV, os quadri- A literatura brasileira também na imprensa e, mais recentemen- ter Daniel Tozzi resgata a história da
nhos e a internet foram incorporados está na pauta da coluna Pensata. O te, como autor de livros-reportagem curitibana Itiban Comic Shop, uma
à literatura brasileira contemporânea poeta e crítico Antonio Carlos Sec- sobre a história do Brasil, tal como das principais lojas especializadas em
— e como isso diversificou — ou não chin escreve sobre o uso do verso li- 1808, que relata a chegada da corte Histórias em Quadrinhos do país, que
— o panorama literário do país. vre entre os poetas contemporâneos portuguesa ao país. Além de falar so- pode encerrar as atividades em 2019,
“Não sei qual a definição exa- e do passado. Para ele, “ao romper as bre seus recentes best-sellers, o autor quando completa 30 anos.
ta de ‘literatura pop’, mas me parece barreiras da métrica regular, o verso paranaense deu detalhes sobre sua Entre os textos inéditos, o
ser aquela que dialoga com seu tem- livre forneceu a (falsa) perspectiva de nova empreitada: uma trilogia sobre Cândido publica contos de Carlos
po, dando voz a personagens ‘reais’, um facilitário irrestrito: bastava al- a escravidão no Brasil. Machado, Vilma Arêas e Luís Roberto
que vivem no mundo de hoje e, por guém não saber metrificar para di- Após 120 anos da morte de Le- Amabile. Completa a edição poema de
isso, assistem a filmes de diretores zer-se poeta.” wis Carroll, As aventuras de Alice no Thiago E. O desenho da capa é assina-
contemporâneos, escutam álbuns re- Outro destaque da edição é o país das maravilhas continua sendo do pelo artista André Ducci.
centes, se relacionam e se comunicam bate-papo com o jornalista e escritor um clássico absoluto. Em ampla re- Boa Leitura.

Governadora do Estado do Paraná: Cida Borghetti Colaboradores desta edição: Cândido pela internet: BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
Secretário de Estado da Cultura: João Luiz Fiani Antonio Carlos Secchin, André Ducci, Rua Cândido Lopes, 133 | CEP: 80020-901 | Curitiba – PR
candido.bpp.pr.gov.br
Carlos Machado, Kraw Penas, Luís Horário de funcionamento
CÂNDIDO É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira Roberto Amabile, Samuel Casal, /jornalcandido Segunda a sexta: 8h30 às 20h.
DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna Santiago Nazarian, Sérgio Medeiros, Sábado: 8h30 às 13h.
Simon Taylor, Vilma Arêas e Thiago E. A BPP divulga informações sobre serviços
Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski. e toda a programação da BPP.
Redação:
Redação: Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy. bpp.pr.gov.br
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NOVEMBRO DE 2018 3

cândido indica curta da BPP


REPRODUÇÃO

TRISTE FIM DE UIVO DOS


P O L I C A R P O Q UA R E S M A INVISÍVEIS
Lima Barreto, Bebeti do Amaral Gurgel,
Coleção Folha, 2008 Chiado Books, 2018

Nesta que é a obra mais Resultado de quatro anos de


expressiva do carioca Lima pesquisas sobre o pixo, Uivo dos
Barreto, o Rio de Janeiro da invisíveis se constrói num misto
última década do século de ensaio e confissão, teoria e
XX é recriado para abrigar história, com o objetivo de trazer
personagens como, entre uma nova perspectiva — livre de
outros, o Major Quaresma,
o compositor de modinhas
preconceitos e prejulgamentos —
sobre essa manifestação cultural.
BATE-PAPO COM
Ricardo Coração dos Outros
e Albernaz, um general
Ao restringir o uso de advérbios
e adjetivos na prosa, a curitibana
JOÃO SILVÉRIO
reformado que sempre inventa Bebeti do Amaral Gurgel elabora TREVISAN
desculpas por nunca ter uma narrativa que busca o
participado de uma guerra. mesmo poder de síntese dessa O convidado de novembro do projeto
A narrativa expõe sobretudo linguagem periférica, numa Um Escritor na Biblioteca é João Sil-
os podres dos militares e é guiada pelas escolhas e ideais releitura e desconstrução do que vério Trevisan. O bate-papo, mediado
ingênuos do patriota Policarpo Quaresma, que, à medida significa o pixo, explorando o que por Flávio Stein, acontece no dia 13, às
em que se desilude com a bestialidade da sociedade, há além dos limites da estética
19h30, no auditório da Biblioteca Pú-
encontra seu triste fim após a Revolta da Armada. acadêmica tradicional.
blica do Paraná, com entrada gratuita.
Paulista de Ribeirão Bonito, Trevisan
nasceu em 1944. Formado em filoso-
NOVE MESES A M O R T E D E I VA N I L I T C H fia, estreou na literatura com os con-
Gustavo Piqueira, Lote 42, 2018 Liev Tolstói, Editora 34, 2009 tos de Testamento de Jônatas deixado a
Tradução: Boris Schnaiderman David (1976). Autor de 12 livros, ven-
Em tiragem única de mil ceu o Prêmio Jabuti com o romance O
exemplares, Nove meses vem Após construir uma sólida livro do avesso (1992) e o APCA (Asso-
embalado de uma caixa adornada carreira como promotor público e ciação Paulista de Críticos de Artes)
com um pequeno globo de passar 17 anos casado, Ivan Ilitch
por Rei do cheiro (2009), entre outros
resina acrílica que abriga um começa a ser atormentado por
inseto morto — escolha essa que um gosto estranho na boca e uma prêmios. Além do trabalho literário e
indica um dos caminhos desta sensação ruim no lado esquerdo do cinematográfico, que inclui a direção e
experiência literária que pretende estômago. O desconforto persiste, roteiro do longa-metragem Orgia ou O
explorar a transitoriedade do ele definha e médico nenhum homem que deu cria (1970), organizou
ser humano. Além do livro, que consegue ajudá-lo. É somente o grupo “Somos” e editou, de 1978 a
entrelaça uma narrativa passada assim, frente à morte e desesperado
1981, o jornal O Lampião da Esquina —
no século XIX e outra sobre um pelas dúvidas suscitadas pela sua
pai à espera do filho no presente, condição, que Ivan se vê capaz de ambos projetos voltados à discussão
a caixa traz 20 cartões postais e enxergar o grande teatro que foi dos direitos dos homossexuais e ou-
um álbum de fotos em brochura sua vida, restando-lhe como alento tros grupos excluídos. Além da pu-
de 16 páginas. O autor, Gustavo a humilde companhia do camponês blicação do romance Pai, pai (2017),
Piqueira, conhecido pela mistura Guerássim. A partir de uma dialética impiedosa, o Trevisan teve reeditado recentemente
de diferentes linguagens em seus russo Liev Tolstói elabora uma novela seca e densa,
Devassos no paraíso (2018), que traz um
trabalhos, mais uma vez entrega expondo os podres da aristocracia ao narrar os
ao leitor uma obra híbrida de difícil momentos de agonia de um funcionário exemplar que panorama sobre a história da homos-
classificação. cultivou uma vida de ilusões. sexualidade no Brasil.
4 NOVEMBRO DE 2018

P E N S ATA
A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre
um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, o
poeta e crítico Antonio Carlos Secchin discute sobre a viabilidade
ou não de qualquer um escrever e publicar poesia e, ainda, se
não há verso livre demais sendo praticado e publicado pelos
poetas brasileiros contemporâneos.

EM TORNO
DO VERSO
ANTONIO CARLOS SECCHIN

E
m 1980, Carlos Drummond de rimentos do final do século XIX/ início
Andrade publicou A paixão me- do XX, quando poetas, desejosos de
dida. Valho-me desse belo tí- ampliar os horizontes expressivos do
tulo para tecer algumas considera- poema, porém sem atingir o patamar
ções sobre o verso. De certo modo, do verso livre, valeram-se da forma
podemos considerar o poema como a intermediária dos “versos polimé-
prática de uma “paixão” que, simul- tricos”, que rompiam a rígida sime-
taneamente, se insere em alguma tria dos predecessores ao mesclarem
“medida”, algum andamento rítmico medidas diversas num mesmo texto,
que lhe dá força e expressão. respeitando, porém, alguns parâme-
Um dos maiores equívocos que tros de regularidade na elaboração de
se perpetuam, inclusive em salas de seus desvios: por exemplo: submissão
aula universitárias, é o de que, em das métricas ao limite infranqueável
contraposição ao verso tradicional, o de doze sílabas; manutenção de um
livre não tem métrica! Ora, a métri- modelo reiterativo de variação métri-
ca é exatamente o que define o verso, ca ao longo do texto, cerceando a livre
em oposição à prosa, cujo limite é es- expansão do verso. Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987) foi
tabelecido pela mancha tipográfica do Outro equívoco, ainda mais
partidário do verso livre na
fim de uma linha, e não pelo recorte rudimentar, consiste em definir ver- década modernista, mas
(rítmico) arbitrado pelo poeta. O que so livre a partir da inexistência da retornou à “paixão medida”
se pode dizer é que o verso livre não rima. Ora, verso livre é matéria estri- cerca de 20 anos depois.
Muitos críticos consideram
apresenta métrica regular, constante, tamente rítmica, conforme assinala- que nessa prática se
mas nunca que prescinde de alguma mos, sem nada a ver com a questão inscreve o que de melhor
“medida”, sem o quê não seria ver- eufônica da rima. O verso sem rima é Drummond produziu, em
so. Sem falar, ainda, em certos expe- denominado “branco”, e é de prática
Claro enigma, de 1951.
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REPRODUÇÃO

Na literatura brasileira, a atri- ta colhe seus melhores resultados, aí


buição do pioneirismo no emprego do reside o efetivo espaço de sua ma-
verso livre é assunto controverso. O nifestação criadora. O cerceamen-
simbolista Mário Pederneiras é o nome to por barreira voluntária às vezes é
mais citado, embora antes dele os hoje combustível que faz girar a máqui-
também ignorados Guerra-Duval e Al- na poética. Em prol da hegemonia do
berto Ramos (sob o pseudônimo de verso livre, recalca-se, por exemplo,
Marcos de Castro) tenham praticado o fato de que quase toda a obra de um
a modalidade — que se consolidou, de dos maiores poetas brasileiros do sé-
fato, na década de 1920, após a Sema- culo XX, João Cabral de Melo Neto,
na de Arte Moderna de 1922. é pautada pela observância de métri-
É inegável a fecunda contribui- ca e rima regulares. Se, de um lado,
ção, o sopro renovador do verso livre a rima restringe o universo vocabu-
contra o engessado domínio do sub- lar, de outro, exatamente por isso,
Parnasianismo que entre nós grassava pode conduzir a imagens inespera-
nos primeiros anos do século passa- das, que, sem ela, provavelmente ja-
do. A consideração, todavia, deve ser mais ocorreriam ao poeta.
matizada, pois não é a utilização (ou Um renomado e talentoso es-
a recusa) de um recurso em si que irá critor contemporâneo, tentando me-
previamente assegurar a qualidade de nosprezar certa visão do poema, de-
um texto. Ao romper as barreiras da clarou que não lhe interessava a
métrica regular, o verso livre forne- poesia como “caixinha de sonorida-
ceu a (falsa) perspectiva de um faci- des”. Retomemos a imagem. Sim, em
litário irrestrito: bastava alguém não geral pela curta extensão, o poema é
saber metrificar para dizer-se poeta. uma “caixinha”, mas que pode con-
Algo bem diverso da simples ignorân- ter todas as sonoridades, não apenas
cia do verso tradicional foi sua supe- as que os caciques designam como
ração por parte de quem o dominava “poeticamente corretas”. Sim, que
com maestria — e a obra de Manuel nela caibam todos os ritmos, os re-
Bandeira é cabal demonstração do gulares, os não regulares, as rimas,
fenômeno: partiu do exercício inicial as não rimas, as dissonâncias, as eu-
com formas consolidadas para o ex- fonias. Caixinha que condensa a lin-
traordinário versilibrismo de Liberti- guagem em seu estado de máxima
nagem, de 1930. Sem nos esquecermos potência: para essa vocação talvez
de grandes poetas que trilharam o ca- sirva a poesia, que não se deixa cap-
minho inverso: Jorge de Lima, Carlos turar em nenhuma fórmula de mo-
Drummond de Andrade, Murilo Men- delo ou de antimodelo.
des, partidários do verso livre na dé-
cada modernista, retornaram à “pai-
ANTONIO CARLOS SECCHIN nasceu
xão medida” cerca de 20 anos depois.
no Rio de Janeiro, em 1952. Doutor em letras
Muitos críticos, inclusive, consideram e professor emérito da Universidade Federal
que nessa prática se inscreve o que de do Rio de Janeiro, desde 2004 ocupa a
antiquíssima. Vide, em nossas letras, melhor Drummond produziu, em Cla- cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras.
Poeta e ensaísta, Secchin publicou, entre
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, ro enigma, de 1951. outras obras, João Cabral: a poesia do menos
em decassílabos brancos. Como, po- Deve-se evitar o erro de con- (1985) e Todos os ventos (poemas reunidos,
rém, a dupla “métrica/rima” costu- siderar o verso livre necessaria- 2002, ganhador dos Prêmios da ABL, da
mava vir unida, tomou-se uma coisa mente superior ao metricamente re-
Biblioteca Nacional e do Pen Clube). Com a
obra Desdizer, lançada ano passado, o autor
pela outra, na errônea concepção de gular, legislando-se ditatorialmente voltou à poesia 15 anos após a publicação
verso livre pelo viés da rima. em nome da liberdade. Onde o poe- de Todos os ventos.
6 NOVEMBRO DE 2018 K R AW P E N A S

LAURENTINO
GOMES
Laurentino Gomes está popularizando
a História do Brasil. O jornalista foi o
convidado da edição de agosto do projeto Um
Escritor na Biblioteca e contou, entre outros
assuntos, como ocorreu sua “conversão”
para o mundo dos livros, como autor.

DA REDAÇÃO
NOVEMBRO DE 2018 7

F
ormado pela Universidade Fe- administração pela Universidade de escrever. É lendo ficção. A não ficção leio por obrigação,
deral do Paraná em jornalismo, São Paulo, com dois prêmios Esso de por trabalho. Caso contrário, não.
passou pelas redações dos jor- jornalismo, Laurentino ocupa a ca-
nais Correio de Notícias, Estado do Pa- deira 18 da Academia Paranaense de REPORTAGEM
raná, Estado de S. Paulo, revista Veja, Letras e, principalmente, é consa- Sempre gostei da editoria de geral. Embora tenha
entre outros veículos, em três déca- grado por milhões de leitores e lei- trabalhado com política, economia, sempre gostei da-
das de atuação na imprensa brasileira. toras do Brasil, que por meio de seus quele “miolão” do jornal ou da revista, onde tem de tudo
Ainda na revista Veja, Laurenti- livros estão revisitando e até mesmo um pouco, onde tem medicina, saúde, turismo, educação,
no preparou um especial sobre a che- descobrindo a história. ciência, astronomia. Aprendi muito. Eu diria que uma boa
gada da corte de D. João VI no Brasil. O parte do que faço hoje, que transfiro para os meus li-
projeto foi cancelado, mas ele ampliou MARINGÁ vros, um olhar bastante amplo sobre a história do Brasil,
a proposta e lançou, em 2007, o livro Em 1976, vim de Maringá para que não fica só na literatura acadêmica, tem a ver com o
1808. O público brasileiro reagiu po- fazer a faculdade de jornalismo em aprendizado que tive no trabalho de reportagem da área
sitivamente à proposta e Laurentino Curitiba. Não conhecia virtualmente de geral. Acumulei uma quantidade muito grande de co-
teve de pedir demissão da Veja. ninguém aqui. Então, o que eu fiz? Vi- nhecimento geral na minha vida. Sei um pouquinho de
O sucesso de 1808, obra sobre a rei um rato desta biblioteca. Passava astronomia, de ciência, de medicina, de educação e as-
fuga da corte de D. João VI para o Rio manhãs inteiras lendo. Li coisas ma- sim por diante. Acho isso fascinante. Quando você se em-
de Janeiro, foi imensa e teve continui- ravilhosas aqui. Então, para mim, é penha nessa profissão, ela te transforma profundamente
dade em 1822, livro sobre a indepen- muito emocionante entrar na Biblio- como ser humano. Você adquire uma amplitude de visão
dência do Brasil, e posteriormente no teca Pública do Paraná, me remete à de mundo, de conhecimento de mundo e do ser humano,
terceiro volume da série, 1889, obra época em que tudo começou, em que que é nossa matéria-prima.
sobre a proclamação da República. A a vida era um mar de possibilidades,
trilogia rendeu seis prêmios Jabuti, o muita insegurança em relação ao fu- CONSELHO
mais importante da industria editorial turo, ao que iria fazer, começando Eu tive uma colega aqui em Curitiba, Teresa Urban,
brasileira, ao autor e vendeu, ao todo, minha carreira jornalística — aliás, já falecida, que era uma pessoa de uma vida muito sofri-
cerca de 2,5 milhões de exemplares. nem começando. Ainda estava estu- da. Tinha sido exilado política, torturada durante o regi-
Atualmente ele prepara um li- dando. Mas tenho um especial cari- me militar. Trabalhei com ela na redação do Estadão. Eu
vro de uma nova trilogia, desta vez nho por esta biblioteca. E desde então era muito jovem e uma vez ela me falou uma coisa que eu
sobre a escravidão no Brasil. Coinci- passei por bibliotecas que marcaram trouxe para a vida toda: “Laurentino, o dia que você per-
dência ou não, Laurentino saiu das muito a minha vida. der a capacidade de se emocionar com o ser humano que
redações praticamente no mesmo está na sua frente, que você está entrevistando, muda de
período que tiveram início transfor- BIBLIOTECA PARTICULAR profissão, porque essa é a essência do jornalismo”. A nos-
mações irreversíveis na imprensa, Hoje devo ter uns 3 mil títulos sa matéria-prima são as pessoas. Cada ser humano, cada
com redução do espaço de impressos em casa. Mas essa biblioteca já ocu- um desses sete bilhões e meio de seres humanos têm uma
e ampliação de conteúdos em plata- pou mais espaço do que deveria. Aliás, história única, extraordinária, maravilhosa, surpreenden-
formas digitais. E, mesmo fora das os livros tomaram lá uma sala enor- te. O papel do jornalismo é justamente trazer à tona essa
redações, ele segue fazendo jorna- me, tive que fazer várias prateleiras história que às vezes está escondida.
lismo, afinal, cada livro da trilogia é novas. É uma biblioteca muito espe-
uma grande, uma ampla reportagem. cializada, com muita coisa de história PRIMEIRO PROJETO
A boa aceitação de seus livros, do Brasil. Até porque é o tema com o Eu trabalhava na Veja, que ia fazer uma série de es-
inclusive, é creditada à pesquisa, que qual venho trabalhando nos últimos peciais de história do Brasil. Fiquei encarregado de apu-
inclui leitura de documentos, via- 11 anos. Quando não estou trabalhan- rar um deles, que era a vinda da corte de D. João para o
gens, entrevistas, reflexões, mas, do nos meus livros, gosto de ler fic- Rio de Janeiro e o projeto foi cancelado. Fiquei chatea-
principalmente, a linguagem. Lin- ção. Trabalho com não ficção mas do num primeiro momento, mas percebi que havia uma
guagem perfeitamente compreensí- quando não estou trabalhando gos- oportunidade de transformar aquele projeto num em-
vel, a linguagem jornalística. 1808, to de ler ficção, ou poesia. Então, tem preendimento pessoal. Foi o que fiz. No jornalismo, te-
por exemplo, foi eleito o melhor en- muito livro de poesia, muito roman- mos um outro jargão que é o chamado gancho: a oportu-
saio de 2008 pela Academia Brasi- ce, muita literatura brasileira. Porque nidade de se dedicar a um determinado assunto porque
leira de Letras. Pós-graduado em é aí que eu me renovo, que aprendo a naquele momento o leitor estará mais preparado para
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ler, se interessar em relação a esse ler fosse algo menor. E que a literatu-
assunto do que em outro momento. ra boa mesmo é aquela de nicho, com
E havia uma efeméride no horizon- poucos leitores. Aliás, já ouvi isso em
te, que eram os 200 anos da chegada feiras literárias, escritores falando:
da corte de D. João ao Rio de Janeiro. “Escrevo para poucos”. Como se isso
E aí decidi publicar um livro. Agora, fosse um grande negócio. Eu pergun-
olhei muito para o que estava acon- to: “Mas por que você não consegue
tecendo fora do Brasil. Esse trabalho fazer uma obra e ter uma linguagem
que faço é o que lá fora se chama, ge- que atraia um número de leitores?”
nericamente, de divulgação científi- Até porque nós já tivemos escrito-
ca. Ou seja, você tem uma linguagem, res no Brasil que fizeram isso muito
um conhecimento acadêmico, que é bem. Jorge Amado, Fernando Sabino,
muito profundo, muito segmentado, Erico Verissimo. Existe uma galeria
muito especializado e está cada vez enorme de bons escritores no Brasil
mais especializado. Trata-se de uma que fizeram boa literatura e conse-
linguagem intracorpuris, vamos dizer guiram ter sucesso de venda. Suces-
assim, que você filtra e decifra para so popular. São inúmeros exemplos.
um público mais leigo e mais amplo Mas hoje percebo que as pessoas
que não domina essa linguagem. Nós reagem um pouco a isso. Mas com
temos a obrigação de sermos didá- uma certa razão também. Tem mui-
ticos, simples, na linguagem. E é o ta literatura ruim nas listas de best-
que tenho feito na história do Bra- -sellers. Não vou dizer também que
sil. E a acolhida do público tem sido isso é um erro de avaliação, mas aca-
realmente uma surpresa para mim. ba afetando um pouco meu trabalho.
Nunca imaginei que livro de histó- No começo eu ficava um pouco in-
ria do Brasil pudesse ter essa acolhi- comodado, como se o meu trabalho
da. Acho que nós temos realmente fosse um trabalho menor pelo fato de
um desafio grande de linguagem no ter tido um sucesso de vendas.
Brasil. O Brasil é um país que vem se
transformando muito rapidamente, MUDANÇA DE ROTA
tem novos leitores, novos estudantes. Estou escrevendo agora o pri- 1808. Quando comecei a fazer o li- atrasado, um país muito monolíti-
A gente precisa usar uma linguagem meiro livro da trilogia sobre a histó- vro, o propósito era escrever uma co nas ideias, que tinha se coloca-
mais acessível, mais generosa com ria da escravidão e tem capítulo que já biografia do Luiz Joaquim dos San- do como um bastião da contrarre-
esses novos entrantes no mercado mudou de posição sete ou oito vezes. tos Marrocos, que é um bibliotecá- forma protestante e virou um lugar
editorial brasileiro. Acho que é mui- Tinha capítulo que estava no cinco, foi rio. Ele trabalhava na Real Biblioteca, muito dogmático, os reis de Portugal
to importante enfrentarmos adequa- para o 18, depois para o 27, voltou para em Lisboa, onde hoje é o Palácio Na- tinham o hábito de colecionar livros
damente esse desafio de linguagem. o 12. Os capítulos passeiam pelo livro e cional da Ajuda. A biblioteca continua e documentos antigos. Os embaixa-
não respeitam o planejamento inicial. lá, no bairro de Belém, e na véspe- dores portugueses, na Europa toda e
SUCESSO Não adianta você planejar o livro, “vou ra da partida da corte o Luiz Joaquim ao redor do mundo, tinham a missão
Acho que o brasileiro tem uma fazer essa sequência assim”, porque dos Santos Marrocos foi chamado às de identificar obras raras e comprar
certa aversão ao sucesso. Percebo, por no meio baixa um santo que fala “esse pressas e recebeu a ordem de empa- para o rei de Portugal. Isso era uma
exemplo, uma reação muito grande capítulo não é aqui, é lá”. cotar todos os livros da Real Biblio- política de estado. Então essa biblio-
ao meu trabalho — não pelo conteúdo teca de Portugal. Que era uma grande teca era um dos grandes acervos bi-
dos meus livros, mas pelo fato de ser 1908 curiosidade, porque embora Portugal bliográficos da época, em 1807, lá no
um best-seller. É como se o best-sel- Foi isso o que aconteceu com fosse um país bastante conservador, Palácio Nacional da Ajuda.
NOVEMBRO DE 2018 9

taria e o ouro das igrejas, e devolve- escravidão menos do que para Getú- era preciso acabar com os traços da
ram os livros para os portugueses. Os lio Vargas, Juscelino Kubitschek, para escravidão na sociedade brasileira,
soldados de Napoleão não estavam os generais de 64. Até porque tam- ou seja, educar os ex-escravos, seus
interessados em livros. E esses livros bém já existem outros bons livros. Por descendentes, lhe dar terras, opor-
começaram a chegar no Brasil em exemplo, recomendo muito a biogra- tunidades, incorporá-los à socieda-
três remessas consecutivas, a partir fia do Lira Neto, os três volumes sobre de brasileira na condição de cidadãos
de 1809 até 1811. o Getúlio Vargas, que cumprem exa- de pleno direito, com iguais oportu-
tamente esse papel. O Lira Neto co- nidades. O Brasil não fez isso. O Bra-
MUDANÇA meça na Proclamação da República, sil aboliu a escravidão e abandonou
Depois de o livro já entregue à finalzinho ali, na infância do Getúlio e seus escravos e a sua população ne-
editora — o título seria Os segredos da vem até 1954, com o suicídio. E a outra gra à sua própria sorte. Ou seja, em-
corte, que eram segredos do Luiz Joa- série maravilhosa é a do Elio Gaspari, purramos com a barriga um proble-
quim dos Santos Marrocos —, baixou sobre a ditadura, As ilusões armadas, ma gigantesco que nós acumulamos
um santo em mim e liguei para o edi- que são quatro livros que também co- ao longo de 350 anos. E tanto o José
tor: “Vamos mudar, vamos por 1808, brem esse período. Bonifácio quanto o Joaquim Nabuco
como uma rainha louca, um príncipe diziam: “Isso não vai dar certo. Se a
medroso e uma corte corrupta enga- ESCRAVIDÃO gente não promover essa população,
naram Napoleão e mudaram a histó- Os dois personagens que con- o Brasil vai virar uma coisa esquizo-
ria de Portugal e do Brasil”. E aí mu- sidero entre os mais importantes no frênica para o resto da sua história.” E
dou o Laurentino, porque o livro teve Brasil do século XIX, José Bonifácio é o que nós temos feito até hoje.
tal repercussão que seis meses depois de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco,
pedi demissão do meu emprego, coi- já falavam isso. Em 1823, o José Bo- NOVO PROJETO
sa que jamais imaginava que faria. A nifácio apresentou um projeto à as- Já fiz os três títulos dos meus
obra captura e transforma o criador. sembleia constituinte prevendo aca- novos livros: Todos vão se chamar
bar com o tráfico negreiro e a abolição Uma história da escravidão. Volu-
IDEIAS gradual da escravidão. E ele diz, ali, me I: Do primeiro leilão de escravos à
Depois que terminei essa trilo- que o Brasil não conseguirá ser uma morte de Zumbi dos Palmares. O se-
gia [1808, 1822, 1889], pensei em fa- sociedade organizada, funcional, dig- gundo: Da corrida do ouro em Minas
zer dois projetos novos. Um seria so- na dos nossos sonhos, enquanto tiver Gerais à chegada da corte do D. João
bre a Guerra do Paraguai, que acho escravidão. Essa foi a principal razão no Rio de Janeiro. E o volume III: Da
O BIBLIOTECÁRIO que é um tema muito importante, mal pela qual D. Pedro fechou a consti- independência à Lei Áurea. Embora a
O Joaquim dos Santos Marro- contado, embora existam bons livros tuinte, outorgou a Constituição de forma esteja preservada, tem muita
cos cuidava desse acervo. Um empre- — como Maldita guerra, do Francisco 1824 e mandou o José Bonifácio para o história interessantíssima, pitores-
go que eu adoraria ter. Ele foi cha- Doratioto, um excelente livro. O ou- exílio na França. Porque, para a aris- ca. Aconselho vocês a lerem. É in-
mado às pressas, empacotou os livros tro seria uma biografia do Tiradentes. tocracia rural e escravagista, era in- teressante. Não é tão pesado quan-
que pôde, levou para o cais de Lis- Mas aí fui me convencendo que o as- suportável essa ideia. O Brasil esta- to se imagina o tema. O primeiro sai
boa, para a Ribeira das Naus, e não sunto importante mesmo era a escra- va viciado em escravidão. O Brasil foi na bienal do Rio de Janeiro, em se-
deu tempo, porque as tropas de Na- vidão. Primeiro que ele permeia esses o último país do hemisfério ociden- tembro de 2019, outro em 2020 e o
poleão estavam chegando. Os livros três livros que já lancei. Se você ob- tal a acabar com o tráfico negreiro, terceiro em 2021. Acabei de escrever
ficaram abandonados no cais de Lis- servar, têm vários capítulos sobre es- em 1850, com a lei Eusébio de Quei- o vigésimo primeiro capítulo, de um
boa, encaixotados. E chovendo. Cho- cravidão e eu me dei conta de que me roz, e a acabar com a escravidão em total de 25, do primeiro livro. Quero
via muito no dia que a corte embar- envolvi mais profundamente ao fazer 1888, com a lei Áurea. Ou seja, o Bra- entregar para a editora até dezem-
cou. Os franceses chegaram e, além esses capítulos do que os outros na sil resistiu o quanto pôde acabar com bro, ou janeiro, aí começo a escrever
dos livros, tinha prataria e o ouro das verdade. E que, para explicar o Brasil a escravidão. E o Joaquim Nabuco di- o segundo. Depois o terceiro. Tem
igrejas. Claro que eles pegaram a pra- de hoje, era importante olhar para a zia que não adianta abolir escravidão, muito trabalho pelo frente.
10 NOVEMBRO DE 2018

CHOCANTE truir o texto para capturar e reter a


Vou antecipar uma coisa do pró- atenção do leitor. Por isso que uso
ximo livro que me deixou realmente esses títulos provocativos na capa —
chocado. A mortalidade nos navios ne- Como um imperador cansado, um ma-
greiros era uma coisa absurda. Não só rechal vaidoso e um professor injustiçado
nos navios negreiros, a mortalidade do contribuíram para o fim da monarquia
tráfico era uma coisa, assim, inacredi- e a proclamação da república no Brasil.
tável. Existe um pesquisador america- Um historiador acadêmico não usaria
no chamado Joseph Miller, que escre- essa linguagem — aliás, não deve. O
veu um livro chamado Way of death [O que eu estou fazendo? Eu estou lança-
caminho da morte], em que ele estimou: do uma isca, tentando capturar o lei-
de cada dois africanos capturados em tor pela capa do livro. E essa captura
guerras, sequestros, razias, no interior continua lá dentro, na forma como eu
da África, só um chegava vivo no litoral abro uma sequência dos capítulos. Al-
para ser embarcado no navio negrei- terno perfis de personagens — acho
ro. A mortalidade nos navios negrei- que sempre dão um refresco no livro
ros era em torno de 20% até chegar ao quando você joga luz num persona-
Brasil. Aqui, mais 5% morriam antes de gem — com narrativas de aconteci-
ser leiloados. E mais 20% morriam nos mentos e às vezes uma análise um
três primeiros anos nos seus locais de pouco mais estruturada sobre a es-
trabalho. De maneira que, de cada três cravidão, a monarquia, o latifúndio
escravos capturados na África, só um no Brasil. Nesse caso, também tenho
sobrevivia mais de três anos na chega- que me prender às fontes. Então, por
da ao Brasil. E o que mais me impres- exemplo, quando falo da chegada da
sionou foi o número de mortos no mar. corte no Rio de Janeiro, abro o ca-
Morreram, ao longo de 350 anos, cer- pítulo dizendo que na manhã do dia
ca de dois milhões de pessoas. Existem 8 de março de 1808 uma brisa sua-
casos de navios negreiros que perde- ve soprava do oceano em direção ao
ram mais de metade da carga — e jo- continente refrescando o verão ca-
gavam no mar, todos os dias, de quatro rioca, e que as pessoas estavam na
a cinco cadáveres. Têm depoimentos rua, que o céu estava azul, tinha uns
que mostram que houve uma mudança retalhos de nuvem no horizonte. Não
nas rotas migratórias dos tubarões no estou romanceando, tem um perso-
Atlântico, durante o período do tráfico nagem que conta exatamente isso, o
negreiro, porque era uma tal quantida- padre Perereca, que foi uma teste-
de de pessoas que eram jogadas no mar munha. Abro com ele. Então uso uma
todos os dias que os tubarões passaram linguagem literária, mas me prendo
a seguir os navios negreiros da costa da às fontes de referência. Não posso
África, até o Caribe ou até o Brasil. Fi- preencher lacunas de conhecimento
quei absolutamente chocado com isso. histórico com ficção. Não posso flo- REDE SOCIAL quizofrênica, porque preciso dela
rear. Não posso criar um ambiente Estou um pouco assustado para capturar os leitores, especial-
MÉTODO que não tenha referência bibliográ- com rede social. Acho que o am- mente os mais jovens. Se eu não es-
O que eu faço é um livro de não fica, referência documental, embora biente está corrosivo, uma coisa de tiver em rede social, os mais jovens
ficção, mas usando uma linguagem a linguagem que eu use seja literária, absoluta intolerância. Minha rela- provavelmente não vão se interessar
jornalística, uma maneira de cons- seja mais próxima da ficção. ção com rede social é um pouco es- pelo meu trabalho. E é lá que eu en-
NOVEMBRO DE 2018 11

contro essa turminha. Mas ao mesmo tempo é um am- que está em crise não é o jornalismo, HISTORIADORES
biente tão hostil ao debate civilizado, à argumentação é a forma de empacotar e distribuir a Minha relação com os historia-
com o mínimo de bom senso, que às vezes tenho von- informação. Até porque o jornalismo, dores está muito boa, historiadores
tade de cancelar, parar com Twitter, com Facebook e para mim, é a única proteção que nós que eu respeito muito tem falado do
nunca mais olhar rede social. temos ainda contra o fake news. Esse meu trabalho — José Murilo de Carva-
é o trabalho do jornalismo, ou seja, lho, Lilia Moritz Schwarcz, Jean Mar-
POLITICAMENTE CORRETO de apurar, ter credibilidade, ter mar- cel Carvalho França, entre outros, fize-
Existe uma história politicamente incorreta cas que tenham credibilidade junto ram resenhas elogiosas ao me trabalho.
hoje no Brasil, que foi muito incorporada por essa aos leitores, telespectadores, profis- Mas, no começo, o problema é que não
nova direita, né?, que nos EUA chama-se alt-right sionais que tenham essa imagem de criticavam o conteúdo dos meus livros,
[direita alternativa]. É uma direita muito precon- credibilidade e que avalize. mas a minha qualificação. O fato de eu
ceituosa, xenófoba e que tenta reescrever a história, não ser historiador me desqualifica-
porque acha que essa história foi capturada pela es- JORNALISTA E va automaticamente para escrever li-
querda no ambiente acadêmico. É muito interessan- HISTORIADOR vro de história do Brasil. Então, supos-
te porque, antigamente, se dizia que a história poli- A história do Brasil sempre foi tamente, se tivesse feito um curso de
ticamente correta seria a história oficial, do Instituto para mim uma segunda paixão, va- graduação numa faculdade de história
Histórico e Geográfico Brasileiro e coisas assim. Aí, mos dizer assim. Eu era jornalista do estaria qualificado. Agora, o fato de eu
a esquerda promoveu uma primeira onda de histó- dia a dia, nas redações dos jornais e ter pesquisado 100 livros para escrever,
ria politicamente incorreta. Mas agora a direita in- revistas onde trabalhei, mas sempre não, isso não qualificava.
corporou essa bandeira, de fazer uma história poli- li muito sobre história do Brasil. Era,
ticamente incorreta, porque acha que a história foi digamos assim, um hobbie meu. Até PLURAL
capturada pela esquerda. É interessante isso. É um porque não existe tanta diferença en- Mas acho que isso primeiro tem
movimento muito pendular. Mas no que implica isso? tre o jornalista e o historiador quanto a ver com a disciplina de história, que
Uma desconstrução como se na verdade tudo o que se se imagina. Os dois têm o mesmo ob- é uma disciplina que tenta se legitimar,
estudou nos livros de história, cursos de graduação, jetivo, que é olhar um acontecimento, se qualificar no Brasil ainda hoje. Como
pós-graduação, fosse falso. Como se houvesse uma um personagem, um fenômeno, deci- o próprio jornalismo também. Então,
agenda escondida no estudo e no ensino de história. frá-lo e tentar chegar o mais próximo a primeira cosia que você faz é defen-
E que na verdade tudo o que você aprendeu até ago- possível da verdade desse persona- der seu território. A história, primeiro,
ra, não existe. gem, desse acontecimento e relatar. é uma disciplina que pertence ao con-
Claro que o historiador faz isso com junto da sociedade que a constrói. E se-
JORNALISMO método, com processo de validação ria, por exemplo, injusto impedir que
O fake news é um fenômeno brutal, ao ponto de no ambiente acadêmico, nas mesas um bom arquiteto escrevesse história
ter influenciado as eleições nos Estados Unidos, a mais de mestrado, de doutorado, onde es- da arquitetura, um bom médico escre-
antiga e consolidada democracia do planeta, democra- tão seus pares. E o jornalista faz isso vesse história da medicina, um bom as-
cia representativa, com quase 250 anos. O resultado foi numa velocidade muito maior no dia trônomo escrevesse história da astro-
alterado pelo fake news, pelo trabalho das redes sociais. a dia. Tem que fechar e publicar ma- nomia, e assim por diante. Ou seja, a
E isso está acontecendo no mundo todo. Mas isso é um térias em questão de horas às vezes. história é muito plural, é múltipla. Ela
fenômeno típico de momentos de ruptura — de ruptu- Então eu diria que o historiador tem a tem facetas que o historiador sozinho
ra produzida, inclusive, pela tecnologia, e não nos deve oportunidade de ser mais consistente não consegue dominar. O desafio do
assustar. Os formatos tradicionais de jornalismo estão na sua pesquisa, de mergulhar mais ensino da história do Brasil é tão gran-
morrendo rapidamente. Recentemente, a editor Abril fundo. O jornalismo, não. Mas diria de que todo mundo que possa partici-
demitiu 600 pessoas e fechou 10 revistas. Eu trabalhei que o nosso trabalho é muito pareci- par desse desafio é bem-vindo — seja
lá durante 22 anos. É assustador. Os jornais estão em do. O historiador é o repórter que olha jornalista, historiador, romancista his-
uma queda drástica de circulação, há uma perda de au- pro passado e o jornalista é o repórter tórico. Ao invés de brigar, a gente deve-
diência da televisão aberta, do rádio não segmentado. o que olha para o presente. ria somar esforços.
12 NOVEMBRO DE 2018

MEMÓRIA LITERÁRIA | LEWIS CARROLL


I L U S T R A Ç Ã O : S I M O N TAY L O R

O NONSENSE COMO
CRÍTICA DA LÓGICA
Lewis Carroll é autor de várias obras, mas As aventuras de Alice no país
das maravilhas, de 1865, é o livro mais popular do autor inglês, com
ressonância entre público e crítica 120 anos após a morte do escritor

M A R C I O R E N ATO D O S S A N TO S
NOVEMBRO DE 2018 13

L
ewis Carroll (1832-1898), de acordo com a pro- crianças”, pontua Cíntia, professora Lagarta”, em que a personagem
fessora da Universidade Federal de Santa Cata- da Universidade de Brasília (UnB). pergunta à Alice: “Quem é você?”.
rina (UFSC) Dirce Waltrick do Amarante, viabili- “Entre outras coisas, As aven- A protagonista responde o seguin-
zou um novo conceito à literatura, especialmente no que turas de Alice no país das maravilhas te: “Eu... eu mal sei, Sir, neste exa-
diz respeito à ficção destinada às crianças. “Seus livros apresenta uma visão do mundo dos to momento... Pelo menos sei quem
questionam o mundo, a fala, são filosóficos e instigam a adultos por uma perspectiva infantil eu era quando me levantei esta ma-
refletir sobre o mundo à sua volta”, comenta Dirce, coor- e, através dos olhos de uma crian- nhã, mas acho que já passei por vá-
denadora da Pós-graduação em Estudos da Tradução da ça, muitos dos hábitos naturaliza- rias mudanças desde então”.
UFSC e tradutora, entre outros autores, de Lewis Carroll. dos em sociedade aparecem em todo De acordo com a especialis-
Doutoranda em literatura infantil e juvenil pela o seu esplêndido absurdo. A obra foi ta da UFSC, o diálogo remete — en-
Universidade de São Paulo (USP), Nathália Thomaz escrita (como outras obras do autor) tre outras referências — ao aforismo
acrescenta que As aventuras de Alice no país das maravi- visando um público infantil, o que grego “Conhece-te a ti mesmo”, ins-
lhas, livro publicado por Carroll em 1865, tem imensa não impede a sua fruição por pes- crito na entrada do templo de Delfos,
importância para o surgimento do que viria a ser co- soas que são crianças há mais tem- cuja autoria é incerta, ainda que se
nhecido como literatura infantil. “Na época em que a po”, analisa a estudiosa. atribua a máxima ao sábio grego Ta-
narrativa foi lançada, havia poucas obras voltadas para les de Mileto, a Sócrates, Heráclito ou
as crianças. Nem mesmo o conceito de ‘infância’ estava E S T R AT É G I A S Pitágoras. “Aliás, a frase na íntegra é:
plenamente desenvolvido da forma como conhecemos D E S C O N C E R TA N T E S ‘Conhece-te a ti mesmo e conhece-
hoje”, diz Nathália. O primeiro capítulo de As aven- rás os deuses e o universo’”, obser-
Obra mais conhecida do autor, As aventuras de Alice turas de Alice no país das maravilhas, va Dirce, que ainda acrescenta: “Daí
no país das maravilhas surgiu durante um passeio de bar- “Pela toca do Coelho”, é o favorito de voltamos a Sócrates, que teria tam-
co pelo rio Tâmisa, na Inglaterra. Na ocasião, o reverendo Nathália Thomaz. “Gosto muito da bém dito: ‘Só sei que nada sei’. Devi-
e professor de matemática na Christ Church, em Oxford, forma como Carroll atrai o leitor para do a isso, talvez Alice seja socrática”.
Charles Lutwidge Dodgson — conhecido pelo pseudôni- ingressar no mundo do nonsense, as- Já o professor da Pontifícia
mo de Lewis Carroll — narrou as aventuras de uma per- sim como o coelho branco atrai Alice Universidade Católica do Rio Grande
sonagem para três meninas, as irmãs Liddell: Lorina, de para sua toca”, afirma. A pesquisado- do Sul (PUCRS) Pedro Theobald con-
13 anos, Alice, de 10 e Edith, de 8. “Alice foi quem deu o ra analisa que a forma como a lógi- sidera relevante o capítulo 9, “A his-
nome à protagonista da aventura”, destaca Dirce Wal- ca cartesiana começa a se distorcer, tória da Tartaruga falsa”: “Aparen-
trick do Amarante. enquanto Alice cai pela toca do coe- temente, a Tartaruga não tem razão
Nathália Thomaz observa que, posteriormente, lho, ilustra exemplarmente a maneira para estar triste nem alegre. Mas sua
Carroll adaptou a história contada oralmente para uma como a história se desenvolverá. história, absurda e sem sentido, se
versão manuscrita, com a finalidade de presentear Alice “O narrador leva o leitor por parece com muitas outras da litera-
e, anos depois, a publicou como um livro disponível para toda a linha de raciocínio de Alice tura moderna”.
o público em geral. No entanto, enfatiza a pesquisado- que começa, aos poucos, a se liber- A professora da Universidade
ra, todo esse caminho, do que viria a ser As aventuras de tar da lógica formal para se tornar Federal de São Carlos (UFSCar) Carla
Alice no país das maravilhas, não significa que o livro seja cada vez mais onírica. Fascinante, Alexandra Ferreira tem a impressão
apenas para crianças. para mim, é o momento em que o de que a cena do julgamento da pro-
“O manuscrito do livro, chamado Alice’s adventu- leitor é capturado pelo livro. Depois tagonista, que aparece nos capítu-
res underground, é maravilhoso e tão fascinante quanto disso, só resta viver a aventura com los 11 e 12, respectivamente, “Quem
o livro clássico. Existem algumas diferenças essenciais: Alice”, reflete Nathália. roubou as tortas?” e “O depoimento
ele tem uma quantidade bem menor de capítulos, a nar- Dirce Waltrick do Amarante de Alice”, é um momento importante
rativa é muito focada nas transformações de tamanho de salienta que todos os capítulos de As do romance por apresentar o resul-
Alice, e alguns detalhes são bem diferentes do livro pu- aventuras de Alice no país das maravi- tado de um processo que foi cons-
blicado”, explica Nathália Thomaz. lhas discutem questões importantes, truído ao longo do texto.
No que diz respeito ao público-alvo do livro As de acordo com a professora da UFSC, “Muitos foram os momentos
aventuras de Alice no país das maravilhas, Cíntia Schwan- “da ordem da lógica, da linguagem, em que o mundo estável de Alice foi
tes afirma que, como Lewis Carroll utilizou largamente da educação, da história, da psico- posto em xeque: seus aprendizados,
o nonsense e o humor, a obra tende a ser agradável para logia, da filosofia, etc”. Mas ela des- etiqueta para meninas inglesas de
qualquer faixa etária. “Mas foi pensada para ser lida por taca o capítulo 5, “Conselho de uma classe média, crenças sobre a ordem
14 NOVEMBRO DE 2018

MEMÓRIA LITERÁRIA | LEWIS CARROLL

ILUSTRAÇÃO: JOHN TENNIEL

natural dos eventos. Durante todos dos e desafios de lógica. “Além disso,
eles, a personagem tentou manter o escreveu cartas e mantinha diários
que aprendera em seu meio, sendo bastante detalhados. Alguns des-
uma menina bem-educada e polida. ses diários e cartas estão disponíveis
Contudo, na hora do julgamento, ela para consulta online no site da Bri-
tem seu momento de rebeldia e diz tish Library”, conta a pesquisadora.
que o que acontecia era nonsense e Carroll elaborou uma conti-
que se recusava a aceitar sua senten- nuidade para As aventuras de Alice no
ça”, explica a professora da UFSCar. país das maravilhas, Alice através do
Já Cíntia Schwantes chama espelho (1872) — romance que tam-
atenção para a própria estrutura do bém obteve repercussão de públi-
livro, segundo ela, “bastante curio- co e crítica. Já Silvia e Bruno (1889)
O ILUSTRADOR sa”. “O leitor pode ter uma certa me- não teve a mesma ressonância que
dida de certeza de que toda a aven- as narrativas que têm como prota-
DE CARROLL tura de Alice foi um sonho — é o que gonista a personagem Alice obtive-
lhe diz a irmã mais velha, que, por ter ram — o Cândido publica na página
O professor da PUCRS Pedro Theobald mais idade, é a voz do bom senso. No 26 um fragmento de Silvia e Bruno,
afirma que as primeiras ilustrações de As entanto, a própria Alice não fica mui- traduzido por Sérgio Medeiros, texto
aventuras de Alice no país das maravilhas to convencida disso”, diz Cíntia. Para inédito no Brasil e previsto para sair
merecem atenção. O autor delas se chama de a professora da UnB, o leitor pode em 2019 pela Iluminuras.
John Tenniel (1820-1914) e as imagens ainda escolher se toma o caminho do bom “Hunting of the Snark” (tra-
são reproduzidas em reedições e traduções — senso ou o da imaginação: “Pode es- duzido para o português por Augusto
no Brasil, a Zahar as utiliza. colher se acredita que Alice apenas de Campos como “A caça ao Turpen-
Cego de um olho, mas dono de uma memória sonhou, ou se ela de fato viveu todas te”) é um poema narrativo nos mol-
fotográfica considerada impressionante, o as aventuras de que se lembra. Quan- des dos poemas épicos do século XVI,
inglês Tenniel desenhava até sem modelos. do criança, eu sempre escolhia o ca- mas — na avaliação de Cíntia Sch-
Produziu mais 2 mil ilustrações e caricaturas minho da imaginação”. wantes — recheado de jogos de pala-
para a revista satírica Punch, da Inglaterra, vras, muitas inventadas, em um tom
entre 1850 e 1901. Ilustrou diversas obras, A V I S I B I L I DA D E D E chistoso que é a marca do autor. “A
mas tornou-se célebre pelo trabalho que U M A N A R R AT I VA crítica oscilou entre elogiar e reprovar
realizou com os livros de Carroll, As aventuras Nathália Thomaz salienta que a obra, usualmente pela mesma ca-
de Alice no país das maravilhas, de 1865, e a sua Lewis Carroll escreveu muito desde racterística, o uso do nonsense, mas o
continuação, Alice através do espelho, de 1872. pequeno. “Em sua família, sempre público aderiu a ela entusiasticamen-
foi o responsável pelas narrativas e te”, comenta a professora da UnB.
diversões. Em uma época sem tele- Mas, de fato, As aventuras de
visão e internet, alguém com habi- Alice no país das maravilhas é a obra
lidades de criar ficções era bastante mais conhecida do autor em âmbito
querido em eventos sociais”, explica. mundial. Cíntia Schwantes analisa que
Lewis Carroll, lembra Nathália a adaptação do livro, realizada pelos
Thomaz, separava com muita clareza Estúdios Walt Disney, em 1951, ajudou
sua persona de autor da persona do a popularizar a narrativa e se desdo-
professor universitário, atividade em brou em outros produtos, como ver-
que assinava com seu nome próprio: sões em HQ e encenações em teatros.
Charles Lutwidge Dodgson. Nathá- Dirce Waltrick do Amarante
lia observa que, como matemático, aprecia a adaptação cinematográfica
ele publicou diversos livros, trata- que o diretor tcheco Jan Svankmajer
NOVEMBRO DE 2018 15

I L U S T R A Ç Ã O : S I M O N TAY L O R
realizou, em 1988, de As aventuras de Carla Alexandra Ferreira acre-
Alice no país das maravilhas. Nathá- dita que essa obra de Carroll é a mais
lia Thomaz defendeu na Universi- comentada por causa de sua propos-
dade de São Paulo (USP), em 2012, ta, que desafia a lógica e as regras so-
uma dissertação de mestrado com- ciais vitorianas [o termo Era Vitoriana
parando o grotesco do manuscrito de refere-se ao reinado da Rainha Vitó-
As aventuras de Alice no país das mara- ria, na Inglaterra, de 1837 a 1901] por
vilhas e o de Alice, longa-metragem meio da criação de um mundo em que
de Svankmajer. “O grotesco está pre- a lógica e o aprendizado escolar da-
sente na história de Carroll desde seu quele contexto, enquanto as regras,
manuscrito, especialmente em suas são subvertidos e não funcionam.
ilustrações, e complementa o non- “Quando Alice tenta responder
sense característico da obra. Em seu a questões aritméticas, por exemplo,
filme, Svankmajer amplifica os ele- as respostas que saem de sua boca
mentos da estética do grotesco e da não são as que aprendera na esco-
linguagem nonsense, estabelecendo la: dois mais dois, naquele local, re-
um diálogo único e cru com a obra de sultam em vinte e cinco. Além dis-
Carroll”, comenta Nathália. so, o romance ainda trabalha com a
Já Pedro Theobald avalia que questão identitária que é apresentada
a notoriedade de As aventuras de Ali- em um contexto de revisão de valores
ce no país das maravilhas tem relação estabelecidos. A pergunta de Alice so-
com o fato de a narrativa ser, cro- bre quem ela é nesse mundo, durante
nologicamente, a primeira das obras sua viagem pelo país das maravilhas,
literárias importantes e reconheci- torna-se o grande questionamento
das de Lewis Carroll. desse livro”, opina.

ILUSTRAÇÃO: JOHN TENNIEL

OS ANIMAIS DE CARROLL
Animais falantes são, evidentemente, anteriores à obra de Lewis Carroll.
A professora da UFSC Dirce Waltrick do Amarante diz que — de certa
forma — o diálogo entre Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, da fábula
do século XVII, é tão estranho quanto aqueles presentes em As aventuras
de Alice no país das maravilhas — a protagonista conversa com uma lagarta
e com um coelho, entre outros bichos.
De acordo com Cíntia Schwantes, especialista da UnB, a diferença crucial
entre as conversas de personagens humanos com animais, por exemplo,
das fábulas do século XVII e as de As aventuras de Alice no país das maravilhas
é que, neste caso, não há lição de moral. “Um dos motivos do sucesso da
obra de Carroll, provavelmente, foi a subversão dos textos vetustos que eram
apresentados às crianças”, comenta Cíntia.
Dialogando com Cíntia Schwantes, Carla Alexandra Ferreira, pesquisadora
da UFSCar, afirma que, antes da publicação de As aventuras de Alice no país
das maravilhas, os livros para crianças tinham caráter instrucional e moralista:
“Embora nas fábulas anteriores ao livro de Carroll houvesse animais
falantes, o protagonismo dado à Alice, bem como a interação da menina
com os animais naquele universo fantástico, é algo novo. E mais: no caso de
Carroll, a fantasia e o nonsense ocupam o lugar do moralismo”.
16 NOVEMBRO DE 2018

MEMÓRIA LITERÁRIA | LEWIS CARROLL

O ESCRITOR E A ALICE REAL na. Mas, na falta de informações, há entretanto, eram sempre realizados com autorização dos
Charles Lutwidge Dodgson, especulações”. pais”, explica Nathália Thomaz.
conhecido pelo pseudônimo Lewis Nathália Thomaz afirma que, Naquela época, continua a estudiosa, a fotografia
Carrol, tornou-se, quando jovem, em suas pesquisas, nunca encontrou tinha acabado de ser descoberta e as pessoas pensavam
amigo do pai de Alice Liddell e suas nada indicando que Charles Lutwid- nos registros fotográficos de uma forma bem diversa da
irmãs, o então reitor da Christ Chur- ge Dodgson pudesse ter cometido que pensamos hoje: “Alguns pais poderiam desejar eter-
ch, Henry Liddell. Matemático, ro- algum abuso com as crianças com nizar a ingenuidade e delicadeza da infância com um en-
mancista, contista, fabulista, poe- quem se relacionou. “Alguns bió- saio como este (nu feminino)”.
ta, desenhista, fotógrafo e diácono grafos sugerem essa possibilidade Cíntia Schwantes levanta outra questão a respeito
da Igreja Anglicana, Dodgson pas- porque ele nunca se casou, e prefe- do afastamento de Lewis Carroll da família de Alice. “A
sava muito tempo com as meninas ria sempre se cercar de crianças do hipótese mais acreditada é a de que Carroll pediu Alice em
da família, entretendo-as e contan- que de adultos, e construía relações casamento quando ela completou 11 anos. Não era uma
do histórias. muito próximas com elas. As levava idade impossível para o casamento — após a primeira
“De fato, As aventuras de Alice para passear, escrevia cartas, enig- menstruação, meninas eram consideradas prontas para
no país das maravilhas surge de uma mas matemáticos e comentou diver- o casamento, embora sua apresentação em sociedade de-
dessas histórias contadas a Alice e sas vezes em seus diários o quanto morasse mais dois ou três anos”, comenta.
suas irmãs numa tarde de passeio apreciava a companhia de meninas A especialista da UnB acrescenta que a recusa da
pelo Rio Tâmisa. A menina, Alice, pequenas”, diz a pesquisadora. família, devido ao fato de que a situação econômica do
gostou tanto da história que pediu a As suspeitas, não comprova- proponente foi considerada insuficiente, teria provoca-
ele que a escrevesse para ela”, re- das, de que o autor de As aventuras de do um afastamento entre eles: “Alice Liddell casou-se,
força Carla Alexandra Ferreira, sem Alice nos país das maravilhas poderia mais tarde, com Reginald Hargreaves, herdeiro de uma
deixar de acrescentar que, “quando ter eventualmente abusado de me- fortuna considerável”.
Alice chega à adolescência, a família ninas ganha força devido ao trabalho Charles Lutwidge Dodgson jamais se casou e, como
já não deseja a presença de Carroll dele como fotógrafo amador. “Mui- salienta Cíntia Schwantes, sua família procurou apagar as
como amigo, e a amizade é desfei- tas de suas fotos retratam crianças evidências de suas relações (“algo escandalosas”) com
ta. Não há provas de que algo te- pequenas nuas, em poses que pa- mulheres, solteiras ou casadas, para proteger a reputação
nha acontecido entre ele e a meni- recem sensualizadas. Esses ensaios, do matemático e escritor, morto há 120 anos.

REPRODUÇÃO

ALICE NO CINEMA
O mais célebre livro de Lewis Carroll já recebeu algumas adaptações
para o cinema. Há uma versão de As aventuras de Alice no país das
maravilhas (1903), de quase 12 minutos, dos quais restaram apenas
8 minutos — conteúdo disponível no Youtube. O curta-metragem
de Cecil M. Hepworth e Percy Stow dialoga diretamente com as
ilustrações de John Tenniel.
Em 1951, os estúdios Walt Disney apresentaram sua primeira versão do
clássico de Carroll, uma animação de 75 minutos. Em 2010, a mesma
empresa viabilizou outra adaptação de As aventuras de Alice no país das
maravilhas, dirigida Tim Burton, com Mia Wasikowska como Alice e
Johnny Depp interpretando o Chapeleiro Maluco. O longa-metragem,
de 108 minutos, faturou mais de U$S 1 bilhão em âmbito mundial.
Em 2016, Tim Burton assinou a produção de Alice através do espelho,
longa dirigido por James Bobin — outra realização da Disney.
Já Alice (1988), do diretor tcheco Jan Svankmajer, flerta intensamente
com o nonsense do livro de Carroll em 86 minutos, e é considerada a
Johnny Depp e Tim Burton: Carroll no cinema. mais cult das versões.
NOVEMBRO DE 2018 17

METAMORFOSE DE UM LEGADO
Cíntia Schwantes afirma que um dos grandes
equívocos ditos, e repetidos, a respeito da obra de Le-
wis Carroll sugere que ele escreveu textos leves e des-
pretensiosos, que serviriam “apenas” para preencher
o tempo de forma agradável. “Os textos de Carroll são
todos bastante críticos de uma sociedade hipócrita, e
que submetia suas crianças a muita violência enquanto
afirmava protegê-las”, diz a professora da UnB.
Dialogando com o ponto de vista de Cíntia Sch-
wantes, Nathália Thomaz acrescenta que o livro mais
conhecido de Lewis Carroll traz uma história, essen-
cialmente, sobre transformação. “Hoje em dia, As
aventuras de Alice no país das maravilhas é uma obra
muito maior do que Carroll poderia imaginar naque-
la tarde no Tâmisa. Dali, ele produziu um manuscrito,
que foi adaptado para um livro e, desta obra, surgiram
inúmeras leituras e releituras”, comenta.
De acordo com a pesquisadora, a narrativa
sobre a menina chamada Alice, que sofre diversas
transformações, também se transforma a partir de
novas leituras. “Cada nova versão, seja um filme, um
musical ou uma animação, reverbera nas próximas,
valoriza, reafirma e atualiza o clássico”, salienta Na-
thália Thomaz.
Carla Alexandra Ferreira enfatiza que a recep-
ção de As aventuras de Alice no país das maravilhas tem
trazido, ao longo do tempo, a questão do absurdo,
nonsense e do surrealismo, o que de fato aparece na
história. “Contudo, é importante destacar que se trata
de um romance escrito no contexto da Era Vitoriana,
por um matemático de formação e diácono da Igreja
Anglicana, que lecionou matemática, por toda a vida,
em Oxford. A lógica é, portanto, seu material de tra-
balho”, destaca.
A partir dessa interpretação, a professora da
UFSCar explica que As aventuras de Alice no país das ma-
ravilhas traz dois mundos em diálogo e colisão: o da
lógica, da ordem, e o da fantasia e nonsense. “Então,
o leitor tem diante de si uma grande obra e o alcan-
ce ao enriquecimento semântico que uma leitura, por
esse viés, pode trazer. Concentrar-se em apenas um
dos lados, embora seja um exercício de leitura valioso,
significa deixar de lado uma grande questão do livro,
inclusive o diálogo entre esses dois mundos [lógica e
Simon Taylor recria Lewis Carroll. nonsense]”, analisa Carla Alexandra Ferreira.
18 NOVEMBRO DE 2018

FICÇÃO | VILMA ARÊAS

VESTIDOS
DE
PALHA
NOVEMBRO DE 2018 19

Totó me olhou com aqueles doces olhos de andorinha que a despeito de sua mortal fadiga, são vão bem, obrigado. Muito bem mesmo.
e me disse: “Pode me chamar de Antonio”. ameaçados constantemente com o pau- Prazer violento no reino da incoerência.
Federico Fellini -de-arara, com os açoites, com a cruci- (De repente parece que falta
ficação, com a cabeça besuntada de pi- um pouco de ar.)
che e levada ao fogo. Mas olhe lá, não perca: Felli-

A
respeito dele podemos retomar o que presumimos — Vou terminar meus dias numa ni surge pela última vez, afastando
do universo: quando e de que forma surgiu? À pri- cruz, onde seguirei o destino de meus com dois dedos a cortina prateada dos
meira vista ambos parecem eternos. A ponderação ancestrais, pai, avô, bisavô, lamentou- aplausos. Silêncio profundo. Ele decla-
é de Jean Clair: o primeiro primata a se pôr de pé, ousan- -se Céledro, um tipo ordinário. ra que entre todas as formas de espe-
do se erguer sobre as patas e controlando a vertigem, foi Mas, por favor, é melhor pa- táculo, a comédia é a que mais se avi-
o primeiro saltimbanco. Começava aí a aventura de nos rar com detalhes, quem vai levar essa zinha da poesia.
equilibramos precariamente, percorrendo “o fio invisí- choradeira a sério? Esses olhos doces, Como assim, meu leviano?
vel” da existência. de mel? Quanto exagero! Chamem de- É, sim. A comédia faz uma re-
Séculos depois, no teatro popular napolitano, ele pressa aquela andorinha. leitura dos sentimentos e mostra cla-
se vestia da fazenda de forrar colchões de palha. Parecia Mas é que, pensando bem, não ramente que a natureza não é natural.
mesmo um saco de palha. Parecia qualquer coisa, menos nos interessamos jamais por um deses- Neste momento preciso, como
um homem. Seria um bicho? pero sem pedigree. qualquer animal ameaçado, o homem
Fellini pelo menos afirma que Carlitos era um gato fe- Mesmo observando a resistên- mostra as presas. Ri.
liz que sacudia os ombros e ia embora. E que Totó era algo na- cia do palhaço em cena (não impor- Palmas. Palmas.
tural e completo, talvez outro gato. Ou um morcego. ta quantas vezes um homem é derru- Esta comédia sem remorsos
Parece até que nunca foram homens. Quem disse bado, pois ele se levanta etc), mesmo assegura total impunidade a quem
que palhaços têm sexo? Não, senhor, não têm. Não ca- assim somos fiéis à nostalgia do herói nos roubar de todos os nossos perten-
bem nessa saia justa. São inocentes. Só por isso já fazem trágico, votado por definição à mor- ces: o teto sobre nossas cabeças de-
rir. Ao mesmo tempo são mais do que isso. Certamente te. Lágrimas correm, os lencinhos se baixo do Minhocão, um nome ou uma
resultantes de uma longuíssima sedimentação. Mal com- afobam, olhos parecem ceifados como criança acabada de nascer. A onipo-
parando, é o que acontece com as pedras, dentro das mi- flores. Também bigodões são arran- tência plena da máscara surge na li-
nas ou rente ao chão dos desertos. cados, colares ou cabeleiras, nos re- nha do horizonte como a lua verme-
Duros como elas, pois costumam treinar o corpo des- tratos travestidos dos palcos. lha, poluída do veneno das cidades.
de pequenos, engambelando a fome. Nisso se assemelham Palmas. Palmas. Chega. Abandonemos enfim a
também aos pobres coitados, que se enfiam indiferentes em (Ao saber da traição do tio na- lengalenga: na curva do texto derrapa-
qualquer roupa velha a seu alcance. Em casos extremos se quela tragédia célebre, o Príncipe só mos em nossa precariedade histórica.
enrolam nesses cobertores baratos, cinzentos, tristíssimos e pôde gemer “Oh, minha alma pro- Isso ocorre frequentemente
transparentes. Embora pareçam, não são palhaços profissio- fética”. Pois de súbito compreendia, em Shakespeare, quando a másca-
nais, estes sim, que fingem não ligar para nada, aos pulos e pedindo ao próprio coração que se ra do bufão cai de súbito e olhamos
rindo muito. Quem não gosta? detivesse, que um canalha podia le- diretamente no rosto de um escravo
Palmas. Palmas. var a vida a sorrir.) batido e ridicularizado.
Apesar da maquiagem extravagante, pincelando nari- Ah, mas é melhor virar a página.
zes de batata, piruetas tronchas e saltos mortais, eles acabam Ninguém duvida que as histórias possí- VILMA ARÊAS nasceu em Campos dos
fazendo a maldade brotar no palco como uma fonte. Como veis viraram frangalhos à custa da mera Goytacazes (RJ) e vive em São Paulo (SP). É
água pura dentro dos olhos. repetição. Sem relatos de bordo, com o professora titular de literatura brasileira na
Unicamp. Estreou na ficção com Partidas
As crianças a princípio nunca se enganam com essa sumiço das caixas pretas, frequente- (contos, 1976). Seus livros Aos trancos e
parafernália, se assustam, têm medo e choram. Até ficarem mente escolhemos o consolo da obs- relâmpagos (literatura infantil, 1988) e A terceira
definitivamente hipnotizadas pela ilusão. cenidade, essa coisinha vulgar e gas- perna (contos, 1992) ganharam o prêmio
Jabuti. Em 2005, Clarice Lispector com a ponta
Agora um detalhe bem chato: desde a comédia an- tro-sexual. Por isso podemos relaxar e
dos dedos (ensaio) recebeu o prêmio APCA
tiga a cólera desaba sobre eles, como se fossem meros es- afirmar tranquilos, entre duas garga- na categoria literatura. O mais recente livro da
cravos vestidos de palha. Mas será mentira? O que vemos é lhadas e um requebro, que os obscenos autora é Um beijo por mês, lançado este ano.
20 NOVEMBRO DE 2018

C A PA
ILUSTRAÇÃO: ANDRÉ DUCCI
NOVEMBRO DE 2018 21

DIVULGAÇÃO/MARCELO CORREA

LITERATURA POP
BRASILEIRA —
SUCESSO E CONTRASSENSO

Televisão, consumo, cinema, quadrinhos, videogame


e musica pop passaram a fazer parte de narrativas
criadas por escritores nacionais. A geração 2000
trouxe referências que assimilaram o popular
à linguagem literária, dando origem a livros
que ajudaram a diversificar a ficção do país

SANTIAGO NAZARIAN critores que, pela primeira vez, po-


dia formar um público sem precisar

“J
ovem, tatuado, redator de de uma grande editora por trás. Esses
disk-sexo e ganhou um prê- “jovens tatuados” vinham com novos
mio de literatura.” Essa era a temas, novas estéticas, aproximando a
manchete de uma das primeiras ma- literatura de uma linguagem mais jo-
térias sobre meu trabalho como escri- vem e urbana.
tor, num jornal de grande circulação. Estabelecia-se assim a literatu-
O ano era 2003, e eu tinha a ra pop brasileira.
sor­­te de fazer parte da nova geração O termo “literatura pop” é con-
de autores do começo do milênio, troverso e de definição imprecisa — se
que encontrava na internet novas não conseguimos definir nem o que
formas de divulgação e novas possi- seria “literatura”... —, e muitas ve-
bilidades de publicação. zes é falsamente compreendido como
Naqueles tempos, da internet uma literatura mais rasa, de fácil as-
1.0, a comunicação era basicamente similação ou apelo popular. Eu mes-
escrita, ainda não se tinha a capaci- mo fiquei um tanto incomodado com A escritora Ana Paula Maia, que este ano lançou seu sétimo livro,
Enterre seus mortos, começou a publicar pela Coleção Rocinante, da
dade de áudio e vídeo que se tem hoje; o rótulo de “escritor pop” que me foi
editora 7Letras.
e assim surgia uma nova leva de es- dado por críticos bem-intencionados
22 NOVEMBRO DE 2018

C A PA

D I V U L G AÇ ÃO / R E N ATO PA R A DA

como Beatriz Resende, nesse início de O gaúcho Antônio sempre terá uma obra ‘sofisticada’
Xerxenesky mistura
carreira. Levaria tempo (e maturidade) que o põe em patamar superior da­­
referências de
para eu assumir a veia (com Mastigan- cinema e música em queles que fazem música pop por
do humanos, meu quarto livro). suas narrativas. No não terem outra opção. Mas ressalto
Novidade no começo dos livro F, o cineasta que, alguns, como Chico Buarque e
Orson Welles está no
2000, levaria tempo também para centro da trama. Edu Lobo, nunca tentaram uma apro­­
o pop conquistar seu devido espaço ximação com o universo pop.” Ferreira
na ficção literária — e mesmo hoje acrescenta: “Mesmo que esses com­­
talvez ainda enfrente resistências. O positores já tenham perdido o elo
que é popular não pode ser erudito. com o chamado ‹povão›, continuam
E o que não é erudito não pode ser sendo referenciais justamente pela
levado a sério pela crítica. sofisticação. A música pop, por mais
“A palavra popular já é com- que seja bem feita, tende a ser mais
plexa. Quando se fala em pop, então, é simples, justamente para facilitar a
mais difícil ainda de saber sobre o quê assimilação popular. Pop, afinal, vem
estamos falando. Pop pode ser sinôni- de popular. Daí o abismo.”
mo de ‘muderninha’, de pós-moder- Na literatura, o rótulo se torna
na (no sentido de romper as barreiras mais nebuloso, uma vez que associar
entre o popular e o erudito), de estilo o termo “popular” a um livro soa
que leva em conta as influências mi- meio paradoxal num país de não-
diáticas, de uma literatura jovial e livre -leitores. A literatura pop — mais
das amarras beletristas, de autores que do que popular ou do “povão” — é
se interessam em atingir um público aquela que se apropria de elementos
mais amplo, e por aí vai. Então, antes da cultura popular, o que não neces-
de tudo é preciso saber do que se fala sariamente faz dela mais acessível à
quando se fala de literatura pop”, diz grande massa.
Cristiane Costa, crítica literária, escri- Se houve grandes êxitos edito-
tora e professora da UFRJ. riais com certa carga pop ainda nos
anos 1980, com autores como Mar-
FRONTEIRA TÊNUE celo Rubens Paiva, Márcia Denser e
É curioso notar como essa Caio Fernando Abreu, foi no início dos
separação entre cultura pop e alta 2000 que a literatura pop se estabele-
cultura no Brasil não é exclusividade ceu de vez, com essa nova geração de
da literatura. No cinema ou na música autores que trazia o pop não apenas
também sempre houve uma separação na escrita, mas na postura e interação
do que era produto de massa, comer­­ com o público.
cial e o que era a produção intelectual Como exemplo, apesar da car-
(uma fronteira que não é tão definida ga cinematográfica de sua obra, Mar-
em países anglófilos, por exemplo). çal Aquino é um autor de sucesso, de
“É uma fronteira muito tênue”, uma geração anterior, que não se re-
afirma o crítico musical Mau­­ro Ferreira. conhece como parte do “movimento”.
“Porque alguns com­­positores da MPB “Não estou certo de que o trân-
volta e meia flertam intencionalmente sito por gêneros tenha, de alguma
com o pop, notadamente Caetano e Gil, maneira, trazido um caráter pop para
arquitetos da Tropicália. Um cantor de o que escrevo. Lembro que, na déca-
MPB pode soar pop. No entanto, ele da de 1970, quando me formei como
NOVEMBRO DE 2018 23

DIVULGAÇÃO

leitor e escritor, que foram anos de Autor de romances dedicado, entre outros, “Aos Strokes”
policiais, Raphael
muita literatura engajada e alegórica, (banda nova-iorquina de rock que des-
Montes situa
o único que se assumia como escri- suas tramas no pontava na época). Ela era uma menina
tor pop era o mineiro Roberto Drum- Rio de Janeiro tatuada, que interagia com os fãs pelas
mond, autor de livros como A morte contemporâneo redes sociais (e pelos bares) e falava a
porque acha
de D.J. em Paris e Sangue de Coca-Co- “interessante que um língua deles. “O leitor quer mais é se
la.” (Drummond curiosamente mor- livro seja um registro identificar com a obra”, diz ela.
reu em 2002, quando a “geração pop” daquele tempo A saga de Clara acabou viran-
começava a arregaçar as mangas).
em que se passa a do filme: Nome próprio, dirigido por
história.”
Murilo Salles, com Leandra Leal no
INFLUÊNCIAS papel principal. Curioso que se pre-
A consolidação do pop na litera- tendia um retrato atualíssimo de uma
tura brasileira é fruto de um contexto geração, mas pela lentidão da produ-
que começou com o fim da censura, a ção cinematográfica brasileira aca-
abertura política (o fim da ditadura) e bou sendo lançado apenas em 2008.
culminou com a ampliação de voz dos Então, a realidade da internet (disca-
jovens escritores pela internet. da) que retratava já estava ultrapas-
Uma das pioneiras da “Geração sada, o que, se não comprometeu a
Zero Zero”, a gaúcha Clara Averbuck qualidade artística da obra, a tornou
(que antes assinava como Clarah, com um filme de época.
“H” no final) começou a divulgar sua Antes de Clara, Fernanda You-
escrita na virada do século através do ng foi uma espécie de precursora
fanzine eletrônico (via e-mail) Cardo- dessa linguagem pop. Vinda da te-
sOnline, de onde vieram outros auto- levisão, ela já era roteirista de su-
res reconhecidos, como Daniel Gale- cesso da Rede Globo, com “Os Nor-
ra e Daniel Pellizzari. O fanzine com mais”, quando publicou seu primeiro
base em Porto Alegre foi um marco romance, Vergonha dos pés, em 1996.
dessa nova literatura, utilizando da Ela também era uma “jovem tatua-
ferramenta tecnológica para alcan- da”, que incorporava muito da carga
çar horizontes bem maiores do que pop e televisiva em seus textos.
as tradicionais publicações xeroca- “Eu não venho de uma família
das. Clara migrou em seguida para um letrada”, confessa. “As minhas refe-
blog próprio (Brazileira Preta), forma- rências são da cultura pop — da te-
to que também era novidade, e atingiu levisão, Chico Anísio, Dias Gomes,
uma febre de acessos para os padrões Casal 20, As Panteras” (risos). “Mas
da época (na casa dos milhares; nada isso não quer dizer que eu faça uma
comparado aos milhões que hoje têm escrita fácil.”
os youtubers). Isso atraiu os olhos da Young sentiu a desconfiança do
editora Conrad — mais conhecida pe- meio “literato” por conta da carga te-
las HQs, que já havia publicado o jo- levisiva de sua obra, mas não renega o
vem André Takeda, com o romance rótulo de literatura pop. “Até porque
Clube dos corações solitários, que tem tenho aí mais de vinte anos como es-
seu título tirado da música dos Beatles critora, não sou uma moda passageira.
(“Sgt. Pepper’s”). O primeiro livro de Só que desde pequena tive de fazer ou-
Clara, Máquina de Pinball, também já tros trabalhos para poder fazer litera-
trazia carga pop no próprio título e era tura, não viver de literatura.”
24 NOVEMBRO DE 2018

C A PA

Mesmo um dos autores mais considera restrito ao rótulo: “Entendo cia ocasional, realista, ao consumo da
respeitados e premiados surgidos na literatura pop como aquela na qual as cultura pop por parte das pessoas. Isso
geração dos 2000, Daniel Galera, no referências à cultura pop são parte es- não transforma um livro em literatura
começo de carreira sentiu na pele pre- sencial do estilo e da narrativa, como pop, é apenas uma questão de veros-
conceito por incorporar elementos da o uso de canções pop como indício dos similhança”, diz. “Não há como narrar
cultura pop em sua obra, como os vi- sentimentos dos personagens e condu- realisticamente os tempos atuais sem
deogames. Ainda assim, ele não se ção da história. Outra coisa é a referên- incluir em alguma medida a cultura
pop, a publicidade, as marcas, etc.”
DIVULGAÇÃO

POPSTAR
Apesar do preconceito dos lite-
ratos, a ebulição dessa nova geração
no começo dos anos 2000 alimentou
e foi alimentada por todo um novo ce-
nário, com o surgimento de sites de
literatura (Paralelos, Portal Literal, Cro-
nópios) e os festivais literários, como
a FLIP (inaugurada em 2003) e todos
os outros acrônimos. Nesse contex-
to, exercitava-se a figura do escri-
tor como uma espécie de “popstar”,
muito para horror dos acadêmicos e a
velha guarda em geral.
As editoras embarcaram. No
Rio, a 7Letras garimpou bem a nova
produção, lançando autores excelen-
tes com sua Coleção Rocinante. Mui-
tos viriam a se consolidar no cenário
literário, alguns arcando com parte dos
custos dessas publicações de estreia.
Veronica Stigger, Julián Fuks, Caro-
la Saavedra, Ana Paula Maia foram
alguns nomes da coleção. Isso se se-
guiu em editoras maiores. Na Planeta,
que chegava ao Brasil em 2003, o edi-
tor Paulo Roberto Pires começou um
catálogo de literatura brasileira com
novíssimos, como João Paulo Cuenca,
Joca Terron, a própria Clara e eu (am-
bos tivemos nossos segundos roman-
ces lançados pelo grupo espanhol em
Roteirista de TV, 2004). A Rocco criou um selo específi-
Fernanda Young
co, o “Safra XXI” (cuja logo trazia um
incorpora em sua
prosa a cultura pop bebê de moicano punk), exatamente
que a formou como para englobar essa literatura (nacional
escritora. e estrangeira) “urbana, contemporâ-
NOVEMBRO DE 2018 25

nea, que não se encaixava nos padrões bre o mundo atual. Carrego muito da tos pop e há provas abundantes disso. O vencedor do
tradicionais”, lembra Amanda Orlan- vida urbana no que escrevo, mas não Nobel Kazuo Ishiguro publicou uma ficção científi-
do, à época editora do selo na Rocco me preocupo com esse rótulo. Pen- ca (Não me abandone jamais) e um livro de fantasia (O
(hoje trabalha na Globolivros). “Eram so que quanto mais a gente classifi- gigante enterrado). Mas, para além disso, acho que as
livros com referências que remetiam ca a literatura, mais difícil é atingir fronteiras entre ‘alta’ e ‘baixa’ literatura se dissolve-
muito à TV, à internet”, diz ela. a massa. Eu sempre penso na enor- ram e precisam ser repensadas.”
Porém a euforia com essa nova me quantidade de gente que não tem Na literatura policial, Raphael Montes é um autor
geração foi morrendo no final da dé- o livro em sua rotina. O Brasil não surgido nesta década, que conseguiu enorme destaque
cada. As editoras percebiam que esses valoriza seus escritores, apoia pon- entre leitores, aliando uma prosa afiada a uma ótima
novos autores não vendiam tanto as- tualmente em Bienais, eventos, mas comunicação com os leitores e grande investimento de
sim — consumia-se mais a imagem na vida cotidiana não somos lem- sua editora, a Companhia das Letras. Ele questiona a
do escritor do que sua obra. Na crise brados. Luto por isso, para que mais intersecção entre literatura de gênero e literatura pop:.
do jornalismo, os cadernos literários pessoas lembrem da gente, para o “A meu ver, são ideias bem distintas. A ‘literatura
também foram sendo extintos. E com livro ser um objeto de desejo regu- de gênero’ é aquela criada a partir de certos preceitos
a internet se tornando multimídia fo- lar. Não fico pensando se sou alta ou básicos que constituem o gênero (um crime e uma in-
ram surgindo outras ondas — primei- baixa literatura. Isso é um pensa- vestigação, na literatura policial; algo de sobrenatural
ro de novas bandas, depois de “video- mento pequeno.” e assustador na literatura de terror; um par romântico
makers” (os já citados youtubers). nos livros chick-lit). Não sei qual a definição exata de
Hoje, me parece que os ele- GÊNEROS ‘literatura pop’, mas me parece ser aquela que dialoga
mentos da cultura pop já estão in- Outro autor da nova geração com seu tempo, dando voz a personagens ‘reais’, que
corporados na literatura brasilei- que flerta com o pop é o gaúcho An- vivem no mundo de hoje e, por isso, assistem a filmes de
ra. Afinal, os autores que cresceram tônio Xerxenesky, um dos eleitos pela diretores contemporâneos, escutam álbuns recentes, se
mergulhados na cultura dos anos revista britânica Granta entre “os relacionam e se comunicam da maneira como fazemos
1980 e 1990 já estão com 40, 50 anos, melhores jovens escritores brasilei- hoje, através de redes sociais e celulares.”
já são “tiozões”, como eu. O “es- ros”. Seus romances trazem elemen- Ainda assim, Montes se vê identifica com a lite-
critor tatuado” não soa mais como tos de faroeste, de terror e apocalipse ratura pop. “Em geral, minhas histórias se passam nos
oximoro, porque toda uma geração zumbi. “Minha escrita encontra-se dias de hoje, no Rio de Janeiro, com personagens jovens
foi tatuada. Entretanto, a separação num limiar. Assimilo característi- e adultos. Por isso, quando escrevo, busco mimetizar
entre literatura popular e “alta lite- cas típicas da literatura de gênero, essa realidade: o que esses personagens escutam? Do
ratura” permanece, principalmen- mas acabo subvertendo convenções que eles gostam? O que eles fazem quando chegam em
te na literatura de gênero — fanta- e experimentando com a linguagem. casa depois de um dia de trabalho? Não é ‘para ser pop’
sia, terror, chic-lit —, que se encaixa Como resultado, às vezes pessoas que que escrevo que o personagem se joga no sofá e liga a
no guarda-chuva maior de literatu- amam literatura de gênero se frus- Netflix. Simplesmente, é assim que acontece hoje em
ra pop e enfrenta suas resistências. tram com os meus livros. Costumo dia. Não me preocupo de ficar datado. Penso que é in-
Sucesso entre adolescentes e dizer que escrevo falso terror, falso teressante que um livro seja um registro daquele tempo
jovens adultos, a carioca Tammy Lu- policial, falso western. Como leitor, em que se passa a história.”
ciano faz uma literatura açucarada, minhas principais influências são Como para estabelecer a literatura pop de vez
com títulos como Sonhei que ama- do alto modernismo europeu, mas no cenário literário, este ano a Editora Seguinte (selo
va você e Diário do amor desenfrea- sou uma pessoa que cresceu (e ainda mais comercial da Companhia das Letras) criou na ci-
do. Tammy aceita o rótulo de auto- convive) com videogames e filmes de dade de São Paulo a FLIPOP, um “festival de literatura
ra pop, mas rechaça a divisão entre gênero. A minha escrita reflete esses pop focado nos leitores”, com palestras sobre literatura
literatura acessível e “alta literatu- gostos diversificados.” de humor, LGBT, dicas de escrita, etc. A curadoria do
ra”: “Eu acabo trazendo referências Assim como Tammy, Xer- festival parece ter tomado o termo “pop” ainda como
pop ao meu trabalho, falando de fil- xenesky contesta a separação en- sinônimo de “literatura jovem” o que, se limita o al-
mes, músicas e acho que o que me tre níveis de literatura. “É possível cance, dá uma sobrevida a um rótulo que já pertence
enquadra no pop é minha fala so- fazer alta literatura com elemen- ao século passado.
26 NOVEMBRO DE 2018

ERA UM
ROMANCE | LEWIS CARROLL

FLIZZ
TRADUÇÃO
DE SÉRGIO MEDEIROS
Embora delicada, a face da
criança também era macilenta e
linguagem dos fisiologistas (eles que-
rem dizer, sem dúvida, “ação sem re-
triste, revelando (pelo menos as- flexão”, tal como se afirma que lucus

N
a extremidade da plataforma, alguns degraus ir- sim me pareceu) uma longa história deriva de non lucendo[1]). Ao fechar-
regulares de madeira conduziam à rua — deparei de doença e sofrimento, suportados mos subitamente as pálpebras quando
ali com duas passageiras que evidentemente ha- com paciência e doçura. Para cami- temos a impressão de que algo voa na
viam chegado pelo trem vespertino, o que era extraordi- nhar ela se apoiava numa pequena direção dos nossos olhos, realizamos
nário, pois eu não as notara entre as poucas pessoas que muleta, mas se deteve diante dos uma ação desse tipo. E o mesmo suce-
desceram dos vagões. Tratava-se de uma moça e de uma degraus e os olhou pensativamente, deu quando eu perguntei: “Permita-
menina: a primeira, tal como pude deduzir de sua apa- como se reunisse coragem para ini- -me carregar nos braços a menina até
rência, era uma espécie de babá ou de governanta, que ciar a penosa ascensão. a calçada?” Pois, antes de pronunciar
conduzia a criança, cuja face delicada, mais ainda do que Às vezes, dizemos coisas — ou tais palavras, a ideia de oferecer ajuda
a roupa que usava, a colocava numa classe superior à da até as realizamos — de maneira auto- ainda não havia me ocorrido: o som da
sua companheira. mática, por “ato reflexo”, segundo a minha própria voz, e a descoberta de
NOVEMBRO DE 2018 27

I L U S T R A Ç Õ E S : S I M O N TAY L O R
que tal proposição havia sido feita, é
que me proporcionaram a intuição de
que eu deveria prestar o meu auxílio.
A babá hesitou, olhando alternada-
mente para nós dois; depois, voltan-
do-se para a menina, indagou: “Você
gostaria, querida?” A menina pronta-
mente ergueu os braços na minha di-
reção. “Sim!”, foi tudo o que ela disse,
ao mesmo tempo que um sorriso dé-
bil iluminou sua face exausta. Tomei
cuidadosamente nos braços a criança,
que enlaçou confiante o meu pescoço.
Ela era extremamente leve.
Para dizer a verdade, tão leve que
me ocorreu a ideia insensata de que
era mais fácil subir as escadas com
ela nos braços do que de mãos va-
zias. Quando pisamos finalmente a
rua — os sulcos de rodas e as pedras
eram obstáculos sem dúvida formi-
dáveis para uma criança manca —,
dei-me conta de que havia afirmado:
“Não gostaria de descê-la nesse ter-
reno acidentado”, palavras que me
saíram antes que eu fizesse qualquer
conexão mental entre o solo ingra-
to e a minha gentil e diminuta car-
ga. “Estamos lhe dando muito traba-
lho, Senhor!”, exclamou a babá. “Ela
pode andar muito bem neste terre-
no plano.” Contudo, o braço que me
enlaçava o pescoço estremeceu leve-
mente a essa sugestão, levando-me a
comentar: “Na verdade ela não pesa
nada. Carregarei a menina um pouco
mais. É o meu caminho”.
A governanta não fez nenhu-
ma objeção. A próxima voz que ouvi
foi a de um menininho descalço e de
roupa esfarrapada, com uma vas-
soura no ombro. Ele correu à nossa
frente e simulou varrer o chão seco.
“Uns tocadinhos!”, o pequeno mo-
leque suplicou, com um largo sorriso
no rosto sujo.
28 NOVEMBRO DE 2018

ROMANCE | LEWIS CARROLL


NOVEMBRO DE 2018 29

“Não lhe dê nada!”, disse a pe- Obedeci em silêncio, mas disse co- ocorre duas vezes na vida: uma babá dividida ao meio!
quena lady nos meus braços. As pa- migo mesmo: “Isso é um sonho?”, pois, “A que horas cê sentiu que ela era Sílvia?”,
lavras soaram duras, mas o tom era nesse momento, Sílvia e Bruno cami- Bruno quis saber.
gentil. “É um garotinho preguiçoso!” E nhavam ao meu lado e seguravam as mi- “Eu só percebi que ele era sua irmã quando ela real-
o seu riso então encheu o ar, um riso nhas mãos com a confiança própria das mente se tornou a Sílvia”, eu respondi. “Mas como vocês
de uma doçura argentina como eu ja- crianças. conseguiram obter a governanta?”
mais ouvira em outros lábios, exceto “Vocês cresceram bastante ulti- “Foi obra do Bruno”, esclareceu Sílvia. “Era um
nos de Sílvia. Para o meu assombro, mamente!”, eu comentei. “Na verda- Flizz.”
o garotinho também gargalhou, como de, penso que deveria ser apresentado de “E como é que faz um Flizz, Bruno?”
se ambos possuíssem entre si alguma novo a vocês. Uma grande parte dos dois “Aprendi com o Professor”, disse Bruno. “Primeiro,
afinidade sutil. A seguir, o moleque es- eu nunca encontrei antes, não é verdade?” cê pega um monte de ar...”
farrapado se afastou correndo e desa- “Muito bem!”, exclamou Sílvia “Oh, Bruno!”, Sílvia interpôs-se. “O Professor pediu
pareceu numa passagem da cerca viva. alegremente. “Este é o Bruno. E é só, pois que você nunca contasse para ninguém!”
Mas retornou logo depois, sem ele não tem outro nome!” “Mas quem fazia a voz dela?”, eu perguntei.
a vassoura e carregando agora um pri- “É claro que tenho!”, Bruno protes- “Já lhe demos muito trabalho, Senhor. Ela pode an-
moroso buquê de flores, oriundo de tou, olhando com reprovação para a Mes- dar muito bem neste terreno plano.”
um fornecedor misterioso. “Flor qua- tra de Cerimônias. “Eu sou Iluspríssimo!” Bruno riu alegremente quando olhei rapidamente em
se de graça, só um penny!”, ele anun- “Oh, sim, esqueci”, respondeu Síl- volta, procurando com ansiedade a minha interlocutora.
ciou com a fala arrastada e melancólica via. “Ilustríssimo Bruno!” “Era eu!”, ele então declarou com a sua voz normal.
de um mendigo profissional. “E vocês vieram me ver, crian- “De fato, ela pode andar muito bem neste terreno
“Não compre!”, ordenou-me ças?”, indaguei então. plano”, eu disse. “E eu penso que o terreno plano sou eu
Sua Majestade, enquanto o olhava com “Você sabe que a gente disse que ia mesmo!”
um arrogante ar de desprezo, curiosa- vir na terça-feira”, lembrou Sílvia. “Na Nesse momento, havíamos chegado ao “Hall”. “Aqui
mente matizado por um interesse ter- sua opinião, o nosso tamanho é agora o moram os meus amigos”, eu disse. “Não gostariam de en-
no pela esfarrapada criatura a seus pés. tamanho das crianças normais?” trar e tomar chá com eles?”
Desta vez, rebelei-me e ignorei “Oh, sim, um tamanho bem apro- Bruno deu um pequeno pulo de alegria. Sílvia en-
a ordem real. Aquelas flores, tão fas- priado para crianças da idade de vocês”, tão disse: “Sim, obrigada. Você adoraria, não é, Bruno? Ele
cinantes e inusitadas, não mereciam eu respondi, acrescentando mental- nunca mais bebeu chá”, ela explicou, “depois que saímos
ser abandonadas para satisfazer aos mente: “Embora vocês não sejam crian- do País do Exterior.”
caprichos despóticos de uma pequena ças normais, de maneira nenhuma.” De- “E o chá de lá não era nada bom”, disse Bruno.
donzela. Comprei o buquê: o garotinho pois perguntei: “Mas que fim levou a “Bem fraquinho!”
colocou a moeda na boca e deu uma governanta?”
cambalhota, como se desejasse verifi- “Se foi!”, Bruno respondeu
car até que ponto esse órgão humano solenemente.
estava apto para ser usado como cofre. “Então ela não era sólida, como LEWIS CARROLL foi o pseudônimo literário de Charles Lutwidge
Com deslumbramento, que Sílvia e eu?” Dodgson (1832-1989), um desenhista, fotógrafo, matemático, poeta e
reverendo anglicano britânico. Passou toda a sua vida no Reino Unido
crescia a cada momento, eu admi- “Não. Cê não era capaz de tocar e tornou-se célebre, principalmente, por ter escrito As aventuras de Alice
rei as flores, examinando-as uma a nela, e cê ia passar direto, se esbarrasse no país das maravilhas, entre outros livros. O romance Sílvia e Bruno, que
uma: não havia entre elas uma só que nela!” o Cândido publica um fragmento, está programado para sair em 2019
me fosse familiar. Por fim, voltei-me “Temi que você acabasse perce-
pela Iluminuras, em tradução de Sérgio Medeiros.
para a babá. “Estas flores são nativas bendo”, disse Sílvia. “Sem querer Bruno
daqui? Nunca vi nada...”, mas a frase a empurrou contra um poste telegráfico e SÉRGIO MEDEIROS nasceu em Bela Vista (MS) e vive em
morreu nos meus lábios. A moça havia ela se partiu em dois pedaços, sabe. Mas Florianópolis (SC). Professor na Universidade Federal de Santa Catarina,
traduziu ao português, entre outros, o poema maia Popol Vuh (2007),
desaparecido! você estava olhando para o outro lado.”
em colaboração com Gordon Brotherston. É autor, entre outros, do livro
“Pode descer-me agora, se qui- Senti que havia perdido a opor- de poemas A idolatria poética ou a febre de imagens (2017), vencedor do
ser”, Sílvia observou tranquilamente. tunidade de ver um espetáculo que não Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional.
30 NOVEMBRO DE 2018

CONTO | CARLOS MACHADO

AS CORES DO
ARCO-
PARA MARIA LUIZA CARBONIERI MACHADO

P
ois assim, os olhos viravam-se de baixo para cima, limpar o carpete do quarto. Alguns de poeira. Alguém disse que elas po-
brancos, sem o castanho cortado ao meio por um centímetros fora da marca que faz dem acabar com a vida de qualquer
risco preto. A cabeça baixa, como olhasse para os os pés, e pronto, os dedos em ris- um, por isso Pedro está sempre na
pés tentando ver o teto. Abaixava-se cadenciadamen- te para a parede, olhando fixamente espreita para esmagá-las sem pesta-
te para não atingir a placa próxima à porta. De supetão, para uma pequena rachadura ao lado nejar — com a ponta da unha, como
levanta o braço direito e atinge em cheio uma lâmpa- da janela. Diretamente no olho da la- fosse um piolho. Da mesma forma,
da acessa deixando os cacos espalhados pelos cabelos e gartixa parada ali ao lado, esperan- buscou os olhos da mulher que virou
ombros. Não se muda o colchão de lugar assim de uma do para dar o bote em uma peque- sua cama de ponta-cabeça, riscando
hora para a outra, sem avisar, apenas porque tinha que na aranha marrom que se alimenta com o vento um pedaço da córnea.
NOVEMBRO DE 2018 31

-ÍRIS
Nessa noite sem sono: virava-se para que já era como sempre foi. E con- vimentos na mesma direção, em intervalos de pequenos
todos os lados, como uma borboleta tinuará, Pedro. Em alguns momen- pulsos, do contrário seria pior.
que voa em ziguezague prestes a cair tos, pedir calma para alguém é como Quando ainda um pacotinho, a mãe fingia que não
da cama, arrastando o lençol com o abrir uma porta estreita e exigir que percebia que o filho dificilmente fixava os olhos nos dela.
qual se embrulhava, tal um bebê re- várias pessoas passem ao mesmo Procurava sempre por algo que não existia: talvez uma
cém-nascido. Sua mãe ao lado, se- tempo: uma batendo na outra, aglu- mosca que passou por ali sem ser percebida, ou uma go-
gurando suas mãos para acalmá-lo, tinando-se, virando-se, tornando teira na pia do vizinho de cima. Sempre pensava que ti-
ajustando a cama exatamente onde o efeito contrário do que se espera. nha que interfonar para eles verificarem se não tinha
deveria estar e mostrando para ele Dessa forma, apenas pequenos mo- uma torneira aberta ou, quem sabe, o vaso sanitário sem
32 NOVEMBRO DE 2018

a vedação necessária. Será que é uma mancha de mofo te, exatamente quando ela nem sobe e Entre um bater de cabeça e
que tem logo ao lado do chuveiro? E o filho virava a cabe- nem desce, plaina e para no ar: 4’33’’. outro, apenas o ar que é inspira-
ça com o mesmo movimento evitando que ela colocasse Aprenderam que quando esti- do com bastante dificuldade. Assim
o capuz da blusinha. Fazia frio em Curitiba nessa época vessem jantando, teriam que desligar não incomoda ninguém? Alguns ir-
do ano, mas ele não queria. O brinquedinho que ganhou a televisão. Nada de música, fala-se o ritam-se apenas com a presença de
de sua tia pendurado no teto ia e vinha, um aviãozinho essencial. Assim, o menino come. Até outros. Estar ali ao seu lado, sem ter
ligado na tomada e que fazia um barulho engraçado. O soar o alarme de um carro na esqui- que abrir a boca para nada, sem le-
menino procurava por todos os lados, mas não sabia de na da rua de trás — ou da frente —, vantar o rosto para encará-lo, sem
onde vinha o vento. A papinha ficava espalhada pelo ros- entre um som agudo e o silêncio, 2 procurar seus olhos: nada. Apenas
to e babador, um pouco ele comia. Para ela, o filho sorria segundos entre eles, Pedro espreme sentindo o calor de um corpo que
o tempo todo e era brincadeira que não queria comer. Al- as palavras ouvindo a nota “Lá”, 440 não se inquieta, que mexe de um
guém provavelmente ligou a música no último volume, hertz, como se alguém estivesse no lado para o outro, falando sons sem
talvez no prédio da frente, ou de trás. O filho não conse- seu ouvido apertando o botão da ca- conexão com o que está acontecendo
guia dormir facilmente. O médico dizia que era normal, neta sem parar ou batendo o pé insis- ao lado. São momentos diferentes:
muito sensível: dê esse remedinho, aqui ó, vai deixá-lo tente no assoalho de madeira. A mãe as realidades existem apenas em
mais relaxado. Mas ela dava descarga. Três ou quatro o entretém lendo uma historinha nossos juízos e são variáveis, nun-
vezes. Talvez se chorasse? Mas dessa forma, não estaria ilustrada, segurando em suas mãos, ca absolutas, indefiníveis. Sempre
apenas tirando os braços do volante na eminência de um delicadamente: o menino busca seus uma questão de percepção. Como
acidente? Assim como colocar as mãos no rosto quando olhos. Quando caiam as lágrimas, ele assim fora do lugar? A cama conti-
precisa atravessar uma ponte móvel, sem segurança e pegava o paninho que estava sempre nua no mesmíssimo lugar de sem-
nem cordinha para se apoiar. por perto e passava no rosto da mu- pre, explica a mulher. Desculpe, não
Tão logo quebrou o foco de luz que o incomoda- lher, que imagina todos os sorrisos quis dizer que você está modifican-
va, Pedro continuou apenas com o branco dos olhos à do mundo, gargalhadas e conversas do algo, apenas te mostro que não
mostra, balançando a cabeça sempre na mesma dire- com o filho: falam sobre o que fize- é no mesmo lugar, mas quem pode
ção, sem olhar para frente. Passou por algumas pessoas ram ao longo do dia, o que leram, so- adivinhar, não é mesmo? Respon-
sem vê-las e parou do lado contrário onde elas estavam. bre as pessoas que encontraram, ele de a mãe. Apenas ela, a mãe, uma
Suas costas ainda mais arcadas do que normalmente, os pede para que ela pare de chorar um única pessoa que pode passear pela
braços e as pernas desproporcionais ao resto do corpo, pouquinho, mamãe, por favor, ela realidade do filho. Como esse se-
como tivesse se alongado apenas nas extremidades — sorri e diz que isso já vai passar e ele nhor parado atrás de nós pode en-
como todos os adolescentes —, os cabelos cortados em retribui o sorriso e fala que a ama e tender? Pensava a mãe. Assim, o ir
casa, com calma para não se machucar, as unhas sujas de que nada seria sem ela por perto e ela e vir do corpo de Pedro sentado na
suor. Pedro já estava com sua sunga, pronto para entrar o abraça, e os dois permanecem con- fileira “L” do Teatro Guaíra impede
na água, porém esqueceu-se. Com um movimento sin- versando em silêncio. o espectador da fileira anterior de
cronizado, abre as portas de cada um dos 40 armários do O ângulo que a sombra da por- ver os atores, de acompanhar a ação.
vestiário. Apertando os dentes, calcula o mesmo espaço ta do armário desenha revela uma Impede? Entre um vão e outro, não
entre eles, percorre de ponta a ponta certificando-se de imagem múltipla que se reflete no consegue perceber nada? Entre o si-
que estão na mesma posição, pisca um dos olhos medin- chão ao lado de seu pé. Calcula a in- lêncio e o som, senhor, por favor,
do a distância e se afasta para pegar uma certa velocida- cidência e a necessidade de luz para não entende que a pausa também é
de. Ao lado, alguns homens enrolados em suas toalhas, que as portas sejam vistas todas da música? 4’33”. Explica a mãe, sem-
acompanham-no com bastante interesse. Ou talvez es- mesma forma. Um conjunto de re- pre com o repertório repetido, como
tejam assustados, não se sabe ao certo. Difícil prever o tângulos em 3D que seguem o mes- fosse parte do que deixou para o fi-
que acontece de um momento para o outro. Como na re- mo ritmo de movimento. Pedro faz lho. Por que ele faz barulho tão alto
bentação do mar que, segundos antes de explodir entre todos os cálculos que pode, até per- quando respira, pai? O que ele está
as ondas batendo na areia, abraça o silêncio. Ninguém ceber que já tem o padrão de que pre- fazendo encostado na parede desse
se move, nada acontece. No jogo de vôlei, o levantador cisa. Dessa forma, ao fechar os olhos, jeito, tio? Eu acho que o Pedro está
coloca a bola, leve, sutil, entre a rede e a mão do atacan- tudo se organiza em sua memória. se masturbando aqui atrás de mim,
NOVEMBRO DE 2018 33

dizia a menina. Não seja boba, ele E seguia fazendo os cálculos que de- sio de natação, tímido, com seu roupão do Homem Ara-
está fazendo cálculos, não percebe? veriam ficar prontos para que quando nha, procurando a raia adequada junto aos outros com-
A professora chamou a mãe as portas batessem nos armários, pu- petidores, todos mais ou menos da mesma idade, com os
para uma reunião: todos os cálculos dessem voltar de onde tinham saído. E mesmos braços desproporcionais, pernas longas e om-
antes que eu explicasse, senhora, do caso não estivessem no mesmo pon- bros largos dos treinamentos. Antes de subir no tram-
começo ao fim e de várias formas to de antes, colocá-las ordenadamen- polim da raia 4, Pedro ajusta a toca de silicone com as
possíveis, nem eu sabia o caminho te. Desorganizar o planejado. Todos as duas mãos, cuidando para não estalar e nem apertar as
que ele estava escolhendo, me mos- toalhas de papel, uma por uma, ritmi- orelhas, e a veste em sua cabeça, dá dois tapas de leve
trou vários números e concluiu todos camente, no chão, colocadas na pare- na nunca para não se esquecer de que está vivo e colo-
os problemas do livro em questão de de, no teto, em seu rosto. Correndo de ca os óculos no rosto. Com o canto dos olhos, busca seus
poucas horas. A senhora também é lá para cá, parado de frente ao espe- adversários nas raias paralelas e mostra confiança. Ao
professora de matemática? Agora ele lho. Alguém realmente precisa chamar menos assim o vê sua mãe: seus olhos brilham quando
me ajuda em todas as aulas. Todas as sua mãe. Já chamou a moça da recep- percebe o filho prestes a pular e sair voando em busca de
crianças querem aprender com ele. ção? Ele vem sempre com uma senho- mais uma medalha. Uma prova rápida, 50 metros, sem
Depois de colocar todas as por- ra, deve estar lá fora. Em um impul- tempo para piscar, apenas seguir adiante, olhar para o
tas exatamente no ângulo em que de- so instantâneo, Pedro cambaleou em azulejo, fechar os olhos, puxar o ar no fundo do pulmão,
veriam estar, Pedro puxou o ar para direção aos chuveiros: abriu todas as sabendo que não poderá respirar durante a prova, e bus-
dentro, prendeu a respiração, inver- torneiras — água quente, água fria — car a borda do outro lado, 50 metros apenas. Logo ali,
teu a cor dos olhos, apertou o braço batendo com as mãos abertas nas por- Pedro, encosta os dedos aqui na borda, segura para não
esquerdo com as unhas da mão dire- tas de vidro, imitando o alarme dos ca- cair e espere eu contar até 5, está bem? Diz a professora
ta, trocou o lado, arranhou o começo minhões de bombeiro. Joana, assim que Pedro pula na piscina. Ela pega alguns
das costas e o final do pescoço, gri- Acho que ele tinha um cisco no itens em uma caixa cheia de brinquedos aquáticos: um
tou. Tinham medo? Estavam assus- olho. Saiu correndo pela quadra sem patinho de borracha, uma estrela-marinha, duas bolas
tados? Curiosos? Não se sabe, mas al- olhar para trás, esbarrou em algumas e um anel bem pequeninho. Agora eu vou jogar 5 obje-
guém disse que era preciso chamar a pessoas que estavam no meio do ca- tos em algum lugar da piscina, você tem que encontrá-
moça da recepção. Outro afirmou que minho e correu para o bebedouro gri- -los e me entregar de volta. Sorri a professora para o fe-
sua mãe sempre o trazia, ou o pai. Te- tando a nota “Lá”: jogava água em seu liz Pedro, que concorda batendo uma das mãos na água,
ríamos que chamar alguém. Você pode rosto, como quisesse apagar um in- fazendo uma bagunça que ele adora sempre que está na
falar para o professor? Acho que ele cêndio fora de controle. aula de natação. Sua mãe viu quando ele encostou os
tem aulas com a Joana. Ou com o Mau- A mãe pediu licença para en- dedos na borda do outro lado da piscina: foi o primeiro!
rício, não sei. Gente, é o Pedro, eu nado trar no vestiário e o encontrou pres- Chegou na frente de todos os outros! Grita ela, sem per-
com ele. Pedro, o que aconteceu? Ra- tes a quebrar uma das portas de ceber que estava atrapalhando a aula de hidroginástica
pidamente não estava mais aqui quem vidro. Sem olhar para ela, ele a per- ao lado de onde estava o filho, bem no momento em que
falou. As toalhas já guardadas, as bol- cebeu indo em direção aos chuveiros a professora arremessa para o alto os 5 objetos que caem
sas fechadas e alguém teria que cui- para desligá-los e resolver sentar-se espalhados por toda a raia e, lentamente, deslizam pela
dar do Pedro, não pode ficar sozinho no banco logo atrás. Colocou os bra- água e pela luz refletindo as cores do arco-íris, como em
aqui. Todas as portas batidas, uma por ços e a cabeça entre as pernas indo um prisma, que chegam até a superfície da água.
uma em cadência difícil de se repetir. e vindo com o corpo, repetindo esse Pois assim, mergulha Pedro para buscar o que está
A mesma força exercida em cada em- movimento como estivesse em uma parado no fundo da piscina.
purrão. Não se atreva. Ele vai acertar cadeira de balanço. Esfregava nervo-
sua cara. Não, meu amigo, o Pedro não samente as mãos uma na outra, assim
vai acertar sua cara, nem a minha, mas como se faz para acender uma foguei- CARLOS MACHADO nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor,
alguém precisa segurá-lo para ele não ra no inverno. Acariciando as mãos de músico e professor de literatura e línguas estrangeiras. Publicou os livros
A voz do outro (contos 2004), Nós da província: diálogo com o carbono
acertar a própria cara. A vontade era de Pedro, chega-se aos seus olhos, assim
(contos, 2007), Balada de uma retina sul-americana (novela, 2008) e
arrancar os cabelos de uma vez por to- faz sua mãe, calmamente. Passeios (contos, 2016). O conto publicado pelo Cândido faz parte do
das, só com a força da unha. Rasgando. E olha como ele entra no giná- livro inédito Flor de Alumínio.
34 NOVEMBRO DE 2018

R E P O R TA G E M | I T I B A N

SANTUÁRIO DAS HQs


F OTO S : K R AW P E N A S

Atualmente localizada na Avenida Silva Jardim, a Itiban se notabilizou pelos lançamentos e bate-papos com autores realizados no espaço

A
Com quase 30 anos de existência, a curitibana Itiban capital paranaense abriga, desde 1989, uma das pri-
Comic Shop é uma das principais lojas especializadas em meiras lojas especializadas em HQs do Brasil. Ao lon-
go das décadas, a Itiban Comic Shop tornou-se um
Histórias em Quadrinhos do país. Apesar da tradição e lugar incontornável para consumidores de quadrinhos na
da valorização do gênero no mercado editorial, a espaço cidade — além de parada obrigatória de artistas locais ou
luta para se manter vivo em meio à crise das plataformas que estão de passagem por Curitiba.
Mas em 2019, a icônica loja, que nos anos 1990 con-
impressas e da concorrência com grandes sites de venda
quistou o “Troféu HQmix” (espécie de “Oscar” do universo
HQ no Brasil) na categoria de melhor ponto de vendas, pode
DANIEL TOZZI
encerrar as atividades. De acordo com a proprietária, Mitie
Taketani, o acervo, assim como o público da Itiban, diminuiu
NOVEMBRO DE 2018 35

Mitie e Thamyris Taketani: paixão pelos quadrinhos passou de mãe para filha

consideravelmente. Para ela, a crise breviver”, diz Mitie. Segundo ela, ainda hoje, a melhor loja de quadri- do lado dos artistas”, comenta Ribat-
econômica e a do mercado editorial no as vendas da Itiban hoje represen- nhos do Brasil. “Eu costumava dese- ski, autor, entre outras, das HQs Cam-
país, instaurada a partir de 2013, além tam cerca de 40% do que se comer- nhar umas 15 cópias de uma HQ e le- po em branco (2013) e Como na quinta
da entrada de grupos como a Amazon cializava há seis anos. var na Itiban, que era o único lugar série (2012).
no mercado, contribuíram para a dimi- para vender para pessoas que não fos- Assim como Ribatski, o artis-
nuição do público no espaço. CORAÇÃO PULSANTE sem nossos amigos”, conta. ta José Aguiar é uma das “crias” da
“Não sabemos se vamos che- Frequentador assíduo da loja Para ele, o aspecto mais valioso Itiban. Ele praticamente foi iniciado
gar aos 30 anos em 2019. A ideia é quando adolescente, DW Ribatski, do espaço é a concentração de pessoas no universo HQ através do acervo da
tentar resistir, mas como resistên- hoje ilustrador e quadrinista, não he- que se interessam pela contracultura loja. De acordo com Aguiar, os even-
cia mesmo, porque, se colocar no sita ao afirmar que a Itiban, além de de Curitiba, ou que são de fora e pas- tos organizados no local, como lança-
papel, não temos mais como so- fundamental para sua formação, é, sam por lá. “A Itiban sempre esteve mentos, debates e palestras fizeram
36 NOVEMBRO DE 2018

R E P O R TA G E M | I T I B A N

REPRODUÇÃO

Os artistas Daniel Barbosa, Rafael Sica e Guilherme Caldas em debate promovido pela Itiban

do espaço um dos “corações pulsan- CRISE as HQs também ganharam novo sta- é a desvalorização da cultura e do livro
tes” de Curitiba quando o assunto é A situação da Itiban contrasta tus nos últimos anos, discutindo te- de uma forma geral — o que inclui aí
Histórias em Quadrinhos. com um período em que há presen- mas plurais, como guerras, racismo, o papel dos governos.
“Minha relação com a loja é ça cada vez maior das HQs no cenário escravidão, imigração e preconceito.
bastante afetiva e começou na ado- literário e cultural do país. Em 2017, “Acho esse o grande lance deste sé- QUADRINHOS, UMA PAIXÃO
lescência. Era o único lugar onde se por exemplo, o prêmio Jabuti de lite- culo: a possibilidade de você se en- Os proprietários da Itiban, o
podia encontrar HQs importadas na ratura incluiu uma categoria específi- contrar em diversas histórias e criar casal Francisco Utrabo e Mitie Take-
cidade”, lembra Aguiar, que é orga- ca para premiar Histórias em Quadri- pontes com outras culturas e outras tani, se conheceram na cidade de São
nizador de uma obra inédita que re- nhos lançadas no país. problemáticas”, reflete Mitie. Paulo na década de 1980, período em
faz o percurso de artistas gráficos em Para além do mero entreteni- Para ela, mesmo com uma pro- que compartilhavam gostos seme-
Curitiba e será lançada ainda em 2018 mento — os mangás e super-heróis, dução, em tese, cada vez maior de lhantes alinhados à cultura pop. Na
pela Biblioteca Pública do Paraná. claro, continuam sendo sucesso —, HQs no Brasil, o grande problema hoje época, Mitie era dançarina e Utrabo
NOVEMBRO DE 2018 37

F OTO S : K R AW P E N A S

Fanzines, Quadrinhos nacionais e HQs importadas fazem parte do acervo da Itiban

seguia carreira na música como gui- rismo. A gente trabalhou com tanta cimento da loja, ao se referir às pro- tal para a popularização das Histórias
tarrista da banda Máquina Zero, que naturalidade que nunca pensamos duções de nomes como Laerte, Angeli, em Quadrinhos no país.
tentava a sorte na capital paulista. nessas bandeiras, como a de sermos Glauco e Fernando Gonzales. Além disso, havia uma cres-
A abertura de um comércio es- pioneiros”, afirma. “Pegamos a fase áurea dos cente produção de fanzines no Bra-
pecializado em quadrinhos (algo, à Mas, de fato, a “aventura” teve, quadrinhos, um boom de produção sil recém democrático da virada dos
época, senão inexistente, bastante em seu início, ares intrépidos. “No co- nacional com essa geração do humor, anos 1980 para os 1990, o que tam-
raro) foi a aventura escolhida pelo casal meço não tínhamos nem telefone. Eu onde existia muita liberdade, força bém impulsionou a popularização de
ao se mudar para a capital paranaense, fazia os pedidos por fax e tinha que ir criativa e independência”, explica a espaços como a Itiban. “O cenário de
cidade de origem da família de Utrabo. até a casa da minha sogra para usar o proprietária da loja, que também cita fanzines estava muito forte, e essa
Empreitada que Mitie faz ques- aparelho”, lembra Mitie, comentando a revista Animal, bastante popular na ideia do ‘faça você mesmo’ era mui-
tão de relativizar. “Não vejo gran- que a cena HQ do final da década de época por publicar o trabalho de ilus- to presente na época e sempre teve
de coisa nesse sentimento de pionei- 1980 no país contribuiu para o cres- tradores europeus, como fundamen- espaço com a gente”, relata Mitie.
38 NOVEMBRO DE 2018

CONTO | LUÍS ROBERTO AMABILE

PERSONAL
TRAINER
Cena 1 – Personal Trainer fala no escuro. vamos nos encontrar para que eu possa Rapaz — Isso já aconteceu?
avaliar o seu caso. (Ele desliga). Personal Trainer — Estou in-
Personal Trainer — A vida é um campeonato. O victo. Nunca ninguém que se prepa-
mundo está repleto de atletas em busca de alguma me- ••• rou comigo desistiu. E olha que, com
dalha, mesmo que seja de latão. Desde que dê para exibir essa crise financeira mundial, eu te-
para os outros, é o que importa. As pessoas estão sempre Cena 2 – Personal Trainer e Rapaz nho sido bem solicitado.
se preparando para triunfar no joguinho social. As pes- estão sentados em torno de uma mesa, um Rapaz — Você não cobra nada
soas contratam personal trainers, headcouchings, con- de frente para o outro. mesmo? Porque não tenho dinheiro e
sultores de imagem, psicólogos, numerólogos. Tudo para não quero endividar minha família.
ocupar um bom lugar nas relações de poder que movem Personal Trainer — Vou pergun- Personal Trainer — Quanto a
a sociedade. No trabalho, no amor, no sexo, até nas ami- tar mais uma vez: você está realmente isso, não se preocupe. O treinamento
zades, na família. Não importa onde: há sempre alguém certo disso? é grátis. Para mim, é quase um traba-
competindo, pronto para passar por cima dos outros. Rapaz — Acho que sim. lho de caridade.
Mas, se a experiência humana na terra é uma competi- Personal Trainer — Você acha? Rapaz — E em quanto tempo
ção insana, tem gente que perde. Tem também gente que Rapaz — Eu...eu tenho certeza, só vou estar pronto para tentar?
não concorda com as regras, tem gente que não se encai- preciso de uma ajuda. Personal Trainer — Para ten-
xa e resolve viver à margem. E tem gente que não quer Personal Trainer — Que tipo tar não, para conseguir. Repita: con-
mais. A vida é um campeonato (As luzes se acendem ao de ajuda? Porque tudo tem de partir de seguir. Sem essa de tentar, você vai
mesmo tempo em que toca seu celular). E eu decidi preparar você. Eu não tomo decisões. Meu traba- conseguir.
os que não querem mais competir. (Ele atende ao celular) lho começa depois que as decisões são Rapaz — Conseguir. Quan-
Alô! Sim, sou eu. Depende do caso. Não, não cobro nada. tomadas e não se pode mais voltar atrás. to tempo para eu estar pronto para
Não sei, não posso dar uma resposta de imediato, como Rapaz — Eu já me decidi, mas conseguir?
já disse, depende do caso. A decisão final já foi tomada? preciso que você me treine. Personal Trainer — Varia de
E por que, quais são os motivos? Sim, se vou assumir a Personal Trainer — Você tem acordo com a pessoa. Desenvolvi uma
sua preparação, preciso conhecer os seus motivos. Esse potencial, mas, quando há um desafio série de exercícios específicos. Vamos
tipo de treinamento não é para todo mundo, você tem de assim, deve-se estar muito focado. E se treinar de tudo um pouco, como lidar
estar muito determinado. Não, não pode ser por telefone, você não aguentar? com altura, os macetes para não se er-
NOVEMBRO DE 2018 39

rar o salto, mas, sobretudo, faremos Personal Trainer — É só lem- tem de fazer isso por você mesmo. Respire, recomponha-
uma preparação mental. Motivação é brar do que treinamos. E ter coragem. -se. Treinamos isso. Respiração, postura, equilíbrio. Lem-
a chave de tudo. Rapaz — Tá bom. bre-se do que conversamos durante a preparação. Temos
Rapaz — Então você vai me Personal Trainer — Canta co- um instinto de continuar vivendo. Isso é natural. Mas evo-
aceitar? migo: (eles cantam, e o Rapaz se prepa- luímos. Podemos fazer a razão prevalecer sobre os instin-
Personal Trainer — Bom, acho ra para saltar) “Coragem, Coragem, eu tos. Podemos escolher morrer. É só não titubear. Você che-
que podemos fazer uma experiência. posso conseguir!” Vamos lá! “Cora- gou até aqui, não vai querer desistir agora!
Comecei recentemente a preparar um gem! Coragem! Eu posso conseguir!” Rapaz — (parando antes de começar a correr) Mas isso
rapaz, você pode participar dos trei- Personal Trainer — Agora é a não é desistir também?
namentos. (Ele se levanta e estende a sua vez. Personal Trainer — Não, isso é optar. Se você me
mão para o Rapaz) Rapaz — Ok. ligou pedindo ajuda e se submeteu ao treinamento é por-
Rapaz — (Apertando entusias- Personal Trainer — Você pode. que acha que sua vida não vale a pena. Agora só depende de
ticamente a mão do Personal Trainer) Fala pra mim que você pode. você acabar com ela. Acredite em você, você pode.
Muito obrigado. E quando começamos? Rapaz — Eu posso. “Coragem, Rapaz — Se eu acreditasse em mim, não estaria
Personal Trainer — Ago- Coragem, eu posso conseguir!” aqui.
ra mesmo. A primeira lição é você se Personal Trainer — Você vai Personal Trainer — Uma coisa não tem nada a ver
convencer de que é capaz. De que só conseguir. com a outra. Você não precisa acreditar é neste mundo po-
depende de você, da sua determina- Rapaz — (mais confiante) Eu dre. Mas você tem de acreditar que você é capaz de se li-
ção, da sua garra, da sua força de von- vou conseguir. (tomando distância) Es- vrar dele.
tade e principalmente da sua coragem. tou pronto. Rapaz — (entusiasmando-se) Bosta de mundo!
Porque no fundo você vai ter de en- Personal Trainer — (como um Personal Trainer — Assim é que se fala. Confio em
frentar você mesmo, e para isso eu ga- treinador) Lembre-se: você vem cor- você. Vamos lá.
ranto que é preciso bastante coragem. rendo, dá dois passos mais longos Personal Trainer e Rapaz — (cantando) Coragem!
Lembre-se: no último momento, você para tomar impulso e se joga. Coragem! Eu posso conseguir! Coragem! Coragem! Eu pos-
estará frente a frente com você, e vai Rapaz — Como salto triplo nas so conseguir!
ter de se superar. Olimpíadas. Personal Trainer — Agora vai! Você não aguenta
Personal Trainer — Isso. O mais viver!
••• importante é não titubear. O grande Rapaz — Droga de vida!
dia chegou. Personal Trainer — Isso! Você não suporta mais!
Cena 3 — O Personal Trainer e Rapaz — (tenso) Ok. Corre e me diz! Vai!
o Rapaz estão em cima de um prédio (ou Personal Trainer — Busque Rapaz — (corre e salta, gritando) Eu odeio o mundo!
do Grand Canyon, ou de um precipício), aquele algo a mais dentro de você! (O Personal Trainer fica olhando, e se ouve o barulho de um
olhando alguém que acabou de se jogar. Rapaz – Estou pronto. (O Rapaz corpo batendo no chão lá embaixo, como o corpo do Coyote na-
O barulho do corpo caindo lembra o do tenta se jogar algumas vezes, mas trava quele desenho... Toca o celular do Personal Trainer. Ele atende)
faminto e famigerado Coyote que eter- no último momento. O Personal Trainer Personal Trainer – Alô! Sim, você está falando com
namente tenta capturar o Papa-Léguas fica gritando: Garra! Força de vontade! ele. A decisão final já foi tomada? Tem certeza? Não, mi-
naquele desenho animado. O Personal Determinação! Você pode!) nha intenção não é lucro. Vamos nos encontrar e avalio o
Trainer fica olhando o abismo, e o ra- Rapaz — Não adianta. Não seu caso.
paz que sobrou vira o rosto, parecendo consigo. Blecaute.
abismado... Personal Trainer — Olha para
mim. Nunca diga isso. Hoje é o gran-
Personal Trainer — Belo Salto! de dia, você deu duro para chegar
Ele não titubeou. O importante é isso: até aqui, não vai querer jogar fora a LUÍS ROBERTO AMABILE é autor de O amor é um lugar estranho
(2012, finalista do Prêmio Açorianos) e O livro dos cachorros (2015,
não titubear. oportunidade.
vencedor da chamada de publicação do Instituto Estadual do Livro
Rapaz — (tenso) É...ele man- Rapaz — Então me empurra. do Rio Grande do Sul). Também colaborou com Luiz Antonio de Assis
dou bem. Personal Trainer — Não. Você Brasil em Escrever ficção, que a Companhia das Letras lança em 2019.
40 NOVEMBRO DE 2018

ILUSTRAÇÃO: SAMUEL CASAL

P OEMA | THIAGO E

A TRAVESSIA DO
FANTASMA
P/ M A Í R A

Um fantasma atravessa minha casa


e toca a construção, seus danos físicos.
Olha o teto sem luz muito infiltrado,
são lâmpadas quebradas e goteiras.

Minha casa atravessa seu fantasma:


quer tanto compreender o que angustia.
Criou escuras manchas na tintura
buscando defender-se desse enigma.

Por pensar que paredes têm ouvidos,


e nunca dão palavras definidas,
somente loucos falam com paredes:
ninguém escuta a dor das rachaduras.

Da rua, um gato pula até a janela


podre, o peitoril cede, espanta o bicho.
Enquanto a casa tenta conhecer-se,
no chão mais um reboco se espatifa.

THIAGO E nasceu em Teresina (PI), em


1986. É um dos editores da revista Acrobata
e autor de Cabeça de sol em cima do trem
(livro e disco de poesia, 2014).

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