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Fernando Sabino, 100,

ergueu sua literatura


popular da crônica
Escritos do mineiro, que foram façanhas de
popularidade, são marcados por
simplicidade que custa muito a se conseguir
11.out.2023 às 17h00

EDIÇÃO IMPRESSA

Alvaro Costa e Silva

RIO DE JANEIRO A história é manjada. Mas incontornável


quando o assunto é Fernando Sabino, cujo centenário se
completa nesta quinta, dia 12. O próprio escritor a contou
em detalhes inúmeras vezes, falando com naturalidade, mas
no fundo evidenciando seu incômodo.

Na tradição mineira de conversar fiado a sério, Sabino


recebeu um telefonema de João Guimarães Rosa, que logo
bisbilhotou: "Que é que você está fazendo?". Ao ouvir a
resposta de que o amigo e colega de ofício estava tentando
transformar um conto em peça de teatro, advertiu com "ar
blandicioso": "Não faça biscoitos, faça pirâmides...".

O escritor mineiro Fernando Sabino - Paulo


Cerciari/Folhapress

Ao entender o sentido lógico da metáfora —uma pirâmide é


eterna, um biscoito, efêmero—, Sabino se sentiu não só
incomodado como esmagado em suas pretensões de autor.
Lembrou-se dos críticos impiedosos que praticamente o
expulsavam da literatura, afirmando que ele era o inventor
de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer
dimensão literária. Ou seja: crônicas.

Sabino nunca foi o inventor da crônica. Nem poderia. Na


língua portuguesa, o gênero vem se desenvolvendo desde os
relatos sobre glórias e desastres da conquista marítima, com
Diogo do Couto, passa por Machado de Assis e João do Rio e
chega ao ponto alto de lirismo, invenção e coloquialidade
com Rubem Braga e Paulo Mendes Campos.

Colaborando para jornais e revistas de todo o país desde a


década de 1940, Sabino fez da crônica um instrumento para
se comunicar mais diretamente com os leitores e se
estabelecer como escritor profissional.

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Algumas delas –em especial duas que estão entre as mais


famosas, "O Homem Nu" e "A Última Crônica" – fogem ao
formato; são tecnicamente contos, escritos sem qualquer
literatice, com aquela simplicidade que custa muito para se
conseguir. O estilo de Sabino, limpo e musical, vale a
emulação.

No entanto, a frase de Guimarães Rosa —que ergueu uma


pirâmide de Quéops, o "Grande Sertão: Veredas" – não lhe
saiu da cabeça.

Para desassossego, elaborou uma lista de classificação: tudo


bem que Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Victor Hugo, Dickens,
Melville, Pedro Nava eram piramidais. Em compensação,
Tchékhov, Montaigne, Kafka, Poe, Twain, Borges e Machado
eram confeiteiros de mão cheia. É um sofisma, mas bem
bolado.
A provocação rosiana está ligada a outro momento
inevitável da trajetória de Sabino, a publicação, em 1956,
do autobiográfico "O Encontro Marcado", livro que "corre",
na definição de Paulo Mendes Campos. Com apenas uma
palavra, explica o prazer da leitura, a estima crítica e o
alcance de circulação entre o público.

Em termos de Brasil, foi uma façanha: mais de 500 mil


exemplares vendidos, mais de cem edições (a mais recente
sai agora pela editora Record, comemorando a data redonda
de nascimento do autor). Em época de maior difusão no
currículo básico de ensino, chegou a ter duas reimpressões
por ano. Hoje, ao lado da troca de correspondências
com Clarice Lispector, continua a ser a obra mais falada de
Sabino, sobretudo pelos jovens.

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O enorme sucesso de "O Encontro Marcado" bloqueou o


Sabino romancista? O escritor Lúcio Cardoso tinha certeza
de que a maldição do segundo romance —conseguir fazer
algo tão perfeito quanto o primeiro— seria longa: "Ah, que
ótimo! Vamos ficar livres de Fernando Sabino por mais 30
anos".

Cardoso quase acertou na previsão maledicente. O segundo


romance, "O Grande Mentecapto", só viria 23 anos depois.
Foi a terceira mulher do escritor, Lygia Marina, quem achou
numa limpeza de gavetas os originais batidos a máquina de
uma obra interrompida mais de três décadas antes. Em
apenas 18 dias, as 40 folhas amareladas se transformaram
em 250 estalando de novas.

Nelas, conta-se a história picaresca de Geraldo Viramundo,


um vagabundo das estradas de Minas Gerais com insights
de Dom Quixote, Lazarillo de Tormes, Pantagruel, Carlitos e
até de Vinicius de Moraes.

Publicado em 1979, "O Grande Mentecapto" foi a divertida


resposta às angústias da entressafra. Durante o jejum
romanesco, o escritor experimentou outras áreas. Fundou
duas editoras com Rubem Braga: a Editora do Autor,
especializada em crônicas, e a Sabiá, que lançou entre nós
Gabriel García Márquez e Manuel Puig.

Associado ao cineasta David Neves, criou a Bem-te-Vi


Filmes, que produziu uma série de documentários sobre
escritores brasileiros: Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, Erico Verissimo.
Escreveu para o Jornal do Brasil perfis de dar inveja a Gay
Talese, mais tarde reunidos em dois volumes intitulados
"Gente" —que deveriam ser adotados em escolas de
jornalismo.

Foi cancelado, antes que a expressão existisse, ao publicar


em 1991 o livro "Zélia, uma Paixão", em que a narra o
envolvimento amoroso, na base do bolero, entre a ex-
ministra Zélia Cardoso de Mello, da Economia, e o ex-
ministro Bernardo Cabral, da Justiça, ambos do governo
Collor.

Àquela altura, ele já se considerava membro de uma


sociedade em extinção: um homem de letras. Dedicou-se a
preparar sua "obra póstuma antecipada", dando à luz, entre
outros livros, "Os Movimentos Simulados", romance
iniciado em 1946.

Ao morrer de câncer em 2004, na véspera de completar 81


anos, tinha pronto o epitáfio que se lê na lápide do seu
túmulo: "Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem,
morreu menino".

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