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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 47 - Distribuição gratuita

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PERNAMBUCO, MAIO 2009

No Ano Joaquim Nabuco, quais ideias


e personas sobreviveram ao tempo?
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

GALERIA

BE TO F IGU EI ROA
O nome do ensaio é Encarnado, negro e branco. “Essa foto tem o ponto de partida
nas cores e por essa porta se entra no imaginário do futebol, fora das quatro
linhas. Na hora do clique, o santinha apareceu e completou a cena”, explica o
fotógrafo, que mantém o portfólio em www.flickr.com/photos/betofigueiroa

C A RTA DO E DI TOR SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO


Adriana Dória Matos

Quando aqui na Redação nos deparamos Cláudia. O nosso dossiê Nabuco se encerra SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
com o centenário de morte de Joaquim com um ensaio da jornalista e doutora em
GOVERNO DO ESTADO Luiz Arrais
Nabuco, veio a questão: Tratar o tema a partir sociologia pela UFPE Carolina Leão, que DE PERNAMBUCO
EDIÇÃO
de onde? Pergunta mais que oportuna, devido lista as ideias do autor que sobreviveram ao Governador Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
à vastidão da obra do abolicionista e do tempo. Vale ressaltar também o trabalho do Eduardo Campos
sem-fim de interpretações que ela suscitou nosso designer e ilustrador Flávio Pessoa, REDAÇÃO
Mariza Pontes e Marco Polo
ao longo dos anos. A solução começou que interpretou visualmente os textos com
Secretário da Casa Civil
a surgir a partir da própria função do um Nabuco (quem diria?!) psicodélico. ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO
Ricardo Leitão
Pernambuco – um suplemento literário, Um dos temas mais em discussão hoje no Anna Karina, Flávio Pessoa, Flora Pimentel, Gilson
voltado a investigar (sobretudo) o universo mundo das letras é o do papel que o autor/ Oliveira, Militão Marques, Nélio Câmara e Vivian Pires
da ficção. Então, nada melhor que colocar narrador exerce no texto. Aquilo que você COMPANHIA EDITORA
PRODUÇÃO GRÁFICA
a tarefa nas mãos da escritora Cláudia Lage, está lendo é verdade ou ficção? Ou mesmo: DE PERNAMBUCO – CEPE Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
autora do romance Mundos de Eufrásia, que é possível separar uma coisa da outra? Para Presidente Bandeira e Sóstenes Fernandes
ficcionaliza Nabuco. discutir esse assunto, contamos com um Leda Alves
Pedimos a Cláudia que voltasse no ensaio inédito de um dos maiores nomes da MARKETING E PUBLICIDADE
Diretor de Produção e Edição Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
tempo e se desdobrasse para reencontrar teoria literária brasileira, Silviano Santiago,
como ergueu seu personagem a partir que em forma de depoimento autobiográfico Ricardo Melo
COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
das sombras do homem histórico. “Para (algo raro em sua carreira) nos revela quando Diretor Administrativo e Financeiro Gilberto Silva
uma romancista, o material recolhido, as começou a “mentir”. Bráulio Menezes
informações levantadas, os dados e os fatos Sucesso no mundo virtual, Fabrício
registrados, os documentos lidos, todo esse Carpinejar explica o porquê da sua fixação CONSELHO EDITORIAL:
material é o início e não o fim do caminho. pelo universo do Twitter, e a partir deste mês
Mário Hélio (Presidente)
A pesquisa havia me trazido a personalidade o Pernambuco começa a publicar uma série PERNAMBUCO é uma publicação da
histórica, mas se ao escritor cabe conhecer de entrevistas com editores. Para começar,
Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
José Luiz da Mota Menezes Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
as personalidades, não lhe cabe conviver Plínio Martins, da Ateliê Editorial e da Edusp. CEP: 50100-140
muito tempo com elas. Para conviver, o É isso, boa leitura e bom 2010. Luís Augusto Reis Contatos com a Redação
escritor precisa de personagens”, explicou Os Editores. Luzilá Gonçalves Ferreira 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

BASTIDORES

A memória, Meu primeiro romance foi o último a ser publica-


do, exatos 60 anos após ter sido escrito. A versão
manuscrita é de 1948, a terceira datilografada é de
a estrutura narrativa e o trabalho ficcional sofreram
profundas modificações.
Um dos conflitos básicos do romance é o embate

um trem sem
1949, todas insatisfatórias. Jornada com Rupert é e não entre o pai de Rupert, Herr Hans, nascido no Vale, e
é o mesmo livro. Günther, nascido na Alemanha, que chega à região
Meu trato com a palavra é um exercício diário logo após a Guerra 1914-1918; enquanto o primeiro
ou quase, que vem desde a infância, quando eu já não hesita em aderir ao nazismo, orgulhando-se de
tentava adequar e dar uma certa unidade à nar- possuir um exemplar autografado do Mein kampf, o

destino certo
rativa interior ou expressa, procurando recriar os ex-combatente, que optara pelo Brasil influenciado
acontecimentos do dia. Tal atitude prenunciava o pela brasileira mãe de Thomas Mann, se dedica a
futuro jornalista e ficcionista. Guardava os rabiscos denunciar o perigo que Hitler representava. O entre-
por algum tempo, relia-os e os rasgava. Essa prá- choque repercute não só na comunidade mas também
tica me acompanha até hoje, tanto que, na minha nas relações entre Rupert e Ilse, a filha de Günther.
Escritor comenta o romance longa trajetória de mais de 70 anos no exercício da
escrita, mais rasguei do que publiquei.
Estabelecido em Blumenau, principal núcleo de
colonização do Vale do Itajaí, Günther abre uma

Jornada com Rupert, que Jornada com Rupert é uma das raras exceções, re-
sistiu, me acompanhou em Florianópolis, pelo Rio
relojoaria e um estúdio fotográfico. Gosto de de-
safiar o leitor, mas parece que dessa vez exagerei,

deve ser o seu último


de Janeiro e novamente Florianópolis. Em 1999, pelo que sei ninguém até hoje falou da alegoria,
mal saíra meu romance NUR na escuridão (a desco- o relógio marcando o inexorável passar do tempo
berta do Brasil por uma família de imigrantes), eu e a fotografia preservando o hoje para o amanhã.
examinava o exemplar que me chegara, eis que Trabalho sempre com gente de papel e gente de
Salim Miguel a Eglê entra, põe em cima da mesa um envelope carne e osso, se bem que não sejam puramente de
e diz: “Agora resolve o que fazer com o tal de Ru- um jeito ou de outro, mas mesmo assim em geral
pert”. Não resolvi. aceitam o destino que lhes tracei. Neste romance
Em 2006, eu preparava o livro de contos O sabor duas personagens se rebelaram: Domingos Baiano,
da fome para a editora Record e sem prévio aviso ponte de ligação entre Canudos e o Contestado, que
Rupert irrompe e me questiona: “Eu onde fico?” de menino acompanhou Euclides da Cunha e viu
No decorrer desses anos eu lera um pouco de tudo, o massacre do reduto e, como soldado no batalhão
muita ficção e sobre ficção e minha concepção do general Estillac Leal, toma parte com horror
do processo de criação literária não era a mesma na chacina de outros deserdados da terra. Nesse
dos anos 1940, constatara que os temas com que ponto terminava a participação da personagem
o escritor trabalha são poucos e recorrentes, os que, rebelde, se insere à força na fechada Blume-
mesmos desde o início dos tempos, a humanidade nau, casa com uma “alemoa” e cria um quarteto
e seu estar no mundo, o que identifica e diferencia de cordas. O papel de Ilse se limitava a se decidir
um criador é o tratamento que lhes dá. entre dois namorados, não concordou, tivemos
Reli a versão datilografada, a história em si se várias discussões e ela acabou no Rio de Janeiro,
mantinha: através de um dia na vida de Rupert é para ser jornalista e escritora.
feita a tentativa de recuperação de um século de Rupert só consegue deixar Blumenau após a
História, a colonização alemã no Vale do Itajaí, morte do pai, isso em 1949, às vésperas do primeiro
tendo como pano de fundo as transformações que centenário da colonização. O livro termina em
o Brasil e o mundo vão sofrendo. Insatisfatória era aberto e houve leitores que me perguntaram se eu
a maneira de contar, eu não queria uma narrativa pensava em uma segunda parte, devido ao inusitado
cronológica nem sequencial, mas por meio do fluxo final: “Aqui começa uma outra história, que não
de memória, com seus avanços e recuos, dar uma contaremos, porque só agora Rupert vai vivê-la”.
unidade àquele mundo que em pouco tempo dei- Quando Jornada com Rupert saiu pela Editora Re-
xara de ser uma colônia agrícola para se constituir cord, logo dois amigos escritores me telefonaram,
num parque industrial. O fio condutor é a saga da o primeiro para dizer que o livro tinha a minha
família de Rupert, que chega à colônia em 1870. marca, porém continuava gostando mais de NUR
Durante 10 meses escrevi e re-escrevi em torno na escuridão e o outro exatamente o contrário.
de 8 horas por dia. Quando terminei a penúltima
versão ( a última jamais se conclui), o romance das
FLÁVIO PESSOA
230 páginas estava reduzido a 170. Cortei muito O LIVRO
das filosofices, das digressões, deixando pontos Jornada com Rupert
soltos para serem completados pelo leitor. O pri- Editora Record
meiro capítulo já tem um pouco de tudo isso: esta- Páginas 176
mos em um trem que não sabemos de onde veio, Preço R$ 22,90
por onde está passando e para onde vai, um tanto
à maneira errática da memória. Se a trama ro-
manesca inicial foi em boa medida preservada,

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ARTIGO

Eu comecei
KARINA FREITAS

a mentir por
precaução
Em texto confessional,
teórico investiga os
caminhos da autoficção
Silviano Santiago

Em dois dos últimos livros de ficção que publi- Como tenho me valido do discurso autobiográ-
quei - O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas fico nos meus escritos ficcionais? Para responder
(2005) -, tentei dar corpo textual a quatro questões à pergunta, passemos ao terceiro processo, o da
constitutivas do que tem sido para mim o exercí- contaminação.
cio da literatura do eu, ou para usar a nova termi- Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico
nologia, o exercício da autoficção – as questões como força motora da criação literária, coube-me
da experiência, da memória, da sinceridade e da levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento
verdade poética. direto – atento, concentrado e imaginativo – do dis-
Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas curso ficcional da tradição ocidental. Com a exclusão
palavras trariam como título e intenção “Meditação da matéria que constitui o meramente confessional,
sobre o ofício de criar”. Ao poeta pernambucano o texto híbrido, constituído pela contaminação do
peço de novo ajuda para acrescentar que a medi- discurso autobiográfico pelo discurso ficcional – e
tação “nada tem de pregação e sequer da sugestão do ficcional pelo autobiográfico -, marca a inserção
de receitas possíveis”. do tosco e requintado material subjetivo meu na
No meu caso, cheguei à autoficção através de um tradição literária ocidental e indicia a relativização
longo processo de diferenciação, preferência e contamina- por esta de seu anárquico potencial criativo.
ção. Falo primeiro e ao mesmo tempo dos processos Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico)
de diferenciação e de preferência. Parti da distinção noutra diferente (o discurso ficcional no Ocidente)
entre discurso confessional e discurso autobiográ- significa relativizar o poder e os limites de ambas,
fico. O discurso propriamente confessional está e significa também admitir outras perspectivas
ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras
expressão despudorada e profunda de sentimentos facetas de percepção do objeto literário, que se
e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados tornou diferenciado e híbrido.
como os únicos verdadeiros por tantos escritores A distinção entre discurso confessional e discurso
de índole romântica ou neorromântica. autobiográfico ganhou corpo textual em momento
Já os dados autobiográficos percorrem todos antigo no tempo, quando comecei a conjugar minha
meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando própria experiência infantil de vida com o auxílio dos
por terra a expressão meramente confessional. Os verbos de minha memória. Ou seja, a distinção entre
dados autobiográficos servem, pois, de alicerce na confissão e autobiografia foi feita desde a mais tenra
hora de idealizar e compor meus escritos e, even- infância e existiu em mim, e desde sempre existe,
tualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. como força a alavancar a imaginação criadora.
Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora A preferência pelo discurso autobiográfico e a
com os fatos da realidade que me condicionam e consequente contaminação dele pelo discurso fic-
os da existência que me conformam. cional se tornou prática textual, no momento em
Não nos iludamos, a distinção entre os dois dis- que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade
cursos tem, portanto, o efeito de marcar minha de jogar o confessional para o inconsciente e aliar a
familiaridade criativa com o autobiográfico e o fala de sua experiência de vida à invenção ficcional.
consequente rebaixamento do confessional ao grau A contaminação do biográfico com o confessional
zero da escrita. se tornou prática propriamente literária num segun-

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

A verdade não está


explícita numa
narrativa ficcional,
está sempre
implícita, recoberta
pela capa da
mentira, da ficção
uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional – ve-
rossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na
verdade, o ser plenamente. O menino ao confes-
sionário já era um falso mentiroso.
Na infância, eu já era multiplicadoramente confes-
sional e sincero, era autoficcionalmente confessional
e sincero. O discurso confessional – que, no meu
caso, repito, nunca existiu no domínio público – se
articulava e se articulou desde sempre pela mul-
tiplicação explosiva dos discursos autobiográficos
do momento, ou seja, quando o adolescente/sujeito flado, para usar a linguagem da Segunda Grande que faziam pacto com o ficcional. O discurso con-
revisitava as práticas textuais híbridas da infância Guerra, então dominante. Não tinha interesse em fessional – que na verdade não o era, era apenas um
para torná-las, através da letra impressa do jornal escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos
ou do livro, de domínio público. Ao revisitá-las embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala híbridos - só poderia estar plena e virtualmen-
pelo exercício da memória, o aprendiz de escritor confessional, visto que já se deixavam apropriar te num feixe discursivo, numa soma em aberto de
tenta apreender o modo de expressão da infância pelo discurso que vim a conhecer no futuro como discursos autoficcionais, cujo peso e valor final
com o fim de equacionar o desejo de criar narrati- ficcional. seriam de responsabilidade do padre-confessor –
vas literárias que signifiquem no universo cultural Não estou querendo dizer que não vivia a an- e, hoje, do meu leitor. Ao padre-confessor ontem
brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. gústia de não poder articular em público o dado da e ao leitor hoje passava e passo algumas histórias
Portanto, vale a pena pagar uma visita ao me- subjetividade plena, dita confessional - a morte da mal contadas.
nino antigo. mãe. Vivia-o. Onde mais forte se fazia o sentido As histórias – todas elas, eu diria num acesso de
Desde criança, por razões de caráter extrema- da angústia e mais necessária sua subtração era à generalização – são mal contadas porque o narra-
mente pessoal e íntimo – refiro-me à morte pre- mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos dor, independentemente do seu desejo consciente
matura de minha mãe – não conseguia articular com o exemplo religioso. de se expressar dentro dos parâmetros da verdade,
com vistas ao outro o discurso da subjetividade Meu pai não era católico praticante, mas nos acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro
plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da
querendo dizer que minha personalidade infantil, comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos história que deveria estar contando). A verdade não
isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me sábados, diante do padre-confessor de sotaque está explícita numa narrativa ficcional, está sempre
desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito germânico, no escurinho protegido pelas grades do implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção.
bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto pseudoanonimato, tinha de fazer exame de auto- No entanto, é a mentira da ficção, ou a ficção da ver-
poder de autodestruição e destruição. consciência e ser sincero ao enumerar e confessar os dade, que narra poeticamente a verdade ao leitor.
pecados da semana. Costumava trazê-los escritos Para terminar, leio parte dum fragmento de
DADOS CAMUFLADOS numa folha de papel. Uma pitada de paranoia, e “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispec-
Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a acrescento que os pecados eram muitos e, perdão tor: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém
personalidade de menino-suicida e de menino- pelo trocadilho, inconfessáveis. me avisou do perigo de ser precavida, e depois
predador, escondê-la debaixo de discursos in- Apesar da lista avantajada, não proferia no con- nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto
ventados (ficcionais, se me permitem), onde eram fessionário uma fala sincera, confessional. Mentia menti que comecei a mentir até a minha própria
criadas subjetividades similares à confessional, ao padre-confessor. Ficcionalizava o sujeito – a mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer
passíveis de serem jogadas com certa inocência mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a
e, principalmente, sem culpa no comércio dos lista. Inventava para mim e para o padre-confessor dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”.
homens. O menino criava falas autobiográficas outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais Permitam-me a glosa. No confessionário, o sujeito
que não eram confessionais, embora partissem ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e inten- começou a mentir por prudência e cautela e, como
do cristal multifacetado que é o trágico acidente da ções reprováveis permaneciam camufladas pela fala. a realidade ambiente o incitava a ser prudente e
perda prematura da mãe. Já eram falas ficcionais Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E
e, como tal, coexistiam aos montões. Nenhuma autoficções, como digo hoje, tinham estatuto de vivi- tanto mentia que já mentia sobre as mentiras que
das falas era plena e sinceramente confessional, do, tinham consistência de experiência, isso graças ao tinha inventado. E a tal ponto mente que a mentira
embora estivessem a retirar o poder de fabulação fato maior que lhes antecedia – a morte prematura se torna o meu modo mais radical de ser escritor,
da autobiografia. O dado confessional que poderia da mãe - e garantia a veracidade ou autenticidade. de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a
chegar à condição plena ficava encoberto, camu- Aos sábados, diante do padre-confessor, assumia verdade poética.

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

ENTREVISTA
Plínio Martins

Pense muito antes


de querer entrar
nesse negócio
Com esse número o Pernambuco inicia série de entrevistas
com editores. Para começar, uma conversa com o responsável
pela Ateliê Editorial e Editora da Universidade de São Paulo
AGÊNCIA ESTADO

O senhor dirige duas importantes


editoras brasileiras: a Ateliê
Editorial e a Edusp. Qual a
vocação de uma editora pública?
Que papéis ela deve cumprir e
de que modo ela se diferencia de
editoras privadas?
A vocação de uma editora
universitária pública é editar
obras que tragam contribuições
culturais e científicas, resultados
de pesquisas produzidas pela
instituição que ela representa,
e ao mesmo tempo publicar
traduções de livros que tragam
contribuição para os estudos
universitários.
Enquanto uma editora
particular tem como um de
seus principais objetivos editar
obras que tragam resultados
financeiros, na escolha de um
livro na editora universitária
pública este critério não é levado
necessariamente em conta. Numa
editora universitária o principal
critério deve ser o cultural e não
o comercial. Daí que toda editora
universitária pública quase
sempre é deficitária.

Gostaria que o senhor contasse


para os leitores do Pernambuco
como surgiu a Ateliê Editorial,
bem como um pouco da trajetória
da editora nos seus mais de dez
anos de existência.
Trabalho com livros há 39
anos. Comecei trabalhando no
depósito da editora Perspectiva,
que foi a minha escola.
Aprendi a gostar de livros com
A valorização do livro enquanto objeto, através de J. Guinsburg e José Mindlin.
Entrevista a Cristhiano Aguiar projetos gráficos que resgatam uma espécie de sabor Vivia falando de livros e muitas
“artesanal”, também é uma marca da atividade destas pessoas me perguntavam por
Nas últimas décadas, assistimos a um processo de duas editoras. Isto comprova que investir em conteúdo que eu não criava uma editora.
maturidade e profissionalização do mercado editorial de qualidade, aliado ao prazer do livro transformado Respondia que sabia quanto
brasileiro. Certamente, duas editoras se tornaram em corpo, é uma das melhores maneiras de resistir custava editar um livro e todas as
referência neste processo, cada uma em sua área ao esquecimento cultural. dificuldades que isso implicava.
de atuação específica. A primeira é a Edusp (http:// Tanto a Ateliê Editorial quanto a Edusp têm em co- E eu não tinha nenhum parente
www.edusp.com.br/), estruturada da forma como a mum o nome de Plínio Martins Filho. Há 39 anos tra- rico ou mecenas que financiasse
conhecemos no final dos anos 1980 e que se tornou balhando com livros, ele é fundador e editor da Ateliê tal empreendimento. Mas um
uma das mais importantes editoras universitárias Editorial, bem como editor-presidente da Edusp. Pro- dia, após 25 anos de experiência,
do país. A segunda é a Ateliê Editorial (http://www. fessor de editoração da Escola de Comunicação e Artes li um pequeno livro de um
atelie.com.br/), fundada há pouco mais de uma dé- da USP e doutor em editoração pela mesma instituição, jovem que trabalhava comigo na
cada. Embora com vocações diferentes, ambas têm Plínio Martins Filho conversou, por e-mail, com o Edusp (Editora da Universidade
em comum catálogos de excelente qualidade, que Pernambuco sobre as dificuldades de fazer livros no de São Paulo), gostei tanto que
procuram conciliar a edição de clássicos com a pu- Brasil, as relações entre o Estado brasileiro e o mercado resolvi começar a Ateliê Editorial
blicação de escritores e pesquisas contemporâneos. editorial, a virtualização do livro, entre outros temas. com ele. Para isso convidei um

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

“ Sem dúvida
alguma, o catálogo
de uma editora é
de alguma forma o
“ Apesar das pesquisas
serem vagas, há
sinais de que estamos
lendo mais, sim. Não
retrato de seu editor. há um dia em São
Tudo que sou Paulo que não sejam
devo ao livro. lançados livros.
aluno que havia estudado cinco O Estado hoje é o principal editoras públicas e de pequeno Uma das coleções que mais Pena que existam tão poucas e
anos de medicina e resolveu comprador de livros no Brasil. e médio porte sofrem com dois me chama atenção na Ateliê seja tão difícil mantê-las.
largar tudo e fazer o curso de Como negócio isto é muito bom, problemas: distribuição e pouco é formada por livros sobre
editoração. Ele topou. principalmente para as grandes espaço na mídia. Como contornar editoração. Como o senhor Discute-se muito o tema da
A sede da editora ficava na editoras. As pequenas dificilmente estes problemas? vê a formação profissional virtualização do livro. Como
garagem de sua casa. O livro era O conseguem colocar algum A distribuição é de fato o do editor no Brasil? Publicar o senhor avalia as mudanças
mistério do leão rampante, de Rodrigo título nestas listas. As grandes já principal problema enfrentado livros sobre editoração seria na cadeia produtiva do livro
Lacerda. Com ele veio o primeiro produzem visando estas vendas, pelas editoras. É um problema uma extensão da sua prática relacionadas a este tema? Como
Prêmio Jabuti. O segundo livro, seguindo regras estabelecidas pelo estrutural. O Brasil hoje tem mais como docente da área? a Edusp e a Ateliê Editorial estão
Resumo do dia, de Heitor Ferraz, governo. Isso a longo prazo pode editoras do que livrarias. Como Sem dúvida é uma extensão da lidando com elas?
foi finalista do Prêmio Nestlé de ser ruim, principalmente quando distribuir bem nessas condições? prática não só como docente Vivemos num país no qual ainda
Literatura. No quinto livro, uma se ideologiza, criando regras do Quanto ao problema de espaço na mas também como editor. O não estamos alfabetizados pelos
reedição de Tropicália: Alegoria que e como se deve escrever. mídia nem se fala. As pequenas e catálogo de uma editora é de meios tradicionais. Perdemos
alegria, de Celso Favaretto, meu Corre-se o risco de perder algo médias editoras, em sua maioria, alguma forma o retrato de seu muito tempo e gastamos
sócio, Afonso, comunicou que importante que é a diversidade. não têm sequer um profissional editor. Tudo que sou devo ao livro. muita tinta sobre este tema. O
a editora não era bem o que ele Preferia que o governo em para fazer este trabalho. Por Quando comecei a trabalhar em problema central continua sendo
queria e não tive como convencê- qualquer esfera — municipal, ser um profissional caro, estas editora não havia livros sobre este a leitura. Se não se inventou algo
lo a ficar. Os livros que estavam estadual ou federal — investisse editoras preferem aumentar seu tema. A formação era puramente melhor para se ler do que o nosso
em sua garagem, em São Paulo, mais em educação e campanhas catálogo na esperança de que empírica. Havia inclusive uma bom e velho livro, para mim
foram para a sala de minha casa que incentivassem o hábito da este um dia permita ter esses certa prevenção contra os ficar falando sobre virtualização
em São Caetano do Sul. Em leitura e as pessoas tivessem o profissionais em seus quadros. É egressos de cursos que tentavam do texto, sobre e-books, kindle,
conversa com minha mulher, livre-arbítrio para escolher o que impossível disputar estes espaços formar pessoas para esta área. é uma perda de tempo e, ao
Vera, que havia feito letras e gostariam de ler e não receber com as grandes editoras. Como editor, procuro me valer mesmo tempo, ficar fazendo
belas-artes e tinha experiência um “prato feito” oferecido pelo Creio que uma solução seria do meu catálogo para me fazer propaganda de uma maquininha
em revisão em agência de governo. As editoras universitárias ampliar o número de livrarias e ouvir. Raramente o editor coloca idiotizante. Sou um homem do
publicidade e em editora, ela públicas e as pequenas editoras que estas fossem tratadas como por escrito ou dá a conhecer o que livro, livro impresso, e quero
topou dar continuidade ao projeto. exercem o papel de publicar essa espaços culturais com algum pensa sobre o meio do qual ele faz continuar sendo. A Internet, a
Em conversa com nossos dois diversidade sem se preocupar incentivo para que, de uma hora parte. O objetivo dessa coleção é sede da informação imediata e
filhos, expliquei o que era uma tanto com as leis de mercado. para outra, onde havia livraria procurar resgatar a arte de fazer sem reflexão, não me faz falta.
editora e disse-lhes que quem não se abra mais um boteco. livros bem feitos, coisa que a Há muitos bons livros a serem
ganha dinheiro com editora são os Nos últimos anos, observamos parafernália da informática quase lidos e relidos.
herdeiros e que se eles topassem que muitas editoras de pequeno Na Balada Literária (http:// destruiu. Apesar das facilidades
eu toparia continuar com ela. e médio porte são incorporadas baladaliteraria.zip.net/) deste que a tecnologia nos oferece Que conselhos daria àqueles
Concordaram. por editoras maiores. Às vezes, ano, alguns convidados das hoje, nosso ofício exige reflexão, que iniciam uma carreira de
Tomás, o mais velho, fez existem dezenas, ou centenas, mesas de debate afirmaram, com exige contato permanente com o editoração?
arquitetura na FAU e Gustavo, de selos, na mão de três ou otimismo, que o Brasil está lendo mundo das ideias e com o mundo Pense muito antes de entrar
que até os quinze anos publicara quatro empresas. Qual a sua mais. O senhor concorda? da tinta, do papel, da consciência neste ramo, que como negócio é
sete livros, fez jornalismo na ECA, avaliação disso? Apesar das pesquisas serem vagas social, da economia etc. Insisto o pior do mundo, mas vicia e dá
ambos na USP. O Tomás, ao se Isto é um fenômeno mundial. e pouco confiáveis, há sinais de em publicar livros para que este muito prazer. O editor, pessoa
formar, assumiu a produção e a Num primeiro momento, os que estamos lendo mais, sim. Não ofício dure por muitos séculos, responsável pela seleção do que
administração da editora junto grandes grupos, ao incorporarem há um dia em São Paulo que não apesar das ameaças... se deve editar, é aquele que graças
com a mãe. O Gustavo acha que a as pequenas e médias editoras, sejam lançados livros. A Edusp Do mesmo jeito que ler meia a seu critério, seus conhecimentos
editora é muito devagar para seu prometem manter a linha vem promovendo há onze anos dúzia de livros sobre medicina de literatura, do mundo, das
ritmo. Hoje faz música e se dedica editorial e seus editores. Alguns a Festa do Livro, uma espécie ou um sobre engenharia não nos pessoas, da vida e dos leitores
a sua banda Ecos Falsos. anos depois, os editores são de antibienal onde a condição capacita a operar ou construir sabe o que merece ser editado e
São 15 anos, quase 500 substituídos por economistas e para a editora participar é ter um uma ponte, ter muitas facilidades o que não deve. Nem tudo vale
títulos. São 14 prêmios Jabutis. marqueteiros. É a ditadura do catálogo que interesse ao público para editar não pressupõe a a pena ser editado. Temos que
No catálogo da Ateliê Editorial mercado. Se vende é bom. Se não da Universidade e o desconto existência de melhores escritores hierarquizar nesse mundo no
há de tudo um pouco: poesia, vende não se edita. Mais uma mínimo seja de 50%, que todo ou editores. É preciso ter cultura. qual o tempo é cada vez mais
ficção, ensaios, arte, música, vez ressalvo o papel das editoras editor dá para o distribuidor de escasso. Vale mais a pena se
artes gráficas etc. Meu papel na universitárias que ainda resistem livros. Em três dias editoras como A Ateliê Editorial publica duas dedicar a algo que seja fruto do
editora é escolher, aprovar e à tentação do mercado, apesar a Edusp e a Cosac Naify vendem revistas literárias: a Entretanto e talento. Os mais radicais podem
orientar os projetos. do pouco apoio que recebem das mais de dez mil exemplares de a Sibila. Qual a importância das dizer que ninguém deve ser
instituições que representam. livros. Em três dias! A cada ano as revistas literárias? árbitro do que se deve publicar.
Sabemos que o Estado brasileiro é vendas crescem vinte por cento a O livro por si só tem dificuldade Não se alarmem. Não temam.
um dos maiores compradores de Embora produzir livros hoje mais que do ano anterior. Dá para de sobreviver. As revistas literárias Bons autores e livros fazem seu
livros do mundo. Como o senhor em dia seja razoavelmente dizer, pelo menos neste caso, são o espaço para sua discussão caminho. O editor é um filtro que
vê essa forte presença estatal no barato e exista uma boa mão de que o número de leitores vem e difusão. São fundamentais para permite que se dê a conhecer
mercado editorial do nosso país? obra disponível, percebo que crescendo, sim. a vida dos livros e da literatura. aquilo que tem qualidade.

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

Quando me refiro à simplicidade do texto, quero


mostrar que o primeiro compromisso do narrador
é fazer com que a história chegue aos olhos do
Escreva com
leitor comum sem atropelos. Ou seja, mostre-
se comum, leve, e as cenas pareçam apenas
movimentar a narrativa. Lembrando, mais uma
objetividade e
vez, aquilo que repito sempre: a gente escreve
como fala. Assim. Exemplo: quando o personagem simplicidade no
primeiro impulso
vai ao cinema, como é que se escreve? “José foi
ao cinema”. Quem foi que disse que se escreve:
“Naquela noite monótona e silenciosa, o pobre

para montar o
José, cansado da vida, foi ao cinema”. Nunca,
jamais. Isso é herança de um tipo de romantismo
sem qualquer eficácia. Literatura é simplicidade
ainda que cheia de sofisticação. No seu mistério
e no seu segredo. E só. Basta. Quando um autor
consciente escreve assim, desconfie. Tem coisa.
romance, a novela
No entanto, a simplicidade em literatura está
cheia de sentidos. Simples não significa simplório,
tosco, vulgar, ingênuo. Se você consegue escrever
ou o conto
do mesmo jeito que fala, está indo muito bem. A Faça exercícios, sempre e sempre, quando tomar

Raimundo
não ser que seja discursivo, retórico, eloquente. plena consciência do domínio, então procure
Porque também tem gente assim. Aí controle seus outros caminhos. O caminho mais próximo é o da

CARRERO
vícios. Portanto, no primeiro impulso – ou na descoberta da pulsação narrativa do personagem.
primeira redação – escreva com essa simplicidade, Isso é básico. Sem pressa, porém. Conte primeiro
se possível seguindo aquela velha cantilena: a história, linearmente. Depois procure conhecer
sujeito, verbo, predicado. Um passo depois do melhor a intimidade do personagem. Isso lhe
outro. “José foi ao cinema. Chovia.” Observe que oferecerá condições para, com calma, sofisticar
o personagem está em cena e que já existe aí uma a narrativa. Suando. As vezes suando muito.
atmosfera. Está chovendo muito? “Correu, entre o “Na fila da bilheteria encontrou Maria, que lhe
estacionamento e o cinema, para não se molhar”. estendeu a mão”. No primeiro instante, a frase
Então: “José foi ao cinema. Chovia. Correu é assim mesmo. Mas com um pouco de cuidado
entre o estacionamento e a calçada para não se você entra na pulsação de Maria, que é mais lenta
molhar”. É assim? É assim mesmo. Renovando: do que a de José, você percebeu, não foi? Faça
no princípio, no primeiro impulso, na primeira assim: coloque uma vírgula depois de Maria. A

A narrativa é
redação, é sempre assim. “A água escorreu frase apresenta uma leve parada, com a vírgula, e
nos cabelos e nos ombros”. Quer um pouco diminui a tensão da cena. Quer ver?
de leveza na frase? Tudo bem. “Apesar disso, a
água escorreu nos cabelos e nos ombros”. Ah, “José foi ao cinema. Chovia. Correu entre
não gosta. Então escreva: “A água escorreu nos o estacionamento e a calçada para não se

construída de
cabelos e nos ombros, quase pisa numa poça já na molhar. Apesar disso, a água escorreu nos
calçada”. Já tem calçada. E agora? “Apesar disso, cabelos e nos ombros, quase pisa numa
a água escorreu nos cabelos e nos ombros e quase poça. Na fila da bilheteria encontrou Maria,
pisa numa poça”. De propósito foi criada uma que lhe estendeu a mão”.

cena em cena
cena seguinte: “e quase pisa numa poça”. Uma
frase que, no entanto, revela a ansiedade de José. Observe que a sofisticação vem depois.
Sem esquecer: cena é o resultado de personagem É preciso agora trabalhar com mais calma e
mais ação mais sequência. mais paciência. Vamos experimentar a diferença
É claro que há muitas alternativas melhores, entre cenas abertas e cenas internas, que
bem melhores. Estamos apenas tentando mostrar parecem a mesma coisa, na primeira leitura,
uma coisa fundamental: a cena resolve o conflito mas que são profundamente diferentes. Tudo
O movimento interno do narrativo com eficiência sem o uso abusivo
de palavras soltas, adjetivos e advérbios, por
isso depende da montagem da história e da
pulsação narrativa do personagem. Examinando,

personagem através do exemplo. O que não significa que deve ser sempre
assim. Mas aqui vale o exercício. Pouco a pouco
mais detidamente, o caso de “O machete”,
conto de Machado de Assis, verificamos que

texto apaixona o leitor


descubra os seus caminhos. Aqui, neste instante, a história é contada pelo narrador onisciente,
estamos trabalhando com a simplicidade. Muita que dá orientação geral à narrativa, impondo o
coisa vai acontecer ainda. O importante é saber ritmo, com variações conforme a intervenção do
que se escreve com simplicidade, sem afetação. narrador onisciente, personagens ilustrativos,

VOLTA
Marco Editora Estação Liberdade coloca o Nobel francês
REPRODUÇÃO

Polo André Gide de volta ao mercado editorial brasileiro


A Editora Estação Liberdade está Diário dos Moedeiros falsos, em que
trazendo o escritor francês André Gide amplia essa perspectiva en
Gide (foto), Nobel de Literatura de abyme, ao comentar a gestação e
1947, de volta ao mercado editorial, elaboração do romance. Outra obra
com nova edição de dois dos seus importante é Os porões do Vaticano
romances fundamentais, mais em que Gide satiriza os embates
dois inéditos. Os moedeiros falsos, da fé. O lançamento conjunto é
considerado sua obra-prima, é enriquecido por outro inédito,

MERCADO uma reflexão sobre a construção do


romance. Nela há um escritor que
em caráter mundial: O pombo-
torcaz, recentemente liberado por

EDITORIAL escreve um romance homônimo.


Agora é complementado pela
Catherine Gide, filha do escritor.
O livro relata uma experiência
primeira vez em português com homossexual do maduro Gide.

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KARINA FREITAS

comentários, diálogos, tudo de acordo com o são momentos significativos para o estudo do conto.
ponto de vista do personagem. E, creio, nos coloca de forma definitiva na pulsação
Percebemos, assim, que o narrador alcançou narrativa da história.
incrível simplicidade no texto, mas avançou na
sofisticação. Quando Machado de Assis escreveu o ANDAMENTO LENTO DE INÁCIO RAMOS
conto optou por dois pontos de vista em oposição: Quem é Inácio? Como ele se comporta? Como age?
de Inácio Ramos e de Carlota. Dessa forma é O narrador do conto deixa que ele se apresente no
possível perceber que a redação é simples, mas desenvolvimento da história, na técnica. Não diz,
a técnica é sofisticada. A técnica não confunde o narra. Isso é essencial para a análise da montagem
leitor comum e o conto é lido como uma história. do conto e do personagem, ambas absolutamente
Na verdade é uma história qualquer, mas a integradas. Sabemos, pelo andamento da primeira
pulsação narrativa mostra-se plena de invenção. parte – noturna –, que se trata de uma pessoa
Inácio Ramos é mais interior, introspectivo, metódica, estudiosa, conservadora, simples. Mas
conforme a pulsação, a primeira parte do quem diz isso? Dizer ninguém diz. No andamento,
conto é assim; Carlota é mais rápida, mais ágil, o narrador mostra. É uma questão de leitura lenta.
superficial, segundo a pulsação dela própria. Esses Aliás, só um lembrete: a primeira leitura já foi feita,
andamentos dividem o texto em dois momentos ela é emocional, rápida; e a segunda, também,
essenciais: um noturno, interno, para Inácio, e contemplativa, de olhos fechados, de exame
outro solar, externo, para Carlota. Quando lido, interior. Agora a terceira: técnica.
esses dois movimentos se escondem e dão a Devemos observar, com lentidão e astúcia, a
impressão de um só. Tudo porque a primeira primeira cena interna, sem nenhuma exuberância
leitura é emocional. Na maioria dos casos interessa exterior:
o enredo, a sucessão de fatos, o lúdico. Básico.
Dessa forma, podemos observar que a primeira “Inácio Ramos contava apenas dez anos
parte é intimista, corresponde ao andamento quando manifestou decidida vocação
de Inácio, que é lento, para terminar bem mais musical”;
rápida, porque corresponde ao começo do
andamento de Carlota, representada na cena da Pronto: o personagem e a história se apresentam.
execução da elegia da mãe do personagem. Esses (CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO)

COLEÇÃO POESIA

Todos os encantos de Novos títulos integram a coleção de poesia


Belo Horizonte em livros Ás de colete, da Cosac Naify com a 7Letras
José Eduardo Gonçalves e Sílvia Após um bom tempo sem comum o diálogo com
Rubião, através da Conceito lançar novos títulos, a coleção outras expressões artísticas.
Editorial, coordenam a Coleção Ás de colete, uma parceria das Walter Gam como artista plástico
BH – A cidade de cada um, na qual editoras Cosac Naify e 7Letras, desenvolve trabalhos com
escritores que conhecem locais de especializada em poesia – tanto vídeo, instalação, desenho,
Belo Horizonte discorrem sobre a consagrada quanto a mais pintura e fotografia; Felipe
eles, fazendo uso de afinidades recente, nacional ou internacional Nepomuceno, fotógrafo e
afetivas, lembranças, casos, enfim -, apresenta ao público, ainda cineasta, é autor de vários
um conjunto de narrativas que este ano, mais três livros. São curtas-metragens premiados;
definem a memória de um lugar. O eles Ambiente, de Walter Gam, Ricardo Domeneck, atua como
resultado é um retrato saboroso dos Mapoteca, de Felipe Nepomuceno, DJ, produzindo vídeos e
recantos (às vezes desconhecidos) e Sons: Arranjo: Garganta, de Ricardo realizando performances em
que compõem uma cidade. Domeneck. Todos três trazem em festivais pelo mundo inteiro.

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Diante da imagem
filosofia e da história, dos salões, da boemia e do
Velho Mundo. Próximo da política liberal, sob a
influência do pai, Nabuco de Araújo, mas hesitante
entre a monarquia e a república. Já havia trabalha-
do como advogado, jornalista, cronista, crítico de

do Joaquim Nabuco
teatro e literatura, assumia agora o seu primeiro
cargo público, como diplomata. Mas a foto dizia
que, apesar do emprego estável, a busca conti-
nuava. Nabuco voltava-se para todas as direções,
como se quisesse abraçar o mundo de uma só vez.
“A criação literária começa com as consequências

que me restou
dos atos, não com os atos em si mesmo”, disse uma
vez a escritora americana Katherine Anne Porter,
“são nas reverberações que se inicia o trabalho do
escritor”. E era desse modo que eu enxergava aquela
imagem de Nabuco. Uma reverberação do jovem
interessado pela vida em todos os seus aspectos, tão

Escritora refaz o percurso que a levou a fazer


interessado a ponto de multiplicar-se em outros, a
ponto de hesitar diante de caminhos estabelecidos,
a desejar experimentar todas as direções. Ali es-
um perfil fictício do abolicionista para o tava um vislumbre da personagem, indicado pelo
próprio Nabuco. A pessoa, antes, muito antes de

romance histórico Mundos de Eufrásia tornar-se a personalidade histórica. Ali iniciava a


trajetória de um personagem desfeito de certezas,
mas repleto de questionamentos.
Não era apenas o Joaquim Nabuco das conferên-
Cláudia Lage cias e dos discursos que eu buscava, mas o Nabuco
antes de subir ao palanque e depois de descer dele,
o Nabuco jantando com o pai, seu grande ídolo, e
a mãe, Ana Benigna. “Devo interessar-me pelos
Além da recordação do rosto forte de Joaquim Nabu- era projeto para um partido político, mas para a
co, visto em alguma fotografia nos livros de história
na escola, e da atuação como célebre abolicionista,
eu tinha na memória fragmentos do seu discurso na
história brasileira. Não visava apenas uma raça, mas
um povo. Por isso, a sua desolação depois de 13 de
maio de 1888, ao constatar que após abolição nada
A pesquisa havia
inauguração da Academia Brasileira de Letras, em
1896. O discurso foi lido em uma aula de literatura
mais havia sido feito pelos escravos, no sentido de
integrá-los à sociedade. Atitude que para Joaquim me trazido a
personalidade
brasileira, na faculdade. “Somos uma nação que Nabuco era necessária para se evitar, a longo prazo,
tem o seu destino, seu caráter distinto”, proclamou o aumento da miséria e da injustiça social. Mas, no
Nabuco, “e só pode ser dirigida por si mesma, de- dia 14 de maio, a história já virava apressadamente

histórica, mas
senvolvendo sua originalidade com os recursos pró- a sua página para a campanha republicana.
prios, só querendo, só aspirando à glória que possa A pesquisa me aproximava cada vez mais de um
vir do seu gênio”. O curso era sobre a identidade Joaquim Nabuco apaixonado pelos grandes ideais,

se ao escritor
nacional na literatura, tema recorrente ainda hoje a filosofia e a literatura. Visionário em relação ao
na Academia. Mas, no século 19, era o tema que se processo histórico de seu país, extremamente lú-
respirava e vivia nas ruas. A Europa era o espelho cido sobre o futuro brasileiro, o Nabuco atuante na

cabe conhecer as
no qual o brasileiro se mirava, e a língua portuguesa, esfera pública era um homem de características
a recordação opressora da nossa recente condição resolutas e indiscutíveis. No entanto, na ficção, o
de colônia. Uma língua que falava mais do outro, o terreno é sempre mais fértil quando se pode escavá-
lusitano, do que de nós, brasileiros. Escritores como
José de Alencar e Machado de Assis, poetas como
Castro Alves, tentavam, cada um a seu modo, fundar
lo profundamente, e quando a escavação é feita à
base de pedra e fogo, sem poupar esforços para
trazer à tona a raiz. Raiz criativa, raiz imaginária,
personalidades,
e formar uma literatura, uma linguagem, que fosse o
nosso reflexo, que expressasse a alma brasileira. Ao
discursar na inauguração da ABL, Joaquim Nabuco
mas fundada por toda investigação que a alimentou.
Por isso, raiz verossímil. Para uma romancista, o
material recolhido, as informações levantadas,
não lhe cabe
exaltava justamente a busca por uma identidade
nacional, que ele já vislumbrava como peculiar. Não
seria possível escapar da influência que o estrangeiro
os dados e os fatos registrados, os documentos
lidos, todo esse material é o início e não o fim do
caminho. A pesquisa havia me trazido a persona-
conviver muito
emanava, nem da que a história do Brasil até então
impunha, mas era possível e urgente encontrar uma
originalidade, uma faísca própria dentro do caldeirão
lidade histórica, mas se ao escritor cabe conhecer
as personalidades, não lhe cabe conviver muito
tempo com elas. Para conviver, o escritor precisa
tempo com elas.
de diversidades que era, e é mais ainda hoje, o Brasil. de personagens. acontecimentos?”, perguntou uma vez a escritora
Mais tarde, ao iniciar a escrita do romance Mundos Clarice Lispector, ela mesma respondendo que
de Eufrásia, publicado recentemente pela editora ENTRE O VIVO E O FICTÍCIO não se interessava pelos fatos em si, mas pela re-
Record, baseado na vida de Eufrásia Teixeira Leite, Lembrei da imagem de Nabuco nos livros da es- percussão dos mesmos nos indivíduos. E era essa
mulher emancipada na esfera pública e privada, cola, e procurei outras imagens dele em outros repercussão, esse eco de pensamentos e emoções,
para os padrões do século 19, e, certamente, ainda livros. A respeito da construção de personagens, que eu procurava no menino Nabuco que viu pela
para os atuais, reencontrei Joaquim Nabuco. Ele e Antonio Candido dizia que “o romance se baseia primeira vez um jovem escravo fugido e ferido, que
Eufrásia viveram um romance por 15 anos, entre num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser presenciou aos oito anos a morte de sua madrinha,
idas e vindas. Um romance que os acompanhou na fictício, manifestada através da personagem, que é por quem foi criado até essa idade; no rapazinho
juventude até o despertar da maturidade. Nabuco a concretização deste”. Assim, depois de percorrer que adorava a agitação da corte na mesma in-
viu Eufrásia se tornar a primeira mulher a atuar toda biografia e bibliografia de Nabuco e a respeito tensidade que adorava a exaltação da poesia; no
na bolsa de valores da Europa, tornando-se uma dele, o encontro mais forte que tivemos foi através jovem recém-formado que defendeu no tribunal
grande financista e empreendedora. Eufrásia viu de seu retrato. um escravo que havia assassinado o seu senhor,
Nabuco se tornar o político eloquente, o homem A foto, de 1876, encontrada em uma iconogra- convencendo a todos que ele havia agido em defesa
idealista que abraçou a causa abolicionista e fez fia, revela um jovem de ar imponente, cabelos própria; no jovem que se apaixonou pela bela Eu-
dela a sua vida. ondulados, bigodes fartos e um olhar direto, que, frásia e com ela viveu uma longa, mas impossível
no entanto, não olhavam o fotógrafo, mas outro história de amor; no homem que dedicou a sua
CONSCIÊNCIA ABOLICIONISTA horizonte. O que mais chamava a atenção, porém, vida à causa abolicionista, e tantos outros Nabucos.
“Acabar com a escravidão não nos basta”, disse era a postura. O tronco se direcionava para um lado, Nessas repercussões, formadas de pensamentos,
Nabuco em um dos seus discursos. “É preciso des- a cabeça para outro, um braço repousava no qua- sentimentos, palavras e atos, estão as circuns-
truir a obra da escravidão. Compreende-se que em dril, o outro, esticado ao longo do corpo, segurava tâncias imaginárias que partem da personalidade
países velhos, de população excessiva, a miséria um chapéu. A imagem não revelava unidade, nem histórica, da fotografia cristalizada, e que buscam,
acompanhe a civilização como sua sombra, mas em ponto de equilíbrio. O corpo apontava uma direção, num esforço incessante, atravessar suas fronteiras,
países novos, onde a terra não está senão nominal- o olhar se virava para o lado oposto. Enquanto um alcançar uma realidade além do documento e da
mente ocupada, não é justo que um sistema de leis braço aparentava acompanhar o movimento de imagem, sem a intenção de definir um retrato,
concebidas pelo monopólio da escravidão produza seguir adiante, o outro parecia que estava farto de mas de desenhar um espírito, de construir inter-
a miséria no seio da abundância, a paralisação das tudo e buscava repouso. Na época, Nabuco tinha 27 namente uma trajetória. Como se o modelo saísse
forças diante de um mundo novo”. Nabuco tinha a anos. Era formado em direito, mas desinteressado da fotografia e ganhasse as ruas, como se a voz dos
consciência de que o movimento abolicionista não em seguir o rumo jurídico. Amante da poesia, da palanques alcançasse nossos ouvidos.

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CAPA

Joaquim Nabuco
FLÁVIO PESSOA

soube entender o
drama nacional
O político abolicionista foi
também um dos principais
intérpretes do Brasil
Carolina Leão

Convencionalmente, institui-se, na academia, que, pode ser encontrado, como crítica, no entanto, ao con-
em linhas gerais, as três primeiras décadas do século frontar o atraso latino-americano ao caráter parasitário
20 no Brasil são períodos cruciais para a expansão do da metrópole (escravista). Em Gilberto Freyre, obser-
“sentimento” de pertencimento a uma nação. Pode- vamos um quadro pictórico de referências biológicas
mos citar como exemplo as várias interpretações do e psicológicas que mostra o resultado da povoação
Brasil que surgem nessa época (com intelectuais como do nosso território por europeus contemporizadores
Euclides da Cunha, Manuel Bomfim, Silvio Romero, que “minimizariam” as características mais cruéis
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda — que do sistema escravocrata. Sérgio Buarque representa o
procuram desvendar, cada um à sua maneira, a ideia de grande primeiro corte dessa dominante cultural. Ao
ser brasileiro e o que, afinal, é o Brasil); o modernismo utilizar a metodologia do Tipo Ideal weberiano, Holanda
literário, em seu híbrido de vanguarda e tradição; e a aplica elementos morais do colonizador português à
política cultural do Estado Novo, que legitimou o samba especificidade das investidas de colonização europeia
como símbolo da afetividade nacional estabelecendo (francesa, holandesa, espanhola e portuguesa). Uti-
através dele a identificação social . lizando conceitos como o de “cordialidade”, Sérgio
Um outro “marco zero” da interpretação do Brasil, Buarque de Holanda, ainda, no entanto, se inscreve
no entanto, encontra-se no prolífico pensamento de no panorama de intelectuais que remetem à dicotomia
Joaquim Nabuco, cujo centenário de morte, a ser co- “colônia x metrópole”, ou seja, à própria história do
memorado em janeiro, ressuscita problemáticas de sua processo civilizador no Brasil. Podemos também citar,
produção intelectual. Para historiadores como Evaldo num bloco mais conservador, os estudos de Oliveira
Cabral de Mello, que assina o prefácio dos seus diários, Viana e Nina Rodrigues, corroborando a longa tradição
publicados em 2005 pela editora Bem-te-vi, Nabuco de escritos sobre raça, geografia e cultura no Brasil.
foi o primeiro intelectual a pensar a formação histórica
do Brasil a partir da escravidão. Não na perspectiva cul- INTERESSE ACADÊMICO
turalista, ou contemporizadora, amplamente difundida Principalmente ao contrário de Freyre, que tem passado
na obra de Gilberto Freyre, diga-se. O regime servil é por afãs acadêmicos sazonais, Joaquim Nabuco é um
analisado, sem complacência, como uma verdadeira dos autores mais estudados nas instituições univer-
instituição que moldou o ethos brasileiro ao definir a sitárias, pela ubiquidade de sua produção. Sobretudo
nação economicamente, politicamente e organizacio- pelo tema da escravidão, sobre a qual discorreu em
nalmente. E como bem observa o historiador, grande vários livros e opúsculos, entre eles, O abolicionismo,
parte do pensamento social do Brasil se debruça sobre sua obra mais popular. Nabuco, seus pensamentos e
a herança dessa reflexão. obras, constituem, aliás, um objeto de análise ubíquo na
Vejamos que as características biológicas (raça) e sociologia brasileira, pois reúne paradoxos e, digamos,
geográficas (clima) perpassam as análises de Euclides “fetiches” que os sociólogos adoram debater. Um deles,
da Cunha, considerado como o autor inaugural da o próprio hibridismo de gêneros com os quais criou e
interpretação do Brasil. Nele, há, sobretudo, o determi- disseminou suas ideias. O abolicionismo, inclusive, escrito
nismo biológico como marca da sua análise do homem em Londres num período de ostracismo e exílio polí-
sertanejo — uma influência das teorias positivistas em tico, é uma obra que expõe as bravatas características
destaque naquele momento –, marcado pela fatalidade de todo o panfleto juvenil (embora já conta mais de
da região. Em Bomfim (1905), tal determinismo ainda 30 anos na época de sua publicação). Sua narrativa,

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com teor propagandista, é construída emotivamente, buco viveu a escravidão sob o seu olhar de menino. Foi Freyre, em sua releitura da escravidão a partir da sua
pelo enfoque no drama humano da escravidão, como amamentado por ama de leite, negra, e acompanhado perspectiva de classe – que, diga-se, associa-se à
podemos observar em determinado trecho: “Já existe, na meninice pela preta Ana Rosa, da qual tinha medo. decadência da cultura canaviera. Como discurso ofi-
felizmente, em nosso país, uma consciência nacio- Nas terras da família, aliás, esboçam-se as primeiras cial, essa absorção da realidade cultural das classes
nal — em formação, é certo — que vai introduzindo o ideias sobre a reforma que deveria resultar numa so- subalternas se consolida à medida que uma elite
elemento da dignidade humana em nossa legislação, ciedade mais justa e democrática, seguindo a boa e (intelectual ou política) a organiza através da sua pró-
e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é velha cartilha iluminista. A solidariedade altruísta se pria autorreferência como autoridade e detentora de
uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na reveste de bandeira ideológica em sua campanha pela um poder – seja a verdade em torno do que é afinal
fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa abolição da escravatura, como reforma modernizadora a cultura brasileira ou que fazer politicamente com
alma, e há de por fim humanizá-la, resulta da mistura do Brasil. Joaquim Nabuco anteciparia, dessa forma, o essas manifestações nas quais resiste uma lógica não
de duas correntes diversas: o arrependimento dos enfrentamento de nossa modernidade: um processo contrária mas distante da noção de progresso embu-
descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento que ocorre na economia a ser modernizada e passa, tida no ideal de modernização. O intelectual forma,
dos herdeiros de escravos”. na cultura, pelo antagonismo entre a influência da assim, o núcleo de onde se sobressai o humanismo
Para algumas correntes, o livreto não passa de uma Europa “civilizada” e os elementos tradicionais da racionalizado, e de onde se expõe, para a constatação
prosa que combina jornalismo e literatura; sem subs- nacionalidade. pública, a memória do País.
tancialidade científica ou teórica que tenha aprofun- Uma das questões mais intrigantes da fortuna de
dado a relação entre o regime escravocrata e outras ca- MODERNIZAÇÃO NO BRASIL Nabuco é como, apesar de ter sido um dos fundadores
racterísticas sociais da formação histórica brasileira. No A tradição, que nas sociedades pré-modernas conferia da Academia Brasileira de Letras e assinar uma con-
entanto, O abolicionismo goza do status de obra pioneira ao passado o status de estabilização social pelos sím- siderável produção literária, a literatura não ganhou
e, mais que isso, de uma literatura perene, que não se bolos que perpetuavam as experiências das gerações, reconhecimento nas análises sobre a sua obra. Uma
encerra nas doutrinas da moda, como o positivismo, é aqui assumida de forma diferente da reflexividade das chaves para esse esquecimento pode ser encon-
bastante influente e dominante no pensamento social europeia. Para Anthony Giddens, a tradição era uma trado na observação de Evaldo Cabral de Mello: “para
brasileiro. Nabuco foi além da questão da raça para forma de integrar socialmente as comunidades e uma o intelectual, a ação política é esterelizante. Daí, que
enfatizar o aspecto organizacional da escravidão, em forma de lidar com o espaço-tempo, conectando o nada como um bom ostracismo seja tão produtivo para,
sua relação com a propriedade da terra, o comércio e passado ao presente e futuro. Era uma monitoração da como indica o caso de Nabuco, que, marginalizado
o Estado, revendo outros modos de exploração que ação. Na modernidade latino-americana, a tradição pela proclamação da República, pôde dispor do lazer
marcaram a História, como a escravidão na Antigui- desempenha um papel de reconhecimento social: o suficiente para elaborar a obra cimeira da historiografia
dade Clássica. “A fortuna crítica de Nabuco superou a que somos e, a partir do espelho a nós apresentado do Segundo Reinado, Um estadista do Império. O Inte-
de seus contemporâneos, como Rui Barbosa e o barão pelas instituições políticas, o que faremos com nossa lectual que mergulha na vida política costuma ficar
do Rio Branco, o que pode ser atribuído, inclusive, à memória cultural. No contexto da modernização brasi- sem tempo suficiente e até sem gosto para registrar
sua atuação à frente da mais importante reforma sócio- leira, a tradição surge como plataforma de um discurso suas impressões e reações aos acontecimentos que
econômica realizada no Brasil, a Abolição, e também político proferido pelo Estado, que se torna brasileiro e se desenrolam ao seu redor”.
ao encanto de uma personalidade que fascinou os nacional ao defender a história seminal do seu povo. Por outro lado, seus diários, correspondências e
contemporâneos e fascina até hoje”, observa Evaldo. De certo modo, ao estudar, mesmo que no âmbito escritos avulsos, que contemplam, sobretudo, a ques-
Além dos seus antagonismos pessoais (Nabuco era macroeconômico, os desdobramentos da formação tão abolicionista, ganham interpretações à luz de sua
abolicionista e defensor da monarquia), o intelectual nacional, Joaquim Nabuco também não deixa de an- atuação como diplomata e jurista. Vale salientar, ainda,
destaca-se, assim como Freyre, pela biografia pessoal tecipar uma outra problemática recorrente ao longo do que Joaquim Nabuco é um dos últimos bastiões de um
singular. Filho de aristocratas de origem baiana, por- século 20: a interpretação das classes subalternas pela campo cultural, marcado pelo imbricamento entre os
tanto, dono de vastas terras e engenhos, Joaquim Na- elite econômica, o que será evidenciado em Gilberto gêneros literários e jornalísticos e a atividade política.

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ARTIGO

De Laura em No cinema, o título Laura é famoso a partir do filme


baseado na novela policial de Vera Caspary – que
Otto Preminger levou para a tela como uma das
Não foi atendido. Pelo menos as 138 fichas do
esboço de O original de Laura foram ciumentamente
(?) preservadas por Vera e Dmitri, respectivamente

Laura, a galinha
primeiras obras do gênero (“noir”) que pertence ao viúva e filho único de Nabokov, e, assim, a obra que
imaginário do século 20 tanto quanto outro nome o mago da literatura não tivera tempo de concluir
próprio feminino: “Lolita”. Este se tornou popular, adequadamente (aos menos para os seus rigores
desde um romance que igualmente virou filme e de perfeccionista) se transforma, dessa forma, em
também signo da pedofilia recuperada pela indústria livro que permite invadir a intimidade criativa de um

enche o papo
(“que recupera tudo”, segundo G. Deleuze citado por autor importante, na sua oficina literária no melhor
Glauber Rocha, sem aspear). sentido que eu posso encontrar para essa hoje gasta
Nomes, romances, filmes, vendas – estamos, tal- palavra “oficina”.
vez, numa sala de espelhos deformados de alguma É verdade que Vladimir também quis queimar
maneira. E a confusão dos tempos só aumenta, agora, o original de Lolita – mas isso é outra história. Nes-
O original de Laura retoma quando os preguiçosos que forem puxar as “Lauras”
literárias, no Google (atenção, estudantes: voltem
sa ocasião, Nabokov estava “vivo- e-bulindo”, e a
novela da ninfeta se encontrava terminada, com

a discussão sobre a quem a LER os próprios livros e não os resumos dos livros
na Internet!), encontrarem pelo menos duas delas,
o ponto final devidamente colocado, pelo autor,
naquela sombria investigação da alma solitária de

pertence uma obra póstuma


com duas auras diferentes, como aulas de estilos, Humbert Humbert, que se parece com todas as almas
faces e épocas diversas: a Laura de Vera Caspary e atormentadas pelo amor (qualquer tipo de amor),
a não muito “vera” Laura de um mago da literatura talvez como forma de afirmar a vida no lugar da
que usou tantas máscaras quanto o faraó Tuta no morte – mesmo que essa vida seja torta como o
Fernando Monteiro seu sarcófago devassado como uma das câmaras destino que eventualmente se pode dar aos originais
do Big Brother. de grandes escritores mortos.
O mago, é claro, é o russo emigré (ou, ainda, rus- Lembro o caso da publicação de Edgar Allan Poe & the
so-americano-suiço) Vladimir Nabokov, autor da juke-box: Uncollected poems, drafts and fragments, de Alice
obra-prima A verdadeira vida de Sebastian Knight, escritor Quinn, a respeitada editora de poesia do New Yorker.
que o pobre coitado do Sérgio Augusto de Andrade Desde que o livro foi lançado por Farrar, Straus &
(intelectual que terminou escrevendo o programa Giroux, com cerca de 120 trechos de textos não publi-
dos “Aprendizes” para o zombie Roberto Justus, cados por Elizabeth Bishop, correu solta a discussão
merecidamente) um dia escreveu – na antiga revista entre críticos e admiradores da poeta norte-mericana
Bravo (a boa revista da época do Wagner Carelli, e não
essa revista da Abril cruel todos os meses) – ser “um
escritor para amadores”...
Que idiotice. Nabokov podia ser tudo, menos um
“escritor para amadores” como sentenciou o gor-
dinho SAA, aprendiz de intelectual que deixemos
de lado, para voltarmos ao que interessa: o escritor
para (rigorosos) profissionais e leitores (encantados)
que é Nabokov.
Pois VN está de volta à primeira página dos ca-
dernos culturais, com obra póstuma – O original de
Laura – porém inacabada e temerariamente publicada
pelo espólio. E que “original” é esse?
Bem, o livro já se encontra nas livrarias brasileiras,
lançado aqui pela Alfaguara com a rapidez própria
das editoras atentas às polêmicas literárias. Acontece
que esse “original” é a publicação de um rascunho
que o escritor pediu para ser queimado após a sua
morte (como todas as outras fichas-cartão que ele
utilizava para o esboço de ficções).

FLÁVIO PESSOA/ FOTO:SXC

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— que publicou apenas 90 poemas em vida — contra da americana Elizabeth Bishop – colocava a auto-
editores defendendo a publicação dos manuscritos
e fragmentos (“Representam uma visão importante
exigência nos níveis mais altos possíveis. Dmitri
Nabokov desconsiderou isso e também os conse- Novos olhares?
sobre o processo criativo de Bishop, além de saciar
a sede por um pouco mais da sua magra produção”,
lhos de Brian Boyd, aclamado biógrafo do seu pai
e franco partidário da destruição das fichas, não só
Um tributo visual a Nabokov
disse Quinn). para cumprir com as instruções do escritor como O designer e instrutor da School of Visual
Elizabeth, famosa pelo rigor na composição de para preservá-lo do olhar do leitor sobre o material Arts John Gall convidou 20 designers de
poemas — que ela queria não menos que perfeitos, nabokoviano não-acabado etc. renome para elaborar e disponibilzar, no
recusando-se a publicá-los antes de dá-los por ple- Em vão. O espólio (leia-se: Dmitri, atualmente) foi site Design Observer (www.designobserver.com),
namente acabados — jamais permitiria a publicação em frente e vendeu os direitos do Laura embrionário novas capas para as obras de Nabokov, em
de tais rascunhos, conforme enfatizou Helen Vendler: de um artista que escreveu, na tradução da ópera comemoração (?) ao lançamento de Original
“Se a poeta tivesse sido consultada sobre a publica- Eugene Onegin (conforme citado por Sérgio Rodrigues): de Laura. O mote foi propor capas que se
ção, 25 anos após a sua morte, de poemas rejeitados, “Um artista deve destruir sem dó seus manuscritos assemelhassem a caixas entomológicas,
além de alguns rascunhos e fragmentos, Bishop teria após a publicação, para evitar que eles induzam me- recipientes que servem para colecionar
respondido, eu acredito, com um horrorizado não”. diocridades acadêmicas a pensar erroneamente que normalmente insetos. O autor russo era
Ainda segundo uma advertência de Vendler, é possível destrinchar os mistérios do gênio por meio ávido colecionador de borboletas, e a
“poetas contemporâneos temam uma Alice Quinn do estudo de versões abortadas. Na arte, a intenção e ideia era fazer de cada capa uma dessas
nas suas carreiras póstumas, e queimem todo o seu os planos não são nada; só o resultado conta”. caixas, com objetos efêmeros, papéis e
material ainda sem o acabamento final” – confor- Do outro lado do balcão, as falácias do mercado pinos metálicos, evocando o tema do texto.
me foi a preocupação de Nabokov, ao delegar o ato, editorial ávido por fazer caixa – com qualquer coisa – Abaixo seguem alguns dos resultados.
confiantemente, para a mulher e o filho. Bem, Vera apóiam, é lógico, o rebento recalcitrante (um bom
faleceu em 1991, e Dmitri, tradutor de romances, título para o Nabokov que imaginou títulos como Na outra margem

IMAGENS: DESIGN OBSERVER/REPRODUÇÃO


contos e cartas do pai, decidiu-se pela publicação de “O asfódelo duvidoso” e “Albinos de preto”) e, por da memória
inéditos como “O encantador”, um conto (escrito em fim, em negociações fúnebres com o Mercado que Michael Bierut
russo) que Nabokov detestava e julgava ter destruído. recupera tudo e mais alguma coisa. Alexis Kirsch-
baum, o editor da Penguin Classic responsável pela
FALÁCIAS DO MERCADO manipulação editorial dada às fichas originais do Laura
O que acaba de acontecer com o tal Original de Laura, de Nabokov, declarou que a atitude de Dmitri “é um
entretanto, é coisa tão mais atrevida quanto mais reconhecimento do desejo do público em conhecer
grave para o artista de origem russa que – a exemplo Vladimir Nabokov por inteiro e de que o material

É verdade que
Vladimir também A verdadeira
vida de Sebastian

quis queimar o Knight


Sam Potts

original de Lolita.
Nessa ocasião,
Nabokov estava
“vivo-e-bulindo”. Ada ou ardor:
Uma crônica de
deixado por um artista mediante sua arte não pertence família
nem ao próprio artista, nem à família, mas a todos”. Chip Kidd
Kirschbaum (poderia ser um cognome de Humbert
Humbert) não convenceu muita gente — e pelo menos
a revista New Yorker recusou publicar fragmentos dessa
“Laura” quase tão fantasmagórica quanto aquela do
livro/filme de Caspary/Preminger.
Em nossa opinião — e foi o que nos foi pedido aqui
— não há a menor justificativa para se dar à luz edi-
torial qualquer obra a que o autor não tenha dado o
acabamento final e indiscutível. No caso desse Laura
apenas esboçado por Nabokov, não adianta dizer que o O olho vigilante
livro se acha editado “com honestidade, trazendo (na John Gall
edição de luxo americana) os fac-símiles das fichas
cartonadas no topo das páginas acompanhadas das
transcrições abaixo” etc etc. Por mais comoventes que
essas fichas sejam — com inúmeras correções, marcas
de dedos e manchas de comida e outras manchas —,
o grande borrão que todas elas representam deveria
ter virado as cinzas de “tudo que é para se perder”,
fragmentos do fragmento, que são.
Porque Nabokov trabalhava justamente sobre isso —
isto é, sobre alguns nadas — para conferir às confusas
partículas da realidade uma coesão artística que só a
sua aprovação última, pessoal e final poderia garantir
como digna de ir, sombra de uma sombra, duplicar- Fogo pálido
se no espelho da mente, também confusa, de leitores Stephen Doyle
perdidos entre as dobras daquilo que lêm e vivem, em
igual confusão nas margens enfumaçadas do Real — rio
de águas turvas e claras sob manhãs e luares, Lauras e
lauréis literários que, no final, deveriam restar como
silêncio e interrupção de imagens, palavras, metáforas
e borboletas colecionadas (“cores que voavam”)...
Vladimir Nabokov não está nessa “Laura” senão
pela prova da imperfeição — e isso, para um entomó-
logo amador respeitado, é como deixar um espécime
raro identificado com graves erros, numa ficha não
queimada.

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PERFIL

DIOGO GUEDES

Depois, participou das seleções de misses apenas


como jurado. No entanto, demonstra menos em-
polgação com os eventos de hoje em dia. “Os con-
cursos de miss se vulgarizaram muito. Além disso,
são sempre as mesmas participantes, cada dia mais
feias”, desabafa. “Eu sou da época da high society”.
Inesperadamente, antes de ser jornalista, Fernan-
do trabalhou por algum tempo como operário, no
Departamento de Estradas de Rodagem. Pretendia
enveredar-se pela engenharia, mas acabou se desco-
brindo mesmo no jornalismo, que cursou na Univer-
sidade Católica de Pernambuco. Na instituição, teve
como colegas Ricardo Noblat e Orismar Rodrigues,
com quem manteve certa amizade.
Em 1971, entrou no Jornal do Commercio e, com o
tempo, tornou-se o braço direito de Alex, “uma
enciclopédia da sociedade pernambucana”. “Saí de
lá em 1996, no auge do jornal. Ninguém entendeu
o porquê”, relata, antecipando qualquer pergunta:

Fernando Machado
tem em casa uma
relação de todas
as misses que o
Brasil ja teve. “Os
concursos pareciam
partida de futebol”
“Quem me É no meio dos quadros de sua querida Marilyn Mon-
roe que o jornalista Fernando Machado se sente em
casa. Escolhe um sofá ali perto para a entrevista.
“Quer saber se eu me arrependo? Não. Eu aproveitei
e fiquei até 2006 só pesquisando sobre misses”.
Só até 2006, porque foi neste ano que iniciou a sua

ligou foi a miss


No centro da sala, uma mesinha lotada de papéis, coluna social online (fernandomachado.blog.br). Come-
livros e revistas é um pequeno prenúncio dos outros çou a pedido de um amigo. “Ele disse: ‘Fernando,
cômodos, verdadeiros depósitos de anotações à mão, você não pode ficar de fora do mundo das colunas.
fotocópias, recortes de jornais e fotos. Você escreve muito bem’. Eu expliquei que não sei
Explica-se: Fernando é um missólogo, um especia- mexer em computador, mas hoje eu administro o

Alagoas 1957”
lista no sofisticado mundo dos concursos de misses. site sozinho”, conta, com sua mescla de modéstia
Antes mesmo de começar a discorrer sobre o assunto, e exibicionismo.
ele prefere evidenciar os seus esforços, mostrando as O destaque do site são as diversas seções, que
pilhas de dados reunidos em um quarto de serviços. trazem notas comuns e novidades religiosas, con-
A coleção, bastante organizada, começa em 1900 sulares e militares, campos menos explorados por
Para o missólogo maior, e reúne, por exemplo, a revista Cruzeiro de 1949,
que relata como foi a primeira edição do Miss Bra-
outros profissionais. “A parte sobre misses faz muito
sucesso. Mas quando eu boto as fotos de homens

escrever um livro sobre o sil – antes, os equivalentes eram os concursos de


moda. A curiosidade começou na juventude, na
sem camisa é uma coqueluche!”, revela Fernando.
Nas coberturas sociais, uma das principais recla-

assunto seria vulgaridade


década de 1960, auge dos concursos: “Os desfiles mações do missólogo é a queda de qualidade, o que
eram um happening, tipo uma partida de futebol. leva as pessoas a enxergarem o cronista como alguém
Iam 28 mil pessoas para o Maracanãzinho ver a fútil: “Alguns até são, mas não eu. Se tocar uma
final”. Empina o nariz e se vangloria do resultado música erudita em uma festa, eu sei qual é”. Tirando
Diogo Guedes da investigação metódica: “Tenho aqui a relação a honrosa exceção de Danuza Leão, não esconde a
de todas as misses”. preferência por colunistas homens: “Nessa área, o
Apesar de outras finalidades já terem sido cogita- homem tem mais frescura que a mulher. Ele descreve
das, a função dos arquivos é basicamente pessoal: todos os detalhes insignificantes”, polemiza.
“Eu ia fazer uma obra a partir dessas anotações O blog, assim como o acervo, é a construção de
que eu tenho. Tinha até nome: ‘Nos tempos da um homem só, que presencia, redige, fotografa,
passarela’”. Por que o projeto não vingou? “Hoje edita e revisa. “Enquanto eu puder fazer colunismo,
está todo mundo escrevendo, o livro se tornou uma eu vou fazendo. Não ganho dinheiro com isso, mas,
coisa vulgar”, menospreza. se eu ficar em casa parado, eu entro em depressão”,
Durante a conversa, a boa memória vai enumeran- confessa Fernando. Mas ocupar-se não é a única
do misses. Martha Vasconcellos, Ieda Maria Vargas motivação. O prazer óbvio em ainda ser lido e poder
(“minha amiga, converso sempre com ela”), Martha tecer suas cuidadosas observações fica claro em cada
Rocha (“desenvolve um trabalho lindo com sua ONG pequeno enaltecimento: “As minhas amigas de mais
em Boston”), Sônia Maria Campos, Dione Oliveira, de 50 anos aprenderam informática só para acessar
Maria Edilene Torreão. Para cada uma, mostra uma o meu blog”.
foto do acervo. E vez ou outra tece comentários com Fernando parece sempre estar hesitando entre assu-
acidez: “Esta não era essas coisas todas”, “esta ficou mir definitivamente o papel de jurado crítico e discreto
horrível com o tempo”. Às mais próximas, não faz e o de uma glamourosa candidata a miss. De fato, ele
nenhuma ressalva. é uma pessoa simples – um pouco, como afirma, “do
O gosto pelo assunto o levou, em 1988 e 1989, a tempo em que jornalista não era notícia”. Ao mesmo
organizar o Miss Pernambuco junto com o colunista tempo, não esconde a satisfação em se narrar, com
social Alex, feito que lembra com orgulho. “Elege- modéstias em suas palavras e elogios nas dos ami-
mos a primeira miss negra do Estado, Ana Maria gos. Talvez se trate apenas de um missólogo – em toda
Guimarães”, conta Fernando. Na época, nenhum possibilidade pitoresca da especialidade – que ainda
dos grandes clubes locais quis aceitá-la como sua preza pela sofisticação em um mundo vulgar. Alguém
representante. Quem acabou bancando a candida- que deixa escapar tal frase numa conversa, como se
tura foi o humilde Clube Rodoviário. “Foram dois fosse um comentário sobre o clima: “Ontem quem me
concursos lindos!”. ligou foi a Miss Alagoas de 1957, só para conversar”.

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QUADRINHOS

DIVULGAÇÃO

Crumb criou O norte-americano Robert Crumb é considerado um


dos pais da contracultura e um dos mais conceituados
artistas mundiais da nona arte, as chamadas histórias
Antigo Testamento, sem em momento algum alterar ou
desvirtuar o texto sagrado. O que não significa dizer que
a obra deixará de ser polêmica: exatamente por ater-se

o céu, os mares
em quadrinhos. Personagens como Fritz, the Cat. Mr. ao texto, o autor teve material suficiente para rechear
Natural, Angelfood e Devil Girl marcaram época e se o livro com situações reprováveis e cenas sexuais con-
tornaram sinônimo de critica à sociedade conservadora testáveis, algumas delas totalmente inconcebíveis para
e consumista. Criados e amplamente cultuados nos um “bom cristão” da atualidade. É o caso do Capítulo
anos 1960 e 1970, auge do movimento flower-power, 19, em que as duas filhas de Ló, que escaparam com

e a Terra
suas “criaturas” exalavam rebeldia, comungavam ex- ele de Sodoma e Gomorra, resolvem embriagar o pai
periências alucinógenas e pregavam a liberação sexual para manterem relações sexuais.
e a revolução dos costumes. Algumas passagens sobre Abraão e sua mulher
Mulheres exuberantes e libidinosas eram, quase Sara também provocam impacto. Por diversas ve-
sempre, personagens centrais das tramas de Crumb, zes, acossado pelos inimigos, o patriarca de todos
O polêmico quadrinista que também contavam com doses maciças de drogas
e rock’n’roll. Com seus traços marcados, grotescos,
os patriarcas, com medo de morrer, disponibiliza a
mulher ao inimigo. Justo, Deus castiga e fulmina os

americano empresta seu pesados - muitas vezes consequência direta do con-


sumo de alucinógenos - suas historias se tornaram
que tentam molestar Sara. Jacó, filho de Abraão, que
seria conhecido depois como Israel, também apronta

traço ao texto do Gênesis


sinônimo de sexo indiscriminado, orgias, liberdade das suas, só que com o irmão Esaú. Aproveitando-se
e irreverência. Totalmente contraindicados para os da fragilidade do pai, prestes a falecer, e com a ajuda
que amavam o establishment e a religião tradicional. da mãe Rebeca, engana-o para receber a benção e os
Causou surpresa, portanto, o anúncio de que o autor favores divinos, que por direito pertenciam ao pri-
Danielle Romani — que aos 66 anos continua célebre pelos comentários mogênito. Mesmo errado, se dá bem. Quem quiser
ácidos e rebeldes - vinha se dedicando à ilustração conferir, é só procurar na Bíblia.
e adaptação do Gênesis, primeiro dos Livros Sagrados do Aclamada como a melhor HQ de 2009, Gênesis
Antigo Testamento. A convicção geral era de que o artista, foi produzida em quatro anos, e mostra, de fato,
com seu passado gauche e sua temática pouco con- um autor maduro, no auge da sua forma, com um
vencional, certamente criaria uma versão herética traço bem mais realista e detalhista do que nas dé-
do texto bíblico. cadas passadas, quando traçava personagens quase
Mas não foi o que aconteceu. Para surpresa de quase caricatos. Cético, apesar de católico de formação,
todos, de seu público em especial, Gênesis, álbum de Crumb mostra com crueza as origens da formação
220 páginas, se atém, palavra por palavra, cena por da sociedade judaico-cristã. Uma historia, diga-se
cena, ao texto, com algumas pequenas modificações de passagem, que reflete as brigas entre as tribos da
de linguagem, motivadas mais pela versão bíblica a época, o desdém à mulher — lembremos que o ma-
que teve acesso e ao uso dos textos originais do Torá, triarcado somente há pouco havia sido suplantado
livro sagrado judaico. pelo patriarcado — e uma fome enorme de poder,
No prefácio da primeira edição, que teve lança- em que irmão devora irmão, pai devora filho, na
mento mundial, o próprio Crumb — que há mais de qual se comete incesto, adultério, assassinatos e
uma década se auto exilou na França — alerta aos que sacrilégios em nome de Deus. Dura, mas o registro
esperavam sátiras ou subversão às escrituras. “Re- dos primórdios da nossa sociedade.
produzi fielmente cada palavra do texto original, que
tirei de várias fontes, incluindo a Bíblia do Rei James,
mas sobretudo a recente tradução de Robert Alter do O LIVRO
Pentateuco (The five books of Moses, 2004). Em alguns raros Gênesis
trechos me aventurei em pequenas interpretações Editora Conrad
próprias, quando considerei que as palavras poderiam Páginas 220
ser ditas de maneira mais clara. Mas me abstive de ser Preço R$ 49,90
indulgente nessa ‘criatividade’”. Pura verdade.
Versículo por versículo, capítulo por capítulo, Crumb
faz uma adaptação precisa do primeiro capítulo do

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INÉDITOS

A construção do abismo
Thiago Corrêa

Cansado com o de cachaça seria a


presente, disse resposta mais con-
não ao futuro que vincente. Depois da
lhe aparecia no ho- quinta tequila, per-
rizonte. Protestou, guntou a um velho
cruzou os braços, fez sentado ao balcão o
cara de brabo, deixou que esperava do futuro.
a barba crescer. Inter- O sorriso frouxo
rompeu a construção combinado com o olhar
da ponte que lhe levaria enxaguado da resposta, fi-
a algum lugar. Sentou na zeram ele pedir desculpas.
beirada da obra incomple- O cheiro azedo da velhice
ta, com as pernas suspensas denunciava a falta de tempo
no ar do abismo do nada, e para um futuro. O velho disse
esperou a lua nascer. Acredi- estar tudo bem e, querendo
tava que junto com ela, do mar amenizar o desconforto do bê-
prateado, surgisse outro destino. bado, puxou papo, contando-
Não veio. Na claridade do lhe histórias da juventude. Foi
luar, viu-se como alguém sem diante das rugas do novo amigo
futuro. Procurou um no ho- que percebeu seu erro. Olhava
róscopo, recorreu aos orixás e para o lado errado.
classificados. Nada. Orgulhoso Puxou na memória alguma
demais para reaver seu destino, coisa relevante para falar ao
foi condenado a ser uma des- velho, lembrou da época da fa-
sas almas sem esperança, que culdade, do colégio, da infân-
perderam o bonde da vida e se cia. Falou de cachaças, viagens,
transformaram em escravos do mulheres, filmes e livros. Dos
presente. Estava no corredor últimos três anos, porém, tudo
da morte, afundado no sofá do o que encontrou foram duas
tempo, esperando virar passado. linhas no currículo. O resto já
SOBRE O AUTOR
Já entediado, em frente à tele- deveria estar no lixo, aquecen-
Thiago Corrêa é visão, decidiu ser um decadente do mendigos ou servindo para
jornalista, escritor e de verdade. Desceu ao boteco limpar janela.
faz parte do grupo da esquina, achando que tal- De repente, viu-se na ponte
literário Vacatussa (www. vez assim pudesse justificar o construída com entulhos de se-
vacatussa.com) peso da sua decisão. Quando lhe gundos e palavras, parado rente
questionassem porque desistira ao abismo, encarando seu futuro
da carreira promissora, o bafo do pretérito. Deu um passo.

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História, ciência e atualidades
em bons livros

DICIONÁRIO COROGRÁFICO, ADMINISTRAÇÃO A ECONOMIA AÇUCAREIRA


HISTÓRICO E ESTATÍSTICO DE DA CONQUISTA José Antônio Gonsalves de Mello
PERNAMBUCO José Antônio Gonsalves de Mello O livro aborda a produção açucareira
Sebastião de Vasconcellos Galvão
Neste trabalho acerca do Brasil de Pernambuco – base do sistema
holandês, José Antônio Gonsalves de econômico no Brasil holandês –,
Publicados em 1908, 1910, 1922 e 1927,
Mello supera seu poder de síntese e de cujos 149 engenhos vieram a atingir,
os volumes do Dicionário Corográfico,
historiógrafo, fazendo um esboço da em 1641, a produção de 447.562
Histórico e Estatístico de Pernambuco, de
organização das terras conquistadas arrobas, e discute o engenho como
Sebastião de Vasconcellos Galvão,
pela Companhia das Índias Ocidentais. comunidade autônoma.
ganharam reedição sob a coordenação
de Leonardo Dantas. R$ 25,00 R$ 25,00

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HISTÓRIA DA GUERRA DIÁRIO DE UM SOLDADO O VALEROSO LUCIDENO


DE PERNAMBUCO Ambrósio Richshoffer Frei Manoel Calado
Diogo Lopes Santiago
OLINDA CONQUISTADA Os dois volumes englobam uma
É um testemunho pessoal de Pe. João Baers extensa bibliografia sobre o Brasil
Diogo Lopes Santiago, que residia holandês, e contêm o testemunho
em Pernambuco à época da Coletânea sobre o período do Brasil do frei Manoel Calado do Salvador,
invasão holandesa e ao início da holandês, apresenta as obras de um contemporâneo e participante da
Insurreição Pernambucana, em Ambrósio Richshoffer e do Pe. João ocupação holandesa no Nordeste.
crônicas e diários, resultando Baers. Duas visões de um mesmo
numa narrativa minuciosa. momento histórico, descrevendo o dia R$ 25,00 (unid.)
a dia do domínio holandês no Brasil.
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O CASO EU CONTO DOM HELDER – CIRCULARES MARCO ZERO


COMO O CASO FOI CONCILIARES E CIRCULARES Alberto da Cunha Melo
Paulo Cavalcanti INTERCONCILIARES
Luís Carlos Luz Marques O jornalista e poeta pernambucano
Composta por quatro volumes, e Zildo Rocha (Org.) Alberto da Cunha Melo assinou
a obra, que tem como subtítulo a coluna Marco Zero, na revista
geral Memórias Políticas, Em cerca de 600 cartas, Dom Continente, sobre questões culturais.
narra as experiências de Paulo Helder Camara expõe suas ideias Este livro é uma coletânea de seus
Cavalcanti dentro do contexto e relata sua atuação nos bastidores melhores momentos.
sociopolítico que vai da Coluna do Concílio Vaticano II, que levou a
Prestes ao fim da ditadura. Igreja latino-americana a assumir R$ 24,00
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EÇA DE QUEIROZ – O GIRASSOL A NOITE SEM SOL
AGITADOR NO BRASIL Garibaldi Otávio Luiz Arraes
Paulo Cavalcanti
(edição em inglês e Garibaldi Otávio estreia Em seu novo livro de
português) na literatura com o livro narrativas, Luiz Arraes fala
O girassol, coletânea de de seres urbanos solitários,
Eça de Queiroz, agitador no textos de toda uma vida. às voltas com a violência e
Brasil, de Paulo Cavalcanti, Mauro Mota observava, o sentimento de perda, e,
é um livro que amplia a já em 1950, que a poesia também, em busca de um
visão da última revolta de Garibaldi Otávio sentido para suas vidas.
em Goiana, província tem “a imagística sem São contos curtos, duros e
de Pernambuco, Brasil, parentesco, o descritivo afiados, que deixam marcas
ao examinar a maneira mas penetrante, tirando na consciência do leitor.
como os pernambucanos sangue do íntimo das
reagiram contra o arbítrio e coisas”.
o domínio português.

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INÉDITOS Sutilezas Sutilezas Sutilezas Sutilezas

Sutilezas
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João Paulo Parisio

I II
O certo é incerto.

A realidade é mitológica. Quero a doce incompreensão de um passarinho,


que é uma funda compreensão sem ninho.
Palavras são poliedros impossíveis [encomendar
a Escher]. Disto de mim
inumeráveis milhas.
A gramática é elástica.
Eu negocio com palavras,
O significado é cambiante. disse o poeta ao mercador.

A ambiguidade é pendular. Nada é visto impunemente,


tudo entra no amálgama do olho.
A verossimilhança é relativa.
Por um lado o pensamento é o facho,
A beleza é indomável. por outro a neblina.

O critério da correção é um equívoco. O que são as entrelinhas?


Poros por onde o texto respira.
A televisão nos deixa chatos como platelmintos.
Levo comigo
A eletricidade mandou a noite para o exílio. meu enxame de delírios.

As eras são cumulativas. Preciso da solidão


como a baleia do hausto.
A sociedade é secreta.
Os cartões postais de minha cidade
As cidades são cenográficas. são a casca fina de um dente apodrecido.

As civilizações são indígenas. As nuvens são permanentes,


as montanhas são temporárias.
Fazer a barba é destruí-la.
Respostas dão perguntas novas.
Toda criança tem a ideia genial de não engolir o gole. A ignorância é uma hidra.

A realidade é um monopólio. Nenhuma civilização dura mais que um dia.


Tudo passa com o vento da história.
Ricocheteio dentro de mim.
Os reinos passam
As mulheres são simbolistas. e se transformam em sabedoria.

Deus é uma palavra. Capturo teu olhar


num cristal de memória.
Os demônios somos nós.
SOBRE O AUTOR
Se tudo te irrita,
João Paulo Parisio é Nossos silêncios são plantas verbívoras. é o nada que te assola.
escritor, autor da peça O
holofote e do livro Fadário Não há dinheiro no Paraíso. Choro à porta do impenetrável,
e mantém o blog http:// que está escancarada.
parisio.blogspot.com A eternidade é uma coisa fresca.
Crepúsculos são cataclismos.
Atear é tecer o fogo. Todos os dias a realidade se imola.

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III IV
Derrubo palavras no papel:
as que se desequilibraram
no cesto cheio de silêncio. Meu pensamento atônito
não sabe para onde ir
Posto que o olho é o prisma na encruzilhada vertiginosa
a coisa que vê das picadas abertas.
não se distingue da que é vista.
Ponha duas palavras juntas
De repente o dia se apagou e elas imediatamente conversam
e esperou pela noite. como duas senhoras que se conhecem
O pombo virou silhueta. na sala de espera do consultório médico.

Escreve um conto Há coisas que não podem ser explicadas,


como quem abre uma senda modesta apenas entendidas;
em meio à floresta densa de enigmas. há coisas que não podem ser ensinadas,
apenas aprendidas.
Visto de fora o ônibus lotado
parece uma pintura de Arcimboldo, Sempre que a uma freada mais brusca de ônibus,
de dentro uma multidão de abismos. alguém pergunta se o motorista está levando gado,
me dá vontade de dizer que sim,
Como os pormenores são infinitos, mas ele também está sendo levado.
todas as frases são incompletas
e a elipse, compulsória. Li “O velho e o mar” em três vezes.
Na segunda delas, acreditei que a realidade
Eu sou dois; se abriria diante de meus olhos
tu, não mintas, como o Mar Vermelho.
também sois.
Hoje o vento soprou tão forte
Todas as palavras são descosidas. que uma velha de cabelos enfunados
É a agulha do olhar que as costura ensaiou o primeiro passo
com a linha da memória. de um passarinho que levanta voo.

Somos pelo menos dois: Quanto mais se aprofunda o dia


um que pensa estar no controle há mais tempo estamos em nossa companhia
e outro que controla esse primeiro. até que o sono vem e nos avisa
quando é preciso descansar de nós.
Se Deus existe
eu acho que ele ri, incrédulo, O instante em que nasci
de quem acredita Nele. é o instante de minha morte.
Fui eu que deslizei sobre ele
Darwin tinha um rosto simiesco. e a isso chamei passar do tempo.
Teria tido ele a inspiração maravilhosa
ao surpreender seu olhar no espelho? Bracejo no mar da dúvida.
A ignorância é de noite.
Assim como o uísque só pega depois de algumas doses, Caminho sobre a Terra antiga
o romance só pega depois de alguns capítulos. como se ela fosse de hoje.
O conto é uma lapada de cana.
O dinheiro é o manto da visibilidade.
Eu filosofo como quem dança, Basta tomar um cafezinho na Kopenhagen
a poesia é uma espécie de vidência, para as mulheres ao passar olharem
a fantasia uma forma de vingança. como se fôssemos feitos de chocolate.

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RESENHAS
BEL PEDROSA/DIVULGAÇÃO

Nunca subestime O passado é um


fantasma. No caso de
Antes de nascer o mundo,
pessoa é o de Mwanito, o
filho caçula.
Sem passar incólume
só não imaginava
tropeçar na mais simples
das questões: não há
Revelações e regressos), Antes
de nascer o mundo possui a
prosa da sensibilidade e

o potencial de
é mais do que isso. É o pela loucura paterna, o como apagar as marcas sua literatura consegue
guia dos personagens, menino logo nos explica do passado. ter também a força de
o que faz a engrenagem o que sabe de seu novo O pequeno Mwanito, uma obra marcada pelo

uma lembrança
funcionar. No livro do universo: “Meu velho, entretanto, traça rota poético. Entre o onírico
escritor moçambicano Silvestre Vitalício, nos oposta à do pai: quer suas e o real, Mia Couto
Mia Couto, todos são explicara que o mundo memórias frente a frente investiga este fantasma
afetados pelo que já terminara e nós éramos consigo mesmo. Tem chamado passado, com

O escritor moçambicano Mia se viveu de alguma


maneira. Uns sentindo-
os últimos sobreviventes.
Nessas longínquas
direito a elas.
O abismo de
belas passagens sobre do
que é feita a memória e
Couto desvenda o peso dos se transtornados
pela impossibilidade
paragens, até as almas
penadas já se haviam
lembranças do filho
caçula é pautado pela
do que ela é capaz.

fantasmas entre pai e filho do regresso; outros,


querendo anular o
extinto”. Mas seria
mesmo a insanidade
ausência materna.
Quando Dordalma
vivido. o fator preponderante morreu, Mwanito tinha
Guilherme Carréra Assombrado pela nas ações desse pai não mais que três
morte da esposa, autoritário ou seu anos. Desse tempo,
Silvestre Vitalício, um desfacelamento diante só consegue lembrar-
patriarca misógino, do mundo teria outras se da voz da mãe. Ao
carrega os dois filhos para razões? perguntar ao pai se
uma terra distante, alheia Mia Couto, a partir o mesmo não tem
ao mundo em que, dias dessa pretensa loucura, memória de Dordalma,
antes, os três habitavam. descortina uma história ouve: “Nem dela, nem
O lugarejo, dissociado de impossibilidades. da casa, nem de nada.
de qualquer memória Silvestre quer esquecer Já não me lembro de
que o trio pudesse vir a e, por isso, adentra as nada”. É fato que a busca
ter, recebe o batismo de estradas africanas, em por explicações sobre ROMANCE
Jerusalém. E também uma fuga desatinada. a morte de Dordalma
aos herdeiros Silvestre Fuga essa, no entanto, vai determinar todo o Antes de nascer o mundo
dá novas graças. Embora que falha. Ora, de quem desenvolvimento da Autor: Mia Couto
seja ele quem dite as ele foge? No intuito de narrativa. Editora: Companhia das Letras
viradas na trama, o olhar se desvencilhar da vida Dividido em três livros Páginas: 277
narrativo em primeira pregressa, o personagem (A humanidade, A visita e Preço: R$ 42
KARINA FREITAS

LANÇAMENTO 1

Editora Moinhos de Vento chega para dar espaço a


autores estreantes e para reeditar clássicos
O mercado editorial de revista Crispim e professor
Pernambuco começa o ano universitário Fábio Andrade
de 2010 com uma novidade: e a escritora e artista plástica
o lançamento, ainda em Júlia Larré são os responsáveis
janeiro, do selo Moinhos pelo empreendimento.
de Vento, que chega para A proposta é editar livros
dar voz a jovens autores artesanais, principalmente
sem apelo midiático. Outro de poesia e pequenos contos,

NOTAS objetivo da nova editora, que


é totalmente independente, é
em tiragens de cerca de 50
exemplares, com até 20

DE RODAPÉ
resgatar autores do passado, páginas, que serão vendidos
que não têm o merecido em livrarias e sebos a preços
reconhecimento. O editor da acessíveis.

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2010

REPRODUÇÃO REPRODUÇÃO

PRATELEIRA
MAQUIAVEL – POLÍTICA E RETÓRICA
O autor analisa as condições para o exercício
e manutenção do poder político, na perspectiva
do historiador, poeta, diplomata e músico italiano
Nicolau Maquiavel. Considerado o pai da política
moderna, Maquiavel pregava que era impossível
dispensar o uso da força para se conseguir
instituir um Estado, e que para se conservar no
poder o homem precisa ser capaz de articular
todo um jogo de aparências e manipulação. O xis
da questão, para o autor, é
constituir o espaço em que o
governante possa exercer a
sua ação política.

Autor: Helton Adverse


Editora: UFMG
Páginas: 375
Preço: R$ 49

O CARA
Ainda no rastro das comemorações do Ano da
França no Brasil, a editora SM abriu espaço para
a literatura infantil e juvenil francesa. A história,
que integra a coleção Comboio de Corda, tem

Ensaios literários Mulheres apaixonadas a forma de um diário manuscrito, em páginas


quadriculadas, repletas de ilustrações, e mostra
que reagir com violência não é a melhor resposta
Você sabe o que é No livro aparece ainda um Depois de preso, o apesar de nem sempre ser para os problemas, e que é possível superar o ódio
“adultério, biombos e ensaio que Anco escreveu Maníaco do Parque não utilizado. O destaque é a exercitando a tolerância. A ilustradora é a francesa
demônios”? Assim mesmo, para este Pernambuco a parou de receber cartas de parceria em quadrinhos Fabienne Cinquin,que mistura aquarelas e
tudo junto, de uma vez respeito de documentários, amor. O Bandido da Luz com Fido Nesti, quando colagens em cores fortes, que se confundem com
só? Misturado? Sabe não? enfocando Cartola, de Lírio Vermelha, mesmo idoso, a experiência pessoal o texto. A tradução
Pois Anco Márcio Tenório Ferreira e Hilton Lacerda. ainda despertava paixões do repórter é sentida é de Marcos Bagno.
Vieira sabe, e muito bem, Sem esquecer os nossos e fantasias nas mulheres. perfeitamente, lembrando
tanto que colocou essas Carlos Borromeu e Marcus Curioso com esses fatos, as narrativas jornalísticas Autor: Philippe
palavras como título da Accioly. (Raimundo Gilmar Rodrigues foi tentar de Joe Sacco. (Diogo Barbeau
sua nova obra. Competente Carrero) entender o motivo de Guedes) Editora: Edições SM
e rigoroso, o professor tamanha popularidade de Páginas: 48
do Departamento de serial killers e criminosos Preço: R$ 30
Letras da UFPE acaba sexuais.
de publicar livro em Para Loucas de amor, o
que aborda todos esses jornalista fez uma extensa MACHADO PARA JOVENS LEITORES
temas, com o subtítulo: pesquisa. Visitou presídios, Quatro professores de literatura organizaram
Ensaios sobre literatura, teatro frequentou filas de visitas, a antologia, com o objetivo de estimular
e cinema, assuntos em que leu correspondências e jovens leitores a se aproximarem da literatura
é especialista. É claro que procurou especialistas do bruxo do Cosme Velho. São textos
todos nós conhecemos no assunto. O material representativos das diversas fases e de todos
esse universo, mas não coletado inclui pequenos os gêneros visitados pelo autor, incluindo
com a profundidade com perfis das “amásias”, poesias, contos, crônicas, correspondência,
que ele trabalha. Assim, como são chamadas as peças teatrais e até um trecho do discurso de
o leitor vai do teatro de namoradas de criminosos, inauguração da Academia
Clarice Lispector (foto), de quem saem os melhores Brasileira de Letras.
tão pouco falado, até ao ENSAIOS relatos sobre esse estranho QUADRINHOS
agressivo texto de Afonso amor, como: “Aqui dentro Autor: Miguel Souza Tavares
Arinos de Melo Franco Adultérios, biombos e demônios eles nos tratam que nem Loucas de amor Organizadores: Ana Cristina Chiara,
comentando Casa grande & Autor: Anco Márcio Tenório Vieira rainha”. Autor: Gilmar Rodrigues Antônio Carlos Secchin, Denise Bra-
senzala, de Gilberto Freyre, Editora: Bagaço Esse contato direto com Editora: Ideias a granel sil e Ivo Barbieri
passando por importantes Páginas: 191 as personagens é o que Páginas: 160 Editora: EdUERJ
autores pernambucanos. Preço: R$ 30 deixa a obra envolvente, Preço: R$ 32 Páginas: 184
Preço:R$ 35

GRAFOLOGIA EXPRESSIVA
O autor descreve as origens da grafologia,
revela o surgimento de novos estudos e
LANÇAMENTO 2 CONCURSO MANDARIM indica os caminhos para se traçar um perfil
psicológico com base na maneira de escrever.
Lançamento coletivo é a Estudantes reinventam Literatura chinesa Em segunda edição – revista, atualizada e
proposta da nova editora obra de escritor baiano traduzida no Brasil ampliada –, a obra traz novas terminologias
das escolas italiana e francesa, e oferece
Moinhos de Vento estreia com Reinventar Jorge Amado é Comemorando um ano do Instituto um panorama da ciência. O autor analisou
o lançamento de três livros. desafio para jovens da 8ª e 9ª Confúcio na Unesp, a editora quinze mil textos em suas pesquisas e
Dois deles fazem parte da série séries, lançado pelo Ministério da Universidade Estadual de selecionou mais de duzentos exemplos das
Catavento: Poeira de Chipre, com da Cultura, Companhia das São Paulo vai lançar em 2010 a novas considerações
poemas de Felipe Aguiar, e Arete, Letras e Volkswagen do Brasil. Os tradução de clássicos da literatura da grafologia, técnica
um breve conto de Cristhiano alunos podem inscrever vídeo, chinesa, começando com Os que ganha força entre
Aguiar. O terceiro livro é Noite de ilustração, conto ou crônica, sobre anacletos de Confúcio. O Instituto é os adeptos do auto-
véspera, com poemas de Júlia Larré. a vida e obra do autor baiano, de fruto de convênio com o governo conhecimento.
Para Abril está programado o 15 a 31 de março de 2010. Além da República Popular da China e
lançamento da coleção Flores do de dinheiro, os três primeiros a Universidade de Hubei, que vão Autor: Paulo Sérgio de Camargo
Mal, que resgata a obra de Agripino colocados receberão livros do lançar, em mandarim, A Formação do Editora: Ágora
da Silva, poeta simbolista recifense escritor. O regulamento está nos império americano, do cientista político Páginas: 320
do início do século 20. sites dos promotores do concurso. Luiz Alberto Moniz Bandeira. Preço: R$ 73

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CRÔNICA
Fabrício Carpinejar
KARINA FREITAS

Por_que_o_Twitter? Porque os anéis são a velhice dos


brincos.
Porque os pássaros
desaparecem de noite.

Porque o Twitter é a lápide do Porque todas as informações Porque o gemido é a alegria da Porque o canto do galo é
trivial. importantes cabem num rótulo dor. apenas seu grito dentro do
de cerveja. pesadelo.
Porque é educado avisar que Porque os gatos são câmeras pela
não estamos no corpo e que já Porque a grande obra passa a casa. Porque os filhos podem fechar
voltamos. sensação de ter sido feita num seu quarto a qualquer hora.
final de semana. Porque um bilhete de suicida tem
Porque devolvemos os peixes que ser escrito todo dia. Porque sempre arrumamos
pequenos ao mar. Porque a boa ação me deixa mais uma despedida para festejar o
envergonhado do que o pecado. Porque quando uma amiga está retorno.
Porque sou conciso desde que interessada em mim sente culpa
assobiei. Porque a paixão não tem e pergunta sobre a namorada. Porque um fio de cabelo
memória, não vai me prevenir de outra cor termina um
Porque deixo reverências ao para a próxima. Porque olhar é julgar as palavras casamento.
crepúsculo, que pode vestir e perdoar as aparências.
árvores. Porque amar é conhecer Porque guardamos o papel-
desconhecendo. Porque a geladeira vazia tem presente para embrulhar a
Porque o palavrão é curto e o mais luz. mudança.
medo é rápido. Porque odiar é desconhecer
conhecendo. Porque não nasci o suficiente Porque há livros que nunca
Porque a preguiça é longa e para emprestar nascimentos. serão lidos e sempre citados.
precisa de poucas palavras. Porque o que é bonito assusta,
como a tempestade. Porque o samba está numa caixa Porque o sonho dos
Porque não sei dizer bom dia de fósforos. pirilampos é dormir de luz
sem perguntar o que minha Porque um vizinho nunca será apagada.
mulher sonhou. seu leitor. Porque não há como chorar sem
fungar. Porque a humildade do
Porque não sei dizer boa tarde Porque jazigos não podem ser narcisista é conversar com o
sem perguntar o que minha alugados. Porque fumar é o telhado do megalomaníaco.
mulher almoçou. suspiro.
Porque meu pai tinha mais Porque escrever não é desistir
Porque não sei dizer boa noite segredos no escritório do que Porque as formigas ruivas são de falar, é empurrar o silêncio
sem rezar por ela. janelas. terra transparente. para fora.

Porque o espelho do feio é o Porque é um modo de curar a Porque quando finalmente Porque o romancista pode
retrovisor do carro. paranoia, realmente estão nos entender o corpo feminino não errar, o poeta deve errar.
seguindo. terei mais corpo.
Porque em toda carteira há um Porque não preciso de mim
vale a ser descontado. Porque nos perdemos para Porque a esquina é o cotovelo da para ser feliz.
despistar o passado. rua.

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