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ESTUDO

DA OBRA
NÓS MATAMOS O
CÃO TINHOSO!

Prof. Paulo Lobão – 3º ITA/IME


Português
Prof. Paulo Lobão
Módulo de Estudo da Obra

Sumário

Sobre o autor .................................................................................................................................................... 5


Obras do autor .................................................................................................................................................. 6
Prêmios ............................................................................................................................................................ 6
Contexto histórico, político e literário ............................................................................................................. 6
Considerações gerais sobre a obra Nós matamos o Cão Tinhoso! ................................................................... 7
Resumos dos contos ......................................................................................................................................... 8
Nós matamos o Cão Tinhoso! .......................................................................................................................... 8
Inventários de imóveis e jacentes. .................................................................................................................. 10
Dina ................................................................................................................................................................ 11
Bibliografia .................................................................................................................................................... 25
Anexos....................................................................................................................... .........................................26
Exercícios................................................................................................................... ........................................30

NÚCLEO CENTRAL NÚCLEO ALDEOTA NÚCLEO SUL NÚCLEO EUSÉBIO NÚCLEO SOBRAL
(85) 3464.7788 (85) 3486.9000 (85) 3064.2850 (85) 3260.6164 (88) 3677.8000

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MÓDULO DE ESTUDO DA OBRA “NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!”

Luís Bernardo teve em quem inspirar-se. O pai, além


PROFESSOR PAULO LOBÃO de intérprete na administração colonial, era um grande leitor
e acompanhava, já nos anos de 40, 50 e 60, a política
internacional, trocava livros com amigos e era assinante de
revistas. Pela sua inteligência, Raul Bernardo Honwana era
muito respeitado, quer no trabalho, quer noutros setores
sociais. Aliás, naquele contexto discriminatório dos meados
do século XX, muitos portugueses analfabetos batiam a
porta dos Honwana, à noite, para pedir que Raul Bernardo
lesse-lhes cartas e/ou escrevesse aos seus familiares em
Portugal.
Aos 17 anos, para completar os estudos, Luís Bernardo
Honwana foi para Maputo. Formou-se em jornalismo.
Participou de atividades jornalísticas, culturais e políticas, o
que lhe proporcionou o contato com o meio intelectual da
época dominado por europeus. O autor era amigo de
Craveirinha, com quem, além de animar a cena intelectual
de Lourenço Marques (Maputo), dividiu a experiência da
prisão política, que se deu no período de 1964 até 1967.
Sobre essa prisão, o próprio Honwana explica que não teve
muito a ver com a atividade literária, mas política, de fato:
“A publicação do livro gerou muita polémica em
Moçambique, mas não creio que a minha prisão tenha
directamente a ver com os meus escritos. O livro só teve a
sua circulação “desencorajada” pelas autoridades coloniais
muito mais tarde, em 1965, após o fechamento em Portugal
da Sociedade Portuguesa de Autores, na sequência da
premiação do "Luanda" de Luandino Vieira.”
Em 1964, tornou-se militante da Frente de Libertação
Autor: Luís Bernardo Honwana de Moçambique (FRELIMO), criada há dois anos, sob
liderança de Eduardo Mondlane, que tenta evitar o
1. Sobre o autor confronto armado com o Colonizador. Mas diante da recusa
de Portugal em conceder a independência, inicia-se a guerra
pela libertação de Moçambique que durou cerca de dez anos
(1964-1974).
No mesmo ano em que foi preso, publicou a obra Nós
Matamos o Cão Tinhoso (1964), em que fez um retrato
diversificado e abrangente da sociedade colonial dividida
predominantemente em dois polos: colonizador/branco e
colonizados/negros, mas integrada por árabes e indianos que
também compõem o corpo social moçambicano. E, por fim,
desvendou a dinâmica dessas relações quase sempre
conflituosas.
Além do curso de Jornalismo, Honwana tem formação
em Direito, Pintura e Cinema, também foi um exímio atleta.
Viveu sempre como cidadão dos dois mundos presentes em
Moçambique, caindo num “verdadeiro caldo cultural”.
Pode-se concluir que a militância de Honwana vem de
família, pois seu avô participou na organização do
Filho do casal Nely Nyaka e Raul Bernardo Honwana, movimento da África do Sul, dirigido mais tarde por
Luís Bernardo Honwana, também conhecido como Ginho, Mandela. Em Moçambique, o pai do escritor foi um dos
nasceu em Lourenço Marques em 12 de novembro de 1942. primeiros presos políticos moçambicanos, o que justifica sua
Vivendo em Moamba, Raul Bernardo Honwana, pai do tendência à militância. Honwana publicou Nós Matamos o
escritor, trabalhava como intérprete na Administração. A Cão Tinhoso! em 1964, aos 22 anos. Será, então, que
língua materna de Luís Bernardo foi o ronga. No entanto, à
poderíamos considerar sua escrita, conforme Chabal, como
medida que foi crescendo, aprendeu também o português.
A uma certa altura, antes de iniciar a escola, os pais de “circunstância” e tratá-lo como um escritor que tem sua
passaram a falar com ele e com os irmãos nas duas línguas. motivação literária, como apresentou Fanon, marcada pela
Os pais de Ginho foram apologistas da preservação da necessidade de tirar o povo da letargia? Esse
cultura ronga a que pertenciam. E mesmo o fato de serem questionamento dimensiona uma literatura cujo corpo
“assimilados”, não os impediu de pensar assim. Até porque, significativo atua de maneira a despertar da sonolência o
se os filhos não soubessem falar o ronga, não teriam como povo de Moçambique, o que se enuncia no conto
se comunicar com os avós, que não sabiam falar português. “Inventário de imóveis e jacentes”.

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Na década de 1970, foi para Portugal estudar Direito 5. Contexto histórico, político e literário
na Universidade Clássica de Lisboa. Após a Independência
de Moçambique, em 1975, foi nomeado Diretor de Gabinete Moçambique, segundo consta, é habitada desde os
do Presidente Samora Machel, e participou ativamente da séculos III ou IV d.C., quando os povos bantos chegaram e
vida política do país a partir disso. Em 1982, tornou-se se fixaram. Vasco da Gama, navegador português, chega a
Secretário de Estado da Cultura de Moçambique e, em 1986, essa porção da costa oriental africana em 1498. O Império
Português toma posse da terra no século XVI, e seu domínio
foi nomeado Ministro da Cultura. No ano de 1987, foi eleito
se estende por quase 500 anos. Mas é, no século XX, sob
membro do Conselho Executivo da Organização das Nações
governo fascista de Salazar, que Portugal endurece suas
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Em relações com as colônias africanas abolindo a liberdade de
1991, fundou o Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa e expressão e impondo forte censura. Em 1951, Moçambique
foi seu primeiro Presidente. Em 1994, foi convidado para torna-se uma Província Portuguesa do Ultramar.
entrar para o Secretariado da UNESCO e foi nomeado O movimento nacionalista surge na década de 1950 e a
diretor do escritório regional da organização, com base na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) é
África do Sul. fundada em 1962, sob liderança de Eduardo Mondlane, e
Honwana é membro fundador da Organização contou com apoio da extinta União Soviética, de Cuba e da
Nacional dos Jornalistas de Moçambique, da Associação China. A recusa de Portugal em conceder a independência
Moçambicana de Fotografia e da Associação dos Escritores às colônias africanas estimula os movimentos guerrilheiros
de Moçambique. Atualmente, é o diretor executivo da de libertação. A FRELIMO inicia guerra contra os
Fundação para a Conservação da Biodiversidade portugueses em 25 de setembro de 1964. Assassinado em
1969, Mondlane é sucedido por Samora Machel.
(BIOFUND).
Moçambique conquista a independência em 25 de junho de
Em 2002, Nós matamos o Cão Tinhoso! foi 1975, sob governo marxista da FRELIMO, chefiado por
classificado entre os “100 melhores livros africanos do Machel. Meio milhão de moçambicanos brancos deixam o
século XX” (Creative Writing), em iniciativa da “Zimbabwe país, que se ressente da falta de mão de obra qualificada.
International Book Fair”, com a colaboração de African Entra em cena, na década de 1970, a guerrilha da
Publishers Network (APNET), Pan-African Booksellers Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), grupo
Association (PABA), associações de escritores africanos, anticomunista apoiado pelo governo da África do Sul. Nos
conselhos para o desenvolvimento do livro e associações de anos 1980, a seca e a guerra civil provocam fome em larga
bibliotecas. escala. Machel morre em 1986, em um acidente aéreo, e é
sucedido por Joaquim Alberto Chissano, que reintroduz a
3. Obras do autor: propriedade privada da terra.
Na década de 1990, a FRELIMO abandona a
referência ao socialismo, institui a economia de mercado,
• Nós matámos o Cão-Tinhoso! Lourenço Marques [atual
legaliza os partidos e abre negociações com a RENAMO.
Maputo], Moçambique: Sociedade de Imprensa de
As duas partes assinam acordo de paz em 1992, em Roma.
Moçambique, 1964. 1 ed. Ilustrações de Bertina Lopes Ao fim da guerra, a miséria é generalizada pelo país, muitas
(fragmentos de desenho). minas terrestres espalhadas pelo território, em áreas de
• “Rosita, até morrer” (conto). Vértice, Coimbra, plantio, fontes de água, praias e rodovias que obstruem a
Portugal, v. XXXI, n. 331-32, ago-set, 1971, p. 634- reconstrução econômica.
635; Domingo, Maputo, Moçambique, 31 jan. 1982, p. É preciso destacar que a colonização portuguesa em
18. Moçambique tentou apagar, nesses séculos de dominação e
• A velha casa de madeira e zinco. Maputo, Moçambique: violência, as marcas culturais encontradas nestas terras
Alcance Editores, 2017. situadas na costa oriental africana, valendo-se de uma
política de assimilação que anulava as diferenças dos povos
dominados, levando-os a se portarem como “verdadeiros
4. Prêmios portugueses. Diante dessa realidade, o escritor africano
vivia, até a data da independência, no meio de duas
• 1º lugar no Concurso Literário Internacional da revista realidades às quais não podia ficar alheio: a sociedade
The Classic, África do Sul, 1965. colonial e a sociedade africana. A escrita literária
• “Prémio José Craveirinha de Literatura 2014”, expressava a tensão existente entre esses dois mundos e
Associação dos Escritores Moçambicanos, revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma
Moçambique. língua europeia, era um “homem-de-dois-mundos”, e a sua
escrita, de forma mais intensa ou não, registrava a tensão
• Nós matamos o Cão Tinhoso! – Classificado entre os
nascida da utilização da língua portuguesa em realidades
“100 melhores livros africanos do século XX” (Creative bastante complexas. Ao produzir literatura, os escritores
Writing), 2002. Uma iniciativa da “Zimbabwe forçosamente transitavam pelos dois espaços, pois
International Book Fair”, com a colaboração de African assumiam as heranças oriundas de movimentos e correntes
Publishers Network (APNET), Pan-African Booksellers literárias da Europa e das Américas e as manifestações
Association (PABA), associações de escritores advindas do contato com as línguas locais. Esse embate que
africanos, conselhos para o desenvolvimento do livro e se realizou no campo da linguagem literária foi o impulso
associações de bibliotecas. gerador de projetos literários característicos dos países
africanos que assumiram o português como língua oficial,
como é o caso especificamente da literatura de Moçambique

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e mais particularmente, a literatura de Luís Bernardo 6. Considerações gerais sobre a obra Nós matamos o
Honwana. Para ilustrar essa lógica, basta recordar aqui que Cão Tinhoso!
no conto “Papá, cobra e eu” do livro Nós matamos o Cão
Tinhoso!, a cena da reza em ronga realizada pelo pai do Considerada uma obra responsável por fundar a
narrador, língua nativa de Moçambique. literatura moçambicana moderna, O livro Nós Matámos o
Em termos de continente africano, as tensões e as Cão Tinhoso! é uma coletânea de contos publicada em 1964.
guerras pela independência das colônias europeias no Constituída de sete contos (Nós Matamos o Cão-Tinhoso;
continente africano contribuíram para forjar, no decorrer do Inventário de Imóveis e Jacentes; Dina; A Velhota; Papá,
século XX, os conceitos que norteiam a “moderna” Cobra e Eu; As Mãos dos Pretos; e Nhinguitimo), a obra de
literatura produzida nesses espaços, constituindo-se em Luís Bernardo Honwana, por meio de suas personagens
projetos literários bem definidos. A construção da
afásicas, insinua a condição do homem colonizado, que teve
identidade de uma “literatura nacional”, em cada país, nesse
a sua fala, a sua palavra interditada pelo colonizador.
continente, coincide com os processos de luta anticolonial,
(de)monstrando-se que as literaturas africanas de língua Insinua também a existência de falas que buscam a
portuguesa não apenas participam desses movimentos de libertação, querendo-se realizar como força de gênese e
independência política, como também constroem estratégias epifania, construindo e anunciando um mundo próprio e
significativas que fortalecem as reivindicações e as lutas melhor. A obra foi lançada em plena ambiência da luta de
pela identidade nacional sufocada pela colonização. libertação nacional, revelando a crueza, a violência do
O único livro em prosa que foi, de fato, publicado em Estado colonial, que naquele momento sofria o
Moçambique antes da independência é de autoria de Luís enfrentamento instituído pelas forças revolucionárias.
Bernardo Honwana, intitulado Nós matámos o Cão Tinhoso! Valendo-se da estratégia da alegoria na composição de sua
(1964), no qual retoma temas sobre a violência e a narrativa, o autor consegue exprimir, denunciar as relações
segregação impostas pela colonização. Essa obra apresenta absurdas que regem o mundo colonizado (EVARISTO,
um conjunto de narrativas híbridas, contos que são 2000, p. 227-239)
semelhantes a crônicas, que retratam a vida cotidiana em O tom de denúncia contra a repressão, a discriminação
Moçambique naquele período. Como afirmam Fonseca e racial e a exploração do povo moçambicano colonizado fica
Moreira, “as narrativas de Honwana denunciam as forças evidente, ao longo da leitura de cada conto do livro. A obra
produtivas em jogo, o autoritarismo do Estado colonial, a comporta uma mensagem de natureza anticolonial, um
opressão exercida pelas instituições de poder e pelo seu contradiscurso, direcionado aos colonizados, mas também
aparelho ideológico” (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 29). aos colonizadores. Aos seus iguais, Honwana direciona uma
As narrativas também suscitam discussões que apelam à mensagem de alerta aos males da colonização, exortando-os
conscientização social de classe; sobretudo, pela ótica de a uma tomada de consciência, no que diz respeito ao lugar
determinadas personagens e pontos de vista. Em análise que a administração portuguesa reserva ao nativo negro na
sobre o livro, essas pesquisadoras interpretam: “No texto sociedade colonial. Ao colonizador, o autor revela a tomada
que dá título ao livro, o protagonista, incumbido de liquidar
de consciência e a manifestação, embora no campo da
o enigmático Cão Tinhoso, elucida-nos sobre a luta surda no
escrita, de uma resistência que se constrói por meio da
seio de uma comunidade juvenil, representada por brancos,
negros e mestiços”. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 29). cultura literária, promovendo a disseminação de clamor à
É nesse contexto de colonização, opressão, violência e sociedade moçambicana.
racismo em que se insere a obra Nós Matamos o Cão Nós matámos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo
Tinhoso!, reconhecidamente uma produção emblemática, a Honwana (1980), trata de questões sociais como a
coletânea de contos tem a sociedade moçambicana como exploração e a segregação. Na sua totalidade, as narrativas
espaço narrativo e horizonte de referência. Do ponto de vista de Honwana denunciam as forças produtivas em jogo, o
da historiografia literária, trata-se de uma das primeiras autoritarismo do Estado colonial, a opressão exercida pelas
prosas de ficção moçambicanas, pois até a década de 1940 instituições de poder e pelo seu aparelho ideológico. Além
era comum, na então colônia portuguesa, a circulação de disso, evidenciam certos aspectos de conscientização social
textos literários que atendiam aos anseios da colonização, e de classe de determinadas personagens (FONSECA;
portanto aos anseios do mundo branco europeu. Eram MOREIRA, 2007, p. 49).
produções voltadas para a afirmação do discurso colonial e Nos contos que constituem a coletânea, Luís Bernardo
para a desvalorização das culturas e povos locais. Após esse Honwana se vale do irrisório, do cotidiano, única linguagem
período, escritores moçambicanos lançaram-se mais à talvez acessível para exprimir a realidade de uma país
produção de poesia que a de prosa, que começa a figurar, colonizado, vítima da violência, do discurso da
mais tarde, no cenário literário moçambicano, por meio da inferiorização e do racismo. Dando voz ao sujeito
escrita literária de Honwana. colonizado e evidenciando o olhar desse sujeito sobre o
Nesse sentido, em um cenário de imposição de poder e processo de colonização portuguesa em Moçambique, a obra
violência colonial, a Arte, de maneira geral, e a Literatura, insurge-se como instrumento de denúncia, levando o leitor a
de forma mais específica, se transformarão, nos espaços enxergar o negro como subalternizado como ser bestializado
colonizados na África, em instrumentos de combate com os ou animalizado, subjugado pela lógica do sistema do Estado
quais os escritores africanos buscam construir e afirmar a
colonizador. Consciente, portanto, dessa realidade e
sua identidade, questionar e subverter a própria condição de
inconformado com essa condição, Honwana busca, por meio
colonizado. Expressões que podem ser percebidas como
motivação para o enfrentamento concreto às forças coloniais da contística, combater o discurso imposto pela colonização.
e, posteriormente, para a formação dos Estados/Nações A literatura cumpre a condição de manifesto,
independentes. materializando, por meio da escrita, o desejo de contribuir
com o suposto caminho para a independência.

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7. Resumos dos contos que sentia por aquele animal tão rejeitado pela
sociedade, apresentando sentimentos ambíguos em
7.1. Nós matamos o Cão Tinhoso! relação ao decadente animal.
De acordo, com o narrador, Ginho, o Cão-Tinhoso
O primeiro conto – que dá nome ao livro – gravita em não brincava junto aos outros cães, estava a observá-los,
torno de um enredo que se desenvolve a partir de um como um excluído:
grupo de meninos incumbidos de matar o Cão Tinhoso, Houve um dia que ele ficou o tempo todo no
um animal sem dono que vaga pelas ruas, enxotado por portão da escola a ver os outros cães a brincar no
quase todos em função do estado deplorável de sua pele, capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, a
recoberta de cicatrizes e feridas. correr, e a cheirar debaixo do rabo uns aos outros.
Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca,
O Cão Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o
brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre rabo direito e longe das pernas e as orelhas espetadas.
cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. (...) (HONWANA, 1980, p.5).
Andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo Um dia, no clube, em meio a um jogo de sueca, o
balanço com a cabeça, como os bois e dando uns doutor da Veterinária e o senhor administrador decidem
passos tão malucos que parecia uma carroça velha [p. que o Cão Tinhoso deveria morrer. O veterinário delega
5]. (...) O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de essa missão aos meninos da malta. Todos eles, doze
pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém meninos, pegam suas armas, até mesmo Ginho, o
gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre narrador. Liderados por Quim, eles amarram o animal e
muitas moscas a comer-lhe as crostas das feridas e o conduzem para a estrada do matadouro. Ao chegarem
ao espaço da execução, a narrativa torna-se
quando andava, as moscas iam com ele, a voar em
extremamente lenta, junto com os atos indecisos e
volta. Ninguém gostava de lhe passar a mão nas costas
impasses das crianças, especialmente de Ginho, já que a
como aos outros cães. (1980, p. 6-7)
ele foi atribuída a missão de dar o primeiro tiro. Ginho é
escolhido para dar o primeiro tiro no Cão, mas titubeia;
Narrado por um menino chamado Ginho, o conto, ele não quer matar o Cão Tinhoso, fica com medo, e
inicialmente ambientado na escola colonial frequentada chega a pedir ao chefe da malta, Quim, para desistirem
por filhos de colonos e ao menos por duas crianças do assassinato; ele cuidaria do cachorro, o levaria para
negras moçambicanas em franco processo de casa e cuidaria das suas feridas. Isaura chega na hora
assimilação, tem seu conflito centrado na morte do Cão em que todas as armas estão apontadas para o
Tinhoso. A morte do cão é dada como uma Cão Tinhoso. O gemido da menina se confunde com o
determinação do senhor administrador, que incumbiu o do Cão. O Cão é assassinado e o cotidiano da cidade
doutor da Veterinária de providenciar essa morte. Este continua seu rumo sem alterações nas ações, e os
transferiu a ação para seu subordinado, senhor Duarte, meninos retornam ao movimento de sempre: as ordens
que, por sua vez, repassou para um grupo de garotos, do da professora, Ginho fazendo os deveres de escola para
qual Ginho, o narrador, era integrante. A morte de Quim, as crianças obedecendo às normas ditadas pelos
Tinhoso, conforme afirma o administrador, era algo adultos – com coragem, sem medo, sem lágrimas.
necessário, pois o cão “está tão podre que é um nojo”.
Não se pode esquecer que o personagem Ginho, Comentário
espécie de alter ego do autor, inicialmente, manifesta
um esforço por ser integrado ao grupo liderado por No conto, o destino do Cão Tinhoso está ligado a
Quim, agressivo filho de colono. Essa tentativa faz com uma morte violenta, justiçada pelas próprias crianças
que seu comportamento se assemelhe ao de um alçadas em armas. Estaria aí, afinal, uma sugestiva
assimilado. No entanto, as situações de exclusão que ele metáfora do processo revolucionário nascente em
próprio experimenta ao longo da narrativa acabam por Moçambique, cujos ecos também chegavam de outras
lhe despertar um sentimento de solidariedade pelo Cão colônias portuguesas. Apontava Honwana para a
Tinhoso e por Isaura, personagem alienada que necessidade de pôr um fim, pela revolta, no já decrépito
demonstra proximidade como o velho e decrépito cão. e claudicante sistema de exploração lusitano. Essa
No conto, a única personagem, segundo o representação ganha força quando pensamos a obra
narrador, que demonstrava algum afeto pelo Cão numa perspectiva militante, engajada, que se utiliza da
Tinhoso era Isaura, que, pelos dados da narrativa, era alegoria como mecanismo de construção e
uma criança negra “nativa” e, como Ginho, estudava na representação do contexto em que foi publicada. Por
mesma escola que as demais crianças da história. “Era a outro prisma, o Cão Tinhoso, um ser repelido pelos
única que gostava do Cão-Tinhoso [...] mas [...] era poderes sociais, pode representar o colonizado africano:
maluquinha, todos sabiam”, pois ela dava erros na cópia frágil, fraco, indesejado e assujeitado pelos poderosos.
(HONWANA, 1980, p.8). O rechaço ao “cão feio” é, na Essa ambivalência presente no conto sugere, portanto,
escola, o mesmo rechaço que as meninas dedicarão a duas realidades envolvidas nesse processo: na primeira,
essa personagem alienada que, segundo as palavras do o cão figura o sistema colonial decadente; na segunda, o
narrador, “não tinha tudo lá dentro da cabecinha.” cão encarna o sujeito rejeitado e lançado à margem de
Curioso destacar que talvez essa afinidade como o Cão uma sociedade opressora como a moçambicana. A
Tinhoso possa estar relacionada à própria condição de morte do Cão Tinhoso simbolizaria, desse modo, a
Isaura, uma criança também vítima da exclusão e do morte do moçambicano colonizado, passivo, que tem
desprezo. O narrador, por sua vez, observava o vai e consciência das injustiças sofridas, mas não podia fazer
vem do Cão Tinhoso e, no fundo, não sabia ao certo o nada para mudar sua triste situação.

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Considerando, entretanto, o contexto, a intenção Ainda sobre a dúvida, o recuo de Ginho diante da
de Honwana nos parece clara ao utilizar a alegoria do necessidade de se matar o Cão Tinhoso e sobre o apego
cão como figuração do colonialismo português. Assim, de Isaura ao animal, poderíamos também compreender
o autor intenciona revelar as formas de violência que tais personagens podem configurar, em certa
extrema impostas pelo sistema colonizador. medida, uma espécie de “obstáculo” ao projeto de
Chama-nos a atenção o fato de que Ginho, o independência, que se dá pela falta de convicção de que
narrador-criança apresenta uma posição bastante o movimento traria mudanças reais. Talvez Honwana,
dicotômica quanto ao Cão Tinhoso. Embora integre o autor que se projeta no narrador-criança, que é Ginho,
grupo dos meninos que irão dar cabo da vida do animal, também tenha ponderado sobre essa problemática. É
acaba por recuar em sua missão, manifestando dúvidas
aqui que reside o fantástico, pois a hesitação diante dos
a respeito daquela solução. Falta-lhe segurança para
fatos narrados conduz o leitor a esse mar de
essa tomada de decisão, como podemos ver em sua fala,
na estrada para o matadouro: “Quim, a gente pode não possibilidades de interpretação. É importante destacar
matar o cão, eu fico com ele, trato-lhe as feridas e que no texto de Honwana, entretanto, Ginho não se
escondo-o para não andar mais pela vila com estas aproxima da figura de um “inimigo interno”, nem
feridas que é um nojo!” (HONWANA, 1980, p.22). sequer latente, à medida que passa por transformações
Vemos que o menino, mesmo momentos antes do pontuadas por conflitos interiores, aparentemente
desfecho, ainda tem dúvidas sobre a necessidade da resolvidos no final da história. Antes, tentou sugerir
morte do cão. Ele chega a relutar, tenta eximir-se da outra resolução para a questão – tratar as feridas do cão
tarefa: “Quim, eu não quero dar o primeiro tiro... (Eles e escondê-lo –, mas acabou por aderir à decisão do
queriam que eu desse o primeiro Tiro) [...] Sabes, Quim, grupo e cumpriu com a ação que lhe deram:
é que eu não quero matar o Cão-Tinhoso...” “— Eu não sou medroso! Já disse, não sou medroso!
(HONWANA, 1980, p.25). Mas a malta fez pressão, — És, és, és... Atira se não és! Atira!
cobrou dele uma postura de coragem: “Se tu continuas — Atiro sim, e depois? Eu mando já um tiro no sacana
assim, a gente depois conta lá na escola que tu tiveste do cão... (Honwana, 1980, p.26).
medo de matar o cão, que começaste com cagufas... A Em meio a fortes dúvidas, mas acreditando numa
gente vai contar isso, palavra que vai contar...” mudança de status perante a Malta, ele dispara o
(HONWANA, 1980, p.26). Essa pressão sobre Ginho primeiro tiro: “logo depois do estoiro ouvi um grito
pode constituir um valor simbólico no conto, o que monstro e nada mais” (HONWANA, 1980, p.28). E, na
pode ser a alusão à luta armada, à formação de um
primeira cena que se passa na escola, após a morte do
exército, à criação de um “homem novo”.
cão, já é possível perceber alguma diferença na postura
Outro ponto da narrativa que podemos considerar
do menino, pois num dos primeiros relatos dele na
é o fato de que o Senhor Administrador, o Doutor da
Veterinária e o Senhor Chefe dos Correios são os escola, ele narra com certo incômodo a obrigação que
personagens responsáveis por anunciar um novo mundo tinha de demonstrar respeito à professora, todas as vezes
às crianças, delegando a elas a missão de construir uma que ela passasse por ele:
nova Moçambique, independente e livre das mazelas do “A Senhora Professora estava a ler um livro e
Estado colonial. É fato que essa responsabilidade causa passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e
sentimentos paradoxais nas crianças da Malta, pois, se a vindo para a outra. Como ela passava por mim (ouvia
morte do Cão Tinhoso representaria alegoricamente o cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava para saber se me havia
fim de um sistema, isso causaria certo temor diante da de levantar ou não quando ela passava, porque era chato
coragem de assumir esse desafio, o que se revela pelo levantar-me todas as vezes que ela passava por mim. De
comportamento de Ginho destacado nos trechos resto, era mesmo capaz de estar a pensar que eu não
mencionados anteriormente. dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde
passeava, e não me perguntar depois, na aula, se os
Então, é possível notar as complexidades que meus pais não me davam educação. (HONWANA,
envolvem os papéis sociais e as relações estabelecidas 1980, p.8).
dentro do contexto colonial. Note que as dúvidas sobre Veja que, no início da narrativa, o narrador denota
a morte do Cão não se exaurem em Ginho, elas também a submissão do colonizado pelo colonizador, além de
atingem o Doutor da Veterinária. Segundo Ginho, “se denunciar o abuso do poder, do qual gozava a
calhar não tinha vontade nenhuma de matar o professora, que repetia a ação, passando por Ginho, que
Cão Tinhoso, mas como é que ele havia de fazer, era obrigado a levantar-se, repetidas vezes, demarcando
coitado, se foi o Senhor Administrador que mandou?” o lugar desprestigiado do nativo, já que a ação não se
(HONWANA, 1980, p. 14). Assim, com esse recorte, repete entre os outros garotos. Essa realidade muda após
levantamos reflexões sobre representações da elite a morte do cão: “os sapatos da senhora professora
formada na colônia – brancos, mestiços e negros faziam ‘cóc, cóc, cóc’ atrás de nós, mas como eu estava
assimilados – e sua relação de rechaço ou colaboração a conversar com o Quim e a olhar para outra coisa, não
junto ao sistema colonial. Se o Cão Tinhoso é a precisava de me levantar” (HONWANA, 1980, p. 34).
colonização e parte da elite local – o Senhor Acreditamos que Ginho, talvez, tenha outra consciência
Administrador, o senhor veterinário, o Senhor Duarte, a do seu lugar de colonizado e começado a questionar
Senhora Professora, o menino Quim e a maior parte da esse papel, insurgindo-se contra o sistema colonial.
“Malta” – deseja sua morte, por que, em diferença, De natureza alegórica, o conto Nós matamos o
apenas duas crianças não compartilham desse projeto, Cão Tinhoso! figura esse desejo de uma literatura
mas uma acaba sucumbindo a ele, no caso, Ginho. simbólica, escamoteando, por meio de representações

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metafóricas, a formulação de um manifesto literário que mostrar que sua família é escolarizada ou, pelo menos,
proclama o fim do Estado colonial. O grupo de crianças que os pais o são. Os livros aparecem associados ao pai
da Malta, ao qual se é dada responsabilidade de matar o – “Há ainda mais 3 caixotes com livros. Debaixo da
Cão Tinhoso, metaforiza o surgimento da FRELIMO, cama em que está o Papá há mais caixotes com livros”
frente que recorrerá às armas para enfrentar o regime (HONWANA, 1980, p. 39) –, que rejeita as revistas
colonial português. Toda a narrativa margeia essa estrangeiras da mãe, das quais vem o tom de desprezo
perspectiva de interpretação dada a sua dimensão repetido pelo menino: as ‘Lifes’, as ‘Times’ e as
alegórica, revelando um texto subjacente ao enredo de ‘Cruzeiros’ mais recentes. Na mesa de centro está
superfície, ancorado que está no projeto de se matar um também o ‘Reader’s’, mas talvez nem lhe tocasse
animal repugnante, asqueroso, rejeitado por quase todos porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é
e cheio de feridas. uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a
Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria”
7.2. Inventários de imóveis e jacentes (p. 39). Entretanto, os livros da estante estão cobertos,
alguns estão guardados em caixotes de madeira.
No conto, um narrador infantil insone decide Vinculados aos outros objetos, principalmente às várias
inventariar os bens familiares. Por meio dos olhos da malas de viagem, eles indicam uma boa condição
criança, somos apresentados à típica família financeira da família no contexto de Moçambique. Por
moçambicana e sua residência. O narrador, embora isso, o menino possui seu próprio material de desenho e
deitado, letárgico, conduz o leitor pelos cômodos da pintura – “Debaixo desta cama está guardado o meu
casa, expondo os móveis, revelando a alimentação, material de desenho e pintura, contido em dois caixotes
destacando como são servidas as refeições, tudo de de madeira” (p. 39) –, com o qual, provavelmente,
forma bastante simples. Ficamos sabendo, então, que a aprendeu a recriar o espaço em traços e cores (antes ou
casa em que o narrador vive com a família apresenta depois de fazê-lo com palavras?).
quatro divisões. “Além do quarto em que estamos e do Outro ponto importante do conto é o ambiente
outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais 2 descrito pela criança. No interior da casa, paira uma
divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última atmosfera enegrecida, ora demarcada pela escuridão de
(...) é ocupada por 1 mesa (...), rodeada por 7 cadeiras portas e janelas fechadas ora por paredes enegrecidas.
(...), um armário (...), e vários sacos no canto, atrás da Esse tom de escurecimento apresentado pelo narrador
porta” (HONWANA, 1980, p. 37). Já na sala de visitas, sugere a ideia de morte já sugerida pelo termo que está
“sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a no título “inventário”, palavra cujo sentido está
máquina de costura e na mesinha do rádio” (p. 37), relacionado à enumeração dos bens de uma pessoa
ficam as revistas mais apresentáveis, já que as outras falecida.
“estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos É importante observar ainda que, ao se propor
dois quartos” (p. 37). Em relação aos 2 quartos: além do fazer um inventário de imóveis e jacentes quando estão
colchão de sumaúma e da cama que o contém, o quarto todos da casa dormindo, portanto, imóveis ou jacentes –
da Mamã tem 1 berço em que dormem o Joãozinho e a ja.cen.te adjm+f1 Que jaz. 2 Localizado em
Carlinha, 1 cômoda, 1 guarda-fatos, 2 mesinhas de determinado lugar. 3JUR Diz-se da herança que, por
cabeceira, uma de cada lado do colchão de sumaúma, e falta de herdeiros, passa para o Estado. 4JUR Diz-se do
1 mala de cânfora sobre a qual estão várias malas de que permanece em abandono, por falta de quem
viagem (...). Em comparação, o quarto da Mamã é legitimamente lhe assuma posse –, o menino cria uma
melhor do que o nosso, que além das 3 camas e 2 mesinhas confusão – ou uma inversão? – entre as pessoas e os
de cabeceira, só tem 1 mala de cânfora (p. 37). móveis da casa, incluindo-se nesse processo – o único
Não obstante ao detalhamento dos bens da família, movimento é do Nandito, que “deve estar a sonhar” (p.
descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e 36), diz o narrador; dentre todos, o pai é o mais
que está doente, o que nos faz levantar algumas imobilizado, já que paira sobre ele uma suposta doença.
questões: seria uma prisão política por conta de uma Porém, a aparente prostração ou apatia dessa criança,
possível militância do pai do narrador do conto? Está que passa suas férias deitada no colchão dos pais, é
doente por causa de trabalhos forçados? Ou teria sofrido diferente da imobilidade que o cerca, cuja ressonância
tortura do regime colonialista? Aqui, reside o que não dos vivos é a única coisa que denuncia a (sub)existência
foi dito, o que conduz o leitor a uma série de dos parentes. Sua imobilidade é ativa, criadora, dá-se no
suspeições. jogo através da imaginação. A esse respeito,
Conhece também o leitor o trabalho doméstico que Hans-Georg Gadamer diz que “todo jogar é um ser-
a mãe realiza, a distribuição do espaço da casa e a
jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce,
composição dos quartos, assim como a situação da
reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do
família e a sua vida na casa. Apresenta uma visão
jogador” (1998, p. 181). Então, se ele não tem vontade
inocente, uma enumeração de pessoas e de objetos.
de sair da cama para ler uma revista é porque “a inércia
O narrador explica a sua vida ou, melhor, a vida do
é seu ato principal” (BARROS, 2010, p. 346); o
narrador é explicada por meio do rol das suas pertenças
abandono é o que lhe permite reivindicar a herança
e da descrição da sua família no espaço de habitação.
familiar em outro nível, agindo como um testamenteiro
No inventário apresentado pela criança insone,
ficcional.
merece atenção a grande quantidade de livros que há na
casa. A presença das obras sugere um contato do
narrador, desde a infância, com a leitura, além de

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Comentário crítico em um inventário. É evidente a censura, a repressão, os


livros estão cobertos. A prisão do pai também aponta
Considerando a leitura do título do conto, para um membro do movimento de libertação,
observa-se que já há uma inquietação a provocar o intelectual e revolucionário. Destaca-se o papel da
leitor: a presença da palavra “Inventário”, termo mais cultura na formação da consciência política. Vale
comum à esfera jurídica. O conceito mais usual para o lembrar que os intelectuais tiveram um papel importante
vocábulo “inventário” vem do direito das sucessões que na luta pela independência em Moçambique, muitos da
é a “descrição detalhada do patrimônio de uma pessoa classe média estudaram na Europa, e lá em contato com
falecida, para que se possa proceder à partilha dos bens” outros africanos organizaram-se para lutar pela
(HOUAISS, 2001, p. 1643). Já nas primeiras linhas do independência. O narrador destaca, portanto, a cultura
conto, o sentido da palavra não está relacionado à do pai que, embora tenha o hábito de ler, classifica
enumeração dos bens de um falecido. Na verdade, o que como “porcaria” as revistas estrangeiras, meios de
se tem no conto é o “levantamento minucioso dos cultura de massa, típica do mundo industrializado, que
elementos de um todo, rol, lista, relação”; “descrição visa ditar regras de comportamento, para que se possa
detalhada, minuciosa de algo” (HOUAISS, 2001, p. vender cada vez mais ideias e produtos. Por outro lado,
1643). Esses significados atribuídos à palavra a distribuição das revistas pela casa é uma forma de
contribuem para a construção do sentido do conto, protegerem-se da repressão, deixando visível o que
tendo em vista que o narrador-criança insone, de seu fosse conveniente. Apesar de o narrador estar acordado,
quarto, irá descrever o ambiente em que ele e sua enquanto os outros dormem, descrevendo o mundo que
família vivem. Assim como a narrativa se passa no o cerca, apontando para o despertar da consciência de
espaço interno da casa, também percorre o interior da que é preciso refletir sobre o estado das coisas para
personagem. “Ele nos conta uma história por ele vivida modificá-lo. Mas eis que ele mesmo encontra-se
(...). É através de seus olhos e de seus sentimentos que imóvel. E essa letargia é a grande metáfora já anunciada
são apresentados os elementos constitutivos da pelo título que já antecipa no emprego das palavras
narrativa: os fatos, as outras personagens, os temas e os “imóveis” (aquilo que não se movimenta) e “jacentes”
motivos, as categorias do tempo e do espaço”. (o que jaz; o que está prostrado) a situação da família, e
(D’ONOFRIO, 2002, p. 62). Inicia-se o conto com o mesmo da criança (Ginho) que inventaria os bens de sua
narrador apresentando o espaço fechado, certa forma de família na posição em que se encontra: deitado e insone.
aprisionamento, e o tempo – à noite, como o período Falta-lhe a mobilidade de reagir, embora sobre a
obscuro, opressor em que vivem: As portas e as janelas consciência da realidade circundante. Assim, observa-se
fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e a sutil ironia no discurso para levar o sujeito a pensar o
janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é que ele tem feito. Portanto, o aspecto de inventário
por causa da doença, mas eu acho que ele sempre foi constitui-se pela enumeração de objetos e de pessoas a
assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os tal ponto oprimidas que se encontram entre as coisas.
médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que
dormisse numa cama dura, o que se improvisou no 7.3. Dina
nosso quarto, já que não convinha mexer na cama do
casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p. 36). É Narrado em terceira pessoa, o conto relata um dia
inevitável não estabelecer um diálogo entre a literatura e de trabalho na machamba, cujo significado na língua
o contexto histórico à época da publicação da obra a que nativa de Moçambique é campo para lavoura, fazenda.
pertence o conto. O início da narrativa dá-se com a descrição das
Observa-se, na abertura do conto, o foco para o precárias e desumanas condições de trabalho na
interior da casa, espaço a que se propõe a ler. Mas não machamba na qual está sujeito o protagonista, o velho
se pode deixar de destacar “as portas” e “as janelas” Madala.
fechadas, objetos que traçam as fronteiras entre os
mundos externo e interno. E as portas por estarem Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes
fechadas representam, possivelmente a ideia do para o chão, Madala ouviu a última das doze
aprisionamento, da censura, da opressão, sugerindo badaladas do meio dia. Erguendo cabeça, divisou
novamente a ideia de uma Moçambique, representada por entre os pés de milho a brancura esverdeada
pela família, aprisionada, subjugada por um regime das calças do capataz, a dez passos de distância.
colonialista. O mundo narrado fecha-se para o exterior, Não ousou endireitar-se mais porque sabia que
e abre-se para o interior, pode-se ler como o processo de apenas devia largar o trabalho quando ouvisse a
conscientização, que emerge de dentro para fora, é a ordem traduzida num berro. [...] O sol estava
busca pelo despertar das consciências em plena Guerra mesmo em cima do seu dorso nu, mas convinha
de Libertação. É dada ao menino a voz que, com seu suportar um pouco mais. Contou o tempo pelo
olhar atento, capta a opressão, o silenciamento, a número de gotas de suor que lhe pingavam pela
precariedade de recursos, como se observa: O ar está ponta do nariz para uma pedrinha que brilhava no
pesado neste quarto, porque além de estar tudo fechado, chão. [...] A dor de rins era-lhe insuportável, e
dormem aqui, incluindo-me, 5 pessoas. Às vezes somos muito pior agora que já tinha tocado o dina.
6 e isso dá-se mais frequentemente, porque a cama Quando os músculos do pescoço lhe começavam a
agora ocupada pelo Papá é normalmente ocupada pela doer pela torção a que os submetia, mantendo a
Tina e pela Gita, que agora dormem com a Mamã no cabeça erguida, deixou cair os braços até tocar nas
outro quarto. (HONWANA, 1980, p. 36). No conto, folhinhas carnudas e escorregadias das ervas que
observa-se também a coisificação dos seres humanos; devia arrancar (HONWANA, 2022, p. 57).
são enumerados, como os objetos, as divisões da casa

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O velho Madala, dobrado durante horas sobre o Madala o segue. Trata-se de um momento de grande
ventre enquanto retira ervas daninhas do chão, é incapaz tensão, em que a ação transcorre lentamente, mas com
de queixar-se ou erguer-se, à espera de que o capataz dê detalhada descrição. Todos observam a cena: Madala
sinal para a pausa do almoço, a hora do “dina”, mas o olhou em volta. Ninguém o olhava diretamente, mas
capataz resolvera estender um pouco mais a hora de todos os homens do acampamento se tinham dispostos
trabalho, não se importando com os trabalhadores da pelas sombras de modo a poderem vigiá-lo. Só o jovem
machamba. Os trabalhadores resignam-se. Madala do grupo do curral, que ainda há pouco o interpelara, é
continua a retirar da terra as ervas daninhas, que mantinha a expressão malcriada (HONWANA,
empreendendo muito esforço dada a sua condição de 2022, p. 79).
um homem idoso tomado pelas dores. “O esforço de Maria fora enganada, seguiu o capataz achando
arrancar uma planta resultava da aplicação de parte do que iriam combinar um encontro futuro, para a noite. A
peso do próprio corpo, e não das contrações dos filha de Madala fora estuprada, abusada, violentada aos
músculos dos braços, que só dobravam de vez em olhos de todos, inclusive de seu pai. Com a situação, o
quando, para sorver a força dos torrões que vinham jovem do grupo do curral sente ódio. Extremamente
aborrecido, buscava por um traço de revolta nos olhos
presos às raízes (...) Madala encurvou-se para frente até
de Madala. Todos veem quando o capataz tenta entregar
experimentar uma dor lancinante, mas nessa altura já tinha o pagamento à Maria e, percebendo o constrangimento
a planta bem segura e inclinou-se para trás, até que ela se dela, pergunta se teme que os outros descubram que ela
desprendeu do chão. (HONWANA, 2022, p.58-59). é puta. Envergonhada, a jovem conta que Madala é seu
Ao arrancar mais uma erva daninha, Madala pai, explicando o embaraço da situação. O capataz fica
deparou com um escorpião. Pensou que se fosse picado, transtornado com a informação e sente medo. É o
teria dores durante três dias. A cena o fez lembrar um momento de maior tensão do conto. Em silêncio, todos
amigo cujo nome era Pitarrossi, que morrera ao ser esperam uma atitude de Madala, pois estão dispostos a
mordido por uma cobra. A esposa de Pitarrossi, agora linchar o capataz. Amedrontado, o capataz busca a
viúva, segundo o narrador, acabara enveredando pelo garrafa de vinho que sua mulher lhe mandava para o
caminho da prostituição, do alcoolismo. Ainda segundo almoço e que nunca oferecia a ninguém, embora nem
o narrador, praticamente todos os homens já se tinham sempre tomasse tudo, e entrega para Madala, numa
deitado com a tal viúva, apenas Madala, por respeito à tentativa de se redimir. Tenta mandar os homens de
volta ao trabalho, mas eles continuam imóveis
memória do amigo não o fizera. Após essa pequena aguardando uma atitude do pai de Maria. Figura
digressão, Madala segue o seu labor, arrancando mais passiva, Madala aceita a afronta do capataz e a garrafa
duas plantas. Naquela hora, o sol parecia mais de vinho como “pedido de desculpas”. Com a inércia do
inclemente. Madala imaginou que faltaria pouco para o homem mais velho, os trabalhadores acabam
capataz convocar os trabalhadores para o dina. De obedecendo ao seu dominador. Essa atitude pode ser
repente, o velho foi surpreendido por um violento justificada pelo medo e pela adaptação à subserviência,
esticão. A sensação de dor que percorre o corpo do fruto da política de dominação lusitana que doutrinou os
velho era intensa. O espasmo doloroso do nó no naturais da terra. Indignado e revelando desprezo pela
intestino paralisou o velho trabalhador. Enquanto se atitude do mais velho, o jovem do grupo do curral
recuperava dessa crise, endireitando-se para continuar cuspiu para os pés de Madala, chamando-o de cão.
arrancando as ervas, o capataz convoca os trabalhadores Todos voltam ao trabalho, menos o jovem, que, com
para o almoço; “— Chega rapazes! Vamos comer! seu espírito revolucionário, não aceita aquela
humilhação. O capataz, por sua vez, usa da violência
(HONWANA, 2022, P.61).
para punir o jovem rebelde, investindo com uma garrafa
Ao chegar ao acampamento para o dina, os outros contra o trabalhador com um golpe na cabeça, mas o
grupos já tinham chegado. Outros já tinham almoçado. jovem não se moveu. O segundo golpe abriu-lhe o
Madala é tratado com reverência, por ser o mais velho couro cabeludo. E o capataz, com os pés sobre a cabeça
do grupo. Um jovem lhe dirige a palavra, reclama do sol do jovem, dirigia-lhe impropérios.
na plantação de milho e do capataz e diz:“O branco é Madala voltou à machamba para continuar o seu
mau [...]”(HONWANA, 2022, p. 63). Essa personagem, doloroso trabalho, o de arrancar ervas daninhas.
o jovem do grupo do curral, traz uma reflexão sobre a Resignado, mas consciente de sua condição de
consciência, por parte dos colonizados, a respeito de colonizado.
suas opções frente à opressão dos colonos. A filha de
Madala, Maria, vai visitá-lo e se sente constrangida com Comentário crítico
o olhar dos outros homens. Djimo, amigo de Madala, No conto Dina, Honwana acaba por evidenciar o
parecia gostar muito de Maria, mas o pai sabia que sua sistema de poder vigente no território moçambicano,
filha, por dormir com muitos homens, ninguém queria sem se desprender dos valores da sociedade africana
casar-se com ela. Madala informa-se com a filha sobre que perpassam o conflito exposto. O autor constrói o
as pessoas da família. Enquanto conversavam, o capataz cenário de rudeza com que era tratado o oprimido pelo
interrompe os dois, perguntando o que Maria estava a colonizador. Na primeira parte da narrativa, o narrador
fazer ali, insinuando que a moça estava a engatar do conto dedica-se a descrever a cena do trabalhador no
Madala ou Djimo. Djimo, diante da presença do cenário escaldante da “machamba”. O personagem
capataz, insiste que Madala venha almoçar, afastando-o principal, Madala, é o mais velho do grupo e sofre por
dali. Maria resolve aguardá-lo enquanto ele almoça. causa de alguns problemas de saúde, mas que segue
trabalhando por supostamente precisar do salário para
Nessa espera, o capataz se aproxima dela para
garantir sua sobrevivência. Essa situação do
conversar. Na sequência, o capataz dirige-se para o personagem, em certa medida, já demonstra como a
meio da plantação de milho. Em seguida, a filha de

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sociedade africana estava sendo violentada. A sabedoria o velho experimenta não uma dor física como a que ele
dos mais velhos fora relegada a uma condição experimentara na machamba ao arrancar as ervas
desprezível em detrimento do trabalho braçal. No daninhas. A dor agora é emocional, o que leva o
entanto, percebe-se que, mesmo no contexto da rudeza, protagonista a repetir o gesto do trabalho na lavoura,
a sabedoria ancestral se sobressaía – Madala, de arrancando uma planta imaterial, concentrando toda sua
maneira resignada, espera pacientemente para não força e projetando toda a sua raiva. Seja no gesto com o
aparentar ser o primeiro a levantar-se, embora já objeto real ou com o objeto imaginário, arrancar a
estivesse cerca de quarenta minutos (o equivalente a planta da terra e cerrá-la entre os dedos tenta representar
aproximadamente dois palmos de sombra) debruçado a reação frente à incapacidade de agir naquele
sobre suas dores, tentando absorver das raízes das momento.
plantas um frescor que acalentasse o calor insuportável Outro ponto que merece atenção no conto é figura
da lavoura. Os mais jovens, por outro lado, logo se do capataz. Ele representa a figura do branco opressor,
apresentam para deixar a lavoura e reforçam discurso do impondo ao colonizado um tratamento desumano. Ele é
opressor: “ — Para começar são umas comichões que
visto como uma constante ameaça por sua forma
nunca mais acabam, mas para despegar é a correr, não,
meus cabrõezinhos? Continuem assim que eu violenta de agir. Observe a passagem:
desanco-vos o lombo...” (Honwana, 2022, p.61).
Considerando essa parte inicial no conto, fica — Madala, não queres vir comer? — Era outra vez o
evidente o posicionamento do narrador ao valer-se de Djimo. — Agora é mesmo para comer porque o
um acentuado descritivismo, marcado por uma nítida n’Guiana e o Muthakati já acabaram de fazer a comida.
denúncia do abuso de poder por parte do capataz. No — Eu fico aqui com a minha filha, Djimo.
contexto da colonização, ele representa o poder colonial O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou-se
e, no presente conto, é um homem branco, como atesta com um cigarro na mão:
o trecho: “Por que é que o branco não manda largar? – — Olá, Maria! O que é que vieste cá fazer? Estás a
Murmurou Madala” (HONWANA, 2022, p. 60). engatar o Madala?... Ao Madala não deve ser porque
O feitor, de maneira arbitrária, prolonga o tempo, está muito cocuana ... Talvez seja ao Djimo...
demorando a liberar os trabalhadores para o dina – em Maria, tu estás a engatar o Djimo?...
fanagalô, língua crioulo das minas da África do Sul, — Eu não está engatar Djimo... – respondeu Maria,
hora do almoço –, abusando do seu poder nitidamente tentando falar em português.
para massacrar os colonizados. [...]
Enquanto espera pelo dina, Madala, ao arrancar as — Mas tu não gostarias de dormir com ele? Hein?
ervas daninhas, reflete sobre acontecimentos que, se De olhos postos no chão, Maria não respondeu.
confrontados com os valores africanos outrora vigentes, O capataz afastou-se sorrindo
também deságuam na degradação à qual a sociedade
estava submetida. O exemplo dessa degradação pode ser (HONWANA, 1980, p. 46).
identificado na cena em que o protagonista, ao levantar
uma das raízes, depara com um escorpião e relembra de Nessa cena é revelado todo desprezo que o
um amigo, Pitarrosi, que havia morrido tempos antes capataz, e por extensão, todo colonizador tem em
por conta de uma mordida de cobra naquela mesma relação aos colonizados. Ao insinuar que Maria estava
lavoura. Por ocasião desta morte, a esposa dele ali para ter relações com o Madala, o capataz ofende
tornou-se prostituta e alcoólatra. A mulher, que tinha o toda uma tradição cultural africana a qual vê nos velhos
papel de preservar os valores sociais, agora estava os sinais da ancestralidade, da sabedoria e por isso, são
sujeita aos percalços da nova estrutura que se impunha tratados com deferência, como pode ser visto na forma
com o processo de colonização. Mais adiante na que Madala é tratado pelo grupo do curral. No final da
evolução do conto, a própria filha do Madala, Maria, cena, o capataz sai sorridente, debochando das
estaria em situação muito similar. Mais uma vez, os personagens, demonstrando não ter nenhum respeito a
nobres valores de ancestralidade e amizade se eles.
evidenciam frente aos movimentos degradantes Quanto ao narrador, apesar do distanciamento
impostos pela classe dominante – Madala atenta-se para evocado pela escolha da perspectiva narrativa em 3ª
o fato de que fora um dos únicos a não se deitar com a pessoa na qual o conto está centrado, o que confere ao
esposa de Pitarrosi, provavelmente como prova de narrador uma aparente imparcialidade frente aos
respeito ao vínculo de conhecimento familiar ou de personagens e as ações narradas, em alguns episódios
amizade construído antes da morte. A situação de percebe-se certa empatia do narrador ao solidarizar-se
impotência frente à ação do opressor revela ambientes com os personagens que desfilam pela narrativa, ao
de confronto de ideias que merecem destaque. De forma passo que em relação a outros o distanciamento é
suave na trama do conto, Honwana acaba por mostrar verificado. Isso faz com que o narrador assuma uma
que, embora o oprimido aceite a imposição, ele tem posição dentro do conto, identificando-se com o
plena consciência do direito que lhe está sendo tirado ou sofrimento e a situação dos trabalhadores da machamba.
do valor social que está sendo corrompido. A revolta, Essa condição assumida pelo narrador sugere que o
ainda que não verbalizada, se materializa em gestos autor da obra parece projetar-se no narrador,
contidos e fica expressa até na maneira como o autor transferindo suas convicções políticas claramente
articula o diálogo do personagem principal com a contrárias à exploração colonial.
natureza. Uma figura metafórica recorrente no conto A questão do autocontrole de Madala também
‘Dina’ é o manuseio da planta arrancada pelo Madala constitui um ponto de interesse para os nossos estudos.
nos seus momentos de maior tensão. Na cena do abuso A falta de reação de Madala às provocações do capataz
sexual cometido pelo capataz contra a filha de Madala, e principalmente ao abuso sexual cometido contra sua

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filha não terem suscitado a revolta do velho Madala desnudando as relações opressivas que estão expostas a
pode gerar alguma indignação do leitor menos atento. O sociedade moçambicana pelo julgo lusitano. O conto
fato é que Madala sabia que qualquer tipo de revolta “Dina” assim como a obra Nós Matamos o Cão
contra o capataz seria uma luta perdida, pois talvez Tinhoso! constitui um manifesto contra tudo aquilo que
aquele não fosse o momento mais oportuno. Tudo isso o colonialismo representa, opondo-se ao autoritarismo,
ratifica a ideia de que os mais velhos, na cultura aos desmandos coloniais, à arbitrariedade, à exploração,
africana, são sinônimos de sabedoria, pois para ele à violência e a todas formas de injustiças e opressões as
aquele momento deveria agir com temperança. Assim, quais são impostas aos moçambicanos, restando a eles
Madala experimenta uma fúria reprimida. Talvez assim apenas a revolta contra o sistema colonial e, por
como algum leitor fique com esse sentimento de revolta conseguinte, o conflito armado em busca daquilo que
contra o velho, o jovem do curral também compartilha nunca deveria ser subtraído de nenhum individuo: sua
desse mesmo sentimento, pois depositara em Madala a dignidade, humanidade e liberdade.
esperança de que o velho confrontasse o capataz, mas A narrativa sugere, contudo, que o embate contra o
como não fizera, o jovem cospe aos pés de Madala sistema de aniquilação dos indivíduos não poderia ser
manifestando o seu desprezo pela suposta covardia do obra de um homem apenas, pois toda tentativa dessa
ancião. Nesse sentido, a identidade do jovem se ordem, assim como a do jovem, estaria fadada ao
constitui num embate com a do capataz – o opressor, fracasso. Portanto, a conquista da liberdade só se
cujo objetivo é assujeitar os trabalhadores – e com a de efetivaria com o empenho de um grupo consistente e
Madala – o oprimido, adaptado e sem forças para organizado.
resistir à dominação. Esse jovem não tem um nome, (HONWANA, 2008, p. 70).
pois representa a juventude insatisfeita e rebelde, que 7.4. A velhota
questiona o sistema e busca por revolução; reclama do
trabalho, da Machamba, do capataz, do poder e não No conto A Velhota, temos uma narrativa sobre outra
admite a falta de atitude de Madala. Através do rapaz, situação degradante que resulta da violência do Estado
que, por se opor ao domínio colonial, é agredido pelo Colonial em Moçambique. O enredo da narrativa gravita em
capataz, Luís Bernardo Honwana aponta para a torno do sofrimento de um personagem anônimo que foi
resistência, já em curso no começo da década de 1960. vítima do racismo ultrajante e violento perpetrado pelo
O conto é finalizado com a descrição de Madala colonizador. Narrado em primeira pessoa, o narrador-
trabalhando na machamba como de costume, -personagem relata a agressão que sofrera em um bar de sua
arrancando um arbusto e colocando-o no chão. Ele cidade por ser uma pessoa indesejada naquele ambiente.
então percorre com o olhar a plantação, vê alguns
companheiros por perto, dá um suspiro rouco e volta ao “Acho que ninguém podia avaliar o
trabalho. esforço tremendo que fiz nesses não sei se
“Dina” é um conto perpassado pela temática da longos se breves momentos, para conduzir
violência. Em determinados momentos essa violência é
os meus punhos, brutalmente pesados
clara e flagrante, em outras ela está mais diluída. Ao
antes de ganharem movimento e
estar intimamente ligado ao contexto histórico-social, o
incrivelmente flutuantes depois erguidos.
conto trata da coisificação da pessoa, exemplificando
como os colonizadores tratavam os colonizados, de Entretanto, às pancadas que recebia não se
forma a bestializá-los, animalizá-los, retirando-lhe sua aliviava qualquer sensação física porque
dignidade, como também sua humanidade. só lhes percebia o eco diluindo-se
lentamente dentro da minha cabeça. Esse
Nesse sentido, Memmi(1977) esclarece que um traço maldito eco e só esse é que foi o culpado
das sociedades colonizadas se refere “as relações de eu cair. ” (HONWANA, 2022, p.79).
humanas [que] resultam de uma exploração tão intensa
quanto possível, fundam-se na desigualdade e no Na sequência, após constatar que o agressor já tinha
desprezo, garantidas pelo autoritarismo” (MEMMI, ido embora, o narrador abriu os olhos. Considerou que
1977, p. 64). Tal aspecto fica evidente em “Dina”, precisava voltar para casa. Já não via a velhota e os miúdos
sobretudo nas ações praticadas pelo capataz que ali não sabia desde quando, pois chegava tarde e saía muito
representa a empresa colonial. Ainda sobre as cedo, e todos já estavam recolhidos ou não tinham
selvagerias praticadas pelo capataz, metonimicamente levantado. Segundo o narrador, a velhota era insípida e os
representando o poder da Metrópole, Jean Paul Sartre, miúdos eram chatos e barulhentos, mas nada comparado ao
em prefácio da seminal obra Os Condenados da Terra que ocorrera no bar, pois “todos me olhavam de uma
(1968), de Frantz Fanon, elucida como a violência é o maneira incomodativa, como que a denunciar em mim um
meio pelo qual se conduz a relação colonizador- elemento estranho, ridículo, exótico e sei lá que mais”
-colonizado. Nas palavras do crítico francês, “a (HONWANA, 2022, p.80). O narrador acrescenta que não
violência colonial não tem somente o objetivo de conseguira reagir à agressão porque “ele era todos os outros,
garantir o respeito desses homens subjugados; procura e exatamente como isso é que ele me bateu. ” (HONWANA,
desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as 2022, p.80).
suas tradições [...] é preciso embrutecê-los” (SARTRE, O narrador decide ir para casa. Iria comer arroz e caril
1968, p. 9). de amendoim. Segundo o narrador, precisava ir, não para
Dessa forma, ao considerar o conturbado momento encher a barriga, mas “encher os ouvidos de berro, os olhos
de publicação, 1964, Honwana faz de seu livro uma de miséria e a consciência de arroz e caril de amendoim”
arma de combate contra o colonialismo. Nele o autor (HONWANA, 2022, p.81).
denuncia as mazelas do sistema colonial português,

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Em casa, o narrador encontra a velhota e os miúdos a Fica nítido para o leitor, o contraste entre a
comer. Ao avistá-lo, a velhota, ao olhar para o fundo da inconformação do jovem e a resignação, falta de apoio de
panela, perguntou ao narrador se desejava comer, mas o quem deveria ampará-lo.
narrador não saboia se queria comer ou não. A velhota
julgou que o narrador estivesse zangado, o que inicialmente Comentário crítico
negou, pois tinha que manter a aparência quando chegava a
sua casa por causa da responsabilidade em cuidar da No conto A velhota, Honwana realiza um depoimento,
“velhota e dos miúdos”. Enquanto isso, as crianças (Quito e utilizando um relato que faz uma denúncia ao construir uma
Khatidja) resmungavam sobre um pedaço de carne que um representação que abrange a todos os que sofreram a tortura,
tirara do prato do outro, o que gerou uma discussão entre os a violência e o discurso da inferiorização do Estado
irmãos, exigindo da velhota uma intervenção. A velhota, por Colonial. O que evidencia isso é que em nenhum momento a
sua vez, insistiu com o protagonista sobre querer jantar, o personagem que sofre a tortura é nomeada. A única
que o aborreceu com aquela insistência. Não havia muito referência nominal à personagem é quando a velhota o
para comer. Apenas “ucoco” (borra, raspa de arroz que fica chama de “meu filho”. Chama a atenção o fato de que o
agarrado no fundo da panela) tinha para comer. O narrador conto em questão, à semelhança de quase todos os contos da
pergunta para a velhota o que iria comer, mas a mulher obra Nós matamos o Cão Tinhoso!, é marcado pela afasia.
responde que não tinha fome. Todavia essa afasia, além de apontar para algo proibido de
Em seguida, num gesto de que busca um refúgio e se contar, aponta também para uma busca da dignidade
acolhimento, o narrador, num impulso, abraça a velhota. como ser humano. Temos conhecimento dos fatos, porque
“Ela manteve-se quieta quando enterrei a cabeça entre os adentramos no pensamento da personagem que vai nos
seus seios” (HONWANA, 2022, p.83). Diante do gesto do narrando o seu sentimento, diante da agressão de que fora
filho, a velhota inquiriu o narrador sobre o que acontecera. vítima. Fica claro, na narrativa, que o narrador-protagonista,
E como se já soubesse da agressão, a velhota diz: “— ao não reagir à brutalidade da violência, manifesta uma
Bateram-te? Diz, meu filho, eles bateram-te? Quem foi?” consciência real do seu lugar naquela sociedade, situação
(HONWANA, 2022, p.83). O narrador, filho da velhota, revelada por uma experiência tragicamente dolorosa. Ao se
tenta negar o fato, pois não queria que os miúdos ouvissem: lembrar do ocorrido, a personagem começa a narrar o
não, eu não contaria. Não fora para isso que viera para casa. episódio, dizendo: “Eu juraria que não cheguei a perder o
Além disso, não seria eu a destruir neles fosse o que fosse. conhecimento embora pouco antes de cair tivesse
(HONWANA, 2022, p.84). Na sequência, a velhote experimentado aquele estado de embotamento de
percebeu que o filho estava assustado, tremendo, o que a sensibilidade que, quando nos toma, restringe a nossa
leva a insistir com o narrador, entretanto ele está resistente. capacidade de defesa aos gestos puramente instintivos” (...)
O narrador evitar narrar sobre a agressão na frente dos (HONWANA, 2022, p.79). Nesse trecho, temos um
miúdos, já que ventila a possibilidade de que, no futuro, a paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a personagem
formação dos miúdos fosse diferente, que o tempo obrigasse jurava não ter perdido o conhecimento, todavia, o que ela
a mais compreensão, mais carinho e mais humanidade. Na mais de fato desejava era ter perdido o conhecimento, ou
sequência, os miúdos se recolhem para dormir, o que seja, deixar no esquecimento, ou apagar da memória a forma
permite ao narrador desabafar com a velhota. Confessa que como fora tratada. Ela experimentou o “estado de
fora agredido. Segundo o narrador, “Eles fizeram-me embotamento de sensibilidade”, mas não foi suficiente para
pequenino e conseguem que eu me sinta pequenino. Sim é apagar todas as recordações. Inclusive esse momento traz
isso. Isso é que é tudo. E por quê? Eles nem o dizem de alto. marcas tão fortes que ela lembra nos mínimos detalhes
E tudo cai de repente, com barulho aqui dentro, e cai e cai e como foi o ocorrido e como ela teve que se render a essa
cai...” (HONWANA, 2022, p.85). A velhota e o narrador humilhação. A sua capacidade de defesa restringiu-se aos
ficaram ali abraçados silenciosos até que a mãe do narrador, gestos puramente instintivos, associando-se a um animal. A
depois de matutar o que dizer ao narrador, apenas disse dificuldade ao se levantar do chão estava mais voltada em
“— Meu filho...” (HONWANA, 2022, p.86). ter que encarar as pessoas que assistiram a toda essa cena
Não consegui bater o tipo porque ele era todos os passivamente, do que pela própria dor da surra. Aliás, a
outros, e exatamente com isso que ele me bateu. [...] Eu surra nem doía, o que doía era a perda da sua dignidade.
precisava ir para casa. Ia comer arroz e caril de amendoim Essa dignidade foi perdida quando caiu no chão e isso só
como eles queriam que fizesse, mas não para encher a ocorreu devido ao “maldito eco. ” “Acho que ninguém podia
barriga. Eu precisava de ir para casa para encher meus avaliar o esforço tremendo que fiz nesses não sei se longos
ouvidos de berros, os olhos de miséria e a consciência de se breves momentos, para conduzir os meus punhos,
arroz com caril de amendoim (HONWANA, 2014, p. 80). brutalmente pesados antes de ganharem movimento e
No fim do conto, ele confessa essa situação para a incrivelmente flutuantes depois erguidos. Entretanto, às
velhota, após os miúdos terem ido dormir, ao passo em que pancadas que recebia não se aliviava qualquer sensação
ela retruca “quem foi? Mas isso não é tudo, tu tremes...”. física porque só lhes percebia o eco diluindo-se lentamente
O jovem responde: “Sim, isso não é tudo. E até não é nada. dentro da minha cabeça. Esse maldito eco e só esse é que foi
Eles fizeram-me pequenino e conseguem que eu me sinta o culpado de eu cair. ” (HONWANA, 2022, p.79). Podemos
pequenino. Sim, é isso. Isso é que é tudo”. A velhota compreender que esse “maldito eco” pode representar
responde como se não soubesse do que ele estava falando: simbolicamente o discurso da inferiorização, que durante
“Bem, acho que o melhor é não querer saber disso para séculos, vinha sendo imposto ao povo de Moçambique,
nada, porque não percebo nada do que tu dizes...” ecoando por século na cabeça da comunidade colonizada,
(HONWANA, 2014, p. 83). levando-a à queda, ao silenciamento, à submissão.

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Agredido e humilhado, o narrador resolve ir para casa. — Conta, conta!— e os miúdos rodeavam-nos na esteira.
Aqui, a casa é metaforicamente o espaço de refúgio, de Não, eu não contaria. Não fora para isso que viera para casa.
proteção, de origem. Quando entra em casa em silêncio, Além disso, não seria eu a destruir neles fosse o que fosse.
procura nada contar para eles, talvez com o desejo de A seu tempo alguém se encarregaria de os pôr na raiva. Não,
manter alguma altivez, embora rebentado por dentro. Ao eu não contaria (HONWANA, 2022, p.84). Não dizer nada
observar as suas atitudes, houve insistência da velhota para aos miúdos era para que não houvesse uma pré-disposição
com o filho, a fim de que contasse o que lhe acontecera de quererem lutar, achando que seria indestrutível a
“— Bateram-te? Diz-me, meu filho, eles bateram-te? Quem opressão. Além disso, ele procurou poupá-los para que não
foi? — Não, não me bateram. — Mas eles fizeram-te tivessem a consciência e o sofrimento antes do tempo.
alguma coisa, não fizeram? Tu estás com raiva, não é?” Ficaria a cargo do tempo de lhes revelar os acontecimentos e
(HONWANA, 2022, p.85). Preservar o silêncio, muito mais quem sabe, eximi-los de enfrentar a mesma situação. A
do que não causar dor em sua mãe, preservava a sua perspectiva de dias melhores era enorme, por isso a luta
hombridade, que perdera perante os outros, pois quando se junto à FRELIMO era necessária, para que, mesmo se lhes
levantou, ao sair do bar e ao passar pelas pessoas, o rapaz custasse a vida, os seus filhos ou gerações posteriores
percebeu que todos os “olhavam duma maneira gozassem a liberdade e não passassem por esse estado de
incomodativa, como a denunciar em mim um elemento humilhação e de violência. Nesse sentido, o conto reforça a
estranho, ridículo, exótico e sei lá o que mais.” impotência do sujeito colonizado que se vê impossibilitado
(HONWANA, 2022, p.79). Ao contrário do ambiente fora de se insurgir contra a exploração e o estado de violência
de seu lar, sua casa tornava-se seu abrigo e sua impostos pelo colonizador.
reconstituição como ser humano, por mais que ele não
desejasse ir para casa tão cedo para não ter que se deparar 7.5. Papá, cobra e eu
com o tédio da velhota e com os miúdos chatos. Agora, ele
Tomando um acontecimento prosaico do cotidiano
diz que “precisava de ir para casa”. Em sua casa ele
familiar de Ginho, narrador do conto, a narrativa se inicia
encontraria novamente a sua identidade, que tentaram ou
com a realidade daquela família de moçambicanos
quiseram obrigá-lo fazer perder. A busca dessa confirmação,
assimilados que vivia numa localidade onde também
que ele ainda é um ser humano e não um animal. Após a sua
residiam os colonizadores. O pai, logo após sair da mesa, foi
resistência em não comer e em permanecer no estado de ler o jornal na sala de visitas. Ginho, também não quis
apatia, a sua primeira atitude foi o de “furtar ao impulso de permanecer, mas sua mãe o chamou para examinar os olhos
abraçar a velhota” e “enterrar a cabeça entre os seus seios”. dele. Após essa consulta, sentenciou que Ginho iria tomar
Ao voltar para os seios de sua mãe, seria remetido ao seu purgante na manhã seguinte. Enquanto os irmãos comiam
passado e a lembrança de um ser constituído em pleno com certa pressa, Ginho foi ao quintal da casa. Fazia
desenvolvimento. Era poder retornar às suas origens e bastante calor. A estrada estava vazia. Numa esteira, à
lembrar que um dia ele foi tratado humanamente. No sombra da casa, estava Sartina, empregada da família,
entanto, as marcas da humilhação não saíam de sua sentada a almoçar. Sartina, ao ver Ginho, endireitou-se,
memória, pois as pancadas que recebeu ficaram em sua puxando a capulana para melhor cobrir o corpo. Por ali
mente como eco que soava continuamente. Por isso, pela também estava Totó, o cão da família. De repente, a mãe de
insistência da velhota, ele não aguentou ficar sem desabafar. Ginho aparece à porta do quintal, chamando Sartina para
Tentei não falar, mas não tive tempo de pensar: — Eles tirar a mesa. Também pediu que Sartina colocasse comida
destruíram tudo, eles roubaram, eles não querem... Senti-a para o Totó. Assim, Sartina o fez. Enquanto isso, lança o seu
prender a respiração e endurecer ligeiramente. — Não olhar às estripulias de Totó com as galinhas do terreiro.
queres contar? Não? Não queres? (HONWANA, 2022, Acompanhado da mãe de Ginho, o pai foi até a
p.85). Observamos que os dizeres do filho para a velhota capoeira da casa. Ginho os acompanhou. Ali, havia um
não foram relatar a surra que levou, mas o que os agressores amontoado de coisas. Eram sobras de materiais de
causaram nele. Ao relatar que os colonizadores destruíram construção. As galinhas gostavam de pôr seus ovos nos
tudo, roubaram, observamos que o narrador desabafa, de tubos que se encontravam naquele espaço. A um canto da
uma só vez, aquilo que o angustiava. Não se menciona, no capoeira, havia uma galinha morta. A mãe de Ginho dissera
conto, quem havia agredido o narrador, entretanto pelo que já não sabia quantas galinhas já haviam morrido com
contexto da publicação da obra e pelo engendramento do aquela. Reclama ao marido que já o havia avisado, mas que
enredo, realizamos a inferência de que se trata do Estado ele não tinha dado ouvidos. Também estavam sumindo os
Colonial. Essa ocultação do agressor está em todo o texto, pintos. Um tanto zangada, a mãe de Ginho dá um ultimato a
pois em nenhum momento é explicitado quem havia batido Tchembene para providenciar a solução para aquele
nele. A opção de não expor seus agressores evidencia nesse problema. O pai de Ginho concorda, afirmando que, no dia
conto que o enunciador e o enunciatário não se restringem seguinte, dará cabo da cobra que está a matar as galinhas e a
somente ao filho e à velhota, mas aponta, também, em engolir os pintos. Após selar esse compromisso com a
relação ao conto e ao contexto político e social no qual ele esposa, Tchembene sai da capoeira. A mãe de Ginho, por
foi escrito. sua vez permanece, chamando a atenção de Ginho por estar
Chama atenção no conto o fato de o enunciador não a ouvir a conversa entre os pais. Irritada, também chama a
revelar a agressão sofrida diante dos miúdos, embora as atenção de Sartina, que estava ali perto a ouvir a conversa
crianças tenham insistido. Acredita o narrador que um entre mãe e filho. Sartina, muito envergonhada, saiu dali,
tempo melhor virá para as crianças. Essa melhora só viria mas não encerrou por aí a sua irritação. Novamente Sartina
com o tempo. Tudo há de mudar, tudo há de melhorar... E é alvo das explosões da mãe de Ginho. Ela reclama que
quando eles crescerem... — Hão de crescer... Pois hão de Sartina ficava a mostrar as pernas para toda a gente. Sartina,
crescer nisto... — De verdade que não queres contar? em silêncio, mas indignada, continuou a lavar os pratos.

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Na sequência, o Madunana adentrou o quintal com um conselheiro. Também acrescenta que Deus dá forças para
monte de lenha. Arrumou perto onde se encontrava Sartina. continuar. Na sequência, Ginho afirma que Tchembene
Engraçou-se para Sartina, dando-lhe um beliscão na nádega sentencia que tinha que uma esperança. Mesmo que aquela
da criada, que lhe respondeu com uma palmada sonora no situação vivida com o Sr. Castro possa negar a existência de
braço. Os dois riram satisfeitos. Os irmãos de Ginho Deus dada a injustiça e o sofrimento, mas Deus existia para
(Nandito, Joãozinho, Nelita e Gita) foram brincar de bola no o pai de Ginho. Tchembene acrescenta que “— Mesmo que
quintal. A mãe de Ginho surge, ordenando que Madunana
um pobre tem de ter qualquer coisa... Mesmo que seja só
deixe Sartina em paz e alertando que a criada não quebre
uma esperança! ...Mesmo que ela seja falsa!” (HONWANA,
nenhum prato. E acrescenta que não queria pouca vergonha
em sua casa. A mãe de Ginho iria sair e pede que Ginho 2022, p.103). Ginho confessa ao pai que poderia ter evitado
tome conta da casa. Antes de ir, a mãe de Ginho dá uma a morte do cão do Sr. Castro, mas o pai disse não ter
série de ordens. importância. Acrescenta “ainda bem que foi mordido”
Da estada, o Lobo, cão do Sr. Castro, avistou Totó. Os (HONWANA, 2022, p.103). Pai e filho olharam-se e riram à
dois passaram a ladrar. Os cães da vila tinham medo do Totó vontade. A mãe de Ginho não compreendeu o riso dos dois e
quando ele se zangava, mesmo sendo um animal pequeno. O perguntou se estavam doidos. Tchembene sentenciou: “Sim,
Totó e o Lobo eram amigos. Em seguida puseram-se a já era tempo de sermos doidos” (HONWANA, 2022, p.103).
brincar. Nandito, irmão de Ginho, sentara-se ao lado do Após a mãe retirar-se zangada por não saber do que pai e
irmão Ginho, dizendo que estava cansado de jogar a bola. filho falavam, Ginho e o pai seguiram a conversar.
Ginho levantou-se e foi à capoeira. Lá, Ginho começou a Tchembene diz a Ginho “—Sabes, meu filho (...)sofre-se
mexer nos canos à procura de uma cobra. Não demorou muito... Muito, muito, muito! ...A gente cresce com muita
muito, e Ginho encontrou uma mamba negra. Nandito, por
coisa cá dentro, mas depois é difícil gritar, tu sabes...
sua vez, chorava ressentido com Ginho por não querer
brincar com ele. Ginho pergunta ao irmão se já vira uma (HONWANA, 2022, p.104). A mãe de Ginho insiste em
cobra, se tinha medo de cobra. Nandito confirma que tinha saber sobre aquela conversa. Tchembene segura-lhe os
muito medo de cobras. Nandito não queria mais ficar na ombros e diz “Quando um cavalo endoidece dá-se-lhe um
capoeira, mas acabou permanecendo ali com Ginho. tiro e tudo acaba, mas aos cavalos mansos mata-se todos os
Enquanto isso, o Totó e o Lobo seguiam brincando. De dias. Todos os dias, ouviste?” (HONWANA, 2022, p.104).
repente entraram na capoeira. O Lobo avistou a cobra e Ginho não conseguia mais ouvir a conversa entre os seus
imediatamente começou a ladrar para a cobra. A cobra pais, pois já estavam no quarto.
estava encurralada. Preparou-se para defender-se de uma Ginho, deitado em sua cama e inebriado pelo luar, teve
provável investida do cachorro. Diante da cena, Nandito seus sentidos aguçados pela sensação morna do corpo de
pergunta a Ginho a razão de ele não matar a cobra. Ginho Sartina. Era uma presença quase física, o que levou Ginho a
diz apenas que não lhe apetecia. Lobo ladrava mais. A desejar adormecer com ela para não sonhar com cobras e
cobra, parecendo perceber a aproximação do cão feroz,
cães.
projetou-se para frente, atingindo o peito do Lobo. Dali, o
cão saiu em disparada. Ginho, com a ajuda de Madunana,
matou a cobra. Comentário crítico
O pai de Ginho retornou do serviço e soube que a
cobra já estava morta por Ginho. Estavam na capoeira a Narrado em 1ª pessoa por Ginho, o mesmo narrador do
conversar sobre o fato quando o Sr. Castro chegou. conto Nós matamos o Cão Tinhoso! e Inventários de
Cumprimentou Tchembene e informou que seu cachorro imóveis e jacentes, a narrativa trata do relato que explora
(Lobo) aparecera morto. Acrescentou que os pretos dele uma situação do cotidiano prosaico de uma família de
disseram que o cão viera da casa de Tchembene a ganir assimilados. O fato de um cachorro cujo nome era Lobo ter
antes de morrer. O Sr. Castro exige que Tchembene pague sido picado por uma cobra na capoeira da casa Tchembene,
uma indenização a ele pela morte do seu melhor cachorro. pai do narrador, torna-se o ponto de tensão para que a
Se não fizer o pagamento, o Sr. Castro fará uma queixa à narrativa ponha em destaque as relações de poder,
Administração. Tchembene tenta dialogar com o Sr. Castro, desnudando o caráter impositivo e violento do colonizador,
mas o colonizador está irredutível. Tchembene, resignado
mesmo que as vítimas, os colonizados, gozem de algum
diante da impsição e da ameaça, promete pagar no fim do
prestigio social, já que são assimilados. Nesse sentido, a
mês a quantia de “700 paus” que o Sr. Castro exigira. Após
isso, o Sr. Castro metera-se no carro e fora embora dali. família do narrador, apesar de ocupar certa posição no
Quando o carro já estava distante, Tchembene ensaia um contexto da realidade em que se encontra Moçambique, não
palavrão. Ginho exorta o pai, perguntando por que não consegue ultrapassar os preconceitos, sofrendo com a
dissera aquilo na frente do Sr. Castro. Tchembene não opressão estabelecida pelo sistema colonial. No conto, o Sr.
respondeu ao filho. Castro, alegoricamente representa essa força repressiva,
Após o jantar, Tchembene decide que a oração será, impondo ao pai de Ginho, Tchembene, por meio da ameaça,
naquele dia, em ronga. Após a oração, a mãe de Ginho a posição de todo Moçambicano, assimilado ou não, a
indaga o marido sobre a visita do Sr. Castro, mas realidade da segregação. Alegoricamente, por trás dessa
Tchembene desconversa, dizendo que não era nada de história, caminha, de maneira subjacente, o silenciamento, a
especial. Todos saem. Ginho fica a sós com o pai, imagem da afasia diante da violência do colonizador.
perguntando o motivo de o pai rezar quando está muito Vale ressaltar que a falta de reação do pai de Ginho
zangado. Tchembene responde que Deus é o melhor escamoteia uma consciência de sua condição. Também

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revela uma sabedoria, pois Tchembene sabe que o momento


da verdadeira revolta ainda está por vir. O trecho sobre a “Já não sei a que propósito é que isso
esperança a seguir nos dá uma pista dessa afirmação: vinha, mas o Senhor Professor disse um
“— Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia dia que as palmas das mãos dos pretos são
acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, temos de mais claras do que o resto do corpo porque
ir arranjar forças para continuar a dizer ‘isso não tem ainda há poucos séculos os avós deles
importância’. Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-me! andavam com elas apoiadas ao chão, como
Isso só foi um bocadinho da ração de hoje...”. os bichos do mato, sem as exporem ao sol,
Um detalhe interessante nessa narrativa é que Lobo que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
está no grupo de cães que destrata o Cão Tinhoso o que é Lembrei-me disso quando o Senhor Padre,
indicativo de que eram representantes dos colonizadores. depois de dizer na catequese que nós não
Essa comunicação entre os contos constitui índice de prestávamos para nada e que até os pretos
intratextualidade. Essa singularidade também está eram melhores do que nós, voltou a falar
exemplificada na figura do narrador Ginho, criança que nisso de as mãos deles serem mais claras,
narra o conto Nós matamos o Cão Tinhoso! e Inventário de dizendo que isso era porque eles, às
imóveis e jacentes. Outro detalhe importante diz respeito ao escondidas, andavam de mãos postas, a
tratamento dado pela mãe de Ginho à criada da casa. A rezar.” (HONWANA, 2022, p.107)
rudeza com que a esposa de Tchembene dispensa a Sartina
parece reproduzir o próprio tratamento que os Tomado por essa ideia fixa, o narrador, por meio de
moçambicanos recebem do colonizador. Considerando a um jogo de pergunta-resposta, vai inquerindo diferentes
posição de assimilados (aqueles moçambicanos que pessoas com o intuito de encontrar definitivamente uma
assimilaram a cultura do colonizador), a mãe daquela solução que seja plausível. A narrativa assume um caráter de
família parece reproduzir esse discurso da violência por um périplo inquisitorial em que serão descortinadas
meio da inferiorização do outro. diferentes respostas à curiosidade da criança.
A questão de uma família de assimilados ganha força Na escola, o professor afirmara que as mãos dos pretos
na religiosidade da família. No fatídico dia em que o Sr. tinham palmas brancas pelo fato de que os avós deles [dos
Castro exigiu a indenização pela morte do seu cachorro, pretos] andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos
Tchembene nega-se a ler a Bíblia, preferindo fazer uma do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o
oração em ronga “ —Tatana, ha ku dumba Hosi ya tilo ni corpo. Já o Senhor Padre afirmara, empregando uma
misaba...”(Confiamos em ti, Senhor da terra e do céu) perspectiva religiosa, que os pretos, às escondidas, andavam
(HONWANA, 2022, p.102). sempre de mãos postas, a rezar. Dona Dores, por sua vez,
A substituição da leitura da Bíblia, símbolo da cultura cristã Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a
europeia, por uma oração em ronga propõe uma quebra com comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra
o pacto social e cultural com os colonizadores, coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão
reestabelecendo laços com a identidade mais profunda de limpa. Já o Senhor Antunes da Coca-Cola diz que Deus,
Tchembene, um moçambicano. Além dessa relação com a Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro,
cultura identitária, o conto evoca a presença de crenças muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura
populares nas narrativas, por exemplo, “A Sartina diz que estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido
para a gente não morrer depois de ser mordidos por uma para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos.
cobra é preciso matá-la, queimá-la até ficar seca e comê-la”, Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes
(p. 68 - 69); (HONWANA, 2022, p.98). usados para cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os
Assim como em outros contos da obra Nós matamos o fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar
Cão Tinhoso!, a narrativa “Papá, cobra e eu” reitera a nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés.
relação entre opressor e oprimido, em que o colonizado é Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E
silenciado pela persistência da opressão. Como o Cão tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram
Tinhoso que fica a olhar como se quisesse algo sem poder brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o
pedir, assim é Tchembene, impedido de confrontar o Sr. barro deles cozia?! O Senhor Frias também dá sua versão ao
Castro (imagem representativa do Estado Colonial) para não menino, dizendo que Deus acabava de fazer os homens e
perder os privilégios de que goza como assimilado. Então, o mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho
que restam é a resignação, o silêncio e a afasia. as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram
feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse
7.6 As Mãos dos pretos muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as
plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Como na maioria dos contos de Nós matamos o Cão Num livro, instrumento do saber autorizado, a criança lê que
Tinhoso!,o conto As mãos dos pretos apresenta-nos os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem
realidade trágica da sociedade colonial moçambicana pelo encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia
olhar de um narrador-criança. Movido por uma curiosidade, e de mais não sabia onde. Para Dona Estefânia, a
a criança deseja encontrar uma resposta para um enigma que singularidade das palmas brancas das mãos dos pretos é só
o inquieta: por que as palmas das mãos dos pretos são pelo fato de as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
brancas? Essa busca, por uma resposta se deve ao fato de Finalmente, a mãe do menino, mesmo dando uma resposta
que a criança, recusando a explicação dada pelo professor e mítico-religiosa, apresenta um discurso que dá ao leitor a
evocada pelo padre, se vê determinada a descobrir a razão explicação mais plausível, que celebra a igualdade entre os
que justifica essa peculiaridade. seres humanos. Disse ela que Deus fez os pretos porque os

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tinha de haver. Tinha de os haver, meu filho, ele pensou que é o Senhor Antunes da Coca-Cola, que apela ao
realmente tinha de o haver... depois arrependeu-se de os ter mítico-religiosos, assim como fez Dona Dores, e a justifica
feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos que Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São
para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou Pedro, santos, os anjos e algumas pessoas que tinham
pouco mais. Mas como ele já os não pudesse fazer ficar morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram
todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los fazer pretos. Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes
pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles usados para cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os
ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar
homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. O
não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: fumo das chaminés foi-lhes escurecendo a pele. Como eles
foi para mostrar o que os homens fazem é apenas obra dos tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia, as
homens. Deve ter sido a pensar assim que ele fez com que palmas das mãos permaneceram brancas, enquanto corpo foi
as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que enegrecido pelo fumo. Novamente temos uma imagem que
dão graças a Deus por não serem pretos. desqualifica o preto, pois está associada à ideia da
fabricação, sobretudo pela menção a instrumentos de
Comentário crítico segunda mão na fabricação dos pretos; além disso, eles não
são criados, de acordo com a tradição bíblica, mas
As Mãos dos Pretos, um dos contos mais conhecidos fabricados, coisificados. Note que o nome do indivíduo que
de Honwana, traz à tona a questão do racismo quando, mais oferece essa resposta está relacionado a uma fabricante de
uma vez, uma criança se lança a narrar e atuar no conto. bebida, o que reforça a ideia de fabricação, industrialização,
Esse recurso narrativo é predominante na coletânea. A busca portanto, a reificação do sujeito. Outro cidadão responde à
da explicação da razão de as palmas das mãos dos pretos curiosidade do narrador-criança. O Senhor Frias, após o
serem mais claras que o resto do corpo faz o pequeno Senhor Antunes ter ido embora, chamou o narrador e
narrador encontrar várias versões, sempre com tons racistas, explicou-lhe a sua versão para a peculiaridade nas mãos dos
não percebidos por ele. E são essas respostas que irão pretos. O sujeito explica para o narrador que Deus acabava
desvelar a natureza da violência de um estado colonizador de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do
que impõe ao colonizado um discurso de inferiorização, céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os
racismo e segregação. As versões dadas à criança sobre a pretos, como foram feitos de madrugada, e a essa hora a
razão de as palmas das mãos serem brancas partem da mais água do lago estava bastante fria, os pretos só molhavam as
racista até a mais redentora. Ressalte-se que as respostas que palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e
o narrador obtém originam-se de indivíduos brancos, virem para o mundo. A explicação, embora um tanto
representações do colonizador europeu, que não se mítico-poética, mas resguarda uma visão também racista,
importam em estar falando com uma criança, manifestando-se pois vincula a criação dos pretos ao sofrimento, já que
com inspirações irônicas, racistas e impactantes, o que pode foram feitos de madrugada, sofrendo com a baixa
causar no leitor uma dose de indignação e comoção, temperatura da água em que deviam mergulhar. Note que
oferecendo a esse mesmo leitor uma visão geral do contexto sempre o discurso-resposta está ancorado numa imagem
em que se desenvolve o relato, conectando-o à abordagem desqualificadora do preto. Ainda em busca de um
histórica de Moçambique representada na obra e mais comentário esclarecedor, o narrador recorda um livro que
particularmente no conto em questão. lera, que por acaso falava sobre essa singularidade. Segundo
O primeiro personagem que dá uma explicação sobre a a obra, os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem
singularidade das mãos dos pretos é o Senhor Professor. encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia
Representante do saber, da ciência, o docente afirma que a e de mais não sei onde. O livro, simbolicamente
razão de as palmas das mãos serem brancas reide numa representativo do saber autorizado, também cumpre o seu
questão ancestral, já que os avós deles [dos pretos] andavam papel de agente disseminador do racismo, da escravidão e da
com as mãos apoiadas ao chão, como os bichos do mato, inferiorização do preto, pois vincula a cor negra da pele à
sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o corpo. escravidão, ao cultivo de algodão, daí que os pretos vivem
Observe que a explicação tende a uma perspectiva encurvados física e socialmente. Dona Estefânia, outra
zoomórfica, reduzindo o sujeito a um processo de personagem que também responderá ao périplo investigativo
animalização. Já o Senhor Padre, a partir de uma perspectiva da criança, não concorda com a explicação livresca. Em
religiosa, afirma que a razão é outra. Diz o religioso que os outra direção afirma que, para ela, as palmas das mãos
pretos, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a serem branca, é só pelo fato de as mãos desbotarem à força
rezar, o que explicava essa coloração branca. Não satisfeitos de tão lavadas. Explicação de Dona Estefânia se aproxima
com essas explicações dadas, a criança resolve inquerir de Dona Dores, pela evocação à pureza/impureza,
outras pessoas da comunidade. Na sequência, Dona Dores acrescentando-se o fato do trabalho que exige esse constante
responde ao interrogatório da criança, dizendo-lhe que Deus esforço. O término dessa demanda da criança se dá ao
fizera-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a inquerir a própria mãe. Diz a genitora ao filho que Deus fez
comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra os pretos porque os tinha de haver., Ele pensou que
coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão realmente tinha de o haver… Depois se arrependeu de os ter
limpa. A imagem que emerge dessa resposta reside na ideia feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos
da desqualificação dos pretos, considerados sujos. Há um para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou
jogo implícito em que se constrói o antagonismo de pureza pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar
(a raça branca) / impureza (os pretos). A saga da criança todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los
continua em busca de uma resposta sensata. A figura da vez pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles

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ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros A Dona Dores
homens. A mãe segue sua explicação e diz que a razão foi “A Dona Dores, por exemplo, disse-me
para mostrar o que os homens fazem é apenas obra dos que Deus fez-lhes as mãos assim mais
homens. Deve ter sido a pensar assim que ele fez com que claras para não sujarem a comida que
as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que fazem para os seus patrões ou qualquer
dão graças a Deus por não serem pretos. A forma sintética e outra coisa que lhes mandem fazer e que
precisa com que a mãe do garoto inicia sua explicação: não deva ficar senão limpa”.
“Deus fez pretos porque tinha de os haver.” (HONWANA, (HONWANA. 2022, p.107).
2022 p. 109). Simples e direta em sua estrutura, eis aí uma O Senhor Antunes
afirmação ontológica e radical do sujeito negro, por mais “Antigamente, há muitos anos, Deus,
que a máquina colonial insista em oprimi-lo e negá-lo. A Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria,
reposta da mãe comunga do aspecto mítico-religioso São Pedro, muitos outros santos, todos os
observado em outras respostas dadas à criança pela menção anjos que nessa altura estavam no céu e
a Deus e à fatalidade (impossibilidade de mudança da cor da algumas pessoas que tinham morrido e ido
pele), entretanto os pretos não são vítimas de um processo para o céu, fizeram uma reunião e
de desqualificação. Também não há ênfase a diferenças, mas resolveram fazer pretos. Sabes como?
a semelhanças. E o que se torna mais importante nessa Pegaram em barro, enfiaram-no em
resposta é reconhecimento do processo histórico consciente moldes usados para cozer o barro das
e convincente de desqualificação dos pretos, considerado criaturas, levaram-nas para os fornos
pela mãe não como obra divina, mas obra dos homens, celestes; como tinham pressa e não
responsáveis que são por estabelecer as diferenças, o houvesse lugar nenhum ao pé do brasido,
racismo, o preconceito e a violência. A versão da mãe se penduraram-nas nas chaminés. Fumo,
apresenta a nós como dramática apresentação da sabedoria fumo, fumo e aí os tens escurinhos como
africana, a única que pode discorrer sobre si mesma a partir carvões. E tu agora queres saber por que é
de dentro, com conhecimento de causa, sem a contaminação que as mãos deles ficaram brancas? Pois
ideológica de ex-potências coloniais brancas, que veem a então se eles tiveram de se agarrar
África como território de rapina e os negros como seres enquanto o barro deles cozia?!”
inferiores. Há, portanto, uma dimensão pedagógica na (HONWANA. 2022, p.107).
explicação, pois ela é doadora do conhecimento, a detentora
da sabedoria. E como mãe, é a depositária inegável do afeto O Senhor Frias
e condutora maior do processo de conhecimento de mundo “Coisa certa e certinha sobre isso das mãos
apresentado ao filho. dos pretos era o que ele sabia: que Deus
Nessa resposta específica (a dada pela mãe para acabava de fazer os homens e mandava-os
explicar a singularidade das mãos dos pretos), o autor deseja tomar banho num lago do céu. Depois do
promover a afirmação ontológica da existência dos pretos, a banho as pessoas estavam branquinhas. Os
despeito do racismo que rege as relações coloniais. pretos, como foram feitos de madrugada e
Perpassa, nesse sentido, um interesse maior do autor: por a essa hora a água do lago estivesse muito
meio de uma narrativa que explora a curiosidade de uma fria, só tinham molhado as palmas das
criança, Honwana invalida o discurso do opressor, anulando mãos e as plantas dos pés, antes de se
o estatuto ordinário da discriminação. E toda essa lógica está vestirem e virem para o mundo.”
engendrada na intervenção da mãe da criança, que reage às (HONWANA. 2022, p.108).
respostas colhidas pela criança e oferece uma outra
explicação, mas sem o fio do racismo e da inferiorização Assim, essas explicações, embora sejam diferentes,
presentes nas explicações dos outros inqueridos pelo filho. comungam do elemento mítico-religioso como base de
Chamam atenção do leitor alguns pontos particulares explicação e da ideia da submissão social e da
no conto As mãos dos pretos. Primeiro, o fato de que quase desqualificação do sujeito. Concebido, conforme as versões
todos os personagens que respondem à curiosidade da apresentadas pelos personagens identificados com o Estado
criança são brancos a julgar pelos nomes: o Senhor Colonizador, como predestinados ao sofrimento desde a
Professor, a Dona Dores, o Senhor Antunes da Coca-Cola, o criação, os pretos são compreendidos como os seres
Senhor Frias, a Dona Estefânia. Como representações inferiores criados para a servidão e para o sofrimento. Esse é
metonímicas da figura do colonizador, esses personagens o discurso do colonizador, que impõe uma consciência ao
reproduzem um discurso de superioridade por meio da colonizado, afirmando ser o preto o ser fora da ordem: é
desqualificação e inferiorização dos pretos, representações inferiorizado, bestializado, descaracterizado como humano.
do povo de Moçambique. Essa dimensão alegórica, que No campo das reflexões suscitadas pelo autor, é
percorre o texto, também se observa na obra de que faz parte possível identificar que, ao longo da leitura, o conto se
o conto As mãos dos pretos. Outro fator que também é reveste da peculiar estratégia do discurso que se constrói de
curioso é o fato de que há uma terceirização do racismo em maneira subjacente ao que está elencado em sua superfície.
algumas respostas (a do Senhor Antunes, a da Dona Dores, a Esse texto implícito, que caminha paralelamente ao
do Senhor Padre). Em tais explicações, atribui-se a Deus a explícito, articula-se na narrativa a partir da intenção de
responsabilidade de ter criado as diferenças, privilegiando o Honwana, o de desenvolver uma narrativa antirracista,
branco e inferiorizando os pretos. Observe: anticolonialista. A engenharia do enredo não é complexa,
mas o que se extrai da aparente simplicidade do conto é
intenso e provocador, causando no leitor, impacto e

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comoção. A violência das respostas, o status da as rolas reúnem-se nas matas que dividem as machambas do
inferiorização dispensada ao preto, o racismo baseado na vale. Durante duas ou três semanas, em bandos numerosos,
ideia de superioridade do europeu e o privilégio divino dado sobrevoam os campos em largos círculos” (HONWANA.
ao branco revelam a dimensão da brutalidade, no conto 2022, p.111). Destaca o narrador que as rolas fazem o
disfarçada até de certo tom anedótico (versão apresentada reconhecimento do futuro campo de operações. Segundo o
pelo Senhor Antunes, o que provocara risos nos presentes) e narrador, as rolas são aves práticas, pois sacrificam, no seu
mítico-religioso das respostas. É contra toda essa visão voo, a graça da pirueta e a amplitude de uma curva a
colonialista que se insurge a narrativa de Honwana, o que necessidade de chegar mais depressa. Tem um cantar triste,
deixa claramente entrever a presença de uma militância que não tem tempo de ser musical. Ao fim do dessa parte
literária. Nesse sentido de reflexão, Mata (2014) salienta que denominada “As rolas”, o narrador realiza a descrição do
as produções literárias carregam vestígios dos caminhos que Nhinguitimo, uma espécie de forte ventania sazonal que
marcaram culturalmente os indivíduos, antepassados e ameaça os pássaros, o que força as rolas a procurarem
povos, considerando necessário concentrar o olhar para o refúgio no mais recôndito da folhagem da figueira.
autor como aquele que tem em si resquícios que fizeram Na segunda parte do conto cujo subtítulo é “Como
parte de sua trajetória, por essas razões, carecemos enxergá- seria possível esquecer aquela noite?”, o narrador estabelece
lo com base na época em que está inserido. Aqui, essa os personagens e a trama propriamente dita. O narrador é
dimensão ganha força dado que Honwana inaugura em também personagem, entretanto ocupa um papel secundário,
Moçambique a produção de uma literatura de engajamento, pois narra distanciado dos eventos que serão apresentados,
utilizando da alegoria como procedimento de representação ou seja, se não é totalmente alheio ao que se passa ao seu
de um contexto histórico e social marcado pelas tensões e redor, pouco faz em termos de atitudes. Após nos ter
pela luta anticolonialista. apresentado o Vale do Incomati em uma imagem
O que nos parece muito claro, ao final do conto, é a panorâmica, o narrador situa o conto em uma pequena vila e
conclusão de que os conceitos construídos a partir da seus arredores naquela região, no vale do Incomati. Nessa
inquisição realizada pelo narrador-criança estão assentados parte do conto, já é possível compreender que a economia
no conjunto de crenças que formalizam o pensamento de do lugar gira em torno da agricultura, pela qual se
uma sociedade racista e violenta, que acaba por influenciar relacionam os tipos da vila. Em relação ao espaço, o
diretamente a vida dos indivíduos negros que passam a ser narrador destaca as plantações dos grandes agricultores nas
discriminados por questões relacionadas à cor da pele. Mas proximidades da vila. Do outro lado do rio Incomati fica a
a resistência vem em forma de um conto, cujo enredo é terra fértil de Goana, “um sítio onde o administrador ainda
bastante rudimentar como já fora dito aqui nestas resumidas não tinha ordenado o levantamento da reserva indígena”
linhas. A figura da mãe do narrador-criança, considerando o (HONWANA, 2022, p. 115) e onde o personagem Vírgula
engendramento alegórico da narrativa, constitui a própria Oito tem sua machamba. Conta-nos o narrador que figuras
voz do autor, numa clara projeção da visão de Honwana, importantes como o administrador, o médico, o chefe dos
militante da FRELIMO (Frente de Libertação de correios, o veterinário e o chefe da estação, em noites
Moçambique). A voz da mãe reverbera o quão ridículo eram extremamente úmidas iam beber na cantina do Rodrigues.
as versões apresentadas à criança, uma espécie de delírio de Também os trabalhadores da machamba iam abancar-se no
uma raça que se achava pretensamente superior. Destaca a balcão do bar. Por entre as mesas circulavam alegremente as
mãe que o racismo e a violência são obras dos homens. Du prostitutas da vila. A tasca do Senhor Rodrigues
Bois (1999, p. 39) salienta “[...] que o sangue negro tem transformava-se no centro de reunião da vila, o que dava ao
uma mensagem para o mundo”, o sangue negro contém proprietário grande satisfação. É nesse ambiente em que se
relevante representatividade na sociedade, e porta a encontra o narrador “Põe entre aquela confusão toda, eu e
mensagem de que, exatamente como os demais indivíduos outros rapazes inteiravamo-nos das ideias dos senhores
dispõem do direito da “[...] liberdade de viver e desfrutar, a importantes da vila, confraternizávamos abertamente com as
liberdade de trabalhar e de pensar, a liberdade de amar e prostitutas, sem que isso merecesse qualquer reprovação, e
almejar”. (DU BOIS, 1999, p. 45), os negros são espelhos oferecíamos cigarros aos trabalhadores, matávamos a sede
dos que os outros seres humanos são capazes de fazer com com coca-colas e o tempo com aldabrices” (HONWANA,
seus semelhantes, do mesmo modo que, manifesta através 2022, p. 115).
de suas trajetórias enquanto sujeitos fortes marcas de Na tasca de Rodrigues, as conversas, em geral,
resistência, luta, superação e conforme o autor referido, de versavam sobre agricultura do vale, sobre o preço do milho,
liberdade para usufruir das vivências agradáveis que os sobre a colheita. O narrador acrescenta que não era amigo
caminhos da existência oportunizam. de Vírgula Oito, personagem protagonista do conto.
Alexandre Vírgula Oito Massinga era um jovem nativo que
7.7. Nhinguitimo
trabalhava na machamba do senhor Rodrigues, entretanto
Nhinguitimo é um conto dividido em 6 subtítulos, mas ele também tem a sua própria machamba, localizada nas
apenas a partir do segundo (“Como seria possível esquecer terras de Goana, do outro lado do rio. Naquela noite quente
aquela noite, caramba?!”) que a história e os personagens se e terrivelmente úmida, Vírgula Oito apareceu à porta do bar,
desenvolvem. Porém, é já na primeira parte, “As rolas”, que dirigindo-se a uma mesa próxima onde estavam os amigos
Honwana começa a construção espacial que vai guiar o Maguiguana e Matchumbutana, também como Vírgula Oito,
conto: aqui ele nos descreve uma parte do Vale do Incomati trabalhadores da machamba de Rodrigues. A conversa que
e, mais especificamente, relata o comportamento das rolas se desenvolveu entre os amigos foi sobre as colheitas que se
naquela área em relação aos “ataques” aos alimentos avizinhavam. Vírgula Oito, para fazer inveja aos amigos
plantados nas machambas de lá. “Pouco antes das colheitas,

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falou sobre suas plantações e sobre N’teasse, uma jovem lá Vírgula Oito aproximou-se e saudou o senhor administrador.
do Goano. O narrador, enquanto esperava o sono, lembrou a Rodrigues diz ao senhor administrador que poderia
última frase de Vírgula Oito que memorizara enquanto interrogar Vírgula Oito sobre as terras de Goana. Na
ouvia a conversa entre os três amigos no bar do Rodrigues: sequência, Vírgula Oito é bombardeado pelas perguntas
“— Quando chegar o nhinguitimo tudo vai mudar – dissera sobre a fertilidade das terras, sobre as machambas e outras
ele. — As machambas grandes que eles fazem vão ficar perguntas triviais. Depois da inquirição, o senhor
destruídas pela fúria do vento. As nossas machambas administrador dispensou Vírgula Oito, que se despediu,
continuarão a amarelecer calmamente, porque as grandes saudando novamente o chefe da vila. Enquanto isso, os
árvores do outro lado do rio protegem-nas dos ventos. O amigos de Vírgula Oito reiteravam que os brancos não iam
preço do milho vai subir e nós vamos ter algum dinheiro. gostar das ideias de Vírgula Oito.
(HONWANA, 2022, p. 117). Em seguida, o narrador No subtítulo “A terra do Goana era boa que se
adormeceu. fartava”, o narrador focaliza a machamba de Vírgula Oito,
Na sequência, no subtítulo “O Rodrigues da loja no trecho mais descritivo do conto. Aqui, é revelada como a
fartou-se de esfregar o tampo do balcão”, Vírgula Oito, após terra relegada à população indígena era, propositalmente, de
contar o seu projeto, fica a espreitar o interesse dos amigos baixa qualidade, “dando para o rio uma frente estreitíssima”.
sobre o que acabara de revelar. Vírgula Oito vê a Porém, este não era o caso de Goana: contra a regra, a
reserva da região do Goana dava ao rio uma das faces do seu
possibilidade de sua plantação render muitos lucros,
comprimento. Todas as suas pequenas machambas tinham
pois o nhinguitimo (tempestade com fortes ventos vindos
por isso acesso às águas do Incomáti. Situada a 12
do sul) não prejudicaria sua roça (por ela estar do outro lado
quilômetros da vila, na outra margem, era a mais próspera
do rio, protegida pelas árvores), atingindo apenas as grandes
de toda a circunscrição. Compreendendo terrenos baixos,
plantações dos brancos. Com isso, o jovem vislumbra a
alagadiços, era manchada por uma série de lagos que se
possibilidade de se tornar um “patrão”, comprar
mantinham mesmo durante a estação da cacimba.
maquinários, aumentar a produção, casar-se, enfim,
(HONWANA, 2022, p. 125). Também acrescenta o narrador
melhorar sua condição de vida. Os amigos de Vírgula Oito, que a colheita já se iniciara. Era matraquear entusiasmado
embora tenham introduzido um “mas”, acabaram daquela gente mergulhada na espessura da floresta. Ali
concordando com Vírgula Oito. estava a machamba de Vírgula Oito. Ainda nessa parte do
O Rodrigues da loja, por sua vez, sabendo da conto, o narrador narra o encontro de Vírgula Oito e a jovem
fertilidade das terras de Goana, insinua-se ´para o senhor N’Teassê. Por entre os capins, os jovens enamorados
administrador, sugerindo que o importante homem fosse ver brincavam naquelas primeiras horas da manhã numa espécie
as terras de perto. Um tanto indisposto, o senhor de um divertido jogo amoroso.
administrador respondeu que tinha mais o que fazer. Em Na penúltima parte do conto, no subtítulo
seguida, o senhor administrador ainda ironizou os interesses “Nhingutimo”, o narrador destaca a fala de Matchumbutana,
de Rodrigues naquela terra, o que levou o grupo que o que afirmava que os brancos levavam as terras e eles, os
acompanhava às gargalhadas. Aborrecido com os risos, nativos, não podiam fazer nada. Acrescentava que Vírgula
Rodrigues acabou por entrar no ritmo das gargalhadas. Oito não poderia zangar-se. Mas o protagonista argumentou
Em seguida, o narrador se volta novamente para o que havia nascido naquela terra, onde também nascera o seu
grupo de amigos em que se encontrava Vírgula Oito. pai. Toda a sua família era dali. Seus ancestrais estavam
Matchumbutana disse acreditar no que dissera Vírgula Oito, enterrados ali. Em sua fala, Virgula Oito questiona o motivo
mas tinha dúvida se os brancos iriam permitir que o de Rodrigues, que já era um homem rico, querer aquelas
protagonista tivesse tanto dinheiro. Maguiguana reforçou o terras. Vários homens seguiam aquela conversa acocorados.
que dissera Matchumbutana. Mas Vírgula Oito, Um caminhão avançou rugindo. O motorista parou e
ingenuamente, argumentou que não matava, não roubava; ordenou que os rapazes carregassem o caminhão
come daquilo que ganha com o trabalho; gastava o dinheiro rapidamente. O capataz perguntou por Vírgula Oito. O
com a família, pagava os impostos, pagava os trabalhadores. protagonista aproximou-se, mas alegou estar doente, o que
E questionou o motivo de os brancos se zangarem com ele lhe impedia de trabalhar. O capataz não aceitou a
por ganhar dinheiro honestamente. Os amigos acabaram por justificativa e ordenou que Vírgula Oito fosse ajudar a
concordar com Vírgula Oito, embora não estivessem carregar o caminhão. Em seguida, os trabalhadores
totalmente convencidos. aproximaram-se de Vírgula Oito. Ele se insurgia contra
A narrativa volta-se novamente para Rodrigues, que Rodrigues, perguntando aos companheiros se eles achavam
insiste novamente com o senhor administrador sobre as certo o que o dono do bar estava a fazer com eles. Os
terras de Goana. Argumenta que lhe custava ver “uma terra trabalhadores estavam com medo. Revoltado, Vírgula Oito
tão rica a ser desperdiçada pelos pretos” (HONWANA, incitava os companheiros. A resignação resultava na miséria
2022, p. 117). Rodrigues acrescenta, com tom de bajulação, e na continuidade da segregação social e racial. De repente,
que sempre confiou na clarividência com que o senhor o céu ficou negro. O tempo mudara rapidamente. Parecia
administrador dirigia superiormente os interesses das que o nhinguitimo estava chegando. As rolas, conforme dito
populações. Em seguida, Rodrigues convoca Vírgula Oito na primeira parte do conto, faziam sobrevoos, anunciando a
até a mesa do senhor administrador. Respeitosamente, chegada dos ventos fortes e rumando para as grandes
florestas.

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Na última parte do conto “Nessa noite juro que senti numa visão estereotipada do preto, aquele que desperdiçava
raiva”, o narrador destaca a sua alienação e a sua tomada de a terra. Veja: Senhor administrador, se eu insisti nisto é só
consciência sobre a trágica realidade que ali se passava, o porque me custa ver uma terra tão rica a ser desperdiçada
que não o impressionava. Destaca o narrador que, enquanto pelos pretos, [...] e sempre lhe digo que esta vila podia ter
a chuva fina caia lá fora, o narrador jogava cartas na tasca melhor sorte se desse um pouco mais de atenção às
de Rodrigues. De repente adentra o salão o Maguiguana, pretensões das suas gentes [...] Senhor administrador, eu
berrando dizendo que Vírgula Oito com Alifaz e sempre confiei na clarividência com que Vossa Excelência
Matchumbutana, no calor das discussões com os dirige superiormente os interesses das populações neste
trabalhadores, havia matado Zedequiel. Também tentou momento conturbado [...]. (HONWANA, 2022, p. 120). O
matar Maguiguana, mas este conseguira fugir. Rodrigues, discurso que justifica a expulsão pelos brancos
por sua vez, convocou os homens a pegar as suas armas para colonizadores está na fala do dono do bar que é o ponto de
abater Vírgula Oito. Depois que todos saíram em busca de encontro dos homens da vila está pautado na falta de
Vírgula Oito, o narrador levantou-se da mesa. Diante de habilidade e na falta de conhecimento que levam ao
tudo que acontecera, o narrador tem um momento de desperdício da terra, no sentido de produzir e de auferir
conscientização sobre os fatos, concluindo que ignorou tudo lucro. Logo, não podem ter a posse, restando a eles o
aquilo. Mas aquilo não poderia continuar assim, algo tinha trabalho como empregados dos brancos colonizadores,
que ser feito. Ele não podia mais ficar alienado. considerados agricultores hábeis.
Ao estabelecermos uma analogia com o contexto
Comentário crítico social e histórico em que a obra foi produzida e publicada, o
autor do conto demonstra a relação de poder existente entre
Com o foco narrativo em 1ª pessoa, o conto Nhinguitimo o colonizador (sujeito) e colonizado (objeto), em que
apresenta um narrador homodiegético, o que significa dizer Vírgula Oito se torna um louco, subversivo, por não aceitar
que o narrador participa da narrativa, mas o foco a exploração, a humilhação a que é submetido,
concentra-se no personagem Vírgula Oito, o protagonista do constituindo-se sujeito agente e não mero objeto manipulado
conto. Como todos os contos do livro, Nhingutimo realiza pelos dominadores. A revolta do personagem, em lugar da
uma denúncia da violência do Estado Colonial, revelando as busca de uma organização coletiva, parece partir da – ainda
mazelas que esse sistema impôs a Moçambique. No conto, – falta de elementos para que esta última se constitua, pois o
Honwana constrói as relações de poder ao colocar a personagem é um dos poucos que se levantam frente à
opressão e a passividade, de um lado, e a conscientização e exploração sofrida, ouve dos seus amigos: “Massinga, nós
revolta, de outro por meio da relação de Vírgula Oito com não podemos fazer nada... Eles levam-nos as terras e nós
seus amigos. [...] Massinga... Ouve, eu acredito nisso temos de não dizer nada... [...] Tu não te podes zangar,
tudo que tu dizes que vais fazer... [...] Sabes... Eu não Massinga... Não te deves zangar...” (HONWANA, 2022,
sei se eles não ficarão zangados por tu teres tanto p.128). Vírgula Oito responde: “Estão todos com medo...
dinheiro... Eles são capazes de não gostar disso... Nós vamos ficar sem nada e todos continuam com medo...”
Eles não vão permitir que tenhas tanto dinheiro... [...] Eles (HONWANA, 1985, p. 128). O personagem, até então
são capazes de não gostar, Massinga... [...] Eles são capazes passivo, ante as exploração e humilhação sofridas, propala
de não gostar ... É que tu és capaz de ter mais dinheiro do sua revolta, porém a inércia e o medo são as respostas que
que o enfermeiro e o intérprete, os assimilados... [...]. retornam dos seus amigos. Não se pode esquecer que o
(HONWANA, 2022, p. 119). A caracterização da “nhinguitimo” aqui pode ter um sentido metafórico,
impossibilidade da ascensão social, da subordinação referendando a devastação que o colonialismo representou
econômica, da impossibilidade de ter as mesmas condições para o povo moçambicano, destruindo esperanças,
e direitos está exposta por meio do emprego do pronome subjugando uma nação, impondo violência e disseminando o
“eles”, o agente repressor, os brancos, os portadores do discurso da inferiorização.
poder, os que ditam as regras, incutida na mentalidade dos As últimas frases do conto, na fala de um narrador
amigos de Vírgula oito. A ascensão econômica – ter homodiegético, reforçam a necessidade de mudança nas
dinheiro – de Vírgula Oito é o fato que pode despertar a ira relações presentes até então: “Caramba, como que é possível
(deles), porém, ao mesmo tempo, desconstrói o discurso em haver tipos como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava ao
que os “pretos” não teriam conhecimento necessário para sete-e-meio aconteciam uma data de coisas e eu nem me
impressionava! Nada, ficava na mesma, fazia que não era
trabalhar na terra, que somente a desperdiçariam, não
comigo... [...] Poça, aquilo tinha que mudar!” (HONWANA,
podendo, dessa forma, ter o controle ou a posse dela como 2022, p. 131). O narrador, também um jovem, que vive a
assinalara Rodrigues ao tentar convencer o senhor jogar sete-e-meio, a confraternizar com as prostitutas da
administrador para tomar a posse da terra de Goana. vila, a matar pombas nas plantações, ao acompanhar, narrar
Reparemos que as ambições de Rodrigo e Vírgula Oito os desdobramentos que marcam a história de Vírgula Oito,
giram em torno das terras do Goana: a cobiça de Rodrigues chega à noção de que algo deve ser feito: “Poça, aquilo tinha
é motivada pela terra; e Vírgula Oito planeja sua ascensão que mudar!” (HONWANA, 2022, p. 131). É na passagem
social com base na fertilidade e posição estratégica dessa do conformismo à revolta que o colonizado tratado como
mesma terra. Entretanto, o projeto de Vírgula Oito esbarra objeto percebe-se sujeito, percebe-se oprimido e vislumbra a

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necessidade da revolução. Pode-se até inferir que esse Embora a subjugação do homem africano seja tema em
sujeito narrador seja uma projeção do próprio autor, que todas as narrativas, ela surge como denúncia, levando o
diante da constatação da realidade de violência, opressão, leitor a enxergar o negro como subalternizado e não como
racismo, inicia a sua revolução a partir da publicação de subalterno, bestializado ou animalizado. Aqui, o colonizado
uma obra que denuncia as mazelas e o sofrimento imposto percebe toda a lógica do sistema e, inconformado, busca
pelo sistema colonial, o que o transforma num escritor uma maneira de livrar-se da condição de inferioridade que
militante. lhe foi imposta pelo sistema colônia. O que Honwana realiza
no livro é pensar e questionar a organização da sociedade
7.8. Rosita, até morrer colonial para que, por meio da estratégia da alegoria
construir uma metáfora crítica que se observa na subjacência
“Rosita, até morrer” foi escrito entre 1964 e 1967, dos contos, revelando a necessidade da mudança.
período durante o qual o autor esteve preso pela PIDE. Nesse sentido, nos contos, o aparente silêncio esconde
O texto, pertencente ao gênero epistolar, constitui uma uma indignação e um desejo de mudança, sementes da
experiência literária afastada, do ponto de vista estilístico, revolução que irá se desenhar no contexto político da época
da obra publicada por Luís Bernardo Honwana, em Moçambique. Lembro aqui o narrador do conto
Nós Matámos o Cão-Tinhoso!, pois “Rosita, até morrer” é
“Nhinguitimo”, que em sua frase final manifesta esse
uma carta, de apenas duas páginas, ditada pela protagonista,
Rosita, a alguém chamado Chico Mandlate e destinada a sentimento: “Caramba, como que é possível haver tipos
Manuel, um homem que a abandonou, quando estava como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava ao sete-e-meio
grávida da sua filha, partindo para um núcleo urbano com aconteciam uma data de coisas e eu nem me impressionava!
outra mulher, de modo a tornar-se um assimilado. A carta Nada, ficava na mesma, fazia que não era comigo... [...]
representa, portanto, um monólogo dramatizado da Poça, aquilo tinha que mudar! (HONWANA, 2022, p. 131).
personagem de Rosita, de marcado carácter oral. Está Honwana vai projetando para um futuro próximo à
escrita, integralmente, numa variante pidginizada da língua independência de Moçambique que se construirá da tomada
portuguesa (pidgin é uma palavra que designa qualquer
de consciência do povo. Opondo-se à problemática do
língua criada, normalmente de forma espontânea, a partir da
silêncio imposto pela censura e à alienação, recorrentes em
mistura de duas ou mais línguas e que serve de meio de
comunicação entre os falantes dessas línguas), na qual todos os contos, está a figura das crianças, narradores
encontramos estruturas sintáticas, lexicais e rítmicas das privilegiados de Honwana. Esses sujeitos inquisitores
línguas banta e a inclusão direta de vocábulos da língua rompem com o silêncio e, aos poucos, vão tomando
ronga. Uma das principais funções da escolha da variante consciência do contexto político em que vivem. Como se
pidginizada da língua portuguesa é o fato de tornar a percebe no conto Inventário de moveis e jacentes em que o
inferioridade, na qual se encontra a personagem Rosita, narrador, um menino chamado Ginho, que no silêncio da
ainda mais patente e visível do que podem mostrar o próprio noite, enquanto toda sua família dorme, vai narrando de sua
conteúdo da carta e o fato de ela a ditar por não saber
cama o mundo que o circunda. Assim, ele vai revelando ao
escrever.
leitor o contexto da repressão e do medo do Estado
8. Considerações finais Colonial, que impõe o enclausuramento, a letargia. Todavia,
mesmo parecendo sujeitos passivos ou covardes, esses
Ao realizarmos uma imersão nos contos de Luís personagens possuem uma consciência de sua condição e
Bernardo Honwana, compilados na obra Nós matamos o uma sabedoria, pois sabem que o momento da luta e da
Cão Tinhoso! fica evidente o tom de denúncia contra a verdadeira revolta está por vir, como explica o pai do
repressão, a discriminação racial, a expoliação e a menino Ginho em Papá, cobra e eu: — Meu filho, tem de
exploração do povo moçambicano colonizado. Por meio dos
haver uma esperança! Quando um dia acaba e sabemos que
personagens oprimidos e humilhados presentes nas
narrativas, Howana constrói uma realidade especular para amanhã será tudo igualzinho, temos de ir arranjar forças
representar uma forma de alienação figurada pelo silêncio para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem
imposto pela censura e pela aparente passividade dos importância’... Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-
personagens diante da crueldade e da injustiça que sofrem. me! Isso foi só um bocadinho da ração de hoje... Não meu
No conto Papá, cobra e eu, por exemplo, o pai é humilhado filho, mesmo que isto tudo só o negue, Ele tem de existir!...
e ameaçado pelo Sr. Castro, figura do colonizador branco. (Honwana, 2022 p.105).
No conto A velhota o jovem narrador é agredido na rua, mas A coletânea de contos suscita temas espinhosos para o
apesar de rebelde não pode reagir, restando uma indignação
contexto à época, pois as histórias têm como fundo a
consciente. No conto Dina (pronúncia do black-english da
sociedade colonial moçambicana, mas tem como sujeito da
palavra inglesa “dinner”, que significa a hora do almoço nas
lavouras), o velho Madala, apesar dos apelos do jovem enunciação o negro moçambicano. É ele que vivencia e
rebelde, não reage ao ver sua filha ser abusada pelo capataz. denuncia os males do sistema colonial português e aponta
E, em Nhinguitmo, que em língua ronga significa para projetos de independência e unidade nacional, o que
tempestade, a narrativa explora o tema da desapropriação de nos leva a considerá-la uma produção literária anticolonial.
terras pelos colonizadores. Nesse conto, Virgula Oito,
trabalhador da “machamba”, vê seu sonho de enriquecer do
cultivo de suas próprias terras se tornar inalcançável por
causa da cobiça de Rodrigues, o dono da tasca da vila.

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9. Nota explicativa
HAMILTON, Russell. Literatura africana, literatura
Nos contos, os papéis eram, então, exercidos da necessária. Lisboa: Edições 70, 1984, 2 vol. HONWANA,
seguinte forma: os colonos, europeus radicados nas Luís Bernardo. Nós matamos o Cão-Tinhoso. São Paulo:
colônias, ocupavam os cargos de administrador e Ática, 1980.
funcionários das colônias; os colonizados eram explorados
pelo sistema e alguns, poucos, tinham a sorte, se assim pode HONWANA, Luís Bernardo. Nós Matamos o Cão-Tinhoso.
dizer, de estudar nas escolas coloniais e depois serem São Paulo: Kapulana, 2022.
enviados para a metrópole, de onde voltavam “assimilados”. ____________________________“A cultura é o cimento
O “nativo”, para ser considerado “assimilado”, “via-se mais adequado à construção dum novo país”. Entrevista. In.:
obrigado a abandonar os usos e costumes tradicionais (...) e FERNANDO, Helder. Hoje macau, sexta-feira, 22 de
portar-se sob as normas do sistema econômico imposto outubro de 2010b, p.18-19. Disponível
pelos colonizadores” (MUNANGA, 1988, p.14). em:<https://issuu.com/hojemacau/docs/hm-22-10-10>.
Acessado em junho de 2016.
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AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
pós-coloniais. Lisboa: Caminho. 2004. 2001.

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, MEMMI, Albert Retrato do colonizado precedido pelo
colonialismo e libertação. São Paulo: UNESP, 2009. retrato do colonizador. Trad. Roland

CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas: literatura e MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais: desconstruindo
nacionalidade. Lisboa: Ed.Vega, 1994. genealogias eurocêntricas. Porto Alegre: Civitas, v.14, n.1,
p.22-42, 2014
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e
teoria narrativa. 2 ed. São Paulo: Ática, 2002, vol. 1. MENDONÇA, Fátima. Prefácio: palavras (des)necessárias.
In: HONWANA, Luís Bernardo. Nós Matamos o
DU BOIS, W.E.B. As Almas do povo Negro. Tradução de
Cão-Tinhoso. Maputo: Alcance Editores, 2014. p. 3-15.
José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.

EVARISTO, Conceição. “Luís Bernardo Honwana: Da MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos.
afasia ao discurso insano em Nós matamos o Cão-Tinhoso”. São Paulo: Editora Ática, 2009.

In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo & SALGADO, Maria SARTRE, Jean Paul Prefácio. In: FANON, Frantz
Teresa (Orgs.). África & Brasil: letras em laços. Rio de Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização
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FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José SECCO, Carmen Lúcia Tindó. “Apostila de poesia das
Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização cinco literaturas africanas de língua portuguesa”. Rio de
Brasileira, 1968. Janeiro: UFRJ, 2002.
_____________. Pele negra, máscaras brancas. Trad.
Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha


Taborda. Panorama das literaturas africanas de língua
portuguesa. In: Cadernos CESPUC de Pesquisa –
Literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte:
PUCMinas. Série Ensaios, n. 16, p. 13-69, set. 2007.

FRANCO, André M. Palavras em Revolução: o uso político


das figuras de linguagem em três contos de Nós Matamos o
Cão-Tinhoso. A Thesis Submitted to the Graduate Faculty
of The University of Georgia in Partial Fulfillment of the

equirements for the Degree Master of Arts. The University


of Georgia. Athens, Geórgia, 2002.

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11. Anexos

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12. Exercícios 3. “ — Meu filho, os miúdos já se foram...


— Sim, eu vou dizer: eles bateram-me.
1. “As portas e as janelas fechadas. O Papá não gosta de — Que foi? Mas isso não é tudo, tu tremes...
dormir com as portas e janelas abertas não sei por quê. Sim, isso não é tudo. E até não é nada. Eles
Pode-se pensar que é por causa da doença, mas eu acho fizeram-me pequenino e conseguem que eu me sinta
que ele sempre foi assim. Ele agora dorme no nosso pequenino. Sim, é isso. Isso é que é tudo. E por quê?
quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, Eles nem o dizem de alto. E tudo cai, cai de repente,
recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que com barulho aqui dentro, e cai e cai e cai...”
se improvisou no nosso quarto, já que não convinha “A velhota”. In “Nós matamos o Cão Tinhoso”
de Luís Bernardo Honwana.
mexer na cama do casal, no quarto dele.”
Com relação ao fragmento do conto “A velhota” e ao
“Inventário de imóveis e jacentes”. In “Nós matamos o Cão Tinhoso”, contexto integral da obra, analise as assertivas:
de Luís Bernardo Honwana. I. O personagem, ao revelar a agressão que sofrera,
enfatiza que a dor maior reside na humilhação que
No trecho, a descrição do ambiente realizada pela sofrera;
criança que narra o conto associa-se à seguinte ideia II. A fala do personagem está atravessada por uma
presente em outros contos da obra: indignação, o que o move para um enfrentamento,
a) A resistência ao colonizador por meio de uma abandonando a resignação e a imobilidade;
III. A queda do personagem pode representar
consciência crítica, tema também presente em
metaforicamente a submissão de Moçambique,
“Dina”. vítima da violência e do discurso de inferioridade
b) O racismo e a imposição da violência, temas disseminado pelo colonizador.
observados em “A velhota”.
Está correto o que se diz em:
c) A letargia e a resignação, temas observados em a) I, II e III.
“Papá, cobra e eu”. b) I e II.
d) A exploração da força de trabalho, tema também c) I e III.
comum no conto “Nós matamos o Cão Tinhoso”. d) II e III.
e) O preconceito e a escravidão, temas presentes em e) III apenas.
“As mãos dos pretos”. 4. Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os
haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os
2. haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os
“ Mal acabamos de jantar o Papá disse: outros homens se riam deles e levavam-nos para casa
— Mulher, manda a Sartina tirar a mesa depressa. Meus deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais.
filhos, vamos rezar. Hoje não vamos ler a Bíblia. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos
Vamos rezar simplesmente. brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los
pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos
Quando a Sartina acabou de tirar os pratos e rrumou a deles ficassem exactamente como as palmas das mãos
toalha, o Papá começou: dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que
—Tatana, há ku dumba Hosi ya tilo ni misaba. não sabes e não admira porque muitos e muitos não
Quando acabou, estava de olhos vermelhos. sabem. Pois olha: foi para mostrar o que os homens
— Amém!” fazem é apenas obra dos homens…Que o que os
homens fazem é efeito por mãos iguais, mãos de
“Papá, cobra e eu”. In “Nós matamos o Cão Tinhoso”, pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem
de Luís Bernardo Honwana. qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar
assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem
iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por
No trecho do conto “Papa, Cobra e eu”, o emprego da não serem pretos.
linguagem ronga constitui no contexto da representação
“As mãos dos pretos”. in “Nós matamos o Cão Tinhoso” ,
da obra: de Luís Bernardo Honwana.
a) forma de resistência, resgatando as raízes
identitárias frente à cultura do colonizador. No conto “As mãos dos pretos”, o narrador é um
menino anônimo que procura respostas para um enigma:
b) sincretismo linguístico para revelar o processo de Por que os pretos têm as palmas das mãos brancas? No
assimilação da cultura europeia amalgamada à trecho, observa-se que a mãe, ao responder à indagação
cultura de Moçambique. do menino, manifesta uma visão
c) rebeldia linguística, negando a cultura cristã de a) racista de natureza mítico-religiosa, atribuindo a
natureza europeia e valorizando os elementos Deus a responsabilidade pela segregação racial.
míticos da religiosidade primitiva africana. b) escravista, considerando a inferioridade dos pretos,
o que os levou à condição de escravidão, exploração
d) multiculturalismo das personagens, valorizando a e violência.
diversidade linguística dos povos de Moçambique e c) reificada dos pretos dada a condição de sujeitos
do colonizador. fabricados e coisificados, resultando numa raça inferior.
e) liberdade linguística reservada ao universo particular d) mítico-religiosa, consciente e convincente da
das famílias dos colonizados que preservavam a desqualificação dos pretos como obra dos homens.
cultura originária e autóctone. e) sociológica e religiosa, tomando a realidade como
pressuposto para explicar as diferenças raciais entre
os povos.

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5. Se agora quisesse ler uma revista, ia direitinho à mesa 8. O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham
do centro, porque lá estão as ‘Lifes’, as ‘Times’ e as brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre
‘Cruzeiros’ mais recentes. Na mesa de centro está cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. (...)
também o ‘Reader’s’, mas talvez nem lhe tocasse Andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo
porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos
uma porcaria. Bem, mas para ele todas as re¬vistas que tão malucos que parecia uma carroça velha (...)
a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos
porcaria” brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava
“Inventário de imóveis e jacentes”. in “Nós matamos o Cão Tinhoso”, dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas
de Luís Bernardo Honwana.
moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando
O trecho, segundo o olhar do narrador e o enredo do andava, as moscas iam com ele, a voar em volta.
conto, revela que: Ninguém gostava de lhe passar a mão nas costas como
a) os bens inventariados pela criança constituem o aos outros cães.
patrimônio do pai que falecera na prisão.
b) a mãe do narrador tinha um gosto literário “Nós matamos o Cão tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana
considerado frívolo, o que é contestado pelo pai.
c) o pai do narrador, ao rechaçar as revistas, manifesta Considerando o contexto histórico de publicação da
uma oposição à cultura estrangeira representada por obra, a imagem do “Cão tinhoso” constitui uma
tais publicações. a) metonímia de Moçambique, configurando a
d) a família, por ser letrada, consome a cultura degradação do país arrasado pela guerra civil
civilizada, negando suas raízes culturais africanas, o b) representação exagerada do povo africano, vítima do
que os torna assimilados. colonialismo e da assimilação dos valores
e) a condição escravizada da família, cuja único ocidentais.
entretenimento é o consumo de cultura estrangeira c) alegoria representativa do declínio do colonialismo
como mecanismo de aculturação. português e da aversão do povo de Moçambique a
essa ocupação.
6. Em “Inventário de imóveis e jacentes”, da obra “Nós
matamos o Cão Tinhoso”, observa-se um aspecto já d) distorção expressionista, concebendo uma
antecipado pelo título do conto: a imagem da letargia, representação caricatural do povo moçambicano.
da imobilidade. Em outros contos da obra, a imagem da e) Construção social e cultural do povo português que
letargia e da imobilidade pode ser identificada, exceto vivia em Moçambique, destacando o choque de
no conto: valores ocidentais com a realidade local.
a) “As mãos dos pretos”: a criança que desejava
decifrar um enigma. 9. Na passagem, ao estabelecermos uma comparação entre
b) “Dina”: o personagem Madala diante da cena de o “Cão Tinhoso” e os demais cães, no contexto da
violência do capataz ao abusar da filha do representação histórica da obra, pode-se inferir que o
personagem. “Cão tinhoso” :
c) “Papá, cobra e eu”: o silêncio do pai de Ginho ao ser a) Representa aquele sem dignidade, privado de
ameaçado pelo Senhor Castro. identidade, destinado ao esquecimento pelas
d) “Velhota”: personagem que decide retornar a sua mazelas que causou ao povo de Moçambique.
casa, buscando o consolo da mãe. b) Constitui a imagem dos oprimidos e injustiçados de
e) “Nhinguitimo”: o temor dos amigos de Vírgula Oito Moçambique, portanto sem nomes e identidades.
em relação aos brancos não permitirem a ascensão c) Evoca a vitória do colonialismo, tomado como um
do protagonista. fato a ser esquecido pelo povo português.
7. “Um forte cheiro a barro subia da terra, misturava-se d) Simboliza o martírio dos que morreram na guerra e
aos vapores acres do pântano e às fragrâncias da foram silenciados em suas lutas.
floresta; depois agarrava-se às gotículas do véu azulado e) Sugere a indiferença do colonialismo português
e desfazia-se lá em cima, no ar já intensamente dourado frente aos anseios de libertação de Moçambique.
pelo sol nascente”
10. Considere os aspectos gramaticais e semânticos do
“Nhinguitimo”. in “Nós matamos o Cão Tinhoso”
de Luís Bernardo Honwana trecho anterior.
I. A oração “que haviam de fazer” apresenta valor de
No treco do conto “Nhinguitimo”, o autor mobiliza restrição e função adjetiva;
recursos expressivos cujo objetivo é construir uma II. O trecho “no”, de “no que haviam de fazer”,
imagem:
desenvolve função de objeto indireto, equivalendo à
a) determinista, explorando a relação do homem com a
terra fértil e generosa, valorizando a geografia local. construção “naquilo”;
b) sensorial, explorando o recurso da sinestesia por III. O termo “lhe”, “quando Bobi lhe foi cheirar o rabo”,
meio do apelo visual e olfativo, o que permite captar apresenta valor de posse, assumindo função de
o texto pelas sensações. adjunto adnominal.
c) poética, utilizando uma sequência de imagens
pautadas nas relações associativas e metonímicas. Está correto o que se diz em:
d) figurativa, sugerindo a imagem de uma terra a) I apenas.
arrasada pelo colonizador, o que produz a comoção b) I e II apenas.
do personagem Vírgula Oito. c) I e III apenas.
e) injuntiva, revelando uma sequência de imagens d) II apenas.
sensíveis e metafóricas para representar a terra. e) I, II e III.

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11. Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendente para o Considerando o contexto histórico e a realidade
chão. Madala ouviu a última das dozes badaladas do representada, a fala de Vírgula Oito no conto
meio dia. Erguendo cabeça, divisou por entre os pés de “Nhinguitimo” apresenta-se marcada pelo (a):
milho a brancura esverdeada das calças do capataz, a a) Esperança consciente, pois os fatos narrados
dez passos de distância. Não ousou endireitar-se mais posteriormente confirmarão as previsões do
porque sabia que apenas devia largar o trabalho quando personagem.
ouvisse a ordem traduzida num berro. Apoiou os b) Ingenuidade, pois, como alertaram os amigos, os
cotovelos aos joelhos e esperou pacientemente. brancos não permitiriam que um colonizado
ganhasse tanto dinheiro.
(HONWANA, 1980, p. 40). c) Rebeldia, pois Vírgula Oito rebela-se contra o
homem que usurpou a sua terra, subjugando os
Ao considerarmos o trecho do conto “Dina”, pode-se índios da regia de Goana.
inferir que Madala d) Idealismo, pois não há verdade no que dissera
a) tinha consciência de que o capataz estava Vírgula Oito, um jovem trabalhador que vivia a
excedendo-se no uso do poder. sonhar acordado.
b) esperou a convocação do capataz para enfrentá-lo. e) Resignação, pois sabia que jamais poderia alcançar
c) aceitou tacitamente a sua condição de homem um status diferente naquela sociedade racista e
alienado e submisso. colonialista.
d) repreendeu o capataz pela humilhação imposta ao
um homem velho. 14.
e) resignou-se ao capataz, pois sabia que era um velho — Nessa altura pago o imposto, compro sapatos, um
fraco e doente. fato, um chapéu, uns óculos, uma banguela e um
sobretudo... e caso-me com a N’teasse... – esclareceu o
12. — O branco é mau... – continuava o rapaz. Ele demora Vírgula Oito [...] Já falei com o régulo e ele disse que
muito antes de mandar largar... Eu vi isso quando sim [...] Arranjo uns homens para trabalhar só para
trabalhava na machamba... Também não deixa as mim, como moleques, e eu mesmo que lhes pago
pessoas endireitarem-se por um bocado para descansar quando chegar o fim do mês, porque nessa altura sou eu
as costa... Eu vi isso uma vez... – Subitamente o patrão.
(HONWANA, 1980, p. 83-84).
inspirado, o jovem virou-se para os outros. — Uma
vez, estávamos nós a trabalhar na machamba com o No trecho, o personagem Vírgula Oito, por meio de sua
branco. Fazia muito sol... toda a gente sabe que faz fala aos companheiros, manifesta o desejo de:
muito sol na machamba... vocês vão ver por que é que a) alcançar respeito, colaborando com o sistema
eu digo que o capataz é mau. – O jovem continuou a colonial.
narração, cada vez mais tomado pelo entusiasmo, b) liderar sua circunscrição, mas atendendo os anseios
transferindo suas palavras de Madala para os seus do Estado Colonial.
companheiros. c) superar o homem branco, acessando esse mundo por
meio do lucro do trabalho.
(HONWANA, 1980, p. 44). d) alcançar reconhecimento dos colonizadores ao
conquistar o respeito por meio do trabalho.
Com base no trecho e na leitura integral do conto, e) reproduzir a exploração que sofria, impondo aos
analise as afirmativas: seus trabalhadores o mesmo regime.
I. O jovem do curral, diferentemente de Madala,
apresenta uma postura mais reativa em relação ao 15.
capataz, tentando conseguir o endosso do velho para — Senhor administrador, se eu insistir nisto é só porque
um ato de rebeldia; me custa ver uma terra tão rica a ser desperdiçada pelo
II. Madala, por ter mais experiência, comporta-se com pretos [...] e sempre lhe digo que esta vila podia ter
mais prudência em relação aos desmandos do melhor sorte se se desse um pouco mais de atenção às
capataz, o que evidencia sua completa alienação dos pretensões das suas gentes [...] Senhor administrador, eu
fatos; sempre confiei na clarividência com que Vossa
III. O jovem do curral, por meio de sua fala, tenta Excelência dirige superiormente os interesses das
insuflar Madala e os outros companheiros, mas não populações neste momento conturbado [...] mas isso lá
logra sucesso em sua empreitada, o que o irrita do baixio do Goana é tão importante...
profundamente.
(HONWANA, 1980, p. 86).
Está correto o que se diz em:
a) I, II e III. Com relação ao trecho do conto “Nhinguitimo”,
b) I e II. considere as assertivas:
I. A fala do Rodrigues, o dono da loja da vila, revela a
c) II e III.
cobiça desse personagem pelas terras de Goana;
d) I e III. II. O trecho está atravessado de um discurso racista,
e) III apenas. pois há um tom de inferiorização que desqualifica a
comunidade nativa de Moçambique;
13. — Quando chegar o “Nhiguitimo” tudo vai mudar – III. O discurso também é costurado por um tom de
dissera ele. — As machambas grandes que eles fazem bajulação em torno da figura do senhor administrador.
vão ficar destruídas pela fúria do vento. As nossas
machambas continuarão a amarelar calmamente porque Está correto o que se diz em:
as grandes árvores do outro lado do rio protegem-nas a) I apenas.
dos ventos. O preço do milho vai subir e nós vamos ter b) I e II apenas.
algum dinheiro. Deus tem de querer que seja assim... c) I e III apenas.
d) II e III apenas.
(HONSANA, 1980, P. 83).
e) I, II e III.

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16. Quando a minha vista deixou de tremer, vi duas pernas Ginho, narrador-criança do conto “Inventário de
vestidas de escuro que, nascidas uma de cada lado do meu imóveis e jacentes”, ao descrever o ambiente da sua
corpo, cresciam longamente para cima, tesas e tensas, casa, constrói uma imagem alegórica, conforme se
convergindo para a placa de metal brilhante do cinto. Por observa no texto, para representar:
cima delas, lá em cima, perto do teto, a cara fitava-se a) O estado de letargia do povo moçambicano e a
atenta, sorrindo satisfeita. (HONWANA, 1980, p. 54). sensação de enclausuramento em que vivia o
colonizado.
No conto “A velhota”, conforme anuncia o trecho b) O medo imposto pelo colonizador ao colonizado,
anterior, o autor vale-se de duas lógicas impostas pelo
forçando o povo de Moçambique a uma vida
sistema colonial ao colonizado, a saber:
reclusa.
a) Resignação e afasia.
b) Subserviência e racismo. c) O autoritarismo do Estado Colonial, representado
c) Violência e humilhação. pela prisão do pai de Ginho, um assimilado que se
d) Rejeição e acolhimento. rebelou contra o sistema.
e) Passividade e alienação. d) O sofrimento do povo colonizado, constantemente
vítima do racismo e da marginalização social, o que
17. Eu precisava de ir para casa. Acho que já tinha vontade levava ao estado de isolamento social.
de o fazer antes mesmo de entrar no bar, por isso, o que e) A alienação e a passividade do povo de
aconteceu lá dentro não era o que me levava a ter tanta Moçambique, tornando-se massa de manobra do
vontade de ir para casa. Não via a velhota e os miúdos, colonizador.
não sei desde quando, porque ultimamente voltava a
casa muito tarde e saía muito cedo mas não tinha bem a 20. Sartina, vê se consegues não partir nenhum prato até
certeza de os querer ver mais alguma vez. A velhota era acabares. Despacha-te Tu Madunana, deixa a Sartina em
insípida e os miúdos eram chatos e barulhento, sempre paz e mete-te na tua vida. Não quero poucas-vergonhas
com porcarias para resolver. (HONWANA, 1980, p.55). aqui. Se vocês continuam com isso, digo ao Patrão! Tu,
No conto “A velhota”, o retorno para casa significa Ginho (agora falava em português) toma conta da casa e
alegoricamente: lembra-te de que já não és nenhuma criança. Não batas
a) O desejo de isolamento social. em ninguém e não deixes os miúdos sair do quintal [...]
b) A rota de fuga para fugir da violência. Sartina (voltou a falar em ronga), quando acabares isso,
c) A busca de conforto materno. põe a chaleira ao lume para o lanche das crianças e
d) O refúgio que lhe permite sentir-se humano. manda o Madunana comprar pão [...] Ginho (agora em
e) A necessidade de proteger a família. português) toma conta de tudo, que eu volto já, vou ali à
casa da comadre Lúcia conversar um bocado.
18. Claro que isso não era nada que se comparasse àquilo (HONWANA, 1980, p.66).
do bar, de há bocado, ou de todos os outros bases,
restaurantes, átrios de cinemas ou quaisquer outros No conto “Papá, cobra e eu”, Ginho, narrador-criança,
lugares no gênero em que todos me olhavam duma destaca o tratamento dispensado por sua mãe à criada
maneira incomodativa, como que a denunciar em mim Sartina. Considerando o trecho, a justificativa provável
um elemento estranho, ridículo, exótico e sei lá o que para esse tratamento pode estar associado (a) ao (à):
mais. Que nojentos! E eu sem poder rebentar a) Diferença de classes sociais, já que a família de
exatamente por causa do raio da velhota e dos ranhosos Ginho era de assimilados.
dos miúdos”. (HONWANA, 1980, p. 55). b) Necessidade de parecer superior para impor sua
O sentimento que perpassa a fala do personagem- autoridade.
protagonista do conto “A velhota” manifesta: c) Sentimento de ciúmes do marido, já que Sartina era
a) A revolta por aperceber-se deslocado no espaço uma mulher bonita.
social do qual faz parte. d) Desconfiança de que Sartina ficava a insinuar-se
b) A resignação por se aperceber diferente dos que ali para os outros empregados da casa.
estavam. e) Zelo que a mãe tinha pelos empregados, tratando-os
c) A sublimação dos preconceitos para não afetar a de forma rude para fortalecer a criadagem.
família.
d) A consciência de que já era hora de dar um basta no 21. Leia o texto a seguir.
racismo. “Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes para
e) A fraqueza do homem colonizado diante de um o chão, Madala ouviu a última das doze badaladas do
regime opressor. meio dia. Erguendo cabeça, divisou por entre os pés de
milho a brancura esverdeada das calças do capataz, a
19. As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta
dez passos de distância. Não ousou endireitar-se mais
de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por
quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu porque sabia que apenas devia largar o trabalho quando
acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no ouvisse a ordem traduzida num berro. [...] O sol estava
nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, mesmo em cima do seu dorso nu, mas convinha
recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que suportar um pouco mais. Contou o tempo pelo número
se improvisou no nosso quarto, já que não covinha de gotas de suor que lhe pingavam pela ponta do nariz
mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, para uma pedrinha que brilhava no chão. [...] A dor de
1980, p. 36).
rins era-lhe insuportável, e muito pior agora que já tinha

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tocado o dina. Quando os músculos do pescoço lhe Está correto o que se diz em:
começavam a doer pela torção a que os submetia, a) I, II e III.
mantendo a cabeça erguida, deixou cair os braços até b) I apenas.
tocar nas folhinhas carnudas e escorregadias das ervas c) I e II apenas.
que devia arrancar.” (HONWANA, 1980, p. 40). d) I e III apenas.
e) III apenas.
No trecho, pode-se inferir que o narrador:
( ) descreve o ambiente da machamba, denunciando as 23. Leia o texto:
precárias e desumanas condições de trabalho.
Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor
( ) relata as dificuldades de Madala em se relacionar
professor disse um dia que as palmas das mãos dos
com o capataz, já que este o perseguia por ser
pretos são mais claras do que o resto do corpo porque
velho e fraco.
ainda há poucos séculos os avós deles andavam com
( ) toma uma posição ao valer-se de um acentuado elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as
descritivismo, marcado por uma nítida denúncia do exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do
abuso de poder por parte do capataz. corpo. Lembrei-me disso quando o senhor padre, depois
( ) mantém, durante toda a narrativa, um de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo
distanciamento do fato narrado, o que demonstra a para nada e que até os pretos eram melhores que nós,
impessoalidade diante das cenas tratadas. voltou a falar nisso de as mãos serem mais claras,
dizendo que isso era assim porque eles andavam com
A sequência correta está no item: elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a
a) C – C – E – E rezar. [...]
b) E – C – E – C
“Nós matamos o Cão-Tinhoso”. Conto: “As mãos dos pretos”,
c) C – C – C – C de Luís Bernardo Honwana.
d) E – E – C – E
e) C – E – C – E Com relação ao trecho e à leitura do conto, assinale a
alternativa incorreta.
22. Leia o trecho: a) O autor se utiliza da voz ingênua de uma criança
para mostrar, por meio da ironia, os discursos
— Madala, não queres vir comer? – Era outra vez o racistas que circulavam no mundo colonialista.
Djimo. — Agora é mesmo para comer porque o b) A explicação dada pelo professor está ancorada
n’Guiana e Muthakati já acabaram de fazer a comida. numa visão de superioridade, reduzindo os pretos à
condição animal.
— Eu fico aqui com a minha filha, Djimo.
c) As teses defendidas pelo padre e pelo professor
O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou-se
partem do mesmo princípio de explicação teórica,
com um cigarro na mão:
apoiando-se numa visão desumanizada e
— Olá, Maria! O que é que vieste cá fazer? Estás a determinista dos pretos.
engatar o Madala?... Ao Madala não deve ser porque d) A fala do senhor padre permite inferir que ele e o
está muito cocuana... Talvez seja o Djimo... Maria, tu narrador-personagem não se inserem no grupo dos
estás a enganar o Djimo?... pretos.
— Eu não está engatar Djimo.. – respondeu Maria, e) O senhor padre, mesmo afirmando que os pretos
tentando falar em português. [...] eram melhores que os brancos, deixa entrever certa
— Mas tu não gostarias de dormi com ele? Hein? inclinação racista.
De olhos postos no chão. Maria não respondeu. O
capataz afastou-se sorrindo. (HONWANA, 1980, p. 46). 24. No trecho “que lhes ia escurecendo o resto do corpo”, o
termo “lhes” apresenta comportamento morfossintático
Com base no trecho e na leitura integral do conto, também observável na passagem:
considere as assertivas, tomando como referência a a) “Por entre as raízes saltou um escorpião, mas como
figura do capataz e sua representação no conto. não lhe conviesse erguer-se...”
I. A presença do capataz, homem branco, b) “Primeiro dizia que só se deitava com quem lhe
representante dos privilégios europeus em um desse vinte escudos”.
sistema colonial, é visto como uma constante c) “...embebedava-se de tal maneira que não era
ameaça, sobretudo pela forma violenta de agir; preciso dar-lhe nada...”
d) “O segundo nó quase que lhe arrancava os rins, mas
II. A cena revela todo desprezo que o capataz, e por
pelos lábios de Madala...”
extensão, todo colonizador tem em relação aos
e) “Maria sentiu-se embaraçada com os olhares que os
colonizados, tratando-os com deboche e presunção;
homens lhe lançavam”.
III. O capataz, ao insinuar que Maria estava ali para ter
relações com o Madala, ofende toda uma tradição
cultural africana a qual vê nos velhos os sinais da
ancestralidade, da sabedoria, sendo tratado com
deferência.

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25. Leia o trecho a seguir do conto “Dina” Está correto o que se diz em:
a) I, II e III.
“O jovem do grupo do curral cuspiu para os pés de b) I e II.
Madala:
c) II apenas.
— Cão
d) III apenas.
O velho desconheceu o insulto. Voltou-lhes as costas e e) I e III apenas.
tomou o caminho da machamba...”
28. Leia o fragmento do conto “Dina”.
Considerando contexto do conto, pode-se concluir que:
a) a atitude temperamental do jovem do curral denota a Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes para o
revolta da juventude frente à situação de opressão, chão, Madala ouviu a última das doze badaladas do
mas não ajuda o empoderamento do discurso do meio-dia. Erguendo a cabeça, divisou por entre os pés
oprimido. de milho a brancura esverdeada das calças do capataz, a
b) a tentativa do jovem de iniciar um discurso dez passos de distância. Não ousou endireitar-se mais
libertador não reflete o pensamento de Madala, já porque sabia que apenas devia largar o trabalho quando
que o velho já perdera as esperanças na libertação. ouvisse a ordem traduzida num berro. Apoiou os
c) o comportamento do jovem constitui uma alegoria cotovelos aos joelhos e esperou pacientemente.
da revolução, profundamente imatura e
temperamental em suas propostas libertárias. O sol estava mesmo em cima do seu dorso nu, mas
d) o silêncio de Madala revela um homem alienado e convinha suportar um pouco mais. Contou o tempo pelo
patético, vítima de um processo de inferiorização número de gotas de suor que lhe pingavam pela ponta
que apagou seu orgulho e sentimento. do nariz para uma pedrinha que brilhava no chão, a seus
e) a resignação de Madala simboliza uma Moçambique pés, e concluiu que o capataz devia estar muito zangado.
completamente escravizada, imobilizada e Voltou a espreitar as pernas a dez passos de distância e
inconsciente de sua condição. viu-as ainda na mesma posição. Alongando a vista para
26. – Leia a passagem do conto “Dina”. além delas, viu a mancha escura do corpo do Filimone,
igualmente dobrado sob a superfície das folhas mais
“Madala inclinou-se para a frente e enrolou o caule de altas dos pés de milho, aguardando a ordem de largar o
um arbusto envolta de pulso. Deu um ligeiro puxão para trabalho.
ver se estava bem preso. Depois deixou o corpo pender
para trás até que o arrancou”. A dor dos rins era-lhe insuportável, e muito pior agora
que já tinha tocado o dina. Quando os músculos do
Com relação ao processo de estruturação do texto, pescoço lhe começaram a doer pela torção a que os
pode-se constatar que o processo coesivo se dá a partir submetia, mantendo a cabeça erguida, deixou cair os
do emprego de: braços até tocar nas folhinhas carnudas e escorregadias
a) pronomes remissivos, retomando termos anteriores, das ervas que devia arrancar. Maquinalmente,
evitando repetições. apalpou-as para sentir a resistência dura do caule
b) morfemas relacionais ou conectivos introdutores de diminuto, entranhou os dedos por entre os raminhos e
orações subordinadas adjetivas. retesou o corpo. Embora a planta não resistisse
c) síndetos aditivos, dando origem a uma sequência de grandemente ao empuxão, os tendões da parte posterior
orações independentes. da articulação do joelho latejaram-lhe dolorosamente.
d) correlações entre os verbos das orações, garantindo Depois ergueu a planta para se reanimar com o cheiro
a coesão temporal numa sequência lógica e linear. forte da terra negra que vinha presa às raízes
e) orações justapostas, desenvolvendo uma ligação esbranquiçadas.
sintática e semântica entre os segmentos.
Disponível em: HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão
27. Leia o trecho do conto “Dina” Tinhoso! São Paulo: Kapulana, 2017, p.57-58. Fragmento.

“Por sobre os seus estranhos peixes, a superfície do mar A partir da leitura do fragmento do conto “Dina”, do
verde era percorrida por uma brisa suave. A ligeira escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana, é
ondulação que lhe era imprimida desfazia-se, avançava correto afirmar que o narrador:
e voltava a desfazer-se, murmurando o segredo dos a) explica o motivo pelo qual o capataz atrasa o sinal
búzios.” para pausar o trabalho.
b) conduz a história por um olhar que observa os
Com relação ao trecho, considere as assertivas: trabalhadores em seus afazeres.
I. A sequência de verbos “desfazia-se, avançava e c) relata o instante em que os trabalhadores se revoltam
voltava a desfazer-se” coaduna-se imageticamente contra a opressão do trabalho.
com o apelo visual contido nos termos “ondulação” d) descreve o olhar do capataz, justificando suas ações
e “mar”; nas relações de trabalho.
II. O termo “se”, da construção “desfazia-se”, indica a e) justifica as razões da condição servil de Madala,
indeterminação do sujeito; colocando-o como exemplo do servilismo colonial.
III. O segmento “que lhe era imprimida” constitui uma
oração adjetiva com função de adjunto e semântica
de restrição.

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29. No texto, o narrador focaliza c) Os trechos “mais atenção às pretensões das suas gentes”
a) o sentimento de revolta com as condições de e “momento conturbado” demarcam o contexto histórico
trabalho na machamba. em que fora publicado a obra de Honwana.
b) o calor insuportável, o que fazia Madala desejar o d) O segmento expõe as feridas abertas nas relações
merecido descanso. entre o colonizador e o colonizado, destacando a
c) a tensão entre a aparente aceitação e a indignação de busca de uma política agrária que possa atenuar as
Madala. relações de poder.
d) a revolta diante dos castigos impostos aos e) O fragmento faz referência ao controle da posse da
trabalhadores pelo Capataz. terra pelos brancos colonizadores, que dispensam
e) a resiliência de Madala, que silencia diante da um tratamento racista por meio inferiorização do
violência do Capataz. negro.
30. Leia o trecho: 32. Leia:

“Alongando a vista para além delas, viu a mancha Nhinguitimo


escura do corpo do Filimone, igualmente dobrado sob a “Massinga, nós não podemos fazer nada... Eles
superfície das folhas mais altas dos pés de milho, levam-nos as terras e nós temos de não dizer nada... [...]
aguardando a ordem de largar o trabalho.” Tu não te podes zangar, Massinga... Não te deves
zangar...”
Com base no fragmento, analise os aspectos
morfossintáticos: HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso!
I. O gerúndio “Alongando” introduz uma oração com São Paulo: Kapulana, 2017
valor temporal, constituindo uma oração reduzida Com base no trecho, pode-se inferir a respeito do conto
adverbial; que:
II. A oração “viu a mancha escura do corpo do a) O protagonista Vírgula Oito resigna-se ao controle
Filimone” apresenta valor de principal, assumindo do regime colonial, silenciando diante das injustiças.
sentido de causa da oração anterior; b) Os trabalhadores da machamba tentam convencer
III. A oração “aguardando a ordem de largar o trabalho” Massinga de que a terra não lhes pertence, pois não
desenvolve valor explicativo, assumindo inabilidosos como afirmara Rodrigues.
comportamento de adjetivo e função de adjunto; c) O personagem Massinga, embora consciente de que
IV. As orações ““Alongando a vista para além delas” e os negros deveriam lutar pela terra, aceita os
“aguardando a ordem de largar o trabalho” conselhos dos amigos, o que revolta Vírgula Oito.
apresentam a mesma função e a mesma classificação. d) O personagem Vírgula Oito, apesar de sua revolta,
não encontra ressonância de suas ideias nos
Está correto o que se diz em:
companheiros trabalhadores.
a) I e II
e) A resiliência de Massinga prejudica o trabalho dos
b) II e III
c) I e III companheiros, pois sua revolta traria violência e
d) II e IV desemprego para a região de Goana.
e) I e V. 33. Leia o trecho a seguir:
31. Leia o trecho a seguir: Nhinguitimo

Nhinguitimo “— Quando chegar o “Nhinguitimo” tudo vai mudar –


dissera ele. — As machambas grandes que eles fazem
“Senhor administrador, se eu insisti nisto é só porque vão ficar destruídas pela fúria do vento. As nossas
me custa ver uma terra tão rica a ser desperdiçada pelos machambas continuarão a amarelecer calmamente
pretos, [...] e sempre lhe digo que esta vila podia ter porque as grandes árvores do outro lado do rio
melhor sorte se desse um pouco mais de atenção às protegem-nas dos ventos. O preço do milho vai subir e
pretensões das suas gentes [...] Senhor administrador, eu nós vamos ter algum dinheiro. Deus tem de querer que
sempre confiei na clarividência com que Vossa seja assim...
Excelência dirige superiormente os interesses das — Nessa altura pago o imposto, compro sapatos, um
populações neste momento conturbado [...].” fato, um chapéu, uns óculos, uma bengala e um
sobretudo... e caso-me com a N’teasse... – esclareceu o
HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso! Vírgula Oito [...] Já falei com o régulo e ele disse que sim
São Paulo: Kapulana, 2017.
[...] Arranjo uns homens para trabalhar só para mim,
Com relação ao trecho e à leitura integral do conto, a como moleques, e eu mesmo que lhes pago quando
afirmação que não encontra correspondência ao relatado chegar o fim do mês, porque nessa altura sou eu o patrão.
na narrativa: — Massinga... Ouve, eu acredito nisso tudo que tu
a) O discurso que justifica a ação de tomar as terras dizes que vais fazer... – afirmou Matchumbutana.
dos “pretos” está pautado na falta de habilidade e — Na verdade acredito, mas...
falta de conhecimento que levam ao desperdício da — Mas o quê? – a voz de Vírgula Oito tornou-se
terra, no sentido de produzir e de auferir lucro. impaciente.
b) O emprego da expressão “pelos pretos” marca a Maguiguana justificou-se:
generalização, na qual não é apenas um “preto” que — Sabes... Eu não sei se eles não ficarão zangados por
desperdiça a terra, mas todos os indivíduos tu teres tanto dinheiro... Eles são capazes de não gostar
pertencentes a essa etnia, avaliados como sem disso...
conhecimento ou sem habilidade para trabalhar com HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso!
a terra São Paulo: Kapulana, 2017

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Considerando o trecho e a leitura integral do conto, c) A oração “que precisava de ir para casa para
pode-se afirmar que: consertar as palhotas” classifica-se como substantiva
a) O desejo de ser patrão irá mover as ações de Vírgula predicativa.
Oito, tornando-o um assimilado, o que lhe permitiu d) O termo “me”, de “O Lodrica deixa-me ir”,
explorar a terra e dela extrair riquezas. desenvolve função de objeto indireto do verbo
b) A sua fala revela uma ingenuidade, já que a deixar.
sociedade branca não iria assistir a esse e) A oração “podemos vender o milho antes de o preço
desenvolvimento econômico do colonizado, sem começar a baixa” constitui oração subordinada de
nada fazer para impedir. valor consecutivo.
c) A consciência sobre a necessidade de os
trabalhadores ocuparem as terras de Goana para 36. Observe o trecho:
produzirem boas colheitas.
d) A esperança de Vírgula Oito contida nesse pensamento “Se colhermos depressa, podemos vender o milho antes
constitui a base da revolução moçambicana, o que de o preço começar a baixar, quando os brancos
torna o personagem um subversivo.
também fizerem as suas colheitas...”
e) A esperança de Massinga reside na liberdade das
terras de Goana, que ainda não haviam sido
demarcadas, portanto não seriam de interesse da A ordem de desenvolvimento semântico-temática do
colônia. fragmento está indicada na alternativa.
a) Condição, causa, consequência e tempo.
34. Ainda com relação ao trecho e à leitura integral do b) Causa, consequência, finalidade e tempo.
conto, analise as assertivas a respeito do excerto: c) Hipótese, possibilidade, consequência e causa.
I. Vírgula Oito manifesta uma necessidade de superar
d) Condição, finalidade, consequência e reiteração.
o homem branco, apoiando-se exclusivamente na
tese de que o Nhinguitimo destruirá as plantações do e) Constatação, viabilidade, condição e causa.
branco;
II. Vírgula Oito acredita que pode acessar o mundo do GABARITO
homem branco, como se isso fosse possível por
meio do progresso que vinha do trabalho; 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
III. Os companheiros de Vírgula Oito parecem estar C A B D C A B C A E
mais atentos aos anseios da elite colonialista do que 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
Vírgula Oito. A D B C E C D A A A
21 22 23 24 25 26 27 28 29 30
Está correto o que se diz em: E A C A D E B B C C
a) I, II e III. 31 32 33 34 35 36
b) I e II. D D B E B A
c) III apenas.
d) I e III.
e) II e III.

35. Leia o trecho:

Nhinguitimo
— Amanhã vou lá pra casa – Vírgula Oito reiniciou o
fio da narração, desconhecendo os restos de
incredulidade que os outros ainda mostravam.
— O Lodrica deixa-me ir porque eu disse-lhe que
precisava de ir para casa para consertar as palhotas.
Chego lá e dou uma ajuda à minha mãe e à minha irmã
na colheita. Se colhermos depressa, podemos vender o
milho antes de o preço começar a baixar, quando os
brancos também fizerem as suas colheitas... E vejo a
N’teasse...
HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso!
São Paulo: Kapulana, 2017.

Assinale o item em que há uma análise correta do termo


destacado.
a) A expressão “de incredulidade” constitui uma
locução adjetiva com função de complemento
nominal.
b) A oração “que os outros ainda mostravam” constitui
uma oração adjetiva com valor restritivo. DIG.: SAMUEL – REV.: ALEXANDRE

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