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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PAULA DA SILVA MACHADO

Viva o povo brasileiro: novos e velhos enunciadores


Um estudo do romance de João Ubaldo Ribeiro

Niterói
2008
PAULA DA SILVA MACHADO

Viva o povo brasileiro: novos e velhos enunciadores


Um estudo do romance de João Ubaldo Ribeiro

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu - Mestrado em Literatura Brasileira e Teorias da
Literatura - na Universidade Federal Fluminense.
Orientador: Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro

Niterói
2008
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

M149 MACHADO, PAULA DA SILVA.


Viva o povo brasileiro: novos e velhos enunciadores – um
estudo do romance de João Ubaldo Ribeiro / Paula da Silva Machado. –
2008.
140 f.
Orientador: Luis Filipe Ribeiro.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2008.
Bibliografia: f. 135-138.

1. Ribeiro, João Ubaldo, 1940 – Crítica e integração. 2. Ribeiro,


João Ubaldo, 1940 – Viva o povo brasileiro. 3. Análise do discurso
PAULA DA SILVA MACHADO

Viva o povo brasileiro: novos e velhos enunciadores


Um estudo do romance de João Ubaldo Ribeiro

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu - Mestrado em Literatura Brasileira e Teorias da
Literatura - na Universidade Federal Fluminense.
Orientador: Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro

BANCA EXAMINADORA

José Antônio Andrade de Araújo


Presidente
(representando o orientador Luis Filipe Ribeiro)

Matildes Demétrio dos Santos


(Universidade Federal Fluminense)

Alcmeno Bastos
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

MARÇO
2008
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Deus, por tudo.


AGRADECIMENTOS

À minha família pelo incentivo e pelo apoio incondicional.

Aos meus amigos, pelas longas horas que me ouviram falar e falar e falar...

Ao meu grande professor Luis Filipe Ribeiro, pelos ensinamentos sempre em construção.
“Estes segredos são parte de um grande conhecimento,
conhecimento este que ainda não está completo, mesmo
porque nenhum conhecimento fica completo nunca”.

João Ubaldo Ribeiro


Resumo

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

O presente trabalho tem como objeto central a obra Viva o povo brasileiro, de João
Ubaldo Ribeiro. Dentre as inúmeras possibilidades de análise, enfocar-se-á a problematização de
conceitos como ‘povo’, ‘Brasil’ e ‘nacionalidade’. Para tanto, questionará tais conceitos a fim de
suscitar reflexões e ainda mais questionamentos. Serão aqui enfocados também o surgimento de
novos sujeitos enunciadores e o diálogo entre este novo e os antigos discursos construídos pelas
parcelas mais abastadas da população brasileira, observando como pode haver uma grande
variedade de discursos sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Este trabalho abordará a idéia de que
o discurso constrói os objetos, sendo que aqui será focada especialmente a construção dos
diferentes discursos históricos.
Abstract

The present paper centres on the text Viva o Povo Brasileiro, by João Ubaldo Ribeiro.
Among several possibilities of analyses, this essay focuses on the problematisation of concepts
such as "people", "Brasil" and "nationality". For that purpose, the theoretical approaches used are
those which question such concepts and lead to further reflection and questioning.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

2. O NARRADOR EM VIVA O POVO BRASILEIRO........................................................... 17

3. OS POVOS BRASILEIROS.................................................................................................. 34

4. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O PODER: PERILO AMBRÓSIO E AMLETO


FERREIRA................................................................................................................................ 49

5. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O OUTRO PODER: MARIA DA FÉ E PATRÍCIO


MACÁRIO................................................................................................................................. 81

6. CONCLUSÃO....................................................................................................................... 118

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................ 135
1. INTRODUÇÃO

Este é um trabalho marcado pelas pluralidades. Desde a primeira vez que li este grande
romance de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, percebi que era ‘grande’ em vários
sentidos – e penso que principalmente em sentidos. À medida que avançava na primeira leitura,
mergulhava com mais e mais fervor no desejo de conhecer a vida das pessoas que vivem naquele
universo; crescia o desejo de saber se haveria ali recompensa ou punição aos golpistas e
enganadores de toda ordem ou se os mais aviltados teriam libertação daquela vida de dor,
sofrimento e exploração. E foi então que notei que aquela era uma história conhecida, ou quase.
Ao retornar à primeira linha da narrativa, atentei mais à palavra “Contudo”, que inicia o
primeiro capítulo. Posteriores leituras de trabalhos de outros professores e pesquisadores da
Literatura Brasileira corroboraram minha impressão: este romance fala algo mais sobre algo que
se conhece apenas em parte e que cada um de nós pode conhecer uma parte distinta. Melhor
especificando: não é o romance que fala, mas suas personagens e narrador, ambos criados pelo
autor da obra, mostrando outros lados disto com que já estamos familiarizados, a história do
Brasil.
Mas Viva o povo brasileiro é um romance que abala um pouco essa nossa familiaridade
trazendo a inquietação da dúvida, da desconfiança, do questionamento: será que tudo é como
conhecemos, assim sólido e acabado? Neste ponto em que parecemos vacilar é que se dá o que
penso ser o principal: toda história do nosso país, assim como qualquer história, até mesmo o
romance sobre o qual estarei focada neste estudo, são construções discursivas e é o discurso que
possui existência verdadeiramente inconteste! Se o conteúdo é questionável, bem, esta também já
é outra história...
Em meio ao encantamento das paisagens do litoral da Bahia, da Ilha de Itaparica, notamos
que nem tudo é paz e tranqüilidade. Neste, que é um dos mais belos cenários do Brasil, é que se
passa a maior parte desta narrativa, iniciando-se com os conflitos ocorridos durante a chamada
‘invasão holandesa’, tempo em que, no romance, paralelamente acompanhamos a história de um
homem, filho de índia e escravo negro fugido: Capiroba. Seguimos este cafuzo (na obra chamado
caboclo) em sua tentativa de viver segundo suas próprias regras e crenças, mas que se vê
obrigado a seguir a nova norma trazida pelos padres jesuítas. Contrário a isso, foge juntamente
com suas mulheres (assim mesmo, no plural) em busca da liberdade de outrora. Por fim, é
capturado e morto por ser considerado extremamente violento, uma vez que se torna praticante da
antropofagia – costume ainda desconhecido na tribo de Capiroba até a chegada dos jesuítas e de
suas histórias sobre selvagens que comiam gente –, ao passo que suas mulheres e filhas foram
vendidas como escravas.
Este é o ponto de partida para que nós, leitores, acompanhemos a versão da história
narrada pelos mais humildes, pelos escravizados, que posteriormente, no século XX, por meio da
manutenção de sistemas de dominação, dão origem a uma leva de paupérrimos trabalhadores que
poucas oportunidades têm para uma mudança mais radical neste quadro. Estes integram o painel
dos que aqui chamarei de novos enunciadores, ou seja, sujeitos que não tiveram espaço para
expor sua visão de mundo, suas visões da história, seus pontos de vista sobre diversos
acontecimentos, sem transpor todas as barreiras elitistas que hierarquizam o discurso segundo
seus próprios critérios de interesse e importância.
A elite representada em Viva o povo brasileiro ao longo dos três séculos que percorre é
constituída por aqueles que mantêm nosso sistema como um sistema de exclusões, exclusões
sociais, econômicas, educacionais e, conseqüentemente, exclusões que atingem o direito básico à
expressão. Aqui não me refiro somente aos instrumentos brutais de tortura utilizados contra os
escravos que em condição subumana viveram até o final do século XIX que impediam que o
negro falasse ou instrumentos de repressão às vozes dissidentes do Regime Militar no século XX.
Refiro- me à impossibilidade de se fazer ouvir em uma sociedade dominada por poucos.
Grandes proprietários do mundo agrário brasileiro representam esta elite durante o
período em que prevaleceu no Brasil o regime institucionalizado da escravidão. Depois disso,
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nossa economia modifica-se sensivelmente e o romance, acompanhando a mudança, apresenta-


nos ao universo financeiro, do capital volátil e flutuante dos bancos na economia do século XX,
no salto que faz até a década de 70, assim como trata rapidamente do B rasil do Regime Militar.
Em gabinetes de bancos, como fazem os herdeiros da família Ferreira-Dutton, ou
caminhando por suas terras, como faz Perilo Ambrósio Góes Farinha, todos eles têm também sua
versão da história para contar, e a versão de sua própria história de vida para forjar. Estas serão as
principais personagens observadas no clã dos poderosos, no clã daqueles que possuem poder e
influência para fazer sua versão da história valer.
Elemento também fundamental para compreendermos tantas variantes de um mesmo tema
será o narrador, por isso ele será assunto exclusivo do capítulo inicial deste estudo. João Ubaldo
Ribeiro cria um narrador externo ao mundo da narrativa, sem nome e sem rosto, mas que
organiza a matéria narrada, que dispõe as personagens, que quebra a linearidade do tempo –
linearidade essa que esperaríamos encontrar em um livro que narra parte de nossa história.
Todavia, Viva o povo brasileiro não se prende a uma linha cronológica rígida.
Personagens e narrador compõem o foco deste estudo, que privilegiará os discursos e
ações das personagens. Por meio dos discursos temos acesso aos posicionamentos,
compartilhados ou não por esta ou aquela personagem. Por discurso entende-se aqui a relação
dialética entre uma forma discursiva, qualquer que seja ela, e um objeto por ela constituído. Desta
forma, um enunciado jamais será neutro e sempre construirá uma forma distinta de ver o mundo.
Com o processo de leitura, tornamo-nos cúmplices da história narrada, aceitando o jogo
ficcional criado, sendo concordantes ou discordantes. Em Viva o povo brasileiro, em meio às
pluralidades, ora somos levados a ser concordantes, ora discordantes com esta ou com aquela
personagem. Ao ler este romance, temos a impressão de que, apenas com a mudança de
enunciadores, le mos mais de uma história. Isso se dá exatamente por essa variedade de discursos,
por esta variedade de modos de criar o objeto pela enunciação.
Embora Viva o povo brasileiro esteja constituído com tal liberdade, este trabalho
procurará seguir uma certa ordenação. Iniciamos com um breve estudo sobre o narrador, que se
constituirá como um centro balizador da obra, aquele que nos guia pela narrativa, assim como
será estudada a diferença entre o autor, criador da obra, e este narrador, interno à obra, criação do
autor. Com isso, observaremos como o romancista elabora a obra recriando a riqueza dos
caracteres humanos, distribuindo-os entre as vozes das personagens. Daí a importância da
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diferenciação entre autor e narrador, e daí também uma das grandes belezas da obra: a
multiplicidade de caracteres captados e trabalhados, recriando o mundo, relendo o mundo,
interpretando-o e dando-nos a oportunidade de reinterpretá-lo também.
A partir dos estudos que balizam este trabalho, em especial os de Mikhail Bakhtin,
compreendem-se as personagens em seu tempo histórico e como sujeitos sociais desse
determinado tempo. Assim observa -se cada personagem como um sujeito social, de um tempo e
de uma sociedade determinados e específicos. Logo, evitam-se anacronismos.
Deste modo, os escravocratas que Viva o povo brasileiro apresenta não serão
necessariamente vistos, no processo de leitura, como grandes exploradores cruéis (forma como
comumente os vemos hoje, no século XXI); estes apenas e tão somente viam o mundo e
interpretavam seus atos segundo o que era dominante na época, em pensamentos que
consideravam a escravidão como algo necessário, e por isso mesmo constituía-se como prática
institucionalizada.
No tipo de abordagem a que me proponho agora, interessa- me conhecer esses velhos e os
novos enunciadores trazidos por João Ubaldo Ribeiro neste seu belíssimo romance – um dos
últimos do século passado a mostrar o Brasil não sob a óptica do desbravamento de suas terras do
Oiapoque ao Arroio Chuí, mas partindo de seus principais eventos históricos, ou seja,
privilegiando sua formação enquanto povo e sociedade de cultura. Mas é importantíssimo
ressaltar que embora não haja pelejas entre mim e as personagens, pois procurarei compreender
seus atos de acordo com as situações representadas, isto não quer dizer, de forma alguma, que
não irei propor minhas colocações e pontos de vista. De acordo com minha perspectiva, jamais há
discursos neutros, nem no romance, nem em qualquer análise que dele se faça.
Ao ler Viva o povo brasileiro, as diferenças que marcam os ‘povos’ que vivem no Brasil
não são apenas delimitadas por esta variação observável quanto aos posicionamentos adotados.
Tais nuances são captadas no romance também pela manutenção das formas dialetais de cada
segmento social, vinculando-se a variedade lingüística de cada um à diversidade de caracteres
sociais captados, assim desatrelando a gramática dos sujeitos do romance da gramática do autor.
Em Viva o povo brasileiro sabemos exatamente quem fala e por que fala desta ou daquela forma.
É o próprio autor quem empreende tal seleção e a organiza na obra, mas suas consciências e
formas de expressão – do autor e das personagens – são, sem dúvida, claramente distintas.
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Estas variedades lingüísticas não serão medidas exclusivamente pelas diferenças sócio-
econômicas. Ao longo do romance observaremos personagens que contra todos os preconceitos
do país no século XIX, que vinculava a educação à classe mais abastada, dominam a norma culta
da língua portuguesa e outros saberes, como é o caso de Amleto Ferreira, para quem este domínio
será um dos degraus da escada que o levará à ascensão social. O discurso de cada um não estará,
portanto, somente atrelado a um padrão de qualquer esfera social, mas àquilo a que ela se filia ao
longo da obra – seja a personagem fiel ou não a uma forma de pensamento durante toda a sua
trajetória.
Em meio a tantas noções de valores, conceitos e modos de pensamento, o título do livro
impõe-se como um desafio também. Afinal, de que povo se fala? A que povo se refere? Levando-
se em conta o universo das personagens, para cada uma delas ou para cada setor social, poder-se-
á encontrar uma resposta para essa questão, ou seja, a noção de ‘povo’ varia de acordo com uma
série de fatores sociais. Todavia, seguindo a proposta aqui sugerida, o problema converte-se em
riqueza para a análise na profusão de caracteres a observar.
A aparente independência entre esses caracteres permite que ao longo deste trabalho
possamos observar de maneira livre algumas dessas diversas personagens e conseqüentemente
suas visões de mundo e também aquilo que entenderá como sendo o ‘povo brasileiro’. Estas
especificidades serão mais profundamente observadas, num universo de dezenas de personagens,
em Perilo Ambrósio, Amleto Ferreira, Maria da Fé, Patrício Macário. Deter-me-ei mais nestas
personagens, mas outras serão também importantes.
Pela maneira como se comportam, por suas atitudes, por aquilo que entendem por ‘Brasil’
ou por ‘povo brasileiro’, personagens como o Caboco Capiroba, Dadinha, Venância, Júlio
Dandão, Nego Leléu, Zé Popó, Alferes José Francisco Brandão Galvão, Dona Jesuína, D.
Francisco Manoel de Araújo Marques entre outros também serão objeto de análise, ou mais
especificamente, os objetos que criam a partir de seus discursos serão objetos de estudo.
Outro tipo de análise que será realizada durante a observação da maior parte das
personagens refere-se à difusão de suas palavras. Observaremos a presença da oralidade e da
escrita e de que forma este ou aquele meio influencia a propagação dos discursos e das versões
das histórias narradas por cada um.
No que concerne à conservação e retransmissão das histórias e dos costumes de certo
segmento social por meio da transmissão oral, perceberemos as possíveis variantes ocorridas no
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ato da enunciação, o que não prejudica a manutenção da idéia principal. Quanto à escrita, ao
menos no que se refere ao universo do século XIX representado no romance, ela é um dos
instrumentos necessários à perpetuação de versões forjadas de histórias que não aconteceram ou
que não se passaram exatamente conforme aquilo que aparece nos livros – isso se levarmos em
conta outras versões que as contestem.
A escrita, neste período, era privilégio quase exclusivo dos abastados; por isso
personagens como Amleto, oriundo de família pobre, constituía uma exceção à regra geral. Por
meio de documentos ou livros, a elite propaga e de certa forma procura cristalizar a versão que
mais lhe interessa, havendo, para isso também a aceitação de um acordo tácito entre o leitor e
aquilo que ele lê, fiando-se na credibilidade, idoneidade ou poder de seu autor ou da instituição
que o assina.
Longe de ser sinônimo de ‘verdade’, a palavra escrita é, até esse momento, apenas mais
um instrumento a serviço da elite. Somente no século seguinte as camadas mais pobres da
população passam a ter acesso à escrita e a compreendê- la igualmente como instrumento de
poder e de disseminação de idéias.
Supremacia das elites à parte, Viva o povo brasileiro mostra a relevância que ambos os
meios tiveram e têm na constituição de nossa história coletiva. O título que o próprio autor João
Ubaldo Ribeiro deu à sua tradução em língua inglesa revela que a memória prevalece
independentemente de um meio de transmissão ser mais ou menos prestigiado ou validado
socialmente: An invincible memory.
Outro processo de grande relevância a ser observado será a influência em pessoas e fatos
por meio do discurso. Se o discurso é a relação dialética entre uma forma discursiva e um objeto
por ela constituído, pode-se depreender que qualquer objeto pode ser criado a partir da utilização
de um determinado discurso. Muitas personagens usam a palavra como objeto de poder, a fim de
subjugar e moldar. Outras porém, utilizam a palavra para libertar e lutar por uma vida diferente.
Seja para subjugar ou libertar: a palavra sempre pode servir como instrumento de persuasão e
disseminação de ideologias.
Em Viva o povo brasileiro há portanto uma crítica a personagens alienadas e assimiladas,
mas assim mesmo existe a compreensão de que vivem em seu tempo, existe a compreensão das
relações de poder que geriam as relações sociais. A análise que aqui se apresenta não observa
personagens do século XIX apenas com os nossos padrões atuais do século XXI. Embora jamais
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possamos reconstituir o passado exatamente porque não temos como reconstituir pessoas,
podemos observar os padrões da época e com isso fazer inferências. A construção literária recria
universos e permite que analisemos esta grande variedade de personagens, de caracteres e de
vozes sociais.
A variedade dessa s vozes sociais é uma das matérias deste estudo, assim como trazê- las à
cena e observá-las em suas relações com outras personagens e entre estas personagens e o mundo
à sua volta. Este trabalho é, portanto, bastante descritivo para assim destacar as principais falas e
passagens representativas dos segmentos e personagens apresentados como aqueles que
construíram e ainda constroem o Brasil. Desta forma observaremos os conflitos, frustrações,
vitórias e derrotas das personagens, respeitando sua historicidade, seu tempo e seu espaço.

Por fim, este trabalho nasce especialmente de um fato muito simples: em meio a tantos
livros que lemos desde a adolescência na escola e que trazem como tema a formação do Brasil,
este, Viva o povo brasileiro, foi um livro que me despertou paixão. Gostar foi o primeiro
impulso para surgir o desejo de realizar um trabalho mais aprofundado, centrando- me neste
romance por vezes tão prazeroso, por vezes tão revoltante. Embora seja um romance extenso, a
leitura é empolgante, repleta de cenas que podem provocar sensações que vão desde a ternura até
a indignação.
Mais que um estudo frio, neste trabalho procuro compartilhar um pouco das cenas que
mais marcaram e que mais relevantes foram na observação deste universo tão vasto preenchid o
por tantas e tantas personagens criadas por João Ubaldo Ribeiro e que habitam o povo brasileiro.
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2. O NARRADOR EM VIVA O POVO BRASILEIRO

Parece-me fundamental começar as discussões sobre Viva o povo brasileiro a partir de


considerações acerca de seu narrador. Embora este seja um romance cujas personagens mostram
grande força individual e consciências independentes, é o narrador quem organiza a narrativa,
organiza a distribuição das vozes, a ordem dos acontecimentos, promove o recorte histórico, ou
seja, o tempo da narrativa, enfim, toda a disposição da matéria narrada como ela se apresenta a
nós, leitores.
Para esta tarefa de analisar o narrador de Viva o povo brasileiro, é relevante que se façam
aqui, breves considerações sobre o problema da autoria do romance para que se possa, em
seguida, observar o narrador em questão. Em uma de suas principais obras – Estética da Criação
Verbal – Mikhail Bakhtin discorre sobre a problemática do autor apontando estratificações e
separações em diferentes instâncias que neste tópico se fazem necessárias para a análise da obra
literária. Das categorias vistas por Bakhtin, as mais importantes neste estudo são as figuras do
autor primário e do autor secundário.
O autor primário é aquele que cria, que possui a individualidade criativa e que é
necessário, imprescindível. É dotado de forte autoridade, sendo para o leitor o “princípio que
deve ser seguido”1 (BAKHTIN, 2003, p. 191). O autor primário é aquele que cria a obra, que a
estrutura e que tem a autonomia para a criação das outras categorias dentro do romance, como um
autor secundário.
O autor secundário é aquela individualidade “enformada” (idem), ou seja, dada, criada
pelo autor primário, moldada por ele, realizável apenas no universo narrativo. Este autor não
representa um dos princípios da visão do leitor através da obra nos mesmos moldes do autor

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Grifo do autor.
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primário, mas representa um dos elementos internos dessa mesma obra, ou seja, é mais um objeto
da visão, objeto do universo criado. Esta é uma figura que pode ser objetivada como narradora da
obra, existindo apenas na narrativa, como mais um elemento criado pelo autor primário como se
fosse um autor. Em Viva o povo brasileiro este elemento não aparece, pois o autor primário cria
apenas a figura daquele autor secundário, objetivada na figura do narrador do romance. João
Ubaldo não cria alguém com nome e sobrenome para que este se passe como autor da narrativa.
Por tais razões interessam- nos especialmente autor primário, autor secundário e narrador para a
análise desta obra.
A partir dessas breves observações, é possível compreender o distanciamento entre a
figura do autor primário e portanto criador, organizador e selecionador da matéria narrada, João
Ubaldo Ribeiro, e o narrador efetivo do romance Viva o povo brasileiro, uma figura interna da
obra literária. João Ubaldo cria um narrador para sua obra, alguém distinto de si, que interfere
mais ou menos na narrativa, sem nem ao menos ter um nome, um rosto ou participar como
narrador-personagem. O narrador de Viva o povo brasileiro observa de fora.
Este romance é, acima de tudo, um romance de crítica – por mais que esta apareça muitas
vezes sob a forma da galhofa, do riso. O terceiro do diálogo de Viva o povo brasileiro, isto é,
alguém ou um conjunto abalizado de idéias diante do qual se fala, é o discurso historiográfico já
conhecido, ensinado em bancos escolares, canônico, tradicional, e será exatamente ele, embora
ponto de partida, a matéria colocada em questionamento constante ao longo das 673 páginas do
romance, seja por sua parcialidade, seja, exatamente em virtude disso, por suas enormes lacunas.
Percebe-se desde logo oposição a esse tipo de saber que precede o que ali será contado,
tendo como ponto principal o questionamento de verdades estanques, por mais que, em relação a
essa história, cada um de nós conheça dela uma parcela distinta. A primeira palavra que o
narrador coloca diante dos leitores logo no primeiro capítulo é “Contudo”. Pode-se assim notar
que esta palavra é a conjunção que liga ou que mais especificame nte separa dois discursos,
opondo-os, diferenciando o que vinha antes do que será apresentado a partir de então. Mas como
se opor a algo precedente se este é apenas o início do livro? Como foi apontado acima, em sua
totalidade, o discurso de Viva o povo brasileiro irá se diferenciar de um saber que nos é inculcado
pelos livros de história, uma vez que “papel aceita tudo” (RIBEIRO, 1984, p. 515) – e se o papel
aceitou a versão anterior, haverá certamente espaço para essa que ora se apresenta no romance
també m (reitero: por mais que cada um de nós saiba de partes diferentes dessa história).
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Sobre o posicionamento do narrador, ainda se deve depreender mais um dado relevante: o


discurso do romance nasceria, assim, de um dos caracteres básicos da construção dos discursos, a
resposta. Todo discurso é responsivo, ou seja, está orientado para uma resposta, para uma réplica
viva. O discurso parte do universo do já-dito, do conhecido, e caminha para um “discurso-
resposta” (BAKHTIN, 1988, p. 89), que buscará o novo.
Mas é importantíssimo retomar a tônica do questionamento das verdades para observar
como este ‘novo’ chega até nós por este narrador. Patentes são os ares de imprecisão quando o
narrador nos diz que uma passagem por ele narrada “nunca foi bem estabelecida” (RIBEIRO,
1984, p. 9). Este já se mostra como um primeiro indício de que não haverá a pretensão de dar
conta de toda a história do Brasil, dos três séculos escolhidos como seu recorte, e nem mesmo de
cada acontecimento, mas apresentará uma face distinta de cada um dos eventos selecionados e
apresentados a partir da voz das personagens.
Ao colocar assim o problema, existe a impressão de que se caminha por terreno
movediço, impressão de que este narrador levará seu leitor por veredas pouco confiáveis. Mas
isto parte de uma das razões desta sua recriação da história: atentar por onde se anda, observar
com atenção e olhar por todos os lados, duvidar do que pareça incontestável.
Esta forma de apresentação é perfeitamente coerente com um discurso perscrutador e
questionador como o que se mostra neste romance. Em trecho já notório de seu livro Mulheres de
Papel, o professor Luis Filipe Ribeiro aponta que as duas operações fundamentais da construção
dos discursos são seleção e combinação. A partir desses princípios elementares, pode-se
facilmente constatar que nenhum discurso fala tudo sobre determinado assunto. O que o discurso
constituído em Viva o povo brasileiro promove são novas seleções e combinações, não somente
aliás na matéria discursiva, mas também no que tange à escolha dos sujeitos enunciadores dos
discursos. Neste romance, novos enunciadores vêm à tona e aí está seu grande diferencial: o
narrador permite que apareçam não somente os enunciadores daquele discurso que precede o
“Contudo”, mas dá voz àqueles que não apareciam anteriormente neste discurso historiográfico
tradicional, a saber: negros e índios (no recorte temporal que engloba os séculos XVII e XIX) e
ainda trabalhadores das cidades (no recorte sobre o século XX).
Este narrador, não é uma consciênc ia dominante do romance. As personagens agem como
sujeitos autônomos, que falam por si mesmos. No romance, o ‘outro’ é visto como uma entidade
viva, dotada de autonomia e discurso próprio, o qual, inclusive, não precisa coincidir com as
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posições assumidas pelo autor, ou, nas palavras de Bakhtin, o autor não se solidariza totalmente
com os discursos das personagens, podendo até mesmo acentuá- los de maneira particular, como
por meio da ironia, da paródia etc.
Em Viva o povo brasileiro é possível perceber as múltiplas vozes sociais manifestando-se
por meio das próprias personagens em suas falas e comportamentos – nitidamente relacionados à
consciência de seu grupo social, numa individualidade construída socialmente, em seu tempo e
seu espaço. Em capítulos posteriores analisarei mais pontualmente esse tópico e as principais
personagens do romance. Mas interessa agora observar que o romance não é, portanto, dominado
por uma única consciência, acabada, autoritária, representada pela presença e pela força que o
narrador pode tomar.
No romance aqui tomado como objeto de estudo, pode-se observar que o narrador
organiza mas não exerce poder sobre essas vozes. O professor Paulo Bezerra de maneira clara e
objetiva sintetizou o pensamento desenvolvido por Mikhail Bakhtin sobre este dado a que
chamou monologismo:

Segundo Bakhtin, no monologismo o autor concentra em si mesmo todo o


processo de criação, é o único centro irradiador da consciência, das vozes, imagens e
pontos de vista do romance: coisifica tudo, tudo é objeto mudo desse centro irradiador.
O modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e isônoma do
outro; para ele não existe o “eu” isônomo do outro, o “tu”. (BEZERRA, 2005, p. 191)

Viva o povo brasileiro irá se opor a esse monologismo. Ora, se desde a primeira palavra o
romance aponta para um caráter responsivo, se tem a dúvida, o questionamento e a incompletude
como caracteres, se permite que várias vozes sociais participem do discurso do romance
autonomamente pode-se pensar que estamos diante de um romance polifônico. E aqui se deve
salientar que, sem querer restringir o livro de João Ubaldo Ribeiro ao tempo em que foi escrito,
prendendo-o ao tempo em que foi escrito, não se deve deixar de notar que essa opção pela
polifonia é consoante à idéia de oposição ao regime que se vivia no Brasil na época de sua
publicação. Em 1984 o Brasil lentamente abria-se politicamente, contra as duas décadas de
Regime Militar as quais foram fortemente marcadas pelo monologismo e repressão violenta às
vozes ‘subversivas’.
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Mas para afirmação mais categórica a respeito dessa polifonia, é necessário que se
observe como se dá esta disposição das vozes dentro do romance e quais são estas vozes sociais
salientando que:

O autoritarismo se associa à indiscutibilidade das verdades veiculadas por um


tipo de discurso, ao dogmatismo; o acabamento, ao apagamento dos universos
individuais das personagens e sua sujeição ao horizonte do autor. Na ótica da polifonia,
as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O
dialogismo e a polifonia estão vinculadas à natureza ampla e multifacetada do universo
romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do
romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na
multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada. (idem)

Os discursos colocar-se-ão lado a lado, plenos em valor. A igualdade, o diálogo que não
houve no meio social entre diferentes discursos será possível no universo do romance. Será esta
multiplicidade de vozes sociais a principal matéria da obra em questão. Viva o povo brasileiro,
embora mostre a visão de mundo e os posicionamentos das camadas menos prestigiadas da
população, aquelas que não escreveram os livros de história, também não descarta totalmente a
versão contada pelos dominadores como se poderia pensar válido em um romance de crítica.
Quando se fala em multiplicidade, não se pode, obviamente, ter em mente a visão fechada de que
se dará voz a apenas um segmento da sociedade. Sem dúvida alguma a versão do dominado será
o novo da narrativa, por ser ‘a’ outra versão. Daí a presença alternada das mais variadas classes e
enunciadores, sem estarem porém subordinados à consciência do narrador e sem qualquer caráter
excludente de uma ou de outra voz.
Pode-se dizer assim que “o outro” nos interessa especialmente, o outro como sujeito
plenamente independente, consciência autônoma. O romance se faz, portanto, o lugar
privilegiado para a apresentação das mais variadas estratificações sociais, não eliminando
intenções e expressões alheias, dando lugar às mais variadas perspectivas sócio- ideológicas,
enunciações e linguagens.
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2.1. O tempo da narrativa

Viva o povo brasileiro é um romance que, de forma alguma, segue uma ordem
cronológica rígida. Em um primeiro momento, por se tratar de uma obra de caráter histórico, por
mais que seu autor em repetidas entrevistas afirme não se tratar de um romance histórico, poder-
se-ia pensar em uma sucessão de eventos, fiéis à linha reta e progressiva do tempo.
Qual não é a surpresa do leitor ao iniciar o romance com um narrador que contempla um
quadro datado do século XIX, embora o próprio ato da observação não apareça sob data alguma?
O narrador nos relata o suposto acontecimento detalhado na pintura, ocorrido no século XIX,
passando no capítulo seguinte ao século XVII, depois retornando ao século XIX e nele
permanecendo por quase todo o livro até chegarmos ao século XX.
Todavia, mesmo nesta ênfase ao século XIX, não colocam os eventos um após o outro na
ordem em que se sucederam. Podemos estar em 10 de março de 1853 na página 289, avançando
até a página 314 para chegarmos a 12 de maio de 1841, retornando no tempo. Perceber essas
nuances temporais na construção narrativa de Viva o povo brasileiro é de fundamental
importância. O autor assim arranja a obra para que o leitor possa compreender de modo particular
certos processos e acontecimentos descritos. Esse movimento permite a comparação entre ações e
seus efeitos, sendo que podemos ver primeiramente os efeitos para depois analisarmos as causas,
assim como será também por meio desse estratagema narrativo que o autor se permitirá expor as
várias versões de acontecimentos apresentados pelas várias vozes selecionadas para a narração. É
neste movimento de retornos e avanços que poderemos, nós leitores, observar diversos espaços e
diversas vozes.
É também com este recurso que o narrador pode retornar a uma determinada data e
observar um outro evento. Enquanto em alguma página o narrador nos mostra o interior da casa-
grande, podemos avançar na leitura e observar, naquele mesmo dia, as ações ocorridas no
terreiro. Propõe-se aí uma idéia da simultaneidade de ações – o que caracteriza mais uma forma
de reforço da exposição dos diferentes universos presentes no romance. Uma vez que esse
recurso se faz, o narrador alterna seus enunciadores, ora dando voz à classe privilegiada, ora
apresentando o universo dos explorados, mostrando como as diferenças podem compartilhar o
mesmo tempo em espaços diferentes e não muito distantes.
24

Além deste movimento não linear da história, outro dado chama muito a atenção na
estrutura temporal de Viva o povo brasileiro : a ênfase no século XIX. O romance apresenta os
primeiros acontecimentos da narrativa no século XIX, partindo em seguida para o século XVII.
Todavia, logo depois não passa imediatamente aos idos do século seguinte, saltando novamente
para o século XIX, permanecendo nele até o capítulo 18, em um livro com um total de 20
capítulos. A obra recebeu críticas quanto a essa disposição não equivalente no tratamento entre os
séculos, sendo este tópico encarado até mesmo como um obstáculo: “a desproporção quantitativa
e qualitativa no tratamento do século XX, em relação aos segmentos que tratam da cena da
colônia e do império” (HELENA, 1993, p. 92).
Concordo com a professora quando nos alerta para a desproporção entre as exposições do
século XIX e XX: partes significativas das passagens do século XX não apresentam a mesma
força ou com a mesma beleza e emoção com que nos são passadas as cenas do século XIX, mas
certamente há um porquê para isso, uma vez que nada no discurso romanesco é gratuito ou
meramente ornamental – ou pouco ornamental, e nem tampouco podemos ter a pretensão de
encarar essa diferença como inaptidão do autor. Repito, nada no discurso romanesco é gratuito.
Como nos alerta Bakhtin, a linguagem pode refratar as intenções do autor do romance.
A maior parte do livro é dedicada à avaliação ou à reavaliação dos discursos produzidos
ao longo do século XIX exatamente porque Viva o povo brasileiro é um romance interessado em
explorar outros discursos antes abafados, dos índios nos idos do século XVII – período no qual
analisa as ações dos jesuítas – e dos negros ao longo do século XIX. Com a inserção desses novos
sujeitos discursivos, o romance enfatiza um período da história nacional de grande efervescência.
É no século XIX que surgem as discussões mais aguerridas sobre a posição do negro na
sociedade, a poesia discute e denuncia a escravidão com um conterrâneo de João Ubaldo, o
baiano Castro Alves, pressões externas e internas prejudicam os lucros do tráfico negreiro: a
revolução industrial quer mercado consumidor, a Inglaterra, e não a boa princesa, todos esses
fatores, em conjunto, determinam o fim da escravidão em nosso país, além de, como afirma
Sérgio Buarque de Holanda, ter sido a maior parte do lucro do tráfico pertencente a portugueses –
o que apontará também para o fim do tráfico numa questão que envolve economia e desligamento
político com a metrópole (HOLANDA, 2006). É este cenário turbulento que faz de pano de fundo
às discussões deste que foi um período de expressiva importância a esse novo sujeito enunciador
que Viva o povo brasileiro traz à tona.
25

O século XIX foi, portanto, o momento mais significativo para os escravos africanos e
seus descendentes, não sendo por acaso este o século mais explorado pela narrativa de João
Ubaldo Ribeiro. Neste período é que se situará a discussão sobre os anos de abusos com o
trabalho excessivo, forçado, não remunerado, assim como um outro tipo de exploração: a sexual,
praticada largamente pelos senhores de escravos.
Para efeito de comparação, podemos selecionar aqui dois trechos de dois diferentes
discursos sobre a abolição no Brasil, todos eles realizados no final do século XIX, em meio à
agitação do período:

Mas, tremo, meu estimadíssimo irmão, pois os sintomas, que saltam à vista,
são, deveras, perturbadores. Já não se pode sair à rua, sossegado, principalmente, à noite.
Já não se pode freqüentar qualquer lugar público, dada a presença, cada vez mais
opressiva, de uma malta de negros e pardos, desocupados e pedintes, gentinha da pior
espécie, cuja linguagem e cuja aparência fazem com que, sempre, pareçamos estar a
transitar, pelo Pátio dos Milagres. A Abolição, como eu temia, revelou-se um grande
mal. Não estavam, como não estão, os negros, preparados, para a liberdade. Obtusos,
broncos, analfabetos, pouco asseados, viciados mesmo, agora exercem, livremente, sua
influência deletéria e corruptora, sobre os costumes e a raça. Não procede a alegação de
que são vagabundos e vadios, porque não há trabalho. Trabalho há, sempre houve, para
quem quer e, para quem não quer, por indolência e fraqueza de caráter, nunca há. Mas,
não se tomam, por incrível que pareça, medidas para conter, eficazmente, essa vadiagem.
Quando despertarem, os governantes, será tarde demais, para delir tal chaga social e
moral, que ameaça fazer desabar tudo o que se vem tentando, laboriosamente, construir,
ao longo de séculos de dedicação e sofrimento. (RIBEIRO, 1984, p. 536)

Em outro trecho, outro enunciador afirma:

A chibata continua, a pobreza aumenta, nada mudou. A Abolição não aboliu a


escravidão, criou novos escravos. A República não aboliu a opressão, criou novos
opressores. O povo não sabe de si, não tem consciência e tudo o que faz não é visto e
somente lhe ensinam desprezo por si mesmo, por sua fala, por sua aparência, pelo que
come, pelo que veste, pelo que é. (RIBEIRO, 1984, p. 608)

Seria dispensável aqui apontar que o primeiro trecho pertence à fala de um representante
das elites, no caso o Monsenhor Clemente André, filho de um antigo senhor de escravos da Bahia
(estado brasileiro que mais recebeu escravos durante os séculos em que vigorou no país a
26

exploração desse tipo de mão de obra), com todas as suas palavras sofisticadas e um número
excessivo de vírgulas, falsamente tomadas como sinal de erudição na escrita; e que o segundo
trecho pertence a um representante da fala menos prestigiada na estrutura de poder vigente no
país, Lourenço, filho de Maria da Fé – no romance, a grande heroína que se rebela contra o
sistema escravocrata e que se levanta em prol do orgulho das classes oprimidas (não somente dos
negros, mas de todos que se encontravam em igualdade de situação). O segundo trecho deixa
muitíssimo claro que a abolição tem validade apenas no papel: a vida dos ex-escravos não
melhorou muito depois daqueles dois parcos artigos.
A partir dessas observações, pode-se perceber porque o século XIX possui tamanha
relevância na narrativa de Viva o povo brasileiro, porque é o século sobre o qual o autor mais se
detém, não sendo portanto, este recorte temporal, uma escolha meramente desajeitada e
desafortunadamente desigual. Tudo possui seu porquê no discurso do romance.

2.2. Uma das histórias dentro da história

É inegável que Viva o povo brasileiro, como obra realizadora de uma releitura da história
do Brasil, revisita alguns dos eventos mais relevantes da nossa trajetória. Dentre esses eventos
selecionados, pode-se observar a importância da luta, da batalha, das guerras como elementos de
formação da nação ou ao menos de tomada de consciência de corpo, do nosso todo – ter algo a
que defender que é maior que o indivíduo, o país. A presença da guerra como elemento a se
incluir na discussão sobre a afirmação dos Estados Nacionais é matéria recorrente na literatura
latino-americana, tendo talvez como representante mais conhecida a obra do escritor colombiano
Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão.
Interessa- me especialmente neste tópico a presença da guerra no discurso do romance em
questão para a compreensão sobre um dado de autor e personagens: aqueles que conseguem
retornar do campo de batalha não voltam repletos de histórias cheias de orgulho, empolgantes e
grandiosas. Ao contrário, preferem não falar sobre a guerra ou, quando falam, mostram um lado
menos brilhante como o mostrado nas narrativas oficiais.
Em Viva o povo brasileiro, personagens como José Hipólito, o Zé Popó, realmente não se
transformaram em grandes oradores, mensageiros das batalhas, mas se mostraram prontos para
27

narrar suas experiências em batalhas, transmitirem suas histórias e suas fortes e chocantes
impressões de guerra.
Como vem se salientando ao longo de todo este trabalho, o romance de João Ubaldo
Ribeiro apresenta tipos distintos de discursos, mas que se entrecruzam no romance: o discurso
tradicional e o discurso ‘novo’, exposto pelas camadas menos favorecidas da população. Zé Popó
é uma das personagens que pertencem a este outro mundo, à esfera daqueles que não possuem
poder político ou econômico.
Depois de retornar da Guerra do Paraguai, Zé Popó é convidado para um evento no qual
seria homenageado, em uma agremiação da Ilha de Itaparica. O antropólogo Roberto DaMatta em
seu livro O que faz o brasil, Brasil? discorre sobre as formalidades naquilo que denominou
“festas da ordem”: solenidades, eventos sociais como ritos de reforço de determinados valores da
estrutura social. A solenidade a que a personagem Popó fora chamado fazia parte de uma dessas
festas em que “o que se está celebrando é a própria ordem social, com suas diferenças e
gradações, seus poderes e hierarquias” (DaMATTA, 1986, p. 82). Todavia, Zé Popó se recusa a
sentar na cadeira de honra, assim como decide não ler um discurso cuja leitura lhe estava sendo
imposta. Contra a formalidade do ato, promove, pois, uma quebra de protocolo.
Como representante daqueles que combateram, que lutaram na frente de batalha, Zé Popó
ao tomar a palavra não narra o lado grandiloqüente da guerra como vinham mostrando os relatos
produzidos e avalizados pelos altos escalões do Exército. Ao tomar a palavra na tribuna, diante de
um salão lotado de representantes das altas rodas da cidade, pensadores e intelectuais, mostra o
lado cruel da batalha, as baixas, a degradação. Neste ponto, o narrador do romance explicita a
palavra da personagem, que apresenta uma outra face da história.
Como imagem mais marcante da guerra, Zé Popó não salienta alguma vitória sobre
supostos inimigos, mas relembra com pesar de uma forte e simbólica imagem de destruição e
dilaceramento:

As bicheiras, falou com simplicidade. (...) Em muitas partes do Paraguai e das


áreas fronteiriças do Brasil, as moscas varejeiras eram tão abundantes que de início os
homens passavam todo o tempo que podiam protegendo a carne, muitas vezes preciosa e
rara. Mas depois desistiram de uma luta em que sempre perdiam e se acostumaram a
carne bichada, coalhada de larvinhas esbranquiçadas, se acostumaram a tudo bichado,
muitos se acostumaram a comer as próprias moscas, ou engoli-las com quaisquer
líquidos que ingerissem, pois elas enxameavam em tudo. Em conseqüência, os feridos,
28

mesmo levemente, transformavam-se aos poucos em viveiros de larvas, bicheiras


ambulantes. ( RIBEIRO, 1984, p. 480)

A partir desse relato pode-se notar que o discurso sobre a guerra não é mais apenas o
representativo de glórias da batalha, mas de dificuldades e, conforme completa em seguida
quando perguntado sobre qual o principal sentimento que toma conta do soldado, sem hesitar, a
personagem responde que o sentimento predominante é o medo, desmistificando a figura do herói
de guerra como sendo o destemido, o homem acima dos homens comuns, afinal “Que desejavam
ouvir? Não imaginassem que a guerra era feita por pessoas diversas das que estavam ali, o
mesmo homem que trabalha na paz trabalha na guerra” (RIBEIRO , 1984, p. 479). Em todas essas
coisas, seja na ruína trazida pela guerra, seja no medo que toma conta do soldado, o discurso de
Zé Popó claramente se opõe ao prestígio do brilho falso das medalhas colocadas em seu peito.
O relato de Zé Popó vem mostrar que a construção do herói se faz unicamente por meio
da interpretação dos acontecimentos e do discurso que os constitui. Um de seus atos,
supostamente heróico, difundido pelo discurso de seus superiores na hierarquia militar dava conta
de que ele havia bravamente salvado o major da morte durante uma batalha. Mas, segundo sua
própria descrição, Zé Popó:

também defendia a si mesmo. Não falava isso por modéstia, que sem querer
considerava uma virtude respeitável, mas por honestidade e porque queria que vissem
que não existem homens especiais e que o herói pode ser qualquer um, a depender de
onde esteja, do que faça e de como o que faz é interpretado pelos outros. (RIBEIRO,
1984, p. 482)

José Hipólito é, portanto, um desses novos sujeitos enunciadores que ganham voz em
Viva o povo brasileiro, destoando das versões tradicionais, complementando a versão da
historiografia tradicional sem promover a sua anulação, apenas justapondo-os, colocando-os em
diálogo. O período no qual este evento ocorre no interior do romance coincide com o momento
de destaque da ideologia positivista no Brasil, grande criadora de imagem de heróis,
especialmente do cenário militar, premiando sempre o mais forte. Limitando-se a pensar na
possibilidade da observância dos acontecimentos pelo prisma da objetividade total, da
29

experiência imediata, sensível, palpável, o Positivismo ignorava a possibilidade das múltiplas


interpretações e Zé Popó é uma personagem que trabalha, mesmo que de forma inconsciente,
contra essa pretensão ao objetivismo, considerando a interpretação – conforme exposto na
passagem acima transcrita.
Na composição de Viva o povo brasileiro, o autor sempre irá se mostrar fiel às variações
mais sutis entre os segmentos sócio -econômicos que seleciona para figurarem no romance. Como
no caso acima retratado, a personagem toma voz, deixando fluir sua experiência, suas impressões,
sua especificidade de registro lingüístico, sua versão da história.
Ao mesmo tempo, como característico dos romances polifônicos, não há imposições
quanto às consciências. O narrador não sai completamente da cena, mas as personagens
mostram-se em seus perfis, ou seja, cada uma delas é como uma entidade viva e autônoma,
portadora de uma independência inexistente nos romances monológicos, nos quais o autor é a
consciência única. Na proposta do romance agora analisado, o narrador é capaz de promover um
contato entre leitor e personagens com o mínimo possível de intermediações, enfim, o narrador
não fala pelas personagens, permite que tomem a palavra; assim como o autor seleciona e
organiza essas vozes de maneira que não faz delas suas marionetes discursivas.

2.3. A incerteza do real

Até aqui se procurou mostrar a autonomia concedida às personagens, assim como a


flexibilidade na apreensão de acontecimentos, mediada pela variedade de formas que assumem
diante de inúmeras interpretações a que se submetem quaisquer eventos, uma vez que é o
discurso que, numa relação dialética, constitui o ob jeto. Viva o povo brasileiro é uma obra que já
na sua epígrafe deixa claro que: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só
existem histórias” (RIBEIRO, 1984, p. 7). E será esta variedade de histórias a grande matéria do
romance, tendo como base, como terceiro do discurso conforme se disse no início deste capítulo,
o discurso oficial da história do Brasil. Mas como o narrador apresenta essas diferentes histórias?
Como as organiza e como se posiciona ao assumir a tarefa de apresentá- las ao leitor? É este
caminho que será percorrido a partir de agora.
30

Para responder a essas perguntas, retomo alguns tópicos. Afirmei que Viva o povo
brasileiro se inicia com a conjunção adversativa “Contudo”, em uma espécie de contraponto em
relação ao discurso historiográfico. A matéria narrada, portanto, apresentará algo diferenciado em
comparação a este discurso. Deste modo, o leitor terá em mente, desde a primeira página do
romance, a idéia de diálogo com os discursos com os quais já teve contato e que precederam a
leitura do texto e que também foram formadores da imagem que se tem da nação, de sua história,
de sua formação.
E a narrativa prossegue:

Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José


Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de
receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou de ferro disparadas pelas
bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. (RIBEIRO, 1984, p.
9)

Esta é a primeira história contada pelo romance, a história do alferes que se transformou
em mártir da Independência após ser alvejado por portugueses, um herói da pátria. Todavia, na
medida em que a narrativa avança, essa imagem de grande soldado morto em combate começa a
ruir. Era apenas cha mado de alferes porque ganhara uma farda antiga e era com ela que sempre
aparecia pelas ruas. Em 10 de junho de 1822, data de sua morte, o suposto alferes não estava no
exercício de qualquer estratégia de guerra, mas apenas na hora errada e no lugar errado. A glória
que reveste sua história apagara sua origem paupérrima, seu desapego às letras e à instrução e a
completa ignorância do processo político pelo qual passava o Estado brasileiro. Brandão Galvão
era rapaz que temia perguntas e nem ao menos conhecia seu país: “Onde fica mesmo o Brasil,
sabendo-se que certamente isto aqui é Brasil, mas não é todo o Brasil, e pode um bom soldado
ignorar onde fica o Brasil?” (RIBEIRO, 1984, p. 13). Mesmo em meio a todo o seu
desconhecimento, Brandão Galvão procurava cercar-se pelas ilustres figuras da sociedade em
saraus e pequenas reuniões, não para sair desse estado de plena ignorância, mas apenas para
figurar entre eles.
Aos poucos conhecemos a pequenez da vida do alferes e sua total ausência de
discernimento: alguém que morre sem saber ao menos o porquê. A figura do Alferes surge na
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narrativa inicialmente na contemplação do narrador ao quadro “O Alferes Brandão Galvão Perora


às Gaivotas”. A própria existência de um quadro em homenagem ao alferes demonstra a
notoriedad e que esta figura ganhou com o passar dos anos e com a transmissão da suposta
história de magnanimidade em defesa da pátria.
Ao contemplar o quadro é que o narrador descreve as duas faces da vida do alferes: o
herói de guerra e o jovem que morreu sem nem ao menos “ter feito qualquer coisa memorável”.
Então seria correto afirmar que o Alferes Brandão Galvão não é nenhum herói? Não é exatamente
esta a mensagem que o romance demarca: a partir do momento em que a história existe e que
nela se acredita, ela passa a ser real. O narrador constrói assim uma imagem conciliatória de
ambas as versões da vida do alferes. É portanto, a história, a narrativa, o discurso que têm a
existência real. A verdade, portanto, é uma construção discursiva; há somente versões do real que
priorizam este ou aquele ângulo dos acontecimentos. O que é válido é que o discurso existe, é
atribuído ao alferes e, por meio de toda esta trama, transformou-se um jovem comum da Ilha de
Itaparica em herói da Independência.
O narrador de Viva o povo brasileiro, portanto, não busca uma verdade, única e soberana;
ele colhe histórias, faz o leitor promover diálogos entre elas, promover um diálogo entre o ‘já-
dito’ e o que é ora apresentado pelo romance como novidade por meio dos novos enunciadores a
quem concede voz – ao que parece, mais do que voz, dá ouvidos, que somos nós, leitores do
romance.
Nos dois exemplos aqui analisados, tanto do alferes quanto de Zé Popó, pode-se observar
como, ao longo do romance, vêm à tona esta ou àquela versão dos acontecimentos, as várias
histórias. É possível atentarmos a esses recursos quando o narrador se vale destes recursos
narrativos para que cada personagem ‘fale’ com sua forma dialetal própria e a partir de sua
própria consciência, não vinculada obrigatoriamente ao autor.
Por meio desse processo é que observamos mais nitidamente no romance quando é o
narrador quem fala e quando são as personagens que se mostram em seus perfis – e isto não
apenas nos diálogos entre as personagens, em diálogos cujas falas são marcadas pelo travessão,
comum nas narrativas. Mas a especificidade entre narrador e personagens é tamanha, suas
consciências são de tal forma distintas e autônomas. Logo, pode-se afirmar que não estamos
diante de um romance monológico, monolítico, no qual as personagens seriam apenas reflexos de
uma consciência una, todos têm seu espaço.
32

2.4. Quando o narrador se mostra

É inegável que em Viva o povo brasileiro, o narrador exponha as personagens com vozes
e consciências independentes da sua. Falam segundo seus registros lingüísticos particulares,
expõem suas impressões de mundo segundo seu ângulo, enfim, não são “objeto2 da consciência
de um eu que tudo enforma e comanda” (BEZERRA, 2005, p. 191).
O narrador não é, portanto, o centro irradiador de uma consciência única sobre a narrativa.
A seu modo o narrador se posiciona diante da matéria narrada e o leitor do romance, já em uma
primeira leitura, pode observar o espaço dado a certas transgressões à ordens pré-estabelecidas
socialmente. A cerimônia de homenagem a Zé Popó é um dos exemplos dessas transgressões,
mostrando como há ‘ordens’ e ‘ordens’, como nada é unívoco. Mas não é apenas esse tipo de
‘quebra de protocolo’ que se encontra na narrativa. Acima aludi à galhofa na trama desse
romance. A classe mais privilegiada socialmente, na tônica desses diversos prismas sobre a
história, é apresentada pelo narrador de maneira distinta das classes mais baixas.
Enquanto o narrador exibe os valores dos negros de África e de seus descendentes, o faz
com respeito, como no caso de Dadinha: a centenária matriarca dos escravos do Porto Santo da
Ilha de Itaparica fala e o narrador parece sentar-se naquela roda entre os negros a fim de ouvir o
que ela tem a dizer, com atenção e deferência. O mesmo acontece com o espaço privilegia do
concedido à Maria da Fé na apresentação de seus posicionamentos a favor da valorização dos
povos por ela vistos como subjugados.
Semelhante afirmação não se pode fazer quando o narrador apresenta o modus vivendi dos
poderosos e detentores do dinheiro e do prestígio social. Neste ponto, lembrando-nos novamente
do “Contudo” que abre o romance: pode-se notar que será o discurso destes o que mais
fortemente receberá críticas, entendendo-o aqui como o que compõe os livros de história lidos
por Maria da Fé na escola, por exemplo, ou como o que consta nos registros oficiais que relatam
a participação do Brasil e dos brasileiros em guerras.
Abro aqui um parêntese a fim de esclarecer esta expressão “mais fortemente receberá
críticas”. Não é em Viva o povo brasileiro apenas o discurso e os valores dos poderosos que serão
alvo de análise e questionamento. Conforme poderá ser mais detalhado em capítulos posteriores,

2
Grifo do autor.
33

há personagens do universo dos menos prestigiados que receberão também críticas,


especialmente aquele s que abandonam, sem grandes reflexões e critérios, as suas origens,
assimilando valores de outras classes e que, sem notar, desvalorizam suas antigas tradições e
particularidades.
Mas enquanto esse tipo de crítica realiza-se de modo veemente, fervoroso e por vezes
solene, a crítica aos valores dos poderosos pode assumir tons parodísticos ou carnavalizados.
Nada mais desmoralizador e inversor da ordem estabelecida que rir do poder.
Esta imagem será de especial importância na análise da personagem do Barão de
Pirapuama, Perilo Ambrósio Góes Farinha, um dos grandes senhores da Ilha de Itaparica. Na
representação da personagem o narrador salienta seus aspectos mais vulgares, ressaltando os
aspectos negativos, reforçando a crítica. Já na descrição da personagem em seus tempos de
infância, Perilo é apresentado como glutão, violento, animalesco:

Lembrou, como de hábito sentindo o peito ofender-se e doer a solidão pesada


da injustiça, que o pai ameaçara pela décima ou trigésima vez expulsá-lo da vila e da
fazenda, ao vê-lo atacar uma das irmãs com um chuço de assar porque ela se apossara
primeiro de um pedaço de carne distante mas cobiçado. Não tinha como alcançar aquela
salpresa a resplender entre maxixes e jilós na outra ponta da mesa, nem mesmo podia
reservá-la para si com gritos e ameaças, porque o atrapalhava a boca ingurgitada de toras
de toucinho com farinha que calcava com ânsia por todos os espaços da boca e, ao
mesmo tempo, não se permitia deixar de angustiar-se por medo de furtarem de suas
pilhetas abarrotadas bocados já antecipados aos fungos e suspiros, se parasse de lhes dar
atenção ainda que alguns instantes. Então não cabia fazer nada, a não ser, com os olhos
de uma baleia ferida, voar por cima daquele intolerável abismo entre ele e o pedaço de
carne e, antes que a irmã mordesse o que era dele, transfixar-lhe a mão com o chuço
preto e gorduroso. Por que me perseguem? – pensou em gritar ainda, revoltado, mas,
enquanto carregavam para dentro a irmã com o espeto atravessado da palma às costas da
mão, as negras levantando uma algazarra descabida, o pai arrancou-lhe a lasca de carne
de entre os dentes em meio a uma chuva de tabefes, obrigando-o a sair da mesa e não
mais comer naquele dia. Dentro do quarto em que o pai o trancou, ardeu de ódio e
despeito e chorou quase o tempo todo, em soluços esganiçados tão fundos que às vezes
pensava que nunca teriam fim. (RIBEIRO, 1984, p. 21)

Ao longo do trabalho, será realizada uma análise pormenorizada das ações e do


comportamento social de Perilo Ambrósio. Aqui transcrito, o trecho do romance serve a seguinte
finalidade: observar como o narrador salienta o negativo nesta personagem, construindo-a diante
dos olhos do leitor por meio do caminho da paródia, do zoomórfico e do degradante. Em Viva o
povo brasileiro, a paródia, a sátira e a carnavalização formarão um todo centrado sobre um
34

caráter denunciador das práticas e costumes sociais, como cita o professor João Vianney
Cavalcanti Nuto: castigat ridendo mores

Que se pode traduzir livremente como “castigar os costumes pelo riso”. Por seu
caráter denunciador, a sátira é essencialmente paródica, pois constrói-se através do
rebaixamento de personalidades (reais ou fictícias), instituições e temas que, segundo as
convenções clássicas, deveriam ser tratados em estilo elevado. Ou seja, a sátira ri de
assuntos e pessoas “sérias”, para denunciar o que há de podre por trás da fachada nobre
impingida à sociedade. (NUTO, 2000, p. 4)

E assim será também o tratamento conferido a uma das mais significativas personagens
do roma nce: Amleto Ferreira. De simples guarda- livros do barão, passa a grande senhor, após
usurpar- lhe os bens e transforma-se em homem de hábitos refinados e muitas vezes incompatíveis
com o estilo de vida da tropical Ilha de Itaparica – o que confere ao romance cenas repleta de
comicidade, a exemplo da cena em que sua filha Carlota Borroméia recusa-se a tomar café da
manhã com o pai e vai até a cozinha, junto com as pretas escravas, comer broas de milho
enquanto deixa seu pai com seu “desjejum de rins grelhados, arenques defumados, mingau com
passas, pãezinhos fofos, e torrada com geléia”.
Com base em todos os elementos aqui reunidos acerca do narrador deste romance de João
Ubaldo e tendo explicitado os recursos mais relevantes, já é possível passar para um outro tipo de
análise: a análise das personagens, das vozes presentes no romance. Já se mostrou até aqui como
o narrador dispõe as personagens na obra, sua autonomia, seus modos de apresentação e o
tratamento dispensado. Devemos agora mergulhar mais profundamente no universo da obra. O
narrador organizou essas vozes, mas o quê elas falam? É o que veremos a seguir.
3. OS POVOS BRASILEIROS

Com um olhar endógeno sobre a pátria, Viva o povo brasileiro é um romance que percorre
mais de três séculos da história do Brasil observando determinados processos que marcaram
nossa formação nacional, cultura, tradições e modos de pensamento. Como em uma espécie de
retorno à tradição do romance de fundação, comum ao século XIX, o romance de João Ubaldo
Ribeiro abarca visões opostas e não apenas a óptica ufanista. A obra em questão, portanto,
condensa tanto a visão de exaltação à pátria como também a visão de denúncia ‘não-panfletária’
conforme veremos agora, partindo de uma breve análise do título do livro.

3.1. Muitos vivas

É importante que se observe duas relevantes hipóteses acerca do título do livro de João
Ubaldo Ribeiro. Magistralmente, o autor confere à sua obra o aparentemente simples título Viva o
povo brasileiro. Todavia, deste modo, já no primeiro contato que o leitor tem com o romance,
marca-se que esta obra não trabalhará com estruturas estanques, visões unas, mas nos exigirá
sempre trabalho interpretativo e atenção.
Não contendo qualquer sinal de pontuação, o título dá margem a diferentes,
enriquecedores e, por que não, complementares modos de compreensão que afetam diretamente a
recepção do texto – ou vice- versa, quando a leitura do livro poderá modificar a primeira
impressão que se fez sobre o título.
35

Segundo o professor Alcmeno Bastos, o título da obra é “insolitamente exclamativo”


(BASTOS, 2002, p. 1), pois se encontra sob uma colocação não habitual – sem o sinal gráfico
convencional. Com isso, pode tanto se referir a uma exaltação aos membros constitutivos do
povo brasileiro, como pode também aludir ao desejo ou imperativo de vida desse povo e, por
conseguinte, da nação.
Poder-se-ia analisar essa ausência do sinal de pontuação como um elemento
representativo da imprecisão. Em um povo que ainda se encontraria em meio a um processo de
construção de identidade, de tomada de consciência de si mesmo, a falta da pontuação aludiria a
uma marca sobre algo que ainda não se encontra plenamente delimitado, uma lacuna, um espaço
a ser preenchido; assim como poderia demonstrar também uma possível flexibilidade na
interpretação: ora uma leitura em tom exclamativo do título e ora o apontamento de liberdade (ou
necessidade) de vida, para que a nação possa dar prosseguimento a seu processo de constante
formação e afirmação. Nessa perspectiva, o povo é analisado como:

(...) personagem, [que] se carece de atributos personalizadores, ganha, em troca,


acentuada liberdade face a condicionamentos espácio-temporais (no tempo e no espaço),
mantendo-se permanentemente disponível para a contínua construção de sua identidade.
(BASTOS, 2002, p. 2)

Mas por que tal busca por uma identidade reconhecível? Na colonização é que se poderia
encontrar uma resposta para essa pergunta. Ser ao longo de séculos subjugado por uma nação
estrangeira, que faz deste território extensão de suas terras de Europa como uma espécie de
quintal onde podem ser feitas todas as coisas, permissivamente, poderia desencadear essa procura
contra o aviltamento e contra a conseqüente “falta de coesão social” de que nos fala Sérgio
Buarque de Holanda em seu clássico Raízes do Brasil. É segundo essa busca que se pode
promover uma segunda leitura do título da obra.
Neste segundo momento, a análise recai sobre a dupla interpretação do verbo viver,
paralela e complementar à visão acima citada: “viva”, no sentido de exaltação e “viva”, no
sentido de perpetuação da existência da nação:

Tratando-se, portanto, da vida de um povo, vida que não se encerra com o ponto
final do texto – e vale a pena atentar para a expressividade do verbo, pois “Viva” não
36

inicia apenas uma saudação protocolar e vazia, mas pode ser lido como a incitação à
permanência, isto é, o desejo de que viva mais e para sempre o “povo brasileiro” – a
questão da identidade afirma-se como central em Viva o povo brasileiro. (ibidem)

Deste modo, segundo o tom exclamativo que se poderia conferir à leitura do título, “viva”
seria uma exaltação ao povo brasileiro ao qual o título se refere. Mas, isentando-o desse tom,
“viva” assumiria uma outra conotação, demonstrando que esse povo deve perpetuar sua
existência, evitando a suposta etapa da morte biológica, como acena Alcmeno Bastos, em uma
interpretação que analogamente aproxima “povo” e organismo vivo (esta seria uma das principais
metonímias presentes em Viva o povo brasileiro: o país pelo seu povo), porém pretendendo
preservá-lo da extinção trazida pela morte – como normalmente ocorreria com um indivíduo
isoladamente. Aparece, pois, já no título a demonstração explícita da proposta ousada da obra,
que não falará de um único indivíduo, mas da formação de um povo que não deve estar fadado ao
desaparecimento.
Não por acaso, o período escolhido para o início da narrativa, na ordem em que aparece
na disposição do livro, coincide com o processo de Independência do Brasil, um período em que
se daria a pretensa libertação das amarras coloniais e o impulso para o início de uma nova
consciência de nacionalidade, a afirmação como nação autônoma, fazendo de seus membros
conhecedores de si mesmos e agentes de sua história. Nesta proposta, a primeira personagem
apresentada no romance, o já citado Alferes José Francisco Brandão Galvão, esboça um início de
processo de questionamento, ainda vacilante, mas que seria fundamental à construção deste
conhecimento:

(...) temia (...) que lhe fizesse perguntas. (...) Que acha de todas as lutas do
Brasil, que opinião tem sobre a nossa Independência, que grandes comandantes, que mal
recuperando o alento depois de sofrida refrega, lhe disseram “dêem-me dez como você,
meu bravo, e o orbe terrestre será nosso?” Onde fica mesmo o Brasil, sabendo-se que
certamente isto aqui é Brasil, mas não é todo o Brasil, e pode o bom soldado ignorar
onde fica o Brasil? (RIBEIRO, 1984, p. 13)

Esta personagem é, na trama, elevada à categoria de herói sem realizar qualquer ação real
e voluntaria mente heróica. É esta uma das críticas à construção falseada: as histórias contadas a
seu respeito são as responsáveis pelo juízo formado sobre ele, sua imagem de herói. Conforme já
37

foi dito neste trabalho, um herói ou a história podem, então, surgir por meio da legibilidade
conferida por uma fala tantas vezes repetida e, assim, tomada por 'verdade'. Posteriormente, como
será visto, a personagem Maria da Fé resgatará esses questionamentos, buscando a compreensão
dos processos de formação do povo e da vida deste povo, mas de uma maneira mais profunda.
Relativamente mais sistematizada e menos atabalhoada que o alferes, Maria da Fé
questiona sua própria origem, adotando uma atitude perscrutadora, chave do saber. Na passagem
acima, o Alferes se dá conta de que pouco sabe sobre o país pelo qual luta, pouco sabe sobre 'sua'
própria nação, mas igualmente pouco faz para mudar seu estado de plena ignorância. Como no
espelho machadiano, apenas ‘parecer’ vale mais que ‘ser’. Conhecer-se é fundamental; assim
como a nação precisa conhecer a sua própria história. Esse paralelismo metonímico entre o ser
humano e a nação, mais uma vez desponta com força em Viva o povo brasileiro.

3.2. Povo brasileiro

3.2.1. Preliminares

Antes de iniciar propriamente esta questão, é vá lido que se observem algumas outras. Ao
lidar com um romance que trata da história, de tradições, da quebra de padrões e modelos, é
importante que se avaliem como são encaradas idéias como cultura brasileira e até mesmo Brasil.
Não pretenderei aqui conceituá- los haja vista que a Antropologia e a Sociologia procuram fazê-lo
sem ainda hoje chegarem a uma resposta final e, ao que tudo indica, preferem a multiplicidade à
solução única e enformada. Mas, de acordo com a proposta aqui trabalhada segundo a idéia
trazida pelo romance em análise, algumas idéias devem ser levantadas.
Em um primeiro momento poderia parecer que tais idéias já estão com suas discussões no
mínimo saturadas, com imediata associação ao território e à população que aqui nasce e vive e
que possui maneiras particulares de lidar com as situações do cotidiano e com o mundo à sua
volta, associado ainda ao conjunto de comportamentos que podemos chamar ‘tradicionais’, e
muitas vezes nesse jogo, quanto mais antigo melhor, quanto mais antigo, mais original.
Todavia, reflexões mais atuais não apontam apenas para a necessidade de se desvendar ‘a
essência da identidade brasileira’, mas apontam para algo ainda mais básico, questionando o
38

‘Brasil’. No ensaio “Nenhum Brasil existe: poesia como história cultural”3 , João Cezar de Castro
Rocha procura demonstrar uma nova perspectiva que se iniciou a partir da leitura de Carlos
Drummond de Andrade4 em seu poema “Hino Nacional”, questionamento que se pode ver
especialmente condensado em sua última estrofe, que aqui transcrevo:

(...)

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!


Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Assim, pensamentos que pareciam sólidos como quem é o povo ou o que é o Brasil são
reavaliados, abalando nossa confortável sensação de que o Brasil é esta bela e vasta extensão
geográfica na América e que seu povo conhece a si próprio e está em harmonia como em um
concerto vivo e que tudo o que é realizado neste território é o ‘tipicamente brasileiro’, ou seja,
representativo de uma cultura nacional por excelência.
Seria realmente possível depreender o “ser brasileiro” ou o “Brasil” ou ainda “a cultura
brasileira” de maneira totalizante por meio da literatura? Viva o povo brasileiro é um romance
que observa o Brasil não a partir de fatos isolados, mas como um todo. Mesmo se passando no
reduzido espaço de Itaparica, este ilhamento é mais um dos processos metonímicos trabalhados
por Ubaldo.
Não conhecer o Brasil é uma das angústias, como vimos, por que passa a personagem do
falso alferes; é também uma das grandes preocupações da mulata Maria da Fé. Conhecer é sua
principal inquietação: o conhecimento, conforme veremos em suas reflexões, é, para ela, o único
veículo para a liberdade – sentido de extrema importância em nações exploradas durante séculos
pelo regime colonial. É sobre esta questão que este capítulo se centrará.

3
Texto extraído de: ROCHA, João Cezar de Castro (org). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de
Janeiro: UniverCidade Editora, 2003.
4
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Hino Nacional”. In: Brejo das Almas. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
39

No Romantismo do século XIX realizaram-se na literatura nacional as primeiras tentativas


de leituras da nação, não por acaso, paralelas a nosso processo de independência política da
metrópole portuguesa. Um de nossos casos mais expressivos, quiçá o mais expressivo, se fez com
José de Alencar ao falar desde a formação do povo cearense e metonimicamente do Brasil, com
Iracema, indo até o sul, com O gaúcho, e também percorrendo o Brasil com O sertanejo, A
guerra dos mascates, assim como seus diversos romances urbanos que falavam desta outra face
do país. Neste somatório, teríamos a formação de uma imagem literária ampla que abarcaria todo
o Brasil neste ousadíssimo projeto.
A posição tomada por João Ubaldo Ribeiro, por outro lado, favorece a apresentação do
‘impreciso’ e do ‘problemático’ na tentativa de representação da nação, focando o
questionamento, a indagação. Esta perspectiva pode ser corroborada pelas reflexões mais
recentes que afirmam que o Brasil “resiste a todas as tentativas de apreender sua essência (..),
não se rende às tentativas de traduzi- lo em substanciais volumes de história literária e cultural”
(ROCHA, 2003, p. 17). O projeto literário romântico estava empenhado em um trabalho
hercúleo: o escritor pensava ser capaz de captar esta tão procurada ‘essência’ do país, pensava -se
capaz de reavivar e redescobrir a origem da nação, identificando-a e representando-a por meio
das ficções de fundação.
Atualmente o que se pensa ou chama “Brasil” pode se entendido como uma representação
discursiva:

em lugar de signo repleto de um sentido que reforça a si próprio, a nação seria


antes um significante vazio ao qual se atribui uma carga semântica segundo as diferentes
necessidades geradas pela contingência das circunstâncias históricas. Por isso nem o
Brasil, tampouco os brasileiros existem, ou melhor, somente existem através das
imagens que deles construímos. (ROCHA, 2003, p. 20–21)

E nesta perspectiva observamos que tudo o que se fala sobre o Brasil ou sobre o povo
brasileiro são visões ideologicamente orientadas, construídas, discursivas, e não emprestadas de
uma realidade única, rígida, distanciada das experiências que temos com ela. Como nos alerta
Bakhtin, o signo pode preencher qualquer espécie de função e sentidos ideológicos (BAKHTIN,
1995).
40

Desta maneira, as ficções sobre o Brasil, a nação, a brasilidade ou o povo, ao invés de


correrem atrás do vento, colocam o leitor em contato com essa perspectiva que não mais buscaria
a identidade única ou a certeza da origem ou quaisquer outras certezas históricas: a escrita de
ficções de fundação nacional deve ser encarada como provocadora, suscitadora de perguntas que
se mantenham constantemente avivadas, para que se continue questionando, não permitindo que
o pensamento e a reflexão sob re o país fiquem estagnados, fazendo-nos ver que a questão não
está encerrada e que o assunto não se esgotou ou se desgastou em sua própria vastidão. Este
movimento de inúmeras interrogações sobre a nação permite que se evite a velha tautologia de se
tentar desvelar a identidade nacional, pura e única.
A partir desses dados inovadores sobre o pensamento da nação, pode-se também
questionar a idéia comum sobre nossa população. Viva o povo brasileiro demonstra a especial
atenção que se dará àquilo que se conve ncionou chamar ‘povo’. Porém, por que dizer
‘convencionou-se chamar’?
Da mesma maneira que acima se afirmou que ‘Brasil’ pode adquirir determinado sentido
dependendo da circunstância e da necessidade, o signo vazio, ‘povo brasileiro’ apresenta
semelhante indeterminação. Uma pretensa homogeneidade em sua representação denunciaria um
caráter falseador das circunstâncias que aqui se apresentam, levando-se em consideração, ao
menos, o caráter miscigenado desse povo, produto do processo de colonização e sua
estratificação social.
Tendo em vista o caráter plural do povo do Brasil, uma fala chama especialmente a
atenção em Viva o povo brasileiro: “(...) tinha companheiros italianos, alemães, espanhóis,
portugueses, sírios, todos brasileiros trabalhadores, lutadores e pisoteados” (RIBEIRO, 1984, p.
631). Esta fala pertence à personagem Stalin José, refletindo sobre a condição de eqüidade entre
os ‘filhos da terra’ e os estrangeiros que para cá vieram e foram (são) da mesma forma
explorados, em uma pobreza que por sua vez independia agora da cor da pele, sendo todos
“pisoteados” por um sistema político-social calcado nas desigualdades 5 – sendo este pensamento
baseado em ideais cuja alusão se faz clara por seu nome, ligado a um dos maiores líderes
comunistas da história: Josef Stalin, mas fundamentalmente à utopia do fim das desigualdades
sociais. Mas o que aparentemente soa como impropriedade às concepções tradicionais é a
inclusão de povos estrangeiros à idéia de “povo brasileiro” – “todos brasileiros”, como afirma

5
Esta passagem é situada, na trama do texto, no ano de 1977.
41

Stalin José. Essa visão reforça a idéia de que o termo ‘brasileiro’ não dependeria exclusivamente
da nacionalidade, do lugar de nascimento. Estes estrangeiros que trabalham para o país
pareceriam ‘mais brasileiros’ que os outros brasileiros, que nasceram no Brasil, mas adotaram o
modo de vida europeizado, renegaram a nação ou trabalharam contra o seu crescimento em favor
exclusivo de interesses pessoais.
Viva o povo brasileiro é uma narrativa riquíssima quanto à diversidade de juízos
atribuídos à palavra ‘povo’. Em analogia ao que acontece ao termo ‘Brasil’, ‘povo’ também
recebe inúmeras classificações, que se adaptam ideologicamente à posição social do enunciador.
A narrativa de João Ubaldo Ribeiro apresenta tais variações: uma representando o discurso das
classes dominantes, e outro representando o discurso não-autorizado ou marginalizado
pertencente às classes economicamente inferiores. De acordo com o posicionamento social do
enunciador, a palavra ‘povo’ assume conotação distinta, tendo em vista interesses particulares
dos segmentos sociais.
Em Viva o povo brasileiro, a fala atribuída à classe dominante pode muito bem ser
ilustrada por uma única passagem no texto, correspondente à fala da personagem Amleto
Ferreira:

que chamamos de povo? Seguramente não é essa massa rude, de iletrados,


enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se pode chamar
de povo, não era isso o que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo do nosso
povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os pró prios europeus. As classes
trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais povo. Povo é raça, é cultura, é
civilização, é afirmação, é nacionalidade, não é o rebotalho dessa mesma nacionalidade.
(RIBEIRO, 1984, p. 244–245)

Esta era a representação referente ao século XIX apresentada por esta personagem em
Viva o povo brasileiro. Quando a narrativa avança para o século XX, as classes menos
favorecidas continuam a ser vistas com descrédito: “Sem piada não tem conversa no Brasil. (...)
Não sabe como é o brasileiro? O brasileiro é mulher, cachaça, futebol, carnaval e molecagem,
esta é que é a verdade” (RIBEIRO, 1984, p. 624).
Além de mostrar o problema da visão preconceituosa e estereotipada, o trecho expõe
ícones da representação cultural do país (positivos ou negativos, dependendo da interpretação),
42

merecendo ressalva o termo "molecagem" por remeter à infantilidade, à imaturidade. Molecagem


é um vocábulo que nos dicionários se refere a 'moleque', que por sua vez remete a ‘negrinho’:
sujeito de sentimentos inferiores, indivíduo sem palavra. Portanto há uma claríssima conotação
pejorativa que não somente alude às classes mais baixas da população, como também reforça o
racismo, atribuindo à etnia negra a responsabilidade pelos males do Brasil.
Desta forma observa-se que o passado colonial do Brasil deixou marcas profundas no
pensamento das classes dominantes, sendo que o trecho acima parece apontar para uma visão
contrária à idéia de que não há no Brasil discriminação quanto a cor: tanto há que em nossa
sociedade a cor da pele revela boa parte do passado de um indivíduo, falando-se aqui
especialmente da cor negra relacionada ao passado escravocrata – e seus desdobramentos com o
miscigenação.
Viva o povo brasileiro trabalha, dentre várias outras questões, esta relativização de
conceitos, conceitos que variam de acordo com o posicionamento daquele que os enuncia,
adotando-se o sentido que mais aprouver. Em um dado momento da narrativa, há um retorno
temporal da história até ali contada. Neste momento, narrador aponta para a diversidade de
determinados pensamentos e suas motivações:

(...) o que para um é preto como carvão, para outro é alvo como jasmim. O que
para um é alimento ou metal de valor, para outro é veneno ou flandre. O que para um é
um grande acontecimento, para outro é vergonha a negar. O que para um é importante,
para outro não existe. (RIBEIRO, 1984, p. 515)

Assim se pode perceber que a história e os discursos são construídos de acordo com
aquilo que se quer contar, de acordo com aquilo que se quer sabido. A máquina de exclusão
social que opera no Brasil desde os primórdios de sua colonização não funciona apenas no campo
sócio-econômico, mas tem seus reflexos no direito ou não à fala (uma das grandes tensões do
livro). O processo histórico mostra claramente que a versão que chega à posteridade traz somente
o parecer daqueles que tiveram ‘direito’ ao discurso: a voz autorizada.
Porém, Viva o povo brasileiro é uma narrativa que também buscará saídas para que não
prevaleça apenas um pensamento. Dentre variadas ações, uma personagem terá especial papel no
43

resgate da concepção de povo pensada pelas classes baixas da população: Maria da Fé. O trecho
abaixo pode ilustrar perfeitamente o projeto almejado pela personagem:

Mas logo ela percebeu que a luta era por demais desigual e ia continuar a ser,
enquanto não conseguisse mostrar a todo mundo, a todo povo que padece da tirania do
poderoso, que é preciso que todos lutem, cada qual de seu jeito, para trazer a liberdade e
a justiça. E então, além de lutar, passou a ensinar, tendo feito muitas escolas do povo no
meio dos matos de diversas regiões, onde punha seus professores e de vez em quando
aparecia para ministrar aulas, começando sempre cada lição com a seguinte frase:
“Agora eu vou ensinar vocês a ter orgulho de ser preto, com todas as coisas da pretidão,
do cabelo à fala”. Ao índio ela ensinou a mesma coisa. Ao povo, a mesma coisa, bem
como que o povo é que é o dono do Brasil. (RIBEIRO, 1984, p. 519)

O projeto de Maria da Fé para que o povo (aqui entendido como as camadas


economicamente mais baixas da sociedade) tivesse orgulho de si mesmo passava por um ponto
básico: a educação aliada ao conhecimento da cultura. Para que o povo se libertasse da submissão
aos dominadores – muito benéfica para esses últimos – e tivesse a possibilidade de se
desenvolver autonomamente era preciso implantar, além do estudo escolar, o orgulho, porque,
como visto anteriormente, a classe baixa da população era execrada, chamada pela aristocracia
não de povo, mas pelo pejorativo “populacho” (RIBEIRO, 1984), e precisava se libertar deste
estigma para, enfim, poder pensar em desenvolvimento próprio, de acordo com seus anseios e
não mais de acordo com as vontades dos dominadores, na tentativa de apagar a herança corrosiva
de séculos de dominação. Porém, não é interessante para o dominador que seu dominado
desenvolva um pensamento crítico, fruto de estudo. As idéias de Maria da Fé e tudo o que elas
representavam eram logo abafadas:

Com isso ela passou a ser cada vez mais odiada e sempre descobriam onde
havia uma escola dela, enforcavam professores, punham no tronco os alunos,
amaldiçoavam os lugares e faziam de tudo para destruir o que ela construía. (...) Mas o
povo gostava dela e a toda parte que ela fosse tinha lugar para se esconder. (RIBEIRO,
1984, p. 519)

E assim, sendo as escolas sucessivamente destruídas, o dominador mantinha um relativo


controle sobre a expansão do pensamento crítico, ganhando batalhas nesta guerra de interesses
44

entre dominantes e dominados, procurando fazer com que prevalecesse sempre seu discurso
sobre a história, sobre o povo e sobre a nação.
Deste modo pode-se concluir que os termos ‘Brasil’ e ‘povo brasileiro’ são representações
ideológicas, maneiras de pensar e conjuntos de valores que mostram o quanto o indivíduo está
ligado a seu segmento social. Os conceitos aqui problematizados são, portanto, conceitos cujos
sentidos são variantes, oscilando de acordo com ‘verdades’ particulares, sendo que prevalece na
sociedade a referida fala autorizada, a fala do dominador, representada por aqueles
economicamente favorecidos por um sistema sócio-econômico calcado na exclusão. O mais
importante a se depreender, portanto, é que não há um Brasil, nem mesmo um povo brasileiro.
Por isso a ligação desta problematização à epígrafe de Viva o povo brasileiro que afirma que “O
segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, sendo que cada uma
dessas histórias é uma ‘verdade’, ou verdades que conferem ao ‘povo’, ao ‘Brasil’ ou à ‘cultura
brasileira’ várias interpretações.

3.3. Alguns brasileiros

A partir deste capítulo, a análise se centra sobre as personagens. Já foi dito que as
personagens são as entidades vivas do romance, possuem autonomia, consciência própria
independente da consciência do autor ou do narrador, exprimem sua voz de maneira particular,
não vinculada a uma eventual consciência dominadora do universo narrativo. Mas toda esta
afirmação de pouco ou nada vale sem que mergulhemos nessas vidas.
Viva o povo brasileiro possui uma quantidade significativa de personagens. Todavia não
será necessário colocarmos todas aqui, uma a uma, para compreender as diversidades mostradas
pelo autor do romance. Ao seguirmos o curso de algumas dessas personagens, nos depararemos
de relance com tantas outras, com quantas consciências nos forem possíveis para que com isso
tenhamos uma análise suficientemente ampla, dentro da proposta deste trabalho.
A perspectiva adotada propõe uma análise na qual as personagens serão observadas em
suas ações, pensamentos e falas ao longo da narrativa, caracterizadas por seus feitos assim como
pela importância de cada uma tanto para o curso da narrativa como para o projeto do romance, no
resgate da memória daqueles que formaram (formam) a nação brasileira.
45

Sem dúvida este será o trabalho de maior relevância dentro da pesquisa a que me propus:
observar como o discurso constrói as personagens. Se Viva o povo brasileiro fosse um livro que
se propusesse apenas e tão somente a uma releitura da história do Brasil, sem valorizar os mais
diferentes atores dessa história, sua empreitada não teria os mesmos sentidos e sua proposta seria
enfraquecida. Não por acaso o título da obra já revela a qualquer leitor que o grande protagonista
do romance será esse povo, serão aqueles que agem na construção do país, mesmo que essa
construção traga mais benefícios a si mesmo que a nação, conforme veremos mais à frente nas
relações de poder e exploração da terra e dos próprios brasileiros.
As personagens deste romance estão organizadas em torno de duas grandes genealogias:
uma ligada ao clã de Amleto Ferreira, cuja aparição no romance sugere que seria apenas uma
personagem secundária, mas que se revela o eixo sobre o qual toda uma parte da trama se
construirá; e outra genealogia ligada por fios mais etéreos que a consangüinidade, ligada àqueles
que se unem por laços de dilaceração, exploração e etnia, ligada à história dos escravos.
Não há dúvidas de que Viva o povo brasileiro mostra esta tensão entre setores da
sociedade, uns mais e outros menos privilegiados, mas esta tensão se dará como uma tensão entre
opostos não-excludentes (até mesmo porque o sistema se alimenta dessas diferenças sociais).
Trago aqui novamente a idéia de que os conflitos expostos no romance não trabalham em prol de
um ou de outro grupo, mas se observa a importância de ambos na construção do país de hoje.
Com isto se faz uma exposição mais ampla dos discursos acerca de acontecimentos
históricos. Para começar a avaliar esta diversidade de discursos, cabe lembrar que temos como
ponto de partida o pensamento em epígrafe, que nos afirma que não existem fatos, apenas
histórias – histórias assim, com letra minúscula; da mesma forma como temos a conjunção
adversativa “Contudo” como o ponto inicial da narrativa.
Tendo em vista esses dois aspectos marcantes, pode-se tomar a fala do cego Faustino,
personagem que aparece uma única vez na narrativa, mas que possui grande força no romance, já
que retoma toda a história narrada até aquele momento e traz importantes questionamentos sobre
o ato de narrar, sobre o ato de contar uma história, sobre o conteúdo das narrativas, apontando
para algo de grande peso na estrutura de Viva o povo brasileiro: a diversidade de vozes.
Ao empreender este retorno, o cego Faustino não começa a narrativa pelo mesmo início
que nos deu o narrador (a história do Alferes Brandão Galvão), nem pelo início cronológico da
narrativa: a história de Capiroba, mestiço filho de negro e índia que teria vivido no século XVII:
46

o discurso de Faustino “começava quando o mundo foi feito, antes do descobrimento do Brasil.
Contou que já existia mundo antes de existir o Brasil, existiam portugueses, franceses, galegos,
alemães e muitos outros” (RIBEIRO, 1984, p. 514). E prossegue a seu modo falando para uma
platéia de moradores humildes da Ilha de Itaparica como nasce o discurso da história:

Mas, explicou o cego, a História não é só essa que está nos livros, até porque
muitos dos que escrevem livros mentem mais do que os que contam histórias de
Trancoso. Houve, no tempo do antigo Egito, terra do Rei São Salomão, cerca da terra da
Rainha de Sabá, por cima do Reino Judeu, uma grande blioteca, que nela tudo continha
sobre o conhecimento, chamada de Alsandria. Pois muito bem, um belo dia essa grande
blioteca pega fogo, subindo na fumaça todo aquele conhecimento e até mesmo os nomes
dos que tinham o mais desse conhecimento e escrito os livros que lá havia. Desde esse
dia que se sabe que toda a História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega
resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a
dos jornais, onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos. Poucos livros devem ser
confiados, assim como poucas pessoas, é a mesma coisa.
Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo
aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. Alguém que
tenha o conhecimento da escrita pega de pena e tinteiro para botar no papel o que não lhe
interessa? Alguém que roubou escreve que roubou, quem matou escreve que matou,
quem deu falso testemunho confessa que foi mentiroso? Não confessa. Alguém escreve
bem do inimigo? Não escreve. Então toda a História dos papéis é pelo interesse de
alguém. (RIBEIRO, 1984, p. 515)

Nesta fala, uma voz vinda do povo exprime, segundo seu cabedal de conhecimentos –
todos eles transmitidos e adquiridos oralmente –, conforme sua visão de mundo, como se produz
o discurso histórico, reforçando que tudo o que se lê faz parte de uma prática na qual aquele que
produz o registro é regido por interesses próprios, registrando apenas o que lhe convém. Toda
visão é apenas parcial: quando se arma uma narrativa, selecionam-se determinados pontos,
excluindo-se outros tantos. Mas as visões podem ser múltiplas e por isso não se pode afirmar que
o outro lado do acontecimento se perdeu.
Ao fazer essa constatação, não se pode deixar de observar que Viva o povo brasileiro é
um romance que foi traduzido para a língua inglesa pelo próprio autor João Ubaldo Ribeiro. Ao
contrário do que aconteceu com a tradução deste livro para outras línguas, o título não foi
traduzido literalmente, passando a: An Invincible Memory. Deste modo, mesmo que quem
escreva os livros de história minta mais que aqueles que contam histórias de Trancoso, o outro
lado não estará necessariamente fadado ao desaparecimento. O próprio Faustino é uma dessas
47

figuras que tornam nossa memória invencível. Nenhum livro de história contara até então sobre a
vida de Maria da Fé. Mas ele o faz por meio da narrativa oral e sabe que ao contar a história, seus
ouvintes podem deixar de ser somente ouvintes, passando posteriormente a reproduzir o que
ouviram. E assim, por meio da narrativa oral, o que não faz parte dos livros é repassado geração
após geração, sendo cada indivíduo o ‘fiel depositário’ da história, guardião e divulgador.
Faustino afirma que acontecimentos como o ocorrido com a biblioteca de Alexandria matam a
memória, mas ele mesmo mostra como a memória de um povo pode sobreviver exatamente por
meio de atos como o que ele empreende no momento de sua fala.
Pode-se ainda depreender mais da fala de Faustino: a seus ouvintes, cego Faustino declara
não haver apenas uma história e com ele compartilho a idéia. Se é possível haver mais de um
ângulo de observação, se somente é possível narrar a partir dos processos de seleção que
naturalmente fazemos, é claro que a história trazida pelos livros não é a única e completa, apenas
ignora outras, como as que atravessam o tempo sendo repassadas oralmente, como faz Faustino,
ou Dadinha, Nego Leléu, Maria da Fé e até mesmo Patrício Macário – personagem altamente
elaborada, sobre a qual dedicarei tópico extenso mais à frente neste trabalho – que embora
escreva suas memórias, recolhe muito da tradição oral com que teve contato.
Invocando uma imagem quase mística, Faustino nos fala sobre todo o conhecimento que
subiu aos céus em forma de fumaça com o incêndio da biblioteca de Alexandria, segundo ele
“blioteca de Alsandria”. Resgata-se aqui a imagem de um grande templo do saber, um lugar no
qual poderia ser guardado todo o conhecimento humano e após sua destruição, tudo se torna
disperso, além de, segundo a personagem, ser o momento a partir do qual tudo pode ser falseado,
pois sem o conhecimento prévio guardado por este pavilhão do saber, o homem poderia passar a
reconstruir a seu bel-prazer, o seu passado. Daí a desconfiança nos livros, sendo que essa
desconfiança não é no objeto ‘livro’, mas em seus criadores: os homens. Livros são pouco
confiáveis porque homens seriam pouco confiáveis, agindo segundo seus interesses, negócios,
circunstâncias.
Toda essa descrença de Faustino se dá por ser ele sabedor de um lado da história dos
vencedores que eles mesmos ocultam. Aquilo que o papel aceitou sem pestanejar. A seguir se
iniciará a análise de personagens que falsearem suas histórias. Procuraremos compreender por
que o fizeram, em prol de que interesses e como realizaram suas façanhas e que conseqüências
produziram.
4. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O PODER: PERILO AMBRÓSIO E AMLETO
FERREIRA

Conforme nos aponta o grande mestre Antonio Candido, o romance não é apenas uma
mera ilustração da sociedade, mas possui uma dimensão explicativa, uma interpretação das
dimensões sociais observáveis, juntamente com outros fatores como o lingüístico, por exemplo,
que também expõe os parâmetros sociais das personagens apresentadas em um outro nível, mas
igualmente indispensável à construção literária (CANDIDO, 2006, p. 17).
A partir de nossa independência política em relação à metrópole portuguesa, o cenário
nacional parece exigir dos autores em certo grau de engajamento como que para definir de
maneira mais consciente uma literatura ajustada às aspirações da nação. Sem querer de modo
algum ‘datar’ a obra de João Ubaldo Ribeiro ao seu espaço e tempo de criação, é valido, todavia,
observar que foi escrita em uma época em que o Brasil também estava diante de mais uma
independência: o final da ditadura militar. Recontar ou reinterpretar a história nacional em meio a
esse cenário político parece reviver o anseio de exprimir as novas aspirações da nação, desta vez
não de modo ufano, mas totalmente crítico.
As duas personagens que serão analisadas neste capítulo exprimem parte significativa
dessa crítica. Vamos a elas.
50

4.1. Perilo Ambrósio Góes Farinha

Perilo Ambrósio Góes Farinha será uma das principais personagens a nos mostrar o
universo do grande proprietário de terras e de escravos no século XIX na ilha de Itaparica na
Bahia, local em que se passa maior parte da narrativa.
Perilo é apresentado inicialmente no romance já no apogeu de seus negócios, é
apresentado como o homem que recebera ao próprio Imperador do Brasil em suas terras, é
apresentado como o Barão de Pirapuama. Mas, ao prosseguirmos na leitura, como em um “flash-
back”, teremos contada a história do homem rejeitado pela família e que se transforma no maior
proprietário das indústrias canavieira e produtora de óleo de baleia de toda a Baía de Todos os
Santos.
Esta personagem nos serve de paradigma para análise, discussão e exposição da
aristocracia rural brasileira, com seus métodos de exercício do poder e características principais.
Ao longo das páginas de Viva o povo brasileiro, Perilo Ambrósio é apresentado sob traços
zoomorfizados e grotescos, além de ser a máxima expressão da exploração do homem pelo
homem, conforme veremos na análise de sua relação com seus escravos e com a própria
instituição da escravidão.
Perilo Ambrósio simboliza o explorador, o senhor da casa- grande de engenho. Este
homem fez fortuna a partir da expropriação dos bens da sua família portuguesa por parte do
governo brasileiro e por meio de um ‘arranjo’, tomou tudo para si. Em sua infância junto a essa
família, o futuro barão nos é mostrado como um jovem glutão e iracundo e por tais traços de
personalidade acaba por ser expulso de casa. A partir desse momento começa a arquitetar todo
um plano para tomar os bens de sua abastada família; queria, com essa vingança, descontar a
humilhação de certa vez ter sido expulso da mesa de jantar após uma briga com sua irmã por um
pedaço de carne, afirmando até mesmo que na Terra jamais haveria carne suficiente para
compensar aquele pedaço perdido. Nesse ato aparentemente simples concentra-se todo o ódio que
guarda de seu núcleo familiar e vê na Independência do Brasil a chance de colocar seu
estratagema em prática.
Haveria expropriação de imóveis e fortunas de portugueses por parte do governo
brasileiro à época da Independência. Ciente disso, Perilo Ambrósio constrói sua máscara de herói
de guerra e consegue para si os bens de sua família, integralmente. Com parte da fortuna, adquire
51

seu título de barão. Já no primeiro capítulo do romance, no qual Perilo nos é inicialmente
apresentado, já temos uma prévia de seus ares animalescos, temos uma prévia do desprezo e
violência com que trata seus escravos, e assim se pode observar como essa elite ignora os valores
da educação e cultura.
Perilo Ambrósio encarna o representante das elites locais que domina os meios de
produção assim como domina também os trabalhadores, mas que rejeita totalmente o saber e a
erudição que pode ser trazida pelos livros e pelo esforço requerido pela educação e pelos estudos.
Para ele, tudo deveria vir tão espontânea e facilmente como viera para si a fortuna de seu clã.
Mas, como representante das altas esferas sociais, não pode apenas, em suas aparições públicas,
mostra-se ao povo, devendo colocar-se acima dele. O uso de uma linguagem diferenciada será o
que de mais básico se pode apontar na diferenciação entre a elite, a aristocracia local e o
populacho – com forte carga depreciativa, esta era a expressão favorita da personagem para se
referir às camadas mais baixas da população – assim provocando uma forma de deslumbramento,
mostrando sua superioridade e distinção.
Todavia, como há pouco foi dito, Perilo Ambrósio não era afeito a longas horas de estudo
e reflexões. Em tudo optava pelo caminho mais curto. O grande barão decorava frases e discursos
de efeito, discursos que causariam impacto ao ouvinte. Seus gestos acompanhavam a gravidade e
solenidade com que falava sobre as coisas mais banais ou sobre os temas nobres mas que de fato
poderia deles até discordar. Linguagem verbal e corporal serviam para a corroboração de toda a
imagem criada para si:

Sempre falara com desenvoltura, isto não era problema, mas calhava bem fazer
algumas pausas, alguns gestos expressivos, mostrar a profundeza de espírito de onde
retirava as suas observações. Sacou o lenço da algibeira, cheirou-o com discrição.
(RIBEIRO, 1984, p. 34)

Ou, como demonstra um trecho seguinte a este, Perilo Ambrósio constrói todo um
discurso no qua l expressa um falso amor à pátria, ocultando suas verdadeiras intenções de
favorecimento pessoal:
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Uma velha recurvada e coberta por um xale preto lhe beijou a mão, disse-lhe
que conheceu muito o senhor seu pai e a senhora sua mãezinha, antes que tivessem sido
corridos para Portugal. Já a velha estava sendo empurrada pelo meirinho Desidério
envergonhado por haver ela mencionado assunto tão molestoso para o barão, quando
Perilo Ambrósio o deteve e, com a naturalidade simples dos grandes homens e heróis,
disse-lhe: deixa -a, Desidério, também eu, ai de mim, sinto falta de meus pais e da
família, fortuna muito maior do que a que hoje pesa nas minhas omoplatas. Congelou-se
a paisagem, silenciaram todos. E Perilo Ambrósio, mordendo o lábio inferior, falou
exatamente da maneira que havia planejado com tanta freqüência:
– Entre a Pátria e a família, minha boa mulher, Deus há sempre de me dar forças
para escolher a primeira, eis que vale mais o destino de um povo que a sina de um só.
Notou que Desidério, arrebatado, reproduzia, somente com os lábios, as
palavras que ele pronunciava e que logo todos comentariam e repetiriam, na pungência
de sua franqueza dolorosa, de sua coragem amarga. Afagou o ombro da velha, estendeu-
lhe uma moeda e, em movimentos pausados, marchou para a caleça, sob o silêncio
grávido dos que agora meditavam no muito que tinha dito em discurso tão miúdo.
(RIBEIRO, 1984, p. 35)

Durante toda a história do Brasil colonial, e aí não há e não teria mesmo como haver
divergência entre a voz do dominado e do dominador, o poder sempre se concentrou nas mãos de
nossa aristocracia rural. Perilo Ambrósio é uma personagem que simboliza, dentre outras coisas,
a passagem do poder das mãos da elite portuguesa para as mãos da aristocracia rural nacional.
Os poderes exercidos nas monoculturas de cana, por exemplo, eram extensíveis aos
poderes administrativos. O senhor comandava e influenciava questões políticas com a mesma
mão de ferro com que comandava seus negócios. No Brasil, a gestão pública representou uma
extensão da gestão e dos poderes da propriedade privada. Sérgio Buarque de Holanda nos aponta
que essa é uma de nossas maiores heranças rurais: gestão administrativa pública como mera
extensão do poder familiar patriarcal que sai desta sua esfera original e adentra as relações de
poder político. A influência, portanto, do senhor de engenho não se faz sentir apenas nos limites
de sua propriedade, mas em toda a economia e administração política local.
Desta forma podemos observar que em nossa formação colonial, a organização ou o
desenvolvimento se fez quase que exclusivamente sobre a grande propriedade rural, sendo o
grande fazendeiro escravocrata a figura central do poder econômico, social e político. As
fazendas eram como grandes áreas autônomas economicamente: pouco havia que lá mesmo não
se produzisse, desde a alimentação de subsistência até as vestimentas dos escravos – este ‘pouco’
que não era produzido, geralmente se referia a artigos de luxo, em grande parte importados,
sendo tais objetos, como de um conjunto de jantar à seda dos vestidos das damas, fetiches e
artigos que cumpriam também a função social de distinguir senhores e escravos.
53

Perilo Ambrósio é uma dessas forças que dominam o cenário local.

Os escravos das plantações e das casas, e não somente os escravos, como os


agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias.
Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antigüidade,
em que a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada
à idéia de escravidão, e em que os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo,
inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.
Dos vários setores da nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a esfera da vida
doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou às forças
corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não
tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune de qualquer
restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio
superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo.
Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem
para sua tirania. (HOLANDA, 2006, p. 80)

Nos domínios da casa, do engenho, nada supera a força do senhor. Ele é a voz
incontestável de autoridade e poder. Nada escapa a seus domínios, sejam bens materiais, sejam
pessoas. Desta forma, as estruturas de poder que possui em seu seio familiar se estendem a tudo e
a todos. Seu poder somente seria abalado se os recursos que o sustentam fossem retirados. É
exatamente o que acontecerá ao Barão de Pirapuama tendo Amleto Ferreira como o agente
dilapidador conforme veremos à frente.
Das relações que mais nos interessam para este trabalho e que mais fortemente penetram a
trama de Viva o povo brasileiro está a relação de poder entre esse senhor e seus escravos, e é
sobre isso que se há de discorrer agora.
Ao ser expulso de casa, Perilo Ambrósio leva consigo dois escravos que antes pertenciam
à sua família: Feliciano e Inocêncio. Aproveitando-se das batalhas internas que aconteciam à
época de nossa Independência, Perilo vê a possibilidade de mudança.

Perilo Ambrósio, que escolhera aquele ponto bem distante da luta para passar o
dia, pois aguardava somente que vencessem os brasileiros para juntar-se a eles em
seguida, temia que o combate não tivesse terminado ainda e que, por algum azar, fosse
obrigado a tomar parte nele. Se queria que os brasileiros prevalecessem, não era por ser
brasileiro – e na verdade se considerava português –, mas porque, expulso de casa,
abominado pelos pais e por todos os parentes, sob ameaça de deserdação, deliberara
adquirir fama de combatente ao lado dos revoltosos. Desta maneira, seu pai, fiel à Corte,
já foragido e acusado de todos os crimes e perfídias concebíveis, poderia perder tudo
com a vitória brasileira, passando os bens muito justamente confiscados a pertencer ao
filho varão, distinto pelo denodo empenhado na causa nacional. (RIBEIRO, 1984, p. 23)
54

Todavia, como se pode depreender pelo trecho acima, o faz sem grandes esforços, o faz
por meio de uma grande fraude, fraude que consiste em se passar por herói da Independência. É
neste ponto que a personagem mostrará mais uma face de sua loucura e moral questionável. A
fim de parecer com um legítimo combatente, Perilo apresenta-se perante um tenente do Exército
completamente sujo de sangue, como se houvera sido gravemente ferido na luta. É aí que
sabemos o que se passou com o negro Inocêncio.
A fim de sujar-se com seu sangue, Perilo Ambrósio desfere golpes de faca em seu
escravo. Todavia, a mente de Perilo reage da seguinte maneira:

(...) quando o sangrara à faca para lambuzar-se de seu sangue e assim


apresentar-se ao tenente, terminara por dar-lhe mais cuteladas do que planejara, já que os
braços e as mãos lhe fugiram do controle e golpeou o negro como se estivesse tendo
espasmos. Melhor que haja morrido logo e não se pode negar que de um modo ou de
outro deu sangue ao Brasil, pensou Perilo Ambrósio. (RIBEIRO, 1984, p. 27)

Nesta cena podemos ter uma breve amostra de sua relação com os escravizados, seres,
como ele mesmo dizia, sem alma, e nem mesmo considerados em sua condição humana. Ao levar
seu plano ao cabo, obtém êxito, garantindo para si to dos os bens da família, tendo agora não
apenas dois escravos, mas centenas deles, dos quais poderá dispor da maneira que bem entender
pelo poder que lhe garante seu direito institucionalizado de propriedade, não somente sobre a
terra, mas sobre as pessoas. A fim de que Feliciano não o delatasse, corta-lhe a língua, tirando- lhe
brutalmente o direto a voz.
Em seu livro O problema nacional brasileiro, Alberto Torres nos mostra um dado
extremamente relevante sobre o Brasil colônia. Embora muitas vezes prevalecesse no Brasil certa
desordem,

A escravidão foi, entretanto, uma das poucas coisas com visos de organização,
que este país jamais possuiu. (...) Toda a operosidade deste país, tudo quanto nele se
edificou como fonte de riqueza e de trabalho, o pouco que já possuímos em estabilidade
55

social e dinamismo orgânico progressivo, assenta sobre a labuta do preto e sobre o


esforço do senhor. (TORRES, 1938, p. 65)

Dentre as várias críticas que hoje recebe o livro de Torres, este é um ponto em que não há
divergências. Anos mais tarde, Caio Prado Júnior em Formação do Brasil Contemporâneo não
apenas ratifica essa idéia como a reforça, citando o próprio Alberto Torres, afirmando que a
escravidão não foi “uma das poucas coisas com visos de organização”, mas a única! Dentre todas
as instituições formadoras do Brasil, a escravidão e as relações que englobam todo esse universo
formataram parte da nossa moral e dos nossos costumes. À época, matar um escravo poderia no
máximo simbolizar um prejuízo econômico por perder-se um braço de trabalho, ou ainda, algo
que custou dinheiro, como qualquer outra ferramenta. Viva o povo brasileiro vem mostrar como
o negro e outros grupos excluídos da rede de privilégios sociais procuram, por meio de um
processo lento, modificar essa estrutura tão bem alicerçada no país.
Os senhores proprietários rurais são o pilar dessa estrutura que sustentou o país ao longo
do Brasil colônia e cuja influência ainda hoje se faz sentir. Conforme o que havia sido dito acima,
tudo o que está sob a tutela do senhor lhe pertence, e conforme muito bem irá explorar o romance
de João Ubaldo, o poder desses homens sobre seus escravos não se limitava à obrigação do
trabalho, mas também perpassava por uma questão ainda mais delicada: a exploração sexual.
Falar na explo ração sexual remete de imediato aos frutos dessa exploração: descendentes
miscigenados. Embora pouco se importassem com essa conseqüência, era extremamente comum
que os senhores da aristocracia rural brasileira mantivessem contato sexual com escravos cujos
descendentes fatalmente seguem igualmente o caminho da escravidão. No romance, é clara a
ligação entre o prazer sexual de Perilo Ambrósio e o prazer trazido pelo poder e pela riqueza:

começou a masturbar-se à janela, mal podendo conter a vontade de gritar e


urrar, pois que se masturbava por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as
negras, as outras pessoas, o mundo, o navio a vapor, as árvores, a escuridão, os animais e
o próprio chão da fazenda. Sim, podia sair por ali nu como estava, a glande como a
cabeça de um aríete irresistível, e podia fazer com que todos a olhassem e a
reverenciassem e ansiassem pela mercê de poder tocá-la e beijá-la. Imaginou-se
suavemente prepotente, chamando ao colo e às virilhas as cabeças dos que o cercavam,
com isso distribuindo bênçãos e felicidade. (RIBEIRO, 1984, p. 90–91)
56

Perilo Ambrósio, embora fosse casado segundo as sacrossantas leis da Igreja, mantinha
relações tanto com escravas como com escravos. Aqui, o casamento era apenas uma instituição
formal mo vida por um único interesse: o econômico. Perilo se casa com Antônia Vitória apenas
porque se ela tinha “alguma boa qualidade, esta era ser filha única de pai viúvo e velho”
(RIBEIRO, 1984, p. 58) e dono do Empório e Trapiche Soares de Almeida. A relação é
puramente comercial. A descrição da figura de Antônia é realizada pelo narrador sob os mesmos
aspectos com que apresenta Perilo Ambrósio e terá ela a mesma relação hipócrita com a Igreja
conforme veremos mais à frente na descrição de um suposto ato de car idade em festa religiosa.
Na passagem do romance detalhada acima, na qual forja seu ato heróico, Perilo assedia
Feliciano e o faz lembrar que sua mãe servira- lhe também no passado. Neste ponto, somos
levados a pensar sobre esta muito provável origem de diversos escravos brasileiros, filhos de seus
próprios senhores, e será isso que confirmaremos na referida festa dada por Antônia Vitória.
A fim de deixar claras as falsas intenções caridosas de Antônia Vitória, o narrador, ao nos
falar da festa de Santo Antônio, refere-se à “bondade” (RIBEIRO, 1984, p. 140) da baronesa.
Libertar um de seus escravos era o ponto alto da festa. Neste trecho, mais uma vez por meio da
apresentação por parte do narrador dos pensamentos da personagem, conhecemos o enfado dela
própria ao exercer esta sua boa ação:

Perilo Ambrósio, tudo acertado, resolveu que desta vez não queria escutar a
litania de todos os anos. Achou que conseguiria conter a vontade de blaterar, que
consentiria em explicar um pouco suas razões, mas também não teria paciência para
mais nada. Antônia Vitória começou sua lamentação – "sei que me dirão vir da fraqueza
e da indecisão próprias das filhas de Eva, esta..." – mas ele levantou a mão, com tanta
calma quanto podia reunir, para que ela se calasse e ouvisse o que ele tinha a dizer-lhe.
Sabia muito bem dos cuidados e preocupações que lhe dava a prática de tanta caridade,
do sofrimento que lhe advinha por ter de escolher, entre negros tão pouco dignos de
qualquer atenção, algum para agraciar com a liberdade, sem que disso viesse a ter mais
embaraço do que contentamento pela boa ação. E, portanto, fizera por ela a escolha,
ditada em parte, reconhecia, por imperativos práticos: não estavam boas as finanças de
seus estabelecimentos, os tempos eram difíceis. Assim, não via mal, nem contradição
com a promessa feita ao santo padrinho dela, em que se desse a tal alforria a uma negra
moça porém fraca, já sofrendo de febres, vômitos e fraquezas, que poderia mesmo,
nunca se sabia, passar sua enfermidade para os outros negros, causando prejuízo
incalculável. Que se tranqüilizasse, que voltasse aos assuntos da casa, hoje tão
azafamantes, que não mais chorasse nem se entristecesse, pois que já resolvera tudo para
ela. Libertaria a negra Venância, o negro Leovigildo a levaria para conseguir-lhe
ocupação e morada, isto mesmo acertaria com ele. (RIBEIRO, 1984, p. 144)
57

Como fica claramente explicitado no trecho, a baronesa promovia este ato de caridade
sem quaisquer sentimentos nobres: apenas cumpria uma promessa que fizera a Santo Antônio, e
em seu íntimo não achava qualquer de seus escravos digno para a liberdade. Neste trecho temos
mais mostras da ideologia dominante da época no que se referia à relação escravo – senhores.
Todavia, sem incorrer em anacronismos, era comum ao pensamento da época desconsiderar a
condição do negro como ser humano, e também por isso pode-se depreender que não há qualquer
intenção benévola, e sim o sacrifício que exige todo o pagamento de promessa na tradição
católica.
Mas neste ano, a saber 1827, não é a baronesa quem faz a escolha do negro que ganhará a
liberdade – e bem sabemos que a liberdade muitas vezes era sinônimo de errância para o negro,
uma vez que não há na sociedade um lugar para o escravo liberto, problema que nem mesmo à
época da abolição ou depois dela será resolvido e marcará profundamente a nova organização
brasileira. É na escolha do escravo a ser libertado que o Barão de Pirapuama enxerga a
possibilidade de livrar-se de um grande problema: Venância. Esta é a mais recente vítima de
estupro realizado pelo barão. No dia de Santo Antônio, a baronesa convocava todos os seus
escravos e exatamente Venância foi a única a não comparecer: continuava na senzala, sofrendo as
dores e sangramentos que o estupro lhe causara, estupro que nela representava vergonha e nele
triunfo. Assim mesmo ela foi libertada e levada por Leovigildo, o Nego Leléu, escravo que
conseguiu comprar sua alforria e que agora transitava entre o mundo dos escravos e o mundo dos
senhores, sem exatamente enquadrar-se em nenhum deles e assim não está em nenhum das duas
principais classes, mas pertence a uma outra, dos pobres livres.
Depois desse ato de violência contra a negra, estava ali concebida naquele momento uma
das principais personagens do romance: Maria da Fé, a qual ded icarei um capítulo mais a frente
neste trabalho.
Não se pode deixar de ter em mente que Perilo Ambrósio representa no romance a figura
do devorador, tanto o devorador à mesa, quanto o devorador acumulador de capitais, quanto o
cruel devorador sexual, sendo também aquele que concentra sobre si todo o poder e que dispõe
desse poder a seu bel-prazer. Todavia, contrariando idéias antes largamente difundidas, o negro
não aceitava passivamente a escravidão e, no romance, isso será visto, dentre outras ações, na
estratégia arquitetada para o assassinato do barão.
58

A senzala e o terreiro eram espaços tipicamente negros, nos quais todos eles se reuniam,
onde realizavam suas manifestações religiosas e também onde podiam conversar e promover
discussões. Em meio a todo o ódio que guardam da exploração, afirmam: “aqui é guerra”
(RIBEIRO, 1984, p. 197), assim sintetizando sua relação com os senhores, mostrando o quanto
estão realmente contra a tirania.
O negro Feliciano, a quem o barão cortara a língua no episódio da farsa, consegue
desenvolver um tipo especial de linguagem e assim consegue transmitir a todos os escravos da
Armação do Bom Jesus na Ilha de Itaparica seu relato sobre a fraude. Júlio Dandão, pai do negro
Inocêncio, companheiro de Feliciano a quem o barão tirara a vida, une-se a Budião, espécie de
líder desta revolta seguindo a ‘praga’ rogada por Feliciano: morte “doída e presa” (RIBEIRO,
1984, p. 159).
Para levar o plano adiante, o narrador afirma que Budião, por inspiração, vai às matas e
traz de lá as folhas com as quais Merinha, sobrinha de Dandão e empregada da casa-grande fará
os chás que aos poucos envenenarão Perilo Ambrósio. Não há dúvida de que se pode ver neste
ato uma reação contra a aristocracia, contra a exploração, numa revolta ainda silenciosa,
arquitetada com a ajuda dos conhecimentos típicos dos negros, apoiados sobre sua fé, que prepara
terreno para ações ainda mais contundentes no futuro.
Interessante observar que o narrador demarca a confusão na qual se deu a coleta dessas
folhas, posto que Budião não sabia ao certo como as havia conseguido. Ao contrário de um
boticário da época, que estudava os princípios ativos das plantas segundo a ciência da época, os
negros da ilha podem passar por experiências cuja explicação só se faz por suas crenças próprias:

Viu visagem? Vi, respondeu ele, vi. E, deixando a historiação sair na ordem que
ela quisesse, contou que naquelas plantas estava a praga. Não a praga, propriamente, que
esta se encontrava na cabeça de Feliciano, mas a força da praga. Pois, sem nem se dar
por conta, ontem de noite não as achara no meio dos matos de repente e lá, parecendo
que havia uma voz orientando-o e uma mão a guiá-lo, não colhera dessas plantas
cujas folhas agora mostrava, estando nestas folhas toda a força da praga, mes mo,
mesmo? E, também sem se dar conta, não voltara aqui certeiro pelos ermos e agora, se
lhe perguntassem onde estivera, não poderia dizer porque não lembrava nada, nada
do caminho? Desta folha faz-se o pó, desta outra a infusão! (RIBEIRO, 1894, p. 159)
59

Pode-se observar neste pequeno trecho a força da crença em suas ações, assim como, ao
contrário das palavras decoradas do discurso do barão, a narração se faz de acordo com a emoção
que toma o enunciador por conta da própria narrativa. Budião parece movido por algo externo a
ele na procura das plantas venenosas, orientando-o e guiando-o, mostrando-lhe o que coletar.
Elementos da religião são muito presentes em Viva o povo brasileiro, e na representação das
populações afro não aparecem com falsos sentimentos de pureza e caridade como na aristocracia
(aqui representada pela baronesa Antônia Vitória), mas sempre com obediência e respeito.
Também por esse discurso pode-se observar a diferença que se coloca entre a coisa em si,
a ação e a palavra ou o pensamento. O plano é uma construção arquitetada por Feliciano, tem
existência em sua mente, é o desejo. A concretização se dá na ação de preparar e ministrar o pó e
a infusão nos alimentos e sua ingestão por Perilo Ambrósio. Desta forma, o maior prazer do
barão será o grande veículo de sua morte. O devorador irá ingerir vorazmente os venenos que
trarão termo à sua vida, mas que não terminará com a exploração pois, para isso, haverá um
substituto.
Permitindo-me uma breve digressão, existe aqui algo fundamental a se notar. Barão e
baronesa, representantes da aristocracia rural e com cujos títulos nobiliárquicos procuram
aproximar-se da nobreza e da corte, são servidos pelas mãos destes que tanto rejeitam e
humilham. Embora sempre excluídos e aviltados, são essas mãos negras as grandes construtoras
desde as riquezas até a alimentação de seus senhores. Perilo Ambrósio e Antônia Vitória jamais
entrariam na cozinha, área destinada ao labor e, como nos aponta Sérgio Buarque de Holanda, a
construção do pensamento da aristocracia brasileira não passava pelo trabalho e a escravidão
facilitou esse estado de coisas, afastando ainda mais o homem livre do espírito do trabalho e do
esforço, “extraindo benefícios sem sacrifícios” (HOLANDA, 2006). Por esta contradição do
sistema, emerge o grupo de Viva o povo brasileiro que se conscientiza e aproveita-se desse poder
tácito que sem querer e sem perceber lhe é dado.
Com todos os ingredientes em mãos, os escravos dão prosseguimento ao projeto e
começam a lentamente intoxicá-lo – numa clara manifestação de repúdio ao dominador.
Conforme o desejo de Feliciano, os chás deram ao barão uma morte lenta e especialmente
asquerosa. As plantas causaram- lhe forte congestão visceral e fraqueza nervosa, ou:
60

(...) prevendo o tratamento elegido que fosse lancetado 26 vezes e tivesse ventosas e
sanguessugas aplicadas tão amiúde quanto demandasse a necessidade de
descongestionamento, já à terceira lancetada ele espumava de furor e punha todos para
fora do quarto a impropérios e safanões, a ponto de a presença de mulheres deixar de ser
permitida durante as visitas médicas. Agravou-se dessa maneira a enfermidade,
padecendo agora o barão de urinas e bostas presas muito dolorosas, que o levavam a
uivar lastimosamente toda noite, enquanto, amparado nos ombros de dois negros, sem
calças e com a camisola arrepanhada diante de um penico sustentado por outro preto,
espremia em vão a barriga transformada numa bolha de fogo, pingando gotinhas de urina
avermelhada e ardente, a intervalos que a todos pareciam eternos. (RIBEIRO, 1984, p.
162)

À medida que o médico contratado pelo barão dava-lhe remédios, Merinha dava- lhe
também o preparado de plantas que lhe provocava a morte lenta. São nítidos aí os traços do
rebaixamento numa morte pouco gloriosa a um suposto herói da Independência. É aqui, onde de
modo mais contunde, o narrador não eleva, mas ao contrário, faz questão de ressaltar os traços
mais vulgares e até cômicos da morte de Perilo Ambrósio.
Os últimos momentos do grande barão são marcados pela síntese do que nos foi mostrado
ao longo de sua vida. Como afirma o professor João Vianney Cavalcanti Nuto:

Perilo Ambrósio, pouco antes de sua morte, em breve momento de recuperação,


após ter abocanhado e mordido a orelha de um escravo, implora por um fiambre, uma
fiambrada com feijão e frango assado (RIBEIRO, 1984: p. 201). Contudo, mantendo o
contraste irônico entre a vulgaridade ou mesmo a baixeza dos fatos narrados e suas
versões elevadas, o narrador nos informa da versão heróica das últimas palavras de
Perilo Ambrósio, o Barão de Pirapuama: Pátria, honradez, luta, abnegação. Haverei
servido bem a Deus e ao Brasil? (RIBEIRO, 1984: 203). (NUTO, 2000, p. 5)

Nesses termos observa-se que tudo, até mesmo a história que prevalece sobre a morte
do barão, é fruto de construção discursiva. Também pelo discurso formo-se uma imagem
diferente e mais elevada daquele “que mais tarde a História consagraria como o Centauro de
Pirajá, herói da Independência e mártir da Economia. (...) pilar da Pátria ali sucumbido à morte
física, mas perenizado adamantinamente nos corações brasileiros” (RIBEIRO, 1984, p. 202-203).
Conclui-se, pois, que é a construção discursiva que resiste ao tempo e que tem existência real.
61

4.2. Amleto Ferreira

Como segundo representante das classes dominantes, analiso agora Amleto Ferreira,
personagem que marcará algumas diferenças em relação a seu predecessor Perilo Ambrósio Góes
Farinha. Perilo é um autêntico representante das classes dominantes: homem que surge já
figurando na aristocracia, um fidalgo. Depois de execrado no seio familiar, todos os seus ardis
para obter riqueza centram-se na riqueza e poder de que sua própria família já dispunha. A
trajetória de Amleto será muito diferente, embora persiga os mesmos fins: fortuna e poder. Neste
capítulo irei analisar o movimento da personagem através das classes sociais, mas principalmente
nos interessa para a proposta deste trabalho, ressaltar a mudança que isso trará em seus discursos
e no conjunto de valores a que se filia.
É evidente, sim, que Viva o povo brasileiro traz à tona diferentes enunciadores e, com
isso, diferentes idéias e visões de mundo. Porém isso não significa dizer que todos estejam
sempre isolados em seu espaço, como elementos estanques e inexoravelmente presos em seus
terrenos por toda a sua trajetória. A obra mostra contrastes e diferenças, mas também aponta em
suas personagens a possibilidade de mudanças; mudanças estas relacionadas não apenas no que
tange à mobilidade social – possível em nossa organização, porém improvável em meados do
século XIX – mas também e principalmente no que tange às mudanças que ocorrem no
pensamento e nas posições assumidas.
Amleto Ferreira é, por isso, uma personagem muito mais complexa que Perilo Ambrósio,
posto que o barão não se vê em conflito com sua fidalguia em uma sociedade que valoriza
exatamente tudo o que ele tem de berço: bens e poder, mesmo que isso não se traduza em
simpatia, apreço e amizades em rodas onde tudo gira em torno apenas e tão somente da fortuna e
tudo o que ela traz a reboque.
A complexidade de Amleto Ferreira se dá por haver nele um grande conflito entre o que
ele é e o que gostaria de ser; entre valores não prestigiados na sociedade da época e o desejo de
possuir estes outros valores. É este desejo que move Amleto em todos os seus atos. Porém, antes
de acompanharmos a sua trajetória, vamos analisar primeiramente quais são esses valores
desprestigiados a fim de procurar as motivações para a repulsa até que cheguemos às mudanças
propriamente ditas.
62

Diz a mãe de Amleto, Dona Jesuína, que seu filho é homem “nascido em berço mais que
humilde, mestiço e bastardo” (RIBEIRO, 1984, p. 237). Dona Jesuína é uma liberta que, por ter
alguma instrução, torna-se professora de primeiras letras. Com isso, pode dar a seu filho a
oportunidade dos primeiros estudos 6 . Sua figura aparecerá entre sombras na vida de Amleto: sua
mãe é a marca viva de tudo aquilo que pretende apagar.
Com sua instrução, Amleto consegue o emprego de guarda-livros de Perilo Ambrósio e
tem nas mãos toda a contabilidade de seus bens. Nesta administração, Amleto está sempre ao
lado do barão. Enquanto o acompanha em presença do Cônego D. Francisco Manoel de Araújo
Marques, este começa a tecer comentários ultrapassados sobre ciências, defendendo teorias mais
que superadas. Ao ver que Amleto rebatia suas colocações com argumentos mais sólidos e
atualizados, desmontando sua fervorosamente defendida teoria sobre o elemento flogístico, o
cônego, sem mais ter como sustentar o debate, muda de assunto e questiona o guarda-livros sobre
seu nome incomum, provavelmente ‘não-cristão’.
Neste ponto, além de já sabermos da falta de atualização técnico-científica do religioso,
vemos que ele também pouco sabe sobre os clássicos da literatura. Conforme fica explícito no
diálogo entre eles, o cônego não é capaz de associar este nome à notória peça shakespeareana:

– Como disseste que te chamas?


– Amleto Ferreira, para servir ao Monsenhor.
– É nome cristão? Amleto, nunca ouvi.
–Tem origem numa lenda inglesa, segundo sei, num poema ou tragédia inglesa.
– Numa tragédia inglesa, num poema? Temos aqui coisa, então, temos coisa! A
Inglaterra é excessivamente benévola para com os poetas e as artes frívolas. Se também
tivesse músicos, estaria perdida. Então teus pais são leitores de livros profanos ingleses,
é assim? Que livros são esses?
– Não sei bem, Monsenhor, o meu pai é inglês.
– O teu pai é inglês? Mas temos coisa, temos mesmo coisa! Mas és pardo, não
és? Não mais vigoram as ordenações que vedavam aos pardos as funções públicas, podes
falar sem susto, que, depois de bem servires ao Senhor Barão, poderá arrumar-te
ele um bom cargo de meirinho ou, quem sabe, almocreve da freguesia, para que passes a
velhice à farta e sem nada fazer, ha-ha! E onde está esse teu pai inglês, que faz ele?
– Vive na Inglaterra, não temos notícias há muitos anos.
– Na companhia da senhora tua mãe, naturalmente. Diz-me lá.
– Não, Monsenhor, minha mãe vive cá na Bahia, com a graça de Deus, e é
professora das primeiras letras.
– Sem dúvida. É liberta. Pois. E o senhor teu pai inglês?

6
Curioso notar aqui que as mesmas primeiras letras que ensinou a este que será o grande antagonista do romance,
ensinará também a Maria da Fé, uma das protagonistas do livro e extremo oposto ideológico de Amleto – dado que
será melhor explorado no capítulo dedicado a ela.
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– Era embarcado, aportou à Bahia embarcado.


– Corsário? E não o enforcaram os soldados de EI -rei? Ha-ha!
– Não, Monsenhor, era embarcado num vaso mercante.
– E criou-te alguma Ordem Terceira de pardos? Hão de ter-te criado bem, já se
vê que és versado e no falar não cometes solecismos abusivos, como os que aqui tanto se
escutam. Saberás contas bem, igualmente, do contrário não estarias como guarda-
livros do Senhor Barão.
– Criou-me a minha mãe, com a ajuda de Deus. Há aulas públicas na cidade
onde nasci, pude estudar...
– Sim, bem vejo. Bem vejo que tens algo no bestunto e a esperteza natural dos
mestiços, que pode ser-te muito útil, de muita valia na vida. Isto se conseguires vencer
esta tua tola arrogância, comum em quem subiu da lama, mas, sem embargo, prejudicial
o suficiente para que te metas em assuntos de que não entendes.
– Mas, Monsenhor, dizia eu...
– Caluda! lá tive paciência em demasia contigo (...) (RIBEIRO, 1984, p. 65–66)

Neste riquíssimo diálogo, aqui transcrit o somente em parte, podemos reconhecer o


embaraço de Amleto Ferreira quando perguntado sobre sua origem. As palavras do cônego vêm
carregadas de toda a ideologia da época, aliada à ideologia cristã vigente, ambas repletas de
restrições que englobam desde a origem bastarda e mestiça de Amleto até as “profanas” peças de
Shakespeare que, conforme se pôde notar, são ignoradas pelo religioso. Serão esses mesmos
preconceitos os combustíveis para a reviravolta na vida do simples guarda- livros.
Este diálogo ilustra uma das formas dominantes do pensamento da época em que se passa,
a saber, século XIX: o repúdio ao negro e especialmente ao mestiço, sujeito ainda sem lugar na
sociedade, nem negro nem branco. No caso de Amleto, este ponto é agravado por mais alguns
motivos, como ter sido ele filho nascido fora do casamento, cujo pai é praticamente desconhecido
– mas cuja nacionalidade européia será beneficamente manipulada.
Rejeitar o que não se conhece e prejulgar seu possível conteúdo: é assim que reage o
cônego aos ditos livros ‘profanos’ da Inglaterra. Sujeito de seu tempo e fiel às convicções do
grupo ao qual se filiou, D. Francisco Manoel critica veementemente a arte que desconhece, que
desconhece tanto quanto as leis da Física sobre as quais discute.
E é exatamente essa sua condição subalterna aliada à sua cor de pele e origem que não
permitem que Amleto discuta com alguém que está acima dele na esfera social. São também
essas características que levam o religioso a dizer que no máximo este homem poderá chegar a
meirinho ou almocreve.
No Brasil, o tom de pele mais escuro não apenas marca sua ascendência escrava, mas, à
época em que se passa a história de Amleto Ferreira, também dizia até onde o indivíduo poderia
64

chegar. A ascendência escrava determinava quais os espaços que se poderia ocupar, e, desta
forma, a única possibilidade de ascensão social vislumbrada por Amleto passava pelo total
apagamento de sua herança mestiça. Para isso, modifica completamente sua história pregressa
para fazer um futuro além das possibilidades que sua cor determinaria – e este é claramente mais
um exemplo das marcas do preconceito de cor no Brasil.
Durante o diálogo acima transcrito entre Amleto e o cônego, ficam marcadas certas
expressões, como “pardo”, que carregam consigo toda uma carga fortíssima de preconceitos
contra os quais Amleto não lutará, mas das quais procurará desvincular-se. Após sucessivas
humilhações, decide-se pela atitude do ditado: “se não pode com eles, junte-se a eles”. Não há no
romance apontamentos que mostrem haver em Amleto qualquer vontade de favorecer seu
segmento social de origem, que englobaria desde aqueles filhos de pais desconhecidos, os
bastardos, até negros e mulatos, tão execrados na sociedade rural de base escravocrata como fora
a nossa durante tantos e tantos séculos.
A oportunidade de ter estudado foi o primeiro elemento que o impulsionou nesta
mudança. Todavia, sua competência como guarda- livros fora interpretada como a “esperteza
natural dos mestiços”, em mais uma alusão ao claro preconceito manifestado pelo cônego,
plenamente concorde com o pensamento das elites do século XIX, cegas às qualidades de pessoas
comuns, julgadas pela cor da pele. Nenhuma das qualidades de Amleto foram reconhecidas pelo
cônego sem que a observação viesse acompanhada de marcas de preconceito, distanciamento e
até mesmo escárnio.
Com a junção desses fatores, Amleto, aos poucos, molda-se ao sabor das tendências de
sua época. Ao contemplar os negros escravos de Perilo Ambrósio seguindo rumo ao mar em
busca de baleias, admira-se da força e da coragem desses homens em uma das belas descrições
realizadas pelo narrador, conferindo até mesmo certo lirismo à observação de Amleto àqueles
homens e a seu trabalho. Todavia, esta contemplação aprazível se faz por pouco tempo, a
admiração torna-se inveja e a inveja torna-se desprezo e sentimento de superioridade: Amleto
passa a tratar os escravos, homens do trabalho braçal, do mesmo modo como a elite faria:

(...) se admirou em sofrer inveja daqueles pretos que para ele agora, muito a seu
contragosto, se transformavam em guerreiros expedicionários, escravos mas com
poderes que ele não tinha, e achou no último instante que devia falar qualquer coisa, dar
alguma ordem, passar alguma instrução imprescindível, mostrar-lhes o que realmente
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eram. O moço fez menção de curvar-se para soltar a laçada da amarra, parou a meio
caminho, empertigou-se olhando para ele.
– Atenção – bradou ele, e todos os pretos da guarnição obedeceram. –
Atenção!
Porque Amleto estava contra o sol que já vinha aparecendo pela frente do
Recôncavo, o mestre pôs a mão espalmada na testa e esperou. Esperou muito tempo, a
celagem da manhã se desdobrando, a água se tornando vermelha e dourada, as nuvens
esfiapadas se desmanchando, os passarinhos principiando toda sorte de atividade, a maré
chapinhando como um relógio. Amleto inspirou fundo. Que entenderiam eles do que
lhes podia dizer, que sabiam além daquilo que faziam?
– Muito bem – disse finalmente. – Podem ir! (RIBEIRO, 1984, p. 105–106)

Esta passagem mostra claramente a necessidade de Amleto em se destacar desse grupo. A


admiração não se traduz em solidariedade, afinal, como admirar um subalterno? Como admirar
alguém inferior a você na escala social? Era completamente impensável mostrar algum tipo de
simpatia aos negros ou às suas atividades. Eram eles apenas braços a trabalhar para a manutenção
da ordem social, das riquezas dos senhores, como máquinas, não como gente.
Mas uma palavra especialmente resume a relação essencial entre os grupos observados no
romance e aqui neste trabalho: poder. As relações de poder são as articuladoras das tensões e
crises, permeiam as relações sociais, os pensamentos, a ordem dessa sociedade representada em
Viva o povo brasileiro. Daí a importância da reflexão de Amleto ao se espantar com o poder
desses trabalhadores, fortes e destemidos como guerreiros, possuidores de poderes que Amleto
não tem.
O trabalho, e em especial o trabalho que exige esforço físico, era considerado como tarefa
pouco digna, destinada sempre àqueles tipos tidos como inferiores. Ao notar a desenvoltura,
organização e firmeza dos escravos na execução da tarefa de sair à caça das baleias no
Recôncavo Baiano, Amleto sente a necessidade de se impor, mostrar que aqueles homens não
poderiam realizar uma tarefa sem apoio intelectual, mas principalmente, sem seus mandos e
desmandos. Claro fica que a tarefa poderia facilmente ser realizada sem qualquer “instrução
imprescindível” de Amleto, mas a necessidade de se impor, a necessidade de mostrar
superioridade, a necessidade de mostrar que uma palavra sua faria o trabalho parar ou prosseguir
impeliram- no a chamar a atenção dos escravos. Aí está uma das primeiras manifestações de
Amleto no sentido de repetir os moldes da elite: manter os negros subordinados a si e a suas
ordens, supervisionar um trabalho não apenas para que este seja realizado a contento, mas para
que seja realizado conforme sua ordem, para que entre no livro da administração como tarefa
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com a sua assinatura. Projeção e desejo de poder. Amleto queria mostrar a esses escravos “quem
realmente eram” por meio da sua autoridade. Quem realmente eram?! Uma proposição como esta
é muito reveladora de variados aspectos dos discursos e dos posicionamentos que podem ser
adotados. Quem realmente seriam aqueles negros escravos em pleno trabalho? Para alguma
possível resposta deve-se observar quem fala, de que lugar fala, quando fala, para quem fala.
Como vimos, Amleto Ferreira, um mulato, um bastardo, mas com algum estudo chega a
guarda-livros do Barão de Pirapuama, um dos maiores senhores de escravos do Recôncavo
Baiano em meados do século XIX. Neste esquema de Viva o povo brasileiro, deparamo-nos com
um cenário muito representativo do Brasil daquele século. Todavia, mais do que apenas um
quadro do Brasil oitocentista, a obra literária reinterpreta este passado e permite a nós, leitores
que, como co-autores, façamos o mesmo exercício de reinterpretação do que nos fora apresentado
antes e do que nos é apresentado no livro, de um modo ativo e dialógico em relação a
conhecimentos prévios.
Neste sentido, a personagem quando diz que irá mostrar aos negros “quem realmente
eram” fala em uma espécie de diálogo consigo mesmo que o impelirá a uma ação em resposta a
esse pensamento: reclamar a atenção dos escravos a fim de que pudessem ver quem mandava,
para mostrar que ele era a voz de autoridade naquele momento, representando o barão.
Mas além de falar para os negros naquele momento, o narrador do romance nos
proporciona a oportunidade de tomar partido dos acontecimentos passados naquele ponto do
Recôncavo. Neste sentido, o discurso da personagem passa a um outro estágio, para além da ação
narrada, sendo lançada para nossa interpretação. Neste movimento duplo, dialógico, é que o
romance verdadeiramente se realiza.
Uma certa fragilidade é também notada no trecho do romance transcrito acima. Embora
consiga o controle autoritário sobre os escravos, percebe claramente que não é indispensável às
funções que ali são exercidas. Outra marca de sua autoridade ainda mesclada à essa fragilidade se
dá no momento em que Amleto se depara com uma das mais lindas escravas da ilha: Venância 7 .
Ao vê-la, Amleto manifesta claro desejo sexual. Exercendo o poder que lhe foi conferido
por sua posição em relação à administração dos bens do Barão de Pirapuama, ordena que a
escrava mostre- lhe os seios, levando os poderes do cargo para além de suas funções específicas.

7
Personagem sobre a qual ainda falaremos mais, por ter gerado Maria da Fé, heroína do romance, fruto de violência
sexual realizada por Perilo Ambrósio.
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Da mesma forma que acima ele ordena que lhe dêem atenção e a alcança, aqui também, com sua
autoridade, subjugando a escrava, faz com que ela lhe exiba o corpo. Todavia, também do mesmo
modo como se expôs ao ridículo por não ter absolutamente instrução alguma a dar aos escravos
na pesca de baleias, no caso com Venância igualmente expõe-se de modo vergonhoso, caindo ao
chão e ejaculando nas ceroulas ao tocar o corpo da negra, que permanecera impassível.
Desta forma, expõe-se o lado frágil do futuro dono de todas as terras então pertencentes a
Perilo Ambrósio. Sua mudança se faz aos poucos, paulatinamente. Assim mesmo, sua outra
fragilidade o perseguirá: como esconder seu passado e sua origem? Mas agora, observemos como
se deu a grande guinada na vida de simples guarda- livros.
Aos poucos, sua rotina de trabalho torna-se extremamente metódica, regrada e cada vez
mais afastada do contato direto com os escravos. Em seu gabinete na casa-grande, Amleto
escrevia no alto de uma página a palavra “PROVIDÊNCIAS” (RIBEIRO, 1984, p. 167) e uma
grande lista com os afazeres do dia. Certa providência tratava das “mercadorias especiais”
(RIBEIRO, 1984, p. 172), que nada mais eram que furtos de mercadorias dos armazéns de Perilo
Ambrósio. Em conversa com seu cunhado e cúmplice Emídio Reis, Amleto acerta os detalhes da
transação:

– Isto era o que me agradava, tu podes crer. Mas não sou eu quem faz os
horários da junta da Fazenda, nem dos empregados aduaneiros, nem desses outros que
empesteiam o armazém como moscas. E hoje vai lá um fiscal da Junta do Comércio que
ontem quis saber dos selos e das notas de despacho de quase toda a mercadoria que me
mandaste da Armação. Disse-lhe que já tínhamos tudo acertado com o Senhor Porteiro
da Alfândega e o Senhor Escrivão...
– Mas, pelo amor de Deus, não deste a entender que fornecemos mantimentos
de graça ao porteiro, nem que pagamos renda ao escrivão, ai pelo amor de Deus! Que se
algum dia alguém souber que isto se passa, a palavra desgraça é muito fraca para
descrever o que nos ia acontecer. E principalmente a ti, deixa-me que te lembre, para que
não penses que também não estás metido nisto até o pescoço.
– Isto sei e não precisas lembrar-me e não sou tonto nem desmiolado para
contar isto lá ao homem da junta do Comércio.
– Mas é que falas demais. Já te disse, por exemplo, que não te refiras à
mercadoria que retiramos da Armação...
– Que furtamos da Armação! Bah! Quem nos ouve cá? Tu tens a mania das
palavras finas, que em minha boca não calham bem.
– Isto não se deve dizer nem de brincadeira, isto não se deve nem pensar!
Proíbo-te de falares assim, para teu próprio bem! E que seja esta a última vez que falas
desta forma! Tens que tomar tento ou não posso mais trabalhar contigo, serei forçado a
dizer isto à tua irmã, que já não anda lá muito satisfeita comigo.
– Que tem a mana Teolina que não anda satisfeita comigo, que fiz eu?
– Não é o que fizeste, é o que és, o teu jeito, o teu comportamento.
– Mas eu trabalho como um cão, eu ...
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– Mas, e o teu estouvamento, tua falta de medida com as palavras? Que seja
esta a última vez: ao referir-se à mercadoria procedente da Armação, chama-a
simplesmente de mercadoria especial, é o bastante. Mete isto lá na tua cachola!
Mercadoria especial! (RIBEIRO, 1984, p. 171–172)

E assim começam os primeiros desvios de capitais e mercadorias do barão para Amleto


Ferreira, que irá se favorecer, e muito, com a doença de Perilo Ambrósio. Deve-se observar
especialmente o eufemismo utilizado por Amleto para se referir às mercadorias roubadas do
armazém de seu senhor. “Mercadoria especial” claramente camufla a verdadeira natureza dos
artigos desviados e assim, pouco a pouco, burlando fiscalizações, subornando fiscais e
controlando livremente os negócios do barão, o guarda- livros começa a ter altos lucros com esta
prática ilícita.
Com o passar do tempo, Amleto deparou-se com sua grande chance: tomar todos os bens
do barão para si no momento em que este se vê acometido por uma grave doença. Como vimos
no capítulo dedicado a Perilo Ambrósio, esta doença foi resultado de uma reação de seus
escravos contra sua tirania. E após sua morte, nem ao menos a família, a mulher ou o filho
mantiveram o patrimônio.
Já enriquecido, põe-se a pensar em sua trajetória de vida, e mais uma vez serão a força e o
conhecimento do poder do discurso as grandes responsáveis pela arquitetura do pensamento que
irá predominar, em detrimento dos acontecimentos e dos atos que levaram Amleto a ocupar agora
um lugar de destaque na sociedade, lugar conferido pelo único valor que parece sustentar o status
quo: o valor do dinheiro:

Pensando sobre como ganhara tanto dinheiro, já nem admitia para si mesmo, a
não ser vagamente e a cada dia com menos freqüência, que desviara os recursos do barão
e se apropriara de tudo em que pudera pôr as mãos, em todo tipo de tranquibérnia
possível. Não, não fora bem assim, precisava acabar com a mania de ser excessivamente
severo consigo mesmo, chegava a parecer uma propensão ao martírio. E o tino comercial
empregado a serviço do barão, as dificuldades sem fim, as soluções heróicas encontradas
para problemas insuperáveis? E o sangue, isto mesmo, o sangue e o suor dados ao barão?
E a situação tranqüila da baronesa, hoje empobrecida, é verdade, mas vivendo com toda
a dignidade, ainda na mesma casa do Bângala, assistida em todas as suas necessidades e
as de seus filhos? Não tinha mais tantos negros, é também verdade, apenas três negras e
dois negros, pois a dureza dos tempos atuais e os azares que por todos os lados
perseguiram os negócios do barão aconselharam a que a escravatura fosse reduzida ao
mínimo indispensável. Que queriam? A pesca da baleia piorava a cada ano, era cada vez
mais coisa do passado que o progresso soterraria. (RIBEIRO, 1984, p. 229)
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E aos poucos, Amleto relembra-se de cada transação obscura que havia feito a fim de
dilapidar os negócios do barão revertendo todo o dinheiro para si próprio. E como podemos
observar no trecho acima, Amleto realmente considera-se não um usurpador, mas um grande
negociante. E conclui: “– Pois é – pensou Amleto, deixando a varanda para ir tomar café –, a
verdade é que estou em paz com minha consciência, nunca fiz mal a ninguém, sou um homem
prestante” (RIBEIRO, 1984, p. 231).
Assim a personagem vai tecendo suas verdades para si próprio, fazendo valer tudo aquilo
que considerou justo em seus atos, não sendo tão “severo” consigo mesmo, pensando até mesmo
no ato de caridade que tem para com a esposa do já falecido barão, que agora, e mpobrecida, vive
das migalhas que lhe dá, não por sentimento de culpa ou desprendimento, mas porque a
filantropia era vista com bons olhos pela alta sociedade local – sendo, portanto, mais uma
estratégia para adentrar cada vez mais no universo da elite.
Neste ponto da trajetória de vida de Amleto Ferreira, sua ideologia estava completamente
ligada aos padrões da elite no que concernia desde a exploração da terra até seu “desjejum de rins
grelhados, arenques defumados, mingau com passas, pãezinhos fofos, chá e torrada com geléia”
(RIBEIRO, 1984, p. 232), nada de acordo com os costumes e ingredientes brasileiros. Todavia,
seu dinheiro e seus bens ainda não ocultavam os traços físicos que o ligavam à outra parcela da
população, não apagavam a herança negra, sua marca da miscigenação, enfim, sua origem.
Amleto passa a fugir do sol escaldante da Ilha de Itaparica a fim de não escurecer ainda
mais a pele e realçar este passado que agora precisa tanto esconder. Ainda nessa tentativa de
embranquecimento, fator fundamental para a sua consolidação no universo da elite e para ganho
de respeitabilidade, Amleto utiliza todos os dias uma touca com um preparado de babosa para
amaciar e alisar os cabelos. Não bastava estar nas altas esferas: para conseguir o respeito que
nunca tivera, como muito bem ilustrou o diálogo entre ele e o Cônego Visitador, era necessário
parecer-se cada vez menos com aquilo que trazia em seu sangue, a herança negra. O ‘mulato
Amleto’ precisava parecer-se mais e mais com os membros da elite, nem que para isso tivesse de
submeter-se a esses rituais gastronômicos e cosméticos, ou tomar atitudes ainda mais drásticas.
Amleto sabia quanta influência poderia ter agora com o montante que arrebatou do barão
e usará isto para alcançar seus objetivos. Certo dia recebe em sua casa o afobado padre-adjutor,
que trazia um papel nas mãos: uma falsa certidão de batismo. Não bastava, pois, ter dinheiro,
70

bens, propriedades, pele menos escurecida, cabelos menos crespos. Amleto foi mais além.
Utilizando o poder agora adquirido, a personagem reforça ainda mais a distância com seu passado
modificando o próprio nome, segundo ele, apenas uma correção necessária.

Recordou com prazer o dia em que o padre-adjutor do Vigário Geral o procurou


no escritório, enfiando com nervosismo a mão pelas dobras da sotaina para sacar a
certidão de batismo falsa, tão meandrosamente obtida.
– Aqui a tem Vossa Excelência! – dissera o padreco, um desses velhos que não
conseguem rir mesmo quando têm vontade, fazendo apenas uma caretinha débil e
fibrilante, os lábios tremelicando como se temessem afastar-se um do outro durante mais
que um segundo.
– Reverendíssimo! – respondera Amleto, que, poucos minutos antes, tinha
relido, no topo da lista das providências: "Certidão Dutton". Tomou o papel, chegou a
fazer-lhe um pequeno rasgão numa das margens, tal a avidez com que o desenrolou, leu
em voz alta. – Amleto Henrique Nobre Ferreira -Dutton! Ferreira-Dutton!
(...)
– Pois. Pois, se bem percebo, Vossa Excelência, antes desta correção, chamava-
se tão-somente Amleto Ferreira.
- Sim, pois, vicissitudes, coisas das questões religiosas do tempo de Dão João,
incúria talvez dos padrinhos, as guerras napoleônicas... Eram tempos conturbados, estas
coisas não eram de tão perfeita organização quanto o são hoje.
– Sim, pois.
– Mas a correção é necessária, de há muito que se faz necessária e, graças à
compreensão de Vossa Reverendíssima e do Excelentíssimo Senhor Vigário... Vossa
Reverendíssima compreende, em primeiro lugar era preciso restaurar a verdade dos
fatos, a herança histórica de nossa família – afinal, nossa linhagem perde-se no tempo,
tanto em Inglaterra como em Portugal –, que se espelha tão bem no nome. E, em
segundo lugar, costumo emprestar grande significado ao nome, grande relevância. Não
se deve escolher um nome ao capricho, ao acaso. Meu nome, por exemplo, é Amleto,
escolhido por minha mãe em homenagem a meu pai; Henrique é pela velha tradição das
casas reais de Inglaterra – Henrique, Jorge, Carlos, Guilherme, Eduardo e assim por
diante –; Nobre porque es te é sempre o terceiro apelido de nossa família portuguesa e,
finalmente, Ferreira -Dutton, que é o nome correto da nova família, resultado da união
anglo-portuguesa.
– Sim, pois.
– No caso de meus filhos, que, graças também à compreensão que sempre
mereci da Igreja, já pude batizar com seus verdadeiros nomes... – Releu a certidão,
beijou-a. – Sim, meus filhos não têm nomes escolhidos ao deus-dará. (RIBEIRO, 1984,
p. 232-234)

Deste modo, a palavra escrita, privilégio de poucos brasileiros no século XIX, é utilizada
para corroborar uma fraude, que ganha ares de verdade inconteste por vincular-se aos registros da
Santa Igreja, cujos sacerdotes aceitaram empreender a mudança mediante agrados financeiros.
Com toda esta retórica que mostra ao padre, Amleto vai criando um rol de explicações,
justificativas, porquês; deste modo, ele mesmo vagarosamente passa a crer nas histórias que
71

trama a respeito de si e de sua família. Agora não mais Amleto Ferreira, nome curto, carregando
apenas o sobrenome de sua mãe: agora Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, com todas as
suas justificativas, pompa e circunstância...
Depois de anos de humilhações sendo o simples guarda- livros do Barão de Pirapuama,
consegue utilizar todos os seus conhecimentos aproveitando-se ainda do fato de o barão não mais
poder fiscalizar os livros e balancetes de seus negócios para, ardilosamente, vender boa parte dos
bens, revertendo os capitais para si. A fim de não levantar suspeitas, Amleto deposita a culpa na
decadência da pesca da baleia e, a fim de evitar olhares de desconfiança para sua fortuna que
cada vez mais crescia, afirma ter sua esposa, Teolina, herdado grandes valores de família. Por
meio dessas e de outras construções discursivas e manipulações de fatos e pessoas, Amleto fixa-
se como ho mem nobre, conforme sugere um de seus sobrenomes inventados. Para si mesmo, o
novo nome é marco divisor entre sua antiga e sua nova vida.
Mas, mesmo poderoso, Amleto está sempre cercado por suas fragilidades. Um destes seus
pontos fracos é sua mãe. Dona Jesuína, a liberta e professora das primeiras letras, acompanha de
longe as mudanças na vida do filho. A mãe será sempre, ao longo de toda a vida de Amleto,
rejeitada e mantida à distância: Dona Jesuína é mais uma das provas vivas de sua origem humilde
e mulata. Amleto dava- lhe conforto, porém não lhe dava atenção ou afeto.
Importante observar pelo menos um desses artigos que compunham o conforto dado à
Dona Jesuína: a manutenção da escola em que lecionava. Todavia, Amleto definitivamente não
via a escola com bons olhos. Estava totalmente imerso no pensamento que predominava entre os
poderosos da época:

Se continuava com sua escola, era porque queria e, por isso mesmo, quanto não
custava a ele comprar lousas para aqueles meninos miseráveis e imprestáveis, comprar
mais comida que para um batalhão – então, então, então, vinha a Senhora Dona Jesuína
fazer ares de que era boa mãe de filho mau? Vamos e venhamos, vamos nos enxergar!
(RIBEIRO, 1984, p. 236)

Amleto foi um jovem que teve direito aos estudos por influência de sua mãe, todavia,
muito a contragosto mantinha agora a escola comandada por ela. Para ele, na corrente visão da
elite da época, não havia porquê dar educação aos mais pobres, não havia porquê dar seu dinheiro
72

em investimentos para a educação daqueles “imprestáveis”. Notamos assim, no discurso de


Amleto, características próprias da fala das elites, tanto na escolha vocabular quanto na adoção
do conjunto de valores da elite. Como nos afirma Bakhtin, a palavra é sempre ideológica e a
ideologia é sempre socialmente orientada, não sendo, portanto, jamais neutra (BAKHTIN, 1995)
e nesta personagem podemos observar com clareza a ligação a determinado sistema –
socialmente prestigiado – em detrimento e abandono de elementos de sua origem – socialmente
desprestigiados. Afinal, como ser, em pleno século XIX, uma figura notória, estando com um pé
na senzala?
A nova família de Amleto desconhece a figura de Dona Jesuína. Para eles, o patriarca dos
Ferreira-Dutton havia perdido a mãe ainda na juventude, e mais: transferia à Baronesa Antônia
Vitória a figura da mãe que supostamente não tem. Assim pode-se perceber a dimensão dos
medos de Amleto, que escondia a todo custo as marcas de seu passado.
Mas, retomemos a escola. Deve-se notar que Dona Jesuína terá como pupila Maria da Fé,
personagem, sabemos nós leitores, filha do Barão de Pirapuama, e como já adiantei, aquela que é
vista como a grande heroína do povo negro da Ilha de Itaparica. Seu avô (de consideração), o
Nego Leléu, que antes havia desenvolvido certa aversão pela negra Venância, dada a ele por
Perilo Ambrósio para que ela depois do estupro saísse logo de suas terras, desenvolve grande
amor por Vevé e por sua filha Dafé (apelido de Maria da Fé entre os negros da ilha). Com grande
esforço, Leléu matricula a jovem nesta escolinha.
Jesuína percebe o grande talento e facilidade de aprendizado da menina, e manifesta um
desejo de futuro para Dafé: “com suas prendas e sua beleza, não seria difícil encontrar um rapaz
de sua raça, ou até mais claro, para ir melhorando, e fazer um bom casamento, constituir família e
assentar-se na vida” (RIBEIRO, 1984, p. 285). Por marcas de seu discurso, podemos notar que
Dona Jesuína carrega consigo um preconceito arraigado em sua mentalidade, fruto da
historicidade, da construção social do sujeito, que vê no negro uma força de trabalho e não um ser
humano. Essa personagem repete modelos desse padrão europeizado e branqueador para a
sociedade brasileira, numa clara assimilação desta ideologia e mais, pois, como liberta, sofrera as
dificuldades da escravidão e desejava para a menina um futuro totalmente afastado desta
realidade.
73

Ao avançarmos na leitura, observamos que Jesuína admira o filho e o lugar social que
atingiu, não importando o que ele tenha feito para isso e aceitando a má goa de ser sumariamente
excluída de sua vida.
Outra prova viva do passado de Amleto é seu filho mais novo, Patrício Macário. Para
Amleto, esse era seu filho de “aparência desagradável” (RIBEIRO, 1984, p. 322), expressão que
sintetiza o modo como o pai o vê:

aquele grandessíssimo alarve, aquele sujeito balordo e grosseirão de aparência


desagradável, mentalidade baixa e instintos mais baixos ainda, que tinha de chamar de
filho, pois que o era. Pois que o era, sim, mas não parecia, porque todos saíram com
aparência de gente fina e de bem, só ele nascera com aquela nariganga escarrapachada e
aqueles beiços que mais pareciam dois salsichões de tão carnudos – um negróide,
inegavelmente, um negróide! O cabelo, felizmente, não chegava a ser ruim, era meio
anelado, mas, com bastante goma e forçado à noite pelas toucas, podia ser penteado
razoavelmente, numa espécie de massa quebradiça puxada em direção à nuca. (idem)

Patrício Macário era submetido a constantes repreensões posto que não seguia as
recomendações do pai para afinar o nariz, exibindo também lábios grossos, cabelos
encaracolados que careceriam daquela mesma touca com babosa, a tez morena. Era, enfim, o
filho mais parecido consigo mesmo, daí todo seu ódio, uma espécie de repúdio a si. A medida
mais uma vez escolhida por Amleto foi a distância: Patrício Macário não poderia ser negado
como era Dona Jesuína, mas poderia ser mandado para fora do seio familiar, para o Exército. No
capítulo destinado a Patrício Macário, falarei mais a fundo sobre esta relação conturbada, mas
aqui se deve observar o comportamento de Amleto em relação a seu filho: o repúdio ao que ele
representa.
O filho mais novo é para Amleto, além de um reflexo de si mesmo, mais uma ameaça a
tudo o que construíra ao longo dos anos. Tal e qual sua avó, Macário é um ente familiar que pode
gerar desconfiança daquela ascendência tão pura de linhagens que se perdem na história de
Inglaterra e Portugal (sendo que esta última nação poderia ser a salvação da farsa numa suposta e
eventual explicação da pele trigueira: conseqüência da invasão moura na Península Ibérica –
embora essa característica fosse sempre atribuída à esposa, Teolina, pois nem assim Amleto
aceitaria qualquer ligação ou ‘culpa’ pelo nariz chato ou pela pele morena de um de seus
descendentes).
74

Dissimulado e irônico, diz Amleto a seus colegas de alta sociedade que os traços de
Patrício Macário advém de Teolina e afirma que tem orgulho de suas raízes brasileiras adquiridas
por via matrimonial (RIBEIRO, 1984, p. 337). Assim renega explicitamente (para si mesmo) suas
origens, afirmando que aqueles traços são oriundos também de uma ancestralidade indígena, em
uma miscelânea construída com o poder do discurso a fim de convencer a todos e a si mesmo de
que não era responsável pelos traços “simiescos” do filho.
O negro nunca participa como elemento digno de figurar na formação nacional neste
período: assim como o pensamento predominante no tempo da narrativa (meados do século XIX),
renegava o negro em nossa formação, sua contribuição na sociedade brasileira foi durante muito
tempo descartada, e é precisamente a essa corrente que Amleto incorpora-se. Esse fenômeno é
muito bem visualizado na literatura romântica do século XIX, época em que eram comuns os
chamados romances de fundação. Neles, pouco se aponta para o negro. Leves esboços nos foram
dados na obra de Castro Alves, mas ainda como sopros isolados. Quem, na alta sociedade
brasileira daquele século veria com bons olhos uma ascendência negra? Amleto apenas repete
esse modelo característico de seu tempo. Por isso aqui, percorremos esses caminhos a fim de
compreender as atitudes da personagem, que buscava uma vida melhor, menos aviltante que a
que lhe era reservada pelos padrões da época.
Além de sua mãe e de seu filho Patrício Macário, há ainda mais um ponto frágil que
poderia ameaçar Amleto: Horácio Bonfim. Ex- funcionário do Barão de Pirapuama, Horácio
possui provas, um dossiê sobre as apropriações ilícitas feitas pelo então guarda- livros. Viúva e
sem dinheiro, a ex-esposa de Horácio leva, sem ter a menor noção de que papéis eram aqueles, o
referido dossiê às mãos de Amleto. Seu marido havia comentado que aqueles papéis valeriam
muito dinheiro e naquele momento, a viúva precisava reformar sua pequena casa – em uma
tentativa inocente de conseguir algum dinheiro com o homem mais poderoso do lugar. Todavia,
analfabeta e extremamente ingênua, Dona Maria d’Alva Bonfim, desconhecendo o conteúdo dos
papéis, é enganada por Amleto. O dossiê poderia trazer à tona todas as falcatruas realizadas,
todos os roubos e vendas, mas tendo diante de si uma mulher ingênua e fragilizada, Amleto
utiliza a circunstância a seu favor, tomando para si as únicas provas de sua história:

Amleto tomou o caderno, montou as lunetas no nariz, abriu a primeira página.


Como se foss e o frontispício de um livro cuidadosamente diagramado, estava lá escrito:
75

“DIÁRIO DOS ACONTECIMENTOS NOS ESTABELECIMENTOS DO SENHOR


BARÃO DE PIRAPUAMA SOB A ADMINISTRAÇÃO DO GUARDA-LIVROS
AMLETO FERREIRA – Relato de autoria de HORÁCIO BONFIM, destinado ao
esclarecimento do Senhor Barão e da Posteridade". Começou a folhear algumas páginas,
aparentando apenas um interesse leve. Não eram muitas, talvez umas trinta, escritas em
letra miudinha e muito emendada. Mas lá, numa profusão de detalhes difícil de crer,
estava anotado tudo o que acontecera no escritório desde que o barão caíra de cama.
– Canalha! – disse Amleto entre dentes. (RIBEIRO, 1984, p. 331)

Naquele momento, Amleto soube que seu segredo estivera durante muito tempo
ameaçado, mas agora poderia ficar novamente sereno. Cede à mulher um vale para que retire
algumas ‘sobras’ de material de construção na loja de Emídio Reis, assim como um cartão
recomendando-a ao Secretário de Obras do Município, afinal, para Amleto, era para isso que
servia o Estado, e ainda estendeu- lhe cinco mil-réis. Assim resolvia o problema de Dona Maria
d’Alva, que se calaria quanto à existência do caderno, e também o seu. Sozinho na sala e com o
caderno em suas mãos, folheou algumas páginas e lá estava:

(...) "O Esbulho das Provisões". Um pouco trêmulo, começou a ler: "As
provisões adquiridas para os estabelecimentos do Senhor Barão são constantemente
desviadas, às vezes completamente, para estabelecimentos do Senhor Amleto, que
mantém-nos em conluio com seu parente, o Senhor Emídio Reis. Na quinta-feira, 23 de
agosto do ano da Graça de 1827, o Senhor Emídio Reis, irmão da esposa de Amleto
Ferreira, veio ao escritório e nessa ocasião..."
– Canalha! – rosnou Amleto, fechando o caderno com estrondo. (RIBEIRO,
1984, p. 332–333)

Todavia, não tem o que temer: o conhecimento da escrita era extremamente restrito no
século XIX e assim, poucas chances teria Dona Maria d’Alva de compreender o conteúdo do
dossiê. Aqui, a palavra, que tão benéfica poderia ser a uma pessoa humilde e ainda poderia servir
de denúncia a uma grande farsa, serve mais uma vez e tão somente à elite, que bem sabe o poder
das palavras e que durante este tempo recusou-se a partilhar deste poderoso instrumento com as
camadas mais pobres da população. Bem pudemos observar tal pensamento na passagem em que
Amleto queixa-se de desperdiçar seu dinheiro com a escola e os estudos das crianças da ilha.
Não permitir o acesso à educação e ao conhecimento é também uma forma de dominação
muito eficiente empreendida pelas elite s: não permitir o acesso à palavra torna-se instrumento
76

poderoso de manipulação, expressão de autoridade e de influência, garantindo que o povo


permaneça constantemente mergulhado em ignorância e, assim, mantendo seu posto de poder a
salvo de grande número de questionamentos. Por muito tempo no Brasil o analfabetismo se
caracterizou como instrumento fundamental, por exemplo, à máquina eleitoral, no conhecido
‘voto de cabresto’. Não era dado ao povo o direito de instruir-se. E quais são, afinal, esses
difere ntes povos brasileiros dos quais se fala na obra?
Uma das respostas a esse questionamento pode e deve ser observada numa das mais
expressivas falas de Amleto Ferreira, agora já Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton. Em uma
pequena reunião em sua enorme casa, a qual contempla com muita satisfação, Amleto põe-se a
falar sobre política e economia, sobre abolição, latifúndio, poder e povo. A personagem aqui
analisada, repetindo modelos comuns da elite, afirma:

– Mas não crê o Senhor Amleto que o nosso povo...


– Observe bem o caro major e compadre, usamos as palavras muitas vezes sem
atentar na sua propriedade. É o que percebo agora, data venia, pois que a longa
convivência e frutuosa amizade que nos une já me fazem antecipar o que ia dizer o
major. Mas, vejamos bem, que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente não é
essa massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e
negros. A isso não se pode chamar um povo, não era isso o que mostraríamos a um
estrangeiro como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como
os próprios europeus. As classes trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais
povo. Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade, não é o
rebotalho dessa mesma nacionalidade. Mesmo depuradas, como prevejo, as classes
trabalhadoras não serão jamais o povo brasileiro, eis que esse povo será representado
pela classe dirigente, única que verdadeiramente faz jus a foros de civilização e cultura
nos moldes superiores europeus – pois quem somos nós senão europeus transplantados?
Não podemos perder isto de vista, deixando-nos cair no erro abismal de explorar nossas
riquezas e nossa virtual grandeza para entregá-las a esse tal povo, que, em primeiro
lugar, não saberia como gerir tão portentosa herança, logo a aviltaria, como sabe, aliás,
quem quer que já tenha tentado dar conforto e regalias a escravos e servos, pois não
atinam com o que fazer desse conforto e dessas regalias.
– Lá isto é verdade. Dá -se a esse povinho alguma coisa...
– É o que digo, meus caros senhores. É preciso ver com clareza, com lógica,
sem pieguismos. Temos diante de nós talvez a mais hercúlea tarefa já posta diante do
homem civilizado. E, praza aos Céus que esteja errado, é nisto que se fundam meus
receios quanto ao futuro. É no medo de que deixemos o Criador fazer sua parte e não
façamos a nossa, é disto que tenho medo. Que somos hoje? Alguns poucos civilizados,
uma horda medonha de negros, pardos e bugres. Como alicerce da civilização, somos
muito poucos, daí a magnitude de nosso labor. Mas, no que depender de mim, e tenho
certeza de que dos senhores também, o Brasil jamais se tornará um país de negros,
pardos e bugres, não se transformará num valhacouto de inferiores, desprezível e
desprezado pelas verdadeiras civilizações, pois aqui também medrará, mercê de Deus,
uma dessas civilizações. (RIBEIRO, 1984, p. 244–245)
77

Ao longo de todo o romance, creio ser essa a fala mais representativa do pensamento das
elites em relação ao povo, ao negro, aos mestiços e aos pobres em nosso país no século XIX.
Extremamente ilustrativa, mostra-se aqui a construção ou o desejo de construção de uma
sociedade brasileira com moldes europeus, com nítidos traços de branqueamento da população,
mas com grande desilusão de que isso não venha a acontecer porque a “horda” de mestiços cresce
e sempre se fará presente. E até porque sabe também a elite que a sociedade carece desses braços
trabalhadores – tendo assim uma visão exclusivamente utilitarista e depreciadora das classes mais
baixas da população.
Na construção do discurso geral de Viva o povo brasileiro, ou seja, na imagem final que
nós leitores construímos ao chegar à última palavra do romance, a passagem acima se mostra de
grande impacto na impressão total do discurso do romance, da forma como o assimilamos em
nossa leitura e em cada leitura. Homem vindo das camadas desprestigiadas da população, Amleto
assimila por completo os valores das elites e passa a renegar sua própria origem e condição de
mestiço (palavra utilizada em contraste com ‘miscigenado’ exatamente para reforçar os ares de
preconceito e depreciação), o mesmo mestiço ao qual tanto renega em seu inflamado discurso.
Associado a isso, Amleto, um futuro abolicionista por conveniência, prevê um futuro
desastroso para a nossa sociedade após o fim da escravidão, uma vez que “o feitio do nosso
populacho, que é zombeteiro, folgazão, de poucas necessidades e acomodados” (RIBEIRO, 1984,
p. 244) trará para a nação efeitos nefastos... Mas logo se renderia, posto que o regime assalariado
seria menos oneroso.
Em meio a todo o seu poder, a fraude econômica para Amleto não assegura totalmente a
ascensão à elite, e dessa forma, aliada à já comentada fraude étnica, Amleto ainda constrói um
pensamento afinado com as idéias da classe a qual agora se vê filiado. Podemos notar que em
todas elas, a palavra toma seu lugar e é o elemento fundamental à consolidação dos desejos do
ex-guarda- livros, ex-pobre, ex-mulato. Todas as suas mentiras se tornaram verdade pela fraude,
construídas, corroboradas, ratificadas pela palavra. A palavra serviu- lhe para dar a nova
identidade, o poder sobre os negócios, todos feitos por meio de palavras de engabelação e
mentiras, deu-lhe fortuna. Por meio de sua palavra, enganou a todos sobre sua verdadeira orige m:
palavra tão respeitável que nem ao menos se suspeitou de uma outra verdade.
78

Amleto mostra-nos mais uma expressão da epígrafe do romance “O segredo da Verdade é


o seguinte, não existem fatos, só existem histórias”: é a palavra que constrói os objetos, é o
discurso, é a história que se conta. Amleto é um exímio articulador do poder das palavras: soube
utilizar em seu benefício todos os caminhos que a palavra lhe abriu a fim de ter sua vida
modificada, melhorada – tomando como padrão os valores de sua época.
Ao chegar ao final de sua vida, Amleto faz um balanço da sua história. Importante
ressaltar que até mesmo essa recordação, claro, é fruto da palavra, do discurso em sua mente, do
discurso retido na memória ou construído para que assim fosse lembrado. Amleto é um “homem
feliz”, e afirma: “nunca fiz mal a ninguém” (RIBEIRO, 1984, p. 231). Procurando enumerar seus
bens, causa primeira de sua felicidade, não se vê capaz. Ele fez força “para lembrar-se de tudo o
que possuía, como antigamente, mas não conseguiu, era demais para a sua memória cansada”
(RIBEIRO, 1984, p. 364). Desta forma pode-se notar que Amleto Ferreira não vê mal algum nos
meios pelos quais conseguiu seus, agora, inumeráveis bens.
Ainda na construção de sua imagem, mais um ato levará a assina tura de Amleto. Conhecia
perfeitamente suas qualidades de bom negociador e comerciante e assim, com a chegada das
primeiras idéias abolicionistas ao Brasil e com os crescentes gastos com a manutenção do regime
de escravidão, Amleto vislumbrava os benefício s do trabalho livre, como não precisar mais se
preocupar em alimentar, vestir e dar moradia aos trabalhadores. Mas antes dos últimos suspiros
da escravidão, retirou- lhe até a última gota de lucro:

Praticamente não havia ninguém que não lhe devesse ou não lhe comprasse
alguma coisa, direta ou indiretamente. Até mesmo os negros, a quem, para mostrar a
coerência de suas posições, vinha libertando na medida do possível, pagavam, em
prestações acrescidas de pequenos juros, seus títulos de alforria. E justiça fosse feita,
quase não tocava nesse dinheiro, cuja maior parte destinava a uma de suas muitas
iniciativas no campo da cultura e dos problemas sociais, no caso o Fundo de Estudos
Abolicionistas.
Então não era feliz? (idem)

A visão de felicidade deste representante da elite passava impreterivelmente pelo


dinheiro, mas não somente por ele. Saber-se necessário, sentir que possui poder sobre a vida de
outros é uma das grandes alegrias de Amleto. Sempre fora o poder uma das grandes alavancas
para suas ações.
79

No ano de 1863, o narrador nos coloca diante daquele Amleto frágil de outros tempos. Já
envelhecido e viúvo, sofre constantes alucinações, é acometido por várias paranóias, mas,
segundo o narrador, a pior é o terror às moscas. Amleto as vê em tudo, especialmente nos
alimentos. Cada refeição tornou-se um ato de tortura e paciência depois que certa vez quase
engoliu uma mosca ainda viva que se encontrava em um cálice de vinho do porto. Temos aqui
algo extremamente simbólico: a mosca, inseto abjeto ligado à podridão, pousara em um símbolo
do luxo e distinção do senhor abastado, em contraste com a maior parcela da população. Se não
fosse a tal mosca movimentar-se dentro de sua boca a engoliria, porém, ao percebê-la, expeliu
com violência e ainda vomitou até desmaiar de fraqueza.
Repito que é muito simbólico que a personagem desenvolva manias e obsessões após anos
temendo que seus segredos fossem descobertos, trazendo à tona sua origem, sua etnia, suas
trapaças. Moscas são insetos repugnantes e por isso mesmo deveras figurativas no final da vida
de um homem que ergueu seu império particular às custas da pilhagem de bens alheios. Assim,
dentre várias leituras possíveis, pode-se observar o campo semântico ao qual pertence a palavra
“mosca”: apontando para a podridão, a sujeira, o lixo. Amleto seria, portanto, uma espécie de
foco imundo sobre o qual pairariam estas várias moscas (imaginárias).

4.2.1. Considerações finais sobre Amleto Ferreira

Depois de sua morte, os negócios de Amleto passaram a ser geridos por Bonifácio Odulfo,
que sempre fora seu filho mais desprendido e boêmio. Como homem de negócios modificou-se
completamente e levou adiante, com ainda mais rigor, todos os investimentos, especialmente o
banco fundado por seu pai.
Ao ser relembrado pela família com o passar dos anos, pode-se observar que Amleto
consolidou a imagem que pretendera passar sobre si mesmo, de homem poderoso, sério,
preocupado com o futuro do país. Na posteridade também se cuidou da memória do patriarca:

É necessário manter o senso de família, senso de estirpe. Pegou de novo o


estudo sobre os Ferreira-Duttons feito pelo British-American Institute for Genealogical
80

Research, que estivera mostrando ao Chagas Borges, na esperança vã de que ele calasse
a boca. Os gringos sabem fazer as coisas, nunca que uma coisa dessas ia poder ser feita,
com esta categoria, no Brasil. Era somente parte do estudo encomendado pelo tio
Bonifácio Vicente, que lhe emprestara um dos dois exemplares recebidos. O resto ainda
estava sendo completado, mas a conhecida impaciência do tio Bonifácio fez com que ele
pedisse que organizassem num álbum o material de que já dispunham e ali estava o
resultado. Uma pequena história da família escrita em inglês muito elegante, retratos de
ancestrais e pessoas ligadas a casa, diagramas mostrando relações de parentesco.
(RIBEIRO, 1984, p. 641– 642)

Nesta passagem, o narrador transporta o leitor para o ano de 1972, e assim se pode notar o
quão firmada estava a história da família Ferreira-Dutton. A farsa estava consolidada, e
consolidada a ponto de seus descendentes reconhecerem em seu rosto gravado em vários quadros
traços nórdicos! Tudo fora muito bem arquitetado e corroborado por meio da palavra, e a escrita
garantiu ainda mais fidedignidade à história, sendo até mesmo objeto de estudos de um instituto
estrangeiro.
Segundo nos aponta o professor Alcmeno Bastos,

a mentira que se faz passar por verdade – a dos vencedores – precisa ancorar-se
na verossimilhança. São-lhes indispensáveis as encenações sociais, os documentos
falsificados, os recibos por pagamentos não feitos, os estudos genealógicos
encomendados a instituições respeitáveis, e respeitáveis sobretudo por serem
estrangeiras, enfim, todo o aparato de exterioridades cuja amplificação paradigmática é a
própria história oficial. (BASTOS, 2002, p. 7)

E desta forma Amleto Ferreira, ou melhor, Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton é


umas das personagens de Viva o povo brasileiro que melhor utilizam a palavra a seu favor. Seu
discurso ratifica sua imagem e apaga seu passado, renasce e entra na história pelo poder do
discurso. Conclui-se assim que Amleto agiu segundo suas possibilidades para ascender
socialmente em sua época. E é inegável: triunfou.
5. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O OUTRO PODER: MARIA DA FÉ E PATRÍCIO
MACÁRIO

5.1. Preliminares

Na perspectiva de análise que aqui empreendo, ganha ênfase a noção de que as


personagens não são meros instrumentos da consciência do autor do romance, não são extensões
de sua consciência. Cada personagem é uma consciência independente, sujeito de seu próprio
discurso e posicionamento social. O romance permite que diversas vozes falem por si e interajam
de maneira livre, organizadas pela unidade que o autor confere à obra, sem cerceá- la. As
personagens são indivíduos em formação, formação essa que nós, leitores, acompanhamos a cada
página que avançamos. Várias são as vozes que compõem o romance, sendo este portanto,
segundo palavras de Mikhail Bakhtin, um “microcosmo do plurilingüismo” (BAKHTIN, 1988, p.
201).
Na obra podem ser captadas diversas vozes sócio - ideológicas de uma época, ou de várias
épocas, como o que ocorre em Viva o povo brasileiro, uma vez que neste romance percorrem-se
vários séculos, possibilitando-se a observação de muitas variações no cerne de nossa sociedade.
No capítulo anterior, dediquei- me à análise das ações e discursos da elite com a finalidade
de compreender e apresentar seu posicionamento ideológico diante da problemática considerada
aqui central do romance de João Ubaldo: as construções discursivas na arquitetura e afirmação de
uma (ou várias) identidade(s) dos brasileiros. Prefiro aqui tratar como ‘identidades dos
brasileiros” porque, como se pôde observar no caso das elites – e diferente não será nas outras
camadas sociais – o discurso constituirá moldará o pensamento que se tem sobre si mesmo e
82

sobre o outro, não havendo, portanto, ‘um’ brasileiro ou ‘uma’ identidade nacional, mas
várias afirmações sobre este mesmo problema.
Por isso, neste capítulo que ora desponta, centrar- me-ei em outros discursos sobre o país e
sobre os que aqui vivem. Conhecendo o discurso da elite, podemos agora observar o contraponto
com os discursos daquela “massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados,
mestiços e negros”. E mais: será que é desta forma que se vêem? Qual a força que o discurso das
elites pode ter sobre as demais classes? E pode ocorrer o contrário? Quando o discurso dos menos
favorecidos pode influir na elite?
Neste momento, o que será analisado será o outro discurso que não o da elite, no qual será
observado como se dá o nascimento deste povo brasileiro – que naturalmente será muito diferente
dos “europeus transplantados”. As principais personagens a serem aqui objeto de estudo serão
Maria da Fé e Patrício Macário. Mas para compreender seu universo será necessário observarmos
de onde vêm tais personagens. Desta forma, outras personagens, seus comportamentos e atos
farão também parte desta análise.

5.2. Para chegar a Maria da Fé:

Percorrendo três séculos da história do Brasil, Viva o povo brasileiro o faz a partir do
acompanhamento da formação de diferentes clãs. Na história de Maria da Fé, é o clã aberto pelo
“Caboco Capiroba” sobre o qual devemos nos centrar. É o cafuzo “caboclo” a figura inicial dessa
genealogia, desta família representativa do início da formação do Brasil e desses brasileiros que
não têm a pureza étnica como ideal. A genealogia do Caboco Capiroba é calcada sobre a
miscigenação e aqui preferirei sempre o termo miscigenação, uma vez que, como pudemos
comprovar no discurso elitista, o termo mestiçagem sempre fora utilizado como expressão
pejorativa desta dinâmica de nossa sociedade.
Capiroba aparece no romance como o filho de uma índia com um escravo negro fugido.
Capiroba é, portanto, figura socialmente aziaga: o mestiço (conforme o preconceito de que falei
no parágrafo anterior) resultado da união das duas etnias desprezadas socialmente. Acolhido pela
aldeia, o pai de Capiroba passa a viver entre os indígenas e será essa a formação predominante
deste cafuzo.
83

Ali vivem normalmente com seus costumes, com suas práticas sociais. Todavia, o
romance analisa o período da entrada da Igreja Católica na expansão da fé cristã entre nossos
povos nativos. Com toques de ironia, o narrador nos apresenta às imposições, as quais englobam
desde o ensino da Língua Portuguesa juntamente com a transcrição das línguas locais (até então
ágrafas) para os sinais gráficos até a introdução da noção de pecado baseado na transgressão aos
dogmas cristãos e, claro, com as punições aos transgressores.
Ao chegarem à aldeia, os padres procuraram impor um novo modo de vida, não
compreendendo ou respeitando o modo de vida indígena. Nesse choque, o branco europeu tentará
se impor, procurando fazer com que os índios incorporem os valores da tradição cristã portuguesa
– tendo-se sempre em mente que a chegada e a instalação dos padres jesuítas ocorre contra a
vontade dos nativos.
No que tange ao problema da língua portuguesa, o primeiro contato foi desastroso para
muitos índios e mais: a própria língua nativa era “aprisionada em desenhos intermináveis”
(RIBEIRO, 1984, p. 39). Os jesuítas, para suas finalidades catequistas e, claro, de imposição
ideológica, costumes, hábitos, etc, sistematizaram as línguas indígenas, até mesmo criando a
artificial junção entre o tronco tupi e o guarani. Nesta sistematização são apresentados índios que
desenvolveram dificuldades em falar a própria língua materna, uma vez que a ‘nova gramática’
apontava um tipo de uso correto. Os sucessivos fracassos fizeram muitos índios tomarem a
decisão de “não dizer mais nada o resto de suas vidas, enquanto outros só falavam pedindo
desculpas pelo desconhecimento das regras da boa linguagem” (idem).
Dentre outros preceitos introjetados na aldeia pelo discurso autoritário dos jesuítas, alguns
chamam especialmente a atenção. Claro é o tom de ironia do narrador ao relatar alguns dos
milagres ocorridos.

Levantaram as imagens nos altares e por muito tempo ninguém mais morria
definitivamente, inclusive os velhos cansados e interessados em se finar logo de uma
vez, até que todos começaram a protestar e já ninguém no Reino prestava atenção às
cartas e crônicas em que os padres narravam os prodígios operados e testemunhados.
Deitava-se um velho morto ao pé da imagem e, depois de ela suar, sangrar ou
demonstrar esforço igualmente estrênuo, o defunto, para grande aborrecimento seu e da
família, principiava por ficar inquieto e terminava por voltar para casa vivo outra vez,
muitíssimo desapontado. (RIBEIRO, 1984, p. 38)
84

Queriam mesmo os índios aqueles grandes milagres? O que é bom (benção/milagre) para
um, pode não ser bom para outro, mas essa questão somente será levantada nos modernos estudos
antropológicos, que de modo algum faziam parte da filosofia cristã de meados do XVII, época em
que se passa tal episódio. Igualmente neste trecho são citadas as imagens católicas. O pensamento
e o conjunto de símbolos cristãos falam do amor de Deus por meio de imagens em grande
sofrimento como por exemplo o Cristo Crucificado, ou corpos sangrando, corações
hemorrágicos, espinhos. Embora todos esses símbolos possuíssem sua simbologia própria na
Igreja, causaram espanto e assombro entre os índios.
Além disso, os padres narravam histórias sobre antropofagia e assim os índios procuraram
compreender “como tinham feito alguma coisa que nunca souberam que tinham feito”
(RIBEIRO, 1984, p. 42). As práticas antropofágicas não eram comuns a todas as comunidades
indígenas, mas, por associação e principalmente desconhecimento, aqueles que vinham de fora
promoviam esta generalização despropositada.
Tamanho espanto as histórias causaram que o Caboco Capiroba decide sair da aldeia,
levando consigo suas duas mulheres – bigamia, portanto; prática que também fora condenada
pelos jesuítas, um grande pecado. Porém, antes disso, C apiroba realiza o terrível ato, devorando o
próprio padre que lhes havia falado tanto sobre o abominável hábito de comer gente.
Com um estilo de narração irônica e parodística (levado-se em consideração o discurso
antropofágico do início do século XX, na expressão do nosso Modernismo), o narrador nos fala
sobre o poder de persuasão do discurso, aqui, voltando-se contra o próprio enunciador, o padre:

O caboco Capiroba então pegou um porrete que vinha alisando desde que
sumira, arrodeou por trás e achatou a cabeça do padre com precisão, logo cortando um
pouco da carne de primeira para churrasquear na brasa. O resto ele charqueou bem
charqueado em belas mantas rosadas, que estendeu num varal para pegar sol. Dos
miúdos prepararam ensopado, moqueca de miolo bem temperada na pimenta, buchada
com abóbora, espetinho de coração com aipim, farofinha de tutano, passarinha no dendê,
mocotó rico com todas as partes fortes do peritônio e sanguinho talhado, costela assada,
culhõezinhos na brasa, rinzinho amolecido no leite de coco mais mamão, iscas de fígado
no toucinho do lombo, faceira e orelhas bem salgadinhas, meninico bem dormidinho
para pegar sabor, e um pouco de lingüiça, aproveitando as tripas lavadas no limão, de
acordo com as receitas que aquele mesmo padre h avia ensinado às mulheres da Redução,
a fim de que preparassem algumas para ele. Também usaram umas sobras para isca de
siri e de peixinho de rio, sendo os bofes e as partes moles o que melhor serve, como o
caboco logo descobriu.
O padre, porém, não sustentou o caboco Capiroba e suas mulheres muito tempo,
(...) de forma que o caboco Capiroba forcejou mais e mais em caçar um ou outro branco
85

entre aqueles que a cada dia pareciam aumentar, em quantidade e qualidade, por toda a
ilha. (RIBEIRO, 1984, p. 42– 43)

Nesta emblemática passagem pode-se promover um diálogo com os antigos relatos de


Hans Staden no Brasil quando aqui estivera no século XVI e descrevera rituais antropofágicos.
Todavia, claro deixava que este ato não era um ato puramente de nutrição, ma s, como dito, um
ritual: somente aqueles ‘invasores’ que demonstrassem coragem eram considerados dignos de
serem ingeridos a fim de que suas virtudes fossem incorporadas por aqueles que comessem de
suas carnes.
No romance, numa releitura às avessas, parodística e cômica, Capiroba e sua família
ingerem um padre por não terem mais que um sagüizinho mirrado para comer naquele dia, e não
para incorporar virtudes, que aliás, neste padre pareciam nulas. Era a essa incorporação de
virtudes que aludia o “Manifesto Antropofágico” dos modernistas em nossa literatura. Mas não é
nada assim tão intelectual que move Capiroba, estimulado simplesmente pela fome e pela
‘brilhante’ idéia trazida pelos relatos desse padre. É por discursos dele que Capiroba passa a
conhecer a prática antropofágica e neste momento rende-se a ela. A partir daí, o narrador nos
cede uma enorme lista com o nome e o sobrenome dos ‘jantares’ de Capiroba e de sua família.
Até aqui, o ‘caboco’ dava-se por satisfeito com os cristãos-novos, padres portugueses,
almoxarifes, desbravadores, capitães, marinheiros... até o dia em que experimenta a carne de um
holandês e escarnece, afirmando-nos o narrador que Capiroba “chegava a ter engulhos, só de
pensar em certos portugueses e espanhóis que em outros tempos ha via comido” (RIBEIRO, 1984,
p. 44).
Neste ponto, poder-se- ia jogar com a possibilidade histórica de ter sido o Brasil
colonizado por holandeses, pensando-se que assim teríamos um presente e um futuro distintos do
que vemos. Algumas análises sobre Viva o povo brasileiro afirmam que este gosto melhor
sentido pelo caboco poderia ser a imagem do quão melhor seria para o país ter sido colonizado
por Holanda e não por Portugal.
Se assim fosse, como interpretar o seguinte discurso? – fala de uma dupla de holandeses
perdidos em território brasileiro:
86

– Sim, sim! Sim. Reforços? Bah! Reforços! Sim, outros foram deixados aqui,
como Beernaert, que agora engorda os caranguejos, como o velho van der Waals, como
Einthoven e todos os outros cujos pescoços os espanhóis cortaram ou esganaram do alto
dessas árvores malignas e imundas.
– Não, estou seguro de que vamos encontrar um contingente nosso, estou
seguro.
– Só se ele vier até nós, porque não há esperança de podermos sair desta
posição, pois de um lado teremos em nosso encalce esses selvagens nus, agora piorados
com as bruxarias que lhes ensinaram os jesuítas, e do outro encontraremos as patrulhas
espanholas...
– Portuguesas.
– Espanholas ou portuguesas ou qualquer desses bárbaros cujos sacerdotes
grelham as pessoas como patos de assar e despejam-lhes óleo fervente pelos ouvidos
adentro, essa raça vil de pele engraxada e fala como a de cães e porcos!
– Estás assim porque tens fome e não conseguiste arpoar o peixe com a tua
sovela. Ouve o que te digo, come uma destas frutas a que chamas peras, elas te farão
bem, são boas.
– Ardem-me na boca! Queimam-me os beiços e as gengivas, crispam-me a
língua e os dentes, dão-me cólicas, dão-me urinas cáusticas, maldito pedaço do inferno,
mil vezes maldito! (RIBEIRO, 1984, p. 48)

Tenho sérias dúvidas sobre as vantagens dessa hipotética colonização holandesa. Assim
também afirma o professor João Vianney Cavalcanti Nuto:

O caráter paródico da antropofagia acentua-se quando o caboco Capiroba


descobre as delícias da carne holandes a. Pode-se identificar (...) uma paródia da pretensa
superioridade de uma possível colonização holandesa no Brasil sobre a colonização
portuguesa, idéia que será defendida posteriormente por alguns personagens do romance.
(NUTO, 2000, p. 6)

Importantíssimo salientar a expressão “pretensa superioridade”. Com portugueses,


espanhóis ou franceses, seríamos, sem sombra de dúvidas, igualmente uma colônia de
exploração. O Suriname que nos diga...
Quanto à questão indígena, nos lembra Caio Prado Júnior que sob a administração do
Marquês de Pombal, houve avanços, mas apenas no que concernia à utilização dos nativos para
fins clericais (evangelização) e povoamento. Mas ressalta que “Continuavam, apesar das leis que
procuravam equipará- los aos demais colonos, uma raça bastarda; e como tal, alvo do descaso e
prepotência da raça dominadora” (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 95).
87

Agora vivendo longe de sua aldeia de origem, Capiroba passa a ter uma criação de
holandeses, como se fossem gado. Mas esta acaba não sendo a única utilidade: uma das filhas de
Capiroba, Vu, envolve-se com o holandês Zernike, aumentando a descendência do caboco
Capiroba, fazendo desta uma família cada vez mais miscigenada. Assim, o clã do caboco encerra
variadas vertentes de miscigenação do povo brasileiro, englobando índios, negros e brancos –
base de nossa mistura.
Todavia, a aparente harmonia é quebrada. Capiroba e sua família são capturados como
seres exóticos e perigosos comedores de gente. Suas mulheres e filhas são “acolhidas
caridosamente como escravas” (RIBEIRO, 1984, p. 55) e o caboco Capiroba é sumariamente
enforcado.
Os anos se passam e, já no século XIX, a próxima descendente de Capiroba com quem
temos contato depois dessa dilaceração de seu núcleo familiar é Dadinha. Escrava centenária da
Ilha de Itaparica, é apresentada a nós, leitores, em uma reunião na qual, sabendo que vai morrer,
conta aos demais escravos tudo o que sabe, desde segredos de ervas e santos até a história de seus
ancestrais.
Dadinha sabe que é neta de Vu, mas praticamente desconhece seus pais, sabendo apenas
que seu pai era um negro de olhos claros (o filho de Vu e Zernike) e que tiveram uma trajetória
como a da primeira geração de Capiroba: a separação. A separação, assim como a mistura entre
diferentes tribos de África, era prática comum para evitar-se a comunicação. Mas no século XIX,
essa barreira lingüística era bem menos densa, ao passo que o desmembramento de núcleos
familiares era prática constante.
Todavia, mesmo em meio às dificuldades impostas, o repasse da tradição oral entre os
negros de nossas senzalas acontecia e é em uma cena assim que nos deparamos nas páginas de
Viva o povo brasileiro com Dadinha. Neste trecho da obra, é como se o narrador cedesse espaço à
voz e à consciência da personagem, dando a ela uma liberdade total de expressão. Dadinha toma
a palavra e a narração permite-se revelar seus posicionamentos, seu pensamento, sua linguagem,
sua crença:

– Ora, ora – falou. – O cem anos é meu, quem vai morrer é eu, quer dizer que só
quem pode achar a graça é eu, que é eu que sei, ninguém mais aqui sabe. Cada qual que
faça por onde poder chegar no seu cem anos e poder achar graça na hora de morrer, só
pode quem tem direito. Depois que eu morrer, tem que chorar um pouco, o certo é esse,
88

porém eu posso rir. Agora mesmo, que estava fresco, eu quis quentar o vento e quentei,
por isso que me queixei da quentura e dei risada. Mas não é só isso que é engraçado,
embora por aí a pessoa que sabe possa tirar tudo, porém só sabendo. Quem vai morrer é
eu, só quem pode rir é eu.

(...)

– Eu vou ter de contar isso que já contei a um, já contei a outro, um pedaço
aqui, outro acolá – disse ela, respirando fundo e abrindo os olhos. – Por isso mesmo,
para não ser tudo musturado e ninguém se lembrar coisa com coisa logo depois que eu
morrer, que eu vou contar o importante, respondo pregunta, digo preceito. (RIBEIRO,
1984, p. 71–72)

Nesses dois trechos selecionados, a linguagem de Dadinha, a sua forma de usar a língua é
extremamente particular, não havendo nenhuma possibilidade de confundirmos essa voz com a
voz do narrador do romance. Pode-se perceber também como Dadinha é, entre os seus, alguém
cujo discurso é ouvido, recebido, considerado, repleto de credibilidade.
Como a negra mais velha, é respeitada por todos, em um respeito que em nossa sociedade
atual pouco vemos: o mais velho é aquele que carrega consigo mais do que a sabedoria, o
conhecimento. Por isso seu discurso pôde até mesmo parecer mais carregado de uma certa
rigidez, mas a Gangana8 Dadinha sabia que precisava se impor naquele momento para ter a
atenção de todos, para lhes passar todo o conhecimento acumulado ao longo dos anos. E aí vemos
mais um detalhe relevante: desta maneira, nenhum segredo ou saber morrem junto com Dadinha,
mas ganham a oportunidade de perpetuarem-se por meio da linguagem oral, do discurso
repassado através das gerações. Dadinha acumulara saberes que agora viverão dentro da memória
de cada um que ali ouve suas palavras. A memória sobrevive ao tempo, na perpetuação dos
discursos.
Escrava de Perilo Ambrósio, Dadinha fala da mistura entre a tradição das religiões de
origem africana com o catolicismo. Enumera os santos católicos e seus correspondentes – forma
encontrada para burlar a proibição dessas religiões –, assim como diz qual a especialidade do
santo, os tipos de pedidos que devem ser encaminhados a cada um. Aqui Dadinha relata uma
parte do sincretismo religioso brasileiro, a mistura dos santos e orações católicos com os galhos
de plantas, banhos de cheiro, ariaxé, fogo, incenso, curas e curandeiras.

8
Etimologia: do quimbundo ngana = senhora, mulher idosa. Em Língua Portuguesa, tomou conotação afetiva,
embora possa também significar velha bruxa.
89

Na voz de Dadinha, percebe-se o respeito pelos elementos da natureza, tendo até mesmo
a lua nova recebido pronome de tratamento respeitoso: dona, Dona Catiti. Esta é uma voz e a
expressão de um comportamento destoante da voz autoritária e oficial da Igreja. Todavia, a
assimilação dos elementos da cultura cristã não pode apenas ser compreendida como aculturação,
aqui tida como mudança na cultura de um grupo social por imposição de outro. Apesar da
violência com a qual essas culturas foram acometidas, o dominado não apagou suas origens. Ao
sair de África, dar as voltas em torno da ‘árvore do esquecimento’ não trouxe (felizmente)
qualquer resultado. Houve mudanças, sim, ao chegarem ao Brasil, porém o contato com culturas
diferentes residentes ou nativas da América somaram elementos – mesmo que isso tenha
acontecido à força como no referido caso da Religião Cristã.
Mas, ao contrário, como se vê até a última página do romance é a classe dominante
brasileira que está mais próxima da aculturação, posto que repetem modelos europeus muitas
vezes inadequados ao clima local ou a outros fatores gerais, como vimos no estranho desjejum de
Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, ou ainda como se pode notar nos vestidos longos e
cheios de saias e mais saias nas mocinhas e senhoras das famílias aristocráticas. Para a elite, o
melhor é o estrangeiro e seus padrões deveriam ser copiados, ou, literalmente, como nos afirma a
elite no romance: “transplantados”.
Observando o outro lado, assim como fizeram portugueses, espanhóis, holandeses ou
quaisquer outros exploradores europeus, os povos de África também trouxeram consigo suas
culturas. Por muito tempo, as influências negras tentaram ser abafadas, uma vez que o negro não
era considerado membro constitutivo da nação, era apenas a força de trabalho. A personagem
Dadinha nos fala dessa distância, pois mesmo gozando de respeito entre os seus, afirma ter medo
do seu senhor, o Barão de Pirapuama, a quem criara desde jovem. A mesma deferência que
recebe em seu grupo social não se repete fora desse grupo.
O mesmo se passou com seu pai. Mesmo sem conhecê-lo soubera que seu trabalho era
carregar as barricas de dejetos para fora da casa-grande. Dadinha afirma que seu pai não morrera
em decorrência do esforço de carregar o peso das barricas, mas de vergonha. Trabalhos
humilhantes e insalubres eram (são?) de praxe. E assim esta espécie de matriarca passava as
histórias que sabia, o conhecimento que possuía, sem esconder nem mesmo as muitas partes ruins
desta história.
90

E assim, o narrador do romance apresentou Dadinha e seu discurso, ambos em seus perfis
particulares. Neste espaço, ela falou sobre sua ancestralidade, sobre a caça das baleias no
Recôncavo (até então atividade mais lucrativa do barão) e sobre suas crenças. Neste ponto é
interessante observar que não é apenas Dadinha quem fala. Segundo sua religião, Dadinha é
também o ‘cavalo’ do caboclo Sinique, Zernike pronunciado de acordo com a forma com
entenderam seu nome. Neste momento de transe, Sinique fala por Dadinha, contando mais sobre
o passado. Deixando-se de lado por um momento toda a intrincadíssima questão da crença
religiosa, no âmbito do discurso esse fenômeno é muito interessante: pela incorporação, pessoas
do século XIX tiveram a oportunidade de ouvir sobre o século XVII por meio do discurso de um
contemporâneo deste passado distante. Esta é mais uma das formas de transmissão de
conhecimento explorada no romance e oriunda das práticas religiosas dos povos negros da ilha –
utilizada livremente e em plena coerência com a proposta de apresentação das várias faces das
histórias que são narradas, até mesmo aquelas que surgem do cerne das crenças religiosas e,
como discurso, possuem existência real.
Outra descendente de Capiroba que terá fundamental importância e da qual já se falou
brevemente é Vevé, ou Venância, ou Daê, ou Naê. Seja por qual nome for chamada, esta
personagem mostra mais um lado da miscigenação: a violência. Como dissemos, Venância,
escrava de Perilo Ambrósio, é vítima de estupro realizado por seu senhor – se bem que assim
dizendo, corro o risco de cometer um anacronismo, uma vez que o senhor tem a posse de seu
escravo e dele podia dispor da maneira como bem entendesse, inclusive sexualmente; mas aqui
falo “vítima” olhando pelo ponto de vista de Venância, de quem se vê obrigado a fazer algo
contra sua vontade. Desta violência nascerá uma das figuras mais simbólicas do romance: Maria
da Fé.
Filha de Turíbio Cafubá, neta de Dadinha, Vevé nasce com um sinal, com “estrela na
testa” e em seu nascimento faz a gangana chorar, embora normalmente não o fizesse.

Dadinha, de olhos abertos no escuro, pensou que certamente não veria nada do
que ia suceder com a menina, pois que morreria aos cem anos, sempre soubera. Mas
aquela filha mais nova de seu filho mais novo e temporão tinha um destino forte, isto se
podendo pressentir na treva pesada da senzala. (RIBEIRO, 1984, p. 100)
91

E assim Dadinha nos adianta a trajetória da mãe de Maria da Fé, cujo nome, Venância,
traz em si mesmo uma sorte dupla: a ventura, que ao mesmo tempo em que alude à sorte feliz,
também aponta para riscos e perigos; além de significar também ‘caçadora’, alguém que
enfrentará desafios. Aqui já sabemos do estupro, mas isso não é tudo na vida desta mulher de
muitos nomes e muitas sortes. Turíbio, seu pai, é pescador e sonha poder levar Daê consigo ao
mar, mas sabe que poucos filhos ficam junto dos pais, pois são vendidos como escravos muito
cedo, e os que ficam na fazenda pertencem ao senhor. Todavia, sonha poder ensinar à filha o
ofício de pescadora (raridade entre mulheres), mostrando-lhe que “o pescador nunca acaba de
aprender” (RIBEIRO, 1984, p. 98).
Mas sim: Daê fica nas terras do senhor barão. E é com o pai que Daê aprende muito mais
que o ofício da pesca. Filho de um ícone da memória da Ilha, Turíbio trata da educação desta
filha de modo muito particular:

Muitas coisas sabe quem pesca, coisas que não se pode contar, só pescando.
Muito bem, esse pai negro fumbambento dá a mão à filha e conversam longas prosas, em
que o pai se mostra mais sabido e mais qualquer coisa boa que os outros, sendo isto
necessário para todo pai e muito mais para o pai que é escravo e, portanto, precisa de
todo pedaço de orgulho que possa catar. (RIBEIRO, 1984, p. 98)

E a filha será sensível a este orgulho. Não cederá aos desejos quase adolescentes de
Amleto Ferreira, nem deixará de lutar depois de ser estuprada por Perilo Ambrósio. Venância
compreende a gravidade da situação dos negros e assim aproveitará ao máximo os ensinamentos
do pai.
Como vimos, logo depo is do estupro, Vevé sai da propriedade agora como mercadoria nas
mãos de Leovigildo. Leléu negocia mulheres a serem vendidas como prostitutas ou serviçais aos
fazendeiros e outros homens ricos da região do Recôncavo Baiano. Todavia recebe Vevé já
grávida do barão. Desapontado e temendo prejuízos com a escrava e o filho, Leléu pergunta a
Vevé o que ela sabe fazer e prontamente recebe a resposta: pescar. E desta forma, Leovigildo fica
com Vevé e com a criança. Em 29 de fevereiro de 1836 nasce Maria da Fé.
92

5.3. Maria da Fé

Por conta desta data inusitada, 29 de fevereiro, a personagem já começa a ser envolvida
por uma nuvem de mistério e misticismo: ver repetida sua data de nascimento apenas de quatro
em quatro anos será um dos motivos ao qual o povo atrib uirá sua vitalidade e sua força na luta
que irá abraçar e sua aparência sempre jovem mesmo com o passar dos anos. Supostamente, Dafé
faria menos aniversários que as outras pessoas.
Leléu, como visto, é um negro que pertence a um entrelugar: negro na cor, porém, já
tendo adquirido sua carta de alforria, não é mais escravo, mas também não é e nem nunca será
senhor. Em sua escolha, observando todos os percalços e humilhações por que passam os negros,
Leléu assume uma postura e alguns pensamentos típicos do dominador. A palavra de autoridade,
aquele discurso que quer se impor sobre demais discursos, advindos da elite, ganham espaço no
modo de vida de Nego Leléu:

(...) nós somos o povo desta terra, o povinho. É o que nós somos, o povinho.
Então te lembra dis to, bota isto bem dentro da cabeça: nós somos o povinho! E povinho
não é nada, povinho não é coisa nenhuma, me diz onde é que tu já viu povo ter
importância? Ainda mais preto? Olha a realidade, veja a realidade! Esta terra é dos
donos, dos senhores, dos ricos, dos poderosos, e o que a gente tem de fazer é se dar bem
com eles, é tirar o proveito que puder, é se torcer para lá e para cá, é trabalhar e ser
sabido, é compreender que certas coisas que não parecem trabalho são trabalho, essa é
que é a vida do pobre, minha filha, não te iluda. E, com sorte e muito trabalho, a pessoa
sobe na vida, melhora um pouco de situação, mas povo é povo, senhor é senhor! Senhor
é povo? Vai perguntar a um se ele é povo! Se fosse povo, não era senhor. (RIBEIRO,
1984, p. 373)

Assim podemos notar que Leléu não é a favor dos senhores, mas compreende a sociedade
como um lugar onde há espaços de privilegiados e de não-privilegiados. É deste segundo grupo
que Leléu tentará retirar a ‘neta’ – tentativa que será totalmente malograda, não por falta de
esforços seus, mas pelos caminhos escolhidos pela própria menina.
Quando criança, Nego Leléu proporciona à jovem Dafé a oportunidade de freqüentar os
bancos escolares. Para isso, a matriculou na escola de Dona Jesuína, mãe de Amleto Ferreira,
mulher que igualmente conhece os lugares sociais e que também procurará fazer com que Maria
da Fé saia do grupo referente aos escravos, aos negros, ao povinho, numa associação entre esses
93

estudos e um bom casamento, encontrando “um rapaz de sua raça, ou até mais claro, para ir
melhorando” (RIBEIRO, 1984, p. 285). Todavia, os estudos provocarão uma outra mudança na
menina: a busca constante pelo saber, saber sempre mais. Maria da Fé, antes de se tornar a
‘guerreira’ ou ‘justiceira’ do povo, assumirá uma postura perscrutadora, atrás dos conhecimentos
do mundo. Ela observa um problema, lança suas hipóteses e projeta as possíveis soluções, assim
como observa as diversas maneiras de ser das mais diferentes pessoas que estão à sua volta.
Logo depois de encerrar os estudos na pequena escola de Dona Jesuína, Dafé volta a viver
com seu avô (de consideração) e, ao observar as pessoas da ilha, surge em sua cabeça uma série
de perguntas sobre a vida daquelas pessoas. Ao chegar cheia de sonhos sugestionados pelo
discurso no mínimo deslocado de um universo de príncipes e princesas de livros europeus lidos
na escola, Leovigildo afirma que esta não é a vida que ela verá: para ele e para todos ali, a vida é
trabalho. Desta forma, Dafé começará a fazer a diferenciação entre o discurso romântico dos
livros que lera e a realidade do local em que mora. Diante da bifurcação, Dafé escolhe viver a
realidade que se põe diante de seus olhos: a realidade do trabalho.
Esta sua posição entrará em choque com os planos que Leléu havia traçado para o futuro
de Dafé, um futuro bem tradicional e comum às mulheres da época, como reprodução de moldes
burgueses: casar, cuidar da casa e do marido, fazer trabalhos manuais como corte e costura e ter
filhos, muitos filhos. Todavia, fiel à sua escolha e a seus desejos, Dafé decide montar sua
primeira escola, trabalhar e repassar boa parte do que aprendeu. Mas se pergunta: quem seriam os
alunos? Todos.
Maria da Fé queria ter contato com a ciência e com os conhecimentos em cada um
daqueles trabalhos que presenciava na ilha e sonhava em poder somar suas experiências com as
experiências daquelas pessoas. E também se admirava ao ver a mãe em um barco, comandando a
pesca. Mas será exatamente neste mesmo dia em que Dafé terá contato com a maravilha do
mundo dos trabalhos que também conhecerá parte do lado perverso dos homens. Recém saída da
escola que tanto a protegera e mostrara histórias de príncipes e princesas felizes para sempre há o
choque: Maria da Fé presencia o assassinato de sua mãe por um grupo de rapazes brancos. A
partir daí, a moça que se fascinou com o mundo, perde o viço, o ânimo pela vida.
Tempos depois, logo após observar a caça da baleia toadeira, Maria da Fé faz algumas
reflexões, notando que mesmo ferida pelos arpões, este gigante dos ma res ainda tem força, e luta
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contra o agressor, contra o assassino, contra a morte. Para Maria da Fé, esta devia ser a força e a
valentia do oprimido, que surgem quando todos pensam que ele já está vencido.
Explicando o porquê de sua mudança de comportamento, Dafé fala da dor de ter
presenciado o assassinato da mãe e, quando surge a oportunidade, a menina mostra a Leléu quem
foram os assassinos e imediatamente ele arma um plano que dá cabo da vida dos rapazes que
destruíram a vida de Venância. Assim, pensando em vingar a morte de Vevé, esperava que Maria
da Fé ficasse satisfeita e novamente voltasse a sorrir, voltasse a ter vontade de viver. Todavia não
foi o que se deu. Em reação contrária à esperada, Maria da Fé afirma que essa atitude de nada
valeu se aque les morreram sem terem sabido a causa.
Correr o mundo em busca de mudança: é assim que Maria da Fé fundamenta o motivo de
sua partida para percorrer o interior do país, na busca por aquilo que ela entende como justiça.
Aos poucos, ela reúne outras pessoas que compartilham também deste ideal. Se aqueles homens
que assassinaram sua mãe morreram, deviam saber o porquê disso para servirem de exemplo, a
fim de que o ato não se repetisse: apenas matar, ou seja, responder com a mesma moeda de
violência gratuita, não resolveria o problema e nem lhe minimizaria o sofrimento.
Paulatinamente, ela começa a reunir diversas pessoas e repassa-lhes seu plano para atingir esta
tão sonhada justiça – e aqui não apenas tratando do seu problema pessoal, mas da questão dos
excluídos e do “povinho”.
Dentre eles, encontram-se aqueles que, a seu modo, lutaram também contra a tirania,
unindo-se assim a Zé Pinto, Feliciano, Merinha e Budião, os ex-escravos que arquitetaram a
morte de Perilo Ambrósio, representante dos opressores e da elite rural. Por meio de seus
discursos, por meio de suas visões da história, eles contaram sobre os anos de dificuldades e
trabalho não reconhecido, mas principalmente sobre uma realidade com que até então a jovem
Dafé não tivera contato: castigos e violê ncias da escravidão. Por meio de uma linguagem de
sinais bem particular, Feliciano, o escravo de Perilo Ambrósio que tivera a língua cortada no
episódio da falsa participação do futuro barão nas batalhas de Independência, narra a sua versão
da história sobre o homem nobre que fingira ter dado seu sangue pela nação. Ao saber disso, a
busca de Maria da Fé por justiça e por fazer valer a voz dessa gente, na qual ela mesma se inclui,
é alimentada.
O século XIX é o de maior peso na trama de Viva o povo brasileiro, e desta forma
promove-se análises mais profundas de agitações secretas, e também explícitas, que ocorreram
95

neste período. O romance exige que seus leitores busquem em sua própria memória esse rol de
acontecimentos e as versões com que teve contato para que as relacione com o que é narrado na
obra. Por meio desse diálogo que promovemos entre o já sabido e as versões agora apresentadas,
lembrando- nos de que o discurso do romance parte dessa realidade (ou seja, não surge do nada,
por inspiração de musas) e nela o autor trabalha como convém, abrindo-se a possibilidade de
compreendermos porque determinadas atitudes são empregadas e porque há tamanha disparidade
entre os pensamentos e os universos apresentados – e neste exercício, obviamente, colocar- nos-
emos mais próximos ou mais distantes desta ou daquela personagem. Como leitores, tomaremos
partido e assim nos posicionaremos diante da matéria narrada.
No caso de Maria da Fé, as opiniões entre os críticos se dividem, mas para compreender
as causas de repulsa ou de respeito a esta personagem, analisêmo- la mais a fundo.
Nas reflexões de Maria da Fé, a personagem procura compreender o sistema social com
que tem contato. Para isso, uma de suas primeiras e elementares constatações é que o “mundo é
cheio de modos de ser” (RIBEIRO, 1984, p. 378). Acreditando nas possibilidades do seu modo
de ver o mundo, Maria da Fé, já em suas andanças pelo sertão, forma um grupo, tendo ao lado
pessoas que também procuram justiça e uma vida mais digna, sem explorações. Formam-se assim
os “Milicianos do Povo”. Como uma espécie de Robin Hood do sertão, Maria da Fé toma de
assalto os recursos da Coletoria de Impostos, apresenta o material tomado ao coletor numa atitude
ousada, mas com o intuito de que este saiba o que será feito com o dinheiro: redistribuição do
montante recolhido ao povo. Em prol desta sua justiça, Maria da Fé comete um delito para assim
promover ela mesma a redistribuição da soma arrecadada em impostos. Heroína para uns,
bandida para outros.
Ainda fiel a seu ideal da juventude, Maria da Fé espalha escolas pelo interior do país.
Nestas escolas, não apenas são ensinadas as primeiras letras, mas também há um projeto mais
inovador: tendo em mente as palavras de Leléu sobre o “povinho”, Maria da Fé procura incutir
em seus alunos o orgulho de serem quem são, abrindo, assim, a possibilidade de mudanças no
pensamento que fizeram ter sobre si mesmos, de que seriam o rebotalho da nação. Mas...

(...) logo ela percebeu que a luta era por demais desigual e ia continuar a ser,
enquanto não conseguisse mostrar a todo mundo, a todo povo que padece da tirania do
poderoso, que é preciso que todos lutem, cada qual de seu jeito, para trazer a liberdade e
a justiça. E então, além de lutar, passou a ensinar, tendo feito muitas escolas do povo no
96

meio dos matos de diversas regiões, onde punha seus professores e de vez em quando
aparecia para ministrar aulas, começando sempre cada lição com a seguinte frase:
“Agora eu vou ensinar vocês a ter orgulho de ser preto, com todas as coisas da pretidão,
do cabelo à fala”. Ao índio ela ensinou a mesma coisa. Ao povo, a mesma coisa, bem
como que o povo é que é o dono do Brasil. (RIBEIRO, 1984, p. 519)

Importante ressaltar aqui que com esta atitude, a personagem de Maria da Fé opõe-se
claramente a Amleto Ferreira, que tanto renegara suas origens. Contra atitudes como essa e como
a de Nego Leléu, descrentes da mudança para melhor, ela procurará transformar este estado de
coisas e reconhece a educação, não apenas a educação formal, mas o estudo, valorização e
preservação da cultura como principais bandeiras. Costuma -se associar a figura de Maria da Fé
ao conceito a que hoje chamamos “negritude”, termo pela primeira vez utilizado por Aimé
Césaire, em 1938, no seu livro de poemas, "Cahier d'un retour au pays natal" e que está
intimamente relacionado ao conjunto dos valores culturais ligados ao universo negro,
independentemente do local em que este negro esteja, uma vez que cada um seria portador
incondicional desses valores.
Esta colocação para a personagem de Maria da Fé não está totalmente incorreta, mas
incompleta. Como se pode ver no trecho acima, ela se preocupa com todos aqueles que foram
aviltados e renegados em sociedades desiguais, baseadas em regimes excludentes. Por isso, os
índios engrossam também esse grupo.
Além da valorização da memória desta parcela da população, esta personagem trabalha
um dos pontos principais dos estudos aqui propostos: o direito à fala, a apresentação destes novos
(ou simplesmente outros) sujeitos discursivos. Estes não eram ouvidos antes, mas, uma vez que
somente assumem sua posição de sujeitos do discurso, passam a figurar como tais construindo-se
como sujeitos de sociedade, assumindo posicionamentos, dialogando. Assim, é possível também
discutir como se dá esta construção social e como se processou esta mudança.
Conforme vimos no exemplo de Nego Leléu, seu discurso está carregado de ideologias
nele inculcadas pela classe dominante, posicionamentos repletos de preconceitos. Sujeito
construído socialmente, Leléu assimilou o pensamento difundido pelo dominador. Esta forma de
dominação, pelo discurso, sempre fora fundamental à elite para que seus interesses se
mantivessem intactos: a manutenção desse estado de coisas era essencial para a manutenção do
sistema de exploração.
97

Maria da Fé, por meio da disseminação do raciocínio crítico em suas escolas, agirá em
prol da valorização da cultura, das particularidades das etnias, difundindo ideais de orgulho:
conhecer e reconhecer para valorizar. Desta maneira, difundirá o discurso do tal “populacho” de
que fala a elite. Mas, mesmo sendo essa heroína tida como tão valorosa, por que esta é a
personagem que mais divide opiniões entre os críticos deste romance?
Espécie de Zumbi dos Palmares, Maria da Fé é vista pelos membros da elite como
desordeira e bandida. Ao recolher-se para o interior, procura reunir negros e índios a fim de
promover o resgate das tradições, a revitalização de costumes, dos dados culturais, lingüísticos e
da validação de sua visão de mundo. Como afirma a professora Zilá Bernd, pode-se observar
assim dois pólos antagônicos, especialmente no que se refere ao posicionamento ideológico e o
trato com o discurso:

(...) em torno da heroína, gravitam valores altamente positivos como a


preocupação com a memória coletiva, o elogio do trabalho e da morte digna, o espírito
de revolta e de luta contra a opressão, enquanto, em torno das elites, circulam valores
negativos como a falsidade, a corrupção, a mentalidade colonizada, a alienação cultural e
a morte indigna. (BERND, 1992, p. 62)

Desta maneira, como sintetiza o filho de Maria da Fé, Lourenço, a camada da população
antes aviltada e alijada não busca igualdade de condições com a elite pois tem dela o seu pior e
não pretende ser como ela, defende-se apenas um espaço resp eitável na sociedade. Em torno
desta atmosfera de tantas virtudes, muitas vezes a personagem de Maria da Fé aparece como um
ser místico, acima do comum, portadora até mesmo de certo grau de messianismo para aqueles a
quem ela, de certa forma, guia. Mostraria essa tendência talvez um certo grau de
descontentamento com o aquilo que de palpável o mundo apresenta? Daí a figura de uma
personagem que reuniria tantas virtudes?
Maria da Fé é a personagem que reconhece que o mundo está ruim e assume a
responsabilidade de melhorá-lo, por mais restrito que seja seu campo de atuação. Ela sabe que
para mudar o todo, deve mudar primeiramente o que está mais próximo de si: daí a criação de
suas escolas.
Mas essas escolas não tinham vida longa.
98

(...) ela passou a ser cada vez mais odiada e sempre descobriam onde havia uma
escola dela, enforcavam professores, punham no tronco os alunos, amaldiçoavam os
lugares e faziam tudo para destruir o que ela construía. Ela vivia se escondendo do
Exército, que é a pior e a mais poderosa polícia de todas. Mas o povo gostava dela e a
toda parte que ela fosse tinha lugar para se esconder e ninguém informava aos forasteiros
onde ela estava escondida, tendo muitos que ela fosse uma santa em toda sua pura
beleza. (RIBEIRO, 1984, p. 519)

No mundo da elite, não interessava que o povo difundisse seus saberes, que tomasse
consciência de si. Nas relações de poder, quem está no poder jamais quer dividi- lo com outros.
Alguém que procurasse mudar a ordem estabelecida deveria ter suas ações abafadas. Maria da Fé
é como alguém que pensa em uma possibilidade de mudança e age para que essa mudança
aconteça, deixando de lado a vida tranqüila que o avô sonhara que pudesse lhe proporcionar e
pela associação de acontecimentos inventariados anteriormente, a menina “parecendo quase
branca de tanto trato” (RIBEIRO, 1984, p. 370) abandona tudo em prol do coletivo.
Em contraposição a tantos falsos heróis em cujas histórias acreditou-se, Maria da Fé
parece ser a heroína que de tão perfeita parece falsa: “sempre querem pensar que eu não existo”
(RIBEIRO, 1984, p. 566). Assim nos parece que às elites, é melhor não cogitar na existência de
alguém que reúna tantas qualidades e que abandone sua família e seu lugar em busca de
melhorias para todos; melhor não pensar em alguém que olhe para o povo e o faça pensar sobre si
mesmo, sobre sua condição, sobre sua história, mas principalmente, que o faça questionar o poder
que os subjuga a todo o tempo: contra um destino que pareceria inevitável, Maria da Fé procura
fazer com que o povo, depreciado sempre, reúna as razões de sua própria existência.
Verossímil ou não, a causa parece louvável.
99

5.4. Patrício Macário

A personagem que será foco das atenções agora é Patrício Macário. Este é o filho mais
jovem de Amleto Ferreira e que será um sinônimo de perigo, uma vez que é o filho que traz
consigo as marcas físicas da miscigenação, ou seja, das origens desta poderosa família. Mas no
romance, mesmo desconhecendo esta origem, Macário será a mistura de dois mundos,
exata mente no caminho inverso ao trilhado pelo pai.
Viva o povo brasileiro é uma obra na qual convergem vários discursos sobre a história do
Brasil, mesclando-se a tradição escrita e o conhecimento depositado na memória pela oralidade.
Patrício Macário será a personagem que em si mesma concentrará esses planos diversos e para
que se compreenda exatamente esta convergência, nada mais elucidativo que analisar sua
trajetória ao longo do romance.
Logo em suas primeiras aparições, Macário é representado como um membro da elite que
aí parece estar aparentemente mal colocado, deslocado. Essa sensação nos é dada pela relação
conflituosa entre ele e o pai, que constantemente o repreende e hostiliza no ambiente familiar.
Amleto declara ser este seu filho o que possui aparência desagradável, mas assim o faz por serem
esses os traços que mais lhe interessam ver: os traços negros, que denunciariam sua farsa. Sem
dúvida alguma, dentre os temores secretos de Amleto Ferreira, Patrício Macário era, para ele e
para sua fortuna construída sob o signo da fraude, dos mais perigosos, além de ser ele o único de
seus quatro filhos a questionar o poder de Amleto desfrutado geralmente sob a forma de
excessiva violência contra tudo e contra todos.
Todos os dias Amleto recomendava ao rapaz uma técnica para afinar o nariz:

(...) cuspe em jejum: umedecer o cata-piolhos e o fura-bolos na língua e


massagear o nariz no sentido do afilamento. O nariz de Carlota Borroméia estava longe
de ser simiesco como o de Patrício Macário, de forma que bastou o tratamento que lhe
deram quando ainda era neném. Ele não, ele teria precisado continuar durante muito
tempo, mas não havia meio nem castigo capaz de fazer com que se lembrasse de uma
providência tão elementar. Aliás, não havia castigo capaz de obrigá-lo a fazer qualquer
coisa, esta é que era a verdade. (RIBEIRO, 1984, p. 322)
100

Representando um ponto frágil da fraude, Amleto decide manter esse filho sempre o mais
longe possível de si. A decisão tomada é, pois, mandá- lo para o Exército. Com esta medida,
Amleto manteria Patrício Macário longe de sua vida e de seus negócios, assim como,
supostamente seria o Exército a instituição que lhe traria a disciplina que, segundo o pai, lhe
faltava.
Ainda mais um detalhe se escondia por traz desta decisão. À época em que se passa essa
parte da narrativa, exatamente na metade do século XIX, o Exército não era das mais respeitadas
instituições nacionais.

– Mas, dizia eu que a decisão, inclusive depois de ouvir as sugestões dos


presentes, que considero ajuizadas, construtivas e criteriosas, é definitivamente a farda.
Sei das terríveis conseqüências disto, até mesmo para o bom nome da família. O
Exército não é uma ocupação honrosa, nem digna de um homem de bem, é coisa do
rebotalho da Nação, como se nota, diante dos nossos olhos, a cada instante. Nem mesmo
a sua função policial é cumprida a contento, pois que mais se amotinam os soldados do
que qualquer outra coisa, um bando de desordeiros maltrapilhos recrutados à força ou
vendidos por quaisquer cinco mil-réis pelos agentes recrutadores, batalhões de libertos
desqualificados, escravos fugidos e estrangeiros de má procedência. Entre o oficialato
mesmo, não se conhece um que proceda de família ilustre ou renomada, eis que nenhum
aristocrata aceitará farda na família. Mas há casos extremos e, para males extremos,
remédios extremos. A única maneira de evitar um destino trágico para esse rapaz
desmiolado é pô-lo na farda, pois que terá seus desmandos corrigidos à força da espada
de prancha no lombo ou dos carrinhos de correntes atados aos pés, que é como no
Exército tratam o seu vasto contingente de rufiões e baderneiros. (RIBEIRO,1984, p.
336)

Assim, Amleto colocava Patrício Macário em um lugar ao qual achava que aquele filho
maldito pertenceria: entre o rebotalho da nação. Desta forma, o Exército era mais um castigo
imposto àquele que trazia consigo a marca da ascendência negra na família; além de retirá-lo do
seio familiar.
Até que esta decisão fosse tomada, o mais novo dos Ferreira-Dutton, devido a tantas
manifestações de desprezo, comportava-se como um jovem embrutecido e insubordinado. Porém,
depois de uma temporada no Exército, Macário passa a ser admirado pelo pai: transforma -se em
homem sedento pelo poder e é designado a uma missão especial que muito agradou a Amleto:
perseguir e liquidar a “bandida” (RIBEIRO, 1984, p. 366) Maria da Fé – e será exatamente por
101

conta desta missão que mais uma mudança se dará em Patrício Macário. Mas antes desta nova
mudança, Macário procurará cumprir à risca a tarefa designada.
Neste ponto, mais uma vez, como ao longo de todo o romance, a noção de ‘povo’ será
discutida. Quando percorre o país em busca de Maria da Fé e de seu bando, Macário acredita
piamente estar protegendo o povo brasileiro contra a bandida que leva terror e violência por onde
passa. Ao menos essa era a informação que lhe haviam passado e na qual cria cegamente. Quanto
a isso, importante analisar a passagem que abaixo transcrevo do momento em que Macário parte
com suas tropas:

– Homens! Não estão sobre nós os olhos da Pátria, pois é de combates obscuros
e esquecidos como o que nos espera que se faz o alicerce de uma nação. Antes que
desdouro, tal circunstância é galardão, pois que ao soldado não cabe perguntar, senão
cumprir! E não cabe buscar o reconhecimento, senão o da própria consciência, que há de
refletir a devoção incondicional à Pátria! Somos o Exército de Sua Majestade Imperial
em missão de policiamento e pacificação, contra inimigos da ordem e da unidade
nacional, contra os inimigos do povo brasileiro! (RIBEIRO, 1984, p. 387)

Neste trecho pode-se claramente ressaltar alguns aspectos básicos desta primeira mudança
de Patrício Macário. Se antes era rapaz rebelde em casa, que contestava os poderes e atitudes
violentas do pai, se condenava o casamento por interesse da irmã, se reparava nos seminaristas
com quem o irmão Monsenhor Clemente André dormia ou se criticava a alienação do outro
irmão, Bonifácio Odulfo, um poeta beberrão e sem talento, Macário agora seguia ordens sem
discussões.
Além dessa mudança muitíssimo significativa na personalidade de Macário, outro ponto
deve ser também observado: será que Macário sabia que povo estava protegendo se destruísse o
bando de Maria da Fé? De que povo Macário fala (ou pensa que fala)?
Segundo sua atitude passiva diante das ordens que lhe são passadas, pode-se concluir que
Macário, à frente do Exército e com todo o fervor com que protegia a Majestade, defendia neste
momento, as elites. Já Maria da Fé parecia causar extrema desordem por desestabilizar o sistema
instituído por esses grupos dominantes. Ao enviar o Exército para combater Maria da Fé e Os
Milicianos do Povo, império e elite não entravam em choque direto, não pegavam em armas e por
102

isso não se expunham diretamente à luta: era aquele “rebotalho” que se colocaria na frente de
batalha.
Desta maneira, as elites articulavam as peças desse jogo como bem queriam, com a força
de seu poder, de sua influência, de suas fortunas e de seus discursos. Suas falas foram articuladas
de modo a controlar o pensamento das tropas: liquidar o bando de Maria da Fé a fim de pacificar
a nação. Como não lhes cabe questionar, e entendemos aí por extensão também não pensar,
jamais poderiam os membros do Exército compreender que defendiam não o país, mas uma parte
do país, os interesses dos proprietários rurais e outros donos de fortunas que eram abaladas por
essa mistura de Robin Hood, Antônio Conselheiro e Zumbi dos Palmares.
Patrício Macário fora criado segundo a educação formal dos livros, em meio aos valores
dessa elite em uma família rica, melhor explicitando: enriquecida pelas sucessivas fraudes de seu
pai, passando de dono de terras a poderoso banqueiro. Mesmo sentindo-se hostilizado durante
toda a sua juventude, esta fora a sociedade que conhecera. Embora vacilante durante esse perío do
que antecedeu o Exército, estaria em pouco tempo plenamente integrado e até mesmo
trabalhando para reforço desses valores. Ao perseguir Maria da Fé, nada mais fazia além de
defender, sem contestações, os interesses dessa elite a que sua família pertenc ia.
Mesmo sob a proteção deste tipo de poder, o bando de Maria da Fé, com suas táticas de
guerrilha, consegue capturar Patrício Macário. Neste cárcere surge a grande história de amor do
romance, entre Maria da Fé e Patrício Macário. Porém, neste primeiro momento, Maria da Fé não
se rende a esse amor pois conhece perfeitamente a sociedade em que vive e sabe que o respeito
que possui demorou muito para ser conquistado e que poderia se acabar em pouco tempo: ela
conhece a construção social que envolve o universo masculino, mais valorizado nesta sociedade
baseada em valores machistas.
Divagando sobre isso, Maria da Fé compreende que um homem pode ter várias mulheres
e ainda assim, ou por isso mesmo, seria respeitado; mas uma mulher que está em uma posição de
chefia como ela jamais poderia ter homem algum se os quisesse comandar; caso contrário haveria
ao menos um que a subjugaria por ter travado com ela relações mais íntimas. Desta forma, neste
primeiro e conturbado encontro, Maria da Fé refreia seu desejo. Mas, quando manda soltar seus
prisioneiros, ordena que sejam soltos completamente nus: isso não significaria apenas a
humilhação para os oficiais do Exército capturados, mas também representa uma manifestação,
ainda que velada, do desejo da líder dos milicianos.
103

Tendo malogrado na tarefa de capturar Maria da Fé, Patrício Macário parte para uma nova
empreitada: a maior guerra da América do Sul, a Guerra do Paraguai. Haverá aqui mais uma
mudança nesta personagem nada linear.
Conforme disse Zé Popó, personagem sobre a qual já se discorreu neste trabalho, a guerra
revela múltiplas faces do homem na sua tentativa de não fenecer no campo de batalha. Zé Popó
foi um dos homens que realizaram atos tidos como heróicos mas que não se consideraram heróis,
tendo agido soment e por colaboração com os outros, num espírito de corpo, e pensando que,
salvando a todos, salvar-se-iam a si mesmos. Todavia, nem todos agiam assim, e foi com esta
outra realidade que Patrício Macário se deparou nos dias em que participou das frentes de
batalha.
Em Corrientes, na Argentina, em um dos poucos momentos fora do front, Macário
encontra-se com um outro oficial do Exército Brasileiro e com ele trava um discurso inflamado,
expondo seu ponto de vista sobre a guerra e sobre aqueles que estão comandando as tropas:

– Perseguir o inimigo, como, Vieira? Perseguir o inimigo com oficiais como


você, que desaparece na hora do combate, que ninguém vê enquanto dura o fogo, que se
limita a bazófias a respeito das lições de Fulanê e Beltranê e Sicranê, como se estivesse
fazendo exercícios sobre Napoleão na Academia? Que é que você sabe de uma
verdadeira batalha, de uma verdadeira operação militar, espada virgem, canalha, poltrão,
mentiroso, safado e descarado!
– Meça suas palavras, Macário! Meça suas palavras, antes que venha a
arrepender-se amargamente! Posso fazer com que você engula suas palavras!
– Você pode fazer lá coisa alguma, descarado! Você faz nada! Do mesmo jeito
que você assiste a seus soldados morrendo sem comando e assistência, gente do povo,
rapazes mal saídos das fraldas, gente à qual você se sente superior quando na verdade é
muitíssimo inferior, desse mesmo jeito você escuta calado o que bem me der na veneta
lhe dizer. Para sua espada de burleta, não preciso mais que minha bengala! O Exército
que sair dessa guerra não terá mais lugar para vagabundos como você, que disfarçam sua
canalhice em maneiras afetadas e falsos conhecimentos, que só vivem para usufruir
vantagens, que usam sua posição para obter mais e mais benesses, que fazem da farda o
pano de lustrar botas dos poderosos, que transformam a vida militar na lata de lixo dos
aproveitadores que não sabem fazer nada a não ser dar-se ares de importância e meter a
mão no que podem, mentindo, falseando, loroteando, extorquindo e intimidando, até
acreditando nas próprias patranhas, que impingem a si e aos outros para poder olhar a si
mesmos no espelho. Mentiroso, pulha, degenerado, venal, patife, bajulador, valente
contra quem não pode resistir, irresponsável, parasita, aproveitador, cínico, achacador,
farsante, ladrão! (RIBEIRO, 1984, p. 463–464)
104

Nesta batalha sem precedentes, Patrício Macário conheceu um outro lado do Exército,
teve suas convicções abaladas e pela primeira vez questionou. O que vira no campo de batalha
em nada se parecia com os manuais de guerra, ou seja, com as estratégias e conhecimentos
apenas retirados dos livros. Este choque com a profissão que não escolhera mas que acabara
amando, transformou sua vida. Depois dos episódios vivenciados na guerra, depois de observar
como agiam seus colegas de farda, Macário é tomado pela decepção e pela dor de sentir-se
sozinho.
Macário retorna à casa do pai com o fim da guerra, porém, totalmente modificado. Ao
caminhar por um lugar mais afastado da ilha, depara-se com o terreiro dos negros e presencia
uma parte de suas práticas religiosas. Neste ponto no qual o narrador nos descreve o ritual, é
importante ressaltar que os ritos africanos não aprecem com as tintas do exotismo, mas compõem
a vida daquelas personagens que, como já se apontou, são consciências livres de uma consciência
externa, não subordinadas e que portanto vivendo de acordo com suas convicções, sem que isso
entre em choque com uma consciência superior e castradora como ocorreria em um romance
monológico. A religião é dos eleme ntos mais significativos da constituição das personagens de
descendência africana: na morte do barão, foram mãos invisíveis que mostraram as ervas a serem
utilizadas; na Guerra do Paraguai também se apresenta o auxílio dado pelas entidades ou orixás a
seus filhos negros que lutavam tão longe de casa. Conforme nos afirma Zilá Bernd:

(..) cada episódio da batalha é transmutado em obra de algum orixá, tudo sob a
supervisão geral de Oxalá, pai dos homens, que convocando Oxossi, senhor das matas,
Xangô, mestre do fogo e do machado, e Ogum, senhor do ferro, entram “pelos corações
e cabeças de seus filhos, trazendo-lhes às gargantas os gritos de guerra dos ancestrais”
(VPB, p. 442).
Tudo acontece pela intervenção das entidades dos cultos afro-brasileiros que
traduzem os conflitos subjetivos das camadas subalternas do Exército brasileiro.
Recriando o concílio dos deuses na Guerra do Paraguai, João Ubaldo propõe uma
“explicação” para os eventos tecendo os elementos do maravilhoso de tal forma que o
leitor não se vê obrigado a escolher entre a versão histórica e a sobrenatural, mas a
revisar a separação existente entre ambas. (BERND, 1992, p. 69)

Desta forma, sem colocar as histórias sobre a balança da verdade, mas apenas analisando
diferentes histórias, o narrador de Viva o povo brasileiro nos apresenta a maneira como as
personagens deste referido universo negro vêem o mundo. E será numa dessas cenas, entre o
105

natural e o sobrenatural, que Patrício Macário reencontrará Maria da Fé – aliás, como em quase
tudo o que envolve esta personagem.
Observando de longe a movimentação no terreiro, Macário procurava compreender a cena
que presenciava. Todavia essa distância dura pouco. Durante a observação, Macário vê um rosto
conhecido: Zé Popó, com quem lutara lado a lado na Guerra do Paraguai. Os outros, que não o
conheciam, temiam que aquele ‘branco’ fizesse algum mal ao grupo por os encontrar em atos
proibidos, uma vez que ainda era terminantemente proibida a realização dos cultos de origem
africana. Todavia, por meio de um diálogo com Zé Popó, vemos que aquele destoa de seu grupo
de origem, especialmente depois da experiência de guerra.

– Ora, major, como poderia ser inconveniente a sua presença? Eles estão
agradecidos ao senhor, por ter manifestado tanta compreensão, quando qualquer outro os
repreenderia e provavelmente procuraria denunciá-los. Aliás, eu também agradeço.
– Que bobagem, cabo, tenho um irmão que é padre e acredito no latinório dele
ainda menos do que acredito nessas coisas, sem querer ofender a ninguém, é claro. Em
matéria de religião, posso considerar-me um agnóstico, embora pratique os atos católicos
em ocasiões que não posso evitar. E em matéria de costumes, creio que posso ser
considerado um liberal, estou pouco me incomodando com as práticas fetichistas dos
pretos, contanto que as levem adiante sem ofender ninguém ou prejudicar o trabalho.
– E, mas nem todos pensam assim. Aliás, muito poucos pensam assim.
– Eu sempre tive fama de esquentado e sou mesmo. Esquentado porque não
suporto que violem direitos meus que considero sagrados. Então tenho simpatia pelos
que procuram exercer esses direitos, que para mim seriam sagrados.
– Olhe que isto envolve a libertação dos negros, major...
– Digo-lhe a verdade: eu sou a favor. Sempre fui e agora sou mais, depois que
lutei, lutamos, ao lado de tantos negros na Campanha. (RIBEIRO, 1984, p. 495– 496)

Neste diálogo, Macário demonstra uma atitude muito liberal para sua época em relação
aos negros. Depois do contato tão íntimo durante a guerra, onde sem dúvida conviver e conhecer
foram fatores fundamentais para que se criasse uma relação de respeito, mostra-se agora também
estar aberto ao contato com um lado mais escondido e cuja imagem ainda estava coberta por
preconceitos como é o caso das manifestações religiosas.
Patrício Macário, portanto, não repetindo os modelos ideológicos de seu grupo de origem,
permitindo-se conhecer este outro universo, acaba por ser uma espécie de elo entre o mundo da
elite, ao qual segundo o que sabia sobre si mesmo, pertencia, e o mundo dos excluídos, com os
quais tivera contato durante a guerra e agora passara a conhecer um pouco mais. E mais forte
106

ainda se dá esse contato quando, depois de superado o ocorrido durante a missão de capturar
Maria da Fé, tem com ela um romance.
Sabemos que enquanto ainda servia aos interesses da elite, Macário trabalhou para
capturar e assassinar a líder dos Milicianos do Povo. Todavia, depois de conhecer mais seu
próprio universo e depois de ter contato mais estreito com os que foram antes perseguidos,
Patrício Macário modifica-se e passa a lutar em prol de um outro povo brasileiro. Durante a
perseguição à Maria da Fé, Macário acreditava estar lutando pelo povo, mas esse povo restringia-
se àqueles que tinham seus interesses colocados em risco pelas ações dos milicianos, ou seja,
Macário lutava pela elite. Agora ele conhecia um outro povo e, aliado a isso, apaixonara-se
profundamente por essa a quem um dia perseguiu. Macário modificava seu conjunto de valores e
passava a viver uma outra ‘verdade’:

Mas a verdade era que não via mais nada como via antes. Nem as pessoas,
brancas ou pretas, nem as coisas, nem os acontecimentos. Aprendera inicialmente, com
muita vividez, que, ao contrário do que pensava, tudo pode ser visto de formas diversas,
muito diversas, daquela que se pensa ser a única, a correta. E depois, história ou não
história de Rufina, começou a sentir uma grande afinidade com aquela gente. Não uma
afinidade que significasse a assunção de vida idêntica, mas que tornava absurda toda a
sua existência anterior, passada como se aquele povo não tivesse significado, como se
não fosse parte dele, como se toda a Nação se resumisse àqueles com quem convivia, na
verdade uma minoria que se julgava de europeus transplantados, que não sabia de nada
do que se p assava. Como construir um país assim? (RIBEIRO, 1984, p. 509)

Novamente vemos que aquele homem que nada contestava já não tem lugar na
personalidade de Patrício Macário. Rufina, a quem ele se refere neste trecho, é uma das negras
que afirmam que Macário teria com aquele povo uma união diferente, não de sangue ou de cor
(uma vez que todos desconheciam a verdadeira origem de Amleto Ferreira, pai de Macário).
Segundo a crença daquele povo, a ligação se dava pela alma, por algo invisível e impalpável.
Mesmo vacilante quanto a esse ponto, a afinidade que sentira em relação a várias outras daquelas
pessoas humildes de que lhe falou Maria da Fé foi fator mais do que suficiente para a mudança.
Neste dia em que se encontraram na Capoeira do Tuntum, local onde se realizavam os
ritos, Maria da Fé contou- lhe sobre a luta pelo orgulho que fora retirado de índios e de negros
durante os longos anos de colonização, sistema que instaurou e mantinha o poder ele se
apresentava. Em suma:
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A única coisa que ela sabia era da força do povo, força de que ele precisava ter
consciência, força não só dos números mas daquilo que produzia com suas mãos,
cabeças e vozes, pois o povo era o verdadeiro dono do país, não aqueles que o
subjugavam para a consecução dos próprios interesses. Tinha certeza de que um dia isso
seria reconhecido, de que haveria liberdade e justiça. Agora, como se conseguiria chegar
a esse dia ela não sabia, mas não era por não saber que ia ficar de braços cruzados,
porque certas coisas podiam ir sendo feitas. Pelo menos as cabeças. pelo menos as
cabeças! – dissera com a voz inflamada. Pelo menos as cabeças deviam ser abertas,
deviam ser libertadas, para que vissem a verdade delas e não a verdade de quem as
dominava. (RIBEIRO, 1984, p. 510).

E deste pensamento passou Patrício Macário a compartilhar: de que existem várias


verdades e cada uma delas é construída por determinados grupos segundo determinados
interesses. Maria da Fé é a personagem que procurará fazer com que o grupo antes dominado
tenha a possibilidade de agir em prol de seus interesses também, o que ela resumirá como
“justiça”. A esse grupo Maria da Fé entende como a Irmandade do Povo Brasileiro. Embora este
seja um grupo disperso e cujas bases não se pode especificar, esta irmandade existiria e abarca ria
todos aqueles que sofreram as mesmas dores e que buscam a mesma justiça de que fala Dafé. E
conforme aponta o próprio nome da personagem, esta acreditava em sua luta mesmo sem
enxergar a referida irmandade e que assim mesmo possui a confiança que inspira bondade e
poder de realização, ou segundo as reflexões de Patrício Macário, existe a “necessidade de ter fé
para que as coisas aconteçam, pois a fé, afinal, não passa de uma maneira de ver o mundo que
torna possíveis aquelas coisas que se deseja que aconteçam. A fé; portanto, é um conhecimento”
(RIBEIRO, 1984, p. 595). Macário compartilha desses ideais e procura trabalhar ao lado da
amada na realização deste intento.
Mas em meio a tantos projetos de justiça e amor, a história de Maria da Fé e Patrício
Macário é interrompida. O casamento seria um empecilho à execução dos planos de Maria da Fé,
mesmo ela sabendo que teria em Macário um companheiro, e ainda haveria a dupla barreira da
diferença social e de cor:

– Uma escolha muitas vezes é uma coisa que tem que ser. E, depois, crês
mesmo que essas coisas loucas são tão loucas assim? Não posso ser tua mulher. Mesmo
que não houvesse dificuldades, por eu ser preta ou ser mulata ou como lá dizem os que
se preocupam com essas palavras, eu não poderia ser tua mu lher. Não poderia servir-te,
108

não poderia acompanhar-te, não poderia dar-te filhos, não poderia, enfim, ser tua mulher
e eu só seria tua mulher se pudesse ser tua mulher. (RIBEIRO, 1984, p. 512)

Em meio a tantos sonhos, a realização do amor é impossibilitada pelas barreiras e


imposições sociais. Por mais que quisesse, Patrício Macário, como coloca Maria da Fé, jamais
deixaria de ser um Ferreira-Dutton enquanto ela jamais deixaria de ser uma escrava rebelde e
malquista por aquela elite 9 . Além disso, casar-se seria um ato reacionário, ligado a valores
daquela elite que ela tanto critica.
Assim, o então major Patrício Macário, depois de uma noite confusa, acorda sozinho, sem
Maria da Fé a seu lado e com uma carta nas mãos. Sem ela, decide continuar sozinho seu
caminho, mais uma vez desiludido com o mundo. Agora, sem maiores expectativas, seguirá
taciturno a carreira militar até a patente de general e, é válido dizer, sem jamais se casar.
Em meio a essas sucessivas desilusões, seja com sua classe social, com o Exército, com o
abandono da mulher amada, resta a Patrício Macário uma outra alternativa de vida: escrever. Sem
saber inicialmente ao certo porque escreve, ele apenas se põe a escrever sobre seus ideais, mesmo
sabendo que jamais teria a receptividade esperada. Neste seu livro que mistura ideais e memórias,
Patrício Macário escreve sua versão dos acontecimentos que presenciou e escreve sob seu ponto
de vista, de acordo com suas próprias impressões.
Um dos eventos que recebe versão diferente da oficial refere-se exatamente àquele que
tanto modificou sua visão sobre honra, espírito de grupo e conhecimento livresco: a Guerra do
Paraguai. Ao contrário da visão gloriosa de maior batalha e maior vitória do Exército Brasileiro,
Macário age como anos antes seu soldado Zé Popó agira diante da platéia de medalhões da
agremiação da Ilha, com a diferença de que Zé Popó usou a linguagem oral e agora Macário
usaria a escrita, o que, à sua maneira, será uma forma de perpetuar sua experiência e sua versão,
ou seja, sua verdade.

Mas havia, e não desistiria de completar o trabalho, embora não tivesse certeza
de que o publicaria em vida. De qualquer forma, se o fizesse, estava seguro de que
tentariam matá-lo, prendê-lo ou interditá-lo, ou ainda as três coisas juntas. Pois, num

9
E este seria mesmo o mais forte motivo para a separação deste casal. Sem dúvida Maria da Fé e Patrício Macário
poderiam seguir juntos na batalha pela justiça, por seus ideais. Se assim não fosse, como explicar figuras femininas
como de Ana Maria de Jesus Ribeiro, a Anita Garibaldi e Olga Gutmann Benario?
109

processo inicialmente difícil e recalcitrante, mas depois cada vez mais fácil, conseguira
depurar de tal maneira o estilo e a linguagem, que se orgulhava de não haver um só
eufemismo no que contava. Quem era ladrão era chamado de ladrão, quem era burro era
chamado de burro, quem era pusilânime era chamado de pusilânime. A parte referente à
Campanha do Paraguai, por ser tão diferente da mentiralhada oficial e dos relatos dos
historiadores panegiriqueiros que eram a regra geral, ia com certeza ser contestada
palavra por palavra. E, o que era pior, o mentiroso terminaria por ser ele. (RIBEIRO,
1984, p. 571)

Mesmo ciente de que pudesse haver algum tipo de represália, Patrício Macário continuava
a escrever. É um livro dentro do livro. E neste livro, Patrício Macário, embora escreva sem
ninguém saber, recolhe todas as suas memórias mais relevantes, tudo o que vira até então sem
dobrar-se a qualquer versão oficial, mesmo estando ligado ao Exército.
Também assim, com a mesma revolta, fala sobre a mudança de regime de governo no país
quando da transição da Monarquia para a República em uma conversa de família, na qual
explicita mais uma vez suas convicções político-sociais ao lançar o seguinte questionamento,
sobre o qual largamente trata em seu livro também:

Que benefício trouxe a república ao povo?


– Nesse caso, que benefício trazia a Monarquia?
– Nenhum. Não se trata de monarquia ou república, trata-se de perceber que não
vamos eternamente poder abafar a voz dos despossuídos, oprimidos e injustiçados, que
são a grande maioria, através de ações militares. Trata-se de estabelecer um regime que,
em lugar de procurar solidificar as vantagens de seus sequazes no poder, procure
compreender que o país só poderá ser grande na medida em que não mantiver seu povo
marginalizado, escravizado, ignorante e faminto. Isto me parece elementar. Você
conhece o desespero, a miséria, a desesperança daquele povo do sertão? Então? Então o
que a República faz por eles é enviar-lhes soldados para matá-los, varrê -los da face da
terra, é assim que se resolvem as coisas? (RIBEIRO, 1984, p. 581)

Vale ressaltar que a época da qual se fala aqui corresponde ao conflito ocorrido no Arraial
de Canudos, sobre o qual o Brasil saberá mais a fundo em 1902 com o lançamento do livro de
Euclides da Cunha, Os sertões. Este será o primeiro livro no qual esse povo do sertão, esse povo
do qual fala a personagem de Viva o povo brasileiro, Patrício Macário, será protagonista.
Voltando ao livro de memórias de Macário, deve -se ressaltar que, segundo Mikhail
Bakhtin, todo discurso é responsivo, ou seja, é orientado para uma resposta. Desta forma, mesmo
‘escrevendo para a gaveta’, Patrício Macário conhece as conseqüências que podem advir de suas
110

palavras de repúdio à elite e ao sistema de governo excludente que rege o país caso suas palavras
venham à tona. Ninguém arquiteta um discurso para o nada ou para ninguém. Embora tenha
dúvidas sobre o processo da escrita ou sobre o seu porquê, tem plena consciência do eventual
impacto de um discurso que seja diferente do socialmente prestigiado ou validado. Este é,
portanto, mais um dos pontos que fazem de Patrício Macário uma personagem central do
romance: em meio a tantas e tamanhas desilusões, sua forma de resistir abalizou-se na escrita, em
seu discurso e nas posições diante do mundo tomadas e explicitadas por meio da palavra.
Neste período de sua vida, Patrício Macário não vive mais na Bahia, e sim no Rio de
Janeiro, na capital federal, no grande centro onde ocorrem as agitações políticas. Enquanto vivia
na Ilha de Itaparica, comum era a insatisfação com a demora da chegada de informações.
Todavia, estar próximo das altas esferas do poder e ter acesso a elas não só pela proximidade
física como por ser ele um militar, ou seja, um representante do grupo que agora dominava o
cenário nacional, não lhe deram a possibilidade de interferir neste estado de coisas. Para Macário,
mudam-se as pessoas no poder, mas os meios se repetem: “Pilhadores, piratas, saqueadores”
(RIBEIRO, 1984, p. 584) da nação.
Com esta desilusão e com as constantes e inconvenientes investidas amorosas de uma de
suas cunhadas, mais uma vez a vida de Patrício Macário muda: ele retorna a Itaparica, agora
refazendo o movimento pendular que marca seus deslocamentos. Desta vez, não volta para a
antiga casa-grande da fazenda, fica, em uma atitude curiosa, isolado por semanas dentro de um
pequeno cômodo na casa de Rita Popó, filha de Rufina, com quem Macário tivera contato
naquele primeiro encontro com os negros, ainda escravos, que trabalhavam nas terras de seu pai.
Durante este período de isolamento, Macário fez uma revisão de toda a sua vida, parando
para pensar e refletir sobre seus atos e suas experiências, porque certas coisas deram certo,
mesmo que por pouco tempo, e porque outras tantas deram errado. Neste processo, a
personagem, como que travando diálogos consigo mesma, construía uma tentativa de organizar a
experiência, para assim transformá- la em algo inteligível a si mesmo.
Interessam aqui exatamente os processos pelos quais se realizam os discursos das
personagens no romance, podendo-se afirmar que esta experiência de Macário fora- lhe
fundamental. Da necessidade desta nova guinada em sua vida depreende-se que a experiência de
escrever seu livro de memórias ainda não fora conclusiva ou plenamente elucidativa de questões
que ele precisava organizar por meio da palavra. Daí durante essa nova forma de reflexão a
111

personagem concluir sobre a sua dificuldade de compreender o mundo por meio da própria
palavra; somente por meio desse retiro é que ele compreende que toda palavra está ligada à
práxis, à experiência, à circunstância de elocução.
Agora, com o passar dos anos, compreendia certas colocações que Maria da Fé lhe fazia
sobre seu contato com as coisas e com as pessoas através de seus questionamentos. Afirmava ela
que a maneira com a qual Macário perscrutava o mundo, ao invés de abrir- lhe novas perspectivas,
restringia-as :

Ah, meu Deus, disse ela, é uma complicação quando se tem de explicar que na
maneira de perguntar já se escolhe o tipo de resposta. Pediu desculpas pela franqueza e
disse que ele não sabia perguntar, só sabia perguntar de uma forma e para essa forma ele
já sabia as respostas que obteria, pois eram sempre as mesmas. Mas havia coisas que não
se explicavam com palavras, mesmo porque as palavras são tiranas e não se desgrudam
da experiência de cada um, assim escravizando as mentes. Se ele quisesse, repetiu, ela o
ajudaria. Não havia um caminho certo, não era como um colégio em que se aprendem
lições, era alguma coisa que dependeria muito dele – que dificuldade para explicar, meu
Deus! Era como se ele só pudesse aprender se soubesse e só soubesse se pudesse
aprender. Era um desarme, ele precisava entrar numa espécie de desarme, de
esquecimento, entendia? (RIBEIRO, 1984, p. 596–597)

E tal reflexão de Maria da Fé concluía-se com uma menção que fizera anteriormente sobre
a mentira, na qual afirmava que Patrício Macário

(...) certamente sabia que as pessoas que têm excessiva certeza de que há um só
caminho e uma só verdade, verdade que lhes é inteiramente conhecida, são perigosas e
propensas a todo tipo de crime. Saber da verdade e querer impô-la aos outros, num
mundo onde tudo muda e tudo se encobre por toda sorte de aparências, é uma grave
espécie de loucura. Por isso as pessoas assim loucas não entendem o Evangelho dos
padres. Lá diz que se dê a outra cara quando se tomar uma bofetada e lá também se parte
para encher de porrada os vendilhões do templo. Qual é o certo? A cabeça coroca, a
cabeça empedrada, a cabeça que não se aventurou por caminhos que abram outras
entradas para ela, essa cabeça escolherá um dos dois jeitos e passará a condenar o outro
jeito, inventando as razões mais estúpidas para que o outro jeito não valha nada. Isto
porque não compreende que tanto se deve dar a outra cara quanto se deve partir para a
porrada, porque a vida é assim, ali diz uma coisa, ali diz outra, a vida não é escrita em
tabulinhas, nem suas ordenações são arrumadas como os homens loucos querem, a única
coisa arrumada é a mentira, a qual é a explicação certinha. (RIBEIRO, 1984, p. 596)
112

Com todas essas coisas, Maria da Fé queria lhe passar a idéia de que não há respostas
diretas a seus questionamentos ou, mais especificamente, respostas únicas. Toda e qualquer
resposta aos mais variados questio namentos será filtrada pela interpretação de cada um,
interpretação essa cujas palavras passam pela ordenação que lhes fora dada pela experiência de
cada indivíduo em seu contato com a sociedade, na sua relação com as pessoas e com o mundo.
Nas palavras de Luis Filipe Ribeiro, cada discurso, ou no nosso caso específico, resposta a
perguntas, está sujeito a uma historicidade, à sua situação espacial, ao indivíduo que o produziu e
ao que recebeu, ao tempo e ao lugar de sua produção/recepção (RIBEIRO, 1996). Esta é a mesma
linha com que trabalha Maria da Fé, compreendendo cada discurso a partir da particularidade de
cada de cada indivíduo que, ao ouvir determinado discurso, o interpretará de modo singular, de
acordo com sua experiência dialética com o mundo e com os outros, e de cada situação de
enunciação.
Enquanto lhe falava sobre a já referida Irmandade, Maria da Fé afirmava a Patrício
Macário que certas coisas poderiam ser explicadas pelas palavras, mas a interpretação poderia ser
diferente daquilo que especificamente gostaria de lhe passar. Isso se dava porque cada palavra
proferida por ela seria interpretada por Macário de acordo com suas próprias experiências, o que
certamente interferiria em seu sentido. Por isso ela sempre afirmava que certas especificidades
sobre a Irmandade do Povo Brasileiro somente podiam ser apreendidas por uma experiência
diferente daquela em que Macário vivia: cercado pela elite. Agora, apartado desta elite, é que
estas coisas ouvidas há tantos anos tomavam novos sentidos.
Ao finalmente sair dessa clausura voluntária, Patrício Macário recebe uma visita e
finalmente conhece o fruto de sua história com Maria da Fé: Lourenço, o único filho que tiveram
e sobre o qual jamais soubera. Lourenço prossegue com a batalha de sua mãe, procurando
percorrer o sertão do Brasil a fim de alcançar a justiça de que tanto a líder dos Milicianos falava.
Aqui estamos no ano de 1898.
Chegando a sua própria casa, Patrício Macário toma conhecimento de que lá deixaram,
durante sua ausência, alguns objetos. Nada mais eram que pequenos objetos tidos como
lembranças palpáveis de seu período ao lado de Maria da Fé. Mas um outro objeto ainda mais
relevante foi deixado lá: a canastra de que ela tanto lhe falava.
113

5.4.1. Um segredo de muitos

A canastra é um dos objetos mais intrigantes do todo o romance. Pertencendo inicialmente


a Júlio Dandão, um dos negros da ilha contemporâneo ao Barão de Pirapuama, portanto muito
anterior ainda ao nascimento de Patrício Macário, a canastra é apresentada, a nós leitores,
inicialmente, sob ares de muita imprecisão.
Afirmando não poder mais guardar este segredo somente para si, uma vez que ele é,
paradoxalmente, um segredo de muitos, Júlio Dandão repassa o que sabe sobre a canastra a
outros três negros, escravos do barão: Budião, Feliciano e Zé Pinto – todos eles previamente
engajados na batalha contra a opressão do senhor.
Na descrição dos objetos do interior da canastra, João Ubaldo rende-se ao maravilhoso, ao
inverossímil, na tentativa de falar sobre aquelas coisas que, segundo as personagens, muitas vezes
não podem ser transmitidas pelas palavras e que por isso mesmo são chamadas de segredos. Júlio
Dandão, ao abrir a canastra,

(...) de lá principiou a puxar segredos, um segredo atrás do outro, cada qual


mais maioral, havendo quem afirme terem sido libertados inúmeros espíritos de
coisas, maneiras de ser, sopros trabalhadores, papéis que não se podia ver com os dois
olhos para não cegar, influências aéreas, as verdades por trás do que se ouve, sugestões
inarredáveis, realidades tão claras quanto o imperativo de viver e criar filhos. Foi
também tudo muito sonoroso, tão melódico que nada mais se escutou dentro da casa da
farinha, dizendo uns que ali, naquela hora, se fundou uma irmandade clandestina, a qual
irmandade ficou sendo a do Povo Brasileiro, outros dizendo que não houve nada, nunca
houve nada, nunca houve nem essa casa dessa farinha desse engenho desse barão dessa
armação, tudo se afigurando mais labiríntico a cada perquirição. Enquanto Júlio Dandão
vai aos poucos catando na canastra o que mostrar e vai exibindo alguma coisa e
explicando outra, essa Irmandade talvez esteja se fundando, talvez não esteja, talvez
tenha sido fundada para sempre e para sempre persista, talvez seja tudo mentira, talvez
seja a verdade mais patente e por isso mesmo invisível, porém não se sabendo, porque
essa Irmandade, se bem que mate e morra, não fala. (RIBEIRO, 1984, p. 211–212)

E assim forma-se a imagem de um objeto maravilhoso, no qual estariam guardadas as


relíquias de um povo, seu passado e seu futuro. Segundo a professora Lucia Helena, é na canastra
que está o “segredo da alma nacional” (HELENA, 1993, p. 93), ou seja, o conjunto de valores
deste grupo, ainda indefinido, porém, sabe-se, oposto às elites – embora estejam ali também atos
atribuídos à elite cujas conseqüências se fazem sentir em toda a sociedade. Todavia, a repetição
114

da palavra “talvez” mostra o caráter de imprecisão que cerca a Irmandade e a canastra. O que se
pode certamente depreender é que esta canastra é uma represe ntação dos possíveis elementos
formadores de uma coletividade, de uma sociedade: suas construções sociais.
Na canastra havia “o como de se achar o porquê” (RIBEIRO, 1984, p. 399), ou seja, não
exatamente a razão das coisas, mas o modo pelo qual se pode chegar a elas: um processo de
conhecimento, dialético e constante, uma vez que o porquê de cada coisa somente se
depreenderia pela experiência, como afirmou a personagem Maria da Fé. Desta maneira, o
conhecimento, em qualquer instância da vida, estaria sempre se fazendo, estaria sempre em
processo, uma vez que cada indivíduo contribui a seu modo para a constituição desse
conhecimento.
Ressalta-se aqui que não apenas se retiram coisas de interior canastra, como fizera
Dandão ao apresentá- la a Budião, Feliciano e Zé Pinto e esses a outros ‘irmãos’, podia-se
também colocar coisas em se interior. Este é o grande movimento da construção permanente do
conhecimento a partir da prática e o ato de guardá- lo o depura, amadurece e protege; e por ser a
canastra um pertence comum a todos da Irmandade, faz com que esse conhecimento construído
seja sempre partilhado, além de ter sempre estimulada a sua continuidade.
Quando tratamos do título desta obra, Viva o povo brasileiro, dissemos que mais que uma
saudação, seria uma convocação à vida, à perpetuação da vida. Um objeto como a canastra
cumpriria parte desse papel, guardando e protegendo conhecimentos e particularidades do povo,
muitos segredos do destino do povo, muitas defesas e muitas receitas de orações e feitiços
(RIBEIRO, 1984, p. 517).
Ao misteriosamente tornar-se o novo ‘guardião’ da canastra, Patrício Macário
compreendera que fazia parte daquele grupo e também, ao invés de retirar coisas da canastra,
depositava, conforme vemos neste diálogo entre ele e sua sobrinha Isabel Regina estando
Macário às portas de completar cem anos de vida:

Parecia ontem o tempo em que ele morava no Rio de Janeiro e ela ia visitá-lo,
não com os netos, mas com os filhos. Como o tempo passava! E que beleza viver cem
anos com tal lucidez, tal alegria, tal vivacidade! Quanta coisa vista e sentida, quantas
histórias para contar! Falar nisso, e as tais memórias que estava escrevendo, já estavam
prontas havia muito tempo não?
– Ah – respondeu o general, com um sorriso quase maroto, guardei tudo dentro
de uma canastra.
115

– Canastra? O senhor disse canastra? Um baú?


– Sim, sim, canastra, baú, canastra, não falo grego. Botei tudo dentro de uma
canastra.
– Que canastra?
– Para que você quer saber? Está fechada, não é para se aberta antes que eu
morra.
– Ih, não fale assim, tio, que pensamento horrível.
– Mas é verdade. Que é que você quer, não sou imortal e já estou
indecentemente velho, viver tanto tempo é um exagero, uma coisa de mau gosto.
– Não acho. Eu mesma queria viver tanto quanto o senhor.
– Não diga bobagens. Depois de uma certa idade, a vida parece...
Mas ela nunca soube com que a vida parece depois dos cem, porque a festa
explodia dentro e fora de casa, com foguetes, dobrados executados pela banda, gente
entrando e saindo, abraços, cumprimentos, vivas. (RIBEIRO, 1984, p. 658–659)

Desta maneira, Macário contribuiu também para o conhecimento acumulado na canastra e


nesta atitude de depositar ali suas memórias, acaba por unir sua experiência de vida com a de
todos aqueles que o precederam, ou seja, uniu-se de mais uma forma àquele povo. Macário,
assim, aproxima-se ainda mais deste grupo, afastando-se da elite. Mas vale aqui ressaltar que
Amleto Ferreira, pai de Macário, era também mulato e no romance mostra como a ascensão
social é possível, mesmo que para isso utilize meios questionáveis. Portanto, Macário é aquele
que percorrerá o caminho contrário ao trilhado pelo pai.
Ao final do trecho acima transcrito, alude-se à festa de cem anos de Patrício Macário.
Aqui o leitor remete facilmente à reunião entre os negros da antiga senzala do Barão de
Pirapuama em torno de Dadinha, exatamente no dia em que completou cem anos e que, sabendo
que iria morrer, repassou tudo o que sabia sobre os conhecimentos práticos da vida e sobre a
história. Macário fará algo semelhante e sintetizado.
Enquanto todos estavam na igreja para a missa em celebração ao centésimo aniversário de
Patrício Macário, ele, com a voz tão baixinha que quase inaudível, falou sobre o povo: disse que
este viverá uma vez que, em todos esse anos, a experiência lhe mostrara “que o povo pensa, que o
povo pulsa, que o povo tem uma cabeça que transcende as cabeças dos indivíduos, que não
poderá ser exterminado, mesmo que façam tudo para isso” (RIBEIRO, 1984, p. 662). Em meio a
toda subjugação e exclusão apresentadas no romance, mesmo entregue a toda sorte de exploração
e desmandos, Macário tinha a certeza de que o povo não sucumbiria.
116

Notando que não estava sendo ouvido por ninguém, chama para perto de si um menino e
pede para que ele se aproxime o máximo possível. É aqui que temos a última cena de Patrício
Macário no romance:

– Vou lhe dizer uma coisa por enquanto inútil – cochichou. – Talvez para
sempre, porque posso ser um velho caduco e não saber. Psssi! Você só vai poder ser
tudo depois que for você! Psssi! Entendeu? Parece bobagem, mas não é! Temos de ser
tudo, mas antes temos de ser nós, entendeu? Como é seu nome? Tudo, tudo, tudo, tudo!
Psssi! Viva o povo brasileiro, viva nós!
Empertigou o pescoço, cruzou os braços, fechou os olhos, inspirou mais fundo
do que da outra vez, manteve os pulmões estufados alguns segundos e de repente soprou
como quem sopra a fumaça de um cigarro e não se mexeu mais.
– Dormiu? – perguntou Isabel Regina, que tinha saído um instante para ver
como iam as coisas na copa.
– Não sei – disse o rapazinho. – Eu pensei que ele já estava dormindo antes,
mas aí ele me chamou para me dizer uma coisa.
– O que foi que ele lhe disse?
– Não entendi direito, ele falou muito baixinho e disse que podia ser coisa de
velho caduco. E terminou dando um viva ao povo brasileiro.
– Ah, titio não perde a mania, eu conheço essas coisas dele – exclamou Isabel
Regina olhando para o velho carinhosamente, mas ao abraçá-lo a cabeça dele pendeu e
ele caiu em seu colo. (RIBEIRO, 1984, p. 663)

Assim como a centenária matriarca do povo negro escravo, Dadinha, repassara seus
conhecimentos àqueles que chamava de seu ‘povo’, Patrício Macário, de maneira muito mais
sucinta, também repassou o que sabia ao menino: que a principal tarefa do homem é conhecer-se.
Somente por meio do conhecimento pode-se realmente ser quem se é, e não quem nos obrigam a
ser. Essa era a grande batalha de Maria da Fé, fazer com que o povo se conhecesse para poder se
valorizar e finalmente deixar de ser quem o dominador os fazia pensar ser 10. Desta maneira, o
apelo àquele menino mostra que o processo ainda não está concluído e que muito
simbolicamente, o menino aqui poderia representar não apenas ‘um’ menino, mas toda a geração
futura.
Enquanto esta cena se passava na igreja, na casa de Patrício Macário a canastra era
roubada e aberta antes do tempo previsto. De lá saem inúmeros males, como uma espécie de
caixa de Pandora. Todavia, na caixa mitológica, existiam apenas males. Na canastra do povo
brasileiro há coisas boas e más, projetando-se uma síntese do futuro: com todas as coisas que lá

10
Relembrar a fala de Nego Leléu transcrita na página 92 deste trabalho.
117

eram depositadas, formava-se esta imagem. E em meio à visão dos crimes do homem “bem
trajado” (RIBEIRO, 1984, p. 669), da continuação do poder na mão de poucos e do poder
supremo do dinheiro, as paredes da casa da farinha – local onde surgira a Irmandade e onde a
canastra fora apresentada – jorravam sangue e por fim soterravam a canastra. Segundo Lucia
Helena, esta imagem seria como se “erínias furiosas fossem se espraiando e anunciando o caos”
(HELENA, 1993, p. 93).
Todavia, em meio a esse caos que se anunciava, no último parágrafo do livro, a imagem
do Espírito do Homem, que é uma representação para o “bem” (RIBEIRO, 1984, p. 663),
também se faz presente. Em meio à fúria das erínias e sangue, começa a chover torrencialmente.
Todas as pessoas da ilha fecham suas janelas e assim ninguém vê “o Espírito do Homem, erradio
mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía” (RIBEIRO, 1984, p.
673). Podem-se depreender aqui duas possibilidades distintas: que todos ignoram a existência
desse ‘bem’ que paira sobre nós ou que, mesmo que não o vejamos, o bem e a esperança
sobrevivem e estão sobre todos nós.
Portanto, o livro termina de um modo inconclusivo, mas inconclusivo exatamente por
perceber a vastidão do problema apresentado, por saber que o povo brasileiro ainda está em
formação e ainda não se conhece plenamente e por isso mesmo seria impossível dar um ponto
final à questão. Ao chegar à página final do livro o leitor se depara com o grande problema do
conhecer-se a si mesmo e ao outro e pode observar como muitas vezes a visão que criamos sobre
nós mesmos não é assim tão particular, mas está impregnada também pelo discurso que o outro
tece a nosso respeito.
Personagens como Maria da Fé, Patrício Macário e Júlio Dandão procuraram dar um novo
rumo a essa rede de construção de discursos e idéias, procurando a seu modo descortinar um
outro povo brasileiro, mais conhecedor de si e menos susceptível à parte deletéria das influências
dos grupos dominadores e de seus discursos.
6. CONCLUSÃO

Depois de todo o caminho percorrido até aqui, a qual conclusão se poderia chegar a partir
da leitura proposta para o livro de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro? Esta leitura
pretendeu ser um pouco distinta quanto ao foco em relação aos demais estudos realizados sobre
essa obra, uma vez que aqui o centro pairou sobre o discurso e sobre os objetos criados por esse
discurso, sejam eles acontecimentos ou mesmo a construção das pe rsonagens que fazem parte
deste universo narrativo.
Viva o povo brasileiro, em pleno século XX, retoma uma tônica de nossa literatura
iniciada pelo Romantismo, que buscava uma origem da nação, do povo, além de uma identidade
única, reconhecível, como por exemplo fez José de Alencar ao criar, pelas tramas do imaginário,
uma “virgem dos lábios de mel” que cumpriu seu papel de mãe do nosso povo. Utilizando suas
673 páginas para uma releitura do discurso da história, Viva o povo brasileiro apresentou um
importante diferencial: não possuiu a pretensão ou a ingenuidade de pensar ser possível encontrar
uma resposta única nesta busca. A obra valoriza sobretudo a pluralidade, a multiplicidade,
considerando, portanto, especialmente a variedade de vozes que compõem este universo, sendo
descartada a possibilidade de haver a verdade única, não sendo mais assim o discurso oficial
pertencente ao dominador, ao membro da elite, ao detentor de poderes (sociais, econômicos e/ou
políticos), o único possível, ouvindo-se agora o que as outras camadas da sociedade têm a dizer
sobre si mesmas, sobre onde vivem e principalmente como vivem: temos então a sua versão da
história.
Esta relativização de ‘verdades’ é marcada já desde a epígrafe do livro: “O segredo da
Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias” (RIBEIRO, 1984, p. 7). Se
119

somente existiriam histórias, por que não ouvir várias delas? É isto que faz Viva o povo
brasileiro.
Este belíssimo romance de João Ubaldo, repleto do mar e do sol da Bahia, está longe de
nos apresentar uma visão edênica do Brasil. O que faz o país não é (apenas) sua beleza natural,
mas sim, as pessoas que aqui estão. Desta forma, os grandes protagonistas deste romance e deste
trabalho são, indiscutivelmente, estas muitas e diferentes pessoas. Segundo a análise proposta,
interessa objetivamente como o discurso literário recriou e organizou as vozes dessas
personagens, como apresentou suas felicidades ou conflitos e como estabeleceu a interação entre
elas e entre elas e o mundo.
Por meio desta variedade e intercruzamentos de discursos no Brasil e sobre o Brasil, é de
fundamental importância compreender alguns elementos da constituição desses discursos como
quem fala, de onde fala, em que época fala e para quem se fala, pois é a conjunção de todos os
elementos, aos quais podemos chamar historicidade, que demarcam todo um apanhado de valores
sociais que, em profundidade, constituem essas vozes presentes na narrativa.
Mas em meio a tantos plurais, o título da obra tornou-se um suscitador de perguntas. Se,
ao primeiro contato pode-se observar uma exclamação insólita, sem o sinal de pontuação
utilizado normalmente nestes casos, pode-se também compreender o título como uma
conclamação à vida dos brasileiros, à sua perpetuação. De acordo com a leitura realizada aqui, a
segunda tendência parece ser a mais adequada: mais que uma exaltação, o título parece fazer um
convite à vida e ao conhecer a si mesmo por parecer ser este o fator fundamental à manutenção
desta vida.
Porém, observando atentamente, a análise recai até aqui exclusivamente sobre a palavra
“viva”. Mas, afinal, quem seria o povo brasileiro a que o título se refere? Conforme nós, leitores,
avançamos na leitura, deparamo-nos mais e mais com esta incógnita. Conforme aqui se observou,
de acordo com a voz que fala, ou seja, de acordo com a personagem a quem o narrador mostra,
dando- lhe voz, chegaremos a uma visão distinta. Observando cada personagem como um sujeito
histórico, membro de uma sociedade, em determinado local e em determinado tempo,
observamos as formas particulares com que cada um irá se referir ao povo, ou a que tipo de povo
pertence.
Neste ponto foram fundamentais as escolhas de personagens como Perilo Ambrósio,
Amleto Ferreira, Nego Leléu (Leovigildo), Zé Popó, Maria da Fé e Patríc io Macário para
120

compreender o processo de intelecção desta questão que é fundamental: de que povo se fala? Para
cada uma das personagens destacadas em um universo vastíssimo apresentado na obra, a idéia
lançada sobre quem é esse povo brasileiro irá variar sensivelmente.
Perilo Ambrósio representa no romance a figura do grande devorador. Da janela de seu
quarto observa seu império, as coisas que chama de “suas”, sejam elas terras ou homens. Por
meio de ardis contra sua própria família, um núcleo abastado e aristocrático português, toma para
si todas as posses, riquezas e terras forjando uma história de herói nacional, fingindo ser um
defensor dos interesses do Brasil em meio ao processo de Independência pelo qual passávamos
no século XIX. Seu plano se concretiza por meio de uma poderosa ferramenta: a palavra.
Ele mesmo arquiteta tudo o que é necessário para, sozinho, possuir riqueza e
conseqüentemente poder – valores altamente interligados na sociedade brasileira daquele século.
Assim, não participando efetivamente de nenhuma batalha, não tomando partido de qualquer
confronto pela Independência do país, vê sua família ter seus bens expropriados e passados para o
seu nome. Perilo não demonstrava qualquer simpatia pelo Brasil, mas sabia que uma
demonstração de patriotismo seria necessária a seus intentos.
Sujando-se com o sangue de um escravo, dando-lhe sucessivos golpes de faca, até mais
que o previsto, chegando a provocar a morte do negro Inocêncio, Perilo apresenta-se às tropas
brasileiras e constrói (discursivamente) uma história de luta pelo país. Cortando a língua do outro
escravo que o acompanhava, Feliciano, imaginava que sua farsa estaria assim protegida. Neste
caso, a palavra do negro é silenciada e prevalece apenas a versão narrada pelo futuro barão.
Dentre todas as personagens do romance, Perilo Ambrósio é uma daquelas que utilizam a
palavra como instrumento próprio para influenciar em fatos que tragam benefícios, construindo
uma história que jamais será contestada. Mesmo havendo Feliciano posteriormente desenvolvido
uma outra espécie de linguagem, sem palavras, contando o ocorrido a seus companheiros de
senzala, estes nada podem fazer para trazer a farsa à tona, posto que sua palavra, a palavra dos
escravos, nenhum peso teria diante da palavra de um membro de nossa aristocracia rural.
Mas, se pelo discurso não ganhariam esta batalha contra a tirania do dominador, acabam
por arquitetar para ele uma morte lenta e dolorosa. Sendo assim tão lenta, outro irá se aproveitar
da situação de abandono a que o grand e senhor deixará seus negócios. É neste momento que
emerge a figura de Amleto Ferreira, outro grande manipulador da palavra.
121

Amleto é mais uma personagem situada no Brasil rural do século XIX. Mulato, filho de
pai desconhecido – sabendo-se apenas ser um tripulante de navio mercante inglês aportado por
um curto tempo no litoral baiano – e de uma ex-escrava professora em uma pequena escola, esta
personagem representará a mobilidade social por meio de tramas bem pouco louváveis.
Com os estudos que teve, conse guiu a colocação de guarda- livros de Perilo Ambrósio.
Durante este período, sofreu com manifestações de preconceito que alimentaram ainda mais o seu
desejo de mudança social. Amleto concretizará a mudança social almejada por meio da fraude,
assim como seu patrão outrora a conseguira também.
Durante o período da doença de Perilo Ambrósio, Amleto, como guarda- livros, toma a
frente dos negócios e aproveita-se da situação para abarcar seus bens. Desta maneira, logo após a
morte de Perilo, Amleto ascende socialmente e por meio de acordos com a igreja e ainda com
outros arranjos sociais, consegue esconder, apagar, e reverter sua origem humilde e mulata,
passando a nobre cuja linhagem se perde na história de Inglaterra e Portugal. Esse é um ponto
essencial para que a ascensão social se faça em uma sociedade marcada pela escravidão.
A construção discursiva criada por essa personagem dá a ela uma nova identidade: uma
certidão de batismo falsa, conseguida por meio de farsa e dinheiro, deu a Amleto o pomposo
nome de Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton. Junto com a nova identidade, ele transforma-
se em um novo homem, de hábitos refinados, porém distantes da realidade brasileira e próximos
de uma realidade européia, com suas expressões em língua estrangeira e desjejuns de arenque.
Para ele, estes são os brasileiros, os europeus transplantados.
Ainda neste universo da casa- grande, aparece a figura de Leovigildo, o Nego Leléu, um
ex-escravo, pertencente a uma nova classe: dos trabalhadores livres, pobres e negros. O discurso
desta personagem vem carregado com a linguagem particular dos negros pobres do século XIX,
assim, o narrador não fala por ela, mas permite que ela fale a seu modo, segundo um registro
específico da língua e segundo sua própria consciência.
Quando se fala aqui em consciência alude-se a todo um conjunto, não apenas ao uso
particular da língua; também se fala aqui em valores que permeiam o universo da personagem.
Ao se considerar “povinho”, Leléu repete algo que constantemente ouve dos senhores, daqueles
que estão acima dele e que por meio desta palavra de autoridade, que se impõe sobre o outro,
molda-se o pensamento daqueles a quem procuram dominar, deixando-os sempre abaixo.
122

Leléu sabia que estava em posição mais cômoda que a dos outros negros, mas sabia que
era diferente dos senhores, e isso ainda era reforçado pelo discurso deste mesmo dominador, que
repetia sempre que ele era apenas e sempre seria esse “povinho”. Os discursos são também
ferramentas, portanto, de manutenção da ordem social no universo narrativo apresentado em Viva
o povo brasileiro. Por meio da palavra, ocorre esta influência ou sugestão ao pensamento. Por
isso personagens como Nego Leléu colocam-se em posição de tamanha inferioridade diante da
outra classe social, da elite, mesmo depois da alforria.
Depois de alforriado, pouco trabalho havia para um negro. Desta forma, Leléu parte para
uma profissão na qual irá negociar outros negros. Uma dessas mercadorias é Venância, mãe de
Maria da Fé, outra importante personagem do romance.
Mas antes de falar desta personagem, o narrador trata de toda a sua ascendência,
começando com o Caboco Capiroba, filho de negro e índia que vivia no espaço da floresta, nas
matas do Brasil no século XVI. Ao tratar de Capiroba, o narrador nos leva a um passado distante,
porém Viva o povo brasileiro não trabalha aqui com nenhum tempo mítico. Nosso passado é lido
a partir do discurso histórico que conhecemos aliado à visão do índio sobre tudo o que aqui
acontecia, especialmente o contato com as missões jesuíticas.
Neste ponto, a narração centra-se no discurso de autoridade dos jesuítas, porta-vozes da
Igreja Católica. Cumprindo este papel de ‘embaixadores da fé cristã’, passavam seus valores,
sufocando os valores já existentes naquela comunidade, ou seja, o discurso não funcionava em
uma via de mão dupla, dialogicamente, mas sim, em uma via de mão única, pela imposição.
Ao passarem a noção de pecado aos índios daquela pacata tribo da Bahia, práticas comuns
naquela comunidade foram banidas, assim como outras passaram a fazer parte do cotidiano. A
tribo com que estes jesuítas tiveram contato não possuía a tradição da antropofagia, mas, em um
exercício errôneo de generalização, sem levar em conta a especificidade de cada tribo do Brasil,
os jesuítas ali introduziram histórias sobre o ato de comer gente. Espantados por serem
condenados por aquilo que jamais praticaram, os índios eram mais e mais amedrontados e
subjugados pelos padres que, portanto, os condenavam até mesmo por aquilo que não faziam.
É neste momento que o Caboco Capiroba sai da comunidade em que vivia em direção às
matas juntamente com suas várias mulheres (prática obviamente também condenada pela cultura
cristã que lhe era imposta). Com fome e praticamente sem ter possibilidades de alimentar sua
123

família é que o surpreendente acontece: Capiroba mata e come o próprio padre que lhe havia
falado sobre a antropofagia.
As passagens que se seguem na narrativa em relação à antropofagia adquirida pelo
‘caboco’ e por sua família vêm recheadas de grande ironia e humor por parte do discurso
construído pelo narrador. Onisciente em relação à vida de Capiroba, ele nos revela o grande
número de padres, exploradores, comerciantes e toda sorte de estrangeiros que passavam pelas
matas e tornavam-se jantar daquele inusitado e isolado núcleo familiar. Até o ponto em que a
situação não é mais de caça, mas de ‘criação de rebanho’. Dois tripulantes de um navio holandês
que havia aportado próximo aos domínios de Capiroba são aprisionados como uma espécie de
gado de seres humanos. Muito se pode depreender desta insólita técnica.
Capiroba leva ao extremo aquilo que lhe fora incutido pelo discurso dos jesuítas, sendo o
próprio ‘professor’ a primeira refeição. Ao experimentar aqueles holandeses, Capiroba passa a
apreciar mais sua carne que a dos demais experimentados até ali – que foram os primeiros
colonizadores do Brasil, que como sabemos, era um conjunto composto pela “escória social da
matriz portuguesa” (RIBEIRO, 1996, p. 391). Este elogio à carne holandesa alude a uma pretensa
superioridade de uma colonização da Holanda no Brasil em relação à colonização portuguesa.
Experiências de países vizinhos provam que o sistema colonial de exploração é muito
semelhante, seja em uma colonização holandesa, espanhola, francesa, portuguesa... Sabemos que
“se” é uma palavra complicada em história, uma vez que não podemos prever algo desta
magnitude. Mas a observação do que foi feito em outras colônias de exploração como fora o
Brasil, permite afirmar que esta colonização holandesa não nos traria mais vantagens do que
trouxe a portuguesa.
Todavia, a alimentação não foi o único fim daquele gado holandês. Uma das filhas de
Capiroba, Vu, envolve-se com um dos holandeses e com ele gera uma prole miscigenada.
Importante salientar aqui que o ato da devoração empreendido pelo caboclo e por sua família não
possui os elementos rebaixadores encontrados em outros atos de devoração presentes no
romance, como os empreendidos por Perilo Ambrósio, seja em relação ao alimento, seja em
relação aos abusos sexuais: neste ato de devoração do outro, assimilam-se ou misturam-se valores
culturais, marcando uma miscigenação nas raças e nas culturas.
É desta descendência miscigenada e multicultural que vem Maria da Fé, marcada também
pela dilaceração, uma vez que todos os membros da família de Capiroba foram capturados e
124

vendidos como escravos. Todavia, como fora criada por Nego Leléu, tentou-se de todas as formas
afastá- la desta origem, até mesmo procurando-se fazer com que ela desconhecesse e nem jamais
entrasse em contato com o mundo da escravidão. Pensava assim que ela teria uma melhor
colocação social, afastando-se daqueles que eram os brasileiros mais aviltados.
Mas a jovem heroína do romance fará exatamente o contrário. Mesmo inserida em um
mundo de estudos e afastada dos escravos, ela buscará este universo do qual sabe fazer parte. E
mais: em movimento contrário ao de Nego Leléu, não procurará o afastamento e trabalhará pela
valorização dos negros e indígenas por meio de suas próprias escolas, ali os matriculando,
ensinando as letras, mas também, como ela mesma diz, o “orgulho”. Os discursos de Maria da Fé
são sóbrios, sem as marcas da paródia ou da caricatura como vimos em outros.
Apoiando-os, lhes dá o valor positivo que a sociedade escravocrata europeizada do século
XIX tentava esconder ou anular. É pelo discurso de Maria da Fé que aparecerão as primeiras
batalhas por esta valorização, lutando contra o constante aviltamento por que passavam. Embora
sempre que descobertas pelos senhores, suas escolas fossem fechadas, Maria da Fé percorria o
interior do país acreditando ser possível minimizarem-se os efeitos deletérios da influência dos
discursos do dominador, sempre repletos de racismo e depreciação.
Mais do que a destruição de suas escolas, a vida de Maria da Fé sempre esteve em risco.
Perseguida, poderia ter sua vida ceifada, fosse por senhores preocupados com a mudança de
pensamento que ela incutia nos escravos, fosse pelo Exército, que estava sempre à sua caça por
considerá- la perturbadora da ordem pública estabelecida. E é por causa de uma dessas incursões
militares que Maria da Fé conhece Patrício Macário, com quem terá uma difícil história de amor.
Patrício Macário é o filho mais novo do poderoso Amleto Ferreira, um dos senhores
contra quem Maria da Fé lutava. Fiel a seu objetivo de acabar com Dafé e seu bando, os
Milicianos do Povo, penetra nas matas, mas é capturado pelo adversário e é aí que ambos têm o
primeiro contato. Mas a união somente se dá depois que Macário compreende a luta que tentava
sufocar.
Durante a campanha na Guerra do Paraguai, Macário nos traz à tona uma parte da batalha
descartada pelos livros de história do Brasil: muitos oficiais de alta patente abandonavam seu
pelotão em meio ao fogo cruzado para se salvarem, enquanto seus soldados lutavam sozinhos,
como podiam. Ao ter contato com esta realidade, Macário sofre uma forte desilusão na
corporação que tanto defendia e que, cria ele, defendia o Brasil e os brasileiros.
125

De volta à casa na Ilha de Itaparica, vê, no terreiro próximo às terras de seu pai, um dos
ritos religiosos afro-brasileiros e que ali estavam homens que ele conhecera no campo de batalha,
valorosos e cumpridores do que lhes fora designado – mesmo que tomados pelo medo, como nos
afirmou Zé Popó. É pelas mãos dele que Macário penetra ainda ma is no mundo daqueles a quem
perseguira, num universo do qual agora faria parte.
Macário jamais toma conhecimento de que sua união com aquele grupo de escravos era
ainda mais forte, posto que seu pai conseguira magistralmente esconder sua ascendência negra,
renegando seu passado, tirando do convívio familiar a própria mãe, uma ex-escrava. Mas era
também Patrício Macário uma prova viva desta ligação, uma vez que era o filho de Amleto que
mais trazia nos traços a marca de suas origens. Mas pela orquestração perfeita do discurso forjado
de Amleto que isto jamais vem à tona e prevalece a verdade criada por esse discurso, prevalece a
história contada nos livros do British-American Institute for Genealogical Research, o que
confere ainda um caráter científico à farsa.
Ao fazer parte desta alta elite e por ser Maria da Fé uma mulata que transgredia a ordem
social estabelecida, o amor entre eles será marcado por obstáculos. Barrada pela impossibilidade
da união entre um membro da elite e uma filha de escrava, Maria da Fé renuncia à vida ao lado de
Macário. Mas não era apenas isso: Maria da Fé era fiel a seus ideais e casar-se seria por demais
‘tradicional’ para esta mulher; e além disso, não poderia, mediante seu projeto de vida, ter m
homem que a pudesse subjugar por ter com ela relações mais íntimas.
E assim, depois da desilusão com o mundo a elite, depois da desilusão com o mundo do
Exército, Patrício Macário mais uma vez sofre desilusão, agora no amor, e jamais durante toda a
sua vida irá se casar. Mas sua história de amor teve um fruto e repentinamente ele descobre que
teve um filho com Maria da Fé, um filho que igualmente luta pela justiça e valorização dos
excluídos de nosso sistema e ainda maior surpresa tem ao descobrir-se quase simultaneamente
fiel depositário da canastra, objeto mágico que guardaria os segredos, realizações e futuro do
povo brasileiro. E desta forma, com desilusões e surpresas, Patrício Macário viveu
conflituosamente sua ligação com as principais esferas sociais de seu tempo.
126

Depois de retomar assim mais brevemente a trajetória das principais personagens, é mister
observar algumas correlações e contrastes entre elas, a começar por algo bastante delicado: a
melhoria de vida, porque, afinal, todas as personagens enxergaram algo que lhes era desfavorável
e procuraram modificar este estado de coisas.
Para Amleto e Leléu ser mulato ou negro era sinônimo de intensas dificuldades e
aviltamentos: em uma sociedade baseada no sistema escravista não haveria como ser diferente.
Leléu consegue sua alforria, porém tem consciência de que jamais chegará a figurar entre os mais
prestigiados, estando, no máximo, um degrau acima daqueles outros negros ainda não alforriados.
Com um pouco mais de estudos e uma oportunidade que não foi desperdiçada, Amleto consegue
até mesmo deixar de ser mulato! Não houve mudança na sua pele, mas sim em sua posição social
e em sua conta bancária (diga-se de passagem, de seu próprio banco).
De modo particular, o que cada um procurou empreender foi uma mudança no campo
pessoal, ou seja, se o sistema desfavorece a negros e mulatos, procura-se sair destas classes.
Perilo Ambrósio é outra personagem que apenas procurou beneficiar-se com os recursos que o
próprio sistema lhe proporcionou. Reitero: estas personagens procuraram resolver seus problemas
apenas individualmente.
Maria da Fé também percebeu os problemas à sua volta, mas a solução procurada foi bem
diferente. Seu avô, Leléu, procurou dar uma educação ‘branca’ para uma ‘mulata’. Ela recusa o
estilo de vida por ele vislumbrado. Em meio aos problemas do sistema, ela não aceitará apenas
consertar as coisas para si mesma, mas parte em busca de um bem coletivo para aqueles que eram
por ela considerados os menos favorecidos. Maria da Fé, assim como Amleto, também rouba –
como no caso do roubo da coletoria de impostos. Mas, ao contrário das justificativas de Amleto,
que buscou um bem para si, Maria da Fé promoveu uma redistribuição, pensando assim auxiliar
outras pessoas. Corretos ou não, os meios são semelhantes.
127

No romance de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, parte-se de um princípio que
fundamenta toda a narrativa: a discussão acerca do discurso histórico que chegou a nós depois de
uma construção de aproximadamente de 500 anos, uma vez que pouco se fala sobre o período
anterior à chegada dos portugueses. O leitor que se põe diante desta obra tem sempre sua
memória ativada, revisitando fatos históricos conhecidos através dos livros. A palavra
“Contudo”, que abre o romance, nos mostra que aí haverá um diálogo com algo previamente
conhecido, que agora será discutido sob novos prismas.
Uma das grandes diferenças se faz agora pela inclusão de novos sujeitos enunciadores,
negros, índios – aqueles que poucas vezes figuraram no discurso precedente e que não contaram
até então sua versão da história, que não tiveram a oportunidade de assumirem a posição de
sujeitos do discurso. Com isso, até mesmo segundo nos aponta a epígrafe da obra, não existiriam
fatos incontestáveis, uma vez que são todos construções discursivas e portanto susceptíveis às
variações que isto implica. Desta forma questionamos o conhecido e podemos acrescentar novos
pontos de vista ao nosso ponto de vista.
Viva o povo brasileiro ressalta que o que tem existência real são essas construções
discursivas, cujas versões nem sempre correspondem umas às outras, mas se é com tais discursos
que temos contato, é sobre eles que devemos nos debruçar para análise. Com estes novos sujeitos,
novas versões nos são passadas e assim, todos os leitores dessa reconstrução da história são
levados a questionar tudo o que era conhecido até aquele “Contudo”.
O romance nos aponta novas versões sobre a instituição de heróis nacionais, fazendo-nos
pensar que até mesmo os considerados atos de heroísmo o são assim chamados exatamente pela
interpretação que fez dos relatos (construções discursivas) sobre eles. Até questiona se esta visão
Positivista da criação de heróis é realmente necessária. Temos neste caso, três personagens a
observar mais de perto: o Alferes Brandão Galvão, Perilo Ambrósio e Zé Popó. Um torna-se
herói ao acaso; outro cria para si a imagem de herói para disso tirar vantagens econômicas e
sociais; e o terceiro recebe o título de herói e renuncia a ele.
128

O Alferes Brandão Galvão jamais fora realmente um alferes. Jovem pobre, recebe de
presente uma farda e com ela se faz ver em toda a Ilha de Itaparica. Em meio às batalhas pela
defesa local em conflitos na época de nossa Independência, recebe um tiro e morre na praia
deserta sem nunca ter realmente sabido ao certo o que se passava no país. Todavia, os discursos
que se seguiram constituíram o herói: foi pela população local aclamado como defensor da ilha,
como se houvera morrido em combate.
Sabemos todavia, por meio do narrador, que Brandão Galvão nem ao menos sabia o que
fazia ali, trajado como guerreiro, sem tomar partido do que acontecia ali ou no restante do Brasil.
Mas a posteridade não considera o que não se soube e que nós leitores somente ficamos sabendo
graças ao narrador, que tem acesso aos pensamentos da personage m. Porém, o que tem validade
para o futuro é o discurso construído a partir dali. Em quadro pintado em homenagem ao ‘herói’,
ficamos cientes de que o falso alferes é tido como eloqüente orador, que na hora da morte teria
perorado às gaivotas, proferindo um discurso altamente patriótico. É esta a representação que
muito bem reforçada pela imagem de um quadro figurará no ideário do povo da ilha. Por isso
pode-se afirmar que Brandão Galvão é um herói ao acaso.
Perilo Ambrósio Góes Farinha representa um outro tipo de herói, um herói construído
pela farsa. Expulso do convívio de sua abastada família portuguesa, se passa por herói nacional,
defensor do Brasil contra o colonizador português. Neste conflito Brasil X Portugal, Perilo vê a
chance de tomar para si todos os bens da família, herdando sozinho fortuna e terras sujando-se
com o sangue do seu escravo e apresentando-se ao alto comando das tropas brasileiras como
combatente. Com a expulsão da família, consegue, sem grande esforço, tudo e todos – porque
aqui falamos também de escravos que antes pertenciam àqueles que o expulsaram do antigo e
agora destituído clã português. Como corolário da farsa, recebe o título de barão.
Estava também, como nos diz o narrador, acompanhado por um segundo escravo, que,
embora não tivesse sido morto, tivera a língua cortada para que jamais contasse a ninguém o que
havia acontecido aquele dia.
O nosso terceiro herói é Zé Popó, um negro combatente na Guerra do Paraguai. Este
soldado estivera na linha de frente deste que fora um dos mais violentos conflitos armados no
qual nosso país se envolveu. Durante a batalha, Zé Popó procurou lutar, mas também salvar a
vida de colegas soldados e outros de patente mais alta. Ao retornar à casa na Ilha de Itaparica,
seria homenageado, declarado herói de guerra, mas dispensa a honraria. Afirma que apenas
129

procurou salvar-se a si mesmo e que muitas vezes, isto era sinônimo de salvar os que estavam à
sua volta.
Mais do que isso, afirmou, diante de uma platéia atônita, que a imagem mais marcante da
guerra não era a queda do suposto inimigo, pessoas humildes e comuns como ele, mas que
marcante mesmo eram as ‘bicheiras’ que tomavam os corpos cheios de feridas. Assim, a guerra
para ele representa um sinônimo de putrefação e dilaceramento.
Todas essas histórias de heróis nos são exemplos de como o discurso é o grande
construtor das imagens que atravessam o tempo, de como o discurso, como uma construção
dialética, acaba por constituir os objetos. Brandão Galvão e Perilo Ambrósio são heróis pela força
do discurso, e Zé Popó, que poderia colher os louros de uma vida de herói por causa da maneira
como suas ações no campo de batalha foram interpretadas, preferiu declarar o que realmente
sentira na guerra: medo, e assim, igualmente pelo discurso, recusa o rótulo.

Viva o povo brasileiro, como se procurou ressaltar até aqui, é um romance que evita uma
visão única, absoluta do caráter nacional brasileiro ou da chamada, procurada e nunca encontrada
até então ‘identidade nacional brasileira’. Os focos deste trabalho foram, sem dúvida, as
personagens criadas por João Ubaldo Ribeiro, sendo que cada uma delas, e isto é o mais
importante aqui, representa uma consciência individual independente deste autor ou do narrador
por ele criado nas malhas do romance.
Segundo Mikhail Bakhtin, nos romances polifônicos, em oposição aos monológicos, cada
personagem é um ideólogo, e sua fala, um ideologema. Desta forma, cada uma delas expressa
livremente a sua concepção ideológica sobre esse caráter nacional, sendo que para tal análise,
levaram-se em conta uma série de fatores como o lugar de onde a personagem fala, o tempo no
qual está inserida e especialmente a sua colocação nos estratos de nossa sociedade de classes.
Somente desta forma foi possível confrontar e comparar as diferentes posições ideológicas e,
conseqüentemente, discursivas daquelas escolhidas para análise mais aprofundada neste trabalho.
130

Despido de tautologias unificadoras da identidade nacional, Viva o povo brasileiro


privilegia a exposição e muitas vezes o embate entre as diferentes concepções apresentadas,
salientando como essas diversidades estão subordinadas aos interesses (louváveis ou nem tanto)
de vários grupos.
Aqui, mais uma vez, concorda-se com Bakhtin, quando o russo nos afirma que todo o
sujeito é sempre um sujeito histórico, ou seja, pertencente a um tempo, a um lugar, a uma
sociedade, com suas normas, padrões, leis, cultura, etc. Com isso, por isso e ainda em associação
com as escolhas feitas pelo autor é que as personagens parecerão tão autônomas em relação a
uma consciência extrema. Assim mesmo as personagens estão intimamente ligadas ao grupo a
que pertencem (em meio a tantos possíveis numa sociedade) ou, por outro lado, podem estar
titubeantes ao confrontarem tão diferentes gamas de valores – basta passar da casa-grande para o
terreiro, do palacete nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo para os barracos da periferia.
Tratamos aqui de sujeitos históricos, que nos rodeiam no mundo e que o autor recriou e
uniu para que se conhecesse mais ou de forma diferente os muitos brasileiros que compõem a
nação. Mas é interessante que se observe que romance não é uma grande colcha de retalhos na
qual se unem lado a lado algumas dezenas de personagens. O trabalho do autor não consiste em
apenas pinçar da realidade material alguns tipos sociais e colocá- los no papel. Mikhail Bakhtin
nos afirma em seu livro Questões de literatura e de estética que o autor faz com que as diversas
vozes sociais sejam estilizadas e assim reinventadas segundo as intenções deste autor naquele
romance específico, moldando-as e recriando-as de acordo com os vários sentidos que,
posteriormente, também em um processo igualmente complexo e dialógico, o leitor criará no ato
da leitura – sempre único, mesmo que se leia várias vezes o mesmo livro.
Seja no tom solene de personagens como Maria da Fé ou Patrício Macário, seja no tom de
paródia e ironia com Perilo Ambrósio ou com o alferes Brandão Galvão, o discurso sempre será
organizado de modo a servir à crítica e às análises empreendidas pelo autor – conjunto de
sentidos a que Bakhtin chama de intenções do autor, como dito acima.
Viva o povo brasileiro trabalha assim largamente o contraste entre os acontecimentos
informados e as versões que também emergem e sobrevivem ao tempo, perpassando a memória
das pessoas, ou pela escrita, na história contada em livros. Os traços característicos da fala de
cada uma das personagens também ajudam a compor um quadro sóbrio ou de solenidade irônica,
parodiada revestindo novas supostas verdades.
131

Todavia, esta sátira com que é tratada muitas vezes a fraude não recai apenas na
irreverência e no riso, mas especialmente em seu caráter denunciador, atacando aquilo que for
considerado um mal social a ser combatido. Assim a sátira torna-se uma das principais armas de
denúncia contra a imaculada fachada da elite dominante, erguida por meio de ardis e astuciosas
construções discursivas. E esse dado por si só não seria tão forte se isolado. Como nos afirma o
professor Alcmeno Bastos: a mentira, para ascender ao status de verdade “depende da hipocrisia”
(BASTOS, 2002, p. 5), ou seja, no valor de uma propina ou de qualquer outro elemento de
corrupção, favores e jogos de interesse, a fraude é aceita e todos os que dela sabidamente
compartilham saem ganhando de alguma forma. Nada é gratuito.

O jogo entre a figuração do preciso e do impreciso também se apresenta. Em Viva o povo


brasileiro vemos o contraste entre o palpável e o provável, não sendo nem um nem outro
sinônimos de verdade inconteste. Pode-se fazer aqui uma comparação entre a palpável porém
falsificada certidão de nascimento de Amleto Ferreira, que o transformou no honorário senhor
Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, e a canastra da Irmandade do Povo Brasileiro,
representação de um vínculo entre pessoas, sem que ela seja jamais descrita com exatidão,
imergindo muitas vezes no mundo do fantástico, do extraordinário, do impreciso, portanto.
O narrador permite-se e até mesmo mostra-se favorável a este contraste, sendo fiel à única
certeza que tem: de que o que realmente perdura, modificando-se, ganhando novos elementos e
fixando-se no tempo é o discurso que constitui esses objetos. Desta forma, mais do que
desmascarar a fraude – uma vez que o narrador, conhecedor do desfecho da história, sabe que a
fraude não será abalada e que aqueles que a maquinaram jamais serão descobertos –, a narrativa
se abre para a apresentação destes novos sujeitos discursivos, todos aqueles que foram renegados
pela versão considerada de prestígio em nossa sociedade.
Assim, aceita-se a existência do documental e de todos os mecanismos que puderam ser
utilizados como manipuladores dos fatos históricos na corroboração da versão produzida por
membros da elite, como a justapõe à versão narrada por aquele outro grupo menos privilegiado.
Verdadeiros ou não, canastra ou certidões cumprem seus papéis – simbólica ou materialmente. O
132

romance em questão, por mais que apresente críticas mais veementes a certo segmento social e a
certas práticas ou ponha em xeque certas crenças e acordos tácitos, não apaga ou desconsidera
nem uma nem outra versão da história, porque, por mais que saibamos de fraudes ou de
elementos místicos ou maravilhosos que envolvem essas versões, o que vale é que todas elas têm
seu público, todas elas contam com alguém que deposita confiança no que lê ou no que ouve.
Todavia, isto não é, de forma alguma, sinônimo de neutralidade, pois sabemos que
nenhum discurso é neutro. O que ocorre é o reconhecimento da validade das mais diversas vozes
sociais que compõem o povo brasileiro. O que ocorre largamente no romance é o enfoque
itinerante em vários espaços de enunciação: com a pluralidade, o processo de produção de
sentidos toma formas ambivalentes, afirmações e sistemas culturais são observados em suas
especificidades. Ao notar isso, João Ubaldo evita o discurso da originalidade e da pureza da
identidade nacional, trazendo à tona as construções discursivas oriundas de vários desses espaços,
com vários enunciadores.
Entre os seus críticos, é largamente comentada a importância deste romance como um
portador do universo negro na literatura nacional. Trazer novos enunciadores abrange trazer o
negro, seus discursos, sua visão de mundo, sua cultura. Antes do século XX foram muito parcas
tais participações do negro na literatura nacional. No século XVI o negro aparece em alguns
textos informativos, muito esporadicamente. Já o poeta Gregório de Matos Guerra também cita os
negros, mas descrevendo-os ora em estereótipos positivos, ora negativos, assim como tratou
rapidamente da questão dos mulatos que freqüentemente renunciavam às suas origens.
Mas tudo isso ainda é muito esparso. Somente no século XIX o enfoque muda mais
sensivelmente em relação à participação do negro na sociedade. Dentre os românticos, a figura
mais notória é a de Castro Alves, chamado até mesmo de ‘o poeta dos escravos’. Foi dos únicos a
tratar de modo mais veemente a escravidão, a exploração, o tráfico negreiro. Castro Alves trouxe
à tona o problema, posicionando-se contra o sistema vigente.
Anos mais tarde as escolas literárias chamadas Realismo e Naturalismo figuraram os
negros por mais um ângulo, fazendo-os aparecer ainda mais fortemente, agora em romances –
forma literária originalmente burguesa. E aqui podemos falar de romances como O mulato e O
cortiço, que foram marcos no século XIX.
Mas há outro grande momento de diferencial em nossa literatura: o olhar para o Brasil
passa por uma nova fase no início do século XX com Os Sertões, de Euclides na Cunha, sobre o
133

qual a presente análise não se deteve, mas vê como importante marco de uma nova visão sobre o
Brasil pobre, do interior, esquecido pelas avassaladoras mudanças que chegavam aos grandes
centros, aliada à instabilidade política do novo regime republicano, que ainda se organizava:

O livro deste (Euclides da Cunha), revelou em 1902 uma imagem bem diversa
do país: o interior miserável e esmagado, submetido a uma cruenta repressão militar, que
no fundo refletia o desnorteio das classes dirigentes e as desmoralizava como guias do
país (...). A partir de Euclides da Cunha, deveria ter ficado pelo menos constrangedor o
ângulo eufórico, que recobria a incompetência e o egoísmo das classes dirigentes.
(CANDIDO, 1995, p. 14)

Todos estes foram, enfim, precursores da tendência de olhar para o país não apenas a
partir de seu umbigo elitista, mas foram obras que olharam para os lados, para o trabalho pesado,
para as dificuldades e aviltamentos pelos quais passavam os filhos menos abastados da terra. A
partir do caminho aberto por seus predecessores, João Ubaldo Ribeiro pôde arquitetar um
romance no qual resgata antigas tradições, revisitando os negros de que falou Castro Alves e o
sertão que Euclides da Cunha mostrou ao sul do Brasil – lembrando que personagens de Viva o
povo brasileiro saíram também em busca do sonho de vida melhor e mais justa no Arraial do
Canudos, sendo portanto um pedaço de nossa história clara e diretamente citado no romance.
Importante se faz ressaltar aqui que todo esse olhar para o negro não traz consigo
nenhuma idéia de superioridade negra, não é como uma inversão de poderes. E quando trata da
cultura negra, o romance também não a expõe sob o lado do exotismo: apresenta, por exemplo, a
religião, como mais um elemento cultural, como expressão particular e legítima de um povo,
como constituinte de sua visão de mundo.
Ao confrontar a cultura hegemônica com esta outra cultura, Viva o povo brasileiro
apresenta as mais diversas posturas que se pode assumir perante as diferenças. Observamos no
romance como cada uma das personagens lida com esta questão, assim como cada leitor é levado
a pensar que postura assume diante deste mesmo tema. Esta tônica é mesmo própria da grande
literatura: apresentar algo e nos fazer tomar uma posição diante do problema exposto.
Por não ser um romance monológico, apresenta vários caminhos e dentre eles a própria
possibilidade do monológico, que acaba por ser solapada pela instabilidade, pelo movimento,
pela pluralidade. Assim, revisitam-se discursos de autoridade, que rejeitam as classes populares e
134

em um movimento de reordenação, adiciona -se este outro mundo, na verdade o mesmo mundo,
mas visto segundo o conjunto de valores dos anteriormente excluídos. Desta forma, podemos
promover um diálogo entre a polifonia deste romance e o monologismo que perdurou no Brasil
até próximo da data de publicação desta obra, sustentado pelo Regime Militar, que excluía,
exilava, torturava e matava aqueles que pensavam de modo diferente ao que era a todos imposto.
Viva o povo brasileiro procura a interação, propondo que deste contato venha à tona uma
relação min imamente harmoniosa, da qual resulte algo diferente de quaisquer extremismos,
radicais a ponto de rejeitar qualquer voz dissidente, mas também diferente da universalidade
absoluta, que acabaria por arbitrariamente negar as particularidades desde ou daquele grupo. Em
meio a tudo o que almeja, a harmonização, o contato, não pretende jamais apagar as diferenças,
mas sim, respeitá-las, colocando-as em constante processo dialógico.
Estaria o cerne desta questão passando pela necessidade de auto-afirmação diante da
ameaça constante representada pela assimilação? Seria o fim desta ameaça o ponto de partida
para uma nova perspectiva, ainda a ser escrita? Penso que é bastante difícil vivermos o fim desta
ameaça, uma vez que ela faz parte dos jogos de poder tão intrinsecamente arraigados no homem.
Todavia, um romance como Viva o povo brasileiro apresenta possibilidades em meio às
dificuldades impostas pelo próprio homem e pelas sociedades que construiu: a convivência em
um mesmo espaço tomado por muitos e diferentes sujeitos.
Relacionar-se com o outro, dialogar, trocar, sem que nenhum perca sua individualidade,
mas tendo todos afinal sua experiência enriquecida: a identidade nacional, que tanto vinculam a
este grande romance, mostra-se como um processo dialético infindável! e não como um produto
finalizado, escondido em algum lugar, pronto para ser descoberto. É desse processo dialético que
este romance, que percorre séculos de nossa história, se nutre.
135

Viva o povo brasileiro é uma obra rica em questionamentos sobre o Brasil,


questionamentos que não se encerram no caráter sucinto deste trabalho. Enfim, ao se chegar à
conclusão, tem-se a certeza de que esta análise está apenas no início.
Aqui, observar a pluralidade, tomar consciência das diferenças – sem esperar nem querer
que elas se apaguem – e não ter uma visão idealizada de se buscar um Brasil com uma identidade
demarcada: tudo isto representa o primeiro passo, o primeiro e dos mais importantes passos para
a compreensão de algo que jamais ficará completo, “mesmo porque nenhum conhecimento fica
completo nunca” (RIBEIRO, 1984, p. 211).
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ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10

2. O NARRADOR EM VIVA O POVO BRASILEIRO...........................................................17

2.1. O tempo da narrativa..........................................................................................................22

2.2. Uma das histórias dentro da história...................................................................................25

2.3. A incerteza do real..............................................................................................................28

2.4. Quando o narrador se mostra..............................................................................................31

3. OS POVOS BRASILEIROS.................................................................................................34

3.1. Muitos vivas.......................................................................................................................34

3.2. Povo brasileiro....................................................................................................................37

3.2.1. Preliminares....................................................................................................................37

3.3. Alguns brasileiros...............................................................................................................44

4. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O PODER: PERILO AMBRÓSIO E AMLETO


FERREIRA................................................................................................................................49
4.1. Perilo Ambrósio..................................................................................................................50

4.2. Amleto Ferreira...................................................................................................................61

4.2.1. Considerações finais sobre Amleto Ferreira....................................................................79

5. O DISCURSO, AS HISTÓRIAS E O OUTRO PODER: MARIA DA FÉ E PATRÍCIO


MACÁRIO................................................................................................................................81

5.1. Preliminares.......................................................................................................................81

5.2. Para chegar à Maria da Fé..................................................................................................82

5.3. Maria da Fé.........................................................................................................................92

5.4. Patrício Macário..................................................................................................................99

5.4.1. Um segredo de muitos...................................................................................................113

6. CONCLUSÃO.....................................................................................................................118

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................135

Índice.......................................................................................................................................139

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