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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, n o. 1, p. 097-106, jan./jun.

, 2010

DIVERSIDADE CUL
DIVERSIDADE TUR
CULTUR AL,
TURAL,
EDUCAÇÃO E
TR ANSCUL
TRANSCUL TUR
ANSCULTUR ALISMO
TURALISMO
CRÍTICO –
UM R ASCUNHO INICIAL
RASCUNHO
PAR
ARAA DISCUSSÃO

Moisés de Melo Santana*

Diversidade Sabemos hoje que as identidades culturais produção de identidades? Somos paradoxal-
cultural, educação
e Transculturalismo não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. mente portadores da possibilidade de ser-
crítico – São resultado sempre transitórios e fugazes mos uno e diverso; seres “incompletos” e
um rascunho inicial
para discussão
de processos de identificação. Mesmo as “inacabados” que nos “completamos” e “aca-
identidades mais sólidas, como a de mulher,
bamos” através da cultura.
homem, país africano, país latino-americano
Moisés de Melo
ou país europeu, escondem negociações de
Essa condição fantástica de sermos uno
Santana
sentido, jogos de polissemia, choque de e diverso será o nosso ponto de partida.
temporalidades em constante processo de Segundo Geertz (1978), um dos fatos mais
transformação, responsáveis em última significativos ao nosso respeito pode ser, fi-
instância pela sucessão de configurações nalmente, que todos nós começamos com
hermenêuticas que de época para época dão equipamento natural para viver milhares de
corpo e vida a tais identidades. Identidades espécies de vida, mas terminamos apenas
são, pois, identificações em curso. por viver uma espécie. Tendo essa condi-
(SANTOS, 1994, p.31) ção como um pressuposto, a multiculturali-
dade humana deverá ser compreendida
Como a diversidade cultural brasileira como uma expressão daquilo que nos cons-
vem informando os currículos escolares e a titui ontologicamente. Somos seres portado-

* Professor adjunto e diretor do departamento de educação da etnicidade, diversidade cultural brasileira e educação. E-mail:
UFRPE. É Doutor em educação pela PUC-SP e desenvolve moises.santana@pq.cnpq.br
pesquisa financiada pelo CNPQ sobre multiculturalismo,

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res da possibilidade de nos produzimos di- existentes no interior das abordagens po-
versamente. Essa possibilidade inscrita nos líticas que incorporam tal vertente analítica.
seres humanos, deve-se à complexidade e A formação sociocultural brasileira, diver-
riqueza cognitiva que portamos. Ela permite sa e complexa, emerge num cenário de mu-
ao ser humano habitar o planeta e produzir danças que estão se processando no
identidades de forma interativa e dinâmica, continente europeu. O colonialismo nasce no
até em espaços aparentemente inóspitos e interior dessas transformações. O projeto co-
impossíveis de se viver. lonial irradiou um conjunto de elementos que
Ora, essa possibilidade nos coloca diante estruturaram profundas desigualdades so-
da denominada diversidade cultural humana, ciais, étnicas, raciais no mundo ocidental. O
dos processos pelos quais tal diversidade é pro- racismo e as relações escravocratas foram
duzida. Os processos produtivos das identi- produtos dessa engrenagem. Ora, a materia-
dades e das diferenças na sociedade são lização dessas relações não foi linear, houve
realizados em circunstâncias históricas e socio- diferenças significativas na maneira como o
ambientais determinadas; envolvem relações escravismo se desenvolveu nesse período
de poder, sejam entre classes sociais, homens nos países do continente americano. A for-
e mulheres, homens e natureza, judeus e pa- ma e a intensidade do escravismo brasileiro,
lestinos, muçulmanos e cristãos, nordestinos por exemplo, tem peculiaridades que o dife-
e sulistas, negros e brancos, pobres e ricos, rencia dos demais países ou regiões da Amé-
jovens e adultos, entre outras infinitas possibi- rica. Ele durou quase quatrocentos anos e
lidades de interações sociais assimétricas. Os estruturou-se em todo o imenso território du-
diversos modos de ser nos colocam diante das rante esse período. Outro aspecto, diz respei-
reflexões sobre o multiculturalismo enquanto to à quantidade de escravizados vindos para o
expressão desses processos constitutivos da nosso país até 1850. Em alguns países da
vida humana no planeta. América do Sul, como Peru e Colômbia, a
Segundo Santos (2003), o termo multicul- escravidão ficou circunscrita a determinadas
turalismo se tornou um modo de descrever áreas, mas, no Brasil, enraizou-se em toda
as diferenças culturais em um contexto trans- a extensão territorial.
Diversidade
nacional e global. Ainda segundo ele, a noção Moura (1989) afirma que importamos per- cultural, educação
de multiculturalismo é controversa e crivada por to de 40% do total de 9.500,000 escravizados. e Transculturalismo
crítico –
tensões, sendo possível a sua utilização, si- Esses dados são superiores aos desembarca- um rascunho inicial
para discussão
multânea ou alternada, para descrever rea- dos nos Estados Unidos 6%, e “e bem mais do
lidades culturais múltiplas no mundo, como dobro dos que foram para a América Espanhola
Moisés de Melo
também, para anunciá-lo enquanto um projeto 18%, para o Caribe inglês 17% e para o Ca- Santana
político cultural orientador de políticas de iden- ribe francês 17%”. A condição de senhor e es-
tidades. Nesse sentido, podemos perceber um cravo estruturaram a dinâmica das relações
universo variado de concepções e tendências sociais ao longo dos séculos no Brasil. Os es-
em torno das perspectivas multiculturais. cravizados negros criaram várias e diferentes
Para Hall (2003), partindo de uma obser- formas de resistência. Entre elas, temos a mais
vação de Homi Bhabha, relativa à expansão significativa e permanente, presente até os dias
do termo multiculturalismo de forma hetero- atuais que foram os Quilombos. A educação
gênea e do “multicultural”, como um signi- escolar brasileira é um elemento dessa trama
ficante oscilante, propõe-se a utilizá-lo, formativa da sociedade brasileira, o modo como
mesmo que continuamente interrogando-o. a nossa diversidade foi administrada ao longo
Aponta um conjunto de concepções no cam- dos séculos. Qual é a curricularidade subja-
po das perspectivas políticas multiculturais. cente a esse processo?
O multiculturalismo conservador, o liberal, o A escola e os currículos corporificam re-
pluralista, o comercial, o corporativo, o crítico lações de força que ajudam a produzir iden-
ou revolucionário, reafirmando as tensões tidades sociais prolongando várias das

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relações de poder existentes na sociedade. de trabalho escravo, levando-os a re-elabo-
Quando fazemos essas afirmações, não en- rarem suas tradições e costumes. Sob a dis-
tendemos o currículo apenas como um con- tinta e adversa situação, eles mantêm os
junto de conhecimentos, mas como um cantos de trabalho, mesclando suas línguas
artefato social e cultural que produz inclusões com o português, possibilitando a própria
e exclusões. ocultação do sentido daquilo que cantavam.
Podemos afirmar que o nosso sistema es- A música ocupava uma centralidade no
colar institucionalizou-se conflitivamente, a cotidiano da vida do negro escravizado. Eles
partir de uma perspectiva cultural que admi- desenvolveram uma variedade de cantos de
nistrou a diversidade cultural brasileira desde trabalho, talvez como forma de concentrar
uma perspectiva eurocêntrica. Os interesses forças para as árduas tarefas e atenuar o
predominantes da monocultura da cana-de- sofrimento corporal. A música e a dança tam-
açúcar formataram, durante séculos, as insti- bém estavam presentes nas festas e nas vi-
tuições socioculturais brasileiras e a nossa vências religiosas, contudo muitas vezes
escola é filha desses interesses. Podemos eram reprimidas1.
enumerar um conjunto de elementos, tanto no O que os portugueses chamavam generi-
plano estrutural quanto no cotidiano das práti- camente de batuques, nos séculos dezoito e
cas pedagógicas, em qualquer nível de ensi- dezenove, começava a se delimitar, pois re-
no, a fim de evidenciar tal afirmação, como por presentava uma variedade de práticas religi-
exemplo, os livros de história, geografia, a for- osas, de lazer, de danças rituais, que pouco a
ma de organização do espaço físico escolar, o pouco foram assumindo formas específicas
desconhecimento da história e culturas africa- e definidas.
nas, entre outros. Com isso, não estamos ne- A participação dos brancos e mestiços
gando, nem desconsiderando, a existência de nesses batuques foi desenvolvendo um pro-
práticas e experiências em desenvolvimento, cesso de elaboração cultural em que há uma
que apontam para outras direções. mescla de elementos das culturas africanas
A matriz cultural africana ressignificada com as européias possibilitando o surgimen-
no espaço colonial brasileiro desenvolve-se to de diversos gêneros musicais e de dan-
Diversidade
cultural, educação de forma diferente da cultura portuguesa. Po- ças ao longo de nossa história: samba de
e Transculturalismo demos tomar como exemplo a música e a umbigada, samba canção, samba choro, ma-
crítico –
um rascunho inicial dança para imaginarmos as novas formas racatu, maxixe, lundu, coco, capoeira, fre-
para discussão
de produção cultural que estão se proces- vo, samba-reggae, entre outros.
sando no interior da formação sociocultural Esse processo é central para entender-
Moisés de Melo
Santana brasileira. Os trabalhos de Tinhorão (1988, mos o Brasil contemporâneo, está presente
1991) possibilitaram o acesso a um rico uni- um passado-futuro da negritude brasileira.
verso de informações. Em um desses traba- Será que essas questões têm alguma coisa a
lhos, o autor analisa os cantos de trabalho ver com os nossos currículos escolares? Com
dos negros do campo e da cidade. a relação entre corporeidade e educação?
De acordo com Tinhorão (1988), na Áfri- Na nossa maneira de apreendê-las, es-
ca Ocidental, o fato de todos os atos do dia sas questões podem nuclear algumas discus-
reger-se por vontade sobrenatural levou os sões fecundas e contribuir provocativamente
africanos a desenvolverem um complexo ri- no repensar práticas e concepções pedagó-
tual que exigia, para diferentes ações, can- gicas denominadas progressistas.
tos e danças. As denominadas canções de Esses elementos nos indicam a neces-
trabalho porém, assumiram feições distintas sidade de recolocarmos novas questões em
na Ámérica, pelas próprias condições de tra- pauta. A provocação pós-moderna de rein-
balho vividas pelos escravizados. trodução de uma lógica nebulosa, no inte-
Há uma espécie de divórcio entre a tra- rior das práticas educativo-culturais, é
dição africana e as inesperadas condições instigante pelas possibilidades de se traba-

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lhar no entrejogo de certezas e incertezas A educação popular não se restringe a
que, segundo Assman (1996), constitui um ela, mas engloba toda educação que se
aspecto importante no novo cenário episte- destina às classes populares: a que se
mológico da educação. vincula ao movimento popular de forma
direta, mas também a que é organizada
Ao que Assman chama atenção com base
pelo Estado, incluindo-se aí o ensino atra-
em pesquisas de biocientistas, é que há na vés do sistema de educação formal des-
vida uma constante interpenetração de caos tinado a adultos e também à população
e ordem, equilíbrio. Nesse sentido, o autor em idade escolar (PAIVA, 1980, p.80).
aponta para a necessidade de uma pedago- Mesmo discordando da formulação, pois
gia plástica e sinuosa que incentive certezas não vincula a educação popular a um pro-
operacionais e preserve incertezas sobre ca- jeto histórico social, esta colocação capta o
minhos, para que sejam buscadas e não es- grande desafio da educação popular nos
tejam predefinidas (ASSMAN, 1996, p.17). anos 80-90: o aprofundamento do processo
Ora, a partir dos anos 1970, tivemos um de democratização da sociedade brasileira
profícuo movimento no sentido de construir e a ampliação da cidadania do plano formal
uma abordagem crítica no campo educacio- para o econômico, social e político-cultural.
nal. Podemos inclusive afirmar que, lenta- Acreditamos que há um aumento das
mente, tivemos a constituição de diferentes tensões em torno do desenho predominan-
concepções educativas críticas, formuladas te de administração da diversidade cultural
no interior das diversas práticas educativas, brasileira. São vários os fatores que devem
sindicais, nos movimentos sociais e nos cur- ser levados em conta para apreendermos
sos de pós-graduação, entre outros. essas tensões. Um deles refere-se aos com-
A produção crítica inicial esteve marca- plexos processos de redefinição identitária
da pelo pensamento denominado reproduti- em curso no mundo, fruto das significativas
vista, pela pedagogia freiriana da libertação mudanças que vêm acontecendo desde os
e, posteriormente, pela abordagem grams- finais dos anos cinqüenta do século XX em
ciana. Não era possível, no período, pensar diferentes planos da vida social. Essas trans-
em um projeto pedagógico crítico no seio da formações nos possibilitam formular um con- Diversidade
escola pública. A educação pública era ana- junto de perguntas à educação escolar.
cultural, educação
e Transculturalismo
lisada a partir de uma perspectiva que não Ora, formular perguntas, provocações, crítico –
apreende a conflitividade, um rascunho inicial
não quer dizer que tenhamos condições de para discussão
a concepção da educação apenas como respondê-las de imediato. Desejamos, nes-
imposição do ‘arbítrio cultural’ (Bourdieu se primeiro momento, nos aproximar dos Moisés de Melo
e Passerom, 1975) ou como ‘inculcação Santana
problemas sugeridos nos perguntando: re-
ideológica’ (Althusser, 1974; Baudelot e
Establet, 1971) ou seja, como reproduto-
sidem na instituição escolar, possibilidades
ra das idéias, valores e interesses da clas- de transformá-la num complexo institucional
se dominante é falsa, especificamente interativo, com flexibilidade para dialogar de
porque mascara a luta de classe e a con- forma mais dinâmica com outras formas de
flitividade da ordem capitalista (SOUZA, produção cultural, ou seja, abrir-se em um
1987, p.174). movimento profundo de reestruturação de
Esta concepção foi sendo superada já nos sua própria institucionalidade?
finais dos anos setenta2. Paiva aponta uma É possível o currículo escolar ser imagina-
questão que de fato será central durante a do como um espaço de confluência de sabe-
década de 1980: Como pode ser a educação res e epistemologias ausentes da escola? É
popular um instrumento de fortalecimento da possível que os corpos aprendentes possam
sociedade civil, (PAIVA, 1980, p. 79). produzir-se, diferente e prazerosamente, na
Nesse sentido propõe uma conceituação busca de novos caminhos emancipatórios? Ou
mais abrangente para a educação popular: eles necessariamente são um espaço do mono,

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do uno, da repetição, mesmo que incorporan- perspectiva formativa apontada anteriormen-
do, na forma de adereço, novos discursos, me- te. Então, no nosso entendimento é necessá-
todologias, todavia se mantendo inalterada a rio articular os conceitos de multiculturalismo,
sua lógica? Quais as experiências efetivas de- interculturalismo e transculturalismo.
senvolvidas nos espaços escolares que indi- O multiculturalidade é expressão da pró-
cam novos caminhos? pria condição humana, ser uno e diverso, ca-
No caso brasileiro, a nossa apartação so- paz de criar, a partir da complexidade cognitiva
cioracial contribui para a produção de espa- de que somos portadores, diversos modos de
ços antidialogais. Pensamos que esses habitar o planeta. Os processos de produção
espaços antidialogais aprofundam o proces- desses modos culturais, contudo, são consti-
so de desconhecimento, de falta de interação tuídos nas relações inter e intraculturais, so-
entre os diferentes brasis. A nossa metáfora mos um “interser”, essencialmente interativo,
Os brasis não conhecem os brasis... sintoni- nos constituímos em interações, ou seja, os
za-se com esse aspecto. Apontamos a ne- processos são interculturais. No entanto, a
cessidade de aprofundarmos a discussão em forma de lidar com os processos nos convida
torno de perspectivas pedagógicas que con- a pensar sobre as perspectivas formativas,
tribuam com a formulação de projetos forma- as maneiras em que são administradas as
tivos que efetivamente possibilitem o diálogo relações inter e intraculturais. Nesse sentido,
e o trânsito entre as diferentes matrizes cultu- podemos afirmar que os processos institucio-
rais brasileiras. Esse diálogo poderá ocorrer nais formativos de produção de identidades
sugestivamente a partir de uma perspectiva expressam perspectivas, tendências, mesmo
que redesenhe a maneira de perceber e de que elas não estejam explicitadas.
interagir, nos diferentes espaços educativos. O transculturalismo crítico, no seu dese-
Esses processos formativos mais abertos e nho e esboço inicial, concebe a diversidade
criativos devem incorporar a diversidade bio- biossociocultural, como um princípio formati-
sociocultural como um princípio orientador de vo fundamental, pois expressa tanto a com-
políticas culturais e curriculares. plexidade ecossistêmica quanto a condição
Essa perspectiva exige, do ponto de vista ontológica humana, ser uno e diverso, porta-
Diversidade
cultural, educação metodológico, um revisitar crítico do próprio dor de possibilidades e produtor de incom-
e Transculturalismo lugar do sujeito, suas histórias, memórias, afe- pletudes culturais. Assim sendo, o diálogo é
crítico –
um rascunho inicial tos, a fim de poder transitar criticamente por elemento central, estruturador. Ele exige aber-
para discussão
outros lugares. Nesse sentido, o próprio lu- tura e conhecimento crítico sobre o outro. É
gar cultural do sujeito é colocado em ques- impossível transitar de forma respeitosa sem
Moisés de Melo
Santana tão. Essa abordagem não visa à eliminação abertura para dialogar. As relações temporais
dos lugares, mas procura potencializá-los. entre passado, presente e futuro devem ser
Parte do princípio que não há lugares que repensadas, pois não produzimos linearmen-
devam ser absolutizáveis. Essa perspectiva, te a história. A perspectiva historiográfica ben-
contudo. metodológica não defende um rela- jaminiana pode contribuir com a elaboração
tivismo generalizável, em que tudo se equi- desse esboço, rascunho metodológico.
vale desde que se escolha o ponto de vista É necessário, no entanto, levar em con-
apropriado: o perspectivismo leva a indiferen- ta alguns elementos. Faremos isso inicial-
ça e à renúncia a todos os valores (TODOROV, mente a partir de Munanga (1996), da sua
1999, p.304). formulação do Brasil como um mosaico cultu-
Essa abordagem impõe uma aproximação ral e linguístico.
em diferentes planos, como também, um diá- Aos portugueses juntaram-se outros po-
logo transversal, fecundo, produtivo, entre os vos brancos da Europa, Ásia e dos países
brasis. Ela nos convida a conhecer os outros árabes. Esse fluxo migratório começa com
como forma de nos conhecermos. Denomi- os holandeses no Nordeste brasileiro no sé-
namos de transculturalismo crítico essa culo XVII, culminando com as correntes

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migratórias que, a partir de 1808, fixaram cer- senhada. Freyre consolida o mito originário
ca de 5 milhões de indivíduos no país. Para do triângulo racial brasileiro. O núcleo é a
Munanga, além dos portugueses, que goza- dupla mistura, ou seja, cruzamentos raciais e
vam de estatuto especial, outros grupos na- culturais, base para a elaboração do mito da
cionais brancos compuseram tal mosaico: democracia racial3.
italianos, espanhóis, alemães, austríacos, Para Munanga (1996), tal perspectiva en-
russos, sírio-libaneses, poloneses, romanos, cobre os conflitos raciais, dificulta a tomada
lituanos, ingleses, suíços, iugoslavos, france- de consciência, pelas comunidades subal-
ses, húngaros, belgas, suecos, thecos e ju- ternas, de suas características culturais.
deus. A esses diferentes contingentes vieram Essas características são ‘expropriadas’, ‘do-
juntar-se, no início deste século, os imigran- minadas’, e ‘convertidas’ em símbolos nacio-
tes asiáticos: chineses, coreanos, vietnami- nais pelas elites dirigentes. Segundo esse
tas e japoneses. mesmo autor, Freyre não considera as rela-
Segundo Munanga (1996), a miscigena- ções assimétricas de poder entre senhores
ção foi uma característica marcante, desde e escravos, contexto de surgimento dos pri-
o período colonial, em que brancos e índios, meiros mestiços.
brancos e negros, índios e negros, deram Para Munanga, mesmo diante de todas
origem a um contingente expressivo de mes- as perspectivas analíticas, não se pode ne-
tiços. Tal condição nos coloca diante de uma gar empiricamente a posição dos negros e
enorme diversidade físico-biológica e cultu- mestiços na estrutura social, econômica e
ral. Ora, a questão que se coloca, principal- política do Brasil. A categoria que serviu de
mente depois da independência e da base para a construção da identidade nacio-
abolição da escravatura, ou seja, integração nal, a mestiçagem, não conseguiu resolver os
jurídica dos ex-escravizados negros na so- efeitos da hierarquização dos três grupos de
ciedade, é a da formação de uma nação e origem e dos conflitos de desigualdade racial
de um povo. Essa problemática está ligada daí resultantes. Há no sistema sócio-racial
à questão da identidade nacional. A formu- brasileiro uma inteligência e eficácia, pois o
lação de uma teoria do tipo étnico brasileiro, mesmo é capaz de manter uma estrutura ra-
Diversidade
ou seja, como transformar essa pluralidade cista sem hostilidades abertas aos negros, cultural, educação
de raças, mesclas, culturas, valores civiliza- como as encontradas em outros países. Essa e Transculturalismo
crítico –
tórios, numa coletividade de cidadãos, numa condição, segundo Munanga, poderia ser um rascunho inicial
para discussão
nação, num povo. Foi entre a Independên- explicada pela ideologia profundamente as-
cia, em 1822, e os anos trinta do século XX, similativa. Assim, nós produzimos uma ideia
Moisés de Melo
que tivemos a definição da denominada iden- de identidade mestiça que subordinou a ex- Santana
tidade nacional brasileira. pressão e produção da diversidade.
Em 1930, as orientações raciológicas, do A construção da identidade nacional, teci-
fim do século XIX, tornam-se obsoletas. É nes- da entre o final do século XIX e os anos trinta
se contexto que surgem as elaborações frey- do século XX, vai sendo paulatinamente pro-
rianas, que desloca o eixo de discussão, do blematizada nos últimos vinte anos. È neces-
conceito de raça para o de cultura. Munanga sário, no entanto, realizar algumas mediações
referenciando-se em Ortiz (1994) afirma que para situar, de maneira perspicaz, os proble-
essa passagem permite um maior distancia- mas que envolvem as concepções relativas
mento entre o biológico e o cultural, eliminan- à produção de identidades culturais, nos anos
do um conjunto de dificuldades colocadas noventa do século XX. Para pensar a década
anteriormente com relação ao mestiço. de 1990, no entanto, faz-se necessário re-
Para Freyre (1936), na sua obra clássica, cuperar a história dos conflitos passados, tal
Casa Grande & Senzala, a mestiçagem é como apontou Goodson (1995), pois, senão,
vista positivamente, completando os contor- corremos o risco de deixar sem questiona-
nos de uma identidade que vinha sendo de- mento e sem análise uma série de priorida-

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des, produtos culturais e hipóteses que foram mente, a tentativa de rememoração integral.
herdadas e deveriam estar no centro das in- Ela afirma ainda, que Kafka “instalou-se sem
vestigações e dos esforços teóricos e opera- tropeços e sem lágrimas na ausência do senti-
cionais dos educadores. do”. Benjamin vê nessa qualidade, sua extra-
A ideia de mosaico linguístico e cultural ordinária modernidade, cruel e serena.
de nossa diversidade é extremamente im- Para Benjamin, a obra de Kafka conta o
portante, pois, em nosso entendimento, é processo de desagregação da tradição e
preciso dar mais visibilidade a tal diversida- desaparecimento do sentido primordial na
de, problematizar radicalmente as tramas, os modernidade. Para ele, Kafka conta-nos com
labirintos da constituição dessa diversidade. minúcia extrema, até mesmo com certo hu-
Como a nossa diversidade cultural vem mor, ou seja, com uma dose de jovialidade
informando a construção social dos currí- (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 1994, p18).
culos? Somos um segundo ‘Japão’ fora do Para a autora, se lêssemos as teses ben-
Japão; somos um segundo ‘Líbano’ (ou pri- jaminiana sobre a história, à luz dessas ob-
meiro) fora do Líbano; somos, fora do con- servações, veríamos o quanto Benjamin
tinente africano, o maior país negro, só para deve à estética proustiana.
fixarmos alguns exemplos: temos uma enor- Benjamin, em Experiência e pobreza,
me diversidade lingüística; são várias as lín- inicia o texto com uma parábola de um ve-
guas indígenas: o português do Brasil sofreu/ lho que revela aos filhos no momento da
sofre uma profunda influência do yoruba, morte, a existência de um tesouro enterrado
todavia não o estudamos formalmente em em seus vinhedos, todavia,
nenhum curso de letras no Brasil. (...) os filhos cavam, mas não descobrem
Essas pontuações demonstram que o re- qualquer vestígio do tesouro. Com a che-
exame da história da diversidade cultural, seu gada do outono, as vinhas produzem mais
processo constitutivo, conflitivo e sua relação que qualquer outra da região. Só então
compreenderam que o pai lhes havia
com os processos educativos são essenciais.
transmitido uma certa experiência: a feli-
Contudo, além de ser uma tarefa de grande cidade não está no ouro mas no trabalho
Diversidade envergadura, é desafiadora, pois a mesma (BENJAMIN, 1994, p. 114).
cultural, educação
exige uma reapropriação crítica do nosso pas-
e Transculturalismo Ora, o choque de temporalidades pode
crítico – sado. Podemos voltar aos elementos da con-
um rascunho inicial produzir novos sentidos, rememorar fatos,
para discussão tribuição benjaminiana ao nosso esboço. Para
juntar fragmentos, ressignificar experiências,
Gagnebin, o método historiográfico benjami-
visando inseri-la no fluxo da história, acordar
Moisés de Melo niano deve à estética proustiana.
Santana
silenciamentos que dormitam no passado,
A mesma preocupação de salvar o pas- necessitando ser acordadas.
sado porque este assume uma forma no Para Benjamin, nada do que aconteceu
presente graças à percepção de uma se-
pode ser considerado perdido para a história.
melhança que os transforma os dois:
transforma o passado porque este assu-
Ora, ele está chamando a atenção para os
me uma forma nova, que poderia ter de- elementos que podem ser negligenciados, e
saparecido no esquecimento; transforma assim, estarem fadados ao esquecimento.
o presente porque este se revela como Como esses elementos podem indicar pistas,
sendo a realização possível dessa pro- sugerir caminhos para as práticas curricula-
messa anterior, que poderia ter-se perdi- res no interior da sociedade brasileira?
do para sempre, (...) (GAGNEBIN, Acreditamos que repensar a educação
1994.p.16). escolar, a fim de contribuir efetivamente na
Para Gagnebin, se Proust personifica a for- construção de identidades policêntricas, é
ça salvadora da memória, Kafka representa na mexer profundamente com os nossos pro-
filosofia benjaminiana, o tema do esquecimen- cessos constitutivos, é desenhar e experi-
to. Para ela, Proust também representa, ardua- mentar novas perspectivas formativas.

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Podemos voltar ao tema formulado e, con- tária formal e substantivamente. Para tal,
cluindo, dizer que construir um Projeto Po- será necessário reinventarmos profunda-
lítico-Pedagógico que tenha a diversidade mente as instituições formativas no interior
como um foco formativo é essencial para a da sociedade brasileira. Esse será um dos
consolidação de uma mentalidade antirra- grandes desafios civilizatórios que teremos
cista, antissexista, anti-homofóbica, iguali- que enfrentar.

Diversidade
cultural, educação
e Transculturalismo
crítico –
um rascunho inicial
para discussão

Notas Moisés de Melo


Santana

1
O ex-governador de Pernambucano escreve sobre as ma- 2
O retorno de Paulo Freire, depois de quinze anos de exí-
nifestações (música/dança) negras (...) o certo seria reprimir lio, acedeu a chama da esperança em uma prática pedagó-
uns(‘os bailes que entendo serem de total reprovação são gica emancipadora. Organizada pelo professor Carlos
aqueles que os pretos da Costa da Mina fazem as escondi- Rodrigues Brandão, é publicada em 1980 A questão polí-
das, ou em cazas ou roças com huma preta mestra com altar tica da educação popular. Essa coletânea apresenta uma
de Ídolos [i e., com ialorixá e peji] e liberar os outros. E assim amostra das experiências e reflexões realizadas nesse cam-
realmente aconteceu, uma vez que, logo após tomar conhe- po por sete educadores, entre eles, Paulo Freire, Vanilda
cimento desse parecer do Conde Pavolide, de 10 de Junho, Paiva e Silvia Maria Manfredi, cujo artigo constitui uma re-
o ministro Martinho de Melo, Já a 4 de julho daquele mesmo leitura da educação popular no Brasil a partir de Antônio
ano de 1780, enviava ao governador de Pernambuco um aviso Gramisci. Realizando a crítica de trabalhos, cuja ótica privi-
ordenando-lhe a parte de sua magestade ‘não permitisse as legia a reprodução das relações sociais de produção (...)”
danças superticiosas e gentílicas’, mas quanto às demais (SAMPAIO, 1994, 40).
‘dos pretos, ainda que pouco inocentes podiam ser tolera- 3
Somos um povo misturado, portanto miscigenado e acima
das, com o fim de evitar-se com este menor mal outros ma- de todas as diversidades biológicas e culturais que dificul-
les maiores, devendo contudo usar de todos os meios suaves, tariam nossa união e nosso projeto enquanto nação e povo;
que a sua prudência lhe sugerisse, para ir destruindo pouco somos uma democracia racial porque a mistura gerou um
a pouco um divertimento tão contrário aos bons costumes. povo acima de todas as suspeitas raciais e étnicas, um povo
COSTA Apud TINHORÃO, 1995, 44). sem barreiras e sem preconceito (MUNANGA,1996, p.190).

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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, n o. 1, p. 097-106, jan./jun., 2010
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