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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES

LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR


NA FICÇÃO BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER

RIO DE JANEIRO
2014
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LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES

LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR NA FICÇÃO BRASILEIRA DO


SÉCULO XIX

Tese apresentada ao programa de Pós-


graduação em História Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de doutor em
História Social.

ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER

Rio de Janeiro
2014

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Esteves, Lainister de Oliveira


Literatura nas sombras: usos do horror na ficção brasileira do século
XIX
VIII, 250 f.: il.; 30 cm.
Orientador: Andrea Daher
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2014..
Referências: f. 236-249.

1. Horror literário 2. Literatura brasileira 3. Nacionalismo


literário – tese. I. Daher, Andrea. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em História Social. III. T.

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LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES

LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR NA FICÇÃO BRASILEIRA DO


SÉCULO XIX

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andrea Daher (orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________
Prof. Dr. Abel Barros Baptista
Universidade Nova de Lisboa

______________________________________________
Prof. Dr. Karl Erik Schollhammer
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______________________________________________
Prof. Dr.ª Lucia Ricotta Vilela Pinto
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

______________________________________________
Prof. Dr.ª Maria Cristina Batalha
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de


Janeiro.

À professora Andrea Daher, referência intelectual fundamental para minha formação ao longo
dos anos.

Ao professor Abel Barros Baptista pela acolhida em terras lusitanas e pelos valorosos
comentários acerca do horror literário.

Ao programa de bolsas do CNPq pelo suporte financeiro, sem o qual este trabalho não seria
possível.

Ao programa de bolsas da CAPES pela concessão da bolsa-sanduíche que possibilitou o


estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa, fundamental para a realização deste
projeto.

À minha família pelo carinho e apoio incondicional.

À minha esposa pelo companheirismo e dedicação. Por tudo, para sempre.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o horror na ficção brasileira do século XIX. Para
identificar as diferentes formas de imaginação literária do horror presentes na literatura do
período são analisadas obras publicadas em livros, jornais de grande circulação e periódicos
acadêmicos. Para os propósitos aqui expressos, o horror não configura um gênero específico,
é, primordialmente, um dispositivo que permite organizar textos diversos nos quais ele está
presente e dos quais faz emanar determinado efeito. A investigação inicialmente toma como
objeto a literatura gótica surgida na Europa do século XVIII: a transformação por ela efetuada
nos hábitos de leitura e o lugar central que ocupa no debate estético romântico. A análise
desse fenômeno permite estabelecer paralelos com a produção literária brasileira e entender
de que forma a consagração do paradigma crítico realista levou o horror à condição de
vertente literária desviante quando considerados os cânones literários brasileiros.

Palavras-chave: gótico; romantismo; horror; literatura brasileira; nacionalismo literário.

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ABSTRACT

The aim of this work is to analyze the horror in the 19th century Brazilian fiction published in
books, large circulation newspapers and academic journals. For the purposes here expressed,
terror does not set a specific genre. It is a device that allows to organize various texts in which
he is present and which makes emanate a specific effect of fear. The research initially takes
the gothic literature that has emerged in Europe in the 18th century as object: the
transformation it made in reading habits and the central place that occupies in romantic
aesthetic. The analysis allows to draw parallels with the Brazilian literary production and to
understand in what way the consecration of a realistic critical paradigm turn horror into minor
literature in face of the Brazilian literary canon.

Keywords: gothic; romanticism; horror; Brazilian literature; nationalism.

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INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8

1. DEFINIÇÕES DO HORROR LITERÁRIO

1.1. A invenção do gótico moderno....................................................................................12


1.2. A expansão do gótico no século XIX...........................................................................25
1.3. Matrizes conceituais e modelos literários do horror....................................................39
1.4.Variações em torno do horror e do fantástico...............................................................60

2. O HORROR ACADÊMICO NA LITERATURA BRASILEIRA

2.1. A modelização literária do terror.................................................................................71


2.2. A dramatização literária de tipos românticos..............................................................90
2.3. A proximidade do estranho: do interdito ao fantástico..............................................105

3. O HORROR NAS CHAVES DA AMENIDADE E DA IRONIA

3.1. A difusão do medo em jornais e folhetins..................................................................121


3.2. Um terror de interesse doméstico...............................................................................131
3.3. O irônico horror machadiano......................................................................................151

4. A EXCEÇÃO DO HORROR EM CAUSOS, LENDAS E ROMANCES

4.1. Autores menores........................................................................................................173


4.2. Os alfarrábios de José de Alencar..............................................................................191
4.3. As lendas e os causos de Bernardo Guimarães..........................................................200
4.4. Aluísio Azevedo e o misterioso Victor Leal..............................................................211

CONCLUSÃO.....................................................................................................................229

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................236

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Introdução

No artigo “Du fantastique en littérature”, publicado na Revue de Paris em 1830,


Charles Nodier defende a imaginação fantástica como remédio necessário à razão moderna,
uma forma de escapar do tédio que assolaria o homem contemporâneo. O fenômeno literário
seria como uma força sinistra e maravilhosa, surgida quase como efeito colateral do
pensamento iluminista, o outro lado do espelho de uma sociedade cética, contramão do
esforço de superação da obscuridade. As paisagens do romance noir que reafirmam os
mistérios da natureza dariam voz ao silêncio dos corações e aos segredos das mentes, em uma
época em que os discursos buscam dar conta de territórios inexplorados para iluminar uma
escuridão reinventada nas cores do romantismo. No jogo que propõe a ausência de regras
como paradigma, a busca de uma representação íntegra do homem significará também a
aproximação definitiva da literatura com o mal.
No entanto, mesmo anunciada como extravasamento de poderes reprimidos, a ficção
se consolida como triunfo da razão, monumento ao controle da capacidade de fabulação que,
na chave do sublime, traduz o prazer como abalo das sensações. Estruturada como um
laboratório de simulação no qual as sensibilidades são medidas nos limites do risco e da
eficácia, a produção literária passa a se valer do horror como elemento crucial para a
educação estética. A habilidade sensível, calculada segundo os parâmetros ideais da empatia,
transforma-se também em referência de juízo moral, e o medo se converte em um dos elos
fundamentais da relação entre a literatura e os modos de percepção. É de acordo com essa
lógica que, a partir da segunda metade do século XVIII, com o advento dos romances góticos,
o discurso ficcional passa a ser o lugar de produção e reprodução de um repertório de temas
insólitos. Objeto da atenção erudita, o fantástico se multiplica na linguagem reproduzida
como elemento transitório na busca do efeito de horror. A proliferação de histórias sinistras é
parte fundamental da ressignificação do maravilhoso, que ao perder espaço como elemento de
percepção da realidade, se redefine nos hábitos de leitura. O discurso ficcional passa a
difundir os medos de um mundo imaginário refeito como “fenômeno de biblioteca”1.
A ênfase na peripécia em detrimento da densidade da linguagem é a marca dos
“fenômenos editoriais”. Novos casos, tramas e sensações implicam na secularização das
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1
FOUCAULT, Michel. “Posfácio a Flaubert”. In: Estética: literatura e pintura; música e cinema. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, p. 80.

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formas de imaginação. Como literatura cotidiana, esses dispositivos se multiplicam para


comoção de um público interessado na experiência fugaz de um prazer que lembra a
obscuridade para diminuí-la nos domínios de uma empatia controlada. Assim a tradução
letrada do horror refaz o sentido do sobrenatural explicado pelo próprio registro ficcional
reduzindo a fabulação às artimanhas de uma recém-construída autoridade autoral que
evidencia a artificialidade do que propõe.
Nos séculos XVIII e XIX as formas de imaginação literária do horror variam, o que
torna difícil definir aquilo que seria chamado de “literatura de horror” no século XX. Apesar
de não haver uma classificação precisa, as representações do estranho e a busca do efeito de
horror são pontos comuns que permitem pensar a especificidade desse tipo de ficção. Nas
representações de uma modernidade sombria veiculada a uma polissêmica taxonomia
romântica essa ficção se popularizaria, o que atesta que, se o romantismo não inventou a
perspectiva da afetação, converteu-se em sua forma moderna graças à reabilitação do debate
acerca do sublime. A tentativa de buscar na estética o consolo para o esvaziamento da
experiência que define o sublime, traduz a consciência da finitude como dramatização do
insólito e ao mesmo tempo faz da originalidade o confronto imediato com a regularidade das
formas clássicas. Nesse universo repleto de mistérios, as sombras oferecem a tonalidade ideal
para que um “novo personagem” possa atuar. O homem integralmente representado com suas
nuances de clareza e escuridão, e de beleza e fealdade ganha a cena sob o imperativo da
complexidade dramática. O belo e o horrível se encontram quando a figura do homem íntegro
surge como revelação do mal.
Com o objetivo de rastrear as formas e os usos do horror na literatura brasileira
oitocentista, analisam-se no primeiro capítulo textos considerados fundamentais para a
definição da modernidade do horror. Por representar a contramão da razão iluminista, o gótico
produzido majoritariamente na Europa e nos Estados Unidos assume o risco não só de insuflar
os fantasmas de um mundo obscuro que supostamente teria ficado para trás como de revelar
as tensões entre as formas de imaginação literária do horror. O problema que começa como
risco de retorno da superstição se desdobra em tênue limite do bom gosto, argumento decisivo
para o controle das motivações fantásticas. Além de possibilitar considerações mais amplas
acerca das definições do horror como tema literário, a análise das circunstâncias de produção
e consumo desses textos ajuda a entender a circulação deles no Brasil.
Abordando mais especificamente o objeto deste estudo, o segundo capítulo trata da
ficção veiculada prioritariamente em periódicos acadêmicos paulistas em meados do século
XIX. Configurando um tipo particular de horror literário esses textos têm o cinismo como
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tema central, o que os aproxima de uma linhagem romântica representada exemplarmente por
Lorde Byron. Da eleição de uma tradição boêmia articulada na correspondência entre vida e
obra, constrói-se um corpus macabro inserido diretamente nos debates em torno da definição
dos rumos da literatura brasileira. O horror acadêmico exagera os temas românticos
transformando autores-chave, como Álvares de Azevedo, em personagens de uma decadência
moral que abalaria os valores da cultura ocidental. Em textos cuja circulação restrita
possibilitou a consagração do excesso como marca identitária, a transgressão entre pares
permite a exploração deliberada de um horror focado no dilema espiritual extravasado na
violação dos corpos reiterando a relação entre deboche e representação da morte.
No terceiro capítulo observa-se como o horror é difundido em jornais de grande
circulação a partir da segunda metade do século XIX. Os contos macabros divididos em duas
chaves analíticas distintas, a amenidade e a ironia, passam a fazer parte do cotidiano de
leitores interessados em peripécias folhetinescas e em breves enredos insólitos. No horizonte
da literatura amena, os mistérios são resolvidos como peças pregadas pelo narrador, o que
evidencia uma relação de maior cumplicidade com o público, enquanto na lógica da ironia
machadiana o narrador constrói os limites de sua narração como elemento de promoção do
mistério. A proliferação dessas histórias depende da suavização dos temas românticos
acadêmicos. Esses textos têm em vista um “leitor sentimental” que, afeito às matérias mais
delicadas do romantismo, pretendem seduzir. Autor destacado na produção desses contos,
Machado de Assis, leitor confesso de Edgar Allan Poe e de Ann Radcliffe, aparece como um
dos mais constantes artífices do horror na literatura brasileira do período.
No quarto e último capítulo são analisadas obras de maior fôlego, tanto de autores
que não participam do cânone literário brasileiro quanto dos canônicos cujas obras “de
horror” são menosprezadas pelas histórias literárias. A exclusão obedece ao paradigma
nacional-realista que reserva ao horror o lugar paralelo de vertente literária desviante. Essas
obras seriam consideradas menores, seja pela falta de refinamento estético – traduzida
geralmente como incapacidade de apreensão da realidade –, seja pela vocação para o simples
entretenimento nas horas de ócio. A análise de alguns textos de José de Alencar, Bernardo
Guimarães e Aluísio Azevedo, por exemplo, deixa claro que, a partir da segunda metade do
século XIX, a “imaginação romântica” passa a representar o suposto desvio do realismo e é
duramente criticada em defesa de projetos considerados mais condizentes com a verdadeira
vocação da literatura brasileira, ou seja, a representação do nacional.
O caráter abrangente deste estudo prioriza a relação entre os textos e não a análise
pormenorizada das obras. O objetivo é identificar diferentes configurações do horror , assim
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como suas funções no campo literário brasileiro do século XIX. As composições são
analisadas segundo a relação entre fabulação ficcional e projeto literário. Para os propósitos
aqui expressos, o horror, também comumente expresso como terror, não configura um gênero
específico que se poderia definir como gótico, grotesco, fantástico ou noir2. É pensado como
dispositivo presente em diferentes textos que o conformam como efeito. Artifício
historicamente datado aplicável a diferentes modelos narrativos, o horror se transformou em
elemento-chave na produção e no consumo literários no Brasil a partir do século XIX. O
esforço de interpretação das obras que o exploram pressupõe a tentativa de restituir as
legibilidades passadas, e tal restituição, por sua vez, baseia-se no mapeamento dos problemas
que estruturam essas obras, organizam-nas e lhes dão sentido no seu tempo.

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2
A escolha do uso do termo “horror“,em detrimento de “terror”, se dá em função de sua maior
ocorrência no debate literário e também por sua definição em língua portuguesa incluir, além dos sentimentos de
pavor e repulsa, as sensações de incômodo e de receio. Todavia, em alguns casos, o termo “terror” também será
utilizado para evitar a repetição excessiva de um mesmo termo. Em todo caso, há uma certa equivalência dos
termos “horror” e “terror” e recorrência das imagens que os relacionam, por exemplo, às “trevas” ou às
“sombras”. Esses termos encontram-se, muitas vezes, indiscriminadamente usados nos materiais estudados. Ao
longo desta tese, em cada um dos casos em que houver especificidade de nomenclatura, ela será evidenciada na
análise.

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1. Definições do horror literário

1.1. A invenção do gótico moderno

The Castle of Otranto, romance de Horace Walpole publicado em 1764 sob o


pseudônimo de Willian Marshal, pode ser considerado o marco inicial da dita literatura
gótica. Já em 1796 T.J. Matthias, em The Pursuits of Literature, reconhecia a obra do escritor
inglês como a origem de uma nova, popular e prodigiosa forma de escrita3. O romance trata
da perseguição do príncipe Manfred a Isabella, com quem tenta perpetuar sua linhagem. Ela
deveria se casar com Conrad, filho do príncipe, mas no dia do casamento o jovem morre,
misteriosamente atingido por um capacete gigante. Manfred então percebe que uma antiga
profecia se cumpriria e o castelo seria ocupado por outra família. Para não perder o trono,
divorcia-se de sua esposa Hippolita e passa a perseguir Isabella. No final, a jovem se casa
com o virtuoso Theodore, empregado de Manfred, que se revela o verdadeiro herdeiro do
trono. Nesse quadro estão estabelecidos os elementos básicos da literatura gótica: um castelo
mal assombrado; um vilão, uma bela e inocente vítima, e um herói.
Os prefácios escritos por Walpole para as duas primeiras edições mereceram especial
atenção da crítica. O primeiro, publicado na primeira edição do romance, é uma ficção que
revela pretensões de autenticidade histórica. Nele o narrador se apresenta como William
Marshal que diz transcresver uma história medieval italiana escrita por Onuphrio Muralto –
cônego da igreja de São Nicolau situada em Otranto – na época das cruzadas e impressa em
15294. O título impresso é The Castle of Otranto, a Story.
O texto teria sido encontrado na biblioteca de uma tradicional família católica do
norte da Inglaterra e impresso em Nápoles. Os acontecimentos extraordinários da trama são
tratados como exemplo da mentalidade obscura das épocas mais sombrias do cristianismo,
mas a linguagem não teria o que o autor do prefácio chama de “barbarismo”. O estilo, dotado
de beleza e sutileza, seria “puramente italiano”. Para o prefaciador, as soluções dramáticas

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3
A hipótese é sustentada, por exemplo, por críticos como H.P. Lovecraft (Supernatural Horror in
Literature, cuja primeira versão foi publicada em 1927 na revista The Recluse); David Punther (The Literature of
Terror: a History of Gothic Fictions from 1765 to the Present Day, 1980); E.J. Clery (The Rise of Supernatural
Fiction, 1995); Maggie Kilgour (The Rise of Gothic Novel, 1995); Fred Botting (Gothic, 1996) e Andrew Smith
(Gothic Literature, 2007).
4
BOTTING, Fred. Gothic. New York: Routledge, 2010, p. 49.

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oferecidas pelo autor não são muito relevantes, pois os leitores deveriam tratar a obra como
simples entretenimento, como alusão a uma mentalidade graças à primazia da razão:
“Miracles, visions, necromancy, dreams and other preternatural events, are exploded now
even from romances.”5.
O romance não faria muito sentido na ilustrada sociedade inglesa a não ser por sua
aguçada precisão dramática capaz de envolver os leitores pelo vigor da trama. Ainda no
prefácio, em um esforço de contextualização fictícia, Willian Marshal diminui a importância
da fantasia, defendendo a obra do ponto de vista formal. O leitor seria atraído pela
objetividade de uma narrativa que não perde o foco: a catástrofe eminente não seria permeada
de frivolidades nem de descrições desnecessárias, pois tudo funcionaria de acordo com um
mecanismo preciso: o horror. Ele seria a tecnologia literária responsável por manter o
interesse, por capturar a mente pelo apelo das paixões suscitadas. Em um sistema de valores
em que o fantástico e o miraculoso parecem ter perdido espaço para uma racionalidade
esclarecida, The Castle of Otranto se apresenta como exercício lúdico da imaginação, em que
a técnica propõe um olhar circunstancial para um tempo estranho. Dramatiza um mundo
antigo, um passado remoto sem data expressa, retomado como alteridade confortável e deleite
da imaginação segura.
Reconhecendo que a moral da história poderia ser mais sofisticada, o autor, na figura
de seu pseudônimo, afirma estar convicto de que a trama é composta de fatos reais, e as
precisas descrições do castelo comprovariam que Onuphrio Muralto o conhecia pessoalmente.
No entanto, a tarefa de descobrir a verdade por trás da misteriosa narrativa é atribuída a algum
hipotético leitor curioso, interessado em provar a veracidade dos eventos narrados, o que
torna o romance ainda mais interessante e comovente. O prefácio termina com uma irônica
sugestão de pesquisa, e a suposta veracidade proposta a um público teoricamente incapaz de
se impressionar com os eventos sobrenaturais narrados é apresentada como elemento
persuasivo. Matreiramente, o fim do prefácio lança a semente da desconfiança sem se
comprometer com a verossimilhança. O truque é ressaltar o ceticismo do público, anunciar
aspectos absurdos da história para construir uma base legítima de negociação. Uma vez ciente
de estar diante da mais absoluta fantasia, o leitor é convocado a imaginar as verdades que esse
passado pode guardar.

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5
WALPOLE, Horace. The Castle of Otranto. New York: Oxford University Press, 2008, p. 6.

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A história inventada por Horace Walpole não durou muito, e o público passou a
questionar sua real autoria. O reverendo William Mason – comentarista de um dos mais
prestigiados periódicos ingleses da época, o Monthly Review, quando questionado por um
leitor sobre a autoria da novela, riu afirmando que não poderia ter sido obra de um
contemporâneo: “[…] could be so absurd as to think that anybody nowadays had imagination
enough to invent such a story.”6 Posteriormente, o reverendo em carta a Horace Walpole, de
quem era amigo pessoal, disse que ele próprio fora completamente enganado. Parecia mais
fácil acreditar que o texto tinha sido encontrado nas ruínas de uma biblioteca abandonada do
que supor que aquele tipo de fabulação fosse possível para um letrado do século XVIII. A
confusão ajuda a explicar o sucesso do texto: sua inusitada capacidade de fantasiar abriria
espaço para a exploração de temas considerados superados que ressurgiriam com força na
cena literária. A imaginação fantástica traduzida em literatura ganha forma nos termos do
gótico forjado na engenharia do horror.
Na segunda edição, lançada em abril de 1765, apenas quatro meses depois da
primeira, o adjetivo Gothic é acrescentado ao título que passa a ser The Castle of Otranto, a
Gothic Story. No prefácio da nova edição a trama criada em torno da obra é desfeita.
Escrevendo em terceira pessoa, Horace Walpole assume a autoria e justifica que a boa
acolhida do público o forçava a dizer a verdade. Ele pede desculpas por ter se apresentado
como William Marshal. Argumenta que o fez porque assim sua obra teria julgamento mais
imparcial e, em caso de fracasso, seria esquecida. Revela que tentou mesclar dois tipos de
romance: o antigo e o moderno.
No primeiro prevaleceria a imaginação e a improbabilidade, e o segundo teria a
imitação da natureza como pressuposto. Ainda de acordo com o escritor, a ausência da
natureza como inspiração torna a motivação de heróis e heroínas pouco plausível, enquanto
sua presença exclusiva sufoca a imaginação. Considerando as análises de Horace Walpole
fica claro que The Castle of Otranto foi escrito para reavaliar os poderes e recursos da
imaginação, travada pela preocupação excessiva com a representação da vida cotidiana.
O autor deixa bastante claro que seu modelo de inspiração é a natureza: “My rule
was nature”7, afirma Walpole. O modelo se traduziria na natureza sublime do vilão, em
contraposição à ingenuidade da heroína, o que tornaria ainda mais execráveis as perversidades
dele. As sensações impressas nos personagens deveriam refletir nos leitores. Fica clara a
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6
WALPOLE, Horace, op. cit., p. XI.
7
WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10.

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intenção de uma literatura de efeito que apela aos sentidos tratados como naturais. Essas
diferentes sensações seriam a chave para fazer o leitor esperar pelo desenlace catastrófico.
Suas emoções são manipuladas como exercício de espera para o ápice, e os afetos
mobilizados pelas particularidades de caráter dos personagens que prendem a atenção e
fomentam a expectativa durante os atos ordinários que conduzem a narrativa.
O tipo de direcionamento dramático proposto é tributado a uma autoridade maior,
Shakespeare, “the great master of nature”8, Walpole diz ter copiado o modelo shakespeariano
e destacado o humor de suas peças como fonte de beleza. O crítico E.J. Clery vê claras
semelhanças entre Macbeth e The Castle of Otranto. O motor dramático seria o mesmo: o
sobrenatural atuando em nome da restituição de uma herança legítima. O sentido verdadeiro
de posse seria expresso tanto no espaço físico quanto na restituição de uma linhagem
ancestral.9 Ainda segundo o crítico, a conspiração do universo sobrenatural para a correção de
equívocos gerados pelos crimes humanos marcaria as tramas. Mas a mensagem de Walpole
não seria tão clara devido à ambivalência da profecia segundo a qual “the castle and lordship
of Otranto should pass from the present family, whenever the real owner should grown too
large to inhabit it”10. O uso da expressão whenever em vez de when leva a crer que a profecia
seria cumprida de acordo com algumas condições que, não plenamente realizadas, levam
parte do castelo a desabar. A formulação duvidosa, ainda segundo Clery, faria do romance
uma versão mais liberal de Macbeth, tragédia na qual o peso do destino pode ser recalculado
de acordo com as ações dos personagens e as circunstâncias11.
A importância de Shakespeare, no entanto, ultrapassa a relação com uma obra
específica. Ao citá-lo, Walpole ressalta a mistura de estilos, na qual a seriedade convive com
o risível, e destaca o humor como elemento fundamental em Hamlet, por exemplo. Walpole
critica Voltaire por afirmar que a bufonaria não poderia se misturar com a solenidade e
confirma sua proposta de renovação do romance baseada na mescla de imaginação e
observação da realidade e articulada na junção da comédia com a tragédia. Shekespeare é
evocado também para legitimar o apelo à imaginação, sobretudo no que tange ao uso de
dispositivos ligados ao sobrenatural.

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8
WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10.
9
CLERY, E.J. The Rise of Supernatural Fiction: 1762-1800. Cambridge: Cambridge University Press,
1999, p. 72.
10
WALPOLE, Horace, op. cit., p. 17.
11
O crítico afirma que o romance seria uma “Whig rewriting of Macbeth”, em alusão ao partido liberal
inglês ao qual Horace Walpole era filiado.

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Reconhecendo que The Castle of Otranto talvez não estivesse à altura do projeto que
o originou, diz que se trata de uma tentativa, do apontamento de um caminho, “a road for men
of brighter talents”.12 A tarefa de realizar todo o potencial do que foi projetado caberia a
outros escritores que trilhariam a estrada que ele, abrigado sob o cânone de Shakespeare –
“the brightest genius this country at least has produced”–, acabara de pavimentar. Apesar de
julgar ter criado um novo tipo de romance, Walpole se orgulha mais de ter imitado, ainda que
de maneira precária, um grande gênio. Afirma também que sua contribuição seria a invenção
de uma forma híbrida de composição romanesca, pois, no que tange ao jogo de contrastes e
aos efeitos gerados no leitor, o mérito é de Shakespeare.
Os prefácios das duas edições de The Castle of Otranto sugerem claramente modos
diferentes de leitura para o romance: o primeiro tenta ludibriar o leitor levando-o a acreditar
tratar-se de uma história fantástica narrada em um passado obscuro. O segundo diz se tratar de
ficção tentando convencer o público de que isso não diminui a humanidade dos personagens.
Também convida o leitor a analisar o modo como esses mesmos personagens reagem às
situações miraculosas. Ou seja, mesmo em ambiente fantasioso, o que deve ser observado é a
dimensão real dos personagens. A proposta é de uma leitura que considere as ações morais em
situações inusitadas. O autor se diz orientado por uma “lei de probabilidade” que também
orienta os personagens a agir da maneira mais verossímil possível: “to make them think,
speak and act, as it might be supposed mere men and women would do in extraordinary
positions.”13
Fica estabelecido um critério de identificação: por mais extraordinária que a história
possa parecer, por mais arquetípicos que os personagens possam soar, são homens e mulheres
comuns que reagem diante do insólito. O clima de estranhamento criado na primeira edição
com a alusão a um mundo desconhecido se faz agora com base na identificação. Onde havia
uma alteridade estranha e de alguma forma confortável, aparece a sugestão da solidariedade.
A fantasia restrita ao campo da técnica literária transforma-se em mecanismo potente de
exploração de dilemas morais e conflitos psicológicos. Revelado como artifício, o horror se
potencializa pela empatia.
A tentativa de acionar uma “lei de probabilidade” dentro dos “territórios sem
fronteira da imaginação” não implica necessariamente uma concepção moralizante de
literatura. E.J. Clery lembra que a defesa da imaginação e o uso que Walpole faz de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
WALPOLE, Horace, op. cit., p. 9-10.
13
WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10.

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Shakespeare eram formas de atacar diretamente determinada estrutura crítica ortodoxa da


época. Sua apologia da fabulação seria uma arma contra a redução da ficção a instrumento de
formação moral: caberia ao novo romance criar “situações interessantes”, nas quais as reações
poderiam ser observadas, investigadas, testadas sem maiores preocupações com soluções
edificantes. Ainda segundo Clery, ao aliar imaginação e verossimilhança sem o peso da
educação dos costumes, o romance teria descoberto um espaço no mercado que justificaria o
sucesso da primeira edição14.
Horace Walpole, aristocrata, liberal, membro do parlamento inglês, em carta
direcionada ao amigo William Cole datada de 9 de março de 1765 conta um pouco do
processo de escrita de The Castle of Otranto e se revela um admirador do universo gótico. Diz
que a ideia lhe teria vindo em um sonho em que viu, no alto da escadaria de um antigo
castelo, uma mão gigante coberta por uma armadura. O romance, que ficaria pronto em
menos de dois meses, seria um ótimo refúgio das ideias políticas. Ainda sobre o sonho, diz
não se surpreender: “A very natural dream for a head filled like mine with Gothic story.”15. O
texto teria surgido de maneira espontânea para o autor e é tratado como uma tradução literária
de sua imaginação. Sua produção é vasta, incluindo textos políticos, memórias e até um
drama de horror que explora o tema do incesto, The Mysterious Mother, com uma primeira
impressão particular feita em Strawberry Hill, sua residência em Twickenham, subúrbio de
Londres, em 1768.
O comentário sobre seu sonho evidencia a circulação de histórias góticas presentes
não só na tradição oral como também em obras editadas. Longos poemas como Night
Thoughts, de Edward Young, pubicado em 1742; e The Grave, de Robert Blair, em 1743,
assim como a narrativa em prosa Meditations Among the Tombs, de 1745, de James Hervey,
trazem o universo sombrio que serviria de base para a definição da estética gótica. Destaca-se
ainda a publicação, em 1746, de Treatise on Vampires and Vevenants: the Phantom World, de
Dom Augustine Calmet, como exemplo do interesse da literatura de língua inglesa pelo
universo sobrenatural.
Talvez ainda mais emblemáticos sejam os textos de Daniel Defoe publicados no
Review, jornal fundado por ele em 1704 e escrito também por ele praticamente na íntegra.
Seus textos analisavam questões políticas domésticas e internacionais, com destaque para as
relações da Inglaterra com a França. Curiosa, no entanto, é a presença de histórias de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
CLERY, E. J., op. cit., p. 65.
15
WALPOLE, Horace, op. cit., p. VII.

!
! 18!

fantasmas nas páginas do jornal. Dentre elas destaca-se “A True Relation of the Aparition of
one Mrs. Veal”, escrita por Defoe e publicada anonimamente em 1705, que narra o encontro
de Mrs. Bargrave com uma velha amiga, Mrs. Veal, depois da morte desta. A veracidade da
história é garantida no prefácio: o autor diz que a história fora enviada por um juiz de paz a
um amigo, que a redigiu em Londres. A confirmação viria da própria senhora Bargrave, que
teria garantido ao juiz, “pessoa de mente sóbria e de grande compreensão”16, a veracidade do
evento sobrenatural. Aparentemente o texto foi escrito como forma de defesa e propagação da
obra The Christian’s Defense Against the Fears of Death, de Charles Drelincourt, datado de
1651, leitura entusiasticamente recomendada por Mrs. Veal à sua amiga. A estratégia deu
certo, e o texto de Defoe passou a ser editado como apêndice do livro de Drelincourt em suas
várias edições a partir de 1707.
A lição moral da história é adiantada no prefácio: diante da “prova documental” da
existência de vida depois da morte, os homens deveriam se voltar para Deus a fim de salvar
suas almas. Várias outras histórias de fantasmas aparecem no jornal. Elas são divididas em
dois grupos: as que o autor diz serem relatos reais e as falsas, divertidas, entendidas como
entretenimento. Nas do primeiro grupo, histórias permeadas de questões morais, o tom é mais
grave; nas do segundo o ar é de anedota, e a sugestão de dúvida em relação à veracidade soa
como mero artifício de sedução. A publicação desses textos satisfaz a demanda por leituras a
respeito do sobrenatural, seja o relato verídico, seja a anedota declarada. A circulação no
século XVIII de textos sobre fantasmas e eventos miraculosos ajuda a explicar a obra de
Walpole. Tanto as imagens macabras difundidas, por exemplo, nos supracitados Night
Thoughts e The Grave quanto o tom mais leve das histórias de Defoe são visíveis em The
Castle of Otranto, produto de um tipo específico de imaginação destinado a um mercado que
surgia. É notável a sintonia desse romance com os paradigmas críticos expostos em The
Pleasure of Imagination de Joseph Addison, publicado em 1712, conjunto de ensaios que
constitui uma defesa do uso deliberado da fantasia em literatura.
Apesar da boa acolhida por parte do público, a obra não foi exatamente um sucesso
de crítica. A revista Monthly Review, que no lançamento da primeira edição do romance de
Walpole a ele se refere como “considerable entertainment” para os leitores capazes de digerir
os absurdos da ficção gótica, muda o tom diante da segunda edição:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
DAFOE, Daniel. Contos de fantasmas. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001, p. 9.

!
! 19!

While we considered [The Castle of Otranto, a Gothic Story]


we could readily excuse it is preposterous phenomena, and
consider then as sacrifice to a gross and unenlightened age. –
But when, as in this edition, [it] is declared to be a modern
performance, that indulgence we offered to the foibles of a
supposed antiquity, we can by no mean as extend to the
singularity of a false tale in a cultivated period of learning. It is,
indeed, more than strange that an Author, of a refined and
polish genius, should be an advocate for re-establishing the
barbarous superstitions of Gothic devilism! Incredulus odi, is,
or ought to be a charm against all such infatuation.17

A drástica mudança de posição se dá quando as iniciais H.W. indicam a autoria. O


que era curiosidade histórica, artefato pitoresco, transforma-se em uma afronta aos valores
modernos, ameaçadora apologia do barbarismo. Aceito como imagem de um tempo que se
perdeu, superado pela ilustrada consciência racional, o romance é execrado como produto
contemporâneo, tomado como incompreensível exercício de imaginação supersticiosa. Mas
como um homem refinado e influente como Horace Walpole poderia se dedicar a propagar
valores obscuros ultrapassados? A crítica fala em “restauração do pensamento bárbaro”, como
se os fantasmas medievais pudessem ressurgir das sombras da razão ilustrada e desestabilizar
o progresso espiritual conquistado com o cultivo da educação. Em sua primeira edição o
romance é a imagem das trevas suplantadas, produto de um passado distante. Na segunda,
quando se revela a invenção do bárbaro e do obscuro pela imaginação moderna, passa a ser
um problema.
O livro é uma espécie de ameaça, como se pudesse, pela estranheza de seu
anacronismo, perturbar o bom gosto e a ordem das coisas. O imperativo da descrença é
convocado para expurgar essa extravagância da imaginação, repelida como se personificasse
o mal. As cenas fantasmagóricas convivem com o padrão ideal de racionalidade apenas como
mercadoria excêntrica, como artefato de um mercado de produtos exóticos. Reconhecido
como artifício contemporâneo, cai em desgraça, e já não é um passatempo aceitável. O
confronto crítico entre as duas edições abre espaço para reflexões acerca do estatuto da ficção
e os limites da imaginação. Fica claro que nesse contexto o gótico é literariamente válido só
como interesse de antiquário. É como se, ao sugerir uma leitura atualizada do universo
sobrenatural e a observação realista de personagens humanos diante de situações fantásticas,
Walpole propusesse algo que, para alguns críticos, afetava o bom senso. A investigação
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Monthly Review, 32, maio de 1765, p. 394. (Apud. CLERY, E. J. The Rise of Supernatural Fiction:
1762-1800, op. cit., p. 53.)

!
! 20!

racionalista do comportamento moral diante de fenômenos insólitos indicava a hipótese de


imaginar as crendices do passado da perspectiva da aparentemente estabilizada racionalidade
setecentista, o que poderia pôr em risco valores com os quais os comentaristas da Monthly
Review não davam mostras de pretender negociar.
Por vezes considerada “tediosa, artificial, melodramática”, banal e até mesmo
medíocre, como afirma H.P. Lovecraft em seu famoso ensaio sobre horror sobrenatural, a
obra transformou-se em um marco para a definição do gótico literário moderno, e várias
edições com diferentes traduções circularam pelo mundo. A pesquisadora Sandra
Vasconcelos chega a identificá-la como um dos romances ingleses que circularam no Brasil
no século XIX.18 Comentando a emergência do romance histórico, Humberto de Campos
destaca a importância de Walpole. O crítico afirma que Walter Scott é considerado o
precursor, mas “antes dele já havia, sem dúvida, mesmo na Inglaterra, Horace Walpole, Clara
Reeve, Ann Radcliffe, que são considerados, ali, os precursores do interesse pela vida e pelas
coisas antigas”.19 O comentário feito no início do século XX atesta o impacto de um romance
de imaginação do passado anterior à consolidação da cultura historicista do século XIX.
Somente treze anos depois de sua primeira edição The Castle of Otranto teria uma
sucessora à altura. Clara Reeve, em 1777, fez uma impressão particular de The Champion of
Virtue. O livro seria reeditado e impresso no ano seguinte, pela editora londrina Dilly, com
um novo título: The Old English Baron. A diferença de mais de uma década suscita questões
acerca do desenvolvimento das propostas lançadas por The Castle of Otranto: apesar de seu
considerável sucesso comercial, não ensejou de imediato novas obras do mesmo padrão. O
prefácio da segunda edição, em que Reeve altera o título do livro além de assumir a autoria,
oferece alguns indícios que ajudam a explicar a lacuna. A autora critica os excessos de
Walpole; segundo ela, ao exagerar nos elementos sobrenaturais o romance deixa de afetar o
leitor. A expectativa criada no suspense seria destruída pelas circunstâncias extremamente
fantasiosas, e a leitura perderia o sentido: “[…] destroy the work of imagination, and, instead
of attention, excite laughter.”20 A autora, no entanto, afirma que seu romance, que narra
basicamente a retomada do castelo usurpado de Edmund Twyford pelo Lorde Fitz-Owen,
descende de The Castle of Otranto. O caráter fantástico fora atenuado em The Old English
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
VASCONCELOS, Sandra. Romances ingleses em circulação no Brasil durante o século XIX.
Disponível em: < http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Sandra/sandralev.htm >. Acesso em: 20 maio
2011.
19
CAMPOS, Humberto de. Crítica: 3ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p.198.
20
REEVE, Clara. The Old English Baron: a Gothic Story. Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 5.

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! 21!

Baron em prol de uma narrativa mais realista baseada em virtudes morais. Uma estratégia
para atrair a atenção do público e conseguir boa acolhida da crítica.
Esse objetivo fica mais claro em um livro que Reeve escreveu em 1785, The
Progress of Romance, no qual a autora demonstra ser uma atenta observadora do mercado
literário. Ela concebe formas de adequar a imaginação aos padrões de gosto e tornar os
romances economicamente viáveis. Reconhecendo que esses teriam caráter mais fabuloso em
relação ao realismo das novelas, Reeve forja uma noção de modernidade literária e assim
aprofunda as propostas de Walpole. Na mescla da fantasia com descrições verossímeis o
fantástico é atenuado em nome do efeito de horror. A economia na máquina imaginativa é
vista como fundamental para a potencialização do efeito dramático. Um único fantasma
assombra sua trama e suas aparições são raras, pois com o horror dosado não dá espaço para o
riso. A obra obteve críticas favoráveis, tanto da Critical Review quanto da Monthly Review,
apesar de a última criticar a presença de fantasmas.
O sucesso de The Progress of Romance se deveu em grande medida ao ajuste
empreendido pela autora, que, certamente, levou em conta as pesadas críticas que The Castle
of Otranto recebeu. Porém, novos problemas surgiriam com o êxito comercial. A revista
Gentleman’s Magazine, por exemplo, sugere que a fantasia verossímil poderia ser perigosa
para mentes despreparadas por não ser completamente absurda: “Some weak minds, perhaps,
might be introduced to think them true or possible, and thereby be led into superstition.”21. A
hipótese é reiterada no prefácio escrito para uma edição de 1810 em que a escritora Anna
Laetitia Barbauld afirma que o absurdo cotidiano de Reeve se confunde com as crenças dos
leitores. O lado perigoso da suavização se revela. Se as fantasias de Walpole são de mau
gosto, a tentativa de aproximação com a realidade pode ser ainda mais nociva. O fantasma da
superstição é ainda mais amedrontador em um contexto relativamente realista, e quando a
fusão das duas formas de narrativa aparentam estar mais organicamente ligadas, surge o risco
da crença sem controle, problema que Ann Radcliffe explorará em detalhes em suas obras.
A última década do século XVIII é considerada por críticos como Fred Botting,
Andrew Smith e H.P. Lovecraft o apogeu do romance gótico, graças, sobretudo, ao sucesso de
obras como The Mysteries of Udolpho, publicada em 179422. Este romance é, sem dúvida, o

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21
CLERY, E. J., op. cit., p. 89.
22
Em 1785 Sophia Lee publica The Recess – romance que gira em torno de Mary, irmã gêmea da rainha
da Escócia. Na trama, habitações subterrâneas, perseguição a mulheres e ações comandadas pelo desejo sexual –
nos moldes da obra de Clara Reeve, com apelo realista e poucos elementos sobrenaturais.

!
! 22!

mais famoso dos seis que Ann Radcliffe escreveu. Os demais são: The Castle of Athlin, 1789;
A Sicilian Romance, 1790; The Romance of the Forest, 1792; The Italian, 1797; e Gaston de
Blondeville, escrito em 1802 e publicado postumamente em 1826. A clássica narrativa gótica
conta a história de Emily, jovem francesa que passa a morar no horripilante castelo do nobre
Montoni após a morte de seus pais23.
Um crítico do fim do século XVIII afirmou que The Mysteries of Udolpho seria o
livro mais interessante da língua inglesa24. Sua atmosfera de suspense, que sugeria a presença
do sobrenatural e as descrições pitorescas que referendavam os debates em torno do sublime25
fizeram dele um dos romances mais populares do fim do século XVIII. Sua publicação em si
já foi um evento relevante. A editora G.G. and J. Robinson pagou a exuberante quantia de 500
libras pelos direitos autorais – nessa época o pagamento a novelistas variava entre dez e vinte
libras.26 O valor pago a Radcliffe transformou o romance em um acontecimento literário antes
mesmo da publicação. Seus textos obtiveram boa acolhida crítica graças, sobretudo, ao apelo
realista. William Enfeld escreveu na Monthly Review:

Without introducing into her narrative anything really


supernatural, Mrs. Radcliffe has contrived to produce as
powerful an effect as if the invisible world had being obedient
to her magic spell; the reader experience in perfection the
strange luxury of artificial terror, without being obliged for a
moment to hoodwink his reason, or yield to the weakness of
superstitious credulity.27

Novamente o que está em jogo é a ameaça da superstição. O crítico destaca o triunfo


da técnica literária responsável pelos prazeres do terror artificial, contra a necessidade de
apelo ao sobrenatural. A possibilidade de explicar sentimentos, sensações e medos de Emily
pelas vias da razão, por intermédio de um narrador onisciente em terceira pessoa que permite
acesso irrestrito ao universo imaginário da protagonista, garante a adequação aos valores de
sua contemporaneidade. O leitor pode participar da trama em segurança pois sua imaginação

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
Lembramos que, em 1843, A Casa do Livro Azul, editora de Albino Jordão, oferece no Jornal do
Commercio (RJ) versões em português de Udolfo para o público brasileiro.
24
O comentário é transcrito por Jacqueline Howard na edição crítica do romance publicada em 2001
pela Penguin Books.
25
A análise do conceito de sublime e sua relação com a literatura gótica será feita mais adiante, quando
tratarmos das matrizes conceituais do gênero.
26
RADCLIFFE, Ann. The Mysteries of Udolpho. Introduction by Jacqueline Howard. New York:
Penguin Books, 2001, p. VII.
27
RADCLIFFE, Ann, op. cit., p. XV.

!
! 23!

estará controlada pela resposta racional que o crítico supõe evidente. Não será necessário
enganar o bom senso ou se render às fraquezas da crendice. O romance funciona por si
mesmo, suas estratégias de persuasão parecem fortes o suficiente para que tudo se mantenha
no correto plano do artifício. Trata-se da apreciação lúdica de mistérios seguros; o medo é o
resultado de experiências puramente textuais que não apelam ao perigoso e indesejado
universo da superstição. Numerosas são as cenas em que Emily ou o narrador lembram a
necessidade de lucidez e, dessa forma, estabelecem com o leitor um tipo de cumplicidade. Ele
deve sentir o mesmo, participar do mistério sem abandonar a perspectiva racional.
Apesar de David Durant afirmar que The Mysteries of Udolph é um romance de
antieducação, unbuilding em que a protagonista se mantém a mesma, apesar das
experiências28, é inegável a defesa de determinados códigos morais na trama. O mundo
ameaçador põe em xeque os valores da heroína, que reafirma sua pureza de caráter no
desfecho. As virtudes são realçadas, enquanto o leitor é conduzido por uma narrativa que não
sugere grandes extravagâncias imaginativas. Porém, essa dupla articulação é, no mínimo,
curiosa. Se a virtude triunfa sobre o vício, este permanece parte necessária do universo
dramático, e se a imaginação precisa ser controlada é porque existe a possibilidade do
desvario. A defesa da virtude não nega o aspecto sedutor do vício, e o controle racional não
pode afastar completamente certo aspecto mágico da trama. A adequação do romance a
determinado padrão de gosto não exclui o que supostamente deve ser combatido. Histórias
como as de Radcliffe se tornam populares ao reforçar os paradoxos da segurança ficcional, tal
como máquinas de simulação do medo que louvam a virtude divulgando o vício.
Possivelmente o maior exemplo desse paradoxo da literatura gótica, The Monk,
romance de Matthew Lewis publicado em 1796, que narra a decadência espiritual do monge
Ambrosio, que, tentado por Matilda (mulher inspirada pelo demônio), deixa a condição de
respeitado religioso para ser preso pela Inquisição depois de estuprar a irmã (Antonia) e matar
a mãe (Elvira). Após libertá-lo da Inquisição, o demônio aparece para culpá-lo de todos os
seus crimes e lembrá-lo de sua vaidade e luxúria. Ambrosio morre depois de cair de uma
ribanceira.
A obra divide os críticos. Samuel Taylor Coleridge declarou na Critical Review
tratar-se de uma blasfêmia, de um romance perigoso que poderia gerar constrangimentos no
universo doméstico: “If a parent saw in the hands of a son or daughter, he might reasonably
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
DURANT, David. “Ann Radcliffe and the Conservative Gothic”. In: Studies in English literature:
1500-1900. Houston: Rice University Press 1989, vol. 22, p. 526.

!
! 24!

turn pale.” Por outro lado, um crítico da Monthly Mirror enfatiza a força controversa da obra
e disse não se lembrar de ter lido nada tão intenso e interessante29. As questões morais
definem os sentidos atribuídos ao romance. Sua primeira edição suscita debates em torno dos
temas abordado, a exposição de crimes e vícios, e as questões propriamente estilísticas ficam
em segundo plano. O texto de Lewis transformou-se no centro de uma grande discussão
acerca de valores na qual as funções da literatura foram reavaliadas.
A primeira edição foi publicada anonimamente, mas a segunda trouxe problemas
para o autor. A assinatura aparece da seguinte forma: M.G. Lewis, Esq. M. P.30, ou seja,
Lewis destaca sua recém-adquirida cadeira na Chamber of Commons, a Câmara Baixa do
Parlamento da Grã-Bretanha. A revelação causou revolta em Coleridge, que afirmou ser
assustador que um legislador tornasse pública uma obra de natureza tão controversa. Com o
acirramento das críticas, Lewis, submetido a um tribunal, foi obrigado a recolher os
exemplares restantes da terceira edição e a editar a quarta com corte das cenas descritivas de
relações sexuais.
Em 1797 a revista Monthy Mirror, em texto intitulado “Apology for The Monk”,
defende a obra ao afirmar que haveria uma apologia dos valores morais na decadência do
monge devasso. Sua estrutura, ainda que chocante, estaria a serviço da virtude: “This
beautiful romance is well-calculated to support the cause of virtue.” 31 O contraponto
demonstra as controversas relações entre moral e literatura. Defensores e detratores se valem
das mesmas categorias e giram em torno dos mesmos temas. As disputas são positivas para o
romance, pois servem como propaganda e aumentaram sua popularidade, o que redundou em
numerosas edições do fim do século XVIII ao início do XIX. Walter Scott, por exemplo,
chega a afirmar que o romance foi tão popular que teria “criado época” na literatura inglesa.32
O lado sedutor da proibição ajuda a tornar a obra mais atraente, assim como o desfile
de vícios, crimes e pecados, que dramatiza o outro lado do interesse pela conclusão
supostamente virtuosa. Nesse aparente paradoxo, a produção ficcional aos poucos se afirma
como espaço de representações amplas no qual o sobrenatural convive com os recorrentes
delitos do corpo. O horror passa a ser tributário do caráter realista das descrições de sexo,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
LEWIS, Matthew Gregory. The Monk. Introduction and notes by Emma McEvoy. New York: Oxford
University Press, 2008, p. VII.
30
Esq. é a abreviação de Esquire, pronome de tratamento usado para designar homens de classe social
elevada, e M.P. é a abreviação de Prime Minister (primeiro-ministro).
31
LEWIS, Mathew, op. cit., p. X.
32
SCOTT, Walter. Essay on Imitation of the Ancient Ballad. In: Minstrelsy of the Scottish border.
Edinburgh: Blackwood, 1902, p. 33, vol. IV.

!
! 25!

tortura e morte. O corpo minuciosamente descrito, vítima das mais variadas formas de
violência, aparece como o lugar privilegiado do medo. A decomposição física rivaliza com as
aparições fantasmagóricas na composição da sinistra arquitetura dramática do gótico.33
Além dos clássicos supracitados, a estética gótica se espalhou na última década do
século XVIII em obras menos conhecidas, como Horrid Mysteries, lançado em 1796, do
marquês Von Grosse, e Children of the Abbey, em 1798, de Regina Maria Roche. Ambas
publicadas pela editora Minerva Press, também responsável por lançar escritoras como Eliza
Parsons, Mary Meeke (conhecida pelo pseudônimo Gabrielli), Isabella Kelly, Elizabeth
Bonhote e Anna Maria MacKenzie. E.J. Clery destaca a importância desse empreendimento
dos sócios William Lane e Josiah Wedgwood, responsáveis pela massificação do gênero.34 A
popularização da leitura, no entanto, veio acompanhada da má fama de editora de literatura
menor, de textos menores cuja única ambição era suprir a demanda comercial por obras de
leitura fácil. Lovecraft, por exemplo, trata esse período de difusão da literatura gótica como
“uma terrível profusão de lixo literário”35.

1.2. A expansão do gótico no século XIX

No fim do século XVIII, a ficção gótica transforma-se em produto literário de largo


consumo na Inglaterra. Alicerçado sobre algumas obras centrais multiplica-se reproduzindo
os cenários sombrios de castelos e mosteiros propondo o confronto entre a virtude e o vício
por meio de heroínas puras e vilões nefastos. O problema do sobrenatural continua em pauta,
mas aparece em segundo plano, subjugado pela explicação racional ou diminuído em seu
aspecto terrífico diante da exploração de uma crueldade mais humana. Perde importância
como dispositivo literário e medida que a fabulação caminha para o triunfo realista e que as
formas do horror passam a privilegiar dramas possíveis, segundo leituras arrazoadas da
experiência.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
The Italian, de Ann Radcliffe, foi interpretado como uma resposta ao trabalho de Matthew Lewis e à
comoção por ele causada. O personagem principal é um monge marcado por um passado de crimes, mas o tom
da trama é bem mais leve, sem tantas descrições de crimes ou atos sexuais. E como é comum nos livros da
escritora, o sobrenatural é sobrepujado pela explicação racional dos eventos. A obra seria recebida como uma
crítica aos supostos exageros cometidos em The Monk.
34
CLERY, E. J., op. cit., p. 135.
35
LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 41.

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! 26!

É provável que a mais significativa obra gótica surgida após The Monk seja o
clássico Frankenstein, or the Modern Prometheus, de Mary Shelley, publicado em 181836. O
livro dedicado ao pai da escritora, William Godwin – autor de Political Justice, de 1793, e
Caleb Wiliams, de 1794 –, conta a história de um ser com forma humana, criado com pedaços
de cadáveres por Victor Frankenstein, um jovem médico suíço. Com inteligência plena e
forma repulsiva o monstro é excluído da sociedade e, amargurado, passa a matar os amigos e
familiares do médico.
Walter Scott foi dos primeiros defensores do romance. Em 1818 escreveu na
Blackwood’s Edinburgh Magazine que a obra recorria ao maravilhoso para questionar os
limites do conhecimento e da imaginação humana. Já uma crítica anônima publicada na
Edinburgh Magazine escocesa atentou para a nefasta influência de William Godwin e
condenou a monstruosidade e a falta de piedade do texto, consequência da efervescência de
ideias do período: “the wild and irregular theories of the age.”37. A visão sombria da natureza
humana seria tributária da obra do pai da autora, para quem a opressão política era
considerada o problema central das sociedades modernas.
Nas primeiras linhas do prefácio da primeira edição, Mary Shelley demarca a
verossimilhança da narrativa. Por mais absurda que pudesse parecer, de acordo com os
estudos fisiológicos de cientistas como Dr. Darwin38, a trama poderia de fato acontecer. Ainda
no prefácio se lê que mesmo em se tratando de uma obra de fantasia não seria possível tanta
capacidade imaginativa; a imaginação da autora estaria fundada em reflexões mais sérias, em
referências filosóficas organizadas e dramatizadas na composição do romance. Não se trataria
simplesmente de uma trama de horrores sobrenaturais; o objetivo não seria contar uma
história de fantasmas, mas oferecer uma narrativa ilusória que desse ensejo a uma análise das
paixões humanas. O extraordinário estaria a serviço da exploração profunda de sentimentos e
da busca pela verdade das paixões que eventos ordinários não poderiam revelar. A atenção
volta-se para os princípios da natureza humana: “I have thus endeavoured to preserve the truth
of the elementary principles of human nature”39, afirma Mary Shelley categoricamente.
A proposta estaria vinculada a uma tradição de uso da imaginação com foco na
investigação do que seria humanamente essencial. Nesse sentido, Homero e Shakespeare
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
A primeira edição foi publicada anonimamente. É costume considerar a terceira edição revisada, de
1831, como definitiva.
37
BOTTING, Fred, op. cit., p. 101.
38
A autora refere-se ao médico clínico Erasmus Darwin, avô do naturalista inglês Charles Darwin.
39
SHELLEY, Mary. Frankenstein, or the Modern Prometheus. London: Guild Publishing, 1980, p. 7.

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! 27!

aparecem como criadores de sofisticadas combinações de sentimentos que resultaram em


obras poéticas de alto nível: “The Iliad, the Tragic Poetry of Greece – Shakespeare, in The
Tempest and Midsummer Midnight’s Dream – and most specially Milton, in Paradise lost.”40
Apesar do elenco de referências, o romance surgiria de uma situação trivial. Em uma
temporada em Genebra, a autora e alguns amigos entediados com o mau tempo começaram a
contar histórias germânicas de fantasmas e decidiram escrever contos de horror.41
Lembrando que a conduta moral e as opiniões dos personagens não condiziam
necessariamente com as suas, a autora mostrou preocupação com o impacto do texto nos
leitores. E como forma de evitar a agitação que outros romances góticos vinham causando,
procurou compor sua trama de maneira amena e com ênfase em valores inquestionáveis:
“domestic affection, and excellence of universal virtue.”42 De fato, as críticas visavam muito
mais as divergências científicas e filosóficas do que qualquer traço de imoralidade. A
crueldade de algumas passagens, sobretudo das que tratam do isolamento da criatura e seus
atos criminosos, não soaram tão agressivas quando comparadas as descrições sexuais de
outras obras contemporâneas.
No prefácio da edição de 1831 Mary Shelley se atém mais detalhadamente à origem
da obra: fruto de um sonho. Depois de ouvir Byron e Percy Shelley conversarem sobre as
experiências de Dr. Darwin que provariam a possibilidade de geração espontânea da vida43,
Mary Shelley vai se deitar e não consegue dormir com a imaginação povoada por imagens
extraordinárias. Com os olhos fechados, tem a clara visão mental de um artista que consegue
dar vida a uma invenção que passa a atormentá-lo. O roteiro estava montado e Mary Shelley
teriam assim, diante de si, a história de fantasmas que estava procurando: “I have found it!
What terrified me will terrify others; and I need only describe the spectre which had haunted
my midnight pillow!”44 O objetivo central da obra se torna bastante claro: a trama é composta

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
40
SHELLEY, Mary, op. cit., p. 7.
41
Trata-se do conhecido encontro de Mary Shelley com o poeta Percy Shelley, marido dela, John
Polidore, autor daquela que é considerada a primeira história moderna de vampiros, e Lorde Byron na residência
deste em Genebra. No prefácio da edição de 1831 a autora, por sugestão dos editores, oferece mais detalhes
desse evento que motivou o romance.
42
SHELLEY, Mary, op. cit., p. 8.
43
A autora conta que teria silenciosamente ouvido os dois conversarem sobre uma experiência do
médico inglês em que um tipo de macarrão (vermicelli) guardado em um pote de vidro teria ganhado vida.
Desmond King-Hele, biógrafo de Erasmus Darwin (Erasmus Darwin: A Life of Unequalled Achievement),
comenta que em sua obra The tTemple of Nature (1803) o cientista realmente fala de uma massa feita de farinha
e água que parece ganhar vida. Comenta ainda um tipo de protozoário (vorticelli) que teria voltado à vida depois
de drenado. A semelhança fonética poderia ter gerado a confusão relatada no prefácio.
44
SHELLEY, Mary, op. cit., p. 14.

!
! 28!

basicamente de cartas e mensagens soltas que se agrupam e montam um quebra-cabeça cuja


intenção é causar medo. O propósito de analisar as paixões do ponto de vista de situações
insólitas se articula ao foco definitivo do efeito de horror. O medo literário, artificialmente
construído com recursos de simulação do risco, nunca sai do horizonte. O sonho transformado
em literatura aponta para o privilégio de um tipo declarado de fantasia que se baseia em teses,
mas que reafirma sua autonomia. Apresentar um sonho como matéria-prima literária é uma
forma de demarcar o aspecto misterioso e lúdico da ficção que tornou Frankenstein
mundialmente famoso.
Por vezes considerado o último dos romances a reunir todos os elementos que
caracterizam a estética gótica, Melmoth, the Wanderer, de Charles Robert Maturin, publicado
em 1820, é a mais famosa obra do escritor irlandês, autor de diversas novelas e de dramas,
como Bertram, de 1816.45 Na dedicatória de um de seus trabalhos mais conhecidos, The
Milesian Chief, descreve seu talento para o gótico como a capacidade de pintar quadros
escuros e fúnebres, aprofundando a tristeza humana até o limite: “Painting life in extremes,
and representing those struggles of passion when the soul trembles on the verge of the
unlawful and unhallowed.” 46 Analisando seu romance anterior, Fatal Revenge (1807) –
inicialmente publicado sob o pseudônimo Dennis Jasper Murphy – , Maturin diz tratar-se da
exploração de um lado esquecido do homem. A ênfase na origem da maldade reaparece em
Melmoth, e se os temas ainda são igrejas em ruínas, paisagens sombrias e famílias marcadas
por heranças macabras47, o acento definitivamente recai, como já indicavam as obras de
Radcliffe e Mary Shelley, nos aspectos psicológicos do horror.
Em carta endereçada a Walter Scott datada de 1813, sobre uma obra nunca
concluída, Charles Robert Maturin comenta que usaria todos seus recursos “diabólicos” para
“get the possession of the Magic Lamp with its slaves from the Conjuror Lewis himself”.48
Na introdução de uma edição feita em 2000 de Melmoth, the Wanderer, o crítico Victor Sage
afirma que a metáfora literária seria uma referência a Matthew Lewis e ao sucesso comercial

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Lembramos que o título da peça reaparece em Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, como nome
do segundo personagem a narrar sua história.
46
MATURIN, Charles Robert. The Milesian Chief. London: B. Clark, 1812, p. IX.
47
A história narra a trajetória de Melmoth, um homem que, após vender sua alma ao diabo em troca de
conhecimento e poder, vaga pelo mundo espalhando sofrimento. Sua vida é contada com base nos relatos dos
vários personagens que o conheceram ao longo dos séculos. O autor, que era pastor protestante, cita no prefácio
que a obra teria sido inspirada em um de seus sermões em que afirma o desejo humano de salvação apesar dos
erros e pecados cometidos ao longo da vida.
48
MATURIN, Charles Robert. Melmoth, the Wanderer. Introduction by Victor Sage. London: Penguim
Books, 2000, p. VII.

!
! 29!

de The Monk. A lâmpada mágica seria justamente a fórmula que atrairia os leitores,
identificados na frase como os escravos. A jocosa referência ao mercado editorial indica o
projeto de escrever um best-seller. Quase três décadas mais tarde Maturin investiria nos
mesmos princípios do polêmico texto de Lewis. Cinco anos depois, quando começa a escrever
sua obra-prima, a ideia de fazer um romance cujo destino do protagonista se dá pela relação
com o demônio se fortalece.
Fausto, de Goethe, cuja primeira versão é publicada em 1806, entra novamente na
ordem do dia em 1813 com a repercussão da versão em inglês do artigo De L’Allemagne, de
Mme. de Staël, que ressalta a importância do poema. E, segundo o próprio Goethe, esse texto
teria derrubado a muralha do antigo preconceito dos ingleses contra a literatura alemã. Some-
se ao artigo o lançamento, em 1818, de Frankenstein, com seus dilemas sobre o
conhecimento, e os numerosos ensaios e críticas sobre Goethe publicados ao longo de 1819
pela revista Blackwood. O cenário estava pronto para lançamento de Melmoth, the Wanderer,
que Victor Sage chamou de romance derradeiro do gótico.49
Maturin conseguiu reunir na mesma narrativa elementos sublimes, grotescos e
cômicos e transformar-se em referência para muitos escritores. Em 1821 seu romance é
traduzido na França e o sucesso pode ser medido, sobretudo, pela profusão de novos
romances escritos a partir da década de 1830. Honoré de Balzac escreve uma paródia,
Melmoth reconcilié, em 1835, e no prefácio indica o impacto da obra do escritor irlandês e a
compara, em termos de força e influência literária, a Fausto, de Goethe.50 No entanto, talvez
tenha sido Charles Baudelaire, em um conjunto de ensaios intitulado Réflexions sur quelques-
uns de mes contemporains publicado no segundo volume de suas obras completas, de 1868,
quem atribui maior importância ao romance: ele o situa como um dos pontos centrais da
modernidade literária:

Beethoven a commencé à remuer les mondes de mélancolie et


de désespoir incurable amassés comme des nuages dans le ciel
intérieur de l’homme. Maturin dans le roman, Byron dans la
poésie, Poe dans la poésie et dans le roman analytique, l’un
malgré sa prolixité et son verbiage, si détestablement imités par
Alfred de Musset; l’autre, malgré son irritant concision, ont
admirablement exprimé la partie blasphématoire de la passion;
ils ont projeté des rayons splendides, éblouissants, sur le
Lucifer latent qui est installé dans tout cœur humain. Je veux
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
49
MATURIN, Charles Robert, op. cit., p. VIII.
50
BALZAC, Honoré de. Contes étranges et fantastiques. Paris: Édition 1, 1999.

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! 30!

dire que l’art moderne a une tendance essentiellement


démoniaque.51

O romance de Maturin teria essa “essência diabólica” que caracterizaria a concepção


moderna de literatura de Baudelaire. Figurando no céu interior do homem, o demônio não
seria uma figura arquetípica, uma representação do mal como entidade externa, alteridade
fantasiosa que assustaria à distancia. Ele surge como parte constituinte da ideia de
humanidade, alojado na arte e no coração. Para conhecê-lo seria preciso investigar a escuridão
dos sentimentos; representá-lo significaria um aprofundamento da capacidade mimética da
literatura – a imagem buscada já não está na superfície. É preciso falar do indizível traduzindo
em texto o mundo insólito do silêncio.
O que pode ser identificado no romance de Maturin como exploração dos horrores
psicológicos também define a obra de E.T.A. Hoffmann. Constantemente apontada como
referência por autores como Théophile Gautier e Edgar Allan Poe, a obra do escritor alemão
seria fundamental para o desenvolvimento da literatura de horror com traços fantásticos em
países como a França e os Estados Unidos. Die Elixiere des Teufels (Os elixires do diabo),
publicado em 1818, narra a trajetória do monge capuchinho Medardus, homem de grande
habilidade retórica que, ao perder a capacidade de falar, é tentado a beber um elixir elaborado
pelo demônio. A partir de então se vê preso em um ciclo de horrores e transgressões de toda
ordem. As características do personagem de Hoffmann remetem claramente ao monge
Ambrosio, personagem criado por Matthew Lewis em The Monk, o que indica a influência da
literatura inglesa na configuração do lado mais sombrio do romantismo alemão.
O gótico de Hoffmann é exemplarmente expresso na coletânea Nachtstücke (Peças
noturnas), de 1817, com histórias de tom macabro nas quais aparece o problema da
ambiguidade. O sobrenatural e o horror psicológico funcionam simultaneamente e criam uma
atmosfera de incerteza quanto à origem do mal. Nesse sentido são particularmente tensos os
contos “Der Sandmann” (“O homem da areia”); “Das Majorat”; “Der Unheimliche Gast”;
“Die Bergwerke zu Falun”; “Die Automata” e “Das Fräulein von Scuderi”52. O primeiro,
“Der Sandmann”, que se tornaria um clássico, conta a história de Nathanael, atormentado por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
51
BAUDELAIRE, Charles. Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains. In: L’art romantique.
Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1868, p. 374.
52
Por não conhecermos tradução em português dos referidos contos, exceção feita a “O homem da
areia”, que possui inúmeras traduções, optamos por manter os títulos originais apresentando-os na ordem em que
aparecem na tradução em inglês: “The Entail”; “The Uncanny Guest”; “The Mines of Falun”; “The Automata” e
“Mademoiselle de Scuderi”. Esses contos podem ser encontrados em: The Best Tales of E.T.A. Hoffmann,
editado por E.F. Bleiler. New York: Dover Books, 1967.

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! 31!

acreditar que o misterioso Coppelius estaria constantemente tentando usurpar seus olhos.
Assim como “Die Automata”, conto aborda o tema do autômato. “Das Majorat” é um história
mais longa, parecida com “The Fall of the House of Usher”, de Edgar Allan Poe. “Die
Bergwerke zu Falun” é sobre um cadáver encontrado em uma mina na Suécia (a trama faz
referência a um romance de 1801 da escritora inglesa Anna Maria Mackenzie, Swedish
Mysteries, or Hero of the Mines). Já “Das Fräulein von Scuderi” é a história de uma onda de
crimes ocorridos em Paris na época de Luís XIV. Uma década antes de Edgar Allan Poe,
Hoffmann já construía um protótipo das histórias de investigação policial.
Segundo o crítico italiano Remo Ceserani, os textos de Hoffmann conheceram
notável popularidade em boa parte da Europa no início do século XIX, com destaque para “O
homem da areia”53, graças à aguçada capacidade de representação da realidade do escritor
alemão. A multiplicidade dos pontos de vista traria a dimensão do contraditório em uma
dramaticidade estruturalmente complexa, capaz de entrelaçar as possibilidades do real e do
imaginário.54 Em Hoffmann a imaginação se coloca a serviço da investigação dos limites da
consciência, e os cenários raramente estão estabilizados. O que se vê pode ser tanto resultado
de imaginação fantástica, produto de confusões psíquicas ou imagem do sobrenatural
propriamente dito. Na fusão das possíveis perspectivas confundidas, instala-se o mistério
necessário para o efeito terrífico. Vagando em espaço indefinido seus dramas se fortalecem.
Sua repercussão na França deve-se a Loève-Veimars, responsável pela tradução e
divulgação de sua obra. Ele pedia a amigos jornalistas que escrevessem avaliações dos textos
de Hoffmann que apareceram em jornais como Le Courrier, Le Temps e Le Globe55. As
primeiras traduções, de 1828, caem no gosto de jovens escritores como Théophile Gautier,
que, a partir de 1830, começa a se tornar conhecido por suas narrativas fantásticas. Dizendo-
se diretamente influenciado pelo escritor alemão, passa a defendê-lo nos jornais e revistas nas
quais publicava seus contos e críticas, como a Revue des Deux mondes, La Revue de Paris,
L’Artiste e Le Salmigondes. 56 Para ele Hoffmann traria para a literatura forças ocultas,
loucuras, visões e influências malignas dificilmente representáveis. O sobrenatural e o
extraordinário seriam descobertos e apresentados na lógica do cotidiano, o fantástico flertaria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
Uma observação mais detalhada do conto será feita no quarto tópico com base na análise da
repercussão do texto “Das Unheimlich”, famosa interpretação do texto de Hoffmann de autoria de Freud.
54
CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba: Editora UFPR, 2006, p.13.
55
CASTEX, Pierre Georges. Le conte fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: Librarie
José Corti, 1951.
56
BATALHA, Maria Cristina. “A literatura fantástica e a cena do romantismo francês.” In: Vertentes
teóricas e ficcionais do insólito. Flávio Garcia e Maria Cristina Batalha. (Orgs.). Rio de Janeiro: Caetés, 2012.

!
! 32!

com o possível, seria verossímil como distúrbio.57 Os dramas do horror humanizado poderiam
fazer conviver imaginação fantástica com intenções realistas.
Em sua primeira novela, Gautier evidencia a filiação. La Cafetière, publicada em
1831, traz a articulação entre vida real e vida imaginada, exterior e interior, em uma trama
típica dos desenlaces misteriosos do roman noir. Os problemas da representação são trazidos
à cena no contraste entre a esfera íntima e a suposta objetividade do mundo real. O
protagonista Théodore, seduzido pela bela Angéla, não consegue determinar as bases das
experiências vividas com a jovem: o encontro, a dança, tudo se perde no emaranhado de suas
confusões mentais. Ao descobrir que sua amada havia morrido dois anos antes de conhecê-la,
sente se perder no vazio, rompendo qualquer sensação de segurança em relação ao mundo.58
Em “La morte amoureuse”, conto publicado entre 23 e 26 de junho de 1836 na revista literária
Chronique de Paris, Gautier explora os limites do real e do imaginário da perspectiva do
onírico. O amor de Romuald, religioso que questiona seus votos pela vampira e cortesã
Clarimonde, é vivido na forma típica do duplo. O personagem experimenta uma vida religiosa
pela manhã e devassa à noite, enquanto sonha. A narrativa que aparentemente separa sonho de
realidade se confunde quando a vida onírica de Romuald reaparece para lembrá-lo de seu
infortúnio.59
O questionamento desses limites marcaria boa parte da produção inicial do escritor
francês. O religioso vítima de tentações, a mulher fatal desenhada como vampira, os conflitos
entre a moral e o desejo reaparecem sem lugar definido. Entre sonhos, delírios e tentativas de
resgate da realidade, o horror paira entre a crença e a descrença. Segundo o crítico Jean
Gaudon, esse conflito marcaria a obra de Théophile Gautier até meados do século XIX.60
Ainda segundo o ele, é a violência do retorno ao real que redime os protagonistas
recolocando-os parcialmente no caminho da salvação. O processo se dá como um assassinato,
uma morte em vida. No caso de Romuald, luto duplo por uma mulher duplamente morta.61

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
57
Ver GAUTIER, Théophile. Souvenirs de théâtre, d’art et de critique. Paris: Charpentier, 1883.
58
Sobre a relação entre as obras de Gautier e Hoffmann ver Théophile Gautier, conteur fantastique e
merveilleux, de Peter Whyte. O trabalho é citado por Maria Cristina Batalha no texto supracitado (“A literatura
fantástica e a cena do romantismo francês”).
59
O conto serviu de base para o romance A mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo. A relação entre os
dois textos será analisada no quarto capítulo.
60
Em textos como “Avatar” (1856), por exemplo, a articulação entre a crença e a descrença é trabalhada
conforme as possibilidades, ainda que improváveis, das realizações científicas.
61
O comentário aparece no prefácio da edição de La morte amoureuse, Avatar et autres récits
fantastiques. Paris: Gallimard, 1981.

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! 33!

Em textos como “La Vénus d’Ille”, de 1835, de Prosper Mérimée, o que é na


aparência impossível não se traduz simplesmente como sonho. O processo de construção da
desconfiança é desencadeado a partir do momento em que emergem narradores irônicos que
evidenciam o caráter capcioso das tramas. 62 No conto, uma misteriosa escultura é
parcialmente responsabilizada pela tragédia ocorrida em torno dela. Toda narrativa é
conduzida de maneira ambígua; cada novo evento traz a possibilidade de uma explicação
racional. O narrador deixa Ille e retorna a Paris sem conclusões definitivas. Descobre
posteriormente que a escultura fora destruída e transformada em sinos de igreja, mas a má
sorte ainda a acompanha, pois o badalar dos sinos de bronze teria por duas vezes secado as
vinhas. Tratar como má sorte coincidências macabras é uma forma de deixar a história aberta
ao acaso da interpretação: o narrador oferece pistas sem concluir, alude ao sobrenatural sem
afirmá-lo, em um constante jogo de pistas falsas.
A literatura fantástica, filiada ao gótico, produzida na França na primeira metade do
século XIX não se resumiu a autores conhecidos, como Prosper Mérimée. Alguns formaram
um grupo que ficou conhecido como Petit Cénacle – alusão ao Cénacle organizado em torno
de Victor Hugo e Charles Nodier. Composto de personagens da boemia francesa, como
Gérard de Nerval, Pétrus Borel, Auguste Maquet, Jules Vabre, Célestin Nanteuil, Philotée
O’Neddy, Joseph Bouchardy e também Théophile Gautier, esse grupo se reunia no ateliê do
escultor Jehan Du Seigneur. As obras desses autores, no entanto, não conheceram grande
fama e foram criticadas pelo estilo extravagante e exagerado. Considerados românticos
menores, os petits romantiques do Petit Cénacle seriam mais lembrados “pela postura
irreverente e pela indumentária extravagante”.63
O cenário da literatura de horror francesa se fortaleceria com a popularização dos
textos de Hoffmann e com as releituras de obras como Le diable amoureux, de Jacques
Cazotte, de 1772, e Le manuscrit trouvé à Saragosse, do polonês Jan Potocki, publicada em
francês em 1808. A difusão das traduções francesas dos textos de Edgar Allan Poe64 feitas por
Charles Baudelaire a partir do final da década de 1840 também impulsionariam a exploração
do horror de caráter mais verossímil e cruel, como evidenciam os contos de Guy de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
62
Segundo afirma Maria Cristina Batalha em “A literatura fantástica e a cena do romantismo francês”,
essa modalidade de horror irônico já teria se fortalecido com a divulgação das primeiras traduções francesas da
obra de Edgar Allan Poe. BATALHA,Maria Cristina. Op. Cit., p.171.
63
BATALHA, Maria Cristina. A literatura fantástica e a cena do romantismo francês. Op. cit., p. 172.
64
O primeiro texto de Edgar Allan Poe traduzido para o francês, “Le scarabée d’or” (“The gold bug”),
foi publicado em 1845 na revista Revue Britannique. A tradução não foi assinada.

!
! 34!

Maupassant.65 O autor que ficou famoso aos trinta anos com a pequena novela Boule de suif
escreveu histórias de cunho realista, mas produziu também contos que tratavam da loucura e
do inexplicável, de aparições e fantasmas. Seu conto fantástico mais famoso é “Le Horla”, em
que fala de um ser invisível que chega à França em um navio vindo do Brasil e que como
define Lovecraft: “domina a mente das pessoas e parece ser a ponta de lança de uma horda de
criaturas extraterrestres chegadas à Terra para subjugar e esmagar a humanidade.”66 Destaca-
se também “Apparition”, publicado em 1883 no Le Gaulois, sobre um homem cético que se
vê diante de uma figura fantasmagórica e não consegue explicar o fato.
Já em “Une Vendetta”, inicialmente lançado no mesmo Le Gaulois em 1883 e depois
na coletânea Contes du jour et de la nuit, em 1885, Guy de Maupassant conta a história de um
acerto de contas entre duas famílias na pitoresca Ilha de Córsega. A viúva Saverini usa sua
cadela para vingar a morte do filho Antoine, covardemente apunhalado pelas costas por
Nicolas Ravolati. A cena em que ele é destroçado pelo animal é forte, violenta e concisa,
como a narrativa toda, aliás. Na frase final o narrador diz que, depois do assassinato, a viúva
dormiu tranquila, satisfeita com a vingança cruel.
Os retratos bastante objetivos evidenciam certa banalidade do mal: tudo se resolve
pragmaticamente, sem espaços para considerações de ordem moral. Entre pequenos casos
sombrios, como “La main d'écorché” – primeiro dos contos de Guy de Maupassant
publicados no Almanach Lorrain de Pont-à-Mousson, em 1875, sobre um homem que
enlouquece e tem a sensação de ter sido estrangulado por uma mão humana usurpada de um
cadáver –, e trabalhos de maior fôlego como o supracitado “Le Horla”, o autor escreveu mais
de trezentos contos em diversos jornais e revistas. Pela precisão e representação da crueldade,
seus textos se aproximam dos contos de Edgar Allan Poe.
Poe não foi o único a escrever histórias macabras nos Estados Unidos no século XIX:
também Charles Brockden Brown e Nathaniel Hawthorne o fizeram. Brown é autor de
Wieland, publicado em 1798, e Hawthorne escreveu obras que se tornaram clássicas, como
The Scarlet Letter, em 1850, e The House of the Seven Gables, em 1851. No entanto, é Poe
que se destaca: ele ajudou a definir os termos do horror literário oitocentista e estabelecer
padrões para o conto moderno. Lovecraft, por exemplo, afirmou que ele “inventou o conto em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
Segundo afirma Pierre George Castex no supracitado Le conte fantastique en France de Nodier à
Maupassant, a publicação dos textos de Jacques Cazotte e Jan Potocki não gerou adesão ao gótico, estilo que se
expandiu só a partir da década de 1830 com a já mencionada difusão da obra de Hoffmann.
66
LOVECRAFT. H.P., op. cit., p.58.

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! 35!

sua forma presente” 67 . Já Charles Baudelaire, em seu terceiro ensaio sobre o escritor
americano publicado como prefácio a Nouvelles histories extraordinaires, lançado em 1857,
ressaltou a modernidade de suas tramas e sua capacidade de perceber o lado demoníaco do
homem:

Mais voici plus important que tout: nous noterons que cet
auteur, produit d’un siècle infatué de lui-même, enfant d’une
nation plus infatuée d’elle-même qu’aucune autre, a vu
clairement, a imperturbablement affirmé la méchanceté
naturelle de l’Homme. Il y a dans l’homme, dit-il, une force
mystérieuse dont la philosophie moderne ne veut pas tenir
compte; et cependant, sans cette force innommée, sans ce
penchant primordial, une foule d’actions humaines resteront
inexpliquées, inexplicables. Ces actions n’ont d’attrait que
parce qu’elles sont mauvaises, dangereuses; elles possèdent
l’attirance du gouffre. Cette force primitive, irrésistible, est la
Perversité naturelle, qui fait que l’homme est sans cesse et à la
fois homicide et suicide, assassin et bourreau; – car, ajoute-t-il,
avec une subtilité remarquablement satanique, l’impossibilité
de trouver un motif raisonnable suffisant pour certaines actions
mauvaises et périlleuses pourrait nous conduire à les considérer
comme le résultat des suggestions du Diable, si l’expérience et
l’histoire ne nous enseignaient pas que Dieu en tire souvent
l’établissement de l’ordre et le châtiment des coquins; – après
s’être servi des mêmes coquins comme de complices! tel est le
mot qui se glisse, je l’avoue, dans mon esprit comme un sous-
entendu aussi perfide qu’inévitable. Mais je ne veux, pour le
présent, tenir compte que de la grande vérité oubliée, – la
perversité primordiale de l’homme, – et ce n’est pas sans une
certaine satisfaction que je vois quelques épaves de l’antique
sagesse nous revenir d’un pays d’où on ne les attendait pas. Il
est agréable que quelques explosions de vieille vérité sautent
ainsi au visage de tous ces complimenteurs de l’humanité, de
tous ces dorloteurs et endormeurs qui répètent sur toutes les
variations possibles de ton: «Je suis né bon, et vous aussi, et
nous tous, nous sommes nés bons!» oubliant, non! feignant
d’oublier, ces égalitaires à contresens, que nous sommes tous
68
nés marqués pour le mal!

A passagem citada ajuda a situar a relevância dos textos para a produção literária do
século XIX, em particular para o projeto estético de Baudelaire. Ele é lido como uma espécie
de profeta dos novos tempos, alguém que conseguiu vencer os limites impostos por uma
cultura cada vez mais materialista e trazer à cena um universo de sonhos infernais reveladores
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
LOVECRAFT. H.P., op. cit., p.63.
68
BAUDELAIRE, Charles. Notes nouvelles sur Edgar Poe. Disponível em: <http://zip.net/bbmvwP>.
Acesso em: 24 mar. 2014.

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! 36!

do lado obscuro da humanidade. A perversidade, motor dramático preferencial, surge como o


dispositivo da verdade profunda assolada pela modernidade. É ainda a essência de uma
natureza dissimulada, motivação primordial da experiência.
Nas palavras de Baudelaire, a perversidade que motiva os personagens de Poe é a
mesma que orienta a vida em sociedade. Poe simplesmente teria a coragem e a capacidade de
evidenciar o que era vivido em silêncio. Quando afirma a indelével marca do mal, Baudelaire
desdenha dos pressupostos iluministas para fazer uma apologia das trevas da perspectiva dos
cenários construídos pelo escritor americano. Ainda segundo o poeta francês, a imaginação
audaciosa não estaria simplesmente a serviço do deleite estético, e o recurso do sonho surgiria
como antídoto à dissimulação e revelaria o segredo calado no fundo dos corações. À arte
caberia o papel demoníaco de fazer ver o mal; o horror dos contos traduzidos por Baudelaire
exibiria uma mórbida fascinação pelo distúrbio psíquico, no qual a beleza é quase sempre
fatal. Nos mecanismos da imaginação sombria de Poe, o excesso, o desejo e o sobrenatural
fazem parte de uma mesma trama que tende a diluir as fronteiras entre realidade e pesadelo.
A obra de Edgar Allan Poe consiste em algumas dezenas de contos e poemas, dois
romances inacabados e uma centena de artigos69. A maioria de seus textos foi publicada em
periódicos, principalmente na Blackwood’s Magazine – revista bastante popular fundada em
1817 por William Blackwood –, sobre cujos padrões editoriais escreveu um irônico artigo
intitulado “How to Write a Blackwood Article”70. Possivelmente a obra mais famosa de Poe é
a primeira coletânea de contos que ele mesmo organizou, Tales of the Grotesque and the
Arabesque, publicada em 1840. No prefácio o autor tenta desfazer um equívoco que se
tornava cada vez mais comum: o de que sua obra era tributária do gótico alemão, sobretudo
com a popularização dos textos de Hoffmann traduzidos para o inglês nas primeiras décadas
do século XIX: “If in many of my productions terror has been the thesis, I maintain that terror
is not of Germany, but of the soul, – that I have deduced this terror only from its legitimate
sources, and urged it only to its legitimate results.” O terror que emana de suas páginas, não
teria origem em nenhuma tradição literária específica, seria resultado da exploração
demoníaca dos mistérios humanos. Ao ironicamente defender a originalidade de seus textos,
anuncia seu projeto estético enfatizando a via dupla do efeito: o terror que se desprende do

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Em 1838 publicou uma versão incompleta de The Narrative of Arthur Gordon Pym e em 1840
publicou apenas seis capítulos de The Journal of Julius Rodman na Burton’s Gentleman Magazine.
70
Assumindo a identidade de Signora Psyche Zenobia, dá dicas do tom a usar nos artigos. Recomenda
entusiasticamente o uso de termos em grego, o que daria ar de profundidade aos textos.

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! 37!

fundo da alma a ela deve retornar sob a forma de literatura e atingir o leitor pela revelação do
medo.
A ênfase definitivamente não está mais no cenário ou no contraste entre vilões
maléficos e heróis virtuosos; não são mais as ruínas de um castelo que assustam e causam
medo, mas a maldade de indivíduos comuns, o mal naturalizado e disseminado. A
modernidade de Poe entoada por Baudelaire significa, entre outros aspectos, a popularização
da experiência do mal, que deixa de ser atributo de personagens aristocráticos, excêntricos,
estranhos, pervertidos, para aparecer em cenários urbanos mais comuns. A variedade de
temas, personagens e situações sinistras que aparecem em seus contos fez com que fossem
reformulados os princípios do gótico literário e com que se a configurasse o que viria a se
tornar a “literatura de horror” do século XX. As perturbações psicológicas, os duplos, os
espelhos, as incertezas da consciência, os eventos estranhos que habitavam o mundo
fantástico de um passado remoto transformam-se em situações comuns do perverso mundo do
crime que conheceria um novo tipo de herói: o detetive.
Em “The Murders in the Rue Morgue”, publicado em 1841 na Graham’s Magazine,
Auguste Dupin resolve o brutal assassinato de duas mulheres em Paris naquele que é
considerado o primeiro conto policial da história literária71. É um caso na obra de Poe em que
o sinistro literalmente se converte em enigmático, capaz de ser resolvido pela perspicácia
tanto do personagem quanto do leitor. O enigmático não é apenas o misterioso explicável pela
razão, é uma forma específica de composição literária que deliberadamente joga com o leitor,
apresentando uma série de indícios contraditórios e complementares com vistas à solução
final. Sob o paradigma do enigma a explicação não é dada – como no caso dos romances de
Ann Radcliffe, por exemplo –, e o problema é posto sobre a mesa por meio das artimanhas de
um narrador que ajusta e altera o foco de acordo com sua conveniência.
Lovecraft destaca que o maior mérito de Poe foi perceber “a impessoalidade
essencial do verdadeiro artífice”, ou seja, a função da literatura seria expressar e interpretar
sem julgar. A ficção transforma-se em um mecanismo imparcial de exploração de sensações e
situações dramáticas. O bem e o mal; o atrativo e o repulsivo; e o belo e o feio estão a serviço
de um sistema cuja única obrigação é funcionar perfeitamente. Distanciando-se de qualquer
reflexão moral ou filosófica, o texto pode ser encarado exclusivamente como propulsor de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
71
Mesmo considerando “Das Fräulein von Scuderi”, de Hoffmann, como protótipo nas histórias
detetivescas, no texto de Poe há uma formatação dramática mais próxima do que a que se encontra nas histórias
policiais a partir do fim do século XIX.

!
! 38!

sensações. O crítico Araripe Júnior, por sua vez, comenta: “Poe fez de sua imaginação o que
quis, dirigiu seu intelecto para os pontos que mais eficazmente lhe abriam os horizontes ao
mundo das sensações desconhecidas.” E ainda: “Se já houve homem que soubesse o que
possuía de força cerebral, que a analisasse e explorasse, provocando ciente e
inconscientemente tudo o quanto ela estava em condição de dar, este homem não foi outro
senão o autor de Histórias extraordinárias.” A interpretação do crítico define Poe como um
hábil explorador das potências do cérebro. Um artífice capaz de reproduzir sensações, um
artista único que entendia a obra de arte em sua plenitude, como uma “máquina de
sensações”72.
Na última década do século XIX obras como The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr.
Hyde, publicada em 1886, de Robert Louis Stevenson; Dracula, em 1897, de Bram Stoker; e
The Turn of the Screw, em 1898, de Henry James, retomam elementos característicos da
estética gótica: o duplo, o vampiro e a relação ambígua com a loucura. Em The Strange Case
of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a dupla personalidade do Dr. Jekyll é tratada com espanto e inclui
relatos de médicos, advogados e cientistas; em Dracula, o vampiro é cassado pelo cientista
Van Helsing; e, em The Turn of the Screw, as visões fantasmagóricas de uma governanta
responsável pelo cuidado de duas crianças deixam o leitor confuso entre explicações racionais
atribuídas à loucura ou à crença no sobrenatural73.
Nos três textos as ideias científicas são exploradas na própria fabulação do medo, e o
horror se expressa na ambiguidade extraída da potencialidade de falha do discurso científico
oitocentista. O duplo como fratura psicológica desencadeada pela ingestão de uma fórmula
inventada, o impulso de explicação racionalista do caçador de vampiros e a encenação de uma
possível loucura aparecem como investimento na dúvida. No jogo das motivações
parcialmente explicáveis, sobrevive a expectativa de uma ficção autônoma que tem no
horizonte apenas a eficácia. Seguro de seu papel, o horror literário depois de Edgar Allan Poe
aponta para a explicação racional como contraste sem precisar necessariamente administrar os
riscos espectrais da superstição. Consolidado como forma lúdica, transforma-se em produto

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
72
JÚNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1968, vol. I (1868-1887).
73
Sobre a repercussão crítica da obra de Henry James, ver The Turn of the Screw: A History of its
Critical Interpretations 1898-1979, de Edward J. Parkinson, dissertação defendida na Saint Louis University em
1991. Disponível em: <http://www.turnofthescrew.com/>. Acesso em: 24 mar. 2014.

!
! 39!

cultural de massas74. Repetida e reproduzida, a literatura voltada para o horror se estabelece


nos domínios de um prazer cujos riscos não ultrapassam as fronteiras da simulação.

1.3. Matrizes conceituais e modelos literários do horror

Muitas formulações do horror literário têm como base premissas estéticas


estabelecidas em meados do século XVIII. O mecanismo de produção de efeito de horror é
calcado no conceito de sublime: trata-se da justaposição moderna de pares de oposição, como
o belo e feio; o atrativo e o repulsivo, tendo em vista a busca de determinada sensação como
objetivo ideal da recepção. A eficácia do texto passa a depender da reação sensível do leitor,
pois a intenção de gerar ou simular o medo permanece no horizonte. Comparados Horace
Walpole e Edgar Allan Poe, por exemplo, percebe-se que ambos partem do pressuposto de
que reproduzir o horror é simular uma condição natural. O primeiro diz seguir as regras da
natureza enquanto o segundo diz extrair o horror do coração. Essa percepção de naturalidade
está em grande medida ligada à experiência sublime cuja acepção moderna ganha maior
repercussão com a publicação de A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the
Sublime and Beautiful, de Edmund Burke, obra cuja versão completa data de 175775.
Nessa obra, o filósofo irlandês analisa as relações entre a beleza e o sublime. Ele
interpreta o excesso como chave para a compreensão de um tipo novo de subjetividade. A
experiência torna-se alvo de um empirismo voltado para as sensações em uma investigação
secular acerca dos efeitos da imaginação sobre o corpo, o que torna o inquérito ao mesmo
tempo original e decisivo nas reflexões sobre a estética romântica. A busca por algo próximo
a uma teoria das paixões faz do texto um exame minucioso do gosto estético e das dimensões
universais da apreciação de acordo com a individualidade das formas de sentir. Se a beleza é
um elemento crucial no desenrolar da história do gosto, o sublime é justamente o que rompe
com a lógica da experiência remetida à tradição, é o que instaura a liberdade por causar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
Lembramos a infinidade de apropriações tanto Drácula quanto de The strange case of Dr. Jekyll and
Mr Hyde: ambas as obras serviram de base para incontáveis filmes, esquetes televisivos e histórias em
quadrinhos.
75
Há um tratado sobre o sublime atribuído ao filósofo grego Longinus, escrito possivelmente no século
I a.C., e mais dois textos que serviriam de referência para Edmund Burke: Pleasures of Imagination (1747), de
Mark Akenside, e o supracitado poema Night Thoughts (1745), de Edward Young. A opção por começar o
debate pelo inquérito de Burke deve-se a sua centralidade à discussão específica sobre a configuração da estética
romântica.

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! 40!

desordem aos sentidos. Essa desorganização sensorial teria origem no aspecto obscuro do
sublime, pois seus traços misteriosos seriam responsáveis pela produção de efeito.
O que Burke entende por paixões refere-se a um repertório amplo de sentimentos:
amor, medo, alegria, prazer, dor, raiva, terror, estupefação, enfim, modalidades de sensações.
Quanto aos sentimentos reguladores das paixões – prazer e dor –, o filósofo irlandês tenta
afirmar o aspecto não necessariamente complementar de ambos. Um dos argumentos centrais
que atestam a diferença é o fato de que a dor pode ser forçada, imputada, enquanto o prazer
não. A evidência o leva a acreditar que a primeira é muito mais poderosa e de natureza
positivamente distinta da segunda.
Independentemente das sensações experimentadas, o gosto é aparentemente o
elemento-chave de aproximação dessas mesmas sensações. Na introdução sobre o tema do
sublime, Burke estabelece o pressuposto fundamental de que tanto a razão quanto o gosto são
padrões universais, idênticos em todas as criaturas humanas76. No entanto, ambos precisam
ser cultivados com esforço constante: o desenvolvimento das faculdades de juízo e de
apreciação é fruto de um trabalho intelectual intenso em busca de determinados padrões fixos
e de leis invariáveis que organizem os sentidos. Seriam três as capacidades naturais dos
homens que condicionariam sua relação com a exterioridade: os sentidos, a imaginação e o
julgamento. Supondo uma uniformidade orgânica básica entre os seres, a forma de percepção
sensorial tende à padronização; assim, doce e amargo; claro e escuro; frio e quente seriam
universais. Ainda que se percebam pequenas variações de intensidade, imaginar que cada
corpo pudesse reagir de maneira absolutamente distinta tornaria inútil qualquer esforço de
entendimento.
Os prazeres visuais, mais do que os do paladar, obedecem a um consenso que
permite a Edmund Burke tecer generalizações sobre a beleza e formular regras que
ultrapassam análises e julgamentos individuais. O prazer ganha feição universal, e, a despeito
de possíveis variações de intensidade, o filósofo defende certa racionalidade da experiência
que o faz confluir para uma esfera de possibilidades aparentemente seguras, definidas e
previsíveis. Se o prazer e a beleza podem assaltar o juízo humano, colocando-o na posição de
espectador condicionado, a imaginação surge como recurso, potência criativa capaz de
organizar as imagens e as sensações recebidas pelos sentidos de maneira própria e de
acomodá-las em ordens variadas de sentidos. A imaginação, a despeito de seu poder, é
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
76
BURKE, Edmund. A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and
Beautiful. Oxford: Oxford World’s Classics, 2008, p. 11.

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subsidiária da realidade apreendida pelos sentidos. Sua capacidade poética depende


essencialmente das imagens recebidas. Torna-se a mais potente fonte de prazer e de dor na
medida em que funciona como representação dos sentidos, um sistema de construção de
medos e de esperanças que atribui significado à experiência sensorial.
A realidade, em suas variadas formas, nutre os sentidos, que fornecem matérias-
primas para a imaginação geradora de sentimentos e de sensações. Por princípio, se o gosto é
fruto da imaginação fomentada pelos sentidos, há um caráter universal nas maneiras de sentir.
O padrão de afetação do homem correspondente à sua capacidade de experimentar a realidade
se dá pela homogeneidade dos corpos que experimentam. Portanto, do ponto de vista da
argumentação de Burke, níveis diferentes de afeto são admissíveis apenas quando causados
por inúmeros fatores, como a disparidade natural entre as sensibilidades individuais e a
disponibilidade maior ou menor, mais rápida ou mais lenta de apreciação do objeto em
questão.
O gosto, que é basicamente tratado como uma capacidade distintiva, seria resultado
da sofisticação dos sentidos, não necessariamente aplicável a todos os indivíduos. O
embrutecimento da sensibilidade, resultado da educação fria ou demasiadamente sensorial,
impossibilita o desenvolvimento da faculdade do juízo pela restrição da sensibilidade. O
resultado é o que Burke chama de “gosto errado”77, produto da incapacidade individual de
julgamento. Independentemente das capacidades singulares de afetação e de juízo, todo ser
humano seria capaz de sentir e de sofrer as formas mais simples de afetação, que, segundo o
autor, são o prazer e a dor. Sentimentos que, ainda de acordo Burke, têm naturezas
absolutamente distintas e não dependem da reciprocidade para se manifestarem. A mente
humana, que na maior parte do tempo está no que ele chama de “estado de indiferença”, pode
oscilar entre os dois extremos autonomamente, atingir o prazer sem necessariamente passar
por estágios de dor e vice-versa. Porém, o autor afirma ser inegável a sensação de prazer ao se
escapar de algum perigo ou ao se livrar de alguma dor. Esse seria um tipo específico de
sentimento, uma satisfação diferente do voluptuoso prazer legítimo. No entanto, a sensação
proveniente da alteração da dor merece atenção especial por sua natureza sólida, forte e
severa.78
As denominadas “paixões da autopreservação”, dor e perigo, articulam-se com as
ideias de doença e morte, o que preenche a mente com emoções fortes, traduzidas como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
BURKE, Edmund, op. cit., p. 23.
78
BURKE, Edmund, op. cit., p. 35.

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! 42!

horror. Elas seriam o oposto radical da vida e da saúde, que, por sua vez, remeteriam
necessariamente ao prazer. Nesse ponto, uma questão central apresenta-se na argumentação
de Burke: a violência das emoções horríveis é sempre mais forte e poderosa do que as que
geram contentamento. O assombro da morte e da dor supera em intensidade os prazeres da
vida, por isso é justamente o horror o responsável pela deflagração da mais violenta das
paixões: a experiência do sublime.

Whatever is fitted in any sort to excite the ideas of pain and


danger, that is to say, whatever is in any sort terrible, or is
conversant about terrible objects, or operates in a manner
analogous to terror, is a source of the sublime; that is, it is
productive of the strongest emotion which the mind is capable
of feeling. I say the strongest emotion, because I am satisfied
the ideas of pain are much more powerful than those which
enter on the part of pleasure. Without all doubt, the torments
which we may be made to suffer are much greater in their effect
on the body and mind, than any pleasure which the most
learned voluptuary could suggest, or than the liveliest
imagination, and the most sound and exquisitely sensible body,
79
could enjoy.

O horror atinge o corpo e a mente com força devastadora, e o sublime, seu


desdobramento, produz emoção maior do que qualquer estímulo prazeroso. Assim, a morte,
limite da dor, afigura-se como origem de todo horror. Se a proximidade do perigo veta
qualquer possibilidade de prazer, instituindo um horror preponderante, sob determinadas
circunstâncias de controle abre-se a possibilidade da satisfação. Aquilo que é
fundamentalmente horrível pode ser fonte de júbilo na hipótese de seu domínio virtual. Entrar
em contato com uma história trágica pode ser prazeroso justamente pela distância, pelo
conforto da separação que afasta a narrativa da realidade do sujeito que observa. Nesse
sentido, para Burke, é possível ter prazer tanto em histórias reais quanto fictícias, porque o
que está em jogo é a simpatia para com os personagens, sejam eles reais, sejam imaginados.
Fatos históricos não são mais ou menos eloquentes, e o poder da narrativa está em sua
capacidade de gerar identificação.
O pesar que acompanha o prazer da sensação do horror teria origem no amor
designado por Deus para unir os homens. Essa compaixão gera o que chama de afeição social.
A face cristã do paradigma estético reforça determinada universalidade de percepção às

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
79
BURKE, Edmund, op. cit., p. 36.

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narrativas, compreendidas segundo uma solidariedade que garante estabilidade no que tange à
recepção. Se tanto a realidade quanto a ficção podem gerar o sublime, a capacidade de
simpatia e de solidariedade reside justamente no potencial que a ficção tem de se fazer real,
verossímil. Sua força concentra-se na possibilidade de converter, ainda que temporariamente,
a imitação em coisa em si.
O momento apoteótico da tragédia é o que insinua a identificação absoluta. O valor
da ficção leva em consideração sua familiaridade com um sentido profundo de realidade. Sua
aproximação com o objeto da representação, sua possibilidade de conversão da matéria
inventada em traços de uma realidade idealizada, suposta, garante sua densidade dramática,
sua legitimidade artística. No entanto, Burke se vale da imagem hipotética de um teatro vazio
como demonstração da fraqueza das artes imitativas para ilustrar os limites da representação.
Por mais que seja fonte poderosa do sublime, há um ponto intransponível que devolve a arte à
sua condição simuladora. As imperfeições do discurso artístico, no entanto, não devem inibir
o esforço de remoção da ideia de ficção, pois nesse movimento reside a possibilidade de
efeitos sensoriais ainda mais poderosos do que determinados fenômenos reais. Por mais que
soe paradoxal, para Burke, o discurso artístico é sempre falho ao se converter em realidade
apesar de ter potencial para se tornar ainda mais poderoso do que ela. No final, o que interessa
é a construção de um efeito solidário que reverta a lógica do horror, que o transforme em
deleite e faça o espectador dele se aproximar com segurança.
O assombro causado pelo sublime é caracterizado pela completa tomada da mente,
um estado de alma em que todas as outras emoções são suspensas quando se instala certo
nível de horror. O objeto contemplado toma a razão de assalto, preenchendo todos os espaços
mentais, impedindo que qualquer outro elemento seja observado. O poder do sublime está
justamente em não ser um produto da razão, mas em se antecipar ao raciocínio e conduzi-lo
por caminhos irresistíveis. Segundo Burke, o assombramento é o efeito último do sublime que
ainda passa pelos estágios de admiração, reverência e respeito80, enquanto o medo aparece
como seu propulsor. Noções como as de horror, terror, medo, respeito, assombramento,
admiração, entre outras, estariam semanticamente ligadas em diferentes contextos culturais e
demarcariam para o filósofo a universalidade pretendida em seu estudo sobre as paixões.
O horror dependeria ainda de outro elemento que quase sempre o acompanha: a
obscuridade. Ela não permite que toda a extensão do perigo seja visualizada, e isso cria,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
BURKE, Edmund, op. cit., p. 53.

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! 44!

assim, uma atmosfera de incerteza e de imprecisão que torna a expectativa ainda mais
assustadora. Segundo Burke, propagar a escuridão é a política costumeira de terror usada por
governos despóticos e por sistemas religiosos, pois por onde ela age a razão falha e a lucidez
se esconde. Os efeitos do escuro se fazem sentir, sobretudo, em histórias populares macabras
amplamente difundidas. Ainda segundo filósofo, ninguém teria percebido melhor os efeitos
sublimes da escuridão do que John Milton. A descrição da morte no segundo livro de
Paradise Lost e seu apelo à escuridão e ao horror definiriam perfeitamente o efeito sublime. O
medo onipresente na descrição do mais profundo dos horrores é a chave de leitura do poema
épico.
Sob o efeito da sensação medonha, estabelece-se o sentido do texto, que, para o
Burke, atinge o máximo da perfeição na medida em que constrange o leitor pelo domínio de
suas faculdades mentais. O efeito do sublime desponta como resultado do ajuste eficaz de um
texto literário, e este é condicionado pela força. A afirmação de que o sublime não pode
derivar senão de uma alteração de forças81 leva à conclusão de que da obra de arte deve
emanar uma força própria capaz de imprimir a sensação de terror, em alusão ao perigo, ao
risco, ao flerte com a possibilidade da morte. A obra de arte deve ter uma violência
característica que suspenda o sentido de realidade e confunda o espectador ainda que
temporariamente.
Para falar sobre a relação entre força, horror e dor, o autor cria a imagem de um
homem sendo atacado por um animal. Primeiro, um medo irrefletido diante do poder ao
mesmo tempo evidente e misterioso que resulta na experiência sublime; seguido da
racionalização, que neutraliza tais efeitos e resulta em desprezo como forma de domínio da
situação. A posição do leitor diante de um texto a priori assustador refaz essa experiência de
sobreviver a um risco e permite que ele se deixe levar ao limite da comoção para depois
controlar seus efeitos: ele contém as emoções em um tipo particular de desprezo em relação
ao potencial lesivo do texto. Sua magia e eficácia dependem da orquestração de violência, dor
e horror que irradie uma força intensa o suficiente para coagir o leitor. Se o sublime
corresponde à submissão, a um estado de admiração plena, a beleza seria então relativa ao
amor e, portanto, atuaria em uma frequência absolutamente distinta de sensações na qual a
complacência substituiria a sujeição. Se o sublime é o que nos assalta, a beleza é
experimentada como forma de concessão, um deleite permitido de menor intensidade.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
BURKE, Edmund, op. cit., p. 59.

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! 45!

As diferenças se fazem sentir não só na intensidade da experiência, mas também na


magnitude das coisas. O amor seria aplicável a objetos e a assuntos menores, enquanto o
sublime e o horrível seriam possíveis em situações e em artefatos de maiores dimensões. Por
atuar em circunstâncias de maior impacto, o amor seria capaz de gerar mais prazer do que a
beleza. Edmund Burke analisa ainda como o horror se converte em júbilo, como algo tão
desagradável em um primeiro momento pode se transmudar a ponto de se tornar
extremamente agradável aos sentidos. O modo como um estímulo pautado pela dor se
transforma depende de um processo de sofisticação e de apuração sensível. O horror exercita
a sensibilidade, sofistica os sentidos da visão e da audição.
Chegar ao sublime exige aperfeiçoamento constante e dedicação intelectual. O
deleite oriundo da experiência, que não se confunde com prazer, origina-se no sentimento de
autopreservação. Sentir o perigo, perceber seus riscos e escapar em segurança: eis a saborosa
sensação sublime. Na quinta e última parte de seu inquérito, Burke dedica-se ao que julga o
mais poderoso instrumento de afetação: a palavra. Mais do que qualquer elemento da natureza
ou produto artístico, é a palavra que mais comove. O poder de afetação deve-se a três motivos
principais, listados na última seção, intitulada “How Words Influence the Passions”: o
primeiro refere-se ao poder de gerar empatia; o segundo à possibilidade de criar inúmeras
situações de afetação e o terceiro à possibilidade de construir combinações improváveis na
realidade.
Nos três pontos destaca-se o poder de construção imaginativa como forma de superar
a realidade empírica. O que parece estar em jogo é a capacidade das palavras de representar a
realidade em níveis de intensidade e força superiores. As palavras – que permitem acesso à
experiência alheia, que estabilizam um sentido para a realidade necessariamente transitória e
permitem combinar circunstâncias – são fontes privilegiadas do sublime porque são mais
potentes do que as coisas em si. São mecanismos semânticos capazes de convencer e de
comover, em um repertório de possibilidades que ultrapassa qualquer experiência real. Burke
diferencia, no entanto, dois tipos de expressão pela linguagem: a clara e a forte. A primeira
tem características mais propriamente descritivas, ligadas ao entendimento, enquanto a
segunda é voltada para a dramatização de sentimentos, conectada às paixões.
Os modos de enunciação, como a carga dramática imposta pelo narrador, podem
fazer a representação mais viva do que o objeto, que, se descrito com imparcialidade, torna-se
extremamente desinteressante para o espectador. É a capacidade de articulação intensa que
transforma narrativas em motivo de fascínio, e a perícia emotiva no engenho das palavras
garante a comoção necessária ao deleite. As palavras se convertem em beleza e em sublime
!
! 46!

pelo impacto que causam, pela experiência emotiva que provocam. No entanto, no último
trecho do inquérito, Burke afirma não ter tido a preocupação específica de tratar da beleza e
do sublime nas artes, mas sim considerá-los de maneira mais ampla, tentando estabelecer
parâmetros gerais de seus efeitos nos homens. Exercendo sua força, sua capacidade
expressiva, a palavra é transformada em arte na medida em que propulsiona a beleza e o
sublime. É mais poderosa do que a realidade, pois a supera e a densifica na faculdade da
comoção. Essa afetação tem na manifestação do horror sua apoteose82.
O texto que serviria de base para as discussões em torno das funções da ficção gótica
está inscrito em um contexto de valorização da imaginação como fonte de prazer. Tratado no
domínio da técnica e convertido em dispositivo textual, o elemento imaginário que se associa
ao maravilhoso e ao sublime passa a nortear determinado tipo de produção letrada
deliberadamente devotada ao deleite. No início do século XVIII, Joseph Addison publicou no
jornal The Spectator, fundado por ele mesmo em sociedade com Richard Steele, uma série de
ensaios sobre os prazeres possíveis do ato de imaginar. No mais comentado deles, “On the
Pleasure of Imagination”, Addison defende a ideia de que a contemplação de cenas
agradáveis, seja na natureza, seja na pintura ou na poesia, teria efeito positivo para o corpo e
para a mente, não só por iluminar e fomentar a imaginação, como por dispersar a
melancolia83. Já no ensaio intitulado “Ghost Stories”, de 14 de março de 1711, Addison relata
uma cena que ajuda a configurar o sentido que a ficção voltada para o horror assumiria. Sobre
sua infância, diz:

I remember last winter there were several young girls of the


neighborhood sitting about the fire with my landlady's
daughters, and telling stories of spirits and apparitions. Upon
my opening the door the young women broke off their
discourse, but my landlady's daughters telling them that it was
nobody but the Gentleman, (for that is the name that I go by in
the neighborhood as well as in the family,) they went on
without minding me. I seated myself by the candle that stood on
a table at one end of the room; and pretending to read a book
that I took out of my pocket, heard several dreadful stories of
ghosts as pale as ashes, that had stood at the feet of a bed, or
walked over a church-yard by moon-light: and of others that
had been conjured into the Red Sea, for disturbing people's rest,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
82
É conhecida a crítica de Kant a Burke na Crítica da faculdade do juízo, porém o conceito kantiano de
sublime em seus desdobramentos – matemático e dinâmico – não será considerado aqui por não se referir
propriamente ao horror no que tange aos seus desdobramentos literários. O destaque para a obra de Burke
relaciona-se especificamente ao seu papel na definição da literatura gótica.
83
ADDISON, Joseph. The spectator. London: George Routledge & Sons, 1891.

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! 47!

and drawing their curtains at midnight; with many other old


women's fables of the like nature. As one spirit raised another, I
observed that at the end of every story the whole company
closed their ranks, and crowded about the fire: I took notice in
particular of a little boy, who was so attentive to every story,
that I am mistaken if he ventures to go to bed by himself this
twelvemonth.84

A descoberta de um mundo fantasmagórico contado em torno da lareira associa os


prazeres da imaginação com certo paradoxo do horror. A fascinação pelo mistério se vincula a
determinado efeito que a fantasia produz, transformando o medo em fascínio.
Traduzido como mecanismo textual, o mundo lúdico das histórias de fantasmas passa
a ser pautado pelos debates estéticos sobre a noção de gosto. Uma teoria da poética calcada no
efeito surge paralelamente à ficcionalização pragmática do horror que se pressupõe existente
na natureza. No mesmo ensaio, Addison fala da crença em um mundo natural cercado por
espíritos, vigiado por seres que observam as atividades humanas, mas a sensação de não estar
sozinho não é tratada como motivo de desespero, mas com alegria pelo envolvimento com os
mistérios da experiência. Finalmente cita Paradise Lost, de John Milton, como representação
da comunhão entre homens e espíritos.
Se nos textos de Addison o mistério não está completamente domesticado,
racionalizado, já é alvo de interesse curioso. A relação com o sobrenatural se traduz em busca
voluntária por prazer em uma imaginação convertida em produto poético. No ensaio “On
Romances”, escrito em 1773, Anna Laetitia Barbauld85 fala do paradoxo da atração pelo
medo como um sentimento universal relacionado ao encantamento da mente pela fantasia e de
sua atração pelo prazer. Barbauld defende ainda a particular capacidade de sedução do
romance, que por tratar de coisas cotidianas, reconhecíveis por qualquer leitor, seria
naturalmente mais popular que a poesia de Homero, por exemplo86. Em “On the Pleasure
Derived from Objects of Terror”87, a ensaísta afirma que o prazer experimentado diante de
uma cena de horror advém da empatia em relação à vítima. O sentido de autoaprovação
sugerido pela solidariedade estabelecida com o personagem em apuros aguçaria as virtudes do
espectador em um nível tão sofisticado e refinado que o levaria a buscar novas situações
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
ADDISON, Joseph. Essays from Addison. London: Macmillan & Co., 1934, p. 67.
85
Anna Laetitia Aikin assumiu o sobrenome Barbauld depois de se casar com Rochemont Barbauld em
1774.
86
BARBAULD, Anna Laetitia. On Romances. In: AIKIN, John. BARBAULD, Anna Laetitia.
Miscellaneous pieces in prose. London: John Johnson, 1792, p. 39.
87
O ensaio foi publicado com um fragmento intitulado “Sir Bertrand”, cuja autoria é atribuída a John
Aikin.

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! 48!

semelhantes. O horror aos acontecimentos repulsivos é interpretado como um mecanismo de


ênfase moral do observador distante.88
A sensação um tanto paradoxal de prazer marcaria a experiência dos espectadores
diante de tragédias como Macbeth e Hamlet, cuja inspiração terrífica remontaria aos dramas
clássicos produzidos na Grécia Antiga. Nos termos de Barbauld, o cálculo para o sucesso
ficcional parece simples: quanto mais horror, mais identificação e mais prazer. O recurso
marcaria textos antigos que o mesclariam com o maravilhoso: “In the Arabian Nights are
many most striking examples of the terrible joined with the marvelous: the story of Alladin,
and the travels of Sinbad, are particularly excellent.” E teria assumido nova forma no século
XVIII: “The Castle of Otranto is a very spirited modern attempt upon the same plan of mixed
terror, adapted to the model of Gothic romance.”89
A modernização atribuída a Horace Walpole é tratada como um desdobramento de
uma tradição antiga, um tipo de gótico arcaico que sobrevivera por seu apelo às consciências,
por supostamente trabalhar com modalidades transculturais de afetação que independeriam
das diferenças de gosto. O que Barbauld denomina “the old Gothic Romance” se manteria na
ordem da produção cultural conquistando admiradores, assim como as tradicionais fábulas
orientais, com seus gênios, gigantes, encantamentos e estranhas transformações, “[…]
however a refined critic may censure them as absurd and extravagant, will ever retain a most
powerful influence on the mind, and interest the reader independently of all perculiarity of
taste”90.
Paixão e capacidade imaginativa são duas bases usadas para sustentar a defesa do
horror artístico: a primeira mobilizada na forma de uma solidariedade humana ativada pelo
artifício, e a segunda como a possibilidade segura da criação e de distanciamento. Essa dor
fabricada para ser destruída com fins de lazer transforma-se em um produto cada vez mais
difundido no mercado de consumo de bens culturais, indiferente às posturas críticas mais
radicais que lhe condenam o exagero e a falta de refinamento das paixões. O excesso
imaginativo que poderia eventualmente ferir os limites do bom gosto tem no conceito de
sublime sua potencial redenção. Nesse domínio, a lógica da precisão clássica das formas
perde espaço para a o princípio da sensação.

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88
BARBAULD, Anna Laetitia. On the pleasure derived from objects of terror. In: AIKIN, John.
BARBAULD, Anna Laetitia. Miscellaneous pieces in prose. London: John Johnson, 1792, p. 120.
89
BARBAULD, Anna Laetitia. On the Pleasure Derived from Objects of Terror, op. cit., p. 126.
90
BARBAULD, Anna Laetitia. On the Pleasure Derived from Objects of Terror”, op. cit., p. 122.

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! 49!

Nos ensaios sobre o sublime que Friedrich Schiller escreveu na década de 1790, a
fantasia mostra toda sua potencialidade ao fazer “do secreto, do indefinido e do impenetrável
um objeto de terror”91. Não limitada pela realidade, não restrita a nenhum caso em particular,
ela tem diante de si um campo de possibilidades amplo e tenderia ao horrível justamente pelo
sentido de autopreservação. O repúdio seria um sentimento mais ágil e presente do que o
apetite. Por questão de segurança a mente transforma o desconhecido em alvo de suspeitas
negativas, e, na medida em que flui a fantasia, o medo ganha a cena. As trevas são motivos
fortes para o sublime, não por serem perigosas em si, mas porque escondem os dados da
realidade, porque abandonam o ser à sua potencialmente amedrontada faculdade de
imaginação. Daí as representações espectrais serem comuns à meia-noite, e o reino da morte
ser o império da noite eterna.92
Porém, o sofrimento só pode ter sentido estético como ilusão pura, construção
poética ou representação de uma realidade distante a ponto de se voltar para a imaginação. O
sublime “em seu modo patético” é fruto de uma solidariedade que não se confunde
verdadeiramente com o sofredor (o que representaria uma dominação absoluta pelo afeto e a
perda da autonomia moral), mas é a consciência sensível e segura do sofrimento. É preciso
manter a consciência da liberdade moral para sofrer diante de sua determinação no quadro da
situação representada. O processo se divide em duas partes: na representação vivaz do
sofrimento e na representação da resistência ao mesmo sofrer. Da primeira nasce o patético,
da segunda o sublime. Daí se estabelece para Schiller as duas leis fundamentais de toda arte
trágica: “em primeiro lugar a apresentação da natureza que sofre, e em segundo lugar a
apresentação da autonomia moral no sofrimento.”93
Presa dos horrores obscuros da fantasia, o homem deve buscar sua liberdade
afirmando sua vontade do ponto de vista da cultura moral. Só o homem moralmente formado
pode ser verdadeiramente livre e superior à natureza. Duas forças conseguiriam prover tal
liberdade: o belo e o sublime, o primeiro por harmonizar impulsos sensíveis com a razão, e o
segundo por superar a racionalidade. O sublime é, no entanto, um sentimento mais
sofisticado, visto que pode ir do horror à alegria extrema e porque, “embora não seja um
prazer, é preferido por almas refinadas a todo prazer”. A beleza aparece como um simples

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico. Pedro Süssekind (Org.). Belo Horizonte: Autêntica,
2001, p. 45.
92
SCHILLER, Friedrich, op. cit., p. 45.
93
SCHILLER, Friedrich, op. cit., p.51.

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! 50!

condutor da infância embrutecida ao refinamento sublime no qual se percebe uma liberdade


demoníaca94.
A noção de educação estética completa implica o reconhecimento e cultivo dos
aspectos diabólicos da experiência. A formação dos indivíduos guiados pelo espírito puro é
como uma educação para o mal que traduz uma justaposição de contrastes para fins de
refinamento. Cabe ao espírito se desenvolver na tensão violenta a que é submetido, pois um
mundo naturalmente cruel requer espaços de experimentação do medo onde se possa forjar a
liberdade. Nesse sentido, a encenação trágica funcionaria como emulação do drama espiritual,
ferramenta de educação sensível.
No contexto de ênfase da razão, o mal pode ser testado com segurança e a arte
poética pode funcionar como um laboratório das sensações. A liberdade individual desse
sujeito cuja autonomia se destaca é tratada como uma conquista de seu desenvolvimento
moral, forjado entre as reais submissões do cotidiano e as reproduções experimentais da arte.
A prerrogativa ontológica da formação não se conjuga com consumo cultural diletante, e a
arte precisa ser encarada como forma necessária de acesso ao metafísico a partir do
imperativo de uma razão que trata as supostas experiências sensíveis do espírito como
sensibilidade estética.
No famoso prefácio de Cromwell, Victor Hugo estabelece o que muitos críticos
consideram as leis gerais da estética romântica. Publicado em 1827, o texto que precede a
peça pode ser lido como uma teoria da modernidade do drama na medida em que anuncia os
preceitos da mistura dos gêneros e da renúncia à imitação. Apresentado como um conjunto de
considerações gerais sobre a arte, ele propaga o domínio da liberdade criativa e a recusa de
modelos preestabelecidos. Confrontando formalismos literários, defende a totalidade nas
obras em representações do homem que considerem sua complexidade. Busca ainda
representar a natureza sem se limitar a reproduções por demais fidedignas da realidade,
passivas em relação a ela. A lógica da mistura estilística seria, para Victor Hugo, uma
novidade cristã. O cristianismo teria trazido uma verdade mais profunda para a poesia, na qual
se unem contraditórias dimensões humanas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
94
O demoníaco aqui se refere ao que é da ordem do espírito e não se submete às necessidades físicas.
Trata-se de uma referência à definição de Goethe, que, nas Conversações com Eckermann, afirma: “O
demoníaco é aquilo que não pode ser resolvido por meio do entendimento e da razão. Não está em minha
natureza, mas estou submetido a ele”. Ver SCHILLER, Friedrich, op. cit., p. 65, nota 40.

!
! 51!

A diferença entre a literatura clássica e a romântica estaria justamente na capacidade


da segunda de restituir o corpo com a alma, no reencontro do animal com o espírito. A nova
literatura cultua o belo sem desprezar o feio, aposta na relação entre as duas categorias. A
poesia se aproxima da verdade quando amplia seu foco, quando admite a incompletude e o
disforme como metas. O grotesco e o sublime se misturam, e a poesia passa a funcionar como
a natureza, criando beleza sem prescindir do erro, da feiura. Tratado como traço característico
do pensamento moderno, o grotesco – que cria tanto o cômico quanto o horrível – é a
oposição necessária ao sublime. Seu lugar estratégico na modernidade deve-se justamente ao
contraste que cria ao intensificar as cores do belo pela exposição do horrível. Essa nova
imaginação anticlássica é mais poderosa e complexa exatamente por investir na contraposição
que ilumina as tonalidades discrepantes, realçando o sublime e o horror.

Dans la pensée des modernes, au contraire, le grotesque a un


rôle immense. Il y est partout; d’une part, il crée le difforme et
l’horrible; de l’autre, le comique et le bouffon. Il attache autour
de la religion mille superstitions originales, autour de la poésie
mille imaginations pittoresques. C’est lui qui sème à pleines
mains dans l’air, dans l’eau, dans la terre, dans le feu, ces
myriades d’êtres intermédiaires que nous retrouvons tout
vivants dans les traditions populaires du moyen âge; c’est lui
qui fait tourner dans l’ombre la ronde effrayante du sabbat, lui
encore qui donne à Satan les cornes, les pieds de bouc, les ailes
de chauve-souris. C’est lui, toujours lui, qui tantôt jette dans
l’enfer chrétien ces hideuses figures qu’évoquera l’âpre génie
de Dante et de Milton, tantôt le peuple de ces formes ridicules
au milieu desquelles se jouera Callot, le Michel-Ange
burlesque. Si du monde idéal il passe au monde réel, il y
déroule d’intarissables parodies de l’humanité. Ce sont des
créations de sa fantaisie que ces Scaramouches, ces Crispins,
ces Arlequins, grimaçantes silhouettes de l’homme, types tout à
fait inconnus à la grave antiquité, et sortis pourtant de la
classique Italie.95

Esse universo de seres mitológicos, demônios e bichos macabros traz à tona imagens
tenebrosas na fantasia romântica do contraste. O inferno transforma-se em cenário ideal, a
oposição mais radical e ilustrativa das aspirações elevadas. O baixo e o vil são mecanismos de
exaltação da beleza, pois, quando se imagina o inferno, mais claramente ressalta-se a
perfeição celestial. Para Victor Hugo, o horror é como uma escada para o belo, seu mais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
HUGO, Victor. Ouvres complètes. Cromwell. Paris: J. Hetzel & A. Quantim, 1881, Drame, vol. 1, p.
23.

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! 52!

potente mecanismo dramático. Aliado ao disforme, o belo moderno é mais poderoso do que o
antigo, porque a sua imaginação explora tonalidades distintas. Essa mesma imaginação afeita
a cemitérios, cores escuras e cenários sinistros é mais devotada à beleza e a faz entrar em cena
com mais vigor e intensidade.
O grotesco, fundamento da comédia, espalhou-se pela poesia, passando a representar
a bestialidade humana, enquanto o sublime evocava a alma purificada pela fé cristã. O
primeiro dedica-se aos vícios, às paixões, à luxúria e ao crime, enquanto o segundo entoa as
graças, as virtudes, os encantos e as belezas. Mas o que importa realmente é a relação entre as
forças, argumento romântico fundamental.
Nessa chave a liberdade significa o afastamento dos modelos clássicos, o
desligamento voluntário com a Antiguidade e com sua estética pura. Para Victor Hugo,
assumir a modernidade do ponto de vista das artes é trazer a feiura e os vícios para a cena e
fazer poesia de contrastes. A obra completa, total, pensa o homem em determinada
completude localizada entre a beleza e o horror. Ainda que ontologicamente autônomas, essas
categorias se fortalecem quando postas lado a lado. O paradigma romântico da perversão e do
vício não é nada além de um tributo à moral e à virtude. A escuridão lhe é cara porque o
objetivo final é a iluminação. Novamente o que está em jogo é determinado efeito da obra,
intensificado pelo jogo de luz e sombra dos dilemas da alma. Tornar-se verdadeiramente
moderno é aceitar as contradições cristãs como elemento dramático fundamental da
experiência. A poesia deve reproduzir essas tensões, tornando-as tangíveis, visíveis e
sensíveis; deve forçar os limites da diferença para enfatizar a beleza da complexidade. Para
contemplação da perfeição formal e moral do sublime, deve-se atingir o estágio necessário da
deformação sensual do corpo.
O impacto do debate sobre o sublime se faz sentir em praticamente toda a produção
literária dos séculos XVIII e XIX. Ele fornece as bases que estabelecem a relação do belo
com o horrível e fundamenta determinado tipo de expectativa de recepção em que os
contrastes estão a serviço de sensações de prazer, o que remete a uma educação estética ideal.
A imaginação para o sublime é construída com base nos tratados sobre estética, e é também
resultado de apropriações específicas de determinados autores e textos literários.
Como visto, um dos textos mais citados é Paradise Lost, de John Milton. Anna
Laetitia Barbauld afirma que o autor teria forte inclinação para o que há de mais selvagem na

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! 53!

imaginação humana.96 Já Edmund Burke o considera um mestre dos contrastes; sua obra é
alvo de análise também nos anteriormente citados ensaios de Joseph Addison e Victor Hugo.
Mary Shelley elege o poema como referência imaginativa, colocando-o entre as leituras do
monstro em Frankenstein. No capítulo quinze a criatura encontra ao acaso três obras:
Plutarch's Lives; Sorrows of Werter e Paradise Lost. Os volumes seriam responsáveis por sua
educação sentimental; as leituras o fariam sentir êxtase e melancolia em níveis que jamais
experimentara. O último o levaria a emoções ainda mais profundas: “It moved every feeling
of wonder and awe that the picture of an omnipotent God warring of his creature was capable
of exciting”.97 Paradise Lost o fez se sentir por um lado como Adão, desligado de qualquer
outro ser no mundo, e por outro como Satã, assaltado pela inveja. A mistura de sentimentos,
que a autora destaca no prefácio como condição primordial para a poesia elevada, tem como
resultado um aprofundamento emocional que faz da obra fonte do sublime para o monstro. A
forma literária de Milton é lida não só como modelo de refinamento, mas como matriz de
apelo sensível. É tratada como a chave de descoberta do sentimento pelo mecanismo das
letras.
A representação do demônio é outro elemento-chave da apropriação romântica de
John Milton. Segundo Mario Praz, ele conferiu a Satã o charme de um rebelde destemido,
como no Prometeu de Ésquilo e no Capaneo de Dante.98 A figura assume a forma de uma
beleza decadente coberto pelas sombras de uma tristeza de morte e encarna a esplendorosa
magnitude da ruína. Schiller afirmaria que a simpatia com o derrotado é quase automática, o
que levaria o mais moderado dos leitores a se converter ainda que temporariamente em um
anjo caído99. Em Defense of Poetry, Mary Shelley destaca a magnitude satânica em Paradise
Lost: considera o demônio moralmente superior a Deus em sua perseverança capaz de
suportar toda sorte de angústias e torturas100. Ainda segundo Mario Praz, o demônio sensual e
rebelde de John Milton passaria a figurar nas pitorescas histórias de horror inglesas dos
séculos XVIII e XIX, em especial nas obras de Ann Radcliffe e Matthew Lewis, e na poesia
romântica de Lorde Byron, na qual é presença fundamental.
Ainda mais relevante na configuração das teorias românticas é William Shakespeare.
A valorização de sua obra a partir da segunda metade do século XVIII configura um dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
BARBAULD, Anna Laetitia. On the pleasure derived from objects of terror, op. cit., p. 121.
97
SHELLEY, Mary, op. cit., p. 135.
98
PRAZ, Mario. The Romantic Agony. Oxford: Oxford University Press, 1970, p. 57.
99
PRAZ, Mario, op. cit., p. 59.
100
SHELLEY, Percy. A defense of poetry and other essays. London: Jungle Books, 1999.

!
! 54!

momentos-chave da dita “modernidade artística” ocidental. Transformada com o advento do


Sturm und Drang em símbolo do triunfo da originalidade sobre o que a teoria e a história
literária consideram como as regras do classicismo, torna-se referência das possibilidades
infinitas do gênio criador. Passa a figurar como a marca do triunfo do talento sobre a técnica,
exemplo da primazia do efeito sobre a perfeição formal. Tanto nas teorias produzidas na
Alemanha quanto nas posteriores francesas, Shakespeare surge como principal referência para
identificar a modalidade moderna de artista genial101. Se o debate em torno da hegemonia dos
modelos clássicos não surge exatamente no século XVIII – basta lembrar a conhecida
Querela dos antigos e dos modernos entre acadêmicos franceses do século XVII, como
Boileau e Perrault, que punha em confronto o classicismo e a necessidade de uma produção
artística contemporânea e local –, a partir do século XVIII passa a enfatizar uma estética
voltada para o efeito sensível em detrimento de uma poética regrada que defendia padrões
universais de beleza e formatação artística.
Um dos marcos da leitura moderna de Shakespeare na Alemanha foi a publicação,
em 1759, de Cartas relativas à novíssima literatura, de Lessing, responsável por defender a
obra shakespeariana de críticas contundentes como a de Johann Christoph Gottsched,
renomado poeta e acadêmico, que a considerava cheia de erros e insalubre à razão. Entre 1762
e 1766, vinte e duas peças foram traduzidas por Wieland e, uma década depois, revisadas por
Johann Joachim Eschenburg. A repercussão teria sido tão grande que Otto Maria Carpeaux,
por exemplo, divide a história da literatura alemã do século XVIII em antes e depois das
traduções de Wieland.102 Os novos personagens criados no contexto do Sturm und Drang são
concebidos como produtos de gênios inspirados pela natureza e autônomos em relação a
regras preestabelecidas. O que se convencionou determinar como “talento artístico natural”
caracterizaria o artista criador livre das convenções eruditas. Shakespeare passa a representar
a separação em relação aos gregos e consequentemente ao classicismo francês. Ele é
transformado em artífice da liberdade para satisfazer os anseios de representação do presente
conforme particularidades locais e históricas. Ao apelo universal da arte ressalta-se a
dimensão específica da época, o aprofundamento do caráter nacional para atingir as mais
complexas e variadas verdades humanas. Em seu longo ensaio sobre Shakespeare, de 1864,
Victor Hugo afirma:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
101
SÜSSEKIND, Pedro. Shakespeare: o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 10.
102
CARPEAUX, Otto Maria. Literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

!
! 55!

Shakespeare, c’est la fertilité, la force, l’exubérance, la mamelle


gonflée, la coupe écumante, la cuve à plein bord, la sève par
excès, la lave en torrent, les germes en tourbillons, la vaste
pluie de vie, tout par milliers, tout par millions, nulle réticence,
nulle ligature, nulle économie, la prodigalité insensée et
tranquille du créateur. A ceux qui tâtent le fond de leur poche,
l’inépuisable semble en démence. A-t-il bientôt fini? jamais.
Shakespeare est le semeur d’éblouissements. A chaque mot,
l’image; à chaque mot, le contraste; à chaque mot, le jour et la
nuit […]103

Os adjetivos atribuídos a Shakespeare o colocam, pelo visto, no centro da


modernidade estética, fonte originária de um novo tipo de postura artística que valoriza a
espontaneidade, o excesso e os contrastes. O artista genial deve usar seu talento único, que
equilibra tranquilidade e insensatez na busca de uma representação ideal da vida que explore
tanto o lado demoníaco, escuro e torpe quanto a clareza da virtude. Nessa modalidade de
dramatização que se pretende mais íntegra, é possível perceber traços de uma educação dos
sentidos que encerram aspirações de educação moral104. Stendhal, por exemplo, ao comentar
Macbeth diz tratar-se da história de um homem honrado que, seduzido pela mulher, se
transforma em monstro sanguinário: “Essas transformações de sentimentos do coração
humano são o que a poesia pode oferecer de mais admirável aos olhos dos homens, aos quais
ela comove e ao mesmo tempo instrui.”105.
A valorização de Shakespeare como gênio criador revela a mudança da definição do
artista: os atributos da criatividade e da inspiração serão valorizados, por exemplo, por autores
como Ann Radcliffe (inúmeras são as citações shakespearianas em The Mysteries of Udolph,
por exemplo), Horace Walpole e Mary Shelley, sobretudo no que diz respeito à relação
dramática com o sobrenatural. Goethe, no ensaio “Para o dia de Shakespeare”, afirma que, em
suas peças, a imaginação é superior à visão; o leitor se percebe diante de cenas que lhe falam
mais interiormente do que à luz da razão imediata106. O vigor dramático seria oriundo da
exploração profunda dos elementos fantásticos, espíritos e bruxas que animariam um mundo
de formas imaginativas no qual a ilusão leva à plenitude indecifrável do prazer contemplativo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
HUGO, Victor. William Shakespeare. Paris: A. Lacroix, Verboeckhoven Éditeurs, 1864, p. 262.
104
Nessa leitura de Shakespeare observa-se uma mudança em relação aos parâmetros da retórica com o
fim das funções de “composição” em prol da estilização dos textos. Com a autonomização do estético, os usos
consuetudinários das artes como “docere” dão lugar a ideia de contemplação desinteressada expressa na filosofia
kantiana.
105
STENDHAL. Racine e Shakespeare. (Apud SÜSSEKIND, Pedro, o, op. cit., p. 76).
106
GOETHE, Wolfgang. Para o dia de Shakespeare. In: Escritos sobre literatura. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2000, p. 38.

!
! 56!

No mesmo ensaio, Goethe argumenta que, na obra shakespeariana, o interior do


mundo transforma-se em alvo de interesse: os elementos mágicos (sonhos, pressentimentos,
fantasmas, gnomos, monstros, feiticeiros…) seriam mecanismos de exploração do insólito,
recursos usados para revelação de mistérios profundos. “A verdade e o valor de sua vida é que
constitui a base ampla sobre a qual aquelas coisas repousam; por isso, tudo o que ele escreve
nos parece tão autêntico e substancial.”107
Para eles, a real tensão não se estabeleceria no confronto do sobrenatural com o real,
ou nas possibilidades limitadas de interpretação da realidade. O teatro de elementos
fantásticos seria apenas uma maneira de potencializar o verdadeiro drama da experiência
trágica que confronta necessidade e vontade, liberdade e dever.
Nesse sentido, Shakespeare teria equacionado essa relação de forças, valorizado o
indivíduo sem supervalorizar o querer como um novo Deus organizador do mundo. Teria
encontrado o tom para tratar a realidade social como condicionadora das vontades em um tipo
de querer moderno que ultrapassa a força de um indivíduo particular, sem submetê-lo por
completo a um jogo de forças que o aniquila. Na obra do dramaturgo inglês, seria possível
identificar o conflito da vontade individual contraposta a um dever que as circunstâncias
insistem em tornar indispensável.
Um dos exemplos dessa tensão seria Hamlet, drama em que os conflitos do
protagonista resultariam na melancolia expressa no famoso solilóquio aberto por: “ser ou não
ser.” Ainda no primeiro ato, o conflito anterior é transformado em um dever interior pela
aparição do espírito do rei que exige vingança. Nesse conflito vontade e necessidade medem
forças “tanto entre si quanto com a possibilidade de realização do dever e de solução do
conflito que expressa o querer”108. Na celebrada genialidade shakespeariana, o mundo antigo
e o novo se reencontrariam na relação tripartida entre vontade, necessidade e realização109. A
conciliação da tragédia antiga com a moderna deveria nortear, assim, os parâmetros da nova
literatura surgida a partir de meados do século XVIII.
As limitações impostas pela pouca qualidade das montagens teatrais não seriam
capazes de travar a repercussão romântica das obras, que se transformariam em elo de
mundos distintos, referência literária articulada dentro da disputa entre antigos e modernos,
clássicos e românticos. E.J. Clery destaca a importância do ator e produtor teatral David
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
GOETHE, Wolfgang, op. cit., p. 56.
108
SÜSSEKIND, Pedro, op. cit., p. 115.
109
SÜSSEKIND, Pedro, op. cit., p. 116.

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! 57!

Garrick na popularização das peças de Shakespeare. Começando a atuar em 1741, teria sido
capaz de encenar todo o poder das paixões que os textos sugeriam com uma carga de
verossimilhança que os críticos julgavam impossível até então.110 Segundo Denis Diderot, em
questão de segundos Garrick apresentava variações de nuances emotivas que iam do intenso
prazer ao horrível desespero.111 Seu talento dramático se tornaria uma chave para o sublime
ao dar maior credibilidade às cenas, sobretudo às fantasmagóricas. Em visita à Inglaterra, o
escritor alemão Lichtenberg comenta a atuação de Garrick em Hamlet:

Hamlet has folded his arms […] and pulled his hat down over
his eyes; it is a cold night and just twelve o’clock; the theatre is
darkened, and the whole audience of some thousands are as
quiet, and their faces as motionless, as though they were painted
on the walls of theatre; even from the farthest end of the
playhouse one could hear a pin drop. Suddenly, as Hamlet
moves towards the back of the stage slightly to the left and
turns his back on the audience, Horatio starts, and saying:
“Look, my lord, it comes”, points to the right, where the ghost
has already appeared and stands motionless, before any one is
aware of him. At these words Garrick turns sharply and at the
same moment staggers back two or three paces with his knees
giving way under him; his hat falls to the ground and both his
arms, especially the left, are stretched out nearly to their full
length, with the hands as high as his head, the right arm more
bent and the hand lower, and the fingers apart; his mouth is
open: thus he stands rooted to the spot, with legs apart, but no
loss of dignity, supported by his friends, who are better
acquainted with the apparition and fear lest he should collapse.
His whole demeanor is so expressive of terror that it made my
flesh creep even before he began to speak. The almost terror-
struck silence of the audience, which preceded this appearance
and filled one with a sense of insecurity, probably did much to
enhance this effect. At last he speaks, not at the beginning, but
at the end of a breath, with a trembling voice: “Angels and
ministers of grace defend us!” Words which supply anything
this scene may lack it one of the greatest and most terrible
which will ever be played on any stage.112

A descrição da quarta cena do primeiro ato enfatiza a reação da plateia diante da


atuação. O clima de tensão é estabelecido não só pelo texto, mas também pelas circunstâncias
físicas do teatro. O silêncio da sala escura, associado à cativante expressão do ator, constrói a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
CLERY, E. J., op. cit., p. 38
111
DIDEROT, Denis. Paradoxe sur le comédien. Paris: Société Française d’Imprimerie et de Librairie,
1902.
112
LICHTENBERG, Georg Christoph. 1774. Lichtenberg’s visits to England. Oxford: Clarendon Press,
1938, p. 10.

!
! 58!

atmosfera terrífica anterior à fala. A sensação de insegurança não é apenas efeito da relação
com o texto em si: resulta da reação do público, produto coletivo que potencializa o
desempenho, cujo ápice é a frase do personagem. O resultado é a instauração do horror
absoluto que remete ao trânsito do belo ao sublime e garante o sucesso dramático aos olhos do
crítico alemão. No que é retratado quase como a condição ideal para a realização de uma
cena, o espectador trava contato com o “horror em si”; a dimensão do artifício praticamente se
perde na efetivação do ato e o corpo do ator transforma-se em um mecanismo de transposição
de afetos, máquina de produção de efeitos.
Um comentário de Frederick Pilon sobre a mesma cena destaca o poder de persuasão
de Garrick: “Short as this scene is, Garrick's excellence in it was astonishing; he preserved
Shakespeare’s fire undiminished, faithful as the electric, and sent the animated shock of
nature's flame home to the heart.”113. A reprodução íntegra da paixão permite a perfeita
simulação do horror e atinge o coração do espectador como se a experiência fosse
perfeitamente traduzida: trata-se da comunicação direta, cujo efeito passa a ser tão valorizado
quanto a arquitetura poética. Os gestos da atuação se transformam em pontos de convergência
e troca. A identificação da plateia com os personagens gera um tipo particular de engajamento
que possibilitaria o intercâmbio direto de sensações que sobreporiam a simulação ao atingir
dimensões emotivas superiores à razão. Uma espécie de empatia transforma a compreensão
estética em capacidade de sentir, o sucesso da montagem é atrelado ao poder de afetação e a
sensação se estabelece como parâmetro crítico.
Na mesma linha de argumentação, James Burgh, em The Art of Speaking, publicado
em 1763, define Hamlet como um esforço de descoberta de segredos estranhos e Macbeth
como exemplo de crueldade e horror114. Em uma época em que os sentimentos de piedade e
horror são convertidos em prerrogativas para o deleite estético, as atuações de Garrick
serviriam para colocar Shakespeare em seu devido lugar de acordo com os mecanismos
românticos de atribuição de sentido. Um crítico inglês afirmaria em 1788: “Garrick […]
corrected the audience’s taste: He taught them, by the greatness of the acting, to know those
nice touches of nature, which they were till then strangers too. When he acted, the audience

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
PILON, Frederick. An essay on the character of Hamlet: As performed by Mr. Henderson, at the
Theatre Royal in the Hay-Market. Disponível em: Eighteenth Century Collections Online
<http://quod.lib.umich.edu/e/ecco/004846613.0001.000?rgn=main;view=fulltext>. Acesso em 24 mar. 2014.
114
CLERY, E. J., op. cit., p. 45.

!
! 59!

saw what was a wright”115. O comentário reforça a ideia de que suas atuações teriam ajudado
na educação estética de parte da população.
A capacidade performática de Garrick teria ainda fomentado o gosto pelo horror
sobrenatural e estabelecido a demanda popular que justificaria o aumento da produção de
ficção fantástica116. O contato com o “verdadeiro Shakespeare” teria alimentado o interesse
pelo horror como dispositivo capaz de gerar comoção profunda graças a uma identificação
fabricada com estranhas e misteriosas verdades que compunham uma noção específica de
integridade humana. O horror metafísico parece se interpor entre a vontade individual e o
senso do dever como mecanismo de constrangimento e suspense capaz de evocar o sublime,
estágio ideal da recepção.
A leitura das obras de Shakespeare, no horizonte do movimento das paixões e da
utilização do sublime como fundamentação e referencial estético, une poetas românticos
como William Blake, Edward Young, Coleridge, William Wordsworth, Percy Shelley,
Friedrich Schiller, Lord Byron, Alfred de Musset aos escritores de ficção gótica. Romances
voltados para o medo surgem no contexto dos debates em torno do romantismo e a eles se
filiam na proposta de uma literatura voltada para o efeito de terror inscrita no horizonte de
disputa entre formas antigas e novas. Se o sentimento de horror não é exatamente um
elemento inédito nas artes – considere-se, a título de exemplo, sua presença na tragédia antiga
–, a novidade reside, aparentemente, no horror como fonte de deleite estético intenso atrelado
ao refinamento do gosto e às novas demandas de consumo literário atribuídas ao
desenvolvimento burguês. As diferentes formas de promoção do horror que marcam a
produção literária a partir da segunda metade do século XVIII aparecem como elementos-
chave de uma nova educação estética que explora o apelo sentimental buscando a beleza pelo
seu avesso, na mesma medida em que cultua a razão ao representar os supostos espaços onde
ela falharia. No fim, a evocação técnica do horror encenará o triunfo de uma racionalidade
objetiva que transforma o medo em mercadoria de consumo literário.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
STEVENS, George Alexander. The Adventures of a Speculist. (Apud CLERY, E.J., op. cit., p. 49).
116
CLERY, E.J., op. cit., p. 49.

!
! 60!

1.4. Variações em torno do horror e do fantástico

O artigo “Du fantastique en littérature”, de Charles Nodier, foi um dos primeiros a


tratar especificamente do fantástico literário como uma necessidade diante do desgastante
racionalismo da civilização. Segundo o escritor francês, a literatura teria por muito tempo se
resumido à expressão banal de sensações, e o apelo fantástico seria uma resposta do
pensamento, que teria se elevado do conhecido ao desconhecido. A inteligência humana seria
articulada por três operações sucessivas: a que deu origem ao mundo material, a genialidade
divinamente inspirada que supôs o mundo espiritual e a imaginação que criara o mundo
fantástico. O poeta deveria se situar no segundo estágio, região intermediária entre o
fantástico e o ideal, para que a literatura vencesse seu empobrecimento e suprisse a
necessidade humana por fantasia.117 O texto converte-se em uma defesa do fantástico na
medida em que o entende como uma forma mais ampla de inteligência cuja função seria
iluminar o mundo material, possibilitando novas e múltiplas descobertas que a simples
observação do mundo empírico não permitiria. Nodier defende o romantismo e o fantástico
como expressões inevitáveis dos períodos extremos da vida política das nações no século
XIX, manifestações capazes de salvaguardar o instinto moral e intelectual da humanidade.118
No entanto, Charles Nodier não foi o primeiro a associar a literatura de caráter
fantástico à necessidade histórica dos conturbados momentos revolucionários na Europa. O
Marquês de Sade, no prefácio de seu Les Crimes de l'amour, publicado em 1799, intitulado
“Idées sur les romans”, comenta:

Peut-être devrions-nous analyser ici ces romans nouveaux, dont


le sortilège et la fantasmagorie composent à peu près tout le
mérite, en plaçant à leur tête le Moine, supérieur, sous tous les
rapports, aux bizarres élans de la brillante imagination de
Radcliffe; mais cette dissertation serait trop longue; convenons
seulement que ce genre, quoi qu'on en puisse dire, n'est
assurément pas sans mérite; il devenait le fruit indispensable
des secousses révolutionnaires dont l'Europe entière se
ressentait. Pour qui connaissait tous les malheurs dont les
méchants peuvent accabler les hommes, le roman devenait aussi
difficile à faire que monotone à lire; il n'y avait point d'individu
qui n'eût plus éprouvé d'infortunes en quatre ou cinq ans, que
n'en pouvait peindre en un siècle le plus fameux romancier de la
littérature; il fallait donc appeler l'enfer à son secours, pour se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
NODIER, Charles. Contes fantastiques. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1957, p. 81.
118
NODIER, Charles, op.cit., p.85.

!
! 61!

composer des titres à l'intérêt, et trouver dans le pays des


chimères, ce qu'on savait couramment en ne fouillant que
119
l'histoire de l'homme dans cet âge de fer.

Nas palavras de Sade, o romance gótico é associado à lógica das revoluções


políticas. Não é difícil estabelecer relações entre esse tipo de imaginação literária e a
Revolução Francesa, por exemplo. Considerando os textos ficcionais de Sade e seus muitos
pontos de contato com o chamado romance noir, é possível perceber um apelo à liberdade
que, guardadas as devidas proporções, pode ser comparado ao clamor dos revolucionários
pelas ruas de Paris. O horror é outro ponto comum em suas análises dos relatos históricos
sobre as lutas revolucionárias: “Muitas vezes encontramos cenas dignas dos mais pérfidos
contos de horror. Execuções em massa, fuzilamentos, afogamentos; e a guilhotina, a ‘santa
guilhotina’, como preferiam alguns, emblema por excelência do Terror.” 120 . Apesar do
cuidado para não estabelecer relações muito diretas entre os processos revolucionários e as
práticas ficcionais, o argumento não deixa de ser válido. O caos estabelecido teria resultado
em fatos tão objetivamente terríveis que demandou do esforço imaginativo uma ida aos
infernos para superar o horror da realidade histórica.121
No mesmo ano de publicação do texto de Charles Nodier, foi lançada uma versão
francesa do artigo “On the Supernatural on Fictitious Composition; and Particularly on the
Works of Theodore William Hoffmann”, de Walter Scott122. Nele o escritor escocês afirma
que o uso literário do sobrenatural, mais do que qualquer outra forma de ficção romântica,
seria a maneira mais poderosa e fácil de excitação dos sentimentos. Segundo ele, trata-se de
um fenômeno popular: “It is common to all classes of mankind, and perhaps is none so
familiar as to those who assume a certain degree on the subject.” 123 . Justamente pela
facilidade para atrair a atenção do leitor, o sobrenatural deveria ser usado com cuidado, com
certa delicadeza e respeito por determinado padrão de bom gosto. Analisando referências que
vão de passagens bíblicas às fábulas dos irmãos Grimm, a Shakespeare, John Milton e John
Collins, Scott conclui que existe um uso aceitável do sobrenatural expresso na capacidade

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
119
SADE, D.A.F. Idées sur le romans. Paris: Édouard Rouveyre, 1878, p. 32
120
MORAES, Eliane Robert. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 74.
121
A obra de Sade e sua relação com o gótico será analisada mais detidamente no segundo capítulo,
quando for comparada à obra de Álvares de Azevedo.
122
Publicado originalmente em 1827 na Foreign Quaterly Review.
123
SCOTT, Walter. On the supernatural on fictitious composition; and particularly on the works of
Theodore William Hoffmann. Disponível em <http://migre.me/hyCu4>. Acesso em: 24 mar. 2014.

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! 62!

desses autores de dosar o componente maravilhoso para que ele não perca seu efeito; e um
uso exagerado, que ele identifica no gênero fantástico representado por Hoffmann.
Para Scott, o fantástico é uma forma perversa de uso da imaginação na qual se
recorre, indiscriminadamente, a toda sorte de combinação, ridícula ou chocante. O fantástico é
tratado como irregular e extravagante, contrário ao bom senso. Os textos de Hoffmann são
tidos como fruto de uma mente perturbada cuja propensão ao mórbido não seria sadia. Apesar
de reconhecer seu talento, o crítico enxerga nos exageros fantásticos do escritor alemão as
marcas de uma injustificável bizarrice grotesca. Os defeitos das obras são apontados como
agressivos ao bom gosto, critério mais relevante do que a precisão, moderação ou respeito às
normas. Walter Scott investe contra o tipo de produção literária que representa o mundo pela
óptica do grotesco; ele resiste ao uso do sobrenatural como forma de exploração de um
mundo governado pelo irracional que dramatiza uma modernidade sinistra.
Uma das análises clássicas dos aspectos perturbadores da obra de Hoffmann é o
ensaio “O inquietante”, de Sigmund Freud, publicado em 1919, no qual aponta a dificuldade
de tradução do termo “unheimlich” (do título original Das Unheimliche). Freud afirma ter
como ponto de partida o conceito de “inquietante”, do psicólogo alemão Ernst Jentsch.124
Usado para interpretar o conto “O homem da areia”, o termo polissêmico se refere “ao que é
terrível, ao que desperta angústia e terror”.125 Depois de fazer uma pequena genealogia do
conceito, conclui que este se opõe ao que é familiar, amável, confiável, e se aplica, ainda, ao
que deveria ser mantido em segredo mas foi revelado: “Nossa atenção é atraída, de outro lado,
por uma observação de Schelling sobre algo inteiramente novo, para nós inesperado.
Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu126. Partindo da
questão dos autômatos e da inquietação gerada pela presença de seres animados privados de
vida, Freud busca perscrutar a experiência angustiante relacionando-a a profundas dimensões
psicológicas.
Se as possíveis traduções não dão conta efetivamente da amplitude do termo em
alemão, a leitura freudiana de Hoffmann busca ressaltar o perturbador, lúgubre, sinistro e por
vezes macabro de seus contos, não só no que tange às cenas como também ao que se refere à
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
124
Optamos por adotar a tradução de Paulo César de Souza feita diretamente do original alemão para a
edição de 2009 das obras completas de Sigmund Freud da Companhia das Letras. Na primeira edição em
português, feita de uma versão em inglês e publicada pela Imago, o termo é traduzido como “estranho”.
125
FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil (O homem dos lobos); Além
do princípio do prazer e outras histórias: 1917-1920. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p. 248. (Obras completas de Sigmund Freud, vol. 14.)
126
FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 254.

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! 63!

experiência de leitura. O narrador de “O homem da areia” despertaria inicialmente no leitor


um grau de incerteza entre a expectativa de entrada em um mundo real ou fantástico para
enfim, segundo Freud, ser conduzido “ao jogo cruel de potências obscuras” a que o
protagonista é submetido. A complexidade da narrativa impediria conclusões imediatas dos
eventos como fantasias motivadas pela loucura, e o leitor então experimentaria os mesmos
horrores que Nathanael. Isso porque, ainda segundo Freud, a produção do “inquietante”
literário depende da relação estabelecida com situações reais. Quando os mundos fabricados
lançam mão de elementos deliberadamente fantásticos, o efeito de medo não se dá, pois o
entendimento claro dos pressupostos de determinada realidade poética elimina o
estranhamento pela compreensão dos códigos. “As almas do inferno de Dante ou os espíritos
que aparecem em Hamlet, Macbeth ou Júlio César, de Shakespeare, podem ser lúgubres e
terríveis, mas não são mais inquietantes, afinal, do que o mundo jovial dos deuses de Homero,
por exemplo.”127. Nesses casos, o julgamento se adéqua aos pressupostos da “realidade
fingida”, o que leva o leitor a tratar os elementos fantasiosos como legítimos dentro do
contexto.
Quando a ficção se situa no âmbito da “realidade comum” ela passa a partilhar com o
leitor “a gênese da sensação inquietante nas vivências reais”, e é permitido ao escritor
potencializar o efeito para além das possibilidades da realidade concreta: “Nós reagimos a
suas ficções tal como reagiríamos a nossas próprias vivências; ao notarmos o engano, é tarde
demais, o autor atingiu seu propósito, mas afirmo que não alcançou pleno êxito”128. Restaria
então a frustração da incompletude que pode ser atenuada pelo suspense em revelar a lógica
do drama. Retardando ao máximo a demonstração dos pressupostos do universo criado, o
escritor potencializaria o efeito perturbador, inquietante. O crítico ressalta que o efeito
emocional independe do assunto escolhido, pois é a forma de organização dos termos da
trama a responsável pela angústia que atinge o leitor.
A leitura clínica do texto leva Freud a associar o motivo central, o esforço incessante
que persegue Coppelius desde a infância para roubar os olhos de Nathanael, à angústia do
complexo infantil de castração. A interpretação psicanalítica permitiu diversas apropriações
do texto: como representação do trauma infantil de um personagem vítima de sua obsessão;
como imagem psicológica de um artista, de um poeta romântico levado à loucura pelo caráter
prosaico da vida; ou como a história de um jovem cujas aspirações de crescimento pessoal são
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 277.
128
FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 278.

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! 64!

sistematicamente frustradas129. Do ponto de vista estritamente literário, destaca-se a presença


de temas consagrados pela literatura fantástica: a relação entre seres vivos e autômatos,
exemplificada na boneca sedutora criada pelo cientista Coppelius; assim como o ângulo de
visão multifocal da narrativa que dá forma aos problemas da personalidade, da consciência e
do duplo. A utilização de vários pontos de vista postos em perspectivas abertas e
contraditórias, traço marcante dos textos de Hoffmann, garante o aspecto propriamente
fantástico da trama e a angústia identificada por Freud. A análise freudiana, ao destacar a
construção de determinado efeito psicológico perturbador, ajudou a definir um padrão
interpretativo que garantiria a Hoffmann lugar de destaque na dita modernidade do horror.
Também para H.P. Lovecraft, o que define uma história fantástica não são
simplesmente enredos ou cenas fantasiosas, mas a construção de determinada sensação. O
nível emocional que o texto pode atingir é seu melhor juízo de valor: “o único teste do
realmente fantástico é apenas este: se ele provoca ou não no leitor um profundo senso de
pavor e o contato com potências e esferas desconhecidas.”130. Para Lovecraft, assim como o
horror, o fantástico define-se pelo efeito. A quebra nos padrões realistas pode funcionar como
estopim do horror: cenas misteriosas e cenários medonhos trazem sempre uma alusão ao
inexplicável e ao imprevisível, que geram a hesitação do fantástico. Como dispositivo
responsável pela falha na expectativa, o fantástico convoca o desconhecido e faz do
estranhamento personagem-chave. Uma história fantástica é normalmente a dramatização de
uma probabilidade frustrada, e a sensação, nesse caso, pode ser de espanto ou de
apavoramento.
Ainda segundo Lovecraft, a suspensão de determinado sentido de realidade requer
uma compreensão dos efeitos de real atingidos pela ficção. O fantástico opera graças a um
bem-sucedido esforço realista; atua fraturando a apreensão da realidade para oferecer outra
possibilidade de formatação narrativa. O solo estável da realidade nunca é completamente
dispensado, pois é sobre ele que surge o espectro da fantasia. Nesse sentido não existiria
divergência completa entre as formas realistas e fantásticas, pois somente da familiaridade
pode surgir a quebra. Para Lovecraft, o fantástico não se estabelece exatamente na estrutura
da obra, mas na atmosfera criada no ato da leitura, na impressão específica forjada no leitor
diante do texto.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
129
As três modalidades interpretativas são enumeradas por Remo Ceserani no supracitado O fantástico.
130
LOVECRAFT, H.P., op. cit., p.18.

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! 65!

Em Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov define o fantástico na


literatura como o domínio da incerteza. Quando um fenômeno narrado pode ser explicado de
duas maneiras, por causas naturais ou por motivações sobrenaturais, gerando hesitação no
espectador, o efeito fantástico se manifesta. O mistério rompe a estabilidade do cotidiano
conhecido e o ressignifica. “‘Cheguei quase a acreditar’, eis a fórmula definitiva. Tanto a fé
absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá
vida.”131 Nessa regra, a relação do leitor com o texto é fundamental. É preciso criar um efeito
de crença dúbio, articular uma adesão vacilante aos propósitos do texto. A dúvida do leitor
não seria só o ponto de partida, como também o objetivo final da proposta fantástica, e
implicaria uma integração do leitor no mundo dos personagens. Essa dúvida se define pela
“percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos narrados”132. Todorov ressalta ainda
que não se trata de um leitor em particular, mas de uma “função leitor” inscrita no texto.
Nesses termos o fantástico não se resume à narração de um evento extraordinário,
mas pressupõe uma atitude do leitor diante do texto. Ainda segundo Todorov, para que o
efeito fantástico se realize a leitura não pode ser nem de ordem poética nem alegórica, pois
tanto o apego às unidades linguísticas e formais quanto interpretações que façam do
sobrenatural, alegoria de certo princípio de realidade, são fatais para a necessária hesitação.
Sua linha argumentativa faz referência a um texto clássico de Roger Caillois, Au coeur du
fantastique, em que o critico afirma que o fantástico nasce entre duas categorias de imagens
infinitas (que recusam toda e qualquer significação) e limitadas (símbolos precisos
referenciados pelo dicionário). No espaço incerto entre as duas categorias imagéticas floresce
a dúvida em relação ao significado do evento narrado, e nela o sentido vacilante do fantástico,
que implicaria necessariamente a suposição de um estranhamento133.
Nessa lógica o leitor deve tomar uma atitude diante do texto, fugindo das
modalidades interpretativas assinaladas e assumindo o mistério proposto. Porém, ainda
segundo Todorov, o efeito fantástico é apenas temporário, dura o tempo da hesitação, e ao
final do texto cabe ainda ao leitor optar por uma interpretação que leve em consideração o
fato de as “leis da natureza” terem permanecido intactas, configurando o gênero estranho, ou
se o texto lança mão de novas regras naturais, o que o caracterizaria como maravilhoso.134
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 36.
132
TODOROV, Tzvetan, op. cit., p. 38.
133
CALLOIS, Roger. Au cour du fantastique. Paris: Gallimard, 1965.
134
O crítico entende os dois gêneros como vizinhos. Subdivide-os em estranho puro (quando há total
prevalência da explicação racional); fantástico-estranho (quando a expectativa do sobrenatural é desfeita);
!

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Como exemplo, ele agrupa na primeira categoria o “sobrenatural explicado” de Ann Radcliffe
e Clara Reeve e, no segundo, o “sobrenatural aceito” de Horace Walpole e Gregory Lewis.
A obra de Todorov ajudou a promover estudos sobre o fantástico e a trazer para o
debate textos como o anteriormente citado Le conte fantastique en France de Nodier à
Maupassant, de Pierre George Castex, um dos mais importantes trabalhos publicados na
França sobre o tema. Nesse estudo, que tenta analisar toda a produção fantástica francesa do
século XIX, é feita uma diferenciação entre a fantasia das histórias tradicionais, dos contos de
fadas e das narrações mitológicas e o fantástico propriamente dito. Enquanto no primeiro caso
estaria implícita uma transferência mental para outro mundo, absolutamente distante de
nossos padrões de realidade, no segundo o mistério invadiria repentinamente os quadros da
vida real atingindo estados mórbidos da consciência e projetando angústias e horrores
comparáveis aos pesadelos e delírios. Para exemplificar o modelo tradicional, Todorov cita a
fórmula “Era uma vez…”, muito utilizada por Perrault em contraposição às cruéis alucinações
dramatizadas por Hoffmann, nas quais o insólito se destaca sobre um fundo familiar de
realidade.135
No supracitado estudo de Roger Caillois, o conceito de fantástico também aparece
diretamente atrelado à ideia de “ruptura”, fenda na racionalidade que, uma vez articulada,
resultaria na experiência do “inadmissível”. É identificado ainda como uma aparição
inexplicável e quase insuportável do insólito no mundo da realidade; trata-se de uma
desorganização de princípios ordeiros supostamente estabelecidos, o “inadmissível” dentro da
legalidade rotineira. Há uma aproximação com Castex pela necessidade de preservação de um
sentido de realidade cotidiana que dê origem ao fantástico. Remo Ceserani lembra definições
do estudioso do surrealismo Louis Vax, que, em obras como L’art et la littérature fantastique
e La séduction de l’étrange, teria ampliado as noções de “inadmissível” e “indizível” de
Caillois e forjado o conceito de “inexplicável”. Válido para explicar vários textos e
fenômenos, o conceito se centraria no conflito entre real e possível, e o “inexplicável” seria
resultado de uma realidade que se deixa, então, seduzir pelo fantástico136.
Em O grotesco, Wolfgang Kayser constrói a genealogia do conceito de grotesco,
atentando para os diferentes significados que ele assume e destacando a relação de

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fantástico-sobrenatural (quando a interpretação sobrenatural prevalece); e maravilhoso puro (quando os
acontecimentos sobrenaturais são tratados com naturalidade e não levam a nenhuma reação em particular).
135
CASTEX, Pierre Georges, op. cit., p. 8.
136
CESERANI, Remo, op. cit., p. 47.

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estranhamento que estabelece com a realidade. O conjunto das obras analisadas inclui
produções de diversas áreas, do Dom Quixote, de Cervantes, aos contos de Hoffmann, até as
artes plásticas, como a análise de As Meninas, de Velázquez. Observando diferentes
apropriações – por exemplo, o uso que Vitor Hugo fizera, no clássico prefácio de Cromwell,
para contrapor aspectos da estética clássica e da romântica –, Kayser tenta mapear a
amplitude e a abrangência da chamada estética grotesca. Concentra-se, no entanto, em dois
grandes recortes: o romantismo e o surrealismo, ainda que identifique resistências por parte
dos surrealistas em adotar o grotesco propriamente dito em nome de uma “realidade mais
elevada de certas formas de associação” ou da futura “solução de aparente contradição entre
sonho e realidade em uma espécie de realidade absoluta, a surrealidade”137.
Tentando determinar a “natureza” do grotesco, aponta para três domínios: o processo
criativo; a obra; e a recepção. Em sua argumentação, o grotesco só se realiza na recepção, na
experiência com o objeto, no jogo de sensações detonado pelo estranhamento. Ele é da ordem
da monstruosidade, da estranheza, do sinistro, o que inclui animais, plantas e objetos. O
inanimado que ganha vida e os corpos que a perdem são personagens privilegiados. É ainda
particularmente grotesca a loucura, entendida “como se um id, um espírito estranho, inumano,
se houvesse introduzido na alma”138. O grotesco é o mundo tornado estranho, transformado
subitamente, e para que este se manifeste é necessário que o familiar e conhecido se revele, de
repente, estranho e sinistro. São também componentes essenciais do grotesco o repentino e a
surpresa. Faz parte de sua “estrutura” que as categorias usuais de percepção da realidade
errem, entrem em colapso diante da dissolução contínua. O resultado necessário é a perda de
identidade, a desintegração do mundo como certeza, perda de sentido da ordem histórica. Na
experiência do grotesco, a angústia de viver sobressai ao medo da morte: “O horror nos
assalta, e com tanta força, porque é precisamente o nosso mundo cuja segurança se nos mostra
como aparência […] Faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa orientação
no mundo falhem.”139.
A representação do “mundo estranho” não se pretende como mero artifício,
encenação de impossibilidades lógicas. O medo atua no limite do conhecido revelando seu
mistério potencial. O absurdo não está necessariamente a serviço de alegorias fantásticas
desmotivadas, ou motivadas somente pelo desejo de ser para além do mundo físico. A
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
137
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 141.
138
KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 159.
139
KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 159.

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intenção oculta no grotesco é mostrar o mundo como ele efetivamente é, nos termos de
Kayser: “A configuração do grotesco é a tentativa de dominar e conjurar o elemento
demoníaco do mundo.”140 E ainda revelar o que a realidade guarda de misterioso, dominar
forças ocultas trazendo à luz o mundo por trás das aparências. A estética grotesca não se
desloca simplesmente do real para o imaginário: ela é a tentativa de aprofundamento em uma
dimensão mais profunda de realismo. Acessar além da realidade exige que o esforço de
construção poética leve em consideração a reação do leitor. O texto deve atingi-lo para que o
ciclo se complete: a literatura grotesca não pode se realizar sem evocar o estranhamento, sem
fazer do leitor o elo necessário que encena parte da trama, a revelação de seu sentido.
Das várias concepções de grotesco que Kayser aponta, destaca-se a de Edgar Allan
Poe. No prefácio ao seu Tales of the Grotesque and Arabesque, o termo é empregado quase
como sinônimo de arabesco, da mesma maneira que o fez Walter Scott em seu texto sobre
Hoffmann ao comentar que em suas composições o grotesco se assemelha aos arabescos das
pinturas quando se empregam monstros disformes, criaturas da fantasia romântica.141 Os
termos, no entanto, não possuem a carga negativa que Walter Scott identifica neles. Poe os
utiliza para definir o tom das histórias apresentadas e para sugerir um universo de
deformação, perda de limites referenciais e confluência do belo e do horrível142. A ideia fica
mais bem explicada em uma passagem do conto “The Mask of the Red Death”, publicado
originalmente em 1842 na Graham’s Magazine, em que descreve a decoração das salas em
que o príncipe italiano Prospero manda fazer para uma festa:

He had directed, in great part, the movable embellishments of


the seven chambers, upon occasion of this great fete; and it was
his own guiding taste which had given character to the
masqueraders. Be sure they were grotesque. There were much
glare and glitter and piquancy and phantasm – much of what
has been seen in “Hernani.” There were arabesque figures with
unsuited limbs and appointments. There were delirious fancies
such as the madman fashions. There were much of the
beautiful, much of the wanton, much of the bizarre, something
of the terrible, and not a little of that which might have excited
disgust. To and for in the seven chambers stalked, in fact, a
multitude of dreams. And these the dreams – writhed in and

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
140
KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 161.
141
SCOTT, Walter. On the Supernatural on fictitious composition; and Particularly on the Works of
Theodore William Hoffmann, op. cit., p. 12.
142
Ver nota 73.

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about, taking hue from the rooms, and causing the wild music
of the orchestra to seem as the echo of their steps.143

A descrição, que Wolfgang Kayser considera “talvez a mais completa e mais certeira
definição jamais dada por um escritor à palavra grotesco”144, fala de um cenário bizarro e
turbulento onde o fantástico e o onírico se confundem no delírio só permitido aos loucos e
capaz de causar nojo em um êxtase de brilho e esplendor. Ficam claros os dois usos do
conceito, tanto para descrever situações nas quais a ordem do mundo foi desfeita quanto para
categorizar obras literárias nas quais o fantástico se aproxima do horripilante e do
terrivelmente inexplicável.
Observando o contexto de produção literária dos séculos XVIII e XIX, é difícil
identificar gêneros ou subgêneros específicos, tanto para o que pode ser definido como
“literatura fantástica” como para o que se pode definir como “literatura de horror”.145 O
debate crítico indica mais uma dispersão de uso de dispositivos que orientam e definem a
produção literária de acordo com determinadas prerrogativas e efeitos. O “fantástico” aparece
mais como uma ferramenta aplicável à ficção como um todo e participa do debate amplo da
produção do período, sobretudo no que diz respeito à questão do sublime. O problema que se
impõe é a necessidade de reabilitação da imaginação diante do suposto triunfo da
racionalidade, na tentativa de redefinição da modernidade literária. A novidade da forma
romanesca híbrida abrigada sob a originalidade e a genialidade de Shakespeare organiza um
universo disperso trazendo para a cena sob o rótulo gótico discursos que passam a ser
identificados como exemplos de fantasia literária.
O desenvolvimento do gótico se dá como uma tentativa de ajuste de tom com vistas a
uma maior aceitação de público e de crítica. O sucesso de Ann Radcliffe, por exemplo, deixa

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
143
POE, Edgar Allan. The complete works of Edgar Allan Poe. London: Bounty Books, 2004, p.761.
144
KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 75.
145
É relativamente antiga e extensa a discussão teórica em torno da definição ou não do fantástico como
um gênero ou subgênero literário. Felipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa, por exemplo, fala
em uma “literatura do sobrenatural para designar de forma genérica todas as obras que recorrem à
fenomenologia insólita e lhe conferem uma função decisiva no desenrolar da ação”. É a intensidade e a
recorrência do fenômeno insólito, que podem se manifestar nas ações, nos personagens, ou nas definições de
tempo e espaço, que garantirão o enquadramento de um determinado texto na macrocategoria “sobrenatural”,
definida mais tarde como “discursos do metaempírico”, que inclui o fantástico como um modo de enunciação
ficcional. Sobre outros debates teóricos acerca das definições do fantástico como gênero ver ainda: ROAS,
David (Org.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001; CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso.
São Paulo: Perspectiva, 1980; JOZEF, Bella. O fantástico e o mistério. In: A máscara e o enigma. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 2006. Para um resumo dos debates travados ver GARCIA, Flávio. Quando a
manifestação do insólito importa para a crítica literária. In: Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Flávio
Garcia e Maria Cristina Batalha (Orgs.). Rio de Janeiro: Caetés, 2012.

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claro que o gótico não seria simplesmente um segmento, mas um dos fenômenos de maior
repercussão na literatura setecentista, de tal forma que estabeleceu critérios de definição do
gosto estético e de qualificação da função moral da literatura. Depois de estar no topo do
consumo literário em finais do século XVIII, a expansão ocorrida no século XIX ampliou de
tal maneira os limites da proposta de Horace Walpole que a definição “gótico” perde força. A
premissa da construção do efeito de horror baseada no conceito de sublime será largamente
reapropriada em matrizes tão distintas que a categoria se torna insuficiente para explicar a
presença do horror na literatura oitocentista, sobretudo quando os cenários sombrios são
interiorizados na tentativa de representação total e demoníaca do homem. Quando Baudelaire
se refere a Poe como um mestre da modernidade, não o faz para qualificá-lo como uma
autoridade em determinado segmento, simplesmente, mas para alçá-lo à posição de mais
importante escritor de sua época, gênio da revelação do espectro sombrio que dominaria o
mundo. A importância de Poe para o debate literário do século XIX traduz a dispersão do
horror na produção ficcional marcada por aproximações e distanciamentos em relação às
tendências realistas triunfantes segundo os cânones literários.
O horror literário aparece como conciliação da imaginação literária “antiga” com a
“moderna” e se desenvolve com as representações da integridade humana redescoberta pela
imaginação romântica. Relacionando deleite com apelo afetivo e refinamento estético com
experiência do medo, serve às demandas de um mercado literário e tem ainda no horizonte o
fortalecimento da solidariedade e a construção da autonomia moral do indivíduo. Antes de
configurar um gênero ou subgênero específico, as diferentes formas de fabricação do horror
servem como laboratórios da experiência estética; são exercícios de contemplação do mal
que, por intermédio da ficção, tratam de um mundo misterioso fabricado pela racionalidade
que finge atacar.
Os textos analisados até aqui articulam alguns conceitos que marcam a produção
ficcional da segunda metade século XVIII e do século XIX. Ao trazer à tona problemas acerca
da constituição do romance como gênero, esses textos permitem uma avaliação das tensões
que estruturam seu desenvolvimento histórico e apontam para os problemas relativos às
formas do horror na literatura brasileira do século XIX.

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2. O horror acadêmico na literatura brasileira

2.1. A modelização literária do terror

No prefácio de Macário, Álvares de Azevedo trata a obra como um gênero misto


entre prosa e drama, situado entre o “teatro inglês, o teatro espanhol e o teatro grego”.
Ressalta a necessidade de ênfase às paixões e propõe um tipo de representação humanamente
íntegra que destaque os limites entre alma e instinto, mantendo, no entanto, preservadas as
diferenças entre o humano e o animal. Define o texto como um produto desregrado, de
inspiração confusa, cuja classificação precisa escaparia: “Chamem-no drama, comédia,
dialogismo – não importa.”146 Na trama, baseada no encontro do jovem estudante Macário
com Satã, o protagonista é descrito como amante das mulheres e inimigo do romantismo;
prefere uma garrafa de vinho a um poema, um beijo ao soneto mais harmonioso. Seu
hedonismo, porém, não consegue superar o tédio. “O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é
monótono a fazer morrer de sono”, afirma categoricamente.
O cinismo do personagem fica mais evidente ao tratar do amor, que, comenta com
seu interlocutor, só conhecera em sua expressão física; ignorara o sentimento casto e puro das
representações românticas. Ao revelar sua origem degenerada, dizendo-se provável filho de
uma libertina com um padre ou fidalgo, Macário descobre estar conversando com Satã e se
alegra: “A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles.” Aceita sair junto com
ele montado numa mula preta, rumo a uma cidade misteriosa descrita como um antro de
devassidão. O lugar apresenta os perigos do vício e da monotonia, o tédio que a define é o
efeito colateral do cinismo, retrato de uma imaginação melancólica que a poesia já não pode
nutrir. Satã funciona como um personagem byroniano, expressão de um tipo soturno e terrível
de estética literária com seus sintomas de ceticismo, melancolia e misantropia que marcam a
vertente mais negra e macabra do romantismo.147
Na segunda parte do drama, Penseroso entra em cena. O personagem que desafia as
ideias de Macário e Satã aparece como figura emblemática da luta contra o ceticismo, da
postura mais positiva diante da arte e da vida. Macário comenta que, como George Sand,
prefere a poesia áspera de Dante e de Shakespeare aos versos alexandrinos de Sainte-Beuve e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 195, vol. 2.
147
BARBOZA, Onédia C. de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974, p. 270.

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Turquety; já Penseroso, mesmo reconhecendo o valor poético da obra do italiano e do inglês,


diz tratar-se de “uma poesia terrível”; sente “pena daqueles que se embriagam com o vinho do
ceticismo”148. Mais adiante ataca a razão como elemento desencadeador do desespero. Por
não permitir a evocação de Deus, sua instabilidade é apontada como origem do mal. “A razão
do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito que se apagará.”149 A
dúvida que se abate sobre Macário o faz considerar que a treva do corpo escurece a alma.
Relutante, vislumbra a redenção e se ajoelha aos prantos, hora em que percebe o vazio do
mundo. Penseroso insiste na beleza e na presença positiva de Deus, as lágrimas do amor
seriam bênçãos expressas no aspecto sublime da natureza. Tentando convencer seu
interlocutor, afirma que a razão corrói as esperanças: “A descrença é uma doença terrível;
destrói com seu bafo corrosivo o aço mais puro: é ela quem faz de Rembrandt um avarento,
de Bocage um libertino.”150.
A libertinagem é tratada como desdobramento da descrença, mas Macário afirma que
o amor, a poesia e a glória não passam de ilusões, e a voluptuosidade é a única força que
anima seu corpo na “sede insaciável do gozo”; ele reconhece a descrença como filha bastarda
do desespero. O debate existencial atrela-se a considerações estéticas e reflexões sobre as
funções e características da poesia. Quando Macário indica um livro a Penseroso, este
comenta tratar-se de um “poema frio como um cadáver”, um jogo de imaginação cética que
remete à morte da alma, ao que o outro responde: “E o ceticismo não tem a sua poesia? […] O
que é a poesia, Penseroso? Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo
que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?”151. Penseroso, no
entanto, recusa-se a louvar a poesia cínica que lhe é apresentada, reluta em abrir mão dos seus
padrões de beleza. Crê que o referido poeta é um velho incapaz de se inspirar nas glórias de
sua terra e de imaginar positivamente o futuro. O ceticismo impediria a louvação do sublime
tornando-se entrave para o progresso, e a ênfase no mal transformaria o drama individual em
desligamento do coletivo. Macário se mantém irredutível, e seu cinismo contagia Penseroso,
que se mata, descrente em relação ao amor.
A morte de Penseroso é também a negação da poesia atrelada a um ideal afirmativo
da beleza. O mundo submerge em uma noite apavorantemente vazia que destrói sonhos e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 264.
149
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 265.
150
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p.266.
151
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p.258.

!
! 73!

esperanças. Diante do quadro absurdo, as expectativas de Penseroso parecem delírios


inocentes que se desdobram no suicídio. Paradoxalmente, o personagem permanece um
idealista. Sua morte provocada pela contaminação das ideias perversas é uma forma de não se
curvar à aparente onipotência de Satã e de evitar a mesma vida daquele que o convenceu da
falta de sentido desta.
O idealismo é parcialmente derrotado pela desintegração racionalista que propõe
uma representação humana da perspectiva do horror em escalada e visa denunciar a natureza
desmedida do espírito. No final, quando Satã convida Macário a espreitar uma orgia pela
janela, o drama é interrompido com o início de Noite na taverna.152 No relato dos crimes que
marcam a novela, observa-se o triunfo melancólico do cinismo como forma de revolta contra
a finitude de personagens “saudosos da plenitude impossível de si mesmos”153 que vivem a
experiência do vazio na perda romântica dos ideais. Os devassos que narram suas histórias
macabras negam a edificação da vida ao encenar a pertinência das perspectivas satânicas de
Macário.
O ceticismo que acompanha o programa desse romantismo negro suscita questões
acerca da construção de uma identidade literária brasileira. É bastante conhecida a defesa da
filiação da literatura portuguesa com a brasileira que Álvares de Azevedo apresenta em
Literatura e civilização em Portugal. Estabelecendo o critério linguístico como essencial, pois
segundo seu parecer “sem língua à parte não há literatura à parte”, questiona a proposta
nacionalista de Gonçalves Dias indicando que o problema da nacionalidade não poderia se
restringir à adoção temática de aspectos locais como expresso na coleção Poesias
Americanas. Os poemas poderiam ter tons índicos como em Thalaba, de Robert Southey; ou
“perfumes asiáticos”, como em As Orientais, de Victor Hugo ou em Noiva de Abydos, de
Byron: que nem por isso perderiam sua nacionalidade literária.154
O problema central seria abdicar de um repertório consagrado sem nenhum ganho
aparente. Ao querer se desvincular da matriz portuguesa, a literatura brasileira perderia obras

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
152
No ensaio “A educação pela Noite”, Antonio Candido propõe uma leitura articulada de Macário com
Noite na taverna. Segundo o crítico, ambas as narrativas “podem ser vinculadas, formando uma grande
modulação ficcional que vai do drama irregular à novela negra”. As obras estariam unidas pelo princípio da
educação pela noite, pedagogia que partiria das noções de mistério e trevas para compor um discurso dilacerado
cuja finalidade seria o derramamento sentimental característico de um romantismo sombrio. CANDIDO,
Antonio. A educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 15.
153
HANSEN, João Adolfo. Forma romântica e psicologismo crítico. In: ALVES, Cilaine. O belo e o
disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp,
1998, p. 14.
154
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 142.

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! 74!

canônicas, relacionadas ao desenvolvimento intelectual do país. Segundo Álvares de


Azevedo, a originalidade não seria inimiga da filiação a qualquer tradição constituída, e se a
nacionalidade pode estar presente nos quadros de uma linhagem consolidada, a tentativa de
separação soaria mesquinha, “polêmica secundária” que pouco contribuiria para o progresso
literário. Seria inútil “não querermos derramar nossa mão cheia de joias nesse cofre mais
abundante da literatura pátria: por causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso!” e
sem propósito “resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!”155.
A separação das literaturas brasileira e portuguesa é apenas uma digressão ao tema
principal tratado por Álvares de Azevedo: o processo de desligamento das literaturas
espanhola e portuguesa, tendo em vista os acidentes da civilização e a configuração de línguas
diversas. No caso de Brasil e Portugal a língua comum implica na mesma experiência cultural
e a presença de escritores e intelectuais brasileiros em terras portuguesas potencializa essa
experiência. Segundo Álvares de Azevedo, “com pouca exceção, todos os nossos patrícios
que se haviam erguido poetas tinham-se ido inspirar em terra portuguesa, na leitura dos
velhos livros e nas grandezas da mãe-pátria”. A importância cultural dos literatos de além-mar
não deveria ser desprezada ou sequer diminuída quando se tratasse de estabelecer uma
separação literária que, nos argumentos do poeta, soaria arbitrária.
A questão da originalidade se sobrepõe ao problema da nacionalidade. No mesmo
texto, o autor lamenta os jovens que viram em Shakespeare o símbolo da independência e
deixaram de ser clássicos como Eurípides e Sófocles para se tornarem românticos imitando
Victor Hugo e Alexandre Dumas. A simples mudança de paradigma não representaria
nenhum saldo positivo: “A imitação mata o gênio, a cópia destrói o lampejo da originalidade,
seja de um clássico, seja de um romântico.” A defesa da originalidade o leva a criticar a
posição de escritores que, abrigados sob a autoridade shakespeariana, teriam abdicado de
projetos literários consistentes e se limitado a imitar os trejeitos românticos. O problema não
se restringiria ao caso brasileiro:

Goethe lamentava-se dos seus imitadores, criticava acerbo o


sentimentalismo falso que seu Werther fizera brotar nos
romances e o desregrado do drama que seu desordenado, mas
belo Goetz de Berlichingen fizera bem-querer. Chateaubriand
queixava-se do bronco de expressão, do exagerado de ideias,
que sua reação romântica acordara nas escolas do belo horrível,
que excederam todo o medonho da ronda de horrores e lascívias
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
155
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 143.

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! 75!

de Lewis e das mortualhas dramáticas de Mathurin. É que os


discípulos, na fascinação da apoteose que erguem ao gênio, no
tresladar, no arremedo de suas belezas, imitam-lhe também, e
mais que o resto, os defeitos, porque foi no embelezá-los, em
escondê-los sob flores, que os mestres envidaram suas forças.156

O comentário sobre Lewis e Maturin faz eco ao problema da definição do gosto na


estética do horror que marcou o debate literário na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX.
As chamadas “escolas do belo horrível” estariam baseadas em apropriações exageradas dos
elementos românticos. O posicionamento subserviente de escritores menores evidenciaria os
erros e os aspectos sinistros das obras tomadas como referência e deixaria expostas as marcas
dispersas do horror que a genialidade teria o poder de disfarçar.
No prefácio do poema O Conde Lopo, Álvares de Azevedo afirma que a única
finalidade da poesia é o belo, “belo material, belo moral; do belo por assim dizer mimoso, até
esse belo arrebatador que se chama sublime”157, e este último é seu estágio mais intenso.
Assim, o único demérito de uma obra seria não ser bela, independentemente de qualquer
aspecto temático ou moral. Como único critério valorativo legítimo, caberia ao leitor julgar
segundo os critérios puros de beleza. Cita Byron lembrando o aspecto admirável de poemas
como Don Juan. E ressalta: “O fim não torna moral uma obra da qual cada capitulo seja
imoral”,158 ou seja, um final supostamente redentor não pode exaurir toda a devassidão
anteriormente apresentada.
Para Álvares de Azevedo, a exploração literária do mal deve ser assumida com vistas
à beleza, E a conclusão é mera contingência que não asseguraria o sentido edificante do texto.
“O imoral pode ser belo – as visões nuas do juízo derradeiro de Miguel Ângelo – Antony,
Ângela, Thereza, quase todo o teatro enfim, quase todas as obras de Alexandre Dumas são
imorais”, […] [no entanto] “Àquela alma de poeta quem negará contudo glórias e louros?
Quem poderá não achar belas essas páginas do romancista-rei do século?”159. Salientando a
diferença entre o imoral e o torpe, separa do cânone literário poemas menores que se
prestariam exclusivamente à corrupção dos valores sem a devida consistência estética.
No tocante ao sublime, aproxima-se de Edmund Burke ao considerar o fenômeno um
passo adiante do belo: as metáforas ligadas à natureza traduzem o belo como experiência

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 149.
157
AZEVEDO, Álvares de. O Conde Lopo. Rio de Janeiro: Leuzinger & Filhos, 1886, p. I.
158
AZEVEDO, Álvares de. O Conde Lopo, op. cit., p. V.
159
AZEVEDO, Álvares de. O conde Lopo, op. cit., p. VII.

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! 76!

confortável, e o sublime como violência, perturbação dos sentidos pelo contraste e pela
desorganização. Familiar aos debates estéticos que ganham força na Europa no século XVIII,
Álvares de Azevedo tenta caracterizar diferentes níveis de revelação e apreciação que
orientariam um conceito de literatura construído com base na noção de efeito.
As preocupações de Álvares de Azevedo centram-se na originalidade, e a relação
com determinada tradição se sobrepõe à abordagem temática em sua perspectiva
nacionalizante. Em discurso proferido no dia 11 de agosto de 1849 na sessão acadêmica
comemorativa do aniversário de criação dos cursos jurídicos no Brasil, o autor de Noite na
taverna trata os estudantes como o futuro e o progresso da civilização brasileira, e os exorta a
tomar definitivamente as rédeas da cultura nacional.

Grande foi-nos sempre a missão. – E nós houvéramos renegar


de todo um passado de ufanias, de um porvir inteiro de vitória
das glórias; enjeitar o mar azul aceso dos lumes alvorecidos da
esperança, pelo pântano, dormido e tabescente do marasmo e do
indiferentismo? A regeneração literária de nossa terra deve sair
do meio de nós. Falange do progresso, não há ficarmos imóveis.
Como ao Ahasvero da tradição, uma voz nos brada sempre: –
Caminha! O gênio é esse sôfrego corsel dos stepps do Mar
Negro onde estorcia-se a transudar agonias cruentas o herói do
poema de Byron – Away! away! Avante! avante! – Eis o brado
das gerações inteiras. E, pois, coragem! Árdua embora a
provança – a tarefa é sublimada!160

Além de chamar a atenção do grupo de estudantes para que se perceba como parte
fundamental do processo de desenvolvimento das letras, o inflamado discurso questiona o
marasmo e a indiferença. Diante de seus pares Álvares de Azevedo é o anti-Macário, como se
Ariel se sobrepusesse a Caliban no horizonte da atuação política.161 O personagem cético que
perdeu o amor pela poesia por considerá-la vulgar demais, recusando-se a qualquer filiação
literária com a sociedade em que vive, é duramente questionado. Se o ceticismo é matéria
esteticamente interessante, como postura política é um mal a ser combatido.
A comoção pela morte de Álvares de Azevedo, em 1852, revela um pouco de seu
destaque na produção literária brasileira. Na época, Joaquim Manoel de Macedo comentou

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p.18.
161
A contraposição entre Ariel e Caliban é feita por Álvares de Azevedo no segundo prefácio de Lira
dos Vinte Anos como forma de evidenciar os dois eixos que orientam a obra, um voltado ao sentimentalismo
romântico e outro à sarcástica morbidez satânica.

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que ele deixou “como provas do muito que poderia fazer pelas nossas letras alguns belos
discursos e grande número de excelentes poesias”; o Brasil perdia “um cidadão dedicado e
prestimoso”162 que muito poderia fazer pelo país. Em 1872, em discurso proferido no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Joaquim Norberto de Souza assim se referiu ao
falecido autor: “Sua alma ávida de trabalho e de glória ambicionava os louros da poesia, e seu
gênio, abrindo as asas de ouro na imensidade, procurava os rastros luminosos de Byron,
Dante, Shakespeare… eram eles seus mestres prediletos.”163 O jovem genial aparece como
um talento promissor que foi perdido por uma fatalidade e, independentemente dos projetos
literários em jogo, era visto como figura-chave da cultura brasileira. Ainda segundo o escritor
fluminense, “o jovem poeta que via tudo com olhos de águia, sem ter ainda formado seu
gosto, queria o drama com todo o seu aparato romântico, com todas as suas peripécias
melodramáticas”.
O talento ainda não refinado de Álvares de Azevedo teria convertido o palco “em
lago de sangue e as cenas de horror elevadas das raias do possível, já por si repugnantes, ao
infinito da exageração”.164 Apesar dos exageros juvenis, tratava-se de uma figura ímpar,
responsável pela difusão de um determinado modelo romântico. Noite na taverna, por
exemplo, seria notável “pela originalidade de suas extravagantes cenas, uma sequência de
narrações monstruosas em que Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius, Hermann e Johann,
libertinos que se apaixonam por mulheres perdidas, contam suas histórias românticas”165.
Em maio de 1852, Félix Xavier da Cunha escreve no primeiro número do jornal O
Acayaba: “Foi um busto que o Brasil perdeu para a galeria das grandes inteligências.”
Produzido no âmbito acadêmico, o periódico exalta um escritor que se tornaria referência para
jovens poetas e se destacaria, ainda, pela inserção no debate literário. Denominado por seus
criadores “jornal científico e literário”, circulou entre 1852 e 1853 e teve como responsáveis o
próprio Félix Xavier da Cunha e Quintino Ferreira de Souza, que mais tarde adotaria o
sobrenome Bocaiuva. Contribuíram ainda para a publicação mensal Manuel Antonio Duarte
de Azevedo e José Fernandes da Costa Pereira. Definida como publicação acadêmica, travava
um diálogo muito direto com os estudantes paulistas. A escolha do nome acaiaba, um tipo de
planta rasteira, simbolizaria as modestas aspirações dos editores: “Simpatizamos contigo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
162
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 256, vol. 3.
163
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Crítica reunida 1850-1892. Porto Alegre: Nova Prova, 2005, p.
153.
164
SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 160.
165
SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 161.

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porque teu solo inculto simboliza o nosso pensamento infante, e tuas cândidas flores, este
álbum singelo”.
O uso da palavra de origem tupi não parece gratuito: sugere filiação ao nacionalismo
literário indianista e considera a infância do pensamento brasileiro – dele brotariam somente
flores singelas. A planta teria sido “transportada para alheios climas, arrancada do silêncio e
solidão em que habitava”, alusão metafórica à origem supostamente exógena da literatura
brasileira. Na imagem da acaiaba, o processo de desenvolvimento do jornal e da cultura
nacional é representado cautelosamente, como hipótese ainda incipiente perante tradições
mais consolidadas. Seria necessário cuidado para que o caminho não degenerasse. “A rasteira
acayaba não quer subir tão alto, lá onde as nuvens se estendem em listas alvacentas e rubras: o
gelo das alturas lhe secaria a vida.”166
“Literatura pátria”, artigo de Manuel Antonio Duarte de Azevedo publicado em
junho de 1852, define literatura como expressão popular: “O estilo é o homem, tinha dito
Buffon, e nós diremos a literatura é o povo.” Se a individualidade define a diferença
estilística, a capacidade de representar a coletividade define a qualidade e a maturidade do
universo poético de uma nação. Critério valorativo preponderante, a capacidade refletiva da
produção letrada transforma-se em parâmetro para definição do estágio civilizatório como um
todo. A vida da nação atrela-se umbilicalmente à vida literária: “A literatura é sempre o
espelho onde ele todo (o povo) se reflete, que tanto mais o representa mais límpido e puro”. À
incisiva reflexão segue a constatação: “Nossa literatura está ainda na infância.”167. O artigo se
estende até a edição seguinte, na qual defende claramente o indianismo como solução
temática: “Negar-se a poesia de natureza indiana do Brasil é o mesmo que negar-se a poesia
dos amores de Chactas, ou a do guerreiro Árabe do deserto.” A naturalidade do tema
transforma a opção em desdobramento necessário para que não haja assimetria entre a
realidade brasileira e suas formas de representação. O indianismo, mais do que uma
possibilidade, é tratado como imanente. Na edição de abril de 1853, aniversário de um ano de
O Acabaya, o editorial afirma que a iniciativa fora motivada “por um impulso de patriotismo
e de amor pelas ciências e pelas letras”. O viés cívico nutre as intenções mesmo que não haja
consenso em relação aos sentidos atribuídos à literatura.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
O Acayaba, São Paulo, p. 1, maio de 1852.
167
AZEVEDO, Manuel Antonio Duarte de. Literatura Pátria. O Acayaba. São Paulo, p. 3, junho de
1852.

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Em artigo publicado nas edições de maio e junho do mesmo ano, José Fernandes da
Costa Pereira fala do desejo de construir uma literatura nacional em termos um pouco
diferentes. “A poesia, ninguém poderá negá-lo, é uma nota desprendida do íntimo peito, um
som partido desse instrumento melodioso que existe em nós e que deixa, a cada sopro das
paixões, vibrar melancólico ou forte, terno ou sublime.” Mesmo sem estabelecer distinção
radical entre a perspectiva poética intimista e a proposta nacionalista, é possível perceber um
acento maior no problema da subjetividade. Na segunda parte do texto o posicionamento fica
mais claro: “Devemos guardar as vagas lembranças de quimera fagueira ou entregá-la aos
corações patrióticos que se designarem a ler nossas linhas? Talvez […] é a resposta que a esta
última pergunta nos dá a voz do coração?”168. O patriotismo é representado como esforço de
valorização da íntima produção poética dos estudantes, cuja obrigação de assumir papel
preponderante na produção poética geraria a necessidade de levar a poesia ao benevolente
público patriota.
Não há um padrão rígido nos textos ficcionais publicados nos dois anos de existência
de O Acayaba. Se em junho de 1853 Leandro Barbosa de Castilho publicou “Conto
Americano”, de enredo indianista, cujo primeiro parágrafo descreve em tom de fábula “uma
dessas florestas do Brasil gigantescas e belas, que parecem varrer o dossel acinzentado do
céu”, eram comuns também contos sinistros como “A noite do bandido”, publicado
anonimamente no ano anterior, que narra a história de um casal cuja felicidade é cruelmente
interrompida pela ação de um criminoso. O conto traz cenas terríveis, como a do ataque do
bandido à filha do casal: “esmigalhando-lhe a tenra cabeça de encontro a um pau”. Mesmo
depois de preso, o criminoso se mostra orgulhoso de ao menos ter “passado uma noite ao lado
da mulher”. A sugestão de um estupro encerra a narrativa que confronta polos opostos: o
encantador e o terrível, o anjo e o demônio, o amor e a violência. Mesmo punida, a perversão
parece triunfar, e ao grito raivoso do vilão que propaga seu crime segue-se o silêncio
desconfortável diante da crueldade.
O horror brutal divide espaço com dramas absurdos. Em “A fada do mistério”, de
Félix Xavier da Cunha, o tema é o sofrimento de um jovem que declara seu amor a uma
mulher que simplesmente não se comunica com ele. O silêncio cadavérico dela o leva ao
desespero e à morte, o que, por sua vez, acaba desencadeando a morte da mulher misteriosa.
A atmosfera estranha do conto é bem definida em uma de suas passagens: “Era como uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
168
PEREIRA, J. F. C. O Acayaba. São Paulo, p. 2, junho de 1853.

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dessas visões dos contos de Hoffmann, como a sombra de Blanca resvalando à furto em noite
de Luar.”169
“A confissão de um suicida”, de Leonel de Alencar, conta a triste história de Samuel,
que se diz amaldiçoado por seu nascimento ter custado a vida de sua mãe. O fato trágico o
leva a uma vida desregrada, perdida no vício, apodrecida nos “lugares pestíferos das orgias”.
Enfim, “queria ser como o Trennor, de George Sand”170. Nesse caminho tortuoso, que mais
parecia “um delírio de Hoffmann”, confessa a um padre que prostituiu a irmã e matou o pai.
Ao final da confissão, decide se matar.
As modalidades de exploração do horror que aparecem na publicação variam entre a
exposição explícita da violência, a perversão moral, o estranho inexplicável e o desenlace
funesto de um homem amaldiçoado. Em todas é possível perceber a centralidade da
perspectiva de construção do efeito de horror, como se todo esforço de representação se
justificasse pelo sentimento capaz de despertar.
A busca pela mesma sensação se percebe em outras publicações. Em O Guaianá –
periódico que Nelson Werneck Sodré classifica como estudantil e abolicionista171 –, uma
crítica não assinada aos poemas de Pedro Calasans afirma: “Não há verdadeira poesia senão
quando existe uma impressão e um sentimento por ela despertado” 172 , o que indica a
perspectiva do efeito associado ao trabalho poético. Na mesma edição de julho de 1856 é
publicado o conto “A confissão de um moribundo”, de Lindorf F. França, sobre um homem
que espalhou tristezas por onde passou. Sua vida é marcada pela devassidão e pelo vício e já
no fim dela, moribundo, ele decide confessar. Sobre uma mulher que encontra afirma: “Nunca
porém pude conseguir um olhar dessa donzela meiga e vaporosa como um sonho de
Hoffmann.” Enquanto narra seus crimes, um “calafrio de morte gelava a fronte do sacerdote”
e a “chuva mais estridente rebramava por entre milhares de raios como a grita sussurrante de
mil vozes por entre gargalhas do inferno!”173.
O tema do homem errante castigado por seus vícios, consagrado pela tradição gótica,
é atualizado sem abrir mão dos cenários europeus, e o nome de Hoffmann traduz a estranheza
do horror fantástico no contexto da perversão dos valores. Se no plano ficcional a referência
aponta para o problema dos desdobramentos de um romantismo em que os modelos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
CUNHA. F. X. da. A fada do mistério. O Acayaba, p. 6. São Paulo, maio de 1853.
170
ALENCAR, L. de. A confissão de um suicida. O Acayaba, p. 2. São Paulo, agosto de 1853.
171
SODRÉ. Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 178.
172
O Guaianá, p. 1, São Paulo, julho de 1856.
173
FRANÇA, Lindorf F. A confissão de um moribundo. O Guaianá, p. 3. São Paulo, julho de 1856.

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consagrados por Matthew Lewis e Hoffmann parecem se encontrar, do ponto de vista crítico,
as questões levantadas no periódico se voltam para o problema da originalidade.
O artigo “O que é imitação em literatura”, assinado por Couto de Magalhães, traz a
seguinte passagem: “Assim, o fato de adotar-se aquilo que nos grandes escritores é essencial,
a arte não é imitar, é conhecer”, pois “tomar o que neles existe em virtude das crenças da
nacionalidade a que pertencem é impossível, o que mata e quebra toda força e vigor de uma
qualquer composição deste gênero”174. Fica clara uma tensão na relação com a tradição
literária. A busca da originalidade na literatura brasileira deveria passar pelo exame do
repertório estrangeiro disponível partindo do princípio de que a nacionalidade dos textos não
é essencial. Seria preciso conhecer a verdadeira arte literária que transcende o problema local,
deixando que a atualização nacional se desse quase naturalmente. A impossibilidade da cópia
plena e o esforço de tradução específico separariam os termos “imitar” e “conhecer”, e o
segundo seria a chave para o desenvolvimento de uma nação cuja literatura é percebida como
incipiente.
Dalmo, ou Os mistérios da noite, de Luís Ramos Figueira, apresenta as histórias
vividas por um estudante paulista que, apesar da pouca idade, acumula aventuras: “Na cidade
misteriosa por excelência é que Dalmo […] ficava sabedor do fio de muitos mistérios.”175 O
livro publicado em 1863, dedicado aos estudantes paulistas, é dividido em sete noites e
concentra-se na sedução de uma jovem por um cônego imoral. Dalmo é o herói que revela a
verdadeira identidade do religioso à jovem. Trata-se de uma das poucas histórias na qual um
estudante é representado como virtuoso. Dalmo é o protótipo do acadêmico dotado de valores,
“cristão e católico”, filho de mãe zelosa. Os mistérios da noite s um dos poucos textos cujo
final traz algum consolo, quando o pecador arrependido consegue o perdão de sua vítima.
Pessanha Póvoa, em artigo publicado em seu livro Anos acadêmicos: 1860-1864, diz
que Ramos Figueira é um talento feito, e Dalmo, a “palavra de ordem para o romance
fantástico”. Os méritos do autor fazem com que o crítico tenha orgulho dos estudantes de São
Paulo, pois sua capacidade poética – assim como a de Teodomiro Alves, mesmo considerando
Gennesco uma obra ruim, inacabada e pouco original176 –, prova que é preciso valorizar a
produção dos jovens e romper com os “maus instintos, que nos fazem ver tudo sem exame, o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
174
MAGALHÃES, Couto de. O que é imitação em literatura. O Guaianá, p. 2, São Paulo, agosto de
1856.
175
FIGUEIRA, Luís Ramos. Dalmo ou os mistérios da noite. São Paulo: TYP Literária, 1863, p. VII.
176
Trata-se do romance Gennesco: vida acadêmica, publicado em 1866.

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! 82!

que tem concorrido para a condenação de muitas capacidades acadêmicas”.177 Depois de


afirmar que o romance é melhor do que Noite na taverna, assegura que José de Alencar teria
orgulho de fazer parte dessa comunidade acadêmica e “apertaria a mão do autor de Dalmo”,
assim como Teixeira e Souza lhe abriria seus arquivos e Joaquim Manoel de Macedo teria
orgulho da nova safra de prosadores.
No livro de Póvoa, composto de artigos com temas variados, ficam claras duas
propostas: a primeira é definir o corpo da produção acadêmica paulista como um grupo, para
gerar a noção de que os estudantes, mesmo com discrepâncias, formariam uma unidade
importante para os rumos políticos e culturais do Brasil. O segundo é a legitimação desse
suposto grupo. Ao ressaltar a relevância do que é produzido na academia o autor tenta
demarcar um lugar para essa produção. O comentário sobre uma hipotética recepção dos
consagrados romancistas brasileiros é bastante eloquente nesse sentido, pois visa inserir a
produção acadêmica no conjunto geral da literatura brasileira. Os autores aparecem como a
novidade literária, responsáveis por levar adiante a produção ficcional ainda incipiente no
Brasil. Essa novidade, baseada nos modelos europeus, estaria em condições de fortalecer a
produção cultural nacional com prosa relevante e original.
A formação de uma literatura própria do Brasil implica a reprodução de alguns
modelos consagrados e o debate em torno dos sentidos atribuídos à ficção. Assim, a
exploração do horror literário ganha espaço nas páginas dos jornais. “Dalzo”, texto de
Zoroastro Pamplona, publicado no periódico acadêmico Ensaios da Sociedade Brazilia, é tão
macabro quanto o texto de Leonel de Alencar. Nele a encenação do horror é o desdobramento
de uma brutalidade humanamente estranha. Dalzo é um jovem cavaleiro que encontra um
homem que carrega um cadáver e lhe oferece carne humana como alimento. O jovem o mata
dizendo: “Morre, monstro! Some-te nas faces negras do inferno!”. Mais tarde Dalzo descobre
que seu melhor amigo morrera vítima dos canibais em uma caverna denominada “covil dos
lobos humanos”. Atordoado, depois de lutar e matar vários dos habitantes do lugar sombrio,
já sem forças, mata-se diante de um estranho que julga ser do bando.
Nas “Cartas-romance” – série de textos fictícios que Américo Basílio enviou para o
periódico Esboços Literários em 1859 –, histórias atribuídas a uma “preta cega” com mais de
um século de vida, relatam-se casos sinistros. Na primeira, “A viúva baioneta”, um estudante
perambula por São Paulo e é atormentado pelo espectro de uma mulher que o persegue. E
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
177
PÓVOA, Pessanha. Anos acadêmicos: 1860-1864. Rio de Janeiro: Typographia Esperança, 1870, p.
15.
!

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! 83!

cuja descrição enfatiza seu aspecto físico medonho como um “fantástico espetáculo”. “Era um
corpo sem vida, que estava ali, como arrancado da sepultura, e animado por um espírito
estranho e misterioso.”178
Na segunda narrativa, uma jovem é enfeitiçada pela música macabra de um músico
alemão. O galvanismo – ciência que defendia a possibilidade de reanimar partes de corpos por
meio de impulsos elétricos e que serve de mote para o romance Frankenstein, de Mary
Shelley – é citado várias vezes, mas a moça é acordada pelo canto de um pássaro. Quando o
protagonista a vê pela primeira vez, em estado cadavérico, afirma: “Vendo-me no escuro, um
terror subitamente apoderou-se de mim, e com tal intensidade que fui obrigado a sair […]
Estava nervoso e perturbado como um pobre sineiro que se vê, de noite, às escuras no alto de
uma torre.”179
“O estudante e os Monges”, texto de Couto de Magalhães publicado na Revista da
Academia de São Paulo, em 1º de abril de 1859. O conto se passa nos domínios do Mosteiro
de São Bento onde um manuscrito com histórias sinistras é encontrado por Antônio, estudante
que narra aos amigos o que leu. As primeiras linhas afirmam: “Demônios vagueiam pelo
mundo e não há quem o possa negar. Se não tomam hoje a forma de morcego, de cão tinhoso,
ou de bode […] nem poderei dizer”. Em seguida, narra-se uma orgia sexual protagonizada por
um estudante e vários monges na qual “Satanás toma a forma de homens devotados a
Deus” 180 . A comparação com o romance de Matthew Lewis é inevitável, apesar de o
personagem principal ser definido com base em outra referência, quando um dos ouvintes
afirma: “És mesmo um esdrúxulo a gosto de Hoffmann, meu caro Antônio!”181 No conto, o
hábito de contar histórias é tratado como uma opção ao tédio. Se “na Europa as comodidades
da civilização, o luxo, os mil divertimentos, absorvem o resto do tempo que não é empregado
nos livros”, no Brasil ocorreria o inverso. Afinal, “o spleen tão bem caracterizado pela palavra
cinismo obriga-nos a fazer da conversação um elemento da vida moral e a buscar nela a
compensação de outros divertimentos”182.
Em 1861 é publicado no Fórum Literário – jornal acadêmico comandado por
Macedo Soares, Zoroastro Pamplona e Américo Lobo – o “Conto fantástico”, de Américo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
BASÍLIO, Américo. Cartas-romance. Esboços Literários, p. 4. São Paulo, março de 1859.
179
BASÍLIO, Américo, op. cit., p. 14.
180
MAGALHÃES, Couto de. O estudante e os monges. Revista da Academia de São Paulo: Jornal
Scientífico Jurídico e Histórico, p.16. São Paulo, 1º de abril de 1859.
181
MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 8.
182
MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 16.

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! 84!

Lobo. Nele o protagonista tem sua fazenda amaldiçoada por uma escrava feiticeira que o
acusa de ter matado seu filho, de quem ele era senhor. A ambientação sinistra de toda a
narrativa promove o clima de mistério e pavor que permeia a história até o seu fim quando o
protagonista consegue se livrar da feiticeira, que deixa um lastro de destruição. A cena final é
marcada pela presença de um animal sinistro que circunda os cadáveres dos escravos e
desaparece “para sempre no acaso, soltando três pios medonhos”.
O Correio Paulistano, ainda que não fosse um jornal acadêmico, publicou alguns
contos escritos por estudantes e classificados como fantásticos. Em “Leonel, o Trovador”, de
Guimarães Júnior, publicado em 1862 em uma série denominada Contos à Tardinha, o
protagonista se apaixona por uma jovem condessa que morre misteriosamente. No dia do
enterro, ele se joga no caixão e beija o cadáver. O elemento fantástico reside no fato de
Leonel ter conseguido por alguns instantes ressuscitar a jovem para logo morrer junto a ela. A
trágica cena dos dois amantes mortos alude a Romeu e Julieta, mas as artimanhas do destino
são substituídas por um mistério não resolvido; não são explicados nem o último suspiro
tardio da condessa nem a morte repentina do rapaz. A narrativa é encerrada com um enigma:
ao vasculhar a antiga casa da condessa, depara-se somente com escombros e “sob as ruínas
um esqueleto de mulher”.
Na chave do horror fantástico, destaca-se ainda Ruínas da Glória, de Fagundes
Varela, história macabra narrada em uma caverna que trata mais de eventos sobrenaturais do
que de amores perdidos e vidas desregradas. O protagonista conta que, após uma noite de
bebedeira, ele e mais dois amigos decidem explorar as ruínas da Glória. A noite fria de
tempestade trouxe surpresas funestas que levou um deles à loucura e o outro à morte. O
desejo por aventuras sinistras teria sido motivado pela literatura. Segundo ele, “líamos nesse
tempo fervorosamente todas as obras sombrias exaltadas que aviventam a imaginação e
povoam a alma de quimeras e sonhos irrealizáveis”183. Do mesmo autor também foi publicado
em 1861 o texto “As bruxas”, sobre mulheres fantásticas que seduziam marinheiros e cujo
perfume “voluptuoso e sensual” os fariam “mudos, silenciosos, como os fantasmas de Anna
Radcliffe”184.
Ainda sob a classificação de “conto fantástico”, em 1862 são publicados “Perjura”,
de João Correa de Moraes, e “Três Fadas”, sem indicação autoral. O primeiro narra a triste e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
183
VARELA, Fagundes. Ruínas da Glória. Correio Paulistano, p. 2. São Paulo, 13 de outubro de 1861.
184
VARELA, Fagundes. As Bruxas. In: O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Maria Cristina
Batalha. (Org.). Rio de Janeiro: Caetés, 2011, p. 56.

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! 85!

tipicamente romântica sina de um jovem cujo ceticismo o levou ao suicídio, mas sua alma é
salva por um anjo. O segundo é uma fábula sobre três fadas constantemente insatisfeitas que
são transformadas em homens.
Um pequeno conto intitulado “Phantasmagoria”, publicado em 1863, traz o sonho
terrível de um homem que adormece lendo Lucíola e é assombrado “pelo espectro de um
gigante fantástico” enquanto passeia pelo Bairro da Luz, em São Paulo. A trama assinada
apenas por R. justapõe as belezas do Jardim Botânico paulista com imagens aterrorizantes de
uma tarde estranha em que “o terror chegou a um ponto indescritível!”185. O texto evoca a
figura do “leitor romântico”, levado a lembrar as belezas da cidade. O jogo de oposições que
configura o fantástico pressupõe uma descrição romantizada do ambiente para posterior
inserção dos elementos sinistros, e o leitor classificado como romântico é inserido na trama
por força dessa categorização; sua imaginação é evocada para ir do belo singelo ao sublime
terrífico e inexplicável até a revelação do sonho.
O sentido fantástico dos contos pode ser analisado da perspectiva de um texto
publicado no Diário de S. Paulo em 1867. O colunista Errig Vamol diz: “O folhetim, como o
drama e o romance, vive do ideal e do fantástico; o que é real pertence à gazetilha, rapariga
bisbilhoteira da raça dos faladores da vida alheia.”186. O fantástico pertence ao domínio da
imaginação e do inverossímil. Tanto na fala do comentarista quanto nos contos analisados, o
termo “fantástico” serve para definir um espaço de estranhamento de uma ficção que não se
presta aos juízos da realidade nem pretende corrigi-la. Sempre que o termo aparece – muitas
vezes como subtítulo – identifica um tipo de narrativa comprometida com a construção de um
efeito, deixando de lado os parâmetros de representação da realidade em nome da busca quase
exclusiva da sensação. É a marca de um tipo de fabulação que apela tanto ao exagero da
brutalidade quanto ao mistério do inexplicável para transformar o inverossímil em elogio da
imaginação. A fantasia que toma Hoffmann como inspiração dramatiza sua própria
potencialidade para enfatizar seu desapego à realidade como triunfo da ficção sobre o relato.
O desenvolvimento de uma ficção fantástica não era consenso entre os acadêmicos.
Um artigo de Macedo Soares publicado em 1861 no Forum Literário revela algumas tensões.
Intitulado “Da literatura byroniana”, trata dos desdobramentos do horror literário em suas
filiações com Byron e Goethe. Afirmando que seus heróis seriam “filhos legítimos de
Werther”, comenta o horror nas definições de Victor Hugo:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
185
R. Phantasmagoria. Correio Paulistano, p. 3, São Paulo, outubro de 1863.
186
Diário de S. Paulo, p. 1, 17 de março de 1867.

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! 86!

Há figuras feias que inspiram compaixão ou desprezo, outras


não causam senão horror ou asco. As primeiras ou são grotescas
e fazem a vida da comédia; ou sérias, e entram com todo direito
no drama. As segundas são hediondas, o seu aspecto pode irritar
o nervo dos espectadores; mas não confundamos o fenômeno
fisiológico com o psicológico, não é essa emoção que a arte
incumbe promover. Do grotesco fundiram Shakespeare e
Molière tipos eternos e inimitáveis, do horrível criou Victor
Hugo Hans da Islândia, Byron o Werner e Lewis o monge. O
grotesco é essencial na comédia, porém no drama não vejo que
seja um elemento indispensável, uma condição sine qua. Toda
teoria do prefácio de Cromwell podia ser resumida nesta
fórmula: o feio, o grotesco ou o horrível é um elemento
negativo do belo, produzindo uma ação positiva pela antítese.187

A leitura dos pressupostos românticos legitima o uso do horrível em determinadas


situações, mas indica também o risco do efeito hediondo. Imprescindível na comédia, possível
no drama, o grotesco se estabelece como o oposto necessário à beleza. É o lado obscuro da
representação íntegra da humanidade nos parâmetros modernos. No entanto, seu uso
exagerado não se justificaria, dado o risco de irritar o espectador ou o leitor. O uso
indiscriminado do horrível poderia confundir emoção com perturbação fisiológica; prazer
com distúrbio. O equilíbrio de seu uso tem como objetivo a interferência emotiva saudável
entre empatia e representação.
Novamente o problema do horror se enquadra na dinâmica de um medo que
ultrapassa os limites da ficção. Assim como romances góticos pareciam perigosos pelo
fantasma da superstição, o horror defendido por Victor Hugo é visto como possível fonte de
males psicológicos. A hipótese do risco fica ainda mais evidente quando Macedo Soares
comenta a circulação de Hoffmann entre os literatos brasileiros. “Também Hoffmann tem
feito escola e apadrinhado com seu nome ilustre os desvarios dos cérebros doentios da época.
Não se vê aí uma lamentável perversão das ideias, do gosto e do sentimento estético?”188 O
comentário lembra muito as acusações feitas por Walter Scott ao escritor alemão. A questão
do gosto é retomada, e o uso indiscriminado do grotesco é visto também como fonte de
degeneração.
No mesmo texto Macedo Soares critica determinada apropriação de Shakespeare:
“Tem se pretendido uma escola com o nome de escola shakespeariana, isto é, escola de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
187
SOARES, Macedo. Da literatura byroniana. Fórum Literário, p. 4, São Paulo, 3 de agosto de 1861.
188
SOARES, Macedo, op. cit., p. 4.

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! 87!

fantasia exagerada, da extravagância e do paradoxo em matéria de arte.” Para o crítico, o


modelo de representação baseado na apropriação romântica do dramaturgo inglês falha ao
considerar como objeto a totalidade da natureza, pois cabe à arte ignorar as imperfeições desta
e privilegiar exclusivamente a beleza.
Macedo Soares não é o único a criticar a chamada escola shakespeariana. Fagundes
Varela, em texto intitulado “Drama Moderno” publicado em 1869 na Revista Dramática
comenta:

As fúrias, os punhais, as taças de sangue, os sonhos pavorosos


são extravagâncias e patacoadas que só comovem as crianças,
assim como os colóquios amorosos à sombra dos salgueiros, as
promessas de eterna fidelidade e constância podem apenas
impressionar alguma inocente pensionista de colégio, ou tímido
aluno de seminário. […] Nosso século quer a expressão fiel de
suas paixões, a representação exata de suas amargas peripécias:
para ele o Othelo é uma hipérbole ridícula.189

O comentário soa estranho se considerarmos que seu autor alguns anos antes
publicara contos com muitos dos elementos condenados. A diferença de perspectiva pode
indicar um olhar específico para o drama ou uma mudança de concepção literária. A primeira
hipótese é menos plausível, pois os comentários não parecem restritivos a um gênero
específico; quando Fagundes Varela fala de um desejo do século, fica clara a proposição de
que a representação deve se voltar para a fidelidade das paixões de maneira ampla. A
mudança de opinião é mais plausível, mas de qualquer forma, é preciso considerar a
possibilidade de distanciamento entre proposições teóricas e realizações literárias.
Independentemente da coerência dos argumentos, Fagundes Varela encampa uma crítica ao
romantismo de base shakespeariana e – como Gottsched fizera na Alemanha – o considera
pouco racional, cheio de equívocos e exageros. Com isso, modelos consagrados pela estética
gótica são criticados como risco ao bom gosto, interessantes apenas para sensibilidades
infantis.
O problema do progresso da literatura nacional não sai do horizonte das publicações
acadêmicas, que aglutinam propostas literárias diferentes e oferecem possibilidades
divergentes de contato com uma tradição idealizada. Entre a busca da comoção pelo efeito do
horror no qual a moral é secundária e a construção é edificante de um sentido de
nacionalidade, ceticismo moral e otimismo nacionalista convivem medindo forças.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
189
VARELA, Fagundes. Drama moderno. Revista Dramática, p. 2. São Paulo, 6 de maio de 1869.

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! 88!

Em 1859, Couto de Magalhães, figura destacadamente nacionalista190, publica o


texto “Destino das Letras no Brasil”, na Revista Acadêmica de São Paulo, em que lamenta o
ceticismo dos poetas. O cinismo que dominaria boa parte dos jovens faria da sociedade o
reflexo de personagens como Fausto e Werther, assim como das criações de Byron e Musset.
Os traços seriam mais evidentes em São Paulo, e Álvares de Azevedo seria a manifestação
mais perfeita, exemplo da tristeza de uma geração assolada pelo tédio. Analisando a atuação
político-literária da juventude afirma: “O Brasil hoje está dividido em duas grandes frações; a
mais numerosa é a dos que descreem do futuro e por desânimo abandonam as letras, e a
segunda é a dos que esperam, trabalham e lutam pela causa do progresso da civilização.”191
A influência de Byron e do ceticismo romântico extrapola os limites da literatura. O
efeito degenerativo não se aplicaria somente aos exageros do horror e do grotesco enquanto
dispositivos literários. O problema se amplia para a atuação no campo cultural. Personagens
como Macário não são condenados exclusivamente pela diretriz ficcional, mas são tratados
como representações de uma geração desgastada pela falta de esperança. O posicionamento
desses escritores é tratado como apologia do imobilismo diante da constatação da
impossibilidade de erigir um edifício letrado sobre bases tão assustadoramente céticas. Ainda
que Álvares de Azevedo seja extremamente engajado no esforço de construção de uma
literatura pátria, sua atuação não inspira outros nomes de sua geração. Mesmo considerado
um busto à inteligência nacional, seu projeto não parece ter força suficiente para despertar o
surgimento de propostas alternativas ao romantismo tematicamente nacionalista192.
Na edição do Forum Literário de agosto de 1861, Macedo Soares, no texto
“Tendências novas”, comenta que O Guarani, de José de Alencar, teria sido o ponto decisivo
de derrocada do modelo romântico de matriz byroniana. O romance evidenciaria os limites do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
190
Sobre a atuação de Couto de Magalhães como artífice da nacionalidade brasileira, ver Um Mitógrafo
no Império: A Construção dos Mitos Nacionalistas na História do Império, de Maria Helena Machado. Revista
Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
191
Magalhães, Couto de. Destino das Letras no Brasil. Revista da Academia de São Paulo, p. 4, 1º de
abril de 1859.
192
O objetivo aqui não é dar conta do problema do nacionalismo literário, apenas destacar sua relação
com outros modelos literários presentes nos periódicos paulistas de meados do século XIX. Sobre a questão em
si ver: MOREIRA LEITE, Dante. Romantismo e Nacionalismo. In: O amor romântico e outros temas. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979; PERRONE-MOISÉS, Leila. Vira e mexe, nacionalismo:
paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; RICÚPERO, Bernardo. O
romantismo e a ideia de nação no Brasil: 1830-1870. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 2004;
ROUANET, Maria Helena. Deitado em berço esplêndido. São Paulo: Siciliano, 1991; SCHWARZ, Roberto. Ao
vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000; WEBER, João Ernesto. A nação e o paraíso: a construção da
‘nacionalidade na historiografia literária brasileira. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997; BAPTISTA, Abel
Barros. O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

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! 89!

“círculo acanhado” do byronismo e o abalaria profundamente ao revelar o universo de


possibilidades da poesia brasileira. 193 O triunfo é tratado como a vitória das questões
nacionais apresentadas nas famosas cartas sobre a Confederação dos Tamoios. Os
comentários críticos de José de Alencar à obra de Gonçalves de Magalhães, além de
promover o debate em relação aos tons assumidos pelo nacionalismo literário, teriam ajudado
o romancista a criar um direcionamento parcialmente realizado em O Guarani.
Em sua crítica a Lira dos vinte anos, publicada em 1866, Machado de Assis parece
concordar com Macedo Soares: reconhece o talento e a influência de Álvares de Azevedo
sobre sua geração, mas trata o ceticismo como águas passadas. Comenta a irregularidade da
prosa de Azevedo: “Ensaiou-se na prosa muito, mas sua prosa não é igual ao seu verso. Era
frequentemente difuso e confuso, faltavam-lhe precisão e concisão […] procurava abundância
e caía no excesso.”194 A crítica se expande para a produção romântica como um todo, que
teria apresentado ao público brasileiro “uma longa série de obras monstruosas, criações
informes, sem nexo, sem arte, sem gosto, nuvens negras que escurecem desde logo a aurora
da revolução romântica”.195
De maneira geral, é possível perceber um movimento da crítica – também de muitos
acadêmicos – para classificar a produção literária dos periódicos como um fenômeno de
juventude, trabalhos imaturos de uma geração que precisaria encontrar voz própria. A filiação
ao romantismo de Byron, Musset e Hoffmann redundaria em uma literatura pouco original,
exageradamente imaginativa e por vezes de mau gosto. Ainda que Álvares de Azevedo, por
exemplo, seja alçado à condição de gênio, sua obra é frequentemente lida como a expressão
do potencial não realizado de si mesma.
Ferdinand Wolf, em sua obra O Brasil literário: história da literatura brasileira,
publicada em 1863, entende, por exemplo, que os textos de Américo Basílio não passariam de
“caricaturas fantásticas à Hoffmann”. As primeiras produções ficcionais brasileiras, sobretudo
as vinculadas em periódicos acadêmicos paulistas, são classificadas como
“pseudorromânticas” ultrapassadas, fruto de um tipo desregrado de imaginação.

É preciso dizer, no entanto, que aparece ainda um grande


número de produções semelhantes, nas revistas literárias e nos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
193
SOARES, Macedo. Tendências Novas. Fórum Literário, p. 2. São Paulo, 2 de agosto de 1861.
194
ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson Inc.
Editores, 1938, p. 894.
195
ASSIS, Machado de. Op. cit., p. 862.

!
! 90!

folhetins dos jornais políticos. As que pudemos compulsar têm


apenas um valor efêmero e, às vezes, não passam de
enchimento puro e simples. A maior parte, como as
provenientes da Academia de Direito de São Paulo, [grifo meu]
são imitações exageradas das produções da pseudoescola,
pseudorromântica, há muito tempo fora de moda na Europa,
mas que procuram ultrapassar por sua imaginação desregrada.
196

José Veríssimo, por sua vez, ressalta a autenticidade da prosa de Azevedo – Noite na
taverna seria expressão literária do teor da vida romântica, “composição singular,
extravagante, mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu
nesse tempo”197 e, mas condena o byronismo por ter desviado “de sua atenção primitiva,
cristã, patriótica, e moralizante, o movimento literário que aqui se iniciara a nossa literatura
nacional”.198 Esse desvio define o sentido do debate. Os comentários dizem um pouco do
lugar que essa produção ocupa, da restrição à aceitação para além do horizonte estudantil,
independentemente da eventual qualidade estética.
Frequentemente acusado de falta de autenticidade, o romantismo negro das
academias é percebido como mera reprodução dos modelos europeus, e, nessa lógica, não ser
original e não ser nacional é sinônimo de marginalização. Não é só o suposto valor artístico
que importa, mas o fato de se tratar de um tipo literário desviante. A lógica da infantilização
que classifica os textos como imaturos é um aparato crítico que ajuda a determinar padrões
específicos para a fabulação literária. No controle sobre o suposto excesso imaginativo
organizam-se os termos de um padrão normatizador a ser seguido tendo em vista o
hipoteticamente correto e natural desenvolvimento das letras brasileiras.

2.2. A dramatização literária de tipos românticos

O problema da forma é central para a estruturação tanto de Macário quanto de Noite


na taverna, marcados pela busca de um gênero novo, misto. No texto que apresenta Macário,
Álvares de Azevedo deixa claro que a atualização formal compreenderia uma adequação do
antigo ao novo expresso em um extenso desfile de referências, que vão de Shakespeare a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
196
WOLF, Ferdinand. O Brasil literário: história da literatura brasileira. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1955, p. 353.
197
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis
(1908). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916, p. 300.
198
VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 330.

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Dumas passando por Lope de Vega e Ésquilo. O projeto dramático incerto tenta se estabelecer
em bases sólidas, autoridades inegáveis que forneceriam suporte para a novidade. No mesmo
texto o autor lembra que a primeira ideia de Milton para Paradise Lost seria compor uma
tragédia, mas o tema transbordava, crescia como um oceano que não cabia nos “pentâmetros
de mármore da tragédia antiga”. A invenção da nova forma deveria justamente atender à
dificuldade de marcar o espaço de representação do homem para permitir expor as paixões,
mas controlando-as, para que “não haja exageração, nem degenere o papel de fera no papel de
homem”. 199 A estruturação de uma literatura assumidamente apaixonada, violenta e
desesperada desprezaria as convenções dramáticas pela terrível violência do sangue tropical.
Qualificando seu texto como produto de uma imaginação passageira e espontânea,
“um filho pálido dessas fantasias que se apoderam do crânio e inspiram A Tempestade a
Shakespeare; Beppo e o IX Canto de Don Juan a Byron; que fazem escrever Anunciata e O
Conto de Antônia a Hoffmann ou Fantasio ao poeta de Namouna”. Álvares de Azevedo
elenca um quarteto de referências: Shakespeare, Byron, Hoffman e Alfred de Musset, todos
filiados por uma noção romântica de inspiração. Shakespeare reaparece citado em Macário
como se seus personagens participassem da trama. Romeu e Julieta passam a figurar como
representações centrais na análise que Macário faz do romantismo de Penseroso. A
apropriação romântica do dramaturgo inglês inclui o despertar sem esperança como
comparação à tragédia dos dois amantes. A dor é intensificada quando nem a cena trágica
serve de apoio; Macário é o Romeu sem os momentos de amor, sem os momentos de prazer, o
que torna ainda mais amarga sua desventura.
Ainda em Macário, o demônio manifesta sua descrença em relação a referências
letradas: personagens como Don Juan, Hamlet e Fausto não só exemplificariam a
impossibilidade literária de compreensão da mulher como expressariam o ceticismo da vida
cotidiana: “Amanhã em uma taverna poderás achar Romeu com a criada da estalagem, verás
D. Juan com Julietas, Hamlet ou Fausto sob a casaca de um dandy. É que esses tipos são
velhos e eternos como o sol”200, afirma Satã. A miséria dos personagens é a miséria de
homens desgraçados que a literatura teria convertido em tipos ideais.
Nas falas de Satã o repertório letrado advoga a favor do ceticismo e despreza o amor.
A primeira epígrafe de Noite na taverna é uma citação do primeiro ato de Hamlet: “How now,
Horatio? you tremble, and look pale. Is not this something more than fantasy? What think you
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
199
AZEVEDO, Álvares de. Macário , op. cit., p. 117.
200
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 120.

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! 92!

on’t.” A quinta narrativa, “Claudius Hermann”, é também precedida por uma citação do
terceiro ato da peça: “[…] Ecstasy!/My pulse, as yours, doth temperately keep time,/And
makes as healthful music; it is not madness/That I have utter’d.” A última parte da obra,
intitulada “O último beijo de amor”, traz uma clássica fala de Romeu: “Well, Juliet, I will lie
with thee to-night.” Na fala “Bertram”, segundo personagem a narrar sua história, encontra-se
outra referência eloquente quando a ele afirma: “Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de
Marlowe, no peregrinar de Byron, havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?”201
Vida e literatura, personalidade autoral e ficção são confundidos para lançar a ideia
de que Hamlet, com seu romantismo trágico, é o espectro de vários personagens ligados por
uma apropriação romântica. Dante, Marlowe e Byron, romantizados, ligam-se a ele pela
doença que se alastra no tempo e define a condição de autores e obras. Nesses termos o mal
do século eclodiria como apoteose de males de origem shakespeariana. Na mesma chave,
Gennesco: vida acadêmica, de Teodomiro Alves Pereira, tem a seguinte epígrafe atribuída ao
Esprit des Journaux: “Il n’y a personne qui ne fasse son petit Faust, son petit Don Juan, son
petit Manfred ou son petit Hamlet, le soir auprès de son feu, les pieds dans de très-bonnes
pantoufles.” A frase, que abre também o texto da peça Aldo, Le Rimeur, de George Sand, faz
dos personagens e das obras de Goethe, Byron e Shakespeare modelos universais, espectros
incontornáveis que permeariam toda possibilidade de imaginação. A corrupção, a devassidão
e as tragédias românticas são tratadas como dramas inatos da cultura ocidental. O aspecto
misterioso da obra do dramaturgo inglês seria ressaltado também mais adiante, quando
Gennesco, diante de uma noite sinistra, medonha e sem estrelas, afirma: “Por Deus! Eis uma
noite shakespeariana!”202
Em A confissão de um moribundo, Lindorf E.F. França faz três citações que ajudam
a definir os sentimentos agonizantes do protagonista por sua amada, e uma terceira, que
amplia o efeito de suspense. Na primeira: “Eu que a amava, não como Djalma profanando
Adrienne com seus beijos de fogo, mas como Romeu uivando de suspiros e crenças junto a
sua Julieta”203, a pureza de seu amor remete à mais violenta das paixões shakespearianas.
Romeu e Julieta se converte no paradigma romântico por excelência, mais significativo do
que a história de amor narrada em Le Juif Errant, de Eugène Sue. A segunda, “Eu, que a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
201
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, p. 40.
202
PEREIRA, Teodomiro Alves. Gennesco: vida acadêmica. Rio de Janeiro: Typografia Perseverança,
1866, p. 143.
203
FRANÇA, Lindorf E.F. A confissão de um moribundo. O Guayaná, São Paulo, vol. 4, junho de
1856, p. 8.

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! 93!

amava, não com o fogo deliroso e sensual de Hamlet, mas com a singeleza de um irmão”204,
indica a natureza fraterna e não exclusivamente erótica do afeto. A terceira explica o aspecto
sobrenatural de um fenômeno dramático: “És por Cristo alguma dessas visões encantadas, que
se refletiam nos espelhos das feiticeiras de Macbeth.”205.
Shakespeare é usado como paradigma da devoção ao desejo e ao amor, servindo
também como referência para um tipo de horror que lança mão do sobrenatural, mas também
se materializa pelas ações cruéis e mundanas dos personagens. A leitura romântica não se
restringe aos usos na produção ficcional e é legitimada e abalizada pela crítica, que tende a
lhe atribuir os mesmos adjetivos. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, no Resumo de
história litteraria, de 1873, afirma que a originalidade de seu sistema dramático estaria na
oposição ao padrão formal da Antiguidade, regido pelo princípio de separação dos estilos.
A tragédia shakespeariana mescla o sério e o cômico, o patético e o burlesco na
representação de acontecimentos terríveis e singulares, o que tornou o autor um mestre na arte
de “excitar a comoção e o terror”206. Para Fernandes Pinheiro, o dramaturgo é como um gênio
do horror; suas tragédias apontariam para a finitude humana ao ressaltar aspectos burlescos e
patéticos da vida para a exposição do horror. Seu sistema dramático faria conviver o baixo e o
sublime, expondo o desespero, o medo e a consequente perda da razão, que levariam a
desfechos inevitavelmente funestos. Para o crítico, o caminho shakespeariano para a beleza é
o mesmo pavoroso cortejo para a morte.
Araripe Júnior, em artigo para a revista Novidades publicado em 1889, defende que o
mais importante em uma obra é a “autointoxicação literária”, proveniente da “faculdade que
possui o homem de tatear o invisível e sondar o inexprimível”207. O melhor exemplo desse
fenômeno seria Hamlet e sua exploração do mistério que haveria entre as coisas do céu e da
terra. Já Nestor Vítor, em texto de 1900, afirma que Hamlet seria uma obra-prima da tristeza
que se recolhe em si mesma, “pesada, desfalecida, sufocante e devoradora”; Drama que
ressaltaria a morte como redenção, uma vez que o personagem principal “anda constrangido
no mundo dos vivos. Só está à vontade com os mortos”208.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
204
FRANÇA, Lindorf E.F., op. cit., p. 8.
205
FRANÇA, Lindorf E.F., op. cit., p. 11.
206
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Resumo de história litteraria. Rio de Janeiro: B. L.
Garnier, 1873, p. 257.
207
JÚNIOR, Araripe. Obra Crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960, vol. II (1888-1894), p.
158.
208
VÍTOR, Nestor. Obras Críticas de Nestor Vítor. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, vol. I, pp.
335-336.

!
! 94!

A morte desponta como o motivo central da obra de Shakespeare, e Hamlet é o


personagem fúnebre que dela se aproxima por rejeitar o mundo dos vivos. A atração exercida
pela morte, segundo Nestor Vítor, seria o grande tema do teatro shakespeariano, que só
poderia ser compreendido dentro das categorias cristãs de céu e inferno. O segredo misterioso
do abismo e da queda configuraria a força de sua imaginação, “e a atração do abismo lá
embaixo é a força que põe em movimento esse drama único e inteiro”209.
A sedução fatal, o impulso para o abismo, teria como pano de fundo um “gosto pelo
desespero e pela obscenidade”210, fazendo com que “algumas palavras sublimes, algumas
cenas profundamente humanas se percam entre esses dois monstros e sejam depressa abafados
por eles”211. Nesse drama unívoco, “há forças que chamam para o alto, mas há forças que
atraem para o abismo também”212. Em outras palavras, trava-se um embate da vida com a
morte, do altivo com o baixo, da alma com o corpo, do belo com o horrível. Apropriado na
chave romântica, Shakespeare desponta como um mestre do horror que expõe a tragédia
romântica do desejo e explora os insondáveis mistérios que assombram a vida entre o céu e a
terra. Não por acaso a epígrafe de As mulheres perdidas, livro de Leo Junius, pseudônimo de
José da Rocha Leão, publicado em 1858, é a fala de Macduff em Macbeth: “Horror! Horror!
Horror!”
Lorde Byron é outra referência incontornável para a prosa ficcional do romantismo
veiculado em periódicos acadêmicos. Símbolo maior do cinismo poético, o poeta aparece
citado inúmeras vezes. Macário diz humildemente que sua única semelhança com Don Juan
de Byron é o fato de enjoar a bordo, e afirma: “O enjoo é tudo quanto há de mais prosaico.
Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron ‘whose soul would sicken o’er the heaving
wave’.”213. Em Noite na taverna, a fala de Solfieri é precedida por uma passagem do drama
Cain: “Yet one kiss on your pale clay/ And those lips once so warm! – my heart! my heart!”
Já a parte de Bertram (mesmo nome de um personagem da tragédia Marino Faliero, de
Byron) é apresentada com um trecho de Childe Harold Pilgrimage: “But why should I for
others groan/ When none will sigh for me?” Outra fala de Bertram destaca a referência:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
209
VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336.
210
VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336.
211
VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336.
212
VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 338.
213
AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 118.

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! 95!

Quem eu sou? Na verdade fora difícil dizê-lo: corri muito


mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. – Fui poeta
– e como poeta cantei […] Fui soldado, e banhei minha fronte
juvenil nos últimos raios de sol da águia de Waterloo. – Apertei
ao fogo da batalha a mão do homem do século. Bebi em uma
taverna com Bocage – O português, ajoelhei-me na Itália sobre
o túmulo de Dante – e fui à Grécia para sonhar como Byron
naquele túmulo das glórias do passado. – Quem eu sou? Fui um
poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta – sou um
vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me a
sombra de todos os sóis – beijei lábios de mulheres de todos os
países – e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças –
um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira
noite de embriaguez e de febre – e uma agonia de poeta. Dela,
tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos.214

A imagem do libertino nômade e aventureiro se faz a partir de Bocage, Dante e


Byron, mas com o último a relação é mais intensa. É deste que Álvares de Azevedo se
aproxima para representar as alegrias e agonias do deboche. Jaci Monteiro, em texto de 1862,
já destacava a relação entre os dois autores. Segundo ele, pelo excesso de leitura seria
possível ver na obra de Álvares de Azevedo “esse delírio febricitante, esse arroubo de ideias,
esses rasgos apaixonados, frenéticos e violentos que caracterizam o autor de Don Juan”215.
Em discurso proferido na inauguração da Sociedade Acadêmica Paulista, no dia 9 de
maio de 1850, o autor de Lira dos vinte anos comenta: “Em Byron há Childe Harold e Don
Juan. Childe Harold […] é a vida que se estorce como a serpe na vasca moribunda, é o sangue
que rebenta mais vivo. […] O coração que afana ao derramar das veias.” 216 . Adiante
complementa: “A diferença é que Byron, ainda no satânico do seu rir de escárnio, era menos
infernal que Voltaire […] Byron, sob seu manto negro de Don Juan, guardava no seu peito
uma chaga dolorida e funda.”217. Esse pesar deságua em descrença absoluta, e o sofrimento da
alma desemboca em volúpia física e imoralidade. Perversão e luxúria que remetem à
peregrinação de Childe Harold, considerada o “último pesadelo do ceticismo de um
século”218.
Em Ideias íntimas, Álvares de Azevedo resume seu panteão com versos: “Juntos do
leito meus poetas dormem/ Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron/ na mesa confundidos.”219.
Em Gennesco, Byron aparece também como senhor do ceticismo quando o protagonista
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
214
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, pp. 39-40.
215
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas op. cit., p. 22.
216
AZEVEDO, Álvares de Obras completas, op. cit., p. 678.
217
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 700.
218
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 760.
219
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 780.

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! 96!

afirma: “Meu mestre Byron ensinara-me que os juramentos da mulher eram escritos sobre a
areia”. O poeta inglês é aquele que enaltece as paixões na medida em que ressalta a
perenidade dos sentimentos. A libertinagem resultante do ceticismo de Byron surge
novamente como guia espiritual para os falidos de espírito.
A referência ao poeta inglês é de fato inescapável quando se fala da produção
literária brasileira de meados do século XIX. Machado de Assis, em artigo para a revista
Semana Literária do dia 6 de dezembro de 1866 em que comenta a obra de Fagundes Varela,
defende sua originalidade e rebate uma crítica de Ferreira de Meneses segundo a qual o poeta
fluminense imitaria Byron demasiadamente. Segundo Machado, a referência seria
incontornável, e caberia a Fagundes Varela o mérito de não se limitar a imitar os caracteres
byronianos. A crítica evidencia o papel preponderante do autor de Don Juan na produção dos
jovens poetas que viam em suas obras os protótipos românticos ideais. Byron é como um
mestre na exaltação da perversão, na dramatização incessante do vício e do cinismo. É a
chave de ligação com a imaginação cínica e o patrono perfeito para um tipo de literatura que
se pretendia soturna, sensual e horrível.
E.T.A. Hoffmann é outro nome constante nos textos analisados. Em Noite na
taverna, aparece como autoridade em tramas sinistras como as que serão contadas ao longo da
noite220. Archibald, por exemplo, proclama que será narrada “uma história sanguinolenta, um
daqueles contos fantásticos – como Hoffmann os delirava ao clarão doirado do
Johannisberg” 221 . O escritor alemão interessa aos escritores acadêmicos pelo aspecto
fantástico de suas novelas e contos. Suas histórias situadas entre a razão e a loucura, entre o
delírio e o sobrenatural, viram referência à liberação da imaginação rumo ao extraordinário.
Em Gennesco, encontra-se a seguinte passagem:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
220
Em “A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna”, Cilaine Alves Cunha lembra que,
nessa obra de Álvares de Azevedo, “não apenas os nomes de personagens como também certas cenas de obras da
tradição são programaticamente aproveitadas. O motivo do roubo do corpo da cataléptica foi emprestado de
Noites lúgubres, novela espanhola datada de 1771, de autoria de José Cadalso, traduzida por Francisco
Bernardino Ribeiro e publicada em 1844, na revista Minerva Brasiliense. Aí, o angustiado e deprimido Tediato
tenta roubar o cadáver de sua amada, sendo, no entanto, preso antes de realizar seu intuito. O motivo da
antropofagia Azevedo extrai do Don Juan, de Byron. De outro livro desse autor, o episódio em que Herman
mantém relações de adultério com Ângela após seu retorno é análogo ao de Beppo, em que o personagem
homônimo reencontra, após uma longa viagem, sua Laura casada. Isto sem falar na estilização do incesto entre
irmãos, que Byron alimentou como lenda que ronda sua biografia. Outra lenda a seu respeito é a de que teria por
hábito organizar festas em que prestava culto a caveiras, aludida no crânio de poeta-louco que o velho de Noite
na taverna carrega”. CUNHA, Cilaine Alves. A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna. In:
Itinerários, Araraquara, 22, 115/133, 2004, p. 131.
221
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p. 18.

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! 97!

Sentaram-se e acenderam os charutos. Gennesco quebrou o


silêncio: vais ouvir uma curta mas terrível história, atinge pelo
carregar das cores e caráter de seus dois heróis, as sombras de
um conto fantástico, é porém, pura realidade, e a imaginação de
Hoffmann não conseguiria torná-la mais dolorosa. E novas
garrafas chegam, esgotam-se e renovam-se, e o silêncio
continua. Ao ver aquela meditação Gennesco lembra-se de
Hoffmann a quem um crítico chamou pilar da taverna e que
encostado a uma cadeira rodeado de garrafas e namorando
espumas, delirava seus sonhos extravagantes na excentricidade
borbulhante de uma onda de cerveja.222

Ser o pilar da taverna significa fornecer os argumentos para um tipo bastante comum
no padrão de ficção aqui analisado. Personagens ébrios que contam histórias de horror têm em
Hoffmann um parceiro de fantasia; o suspense de suas narrativas fornece os recursos ideais
para essa modalidade do fantástico. Se Byron é o ébrio devasso, Hoffmann é o embriagado
dos sonhos excêntricos e extravagantes.
Em “O estudante e os monges”, de Couto de Magalhães, a peculiaridade do narrador
é definida pela comparação: “És mesmo um esdrúxulo a gosto de Hoffmann, meu caro
Antônio!”223. Assim como a beleza de uma mulher em “A confissão de um moribundo”, de
Lindorf França,: “donzela meiga e vaporosa como um sonho de Hoffmann.”224. Em Leonel, o
trovador, de Guimarães Júnior, referenda a imaginação de uma condessa: “era amiga dos
contos de Radcliffe, bebeu em Hoffmann aqueles mistérios profundos, que ressumbram
nessas admiráveis páginas.”225. Já em “A fada do mistério”, de Félix Xavier da Cunha, o
escritor alemão compõe o clima de uma cena fantástica: “E era como uma dessas visões dos
contos de Hoffmann, como a sombra de Blanca resvalando a furto em noite de Luar.”226. Com
Hoffmann, o fantástico encontra, assim, o macabro na perturbação da loucura. Ele se converte
no mártir do delírio, referência para tudo que é estranho, que não pode ser explicado pela
razão.
Membro da galeria de referências, Alfred de Musset é constantemente evocado. Em
“Poverino”, de J.F. de Meneses, por exemplo, aparece como epígrafe: “Pour écrire l’histoire
de sa vie, it faut d’abord avoir vécu; aussi n’est-ce pas la mienne que j’écris.” Nesse exemplo,
depreende-se o apelo à experiência, e as histórias de cinismo ganham mais força quando
confundidas com a realidade, ainda que sem o compromisso de representá-la literalmente.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
222
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 46.
223
MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 8
224
FRANÇA, Lindorf E. F., op. cit., p. 15.
225
JÚNIOR, Guimarães. Leonel, o trovador (phantástico). Correio Paulistano, 1862, p. 23.
226
CUNHA, Félix Xavier da., op. Cit., p. 8.

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! 98!

Não se perde a noção da literatura como artifício, mas ela se mescla com a vida. Jogando com
os limites da representação do vivido, busca-se mais apelo, mais comoção. Em As mulheres
perdidas, de Leo Junius, um dos personagens, antes de começar a ouvir uma história no clima
febril de uma taverna, comenta com o amigo: “Estás poético hoje, meu boche, citas Jacques
Rolla, o libertino herói de Alfred de Musset.”227 As histórias se confundem, o personagem
poético é posto ao lado do protagonista das narrativas contadas pelos ébrios. Jacques Rolla
acompanha os narradores e se transforma em parte da cena.
No segundo capítulo de Gennesco, de Teodomiro Alves Pereira, a definição de um
estudante paulista é feita segundo a seguinte comparação: “Byron e Musset, e o diabo e seu
acólito, eram seus poetas favoritos, tinha-os a cabeceira, como se diz que Alexandre tinha o
seu Homero.”228 O escritor francês é lido como um sacerdote de Byron. Novamente, vida e
literatura se confundem e marcam o padrão de leitura dos textos. Byron e Musset são tratados
como devassos, como se seus personagens fossem meros reflexos da personalidade libertina
desses autores. Em grande medida, a apropriação romântica que se faz deles se estrutura na
diluição da relação entre autor e obra, e o sucesso literário é atrelado à mitificação do nome.
Byron e Musset não são meras assinaturas ou gênios artísticos, mas exemplos vivos daquilo
que expressam como arte. Na introdução do livro de Teodomiro Alves Pereira, encontra-se a
seguinte passagem:

Ora, perdido em meio dos prazeres, com a fronte quente, o peito


em palpite e as mãos trementes, eu sonhava ao ruído dos
festins, ao tinir dos copos, em voltar louco de uma valsa, um
conto fantástico, a perder-se ao longe nas sombras acumuladas
onde a fantasia, tornando-o da terra, o deitava em delírio. Eu
via, então, Musset, Hoffmann, Achin D’Arnim; e com o
sentimentalismo de Lamartine ou a filosofia positiva de Vigny,
eu desenhava em rudes traços, mão pesada, e lápis rombo as
formas belas de Brigitta, Agandeca, Isabel, ou Katty Bell – a
inglesa amante, castamente adúltera, do pobre Chatterton.229

A contemplação da amante imersa em fantasias reúne uma galeria romântica de


autores com personagens que, confundidos, servem ao propósito comum de povoar a
imaginação do jovem. A galeria de imagens não distingue realidade e ficção; sua fantasia

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
227
JUNIUS, Leo. As mulheres perdidas: Typos contemporâneos. In: Romances e typos. Rio de Janeiro:
Typografia Americana de José Soares de Pinho, 1858, p. 121.
228
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 6.
229
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. XVIII.

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! 99!

transforma tudo em objeto de contemplação e inspiração fantástica. Um dos exemplos mais


marcantes dessa articulação entre vida e literatura se dá com Werther, de Goethe. Macário,
por exemplo, lamenta: “Ai daquele a quem um verme roeu a flor da vida como a Werther!”230.
Os sofrimentos do jovem Werther, romance de 1774, é um marco do desespero que o amor
romântico pode acarretar. Por ser escrito em primeira pessoa e por enfatizar a intensidade da
paixão do jovem por Charlotte, transforma-se em paradigma da confissão autoral. O texto
parece extrapolar os limites da literatura para se converter em modelo comportamental,
trágica lição de vida. Na introdução de Gennesco, o narrador proclama que se aceite como
uma grande lição as páginas sublimes em que René, Werther, Obermann, Konrad, Manfred
exalam o seu profundo amor; elas foram banhadas de suas lágrimas ardentes, pertencem mais
ainda à história filosófica do gênero humano do que aos anais poéticos231. As vidas contadas
viram modelos pela sinceridade com que supostamente foram escritas, pelo sofrimento que
hipoteticamente refletem. São reverenciadas como lições oriundas de momentos
superlativamente belos; dores e tragédias que edificam quando alcançam o sublime.
No jogo que determina a dramatização de tipos românticos, Álvares de Azevedo
também entra em cena. Mesmo com uma obra curta, seu nome passa rapidamente a figurar no
cânone boêmio. Em Trindade maldita, de Franklin Távora, um personagem pergunta a outro
se conhecia a obra do escritor paulista e este responde: “Só apreciei Noite na taverna.”232. No
conto “A vingança de um irmão”, de Galvão Bueno, publicado no periódico Kaleidoscópio
em 1860, a segunda parte é aberta por um trecho de Macário: “Abrir a alma ao desespero é
dá-la a Satan.”233. Sílvio Romero, por sua vez, considerando que Noite na taverna teria
“alguma beleza entre algumas extravagâncias e afetações”234, toma-a como referência para
julgar a obra de Franklin Távora: “A trindade maldita é uma série de contos ultrarromânticos
no estilo de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, são fantasias de um rapaz de 18
anos.”235
No processo de confecção da linhagem estética que serve de modelo e confere
sentido e legitimidade aos projetos literários em questão, autores mitificados e personagens

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
230
AZEVEDO, Álvares de. Macário , op. cit., p. 119.
231
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. VII.
232
TÁVORA, Franklin. A trindade maldita. Diário de Pernambuco, p. 4, Pernambuco, 1862.
233
BUENO, Galvão. A vingança de um irmão. Kaleidoscópio, Instituto Acadêmico Paulistano, São
Paulo, 1860.
234
ROMERO, Sílvio. Compêndio de história da literatura brasileira. Luiz Antônio Barreto (org.). Rio
de Janeiro: Imago Editora; Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 2001, p. 212.
235
ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 264.

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!100!

positivados encenam essa dramatização de tipos românticos. O grande número de citações


que aparecem nesses textos ajuda a identificar a sua lógica de circulação. Por se tratar de uma
comunidade de leitores relativamente fechada, formada basicamente por jovens ligados à
academia (exceção feita a Álvares de Azevedo, que conquistara público mais amplo), parece
haver certa sintonia de repertório entre autores e público. Escritores, obras e personagens são
constantemente citados sem maiores explicações, como se houvesse uma suposição de
entendimento por parte de quem lê. Ainda que funcionem também como exibição de
erudição, o que confere valor ao texto e ao próprio autor, há ao menos a previsão de que o
leitor tenha alguma familiaridade com as citações e seja capaz de se impressionar e situar a
obra em uma tradição.
Em “A literatura na evolução de uma comunidade”, Antonio Candido afirma que, a
partir da década de 1830, em especial com a formação da Sociedade Filomática em 1833, os
estudantes paulistas se organizam e criam certa consciência de coletividade configurada por
uma sociabilidade específica e por uma atividade permanente do corpo estudantil: a
literatura 236 . A formação de um grupo peculiar resultaria na estruturação de um senso
corporativo e de uma “expressão intelectual própria” cujos pontos altos seriam a formação da
Sociedade Epicureia, em 1845237. Esse “corpo acadêmico” construiria um ethos particular
com base nas ideias de boemia e literatura e daria forma ao “tipo clássico do estudante
paulistano”238. Como grupo destacado do restante da cidade, articularam um “sistema de
intercâmbio literário” como mecanismo dinamizador da circulação de ideias e bibliografia:
“Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados, circulando de qualquer forma, na
falta de bibliotecas e livrarias.”239.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
236
CANDIDO, Antonio. A literatura na evolução de uma comunidade. In: Literatura e sociedade. Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. Sobre o ambiente acadêmico paulista ver ainda FRANCHETTI, Paulo. O riso
romântico: notas sobre o cômico nas poesias de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos”, in: Remate de
males. Campinas, n° 7, 1987. p. 717; e CAMILO, Vagner. Risos entre pares: poesia e humor românticos. São
Paulo: Edusp/Fapesp, 1997.
237
Antonio Candido define a sociedade Epicureia, formada por nomes como Aureliano Lessa, Bernardo
Guimarães e Álvares de Azevedo como: “Espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens
procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir
o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos
personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade”.
CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 160.
238
Lembramos que muito da mitificação da vida estudantil paulista se deve à série de artigos escritos
por Pires de Almeida para o Jornal do Commercio entre 1903 e 1905, nos quais reporta as várias aventuras
supostamente vividas pelos estudantes. Eles foram publicados pela Empresa Gráfica carioca em 1962 sob o título
A escola byroniana no Brasil.
239
CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 161.

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!101!

As repúblicas constituiriam um público, um auditório permanente, que daria aos


acadêmicos a possibilidade de divulgar suas produções. Ainda segundo Candido, foi o
romantismo que forneceu as bases ideológicas do corpo acadêmico, divididos em três
categorias “nacionalismo indianista, sentimentalismo ultrarromântico e satanismo. O
primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos”240. Esse “satanismo”241 como
expressão de um romantismo negro prescinde da configuração da tradição soturna
apresentada na lógica das citações; é construído com base nas referências dramatizadas que
conformam um repertório a ser reproduzido e apropriado. José de Alencar, em Como e porque
sou romancista, comenta que, muito antes de ser reconhecido como escritor, escrevia nas
paredes de seu dormitório como forma de inserção no universo de experimentação das letras.

O único tributo que paguei então à moda acadêmica, foi o das


citações. Era nesse ano bom-tom ter de memórias frases e
trechos escolhidos dos melhores autores, para repeti-los a
propósito. /Vistos de longe, e através da razão, esses arremedos
de erudição, arranjados com seus remendos alheios, nos
parecem ridículos; e todavia é esse jogo de imitação que
primeiro imprime ao espírito a flexibilidade, como ao corpo o
da ginástica. /Em 1845, voltou-me o prurido de escritor; mas
esse ano foi consagrado à mania, que então grassava, de
baironizar. Todo estudante de alguma imaginação queria ser um
Byron; e tinha pôr destino inexorável copiar ou traduzir o bardo
inglês. /Confesso que não me sentia o menor jeito para essa
transfusão; talvez pelo meu gênio taciturno e concentrado que já
tinha em si melancolia de sobejo, para não carecer desse
empréstimo. Assim é que nunca passei de algumas peças
ligeiras, das quais não me figurava herói e nem mesmo autor;
pois divertia-me em escrevê-las, com o nome de Byron, Hugo
ou Lamartine, nas paredes de meu aposento, à Rua de Santa
Tereza, onde alguns camaradas daquele tempo, ainda hoje meus
bons amigos, os Doutores Costa Pinto e José Brusque talvez se
recordem de as terem lido.242

Mais do que simples arremedo de erudição, a moda acadêmica das citações, é tratada
como um exercício, um jogo capaz de imprimir flexibilidade ao espírito e com isso formar as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
240
CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 162.
241
Antonio Candido define o satanismo literário como “a manifestação mais típica dessa singularidade
do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos
valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que
envolvem a vida acadêmica de São Paulo em uma atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o
sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o
observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente”. CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 164.
242
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Pará de Minas: M&M Editores, 2003, p.
19/20.

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!102!

diretrizes dos escritores. Aos jovens estudantes caberia a tarefa de repetir modelos como
participação primária no mundo literário. Traduzir e copiar Byron é prerrogativa necessária
para que se possa atingir a autonomia. Ao problema da construção de um panteão literário
lido e relido – muito devido à escassez de livros, também retratada por José de Alencar em
outro trecho do relato – acrescenta-se a questão da originalidade diante de um conjunto de
textos que funcionam quase como manuais de tons e de regras para a imaginação.
Se, como afirma João Adolfo Hansen, a invenção da originalidade romântica e de
seus corolários ideais de “liberdade de expressão” e “ausência de regras” configura a livre
concorrência no universo das artes243, os critérios de atribuição valorativa na lógica da estética
naturalizante do sublime se estruturam, ao menos no caso dos escritores analisados, também
graças a um elenco específico de citações legitimadoras. Assim como os autores de ficção
gótica estabeleceram modelos como Shakespeare e Milton com a finalidade de construir uma
forma literária supostamente nova; os artífices do romantismo acadêmico se valeram de um
elenco parecido para formatar um tipo de novidade ficcional baseada em um repertório não
simplesmente imitado, mas constitutivo do discurso autorreferencial.
O dramaturgo inglês é apropriado como a chave da relação com a natureza nos
romances góticos, no Brasil converte-se também no mestre da ausência de regras que
possibilitaria uma representação mais íntegra das paixões humanas. Em ambos os casos a
noção de originalidade é tributária de determinado repertório de modelos, e a invenção que se
pretendia livre dos paradigmas clássicos passa a operar por meio de dispositivos que
simbolizam uma pretensa autonomia. A necessidade de referências, no entanto, parece
apontar justamente para a debilidade da suposta independência; o elenco cultuado acaba
servindo de suporte para uma ficção que se percebe incipiente e em estado de infância. O
tributo aos nomes citados oferece apoio a um edifício literário que se posiciona como
subalterno em relação a literaturas consideradas mais adiantadas na linha positiva do
progresso oitocentista.
A originalidade que entra em cena como novidade imperativa é construída em grande
medida da originalidade absoluta do outro. Na mitificação do heroísmo romântico expresso na
relação imbricada de vida e literatura tem-se uma novidade explicitamente tributária,
realizada como sincronia sentimental do mal do século. A evocação de um ethos romântico
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
243
Para o crítico, a originalidade é transformada a partir do século XVIII em valor de troca no campo
artístico, o que leva as obras a serem recebidas como mediação intersubjetiva cuja intensidade variaria de
acordo com a “genialidade” do autor. HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 21.

!
!103!

surge como filiação literária naturalizada tanto pelo espírito do tempo quanto pela suposta
universalidade do efeito, difundida pelos debates estéticos a partir do século XVIII.
No horizonte do sublime, o apelo patético cria a sensação de transcendência que
permite uma compreensão natural do efeito produzido, a partir da qual regras e fronteiras
perdem sentido. O que parece estar em jogo não é simplesmente a ausência de regras, mas
uma relação particular com uma tradição intencionalmente inventada, tendo em vista a
definição de determinado sentido de literatura. Na articulação entre vida e obra literária, essa
tríade substancializada propaga modelos de experiências que integram práticas literárias com
conceitos-chave como genialidade, originalidade e subjetividade. O drama romântico se
converte em problema espiritual coletivo, e o ceticismo forjado literariamente se transforma
em mecanismo de atribuição de sentido e princípio de uma solidariedade estética que organiza
as lógicas de produção e recepção.
Nas representações e apropriações do cinismo literário, a obra é o reflexo
característico da vida de escritores, o que forja não só um padrão estético, mas também uma
imagem para o personagem-autor. Inventar a boemia significa inventar uma instância na qual
esses escritores possam interagir e constituir a própria identidade, na qual os textos funcionem
como o retrato de uma nova geração de literatos cuja persona ébria e romântica de cada um se
converte em literatura. As noites de excessos e os cenários de tavernas e ruas escuras
funcionam como representações ideais que, presentes na imaginação romântica, são
atualizados nas horas de leitura. Aquilo que exibem como repertório de práticas é, sobretudo,
um esforço de representação, imagem pretendida dos prazeres e desilusões que a literatura
europeia elegeu como tema e que acabou por fortalecer um tipo de boêmio como personagem
representativo do século XIX. Essa figura entra em cena dramatizando o niilismo e o cinismo,
percorrendo caminhos turvos na busca desesperada por algum prazer imediato que adie a
encenada ausência do absoluto.
Os “jovens românticos” são assim projetados de modo a fazer da ficção relato
ampliado dos dramas de um determinado grupo. Estes dramas são alicerçados em uma
tradição literária específica e em representações idealizadas de padrões comportamentais. Na
simulação do prazer se refaz a emoção da leitura que reinventa a vida imaginária da boemia.
O idealismo romântico afirma o absoluto em detrimento da circunstância, ao mesmo
tempo que, ironicamente, se ressente da ausência de totalidade ao tentar negar a perenidade de
valores e sentimentos. Assim, formaliza um patrimônio letrado cético para divulgá-lo como
padrão universal. A ironia da apropriação consiste basicamente em propagar o cinismo

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!104!

literário como repertório transcendental, e os mesmos nomes que encenam a decadência da


poesia são convocados para constituir a base de um sistema poético.
Imitar Byron ou compor personagens como Hoffmann, mais do que uma proposta
mais cosmopolita de filiação, implica a opção irônica de um patrimônio que simbolize os
valores caros ao cinismo programático de um romantismo macabro. A possibilidade de contar
com um “auditório permanente” – cujas prerrogativas patéticas de leitura são determinadas
por padrões reconhecíveis de acesso ao texto –, permite ainda a encenação das referências
como um jogo de exibição erudita na qual o ceticismo se esconde para deixar ver os valores
convencionais do conhecimento como a substância da degeneração que se encena. Nessa
chave, o problema do alto e do baixo não se aplica exclusivamente ao sentido da oposição
operativa do sublime e é, ainda, a marca que expressa o uso de uma tradição que inspira pela
desintegração que propõe.
Não só o repertório bastante específico de temas e eventuais problemas estruturais
explicam a circulação restrita desses textos. Esse corpus forjado para um grupo muito
específico de consumidores traz em suas definições marcas de exclusividade, evidenciadas na
exibição exagerada das referências. Os nomes circulam encenando a veiculação a uma
herança romântica convocada para, ao mesmo tempo, legitimar uma produção incipiente e de
alcance restrito e para garantir sua territorialidade específica. O efeito é o da perversão
respaldada nos limites de uma circulação segura, e a exibição do horror literário, que implica
abuso de delitos, tem o aval de um cinismo “canonizado” e previamente conhecido.
É possível perceber um projeto literário forjado nos cânones de um tipo específico de
romantismo. A predominância do tom soturno não inviabiliza a construção de um patrimônio
cultural celebrado por um grupo que pretendia despontar como legítimo defensor das letras
nacionais. Nos textos analisados não se pode estabelecer um consenso entre a proposta
indianista e o caminho de filiação proposto por Álvares de Azevedo, por exemplo, fazendo
com que as disputas pela definição de sentido para a produção literária sejam evidentes.
Entre o horror literário e o indianismo há uma diferença não apenas temática, mas
também de ordem patrimonial no que diz respeito à definição do cânone. A noção de
patrimônio literário expresso na lógica da dramatização literária de tipos românticos
pressupõe uma concepção positiva e ideal do corpus literário. É bastante claro que a
perspectiva romântica é onipresente no contexto das disputas e assume tons mais escuros
dependendo das circunstâncias. O idealismo do esforço canônico reproduz os mitos

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!105!

individualistas, seja para afirmar a riqueza das belas paisagens brasileiras, seja para glorificar
a imagem “da bela alma revoltada e revolucionária”244.
A crítica literária tenderá a reproduzir as mesmas categorias, o que implicará uma
atribuição valorativa segundo o psicologismo definidor da autoria ou da leitura
substancializada da abordagem temática. No caso de Álvares de Azevedo, por exemplo, a
imagem de enfant terrible das letras oitocentistas funcionará como personificação mítica de
uma possibilidade frustrada: a do jovem gênio rebelde cuja morte prematura levaria consigo
um pouco das esperanças de desenvolvimento de uma civilização brasileira. O contexto em
que se celebrava esse tipo de personificação, em meados do século XIX, expresso, por
exemplo, nos discursos fúnebres em homenagem ao poeta, indica a dimensão positiva do
entendimento literário, e o ceticismo alardeado como fundamento só se realiza como
contradição. Sua morte encerraria as possibilidades de uma imaginação fantástica voltada para
o lado mais negro do romantismo, como se fosse o fim de uma era incipiente marcada pela
juventude e pela imaturidade. Sua curta obra ficcional se transformaria na estranha exceção da
literatura brasileira oitocentista, e caberia aos textos construídos segundo as mesmas matrizes
a permanência nas sombras.

2.3. A proximidade do estranho: do interdito ao fantástico

Publicada postumamente em 1855, Noite na taverna transformou-se em um modelo


cuja recepção oscilou entre a celebração da imaginação romântica e a condenação de seus
exageros245. No primeiro capítulo, “Uma noite do século”, uma fala de Archibald é bastante
eloquente acerca do quadro das situações fantásticas e macabras que marcam o texto. Depois
de um conviva brindar a imortalidade da alma, ele ordena que todos se calem e questiona: “A
imortalidade da alma! pobres doidos! e porque a alma é bela, porque não concebeis que esse
ideal possa tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis
crer que ele morra? Doidos!” 246. O ceticismo que duvida da imortalidade apontando a
perenidade de sua beleza abrirá as portas para todo tipo de perversão e crueldade. Nas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
244
HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 21.
245
Sobre a recepção da obra, ver: Um sussurro nas trevas, dissertação de Jefferson Donizete de
Oliveira apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em
2010.
246
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna , op. cit., p. 16.

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!106!

histórias apresentadas pelo grupo de pervertidos, a ficção enfrenta o niilismo e oferece o


desespero e o crime como respostas.
Solfieri é o primeiro a tomar a palavra. Narra uma aventura que vivera em Roma
quando, depois de uma noite de orgias, acorda em um cemitério e se apaixona pelo que
imagina ser o cadáver de uma mulher. Conjugando o culto ideal da beleza feminina com os
encantos da morte, a sedutora amante defunta representa a imortalidade fria do desejo na
palidez do corpo inerte. O culto se completa quando, duas semanas depois de acordar, a
amada de Solfieri realmente morre, ele a enterra e manda fazer uma estátua para imortalizar
suas formas.
Bertram toma a palavra e outra galeria de horrores se apresenta: assassinato,
infanticídio, traição, tentativa de suicídio e antropofagia. Assim como o narrador anterior,
seus infortúnios são motivados pelo desejo sexual. Ao se envolver com mulheres voluptuosas
ao redor do mundo conhece toda sorte de maldade. O sexo perverte e a mulher é a figura
sedutora que invariavelmente leva à depravação. Fonte inesgotável de toda luxúria é o motivo
perturbador, a origem das desgraças. O ápice da perdição de Bertram é o canibalismo, limite
da condição errante que a busca pelo prazer carnal lhe impôs.
A história de Gennaro envolve adultério e vingança. Depois de engravidar a filha de
seu mestre e de se deitar com a esposa dele, escapa de uma tentativa de assassinato e volta
para se vingar. Encontra a mulher morta pelo marido, que se suicidara. Faz questão de narrar
sua decomposição: “Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça… – Era Nauza! […]
mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora,
as faces macias e colo de neve […] Era um corpo amarelo […]”247. O apodrecimento torna-se
alvo de contemplação na secularização absoluta do corpo, e o espetáculo da morte é também a
exibição da carne em putrefação no asqueroso triunfo do horror.
A narrativa de Claudius Hermann segue os mesmos padrões. Apaixonado pela
duquesa Eleonora, toma-a inicialmente contra sua vontade, até que um dia volta para casa e a
encontra morta ao lado do cadáver de seu marido. Ele ri de sua tragédia com uma “risada
sombria como a insânia – fria como a espada do anjo das trevas”248. Claudius é um devasso
arquetípico, encarna o boêmio típico em seu culto pelo luxo e pelas orgias. É uma figura
modelar que sintetiza os traços de uma proposta literária calcada no excesso e na perversão.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
247
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna O, op. cit., p. 55.
248
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna , op. cit., p. 77.

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!107!

Na última história, Johann representa um tipo romântico um pouco diferente de


Claudius. Ao dormir com a irmã e matar seu irmão, vê-se em situação desesperadora e não
encontra, como o narrador anterior, motivos para sorrir. Sua errância não é feita só de
prazeres e crueldades, também é marcada pela culpa.
A força da obra de Álvares de Azevedo pode ser medida pelas tentativas de
emulação das quais A trindade maldita: contos de botequim, de Franklin Távora, é uma das
mais bem-sucedidas. Conta os dramas de três jovens, Jorge, Eduardo e Carlos, que se
hospedam na taverna de Germano. Depois de começarem a beber, Carlos sugere que cada um
conte uma história macabra. Ele é o primeiro. Começa definindo-se como “um perdido, um
réprobo excomungado e satânico de arvorar na câmara modesta, casta e singela da virgem o
pavilhão negro ensanguentado da desonra e do crime […]”249. Asseverando sua condição
errante, conta como se apaixonou pela filha de seu protetor e se envolveu com sua esposa em
uma trama que o leva a assassinar o marido traído por engano: “Não sei como não rolei sobre
essa matéria ensanguentada e lívida. Não foi somente espanto e estupefação o que me tomou
nesse crítico momento; foi um terror de asfixiar”250.
Terminada a sangrenta narrativa, Jorge começa a contar a sua, com uma introdução
não menos enfática: “A minha história também é terrível como um antro de bandido, ou qual
uma pistola em mãos homicidas, prestes a desfechar-se sobre uma vítima indolente.”251 A
trama começa quando, em um baile, apaixona-se por uma espanhola casada e a persegue pela
noite escura, marcando sua casa com o próprio sangue para reconhecê-la à luz do dia. O
marido descobre a traição e mata a mulher, mas quando encontra o cadáver de sua amante,
Jorge ainda tem um último momento de prazer: “Queres sabê-lo? Nesses restantes de noite fui
ainda beber algumas gotas de deleite a essa vulva úmida e fria de espanhola, ouvistes?”. A
cena de necrofilia encerra a história.
A fala de Eduardo também se inicia enfaticamente: “O álbum da minha vida está
repleto, em todas as suas páginas de sangue se acham escritas, mas com caracteres de luto: é
um perfeito livro negro.”252 Sua vida de pecados é marcada pelo assassinato de um casal, o
enforcamento de um homem e o estupro de uma mulher: “Quando amanheceu de todo, e eu
voltei ao teatro infernal daquela cena de horror […] o enforcado era meu pai, e a mulher das
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
249
TÁVORA, Franklin. A trindade maldita: contos de botequim. Diário de Pernambuco, Pernambuco,
abril de 1862, p. 8.
250
TÁVORA, Franklin. Op. cit., p. 8.
251
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 8.
252
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 9.

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!108!

ruínas, em cujos lábios friorentos eu delibaria alguns átomos de gozo, era minha mãe.”253
Parricídio, incesto e necrofilia marcam a tragédia pessoal de Eduardo, revelada em uma noite
de embriaguez cujo desfecho também é surpreendente. Depois de ouvir todas as histórias, o
taberneiro revela ter algum tipo de parentesco com todas as vítimas e se vinga matando os
três. Os desgraçados pagam com a vida os horrores cometidos na vida desregrada.
A dramatização de uma sexualidade secular aponta para o vício, o mal do século,
erro irremediável. As orgias, as noites de excessos, os cenários de tavernas e de ruas escuras
funcionam como palcos do niilismo e do cinismo, caminhos turvos na busca desesperada por
algum prazer imediato. A melancólica celebração da carne tem como pano de fundo um
desespero simulado, que transforma decadentes em heróis imorais, figuras estigmatizadas
pelo assombroso espírito do tempo. Ao aludirem a um passado maldito, os narradores fazem
dos espaços fechados uma espécie de confessionário maldito.
Se na obra do Marquês de Sade, por exemplo, universos privados como o boudoir
são palcos de perversões apresentadas explicitamente ao leitor, aqui as aventuras narradas em
tavernas escuras e quartos de estudante são lembrança macabra. As orgias são apresentadas
como casos de um passado que escapa e supostamente deveria permanecer em segredo. A
evocação dos horrores se faz necessária como forma de expurgar fantasmas erguidos como
troféus da vida pervertida. Ao reviver pesadelos convertendo os espaços de enunciação em
cenários de horror, mistura-se o culto do prazer com a desgraça.
Eliane Robert Moraes, em Sade: a felicidade libertina, afirma que a viagem é um
traço comum aos libertinos, pois “a vida no mundo do deboche implica constantes mudanças,
não há libertino que não viaje”254. Tomando o mundo como um grande laboratório para
experiências e palco sem fronteiras para a diversão, os devassos de Sade acumulam êxitos e
prazeres ao longo de jornadas intermináveis. Reproduzindo em cenários variados a essência
do deboche, a viagem libertina afirma o caráter universal do crime e exalta suas inúmeras
possibilidades de manifestação. Na interminável exploração de novos lugares, reproduz-se a
insaciabilidade de um desejo que não encontra limites.
O tema da peregrinação é bastante comum aos autores góticos, mas as viagens estão
geralmente ligadas à infortúnios. Os protagonistas experimentam percursos macabros como
forma de exploração do horror, e o desenvolvimento das tramas se dá como um caminho sem
fim, tentativa sempre frustrada de fuga do sinistro. No caso de Sade, a viagem se traduz em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
253
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 10.
254
MORAES, Eliane Robert. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994, p. 3.

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!109!

acúmulo de prazer e conhecimento, oportunidade para o deleite e para a busca da felicidade


na forma da ciência sexual e da arte erótica 255 . Na lógica do romantismo negro, as
peregrinações e orgias também são marcadas pelo prazer, mas não há uma dimensão positiva
que se traduza como um saber. Resta aos protagonistas o peso da culpa e a tentativa de
atenuação pela confissão. Se os “turistas esclarecidos, filósofos aventureiros” de Sade tomam
o mundo como laboratório onde a devassidão pode se converter em aprendizado, para os tipos
céticos de Álvares de Azevedo e Franklin Távora resta apenas o prazer de uma narração às
vésperas da punição final.
Os cenários onde se anunciam os horrores são invariavelmente marcados por uma
escuridão sufocante e doentia. Em tavernas, nas ruínas de um mosteiro ou em um quarto de
estudante, os espaços não funcionam como lugares do prazer pleno. São palcos para a
apresentação de um teatro do passado onde os protagonistas se desafiam na exposição dos
horrores. Se o castelo sadiano faz do claustro o cenário da libertação, “triunfo do libertino
sobre o espaço e o tempo”256, a taverna é a imagem da deterioração pela culpa: é onde os
criminosos anunciam o crime como marca e prenúncio da ruína. O álcool funciona mais como
elemento desencadeador da fala do que como instrumento propulsor do crime e alimenta mais
a fabulação do vício do que o próprio.
Se temos na literatura libertina do marquês o horizonte de um aprendizado filosófico
pela prática – como em de Les infortunes de la vertu –, no caso dos escritores brasileiros a
arte de contar histórias aparece em primeiro plano. Os protagonistas se destacam pelos
horrores que conseguem disponibilizar para a plateia de iguais. Como oradores, devem
prender a atenção de seus semelhantes pela habilidade narrativa ao traduzir a degeneração do
destino de cada um.
Se na lógica da libertinagem a violência das sensações se traduz em felicidade, na
chave do horror romântico é convertida em motor da culpa e motivo de punição. Os finais
sangrentos de Noite na taverna e Trindade maldita punem os criminosos, e os assassinatos
restituem certo sentido de ordem moral. Nesse caso, a ordem ritualística é a confissão seguida
da punição. Isso não torna as tramas apologias da moral cuja finalidade é expressar a
possibilidade da edificação, mas as aproxima da lógica do romance gótico inglês do século
XVIII, no qual normalmente não há crime sem castigo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
255
MORAES, Eliane Robert, op. cit., p.51.
256
MORAES, Eliane Robert, op. cit., p.103.

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!110!

A restituição ainda que precária de um sentido de moralidade garante uma


experiência particular de acesso ao horror, e a morte dos criminosos ou sua infelicidade
definem a alteridade soturna dos personagens. É como se o leitor estivesse diante de um
espetáculo estranho em que o horror faz sentido pelo exagero. A aspiração à universalidade
construída na alusão a um repertório de amplo alcance transforma-se novamente no perigo
distante da absurda taverna imaginária onde a lembrança do horror só é parcialmente
atualizada.
O arrependimento expresso em muitas das falas é a marca de um vício
conscientemente esvaziado em que o crime é ao mesmo tempo projeto e acidente. Expressão
de um cinismo doentio, limitado pela consciência moral embutida. Se em Sade o boudoir é o
palco das paixões libertinas, “delicioso ninho”, como define Eugénie em La philosophie dans
le boudoir, os espaços fechados do “horror acadêmico” funcionam como lugares de
experimentação do horror como fenômeno narrativo nos quais o ambiente hostil por vezes se
transforma no cenário da punição. Não há, no entanto, a possibilidade da redenção, e os
infortúnios finais funcionam como ponto-limite do horror que consome e resolve o problema
da narração. O desfecho apoteótico enfatiza a corrupção, mesmo recusando seu triunfo: não
há a felicidade assustadora do escritor francês nem a redenção absoluta recorrente nos
romances góticos; resta o fim como consolo.
A não perpetuação dos crimes pelo arrependimento parcial ou pela morte violenta
dos protagonistas surge como limite estratégico. Se o jogo de dramatização de tipos autorais e
a construção mítica de personagens arquetípicos refazem um vínculo explícito com o publico
leitor, a metanarrativa de horrores espetaculares forja a diferença necessária para que o limite
entre transgressão acordada e fabulação do horror funcione.
A vingança de um irmão, de Galvão Bueno, é mais uma história de um devasso,
Henrique, amaldiçoado no nascimento. Ele mesmo afirma: “Algum mistério envolve o meu
nascimento, talvez algum crime bem horrível borrifasse de sangue o meu berço infantil […]
não sei quem são meus pais”.257 Criado por pais adotivos, apaixona-se pela irmã Júlia, mas
viaja para o Rio de Janeiro para esquecer o amor e estudar. No entanto, entrega-se à
devassidão, perdendo-se entre orgias e prostitutas. Narra sua trajetória afirmando: “O
criminoso pode descrever a sangue os passos que o levou à perdição, porque cada passo é um

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257
BUENO, Galvão, op. cit., p. 18.

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crime e cada crime glória para o seu nome.”258. Depois de experimentar os sabores da vida
desregrada que o conduz ao crime, passa a procurar uma virgem para se casar, imaginando
“quanto é bela a imagem da virtude e hediondo o vulto do vício!”259.
Na parte intitulada “Páginas de um libertino”, entra em cena a figura de Antônio
Gonçalves, um mendigo que teria tramado em silêncio toda a vida de Henrique; no entanto,
seu sofrimento poderia ser evitado se o protagonista levasse em consideração a voz misteriosa
que sempre lhe falara aos ouvidos: “Insano! Arrasta a existência pelo chão da pobreza, e não
ergas os olhos à filha do rico!”260.
O tema da degeneração dos costumes reaparece em As mulheres perdidas, de Leo
Junius, obra na qual a moral do século XIX é assim descrita: “Despreza-se a virtude e
propaga-se a imoralidade. Bane-se a honra e lisonjeia-se a fraude.” 261 Seu objetivo é
apresentar os tipos perdidos responsáveis pela decadência moral da época. Na primeira parte
narra-se uma orgia na qual os convivas se preparam para ouvir as histórias de devassidão:
“Libertinos companheiros que deliras de ebriedade como Shelley, o ateu, céticos sacerdotes
da descrença, gelados como eu pelo sensualismo: Eia! Cantemos, Bacco, amor, loucuras!”.
Ao longo da narrativa são descritos tipos pervertidos como Amélia, que fora seduzida por um
homem casado, e uma mulher conhecida como mandrágora, dona de uma vida tão horrível
que o narrador prefere o silêncio e recomenda ao leitor que feche os olhos e passe adiante.
Outro tipo terrível é o homem que leva sua mulher à libertinagem: “Um salafrário
que mancha a pureza do casamento, que peca e faz pecar a mulher fazendo-a compartilhar
todos os crimes que ele comete”. A citação redime as mulheres pela inocência e pela
ignorância. Seus vícios seriam perdoáveis: “Pobres mulheres! Cercadas de tantos perigos que
vos seduzem, nós encaramos suas fraquezas como uma desgraça e não como um crime.”262. A
perdição, no entanto, é vista como traço característico dos universos urbanos, nos quais a
virtude falha e o horror é disseminado como peste: “A vagabundagem, originada pela
mendicidade, outras vezes pelo vício, esse flagelo quase igual ao da peste e da fome no dizer

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
258
BUENO, Galvão, op. cit., p. 18.
259
BUENO, Galvão, op. cit., p. 18.
260
BUENO, Galvão, op. cit., p. 17.
261
JUNIUS, Leo. As mulheres perdidas: Typos contemporâneos. In: Romances e Typos. Rio de Janeiro:
Typografia Americana de José Soares de Pinho, 1858, p. 121.
262
JUNIUS, Leo, op. cit., p. 233.

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!112!

de Hantude, foi sempre uma das pragas das grandes cidades.”263 Nesse cenário tétrico, a única
solução é a busca da edificação espiritual pelo claustro.
Menos terrível que Noite na taverna, Gennesco, de Teodomiro Alves Pereira,
reproduz o clima ébrio de contação de histórias fantásticas, narradas em uma república de
estudantes em São Paulo por um típico boêmio, “mancebo original e misterioso”264. A trama é
centrada em uma conversa entre Malthus e seu amigo Gennesco, que entre debates filosóficos
narra a história do estudante Candido e de sua amante Georgina, desprezada depois da
primeira noite de amor. Inconformada com a atitude do homem que lhe jurara amor eterno,
passa a assombrá-lo e, em uma noite medonha, assusta-o: “Cheguei a vê-la ao rosto… e
recuei assombrado diante do olhar terrível de Georgina. Era ella, ou sua sombra? O Cognac
me tornava tudo fantástico. Quem és, gritei, sombra, sylpho, demônio ou mulher. Vens do
céu, ou do inferno?”.265 Depois da cena sinistra, ela o deixa em paz e Candido volta para as
orgias. A experiência terrível e a relação cínica com a amante levam Malthus a afirmar que
Gennesco seria a reencarnação de Candido pelo processo de metempsicose.266
Sem perder de vista que o destinatário ideal dessas histórias pode ser entendido como
“um tipo sentimental e patético, melodramático e declamatório como o ‘eu’ na poesia”,267 é
preciso observar a articulação dos contrastes. Entre a identificação projetada e a arquitetura da
diferença, o efeito de horror é ainda o centro do problema. No esquema da empatia controlada
se estabelece uma solidariedade parcial que garante a construção do sublime entre os pares.
Não há repercussão do problema moral como na perseguição sofrida por Sade ou como nos
debates em torno das obras de Charles Robert Maturin e Ann Radcliffe, por exemplo. Os
textos em questão foram criticados pela falta de originalidade ou pelo excesso de fantasia.
Mas, talvez por circularem em uma comunidade específica, não foram alvos de grandes
debates em torno da moralidade. As críticas ao ceticismo diziam respeito mais à apatia e à
falta de originalidade do que à perversão. O máximo que se fazia era apontar a vida
desregrada dos escritores, como se observa nos comentários sobre a sociedade epicureia, por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
263
JUNIUS, Leo, op. cit., p. 185.
264
PEREIRA, Teodomiro Alves. Op. cit., p. 1.
265
PEREIRA, Teodomiro Alves. Op. cit., p. 33.
266
Existem algumas dúvidas quanto à continuação da narrativa, no supracitado estudo sobre a recepção
crítica de Álvares de Azevedo. Jefferson Donizete comenta que no fim do volume I da edição por ele analisada é
prometida uma continuação não encontrada. Já o pesquisador Hildon Rocha menciona que Teodomiro Pereira
teria planejado a obra em três volumes, do qual o último teria ficado inédito. Pessanha Póvoa, em resenha de
1862, comenta apenas a existência de dois volumes. Na versão de 1866 da Typografia Perseverança, usada neste
estudo, a obra é editada em volume único, e, apesar de o final estar aparentemente inconcluso, não há indicação
de outro volume.
267
HANSEN, João Adolfo. Op. cit., p. 18

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!113!

exemplo . Quando assumiam tom mais grave, esses apontamentos levavam ao entendimento
das obras como fruto de mentes perturbadas, sem que houvesse condenação explícita dos
textos como portadores de um perigo a ser evitado a todo custo.
A imaturidade dessa vertente romântica defendida por boa parte da crítica desde
meados do século XIX foi também um fator de suavização. Caracterizadas como obras de
jovens estudantes aspirantes a libertinos, elas perderam um pouco do possível efeito
perturbador e circulavam como peças literárias de menor impacto.
Tratados como literatura de juventude, as novelas e contos escritos pelos acadêmicos
não suscitaram polêmicas como os romances Melmoth the Wanderer e The Italian, obras
referenciais da literatura inglesa na passagem do século XVIII para o XIX. No entanto, a
prescrição de uma modalidade amenizada de leitura não anula totalmente as particularidades
dessa imaginação literária que assume o mal e o representa como matéria ao mesmo tempo
nobre e baixa.
A máxima sadiana expressa em Les 120 journées de Sodome de que “toda felicidade
do homem está na imaginação”268 reaparece no romantismo negro dos estudantes como o
obscuro prazer do horror. E se, diferentemente do caso do escritor francês, a paixão não pode
“provar que a liberdade humana só se realiza plenamente no mal”, posto que este mais
aprisiona que liberta, resta em sua contemplação apavorante a possibilidade do deleite.
No famoso prefácio da segunda parte de Lira dos vinte anos, Álvares de Azevedo
define como binomia o pressuposto romântico de articulação dos contrastes,269: o livro teria
sido escrito “por duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de
poeta”, o que faria dele “verdadeira moeda de duas faces” na qual o homem se revelaria em
fibras e sonhos, pois “antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem um corpo”270.
A constatação vem após uma indicação de perigo para o leitor, que deveria ter cuidado ao se
debruçar sobre as páginas, pois estaria diante de um tipo novo de poema que flertaria com o
erotismo sem recair na obscenidade, estruturado pela verdade e pela natureza. A supremacia

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
268
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: Ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Editora
Iluminuras, 2006, p. 9.
269
No ensaio “A educação pela noite” Antonio Candido comenta que a mistura do horrível e do sublime
na obra de Álvares de Azevedo teria resultado em escritos de nível inferior. Segundo o crítico: “o desejo de
modular todos os sentimentos costeou o caos psicológico, enquanto o desejo de desrespeitar as normas estéticas
tradicionais levou à desorganização do texto. Sob este aspecto, tais, escritos inferiores são interessantes para se
verificar, pelos casos extremos, certas características da sua escrita.” A crítica aparece também no segundo
volume de Formação da literatura brasileira onde o problema é relacionado com o traço adolescente do
romantismo brasileiro do qual Álvares de Azevedo seria o maior representante.
270
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 203, vol. 1.

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do corpo se revela ainda na afirmação de que “todo o vaporoso da visão abstrata não interessa
tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos”. O imperativo do prazer
exige um rebaixamento estilístico que priorize o corpo não só como objeto de representação,
mas também como foco da recepção.
A ironia expressa na binomia condiciona os movimentos de elevação e de
rebaixamento necessários ao sublime. A razão passa a ter papel secundário para a definição da
natureza humana: já não é a fonte exclusiva da construção de sentido. O irracional, o
subjetivo e o incontrolável ganham a cena, e a razão é transformada no mecanismo de
controle dessas forças que eclodem, no caminho por onde é possível regular a dimensão da
irracionalidade. A contemplação estética possibilita a observação do ser essencial das coisas e
faz do idealismo platônico a realidade do pensamento. Na chave da sensação o ser dá lugar ao
atemporal, ao “puro sujeito do conhecimento”, alheio à vontade. A contemplação estética
funciona então como um antídoto temporário à ruína da experiência. A força do fenômeno
apaga o tempo, criando um momento único, sem lugar, sem dor.
A arte deve buscar apenas a revelação do essencial, expressando-se como um
conhecer puro, destituído de vontade. Ainda que a satisfação estética possa se dar também
com a contemplação da natureza, a obra artística é facilitadora do conhecimento na medida
em que é forjada especificamente com esse objetivo. A observação de uma obra de arte faz
cessar todos os sofrimentos do querer insaciável, que são imediatamente suspensos.
Desaparecem tanto a infelicidade quanto a felicidade; o sujeito é destituído de si mesmo na
apreensão intuitiva da ideia platônica.
A formulação se aproxima da noção de sublime de Arthur Schopenhauer, para quem
o sublime age de maneira hostil e violenta, como um choque aos sentidos cujas consequências
podem ser agressivas ao corpo. O desdobramento do sublime é angustiante quando a tentativa
de salvação reprime qualquer outro sentimento. Sua intensidade pode romper as fronteiras da
subjetividade e do mundo objetivo, pelo espanto causado pela plena impressão do sublime
ocasionada pela visão de uma potência superior ao indivíduo “além de qualquer possibilidade
de comparação, e que o ameaça com o aniquilamento”271.
Ainda segundo o filósofo alemão, as grandes tragédias como Hamlet ou Fausto,
representariam as ações e os traços do caráter humano de maneira assustadoramente próxima,
gerando identificação imediata. A maldade mantém um caminho aberto até o espectador, que,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
271
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São
Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 278.

!
!115!

sentindo-se capaz de realizar os mesmos atos infames, vê-se incapaz de se revoltar contra as
injustiças. Quanto menos absurdamente monstruosa for uma tragédia mais potente ela será. A
perversidade apresentada no cotidiano, sem grandes e engenhosos desdobramentos
dramáticos, é mais violenta e horrível, pois arrasta os espectadores para dilemas morais
profundos e os deixa “horrorizados, já no meio do inferno”272.
O horror exposto na tragédia é o drama da vida em si. Ele é eloquente porque a
experiência humana é trágica. A morte, a miséria, a corrupção, a maldade, a perversão, o
sofrimento são representações funestas da vontade e expõem sua verdadeira e terrível face. O
sublime, que insinua a aniquilação do sujeito, encontra nesse cenário decadente e sinistro sua
realização máxima, ao menos no que tange às produções poéticas. É o aspecto calamitoso da
encenação que oferece o quadro mais legítimo dos pesares humanos e o horror é seu
incontornável desfecho. Nas cenas horripilantes, o que está em jogo não são apenas as
contradições do espírito, mas sobretudo o efeito fúnebre da vontade. Nas dramatizações em
questão, o desespero e a crueldade são apenas materializações dessa mesma vontade, objetos
de cena da autêntica e incontornável tragédia do desejo.
As considerações de Schopenhauer em O mundo como vontade e como
representação fazem clara alusão ao romantismo alemão, cujo representante mais
proeminente é Goethe. Os sofrimentos de personagens como Werther, Jacques Rolla ou
Childe Harold, originam-se na frustração do desejo sexual. Como vítimas da vontade, esses
personagens erram, evocam desgostos e penúrias, e dificilmente conhecem a redenção. Os
cenários traduzem a decadência moral e o triunfo da maldade, do cinismo e da perversão. São
apavorantes e causam espanto pela devassidão sem limites que se desdobra em horror.
Para o Schopenhauer, a exposição dessas paisagens degradantes, assustadoras, é um
dos mecanismos mais eficazes para a produção do ápice da fruição estética, intervalo
necessário, que serve como bálsamo para a vida, na incessante rota do pesar. O antídoto
temporário se faz a partir da matéria bruta da miséria, em uma estranha e eloquente
contradição. Nela percebe-se o lado obscuro da vida ultrapassando o palco e o texto e
ameaçando o espectador, vítima solidária de todas as dores representadas.
Na oposição ideal da binomia, os polos estilísticos do grotesco e do sublime
representam a tentativa de resolução de uma angústia pelo todo que a poesia parece incapaz
de resolver. Percebe-se uma agonia retroalimentada que não pode escapar à frustração. Daí

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
272
SCHOPENHAUER, Arthur, op. cit., p. 335.

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!116!

talvez a recorrência do tema sexual, muitas vezes resolvido como expressão de violência e
prenúncio da morte. As forças sinistras que invariavelmente surgem na prosa aqui analisada
são a energia oculta de um mundo negro onde o prazer não pode ser pensado sem a dor, assim
como o espetáculo da vida se confunde com seu fim. A eclosão dramática do horror traduz
uma busca estética pelo sentido como resposta pragmática à perda da experiência absoluta. Na
lógica das sensações perdidas, a sensibilidade romântica refaz a possibilidade da
transcendência como fantasia necessária na restauração da experiência estética como afetação.
“Uma noite do século” apresenta uma síntese das perspectivas filosóficas dos
personagens de Noite na taverna. Rejeitando uma poesia edificante, alheia às contradições, o
hedonismo consensual filia o conhecimento à sensibilidade. Bertram faz do fumo e do vinho
metáforas do idealismo alemão; Solfieri crê que mesmo a alma imortal pode se impregnar
com a sujeira do mundo, e para ambos a existência só tem sentido “na febre do libertino”273.
Tomando o prazer como matéria poética tem-se o paradigma do desequilíbrio que, segundo
Mario Praz, passa a definir a identidade romântica pela contraposição ao equilíbrio do
classicismo274.
Produzidas sob uma programática desordem imaginativa, as tramas soam estranhas e
levam seus protagonistas a tentar provar a verdade das peripécias narradas. Solfieri, por
exemplo, quando termina de expor sua história, garante a autenticidade mostrando uma
grinalda de flores mirradas que seriam da lápide da mulher que enterrara. Na novela de
Teodomiro Alves Pereira, Gennesco avisa ao começar a narrar: “Vais ouvir uma curta mas
terrível história, atinge pelo carregar das cores e caráter de seus dois heróis, as sombras de um
conto fantástico; é porém pura realidade, e a imaginação de Hoffmann não conseguiria torná-
la mais dolorosa.”275.
As reflexões filosóficas baseadas em autoridades como Spinoza, Hume, Platão,
Schiller e Schelling legitimam o culto da lama. Com elas, as falas dos personagens anunciam
uma escalada do horror e tornam as desventuras progressivamente mais assustadoras. Noite
na taverna e Trindade maldita parecem disputar qual é a mais sinistra e macabra. Na
expressão da agonia a tensão entre a expectativa e a impossibilidade de representação, o
modelo excessivo encontra no erotismo soturno seu caminho mais eloquente. A dramatização
da sexualidade macabra toma como parâmetro uma “violência elementar que anima,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
273
CUNHA, Cilaine Alves. A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna, op. cit., p. 122.
274
PRAZ, Mario. The romantic agony. London: Oxford University Press, 1970, p. 8.
275
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 3.

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!117!

quaisquer que eles sejam, o movimento do erotismo”276, entendendo este como o domínio da
violência e da dominação, elemento fronteiriço entre a morte e o assassinato.
Como busca de uma continuidade virtual, a morte revela o aspecto indecente da
carne em sua procura por uma liberdade ameaçadora. Se o sentido último é a fusão, a
supressão do limite que condiciona o ser, a morte como sua apoteose instauraria o fim da
angústia, o fim da nostalgia de uma continuidade perdida. Na fabulação do horror desse
romantismo soturno, o sexo é o ponto central do crime, motivo preponderante do horror
misterioso e fascinante que caracteriza o cinismo literário. É a chave de deflagração dos
mistérios humanos, ponto de confluência entre o humano e o animal onde o ser caminha para
além de si mesmo na expectativa ideal da representação íntegra de um homem fictício que se
reinventa como triunfo do afeto sobre as regras de composição.
A percepção de que o excesso prevalece sobre a razão e de que a arte pode ser uma
força aniquiladora e prazerosa traz para o esforço ficcional o desejo paradoxal da lembrança
do perigo. Assim como o limite do erotismo é a morte, o horror incita a superação das
fronteiras. Reforçando o caráter transgressor do erotismo como celebração do prazer, a
consciência do interdito se estabelece na relação complementar entre o sentido de
transgressão e a força do proibido. Quanto mais se avança no território que deveria
permanecer intocado, mais os dispositivos de enunciação do horror ganham força. Em certo
sentido o medo é refém de um silêncio precário que, por nunca ser absoluto, abre as portas
para a violação. Não há interdito que não possa ser transgredido e horror que não possa
avançar. Em sua escalada mais elevada tende a superar a morte na violência da necrofilia e no
limite da antropofagia.
Em Trindade maldita, Jorge se delicia com o cadáver de sua amante e Eduardo conta
como “havia gozado em uma mulher cadáver”. Em Noite na taverna, Solfieri narra com
horror a ideia singular que teve ao pegar uma defunta nos braços: “Preguei-lhe mil beijos nos
lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os
despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela […] o gozo foi fervoroso – cevei
em perdição aquela vigília.”277. Bertram, depois de sofrer um acidente a bordo de um barco
em alto-mar, mata um homem para se alimentar, servindo-se do cadáver por dois dias.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
276
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987, p. 13.
277
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p 35.

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!118!

“Depois, as aves do mar já baixavam para partilhar minha presa; e às minhas noites fastientas
uma sombra vinha reclamar sua ração de carne humana […] Lancei os restos ao mar…”278.
Entre a necrofilia e a antropofagia surge um horror para além da morte que se
desdobra como violação dos limites. O corpo permanece alvo de violência, e o cadáver não é
mais a última fronteira do mal: ressurge como objeto do desejo infinito. Em “Ruínas da
glória”, Alberto encontra o amor na visão fantasmagórica de uma mulher bela como um anjo,
de olhos puros e meigos, e “uma onda negra de espumoso sangue corria em borbotões de uma
larga ferida, e ensopava-lhe a vestimenta”279. O desejo pela morta converte-se então em
desejo de morte: “Agora todas as noites eu a vejo bela, ensanguentada sempre!” e quando “o
gelo da morte me cair sobre os olhos eu serei eternamente feliz; oh! eu não quero mais
viver!”280. Esse desejo se compara ao do personagem do conto de Franklin Távora, Eduardo,
que faz do estupro do cadáver de sua mãe o ponto-chave da manifestação do horror. O amor
ideal revela-se recorrentemente, portanto, na frieza pálida do cadáver e faz do vício e do
crime as marcas de uma literatura transformada em imagem de um mal coletivo.
A morte não limita a fabulação do horror: é apenas a curva acentuada da
transgressão, escalada sinistra de um horror que faz do exagero sua solução convencional. O
sentido de uma profanação constante define a arquitetura dessas tramas, e o choque ideal às
sensações assenta-se no uso de cadáveres como escadas para a progressão do mal que extrai
do interdito sua energia dramática 281 . A permanência do proibido, do escandaloso, é
fundamental para a lógica da maquinaria do horror e sua garantia de sobrevivência. A
repetição e o excesso dependem da precariedade da profanação, e nessa falha reside a
possibilidade de reprodução. No fim, essas representações do mal que apontam para o torpe
dependem de uma sacralidade consensual que garanta seu estatuto. Como afirma Henrique em
“A vingança de um irmão”: “O criminoso pode descrever a sangue os passos que o levou à
perdição, porque cada passo é um crime e cada crime glória para o seu nome.”282.
Conversando com Gennesco, Malthus aponta o sentido da transgressão quando
afirma que o heroísmo do amigo é o triunfo do cinismo glorificado no deboche dos valores

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
278
AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p 36.
279
VARELA, Fagundes. Ruínas da Glória, op. cit., p. 4.
280
VARELA, Fagundes, op. cit., p. 4.
281
Giorgio Agamben define o ato de profanar como tocar no que é sagrado e assim restituir à
comunidade humana aquilo que lhe foi historicamente subtraído pela sacralização. Profanar é, portanto, libertar e
trazer ao uso comum o que permaneceu intocável. Ver AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.
282
BUENO, Galvão, op. cit., p. 17.

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!119!

convencionais. O jovem pálido e altivo que se entusiasma nas orgias “despejando em


catadupas torrentes de poesia” é definido como “o mesmo homem que se ri infernalmente dos
sentimentos mais puros que a sociedade consagrou. Pelo Papa! Eis uma maravilha”283. O
deslumbre com o cinismo é exemplo raro entre heróis que preferem professar suas aventuras
como gloriosas maldições. A culpa traduzida em conquista dá o tom de transgressões
resignadas, e resta aos sorrisos o tom infernal que os controla. Em geral não há a alegria sadia
de uma filosofia afirmativa do prazer sem limites, mas um pesar romantizado, por vezes
convertido em riqueza simbólica do crime. O lamento paradoxal – como o de Bertram, que
sofre por ter sido levado à perdição por uma mulher e ter sido “abandonado no mundo, como
a infanticida que matou o seu filho”284 – dá o tom dos horrores e mantém as excessivas
perversões na chave da alteridade marginal.
No corpus analisado, a figura central é quase sempre um tipo próximo e estranho,
personagem modelar, o perverso padrão de onde se espera o comportamento imoral. Na
imagem do estudante ébrio, do religioso devasso, do amaldiçoado no nascimento, do
frequentador de sombrias tavernas, constrói-se uma imaginação literária do horror em torno
de arquétipos perigosos. O horror parece não assombrar o homem comum. Unidos pelos
vínculos da perversão e do crime e pelos signos da noite, os textos acumulam cenas terríveis,
como em um desfile fantástico de atrocidades que beiram o grotesco285. A estética sombria
que constrói o horror com o absurdo da crueldade funciona na lógica da transgressão
consentida, pois a possibilidade de exagerar o tom é garantida pela propagação mapeada.
Circulando entre pares, o horror literário cria vínculos estéticos que se transformam
em monumentos de práticas literárias comuns e fortalecem identidades autorais que, no jogo
da mitificação da vida literária estudantil, se confundem com determinado sentido de boemia.
O horror que tem o cinismo como base prolifera no campo relativamente hermético em que é
convertido em sinal do tempo, ou mal do século. Assim, a origem da representação do medo
deve-se à dramatização de um mal ao mesmo tempo pernicioso e glorioso. No limite, trata-se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
283
PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 4.
284
Referência ao drama Otelo, de Shakespeare. AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p.
14.
285
Vagner Camilo identifica uma matriz rabelaisiana na poesia romântica dos estudantes paulistas. Em
riso entre pares: poesia e comicidade no romantismo brasileiro, afirma que, ao imprimirem o selo de
pantagruelismo nos seus versos, os estudantes estariam sugerindo “uma aproximação desejada com um universo
que traduzisse, a despeito do hiperbolismo que os separa, o espírito reinante na boemia estudantil de São Paulo.
A matriz rabelaisiana estaria assim muito mais presa ao clima reinante no ambiente estudantil, embora não se
possa pensar os bestialógicos sem ele”. CAMILO, Vagner. Riso entre pares: poesia e comicidade no
romantismo brasileiro. Dissertação apresentada ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Teoria da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 1993, p. 119.

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!120!

de um jogo de cartas marcadas, literatura de estudante e para estudante na qual a suposta


transgressão da ordem moral é pensada no domínio da recepção previsível. Ainda que se trate
de um horror da alteridade controlada, na inscrição do outro reside a formulação arquetípica
de um tipo ideal capaz, como Dalmo, de simbolicamente representar o universo estudantil
paulista.
A representação do mal como uma excentricidade relativamente próxima implica em
uma forma de horror em que a busca do efeito não se dá exatamente pelo suspense ou pela
apresentação do desconhecido, mas por um aprofundamento exagerado dos princípios da
degeneração de valores que pretensamente ultrapassam os limites literários. O horror fundado
no ceticismo avança em para transformar em medo a sensação do reconhecimento parcial. A
empatia balanceada na figura do outro estranho garante ao mesmo tempo reconhecimento
necessário e a distância para que, no fim, o cinismo funcione nos limites da solidariedade
parcial.
A circulação restrita das obras permitiu a exploração de um horror excessivo que
tem, no controle do interdito, o domínio de uma noção romântica do homem sentimental que
encarna a idealização de uma representação íntegra. O personagem estranho e íntimo
protagoniza a trama virtual de um século corrupto que transforma a referência literária em
substância positiva da experiência para que a invenção soe como reflexo de um mal
historicamente reconhecível. Na tentativa de serem progressivamente mais assustadoras, as
tramas incidem no mesmo problema que Clara Reeve detecta na obra de Walpole: o excesso
de fantasia esvazia o efeito de horror. Na interminável galeria de horrores, o medo perde força
diante da dramatização de um cinismo doentio que afirma seu pertencimento ao tempo como
elogio de uma decadência forjada nos quadros de uma formulação estética, que tem no
sublime a chave de realização de uma arte de contrastes.
O horror literário publicado majoritariamente em periódicos acadêmicos em meados
do século XIX apresenta alguns motivos que reaparecerão em textos impressos em jornais de
maior circulação a partir da segunda metade do século. No entanto, observa-se uma
suavização dos temas em novas abordagens que enfatizam o aspecto lúdico do medo
ficcional. A ampliação do público leitor se dará a medida que forem mudando os parâmetros
da empatia. O horror se difunde de acordo com o desenvolvimento de um mercado literário
interessado nos deleites que as histórias assustadoras prometem fornecer. Com a
representação de tipos mais comuns o horror aparecerá como imagem de um passado
sombrio, mas também será o traço de um cotidiano eventualmente aberto ao fantástico.

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!121!

3. O horror nas chaves da amenidade e da ironia

3.1. A difusão do medo em jornais e folhetins

No artigo “O jornal e o livro”, publicado no Correio Mercantil entre 10 e 12 de


janeiro de 1859, Machado de Assis ressalta o caráter “democrático” dos jornais, sobretudo seu
poder de divulgar ideias. Tratando o veículo como “a verdadeira forma da república do
pensamento”, defende seu papel decisivo na modernidade como “a locomotiva intelectual em
viagem para mundos desconhecidos”. Divulgador dinâmico do conhecimento, lugar da
“literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si
a frescura das ideias e o fogo das convicções”.286 Afirmando relativa superioridade em relação
ao livro, em especial no que tange ao fervor dos debates, destaca a ascensão do talento “à
tribuna comum” promovida pela imprensa. O caráter de literatura cotidiana faria das colunas
jornalísticas a “reprodução diária do espírito de um povo, espelho comum de todos os fatos e
de todos os talentos”287 onde reverberaria o pensamento popular.
A ideia de que o jornal teria como missão popularizar a literatura é especialmente
significativa para analisar a ampliação do público consumidor de poesia e narrativas
ficcionais em meados do século XIX. Marlyse Meyer lembra que, já entre 1839 e 1842, os
romances-folhetim 288 são publicados quase diariamente no Jornal do Commercio. São
comuns os textos do francês Paul de Kock e narrativas sombrias como Os mistérios da torre
de Londres, publicada em 1842 e atribuída ao Comendador Leo Lespés. Romances nacionais
são raros, mas são abundantes os textos traduzidos, majoritariamente do francês, nos quais
predominam os temas góticos ou que remetem ao romance de cavalaria. Dentre eles
destacam-se ainda O noivo de além-túmulo, sem indicação autoral, além de A capela gótica,
publicado em 1844, Othon, o arqueiro, de 1839, e Legenda de Pedro, o cruel, de 1839, de
Alexandre Dumas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
286
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1859.
287
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1859.
288
A autora defende a origem francesa do romance-folhetim afirmando: “De início, ou seja, começos do
século XIX, le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chausée (rés do chão, rodapé, geralmente o
da primeira página). Tinha uma finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao entretenimento”. Ao longo
do tempo, poemas e narrativas ficcionais ocupariam esse espaço dedicado a frivolidades para atrair o público.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 57.

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!122!

Poucas publicações foram tão marcantes na década de 1840 quanto a edição


fracionada de Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, traduzido por Justiniano José da Rocha e
publicado entre 1o de setembro de 1844 e 20 de janeiro de 1845. A procura foi tão grande que
o primeiro volume da primeira parte, lançado por J. Villeneuve & Cia, esgotou em poucos
dias. O romance que revela uma Paris cinza, subterrânea e assustadora, recheada de misérias e
criminosos, porém, traz o humor de personagens como Pipelet, que deu origem a uma febre
de leitura e deu origem a uma série de edições sucessivas289. Na edição de O Guaianá de 4 de
julho 1856, um artigo assinado apenas por A.P.S. compara Alexandre Dumas a Eugène Sue: o
primeiro “pinta melhor o belo, o grandioso, o sublime, o maravilhoso, o sobre-humano”; o
segundo “pende mais para o feio, o mal, o crime, as trevas, o horror!”290.
Histórias sinistras continuariam a aparecer nos anos seguintes, dentre elas As noites
do cemitério e O vampiro de Val de Grâce, de Leon Gozlan, publicadas em 1850 e 1862,
respectivamente; A boneca do diabo, em 1862, de Eugène Guinot, e A alma do outro mundo,
em 1862, de Ponson du Terrail. A publicação desses textos indica não somente a rápida
ascensão do folhetim francês como também sugere a formação de um corpo de leitores
capazes de fazer desse gênero elemento crucial no volume de vendas dos jornais.
Segundo Marlyse Meyer, o romance-folhetim teria penetrado na cultura letrada
brasileira pelo espaço aberto por novelas consideradas de segundo time, como Oscar e
Amanda, de Regina Maria Roche, autora cuja obra era associada à de Ann Radcliffe; e
Sinclair das Ilhas, de uma novelista e educadora inglesa. Essa novela chegou ao Brasil, na
tradução francesa feita por Mme. de Montolieu, como um típico romance gótico inglês. “Nele
de tudo se encontra: enredos cheios de suspenses, raptos, sequestros, abandonos, torneios
medievais, castelos góticos ruínas, capelas, exaltação da natureza, a velha Escócia, ilhas
selvagens, nobres cavaleiros e horríveis vilões”291.
O Jornal das Senhoras – periódico dominical voltado para “moda, literatura, belas
artes, teatro e crítica” que circulou entre 1852 e 1855 – publica um romance de sua fundadora,
Juana Paula Manso de Noronha, Misterios del Plata. O título, segundo a autora, não seria
“mera imitação servil aos Mistérios de Paris ou aos de Londres”, mas uma alusão às

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
289
Em “Edição, recepção e mobilidade do romance Les mystères de Paris no Brasil oitocentista”,
Nelson Schapochnik relaciona essa febre de leitura com as diversas estratégias editoriais de divulgação da obra
no Brasil. Varia hist., vol. 26, nº 44, Belo Horizonte, jul./dez. 2010.
290
A. P. S. Rápido paralelo crítico entre Alexandre Dumas e Eugène Sue. O Guaianá, São Paulo, 4 de
julho de 1856.
291
MEYER, Marlyse, op. cit., p. 46.

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!123!

atrocidades do ditador argentino Juan Manuel de Rosas. Os sofrimentos de suas vítimas no


contexto da Guerra do Prata “permanecerão um mistério para as gerações vindouras, apesar
de tudo contra ele que se tem escrito”.
Noronha comenta a necessidade de produzir uma literatura local, latino-americana ou
propriamente nacional, recusando o uso constante dos “tipos da velha Europa”. Afirma a
dificuldade de revelar o passado do continente americano porque, apesar dos progressos da
civilização, o século XIX conservaria “preconceitos e horrores e, mesmo frente a frente com a
verdade, custa-lhe sair dos góticos edifícios cujos carcomidos alicerces por toda parte se
desmoronam”292.
A origem argentina da autora talvez ajude a explicar o interesse pelo tema, assim
como a defesa de uma literatura latino-americana, projeto não muito comum entre os homens
de letras brasileiros. Mesmo que a autora negue a subserviência aos modelos estrangeiros, o
romance, que trata especificamente da derrocada de Rosas, reproduz a estrutura típica do
gótico com o personagem do jurista Alsina como herói ideal, defensor da liberdade de
imprensa e dos direitos do cidadão. É curioso que a proposta folhetinesca que inaugura o
jornal tenha esse tom indicativo de que a noção de literatura feminina para “gentis leitoras”
abarca também o drama político de tons graves. Ao propor “propagar a ilustração e cooperar
com todas as suas forças para o melhoramento social e para emancipação moral da mulher”, o
Jornal das Senhoras – que ainda publica romances como Amor, ciúme e vingança, de Pereira
da Silva, e A jarilla, de D. Carolina Coronado – configura-se como espaço de divulgação
tanto de traduções como de literatura original em meados do século XIX.
A repercussão da obra de Eugène Sue geraria ainda outros frutos. Vicente Félix de
Castro publicaria, primeiramente em folhetim no Jornal de Guaratinguetá, e posteriormente
em livro em 1861, Os mistérios da roça. O texto, como o romance de Sue, começa em tom
sombrio: “Seriam onze horas mais ou menos, um vulto caminhava a passos lentos por uma
das ruas da cidade […] e parando defronte a porta principal de uma casa de boa aparência,
bateu com mistério três pancadinhas compassadas.”293. A trama transforma as ruas de uma
cidade no interior de São Paulo no cenário tétrico de homicídios e tabernas escuras onde “o
vício do jogo corrompe a alma”. A obra de Félix de Castro inclui ainda Os dramas de sangue

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292
MEYER, Marlyse, op. cit., p. 300.
293
CASTRO, Vicente Félix de. Os mistérios da roça. Guaratinguetá: Typografia Comercial de V. R da
Fonseca, 1861, p. 1, Tomo I.

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!124!

ou os sofrimentos da escravidão, romance de traços realistas que dramatiza as dores da


escravidão com as cores carregadas do romantismo rocambolesco dos folhetins.
Os pequenos romances e as novelas aliavam o tom soturno gótico às cores mais leves
das aventuras do folhetim francês para formar um conjunto de textos que, além de agradar os
leitores, servia de referência para novas produções. Lembremos o depoimento de José de
Alencar:

Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma


dúzia de obras entre as quais primavam a Amanda e Oscar,
Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outras de que já não me
recordo. Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e
muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais
gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que
mais tarde deviam servir aos informes esboços do novel
escritor.294

Esse pequeno repertório forneceria modelos para a produção de uma prosa que
buscava se adequar ao gosto de um público emergente. A mescla da peripécia com o mistério,
da paixão desmedida com os infortúnios, seria a chave de uma ficção de apelo sentimental
que não perderia a noção de efeito do horizonte. Tendo como eixo comum o romance gótico
tipificado, por exemplo, na obra referencial de Ann Radcliffe, o folhetim e o melodrama
ajudam a estruturar um corpus de grande apelo que serviria ainda como “primeira lição de
literatura para muitos escritores”295. Essa “educação literária” pelo romance folhetinesco é
bem representada nas memórias literárias de José de Alencar que conta sua chegada a São
Paulo:

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns


cadernos escritos em letra miúda e conchegada. Eram o meu
tesouro literário. Ali estavam fragmentos de romances, alguns
apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem
princípio. De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores
efêmeras das primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara
as páginas dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no
turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja sombra
folgara aquele ano feliz de minha infância. Nessa época tinha eu
dois moldes para o romance. /Um merencório, cheio de
mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido.
Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
294
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p.13
295
ALENCAR, José de, op. cit., p.14.

!
!125!

pelo baço clarão da lua; ou n’alguma capela gótica frouxamente


esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma
campa. O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa
pitoresca do meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado,
recendendo graças e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em
uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante
arroio que a bordava de recamos cristalinos. Tudo isto, porém,
era esfumilho que mais tarde devia apagar-se.296

Ainda no mesmo texto, o escritor relata suas primeiras experiências de leitura como
momentos de comunhão familiar, lembrando o curioso caso de quando o Padre Carlos chega a
sua casa e surpreende sua mãe e algumas amigas aos prantos, comovidas pela leitura de um
dos volumes da biblioteca. Esses moldes, que no caso do autor de O guarani seriam
posteriormente superados pelos estudos acadêmicos da literatura francesa de Balzac e
Voltaire, compunham um corpus que ajudaria a formar os padrões de gosto literário das
camadas letradas da população brasileira297.
O gótico definido por seus arquétipos aparece ao lado do tipo risonho e perfumado
característico de uma versão mais suave do romantismo. A junção desses dois tipos aparecerá
em incontáveis folhetins, formatando um modelo ficcional em que o soturno e o suave
convivem por vezes medindo forças. Não há necessariamente contradição entre os estilos e
tonalidades: eles se articulam na literatura cotidiana oitocentista como ficção “do segundo
time”, voltada essencialmente para o público feminino. As ruínas dos castelos, as capelas
góticas, as graças e os perfumes agrestes ocupam as páginas dos jornais e atendem
prontamente a demanda por literatura amena. É leitura as horas de ócio , mercadoria barata no
campo literário brasileiro do século XIX.
Importante meio de divulgação ficcional, a Revista Popular, editada por Garnier,
circula entre 1859 e 1862 com a declarada proposta editorial de “escrever de tudo para todos”
e tem como domínio “tudo o que abrange o entendimento humano”. A prosa e a poesia
deverão servir aos momentos de lazer, sem se esquecer que “recreando pode-se instruir
disfarçadamente” e que o recreio que se busca nos livros “deve ser uma instrução amena”. O
periódico, “uma das publicações mais conceituadas do tempo”298, contaria com a contribuição
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
296
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p.15-16.
297
Apenas como referência, lembramos que segundo o Censo de 1890, a população da capital federal
era de 522 mil habitantes, dos quais 57,9% dos homens e 43,8% das mulheres foram registrados como
alfabetizados, o que totalizava cerca de 270 mil pessoas capazes de ler e escrever. Os números são apresentados
por Alessandra El Far em Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro 1870-1924.
São Paulo: Companhia das Letras, s/d, p. 13.
298
SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 192.

!
!126!

de nomes como Justiniano José da Rocha, Bernardo Guimarães e Joaquim Manuel de Macedo
escrevendo para leitores e leitoras, inclusive, para quem não só nenhuma de suas seções seria
vedada como lhes caberia um “cantinho” especial: “Os trabalho de agulha para as solteiras, a
economia doméstica para as casadas e as modas para todas.”299.
Em relação à publicação literária, a proposta dos redatores da Revista Popular é
declaradamente nacionalista. “Longe de banir a literatura estrangeira, dar-lhe-emos generosa
hospitalidade, mas não esqueceremos que escrevemos no Brasil e em língua portuguesa. Não
correremos os da casa para afagar os de fora.”300 A ênfase na divulgação do produto local se
faria no número de poemas e narrativas curtas de autores nacionais e de artigos críticos a eles
dedicados. Em 1861, por exemplo, é publicado um longo artigo de Joaquim Norberto de
Souza Silva intitulado “Originalidade da literatura brasileira”, em que se discute a relação
com a literatura europeia. O tom mais grave é relativamente raro, pois o espaço dedicado ao
tema geralmente traz assuntos menos complexos. Ainda em 1861, um comentário sobre os
acontecimentos da quinzena anterior revela determinadas perspectivas sobre arte e literatura:

Grande foi o movimento da quinzena que hoje finda: a nossa


pobre cidade, desde muito entregue à monotonia da insipidez,
viu-se de súbito tomada de assalto por variados passatempos e
assistiu ao agradável espetáculo dado pela literatura no ato de
proteger a arte e de transformar em rápidas horas de prazer os
dias que escoavam-se lânguidos e saturados de
aborrecimento.301

Entendido como antídoto contra o tédio, o espetáculo da literatura converte em


prazer o aborrecimento cotidiano. Essa atividade de puro deleite tem no entretenimento seu
compromisso maior. Em outra edição da mesma crônica quinzenal, comentando a obra de
Leonel de Alencar o colunista afirma que este não seria mais “o folhetinista, que ao correr da
pena conversa com suas leitoras, e lhes conta meia dúzia de intrigas, ouvidas em um ou
noutro baile”, nem o viajante que narra suas singelas impressões de viagem: “Menos risonho
do que este e mais grave do que aquele, dedica-se agora ao romance, e torna lembrados o
folhetim e o viajor.”302. A separação entre o folhetim e o romance atribui pouca densidade ao

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
299
Revista Popular, p. 4, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1859.
300
Revista Popular, p. 3, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1859.
301
Revista Popular, p. 6, Rio de Janeiro, 10, junho de 1861.
302
Revista Popular, p. 3, Rio de Janeiro, 8 de abril de 1861.

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!127!

primeiro e entende o segundo como trabalho de maior seriedade. Ao folhetim caberia tratar as
pequenas vicissitudes do cotidiano, ao romance a gravidade dos grandes temas.
Um dos mais constantes colaboradores da revista, Padre Francisco Bernardino de
Souza – poeta, memorialista, ensaísta, orador, tradutor, jornalista, professor e membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – escreve textos curtos catalogados tanto na seção
Variedades, quanto na Descrições e narrativas. Em 1861, publica “O cadáver”, conto
publicado na seção de variedades e que narra os últimos suspiros de vida de um homem.
Trata-se de uma descrição do “aspecto horrível da morte” apresentada em detalhes que
enfatizam a aparência terrível do moribundo: “Aqueles olhos embaciados, que nenhum
movimento, nenhum sopro anima: aquele semblante sem cor; aqueles lábios frios e roxos;
aquela rigidez dos membros” constituem um espetáculo tétrico, um “horror que esvoaça em
torno da morte, esse silêncio pavoroso que eriça os cabelos e faz cair em bagas o suor da
fronte! Como é feia a morte!”303.
O horror reside na decomposição do cadáver e serve de reflexão sobre a perenidade
da vida. O homem que até pouco tempo experimentava a riqueza do mundo transforma-se em
“pasto de nojentos vermes, que lhe devorarão os membros, vai sentir o frio da terra, vai
envolver-se no silêncio, nas trevas e no horror do túmulo!”. Além da dimensão moral da
reflexão de como a vaidade mundana se converte no horror da putrefação, há a constatação de
que se pode aprender com a morte: “Quanta lição não há no meditar do túmulo, no
contemplar do cadáver!”304, conclui o padre. Com enredo simples, o texto concentra-se na
narração do espetáculo terrível oferecido pela morte retratada minuciosamente em seus mais
repugnantes detalhes.
Esse não é o único texto do padre dedicado a cenas naturalmente terríveis. Em 1862
publica “A tempestade”, apresentado como páginas soltas, “fragmento de um livro inédito”.
Nele narra um terrível desastre marítimo enfatizando o horror de uma tripulação à beira da
morte. A natureza é descrita com grandiloquência; a tempestade e o mar são apresentados
como forças incontroláveis as quais o homem pode apenas contemplar. A representação
romântica surge como fonte da arrebatadora experiência do sublime: “homens que soçobram,
cadáveres que boiam, sulcam o espaço cavado em que a tempestade brame. E mais logo –

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
303
SOUZA, Francisco Bernardino de. O cadáver. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 52, março de
1861.
304
SOUZA, Francisco Bernardino de. O cadáver, Revista Popular, p. 53, Rio de Janeiro, março de
1861.

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!128!

outra montanha de mar, outra reunião de vagas vem cobrir esta cena e sepultar esses
cadáveres de homens e de navios.”305.
Em agosto do mesmo ano publica um texto de maior fôlego, “A lenda do judeu
errante”, na seção Descrições e narrativas. A história, apresentada como uma lenda que
transcenderia séculos, povos e parte do repertório da imaginação popular “que os livros não
escrevem”, revelaria a queda para “o maravilhoso e o sobrenatural” que caracterizaria a
humanidade306. O “fantástico personagem”, apesar de nunca ter sido visto, teria sua história
reproduzida oralmente, mas ninguém de boa fé acreditaria em sua existência. Sua história se
perpetuaria como um mito, uma “alegoria engenhosa” sobre o povo judeu. A trama fala de um
homem amaldiçoado e condenado a vagar errante pela eternidade por não permitir que Jesus
descansasse próximo a sua porta. O horror residiria justamente na impossibilidade da morte:
“Arrastar eternamente este montão de poeira, com a lividez de cadáver e a exalar podridão!
[…] Contemplar por milhares de anos a uniformidade, esse monstro de goela aberta […]”307.
Considerada “o mais horrível dos anátemas”, a perambulação eterna é tratada como
parte de um repertório imaginário fantástico que se aproxima dos romances góticos. A escrita
de tramas fantásticas que os livros não necessariamente contemplariam aparece como esforço
de transcrição letrada de um repertório disperso que, na chave do gótico e do fantástico, entra
na cena literária como um artefato para um mercado de consumo diário. O processo se
assemelha ao que Defoe fez com as histórias de fantasmas em meados do século XVIII:
compilou-as e transformou-as em produto para periódicos.
“O monge” é outra narrativa publicada na Revista Popular que apresenta um tema
tipicamente gótico308. Trata-se da história de um homem que decide entrar para o mosteiro
arrependido de se casar com uma mulher demoniacamente atraente. Ele assume uma
“expressão terrível”, vagando pelo mosteiro como “um fantasma a correr seu fadário aqui na
terra”, tentando esquecer a mulher que “morrera perdida no torvelinho da vida” 309 .
Reproduzindo o tema da mulher demoníaca, a trama se vale da obscuridade do mosteiro para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
305
SOUZA, Francisco Bernardino de. A tempestade. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 48, março de
1862.
306
O autor afirma que seu relato é baseado na tradução de um artigo publicado em Paris por Gérard de
Nerval.
307
SOUZA, Francisco Bernardino de. A lenda do judeu errante, Revista Popular, Rio de Janeiro, p.280,
o
1 1º de setembro de 1862.
308
A narrativa é assinada apenas por “F”. É provável que tenha sido escrita por Padre Francisco
Bernardino de Souza, pois também traz a indicação “fragmento de um livro inédito”, muito comum em seus
textos na Revista Popular.
309
SOUZA, Francisco Bernardino de. O monge. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 280, 15 de
setembro de 1862.

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!129!

compor uma atmosfera sinistra em que a esperança da redenção religiosa se mistura com a
angústia gerada pela sedução satânica.
A inspiração demoníaca aparecerá também em “Um raio”, texto assinado por
Insulano e publicado em 1o de fevereiro de 1861. Inspirado por forças malignas, um jovem
casal apaixonado foge para uma floresta sinistra, onde são atacados por um tigre. A noite em
que a donzela morre é descrita com ênfase na terrível atmosfera de medo que a floresta
traduz. A angústia do rapaz é retratada com “dó e pena que se inundam em lágrimas de
sangue; horror de crime que enluta o arrependimento e a morte”310. Os eventos horríveis
continuam. Um barco com homens à procura do casal sofre com o mar revolto e é atingido
por um raio, o que dá origem a um “grito uníssono, terrível e desesperado”. Passado o
incidente, deu-se “a mesma escuridão e tormenta, a mesma fúria do mar, o mesmo roncar da
trovoada e a mesma confusão e terror”311.
O demônio aparece como propulsor da trama, mas é a natureza que se revelará a
verdadeira agente do horror. Nas imagens do tigre, do mar revolto e do raio, o sublime
aparece como dispositivo deflagrador da experiência sensível. A possível conclusão moral
que condena a atitude rebelde do casal é ínfima diante dos quadros eloquentes da ação da
natureza. Há um esforço muito maior em comover pelas românticas descrições de seu poder
devastador do que em refletir sobre a atitude dos jovens, para os quais o narrador ao final
pede aos leitores que rezem uma prece. O sobrenatural é menos importante do que a
potencialidade terrível do mundo natural.
Em “O punhal de marfim”, J.F. de Meneses comenta que o título sugeriria “um
romance fantástico”, mas trata-se de um fato real a ele relatado por um fantasma, uma
aparição noturna e misteriosa do tipo que teria inspirado também autores como Charles
Dickens e Archim d’Arnim. O texto narra eventos ocorridos com Maria, uma princesa
contemporânea, que “não habitava castelos góticos”, mas “ricos palácios de escadaria de
mármore”. Maria apaixona-se por Alberto, poeta romântico incapaz de amar. Mas o narrador
previne não se tratar de um “herói de Byron, Shakespeare ou Musset”, nem de “um desses
cínicos de Paris”. A caracterização de Alberto se dá no contraste entre modelos românticos
distintos: ele não é o devasso dos poemas de Byron, mas o tipo apaixonado mais próximo dos
folhetins. Representado como um jovem que sofre o amor perdido, Alberto atua em uma
trama que não pretende exibir os horrores do cinismo, mas afirmar o caráter definitivo da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
310
INSULANO. Um raio. Revista Popular. Rio de Janeiro, p. 142, 1o de fevereiro de 1861.
311
INSULANO. Um raio. Revista Popular. Rio de Janeiro, p. 145, 1o de fevereiro de 1861.

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!130!

paixão, desdobrado em “estigma de maldição”. A caracterização de Maria como um tipo mais


moderno marca as fronteiras com o gótico sem abrir mão de sua estrutura básica.
O autor diz não contar com a crença do leitor, mas, sugerindo uma chave de leitura,
afirma que existe na trama “um fato real”, escondido na forma de uma alegoria ou símbolo.
Caberia ao leitor “a descortinação deles”312. O conto, inicialmente atrelado à lógica do
romance fantástico vale-se de personagens sobrenaturais para, no fim, revelar-se uma trama
tipicamente romântica com crimes motivados por ciúmes e juras de amor eterno. Ao jogar
com as possibilidades de crença do leitor, o narrador impõe um jogo que deve se resolver pela
verossimilhança.
A investigação da alegoria ou do símbolo transformaria uma narrativa inicialmente
fantástica em representação de uma realidade escondida. As capacidades interpretativas do
leitor são explicitamente convocadas para construir o sentido da trama. O uso da fantasia é
legitimado pela proposta de sua negação, como se os artifícios ficcionais precisassem ser
descortinados para que a trama fizesse sentido. Se o fantasma da inspiração estimula o conto,
a técnica interpretativa deve lhe atribuir significado.
Em setembro de 1861, J.F. de Meneses publica “Poverino”313, conto que lembra
Noites da taverna. Narra as aventuras libertinas do jovem Francisco por diversas cidades do
mundo314. Contando sua vida para uma plateia de jovens que bebem e fumam em uma sala,
diz como, em Veneza, à beira da morte, fora salvo por Raimundo, outro jovem brasileiro que
viajava e caíra “nos braços de mulheres perdidas” após desilusão amorosa.
A atmosfera de cinismo marca todo o conto; há divagações literárias, citações de
George Sand e especulações filosóficas sobre o amor e o materialismo, bem aos moldes da
literatura romântica acadêmica. Destaca-se, no entanto, o momento em que o protagonista, em
suas andanças pela Europa depois de se encostar-se às “pilastras e colunas dos templos
gregos” e beijar “o pó de suas glórias e ruínas”, sente saudade do Brasil e recita os versos
melancólicos de “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias.
A saudade da pátria, parcialmente saciada no encontro com Raimundo, que se
lamentava pelo mesmo motivo, quase o leva à morte, mas atenua o ceticismo. O conto é como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
312
MENESES, J. F. de. O punhal de marfim. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 204, 15 de agosto de
1862.
313
A palavra italiana do título pode tanto designar pobre ou desgraçado como constituir uma alusão à
novela Teverino, de George Sand, citada no próprio conto, que por sua vez narra também a história de um
homem desafortunado.
314
O conto é dedicado a Augusto Emílio Zaluar, autor de O Doutor Benignus (1875), considerado um
protótipo da ficção científica brasileira.

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!131!

um ponto de convergência entre os textos acadêmicos e o tipo de horror literário que figuraria
em jornais com o perfil da Revista Popular. Se a fórmula ”narrador que conta histórias
terríveis para uma plateia” se repetiria em muitos outros casos, a ênfase na vida libertina vai
perdendo força. O horror passará a se instalar no drama de personagens menos excêntricos, e
por vezes não será mais que uma peça pregada pelo narrador.

3.2. Um terror de interesse doméstico

Em janeiro de 1863, a Revista Popular transforma-se em Jornal das Famílias, dentro


da seguinte linha editorial:

Jornal das Famílias é a mesma Revista Popular doravante mais


exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias
brasileiras. Mais do que nunca dobraremos os nossos zelos na
busca na escolha dos artigos que havemos de publicar,
escolhendo sempre os que mais importarem ao país, à economia
doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, em uma a
palavra, ao recreio e utilidade das famílias.315

A mudança feita para atingir mais especificamente os interesses domésticos


femininos, garantiria ao assinante, no fim de um ano, um “elegante volume de 384 páginas”
cujo conteúdo seria, fundamentalmente, “literatura amena, [grifo do meu] algumas
ilustrações, muitas gravuras sobre aço, desenhos a aquarela coloridos, ditos de trabalho de
crochê, lã e bordados; moldes de enfeites para senhoras, figurinos e peças de músicas inéditas,
etc.”. O repertório apresentado para atrair consumidores enfatiza peças artísticas cujo objetivo
maior seria o deleite cotidiano para as horas de ócio. A ênfase nos temas de moda e literatura
estaria relacionada ainda ao fato de o jornal passar a ser impresso em Paris, o que teria
melhorado a qualidade da impressão e barateado os custos mas o teria deixado desatualizado
como noticiário.
No ano de sua fundação é publicada “Flor do baile”, história de J.F. de Meneses
retratada como fato verídico, pois seu narrador, citando Dumas Filho, comenta: “Não tendo
ainda idade de inventar, contento-me em referir”. Diz estar cumprindo ordens dos editores:
“A redação deste jornal recomendou-me um conto simples e breve, e que pudesse entrar no
vosso toucador” e se diz honrado, pois “o toucador de uma dama é um templo: ali nas dobras
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
315
Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, p. 6, janeiro de 1863.

!
!132!

d’aquelas cortinas, quanto mistério e quanta poesia dormem em silencio”316. Trata-se de uma
história de amor com final trágico em que Luiz Antonio, poeta, estudante, sofre com a morte
de Thereza, descrita como “débil e mórbida”. O caráter boêmio do protagonista é destacado,
e, ao caracterizá-lo como diabinho, o narrador se justifica: “Leitoras, este termo aqui é um
sacrilégio, mas lembre-se de que Luiz Antonio era estudante”. A figura do acadêmico
romântico é utilizada na chave amena dos exageros do amor. O sofrimento não redunda em
orgias, mas no velar eterno do cadáver da amada, cujos restos mortais foram depositados no
cemitério São João Batista.
A tensão entre relato e ficção expressa na modéstia do narrador se faria presente em
outra história publicada no ano seguinte, “A fantasia da morte”, assinada apenas por Hopes. O
narrador – depois de lembrar as leis que escapam à razão humana – conta um “drama sinistro”
passado em uma capital da América do Sul. Trata-se de um “romance doloroso e triste” que
infelizmente não pertenceria “à fantasia do narrador”, e seria transcrito conforme lhe
permitissem os limites de sua memória. Quando relata o interesse da protagonista Angelita
pelos relatos das viagens de Júlio, amigo de seu marido, afirma: “Não há nada como as
descrições em que toma parte o maravilhoso para alucinar as imaginações femininas!”317. Um
passageiro interesse sexual de Angelita por Júlio a fez corroer-se pela culpa e a transformou
em um ser estranho que estampava no “semblante o selo fúnebre da sepultura”. Para se
redimir, a morta-viva matou o amante imaginário e se suicidou.
Nos dois contos as histórias de amor e morte são apresentadas como relatos verídicos
de um narrador que é apenas um relator. Tenta-se, pela recusa à dimensão ficcional das
tramas, uma identificação direta com as leitoras. Tratadas como verdades esquecidas ou fatos
testemunhados, as histórias transformam os salões de baile e salas de jantar em espaços de
representação de um medo eventualmente verdadeiro. As leitoras são convidadas a partilhar
os dramas de personagens comuns em situações carregadas de sofrimento. As páginas
dedicadas à literatura amena por vezes se transformam em crônicas de dramas possíveis,
descrições de supostos horrores cotidianos.
Essa literatura que adentra os mistérios do toucador tem a punição dos pecados como
um de seus mais recorrentes motes. Em “A mão de Deus”, de D. Maria de Albuquerque,
Leonor de Paiva convalesce aos vinte anos de idade. Confessa ao padre Arsênio ter o inferno
dentro do peito, devastada pelos prazeres acumulados nas orgias. Morre com “ondas de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
316
MENESES, J. F. de. A flor do baile. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, abril de 1863.
317
HOPES. A fantasia da morte. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, janeiro de 1864.

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!133!

sangue que lhe saíam dos lábios” 318. O horror emana das descrições de seu corpo em
perecimento e atinge o auge em sua súplica inútil pela vida. O tema da devassidão punida
reaparece no Jornal das Famílias não simplesmente como educação moral, mas como enlace
de dois modelos românticos diferentes.
Mas se, como dito anteriormente, o cinismo triunfante do horror literário acadêmico
e as possibilidades de redenção da literatura amena têm matrizes distintas, não raro elas se
encontram. Em “Ada”, conto assinado por Candido, o narrador lembra a beleza da poesia de
Lorde Byron319 ao mesmo tempo que lamenta ser o autor uma “alma infelizmente obcecada
pelas ideias do ceticismo perigoso introduzido na moderna filosofia”320. Na louvação da
beleza, mas também na crítica ao ceticismo de Byron, constrói-se uma trama cujo final
terrível se deve à renúncia sentimentos. A sublimação do desejo de uma das personagens
permite que o horror da morte seja redimido na felicidade conjugal de uma mulher nascida
sob o signo “de um dos maiores poetas do tempo”.
O mesmo tema que daria origem a histórias de perversão é apresentado como
contraponto virtuoso, e o medo que no horror acadêmico se estabelecia no jogo da
identificação com a libertinagem manifesta-se nas descrições de uma morte heroica.. O
fúnebre desenlace da trama é atenuado pela expectativa de amor eterno entre Ada e João da
Cunha.
Apresentada como relato verídico de aterradores acontecimentos passados no interior
do Pará durante a revolta da Cabanagem321, “Ida”, de Viriato Duarte, aproxima o romance
histórico do gênero gótico. Conta a história de amor entre Ida e Vimy, dificultada pela
presença do vilão indígena Aley-Ass. Os amantes fogem inspirados pela “virtude da paixão”
que os eleva para além da “vida real”, “esse charco imundo de vícios, de hipocrisia, de
ambição e de sangue”322. O contexto é descrito também com imagens fortes: “Corria o ano de
1835, tão funesto à província do Pará. As bacchanalias de sangue estavam em seu apogeu, e
os gritos das vítimas do punhal do assassino consternavam todo o império”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
318
ALBUQUERQUE. D. Maria de. A mão de Deus, Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, julho de
1867.
319
O título é uma referência ao nome da única filha do poeta inglês, Ada Augusta Byron King.
320
CANDIDO. Ada. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, fevereiro de 1869.
321
Sobre a revolta ocorrida na província do Grão-Pará promovida por grupos políticos interessados na
permanência da região como parte do Império português, ver: CHIAVENATO, Júlio José. Cabanagem, o povo
no poder. São Paulo: Brasiliense, 1984.
322
DUARTE, Viriato. Ida. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, junho de 1865.

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!134!

As cores desses “dias horríveis” eram dadas pela onda crescente de violência, e
“aqueles mesmos que matavam, e se embriagavam com o sangue, não sabiam o porquê dessa
carnificina!”. No final, o narrador lembra ser tudo verdade: nomes e lugares teriam sido
alterados, mas tudo se passara em alguma região do Pará. A violenta narrativa recorre a
determinado contexto histórico para lançar mão de mecanismos típicos da estética gótica. Um
vilão que tenta separar um casal apaixonado, lutas sangrentas, ambientes escuros, selvas
sinistras e desfecho melodramático compõem um cenário de horror em que a evocação de um
passado bárbaro cria a sensação de um mundo distante e amedrontador.
O sublime reaparece de maneira muito clara. Ao final da primeira parte há uma
reflexão sobre as belezas naturais que contrastam radicalmente com o horror dos crimes
humanos. A divindade da natureza ofereceria a possibilidade de redenção para o mais
sanguinário dos bárbaros, que deveria se curvar diante de tal magnitude e atingir “sensações
novas e elevadas”. Na contemplação, a alma abandonaria as misérias do mundo material para
repousar no “espaço sem fim” das harmonias celestes. Mais do que uma chave de apreciação,
o efeito é evocado em sua dimensão transcendental e regeneradora, a qual fomenta o belo
diante do horror disseminado.
O que se observa tanto em “Ida” quanto em Adelaide de Sargans, romance histórico
de D.C. Figueiras publicado em 1869, é a ênfase nas cenas de horror, como se toda a narrativa
convergisse para esses momentos de contrução do medo. A trama, sobre as infelicidades de
uma condessa, teria sido baseada em um livro de história encontrado pelo narrador em uma
noite de insônia na casa de um amigo, aonde fora para fugir dos temores noturnos: “Quantas
ideias esquisitas, quantos rumores indecifráveis, quantas extravagâncias me esvoaçaram pela
mente! Como andou veloz e fecunda a fantasia em criar-me sombras, preocupações e terrores
infantis!”323. A história seria fielmente baseada em fatos ocorridos com a nobreza suíça, com
castelos suntuosos como palcos de crimes e cenas violentas. A proximidade com o romance
gótico é evidente. Heróis e vilões nobres se articulam pelo poder, e a condessa de Wart é um
modelo de virtude que passa por numerosos infortúnios enquanto Ignez da Hungria cumpre o
papel de vilã sem escrúpulos. Eis uma amostra dos horrores da época nas palavras do
narrador:

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!135!

O sangue que corria dos teus cadafalsos tingia de carmim as


águas azuladas do teu lago, e o braço do carrasco cansou! A
desconfiança, a espionagem, o furor da vingança derramaram
um véu de luto sobre ti e teus arredores, e o próprio céu,
escondendo as límpidas estrelas, pareceu recusar-se a refletir as
hediondas cenas! Não pensem nossas leitoras que exagero
quando assim me exprimo. A história oferece aos curiosos
exatos pormenores de todos os fatos e acontecimentos daquela
época, e são tão precisos os dados, e acordes os historiadores,
que não é lícito duvidar da veracidade do que contam. É fora de
duvida, por exemplo, que subiu a muito mais de mil e trezentos
o número de vítimas oferecidas em holocausto sobre o túmulo
de Alberto de Áustria, por sua viúva e por sua filha Ignez,
rainha de Hungria.324

O esforço de representação do horror se vale do expediente histórico para exagerar


os quadros assustadores da violência. Há uma deliberada ênfase na dor das vítimas e nas
atrocidades da vilania. A redenção afigura-se improvável quando considerados os momentos
de tortura. Mesmo a história de amor entre Adelaide e Rodolfo aparece como suporte às cenas
chocantes que o narrador precisa reafirmar como verdadeiras, sob o risco da descrença e a
consequente perda do efeito de horror. Apesar de toda a desgraça narrada e mesmo após o
assassinato dos heróis, há lugar para redenção, quando a malévola Ignez tem uma visão, quase
enlouquece e se arrepende de seu passado vingativo. No entanto, restam as cenas de horror
como mecanismo de dramatização de um mal que não se apaga completamente e que é
baseado na representação violenta de um passado medieval, obscuro e estranho.
Um sentido histórico diferente define “A cruz de fogo”, assinado por Leo Junius325
em 1871. Contando o drama de uma linhagem de homens desgraçados, marcados pela cicatriz
de uma cruz no peito, o texto traz arrepiantes cenas de violência passadas no Brasil:

O Brasil com seus campos matizados de flores vicejantes, com


suas florestas virgens, seus regatos que murmuram docemente,
seus rios caudalosos e seus rochedos e montanhas majestosas,
encerra no solo abençoado riquezas imensas, que olhos
observadores ainda não puderam de todo pesquisar. Este solo,
porém, mais de uma vez tem sido juncado de cadáveres, regado
com o sangue de mais de uma vítima, que a sede de ouro, ou a
vingança terrível de seus filhos tem derramado. Mais de um
crime se tem cometido, mais de um drama horrível com todas
as suas peripécias tem passado despercebido, sem que o
historiador narrando os acontecimentos da época, pintando os

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
324
FIGUEIRAS, D. C. Adelaide de Sargans. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, março de 1869.
325
Lembramos que se trata do pseudônimo de José da Rocha Leão.

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!136!

costumes, ou descrevendo os tipos fisionômicos de seus


autores, escreva a crônica desses fatos, e assim leve ao
conhecimento da geração vindoura a história desses dramas
sanguinolentos, que fazem estremecer de horror o coração
humano.326

É como se o narrador denunciasse a ausência de relatos sobre os crimes cometidos


em terras brasileiras. Se nem as belezas naturais foram devidamente retratadas, os delitos
foram ainda menos contemplados por historiadores. O drama de João da Cruz, sujeito
amaldiçoado que vaga pelo mundo envolvido em crimes e cujo destino trágico – morrer na
estrada e ser devorado por corvos – é transmitido para outras gerações, serve de mote para a
dramatização de um Brasil violento, temível e sem leis.
O tema do errante desgraçado reaparece no sofrimento de um homem que expõe sua
miséria “aos raios do sol abrasador do Brasil”. A nacionalização do motivo, enfatizada na
categorização de “romance original brasileiro”, implica a descrição de alguns cenários locais,
mas se efetiva sem descaracterizar a dimensão trágica fundamental. O drama sangrento
pressupõe um esforço inicial de identificação histórica, apresentado como verdade oculta
motivada pela ganância e pela vingança, e a trama que se resolve nas previsões de uma
feiticeira busca alicerçar-se como possibilidade verossímil apenas temperada com elementos
fantásticos.
O caráter histórico, no entanto, não está delineado em uma estrutura política, é
apenas a imagem de um passado obscuro não necessariamente superado. As cenas de
crueldade são oferecidas às gentis leitoras como entretenimento; horror ao mesmo tempo
possível e distante; imagens de uma terra estranha, mesmo que brasileira. A relação entre
romance gótico e romance histórico na chave da literatura amena seria marcada pela
nacionalização dos motivos, e o principal objetivo é aparentemente a empatia.
Obviamente o problema do nacionalismo está no horizonte, mas, no caso específico
dos textos analisados, a ênfase parece recair na descrição do horror, potencializado por se
passar em território comum. A dramatização do passado, portanto, serve às representações de
um Brasil imaginado na mesma medida em que constrói um cenário conveniente para a
imaginação literária do horror.
De maneira geral, a representação do Brasil não será prioritária na chave do horror
ameno. Ele será mais claramente definido pela presença de um narrador astucioso que joga

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
326
JUNIUS, Leo. A cruz de fogo. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, novembro de 1871.

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!137!

com as expectativas dos leitores. Em “Horrível tragédia”, de D. Maria Medeiros de


Albuquerque, a narradora conta que, uma noite, Margarida, ao voltar do teatro, entra em seu
quarto de toucador e percebe uma desordem em sua casa, como se “um terrível drama se
tivesse representado”. Indo ao outro cômodo encontra seu marido morto. Desesperada, grita e
é amparada pela criada, que lhe diz que tudo não passara de um “sonho, filho das tristes
impressões desta noite”327. A começar pelo título, toda a estrutura sugere uma história terrível,
mas a expectativa é desfeita em um final que resolve os efeitos de suspense como um jogo.
Essa forma particularmente gentil de horror terá em Machado de Assis um dos mais
recorrentes artífices328.
Sílvio Romero afirmou em uma de suas críticas que os textos machadianos são
recheados com doses de humor e “às vezes de cenas com pretensão ao horrível”329. Tais
características teriam se manifestado em um segundo momento de sua obra, como desvio de
um lirismo suave que lhe seria característico e consequência de suas pretensões filosóficas,
que se expressariam no humor e no horror. Mantendo o tom crítico em relação ao escritor
carioca, disse ainda que faltaria um grau de impávida loucura que fizesse suas cenas de horror
tão medonhas quanto as de Edgar Allan Poe, ou de Dostoiévski em Recordações da casa dos
mortos.
O primeiro conto de Machado de Assis publicado no Jornal das Famílias foi “Frei
Simão”, em junho de 1864. A frequência de sua participação no periódico aumentaria com o
tempo, e no que tange ao problema do horror, “O capitão Mendonça”, publicado em 1870, é o
marco inicial.330A história começa quando Amaral, querendo fugir da solidão, decide ir a um
espetáculo no teatro São Pedro sem saber exatamente qual peça seria apresentada. Ao se
sentar tem seu nome chamado por um desconhecido que se apresenta como o Mendonça e que
diz ter sido amigo de armas de seu falecido pai. Diante da peça enfadonha e pelo fato de o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
327
ALBUQUERQUE, D. Maria de. Horrível tragédia, Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, maio de
1867.
328
Os textos machadianos analisados neste e no próximo tópico foram selecionados tendo em vista a
tentativa de construção de efeitos específicos. Contos como “O país das quimeras” e “A igreja do diabo”, por
exemplo, apesar da alusão ao fantástico não foram selecionados por não se enquadrarem exatamente na lógica de
imaginação do medo priorizada neste estudo. De qualquer maneira o objetivo aqui não é dar conta de toda
extensa produção de contos do escritor, apenas analisar duas modalidades distintas de exploração do horror.
329
ROMERO, Sílvio. Compêndio de história da literatura brasileira. Org. Luiz Antonio Barreto. Rio
de Janeiro: Imago, 2001, p. 28.
330
Segundo Daniela Magalhães Silveira Machado de Assis teria publicado 84 contos no Jornal das
Famílias, alguns assinados com pseudônimos. SILVEIRA, Daniela Magalhães. Contos alinhavados: a
participação de Machado de Assis em periódicos de moda e literatura. Vol. 8, nº 11, junho de 2011. Dossiê
História e literatura. Disponível em: http://migre.me/hyCKW . Acesso em: 20 nov. 2012.

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!138!

capitão parecer uma figura interessante, Amaral aceita o convite para cearem em sua casa. Ao
entrar o jovem se depara com um cenário sinistro: a entrada da casa parecia o “corredor do
inferno”. Mesmo tremendo de medo e desconfiando tratar-se de uma emboscada, decide
continuar.
O sentimento de horror é apaziguado pela presença de Augusta, moça de belos olhos
verdes que Amaral julga ser filha do capitão. O jantar transcorre bem, a jovem passa a ser seu
laço com a realidade naquele cenário fantástico que o próprio dono da casa define como
“purgatorial”. Os três conversam descontraidamente quando Mendonça comenta a beleza dos
olhos de Augusta e obtém total concordância de Amaral. Surpreendentemente, o capitão
oferece os olhos da moça ao rapaz, que se assusta. De maneira tragicômica, Amaral descobre
que a moça era uma criação de Mendonça, sua obra-prima, esforço de anos de dedicação ao
conhecimento científico, especialmente à química e à alquimia. Assustado, mas curiosamente
atraído por Augusta, decide ir embora, mas, ameaçado de morte, promete voltar no dia
seguinte. O acontecimento fantástico o lembra uma trama literária: “Ocorreu-me um conto
fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir
criaturas humanas. A criação romântica de ontem não podia ser a realidade de hoje?”331.
Perdido entre os limites da razão e a loucura, Amaral se apaixona por Augusta assim
como Natanael se apaixonara por Olímpia, autômato do clássico O Homem da areia. Dando
vazão ao absurdo, Amaral a pede em casamento, obtendo o consentimento do seu criador, que
afirma serem o amor e a ciência as duas grandes faces da vida. A aquiescência de Mendonça
acompanha um estranho pedido: o rapaz deveria ser cobaia em uma experiência que visava
transformá-lo em gênio – afinal, a perfeição de Augusta exigia um par à altura. Quando
acorda imaginando que lhe fora introduzida determinada quantidade de éter no cérebro,
Amaral se encontra sozinho deitado na cadeira do teatro São Pedro. Tudo não passara de um
sonho. Ao sair, o bilheteiro lhe entrega um bilhete do capitão: ele estava dormindo quando o
capitão o encontrou e, para não incomodá-lo, deixou nas mãos do funcionário o convite para
uma visita. Mesmo convencido de que o Mendonça real não era o do sonho, declina do
convite afirmando: “Berrem os praguentos, embora: tu és rainha do mundo ò superstição.”332
Um dos elementos centrais do conto é o tratamento jocoso de um dos mais marcantes
temas românticos: o amor fulminante. Amaral se apaixona por Augusta mesmo depois que
seu pai lhe oferece, literalmente, seus olhos. Mesmo sabendo tratar-se de uma máquina, não
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
331
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.970.
332
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 974.

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!139!

resiste aos seus atributos, e, por força desse encantamento, penetra cada vez mais
profundamente em uma situação absolutamente absurda quando a reação evidente seria fugir.
O clima de horror se faz nessa tensão, nessa articulação entre o que deveria ser uma resposta
óbvia e o que de fato acontece. Por que Amaral volta ao cenário de horror? Por que insiste em
se envolver com um cientista louco e um autômato sedutor? As perguntas encaminham a
leitura, e o aspecto propriamente inacreditável fica em segundo plano. O crível e o não crível
ganham outra dimensão, passam a se referir mais às ações imponderadas do protagonista do
que à possibilidade de construir autômatos.
Zombar das perspectivas românticas aparece uma forma de jogar com os limites da
ficção. Quando, comentando Hoffmann, Amaral se indaga sobre a possibilidade da criação
romântica de ontem ser a realidade de hoje, ele suspende o sentido fantástico para tentar lhe
atribuir verossimilhança. Orienta seus atos entre a crença e a desconfiança, perdido entre
aquilo que seus olhos veem e o que determinado princípio de realidade define como possível.
Quando acorda do pesadelo anuncia uma resolução: “Não mais recorrer, em casos de arrufo,
aos dramas ultrarromânticos: são pesados demais.”333. Tão pesados e enfadonhos que lhe
fizeram sonhar uma história fantástica que ri de seus princípios e por isso torna-se
interessante334.
Se o drama apresentado no teatro era marcado por assassinatos e tinha caráter
trágico, o sonho de Amaral ganha a cena como anedota fantasiosa, um pesadelo que se
esclarece no final. Esclarece, mas deixa uma sombra de dúvida manifestada na superstição do
protagonista. No retorno ao princípio de verossimilhança evidencia-se a estratégia de ir do
familiar ao estranho, do crível ao incrível. Se o amor de Amaral parece possível pela via
romântica, o fato de o alvo da paixão ser uma boneca ressalta o absurdo, assim como a
revelação do pesadelo opera um retorno ao verossímil imediatamente questionado na
permanência da superstição.
O universo onírico é explorado também em “A vida eterna”, publicado no Jornal das
Famílias, em 1870, sob o pseudônimo de Camilo da Anunciação. O conto apresenta a história
de um homem que, depois de jantar com um amigo, estando quase a dormir, recebe a visita de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
333
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 973.
334
Outro conto que claramente zomba de temas românticos é “A mulher pálida”, publicado em 1881 no
periódico A Estação. Um jovem morre procurando a mulher mais pálida por quem se apaixonar: “Alguns creem
simplesmente que ele estava doido; e esta opinião, posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em
todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.”. No
sofrimento do protagonista, tanto o idealismo do amor perfeito quanto a obsessão um tanto mórbida pela
brancura da pele são alvos de ironia, tratados como possível traço de loucura.

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!140!

um estranho chamado Tobias, que lhe fala do pressentimento de que morreria no dia seguinte.
Seu último desejo seria que Camilo, o dono da casa, se casasse com sua filha Eusébia. Depois
da recusa inicial, é forçado a aceitar o convite sob a mira de uma arma. Chegando à estranha
mansão de Tobias, o noivo é saudado pelos convidados que o aguardavam. O mais estranho,
porém, viria a seguir, quando Camilo se depara com a jovem noiva. A paixão inusitada parece
correspondida; Eusébia diz que seu pai não poderia ter escolhido melhor pretendente, mesmo
considerando a idade avançada do noivo.
Depois do casamento, Eusébia revela o segredo por trás daquela história absurda.
Seu pai havia descoberto, no Egito, o elixir da eternidade e, para que funcionasse, foi
necessário “organizar uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu,
um velho maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima”335.
Conta que inúmeras vítimas já haviam sido sacrificadas, e ele seria a próxima. Nesse instante
seu pai entra no quarto, prende Camilo e o amarra em uma mesa, matando-o com um punhal.
O banquete que se segue é narrado em tons de uma comédia grotesca. De repente, o
esquartejado ouve a voz do Dr. Vaz. Assustado, pergunta pelos canibais, para logo descobrir
que tudo não passara de um pesadelo. No outro dia, Camilo sai para jantar com o amigo, que
lhe sugere que escreva e mande a história ao Jornal das Famílias, comprometendo-se a
entregá-la pessoalmente ao editor Garnier.
O jogo de pistas falsas que cria a atmosfera de horror se dá logo no início do texto. O
narrador deixa claro que se encontra naquele incomparável estado de espírito entre o sono e a
vigília. É como se dissesse de antemão para o leitor que os acontecimentos que se seguirão
não são de todo confiáveis. Um narrador duvidoso torna toda a trama isenta de grandes
responsabilidades com a verossimilhança. O leitor é convidado a seguir um caminho turvo,
avisado de que o que está por vir deve surpreendê-lo. Todavia, algumas estratégias são
utilizadas para encobrir a fantasia. Quando Camilo se apaixona por Eusébia, toda a falta de
sentido como que se desfaz. Novamente aqui, o tema romântico do amor incondicional é
utilizado para injetar realidade no absurdo. Por um momento o amor imediato de Camilo
parece dar rumo à trama sem nexo.
O inverossímil é quase coerente pela lógica de uma hipótese sentimental igualmente
difícil de acreditar. Tais contradições reforçam a debilidade do texto e deixam permanecer um
clima de incerteza resolvido pelo final anedótico. A incerteza, no entanto, não polariza
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
335
ASSIS, Machado de. Contos fantásticos de Machado de Assis. MAGALHÃES Júnior, Raimundo
(Org.). Rio de Janeiro: Bloch, 1973, p.112.

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!141!

realidade e ficção, mas níveis ficcionais distintos. Em nenhum momento se duvida do caráter
irreal da narrativa, haja vista que, durante o clímax, o protagonista morto é capaz de ouvir as
vozes daqueles que o esquartejam. A dúvida gira em torno do desfecho, da expectativa pelo
momento em que o absurdo ficcional encontrará seu limite – a falsa fictio encontrará a vera
fictio336.
O retorno ao verossímil é garantido por uma metalinguagem humorística, quando o
conto se anuncia como tal – ele chega a ser assinado pelo protagonista. O pseudônimo nesse
caso reforça a piada, o jogo, que não chega de fato a iludir o leitor, mas o coloca em uma
situação curiosa, na qual o mais deliberadamente ficcional é sobrepujado pela ficção
verossímil. Trata-se de um conto publicado no jornal que esse leitor tem nas mãos. O
fantástico está a serviço da verossimilhança absoluta, e a ilusão se completa quando um
narrador-autor se transforma no relator de uma história ao mesmo tempo insólita e real.
A tensão entre o simples relato e a ficção reaparece em “Sem olhos”, que Machado
de Assis publicou em 1876. O conto se inicia na sala de chá onde o casal Vasconcelos recebe
quatro convidados. Quando a conversa passa a ser sobre almas do outro mundo, o Sr. Bento
Soares se diz surpreso quanto ao fato de um adulto levar crendices a sério; ele entende
histórias sobrenaturais como coisa de criança. O desembargador Cruz retruca: A vida de um
homem “não passa de uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras”337. O
evento transcorre bem, apesar do clima de flerte entre Maria do Céu, mulher de Bento Soares,
e o bacharel Antunes, um dos convidados. A certa altura, o desembargador Cruz revela ter
vivido uma experiência extraordinária que levaria todos a rever seus conceitos sobre tais
almas de outro mundo. Mesmo relutante, depois dos convivas muito insistirem, decide contar
a história.
Ela começa quando Cruz, jovem estudante da capital paulista, visita a fazenda do pai
no Rio de Janeiro. Certa noite um vizinho lhe bate a porta perguntando se o rapaz sabia ler
hebraico, pois estava às voltas com uma passagem bíblica, um versículo de Jonas, o 11º do
capítulo IV: “Homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e sua mão esquerda”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
336
Em “O imortal” e a verossimilhança”, João Adolfo Hansen define ficção verdadeira, vera fictio,
como narração que relaciona a essência verdadeira de algo com eventos não acontecidos; já a ficção falsa, falsa
fictio, inventa algo impossível de existir e, assim, de acontecer. O autor salienta ainda que ambas são produtos de
uma operação da imaginação, uma técnica, forma e efeito aplicados ora ao conhecimento da essência, ora ao
conhecimento da existência. HANSEN, João Adolfo. O imortal e a verossimilhança. In: Teresa: Revista de
Literatura Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Editora 34, vols. 6/7, p. 58.
337
ASSIS, Machado de. Sem olhos. In: Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira.
ESTEVES, Lainister de Oliveira. (Org.). Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010, p. 73.

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!142!

Diz não compreender exatamente o significado daquelas palavras, mas oferece uma estranha
explicação que Cruz ignora tentando rapidamente se despedir do homem que lhe pareceu
louco. No outro dia, ao buscar informações sobre o vizinho misterioso, descobre se tratar de
um médico que algumas pessoas da comunidade local julgavam ter pacto com o diabo.
Interessado no que poderia se transformar em “uma anedota romântica” a ser contada em São
Paulo, o jovem vai visitar o médico identificado como Damasceno Rodrigues.
Rapidamente começam uma amizade. Cruz descobre em Damasceno uma figura
fascinante e excêntrica o suficiente para afirmar que a Lua não existe, é apenas uma ilusão de
óptica. Em uma das visitas encontra o velho adoecido que, pressentindo a morte, lhe dá um
conselho: “Mancebo, disse ele com a voz cava; não olhe nunca para a mulher do seu
próximo” e “sobretudo não a obrigue a olhar para o senhor. Comprará por esse preço a paz de
sua vida toda”. Dito isso lhe conta a terrível história de quando, no interior da Bahia, se
apaixonara por Lucinda, mulher casada com um médico da região que ousou lhe retribuir os
olhares apaixonados e foi punida pelo marido. Ele mostra uma foto ao jovem e lhe diz que, ao
saber de boatos sobre sua morte, decide ir falar com o marido. Chegando a casa se depara
com uma cena terrível, em que Lucinda é castigada.
Narrando a história macabra, que Cruz destaca ter sido relatada com lucidez não
habitual ao narrador, Damasceno se debate ao olhar para um canto do quarto: “Seus olhos
resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana”. Assustado, Cruz olha na
mesma direção e vê “uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos
[…] Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensanguentadas”. O desembargador diz que
depois de se refazer da experiência, e do médico ter morrido, fez uma pesquisa para escrever a
história para um jornal acadêmico. Descobre que Damasceno nunca fora a Bahia, e a foto que
lhe dera era de uma sobrinha morta. “Não havia dúvida: o episódio que ele me referira era
uma ilusão como a da Lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de
alienado.”338. No entanto fica a dúvida: quem seria a mulher sem olhos que ele vira no quarto?
Não é dada nenhuma resposta definitiva ao mistério, e o conto termina com Maria do Céu
com os olhos baixos, estremecida com as palavras do desembargador enquanto o bacharel
Antunes vai para janela tomar um ar, “talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar
algum dia um hebraísmo das Escrituras”339.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
338
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102.
339
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102.

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!143!

Não é muito difícil imaginar que a história não passe de uma anedota inventada pelo
desembargador Cruz a fim de repreender o discreto flerte entre Maria do Céu e Bento Soares.
“Não olhe nunca para a mulher do seu próximo”, afirma o protagonista adiantando a moral da
trama. Também não é difícil imaginar que esse tipo de mensagem seja conveniente em um
jornal voltado para mulheres da boa sociedade. Moralismos à parte, o que sobressai é o efeito
persuasivo de uma história aparentemente fantástica que se resolve como alucinação
psicológica, uma vez que um dos convidados tenta solucionar o mistério, o que sugere que a
visão fantasmagórica de Cruz teria sido condicionada pelos desvarios do moribundo. O
desembargador chega a concordar, resignado: a história seria melhor se Lucinda de fato
tivesse existido; afinal “que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com
ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos
estranhos?”340.
Caso a história fosse completamente verdadeira estariam todos diante de uma
monumental tragédia de intrigas e traições comparáveis aos melhores dramas
shakespearianos. Mas, infelizmente para o auditório, a trama não é tão misteriosa, nem tão
interessante. Ela tem apenas o objetivo de entreter a plateia enquanto repreende o casal de
possíveis amantes.
É preciso lembrar que, logo no início do conto, Bento Soares afirma que a crença no
sobrenatural é coisa de criança, ilusão imprópria para homens feitos. Em um texto de 1927
sobre o humor Freud diz que o humorista trata a plateia como criança, pois ri de seus dilemas
e sofrimentos e os tratas como triviais. Com ares de superioridade, zomba: “Olhem! Aqui está
o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas que se
faça dele uma pilhéria!”341
O narrador apresenta uma história sobrenatural e tenta torná-la factível na medida,
por exemplo, em que ressalta o ar de sanidade do médico, mas logo a desmonta ao revelar a
inexistência de Lucinda. Literalmente infantiliza sua plateia, manipulando-a em um jogo de
pistas que se contradizem. No final, ao expressar sua frustração com o fato de a história não
ser de todo real, apresenta sua feição sarcástica. A astúcia fica ainda mais evidente se
lembrarmos que, no início da conversa, é justamente ele que defende a possibilidade da
crença no sobrenatural, quando afirma que a vida do homem não passa de uma série de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
340
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102.
341
FREUD, Sigmund. O humor. [1927]. Rio de Janeiro: Imago, 1980, p. 68. (Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas, vol. XXI.)

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!144!

infâncias. Defende matreiramente a fantasia para garantir o ar de verossimilhança a uma


história que se revela falsa.
Talvez seu único objetivo seja, no papel de humorista, divertir-se com o
constrangimento de Bento Soares e Maria do Céu. Não por acaso, assim que termina a
narração pergunta: “Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?”. Importante também é
destacar que o interesse de Cruz pelo mistério tem como motivo a intenção de publicar a
história em um periódico acadêmico de São Paulo. O mesmo interesse por tramas macabras
une diferentes perfis de leitores, e o que interessaria aos estudantes como evento sobrenatural
transforma-se em literatura amena no singelo constrangimento dos possíveis amantes.
Assim como “Sem olhos”, “Um esqueleto”, conto de 1875, começa com uma
conversa sobre assuntos variados que envereda pelo caminho do estranho. A figura exótica,
nesse caso, é Dr. Belém, e quem narra a história é Alberto, seu aluno de alemão que fala
comovido de saudades: “Não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime
em rebentar-me dos olhos.”342. Passa então a contar a história do esqueleto, pois, segundo ele,
seria suficiente para demonstrar toda a excentricidade do erudito doutor. Instaura-se um clima
tétrico, e Alberto diz que um dia, no fim de uma das aulas, conversando sobre casamento o
professor, que era viúvo, subitamente decide se casar. Já teria até a noiva em mente, uma
jovem viúva chamada Marcelina. Perguntado sobre a esposa anterior, sem grandes cerimônias
Dr. Belém convida Alberto para ir vê-la. Já dentro de seu gabinete, arranca o pano verde de
um armário e mostra o esqueleto da ex-mulher, surpreendendo o estudante. Este comenta com
os ouvintes: “Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito,
não posso lembrar-me daquela cena sem terror.”343
Assustado, o jovem vai embora e decide nunca mais voltar àquele cenário horrível.
No entanto, diante da insistência do doutor, que apela para sua amizade, depois de algumas
semanas está de volta à casa do Dr. Belém, que já havia se casado com Marcelina. O pior
ainda estava por vir. Dr. Belém se revela o assassino de sua primeira esposa, em um crime
passional por suspeita infundada de traição. Diz ainda que o esqueleto funciona como um
alerta para que a atual esposa não dê margens a suspeitas, pois faria justiça com as próprias
mãos mesmo antes de apurar os fatos. Embora assustado, Alberto continua com as visitas até
que um dia os três saem para um passeio no campo e se deparam com o esqueleto. O doutor
explica seu plano de matar a ambos, pois recebera uma carta anônima que revelava um caso
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
342
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 814.
343
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 815.

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!145!

entre os dois. Os acusados negam a história, mas o marido continua desconfiado. No entanto,
desiste dos assassinatos e some no mato carregando o esqueleto. A história termina com
Marcelina aos prantos nos braços de Alberto. Diante do clima de horror instaurado entre os
convivas, Alberto anuncia que a história não passava de uma anedota. O excêntrico Dr. Belém
nunca existiu.
Cabe analisar as estratégias de persuasão que orientam a busca de credibilidade. A
articulação do sentido duvidoso do conto se manifesta, basicamente, na representação de Dr.
Belém como homem “extremamente singular”, cuja bondade é sempre destacada pelo
narrador, que chega a justificar a presença do esqueleto como desdobramento possível do
amor que o doutor sentia pela esposa. A incerteza em relação a seu caráter faz com que
Alberto nutra uma relação de atração e repulsa. Ele tenta deixar de visitar a casa, sempre sem
sucesso. Seu retorno constante é um traço marcante das histórias de horror nas quais o
protagonista insiste em voltar para o lugar onde será vítima de alguma situação macabra. É o
caso, por exemplo, de “O barril de amontilhado”, de Edgar Allan Poe. Fortunato insiste em
entrar na catacumba sinistra onde será assassinado, apesar das irônicas tentativas de dissuasão
de seu assassino.344 Alberto, por sua vez, retorna para surpresas cada vez mais assustadoras:
primeiro vê o esqueleto no armário, depois na mesa de jantar e no final ainda é levado a uma
emboscada, da qual sobrevive graças a um arrependimento de última hora.
Construindo um personagem entre a loucura e a razão, com motivações sinistras e
precariamente explicadas, o narrador consegue prender a atenção da plateia sem ser
interrompido. A relação entre o crível e o absurdo garante o prolongamento satisfatório da
narrativa, mas o instrumento de persuasão mais eficaz aparece antes mesmo de a história
começar. Vale lembrar que Alberto chora ao começar a falar do personagem inventado. As
lágrimas são sua mais expressiva piada e o mais poderoso mecanismo de fazer crer. Com o
truque ganha o auditório, que se frustra ao se descobrir enganado, não sem antes manifestar-se
revoltado contra o tal Dr. Belém.
A malícia do narrador é o próprio motor dramático do horror. Este, por sua vez, só
funciona graças à articulação de diferentes níveis de ficção. A frustração da plateia antecipa a
do leitor e o que era crença parcial no absurdo transforma-se em convicção absoluta nos
limites da realidade. O horror desaparece quando o artifício é escancarado; desaparece sem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
344
POE, Edgar Allan. Tales of grotesque and arabesque. London: Worth Press, 2009.

!
!146!

nunca se completar perfeitamente porque o esse artifício nunca se camufla por completo, está
presente como um pressuposto da lógica da amenidade.
A artimanha do narrador novamente dá lugar ao sonho no conto “A chinela turca”,
de Machado de Assis, publicado no jornal A Época345, em 1875. Logo no início da história,
bacharel Duarte aguarda a visita do major Lopo Alves; visita inoportuna, pois o bacharel
estava ansioso para ir a um baile encontrar sua amada Cecília. Porém, sendo o major
aparentado com a jovem, não pode negar o encontro. A visita se mostra ainda mais
desagradável quando Lopo Alves, inspirado por um drama ultrarromântico, diz ter escrito seu
próprio, e exige um parecer imediato de Duarte. Sem ter como negar, senta-se em seu
gabinete para ler a peça. Dividida em sete quadros, o drama não traz nada de novo, “somente
a letra do autor”; trata-se de um desfile de clichês românticos. Depois de ler o segundo
quadro, enfadado e furioso por ter perdido o baile, dá-se conta de que o major já não se
encontra na casa.
Um dos empregados de Duarte o informa de outra visita, desta vez de um policial. O
homem lhe dá uma notícia inusitada: Duarte está sendo acusado de roubar uma valiosa
chinela turca vinda do Egito. Ainda sem entender o que se passa, Duarte descobre que na
verdade está sendo vítima de sequestro. É levado para uma casa elegante onde é obrigado a se
casar com a dona da tal chinela, uma belíssima mulher loura de olhos azuis como os de
Cecília. Duarte, no entanto, mostra-se contrário ao casamento, mas o mestre da estranha
cerimônia o obriga a fazer três coisas: casar-se, assinar um testamento e tomar veneno,
fazendo da moça herdeira universal de sua “fortunazinha de cento e cinquenta contos”.
Desesperado, o bacharel consegue fugir por uma janela entreaberta. Cansado e ofegante, entra
em outra casa, onde se depara com um homem que está lendo o Jornal do Commercio: era
Lopo Alves, que aguardava o parecer sobre seu drama. Descobre que tudo não passara de um
sonho, diz sarcasticamente ter gostado da peça, e o major vai embora.
Novamente se está diante de um narrador ardiloso que tenta fazer crer no absurdo.
Ardiloso e sarcástico, pois narra a história comicamente fazendo pastiche dos dramas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
345
Revista literária fundada por Machado de Assis e Joaquim Nabuco em 1875 que durou apenas quatro
números. Sobre o conto e o periódico o escritor comenta: “Este conto foi publicado, pela primeira vez, na Época
nº 1, de 14 de novembro de 1875. Trazia o pseudônimo de “Manassés”, com que assinei outros artigos daquela
folha efêmera. O redator principal era um espírito eminente, que a política veio tomar às letras: Joaquim Nabuco.
Posso dizê-lo sem indiscrição. Éramos poucos e amigos. O programa era não ter programa, como declarou o
artigo inicial, ficando a cada redator plena liberdade de opinião, pela qual respondia exclusivamente. O tom
(feita a natural reserva da parte de um colaborador) era elegante, literário, ático. A folha durou quatro números”.
ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, vol. II.

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!147!

românticos. Enganado por sua imaginação, devolve a peça ao leitor, vítima de uma ilusão que
o salvou do tédio; retribui seguro de não ser ela entediante justamente por escapar dos
lugares-comuns de um romantismo clichê. O fim do conto guarda uma atribuição de valor: a
história pode ser falsa, absurda, mas é original e não há de ser entediante.
Toda a trama gira em torno da fuga, fuga mental de uma história enfadonha que se
converte em fuga de uma cerimônia macabra, devaneio fantástico como forma de escapar do
tédio. No retorno a determinado sentido de realidade, quando uma forma ficcional verossímil
se sobrepõe a uma menos crível, o mistério se esclarece na exaltação dos momentos de triunfo
da fantasia. Na dramatização do confronto entre a vera ficio e a falsa fictio, a primeira, apesar
de mais poderosa, mecanismo de fechamento da narrativa, faz um tributo à segunda,
dispositivo mais eficaz de dissolução do tédio. O agradecimento do protagonista à ninfa vem
acompanhado da constatação de um “bom negócio”: um pesadelo é ainda melhor que o tédio,
o medo é ainda melhor companheiro que o clichê.
Tendo como ponto em comum uma explicação final que garante certa estabilidade ao
sentido das tramas, os contos analisados fazem do horror anedota cômica. Trazem situações
que beiram o inexplicável para que a explicação venha em um tipo de metalinguagem que
denuncia o artificial como artifício. Quando a resolução, ao mesmo tempo frustrante e
reconfortante, é apresentada e o jogo de cartas marcadas se esclarece, ficam evidentes as
artimanhas literárias de persuasão para o suspense. O final é então a última risada de um
narrador malicioso e pretensamente onisciente que não só passa a impressão de ter o domínio
do sentido do texto como o faz como zombaria. Aqui o horror é definitivamente uma piada
forjada para exaltar uma retórica do suspense, é um mecanismo de triunfo do verossímil sobre
o inverossímil.
Talvez a lógica de circulação dos textos de Machado de Assis até aqui apresentados
(somente “A chinela turca” não foi publicado no Jornal das Famílias) ajude a explicar o
dispositivo anedótico de retorno a um sentido ficcional verossímil. Escritos dentro de uma
proposta editorial de literatura amena, os contos são compostos em torno de uma
autoexplicação. As cenas perturbadoras e os mistérios dramatizados encontram solução,
resolvem-se para que o sentido de amenidade seja preservado, ainda que parcialmente. As
conclusões preestabelecidas garantem certa segurança à tecedura das tramas, resolvidas entre
a satisfação precária da explicação fácil e a frustração contraditória de um perigo que se
perde.
Na articulação entre a vera fictio e a falsa fictio a segurança parece garantida pela
aproximação da ficção com determinado sentido de verossimilhança. O curioso é que nesse
!
!148!

retorno a ficção potencializa seu efeito de realidade simplesmente por ter sido posta diante de
uma versão mais radical de si mesma. Na restituição da verossimilhança, o literário ganha
força como imaginação segura ao consagrar a ficção como artefato de consumo cotidiano. O
fantástico aparece como dispositivo controlado contra o tédio, marca de uma ficção que faz
uso objetivo da fantasia para fins de entretenimento.
A noção de literatura amena que Carlos Augusto Ferreira classificou no prefácio de
suas Histórias cambiantes (1874) como “leitura fácil”, contos lidos de “um sorvo, duas horas
antes de a leitora adormecer”346, implica uma lógica de recepção baseada na relação de
confiança entre texto e leitor. Ao se pronunciar como amenidade, essa literatura antecipa a
recusa de qualquer aspecto mais potencialmente perigoso. Vendida de antemão como produto
aprazível para horas de lazer, a literatura amena garante seu espaço no jornal, pois convive
harmoniosamente com artigos sobre moda e culinária. A estranha presença do horror ficcional
alude à demanda por um tipo particular de ficção, entendida como repertório anedótico de
casos pitorescos e engraçados.
A presença do narrador se estabelece com certo grau de intimidade com o leitor e se
expressará mais claramente no tom jocoso dos finais. Frequentemente representando sua
própria plateia, essas histórias apontam o lado perturbador e tenso das dramatizações do
insólito, mas ao serem resolvidas como amenidade, zombam dos crédulos eventualmente
seduzidos pelo narrador. Nesse jogo os lugares-comuns do horror literário anunciam a troça
pregada em seus consumidores.
O paradigma dessas tramas é o tratamento infantil dado ao leitor e consequentemente
o próprio horror, que, anunciado como o fantástico, não passa de uma fabulação simples,
artimanha despretensiosa para passar o tempo. Nessa chave, a ficção se estabelece ao mesmo
tempo como invenção parcial de um medo pueril e verossimilhança absoluta de um narrador
transformado em contador de histórias. O universo doméstico, com tramas reais e imaginárias
sobre matrimônios e traições, é o cerne dessas histórias de toucador, sem que isso implique
necessariamente uma constante preocupação moralizante347. Não que esses textos rejeitem

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346
FERREIRA, Carlos Augusto. Histórias cambiantes. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974, p. 21.
347
Comentando os textos machadianos publicados no Jornal das Famílias, Lúcia Miguel Pereira afirma
não passarem de “literatura amena de pura fantasia sem nenhum fundamento na realidade”, “onde tudo gira em
torno de olhos bonitos, de suspiros, de confidências trocadas entre damas elegantes”. O comentário feito em
Machado de Assis: estudo crítico e biográfico (1955) serviria de base para outras análises, como as de José
Guilherme Merquior, que os considera “cheios de anedotas e convenções românticas” (De Anchieta a Euclides:
breve história da literatura brasileira, 1977), ou como os comentários de Ivan Teixeira, para quem esses textos
representariam uma primeira fase do autor, caracterizada pela imaturidade (Apresentação de Machado de Assis,
!

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!149!

completamente uma possível dimensão edificante ou moralista, mas esse não parece ser o
problema central.
As conclusões que restituem a verossimilhança são marcas de uma proposta ficcional
que faz ver o estranho, o pecado e o mal para depois rir de suas próprias formulações. Ao
brincar com o leitor, o narrador apresenta um universo que flerta com o horror sem ter de se
aprofundar em seus termos e que resolve como anedota os suspenses construídos ao longo do
processo. No entanto, e talvez paradoxalmente, o fim não pode ser o objetivo principal, sob o
risco de perda do efeito desejado, mas o mecanismo de afirmação de uma estabilidade
parcialmente perdida nas insinuações do fantástico. Se o pacto se reproduz na certeza da
promessa de amenidade, o jogo se configura como uma via de mão dupla em que o autor e
seu público vão a cada atualização testando os limites da crença e da descrença que
viabilizam a configuração do horror.
Nos lugares-comuns que as tramas evocam – o toucador, o salão de baile, a sala de
estar – e na natureza estranha de alguns personagens, as técnicas narrativas configuram uma
espécie de retórica do horror que deve sobreviver à certeza de sua precariedade e
previsibilidade. A contínua publicação dessas histórias revela a persistência de um sistema
dramático menos articulado em uma suposta suspensão da descrença do que no interesse pelo
jogo lúdico que o horror propõe. As bases de negociação entre o texto e sua recepção são
dadas de antemão, restando apenas o princípio do prazer, expresso como delicado gesto
cotidiano.
O horror na chave amena da literatura compreende desde o romance histórico até
narrativas anedóticas. O ponto comum de ambos é certo princípio apaziguador, expresso tanto
nos quadros de um horror historicamente distante quanto na figura de um narrador
declaradamente jocoso. No primeiro caso, os artifícios literários são disfarçados em nome do
relato verídico, mas a construção do efeito de horror prescinde de uma noção de fidelidade
histórica imediatamente enfraquecida pela recorrência dos motivos mais fantásticos do gótico.
Já no segundo, a dimensão artificial é ressaltada como fundamento: um narrador francamente
embusteiro se transforma em referência e garantia de amenidade.

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1988). Dessa perspectiva, segundo Jaison Luís Crestani a produção da chamada “primeira fase” tende a ser
definida por “categorias simplificadoras e generalizantes: romântica, conformista, moralizante, convencional,
prolixa, enfadonha, fantasiosa, etc.”. CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São
Paulo: Nankin; Edusp, 2009, p. 24.

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!150!

Esses contos não estariam exatamente alinhados em um processo pedagógico que


visaria criar um distanciamento crítico para evitar “o pacto ingênuo e de boa-fé do
narrador”; 348 no caso dos textos analisados, seria mais propriamente o oposto. O
funcionamento desses textos depende justamente de um pacto de boa-fé que deixa claro o
papel confiável do narrador, que fatalmente revelará a farsa. São narradores absolutamente
confiáveis cuja restituição da verossimilhança é contratualmente garantida na promessa de
entrega de literatura amena.
Ao mesmo tempo que deseja vitimar seus leitores – pois do contrário a narração
perderia um pouco de sua razão de ser –, o arranjo prévio garante um pacto de confiança que
reafirma o estatuto artificial da fantasia. Mais do que qualquer imposição moralizante, é a
relação franca que garantirá a possibilidade de exploração do horror e que poderá levar este a
assumir formas mais abruptas e dificilmente categorizáveis como amenas.
Do grotesco banquete de canibais à convivência mórbida com esqueletos e à
presença de autômatos sedutores, o horror literário explora a loucura e o assassinato sem
perder o caráter gentil; transforma-se em hábito literário das famílias como o perigo possível e
o prazer desejado. Se há alguma lição a ser aprendida é que a ficção, disfarçadamente,
sorrateiramente, exploraria aquilo que poderia parecer vedado – talvez aí se expresse a última
troça do narrador.
O horror ameno traz o universo do pecado, do crime, do mistério, do desejo e do
desconhecido na forma segura da anedota. Inscreve-se nas práticas cotidianas de leitura,
punindo as pequenas perversões para também lembrar que existem. As insinuações de traição
e as inusitadas possibilidades do amor se articulam em cenários sinistros, o que assegura a
promessa do deleite na fabulação de uma diferença familiar proporcionada pelo sonho e pelo
delírio. No fim, o flerte moderado com o insólito mantém o controle sobre o fantástico, o que
indica a sedução de uma literatura que fabrica o perigo controlado349.

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349
“Dos contos de Machado de Assis analisados, apenas “A chinela turca” foi novamente publicado na
coletânea Papéis avulsos, de 1882, preparada pelo autor. Os textos do Jornal das Famílias só foram novamente
editados postumamente em obras completas e numerosas outras coletâneas. É difícil precisar o motivo da
exclusão, mas o fato de outros contos que exploram o horror, não necessariamente marcados pela chave da
amenidade, reaparecerem em seleções editadas pelo escritor talvez indique uma predileção por outra modalidade
de imaginação do medo mais evidentemente irônica.

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!151!

3.3. O irônico horror machadiano

A Estação: Jornal Ilustrado Para a Família foi publicado quinzenalmente entre 15


de janeiro de 1879 e 15 de fevereiro de 1904, pela tipografia Lombaerts, como continuação da
revista francesa La Saison, publicada entre 1872 e 1878. Era dividido em seções de moda e de
literatura; a primeira era traduzida da revista alemã Die Mondenwelt, e a segunda era
originalmente brasileira. Nela Machado de Assis publicou 37 contos, seis poemas, uma
novela, Casa velha, e um romance, Quincas Borba350.
Assim como o Jornal das Famílias, seu foco era o público feminino, e já no primeiro
editorial da edição com título em português anuncia ser voltado “para as amáveis leitoras e
para economia doméstica”. Confirma-se que a parte da moda continuaria a ser parisiense, mas
“na parte agradável e recreativa devíamos torná-lo nosso e assim o fizemos. Confiamos a
parte literária da Estação a pessoas de conhecida habilidade”351. A intenção de contar com
autores renomados e de se voltar para a literatura brasileira indica a importância dada às
questões literárias. Em 1896, um artigo assinado por Eloy, o Heroe, comenta Flor de sangue,
de Valentim Magalhães: “O livro tem páginas magníficas e é muito discutido […] e vendido;
mas eu não o aconselho às leitoras deste periódico. Flor de sangue não é exatamente a leitura
que mais convém às senhoras, e o próprio autor declara que não o daria a ler a sua filha.”352.
Em 1900, o mesmo colunista afirmaria que tanto O crime do padre Amaro quanto
Primo Basílio seriam “literatura pouco recomendável a senhoras”. A crença de que alguns
livros seriam perniciosos para as leitoras é questionada em um artigo escrito por Maria
Amália Vaz de Carvalho, que, à pergunta de uma leitora sobre que tipo de literatura poderia
indicar para sua filha, responde: “Só o que é falso e funesto é corruptor.” Defendendo a leitura
de Shakespeare, afirma: “Os grandes escritores são aqueles que sacodem a alma de seu
entorpecimento”, e completa: “Livros falsos e livros medíocres são tudo que há de mais
próprio para deformar e empobrecer um entendimento, aliás bem-dotado.”353.
A noção de literatura amena é problematizada e considerada insuficiente de acordo
com a resposta dada à leitora. As tensões entre diferentes funções atribuídas à literatura tendo
em vista suas possibilidades perniciosas seriam ironizadas em um dos contos de Machado de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
350
A informação é dada por Jaison Luís Crestani, no artigo “O perfil editorial da revista A Estação:
Jornal Ilustrado Para a Família. Disponível em: <http://migre.me/hyCNl>. Acesso em: 24 mar. 2014.
351
A Estação, p. 1, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1879.
352
A Estação, p. 6, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1896.
353
CARVALHO, Maria Amália Vaz de. A Estação, p. 7, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1898.

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Assis publicados no jornal em 1892. “Um sonho e outro sonho” começa com uma pergunta.
“Crês em sonhos?” Segundo o narrador, há quem os despreze, quem acredite e outros que
tentam explicar. Pede então a atenção das leitoras, sobretudo das que já perderam o marido, e
começa a contar a história de Genoveva, mulher jovem, bonita e viúva do bacharel
Marcondes. O casamento durara apenas três anos, vividos com intensa paixão. Marcondes
tinha inclinações literárias. Aos vinte anos escreveu o romance A bela do sepulcro, em que a
heroína passa os dias ao lado da sepultura do marido. No cemitério um jovem a pede em
casamento. Ela nega e morre oito dias depois. Genoveva tinha muito apreço pelo romance do
marido: lera-o mais de vinte vezes e mandara fazer uma edição para distribuir aos amigos.
Três anos depois de ficar viúva, aparece-lhe um pretendente, Oliveira, bacharel como
o finado. Diferentemente dos demais que vinham cortejá-la, chegou devagar, sem exigir nada
além de sua estima. A mãe do bacharel e a mãe da viúva tornaram-se muito amigas, a ponto
de a primeira se mudar para uma casa mais próxima, o que fortaleceu os laços de amizade
entre as famílias. As visitas eram frequentes, mas uma delas em especial marcou
profundamente a jovem: quando Oliveira disse que se caso ficasse viúvo entraria para um
mosteiro. A ideia não lhe saía da cabeça, imaginando que o comentário seria uma repreenda a
sua vida mundana. Passava os dias pensando nas palavras do bacharel, até que teve um
pesadelo: Nhonhô (apelido de seu finado marido) vinha lhe perguntar se o havia esquecido.
Sugere então que se ainda o amava não deveria ceder às carícias de outro homem.
O pesadelo deixou claro que Genoveva começava a nutrir sentimentos por Oliveira,
mas acreditando ter sido um aviso, ela decide cortar qualquer possibilidade de envolvimento
com o pretendente. No entanto, um mal-entendido a leva a acreditar que o bacharel se casaria
com outra, o que a deixa sensivelmente abalada. Mais algumas visitas e ele, finalmente, pede-
a em casamento, mas Genoveva fica em dúvida. Tem então outro sonho sinistro, em que o
marido morto lhe cobra a promessa de fidelidade, enquanto Oliveira assume a figura de um
carrasco que lhe tapa a boca. Ao acordar, Genoveva não se abala. “Ergueu-se trêmula; o susto
foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: ‘Casou e não morreu’.”
O final cômico ridiculariza o pesadelo medonho e as crendices da protagonista e
assim reverte a expectativa criada. São apresentados dois pesadelos terríveis, repletos de
imagens sinistras e demoníacas que, ao final, se revelam inúteis, ao menos para o destino de
Genoveva. Cabe refletir sobre a verdadeira função dos pesadelos. Eles fazem parte do
argumento central da trama, mas não motivam a protagonista. Aparecem como atrativos de
uma história que sem eles seria ridiculamente banal. Na cena em que Oliveira diz que não se
casaria novamente há um irônico comentário sobre a situação do casal.
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!153!

A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por


modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair,
que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva
tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos […]
Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.[…]
Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas
de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio
inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de
um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo
dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes:
Casem-se. E passava a contar outras histórias menos
monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim
mesmo.354

Zombando de clichês românticos, das mãos trêmulas e dos planos e promessas de


amor, o narrador se mostra entediado com a história: os personagens são chatos, e a trama que
os envolve, monótona. Mais adiante, comentando a expectativa do casamento, diz que o que
se passa são coisas infinitas que não caberiam nem em um conto nem mesmo em um
romance. “Não teria graça escrito”, afirma. “Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um
noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga,
dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.”355. Anuncia o enfadado narrador à espera
do fim que parece guardar algo de especial, fora do comum, um “sonho extraordinário”.
A seguir narra o pesadelo final, aquele em que uma língua de fogo lambe o céu.
Claramente as únicas coisas interessantes nesse conto são os pesadelos de Genoveva. As
imagens fortes e as cenas de ação, com pragas e carrascos, são os pontos altos da trama. O
horror aparece como salvação da trama insossa em que nada acontece. Mas, ironicamente, um
conto que praticamente só se justifica pela apresentação de “um sonho e outro sonho”, por
enfatizar sua pouca relevância para o destino da protagonista. Mas se eles não são tão
significativos para Genoveva, são fundamentais tanto para o narrador quanto possivelmente
para as leitoras, por eles salvos do tédio.
Confirmando o tratamento irônico dos pressupostos românticos, a última fala “Casou
e não morreu” é um comentário de Genoveva à obra literária do marido. O fato de em A bela
do sepulcro a protagonista morrer depois de recusar um casamento transforma-se em
argumento favorável ao novo matrimônio da viúva. Ironicamente, os devaneios sentimentais
de Nhonhô ajudaram a definir o destino de Genoveva e foram fundamentais para que ela o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
354
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.300.
355
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 305.

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esquecesse. Curiosamente, a castidade exemplar da viúva do romance serve de aviso para que
Genoveva negue os exageros românticos e funciona como uma lição moral às avessas.
“A segunda vida”, conto publicado em 1884 na Gazeta Literária356, começa quando
um desconhecido entra na casa do monsenhor Caldas para contar sua história. Um pouco
assustado, o religioso pede discretamente a um de seus empregados que vá buscar ajuda para
se livrar do “sujeito doido”. Enquanto isso, José Maria narra sua trajetória fantástica. Diz ter
morrido em 20 de março de 1860 e que sua alma voara pelo espaço até ser-lhe dada a
oportunidade de nascer novamente, como príncipe ou condutor de ônibus. Indiferente, afirma
que só fazia questão de nascer experiente para evitar os erros anteriores. O resultado é uma
vida aborrecida, por demais cautelosa. Define sua nova mocidade como “expansiva e
impetuosa enfreada por uma experiência virtual e tradicional”357. O monsenhor continua a
ouvir a história, metaforizando a situação na imagem de “um pássaro, batendo as asas e
amarrado pelos pés”.
Concordando com a imagem, o homem começa mexer os braços como se batesse
asas enquanto fala de seu relacionamento com Clemência, mulher que sacrificara tudo, até
mesmo uma herança de vinte mil réis, para se casar com ele, mas que mesmo assim não
conseguiu vencer suas desconfianças. Duvidava de tudo, das pessoas nas ruas, do futuro: “A
experiência dera-lhe o terror de ser empulhado.” Exaltado, fala ao monsenhor de um sonho
sinistro em que o diabo lê o evangelho e lhe oferta lírios, de onde surge um “réptil fedorento e
torpe”. Zombando de seu medo o diabo solta uma gargalhada macabra e, referindo-se aos
lírios, diz: “José Maria: são os teus vinte anos”. Tem-se então a estranha cena final. "Não,
miserável! não! tu não me fugirás! bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos
esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando […] recuando […] Pela escada
acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés”358.
É evidentemente irônica a trama de José Maria, um homem que escolhe a
experiência para evitar o sofrimento e sofre amargamente pela prisão que ela representa. Seu
desejo realizado o impede de viver: eis a contradição ardilosa que não teria melhor arquiteto
senão o demônio. O sentido fantástico da narrativa aparece controlado pelo argumento da
loucura. Ela sustenta os delírios ficcionais ao explicá-los de antemão. Vale lembrar que, logo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
356
Periódico dedicado à literatura fundado por Teixeira de Melo e Vale Cabral publicado somente
durante o ano de 1888.
357
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 445.
358
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 445.

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!155!

no início do conto, monsenhor Carlos pede ajuda, ciente de estar diante de um louco. Porém
uma questão permanece: o que garante o mistério de uma trama resolvida no segundo
parágrafo? Ao mesmo tempo que adianta a possibilidade de uma narração do improvável, a
loucura anunciada previamente a qualifica como essencialmente falsa. O problema se
desdobra: como se envolver com a história de um louco?
Tem-se então novamente uma articulação entre o estranho e o familiar. A história
iniciada com uma viagem pelas estrelas passa pela infância aborrecida do narrador, ganha
tensão dramática em um casamento marcado por desconfianças e tem seu clímax na
perseguição de um homem que parece possuído. O inverossímil das primeiras linhas vai se
reestruturando como reflexão filosófica. Se o argumento central, a possibilidade de uma
segunda vida, não faz sentido, o drama é pertinente como hipótese da experiência inibidora da
vida. Ironicamente, na reflexão de um louco, encontra-se a chave da coerência.
A cena final opera uma reversão em relação à inicial. A fuga do religioso pelas
escadas não traz nenhuma conclusão evidente. Ele foge e ouve-se “um rumor de espadas e de
pés”. A história termina com suspense, apenas um rumor que se espalha. Não há nenhuma
resolução concreta, ficam somente perguntas. O que João Maria queria com monsenhor
Caldas? Por que o persegue? Quem afinal está louco? Seria o homem endemoniado uma
alucinação que poria em xeque a fé de Caldas?
Não é difícil pensar que a metáfora de um “pássaro amarrado pelos pés”, forjada pelo
próprio monsenhor, possa valer para a vida de um homem religioso359. Estaria então se
autodescrevendo ao analisar a suposta segunda vida do louco? Estaria o monsenhor
arrependido dos sacrifícios da vida religiosa? Será que o demônio não estaria de fato o
tentando? Por que a ajuda solicitada nunca chega? Perguntas e mais perguntas sem resposta.
Na incerteza o narrador aplica seu golpe. Começa com uma trama explicada pela loucura, mas
a certeza se perde na medida em que já não se sabe em que personagem ela está encarnada.
Então o horror se estabelece como dúvida, como um rumor perdido nas escadas. A história
que parecia resolvida no primeiro parágrafo ganha força e termina em aberto. A profusão de
eventuais suposições e explicações, independentemente da pertinência, evidencia seu sucesso
como horror.

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359
Essa imagem pode ser entendida como resposta a outra, em que José Maria diz estar “atado ao
próprio cadáver como Eurico”, referindo-se às imposições da vida religiosa experimentadas por Eurico em
Eurico, o presbírito, de Alexandre Herculano.

!
!156!

Segundo Kierkegaard, a ironia tem o mal-entendido como base. Portanto, é também


um desvio para o falso. Diferentemente da dissimulação que objetiva encobrir uma suposta
realidade e, por conseguinte, guarda uma intenção externa, o dispositivo irônico se apresenta
como um fim em si mesmo, uma liberação em relação à realidade. É uma intenção metafísica
resolvida em si, autossuficiente e independente de referentes exógenos360. O gozo irônico
estaria justamente na libertação irresponsável dos paradigmas da realidade. Sua força é
essencialmente negativa, não cria nada, não resolve nada, apenas se estabelece como marca da
falha, exercício do vazio, recurso no qual o nada prevalece.
A ironia é aliada do horror por negar a substância da realidade, em alusão ao silêncio
do que não se explica, seja pela falta de recursos da razão que escapa, seja pela falta de
interesse, seja pelo primado de um jogo de sombras no qual não há conclusão desejável que
restaure na íntegra qualquer discurso sobre uma dispersa realidade. Na medida em que
permanece negativa, a ironia estabelece teoricamente um desacordo entre ideia e realidade e,
no aspecto prático, demarca a distância entre possibilidade e realidade361. Nesse desacordo os
contos expõem distintos planos ficcionais que se relacionam para que um mistério se produza.
O verossímil passa a servir de escada para o inverossímil, que ganha a cena transformado em
fantasia do medo.
No caso de Machado de Assis, essa tendência de investimento na ironia se radicaliza
nos contos publicados na Gazeta de Notícias362. “A cartomante”, conto publicado em 1884,
apresenta logo na primeira linha a sugestão de um mistério. “Hamlet observa a Horácio que
há mais coisa no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”363. A citação abre a história de
Camilo e sua amante Rita, que lhe fala da visita a uma cartomante feita no dia anterior. Diante
dos risos de Camilo, “ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia
muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo”364. Ela se mostrava tranquila, pois a senhora
lhe havia tirado as dúvidas em relação ao amor de Camilo, que, tornado cético com a idade,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
360
KIERKEGAARD, S.A. O conceito de ironia ⎯ constantemente referido a Sócrates. Petrópolis:
Vozes, 1991, p. 220.
361
KIERKEGAARD, S.A., op. cit., p.245.
362
Nelson Werneck Sodré considera o surgimento da Gazeta de Notícias “o acontecimento jornalístico
de 1874”. Seu fundador, Ferreira de Araújo, seria “um homem de iniciativas saneadoras, tendo reformado a
imprensa de seu tempo, para dar espaço à literatura e às grandes preocupações, com desprezo pelas misérias e
mesquinharias”. O pesquisador o considera um dos mais importantes do século XIX, “barato, popular, liberal”.
SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 224.
363
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 477.
364
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 478.

!
!157!

continuava a zombar. O homem liberto das crendices incutidas pela mãe e pela fé religiosa
“não acreditava em nada”.
A explicação para a história dos amantes vem logo a seguir. Camilo e Vilela, marido
de Rita, eram amigos de infância, mas a convivência com o casal o levou a se apaixonar pela
jovem. Mesmo tendo se afastado, recebe um bilhete de Vilela pedindo que fosse a sua casa.
Apavorado, julgando que o marido traído havia descoberto o caso, parte imaginando "a ponta
da orelha de um drama” na qual Vilela planejava seu assassinato. No caminho decide
consultar a cartomante e é confortado pela afirmação que nada de mal lhe aconteceria. A
mulher ressalta o amor que os amantes nutriam um pelo outro. Agradecido e aliviado, Camilo
pergunta o preço e a mulher diz que pague quanto mande seu coração. Ele lhe dá uma nota de
dez mil reis, surpreendendo a cartomante acostumada a receber dois mil pelo serviço. No
caminho até a casa de Vilela, contempla o mar com uma sensação do “futuro longo, longo,
interminável”. Porém, ao entrar na casa “não pôde sufocar um grito de terror: ao fundo sobre
o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de
revólver, estirou-o morto no chão”365.
A história reverte expectativas. A citação de Hamlet traz o tom do mistério, sugere
que a trama terá elementos inexplicáveis. A advertência feita a Horatio, que Benedito Nunes
lembra ser uma apropriação do topos medieval da inutilis inquisitio philosophiae, bastante
recorrente na obra machadiana366, evidencia uma relação particular e irônica com a tradição
letrada. A referência é utilizada para gerar o engano. Ela introduz o que seria um mistério
insondável que se resolve de maneira absolutamente previsível 367 . Mas a tensão da
expectativa perpassa todo o conto. Quando Rita vai à cartomante, está confusa em relação ao
amor de Camilo, também nervoso quando a procura, mas ambos são tranquilizados por suas
palavras. A cartomante torna-se a figura central do drama. Nela expectativas são criadas e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
365
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 483.
366
NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: Travessia. Santa Catarina: Editora UFSC,
1989, vol. 19, p. 11.
367
Em Machado de Assis e a literatura vitoriana: notas de pesquisa sobre autoria, autoridade e plágio,
João Cézar de Castro Rocha argumenta que Machado de Assis seria um “leitor malicioso da tradição” e
defenderia a ideia de que uma citação criativa seria aquela capaz de reescrever a própria citação. Nesse sentido, o
crítico avalia que Machado, recuperando um relacionamento dinâmico entre emulatio e imitatio, seria autor de
cópias originais e, por sua condição periférica, aprendera a ser, ao mesmo tempo, pré-romântico e pós-moderno.
Independentemente do caráter problemático das noções de pré e pós, para o caso específico dos contos aqui
analisados o efeito não parece ser o da criação de “cópias originais”. Se por um lado concordamos que Machado
de Assis seja de fato um leitor malicioso da tradição e que o uso de algumas citações tem o propósito da
reescrita, o resultado não é exatamente cópia, mas um uso estratégico que busca efeitos específicos de persuasão,
quebra de expectativa e articulações irônicas.

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!158!

dissolvidas. Transforma-se no ponto de equilíbrio dos amantes, que, na confusão dos


sentimentos, apelam ao sobrenatural. Esse é o primeiro erro que levará ao desfecho trágico.
O segundo e mais grave é o envolvimento de Camilo com a ideia do drama368,
explicitado em pelo menos duas passagens: no momento em recebe o bilhete de Vilela e sente
a “ponta da orelha de um drama” e quando está no tílburi e próximo à casa da cartomante e
ouve a voz do marido, que lhe sussurrava a orelhas as palavras da carta: “‘Vem, já, já’ […] E
ele via as contorções do drama e tremia.” A encenação imaginária, a imagem de Rita
chorando subjugada enquanto Vilela, possesso, planeja matá-lo, contraditoriamente o seduz.
Por que atender ao convite da visita quando tudo parecia anunciar uma tragédia? Não seria
mais fácil desaparecer por uns tempos, o que até já fizera antes? Sofrendo, angustiado,
Camilo vai ao encontro do casal como se não tivesse opção senão cumprir seu drama pessoal.
Parece inconcebível ficar fora da encenação de sua própria tragédia: “Repugnava-lhe a ideia
de recuar, e foi andando”. É possível que esse seja o verdadeiro mistério da trama, talvez
esteja nos passos de Camilo o dado inexplicável, aquilo que nem sequer a filosofia pode
supor.
A motivação pelo drama é como uma versão da vontade de sinistro que anima
diversos protagonista das histórias de horror. O personagem de “A queda da mansão de
Usher”, por exemplo, mesmo amedrontado pela visão da casa aceita o convite de Roderick
para lá passar uns dias; ajuda a sepultar sua irmã morta e ainda lhe lê uma história fantástica
em uma terrível noite de tempestade. Atos insensatos motivados por aquilo que ele mesmo
define como “lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror”369.
É preciso investigar as origens dessa lei de atração e repulsa a fim de entender o que
está por trás desse fascínio pelo perigo. Aqueles que se dedicaram ao assunto, como
Lovecraft, Freud e Todorov, com argumentos distintos, tendem a respostas psicológicas. A
atração pelo medo refletida na literatura de horror seria fruto de instintos humanos
atemporais, por si sós misteriosos e insondáveis. Sem entrar no mérito do que seriam as
perturbações do espírito humano, é preciso marcar que essa lei de atração, essa vontade de
sinistro, é condição da literatura de horror, ou seja, ela existe para que as tramas funcionem
adequadamente. É ela que garante a tensão das tramas e possibilita seu desenvolvimento.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
368
Devo ao professor Abel Barros Baptista a sugestão de investir na relação de Camilo com o drama
como forma de interpretação de “A cartomante”.
369
POE, Edgar Allan, op. cit., p. 44.

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!159!

Os protagonistas do horror só existem motivados pela incapacidade de fugir do que


obviamente deve ser evitado. O sistema ficcional é forjado na falha no entendimento da
realidade, e a lei da atração é naturalizada como motor dramático. Se ninguém for à casa de
Usher não haverá história, se Camilo simplesmente fugir não haverá drama. Por isso “A
cartomante” é também um conto sobre a possibilidade do horror, pois faz a exposição
dramática de um de seus princípios fundamentais. O mistério nesse caso é o próprio Camilo,
preso nas redes do drama, motivado por uma vontade inexplicável se pensada fora da própria
trama, condenado por protagonizar o horror que lhe inspira.
O mesmo dilema reaparece em “A causa secreta”, publicado em 1885, que conta a
história da relação entre Garcia e o casal Fortunato e Maria Luísa. Os dois homens se
conhecem quando Fortunato, sabendo que Garcia estudava medicina, leva um homem ferido a
sua casa, demonstrando grande interesse no estado da vítima. Volta ainda algumas vezes para
visitá-la, mas depois desaparece sem maiores explicações. Gouveia, o ferido em questão,
procura Fortunato para agradecer, mas é recebido com indiferença. Tal comportamento
contraditório chamou a atenção de Garcia, que possuía “em germe, a faculdade de decifrar os
homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser
supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo”370.
Quando Garcia conhece Maria Luísa percebe que entre o casal haveria “alguma
dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral”. Durante uma conversa
Fortunato lembra o dia em que ajudou Gouveia, e a mulher, surpresa, “insensivelmente
estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de
descobrir-lhe o coração”371. No entanto, a forma com que o homem ria da visita que o ferido
havia lhe feito deixa Garcia intrigado: “Singular homem”, conclui.
Fortunato propõe ao amigo a fundação de uma casa de saúde. Com a aceitação o
plano cumpre-se rapidamente, e logo passam a trabalhar juntos. Garcia se espanta com a
dedicação do homem, sempre disposto a ajudar os feridos; acompanhava os procedimentos,
sobretudo os cáusticos: “Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele”. Com o trabalho a amizade
se estreita e o médico começa a perceber uma mudança de comportamento em Maria Luísa.
Seu sofrimento aumentou quando Fortunato, estudando anatomia, passa a sacrificar cães e
gatos em casa. Compadecido, Garcia convence o amigo a parar com os experimentos. Uns
dias depois Garcia presenciaria a famosa e estarrecedora cena da tortura de um rato.
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370
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p.513.
371
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 515.

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!160!

O “vasto prazer quieto e profundo” que o torturador sente é um espetáculo


repugnante para todos. O estado de saúde de Maria Luísa, que já inspirava cuidados, agrava-
se, e com o tempo descobre-se uma doença fatal. Quando Maria Luísa morre, Garcia sugere a
Fortunato que vá descansar e se põe sozinho diante do cadáver. Em um gesto final, inclina-se
para beijá-la. O que ele não percebe é que Fortunato o observa, julgando não ser aquele um
simples gesto de amizade, mas o “epílogo de um livro adúltero”. Garcia tenta beijá-la
novamente, mas explode em “lágrimas de amor calado e irremediável desespero. Fortunato, à
porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa,
deliciosamente longa”372.
O conto gira em torno da figura de Fortunato. Ele é o mistério a ser solucionado, e
Garcia faz o papel do investigador. O problema é que as pistas são contraditórias e apontam
para caminhos diferentes. O enigma Fortunato confunde tanto o detetive quanto o leitor, parte
fundamental dessa trama. Na primeira cena o leitor é apresentado ao trio de personagens, a
qual Eliane Robert Moraes define como um quadro vivo, uma cena estática como um teatro
sem ação373. No centro do palco os três nada falam e já são dados como mortos. Os fatos
cotidianos da vida de Fortunato são as peças a serem encaixadas na busca da causa secreta.
No primeiro encontro com Garcia ele está saindo da Santa Casa; no segundo está no
teatro assistindo a um dramalhão “cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos”, e
sua atenção é redobrada nas cenas dolorosas. Os dois se conhecem quando Fortunato leva um
homem ferido à casa de Garcia – o mesmo homem que depois de curado será tratado com
indiferença. Os dois amigos abrem uma casa de saúde à qual ele se dedica plenamente, com
especial atenção aos cáusticos. Começam então os sacrifícios de animais em nome do estudo
de anatomia. Certa noite mata cruelmente um rato. No episódio da doença de sua esposa
dedica-se plenamente aos seus cuidados e, por fim, sente prazer ao ver seu amigo chorar sob o
cadáver de Maria Luísa. São esses os fatos sobre Fortunato.
Apesar de Garcia suspeitar de algo estranho em sua personalidade, nada há de
extremamente bizarro em seus gestos. À exceção do último pecado, todos podem,
dependendo da interpretação, serem encarados como triviais. Gostar de um drama sangrento;
ajudar um homem ferido e depois não se importar tanto; abrir uma clínica e se dedicar aos
cáusticos; sacrificar animais em nome da ciência; matar um rato; e se aproximar da esposa em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
372
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 518.
373
MORAES, Eliane Robert. Um vasto prazer, quieto e profundo. Estudos Avançados. São Paulo, vol.
23, no 65, 2009. Disponível em: http://migre.me/hyCQQ. Acesso em 24 mar. 2014.

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!161!

um momento de doença. Esses fatos, nem tão extravagantes assim, são os que Garcia têm
disponíveis para decifrar Fortunato. O problema é que na cena central ele é protagonista e não
observador.
Os dados que Garcia possui oferecem uma visão parcial e um tanto dúbia da
personalidade de Fortunato. Analisando-os ele consegue perceber seu interesse pela dor
alheia, mas a apoteose de seu sadismo, o fato crucial que transforma o homem excêntrico em
um verdadeiro sádico ele é impossibilitado de ver; está de costas, no centro da cena. Aí a
figura do leitor, observador privilegiado, que vê tudo de fora com visão ampliada, torna-se
fundamental. O verdadeiro mistério é revelado só a ele, único com possibilidade de perceber a
densidade do enigma Fortunato.
A visão parcial de Garcia é a base da narrativa. Até a cena final sua visão é a única
disponível; a verdadeira revelação é feita nos instantes derradeiros, em uma cena que
confirma e, ao mesmo tempo, torna praticamente irrelevantes as anteriores. Bastaria aquele
episódio para que se descobrisse a causa secreta, todo o resto é estratégia para despistar. Os
limites da inteligência de Garcia formam o núcleo da trama. Ao fim descobre-se que ele não
sabia de algo que só o leitor é capaz de perceber, não por sua particular capacidade de análise,
mas pela posição estratégica. Aliás, a ele não é atribuída nenhuma qualidade investigativa.
Durante toda a trama seus olhos são os de Garcia, e no final, quando o investigador não vê, o
narrador resolve a parte clara do enigma.
Em certo sentido, também o leitor é ludibriado, menos que Garcia, todavia. A busca
da pista secreta que revelará a personalidade do personagem revela um pouco da malícia do
narrador, que tem todos os elementos à mão e os vai disponibilizando aos poucos. Existem
dois Fortunatos que se diferem em níveis de insanidade: o excêntrico, revelado a Garcia pela
cena da tortura do rato, e o verdadeiramente sádico, revelado ao leitor pelo prazer que sente
ao contemplar a dor do amigo374. Duas revelações e uma verdade, a trama tem dois desfechos
e não deveria deixar nada em aberto. O problema é que, diante do enigma supostamente
solucionado, outro surge. Fortunato permanece estranho. Sabemos que se trata de um sádico,
mas o que faz um sádico, qual a causa secreta desse fetiche sinistro? Na dúvida e no limite da
capacidade do narrador o horror permanece, ganha força em silêncio.
O texto parece ir até o limite da narração para apresentar um mistério maior que
permanece inconcluso; forja suas próprias limitações para funcionar movido pelo enigma. A
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
374
Sobre a relação entre as duas cenas ver o texto A emenda de Sêneca, de Abel Barros Baptista,
publicado em: Teresa: Revista De Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp e Editora 34, vol. 6/7.

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!162!

imaginação literária fabrica uma limitação artificial para potencializar o drama transformando
o silêncio em alegoria do inexplicável. A ironia reaparece como mal-entendido estratégico
que fomenta a dúvida.
A ironia também será a base do “Conto alexandrino”, de 1883. Trata-se de uma
história em que o excêntrico cientista Stroibus diz ser possível transformar o caráter de um
homem dando-lhe sangue de rato para beber. Depois de numerosas tentativas, Stroibus e seu
companheiro Pítias começam a sentir os efeitos de suas experiências. Pítias passa a roubar
ideias de Stroibus, que posteriormente também furta do amigo “quatro comparações e uma
teoria dos ventos”. Seguiram-se então roubos de livros e documentos raros da biblioteca de
Ptolomeu, que, após descobrir os furtos, ordena que ambos sejam levados aos carrascos.
Surpreso com a habilidade dos homens para roubar, o rei decide utilizá-los com mais
atenção a fim de descobrir os fundamentos biológicos do crime. O conto termina com a
observação de que, segundo os alexandrinos, “os ratos celebraram esse caso aflitivo e
doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais
ameaçados de igual destino”. Porém, nenhum convidado teria aceitado o convite por atenção
ao comentário de um cão “que lhes disse melancolicamente: – ‘Século virá em que a mesma
coisa nos aconteça’. Ao que retorquiu um rato: ‘Mas até lá, riamos !’”375.
O traço irônico do conto é bastante evidente: o argumento científico de busca da
verdade que motiva os dois cientistas é o mesmo que fará deles vítimas de experiências
terríveis. O desejo da verdade imortal que os anima se volta contra eles, custa-lhes a vida. Há
uma evolução do argumento científico finalista que culmina no horror. Quando acusado de
estar exagerando em suas experiências, Stroibus defende-se, pois “a verdade valia todos os
ratos do universo”, da mesma maneira que o mestre Herófilo dirá mais adiante que “a verdade
é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinquentes do universo”376.
Do mesmo modo que se fazia crer que a cidade lucrava com a extinção dos ratos,
lucraria também com o sacrifício dos criminosos. O debate filosófico ganha tons tão absurdos
que, quando Stroibus pede por sua vida, Herófilo argumenta que se ele fosse de fato filósofo
não poderia ignorar que “a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em
comparação com o entendimento” 377 . O resultado macabro da evolução do argumento
científico no capítulo estrategicamente intitulado Plus, ultra! deixa em aberto uma ironia mais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
375
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p.415.
376
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 412.
377
ASSIS, Machado de. Obra completa, op. cit., p. 412.

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!163!

profunda. Os cientistas torturados estavam certos, tornaram-se a prova viva de que a tese fazia
sentido ao se transformarem em ladrões ágeis como ratos. Trata-se de uma verdade que se
perdeu na busca constante por ela, mas não foi a única. As conclusões tiradas com a tortura
dos dois cientistas haveriam também de desaparecer, e a análise de suas mãos “produziu
ótimos resultados, que se perderam com a queda dos Ptolomeus”378.
Trata-se de um conto de verdades perdidas e de argumentos absurdos que passam a
fazer sentido e comandar as ações dos personagens. Ironicamente, verdade e absurdo se
confundem, e o inconcebível é superado pela instabilidade dos princípios e torna-se possível.
Na tensão da crença com a descrença, na inconsistência de qualquer valor absoluto
permanece, inabalado, o horror. Aqui ele é resultado da falta de um sistema realmente sólido
de interpretação das coisas. No conto absurdo em que a verdade falha, desaparece ou é
ignorada, ratos sarcásticos riem diante de um possível destino trágico e parecem mais sábios
que os obstinados homens da ciência. O conto, que deve sua legitimidade à clara exposição de
um argumento, narra uma empreitada científica para se fazer crível explorando os paradoxos
do absurdo e torna-se verossímil no senso de humor dos ratos. À sentença final segue a
sugestão de um horror futuro, ironicamente incontornável.
“O espelho”, publicado em 1882, retoma o problema da relação entre narração e
silêncio. Começa em uma sala onde cavalheiros discutem questões de “alta transcendência”.
A conversa se dá em tom tranquilo até que um dos convivas sugere uma teoria sobre a
existência de duas almas humanas. O homem misterioso explica que “cada criatura humana
traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro”379. Esclarece, sem admitir ser interrompido, que a alma exterior pode ser qualquer
coisa, um botão ou uma pátria inteira. Seu objetivo seria transmitir a vida e completar a alma
interior como as duas metades de uma laranja. No entanto, a alma exterior de um indivíduo
pode mudar: “Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um
chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade,
suponhamos”380.
Jacobina, o narrador misterioso, começa a narrar sua história pessoal obtendo total
atenção de todos. Conta que, aos 25 anos, foi nomeado alferes da Guarda Nacional, deixando
muito orgulhosa sua família de origem pobre. Todos tratavam com muita admiração o “senhor
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
378
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 414.
379
ASSIS, Machado de. p. 345.
380
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 346.

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!164!

alferes”, que recebeu de presente da tia Marcolina um belo espelho antigo. O problema é que
o excesso de atenção, carinhos e mimos fez com que a condição de alferes se sobressaísse
demais e “a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de
natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada
do que me falava do homem”381.
Quando Marcolina deixa a casa para atender uma filha doente, a situação se
complica. Jacobina se vê sozinho com os escravos, e sua alma exterior é alimentada somente
por aqueles “espíritos boçais”. Para piorar, os escravos decidem fugir, deixando o alferes
sozinho. Atormentado pelo tique-taque do relógio da sala que soava como o estribilho Never,
for ever!, de um poema de Longfellow, sente os dias se confundirem com a noite no silêncio
sinistro da casa. Seu sentimento era mais estranho que um simples medo; “Tinha uma
sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco
mecânico”382.
Diante da terrível condição em que se encontrava decide olhar no espelho buscando a
companhia de sua imagem, mas o reflexo não foi de uma “figura nítida e inteira, mas vaga,
esfumada, difusa, sombra de sombra”383. Atribuindo o estranho fenômeno a sua perturbação
psicológica, decide vestir a farda de alferes e olhar novamente: “O vidro reproduziu então a
figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso” – o alferes encontrava
sua alma exterior. Daí em diante vestir as roupas que lhe salvavam de ser um autômato seria
sua estratégia para lidar com a solidão. Assim termina a história, e “quando os outros
voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”384.
A última frase do conto solidifica o caráter misterioso no narrador. Jacobina desce as
escadas sem maiores explicações, abandonando sua pequena plateia. Lembramos que uma das
condições que estabelece para contar a história é não ser interrompido sob nenhuma
circunstância. O homem que permanecera calado durante a maior parte da noite exige total
atenção de seus ouvintes e vai embora sorrateiramente, o que reforça a dimensão enigmática
da narrativa. Parece claro que se está diante de uma trama construída para não ser
completamente entendida.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
381
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 349.
382
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 350.
383
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 351.
384
ASSIS, Machado de, op. cit., p. 352.

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!165!

Ao não admitir intervenção dos ouvintes, inviabiliza debates e discordâncias; ao sair


em silêncio, foge das explicações. A tese das duas almas pressupõe uma atmosfera particular
para fazer sentido. É preciso um cenário soturno, silencioso e tenso para que essa verdade se
revele; a força da mensagem de Jacobina depende muito do teatro que constrói em torno da
ideia. Ele é tão, ou talvez mais importante, que a precisão filosófica. As proposições
possibilitam infinitas especulações conceituais; é possível interpretá-las de maneiras distintas,
e Jacobina parece saber disso385.
É possível definir rapidamente a tese como uma articulação entre diferentes
representações e projeções de si, no que concerne tanto à vida social quanto à vida interior.
No entanto, estabelecer o quanto as dimensões internas e externas se misturam e como uma
condiciona a outra é um problema bem mais complexo. Talvez por isso Jacobina não permita
intervenções, talvez por isso desça as escadas apressado. O jogo se configura sempre em torno
do aspecto questionável da tese, do narrador misterioso, do final silencioso e do título que a
qualifica como um esboço de teoria. De fato, a plateia composta de “investigadores de coisas
metafísicas” devotados aos “mais árduos problemas do universo” é tratada, como costuma
acontecer nas histórias de horror, como crianças. Proibidos de se manifestar sob a ameaça de
ficarem sem a história, os homens se calam e se deixam levar pelos ditames de Jacobina, que
lhes conta uma história sinistra na qual é transformado em autômato.
O som perturbador do relógio dá o tom enlouquecedor da experiência do
protagonista. Nessa sinistra cadência conquista a atenção dos convivas. É notável a ansiedade
que se instaura quando reluta em anunciar a estratégia de se vestir de alferes. Com o público
em suas mãos, anuncia o final da trama e, como último ato, deixa a sala tão misteriosamente
quanto no início da narração.
No enigma que se instaura, no esforço dos leitores para entender essa teoria das duas
almas, tem-se o triunfo do narrador, astucioso para prender a atenção de todos e vitorioso por
gerar dúvida, elemento básico de qualquer boa história de horror. Jacobina pode não ser um
filósofo muito consistente, pois apresenta uma tese controversa extraída de uma anedota, mas
é inegavelmente um grande contador de histórias. Constrói o horror para além da trama
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
385
Cilaine Alves Cunha, no texto Tristezas de uma geração que termina, argumenta que a tese das duas
almas seria uma apropriação de conceitos filosóficos de Schopenhauer que dividem o homem em sua porção
exterior (eminentemente social) e interior (relativo ao que se pode definir como uma vida do espírito). A autora
defende que o argumento machadiano seria uma metáfora crítica em relação ao idealismo romântico. Dessa
forma, “O espelho” dialogaria diretamente com Noite na taverna ao apresentar uma visão objetiva da alma em
detrimento do transcendentalismo exposto na obra de Álvares de Azevedo. O texto foi publicado na revista
Teresa: Revista De Literatura Brasileira. São Paulo: EDUSP e Editora 34, vol. 6/7.

!
!166!

lançando mão de uma encenação completa, um teatro de gestos no qual se torna ao mesmo
tempo autor e personagem.
No famoso texto crítico sobre O primo Basílio, Machado de Assis comenta que o
realismo de Zola e o de Eça de Queirós não teriam esgotado os aspectos da realidade: “Há
atos íntimos ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa
exposição de todas as coisas. Se são naturais para que escondê-los?”386. A investigação da
matéria submersa que orienta, por exemplo, a investigação moral do organismo de Fortunato
empreendida por Garcia, aparece no horror irônico em revelações imprecisas, mistérios
parcialmente revelados a um leitor que precisa lidar com pistas diversas e contraditórias.
A tarefa da leitura torna-se particularmente complexa pela dramatização do caráter
supostamente intraduzível da experiência terrífica. Sem uma chave precisa que expresse a
razão por trás das motivações dos personagens, figura o vazio insólito de um discurso
incompleto. A interpretação tem de lidar com seu limite. Está sujeita à malícia de um narrador
que oscila entre o domínio dos elementos encenados e a fragilidade de quem não pode
traduzir o essencial. Nas páginas do horror, vemos sempre a impossibilidade de compreensão
plena das coisas. Não são gratuitas as constantes citações de Hamlet, autoridade na
proclamação da miséria da filosofia. Não interessado ou impossibilitado de exercer sua
autoridade, esse mesmo narrador anuncia o horror como ruína da interpretação. 387
Uma vez encenada, a interpretação fragmentada exige um leitor capaz de agir no
jogo de dispersões. Os contos escritos sob a lógica da “literatura amena”, tentam restabelecer
um princípio de segurança que garanta aos mistérios apresentados a perspectiva da fantasia
deliberada. Diante do retorno à realidade em um jogo narrativo em que o verossímil se
sobrepõe ao inverossímil, a experiência interpretativa tende a parecer mais sólida. O narrador
que tem o público em suas mãos reforça a infantilização do leitor ao resolver a trama em
termos lúdicos: o horror se extingue na anedota, os vazios se preenchem como fábula.
Já o horror irônico de Machado de Assis aprofunda a dissolução narrativa ao investir
na dissonância que tangencia o absurdo e rejeita qualquer princípio de unidade. Não havendo
uma tentativa de resolução do imponderável, o intraduzível é tangenciado para fins de
exaltação do mistério. Nesse movimento, o que pode ser dito funciona como escada para o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
386
ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
387
Para Abel Barros Baptista, a encenação da ruína da interpretação nos contos de Machado de Assis é
uma forma de expor o caráter indecifrável da ação humana, “não porque seja destituída de sentido, antes porque
lhe falta a autoridade no narrador”. É a ausência da consciência narrativa absoluta que cria a impressão da falha
interpretativa. A ideia é desenvolvida no supracitado texto “A emenda de Sêneca”.

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!167!

silêncio. No entanto, há em todos os contos analisados neste capítulo um horror, sempre no


limite entre falsa fictio e vera fictio, insinuando invariavelmente um ponto-cego da narrativa
e, nos casos mais radicais, anunciando um discurso não dito que faz do silêncio alegoria do
inexplicável.
Assim, o interdito do horror é efeito almejado de uma técnica que faz desse limite da
consciência o motor dramático por excelência. As cenas violentas e fantásticas apontam para
um momento posterior de incerteza, momento este que a ficção se mostra incapaz de
imaginar. Forjando sua própria limitação, o horror literário machadiano cria as armadilhas em
que é apanhado – última brincadeira do narrador.
O horror é quase sempre uma piada, um jogo de desconfianças proposto por
narradores mais ou menos cientes daquilo que está sendo jogado. E o leitor entra nesse jogo
por diversão, um pouco pelo prazer de ser enganado. A vontade lúdica que faz com que
Garcia insista em se aproximar de Fortunato é a mesma que leva o personagem de Poe a
insistir em procurar amontilhado em uma caverna macabra: ela ignora todas as evidências em
nome do jogo.
Na advertência de Várias histórias, coletânea de dezesseis contos publicados na
Gazeta de Notícias (entre eles “A cartomante” e “A causa secreta”), de 1896, Machado de
Assis comenta:

As várias histórias que formam este volume foram escolhidas


entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse
limitar o livro às suas trezentas páginas. É a quinta coleção que
dou ao público. As palavras de Diderot que vão por epígrafe no
rosto desta edição servem de desculpa aos que acharem
excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não
pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos
daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o
caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros
escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este
gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre
uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes
romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.388

Além de destacar a relevância de Edgar Allan Poe e Mérimée, a advertência lembra


um dos aspectos fundamentais do conto, que é a duração. É possível fazer relação com o texto
The philosophy of composition, de Poe, publicado em 4 de abril de 1846 na Graham’s

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
388
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 470.

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!168!

Magazine. Nele, o escritor americano analisa seu processo de criação do poema “O corvo”,
destacando a relação entre duração e efeito, definindo o tempo de leitura de uma assentada
como modelo para a poesia. A contemplação do belo e a afetação do leitor seriam mais
intensas nessa curta duração em virtude da sensação de unidade. O horizonte é sempre a
construção de determinado efeito que permita associar eficácia técnica com sucesso do texto.
O entendimento da completa inteligibilidade da forma como promotora das consequências no
ato de leitura implica a busca de uma forma ideal capaz de enaltecer os afetos389.
A busca do sublime por intermédio da contemplação do belo seria mais rápida no
poema, mas quando se leva em conta a busca da satisfação intelectual pela verdade ou a
paixão baseada na excitação do coração, a prosa permitiria uma engenharia mais eficaz. O
valor estético é atrelado à capacidade de causar uma sensação à alma, ao poder de elevá-la
pela excitação. Por mais efêmero que possa ser o efeito, dele depende a força do poema, e o
caminho que leva à experiência do prazer estético passa necessariamente pela beleza. É sua
contemplação que atinge os sentidos, por isso é ela a meta de todas as formas de arte. A
criação do belo está para o artista como a busca da verdade está para o cientista: é seu
domínio, seu território.
“O corvo” é a síntese de suas concepções poéticas. Devassando o próprio processo
de composição, o escritor americano aponta os dois elementos cruciais do poema. Se a morte
é a forma mais expressiva que a melancolia pode assumir, e se a beleza feminina é a mais
admirável manifestação do belo, nada mais lógico do que unir os dois elementos, nada mais
sublime do que uma mulher morta. A relação entre a morte, a mulher e a fruição estética
condensa alguns elementos cruciais do programa literário romântico, reforçando a noção da
obra de arte como veículo de emoções.
É conhecida a tradução feita por Machado de Assis de “O corvo”, publicada na
Gazeta de Notícias em 1888, e por mais que não se possa extrair exatamente uma “teoria do
conto” da composição de Poe, a preocupação com a engenharia do efeito de horror literário
marca a ficção de ambos390. A tentativa de construção da comoção pelo suspense, assim como

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
389
Segundo Abel Barros Baptista, o princípio aludiria à poética de Aristóteles. BAPTISTA, Abel
Barros, op. cit., p. 210.
390
Segundo Renata Philippov: “A ressonância da obra de Edgar Allan Poe na de Machado de Assis é
apontada e analisada por vários críticos, de Herman Lima (1971) a Patrícia Lessa Flores da Cunha (1998),
principalmente por causa do caráter fantástico de alguns contos, como em “A chinela turca” e “Entre santos” e
da escolha do duplo como um tema recorrente, como em “O espelho”, “Teoria do medalhão”, etc. Tanto Poe
quanto Machado valorizam extremamente os aspectos formais na construção de seus textos. Enquanto o primeiro
cria uma estrutura anterior, que só depois vem a ser preenchida pelo episódio, subordinado ao efeito, o segundo
!

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!169!

a exploração da ironia como base construtora do medo, une os dois escritores. É como se um
riso sarcástico pudesse ser ouvido na consideração dos infortúnios sofridos pelos
protagonistas, apresentados por narradores cuja autoridade é estrategicamente diluída. Esse
mesmo riso irônico que, como afirmou Alcides Maia, poderia ser leve nas palavras mas
bastante sombrio nos juízos se afirma na constatação do vazio diante da morte e por vezes
assume tom mórbido391. É um gesto de desesperança, triunfo do niilismo, que assusta tanto
monsenhor Caldas quanto Camilo.
A exploração do absurdo e do mal dá origem a uma melancolia de nuances sombrias
que, tanto em Poe quanto em Machado, fundamenta o horror literário nos limites da
loucura392. O riso é como o produto de uma descida aos infernos. A essência do humor,
segundo as considerações de Henri Bergson, aparece como a visão de um moralista que se
disfarça de sábio assumindo a postura de um anatomista sádico cujo único objetivo é causar
nojo expondo as entranhas do repugnante.

Si notre analyse est exacte, ce n’est pas là un trait accidentel de


l’humour, c’en est, là où il se rencontre, l’essence même.
L’humoriste est ici un moraliste qui se déguise en savant,
quelque chose comme un anatomiste qui ne ferait de la
dissection que pour nous dégoûter; et l’humour, au sens
restreint où nous prenons le mot, est bien une transposition du
moral en scientifique.393

Diante de uma plateia que tenta encontrar sentido no jogo de dispersões, exploram-se
os estágios do prazer e da dor, do deleite e do horror apresentados como o limite da
consciência. Na contemplação fragmentada da dor do outro, a repugnância e o desejo entram
em sintonia como exercício de leitura, e o perigo limitado pela segurança da alteridade
implica o prazer do encontro com a dramatização da morte. Se no riso e no horror os extremos
da vida e da morte se encontram é porque atração e medo medem forças infinitamente e, não

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
se esmera, por exemplo, na exploração variada dos recursos composicionais, construindo vários tipos diferentes
de narradores que fazem a narrativa progredir através do diálogo com seus interlocutores, ironizando
personagens, citando outros textos, criando alegorias, relatando experiências testemunhadas ou protagonizadas,
escrevendo um diário.” PHILIPPOV, Renata. Edgar Allan Poe e Machado de Assis: intertextualidade e
identidade. Itinerários, Araraquara, nº 33, p. 39/47, jul./dez. 2011, p. 42.
391
MAIA, Alcides. Machado de Assis; algumas notas sobre o humour. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1912.
392
Lembramos ainda o caso de “O alienista” em que, segundo Simão Bacamarte, o horror é o pai da
loucura, ao passo que a fabricação da loucura gera o horror.
393
BERGSON, Henri. Le Rire: essai sur la signification du comique. Paris: Éditions Alcan, 1924, p. 57.

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!170!

podendo triunfar uns sobre os outros, reforçam-se mutuamente.394 A imaginação literária do


horror, quando assume sua face mais evidentemente irônica, investe nos paradoxos das
possibilidades de instabilidade da narrativa como forma de acesso aos interditos que,
convertidos em silêncio, traduzem como mistério a experiência estrategicamente perturbadora
do estranho.
Como visto no primeiro capítulo, para críticos como Andrew Smith, o gótico no
século XIX aproxima o mal do universo privado e doméstico. O movimento pode ser
entendido à luz do desenvolvimento das técnicas realistas que, segundo Erich Auerbach,
permitiram a articulação do sublime com o grotesco para além “de uma espécie estilística
baixa ou média” 395 . Essas duas categorias, quando tecnicamente manipuladas para a
configuração do horror trouxeram o absurdo, o fantástico e o estranho para servirem de
mecanismos de imaginação do medo literário.
No caso da literatura brasileira o horror assume primeiramente a imagem exagerada
de um romantismo sombrio cujos artífices se fazem representar nos excessos de uma
libertinagem fabricada. O terror sanguinário das tabernas, ainda que mais realista que os
eventos sobrenaturais passados em castelos distantes e experimentados por heroínas e vilões
arquetípicos, investe em uma estranheza compartilhada por poucos.
As formas do horror que se espalham nos periódicos de maior circulação como a
Revista Popular e a Gazeta de Notícias variam entre o gótico histórico de fundo
evidentemente político e a exploração do medo domiciliar que, na formulação silenciosa da
ironia, encontra na loucura do sujeito parcialmente representado sua chave máxima de
realização. Nesse caso, não só as tabernas dão lugar aos salões e ao toucador, como a
violência do crime se converte em distúrbio psicológico, em drama íntimo. Da anedota
inofensiva ao misterioso mundo do silêncio, a loucura aparece como a última velada
possibilidade de verossimilhança e resistência ao sobrenatural. É ela que poderá, na sua
paradoxal formulação, restituir certo grau de inteligibilidade para que o horror continue a
funcionar nos padrões de um realismo subjacente.
A mudança nos traços de um cinismo libertino para o flerte com o anedótico que se
transforma em terror psicológico se dá no caminho da conquista de um público mais amplo. A

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394
A relação entre erotismo e morte, atração e horror é também é desenvolvida por Georges Bataille no
ensaio “O erotismo”.
395
AUERBACH. Erich. Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2002, p. 500.

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!171!

mudança temática do horror é também um direcionamento na representação do estranho. O


libertino devasso, caricatural, dá lugar ao homem supostamente comum, envolto em situações
macabras não mais pelo esforço consciente e voluntário de aprofundamento no cinismo, mas
pelo envolvimento circunstancial em situações insólitas arquitetadas por um narrador
estrategicamente precário.
Mais próximo do realismo literário pela representação de um cotidiano um tanto
quanto misterioso, essa forma de imaginação literária do horror não precisa lidar tão
recorrentemente com o problema do excesso imaginativo por atuar sempre com um pano de
fundo verossímil, recorrendo seja ao histórico, seja ao anedótico, seja à loucura ou por
intermédio do artifício da ironia.
Recusando a tradicional separação entre imaturidade e maturidade dos contos
machadianos, Jason Luís Crestani afirma que os contos publicados no Jornal das Famílias
trariam elementos sofisticados, centrados na reconfiguração da relação entre narrador e leitor.
Os narradores seriam inconfiáveis o que realçaria a dimensão ficcional da literatura e
reforçaria seu estatuto artificial. No caso dos contos aqui analisados ocorre justamente o
contrário: o narrador mostra-se a figura confiável que, na chave da amenidade, revela o
mistério e garante um retorno seguro à verossimilhança. Menos confiáveis são os narradores
do irônicos que deixam o leitor diante de estranho silêncio.
Nos contos de horror publicados no Jornal das Famílias a quebra do sentido
fantástico ou sobrenatural não necessariamente visaria “desestabilizar os hábitos de leitura
cristalizados, exigindo do leitor um posicionamento crítico e distanciado em face do texto
literário” 396 . Representa apenas um pacto que possibilita a exploração do horror como
mercadoria literária amena. Esse acordo prévio não significa uma amarra definitiva, mas torna
viável a representação do horror para um público previamente demarcado.
Ao menos nos casos analisados, fica bastante claro que o veículo é determinante para
a estruturação dos textos. Escrevendo para um público “gentil” e regido sob a premissa da
literatura amena, estes assumem determinada configuração, e na medida em que o público-
alvo muda e a amenidade desaparece do contrato editorial, as regras se alteram. Tal
postulação não implica a impossibilidade de publicação de contos amenos na Gazeta de
Notícias nem de narrativas mais radicalmente irônicas no Jornal das Famílias, mas indica
como as estruturas narrativas se relacionam com determinada expectativa de um público

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396
CRESTANI, Jason Luís, op. cit., p. 207.

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!172!

ideal. Ainda que a preocupação com maior ou menor sofisticação dos textos possa indicar
determinado grau de maturidade autoral, as análises avaliam como mais frutífera a observação
dos diferentes locais de publicação dos contos considerando as estratégias em jogo na
configuração do mercado literário oitocentista.
A popularização do horror literário se deveu em grande medida à publicação de
histórias macabras em periódicos de grande circulação, nos quais assumiu formas diversas:
apresentava para diferentes tipos de leitor uma maquinaria de exposição do medo.
Dispositivos de representação de um mal secularizado tornaram-se alvo de investigação
ficcional de literatura interessada tanto em divertir pelo medo quanto em revelar certo caráter
obscuro da modernidade.
Como afirmaria Baudelaire sobre os contos de Poe, há nesse esforço de
representação uma devoção ao mundo do silêncio e uma fascinação pelo distúrbio psicológico
que transforma o fantástico em mecanismo de diluição das fronteiras entre a realidade e o
pesadelo. Ocorre também na literatura brasileira uma difusão da experiência do mal em que o
horror deixa de ser atributo de personagens tipificados e fantasmas monstruosos para ser o
subtexto de homens comuns espalhados pelas cidades. Nesse processo, o artifício literário vai
aos poucos ganhando autonomia em relação à possível edificação moral; a literatura se
fortalece como máquina da exploração de sensações e configura um sistema de promoção do
deleite oriundo da promoção da incerteza.
Na trilha dos contos de horror produzidos ao longo do século XIX, a tácita
condenação moral aos poucos perde espaço para o silencioso mistério do fantástico. A
fantasia transforma o secreto e o indefinito em formas de experimentação do terror e se
espalha nas trevas cotidianas das páginas dos jornais. O programa romântico é atualizado na
medida em que assume a modernidade como confluência do belo com o horrível no horizonte
do sublime.
Na investigação do estranho, eventualmente na forma do humanamente cruel, essas
“histórias de terror” exploraram vícios e virtudes enfatizando a incerteza como traço marcante
da experiência de leitura. Sem corresponderem a projetos literários audaciosos, eram
consumidas na fugacidade dos dias, o que ajuda a explicar o esquecimento de algumas delas.
Escritas tanto por autores que não fariam parte do cânone literário brasileiro quanto por
escritores reconhecidos, popularizaram-se também em virtude da eficácia da leitura rápida, de
uma assentada. No entanto o horror figuraria também em obras de maior fôlego. Romances e
novelas que representariam em alguns casos o ápice de determinadas carreiras literárias e em
outros desvios circunstanciais de projetos que seguiam outras direções.
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!173!

4. A exceção do horror em causos, lendas e romances

4.1. Autores menores

No artigo intitulado “No rastro dos Assassinos misteriosos, de Justiniano José da


Rocha”, Karin Volobuef afirma que o texto, publicado em folhetins no Jornal do Commercio
entre 25 e 27 de março de 1839, seria uma adaptação da novela Das Fräulein von Scuderi, de
Hoffmann. Essa adaptação deriva de uma tradução clandestina francesa intitulada Olivier
Brusson, cuja autoria é atribuída a Hyacinthe de Latouche397. O próprio Justiniano afirma não
se importar se a obra seria uma tradução ou adaptação. Diz ter ampliado alguns pontos e
reduzido outros, traduzido o que parecia conveniente e substituído o que deveria ser mudado.
Nas palavras do escritor carioca, autoria e tradução se confundem no objetivo maior de
agradar o “benévolo” leitor. Na figura de um tradutor que se recusa a ser fiel, observa-se um
tipo dúbio de autor plagiador um pouco distante dos padrões românticos de originalidade.
Assassinos misteriosos ou A paixão dos diamantes, considerado uma das primeiras
obras de ficção escritas no Brasil, trata de uma onda de crimes ocorridos na Paris de Luís XIV
envolvendo um famoso ourives (Cardillac), sua filha (Matilde), seu noivo (Oliveiro) e a
renomada escritora Mme. Scudéry – que ajuda a resolver um misterioso assassinato.
Justiniano inicia a trama com um comentário sobre Paris e a Marquesa de Brinvilliers398 no
qual destaca a decadência e a degradação social da cidade como um “teatro de crimes e
suplícios horrorosos” 399 . Já a versão francesa da obra de Hoffmann começa com uma
descrição de Mme. Scudéry.
O primeiro parágrafo tenta envolver o leitor na atmosfera dos acontecimentos, e o
clima de horror aumenta junto com os relatos dos crimes. A intervenção do tradutor brasileiro
fica clara no estabelecimento de um padrão para os atentados, padrão inexistente na tradução
francesa: “Uma só ferida feita com o mesmo instrumento: uma só, no coração, profunda e
triangular.”

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397
VOLOBUEF, Karin. No rastro dos Assassinos Misteriosos, de Justiniano José da Rocha. In: Anais
do V Congresso ABRALIC, CD-ROM.
398
Marie-Madeleine Marguerite d’Aubray, a Marquesa de Brinvilliers, viveu em Paris no século XVI e
é apontada como responsável por uma série de envenenamentos e mortes. Sobre o assunto ver WALCH, Agnès.
La Marquise de Brinvilliers, Paris: Perrin Éditions, 2010.
399
ROCHA, Justiniano José da. Os assassinos misteriosos ou a paixão dos diamantes. Rio de Janeiro: J.
Villeneuve & Companhia, 1839, p. 3.

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!174!

Quando Cardillac é assassinado, tanto Oliveiro quanto Matilde são acusados, mas a
jovem fica sob a proteção de Scudéry enquanto o primeiro é preso. Certa da inocência do
rapaz, a escritora vai à prisão ouvir sua versão dos fatos e lhe é revelada a trama: Cardillac,
amaldiçoado na infância pela ganância de sua mãe e atormentado por fantasmas noturnos,
matava para ter de volta as joias que ele mesmo confeccionava: “Vê, olha a morte como está
enfeitada com suas joias. – Dizia então um hediondo espectro […] tinha sede de sangue:
horrorizava-me de mim mesmo!”400. Oliveiro torna-se cúmplice do ourives devido ao amor
por Matilde. Deste ponto em diante as duas versões diferem. Na tradução de Latouche um
militar da guarda confessa ter matado Cardillac, deixando a culpa recair sobre Oliveiro como
forma de puni-lo por sua cumplicidade nos crimes. Mme. Scudéry consegue provar a
inocência do jovem com a ajuda do depoimento de Matilde401. Na versão de Justiniano não
aparece a figura do militar e não é explicado como o depoimento de Matilde consegue livrar
seu amante da acusação; indica-se apenas que ela adoece e morre depois de libertá-lo.
Na adaptação brasileira, o texto é resumido e a suposta confissão de Matilde torna o
final um pouco confuso e repentino. Justiniano esconde alguns elementos para somente
revelar ao final. Seu texto, apesar de não ser tão eficaz na construção da atmosfera de
suspense, é mais ágil e simples de ler. A adaptação, talvez para atender à demanda de um
incipiente consumidor de folhetins, tende a facilitar a montagem do quebra-cabeça, mas o
leitor não é poupado das cenas de horror. “Dia e noite rondavam como fantasmas as imagens
das pessoas para as quais havia esmerado meu talento […] e uma voz infernal repetia aos
meus ouvidos, toma-as, são tuas, de que servem as joias aos mortos!”, afirma o ourives
contando seu drama. E ainda confessa: “Eu não tinha descanso, mais constantes que nunca
perseguiam-me terríveis fantasmas, dominavam-me pensamentos de sangue e homicídio.”402.
São várias as descrições do horror experimentado tanto por Cardillac quanto por
Oliveiro, mas apesar de publicar a obra como “novela histórica”, Justiniano José da Rocha
claramente abre mão de traduzir a contextualização histórica para enfatizar o horror e o
suspense. Fala brevemente sobre a Marquesa de Brinvilliers e sobre a Chambre ardente403,
temas muito mais explorados em Olivier Brusson. Entre a tradução e a criação, o tom sombrio
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400
ROCHA, Justiniano José da, op. cit., p.24.
401
Na versão francesa apenas no final o nome de Ana Guiot aparece para revelar que Oliveiro era
afilhado de Scudéry. Justiniano apresenta a personagem logo no início e somente no final revela que Oliveiro era
seu filho. O artifício reforça o efeito de quebra-cabeça.
402
ROCHA, Justiniano José da, op. cit., p.25.
403
Corte extraordinária de justiça responsável por julgar casos específicos, em geral relativos à heresia,
na França durante o Antigo Regime.

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!175!

ganha espaço. As passagens mais assustadoras são destacadas em uma síntese


convenientemente estruturada com vista ao efeito de horror .
Nas mãos de um dos mais importantes tradutores brasileiros da primeira metade do
século, a novela criada por Hoffmann (e traduzida indiretamente) aparece como um dos
marcos iniciais da produção ficcional brasileira, em um contexto em que a noção de
originalidade é aparentemente menos importante que o desejo de agradar um leitor ainda
pouco conhecido. A novela histórica tem sua contextualização esvaziada para que as cenas
sombrias e fantásticas se destaquem. O cenário parisiense é menos importante do que as
motivações fantasmagóricas do assassino. Na tradução adaptada, o medo triunfa sobre a
descrição dos cenários e torna verossímil o trauma psicológico do protagonista.
Antes de realizar a popular tradução de Os mistérios de Paris, com Os assassinos
misteriosos Justiniano José da Rocha empreende uma tarefa mais modesta que garantiria,
entretanto, seu nome entre os primeiros autores de ficção brasileiros. Ainda que a noção de
autoria não esteja muito definida, por não revelar sua fonte e não especificar a natureza de seu
trabalho o escritor publica uma obra cuja originalidade parece residir na ênfase do mistério. A
adaptação marca o início da formação de um público para o folhetim, isto é, um caminho para
a exploração do medo como dispositivo de comoção e entretenimento literário. Cabe lembrar
que no ano anterior o escritor já havia publicado no periódico O Cronista, o conto “Um
sonho”, em que uma jovem morre misteriosamente depois de um terrível pesadelo em que é
arrastada para o inferno por causa dos pecados de uma vida de luxo.
Também considerado por críticos como Sílvio Romero, José Veríssimo e Antonio
Candido como um dos primeiros romances originalmente brasileiros, O filho do pescador, de
Teixeira e Souza, editado em 1843 pela tipografia de Paula Brito, apareceu nas páginas do
jornal O Brasil entre 6 de julho e 22 de agosto do mesmo ano404. O romance, editado entre 17
de julho e 20 de setembro de 1859 no periódico A Marmota, divide-se em vinte capítulos e
traz a história de amor entre Maria Laura e Augusto. Ele, o filho do pescador, é um típico
jovem romântico apaixonado por uma bela mulher de passado duvidoso. Depois de salvá-la
de um naufrágio, Augusto se casa com Maria Laura, mas a jovem se interessa por outros
homens e tenta assassinar o marido. Dado como morto, Augusto volta no final para revelar o
disfarce que lhe permitiu acompanhar a vida da mulher e se vingar de suas traições.

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404
Para uma análise mais específica da obra de Teixeira e Souza ver Teixeira e Souza e seus
contemporâneos: vida, obra, recepção e textos selecionados, trabalho de Hebe Cristina da Silva.

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!176!

Mesmo gozando de certa popularidade no século XIX – ainda em 1859 foram feitas
duas edições do romance em livro – o texto não foi totalmente bem-aceito pela historiografia
literária brasileira. Alfredo Bosi, por exemplo, não considera Teixeira e Souza do mesmo
nível de prosadores como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Bernardo
Guimarães. Ele ressalta a “inegável distância em termos de valor que os separa de todos”.405
Sílvio Romero diz que este, apesar de ter tentado ser nacional, teria fracassado por “falta de
imaginação e vigor artístico”. Condena-o também por se valer de alguns recursos menores,
frívolos. Seus romances seriam “escritos em um estilo descurado e em linguagem por vezes
incorreta” e estariam “cheios quase sempre de salteadores, esconderijos, subterrâneos,
assassinatos, incêndios, envenenamentos, ressurreições, e toda a patacoada, todas as ficelles
do gênero pavoroso”406.
Característicos de uma literatura menor e lidos como truques baratos, assassinatos e
reviravoltas diminuiriam o valor da obra. Por outro lado, as descrições de cenas e de
ambientes que remetem à “cor local” são enfatizadas. A descrição de uma festa popular, por
exemplo, estaria muito mais em sintonia com a função que a prosa deveria assumir do que as
“patacoadas” de subterrâneos e cenas de ação, artimanhas vazias de um gênero condenável.
As peripécias de um herói que retorna para se vingar aproximam O filho do pescador do
folhetim francês do início do século XIX, além de carregar elementos góticos na figura da
mulher adúltera e assassina, romântica representação do demônio.
Na “carta que serve como de proêmio”, o autor diz escrever para atender ao pedido
de Emília, uma amiga que, ao ler Três dias de noivado, teria solicitado um romance que
pudesse ser lido por ela, pelo marido e pelos filhos. A missão parece desafiadora: “Que tarefa!
Um romance para uma senhora casada e mãe, para um marido e pai, e enfim para dois
jovens!”407. A solução encontrada é narrar uma história que lhe teria sido contada: “Escrevo
para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto posso de moral, para que vos sejam úteis;
junto-lhes as belezas da literatura, para que vos deleitem.”408. Curiosamente, em um romance
dedicado à moral e ao deleite pelas graças da literatura, encontram-se cenas de horror nas
quais se destaca a crueldade humana. A explicação talvez esteja no último capítulo, “Um

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405
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 112.
406
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, 7a ed., vol.
3, p. 834.
407
SOUZA. A. G. Teixeira e. O filho do pescador. Rio de Janeiro, Typografia da Escola de Serafim
José Alves, s/d, p. III.
408
SOUZA. A. G. Teixeira e, op. cit., p. IX.

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!177!

epílogo e reflexões”, no qual, fazendo um balanço do que fora apresentado, Emiliano, filho de
Laura, toma a palavra:

Acabamos uma cena de lágrimas! Nossas sensações foram


terrivelmente abaladas à vista de um espetáculo de lutuosos
sentimentos! Nossa alma está fatigada por tantas impressões
dolorosas! Nossos corações foram despedaçados nessa luta
sentimental da natureza, da humanidade e da religião! No meio
de uma chusma de diversas afeições nossa imaginação vagou
incerta, declinando equívoca entre a piedade e a vingança! Nós
provamos afetos horrivelmente dolorosos, e não sem traços de
júbilo! Agora a justiça não está sem alguma satisfação. A
natureza exulta, a humanidade folga, e a religião está contente!
Justo é que descansemos de tantas fadigas morais!409

O arrependimento de Laura e seu exílio em um convento aliviam as dores que


ficaram pelo caminho de uma intensa experiência de leitura. O programa romântico implica
uma aventura sentimental dolorosa, por onde se alcança o prazer graças a afetos exagerados.
O sublime aparece no jogo de contrastes, no horror que leva ao júbilo, na satisfação moral que
garante um imprescindível sentimento de justiça.
No cansativo processo de contato com o texto, subsiste a lógica das sensações
agudas, marcas de um deleite que se realiza no confronto com o abominável. As sensações
supostamente abaladas marcam a projeção do sucesso da narrativa no caloroso espetáculo do
conflito entre natureza e religião. Assim como nos contos escritos na chave da amenidade, o
final aqui é reconciliador. Se não nega a realidade dos fatos narrados, reconduz a imaginação,
que vagara entre a piedade e o desejo de vingança rumo às zonas de conforto da redenção da
vilã e do discurso moralista de seu filho. Ainda assim, o sentido moral aparece apenas como
um elemento da concretização do prazer. A resolução não diminui o esforço de exposição do
horror, assim como este não pode ficar indiferente à redentora conclusão.
É justamente esse arranjo do deleite pela afetação sustentado pela recorrência de
eventos sinistros, um dos pilares da condição de “escritor menor”, que marca a fortuna crítica
de Teixeira e Souza na maioria das histórias literárias. A condenação de seu estilo é também
uma forma de censurar determinados recursos e dispositivos considerados de mau gosto,
inconvenientes para o desenvolvimento da literatura brasileira.

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409
SOUZA. A. G. Teixeira e, op. cit., p. 219/220.

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!178!

O mesmo tipo de crítica recai sobre Januário Garcia ou O sete orelhas, de Joaquim
Norberto de Souza Silva, publicado em 1843 no periódico Espelho Fluminense, e em 1852 na
coletânea Romances e Novelas, organizada pelo autor e publicada pela Tipografia Fluminense
de Candido Martins Lopes410. A trama é mais simples do que a de O filho do pescador. Conta
a história de Januário Garcia que, para vingar o brutal assassinato de seu filho, abandona a
mulher e a filha em casa e sai em busca dos sete assassinos411. Volta para casa depois de dez
anos com um colar feito com as sete orelhas dos bandidos. Criticado por Massaud Moisés
pelo “terror grosso”412, o romance se vale de cenas fortes para enfatizar o caráter do drama de
Januário. A descrição da reação do homem ao ouvir a narração do esquartejamento é um bom
exemplo do tipo de horror que o define:

Transido de horror, com os cabelos eriçados como a coma de


javali, apareceu Januário Garcia, cuja figura infundia terror a
quantos a viam; em pé, com a sua sombra estendida ante si,
estava todo convulsivo, que os dentes lhe rangiam de raiva, os
músculos estremeciam, e os trajos balançavam com ele; como
quando palpita a terra, que tremem os troncos, e que se agita a
folhagem, parecendo convulsas as árvores. Quis falar, mas as
fauces secas, mas a língua presa, não lhe permitiram; e assim se
conservou embargado por algum tempo ante o estalajadeiro e a
mulher, mudo e imóvel como os troncos robustos do ermo.413

A taberna está no centro da trama, não como palco das perversões, mas como o lugar
onde as verdades se revelam e a vingança se completa. Não é o espaço do cinismo e sim o
ponto estratégico no qual o honrado protagonista articulará sua sangrenta reação. A crueza da
narrativa lembra o sentido de horror que Ann Radcliffe apresenta no artigo “On the
supernatural in poetry”, publicado postumamente na New Montly Magazine em 1826. A
famosa definição estabelece que o terror teria caráter expansivo capaz de elevar a alma
enquanto o horror a contrairia414.
O romance de Joaquim Norberto de Souza Silva reserva aos leitores essa experiência
mais fria, pois as cenas de fúria se sobrepõem ao mistério e recusam qualquer aspecto
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
410
No jornal o texto aparece como “crônica fluminense”; já na coletânea é classificado como
“romance”. Fazem ainda parte da coletânea as novelas Maria ou vinte anos depois e O testamento falso; além do
romance As duas órfãs.
411
A novela Januário Garcia ou O sete orelhas é baseada na história real de Januário Garcia Leal que no
início do século XIX vingou a morte dos assassinos de seu irmão no interior de Minas Gerais.
412
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: das origens ao realismo. São Paulo: Cultrix,
2012, vol. 1, p. 369.
413
SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 126.
414
RADCLIFFE, Ann. On the supernatural in poetry. New Monthly Magazine, vol. 16, no 1, p. 145/152.

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fantástico para se concentrarem em um realismo brutal que traduz o horror como violência.
Em uma das cenas mais contundentes, diante da súplica dos assassinos de seu filho Januário
brada: “Ele chorava, e vós, abutres de carne humana, lhe arrancáveis a pele; ele gemia, e vós,
onças esfaimadas e carniceiras, lhe decepáveis membro por membro; e ele dava o último
arranco, e vós, algozes da barbaridade, lhe tiráveis as entranhas ainda palpitantes!”415.
O contraste entre a objetividade fria dos assassinatos e a possível legitimidade dos
atos não mascara o sentido geral de um texto construído em torno do espetáculo da vingança.
Se os leitores de O filho do pescador terminariam a leitura extenuados pelas intensas
sensações experimentadas no turbilhão do juízo moral, os de Januário Garcia, ou O sete
orelhas precisariam lidar com cenas explícitas cujo ápice se dá na confecção de um grotesco
colar.
Na introdução de Romances e novelas, Joaquim Norberto afirma que o romance no
Brasil seria tão recente que não se poderia esperar “senão débeis ensaios”416. Nessa busca
inicial por uma forma romanesca, o escritor mineiro opta por explorar os apelos do crime e da
violência em uma imaginação ficcional que investe mais na dissecação do corpo do que no
crime. Sem investigar as motivações, debruça-se sobre os efeitos de um horror explícito e
constrói uma trama seca que se sustenta apenas pela sequência de cenas terríveis. Como um
ensaio para o romance, a novela se apoia em uma tradição sombria e se aproxima do universo
de Noite na taverna, para vingar o cinismo com a virtude de um herói cruel.
Comentando a obra de Teixeira e Souza, Antonio Candido ressalta sua importância
histórica, mas afirma que a qualidade literária é de “terceira plana”. Os romances do escritor
fluminense fariam convergir elementos já presentes nos trabalhos de Pereira da Silva,
Gonçalves de Magalhães e Norberto de Souza Silva e representariam o “triunfo da
subliteratura” em virtude da complicação dos enredos. Ainda segundo o crítico, a “peripécia”
seria o elemento central em todas as suas obras, e os personagens não passariam de elementos
“na concatenação dos acontecimentos”417, foco absoluto das tramas. O traço folhetinesco, que
permite a comparação com Eugène Sue, se reforçaria ainda na recorrência da conclusão
moral, na qual a fatalidade age como a providência que restitui o sentido de justiça. Teixeira e

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415
SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 132.
416
SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 5.
417
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1981, vol. 2, p. 126.

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Sousa é tratado como pioneiro do romance brasileiro que atingiria a maturidade com
Machado de Assis.
José Veríssimo, por sua vez, diria que os trabalhos de Teixeira e Souza, “criador do
romance no Brasil”, teriam se tornado ilegíveis com o passar do tempo, “tanta é a
insuficiência de sua invenção, composição e também da sua linguagem”. Já sobre Joaquim
Norberto, considerado precursor da “ficção novelística”, diz não ter tido a preocupação de
escrever bem: “É geralmente desataviado, mas não raro também incorreto”. A principal crítica
o pesquisador extrai de um comentário feito pelo próprio Norberto em sua análise da obra do
autor de O filho do pescador, na qual afirma que Teixeira e Souza tenderia a “perder-se em
reflexões filosóficas e demorar-se nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes para
retardar o desenlace da ação principal”418.
A suposta ênfase aos fatos menores e as estratégias para prender a atenção do leitor
permanecem como elementos-chave para a crítica. Heron de Alencar considera O filho do
pescador um “pequeno volume de umas poucas dezenas de páginas” cuja fabulação parece o
“resultado de demoradas leituras do romance negro e do folhetim de capa e espada, tantas são
as peripécias, os crimes e os pactos diabólicos que se sucedem”419. Também Temístocles
Linhares critica a relação com o romance negro: “Os recursos utilizados são os do chamado
‘romance negro’, a se desdobrar em quadros a Ponson du Terrail, sem nenhum caráter local,
em plano puramente imaginativo”.420
Nos comentários fica clara a tendência de valorização de determinado padrão
narrativo que diminui o impacto dos acontecimentos para se concentrar na exploração
psicológica dos personagens, que, no caso específico da análise de Antonio Candido, teria seu
apogeu na prosa machadiana. Identifica-se um paradigma de análise que diminui o valor dos
textos no que tange a problemas estilísticos, à falta de cor local e ao excesso de peripécias
forjadas basicamente, segundo Alfredo Bosi, para atingir um público nivelado por baixo, “um
novo público menos favorecido que busca algum tipo de entretenimento sendo o folhetim o
que melhor responde a demanda e melhor se estrutura no seu nível”421.

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418
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 169.
419
ALENCAR, Heron. José de Alencar e a Ficção Romântica. In: COUTINHO, Afrânio
(org.). A Literatura no Brasil. Estilos de época: era romântica. 3.ed. v. III. São Paulo: Global, 1997. , p. 243.
420
LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro 1728-1981. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1987, vol. 1, p. 41.
421
BOSI, Alfredo, op. cit., p. 102.

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Independentemente do grau de pertinência de tais comentários, fato é que eles


colocam a literatura folhetinesca e o chamado romance negro como matrizes menores,
referências que teriam originado obras de pouco valor estético, restando certa importância
histórica pelo fator pioneirismo. Quando entram na história literária brasileira, essas obras são
apontadas como subliteratura “puramente imaginativa”, fantasias românticas imaturas que não
traduziriam literariamente o Brasil.
O horror ganha outra tonalidade em D. Narcisa de Villar, romance de Ana Luísa de
Azevedo e Castro. Inicialmente publicado em A Marmota entre 13 de abril e 6 de julho de
1858, foi editado no ano seguinte pela editora de Paula Brito, que manteve o pseudônimo
Indígena do Ypiranga. Unindo estrutura semelhante à dos romances góticos ingleses do
século XVIII com personagens comuns na literatura brasileira, a trama se apresenta como
uma lenda contada por uma índia. Narrando como a Ilha do Mel se tornou mal-assombrada, a
velha indígena relata a trágica história da heroína Narcisa e do pobre Leonardo, proibidos de
se casar pelo ganancioso D. Martim de Villar.
A descrição da protagonista corresponde ao modelo ideal da heroína romântica: “A
moça tornou-se bela como uma divindade. Os seus modos eram tão benévolos, quando tratava
com os pobres, sua caridade tão extensa, que ganhou no povo um amor universal”422. A
delimitação do vilão não foge à regra: era um governador sórdido, “um dos tiranos mandados
ao Brasil em quem recaíra a má escolha do governo português”. Recusando se casar com
Coronel Pedro Paulo, pretendente arranjado por seu irmão, Narcisa foge com Leonardo, e
ambos são assassinados na gruta da Ilha do Mel, o que deu origem à maldição.
A história é contada por mãe Michaella em volta de uma fogueira como uma
“legenda do tempo colonial” e uma história de Anhangá, espírito maligno. A relação com um
passado distante e nebuloso marcado pelo obscurantismo ganha forma na imagem do período
colonial. O vilão aristocrata assume a feição de um poderoso fidalgo, fazendeiro
politicamente influente, enquanto o plebeu aparece na forma de Leonardo, filho de uma
escrava. Os elementos sobrenaturais surgem nas histórias locais como o sinistro uivo do
menino queimado, que a autora explica ser uma ave noturna de mau agouro, “um fantasma
com que as amas metem medo às crianças; por isso ninguém o ouve sem muito pavor”423.

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422
CASTRO, Ana Luíza de Azevedo. D. Narcisa de Villar. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997, p.
27.
423
CASTRO, Ana Luíza de Azevedo, op. cit., p. 34.

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A conclusão aponta para outra lenda que reproduziria os horrores cometidos contra o
casal: pombas brancas e corvos simbolizariam a perseguição sofrida. Michaella termina sua
narração “não sem derramar muitas lágrimas”, pois “todos quantos a ouviram estavam
comovidos” pela tocante narração.
O tom de crítica à nobreza, aspecto propriamente moderno do gênero gótico que
tende a afirmar o valor da autonomia individual ao fazer da tirania do poder uma fonte
privilegiada de horror, aparece em D. Narcisa de Villar como desaprovação à relação política
entre colônia e metrópole. A origem portuguesa dos vilões D. Martim e Pedro Paulo contrasta
com a figura nacional de Leonardo. O romance não é exatamente uma alegoria política, mas,
ao tratar do drama do casal, adapta uma estrutura típica do gótico encontrada, por exemplo,
em The mysteries of Udolpho. E, como em todos os romances de Radcliffe, o clima se
constrói também com a representação terrível da natureza: trovões assustadores lutam no ar e
são reproduzidos “pavorosamente nas entranhas do mar”, iluminando “cena de horror com
uma luz esverdeada”424.
O sublime aparece na força destruidora da natureza capaz de abalar os personagens.
A mesma tempestade tem papel preponderante na trama ao retardar a busca dos vilões pelo
casal. Aparece como elemento inexplicável e invencível ressaltar a impotência dos homens e
redobrar o medo. É um dos elementos centrais de comoção que prepara o objetivo final: levar
leitores e ouvintes às lágrimas.
Os ouvintes da história “fielmente” transcrita são como leitores ideais que atestariam
o sucesso da trama. As lágrimas são marcas do êxito nessa metalinguagem que articula
narração oral com técnica de escrita no processo de imaginação literária do horror. O interesse
gótico por tempos medievais aparece em D. Narcisa de Villar como dramatização da época
colonial. Seja na forma de antigos pergaminhos perdidos no tempo, seja na de histórias
contadas pelos mais velhos, esse tempo distante reaparece como domínio no qual são
possíveis barbaridades inconcebíveis na modernidade. O passado se converte em um fantasma
assustador.
No prefácio, sob o pseudônimo “Indígena do Ypiranga”, a escritora diz ter escrito
aos dezesseis anos e pede desculpas pela “mediocridade da linguagem” e a singeleza das
cenas. No entanto, mesmo sem ser um grande sucesso editorial, com apenas uma edição ao
longo de todo século XIX, o livro se tornaria o ponto central da obra de Ana Luíza de

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424
CASTRO, Ana Luíza de Azevedo, op. cit., 97.

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Azevedo Castro. Ainda que a história tenha componentes nacionais, a clara filiação ao gótico
parece diminuí-la. Ajuda a explicar, por exemplo, por que a obra só despertará algum
interesse crítico a partir da década de 1990, na chave dos estudos de gênero.
Analisando um pouco mais atentamente a História da literatura brasileira, de Sílvio
Romero – obra basilar dos estudos literários brasileiro, fundamental na consolidação
institucional da disciplina –, é possível observar como no século XIX a força do
pertencimento à nação se torna elemento decisivo para o estabelecimento das bases da ficção
brasileira. Expressar relação íntima com temas, sentimentos e traços do espírito nacional
desponta como o subsídio crucial para a formação de um cânone forjado nas linhas de um
progressivo aprofundamento do problema da representação do Brasil.
A história da literatura brasileira é vista como “a descrição dos esforços diversos do
nosso povo para produzir e pensar por si”, e se traduz como “a solução vasta do problema do
nacionalismo”425. De forma ainda mais taxativa, Romero afirma: “Quer se queira, quer não,
esse é o problema principal de nossas letras e dominará toda a sua história”. Mas a questão
não se resume à mera adoção de temas nacionais. Não é o sentimento profundo que se busca,
e ele não deve corresponder a nenhum projeto articulado. Para Romero, “um caráter nacional
não se procura, não se inventa, não se escolhe; nasce espontaneamente, bebe-se com o leite da
vida, respira-se no ar da pátria”426.
O nacionalismo legítimo é o que nasce espontaneamente e se naturaliza. Por esse
caminho, a formação do cânone ganha ares de condição intrínseca à evolução de um estado
espiritual refletido em fatos históricos. O caminho literário brasileiro, tornado espontâneo por
força dessa tese, veicula a ideia de um repertório que deve se consagrar necessariamente e a
ilusão de uma única trajetória possível. Analisada como uma ramificação da história social,
como “necessidade orgânica da vida das nações”, a história literária manifesta-se como
desdobramento de um Zeitgeist moderno invariavelmente canonizador.
Respondendo sobre o que seria um livro romântico, afirma: “É um livro fantástico,
eivado de miragens, de encantamentos, como o Ahasvérus de Quinet. Que é um herói
romântico? É um ente raro, miraculoso, uma espécie de arquétipo em contraste com o mundo
positivo, vivendo duma vida ideal.” E comentando a obra de Victor Hugo diz: “Por menos
que se deseje uma literatura que seja uma expressão da realidade, uma notação da vida

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
425
ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 406.
426
ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 407.

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mundana, não é possível desconhecer a falsidade das criações dos romances e dramas do
grande lirista francês”427.
Os supostos excessos da imaginação romântica são condenados pelo imperativo de
realidade. Esse é, aparentemente, o único alvo legítimo de qualquer obra que almeje
reconhecimento. A crítica à fantasia estabelece um programa relativamente preciso para a
produção literária: o caminho da grande literatura é a busca pelo real sem devaneios frívolos e
artificiais.
A determinação do princípio de representação da realidade como definidora do
romance moderno não é uma exclusividade da obra de Sílvio Romero nem da crítica literária
brasileira. A ideia de que o romance teria um compromisso com o real marca a definição do
gênero e aparece claramente, por exemplo, na clássica síntese da literatura ocidental feita por
Erich Auerbach. Ainda no século XVIII, Clara Reeve, em The progress of romance, uma das
primeiras tentativas de historicização do discurso ficcional, difere os termos novel e romance.
O primeiro seria como uma “fábula heroica, que trata de pessoas e coisas fabulosas”, e o
segundo seria “um quadro da vida real e dos costumes e dos tempos em que ele é escrito”. Se
um descreveria “o que nunca ocorreu nem é provável que ocorra”, o outro “faz um relato
familiar daquelas coisas que se passam todos os dias diante de nossos olhos”; a perfeição
deste seria “representar cada cena de maneira tão acessível e natural” a ponto de nos
confundir com a sensação de que tudo é real428.
A história do romance parece relegar à imaginação fantástica e ao horror literário a
qualificação de subproduto da ficção oitocentista. O longo debate em torno da literatura
inglesa nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, aponta o triunfo do modelo realista que
conduzirá o discurso ficcional aos problemas de um cotidiano reconhecível pela grande massa
de leitores, o que fortalece a ideia de que a prosa literária é a imagem refletida de um tempo
histórico francamente determinável.
Também no Brasil os exageros da imaginação romântica serão condenados em nome
da observação realista, e a noção do efeito estruturado na lógica do sublime se torna alvo de
críticas. Na advertência de Favos e travos, romance de Rozendo Moniz publicado em 1872, o
autor se desculpa pelas falhas do texto e comenta:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
427
ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 779.
428
REEVE, Clara. The progress of romance. Apud. VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições
sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p. 45.

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Também, a não ser fantástico o romance da vida íntima, o


escritor moderno pouco aproveita da fibra da sociedade atual,
cujos lances mais patéticos cifram-se numas ameaças, nuns
prantos, nuns faniquitos e numas costumélias que não desafiam
o trabalho de penas como o pincel de Rembrandt. À leitora que
se enfastiar do frouxo enredo que aqui vai, promete o autor
deste livro apresentar mais tarde um romance tão cheio de
peripécias como as Proezas de Rocambole, que tanto lhe deram
no gosto. Não há remédio senão viajar com a fantasia nos mares
do sublime-horrível, ainda que naufraguem o bom senso e a
verossimilhança, até porque já vai caindo em desuso ou
esquecimento aquele belo hemistício de Boileau: Rien n’est
beau que le vrai”.429

Antes de começar a narrativa – sobre a história de amor entre Virgínia e Alfredo,


dificultada pelos interesses financeiros do pai da jovem –, afirma: “O romance fantástico é
quase sempre o caprichoso parto de fogosas imaginações”. E avisa à leitora: “Quem se deleita
com romances e gosta de cenas inverossímeis, não leia estas páginas escritas pelo coração e
para o coração. Este romance é verdadeiro.”430. Rozendo Moniz parece lamentar os exageros
da ficção de seu tempo que fazem a verdade perder força. As palavras de Boileau soam
ultrapassadas em um universo no qual o sublime-horrível aparece como a melhor maneira de
seduzir os leitores dados a faniquitos sentimentais. Ironicamente, lamenta não ter sucumbido a
esse atentado ao bom gosto e à verossimilhança, mas reassegura sua posição sobre a verdade
do texto. Favos e travos, editado pela Garnier, é apresentado como avesso ao fantástico e faz
valer a verossimilhança, ainda que à custa do sucesso de público.
Reafirmando novamente a verdade do relato, o autor diz que não transcreveria a
história se terminasse em “cenas de arrepiar o cabelo, em que entram prantos e lutos, o punhal
e o veneno, enfim honra paga pela morte ou a inocência exposta para sempre à desonra”431.
Justificando o final convencional e a felicidade conjugal de Virgínia e Alfredo, pede aos
leitores que “aproveitem esses quadros lutuosos e horripilantes ao mau gosto de certos
escritores que, para comoverem mais no desfecho de suas narrativas, não se importam de abrir
um epitáfio em cada período” com o espúrio objetivo de fazer com que “de uns olhos
femininos chovam lágrimas desmentidoras do coração presumido de insensibilidade

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429
MONIZ, Rozendo. Favos e travos. Rio de Janeiro: Garnier,1872, p. 4.
430
MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 15.
431
MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 297.

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marmórea”432. Condena a exploração barata dos sentimentos e o apelo ao sublime-horrível


como recurso baixo na busca do êxito literário.
Ao narrar a bem-sucedida aventura amorosa de um estudante paulista, apesar dos
percalços, faz, portanto, a antítese de Noite na taverna. Descreve o protagonista como um
jovem de bom senso, diferente de outros daquele tempo, presos à “desgraçada moda pela qual
muitas vezes o sublime chega a ser sinônimo do extravagante”. Um tempo em que “a
imaginação mistura com os vômitos do cognac, com as fezes da saturnal”, em que a “Noite na
taverna, Jacques Rolla, D. Juan, e os Cantos fantásticos são os principais estimulantes com
que a mocidade, mais doudejante que as mariposas, busca esbrasear as asas do pensamento no
fogo do ceticismo para logo cair no gelo de precoce marasmo”433.
Com um romance muito simples, Rozendo Moniz critica não só determinado
comportamento juvenil como também um tipo de literatura condenável pelo caráter patético.
Se o jovem cínico influenciado por Álvares de Azevedo e Lorde Byron representava o
imobilismo cético, a literatura fantasiosa oriunda das academias seria a imagem do mau gosto.
Alfredo é o oposto de todos os miseráveis frequentadores das tabernas, assim como Favos e
travos se opõe aos exageros fantásticos com uma trama assumidamente banal que faz de sua
simplicidade um modelo de retidão e honestidade literária.
O exemplo deixa claro que a crítica aos excessos da imaginação romântica não é um
problema proposto apenas pelo olhar retrospectivo e sintetizador da história literária, mas uma
das questões centrais no debate em prol da definição dos termos para o desenvolvimento do
romance no século XIX. O realismo aparece como parâmetro distintivo na definição dos
padrões de bom gosto e refinamento estético.
No prefácio de Flor de sangue, por exemplo, Valentim Magalhães explica que em
seu primeiro “trabalho sério”, obra de fôlego tão cobrada pelos críticos, não se preocupou em
escrever um “romance naturalista, nem de aventuras, nem de psicologia nem simbolista”,
apenas um “romance filiado à escola da verdade”. Os tipos seriam inspirados em pessoas
reais, e a conotação moral dependeria muito dos olhos do leitor. O autor chega a justificar o
suicídio de um dos personagens como desdobramento possível de seu caráter, e não como
solução única e necessária. Confessa ainda que não daria o livro a seus filhos, pois os
“romances sinceros e verdadeiros, isto é, honestos e morais, não se escrevem para serem lidos

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432
MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 297.
433
MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 168.

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por donzelas e dônzeis”. No entanto, defende a soberania do texto citando Edmond de


Goncourt:

Hoje que o romance se alarga e cresce, que vai sendo a grande


forma séria, apaixonada, viva, do estudo literário e do inquérito
social, que se vai tornando, pela análise e pela pesquisa
psicológica, a história moral contemporânea, hoje que o
romance se impôs aos estudos e aos deveres da ciência, ele
pode também reivindicar suas liberdades e privilégios.

Os privilégios se referem ao direito de investigar a moral de seu tempo sem pudores:


afinal, como afirma adiante, nenhum romance poderia ser mais libertino que as conversas
correntes tanto na baixa quanto na alta sociedade. Ainda segundo Magalhães, o romance e a
poesia são as matrizes fundamentais da literatura moderna, mas o primeiro destaca-se em um
mundo “despoetizado pela indústria, pela ciência e pelo epicurismo”. Acredita que o gênero
ganhou força como instrumento de interpretação da sociedade e deve ser um dos caminhos
para sua reestruturação moral. E conclui: “O romance era fábula: hoje é história e crítica, será
filosofia amanhã.”434.
O livro, publicado em 1897, é apenas mais um indício do triunfo de determinado
projeto para o romance que vai gradualmente e com inúmeras variações exercendo o papel de
intérprete da realidade social. Nesse projeto, o gênero deixa de ter a conotação de fábula para
se tornar instrumento de reflexão histórica e mecanismo de investigação crítica; enquanto
“trabalho sério”, preconiza a interpretação verossímil do mundo, e o sentido de compromisso
com o público se desdobra em defesa da verdade.
Curiosamente, a fantasia é condenada também por aquele que é considerado um dos
primeiros esboços da ficção científica brasileira. O doutor Benignus, romance de Augusto
Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, foi, como afirma o próprio autor, o primeiro
romance brasileiro a fazer da ciência tema de fabulação. Tomando como modelo textos como
Viagem ao redor da Lua e Cinco semanas num balão, de Júlio Verne, conta a história de
Benignus, cientista que decide sair em uma expedição pelo interior do Brasil.
O romance não traz nenhum elemento de horror e tem muito pouco de fantástico; é
uma espécie de tratado em favor das maravilhas da ciência, considerada o caminho para o
progresso e a felicidade. No prefácio, o autor reproduz uma nota dada pela redação do jornal

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434
MAGALHÃES, Valentim. Flor de sangue. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 29.

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Globo: “O doutor Benignus foi na literatura nacional o primeiro ensaio do romance científico
ou instrutivo, nobre empresa literária cometida pelo estimado poeta e escritor o Sr. Antonio
Augusto Zaluar”. E agradece a acolhida: seu trabalho seria “um simples pressentimento da
nova fase em que necessariamente vai entrar a literatura contemporânea”435.
A crença na evolução da literatura baseia-se no mesmo positivismo expresso na
trama: o espírito humano enriquecido com as conquistas científicas não poderia se contentar
“com leituras frívolas ou livros de exageradas e às vezes perigosas seduções”. Segundo
Zaluar, em sociedades mais avançadas, como a inglesa, a alemã e a americana, seriam “raras
as obras de pura imaginação”, e as poucas existentes passariam despercebidas. A imprecisão
dos comentários acerca das devidas literaturas evidencia seu comprometimento com um tipo
sério de imaginação apoiada no discurso científico.
Naquela que é apontada como a primeira obra de ficção científica brasileira
depreende-se um senso de seriedade que inibiria os traços mais imaginativos característicos
desse tipo de romance se consideradas, por exemplo, obras como Paris no século XX, do
próprio Júlio Verne, e A máquina do tempo, de H.G. Wells. Augusto Emílio Zaluar conclui
seu recado aos leitores com uma passagem do livro Conflitos da ciência e da religião, do
cientista americano John William Draper: “Estamos em véspera de uma grande revolução
intelectual e as leituras frívolas vão ceder lugar a uma literatura grave e austera, a que os
interesses da Igreja em perigo comunicarão a paixão e a força”436.
Fica claro que a apropriação de Júlio Verne é apenas parcial, pois, como afirma José
Murilo de Carvalho na introdução da edição de 1994, Benignus é um cientista à moda antiga,
muito mais aos moldes dos naturalistas europeus de metade do século do que aos do
entusiasta das novas tecnologias, como os personagens do escritor francês. Essa diferença
ajuda a explicar o caráter menos fantasioso do texto e a preocupação de seu autor com uma
literatura séria e engajada no progresso da civilização.
Novamente observa-se um imperativo de realidade que busca orientar a ficção
oitocentista no caminho da verdade dos fatos. As leituras frívolas e exageradas fazem parte de
um passado infantil a ser superado pela razão e pelas formas austeras de imaginação. As
previsões idealistas do autor de O doutor Benignus não se realizaram plenamente, pois ainda
que o discurso científico ganhasse espaço na literatura brasileira nas últimas décadas do
século XIX e tenha sido incorporado, por exemplo, pelo naturalismo, não houve no Brasil
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
435
ZALUAR, Augusto Emílio. O doutor Benignus. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994, p. 28.
436
ZALUAR, Augusto Emílio, op. cit., p.28

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uma produção ficcional dedicada ao culto da ciência, como sugere o escritor. Todavia, em
Fortaleza, no fim do século XIX, seria publicada uma das mais bem-sucedidas tentativas de
reprodução da estrutura do romance gótico no Brasil.
Valendo-se do discurso científico como mecanismo de exploração do fantástico, A
rainha do Ignoto, escrito por Emília Freitas e editado em 1899, fala de uma sociedade
paralela comandada por mulheres situada em uma ilha na costa nordestina. Aludindo ao
espiritismo, à hipnose e à psicologia, a narrativa explora o maravilhoso apoiado no horror. O
centro da trama é o envolvimento do Dr. Edmundo com a líder das misteriosas mulheres, a
rainha do Ignoto, figura mítica da Amazônia que teria pacto com fadas e demônios e lançaria
mão de magias, hipnotismo e parapsicologia para lutar contra injustiças, curar enfermos e
salvar vítimas de acidentes – tudo isso com a colaboração de uma legião de “paladinas”,
mulheres que a ela se juntaram depois de sofrer alguma forma de violência ou desilusão.
A trama se articula entre a ocorrência de situações estranhas e a possibilidade de
explicação racional para os fenômenos. Antes de começar a narrar, a autora comenta que o
“livro não teve padrinho assim como não teve molde”. Não seria tampouco resultado das
conversas de salão, mas uma tentativa de estudar a alma feminina, “sempre sensível e muitas
vezes fantasiosa”.
Afirma que a personagem principal, ainda que pareça extravagante, seria verossímil,
um “gênio possível” que no campo da ficção encontrou espaço para realizar os “caprichos de
sua imaginação raríssima”. Cita Joana D’Arc como um exemplo de que história e lenda se
confundem. A rainha do Ignoto representaria uma peculiar possibilidade histórica, realizada
apenas como literatura cujos horizontes teriam se ampliado com a emergência de outros
discursos: “Hoje com mais razão podemos nos apoderar do inverossímil; pois estamos na
época do espiritismo, e das sugestões hipnóticas, nas quais fundamentarei meu romance”437.
A preparação para a leitura é também uma explicação. O leitor é avisado de que os fatos
extraordinários que se seguirão estão fundados em ideias contemporâneas, que legitimam os
devaneios da imaginação e refugiam o sentido fantástico em determinada racionalidade.
Quando avista pela primeira vez a misteriosa mulher ao lado de alguns estranhos
personagens, Dr. Edmundo se pergunta: “Por que capricho aquela criatura formosa, romântica
e ideal misturava o belo com o horrível? Por que se acompanhava com figuras tão irrisórias?

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437
FREITAS, Emília. A rainha do ignoto. Florianópolis: Editora Mulheres, p. 30.

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!190!

Mistério!”438. A dúvida serve como mote para o romance em si. Misturando o belo das
descrições maravilhosas da natureza e dos feitos fantásticos das heroínas com o horrível das
cenas noturnas de horror, A rainha do Ignoto mantém o suspense das peripécias ao cultivar a
dúvida em relação aos seus desdobramentos e implicações. Na conclusão, depois de tomar
conhecimento do suicídio da protagonista, o leitor é levado a refletir sobre a real existência da
ilha e os mistérios que a cercam.
No final, a protagonista explica que tanto a Ilha do Nevoeiro quanto o palácio do
Ignoto eram heranças espirituais e por serem de origem vulcânica desapareceriam por um
fenômeno natural. A predominância do “sobrenatural explicado”, nesse caso por um misto de
espiritismo e ciência, leva à inevitável comparação com os romances de Ann Radcliffe. As
descrições majestosas da natureza e a recorrente oposição entre o belo e o horrível fazem do
romance de Emília Freitas uma versão fin-de-siècle do gótico inglês do século XVIII.
A rainha do Ignoto, que teve três edições, uma em 1899, outra em 1980 e a mais
recente em 2004, traz, em todas elas, o sugestivo subtítulo de “romance psicológico”. Por se
dedicar a interpretar “a alma feminina” e fazer da suposta vocação imaginativa do gênero
feminino argumento para a exploração do fantástico. Apoiado nos parâmetros de uma
cientificidade que se popularizava como exploração da subjetividade – das sugestões
hipnóticas ao espiritismo –, tem-se o exemplo de um romance que, também pelo fôlego,
remete a um gênero já em decadência na Europa e que no Brasil nunca chegou a despertar
muito interesse da crítica.
Em O romance cearense, por exemplo, Abelardo Montenegro acusa A rainha do
Ignoto de ser “um dramalhão” sem “veracidade” nem “naturalidade nos diálogos”. O texto,
graças à defesa feita por Otacílio Colares por ocasião de sua segunda edição – assim como D.
Narcisa de Villar a, voltaria a despertar interesse só no fim do século XX, também na chave
dos estudos de gênero.
Na medida em que as prerrogativas para o romance passam a priorizar a capacidade
de observação da realidade, ocorre um duplo movimento: de diminuição de determinados
autores e de marginalização de obras centradas tanto na exploração de uma fantasia menos
comprometida com a realidade quanto na promoção de um efeito de comoção específico.
Consequentemente, as diferentes formas de horror literário ocuparão espaços paralelos, seja
como dispositivos centrais nas obras de nomes pouco importantes, seja como recursos

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438
FREITAS, Emília, op. cit., p. 36.

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!191!

secundários nos trabalhos de autores canônicos. Reproduzindo paradigmas estabelecidos


ainda no século XIX, as histórias literárias brasileiras tenderão a consagrar a representação da
realidade como meta virtual, muitas vezes ignorando as lógicas de circulação e consumo para
enfatizar um amadurecimento estético ideal cujo valor intrínseco se sobrepõe às
particularidades históricas da literatura.

4.2. Os alfarrábios de José de Alencar

Publicado em dois volumes, em 1873, pela Garnier, Alfarrábios traz em seu primeiro
tomo “O garatuja”, uma “crônica dos tempos coloniais”, e no segundo os contos “O ermitão
da Glória” e “A alma do lázaro”. Baseado em um episódio registrado por Baltasar da Silva
Lisboa, “O garatuja” conta como a história de amor entre dois jovens, articulados com o
autoritarismo do poder eclesiástico, dá origem a um grande motim no Rio de Janeiro do
século XVII.
No prefácio, José de Alencar lembra que o caráter histórico da narrativa poderia ser
comprovado no terceiro volume dos Anais do Rio de Janeiro, mas confessa ter descoberto a
trama – que também serviu de mote para o poema “O Almada”, de Machado de Assis – em
conversas com um velho que conhecera no Passeio Público. Uma figura indefectível que
parecia “a metempsicose de algum poento in-fólio da Biblioteca Nacional, que porventura
fugira pela janela; e se abrigara à sombra dos castanheiros para livrar-se da fúria arqueológica
dos antiquários”.439
Em nota no primeiro volume de Guerra dos mascates, obra publicada no mesmo ano
de Alfarrábios, o escritor cearense afirma que “O garatuja” já estava esboçado havia muito
tempo; faltava apenas tomar forma. Diz ainda que, de tanto estudar, conhecia mais o Rio de
Janeiro colonial do que o imperial, e que a “crônica despretensiosa” escrita “sem esforço nem
cuidado” seria apenas uma forma de atenuar o tédio advindo com a doença que o acometia.
No prefácio da edição publicada nas obras completas editadas pela José Olympio em
1955, Mário Casasanta diz que a versão de José de Alencar do motim ocorrido no século
XVII não só é superior à de Machado de Assis como é uma verdadeira obra-prima. O crítico
destaca que o autor conseguiu se afastar dos recursos dos romances portugueses no tocante à

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439
ALENCAR, José de. Alfarrábios. São Paulo: Ler Editora, s/d, p. 6.

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!192!

“linguagem, instituições, modas e personagens”, tarefa improvável por se tratar de crônicas


coloniais.
Afirmando que os textos reunidos seriam composições antigas, Mário Casasanta
sustenta que “O ermitão da Glória” e “A alma do lázaro” teriam sido lançados praticamente
como o autor os concebeu na juventude, com os “sinais da iniciação”; já em “O garatuja”, o
“escritor manifesta a plena posse de seus recursos”440. “O ermitão da Glória” é baseado em
lembranças de viagens marítimas de quando Alencar foi de Fortaleza a Recife em 1838 e em
“reminiscências de Cooper”. “A alma do lázaro” foi escrita em Olinda nos tempos da
faculdade “e da silenciosa biblioteca de São Bento”441.
Um dos últimos trabalhos de José de Alencar, Alfarrábios, reúne histórias que têm
em comum a dramatização do passado. “O garatuja” é uma típica crônica histórica com apelo
documental, enquanto as outras flertam claramente com o fantástico e com o horror. Seriam
trabalhos abandonados na época de estudante, retomados poucos anos antes da morte do
escritor. São comumente enquadradas na segunda fase de sua produção. Fase esta que
segundo José Veríssimo seria marcada “por um mau gosto malsão do extravagante, mesmo do
monstruoso, uma afetação do desengano e da desilusão que lhe revê a chaga da alma mal
ferida”442.
O crítico não comenta especificamente Alfarrábios, mas entende que a crise marca
todos os seus últimos romances, dentre eles O gaúcho, Til, A pata da gazela e Tronco do ipê.
Já Sílvio Romero discorda daqueles que preferem a primeira fase, considerada mais suave e
graciosa, e ressalta obras em que por vezes se destacam traços “mórbidos e desequilibrados”,
resultado de uma visão de mundo mais pessimista e irritada443.
Na advertência do segundo volume o leitor é avisado de que não encontrará naquelas
páginas o humor de “O garatuja”, mas será conduzido a situações dramáticas que poderão
levar ao choro artificial próprio das narrativas românticas. Começa então a narrar as aventuras
de “O ermitão da Glória”, passadas no ano de 1608, época em que “andavam os mares do Rio
de Janeiro muito infestados por piratas”. A trama se inicia com uma luta travada pelo
comandante Ayres de Lucena que resulta no assassinato de um francês, chefe da embarcação

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440
ALENCAR, José de. Alfarrábios: crônicas dos tempos coloniais. Prefácio de Mario Casasanta. In:
Obras completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955, vol. XIII, p. 18.
441
PROENÇA, Miguel Cavalcanti. José de Alencar na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, p. 28.
442
VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 198.
443
ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 245.

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!193!

atacada. Sua filha acaba nos braços de Ayres quando a mãe, desesperada pela morte do
marido, se lança ao mar. Daí em diante se desenvolve a tentativa de redenção do comandante,
que, para garantir o sustento da criança, a deixa aos cuidados de Úrsula. A trama se complica
quando, dezesseis anos depois, Ayres reencontra Maria da Glória, apaixona-se por ela e passa
a ser perturbado pelo reflexo da imagem da jovem no rosto de Nossa Senhora da Glória, sua
santa de devoção.
No dia de seu casamento, Maria da Glória morre. O terrível acontecimento levou o
noivo a uma vida de devassidão. Sua escuna, dada por Ayres e antes dedicada à Virgem,
transforma-se em uma taberna de ébrios cujo nome é trocado para Maria dos Prazeres, em
homenagem a uma cortesã de Salvador. O comandante se refugia em uma gruta e transforma-
se no lendário ermitão. Alguns anos depois é encontrado morto por Antônio de Caminha, que
assume seu legado e passa a viver uma vida santa, que justificaria a construção da igreja de
Nossa Senhora da Glória por volta de 1714.
A explicação para a tragédia que se abate sobre Ayres de Lucena é dada no meio da
história. Uma espécie de punição teria sido empreendida pela santa, “agastada por terem-na
escolhida padroeira de um navio corsário tomado de hereges”, já que todos os eventos
sobrenaturais da trama – aparições sinistras e acidentes incompreensíveis – giram em torno
dos mistérios da fé. Nossa Senhora da Glória é figura central por trás dos acontecimentos
decisivos. A dimensão fantástica da narrativa baseia-se nesse elemento extraordinário que
governa os rumos dos personagens. Quando o autor avisa que a leitura poderá provocar
lágrimas, antecipa o resultado do contato tanto com o sofrimento gerado pelos desencontros
amorosos quanto com o aspecto maravilhoso das aparições religiosas.
Ao fazer do passado matéria de fabulação fantástica, José de Alencar busca no
território nebuloso da lenda e na mistura do “paganismo com a devoção cristã” os motivos
ideais para exploração do mistério. Produz uma ficção que exalta a presença do sobrenatural e
também o põe em xeque. Narrando uma passagem em que a imagem da santa teria se
deslocado até a embarcação sem tocar o chão, lembra que, apesar da crença de muitos
devotos, “não faltavam incrédulos que metessem o caso à bulha”. A narrativa ganha
densidade dramática na medida em que parece ao mesmo tempo comum, dadas as crenças do
povo, e extraordinária, tendo em vista a impossibilidade de comprovação.
“O ermitão da Glória”, história que teria sido contada pelo mesmo homem que lhe
apresentou “O garatuja”, revela um sistema ficcional articulado na tênue fronteira das
diferentes possibilidades de crença. A empatia necessária para gerar os “choros de artifício”

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!194!

depende da história ser dotada de algum grau de verossimilhança, constantemente confrontada


com eventos sobrenaturais justificados nos limites da fé religiosa.
O estranho se articula com o fantástico, mas faz das verdades comuns a matéria de
identificação. Nesse esforço, um passado obscuro transforma-se em matéria literária na
medida imprecisa do insólito com o familiar. A cidade que José de Alencar diz conhecer
graças a seus estudos é a imagem de um tempo distante, configurado segundo elementos que
também definem a narrativa gótica: eventos inexplicáveis, mocinhas virtuosas e vilões
condenados à miséria, punidos pela devassidão. As matrizes mais evidentes dessa aventura
literária nos mares aparecem citadas em Como e porque sou romancista, quando José de
Alencar diz ter devorado os “romances marítimos” de Walter Scott e Cooper”, que lhe teriam
alimentado a fantasia enquanto atravessava o oceano.
Tendo também como referência as obras de Frederick Marryat, escritor inglês
considerado um dos precursores de histórias marítimas, o escritor se vale de mitos, lendas e
costumes locais para inventar uma cidade supersticiosa que deve emocionar alimentando
fantasias. É a racionalização dramática de um repertório supostamente comum. Na
dramatização da abusão há uma operação essencialmente desmistificadora que transforma
crença em matéria de consumo literário, mas prevê a gratuidade dos riscos envolvidos na
leitura, a afetação menor que a realidade, o choro artificial da tristeza fabricada. Quando
promete narrativas mais alegres para os próximos volumes, o autor anuncia o fim do jogo
garantindo na promessa de um novo prazer o aspecto jocoso daquele que se apresenta. Viram-
se as páginas, muda-se o clima, e o sofrimento artificial deverá dar lugar a novos risos
fabricados pela fabulação literária.
É justamente a busca desses sofrimentos inventados o cerne de “A alma do lázaro”,
último dos textos de Alfarrábios que narra a vida triste de um homem com hanseníase. O
clima de mistério que envolve a descoberta da história é parte fundamental da atmosfera
sombria da obra. Já na advertência o leitor tem pistas de sua origem:

Este alfarrábio, não o devo ao meu velho cronista do Passeio


Público. É, como se disse no prólogo, uma escavação dos
tempos escolásticos. Tem ele porém, se me não engano, o
mesmo sabor de antiguidade que os outros, e ao folheá-lo estou
certo que o leitor há de sentir o bafio de velhice, que respira das
cousas por muito tempo guardadas. Para alguns esse mofo
literário é desagradável. Há porém antiquários que acham

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!195!

particular encanto nestas exsudações do passado que ressumam


dos velhos monumentos e dos velhos livros.444

A história terá a mesma evocação do passado que marca as outras, mas seu gosto de
antiguidade é de origem muito mais curiosa. Na primeira parte, intitulada “Alma penada”,
revela-se que o autor de “Diário do lázaro” seria poeta, assim como o narrador, um jovem
estudante da academia de Olinda que gostava de vagar na calada da noite nos arredores das
ruínas do convento do Carmo. Procurava nos muros da antiga edificação inspiração para
escrever, alguma história que a imaginação completaria para saciar sua “sede de poesia e
mistério”.
Uma noite pensa ter visto um fantasma, mas acaba conhecendo um velho pescador
que lhe fala sobre o diário que enterrara a pedido do lázaro. Juntos decidem desenterrá-lo e
Assim é anunciada a segunda parte, “O diário”, datado de 1752.Trata-se basicamente do
relato dos numerosos sofrimentos de um homem afastado da sociedade, tratado como
monstro, que depois da morte de sua mãe só podia contar com a companhia esporádica da
irmã. Destinado a causar horror, afirma que “realmente um lázaro não é mais um homem. Foi
concebido pela mulher, mas a praga o abortou. No horror que infunde é fera, no asco que
excita é verme”445. Vagando solitário, apaixona-se de longe pelo vulto de Úrsula, mas o
horror que sentia de si mesmo o obriga a se afastar. Uma noite, porém, enquanto a observa
por trás das sombras das árvores um clarão revela sua imagem em uma cena sinistra:

Eis rasga-se a escuridão e vomita sobre mim uma chama do


inferno. Alaga o rúbido clarão todo o arvoredo, e cinge-me de
uma labareda sinistra. […] Corro; mas além está o luar
alvacento, que amortalha-me em fantasma. Volvo esvairado
sobre os passos, e entro de novo na flama vermelha que me
persegue como a língua de Satanás. […] Nisto surge o corpo
alquebrado de um velho e afasta-se horrorizado. –"É"o lázaro!…
É o lázaro!… […] Ainda ouvi o grito de angústia que
despedaçou a alma de Úrsula, mas vindo doutro mundo diverso
daquele onde eu estava. Do mais não soube, até as alvoradas
que me acharam estremunhando na vasa onde eu jazera o resto
da noite; da noite dos outros, que não desta contínua e perpétua
que se estende sobre minha vida. […] Mas até o sono do jazigo
me rouba a sorte ímpia.446

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444
ALENCAR, José de. Alfarrábios, op. cit., p. 102.
445
ALENCAR, José de, op. cit., p. 146.
446
ALENCAR, José de, op. cit., p. 169.

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!196!

A situação terrível culmina com a morte de Úrsula, pela qual o homem se sente
culpado, como se a repugnância de sua figura fosse capaz de matá-la. No dia do velório, entra
na igreja à meia-noite para roubar o cadáver, o que insufla o ódio na população, que põe fogo
em sua casa e nos restos mortais de sua amada. Sua vida miserável, no entanto, é preservada,
pois até o fogo lhe teria asco. Expulso da cidade, refugia-se em uma casa abandonada em
Olinda, “onde terminou afinal a imensa e cruel agonia de uma existência nunca vivida, mas
tão penada”447.
Analisando as duas partes da narrativa observa-se inicialmente um convite ao
mistério. Depois de advertir que a trama teria o sabor da antiguidade, o narrador apresenta as
condições peculiares que o levaram ao conhecimento do pergaminho. Nas andanças
motivadas pelos anseios da “febre da imaginação que delira”, observa o choque entre as novas
gerações e as ruínas do passado, aliança misteriosa de dois mundos. Sua vida descuidada de
estudante soava como “profanação no meio desses muros aluídos, desses claustros ermos,
sobre esse túmulo de uma população extinta, à face dessa cidade múmia”448.
Na observação solitária de um passado imaginado, busca inspiração nas histórias
guardadas pelo tempo, mas “a eloquência do silêncio que plainava sobre o templo dizia
apenas a ruína”. A busca pelo mistério termina quando avista um fantasma que poderia
finalmente satisfazer sua vontade de fantasia, mas segue-se a frustração de ter a visão
fantástica sucumbida à banal realidade do encontro com o pescador.
Desde o início o leitor sabe tratar-se de uma história narrada por um amante de
mistérios cuja imaginação precisaria apenas de uma fagulha para desencadear uma aventura
fantástica. Sabe também que o “mofo literário” que exala pode ser desagradável para os que
não se interessam pelas coisas antigas. Enquanto a primeira expectativa é quebrada pela
ausência do sobrenatural, a segunda é confirmada com a aparição de um manuscrito do século
XVIII que justificará o conto em si. A articulação da verossimilhança com o estranho parece
ser a chave do mistério. Em sua busca por motivos sinistros, o estudante só encontra relatos
da miséria de um homem doente; quando anuncia a possibilidade do fantástico, o narrador
apresenta uma narrativa comovente pelo horror do sofrimento humano. O horror que se
insinuou sobrenatural revela-se na materialidade de um diário, e a trama que parecia seduzir
pelo mistério se consolida como a verdade de um relato íntimo.

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447
ALENCAR, José de, op. cit., p. 174.
448
ALENCAR, José de, op. cit., p. 107.

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!197!

Na segunda parte, o narrador sai de cena e o leitor acompanha as anotações do diário,


tão tristes que levam o estudante a esperar vinte anos para publicar. As páginas narram
basicamente o horror da experiência de um homem tratado como monstro que lamenta por sua
vida e clama pela morte. O medo que desperta nas pessoas se confunde com o nojo de “um
cadáver ambulante cujo corpo arde”.
Em alguns pontos o personagem se aproxima da criatura protagonista de
Frankenstein, de Mary Shelley. Guardadas as devidas proporções de fôlego e engenhosidade
dos enredos, temos um personagem excluído que, observa o mundo dos homens a distância,
escondido entre as árvores. Não entende a razão de sua existência. E tal como o monstro que,
na narrativa inglesa, culpa seu criador, Victor Frankenstein, pela tristeza, é Deus o culpado
neste caso. Os horrores narrados no diário tratam desde o aspecto repugnante do condenado
até o desprezo pela feiura e o perigo de contágio. Um amaldiçoado que não consegue sequer
juntar suas cinzas às de sua amada, e mesmo quando se imagina livre dos infortúnios, o
destino pune-o poupando-lhe a vida e condenando-o a uma morte solitária.
O diário tem como função levar às previstas lágrimas. O sofrimento injustificável do
protagonista que só conhece o prazer na rápida contemplação de Úrsula é um argumento para
a comoção. O passado não é mais tema de fabulação histórica. A trama não pode ser
verificada nos Anais do Rio de Janeiro nem foi contada por um homem erudito: trata-se
apenas da fantasia de uma imaginação ficcional afeita, senão às ruínas do castelo gótico, aos
restos de um mosteiro antigo. Imaginação que remete aos primeiros modelos para o romance
elencados por José de Alencar: “merencório e cheio de mistérios e pavores”, iniciado nas
ruínas de um castelo “ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida”449.
É difícil apontar exatamente os motivos que levaram o escritor cearense a retomar
esses modelos ficcionais já no fim da vida. Alfarrábios, um de seus últimos trabalhos, revela
um escritor diferente do autor de O guarani, Iracema e O gaúcho. Não constrói tipos
nacionais nem investiga profundamente costumes locais. Os contos parecem exclusivamente
dedicados ao entretenimento, sem obedecerem a projetos literários ambiciosos. Só se
aproximam de sua obra mais consagrada pelo caráter imaginativo. Esta característica
marcante de sua literatura motiva as críticas de Franklin Távora nas famosas “Cartas a
Cincinato”, publicadas no jornal Questões do Dia entre 14 de setembro de 1871 e 22 de
fevereiro de 1872 e reunidas em livro no mesmo ano por José Feliciano de Castilho.

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449
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p. 17.

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!198!

Sob o pseudônimo de Semprônio, o autor de O cabeleira critica os devaneios


imaginativos de seu conterrâneo. Na série de críticas centradas nos romances O gaúcho e
Iracema, Franklin Távora argumenta que o artista deve se concentrar na separação entre o
belo e o grotesco para enaltecer os elementos voltados ao prazer. Tomando como referência A
ciência do belo, de Lévêque, defende a arte como apelo das formas ideais e censura Iracema
tanto por não ter sido fiel à natureza quanto por “reproduzir seus aspectos inconvenientes”450.
Entendendo que o romance deve ser edificante, cita Bacon, que prefere “o romance
verossímil, possível”; “o romance junto das coisas”. Seu ideal estético submete a imaginação
à pesquisa e à fidelidade documental: eis uma crítica aos ideais românticos de originalidade e
genialidade. Opera uma “desqualificação da imaginação como princípio maior da atividade
criadora”451, anunciando o que a crítica consideraria o declínio do paradigma romântico.
Questiona o valor de O gaúcho como romance de costumes e nega sua qualidade
como mera fantasia: esta “importa uma corrupção do sentimento natural e racional, o
rebaixamento vivo e indecoroso da espécie”452. Critica ainda o mesmo romance por não pintar
a vida, tarefa que deveria priorizar. O vigor da literatura americana estaria justamente nessa
vocação para pintar os majestosos quadros da natureza em diferentes perspectivas, o que não
somente dispensava, como “excluía o uso da imaginação fantasiosa”. Iracema seria resultado
do mesmos erro: um “esbanjamento de imaginação” que manteria o romance distante da
verdade. Esse controle da imaginação literária ultrapassa os limites da crítica específica e se
estabelece como princípio para o desenvolvimento das letras brasileiras. Em carta publicada
no dia 8 de dezembro de 1871, afirma: “A crítica que se preza justa e independente é
inquestionável agente do progresso: põe diques aos extravasamentos das imaginações
superabundantes, alimenta e aguça os estímulos produtivos, apura o licor das boas fontes sem
estancá-las”.453
Para Semprônio, a natureza teria de ser posta em primeiro plano, ser o alvo de
“complexa e completa” observação. Segundo Eduardo Vieira Martins, os argumentos de
Franklin Távora se baseariam no conceito de imaginação de Philarète Chasles apresentado em
Études sur la littérature et les moeurs des anglo-américans. Para o filósofo francês, a
imaginação funcionaria como memória; não criaria nada de novo, apenas construiria imagens
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450
TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Apresentação de Eduardo Vieira Martins, Campinas:
Editora da Unicamp, p. 23.
451
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 31.
452
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 47.
453
TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 125.

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!199!

com base nos elementos percebidos e armazenados pelos sentidos. Nessa chave, a noção de
gênio criador perde força e a arte é apreendida nas metáforas do daguerreótipo e da fotografia.
Nessas proposições nota-se uma tentativa de controle da atividade ficcional que
pressiona a fabulação literária para um compromisso com determinado sentido de verdade e
realidade. Comparando os comentários de Franklin Távora com os de Walter Scott acerca da
obra de Hoffmann, por exemplo, observamos que a condenação da fabulação romântica é
mais radical nas palavras do crítico brasileiro. Se para o escritor escocês o excesso de apelo
imaginativo resultaria em literatura de mau gosto, no caso de Franklin Távora os riscos
parecem maiores, como se a legitimidade do discurso ficcional estivesse em jogo.
Ao atribuir à imaginação a tarefa de observação da realidade, o crítico oferece um
eloquente exemplo de como o cenário literário brasileiro se torna hostil aos apelos de uma
arte literária que enfatiza a afetação em detrimento da representação realista. Os comentários
parecem mais curiosos quando lembramos que, uma década antes, Franklin Távora publicara,
no Diário de Pernambuco, Trindade maldita: contos de botequim. A diferença em relação aos
sentidos atribuídos à ficção talvez se explique porque, em 1862, o escritor era aluno da
faculdade de direito do Recife. A literatura mais evidentemente fantasiosa parece legítima
apenas como traço da vida estudantil, mas é inadequada quando se considera o verdadeiro
destino das letras nacionais.
Em Como e porque sou romancista, José de Alencar lamenta a fria recepção de O
guarani, lembrando que Iracema foi mais bem recebido. Para Pinheiro Chagas, por exemplo,
o livro estaria “destinado a lançar as bases de uma literatura verdadeiramente nacional”454, e
Machado de Assis, em artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro em 1866, reclama que a
obra não teria tido o merecido acolhimento. Os relatos evidenciam a centralidade das duas
obras, tanto no projeto literário de Alencar quanto nas ambições da crítica engajada no
desenvolvimento de uma literatura nacional. Ambas, apesar das críticas ao excesso de
imaginação que recaem sobre a obra do escritor, estão diretamente relacionadas ao processo
de nacionalização da ficção brasileira, e O guarani é tratado como primeiro exemplo de um
romance propriamente brasileiro.
A configuração desse projeto faz com que Alencar despreze seus primeiros
arremedos de novela, peças do tempo de estudante guardadas no fundo do baú. A difícil e
nobre tarefa da criação romanesca “séria” inibe o desenvolvimento de temas menores, que são
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
454
SCHWAMBORN, Ingrid. A recepção dos romances indianistas de José de Alencar. Fortaleza:
Edições UFC, 1990, p. 60.

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!200!

“desprezados ao vento” e só retornam nas modestas ambições de Sênio, pseudônimo adotado


na “velhice literária” que traduz menos empenho em relação às causas literárias nacionais.
Alfarrábios, então, surge como obra de pouco valor que depois de alguns anos traria a público
os ensaios da imaginação de um leitor de histórias marítimas que escreve como distração às
tarefas da vida de estudante. Assim como também fizera seu adversário anos antes de escrever
as polêmicas “Cartas a Cincinato”.

4.3. As lendas e os causos de Bernardo Guimarães

A obra ficcional de Bernardo Guimarães ficou marcada na crítica literária brasileira


tanto pelo regionalismo, ou seja, pela exploração de cenários, temas e costumes do interior do
Brasil, quanto pela abordagem de alguns temas centrais para sociedade brasileira do século
XIX, como nos casos dos romances O seminarista (1872) e A escrava Isaura (1875). Por
vezes considerado melhor poeta que prosador, destacam-se no conjunto de suas produções os
poemas escritos na juventude. “O elixir do pajé”, paródia byroniana que satiriza o indianismo
de Gonçalves Dias e “A orgia dos duendes”, que Antonio Candido compara à Noite na
taverna pela manifestação de “diabolismo; luxúria desenfreada e pecaminosa” centrada no
jogo de contrastes e na “volúpia do mal”455. O humor refinado desses poemas456 contrastaria
com uma prosa que, segundo José Veríssimo, seria espontânea, “sem propósito estético ou
filiação consistente a nenhuma escola”. O escritor mineiro seria apenas um contador de
histórias, sem a ingenuidade popular que a formação letrada teria anulado457.
Interessado em causos populares publicou Lendas e romances em 1871; Histórias e
tradições da província de Minas Gerais em 1872 e A ilha maldita em 1879. Nas três obras
lendas locais são apresentadas como histórias misteriosas e por vezes assustadoras, articuladas
na tensão entre a crença do leitor e a legitimidade de um narrador que, apesar de apenas ter
“ouvido falar”, do que se passou, tenta garantir a verdade dos relatos. .Em Lendas e romances

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
455
CANDIDO, Antonio, op. cit., 177.
456
Sobre o humor nas poesias de Bernardo Guimarães, ver FRANCHETTI, Paulo. O riso romântico:
notas sobre o cômico na poesia romântica de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos. In: Germina: revista
de literatura e arte. Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_ago5.htm> Acesso
em: 24 mar. 2014. Para uma análise da relação dos poemas de Bernardo Guimarães com a obra de Rabelais, ver
CAMILO, Wagner. O riso romântico: poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Dissertação apresentada
ao departamento de Teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp em 1993.
457
VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 201.

!
!201!

foram compilados os textos “Uma história de quilombolas”, “A garganta do inferno” e “A


dança dos ossos”. O primeiro é o relato da resistência de negros refugiados contado da
perspectiva de uma história de amor, e os dois outros merecem atenção especial pela
exploração do horror literário.
“A garganta do inferno” apresenta-se como uma lenda passada em meados do século
XVI. Conta a história de Nina, bela jovem cujo único defeito seria a imaginação exaltada e o
gosto por “contos de fadas e histórias de encantamentos”. O narrador afirma que “se tivesse
tido educação literária teria sido uma poetisa, ou artista sublime”458 antes de narrar seus
terríveis sonhos fantásticos sobre uma gruta repleta de ouro e uma serpente de fogo. Seduzida
por um rico fidalgo, sai de casa abandonando sua mãe, que recebe altas quantias de ouro
como compensação.
Gertrudes, no entanto, convencida de se tratar de um “presente de Satanás” recusa as
ofertas. Quando descobre que o jovem não pretendia se casar, Nina volta para casa e, junto
com sua mãe, joga todo o ouro recebido na misteriosa gruta, que atrairá ambas para a morte.
A cena de ambos os suicídios é descrita em tons sombrios: a “pobre velha transida de angústia
e pavor” e a jovem enfeitiçada pela imagem de uma serpente de fogo em um “delírio que lhe
escaldava o cérebro”. Diante do horror dos moradores de Lavras-Novas, o bispo de Mariana
manda construir no sinistro local em que “morava o diabo em pessoa” um templo a Nossa
Senhora dos Prazeres. Nos entulhos da antiga gruta é talhada a letra S, e o narrador completa:
“Cremos que quer dizer segredo, mas quem o descobrirá?”459.
O elemento mais insólito da trama é a atração de Nina pela gruta revelada em sonhos
e concluída com sua morte. No entanto, o poder sobrenatural do lugar é parcialmente
explicado pelo caráter da protagonista de imaginação fantasiosa. A manifestação de seus
delírios associada às crenças religiosas de sua mãe dá o tom fantástico de uma história que
assustaria todos os moradores da região remota. Apresentado como uma lenda, o conto é
destituído de maiores explicações por parte do narrador, que o anuncia como trama de um
passado distante cujas crenças populares perpetuariam.
A pergunta final reativa um mistério que recai sobre o leitor, a chave do segredo está
perdida no tempo e sua inacessibilidade torna a história mais interessante. O problema da
verossimilhança é deslocado da origem da narrativa para seu final. Diante de um mistério
consolidado como lembrança, cabe ao leitor imaginar o enigma da conclusão tomando como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
458
GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p. 112.
459
GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 149.

!
!202!

possíveis os eventos sinistros que a antecedem. Garantido pelo poder persuasivo evocado pela
lenda e respaldado pela imaginação de Nina, o narrador não problematiza o inverossímil e
trata a fantasia como instrumento do sublime, expresso nas “visões terríveis” que assombram
as noites das duas infelizes.
A história tradicional de uma “povoação quase desconhecida”, que nem sequer
“figura nas cartas geográficas”, desperta a curiosidade como um mito que, distante no tempo e
no espaço, não ultrapassa os limites de Minas Gerais. É o estranho familiar que foge à ordem
citadina na proximidade excitante de um Brasil misterioso. A pequena comunidade afastada é
a imagem de um povo esquecido, de passado obscuro revelado como fábula. Nesse espaço
ignorado pela representação oficial da nação, crença e fantasia organizam um mundo de
inocente obscuridade tornado fantástico nos delírios de uma típica heroína romântica. A
narrativa de um Brasil pitoresco é transformada em produto destinado a um mercado literário
interessado nas excentricidades lúdicas de uma terra longínqua cujas fronteiras são
demarcadas pela adesão à modernidade.
Em “A dança dos ossos” os pressupostos não são muito diferentes. O estranho causo
de uma ossada que assombra os moradores de uma pequena cidade é contado pelo barqueiro
Cirino, mas a veracidade é questionada pelo narrador-personagem, um homem da cidade em
viagem pelo interior de Minas Gerais e Goiás. Segundo Cirino, os ossos seriam de Joaquim
Paulista, e seu brutal assassinato explicaria as assustadoras danças macabras. O narrador
destaca a eloquência do relato do barqueiro. Considera-a tosca, porém muito mais viva que a
transcrição que o leitor tem em mãos. A gesticulação “selvática e expressiva” não poderia ser
completamente descrita, assim como o clima não poderia ser reproduzido: “A hora avançada,
o silêncio e solidão daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram
também grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis.”460.
As descrições apavorantes deixavam os ouvintes boquiabertos, “transidos de pavor e
estremecendo”, mas o narrador questiona se não seria o álcool o responsável pelas visões. A
imaginação exaltada do contador associada ao medo da escuridão da mata o levaria a
transformar em “coisas de outro mundo” tudo que vira na floresta mal iluminada por um luar
escasso. Cirino insiste na veracidade dos fatos; garante que a sepultura de Joaquim se fecharia
só no dia em que fossem rezadas tantas missas quanto o número de ossos do corpo humano.
Respaldado pelo povo que lhe servia de testemunha, consegue convencer seu interlocutor que,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
460
GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 162.

!
!203!

resignado, conclui: “Espero que os meus leitores acreditaram comigo, piamente, que o velho
barqueiro do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um
esqueleto na garupa.”461.
A história é evidentemente contada para não ser levada a sério, e a irônica adesão do
narrador apenas ressalta a leveza bem-humorada da narrativa do barqueiro. Quando relata o
momento em que o suposto causo lhe teria sido contado, o narrador avisa que os mistérios
soaram muito mais intensos na dramática teatralização de Cirino, a qual o texto não poderia
reproduzir. A tradução letrada da experiência particular de ouvir histórias macabras em torno
da fogueira transforma a leitura em uma simulação secundária que, por fim, enfatiza uma
teatralidade virtual e distante. O texto se converte na imagem pitoresca de uma prática própria
dos lugares representados, tratados, eles próprios, como fantasmas de um Brasil afastado e
curioso.
Tanto o barqueiro quanto os acompanhantes que lhe servem de plateia são
personagens de um mundo exótico de onde emanam narrativas excêntricas. Forjando
estrategicamente sua diferença, o narrador os define como homens bons “dessa raça
semisselvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano”, que vagam pelas
florestas mas “não se acham inscritos nos assentos das freguesias, e nem figuram nas
estatísticas que dão ao Império”462.
A representação do outro afirma sua estranheza decisiva, ainda que positiva. Suas
histórias, mesmo que eventualmente verdadeiras, soam estrangeiras. O outro e suas
fantasmagóricas aventuras chegam como vozes de um mundo estranho cujo registro escaparia
à organização do império. No entanto, persiste na alegoria simpática do sertanejo familiar o
traço de solidariedade que permite ao narrador experimentar com prazer as pitorescas
aventuras sem se chocar por completo. Sem o grito de horror que Marlow conta ter ouvido do
capitão Kurtz em O coração das trevas, de Joseph Conrad. Aqui o medo é apenas anedótico,
serve a uma literatura interessada em representar outro Brasil e busca nas entranhas desse país
imaginado um repertório de tramas ingênuas que permitam o exercício lúdico do horror
literário.
Na edição preparada por Hélio de Seixas Guimarães publicada em 2006, “A garganta
do inferno” é interpretada como “uma lenda sobre os vexames da miséria” dada a pobreza da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
461
GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 178.
462
GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 154.

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!204!

protagonista. “A dança dos ossos” seria por sua vez uma “projeção do medo senhorial”463
considerando as diferenças sociais entre orador e ouvinte. As interpretações se esforçam para
enxergar nas lendas e nos causos as tensões da sociedade oitocentista. Na tentativa de
comprovar que as narrativas são contemporâneas delas mesmas, as análises procuram traços
de um Brasil naturalizado como chave interpretativa. O sucesso do interesse pelas coisas
nacionais passa a ser medido por sua capacidade de representá-lo. O interesse pelo interior se
converte em traço exclusivo do nacionalismo literário, e o exotismo apresentado se prestará
sempre à descoberta da imensidão nacional, nunca como configuração artificial propícia à
exploração de temas como o horror, por exemplo.
Essa representação pitoresca do interior como instrumento de fabricação de tensão é
central em outras obras do escritor mineiro, particularmente nas três narrativas de Histórias e
tradições da província de Minas Gerais. Na primeira, A cabeça de Tiradentes, o narrador
avisa no primeiro parágrafo:

Quereis, minhas senhoras, que vos conte uma história para


disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio?
[…] Mas, por melhor que seja a minha vontade, não sei como
possa satisfazer ao vosso pedido […] digo mal, – cumprir as
vossas ordens. […] Este frio enregela-me as asas da
imaginação; este vento glacial, que uiva pelos telhados, como
uma matilha de cães danados, estes guinchos de corujas, que
parecem lamentos de precitos, fazem a inspiração recolher-se
toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio,
tiritando de frio e de medo. […] A falar-vos verdade, minhas
senhoras, tenho o espírito tão seco e estéril, como a caveira de
um defunto enterrado há cem anos. […] Ah! falei-vos em
caveira!.. […] E não é que esta idéia de caveira veio despertar-
me a reminiscência entorpecida pelo frio?! Foi como a vara
mágica de Moisés, que fez rebentar água em jorros da aridez do
rochedo do deserto. […] E pois vou contar-vos a história de
uma caveira memorável. […] Não se arrepiem, minhas
senhoras; não é história de almas do outro mundo, de trasgos,
nem de duendes. […] É uma simples tradição nacional, ainda
bem recente, e da nossa própria terra. Essa história eu a poderia
intitular: História de uma Cabeça Histórica.464

Com o subtítulo “Lenda mineira”, a história fala sobre um homem que velava a
cabeça do mártir da independência em uma praça de Vila Rica em meados do século XVIII. O
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
463
GUIMARÃES. Bernardo. Lendas e romances. Edição preparada por Hélio de Seixas Guimarães. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XXXIV.
464
GUIMARÃES. Bernardo. Histórias e tradições da província de Minas Gerais. Textos literários em
meio eletrônico <http://is.gd/ukS5iy>. Acesso em: 23 mar. 2014.

!
!205!

sinistro objeto cravado no alto de um poste inspirava horror nos cidadãos, até que em uma
“noite tenebrosa e horrenda” é roubada por um velho “de vida misteriosa e retraída”. O
narrador afirma que os fatos seriam pouco conhecidos, porém tradicionais: “Perguntem aos
velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos, das coisas antigas da nossa terra, e se
convencerão de que esta história não é de minha lavra”, afirma ao final. O dispositivo da
lenda local é evocado para justificar uma história que só veio à tona como tentativa de
eliminar o enfado de uma noite fria.
A menção à imagem de uma caveira desperta uma lembrança sinistra, que não é um
caso sobrenatural, apressa-se o narrador em avisar, mas uma “tradição nacional”. Tratada
como repertório cultural pouco conhecido, a trama ganha ares de verdade tanto para as
ouvintes representadas quanto para os leitores, de quem são reprodução ideal. A dimensão
histórica passível de ser assegurada por “velhos” e “curiosos” garante o horror na falta do
fantástico. As figuras ausentes estabelecem um ponto fictício de veracidade que, não podendo
ser alcançado, transforma a lenda em um tipo conveniente de verdade lúdica. Diferentemente
da fidelidade fria dos arquivos nos quais os fatos podem ser averiguados, a imprecisa
autenticidade da lenda funciona perfeitamente na articulação entre crença e desconfiança,
marca necessária das histórias de terror. Essa introdução dá o tom da história e ajuda a forjar
um clima para o livro como um todo.
A segunda narrativa, “A filha do fazendeiro”, conta a história de uma fazenda
abandonada depois de servir de cenário para eventos sinistros relativos aos desencontros
amorosos entre Eduardo, Paulina e Roberto. O narrador avisa que para saber mais o leitor
deveria ler toda a história contada “há tempos por um morador daquelas paragens” e que ele
teria tratado de “reproduzir com toda fidelidade e individuação”, obedecendo aos limites de
sua memória.
É justamente esse compromisso com suas lembranças que leva o narrador a sugerir
uma comparação com o poema gótico “A noite do Castelo”, de autoria do escritor português
Antônio Feliciano de Castilho, que serviria de mote para a ópera homônima de Carlos Gomes
estreada no Teatro Lírico Fluminense em 1861. Diante do tema da revolta de um jovem que
observa o casamento de sua amada com outro, o narrador comenta que o leitor possivelmente
estaria esperando uma cena brutal de vingança aos moldes do poema no qual o cavalheiro
negro dá um tiro no rival, rouba a noiva e desaparece como um fantasma. “Isto seria por certo
mais dramático, e talvez mesmo sublime”, mas, reiterando sua isenção, limita-se aos fatos tal
como lhe “contaram há bastantes anos.”

!
!206!

A suposta expectativa dos leitores indica a popularidade da estrutura do romance


gótico que, a despeito da fala do narrador, está plenamente representada na narrativa. A
fazenda sinistra e abandonada guarda segredos e mistérios como o castelo medieval, e
novamente os quadros da aristocracia aparecem na forma das elites coloniais. O triste final,
com a morte de Paulina e o desaparecimento de Eduardo, ressalta as virtudes dos personagens
e intensifica o drama. O gótico é evocado como imagem do exagero, e a narrativa que lança
mão de seus lugares-comuns renuncia à filiação para reafirmar um caráter supostamente
verídico.
Os elementos sobrenaturais – aparições fantasmagóricas que abrem e encerram a
história – são atribuídos à fala do povo. Durante toda a ação o narrador apresenta os fatos sem
questioná-los, mas as aparições são consideradas coisas do “povo supersticioso”. A
desconfiança deixa um mistério no ar, e os eventos aparentemente inexplicáveis permanecem
como fruto de uma imaginação popular que a narrativa não questiona, pois precisa dela para
ganhar força. Sem os fantasmas estaríamos diante de um simples desventurado triângulo
amoroso que se recusa a ser violento, finge não ser gótico465.
Para José Veríssimo Bernardo Guimarães é o criador do romance regional brasileiro,
porém o escritor mineiro não conseguiu imprimir em suas obras “a imagem exata, seja na
representação objetiva, seja na sua idealização subjetiva”466 da paisagem nacional. Em todos
os seus trabalhos faltaria “uma pintura ou expressão exemplar” do meio sertanejo; Bernardo
Guimarães falharia também na composição de romances históricos. A análise é
posteriormente corroborada por uma fala que Alfredo Bosi atribui a Monteiro Lobato, para
quem o autor de O garimpeiro tenderia a “falsificar o nosso mato”. Por ser um mau contador
de histórias, não teria expressão própria: “Vinte vergéis que escreva são vinte invariáveis
amenidades”. A crítica ao regionalismo fraco acompanha o menosprezo à ideia de literatura
amena e condena os textos analisados à banalidade.
O posicionamento dos narradores, isto é, suas advertências aos leitores, visa imprimir
imediatamente o aspecto despretensioso de histórias, lendas e causos, que devem servir de
entretenimento ameno como simulação letrada de aventuras representadas como partes de um
repertório popular. O flerte com o gênero gótico, que por vezes organiza a dinâmica dessas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
465
“Jupira”, a última das narrativas da coletânea, conta a história de um infeliz triângulo amoroso que
termina com a morte dos envolvidos, mas sem os elementos insólitos que caracterizam as duas primeiras.
466
VERÍSSSIMO, José, op. cit., p. 203.

!
!207!

histórias, indica um esforço de exploração de determinadas sensações literárias, especialmente


o horror.
A representação de uma paisagem exótica pode funcionar como traço de um
nacionalismo literário, pois obviamente a tradução dessas narrativas implica uma escolha
estratégica que defina tanto o que é popular quanto o que é nacional, mas também obedece às
regras dispersas da imaginação literária do horror. Na medida em que se articulam
nacionalismo literário e fabulação do horror o cenário passa a estar a serviço da construção de
um efeito. Sua idealização não poderá ter somente um sentido documental de realidade no
horizonte. Na tentativa romântica de afetar pelo terror, o escritor sacrifica o quadro natural
para lhe impor tonalidades mais escuras. A proposta pressupõe um esforço de representação
do outro que assegure, na chave técnica da evocação do estranho, a imagem de um Brasil
misterioso e anedótico.
Sobre a literatura sertanista, Nelson Werneck Sodré comenta que sua preocupação
fundamental seria substituir o indianismo, condenando os quadros litorâneos e urbanos, para
pintar um Brasil mais verdadeiro, fazendo dos cenários do interior “o sentido nacional de seus
trabalhos” 467 . A legitimidade do esforço estaria na fuga dos modelos estrangeiros que
pautariam o indianismo, e, apesar de fracassarem pela ingenuidade, os sertanistas seriam mais
originais ao buscar no homem do interior um tipo diferente, mais tipicamente brasileiro.
A simplicidade e a candura dos romances seriam desdobramentos de um “realismo
da minúcia”, esforço inútil de imaginação que impede a definição do que “realmente existe de
nacional na literatura”. Nesse arranjo crítico, o nacionalismo literário infuso, traço do
empenho literário oitocentista, traduz-se em necessidade realista, uma vez que só se justifica
na medida em que representa o Brasil em tons mais ou menos verossímeis. A realidade é
sempre a matéria-prima fundamental. Mesmo que possam ocorrer algumas pequenas
distorções no processo de representação, caberia à literatura construir poeticamente imagens e
dramas do real. Positivados, literatura e realidade aparecem como entidades que se encontram
e se afastam sem nunca se perderem no horizonte.
Operando sentidos diferentes de verdade e historicidade, as lendas revelam uma ideia
desviante de literatura em que os pressupostos realistas da fabulação são desprezados em
nome da sensação do mistério. Em 1879, Bernardo Guimarães publica o romance A ilha
maldita em um volume editado pela Garnier no qual aparece também o conto “O pão de
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467
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1969, p. 323.

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!208!

ouro”, inicialmente publicado no Jornal das Famílias em fevereiro de 1872. O romance conta
a história da misteriosa Regina, mulher sedutora ligada ao mar, um “misto estranho de
qualidades opostas, ao mesmo tempo que inspirava simpatia e amor causava terror e
repulsão”468.
A trama é contada por um pai em resposta à curiosidade de seu filho a respeito da
ilha que avista ao longe. O homem enfatiza não ser história da carochinha, mas um drama
verdadeiro ocorrido para a desgraça do povo local. A ilha seria o abrigo de uma “sereia ou
fada” dotada de poderes satânicos que atraía os jovens e os aprisionava. O narrador adverte
que contará a história como o pescador a contou, mas sem a linguagem “tosca e singela”,
porém “pitoresca e animada” empregada pelo orador. Imitaria com os andrajos emprestados
pela “pobre musa que lhe inspira”. Não seria uma reprodução fiel, mas “uma tradução livre e
ampliada da história” contada ao longo de várias noites.
A versão menos animada, mas inspirada, da lenda conta como Regina, encontrada na
praia pelos moradores da região quando ainda era criança, é a única a não se assustar com o
que se diz sobre a ilha, sentindo-se na verdade atraída por ela: “A ilha maldita era para ela
afortunada”. Como que “animada por um espírito diabólico”, a jovem, cujo destino estaria nas
mãos da terrível fada, seduz e desgraça a vida de três irmãos, morrendo abraçada a um deles
quando a ilha desaparece, submergindo “com todos os seus fantasmas, encantos e maldições”.
Mas segundo os pescadores, nas noites de luar ela reapareceria rodeada de “terrores e
encantamentos”469.
Os dois amantes não conseguem escapar das perseguições da terrível entidade. O
amor não os salva, o que frustra o narrador, que contava com a redenção para não ter de dar
ao romance um “fim lúgubre e sinistro” que desagradaria “as ternas e compreensivas almas”
dos leitores.. Na tradução livre e aumentada da lenda, o narrador brinca com as expectativas
dos leitores ao sugerir a possibilidade de um final feliz para, nos capítulos seguintes, realçar
as cores de um fim terrível.
Lembrando que o livro não fez muito sucesso – veio a ser reeditado só em 1930 –,
Basílio de Magalhães, biógrafo do autor, aponta falhas no texto. Tomando o povo como
“melhor juiz das obras de arte”, questiona os elogios de Dilermando Cruz, também biógrafo
do escritor mineiro, lamentando a “ostensiva inaturalidade” do texto, de onde sequer seria

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468
GUIMARÃES, Bernardo. A ilha maldita ou a filha das ondas. São Paulo: Pauliceia, 1931, p. 28.
469
GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p.118.

!
!209!

possível extrair “uma ideia simbólica” capaz de justificá-lo. Nas suas palavras em A ilha
maldita:

Não se compreende como é que Regina, uma jovem de


músculos por natureza franzinos, pudesse vencer a remos
vagalhões e obstáculos que foram insuperáveis a hábeis e
valentes pescadores, e ainda menos se justifica tardassem tanto
a conhecê-la e a apaixonar-se por ela os três irmãos Rodrigo,
Ricardo e Roberto, numa pequena aldeia litorânea, da qual era
ela a moça mais formosa, a beleza fatal, que arrastava todos os
rapazes ao amor mais desatinado, cujo fim era a fuga ou o
suicídio. Inexplicável é também casar-se Regina, tão
desambiciosa quanto resistente a outros mais nobres e sólidos
afetos, com um aventureiro opulento, ali fortuitamente
aparecido. A morte violenta deste pelos três filhos do fidalgo
português e a vingança trágica, de que foi autora a viúva-
virgem, borbulham de tangíveis inverosimilhanças.470

Em uma das poucas críticas que o romance recebeu, destaca-se a inverossimilhança e


o aspecto pouco natural. A trama de traços evidentemente fantásticos, história de pescador
transmitida de geração em geração, é considerada inconsistente por não transmitir nenhum
sentido de verdade, mesmo que simbólica. Falha por não possibilitar sequer uma interpretação
alegórica que explique suas fantasias. O horizonte do texto que representa seus leitores como
portadores de almas ternas e sensíveis não pode ser o da verossimilhança esperada pelo
crítico. Há uma evidente discordância entre a chave interpretativa estabelecida e a proposta de
um romance de fantasia baseado em uma lenda em que uma sereia maligna habita uma ilha
amaldiçoada.
Os apontamentos se reproduzem nos comentários a “Pão de ouro”, dramatização da
lenda da “mãe de ouro”, segundo a qual bandeirantes buscam uma terra prometida repleta de
ouro e riquezas. Na versão de Bernardo Guimarães, os principais adversários do protagonista
Gaspar e de seus companheiros são os tatus brancos, horríveis e violentos canibais habitantes
da floresta. A cena em que Gaspar é capturado é bastante representativa do clima do conto:

Gaspar pensava ter caído vivo no inferno, e sua pavorosa


situação ainda mais cruel se tornava pela lembrança do rico e
delicioso vale, que tinha ali tão perto de si, e que ainda há
pouco acabava de atravessar com o coração a transbordar de
esperanças e o espírito cheio dos mais brilhantes projetos.

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470
MAGALHÃES, Basílio de. Bernardo Guimarães: esboço biográfico e crítico. Rio de Janeiro:
Anuário do Brasil, 1926, p. 56.

!
!210!

Atravessar o paraíso para cair de chofre naquele inferno de


eterna escuridão! Oh! Que era um transe de pungir, de ralar o
coração! Gaspar foi atirado no chão, amarrado como estava
como um porco, que se vai sangrar. Pelo tropel e vozeria dos
selvagens compreendeu que a furna se dilatava interiormente
em um vasto subterrâneo, cuja atmosfera pesada e quente estava
carregada de miasmas infectos e nauseabundos. Posto que
transido de horror sua curiosidade era grande, e ao menos para
disfarçar sua angústia desejava conhecer aquele inferno, onde a
sorte o precipitava por modo tão estranho e desapiedado.471

Ainda segundo Basílio de Magalhães, ao escrever a história Bernardo Guimarães


teria se deixado “guiar pela mesma desordenada fantasia do romance A ilha maldita”. Isso
porque a medonha tribo seria pura invenção. Não haveria nenhum relato de cronista que
atestasse a existência desses improváveis seres “claros e de pequena estatura com unhas
formidáveis, residindo em buracos de morros e saindo das suas luras somente à noite, por
nada avistarem à luz meridiana”.
O narrador, por sua vez, tenta persuadir o leitor afirmando que não poderia assegurar
a veracidade do relato, mas garante que lhe fora narrado por uma pessoa “muito sensata e
autorizada”, merecedora de todos os créditos. Reaparece o problema da relação entre a
expectativa de certo compromisso com a fidelidade e as artimanhas da confecção literária. A
inserção de um elemento que comprometeria a legitimidade da tradução da lenda é tratada
como invenção arbitrária, pouco pertinente. É como se o escritor, infiel à lenda da “mãe de
ouro”, deturpasse sua originalidade e sentido.
Na horrível aventura, os índios inventados são peças fundamentais, pois toda a ação
se dá em torno dessas criaturas medonhas que garantem as cenas de “horror e asco”. As
descrições pormenorizadas de assassinatos e violência canibal acionam um tipo diferente de
descrição das terras brasileiras que, como lugar de riquezas e belezas naturais, abriga também
índios macabros. O Brasil selvagem é representado como uma terra sinistra, em descrições
horripilantes publicadas nas páginas de um jornal dedicado à literatura amena. O mundo
bizarro narrado por Bernardo Guimarães tem como referência os “sertões profundos e
remotos” e torna-se a imagem misteriosa de um território forjado para atender tanto aos
esforços de um projeto literário nacional articulado na idealização de uma cultura não urbana
quanto às demandas de um público interessado em mistérios e peripécias literárias.

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471
GUIMARÃES, Bernardo. A ilha maldita/ O pão de ouro. Rio de Janeiro: Garnier, 1879, p. 86.

!
!211!

A tradução letrada das histórias populares se desenvolve no horizonte da fabricação


ficcional do horror que potencializa a sinistra carga dramática que as define. Um Brasil
estranho revela-se nos termos de uma paisagem estrategicamente desconhecida e por vezes
macabra. Nas páginas dos jornais, as histórias pitorescas são reveladas por mecanismos
ficcionais que tentam reproduzir a impossibilidade da circunstância de um relato vivo e
transformam em literatura a experiência animada da contação de histórias. Surge assim uma
linguagem particular que tenta ser o meio-termo entre a teatralidade da reprodução oral e a
eficácia técnica da escrita.
Na defesa de uma literatura nacional menos centralizada, Bernardo Guimarães faz
um pequeno inventário de histórias populares traduzidas na chave de uma imaginação literária
do horror que tenta tornar atraente um mundo de mistérios cujo maior encanto reside na
encenação espontânea da tradição. Introduzidas no mercado literário, essas histórias serão
criticadas tanto pela falta de vigor quanto pelo excesso de imaginação. Caberia ao
regionalismo o pequeno mérito da tentativa de ampliação das representações do Brasil e o
peso da falha de ser apenas a imagem superficial de um território imaginário.

4.4. Aluísio Azevedo e o misterioso Victor Leal

Em sua primeira versão, publicada em 1893, a coletânea Demônios trazia doze


contos com temas variados, da anedota ao conto fantástico. Essa seria a base de Pegadas,
seleta de contos publicada em 1898, um ano depois de Aluísio Azevedo desistir da carreira
literária e vender seus direitos autorais para a Garnier. Somente em 1934 M. Nogueira da
Silva, responsável pela edição de suas obras completas pela F. Briguet & Cia., publicaria
Demônios em um volume que incluía todos os contos anteriormente publicados472.
O mais famoso dos textos selecionados nomeia duas das versões. “Demônios” foi
publicado na Gazeta de Notícias em 1891 como um típico conto de horror473. Um jovem
estudante acorda diante de um cenário sinistro no qual encontra mortos os habitantes de uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

473
Na introdução de uma edição de 2007, Lúcia Sá lembra que o texto publicado em Pegadas difere em
alguns pontos do de 1893: alterações pontuais que teriam em comum “a tendência ao pudor e ao recato”,473 como
se na segundo versão a autor tornasse o texto menos detalhista e grosseiro. A tendência se repetiria na segunda
versão de “Cadáveres insepultos”.

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!212!

sombria casa de pensão. Antes das terríveis visões, o estudante trabalhava em seu quarto
“escrevendo com volúpia, exercitando suas ‘doidas fantasias de poeta’”. Sente suas ideias se
confrontarem como “um bando de demônios” devorando-se uns aos outros, até que adormece
lutando contra o voo febril de sua imaginação. Ao acordar percebe que a noite parecia não ter
mais fim e, ao se deparar com os primeiros cadáveres, descreve angustiado os seus
sentimentos:

E o meu terror cresceu. E apoderou-se de mim o medo do


incompreensível; o medo do que se não explica; o medo do que
se não acredita. E saí do quarto querendo pedir socorro, sem
conseguir ter voz para gritar e apenas resbunando uns vagidos
guturais de agonizante. E corri aos outros quartos, e já sem
bater fui arrombando as portas que encontrei fechadas. A luz da
minha vela, cada vez mais lívida, parecia, como eu, tiritar de
medo. Oh! que terrível momento! que terrível momento! Era
como se em torno de mim o Nada insondável e tenebroso
escancarasse, para devorar-me, a sua enorme boca viscosa e
sôfrega. Por todas aquelas camas, que eu percorria como um
louco, só tateava corpos enregelados e hirtos.474

A passagem poderia servir de epígrafe a qualquer história de horror. O medo


crescente toma o absurdo como base e, potencializado, inibe o grito. A sensação de que o
nada se transforma em uma força perigosa constrói um momento terrível quase impossível de
traduzir. A instauração de um horror de origens metafísicas deixa o protagonista “perdido em
um grande Nada indefinido, vago, sem fundo nem contornos”, suplicando a Deus pelo fim da
escuridão. Em meio a essa estranha experiência, sente fome e devora como um animal os
alimentos encontrados na cozinha antes encontrar sua amada Laura ainda com vida em um
momento místico “completamente alheio à vida animal”.
O jogo de contrastes entre os desejos animais e as “mais altas regiões do ideal e do
amor” se reproduz na fantástica transformação da cidade, cujas ruas se estreitavam entre duas
florestas que surgiam. Monstros crescem e acumulam toda atividade molecular e atômica da
terra. O mundo natural converte-se na expressão da “grande alma do mal”. Os corpos vão se
alimentando dessa matéria sinistra enquanto o espírito enfraquece e os dois únicos
sobreviventes da terra vão se transformando em animais, “como os dois últimos parasitas do
cadáver de um mundo”. Animalizam-se no impulso contraditório de existir para morrer na
medida em que reúnem suas forças humanas para tentar o suicídio no mar. Mas quando a
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474
AZEVEDO, Aluísio. Demônios. São Paulo: Marins Fontes, 2007, p. 16.

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!213!

transformação se completa, desistem da morte, encontrando a felicidade na falta do


pensamento.
As mutações evoluem levando-os à condição vegetal para experimentarem uma
existência tranquila sem desejos nem saudades que se desdobrará em uma desmaterialização
completa cujo fim é um vagar pelo firmamento, “como um casal de estrelas errantes e
amorosas que vão espaço afora em busca do ideal”475. Completado o estranho ciclo que
percorre as angústias do horror humano para chegar à paz etérea da ausência de matéria, o
narrador se volta para o leitor avisando que tudo não passara de delírios literários de um
jovem escritor em uma noite de insônia, “capítulos desenxabidos” escritos à espera do nascer
do sol.
Mesclando elementos de literatura fantástica com discurso científico, a narrativa
apresenta o drama da involução como dissolução do mundo. Curiosamente, a narração do fim
dos tempos narra também a decomposição da tensão dramática, pois, na medida em que
caminha para a conclusão, a história vai se tornando menos terrível apesar de mais insólita.
Os momentos mais tensos são apresentados logo no início, no encontro com os cadáveres e na
atmosfera desesperadora de um terror metafísico que assombra o protagonista. Quanto mais
humana, mais assustadora a história se apresenta. O processo de animalização que culminará
com a fluidez absoluta é narrado como libertação de angústias e apresenta um final feliz
mesmo antes de se revelar a farsa.
Elementos do romantismo e do naturalismo se articulam não só na construção do
horror quanto no dimensionamento da fantasia. Às detalhadas descrições dos corpos em
decomposição seguem-se as declarações de amor eterno e de culto da beleza ideal. Os termos
precisos de uma fantástica involução natural são acompanhados pelo inabalável caso de amor
que supera os limites do corpo e do tempo. São representados como as verdadeiras fontes do
horror, pois na medida em que vão sendo superados a paz vai se instaurando na fantasia de
um espaço ideal, em um esquema evolucionista rumo ao nada.
O pesadelo do fim do mundo une elementos da literatura gótica com argumentos da
ciência do fim do século XIX, o que aproxima “Demônios” da ficção científica praticada por
H. G. Wells e dos contos fantásticos de Maupassant, que também explorou a possibilidade da
extinção da humanidade em “Le Horla”, por exemplo. Porém, no texto de Aluísio Azevedo o
grande motivo é a literatura em si.

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475
AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 51.

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!214!

Os demônios que assombram a tenebrosa noite sem fim são suas ideias que surgem
freneticamente e contra as quais luta como se enfrentasse um “feroz inimigo” disposto a
aniquilá-lo. Sua imaginação de poeta é a verdadeira responsável pelos suplícios. Confusa e
endemoniada ela construirá uma situação fantástica derivada da inversão da hipótese
evolucionista ao narrar o fim do mundo como a aventura de seu início e o desenvolvimento da
natureza como uma insólita história de amor. Dispositivos ficcionais variados se encontram
para que no final se revele a farsa previsível.
Nessa solução o fantástico se dissolve como se as ambiguidades do corpo e do
espírito, da razão e da loucura só fizessem sentido no jogo proposto. Quando a literatura se
apresenta como tal, o drama do mundo às avessas revela-se como a farsa insossa de uma
imaginação entediada. A virulência da representação do pensamento que aparece no início dá
lugar à modéstia de um passatempo vulgar. O demônio revelado já não é tão perigoso.
Explorando tanto o horror físico dos corpos em decomposição quanto o horror
metafísico do desespero diante da aniquilação, “Demônios” afirma o caráter lúdico da
imaginação ao representar o medo literário como um recurso especulativo que possibilita não
só uma inversão do tempo como do clímax. A história que se torna mais leve na medida em
que se revela mais fantástica, menos assustadora quanto mais estranha. Aproxima e afasta o
horror e o insólito para evidenciar o descompromisso com verossimilhança sem renunciar às
certezas do discurso científico.
A fábula romântica da involução lança mão de uma complicada maquinaria literária
para se completar como devaneio despretensioso e inofensivo. A mesma densidade que o
afasta da chave da amenidade, faz dele uma versão mais complexa dos textos publicados no
Jornal das Famílias na medida em que o final transforma o retorno à verossimilhança no
desmascaramento de uma imaginação controlada que finge ser perigosa apenas para fins
dramáticos. Na conclusão que confirma a morte anunciada da fantasia, revela-se também a
artificialidade das fronteiras ficcionais que separa as categorias romantismo, naturalismo,
realismo, verossimilhança e verdade no jogo da fabulação do horror.
O conto “Demônios” difere um pouco dos outros textos da coletânea homônima
marcados em geral por um humorismo leve e despretensioso. Outra exceção é “Músculos e
nervos”, tensa história de um acidente circense. Ainda que “Demônios” não tenha tido grande
repercussão na época de seu lançamento, o texto ganhou certa notoriedade ao ser considerado
um dos precursores da ficção científica no Brasil. Em 2010 foi adaptado para os quadrinhos

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!215!

por Eloar Guazzelli476. Dramatizando os limites da imaginação literária posta em contraste


com ela mesma, a narrativa articula diferentes representações do horror para enfatizar sua
banalidade.
A representação lúdica do fantástico reaparece no último conto da coletânea, “Como
o Demo as arma”. A personagem Teresinha, influenciada pela leitura de Une larme du diable,
de Théophile Gautier, acredita ser demoníaco o homem que deseja. A “singularíssima
novela”, “extravagante fantasia do rei dos boêmios”477, assombra os pensamentos da moça
que, ao final, convencida da banalidade de suas crenças, casa-se com Lucas. O conto bem-
humorado enfatiza a separação entre a realidade e as impressões da jovem, inocente vítima
das artimanhas do escritor francês de “alma doente e sonhadora, eleito da decadência
romântica” cuja “alma desvairada” de “fumador de ópio” teria embriagado os devaneios de
Teresinha com “a delícia de um vinho traiçoeiro”478.
A imaginação romântica aparece como delírio de uma fabulação da decadência
aplicado na composição de um texto insidioso que engana seus leitores. Nos dois contos, a
ilusão representada sucumbe a um princípio forjado de realidade cujo contraste reforça a
dimensão do ficcional no fictício para que o fantástico funcione no espaço determinado de um
horror ridicularizado. Tratado como produto de um desvario inofensivo, o fantástico não pode
resultar senão em literatura menor.
A imaginação romântica reaparece como devaneio decadente e passa a representar
toda a disposição ficcional essencialmente fantasiosa e descompromissada com a realidade.
Legítima apenas em ambiente controlado, é evocada e diminuída ao sabor de um deleite
pontual sem maiores consequências. É justamente pelo entendimento da dimensão paralela e
inferior desse tipo de literatura que Aluísio Azevedo escreve A mortalha de Alzira, sob o
pseudônimo de Victor Leal.
A primeira obra de Victor Leal que depois se revelaria uma criação coletiva de
Coelho Neto, Pardal Mallet, Olavo Bilac e do próprio Aluísio Azevedo foi publicada em 1890
na Gazeta de Notícias. O esqueleto – trama que ironiza as aventuras amorosas da juventude
de D. Pedro I – foi inicialmente atribuído a Aluísio Azevedo pelos organizadores de suas

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476
A coletânea Demônios teve apenas uma edição pela editora original Teixeira & Irmão, e o conto
homônimo reapareceria só nas edições de 1898 e 1934 das obras completas do autor. A seleta seria integralmente
reeditada apenas em 2007.
477
AZEVEDO, Aluísio. Demônios. São Paulo: Marins Fontes, 2007, p. 163.
478
AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 163.

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!216!

obras completas, mas foi escrito a quatro mãos por Olavo Bilac e Pardal Mallet, como atesta
uma crônica escrita por Bilac na Gazeta de Notícias no dia 17 de outubro de 1893.
Agradecendo o recebimento de um volume de A mortalha de Alzira, lembra que,
após a publicação de O esqueleto, de Paula Matos ou O Monte do Socorro e do referido
romance, todos queriam saber quem seria o misterioso escritor que os assinava. Afirma ainda
que bastaria observar os traços do retrato feito por Hastoy estampado nas páginas do jornal
para perceber traços físicos dos quatro escritores no “romântico Victor Leal”. Revela quem
seriam os autores de O esqueleto, confirma que Coelho Neto e Aluísio Azevedo escreveram
Paula Matos e lembra que a autoria de A mortalha de Alzira já havia sido revelada por seu
autor no prefácio da obra.
Comentando o mesmo prefácio em que o autor de O cortiço trata a obra como filha
bastarda, Bilac explica que ao levar o texto para ser publicado pela casa Fauchon, Aluísio
reconheceria a paternidade e permitiria que A mortalha de Alzira convivesse ao lado de
Mulato e Casa de pensão. Faz questão ainda de rechaçar a imagem “naturalista” do escritor
maranhense que, ao ter sua obra comparada à de Zola seria acusado de “esmiuçador de coisas
sujas! Um banido do Ideal! Um espontapeteiador da Poesia!”479. Aluísio seria em verdade um
poeta e, portanto, reconheceria a importância de “viver uma vida extra-humana, amando e
praticando coisas que não se veem, como os viciosos solitários que amam e gozam mulheres
que não existem”.
Sua capacidade de investigação da verdade não excluiria a imaginação poética, e a
edição ainda no prelo de Demônios seria uma “prova flagrante” do argumento. “Um poeta que
ama a vida da terra, apesar de todos os seus horrores e todas suas misérias – é isso o autor de
A mortalha de Alzira”, afirma antes de concluir com uma enfática crítica ao texto:

Obra romântica, A mortalha de Alzira? Tanto melhor!


Esqueceremos o que estamos vendo, para ver o que viam
Gautier e Hugo. Tem o defeito de ser um romance, cuja ação se
desenrola na França? Tanto melhor! O que está agora
desenrolando no Brasil só pode perturbar a digestão e
desesperar a alma. O livro é bom. Tanto basta. Victor Leal fez
bem em abandonar as penas de pavão com que revestia as asas
de sua gralha, e Aluísio Azevedo fez bem em assinar o livro. O
livro é bom. Que podemos exigir além disso?480

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479
BILAC, Olavo. Gazeta de Notícias, 17 de outubro de 1893, p. 2.
480
BILAC, Olavo, op. cit., p.3.

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!217!

A defesa do romantismo é como um necessário desvio no olhar que amplia os


horizontes das atuais tendências literárias brasileiras de uma visada retrospectiva e exalta duas
referências da literatura francesa. É um clamor para reabilitar o romantismo diante da
desagradável realidade nacional. Tomada como critério único, a qualidade estética deve
sobrepor-se a qualquer projeto contingente. Bilac defende a coragem de Aluísio Azevedo em
assumir a autoria da obra de um pseudônimo forjado para ser a voz da imaginação em tempos
em que a observação crua da verdade se estabelecia como paradigma.
Segundo Brito Broca, desde 1878, com a publicação de O primo Basílio, naturalismo
e romantismo mediam forças na cena literária dividindo opiniões. Machado de Assis
afirmaria, por exemplo: “Nós que bebemos o leite romântico não suportamos o rosbife
naturalista” em alusão às diferenças entre as duas estéticas481. Curiosamente, foi Aluísio
Azevedo o autor do romance que marcou o triunfo do naturalismo que no ano seguinte lhe
faria uma das mais contundentes críticas.
Após publicar O cortiço em 1890, Aluísio Azevedo anuncia o primeiro capítulo de A
mortalha de Alzira nas páginas da Gazeta de Notícias, ainda sob o pseudônimo de Victor
Leal. Dizendo-se consciente de que a obra seria severamente julgada por aqueles “que
supõem excluídos do gosto público o sentimento e a verdadeira poesia”482, promete não se
incomodar com os “emperrados naturalistas” que teriam como objetivo “anular a única e
sincera comoção que existe no mundo artístico, a comoção romântica”.
Afirma de maneira ainda mais contundente que o naturalismo não convém aos
padrões de gosto dos brasileiros porque a verdade nua e crua nunca será mais bela do que
aquela trabalhada pela inspiração do artista. Ao romance caberia tanto o deleite do espírito
quanto o conforto do coração, como ensinaram os mestres da “primeira e melhor metade deste
século”. O naturalismo e sua vocação para o indecoroso aparecem como inimigos da beleza,
querendo eliminar o sublime do mundo para que reste “senão a podridão e o mal”. Com
irônica e melodramática indignação pergunta: “Querem fazer da terra um lameiro vil,
nauseabundo? Pois então que nos arranquem a alma e convertam-nos o coração em máquina
de julgar e não de sentir.”483.

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481
BROCA, Brito. Aluísio Azevedo e o romance folhetim. In: O esqueleto: mistério da casa de
Bragança. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000, p. 113.
482
LEAL, Victor. Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1891.
483
LEAL, Victor, op. cit., p. 8.

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!218!

O romance seria um estudo das dores do coração humano, ignorado somente por
indivíduos de “alma embotada”. Clama os leitores sentimentalmente puros e imunes aos
modismos das escolas literárias a ler a “chorada narrativa” sem se preocuparem com regras
artísticas arbitrárias. Termina seu manifesto romântico tardio defendendo uma arte da
comoção com o predomínio da sensação sobre a observação exclusivamente analítica. A farsa
teria rendido mais se Valentim Magalhães não a tivesse revelado em um artigo publicado no
Paiz, juntamente com a verdadeira identidade do sensível Victor Leal. Diante das evidências,
Aluísio Azevedo assume a autoria no prefácio da edição do romance, feita pela Fauchon em
1893, e explica as razões que o levaram a escrevê-lo, deixando claro tratar-se de um trabalho
paralelo ao seu projeto literário.
Dirigindo-se àqueles que acompanham sua obra literária desde 1880 e o
“revolucionário movimento artístico do naturalismo no Brasil”, dá satisfações aos homens de
letras que tomam seu trabalho a sério. Diz que escreveu por encomenda da Gazeta de
Notícias, que lhe pedira um romance com qualquer enredo que não fosse naturalista, mas
romântico e bem fantasioso para agradar a “grande massa de leitores sentimentais” sem
desagradar os que não admitem obras sem arte e sem verdade. Apesar de árduo o trabalho,
compensaria por ser bem remunerado e por ser-lhe assegurado total controle dos direitos
autorais.
Além das vantagens financeiras, seria uma oportunidade para “repousar um pouco o
espírito em um romance de fantasia”. Diz ter adotado o pseudônimo para construir um
adversário francamente romântico, capaz de rivalizar com seus pacientes estudos do natural
“obtidos a frio esforço de observação e análise”484. O empreendimento parece ter surtido
efeito, pois, com a boa acolhida do romance, críticos e amigos chegaram a imaginar que o
escritor maranhense tinha finalmente encontrado um rival à altura capaz de questionar seu
sucesso literário e de abalar “com seus golpes de imaginação” toda sua empreitada naturalista.
Na inusitada disputa, comenta que quase teve medo de si mesmo, ou seja, do misterioso
Victor Leal.
Lembra que o artigo que introduz o romance no jornal está cheio de blasfêmias
literárias e pede perdão aos sérios e fiéis leitores afirmando que era preciso lutar contra
alguém e que, na falta de oponentes, forjou seu próprio adversário. Diz ainda ter hesitado em
editar um volume da obra, mas foi convencido pela demanda dos leitores: “Se o público quer

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484
AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira. Rio de Janeiro: Fauchon & Cia, 1893, p. XIV.

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!219!

essa obra e se diverte com ela, que a leia!”. Libertando-se do inimigo que inventou e que não
mais deseja aturar, sugere que Victor Leal se rejubile vitorioso e “vá para o diabo que o
carregue ou para os braços de seus leitores sentimentais”. A dedicatória que vem antes do
prefácio evidencia ainda mais a condição paralela de A mortalha de Alzira:

Aqui entre nós, leitor idealista, dou-te este livro assim com o ar
de quem te faz um obséquio, quando o verdadeiro obsequiado
sou eu, pois que achei esta ocasião de desabafar os contidos
suspiros da minha velha alma romântica. O livro que se abre
agora defronte dos teus olhos tem para mim os efeitos de uma
válvula de segurança. Recebe-o de bom coração e não suponhas
que recolhes no teu regaço carinhoso alguma impura fancaria de
especulador. Não! A obra que te dedico é sincera sob o ponto de
vista da comoção, posto não seja honestamente e logicamente
irmã das minhas outras filhas literárias que constituem a
honradíssima família de que sou chefe. É um filho que não
reconheci logo, nem batizei com o meu nome, mas que, a
despeito disso, não foi produzido com menos amor ou desejo. É
o filho de uma ilusão fugitiva, de uma loucura de amor boêmio;
é um filho bastardo, mas é meu filho. Nasceu fora do meu casal,
em noites de amor e fantasia; pobres beijos trocados à luz de
velhas estrelas que nunca mais se apagaram; sonhos
embalsamados de passageiras flores que para sempre se
extinguiram; mas eu o amo. Segue pois o teu destino, meu
querido pecado! Já não és um simples capricho de teu pai; és
uma obra atirada ao público. Não te envergonhes de abraçá-lo,
leitor que também o amas. Beija-o, mas sem rumor; beija-o,
mas cuidado que as irmãs não ouçam nem venham sabê-lo
nunca! Não imaginas, meu bom amigo, os zelos, os ciúmes que
elas têm dos teus carinhos! Aí o tens. Cuidado!485

Francamente romântica, a obra serve para dar vazão a um estilo pouco explorado
pelo autor, a válvula de escape que lhe permitiria desenvolver temas que normalmente não
apareceriam nos romances que constituem sua verdadeira e honradíssima família literária.
Devaneio de quem abandona a seriedade para se deixar levar pelas emoções, filho bastardo
que reconhece sem negar um constrangimento inicial, o romance é apresentado quase com
pedido de desculpas. A fantasia que o define também não deve ser motivo de vergonha para o
leitor, que é alertado para não esquecer as obras que realmente importam, ciumentas
possivelmente por não serem tão populares.
Realmente o sucesso de A mortalha de Alzira poderia ofuscar um pouco as outras
obras do autor, pois M. Nogueira da Silva, organizador das obras completas publicadas pela
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485
AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, op. cit., p. IX/ XI.

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!220!

Briguet & Cia., lembra que a segunda edição do romance, feita em 1895, chegou a dez mil
unidades. Êxito incontestável, parece ter causado furor no público que já havia tido acesso à
obra no jornal e na primeira edição que se esgotou em pouco mais de um ano. O filho
desprezado se impôs pela popularidade. O pecado das noites de amor e fantasia não
conquistou a crítica mas rendeu ao menos uma notável marca de vendagem. Atingir o décimo
milheiro é realmente um feito para os padrões do mercado no século XIX. Como base de
comparação, A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, considerado o primeiro sucesso
de vendas brasileiro, teve quatro edições de mil exemplares entre as décadas de 1840 e 1850.
O Moço loiro do mesmo autor e outro romance de grande sucesso, atingiu a marca de cinco
edições em vinte anos. Obras como Lucíola e Diva, de José de Alencar, destacam-se por
terem seus primeiros milheiros esgotadas rapidamente486.
O constrangimento que ronda a obra diz muito sobre o lugar do horror na cena
literária brasileira do fim do século XIX. Essa literatura de comoção que mexe com os
sentimentos explorando a fantasia e o medo não se enquadra nos padrões ideais, parece
condenada à marginalidade, mesmo com sucesso editorial. A medida de sua popularidade é
balanceada pela mediocridade que lhe é imposta. Mesmo tendo a honestidade defendida pelo
autor, é evidente o tom de desprezo que considera menor esse delírio ficcional feito apenas
para satisfazer a demanda de um periódico.
Na afetuosa condenação da obra, percebe-se o juízo acerca de um tipo de ficção que
pode até funcionar como deleite para o público, mas está fadada a resignar-se como objeto de
atenção pontual, como pequeno desvio de conduta revestido de prazer. É um descanso ao
difícil trabalho de escritor, intervalo no desenvolvimento da verdadeira ciência literária que,
nesse contexto, atende pelo nome de naturalismo. Ainda assim, esse tipo específico de
fabulação assumidamente recreativa não estará imune aos paradigmas que norteiam o projeto
literário de Aluísio Azevedo.
Ainda no prefácio, Aluísio Azevedo alerta que o romance se vale do mesmo motivo
do conto fantástico “La morte amoureuse”, de Théophile Gautier, acrescido de alguns
personagens e eventos. Uma das principais diferenças, no entanto, estaria na lenda do vampiro
que, principal motivo do conto, é excluído na versão do escritor maranhense. “A mortalha de
Alzira substitui o truc maravilhoso do vampirismo pelos fenômenos naturais que podem

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486
Os números aparecem em A vida literária no Brasil durante o romantismo, de Ubiratan Machado.

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!221!

apresentar certas crises histéricas de um neuropata”487, afirma o autor, destacando a troca do


argumento fantástico pelo científico.
De resto a trama é basicamente a mesma: um jovem e virtuoso sacerdote é
atormentado pelo espírito de uma sedutora cortesã que o leva a uma vida dupla: religioso na
vigília e devasso durante o sono. Ângelo (Romuald no original) é um talentoso pregador que
consegue pela força de suas palavras tocar o coração da comunidade parisiense e
particularmente o da fria Alzira (Clarimond no conto de Gautier). A Paris do século XVIII é
representada como uma cidade de vícios onde imperam a orgia e o pecado em uma atmosfera
de desenfreada decadência moral e onde o jovem tenta fazer valer a palavra de Deus.
O romance de Aluísio enfatiza o aspecto decadente do período, assim como dá maior
destaque à formação teológica do protagonista, o que pode ser atribuído à necessidade de
expandir a trama e dar-lhe caráter mais descritivo. Mais curiosa é a explicação para a
comoção causada pelos sermões do jovem que aparecem como excitação nervosa causada
pelo fanatismo religioso. O esclarecimento é feito pelo Dr. Cobalt, personagem inventado por
Aluísio Azevedo. O fisiologista com “novas ideias materialistas” empenha-se em provar que
as convulsões dos fiéis não passariam de “fenômenos nervosos de histeria”, o que dá início ao
estudo desse tipo de moléstia na França.
Quando Ângelo é chamado para rezar pela alma de Alzira, os dois se reencontram na
cidade de Monteli, onde o jovem se exilara para fugir dos encantos da cortesã. Enquanto
declara seu amor ao cadáver, Alzira tem um lapso de vida, os dois se beijam e o religioso fica
prostrado diante do corpo novamente inerte, aterrorizado com a cena fantástica que acabara de
protagonizar. Quando avistam o jovem, todos ficam assustados, mas Dr. Cobalt lembra que o
mistério se inseriria no ainda desconhecido, porém “extraordinário, fantástico, impalpável,
quase incompreensível mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções
nervosas!”488. Comentando que no futuro suas ideias seriam reconhecidas e que já no século
XIX o “brilhante cortejo de loucuras não seria mais um mistério”, Dr. Cobalt resume todos os
pressupostos da narrativa fantástica e os resolve na chave do distúrbio psicológico. O estranho
e o inexplicável encontram na coerência de seu discurso científico a substância de um
mistério que se dissolve parcialmente nos limites de um pressuposto a ser confirmado pelo
futuro. De extraordinário mesmo, apenas a ignorância de um tempo anacronicamente
analisado por um personagem forjado no fim do século XIX.
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487
AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, cit., p. XXII.
488
AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 127.

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!222!

O cientista criado por Aluísio Azevedo é um contraponto que demarca as fronteiras


da fantasia para que o horror das cenas insólitas apareça no espaço do evidente delírio. O
conto de Gautier coloca o leitor em situação mais dúbia. Sonho e realidade se confundem sem
o espectro de uma explicação plausível como pano de fundo. No texto do escritor francês, a
articulação entre verossimilhança e irrealidade é mais tênue: ao tentar dissolver os limites do
sonho e da vigília, ele equaliza os dois polos que extravasam somente quando a cortesã se
revela uma vampira. Em A mortalha de Alzira, sonho e delírio se confundem sem
efetivamente se fundirem com a realidade: a vida noturna de Ângelo é claramente fruto de sua
confusão mental, o que permite maior exploração do lado fantástico da experiência noturna
como comprova o capítulo “O mundo dos mortos”.
Nele é narrada uma orgia macabra com homens e mulheres – “uns com os ossos à
mostra, outros envolvidos em longas túnicas sombrias” – que saem de sepulturas dançando ao
som do piano de um carcomido esqueleto. Ângelo é apresentado aos seres sinistros como um
vivo que perambula entre os mortos, celebrando ao lado de Alzira o pacto de dedicar suas
noites a esse estranho convívio, o que solidifica a ideia do duplo. A noite segue com uma
viagem ao passado em visitas a figuras históricas e termina com o êxtase sexual do estranho
casal. No capítulo seguinte, o religioso acorda condenando sua “imunda fantasia” e a “danosa
imaginação” que o obrigaram a percorrer um mundo de pecados ao lado do fantasma de uma
cortesã. Daí surge a dúvida sobre ter ou não pecado e sobre a angústia de se sentir vítima dos
desejos. E são eles que o levam ao encontro de um demônio de ouro no interior de uma
caverna e revelam sua ambição pelo poder absoluto, mas, diferentemente do que acontece em
Fausto, o pacto não se completa.
Vivendo uma vida miserável em que o padre condena o devasso enquanto este ri de
sua tristeza, Ângelo vê sua vida noturna vencer aos poucos a vida real. À noite enfrenta os
horrores do cinismo assassinando um libertino que conhecera em um de seus delírios. A
passagem que lembra muito Noite na taverna debate as belezas do amor ideal contra os
prazeres do amor físico e marca uma interferência do religioso no libertino, já que Ângelo
assume a defesa da perfeição romântica. Após o embate, o vigário acorda desesperado,
debatendo-se no leito, estrangulado pela ilusão de sua sombra levando Salomé, sua
empregada, a recorrer aos conhecimentos do Dr. Cobalt.
Tentando explicar a situação, o cientista fala da singularidade do caso. Refere-se a
ele como uma nevrose encefálica e aproveita para discursar novamente sobre a revolução
científica que ocorrerá no século seguinte, quando se descobrirá finalmente a complexidade
da “vida autômata dos nervos”. Enquanto isso, o jovem se convence de que é mais feliz nos
!
!223!

sonhos e faz Ozéas, seu pai adotivo, tomar uma medida drástica: levá-lo ao cemitério para
desencavar o corpo da cortesã. Com a caveira nas mãos, abstraído e mudo, Ângelo tem mais
um terrível desvario: Alzira levanta-se da cova vestida com seu roupão funerário e condena a
tentativa de lucidez do amante: “Conheces por acaso alguma coisa no mundo que não seja
delírio e loucura?”489, pergunta o fantasma lembrando a insânia da virtude, da ciência e da
religião.
Diante da certeza de que tudo não passa de ilusão e de que o amor e a felicidade são
“sonho e loucura”, Ângelo percebe que deixava de ser um vivo entre os mortos para se tornar
um morto entre os vivos, renega seu pai e se joga em um abismo à procura sono eterno. O
final dramático é também uma invenção de Aluísio Azevedo. Na versão original, o padre –
que diferentemente da versão brasileira é o narrador – simplesmente lamenta que o amor por
Deus não tenha sido suficientemente forte para suplantar o que sentia pela cortesã e sofre
resignado.
Em ambos a quebra da vida dupla causa desolação, mas Romuald não é um suicida.
Ele lamenta o fim do estranho relacionamento, mas aconselha seu ouvinte a jamais olhar para
uma mulher, sob o risco de perder a eternidade. A diferença entre o relato de um homem que
conta resignado sua trajetória de sofrimento e um suicida que não suporta a ausência de amor
na vida terrena pode ser entendida como uma prerrogativa folhetinesca. O fim mais dramático
de Ângelo está diretamente ligado à demanda sentimental dos leitores ideais que Aluísio
Azevedo tem no horizonte. Da mesma maneira que Ambrósio, personagem de The monk, é
empurrado de um penhasco pelo demônio, Ângelo se lança no abismo seduzido por uma
figura demoníaca. Assim como o romance de Matthew Lewis fez enorme sucesso na
Inglaterra do século XIX, A mortalha de Alzira registra um recorde de vendas que não
acompanha o ponto de vista da crítica.
As tramas diferem em outros pontos fundamentais. O personagem de Gautier faz
questão de ressaltar que suas aventuras não são marcadas por qualquer grau de loucura, pelo
contrário. Comentando sua condição, destaca que sempre percebeu muito nitidamente a
duplicidade de sua vida; estranha apenas que dois homens completamente distintos possam
habitar um mesmo corpo. Ainda que sua percepção da realidade por vezes se confunda por
força das ilusões, a loucura não aparece como o dispositivo capaz de reconciliar as duas
dimensões. Aliás, em “A morte amorosa”, de Gauthier, essa relação é muito mais sutil: sonho

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
489
AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, op. cit., p. 213.

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!224!

e realidade estabelecem uma oposição menos grave que no romance de Aluísio Azevedo, que
conta com a loucura como terceiro elemento. Ela invade o sono tornando-o mais fantástico e
dá o tom da vigília como a fonte de todos os delírios. É com ela e com as explicações de Dr.
Cobalt que o romance será ao mesmo tempo mais fantástico e mais realista que o conto.
A doença mental é o argumento que legitima a fantasia e permite devaneios na chave
do sobrenatural explicado. Ao retirar o motivo do vampiro, entendido como um truque
maravilhoso, Azevedo lança mão do discurso científico para pensar os fenômenos naturais
que dão origem a uma história muito próxima da literatura de autores como Edgar Allan Poe e
Robert Stevenson. Com uma trama que envolve a figura do duplo em cenas libertinas,
conflitos religiosos em sonhos fantásticos, além de assassinatos, traições e personagens
demoníacos, A mortalha de Alzira é como uma síntese do horror literário oitocentista,
construída sob uma razão explicativa que conduz a imaginação romântica e fantástica para
uma imaginação literária do horror que não se afasta completamente dos padrões ideais do
realismo e do naturalismo.
Na introdução de uma edição de 1961, Jamil Haddad apresenta o romance como um
livro romântico, escrito por um romancista básico do realismo ou naturalismo brasileiro.
Entende o romantismo como um “desbragamento da imaginação e hipertrofiada
sensibilidade” que leva muitas vezes ao alambicado e ao piegas. Afirma que esse desvario
seria influência de Noite na taverna, pois, como no byronismo paulista, observa-se o “cortejo
de catalepsia, necrofilia e o resto”490. Questiona-se ainda sobre a possibilidade de um romance
ser apenas “romantismo delirante”, afirmando que, por mais que seu autor dirija sua
imaginação às nuvens, continuará “por muito que se iluda” ancorado “nas praias do país
natal”. Nesse sentido, ainda que o escritor maranhense tenha tentado retratar uma realidade
francesa, seria impossível fugir de um pano de fundo essencialmente brasileiro: “Onde está
escrito França, leia-se Brasil e o mistério será desvendado”.
Para Jamil Haddad A mortalha de Alzira é um documento “subconsciente” que
retrata os dilemas de um padre como imagem do catolicismo brasileiro corrompido pela
escravidão. A profanação do culto e a mistura do sagrado com o profano revelariam traços
decisivos da psicologia coletiva brasileira e provariam não haver força de evasão romântica
capaz de desarticular realização ficcional e realidade nacional. Conclui, afirmando que,
“como era de gosto da época”, o livro poderia trazer a epígrafe de “romance brasileiro”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
490
AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira. Introdução de Jamil Almansur Haddad. São Paulo:
Martins, 1961, p. XII.

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!225!

Nessa chave o romantismo aparece como um esforço imaginativo de negação da


realidade, agregando em si deferentes possibilidades de fabulação. Na medida em que seu
sentido é garantido pela oposição ao realismo, transforma-se em um epíteto da fantasia
ficcional que reúne o fantástico, o maravilho e o gótico em seus desdobramentos e
atualizações. No entanto, parece não poder se realizar completamente. Frustrado, deixa
entrever uma realidade por trás das aparências que revela a força da verdade diante do mero
artifício. Essa chave interpretativa reconhece a virtude na falha para defender o que aparenta
ser indefensável, consagrando ora uma imaginação que fracassa, ora uma genialidade que
esconde o que só a romântica ideia de uma leitura profunda pode ressaltar. Revelando o
mistério, essa análise “mais atenta” transforma em nacional mesmo o que não parece
projetado para ser. Aponta a verossimilhança do que busca prioritariamente uma sincera
comoção; e se estrutura no universo dos fenômenos naturais como caminho para uma versão
fantástica do discurso científico.
Ao analisar a importância de Aluísio Azevedo, José Veríssimo critica sua versão um
pouco popularesca do naturalismo de Zola e de Eça de Queiroz, mas ressalta os bons serviços
prestados à literatura brasileira pelo “sentimento justo de realidade”, interesse humano e clara
inteligência tanto dos fenômenos individuais quanto da alma individual. O mérito de uma
“representação menos defeituosa da nossa vida” caberia exclusivamente aos romances: O
mulato; Casa de pensão; O momem; O cortiço e O livro de uma sogra. O resto de suas obras
teria menor valor por serem produzidas por “pura inspiração industrial” 491 . O caráter
folhetinesco que define esse outro lado do escritor divide criticamente sua obra ao meio, e
Victor Leal é a consciência absoluta dessa bipartição que já está clara no momento da
arquitetura de seu projeto literário. Apesar de ter lançado mão do pseudônimo somente uma
vez, é com ele que contrasta a relação entre literatura séria e trabalho paralelo 492 .
Curiosamente, são justamente esses flertes temporários que garantem a possibilidade de
dedicação às letras e levam Valentim Magalhães a afirmar que Aluísio seria o único escritor
de seu tempo a viver somente, ainda que modestamente, “à custa de sua pena”.493
Essa “inspiração industrial” marca a inserção do escritor em um mercado literário
variado que tem demandas específicas por literatura de entretenimento. É a possibilidade de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
491
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira, op. cit., p. 243.
492
Assina seu nome em A condessa Vésper e Girândola de amores, considerados ao lado de A mortalha
de Alzira seus mais bem-sucedidos folhetins.
493
BOSI, Alfredo, op. cit., p. 188.

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!226!

utilização de sua “velha alma romântica” que reaparece depois de muito sufocada pelos
imperativos naturalistas. Ele obtém boa resposta de um público que ainda no fim do século
XIX tem na afetação sentimental um pragmático critério de gosto não necessariamente
articulado com os pressupostos da crítica. Araripe Júnior chega a comentar que Aluísio teria
interrompido sua carreira para “produzir obra de mera fantasia”, o que seria espantoso se não
houvesse a explicação posterior. Comenta ainda que no romance faltaria o assombro
encontrado nos contos fantásticos de Hoffmann e nos romances de Ann Radcliffe.494
A separação entre a verdadeira literatura capaz de ler e representar a realidade
nacional contra a falsa e artificial imaginação ficcional, mais preocupada com o efeito
circunstancial do que com a ideia de amadurecimento estético gradual não é somente um
paradigma crítico anacrônico do século XX. Está no centro das práticas literárias
oitocentistas, criando critérios de valor e indicando a projeção do cânone e da margem. Nessa
tensão, um romance de imaginação fantástica como A mortalha de Alzira, depois de ter sua
misteriosa autoria revelada, é publicado com um constrangido pedido de desculpas, mas se
impõe pela popularidade. A postura de Aluísio Azevedo, muito parecida com a de Horace
Walpole em relação ao seu primeiro romance, evidencia os desencontros entre público e
crítica e a própria sobrevivência de um romantismo polissêmico.
Central em meados do século e periférica em suas décadas finais, a imaginação
romântica passa a simbolizar toda construção ficcional desinteressada em uma realidade
artificialmente substancializada e transformada em matéria para fabulação séria. Desviantes,
as formas de imaginação literária do horror fazem do descompromisso um trunfo para que o
horror assuma caráter lúdico. De certa maneira, o romance de Aluísio Azevedo se encontra
com o de Justiniano José da Rocha no movimento de adaptação do horror segundo
determinada lógica de mercado, muito mais clara no caso do escritor maranhense. A noção
mais bem definida de um mercado literário composto de um “público romântico” permite que
A mortalha de Alzira seja uma adaptação mais bem-sucedida que Os assassinos misteriosos.
Tendo mais clareza em relação às demandas do leitor, seu autor explora mais os artifícios de
comoção. Partindo do mesmo objetivo de agradar que orienta a obra de Justiniano José da
Rocha, Aluízio Azevedo se sai melhor porque domina plenamente as regras do folhetim, já
bastante popular na época.

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494
JÚNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960, vol. II, 1895/1900, p.
173.

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!227!

Com base nas novelas e romances analisados, é possível entrever uma tensão
constante entre diferentes sentidos atribuídos à prosa de ficção. A defesa de alguns
paradigmas que visam dar sentido quase oficial à produção literária – convocada para
acompanhar em sua linha progressiva o desenvolvimento da nação brasileira – convive, não
necessariamente de maneira harmônica, com propostas mais modestas atreladas às demandas
da ordem do dia. Com uma relação estreita com o público que a consome na chave romântica
do afeto, essa literatura menos programática explora recorrentemente o horror como atrativo.
Por vezes considerada excessiva, exagerada, desordenada, a imaginação romântica – que, ao
longo do século, ganha feições mais ou menos escuras, abrigando também o fantástico e
eventualmente o gótico – tem seu apogeu em meados do século XIX com o indianismo de
José de Alencar, mas é duramente questionada na segunda metade do século XIX. Depois de
ditar os rumos da prosa ficcional brasileira, transforma-se em traço de atividade paralela
sustentada pelo apelo comercial dos folhetins.
Os problemas sob os quais se debruçam a crítica e os escritores “sérios” formam um
debate estético que reforça a condição paralela de outras práticas. Nesse sentido, a fabulação
do horror encontra espaço nas margens dos projetos oficiais, aparecendo ainda na forma de
causos e mistérios de um Brasil exótico. Sem se afastar em completamente dos modelos
prioritários, lançando mão tanto do idealismo romântico quanto da investigação da realidade,
as formas de imaginação literária do horror em suas diferentes atualizações exploram o tema
da libertinagem, exibem a crueldade sangrenta de um horror bruto e encenam o maravilhoso
investindo também na ficção de um passado que assume tom de antiguidade curiosa, como no
caso dos Alfarrábios, de José de Alencar.
Bernardo Guimarães, por sua vez, tanto na sua atuação crítica quanto como autor de
ficção, mostrou-se preocupado com os rumos da literatura brasileira ao fazer apologia de sua
diversidade temática e estilística 495 . Na transcrição de lendas, explorou o medo como
ferramenta de comoção e assim se aproximou do fantástico e do gótico. Essa relação entre
horror literário e narrativas regionais não seria exclusividade do escritor mineiro. Ganhou
força em obras como A fome, de Rodolfo Teófilo, Pelo sertão, de Afonso Arinos, e Contos
gauchescos, de João Simões Lopes Neto.
Praticado tanto por autores centrais no universo literário oitocentista quanto por
nomes hoje desconhecidos, o horror literário assume nos romances formas variadas sem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
495
Ver GOMES, Ednaldo Cândido Moreira. A contribuição da imprensa na revisitação da obra de
Bernardo Guimarães. In: Anais do SILEL. Uberlândia: EDUFU, 2009.

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!228!

configurar um gênero específico. Aparece como dispositivo-chave no esforço de comoção que


garante ao mesmo tempo popularidade e descrédito sem definir um segmento próprio. Sem a
autonomia necessária para definir um horizonte particular de consumo, surge como
desdobramento de uma imaginação romântica que, aplicada às peripécias folhetinescas, busca
no desenlace ideal da sensação de horror sua sedução e sentido. Romances como O doutor
Benignus e A rainha do Ignoto se aproximam de uma fantasia científica ou de um típico
romance gótico aos moldes ingleses, mas surgem como casos isolados que ao mesmo tempo
comprovam a circulação desse tipo de literatura no Brasil e apontam seu papel secundário nas
letras nacionais.
O triunfo do paradigma realista na segunda metade do século XIX não impede a
proliferação desse tipo de ficção condenada por soar fantasiosa demais, por evidenciar a
dimensão artificial da ficção isentando-se da responsabilidade de observar precisamente o
mundo. Dividindo espaço com uma escrita cujo engajamento na realidade oferece uma
imagem verossímil do tempo e das circunstâncias, as diferentes formas de imaginação
literária do horror no Brasil se apropriam das narrativas do horror que marcam a produção
ficcional dos séculos XVIII e XIX, sem nunca obter a importância que o gênero gótico e seus
desdobramentos circunstancialmente conquistaram no cenário europeu, por exemplo.
Fazendo-se presente ora como desvio estratégico, ora como elemento secundário no
desenvolvimento do romance brasileiro no século XIX, coube ao horror a condição de motivo
menor, protagonista de uma história particular, escrita nas margens das práticas literárias
cotidianas.

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!229!

Conclusão

Ao delimitar a construção da identidade nacional como a grande missão dos homens


de letras do século XIX, os estudos literários brasileiros tendem a vincular inelutavelmente o
projeto de construção da nacionalidade e o processo de consolidação da independência
política brasileira com a autonomização da produção literária. A literatura forneceria o enredo
do país em construção, a serviço da composição de um suposto “vínculo de nacionalidade” e
da constituição de um repertório cultural comum. Nesse cenário, o romantismo assume o
papel de construir e interpretar o Brasil. A nação triunfa para além das adversidades,
impondo-se como tema fundamental, colocada, assim, no centro de uma trama análoga aos
volumosos romances oitocentistas e centrada num desenvolvimento progressivo e redentor.
O triunfo desse padrão de legibilidade naturaliza, nos estudos literários, os
pressupostos herdados da crítica do século XIX. A linguagem torna-se veículo de acesso a
conteúdos de um real concebido fora dos textos, e, ainda que convertida em estrutura interna,
uma realidade positivada passa a servir de referência a um passado que escapa. No acesso a
esse mesmo passado objetivado – ainda que em estruturas submersas a serem desvendadas
pelo crítico –, formula-se um critério de juízo: quanto mais representacional, melhor. A
teleologia do nacional passa a corresponder também ao privilégio do realismo. A enunciação
aparece em formulações correntes, como “literatura e sociedade” e “literatura e história”, que
propõem o social e a história como os espaços exteriores reais que devem ser relacionados
com a instituição literária.
O privilégio do tema nacional é bem expresso na obra referencial História da
literatura brasileira, de Sílvio Romero que chegou a ser considerada por Antonio Candido o
“monumento central da historiografia literária brasileira”. Publicada em 1888, a obra tem um
caráter de prestação de serviço ao Brasil: organizar a história literária significava oferecer ao
povo brasileiro uma imagem de sua evolução como nação civilizada. A monumentalização
romântica dos escritores faz com que a literatura seja entendida como produto de uma cultura
específica, resultado de uma equação que envolve termos como “raça” e “meio”, sem
necessariamente excluir a apropriação de tradições literárias supostamente mais consolidadas.
Para Sílvio Romero a adaptação das ideias europeias marcaria a literatura no Brasil.
Elateria deixado de ser “mais ou menos inconsciente” nos tempos coloniais para se tornar
deliberada na segunda metade do século XIX. Ao definir um lugar na cultura brasileira para a
produção letrada, Sílvio Romero atribui funções bem específicas para a literatura. Só interessa

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!230!

a literatura que sirva à nação, ou seja, que a represente a partir de sua expressão popular,
nativa. O mérito do romantismo consistiria no fortalecimento do sentimento nacional como
desdobramento do novo estágio civilizatório que o Brasil experimentaria com a
independência política.
O conceito de literatura de José Veríssimo, por sua vez, é bem mais restrito do que o
de Sílvio Romero, que incluía todos os gêneros de produção letrada, dos textos jurídicos às
canções populares. Para José Veríssimo só poderiam ser considerados propriamente literários
os textos escritos com o propósito de atingir determinado sentido artístico. O crítico privilegia
o que chama de “Belas-Letras, conforme a vernácula noção clássica”, distinguindo-as do que
considera uma “pseudonovidade germânica” que define qualquer produção letrada como
literatura. Suas concepções o filiam a outra tradição, mais eminentemente francesa, expressa,
sobretudo, em Histoire de la littérature française, de G. Lanson, de 1894.
Para José Veríssimo a história literária brasileira se traduz como história da
manifestação literária de um espírito nativo que não se deixa abalar pela opressão portuguesa.
Não há como distinguir, nesses termos, literatura e vocação nacional, pois a primeira se define
por seu caráter atavicamente nacionalista. O século XIX, com o advento do programa
romântico, surge assim como o momento da afirmação absoluta da nacionalidade literária
coadunada com a afirmação de um Brasil politicamente autônomo.
Em José Veríssimo o elemento histórico-social não é desconsiderado, mas tem peso
infinitamente menor do que nos trabalhos de Sílvio Romero. Em sua busca pelos textos-chave
defende que a história deve se ocupar daqueles que permaneceram na memória da nação, ou
seja, de autores que sobreviveram ao tempo – seja pela qualidade estética, seja pela
importância estratégica em momentos decisivos – e são partes fundamentais do repertório
nacional. Debruçando-se sobre um corpo de textos legitimados pela vida literária, o
historiador deve confirmar um panteão consagrado pela história.
Nesse cenário, a história literária se transforma em uma máquina poderosa de
canonizar o canonizado, de consagrar as obras já “consagradas pelo tempo”. O efeito é de
uma representação laudatória das Belas-Letras constitutivas do espírito nacional, em uma
sacralização que exclui o circunstancial e garante o transcendental. A transcendência, nesse
caso, é assegurada pela qualidade estética que não pode se dissociar de certo sentimento sobre
a nação brasileira. Interpretada como desvio momentâneo, a literatura de matriz byroniana,
por exemplo, rapidamente se esgota e é substituída por tendências referenciadas em Victor
Hugo. Estruturada em um conceito delimitado de literatura e com intuito mais claramente
canônico, a História da literatura brasileira, de José Veríssimo, corrobora a construção do
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!231!

panteão literário brasileiro. É basicamente em torno desse mesmo corpus canônico que
Antonio Candido viria a estruturar seu sistema literário, garantindo definitivamente a
consagração do nacionalismo como referência nos estudos literários brasileiros.
Publicado em 1957, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos é, como
se sabe, o modelo analítico de maior triunfo nos estudos literários brasileiros. O caráter
consistente e abrangente de seu sistema o fez figurar como referência no ensino universitário
no tocante à história literária nacional. A construção desse sistema literário como fenômeno
da civilização depende da articulação de escritores conscientes de sua função e da formação
de um público leitor, a partir de uma linguagem que estabelece necessariamente a relação
entre os termos. Para Antonio Candido, o despertar da consciência literária, ao menos no que
se refere aos produtores, se daria no arcadismo. Colocando-se ao lado dos primeiros
românticos e de críticos estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garret, define seu
projeto de pensar “a literatura no Brasil como expressão da realidade local” numa “história
dos brasileiros em seu desejo de ter uma literatura”.
A tendência se acentuaria com a independência política, posto que a atividade literária
atuaria na construção de um país livre, de acordo com um programa supostamente
estabelecido sob a premissa de especificação temática que visaria representar o Brasil em seus
mais variados aspectos. Essa tomada de consciência se torna o fator-chave do processo de
“formação”. A missão cívica e a vocação nacionalista das letras brasileiras teriam como um
de seus mais sensíveis efeitos imediatos o veto à imaginação que redundaria no caráter
necessariamente realista da literatura do século XIX.
A coerência das obras, sua organização e sua integração orgânica, seriam questões
recorrentes para o Antonio Candido, que dedicaria boa parte de sua obra a equacionar a
relação entre o externo e o interno nas obras literárias. A associação entre fatores como meio,
vida, ideias, temas e imagens, pode ser considerada uma das chaves de seu sistema crítico,
que, nos ensaios que compõem o volume Literatura e sociedade, se torna mais evidente: ao
tentar esclarecer suas concepções acerca da relação entre crítica e sociologia, o crítico defende
uma visão integradora que considera o caráter indissociável da crítica textual e da análise
sociológica.
Com Antonio Candido, a literatura brasileira assume, assim, de maneira quase
definitiva o problema nacional. Torna-se praticamente impossível, uma vez aceita a ideia da
“formação”, desvincular literatura e nacionalidade. Como mostrou largamente Abel Barros

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!232!

Baptista 496 , a hegemonia deste paradigma estabelece os termos de compreensão e de


canonização da produção literária oitocentista: seja exposto na superfície do texto, seja nas
estruturas profundas, um Brasil subjacente surge como necessidade ontológica da literatura
que desponta como herdeira de uma razão universal, tal um arbusto transportado e fecundado
que gera novos galhos. A oposição entre local e universal, convertida em formalização
estética de determinado sentimento de realidade, expressa, enfim, o drama da adequação
formal e da originalidade das letras nacionais.
Organizadas na chave autoral que privilegia obras centrais, as histórias literárias
tendem a desprezar motivos considerados menores, como evidentemente acontece com o
horror. A construção de uma autoridade literária cujo objetivo principal é a consolidação de
uma noção romântica de gênio criador e de obra-prima encontra no nacional seu motivo ideal.
A legitimação de uma originalidade que se pretende evidente e que, portanto, deve romper
com tradições literárias exógenas, transforma o nacionalismo em expressão da
particularidade, que passa a ser o elemento necessário para a consagração da tipologia do
autor romântico.
Ao enfatizar recorrentemente a galeria de matrizes literárias “estrangeiras” e lançar
mão de matérias baixas como o assassinato e a perversão sexual, o horror literário se
posiciona como motivo de difícil canonização, sobretudo quando confrontado ao projeto
nacionalizante de cariz indianista. No caso das obras centradas no horror, a originalidade
esbarra na monumentalização igualmente romântica de autores como Byron e Hoffmann e na
recorrente adaptação de textos estrangeiros, (como é o caso de A mortalha de Alzira, de
Aluísio Azevedo). A construção desse cânone sombrio, ao mesmo tempo em que legitima o
horror referendando-o numa tradição, dificulta a participação no registro da originalidade
nacionalista.
A dramatização do autor romântico monumentalizado que caracteriza, sobretudo, as
primeiras expressões do horror literário no Brasil, revela uma disputa entre diferentes
possibilidades de construção do cânone. A proposta de manter a filiação da literatura
brasileira à portuguesa que Álvares de Azevedo defende, por exemplo, indica uma ideia de
originalidade que não prioriza o rompimento, mas cultua o vínculo com autores considerados
excepcionais. A genialidade se sobrepõe a qualquer particularidade nacional, tida por
elemento decisivo que deve nortear a configuração do patrimônio literário. Nesse sentido, a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
496
BAPTISTA, Abel Barros. O livro Agreste. Campinas: Unicamp, 2005.

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!233!

proposta do autor de Noite na taverna, corroborada por muitos de seus pares, pode ser
entendida como mais propriamente romântica do que o projeto indianista triunfante. Ao
apresentar o horror como motivo de uma geração de autores marcados por um mesmo ethos
decadente, o terror literário produzido nas academias, em meados do século XIX, permanece
marcado por um cosmopolitismo infuso que soa imaturo, ao menos para os defensores do
nacionalismo literário.
Mesmo tratada por boa parte dos críticos como potencialmente genial, a obra de
Álvares de Azevedo seria problemática, nesse contexto, por ter momentaneamente desviado o
caminho naturalmente nacional da literatura brasileira. Foi quando se deu a primeira crítica
sistemática ao horror, na disputa romântica pela monumentalização de autores e obras, que
fez com que o teor nacional se sobrepusesse ao romantismo soturno de Azevedo. Ainda que
os dois projetos operassem a partir de uma mesma tipologia autoral romântica, o primeiro se
ajustava melhor à consagração da originalidade. Não podendo figurar como projeto literário
mais consistente, o horror se consolida, assim, como atividade paralela da vida estudantil. Foi
o passatempo de homens de letras como Couto de Magalhães, autor do conto de horror “O
estudante e os monges”, publicado em 1859, quando cursava a faculdade de Direito em São
Paulo, pouco menos de vinte anos antes de lançar a sua grande obra O Selvagem – Trabalho
preparatório para o aproveitamento do selvagem e do solo por ele ocupado no Brasil, digna
do General e do Presidente de Província que foi497.
É certo que o triunfo do nacionalismo indianista inviabilizou o desenvolvimento do
horror como problema literário “sério”, dificultando a produção de obras consistentes que
pudessem ser tomadas como referências. Talvez por isso Noite na taverna, de 1855, seria ao
longo de todo o século XIX a expressão máxima de literatura de horror no Brasil, por mais
que tenha sido consagrada como “desvio”. Trata-se da exceção que serve para confirmar o
caráter malogrado de uma tendência, mobilizado recorrentemente nas histórias literárias para
afirmar o triunfo do nacional como paradigma.
Fora do ambiente acadêmico, o horror assume outras formas e funções. Na extensa
galeria de contos de Machado de Assis, por exemplo, aparecerá pontualmente, tanto na chave
da literatura amena quanto em narrativas calcadas numa ironia cuja matriz remete à obra de
Edgar Allan Poe. Nesses textos, a disputa entre temas nacionais e motivos sombrios já não
tem tanta importância. Os contos machadianos buscam o efeito de horror a partir de tramas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
497
COUTO DE MAGALHÃES, José Vieira. O Selvagem. São Paulo/Rio de Janeiro: Livraria
Magalhães Editora, s.d. [1876].

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mais cotidianas, publicados em espaços de consumo literário diário, tanto em periódicos para
o público feminino quanto em jornais de repertório temático mais amplo. Assim, esse horror
não terá mais a excentricidade boêmia, nem tampouco será atrelado tão explicitamente a um
esforço romântico de automonumentalização. Sem aderir expressamente a preceptivas
nacionalistas e sem visar uma linhagem romântica específica, o horror machadiano se
estrutura fundamentalmente nas condições do narrador que pode ou não explicar a estranheza
do que relata.
Em contos como “O país das quimeras”, ou em Memórias póstumas de Brás Cubas,
Machado de Assis lança mão do fantástico sem necessariamente buscar o efeito de horror. Já
nos contos em que ele busca o efeito de horror, toma a narração como problema fundamental.
É a autoridade do narrador que está em jogo; é o seu caráter eventualmente malicioso que
determina o sentido do medo. Por uma lado, na chave da amenidade, a ficção
autorreferenciada se converte em anedota; por outro, na perspectiva mais evidentemente
irônica, a ausência de explicações fortalece o suspense. Operando a partir dessas duas chaves,
os contos de Machado de Assis exemplificam o tipo de horror literário que passa a circular a
partir da segunda metade do século XIX, e encontrará seu lugar na progressiva demanda de
um público interessado em histórias assustadoras. Seus contos serão o antídoto ideal para
combater o tédio das horas ociosas, mas também terão espaço no patrimônio literário
brasileiro promovendo mistérios deliberadamente insolúveis.
No momento em que o realismo e o naturalismo passam a dividir espaço na literatura
brasileira, o horror é encarado como uma proposta antiquada que só poderia interessar aos
“leitores sentimentais”, ou seja, os românticos. Esse tipo de leitor, afeito à chamada literatura
amena e emocionalmente apelativa, é tratado com descaso pelos críticos. Tratado como
influência perniciosa que atrasaria o desenvolvimento da literatura brasileira, esse padrão de
gosto não é levado a sério, apesar de representar uma parcela significativa do público
consumidor de literatura.
A mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo, é um exemplo paradigmático dessa relação
entre literatura “séria” e passatempo literário de menor valor. No prefácio enfático em que
revela ser Victor Leal, Aluísio Azevedo evidencia o lugar a ser reservado à imaginação
romântica, que deve englobar o fantástico, o horror e as propostas literárias menos
empenhadas numa representação objetiva da realidade.
Em muitas edições do século XX, as obras analisadas serão parcialmente reabilitadas
por leituras que tentam descobrir na superfície do texto a profundidade de uma realidade
debaixo das tramas. Analogamente, na chave documental, imposta pelos críticos, o horror é
!
!235!

enfraquecido ao ser afastado da perspectiva de seu efeito. Em todo caso, ao menos de acordo
com a forma como é apresentado, é impedido de cumprir uma de suas funções primordiais:
causar medo.
Como se sabe, a crítica ao romantismo serve para definir os parâmetros do debate
literário no final do século XIX. Se o realismo e o naturalismo medem forças na tentativa de
guiarem os rumos da literatura brasileira, o romantismo figura como um adversário comum
progressivamente posto em segundo plano. No entanto, coletâneas como Dentro da noite, de
João do Rio, de 1910, Coivara, de Gastão Cruls, de 1920, e O monstro e outros contos, de
Humberto de Campos, de 1932, atestam a popularidade do horror literário nas primeiras
décadas do século XX.
Outro exemplo marcante é a publicação da seleta Contos brasileiros, lançada em 1922
pela Livraria Garnier. Organizada por Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, reúne contos
escolhidos por serem, segundo os organizadores, “alguns dos principais, dos mais belos ou
dos mais estimados do público e dos nossos homens de letras”. Dos trinta e seis contos, ao
menos dezenove fazem do horror tema principal, com destaque para “Crime”, de Olavo Bilac;
“Mão sangue”, de Coelho Netto; “Dentro da noite”, de João do Rio; “A cartomante”, de
Machado de Assis; “G.C.P.A.”, de Gastão Cruls; “A Salomé do sertão”, de Gustavo Barroso e
“Confirmação”, de Gonzaga Duque. Na perspectiva dos organizadores esses contos seriam,
portanto, “elementos orgânicos de agremiação social”, e não simplesmente “entretenimento
fácil dessas horas de ócio”. Aludindo a uma tradição que incluiria Homero e Boccaccio,
Oliveira e Jobim comentam o caráter incipiente produção de contos no Brasil e destacam
Machado de Assis como “precursor” do gênero, que privilegia “o extraordinário, ou o
maravilhoso em que imaginação extravasa e delira, o picaresco ou o jocoso e toda sorte de
diatribes”498.
Esses exemplos indicam que, mesmo havendo uma crítica ao romantismo no final do
século XIX, o horror permanece no horizonte de produção e de consumo literários no Brasil.
As publicações que datam do início do século XX atestam a sua recorrência como motivo
literário, ainda que em propostas diferentes, apesar das acusações de superficialidade e de
pouca originalidade que lhe reservaram papel secundário na trama do amadurecimento
estético da ficção brasileira ao longo de todo o século anterior.

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498
OLIVEIRA, Alberto de; JOBIM, Jorge. (Org.). Contos brasileiros. Rio de Janeiro: Livraria Garnier,
1922.!

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