Você está na página 1de 346

Capa:

Elson Francisco Fernandes da Silva


Diagramação:
Oriel Wandrass Costa da Silva

S612 Simpósio de Letras, 19


E-book do XIX Simpósio de Letras / Organização de Emanoel
Cesar Pires de Assis, Ligia Vanessa Penha Oliveira, Solange Santana
Guimarães Morais.__Caxias: EDUEMA, 2021.

345p.
Tema Central: Debates literários: perspectivas interdisciplinares.
Formato: Livro Digital.
Vários autores
Disponível em:
https://letrassimposio.wixsite.com/xixsimposiodeletras
ISBN: 978-65-89821-09-0

1. Linguística. 2. Literatura. 3. Literatura – História. I. Assis,


Emanoel Cesar Pires de. II. Oliveira, Lígia Vanessa Penha. III. Morais,
Solange Santana Guimarães. IV. Titulo.
CDU 81’42

Elaborada pelo bibliotecário Wilberth Santos Raiol CRB 13/608


CONSELHO EDITORIAL

Ana Lucia Abreu Silva


Ana Lúcia Cunha Duarte
Eduardo Aurélio Barros Aguiar
Fabíola Oliveira Aguiar
Helciane de Fátima Abreu Araújo
Jackson Ronie Sá da Silva
José Roberto Pereira de Sousa
José Sampaio de Mattos Jr
Luiz Carlos Araújo dos Santos
Maria Medianeira de Souza
Maria Claudene Barros
Emanoel Cesar Pires de Assis
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

Gustavo Pereira da Costa


Reitor

Walter Canales Sant’ana


Vice-Reitor

Antônio Roberto Coelho Serra


Pró-Reitor de Planejamento e Administração

Rita de Maria Seabra Nogueira


Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação

Zafira da Silva de Almeida


Pró-Reitora de Graduação

Paulo Henrique Aragão Catunda


Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Estudantis

Jordânia Maria Pessoa


Diretora do Centro de Estudos Superiores de Caxias

Solange Santana Guimarães Morais


Diretora dos Cursos de Letras

Antônio Luiz Alencar Miranda


Chefe do Departamento de Letras
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...............................................................................................................................5
ROMANCE E FILME “COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE”: GASTRONOMIA E
SENTIMENTOS ................................................................................................................................12
Renan Ramires de Azevedo..............................................................................................................12
Damaris Pereira Santana Lima .........................................................................................................12
A LINGUAGEM E O TEMPO NA OBRA BENJAMIM, DE CHICO BUARQUE......................21
Ana Paula Nunes de Sousa ...............................................................................................................21
Emanoel Cesar Pires de Assis ..........................................................................................................21
O USO DA MEMÓRIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS: DOM CASMURRO .................32
Erika Maria Albuquerque Sousa.......................................................................................................32
Solange Santana Guimarães Morais .................................................................................................32
A INTERMIDIALIDADE CINEMATOGRÁFICA PARA A CONSTRUÇÃO DO HOMICÍDIO
NO CONTO “A MALA SINISTRA”, DE VALÊNCIO XAVIER..................................................40
Danila Melo de Oliveira ...................................................................................................................40
Amanda Da Silva Ferreira ................................................................................................................40
MULHERES NA COLONIZAÇÃO BRASILEIRA: UMA REVISITAÇÃO AO PASSADO PELO
PRISMA FEMININO EM ALINA (2017), DE EMILIA LIMA, UM ROMANCE HISTÓRICO
CONTEMPORÂNEO DE MEDIAÇÃO ..........................................................................................52
Beatrice Uber ...................................................................................................................................52
Gilmei Francisco Fleck ....................................................................................................................52
RELAÇÕES ENTRE A LITERATURA E AS SEMIÓTICAS: ESTRATÉGIAS DE LEITURA A
PARTIR DA OBRA “FÁBULAS” DE MONTEIRO LOBATO ....................................................66
Andreia Monic Viana dos Santos .....................................................................................................66
Valéria Cordeiro Oliveira .................................................................................................................66
A POESIA E A CIRCUNSTÂNCIA .................................................................................................76
Jeovânia Pinheiro do Nascimento.....................................................................................................76
MULHER, AMOR E FAMÍLIA EM CLARICE LISPECTOR:....................................................86
Meire Oliveira Silva .........................................................................................................................86
CAXIAS-MA EM IMAGEM: O POTENCIAL DA FOTOGRAFIA PARA A CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO DE MEMÓRIA .............................................................................................................96
Marinalva Aguiar Teixeira Rocha ....................................................................................................96
Max Mateus Moura da Silva ............................................................................................................96
MAUS, BLACK DOG E CHLEB WOLNOŚCIOWY: NARRATIVAS DE TESTEMUNHO .......109
Karina Moraes Kurtz ......................................................................................................................109
LITERATURA E MULTILETRAMENTO LITERÁRIO: POSSÍVEIS IMPACTOS DO
(SUPER)USO DA TECNOLOGIA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 NA FORMAÇÃO
DO LEITOR .....................................................................................................................................120
Claudia Regina Camargo................................................................................................................120
PRÍNCIPE OTTO ENTRE DOIS MUNDOS: O CONFLITO DA TRADIÇÃO DO POVO E DA
CORTE .............................................................................................................................................136
Wladimir D’Ávila Uszacki.............................................................................................................136
DE UM REDEMOINHO EM DIA QUENTE À FORMAÇÃO DE LEITORES: UMA PROPOSTA
DE LETRAMENTO LITERÁRIO.................................................................................................150
Carla Alves da Silva.......................................................................................................................150
CÃO SEM PLUMAS: A PALAVRA DANÇANTE.......................................................................161
Caroline Cavalcante do Nascimento...............................................................................................161
UM ESTUDO SOBRE A LONGEVIDADE DA OBRA ATRAVÉS DO BRASIL DE OLAVO
BILAC E MANOEL BOMFIM ......................................................................................................171
Gabriela Fernanda Sêjo ..................................................................................................................171
RESISTANCE THROUGH NARRATION: MEMÓRIA E TESTEMUNHO EM OS
TESTAMENTOS, DE MARGARET ATWOOD............................................................................182
Mikael de Souza Frota....................................................................................................................182
A “NATUREZA FEMININA” DE ERNESTO, SEGUNDO CRUZ E SOUSA, NA NOVELA
“SAPO”, DE NESTOR VICTOR....................................................................................................193
Roberto da França Neves ...............................................................................................................193
DA MÚSICA EM ÁLVARO DE CAMPOS...................................................................................207
Marcelo Alves da Silva ..................................................................................................................207
EXPERIÊNCIAS AFETIVAS ENTRE MIÚDOS E MAIS-VELHOS NA LITERATURA DE
ONDJAKI .........................................................................................................................................223
Aparecida Cristina da Silva Ribeiro ...............................................................................................223
MULHERES EXCLUÍDAS DA LITERATURA: ESCRITORAS QUE NÃO FORAM ACEITAS
NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS POR SEREM MULHERES, DENTRE ELAS
JÚLIA LOPES DE ALMEIDA .......................................................................................................232
Karolina Adriana da Silva ..............................................................................................................232
Vanessa Cezar Nunes .....................................................................................................................232
O SEQUESTRO DO FANTÁSTICO NA LITERATURA BRASILEIRA ..................................241
Karla Menezes Lopes Niels............................................................................................................241
A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS E TRANSSEXUAIS EM CONTOS
DE RUBEM FONSECA ..................................................................................................................250
Renan Ferreira da Silva ..................................................................................................................250
Danila Melo de Oliveira .................................................................................................................250
A REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO: TRAÇOS HISTORIOGRÁFICOS DA CULTURA
NORDESTINA N’O AUTO DA COMPADECIDA, DE GUEL ARRAES. ...................................262
Tatiana da Silva Santos ..................................................................................................................262
Marlúcia Mendes da Rocha............................................................................................................262
DA SALA AO SAGUÃO E DO TEXTO AO CORPO: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE
TEATRO NA ESCOLA...................................................................................................................276
Ágata Cristina Kaiser .....................................................................................................................276
Caroline Cavalcante do Nascimento...............................................................................................276
A POÉTICA DO ROMANCE HISTÓRICO DO SÉCULO DEZENOVE ..................................286
Jorge Antonio Berndt .....................................................................................................................286
Gilmei Francisco Fleck ..................................................................................................................286
CLARICE LISPECTOR E ALBERT CAMUS: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E
MECÂNICA SÍSIFICA ...................................................................................................................300
Ariane da Mota Cavalcanti .............................................................................................................300
A ARQUITETURA DE CAXIAS-MA NO CIBERESPAÇO: TECNOLOGIA E ARTE NA
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO ..............................................................311
Antônia Valtéria Melo Alvarenga ..................................................................................................311
Marinalva Aguiar Teixeira Rocha ..................................................................................................311
João Batista Vale Júnior .................................................................................................................311
CLARICE LISPECTOR: (IR)REALIZAÇÕES DO FEMININO E DA MATERNIDADE ......325
Carmem Teresa do Nascimento Elias.............................................................................................325
OS AUTORES ..................................................................................................................................337
A ORGANIZAÇÃO .........................................................................................................................343
5

APRESENTAÇÃO

Os artigos que ora temos o prazer de apresentar são frutos das importantes e necessárias
discussões críticas, teóricas e metodológicas realizadas durante o XIX Simpósio de Letras.
Evento que há mais de 20 anos representa um marco para a área de Letras na Região Leste
maranhense e tem, nas suas últimas edições, ganhado cada vez mais um caráter nacional.
Organizado pela primeira vez de forma remota, devido às medidas de segurança e
combate ao novo coronavírus que desde março de 2020 temos precisado adotar, o evento, que
ocorreu de 24 a 26 de novembro de 2020, mostrou a resiliência e o compromisso de todos que
fazem os cursos de Letras da Universidade Estadual do Maranhão-UEMA/Campus Caxias em,
ainda que mergulhados em incertezas e assolados pela sombra de tantas notícias tristes que cada
vez mais se aproxima(va)m dos nossos círculos mais íntimos, propor um espaço de resistência
e acolhida em tempos tão difíceis e incertos.
A abertura de tais momentos de discussão e acolhimento da comunidade acadêmica das
áreas de Letras e afins, ainda que de maneira remota, configura-se como importante mecanismo
de combate às tentativas de deslegitimação das humanidades e da importância do nosso fazer e
de sua existência. Nesse sentido, ao ganharem novos contextos e públicos através desta
publicação, as pesquisas desenvolvidas pelos variados estudiosos e estudiosas, de diversas
partes do país, ecoam por cantos outros e reforçam o compromisso nosso e de todos que fazem
a comunidade acadêmica brasileira em construir conhecimento e formar profissionais mais
conscientes, críticos e humanos.
Dando destaque às discussões sobre a potência estética da linguagem – verbal, sonora,
visual, artística de forma geral –, a presente coletânea espera contribuir para que outros espaços
como o XIX Simpósio de Letras surjam e para que se reproduzam as sementes que cada autor
e autora dos artigos abaixo apresentados plantam com a publicização de suas ideias, críticas e
formas de compreender as produções discursivas do nosso tempo e de tempos anteriores.
Assim, vejamos, em seguida, o que cada artigo que compõe este livro, resumidamente, discute.
O artigo intitulado Romance e filme Como Água Para Chocolate: Gastronomia e
sentimentos, de Renan Ramires de Azevedo e Damaris Pereira Santana Lima, contribui com a
obra de Laura Esquivel e a sua adaptação para o cinema, cujo roteiro foi escrito pela mesma
autora do romance. Os autores observam como em ambas produções são tratadas as relações
entre o exterior das personagens, evidenciadas pela gastronomia, e o interior, pelos sentimentos
partindo dos preceitos de Santos & Lucio (2017) para tratar das questões gastronômicas e de
Corseuil (2013) para analisar a relação entre Literatura e Cinema.
6

Ana Paula Nunes de Sousa e Emanoel Cesar Pires de Assis no texto A linguagem e o
tempo na obra Benjamim, de Chico Buarque realizam um estudo de caráter bibliográfico, com
método de leitura analítico e comparativo, apresentando nas discussões teóricas e críticas ideias
de pesquisadores como: Cândido (1981), Schøllhammer (2009), Araújo (2009), Carvalho
(2009), Castello (2012) e Preti (2012) para analisar os fenômenos linguagem e tempo na obra
Benjamim (1995), de Chico Buarque de Holanda, no contexto do que se convencionou chamar
“literatura brasileira contemporânea”, mais precisamente, a literatura produzida nas últimas
décadas, discutindo e apresentando considerações sobre algumas das características dessa nova
vertente de produção.
O uso da memória na obra de Machado de Assis: Dom Casmurro, texto de Erika Maria
Albuquerque Sousa e Solange Santana Guimarães Morais, analisa como a memória e a
reminiscência estão presentes no romance machadiano. Valendo-se da leitura de teóricos como:
Seligmann-Silva (2002), Reis & Lopes (1988), Mendilow (1972), entre outros.
Danila Melo de Oliveira e Amanda da Silva Ferreira no artigo A intermidialidade
cinematográfica para a construção do homicídio no conto “A mala sinistra”, de Valêncio
Xavier investigam de que forma essa relação entre cinema e literatura se constrói para a
reprodução da estética do homicídio no conto escolhido, utilizando como embasamento teórico
as concepções de Gualda (2010), Xavier (2015), Neves (2006), entre outros, as autoras indicam
que é possível constatar que a composição do homicídio ocorre por meio da relação entre o uso
de ilustrações que remetem à cenas de cinema, postas pelo autor a partir de recursos da
linguagem cinematográfica, como o enquadramento visual, contribuindo para a
intermidialidade com o texto verbal.
Mulheres na colonização brasileira: uma revisitação ao passado pelo prisma feminino
em Alina (2017), de Emilia Lima, um romance histórico contemporâneo de mediação, de
autoria de Beatrice Uber e Gilmei Francisco Fleck, que por meio de uma leitura crítica, a partir
de excertos selecionados da obra, elaboram um artigo de cunho bibliográfico, mostrando como
a narrativa de Emilia Lima se desenvolve em torno do amor impossível das personagens
fictícias Alina e Pedro, em que a narradora, através de uma linguagem leve e fluída, relata a
vida da protagonista da obra. Além de expor como o desenrolar da construção romanesca
apresenta algumas críticas ao processo de colonização brasileira e à Igreja Católica e evidencia
os bons costumes dos nativos que habitavam a região.
O artigo de Andreia Monic Viana dos Santos e Valéria Cordeiro Oliveira, Relações
entre a literatura e as semióticas: estratégias de leitura a partir da obra “Fábulas” de
Monteiro Lobato, contribui com estudos existentes sobre literatura infanto-juvenil, apontando
7

estratégias de leitura que utilizam como ponto de referência textos infanto-juvenis de Monteiro
Lobato, mais especificamente a obra Fábulas e sua adaptação em História em Quadrinhos por
Miguel Mendes pela Editora Globo Livros e refletindo como tais iniciativas contribuem
positivamente para o aguçamento do interesse pela leitura dos textos em crianças e jovens.
Meire Oliveira Silva em seu artigo Mulher, amor e família em Clarice Lispector:
conflito e alteridade sonda a atualidade da obra de Clarice Lispector em relação aos estudos
culturais, feministas e de gênero abordando temas vinculados à psicanálise e à observação do
outro na própria moldagem da identidade (BUTLER, 2010) dos sujeitos em sociedade,
sobretudo do ser-mulher no cotidiano e na vida privada.
Caxias-MA em imagem: o potencial da fotografia para a construção do discurso de
memória, texto de autoria de Marinalva Aguiar Teixeira Rocha e Max Mateus Moura da Silva,
possibilita uma reflexão acerca da necessidade de preservar os aspectos histórico-culturais de
Caxias-MA, através da análise da imagem fotográfica como recurso propiciador da
reelaboração da memória. Assim, estabelecem uma relação entre o discurso de memória
presente na fala de pessoas entrevistadas e as imagens selecionadas, enfatizando que nos
registros fotográficos nota-se que alguns aspectos inerentes à humanidade se corporificam.
O artigo Maus, Black Dog e Chleb Wolnościowy: narrativas de testemunho, de Karina
Moraes Kurtz, analisa as três graphic novels citadas no título sob a visão das narrativas de
testemunho, dos horrores vividos nas grandes guerras mundiais, sendo as duas primeiras obras
de caráter autobiográfico. Por meio deste, a autora mostra como as HQs podem auxiliar nos
relatos dos sobreviventes, não apenas através das palavras, mas também das imagens, isto é, o
sobrevivente faz uso de outras formas artísticas afim de conseguir relatar o horror sofrido nos
campos de guerra e na shoah.
Claudia Regina Camargo, no texto Literatura, leitura e tecnologia: o que a pandemia
muda neste cenário?, utiliza-se de referencial teórico baseado em Barthes (2004), Aarseth
(1997), Lévy (2010), Santaella (2007), Rojo (2012), entre outros para propor uma reflexão
acerca de como a literatura e a tecnologia podem caminhar em direção a uma formação de um
tipo de leitor com melhor habilidade para leituras que apresentam multiplicidade de itens ou
enredos não lineares, considerando que a leitura e a literatura podem nos trazer muito prazer
em meio a este cenário apocalíptico, além de sua importância na aquisição pessoal de cultura.
Príncipe Otto entre dois mundos: o conflito da tradição do povo e da corte, de autoria
de Wladimir D’Ávila Uszacki, analisa o texto literário de Robert Louis Stevenson, publicado
no final do séc. XIX, em que O Príncipe Otto, chefe de Estado do pequeno principado europeu
fictício de Grünewald, se depara com o desequilíbrio entre suas vontades individuais e o dever
8

de governar. Enquanto as personagens mostram o conflito de ideais dentro da narrativa, a forma


da obra apresenta uma crítica aos padrões: a narrativa tradicional termina com um capítulo
idílico-pastoral com “final feliz”, mas o epílogo da obra desfaz toda a magia de maneira brusca
e realista.
Carla Alves da Silva, no artigo intitulado De um redemoinho em dia quente à formação
de leitores: uma proposta de letramento literário, estabelece uma metodologia, a partir de uma
pesquisa ação, tomando por base a sequência básica de Cosson (2016), para o trabalho com a
obra de Jarid Arraes (2019) em que apresenta uma proposta de letramento literário para a
construção da criticidade do leitor a partir do conto “Telhado quebrado com gente morando
dentro”, presente na obra Redemoinho em dia quente, de Arraes (2019).
O texto Cão sem plumas: a palavra dançante, de Caroline Cavalcante do Nascimento,
apresenta um estudo comparativo interartes, com a finalidade de se pensar as relações entre
poesia e dança por meio do espetáculo de dança contemporânea “Cão sem Plumas” da Cia
Débora Colcker-RJ, que foi criado a partir do poema de João Cabral de Melo Neto, cujo título
é homônimo ao espetáculo, demonstrando que a obra dialoga com a poesia e o cinema ao
representar em uma tela a performance dos bailarinos em meio ao rio Capibaribe em
Pernambuco, enquanto as cenas de dança acontecem no palco.
Um estudo sobre a longevidade da obra Através do Brasil de Olavo Bilac e Manoel
Bomfim, pesquisa de Gabriela Fernanda Sêjo, questiona o que explica essa longevidade do livro,
permitindo que seja editado e reeditado várias vezes, em diferentes tempos e sociedades.
Buscando se orientar por aquela assertiva de que uma literatura é expressão da maneira como
os homens viam a si mesmos, a proposta se refere ao lugar social que Através do Brasil pode
assumir em diferentes contextos.
Mikael de Souza Frota em sua pesquisa intitulada Resistance through narration:
memória e testemunho em Os Testamentos, de Margaret Atwood analisa as temáticas da
memória e do testemunho no romance Os testamentos (2019), de Margaret Atwood, verificando
a função das narradoras enquanto agentes da memória e do testemunho, através de recortes dos
relatos de opressão e de violência narrados e vivenciados por elas na opressiva república
fictícia, totalitária e teocrática de Gilead.
Roberto da França Neves e Marcus Rogério Salgado no texto A “natureza feminina”
de Ernesto, segundo Cruz e Sousa, na novela “Sapo”, de Nestor Victor se apoiam nos
postulados de Mircea Eliade (1999), June Singer (1990), Sócrates Nolasco (1995) e Pierre
Bourdieu (2002) para apresentar o cotejo entre as palavras do maior poeta simbolista brasileiro
9

e a narrativa de Victor, para corroborar o conceito de androginia no Brasil num caso muito bem
particularizado desse “perfil cativante, amorável”.
Experiências afetivas entre miúdos e mais-velhos na literatura de ondjaki é o artigo
de autoria de Aparecida Cristina da Silva Ribeiro que realiza a análise de duas narrativas do
sistema literário angolano, do conto “Manga verde e o sal também” de Os da minha rua (2007)
e do romance AvóDezanove e o segredo do soviético (2009), de Ondjaki. Com isso, a
pesquisadora desenvolve um estudo de cunho bibliográfico refletindo como a ficção do autor
valoriza a experiência afetiva, conferindo destaque às crianças e aos velhos na literatura.
Karla Menezes Lopes Niels em O sequestro do fantástico na literatura brasileira
discute a formação de um cânone literário que optou por não incluir (ou desmerecer) um fazer
literário que, em terras tupiniquins, foi mais profícuo do que fez parecer a crítica e a
historiografia de outrora. Observando o contexto de formação da Literatura Brasileira e estudos
de cunho historiográfico como os de Joaquim Norberto, Silvio Romero e José Veríssimo em
que verifica o sequestro de um fazer literário que teria ocorrido paralelo à literatura de cunho
nacionalista de Gonçalves Dias e José de Alencar, a saber, o fantástico.
Renan Ferreira da Silva e Danila Melo de Oliveira apresentam, em A construção de
personagens homossexuais e transsexuais em contos de Rubem Fonseca, uma pesquisa
bibliográfica, tendo como base as teorias de Barcellos (2006), Porto (2016) e Lopes (2002),
entre outros para elaborar uma análise da construção da sexualidade nos contos “Corações
Solitários”, “Colégio” e “Cibele” de Rubem Fonseca, por meio da constituição dos personagens
inseridos nessa perspectiva, procurando debatê-la em um paralelo social.
A representação do cangaço: traços historiográficos da cultura nordestina n’O Auto
da Compadecida, de Guel Arraes, artigo de Tatiana da Silva Santos e Marlúcia Mendes da
Rocha investiga a representação do cangaço na obra cinematográfica O Auto da Compadecida,
dirigida por Miguel Arraes, popularmente conhecido como Guel Arraes, descrevendo,
estudando e identificando as marcas dessa representação e os traços historiográficos do
cangaceiro tipificado, imagem construída pela literatura de cordel, ao destacar esses elementos
no referido filme.
Ágata Cristina Kaiser e Caroline Cavalcante do Nascimento em seu artigo Da sala ao
saguão e do texto ao corpo: relato de uma experiência de teatro na escola trazem uma análise
reflexiva acerca de um processo de leitura e adaptação de textos literários e teatrais realizado
com alunos do Ensino Médio do CEFET, em Belo Horizonte-MG. A proposta das autoras é
compartilhar como a criação de roteiros para encenação e a reescrita de peças teatrais, ambas
inspiradas em textos considerados canônicos, objetivando ser apresentada nos espaços de
10

socialização da escola, torna-se performativa na medida em que desloca lugares, corpos e


posições institucionais.
A poética do romance histórico do século dezenove, texto de Jorge Antonio Berndt e
Gilmei Francisco Fleck considera que os gêneros híbridos de ficção, história e memória podem
auxiliar na compreensão do passado, presente e futuro e, desse modo, os autores nos apresentam
a evolução da intriga no romance histórico do século dezenove, tomando o viés da sintaxe
narrativa de Ivanhoe (SCOTT, 1994), Lichtenstein (HAUFF, 1929), O Vermelho e o Negro
(STENDHAL, 2017) e Mercedes of Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944). Eles
constatam que apesar da repetição de certas funções dadas como paradigmáticas para o gênero,
despontam diferenças responsáveis por singularizar cada uma das tramas.
O artigo Clarice Lispector e Albert Camus: representações de gênero e mecânica
sísifica, de Ariane da Mota Cavalcanti elabora uma abordagem que segue a perspectiva da
Crítica feminista na esteira de trabalhos como os de Dalcastangé (2015), Ramos (2015), Solnit
(2017), Zinani (2025) para abrir um debate em torno de como no conto “Amor”, inserido em
Laços de família (1960), a ficção de Clarice Lispector traz representações de mulheres e homens
reproduzindo sisificamente papéis e performances hegemônicas de gênero, bem como
representações que apontam para o desejo oprimido de uma ruptura com o mecanismo cíclico
do mito.
A arquitetura de Caxias-MA no ciberespaço: tecnologia e arte na construção do
conhecimento histórico, artigo de autoria de Antônia Valtéria Melo Alvarenga, Marinalva
Aguiar Teixeira Rocha e João Batista Vale Júnior nos convida a conhecer a organização do
espaço urbano da cidade de Caxias - MA, na segunda metade do século XX para, em seguida,
montar um repositório virtual com o material produzido por Sinésio Santos sobre a arquitetura
de Caxias- MA. Para entender esse processo, os autores recorreram, além da literatura e
documentação sobre o tema, à produção do fotógrafo Sinésio Santo, cujas imagens foram
capturadas entre as décadas de 1950 e 1980.
Carmem Teresa do Nascimento Elias em Clarice Lispector: (ir)realizações do
feminino e da maternidade, a partir de perguntas que emergem sobre o papel da sexualidade
atrelada à maternidade na Psicanálise, investiga a relação entre a personagem e a figura materna,
no romance A Paixão Segundo G.H de Clarice Lispector e questiona as forças intrínsecas e
perplexas da maternidade enquanto elemento carregado de disputas, de poder e de relações até
mesmo incestuosas.
11

Agradecemos a todos e todas que apresentaram seus trabalhos, que enviaram os seus
artigos e ajudaram a promover diálogos constantes e necessários e que agora repercutirão ainda
mais através desta publicação. Além disso, são desejos nossos que outros tempos possam vir,
mais amenos, com mais esperança e certezas de que um futuro melhor, mais humano e
consciente é possível por meio da educação.

Boa leitura!

Emanoel Cesar Pires de Assis


Ligia Vanessa Penha Oliveira
12

ROMANCE E FILME “COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE”: GASTRONOMIA E


SENTIMENTOS

Renan Ramires de Azevedo


Damaris Pereira Santana Lima

Introdução

Um dos maiores bestsellers da literatura mexicana em escala internacional, Como


água para chocolate se apresenta como um híbrido entre livro de receitas e romance
que se propõe a narrar a história de uma geração da família De la Garza em meio à
Revolução Mexicana no início do século XX (SANTOS; LÚCIO, 2017, p. 476).

O presente ensaio se apresenta como uma possível forma de contribuição para os


estudos literários sobre a obra de Laura Esquivel, mais especificamente o texto Como água
para chocolate (2016), bem como busca reiterar uma análise comparatista da obra em questão
com sua adaptação para o cinema de mesmo título, rememorando tamanha importância da obra
como o fragmento epigrafado apresenta. Nossa comparação pretende, pois, observar como, em
ambos os textos, são tratadas as relações entre o externo das personagens, evidenciadas pela
gastronomia, e o interno das mesmas, refletidas em seus sentimentos.
Antes de tudo, sob linhas introdutórias, vale ressaltar que a escritora mexicana, Laura
Esquivel, nasceu em 30 de setembro de 1950, na Cidade do México, e publicou seu primeiro
romance, objeto deste estudo, aos finais dos anos de 1980, como afirmam Balutet &
Chesnokova (2013, p. 213, tradução nossa)1: “Em 1989 [...], Laura Esquivel [...] publica seu
primeiro romance”. Portanto, em 2020, faz 31 anos da publicação de Como água para chocolate
(2016). Vale lembrar que no mesmo ano, foram publicados também outros dois grandes textos-
marcos da literatura hispanoamericana: O general em seu labirinto, de Gabriel García Máquez;
e, Amora, de Rosa María Roffiel, ambos com grandes destaques editoriais do ano (GLENN,
1994, p. 40).
Em relação ao título “Como água para chocolate”, podemos destacar algumas
considerações. Segundo Castro, é “um título muito local porque na mesma América Latina, por
exemplo, na Colômbia, tampouco o entendem, nem em quase nenhum lugar de fora do
México”2 (CASTRO, 1993, p. 76, tradução nossa), sendo assim, percebemos, desde o título,
certas idiossincrasias regionais refletidos no fazer literário da autora em questão.

1
“En 1989, Laura Esquivel [...] publica su primera novela” (BALUTET & CHESNOKOVA, 2013, p. 213).
2
“un título muy local porque en la misma Latinoamérica, por ejemplo em Colombia, tampoco lo entienden, ni
en casi ningún lugar fuera de México” (CASTRO, 1993, p. 76).
13

Para além do texto em si, vale ressaltar que tal literatura já influenciou as mais diversas
artes e linguagens, a exemplo do seguinte recorte, de uma das reportagens da Folha de S. Paulo
(2001):

A Cia. 2 traz, no Centro Cultural São Paulo, a sua primeira criação, "Codornas com
Pétalas de Rosa", que estreou no fim de 2000 no teatro Mars. Com alguns ajustes
desde a primeira montagem, é uma criação coletiva baseada no livro "Como Água
para Chocolate", de Laura Esquivel [...] (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001a).3

Percebemos, por isso, que a obra objeto de nosso estudo já foi promovida e
desenvolvida sob a égide das mais variadas linguagens, tais como: dança, cinema e outros. No
presente trabalho vamos dar enfoque à relação literária com sua adaptação cinematográfica,
especificamente.
Sobre a adaptação para o cinema, foi desenvolvida por Alfonso Arau que, certamente,
promoveu uma grande divulgação da literatura obtendo grande número de bilheteria e
alcançando outras fronteiras e outros públicos, como percebemos em: “Talvez você não se
lembre de imediato quem é Laura Esquivel. Mas certamente vai se recordar do filme "Como
Água para Chocolate", de Alfonso Arau, que ampliou a fama do livro homônimo, de 1989 [...]
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2001b).4

Sobre Literatura e Cinema

é comum [...] lermos análises a respeito da “fidelidade” ou


“infidelidade” do filme em relação romance ou peça em que se baseia
(CORSEUIL, 2013, p. 295).

Ao pensarmos uma inter-relação entre literatura e cinema, mais precisamente a relação


entre o texto literário e sua adaptação cinematográfica a partir do fragmento epigrafado de
Anelise Corseuil, subentende-se que se produzem olhares recorrentes a partir da questão se o
cinema cumpre fielmente as narrativas vigentes nos textos pelos quais se criam filmes
adaptados. Nesse sentido, a autora cria uma reflexão contribuinte ao nosso trabalho: será mesmo
que o cinema deve seguir à risca a literatura que o antecede? Ou então: Como isso ocorre em
nosso objeto de análise?
Quanto a perspectiva comparada, Sandra Nitrini afirma que na noção de imitação:

3
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2202200101.htm>. Acesso em 30 out. 2020.
4
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0109200116.htm>. Acesso em 30 out. 2020.
14

[...] se verifica uma equivalência entre imitação e influência. Provavelmente, tal


equivalência se explicaria como decorrência da própria concepção de imitação do
século XVII, quando a imitação livre constituía a emulação de grandes modelos do
passado como instrumentos pelos quais o escritor podia mostrar sua originalidade
(NITRINI, 2000, p. 129).

Ou seja, ainda que a proposição de Nitrini se insira numa noção comparatista entre
dois textos literários, percebemos que a autora trata tal fenômeno a partir da referida noção do
séc. XVII, que se refere à imitação livre mas que, todavia, na igualdade se diferencia,
evidenciando, por conseguinte, a originalidade da obra descendente.
Sobre a questão de originalidade, Nitrini afirma que é tida como assimilação (2000, p.
134) e é assegurada, também, pela “escolha feita pelo autor exposto a uma influência. A maior
originalidade é garantida quando uma obra age sobre o escritor, não por todas as suas
qualidades, mas apenas algumas delas” (NITRINI, 2000, p. 135). Em outras palavras, frente à
situação filme-texto, podemos estabelecer, então, que a obra cinematográfica possa vir obter
sua originalidade, em diferentes níveis e maneiras em relação ao texto literário que o antecede,
por isso, a “adaptação necessita ser vista, não como obra segunda, necessariamente fidedigna a
um romance ou a um texto histórico, mas como obra independente, capaz de recriar, criticar,
parodiar e atualizar os significados do texto adaptado” (CORSEUIL, 2013, p. 298). Segundo
Genette (1980), Stam (2000) e Corseuil (2013) esse processo de adaptação de um hipotexto
(texto original) para o cinema pode ocorrer por meio de diversas operações, tais como: por
amplificação, concretização, crítica, recontextualização, entre outros.
A partir disso, no que concerne à análise de tal relação, vale destacar que não se deve
buscar, necessariamente, observar apenas o nível de fidelidade de um longa com um texto
literário, mas comparar os elementos recorrentes ou não em ambas as obras. Nesse sentido, no
processo de transição de determinada literatura, é inevitável, o surgimento de variadas
divergências entre as duas produções, como por exemplo, a linguagem, que passa ser de escrita
para, predominantemente oral e visual, entre outras categorias, como o do espaço, conforme
afirma Corseuil: “A construção do espaço narrativo no cinema, com uma plenitude de detalhes
visuais, constitui um espaço físico literal e figurativo diferente daquele apresentado no texto
literário” (CORSEUIL, 2013; CHATMAN, 1992). A partir disso, portanto, analisaremos, mais
especificamente, como a gastronomia se faz presente na obra, em suas versões, sendo associada
com os sentimentos expressos na narrativa vivida pelos personagens.

Inserção da gastronomia em Como agua para chocolate


15

[...] funciona como celebração da cozinha, que ganha a dimensão de um


território mágico e poderoso. (PINHEIRO MACHADO, 1994, p. 113)

A cultura gastronômica, que vem junto com as memórias e o fazer das mulheres é
muito significativo na obra analisada e vale citar Massimo Montanari quando fala da comida
como cultura:

Comida é cultura quando produzida, porque o homem não utiliza apenas o que
encontra na natureza (como fazem todas as outras espécies animais), mas ambiciona
também criar a própria comida, sobrepondo a atividade de produção à de predação.
Comida é cultura quando preparada, porque, uma vez adquiridos os produtos-base da
sua alimentação, o homem os transforma mediante o uso do fogo e de uma elaborada
tecnologia que se exprime nas práticas da cozinha. Comida é cultura quando
consumida, porque o homem, embora podendo comer de tudo, ou talvez justamente
por isso, na verdade não come qualquer coisa, mas escolhe a própria comida, com
critérios ligados tanto a dimensões econômicas e nutricionais do gesto quanto aos
valores simbólicos de que a comida se reveste. Por meio de tais percursos, a comida
se apresenta como elemento decisivo da identidade humana e como um dos mais
eficazes instrumentos para comunica-la (MONTANARI, 2013, p. 15-16).

Além de ver retratados os sentimentos, a obra de Laura Esquivel apresenta também


muitas características da cultura mexicana. Ao utilizar-se do tema gastronômico as produções
Como água para chocolate trazem à tona tanto questões da cozinha e da família como da
história do México, apresentando assim vários campos disciplinares, como expansão de uma
literatura fora de si, como reflete Florencia Garramuño.
Acerca da narrativa propriamente dita da obra em questão, Balutet & Chesnokova
afirmam que: “O livro conta o amor impossível entre Pedro e Tita, a filha mais nova de uma
família de fazendeiros” (BALUTET & CHESNOKOVA, 2013, p. 2014, tradução nossa 5). Vale
apontar aqui que, conforme Garramuño:

talvez o que mais chame a atenção no texto não seja tanto a diversidade de formas
discursivas, mas o modo como graças a essa diversidade encontram lugar no texto
preocupações e problemas provenientes dos mais diversos ‘campos’ e disciplinas
(GARRAMUÑO, 2014, p. 38).

Nesse sentido, percebemos, então que, o que possivelmente chame mais atenção em
uma obra não são consideravelmente suas formas e questões discursivas, mas seu
desenvolvimento diante dos mais diversos “campos”, no nosso caso gastronômico, conforme
pontuam Balutet & Chesnokova: “As artes culinárias da jovem protagonista, elemento chave
da obra, constituem o meio de transmissão de seus sentimentos” (BALUTET &

5
El libro cuenta el amor imposible entre Pedro y Tita, la hija más pequeña de una familia de hacendados,
condenada a cuidar a su madre hasta que muera (BALUTET & CHESNOKOVA, 2013, p. 2014)
16

CHESNOKOVA, p. 214, 2013, tradução nossa6). A partir dessa premissa, analisaremos como
acontecem tais ocorrências entre as artes culinárias e os sentimentos das personagens nas duas
versões da obra.
Antes de tudo, podemos perceber que a relação entre o texto literário e a arte da
gastronomia são evidenciados desde o título, “Como água para chocolate”. As palavras “água”
e “chocolate” já remetem, grosso modo, ao âmbito culinário, de ingredientes. Contudo, tal
expressão não se refere excepcionalmente ao sentido das palavras por elas mesmas, mas é uma
expressão popular mexicana que remete à irritação, como é evidente no texto:

Ninguém conseguia explicar este comportamento, alguns acreditavam que era porque
o tinha afetado profundamente a ideia de não voltar a ter mais filhos. Fosse pelo que
fosse, a ira dominava os pensamentos e as atitudes de todos na casa. Tita literalmente
estava ‘como água para chocolate’. Sentia-se o mais irritável possível (ESQUIVEL,
2016, p. 120).

A partir de tal premissa, fica evidente, também, que a narrativa recorrente na obra de
Laura Esquivel é movida pela tensão causada pela diversidade entre as personagens, de maneira
geral, envolvendo os encontros e desencontros da protagonista Tita e seu amado, Pedro. Nesse
contexto, algumas tensões sentimentais da protagonista são manifestados sob sua prática
gastronômica. Por isso, vale citar Garramuño, que ao analisar a obra Nove noites: romance de
Bernardo Carvalho, quando trata das personagens, afirma que “o texto desfazia assim a
distinção entre literatura e realidade não só no sentido em que ficcionalizava um fato
efetivamente acontecido [...] mas sobretudo porque tornavam indistinguíveis o real e o fictício,
desautorizando [...] a possibilidade de tal distinção” (GARRAMUÑO, 2014, p. 37). Em outras
palavras, no texto e no filme em questão, tais acontecimentos são tidos como real,
circunstanciando, no ponto de vista das personagens, o efeito de indistinção entre o real e o
fictício.
Nesse sentido, Santos & Lúcio afirmam que: “na narrativa de Esquivel a comida não
é apenas comida, mas um fio condutor para expressar emoções” (SANTOS; LÚCIO, 2017, p.
476), nuances dessas expressões são materializadas em momentos como o episódio em que Tita
está cozinhando para o casamento de sua irmã e Pedro, evidenciados na seguinte passagem:
“Nacha secava com o avental as lágrimas que rolavam do rosto de Tita [...] E assim, abraçadas,
permaneceram chorando até que Tita não tivesse mais lágrimas nos olhos (ESQUIVEL, 2016,

6
Las artes culinarias de la joven protagonista, elemento clave de la obra, constituyen el medio de transmisión de
sus sentimientos (BALUTET & CHESNOKOVA, p. 214, 2013).
17

p. 33). As lágrimas de Tita se inserem como ingredientes. A consequência gastronômica da


tristeza sentida pela protagonista, manifesta-se no bolo que fizera:

Uma imensa nostalgia se apossava de todos os presentes enquanto serviam o primeiro


pedaço de bolo e inclusive Pedro, sempre tão seguro, fazia um esforço tremendo para
conter as lágrimas. E Mamãe Elena, que nem quando seu marido morreu tinha
derramado uma lágrima sequer, chorava silenciosamente. E isso não foi tudo. O pranto
foi o primeiro sintoma de uma intoxicação estranha que tinha algo a ver com uma
grande melancolia e frustração que, apoderando-se de todos os convidados, fez com
que eles terminassem no pátio, nos currais e nos banheiros, cada um com saudade do
amor de sua vida (ESQUIVEL, 2016, p. 40).

As práticas culinárias exercidas por Tita são uma extensão de seus sentimentos, de
modo a afetar, inclusive, outros personagens. Percebemos o interior afetar o exterior da
protagonista, sem seu consentimento, pois: “seus pensamentos a mantinham tão ensimesmada
que não lhe permitiram observar que alguma coisa estranha acontecia ao seu redor”
(ESQUIVEL, 2016, p. 40). Vale lembrar que tal fenômeno, especificamente, ocorre tanto no
texto literário como no cinema.
Além da tristeza, sentimentos outros vivenciados pela protagonista se concretizam pela
gastronomia, a exemplo do sentimento do desejo, conforme afirma Nascimento: “a história
consiste em uma metáfora sobre o paladar, o olfato e a atração sensual” (2007, p. 16). Da mesma
forma que a tristeza, a sensualidade e o desejo de Tita também são manifestados na narrativa,
com a combinação certa de ingredientes associados à si própria, resultando em sua culinária e,
por extensão, àqueles que a saboreiam:

Desse jeito parecia que num estranho fenômeno de alquimia seu ser tivesse se
dissolvido no molho das rosas, no corpo das codornas, no vinho e em cada um dos
odores da comida. Desta maneira penetrava no corpo de Pedro, voluptuosa, aromática,
ardente, completamente sensual. Parecia que tinham descoberto um código novo de
comunicação no qual Tita era a emissora, Pedro o receptor e Gertrudis a felizarda em
quem se sintetizava esta singular relação sexual, através da comida (ESQUIVEL,
2016, p. 49).

Não temos apenas um ato dos sujeitos de se alimentar, mas um evento sensorial pelo
qual transcende o querer das personagens, a comida é quase uma ruptura de humores e
sensações, a ponto de criar uma conexão entre os sujeitos que saboreiam tal beldade. Um
intenso e sensual esquema comunicacional infeliz. Infeliz pela presença e posição de Gertrudis,
irmã de Tita e esposa de Pedro. Tal episódio também ocorre no longa, assim como os outros
momentos, narrados por uma personagem outra, adaptada, tida como filha de Pedro.
18

Hibridismo pela Literatura x Gastronomia

[...] com as inovações contemporâneas, tal como as de exóticas proveniências, nesta


nossa época em que o hibridismo é quase uma manifestação global. Mas a
gastronomia vive também muito da explicitação verbal das iguarias, e as palavras
podem fazer crescer água na boca, evocando os pitéus! (SEIXO, 2014, p. 29).

Além das figuras e elementos da narrativa pontuados, a gastronomia se faz presente,


sobretudo, sob a estrutura em que se inscreve ao longo da literatura, especificamente. Quando
falamos sobre a “estrutura em que se inscreve”, referimo-nos à noção de gênero textual que,
segundo Marcuschi:

[...] Os gêneros textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos formais,
sejam eles estruturais ou linguísticos, e sim por aspectos sociocomunicacionais e
funcionais, isso não quer dizer que estejamos desprezando a forma. Pois é evidente
[...] que em muitos são as formas que determinam o gênero presente (MARCUSCHI,
2010, p. 22).

Em outras palavras, conforme Marcuschi, há muitas formas que estabelecem


determinado gênero. Assim, verificamos certo hibridismo textual no texto objeto deste estudo,
pois, ainda que, grosso modo, é tido como um romance, gênero literário, seguindo de forma
linear a escrita em prosa, há interferências bem marcadas do gênero receita, vejamos:

Então chorou a seco e dizem que isso dói mais, como o parto seco, mas ao menos não
continuava molhando a massa do bolo, e assim puderam continuar a etapa seguinte,
que é a do recheio.
Recheio:
150 gramas de chabacano, 150 gramas de açúcar granulado.
Maneira de fazer:
Colocar os chabacanos no fogo com muito pouca água, deixando ferver. Passar por
um crivo ou peneira (ESQUIVEL, 2016, p. 33).

Percebemos, ao início da citação, a estrutura em prosa previamente esperada em um


romance. No entanto, logo em seguida, é evidente a estrutura de receita. Vale ressaltar que tal
recurso ocorre ao longo da obra como um todo, tanto textualmente pela obra literária quanto
oralmente pela narração da obra cinematográfica. Há momentos, também, no que se refere ao
texto literário, em que a linguagem de receita é posta no formato de prosa, como podemos
perceber em: “[...] põe-se uma colherada de leite e volta-se a colocar no fogo para desmanchar,
pondo-se uma gota de corante vermelho e cobrindo-se unicamente a parte superior do bolo.
Nacha percebeu que Tita estava mal quando esta perguntou se não ia colocar o corante
(ESQUIVEL, 2016, p. 36). Na realidade, percebemos que na transição de um gênero para o
outro há tal mistura de forma a quase não se ter distinção.
19

Em linhas gerais, não se trata, pois, de romance e receita, “mas de um texto só, híbrido,
formulado de tal modo inseparáveis, amalgamados por uma construção linguística já anunciada
na ficha catalográfica do livro, logo na sua primeira entrada de sentido: gastronomiaficção”
(SILVA, 2019, p. 141).

Conclusão

Os sentidos se apuram sob as palavras e quase transcendem os receptores sensoriais


de quem o lê. A partir deste estudo, foi possível compreender, ainda que brevemente, a
importância e a originalidade da obra Como água para chocolate (2016) em sua totalidade,
tanto enquanto texto literário quanto texto cinematográfico. Nesse sentido, o presente trabalho
evidenciou que, independentemente, elementos como o da gastronomia podem ser contribuintes
no fazer literário e nos sentidos embutidos nas relações entre os sujeitos das narrativas, a
exemplo da obra em questão que apresenta comidas como influentes à realidade, sobretudo, sob
as sensações e comportamento das personagens, fatos esses evidentes em ambas as versões da
obra.

Ademais, percebemos que além das questões narrativas, as questões textuais, também,
promovem fatores contribuintes à noção de gastronomia que se tem na obra em questão. O
hibridismo entre romance, em prosa, e receita se aglutinam de forma a marcar os aspectos
literários e gastronômicos vivenciados no universo das personagens.

Referências

BALUTET, Nicolás; CHESNOKOVA, Olga. Como agua para chocolate de Laura Esquivel:
Recepción Critica y Tradutológica. E-scrita - Revista do Curso de Letras da UNIABEU
Nilópolis, v.4, Número 1, Jan.-Abr. 2013.

CASTRO, Antonio. Alfonso Arau: El film es un plato para el primer mundo, hecho por gente
y con dinero del tercer mundo. Dirigido. Revista de cine, n. 212, p. 74-77, 1993.

CHATMAN, S. What novels can do that films can´t (and vise versa). In: MAST, G.; COHEN,
M.; BRAUDY, L. (Orgs.). Film theory and criticismo. Oxford: OUP, 1992, p. 403-419.

CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e Cinema. In: Bonnici, Thomas; Lúcia Osana Zolin.
(Org.). Teoria Literária Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá:
Editora da Universidade Estadual de Maringá - UEM, 2013, p. 295-304.

ESQUIVEL, Laura. Como água para chocolate. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
20

FOLHA DE SÃO PAULO, Balé da Cidade e Cia. 2 se apresentam hoje. 22 fev. 2001.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2202200101.htm>. Acesso
em: 18 out. 2020.

______. Laura Esquivel questiona a comunicação. 01 set. 2001. Disponível em:


<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0109200116.htm>. Acesso em: 18 out. 2020.

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos Estranhos: sobre a inespecificidade na estética


contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

GENETTE, G. Narrative discourse: na essay in method. Ithaca: Cornell University Press,


1980.

GLENN, Kathleen. Postmodern Parody and Culinary-Narrative Art in Laura Esquivel’s Como
agua para chocolate. Chasqui. Revista de Literatura, v. 23, n. 2, p. 39-47, 1994.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,


Ângela Paiva; MACHADO, Anna Raquel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). Gêneros
textuais e ensino. Rio de Janeiro: Parábola Editorial, 2010. p. 19-38.

MONTANARI, Massimo. A comida como cultura. São Paulo: Senac, 2013.

NASCIMENTO, Angelina de A. B. S. Comida: prazeres, gozos e transgressões. 2. Ed.


Salvador: EDUFBA, 2007.

NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 2. Ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2000.

PINHEIRO MACHADO, José Antonio. Copos de cristal. Porto Alegre: L&PM, 1994.

SÁNCHEZ, Nelly. Del fogón a la literatura: Como agua para chocolate. Noroeste.com. El
portal de Sinaloa, 11 de enero de 2009
[http://www.noroeste.com.mx/publicaciones.php?id=440415] (consultado el 4 de febrero
de 2009).

SANTOS, J. A.; LÚCIO, A. C. M. Sabores e amores na cozinha de Laura Esquivel. Letras de


Hoje. Porto Alegre, v. 52, n. 4, p. 475-482, out.-dez. 2017

SEIXO, Maria Alzira. Os sabores da literatura ou: como a gastronomia se apoia nos modo de
dizer. Abril - Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol.
6, n° 12, abril de 2014.

SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Gastronomia e literatura ou a receita culinária como ficção
e arte. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, v. 28, n. 2, p. 123-143, 2019.

STAM, R. Beyond fidelity: the dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Orgs.) Film
adaptation. New Jersey, Rutgers University Press, 2000, p. 54-79.
21

A LINGUAGEM E O TEMPO NA OBRA BENJAMIM, DE CHICO BUARQUE

Ana Paula Nunes de Sousa


Emanoel Cesar Pires de Assis

No reencontro, Ariela pensou que Zorza fosse fazer um discurso


sofrível, mas ele levou-a para a cama sem nada falar. Mudo permaneceu
pelo resto da tarde, a contemplá-la, e assim durante todas as outras
tardes, uma vez por semana, no restaurante, no carro, por cima dela na
cama. E Ariela habituou-se a baixar os olhos na presença de Zorza, visto
que o silêncio não sustenta o peso de longos olhares recíprocos, exceto
nos filmes de amor, e nem mesmo nos filmes de amor porque ali,
quando cessa o diálogo, o diretor sempre coloca uma música
(BUARQUE, 2004, p. 41).

Considerações Iniciais

Publicada em 19957, com uma linguagem simples e de fácil compreensão, a obra


Benjamim, de Chico Buarque de Holanda, dividida e organizada em sete capítulos, trata da vida
de um homem, com pouco mais de 50 anos, chamado Benjamim Zambraia, ex-modelo
fotográfico, que vive enclausurado no passado, submergido em lembranças de quando era
jovem e vivia uma realidade burguesa e de ostentação, com dinheiro e amigos, mas que,
passados os anos, fica à mercê de uma imagem vazia e cansada, que já não era mais lembrada.
Além do personagem Benjamim, o protagonista do enredo, que representa na obra a
crise de identidade e a descaracterização do sujeito contemporâneo, há, também, a inserção de
outros tipos sociais na história, tão representativos quanto Zambraia, como, por exemplo,
Castana Beatriz, figura atípica, nascida em uma família de classe média alta, que foge às regras
estabelecidas pela sociedade, bem como a mocinha rica que se envolve com um homem pobre
e casado, o ativista Douglas Rajabó Saavedra (o professor). Outra figura de notória importância
dentro da narrativa é a personagem Ariela Masé, uma moça de origem humilde, que ora
representa a fragilidade e a delicadeza, ora a força, a esperança e a ilusão de dias melhores.
Dentre os temas abordados na obra, podemos citar a violência sexual, o crime, a
prostituição, a pobreza e a miséria. São apresentadas questões como a natureza superficial das
relações humanas, a não profundidade do ser, a desconstrução humana e a crise existencial, o
sujeito que parece estar desnorteado, sem rumo e confuso, perdido em seus próprios devaneios.

7
Na análise utilizamos uma edição de 2004.
22

O tempo da narrativa não segue uma estrutura linear. Não há, por exemplo, uma ordem
sequencial dos fatos, o enredo é tão psicológico quanto cronológico, o personagem principal
parece estar submerso em um sonho, disposto entre realidade e ficção. Há, para tanto, outro
aspecto que chama muito a atenção na obra: a linguagem empregada. O autor amarra os
elementos do texto de maneira sutil e habilidosa, é utilizada uma linguagem coloquial, com
emprego de palavras e expressões muito próximas do cotidiano contemporâneo e/ou moderno.
Nesse sentido, o presente trabalho visa analisar os fenômenos linguagem e tempo em
Benjamim, a partir do que entendemos por “ficção brasileira contemporânea”, uma pesquisa
analítica que tem como fonte primária a obra e como base teórica os estudos de pesquisadores
que, de alguma forma, têm em comum trabalhos que apresentam ideias sobre a obra Benjamim
(1995), como é o caso de Araújo (2009), Carvalho (2009), Castello (2012), Oliveira (2015),
Pereira (2006), Rodrigues e Vieira (2014); além de Tezza (2018) e Schollahammer (2009), que
tratam, em certo ponto, desse novo tipo de produção literária.

A linguagem e o tempo na obra

A dificuldade de formar um conceito sobre literatura contemporânea advém, conforme


propõe Rodrigues e Vieira (2014, p. 02), “do problema de não se compreender o que se designa
como contemporâneo”. Esta nova literatura é situada no período compreendido entre os últimos
trinta anos do século passado e a atualidade, mais precisamente, desde as revoluções estudantis
de 1968 até os dias atuais. Período marcado no Brasil por uma série de transformações, entre
as quais estão as mudanças políticas, o processo de democratização do país, o crescimento do
papel da mulher, a crescente força da mídia e o surgimento da Internet (PRETI, 2012).
Schøllhammer (2009), no livro Ficção brasileira contemporânea, apresenta algumas
considerações sobre esse tipo de produção literária, em um estudo que consiste em levantar
questões centrais sobre o papel da literatura hoje, afim de uma melhor compreensão das
transformações que têm ocorrido no atual cenário literário, dando prioridade às obras mais
recentes, que ainda não acumulam fortuna crítica. O crítico, logo na parte introdutória do texto,
expõe questionamentos relevantes a respeito do significado do termo literatura contemporânea.
Tomando por base um dos mais lidos, discutidos e referenciados textos sobre o que é
o contemporâneo (AGAMBEN, 2009), Schøllhammer (2009) nos ajuda a compreender como
pensar a nossa literatura em um contexto tão incerto e pouco claro quanto o contemporâneo,
que assume, por vezes, outros nomes, tais como: moderno, atual, presente, pós-moderno.
23

Conforme diz Antonio Cândido (2004, p. 175): “A literatura confirma e nega, propõe
e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas”. Nesse sentido, Helena Pereira (2006) compartilhando da ideia proposta pelo crítico
sobre o que seja literatura, comenta que o romance Benjamim (1995) está inserido em uma
vertente da ficção brasileira contemporânea, a que tematiza a metrópole, associada à
agressividade, à violência, à solidão, à angústia e ao vazio existencial. Para a pesquisadora:

Ao problematizar esse mundo urbano que se espalha por extensas áreas


superpovoadas, em grande parte degradadas e fora do alcance de qualquer ordem
social ou institucional, narradores criam ou incorporam personagens cuja solidão se
camufla por meio de um falso sentimento de integração, simulado pela mídia
massificadora (PEREIRA, 2006, p. 01).

O romance Benjamim (1995) gira em torno do embate existente entre as personagens


Benjamim Zambraia e Castana Beatriz, mulher que, como dito anteriormente, foge aos modelos
impostos pela sociedade da época, que abandona Benjamim para viver com outro sujeito, o
professor Douglas Ribajó, homem casado e pai de quatro filhos, como podemos verificar no
trecho retirado da obra: “O professor era bem casado, tinha quatro filhos, dava assistência a
Castana Beatriz, mas não pretendia abandonar a família” (BUARQUE, 2004, p.80).
Do relacionamento proibido entre Castana e Douglas Ribajó, resulta Ariela Masé, a
segunda personagem de maior impacto na história narrada, configurada como a causa do
desassossego do presente de Benjamim Zambraia, um homem desorientado e desnorteado que
vê na figura da moça a imagem refletida do seu passado, a personagem Castana Beatriz. Para
Carvalho (2009), a obra de Chico Buarque, embora não deva e não possa ser limitada a uma
tentativa de retratar as mazelas da vida urbana contemporânea, nos faz refletir sobre seus
diferentes níveis e aponta para uma visão pouco otimista a respeito do destino da sociedade.
Conforme a autora afirma, o mundo contemporâneo não é um mundo pleno de sentido,
pelo contrário, é um mundo caótico, de valores distorcidos, em constante transformação, no
qual o progresso proporcionado pelo próprio homem muitas vezes é uma ameaça à sua
tranquilidade, como é percebido na descrição do protagonista da obra, um sujeito individualista
e sem objetividade. Vejamos um trecho que confirma, de certo modo, esse comentário:

Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um homem


longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos, mas
bastos, prejudicado por uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada
aparentando desleixo e não penúria, estacionado em frente ao Bar-Restaurante
Vasconcelos, tremulando os joelhos como se esperasse alguém. Benjamim, entretanto,
não espera nada, a não ser que ele mesmo resolva o dilema: entrar num bar-restaurante
ou voltar para a cama. A questão é embaraçosa porque Benjamim não tem sono, nem
24

sede, nem apetite, nem alternativa para esta tarde. Preso ao chão, as pernas irrequietas,
impacienta-se com a própria hesitação, e é nessas conjunturas que lhe costuma voltar
a sensação de estar sendo filmado (BUARQUE, 2004, p. 06).

Erica Araújo (2009), em Benjamim, Ariela e Castana: vida, tempo e relações


interpessoais, no Benjamim de Chico Buarque, compartilha das ideias de Carvalho (2009). Para
ela, essa obra oferece um enredo capaz de fazer-nos refletir sobre a condição social, afetiva e
psicológica da sociedade nestes tempos de contemporaneidade, na qual os personagens têm
seus diálogos marcados pelas condições em que se encontram em determinados grupos sociais.
A perda de determinação e de rumo dos personagens é uma característica que a prosa
da década de 1990 iria prolongar, em narrativas que oferecem o indivíduo como um tipo de
fantoche (SCHOLLHAMMER, 2009). Nessa perspectiva, observemos um trecho da obra em
que é possível refletir sobre a condição social, afetiva e psicológica dos personagens envolvidos
no texto analisado, no caso, Ariela Masé: "Tantas vezes Ariela conduziu um cliente masculino
pelo corredor, tantas portas de apartamentos abriu para dar passagem a um homem, e nem assim
se habituou a um protocolo que considera humilhante" (BUARQUE, 2004, p. 16), ou ainda:

Quando porventura deixasse aquele subúrbio, achava que seria fácil apagá-lo da
memória. E na memória do subúrbio, de sua passagem restaria quando muito um talco.
Prendendo a respiração, pulou uma vala entre manilhas arrebentadas, viu uma estrela
no esgoto e chegou à parada ao mesmo tempo em que o ônibus descia da garagem.
Sentou-se no primeiro banco e virou o rosto quando o ônibus encheu-se de operários
e empregadas domésticas. Deve ter cochilado contra a janela, pois surpreende-se com
o sol nos olhos diante de um oceano instantaneamente vazio (BUARQUE, 2004, p.
95-96).

De acordo com Castello (2012, p. 78), “vivemos num mundo no qual só a superfície
parece realmente importar e é desse mundo, exatamente, que trata Benjamim". No tocante a
esse mundo de aparências, tão apontado na ficção contemporânea, verifiquemos o excerto:

Voltou para casa com hematomas nas coxas, o elástico do short arrebentado, a
calcinha em frangalhos no fundo da bolsa, e hesitou em participar a ocorrência a
Jeovan [...] Apesar do calor, vestiu um pijama de flanela, sentou-se à cabeceira ao
lado dele, beijou-lhe a testa e apagou seu abajur. Mas ao encontrar-se sozinha na
penumbra, sentiu que nem seria capaz de calar o que recorria na cabeça (BUARQUE,
2004, p. 150).

Essa é, ao nosso ver, uma das cenas mais marcantes do texto, nela, é mostrado ao leitor
a fragilidade humana. Ariela Masé, depois de ter sido abusada sexualmente por um de seus
clientes de trabalho, volta para casa, sem dizer uma palavra ao companheiro, Jeovan. Deitada
ao lado de Jeovan, e divagando em pensamentos e devaneios, ela precisava contar o ocorrido
25

para alguém, mesmo sem saber qual seria a pessoa certa, poderia ser para uma amiga, para um
passageiro de ônibus, para a recepcionista da “Imobiliária Cantagalo”, ou mandaria uma carta
para a mãe, que, por não saber ler, pediria para alguém que fizesse a leitura em voz alta.
Como visto, Benjamim (1995) é uma narrativa verossímil ao homem contemporâneo,
atual em suas questões e próxima do lugar de fala dos indivíduos, tanto na linguagem quanto
no sentir. O autor apresenta ao leitor não uma “historinha” com final feliz, pelo contrário, é
apresentado um enredo cheio de variadas questões sociais e existenciais, muito próximas do
cotidiano moderno, em que são percebidas a fragilidade do homem e a superficialidade das
relações. Sobre essa perspectiva de construção literária, Cristóvão Tezza (2018, p. 44) tece o
seguinte comentário:

Na boa literatura, finais felizes costumam ser, paradoxalmente, desmancha-prazeres;


o bom leitor não suporta água com açúcar, finais melosos ou redenções inverossímeis.
Quando lemos, queremos desgraça, desdobramentos pesados, encruzilhadas morais,
rompimento da aparência, a dura poesia de tudo que não tem solução. Queremos
partilhar o que é irredimivelmente incompleto, para confirmar que não estamos
sozinhos (TEZZA, 2018, p.44).

“Nascida à margem, produzida pelo isolamento do olhar, a literatura contemporânea,


paradoxalmente, abomina o isolamento” (TEZZA, 2018, p. 26). Uma das características da
literatura contemporânea é a presença da marca da oralidade, as narrativas ficcionais modernas
apresentam, na grande maioria das vezes, textos com diálogos rápidos, cuja organização textual
e interacional da fala é acentuada por elementos como: marcadores conversacionais, repetições,
sobreposição de vozes, correções, frequência de construções impessoais, bem como a
predominância de períodos curtos, justapostos e com frases incompletas (PRETI, 2012).
A obra analisada traz algumas dessas características, mesmo sendo narrada na terceira
pessoa. Segundo Carvalho (2009, p. 22): “O narrador de Benjamim não é um personagem da
história. É um narrador onisciente, ou seja, passeia por todos os ambientes do romance e dá
conta de impressões individuais dos caracteres sem inferir no andamento do enredo”, como
podemos verificar, em: “Na sua mesa encontra um pires com azeitonas chochas e uma tulipa de
chope cuja espuma cedeu, e que parece sobra de outro freguês” (BUARQUE, 2004, p. 09).
Essa ideia é confirmada, também, no exemplo abaixo, em que é observada a presença
desse narrador citado por Carvalho (2009), agora, assumindo a voz de uma das personagens, a
corretora de imóvel Ariela Masé:

“Mãe. Gostaria demais que você estivesse aqui comigo. Passei um mês na fazenda e
engordei um pouco. Tenho lido bastante e acho que vou aprender novos idiomas.
Semana que vem pretendo mudar para um apartamento em...”, ou “Querida Mãe.
26

Estou péssima! Tenho tomado muitos ansiolíticos e semana que vem vou no
psiquiatra. Gostaria demais que você estivesse...”, ou “Caro Jeovan. Passei a noite
pensando nas nossas diferenças. Acho que será melhor para mim e para você...”
(BUARQUE, 2004, p. 27).

Quando Dino Preti (2012) fala das marcas de repetição, da predominância de períodos
curtos e frases incompletas nas produções atuais, esses apontamentos podem ser percebidos,
ainda com referência à citação acima, em: “Mãe. Gostaria demais que você estivesse aqui
comigo”, ou, “Semana que vem pretendo mudar para um apartamento em...”. No mais, como
exemplos de período curtos e frases incompletas, citamos: “Sem sorrir ela estende-lhe a mão,
que está fria. Deve ser uma novata, pois afunda o braço na bolsa e bole lá dentro falando ‘as
chaves, as chaves’” (BUARQUE, 2004, p. 15). Outro exemplo que achamos válido destacar é:

Então Ariela pensou no farmacêutico Jarbas Franciscote, um tipo reservado, mas não
é dele o “bom-dia” que vibra na sua orelha, desagradável. “Você me desculpe, mas
não costumo dar meu nome a telefonistas”, e é um timbre metálico, se não ácido,
como o de vozes ao sol quando cochilamos na penumbra. “Sou eu, Benjamim
Zambraia... Alô? Nós nos vimos no edifício do meu agente...” “Claro, claro”
(BUARQUE, 2004, p. 74, grifo nosso).

Preti (2012) acrescenta, também, que talvez a literatura contemporânea seja a que
apresenta maior número de exemplos da influência da fala na escrita, sendo que essa oralidade
no texto literário corresponde a uma diminuição do preconceito contra a língua falada, refletida
no diálogo das personagens e até mesmo na voz narrativa, o que pode ser acrescentado, grosso
modo, à marca social, vista na utilização e emprego de palavras e expressões, que estão muito
relacionadas ao perfil das personagens empregadas na obra, que são, na maioria das vezes,
sujeitos oriundos das classes mais inferiores da sociedade . Observemos o trecho abaixo:

Num reflexo cobre os seios, que Alyandro fitava de modo ostensivo, rindo com seus
dentes de cavalos. Por um instante ela suspeitou que estivesse seminua, que
acotovelamento da passeata lhe tivessem roubado também a blusa. E agora ela se
achava uma idiota, por expor ruborizada os adesivos que traz logo abaixo das alças
como duas tetas, com a inscrição “Vote em Alyandro” (BUARQUE, 2004, p. 122,
grifo nosso).

As expressões “dentes de cavalos”, “idiota” e “duas tetas” correspondem à afirmação


de Dino Preti (2012) dita mais acima. Os trechos destacados da obra nos mostram, de certo
modo, o nível social das personagens envolvidos na cena, Ariela Masé, uma corretora de
imóvel, que vive no subúrbio do Rio de Janeiro, e Alyandro Esgarate, um político corrupto, que
passou, também, por grandes dificuldades financeiras, filho de mãe solteira, que ganhava o
sustento dos filhos como prostituta, visto no excerto abaixo:
27

A contragosto, Ali saiu da padaria e foi conduzido pelo primo até uma rua escura,
transversal. ‘Olha as putas’, disse o primo numa gargalhada. Ali gargalhou também,
para imitar o primo, olhando aquelas mulheres que fumavam, cada qual dona de um
poste. Gargalhou até ver sua mãe, apoiada no terceiro poste da calçada esquerda, de
piteira. Ainda tentou recusá-la, porque aquele vestido de lantejoulas não era dela, nem
ele nunca vira sua mãe fumando, mas o primo olhava para ele e para a mãe ao mesmo
tempo, e ria de um modo tão forçado, que a Ali só restou cerrar os punhos e partir
para cima dele e chutá-lo e xingá-lo de veado (BUARQUE, 2004, p. 69, grifo nosso).

No mais, ao longo da narrativa, podemos encontrar outras palavras e expressões


comumente usadas no cotidiano contemporâneo, com as quais os leitores possuem certa
familiaridade, visto que são facilmente empregadas e utilizadas em contextos sociais menos
abastados, o caso das periferias e favelas. No quadro abaixo são elencados algumas delas:

 “[...] na boca e cu adentro” (BUARQUE, 2004, p. 121, grifo nosso).

 “A mulher fala ‘o filho era teu, idiota’” (BUARQUE, 2004, p. 64, grifo nosso).

 “Olha as putas” (BUARQUE, 2004, p.69, grifo nosso).

 “Benjamim Zambraia, filho de uma égua!” (BUARQUE, 2004, p. 83, grifo nosso).

 “dançou ao seu redor, depois cagou” (BUARQUE, 2004, p. 52, grifo nosso).

 “Enquanto o otário se virava” (BUARQUE, 2004, p. 68, grifo nosso).

 "Estava exposto ao deus-dará tal qual num filme, com a porta encostada e a chave na ignição,
e num vai-não-vai” (BUARQUE, 2004, p. 119, grifo nosso).

 “[...] Benjamim não sabe o que responder, e a adolescente da boca bonita fala ‘eu não te
disse, sua anta!’” (BUARQUE, 2004, p. 40, grifo nosso).

 Mas já tinha a certeza de que, no mundo inteiro, pior que veado, maconheiro, dedo-duro e
tudo o mais, a pior situação na vida é ser um filho-da-puta (BUARQUE, 2004, p. 70, grifo nosso).

Quadro 01: Trechos da obra/Fonte: Benjamim (2004), de Chico Buarque.

Entretanto, é preciso lembrar que mesmo que a literatura contemporânea apresente


mais intensamente as características da oralidade, existe uma diferença estabelecida pela
situação de comunicação entre falante e ouvinte, de um lado, e escritor e leitor, de outro, com
a presença ou ausência dos recursos da produção linguística face a face, para demonstrarmos
que a escrita, literária ou não, jamais será a representação absoluta e fiel da fala (PRETI, 2012).
Quando partimos para o tempo apresentado na obra, é possível afirmarmos que este
segue uma organização não linear, ou seja, a narrativa de Benjamim (1995) oscila entre o
28

presente e o passado. Cristiano Oliveira (2009), em A representação do personagem


“Dessubjetivado” no romance Benjamim, de Chico Buarque, compartilhando dessa ideia, diz
que a estrutura deste romance funciona de forma desregrada, tomando ares de um ambiente
ambígua entre sonho e realidade, não mantendo uma perspectiva organizada e linear.
Segundo o pesquisador supracitado: “boa parte da crítica literária assume que o
romance possui uma forte característica cinematográfica, apresentando diálogos rápidos,
conjugando episódios de natureza espontânea (OLIVEIRA, 2015, p. 05). De outra maneira,
Erica Araújo (2009) nos diz que Benjamim (1995) é um romance que narra situações cotidianas
em lugares comuns, que usa as imagens da sociedade em duas épocas diferentes,
contextualizando e mostrando o diálogo entre dois momentos, a ditadura militar e a
contemporaneidade.
Na obra Benjamim, é recorrente o uso de flashback, recurso comum nas narrativas
cinematográficas, e que é muito utilizado pela literatura (OLIVEIRA, 2015), tanto que esta obra
foi adaptada ao cinema. O leitor se depara com duas fases da narrativa, dois momentos:
Benjamim adolescente e Benjamim Adulto. A respeito disso, Araújo (2009, p. 09) comenta:

Benjamim é um romance narrado em dois tempos, envolve uma narrativa histórica a


partir do enunciado de fatos marcantes da história de nossa sociedade. Temos um
enredo situado entre a contemporaneidade e a ditadura. É uma narrativa
cinematográfica, pois é narrada em flashback, tendo como parágrafo inicial o desfecho
da obra, esta é uma característica marcante não só em Benjamim, como em outras
narrativas do autor Chico Buarque, assim como as tramas que vão se desenvolvendo
aos poucos, de forma circular, em espiral.

Nesse sentido, Carvalho (2009) ressalta que o leitor, necessariamente, precisa estar
atento à ação propriamente dita, à maneira de agir e pensar de Benjamim, para poder entender
as razões que o levam a um comportamento patético. Notemos um trecho da obra que apresenta,
de certa forma, esses dois momentos, o passado de Benjamim Zambraia, na figura de Castana
Beatriz, e o seu presente, o qual é refletido e representado na imagem de Ariela Masé:

No minuto seguinte, ele já não enxerga Castana Beatriz nas fotos que estende na noite,
apoiado ao parapeito. Mas vê suceder-lhe a moça de cachos castanhos, com seu sorriso
plácido à saída do restaurante. Agora Benjamim pode jurar que a moça é filha de
Castana Beatriz. Deita-se nu na cama, e entre as penumbras vê Castana Beatriz que
passeia à vontade na pele da filha, alguns números maior que a sua (BUARQUE,
2004, p. 24).

Esse trecho é apresentado logo no início da obra, nele, Benjamim Zambraia está
sonhando com uma artilharia, cujo alvo é ele próprio. E o que mais chama a atenção é que essa
passagem, colocada logo na parte introdutória do texto, é utilizada, também, no final, como se
29

toda a história não passasse de um sonho para a personagem principal. A respeito disso,
Carvalho (2009) diz que a transição presente e passado na obra analisada nos faz vivenciar a
história de Benjamim em tempo real. Os fatos são narrados no tempo passado, mas a ação
acontece no presente, observada a partir do emprego dos tempos verbais. Vejamos um exemplo:

Quando porventura deixasse aquele subúrbio, achava que seria fácil apagá-lo da
memória. E na memória do subúrbio, de sua passagem restaria quando muito um talco.
Prendendo a respiração, pulou uma vala entre manilhas arrebentadas, viu uma estrela
no esgoto e chegou à parada ao mesmo tempo em que o ônibus descia da garagem.
Sentou-se no primeiro banco e virou o rosto quando o ônibus encheu-se de operários
e empregadas domésticas. Deve ter cochilado contra a janela, pois surpreende-se com
o sol nos olhos diante de um oceano instantaneamente vazio (BUARQUE, 2004, p.
95-96, grifo nosso).

Além do exemplo acima, podemos verificar, na obra, outros trechos que nos mostram
que a ação da narrativa é apresentada no presente, bem como: "Alyandro confere as horas e
veste o blazer azul, imposição de sua assessoria, que também o sujeitou a ocultar o correntão
de ouro sob a camisa social fechada até o penúltimo botão” (BUARQUE, 2004, p. 70).
À guisa de concluirmos o trabalho, citemos o que Oliveira (2015) ressalta. Conforme
ele diz, muitos teóricos afirmam que é extremamente complexo para um escritor conseguir lidar
com as diferentes estratégias de formulação do tempo. De acordo com o pesquisador, a
articulação entre passado e presente na obra Benjamim (1995) se mantém mútua, conjugando
ares inovadores. Em outras palavras, a concentração temporal representada, além de fugir do
tradicional, acaba funcionando como característica redutora na narrativa, sendo quase
impossível determinar o lapso temporal - Benjamim adulto e Benjamim jovem.

Considerações Finais

Considerando o objetivo colocado no início do trabalho, cujo intuito era apresentar


algumas considerações sobre a linguagem e o tempo na obra Benjamim (1995), de Chico
Buarque, sob o viés da estética contemporânea, concluímos que, ao longo destas poucas
páginas, foram apresentadas diferentes ideias e apontamentos que nos ajudam, de certo modo,
a entender como esses dois fenômenos são oferecidos na narrativa.
Vimos que a linguagem empregada na obra é muito verossímil ao falar
contemporâneo, e que o tempo não segue uma estrutura linear, a narrativa é marcada por
flashbacks, sendo, desse modo, características desse novo tipo de produção literária, a chamada
ficção brasileira contemporânea, ou literatura brasileira contemporânea, segundo vimos no
introito do trabalho.
30

Assim, conforme exposto por Castello (2012), concluímos que Benjamim (1995) é
uma história de pessoas vazias, duplicadas em imagens que as engolem e as substituem, numa
velocidade destruidora, a um ponto em que elas deixam de saber quem são, fazendo-nos refletir
sobre a atual condição humana, o papel do sujeito moderno, do sujeito contemporâneo, que vive
em busca do que não se sabe, do que não tem nome, e se tem, parece não fazer sentido, vivendo
em uma sociedade de aspecto doente, contaminada pelo vírus da globalização, como diria
Zygmunt Bauman (2001), uma modernidade líquida e imediata, de indivíduos frágeis.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Editora Argos, 2009.

ARAÚJO, Érica Tavares de. Benjamim, Ariela e Castana: vida, tempo e relações
interpessoais, no Benjamim de Chico Buarque. In: Anais do IV Colóquio Internacional
Cidadania Cultural: diálogos de gerações, 22, 23 e 24 de setembro de 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2001.

BUARQUE, Chico. Benjamim: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª Ed. São Paulo - Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro
sobre Azul, 2004.

CARVALHO, Vivian Cristina Alves de. O Romance de Chico Buarque: uma leitura de
Estorvo, Benjamim e Budapeste. 2009. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – Programa de Pós-graduação em Letras. Porto Alegre, 2009.

CASTELLO, J. “Carrossel Luminoso”. In: FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do


Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro:
Garamond, 2012.

OLIVEIRA, Cristiano Mello de. A Representação Do Personagem “Dessubjetivado” no


romance Benjamim, de Chico Buarque. Revista Versalete, Curitiba, vol. 3, nº 5, jul./dez. 2015.

PEREIRA, Helena Bonito Couto. Duas personagens, dois tempos, duas versões: Benjamim em
livro e em filme. Aletria, jul./dez., 2006. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit.
Acesso em: 01 de junho de 2020.

PRETTI, Dino. A linguagem literária contemporânea no Brasil: a elaboração da oralidade.


Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 9, de jun., 2012. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/fronteiraz/article/view/12591. Acessado em: 08 de maio de 2020.

RODRIGUES, Gustavo Henriques, VIEIRA, Danielly Cristina Pereira. A Literatura


Contemporânea e o Ensino. Revista encontros de vistas, n. 13, jan/jun, 2014. Disponível em:
http://www.encontrosdevista.com.br/. Acessado em: 01 de junho de 2020.
31

SCHOLLAHAMMER, K. E. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2009.

TEZZA, Cristovão. Literatura à margem. Porto Alegre: Dublinense, 2018.


32

O USO DA MEMÓRIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS: DOM CASMURRO

Erika Maria Albuquerque Sousa


Solange Santana Guimarães Morais

Introdução

Narrado em tom memorialístico, Dom Casmurro, teve sua primeira edição em 1899.
Considerado por muitos a obra-prima de Joaquim Maria Machado de Assis – Machado de Assis.
Sendo o seu terceiro romance de maturidade, ambientado no Rio de Janeiro. O enredo inicia-se
com a narração de Bento de Albuquerque Santiago, que começa a contar a sua história a partir
de sua velhice, tendo a preocupação de tão logo dar início, explicando ao seu leitor como
ganhou o apelido de Dom Casmurro, e como decidiu escrever seu próprio livro.
Dessa forma, ao iniciar sua leitura o leitor verifica que o narrador-personagem utiliza-
se da metalinguística, ou seja, o enredo se dá pelo próprio Dom Casmurro discutindo o próprio
ato e modo de contar a sua história. Outrossim, é possível perceber o acesso à memória ao longo
do romance, pois utiliza das reminiscências e de imagens corporais de Capitu, Dona Glória,
José Dias, Ezequiel e demais personagens que fazem parte do drama; e por meio desta
materialização em sentidos, tece sua narrativa.

Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até
ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe
guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é
sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores, alguns nem tanto (ASSIS, 1994,
p. 08).

Logo no início do livro o narrador, Bento Santiago, que agora se encontra como um
senhor de mais de cinquenta anos, informa que pretende revisitar os acontecimentos de sua
vida, quando ainda era moço e residia na Rua de Matacavalos e, depois no bairro da Glória.
Dessa forma, a partir de sua residência atual, em Engenho Novo, o velho solitário Casmurro
torna-se o jovem Bentinho por meio de nostalgias da sua infância, pois, “desde que haja rastro,
distância, meditação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da história”
(NORA, 1993, p. 09).

8
MACHADO DE ASSIS, 1994, p.1.
33

Destarte, César Guimarães (1997) afirma que “a rememoração, portanto, não preenche
os buracos da memória, mas sim, revela os pontos decisivos da história do sujeito” 9. Sendo
assim, objetiva-se analisar como a memória e a reminiscência estão presentes no romance e
como a presença de tais técnicas assume assaz importância para a compreensão e desenrolar de
todo o enredo.

A presença da memória na obra

De acordo com Aristóteles, a memória se caracteriza como um reservatório de


lembranças destinado a conservar imagens advindas de sensações e impressões que foram
vividas outrora, assim, por meio desse reservatório, as experiências vividas seriam armazenadas
e não esquecidas. Enquanto a reminiscência se configura como uma recuperação intencional de
adentrar esse espaço da memória, para reviver ou lembrar seja de um conhecimento ou de uma
sensação.

Em seu pequeno tratado De memoria et reminiscentia Aristóteles nota,no entanto, que


a memória, devido ao seu caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da
alma que a imaginação: ela é um conjunto de imagens mentais das impressões
sensuais mas com um adicional temporal; trata-se de um conjunto de imagens de
coisas do passado.

(...)
Aristóteles compara a imagem mental gerada pela impressão sensual a
um retrato pintado que permanece na memória: “pois – ele escreveu –
o estímulo produzido imprime uma espécie de semelhança como percebido,
exatamente como nós selamos com sinetes dos anéis”
(...)
Ele concebe, portanto, a formação da imagem mental como o movimento de
impressão de uma imagem na cera por um anel que sela.
(...)
Aristóteles distingue de modo claro entre memória e reminiscência,
como o nome do seu texto o indica. A reminiscência é definida como a recuperação
intencional de um conhecimento ou de uma sensação.10

Já para a antropóloga Nádia Seremetakis, essa classificação se daria de outra forma,


descrevendo a memória como uma constituição que traz em si algo que seria involuntário,
entendendo, portanto, a memória como um reservatório de sensações. Assim afirma:

Memory is the horizon of sensory experiences, storing and restoring the experience
of each sensory dimension in another, as well as dispersing and finding sensory

9
GUIMARÃES. Imagens da memória: entre o legível e o visível, p. 2.

10
(SELIGMANN-SILVA. A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens, p. 93-94.)
34

records outside the body in a surround of entangling objects and places. Memory and
the senses are comingled in so far as they are equally involuntary experiences. 11

Partindo desses aspectos, Machado de Assis utiliza-se tanto do uso da memória como
da própria reminiscência como técnicas para fazer com que o velho Dom Casmurro transforme-
se no jovem Bentinho. Desta maneira, ao iniciar sua narrativa, Bento Santiago, relembra e busca
em suas reminiscências osculares Capitolina, a sua vizinha, que viria a ser a sua esposa. E por
meio dessas memórias antigas ele revive os “beiços” de Capitu e volta a sentir saudades daquele
tempo, descrevendo em detalhes essa recordação do passado.

Outra vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências
osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas.
Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais
compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e
numerosas, doces também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas.
Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta.12

Em virtude disso, a distribuição dos acontecimentos dentro do romance, no tempo, se


dará semelhante à forma como ele influencia na vida das pessoas, fazendo com que Machado
de Assis não siga a forma tradicional de narração que obedece de um modo geral as convenções
de enredo, como afirma Mendilow (1972, p. 189):

Convenções de enredo, especiais e arbitrárias de começo, meio e fim; da sequência


cronológica da ação que [coíbe] coibia a fórmula artística em conjunto; do princípio
da causalidade, que [envolve] envolvia uma seleção e economia rígidas de incidentes
no interesse de uma padronização artificial da ação.

Desta maneira, fazendo “ilustração do passado de uma personagem relevante ou


relatando eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu
início” (REIS & LOPES, 1988, p. 230-1) seria uma estratégia empregada para produzir o efeito
de contextualização entre o que se narra, integrando à narrativa essa “ilustração do passado” a
qual se refere o autor. Diante disso, denomina-se analepse, segundo Gérard Genette (1972, p.
90-115), que se integrando ao conceito segundo o qual são narrados acontecimentos posteriores
ao presente da ação, à prolepse, constituindo “o mais amplo domínio das acronias” (REIS &
LOPES, 1988, p. 230, 283-285), caracterizando-se como:

11
(A memória é o horizonte de experiências sensoriais, armazenando e restaurando a experiência de cada dimensão
sensorial em outra, além de dispersar e encontrar registros sensoriais fora do corpo em um entorno de objetos e
lugares emaranhados. A memória e os sentidos estão chegando na medida em que são experiências igualmente
involuntárias. SEREMETAKIS. The memory of the senses, part I: “Marks of the transitory”, p. 8)
12
(MACHADO, 1994, p.35).
35

Um recurso narrativo, não só ancestral, como frequentemente utilizado; de fato, a


acronia constitui um dos domínios da organização temporal da narrativa em que com
mais nitidez se patenteia a capacidade do narrador para submeter o fluir do tempo
diegético a critérios particulares de organização discursiva, subvertendo a sua
cronologia por antecipação (prolepse) ou por recuo (analepse).13

Nesse sentido, no capítulo intitulado “Do Livro”, o narrador inicia seu relato
apresentando os motivos que o fizeram dar início à empreitada de escrever o seu romance
memorialístico. E partindo da configuração de sombras como substitutas de corpos, de Capitu,
Dona Glória e José Dias, que jaziam mortos e enterrados, ele faz com que essa materialização,
apenas pela lembrança, os faça presentes.

Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que,
uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e
contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar
ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas
sombras?14

Desta forma, esse acesso à memória de forma intencional é constantemente expresso,


pois “a realidade do tempo é a do presente, ela é sempre e tão somente uma compreensão deste
último e, consequentemente, de seu projeto para o futuro; contudo está na própria essência desse
projeto a constante possibilidade de desmoronar.15” Assim, por meio de reminiscências o
narrador cria um enredo entrelaçado, na qual um capítulo acaba dialogando com outro, embora
escapem da ordem considerada tradicional como foi já mencionado. Como pode ser observado:

No capítulo três, Bentinho ouve escondido a conversa de José Dias com D. Glória e,
no capítulo nove, deixa o esconderijo;
Do quarto ao sétimo capítulo, intercalam-se eventos anteriores ao episódio da
denúncia, introduzindo José Dias, Seu Cosme e Dona Glória;
No oitavo capítulo, o narrador convida o leitor a voltar ao momento em que Bento
Santiago decide começar a narrativa de sua vida passada (no final do segundo
capítulo);
O capítulo nove “A ópera”, remete o leitor para o momento posterior ao que estava
sendo narrado para, na passagem do capítulo dez para o capítulo onze, retomar a
narração do episódio da denúncia, dando continuidade à narrativa.16

Ivan Teixeira (1992) escreve em um artigo publicado no jornal O Estado de São


Paulo, 29 fevereiro um texto sobre Dom Casmurro, no qual pode se confirmar como o romance
evoca a “presentificação” da memória para a construção de sua narrativa. Bem como a
importância que esse processo de revisitação à reminiscência interfere na compreensão e

13
(REIS & LOPES, 1988, p. 229).
14
(MACHADO, 2019, p.51).
15
(POUILLON, 1974, p 126).
16
(NUNES, 1988, p. 55-6).
36

desenrolar de toda a história. Demonstrando como ocorre a reinterpretação de antigas


sensações, passeando pelo tempo, desde a meninice de Bento Santiago até a sua maturidade.

Um romance impressionista, pois se estrutura sob o signo da memória ou da evocação


sugestiva. Há nele uma espécie de presentificação do passado sem deixar de haver
também uma interferência do presente no passado. Este último lance se observa nas
passagens em que o velho Bento interpreta, reinterpreta ou retifica antigas sensações
da infância, da adolescência e da maturidade.17

Ivan Teixeira ao afirmar que o romance de Machado de Assis, Dom Casmurro,


caracteriza-se como uma narração memorialística, poderia estar se baseando na explicação que
o autor-personagem dar ao ter mandado construir uma réplica de sua de antiga casa, em
Matacavalos, no seu bairro atual, Engenho Novo. Local esse em que ele viveu toda sua
mocidade e ao mandar construir essa réplica reacender recordações vivas do passado de maneira
não mais que proposital, representando como “a modernidade em arte preserva todas as
temporalidades do lugar, tais como se fixam no espaço e na palavra” (AUGÉ, 2010, p.72-73).
Casmurro afirma que a sua intenção ao construir uma reprodução de sua casa era “atar
18
as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” . O que Jean Pouillon irá
explicar:
Imaginando os outros, nós nos imaginamos também a nós mesmos, encontraremos na
compreensão de nosso eu as diferentes direções por onde pode enveredar a
compreensão dos outros. [...] A lembrança não é uma realidade e sim uma operação:
não existe lembrança, nós nos lembramos. Nós nos lembramos captando em alguma
coisa que nos esteja sendo dada uma outra coisa que não nos é dada: a significação do
passado. 19

Dessa forma, ao afirmar o seu insucesso ao tentar restaurar esse passado “pois, senhor,
não consegui recompor o que foi nem o que fui (MACHADO, 1994, p. 2)”, o narrador confirma
a teoria defendida por Pouillon, pois não há como imaginar os outros e tentar compreender a
partir de um único olhar as diferentes direções que as lembranças acabam tendo. Pois essas
lembranças não são apenas uma experiência, não é uma realidade, mas uma operação que é
feita ao intencionar essa compreensão dos outros, sendo uma tentativa de significar o passado.
Segundo Ecléa Bosi (1994, p. 53), “a lembrança é a sobrevivência do passado. O
passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de
imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios”.
Pois o lembrar nestas condições significaria aflorar este passado, combinado com o processo

17
(TEIXEIRA, I. Dom Casmurro entre a luz e a sombra. In: O Estado de São Paulo, 29 fev. 1992).
18
(MACHADO, 1994, p. 2).
19
(POUILLON, 1974, p. 39-40).
37

de percepção de misturar experiências imediatas com lembranças, porque a memória permite


essa relação do corpo presente com o passado, causando ao mesmo tempo uma interferência no
processo atual das representações.
A memória para Le Goff (2003, p. 419) é vista como:

[...] propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um


conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Destarte, uma das explicações para que o velho Casmurro se propusesse a escrever a
sua própria história e revisitar o seu passado, se dá pela curiosidade quando a memória se
cristalizou, e acabou se tornando um momento particular, marcante, onde o sentimento de
memória esfacelada desperta lembranças suficientes para rememorar todo o seu problema de
encarnação. Como afirma Nora (1993):

A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este
momento particular da nossa história. Momento de articulação onde a consciência da
ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada,
mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que possa colocar
o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos
locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória.20

Portanto, segundo Bosi (2004, p. 39) “A memória é um cabedal infinito do qual só


registramos um fragmento”. Assim, “longe de ser relicário, ou a lata de lixo do passado, a
memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-las, vigilantes, à espreita”21. Desta maneira, é
possível observar até aqui o que Casmurro tentou fazer, colocando-se nesse papel de “espreita”
a qual defende Certeau (1990), pois recorrendo à memória ele consegue ter acesso a esses
diversos acontecimentos que lhe são importantes para essa reconstrução.

Considerações finais
Percorrendo pelo clássico de Machado de Assis, Dom Casmurro, aqui exposto e
previamente analisado, objetivou-se verificar como a memória e a reminiscência estão
presentes em todo o romance, assim como a influência que esses recursos exercem na
compreensão e é justificada em toda a narrativa, analisando como o narrador-personagem
utilizou-se dessas técnicas para fazer com que seu próprio ato e modo de narrar desse vida à
sua história.

20
(NORA, 1993, p.7).
21
(CERTEAU, 1990, p. 131).
38

Mediante isso, foi possível perceber os riscos que esse adentrar às lembranças outrora
vividas pode ser observado sob um único ponto de vista. Em seu modo de narrar, Machado de
Assis acaba inaugurando o que para Jean Pouillon se dá por visão com, em que o centro da
narrativa se dará a partir de uma única personagem, e a partir da qual as outras serão
apresentadas: É “com” ela que vemos os outros protagonistas, é “com” ela que vivemos os
acontecimentos narrados (POUILLON, 1974, p. 54).
Dessa forma, para Halbwachs (1990, p. 26):

[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é
necessário que outros homens estejam lá, que sedistingam materialmente de nós:
porque temos sempre em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem.

Assim, segundo o autor essas lembranças coletivas podem ser revisitadas


individualmente porque “nunca estamos sós”, de alguma forma essas pessoas que algum dia
compartilharam experiências estarão sempre envolvidas. Fazendo com que a partir de uma
lembrança um único ser do coletivo possa tratar desses acontecimentos, distinguindo
materialmente cada um.
Conforme o que acontece no romance aqui explicitado, no entanto, ao longo da
narrativa é possível perceber que esta tentativa de buscar a reminiscência para dar uma
significação a elementos singulares do passado não atendeu as expectativas almejadas, como
afirma o narrador em sua reflexão ao final do livro: “pois, senhor, não consegui recompor o que
foi nem o que fui” (MACHADO, 1994, p. 2).

Referências

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo:
Papirus, 2012.
ASSIS, Machado de, 1839-1908. Dom Casmurro/Machado de Assis; fixação de textos, notas e
posfácio de Homero Araújo; coordenação editorial, biografia do autor, cronologia e panorama
do Rio de Janeiro por Luís Augusto Fischer. – Porto Alegre, RS: L&P, 2019.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos – 3. Ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
________________________ Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1981.
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 7. Ed. Belo Horizonte: autêntica,
2010.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1997.
39

HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Editora Revista dos Tribunais LTDA: São
Paulo, 1990.
LE GOFF, Jaques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
MACHADO, G. M. O Discurso Realista em Flaubert e em Machado de Assis. In: Rev. Let. São
Paulo, 1989, 29; 55-70.
MENDILOW, A. A. O Tempo e o Romance. Tradução Flávio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História.
São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
POUILLON, J. O tempo no Romance. Tradução Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix,
1974.
POULET, G. Études sur le temps humain. Paris: Plon, 1949.
REIS, C. & LOPES, A. C. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens. In:
____. Terceira margem. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
SEREMETAKIS, Nádia. The senses still: perception and memory as material culture in
modernity. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1996a.
TEIXEIRA, I. Dom Casmurro entre a luz e a sombra. In: O Estado de São Paulo, 29 fev. 1992.
40

A INTERMIDIALIDADE CINEMATOGRÁFICA PARA A CONSTRUÇÃO DO


HOMICÍDIO NO CONTO “A MALA SINISTRA”, DE VALÊNCIO XAVIER

Danila Melo de Oliveira


Amanda Da Silva Ferreira

Introdução

A literatura contemporânea, especialmente nas narrativas, denota uma preocupação


com a temática da violência, que muitas vezes tem como fonte de inspiração acontecimentos
reais da sociedade. Assim, é comum que poetas, contistas e romancistas situem sua escrita em
um determinado contexto, seja fazendo críticas a algum ocorrido que envolve a sociedade ou
também relatando acontecimentos e transpondo para a escrita literária.
Essa interseção com a realidade social é vista no livro de contos Crimes à moda antiga,
publicado em 2004, de Valêncio Xavier, composto por oito narrativas que foram influenciadas
por crimes que ocorreram no Brasil durante o século XIX e início do século XX. Além disso,
embora a literatura possua uma estética ficcional, as convergências com a realidade são
exploradas por autores que possuem um intuito de estabelecer um caráter realístico seja na
poesia ou na prosa. Com isso, Alves (2017) afirma que a obra foi composta a partir de pesquisas
em diversos acervos como a Biblioteca Pública de Curitiba, a Biblioteca Pública de São Paulo
e no Arquivo Oficial do Estado de São Paulo, onde foram reunidas matérias de jornais sobre os
assassinatos que ocorreram naquela época e, após uma seleção de assuntos, serviram de
inspiração para as narrativas.
Entre os contos da obra, o autor abriu espaço para retratar dois crimes da mala, em que
“A mala sinistra” retrata um famoso homicídio ocorrido em 1908, em São Paulo. Nesta
narrativa, um homem estrangulou um colega de ofício, tendo como motivação o envolvimento
de ambos em um triângulo amoroso. Porém, o que instiga neste conto é a sua forma de
composição, visto que além da linguagem verbal, o autor também faz uso de uma linguagem
visual, com ilustrações que remetem a algumas cenas do cinema. Desse modo, esta pesquisa
focou em compreender de que forma a linguagem cinematográfica contribui para a composição
do homicídio, a partir das técnicas de montagem, enquadramento e planos que estão presentes
nas imagens do conto.
Dessa forma, este trabalho está dividido em cinco tópicos, no qual o primeiro busca
trazer um breve panorama sobre a biografia e a obra de Valêncio Xavier, bem como as suas
41

influências para a construção da sua forma de escrita. Ademais, o segundo tópico traz alguns
conceitos técnicos da cinematografia, como as noções de enquadramento e planos, e a
construção da verossimilhança. No próximo tópico há a análise do conto, que leva em
consideração tanto a narrativa verbal, quanto as ilustrações para a construção do sentido do
texto, e, por fim, as considerações finais sobre o que foi alcançado na pesquisa.

Valêncio Xavier: um escritor (des)fragmentado

É indubitável que não se pode analisar as narrativas de Xavier sem levar em


consideração o seu excêntrico estilo de escrita, pois o modo como ele produziu sua literatura
diz muito a respeito do próprio autor, que trouxe suas experiências profissionais em outras áreas
para o campo de escrita literária.
Nascido em 1993, Valêncio Niculitcheff Xavier viveu em São Paulo até os vinte anos
de idade, quando se mudou para Curitiba, permanecendo até o dia de seu falecimento, em 2008.
Durante sua vida, perpassou por várias áreas, indo da profissão de historiador a colaborador em
jornais do Paraná. Porém, o que é marcante na trajetória de Xavier é a sua ampla relação com
o cinema e o audiovisual, uma vez que atuou como roteirista, diretor e cineasta, chegando a
ganhar prêmios no mercado audiovisual brasileiro como o de Melhor Filme Ficção pelo curta
“Caro Signori Fellini”, produzido em 1979.
Embora tenha ganhado notoriedade nas produções cinematográficas, Xavier também
possuía um carinho pela literatura e em 1963 começou a produzir contos que foram publicados
na revista Senhor. No entanto, o seu reconhecimento no ramo da escrita alavancou a partir da
republicação de O mez da grippe e outros livros (1998), pela editora Companhia das Letras,
que reuniu contos e novelas do autor que faziam uso da intermidialidade de gravuras, recortes
de jornais, imagens de filmes e a linguagem verbal. Inclusive, sua narrativa mais notável que
envolve a cinematografia é a novela Maciste no inferno, que contém recortes de cenas de filmes
intercalados com a narrativa verbal.
Porém, mais do que uma mera inspiração dos cinemas, o escritor foi influenciado
fortemente pelo movimento Dadaísta, que durante a Vanguarda Europeia, buscava desconstruir
as formas artísticas. Isso motivou Xavier na desconstrução da própria estética literária, através
de inserção de imagens em sua escrita, tornando-o conhecido como o primeiro escritor de
romance gráfico no Brasil. Segundo Neves (2006), na escrita do autor:
42

O trabalho intersemiótico, em que a imagem tem valor fundamental, é evidente na


ficção de Xavier, e, provavelmente por sua precedência cinematográfica, o autor
combina, com maestria, a linguagem verbal com a não-verbal em seus projetos
gráficos, de modo a provocar, no leitor, uma emoção estética. (NEVES, 2006, p. 44).

Assim, dizer que Xavier é um escritor que produz uma literatura desfragmentada é
partir de um olhar no qual a palavra e a imagem parecem, a princípio, postas aleatoriamente em
sua escrita, porém, nesse mesmo momento há também uma interseção em que a escrita verbal
se une à linguagem visual para produzir o sentido do texto literário. De tal modo, ao mesmo
tempo em que ambos se separam, eles também se diluem, tornando o processo de construção
de sentido em relações de intermídias.

Enquadramento e montagem na cinematografia

Para realizar a análise do conto, utilizaremos alguns princípios da cinematografia. Os


adventos do estudo de filmes perpassam por um conhecimento que define o cinema como algo
dotado de uma linguagem capaz de reproduzir a realidade em si. Para conseguir tal feito,
segundo Martin (2005) o elemento base dessa linguagem é a imagem, pois é a partir dela que a
filmografia consegue reproduzir a realidade, pois “a imagem fílmica é portanto, antes de tudo,
realista, ou melhor, dotada de todas as aparências (ou quase) da realidade.” (MARTIN, 2005,
p. 28).
Isto posto, a fotografia é um elemento importante para o cinema, pois durante o ato de
filmagem, a câmera faz a captura de várias fotos em sequência, gerando assim a movimentação
da imagem. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que se a imagem fotográfica apresenta
uma certa condição de realismo ao mostrar um espaço imagético, conforme Xavier (2015) o
cinema consegue ampliar essa concepção, pois a imagem vai deixar de ser fotograficamente
estática, e passar a ser algo mais próximo da realidade, pois é a partir dela que surge a
capacidade de captação de movimentos e ações que deslocam personagens e cenários.
Para que essa impressão de realidade seja constituída na obra cinematográfica, um
conjunto de fatores se unem para criar o efeito do real. Para isso, primordialmente, o espectador
do cinema atua como um elemento importante, pois no momento em que está assistindo a uma
produção fílmica, mesmo sabendo que a obra audiovisual é ficção, a mente do indivíduo age
criando “[...] um sentimento de realidade em certos casos suficientemente forte para provocar
a crença na existência objetiva do que aparece na tela.” (MARTIN, 2005, p. 28, grifo do autor).
43

Além dessa concepção psíquica da mente do indivíduo, para instaurar a presença do


real na imagem, também são necessários fatores voltados aos procedimentos técnicos que
envolvem os recursos de criação de uma obra audiovisual. Dentre eles, destacam-se dois
processos básicos que serão importantes na análise do conto desta pesquisa: o processo de
“enquadramento”, que diz respeito à forma como os registros de imagens é feito, por outro lado,
o segundo é a “montagem”, ou seja, a junção do que foi gravado.
Durante o processo de filmagem, é necessário que o cinegrafista selecione e capture
um campo de visão específico, diante de um ambiente amplo, realizando, assim, o
“enquadramento”. Para Xavier (2015), essa técnica se constitui a partir de uma dualidade de
espaços: o interior, ou seja, aquele dentro do retângulo mostrado na câmera e que será
reproduzido no filme, e também o espaço exterior à câmera, o que ficará excluído da visão
fílmica. Assim, durante a filmagem, o enquadramento está voltado ao manuseio da câmera e
aos recortes que serão feitos a partir dele.
Enquanto que o enquadramento diz respeito à escolha de localização da câmera, o
“plano” corresponde ao que será mostrado na imagem em si, ocorrendo a partir de um
determinado ponto de vista do que está sendo filmado. Dessa forma, aquele que faz a filmagem
é quem escolhe a captação ou não de determinados objetos e seres, a partir de uma espécie de
recorte que faz da totalidade do espaço.
O primeiro tipo é o plano geral, no qual é mostrado todo o espaço da ação, de um modo
mais amplo. Já o segundo é o “plano médio” ou também denominado “Plano de Conjunto”, que
vai enfocar um determinado conjunto de elementos envolvidos na ação, sejam os personagens
do filme e cenários. Um outro é denominado “Plano americano”, que é específico à figuras
humanas, pois mostra o indivíduo até a cintura. E no último, “Primeiro Plano” há um enfoque
no rosto do indivíduo ou em algum detalhe do rosto.
Após a captura das imagens e levando em consideração que as cenas muitas vezes são
filmadas de forma descontínua, será necessário juntar essas partes gravadas para estabelecer a
linha narrativa do filme, através da montagem. Assim, a montagem é o momento em que as
cenas desconexas são unidas pelo montador a fim de gerar o sentido do enredo ao público,
porém, mesmo que isso pareça algo que sirva apenas para traduzir o que está no roteiro do
filme, Mourão salienta que essa é uma parte e “é o momento em que se organizam os materiais
e se define a estrutura da narrativa no jogo que se instaura na associação de imagens”
(MOURÃO, 2006, p. 231).
A montagem é um processo de fragmentação e posteriormente de seleção de espaços
para construir uma narrativa que abarca um tempo, entrelaçando os vários planos para o
44

decorrer da história. Assim, a montagem é realizada a partir da junção desses planos para
estabelecer uma sequência lógica ou não, a depender de qual seja o objetivo do enredo da
narrativa, seja linear ou não-linear. Dessa forma, isso irá moldar a constituição de espaço e de
tempo no filme, assim, tanto a combinação do modo de filmagem quanto o processo de
montagem para dar vida ao filme são fatores importantes.

O homicído

O conto “A mala sinistra” é baseado no famoso crime da mala que ocorreu em São
Paulo, no ano de 1908. Similarmente ao acontecimento real, o conto narra o assassinato de
Elias, que era proprietário de uma fábrica de calçados em São Paulo e que acabou sendo vítima
de um estrangulamento por Miguel Trad, com o qual mantinha uma relação de sócio de
negócios. Porém, o motivo desse crime brutal foi a presença de um triângulo amoroso, em que
Carolina, esposa de Elias, mantinha um romance extraconjugal com o assassino de seu marido.
Diante disso, a narrativa gira em torno do momento em que o crime foi descoberto até a sentença
final do homicida, sendo acometida, assim, por um teor investigativo.
É primordial ressaltar que a própria temática de investigação criminal já compactua
com os filmes do gênero suspense, especialmente pela forma como a narrativa é estruturada em
blocos que retratam cada momento específico do desenrolar do crime. Assim, um bloco narra
o momento da prisão do assassino, enquanto que outro bloco detém o momento de entrevista
da viúva Carolina, o que gera uma impressão de fragmentação de cenas, tal qual as narrativas
cinematográficas. Por outro lado, a própria escolha de fazer ilustrações em preto e branco
remete aos filmes antigos de cinema e suspense, como a fig. 1 abaixo:
45

Figura 1 - O casal. Fonte: (XAVIER, 2004, p. 68).

Após o título do conto, é apresentada a fig. 1, o que leva o leitor a inferir que a história
girará em torno do que está contido nela. Ela é enquadrada em um plano médio ou de conjunto,
os personagens são dispostos completamente, de corpo todo, com o objetivo de incentivar a
leitura de suas características físicas, sentimentais, econômicas e de status, levando em
consideração os móveis e outros objetos da imagem, ou seja, uma leitura introdutória dos
personagens é proposta através da imagem.
A fig. 1 apresenta uma foto típica de família, mais precisamente de um casal, em
nuances preto e branco, na qual é percebido o luxo e a riqueza do casal, através da inserção de
móveis com aspectos caros e imponentes, assim, outro fato que contribui para a riqueza são as
vestes muito bem alinhadas e luxuosas, seus cabelos arrumados com aparência elegante.
As feições do casal são sérias, parecem pessoas discretas, sem demonstração de afeto,
pois o homem apresenta um certo distanciamento físico da mulher, isso demonstra um
afastamento sentimental, afetivo e carinhoso de duas pessoas casadas. Porém, essa construção
de personalidade e relacionamento não se limita à imagem, pois será apresentado verbalmente
mais adiante no conto por um dos personagens. Se tratando de uma típica foto de família, que
geralmente apresentam mais pessoas, como filhos, mas aqui a imagem não mostra herdeiros,
levando o leitor a inferir que o casal não possui filhos, mais adiante isso também é comentado
na narrativa, pois o marido apresenta algum tipo de dificuldade fisiológica e, por isso, não pode
conceder filhos a sua esposa.
46

Após a exibição dos personagens, a narrativa verbal faz uma quebra na linearidade do
enredo. Isso é visto pelo início do conto que mostra quando Miguel está embarcando em um
cruzeiro com o corpo morto de Elias dentro da mala, na intenção de atirá-la no mar, fazendo
com que o enredo se constitua como não linear, porque ele inicia após o assassino ter cometido
o estrangulamento. Isso ocorre pois “os filmes podem seguir uma sequência com saltos ou
lapsos de um tempo para outro ou então valerem-se das técnicas literárias do flashback ou do
flashfoward [...]” (GUALDA, 2010, p. 212).
Por outro lado, esses lapsos dos acontecimentos também são visíveis através da forma
como as imagens são dispostas no livro, fazendo parte de uma jogada de escrita. O próprio
momento do homicídio não ocorre em nenhum momento da narrativa verbal, fazendo com que
o clímax seja oculto temporariamente. Porém, a imagem da cena do estrangulamento de Elias
é posta somente através da linguagem visual por meio da ilustração, inserida somente após o
final do conto, quando todo o crime já fora descoberto, conforme a fig. 2:

Figura 2 - O homicídio. Fonte: (XAVIER,


2004, p. 89).

Na fig. 2 são vistos Miguel estrangulando Elias que estava sentado em uma cadeira. É
interessante notar que o enquadramento se configura em um Plano Médio, ou seja, é possível
ver os personagens e a ação que está sendo cometida, como também alguns objetos ao redor:
um livro caído no chão que sugere que Elias, possivelmente, estava lendo pouco antes de ser
atacado. É interessante notar uma janela meio aberta, meio fechada, o que induz que Miguel já
havia planejado cometer o homicídio e para isso deveria fechar as janelas para que a ação não
fosse vista por alguém na rua.
47

Assim, a montagem que Xavier faz é típica da cinematografia, já que existem tantos
filmes com enredos não lineares. Mas ao mesmo tempo, essa técnica de jogar a cena do
homicídio para o desfecho da narrativa é fundamental, pois na narrativa verbal está a todo tempo
sendo falado sobre o assassinato, mas em nenhum momento ele é descrito através de palavras.
Então é algo que causaria no leitor a ansiedade de querer saber como que o crime ocorreu, e
onde ocorreu e para explicar isso, o autor faz uso da linguagem verbal.
É interessante retomar os conceitos de Xavier (2015), ao notar que as imagens estáticas
não possuem sentidos sozinhas, mas é o movimento que gera a ação e consequentemente
produzirá o sentido contextual do filme. Isso é visto no conto quando mesmo utilizando de
ilustrações que remetem a cenas de cinema, a questão da transição temporal ocorre através da
linguagem verbal, unindo assim o sentido completo da narrativa ao retratar o assassinato.
No momento em que Miguel embarca no cruzeiro, ele acaba sendo abordado por
alguns marinhos que estranham a mala e forte odor que saía do objeto, fazendo com que os
tripulantes interrogassem Miguel e ele dá a desculpa que são apenas comidas enlatadas. Porém,
mais tarde o criminoso é descoberto e a mala é aberta, revelando assim o corpo já em estado de
decomposição que era carregado:

[...] O corpo fora metido à força, a cabeça socada para baixo, a fim de poder fechar a
mala. O couro cabeludo se desprendia com facilidade, caindo aos pedaços. A língua
inchada desmesuradamente, caía para fora. A pele se descolava; nas mãos havia uma
anel de ouro com brilhantes. Para completar este quadro terrível, uma corda amarrada
em cruz prendia os pés calçados com botinas amarelas e do pescoço, ferido e dilatado,
pendia uma fina corda que o envolvia em quatro voltas, apertada por um nó. [...]
(XAVIER, 2004, p. 74).

Já a ilustração do personagem Elias morto é enquadrada em um Plano Americano,


mostrando o corpo do homem até a cintura e deitado no chão. A escolha de ilustrar o homem
morto nesse plano se pauta pela ênfase em torno do próprio crime e de quem sofreu o homicídio.
É interessante ressaltar que o homem aparece com algo na boca, que no conto é retratado como
a língua já decomposta. Há a escolha também de um livro/revista acima do homem, como um
prenúncio da forma que ele morreu lendo, fazendo uma retomada ao momento do assassinato.
O jogo entre as cores preto e branco contribuem para construir a descaracterização do
personagem, como pode ser visto abaixo na fig. 3:
48

Figura 3 - O morto. Fonte: (XAVIER, 2004, p. 72).

Após o descobrimento desse escândalo, Miguel foi detido e assim se iniciou o processo
de investigação. Com isso, foram levantadas suspeitas também sobre a esposa de Elias,
Carolina, se ela sabia algo sobre o assassinato do marido, pois Miguel era frequentador assíduo
da moradia do casal. Diante disso, a mulher foi procurada pela imprensa para que desse
entrevista sobre o que ela possivelmente sabia do ocorrido e forma estética com a qual ela
recebe os jornalistas retrata toda a emoção que estava passando:

Carolina, a viúva, surgiu de uma das portas do fundo. Vinha vagarosamente


deslizando sobre os ricos tapetes do salão, trajada rigorosamente de luto e trazendo
atada à cabeça uma mantilha de seda preta que mal aprisionando a sua basta cabeleira
loura, a deixava irromper sobre sua testa. (XAVIER, 2004, p. 77).

Carolina é retratada como uma santa, pois a todo momento durante a investigação ela
estava sendo posta como uma suspeita, para passar a imagem de uma mulher que acabou de
perder o marido, configurando-se na fig. 4:
49

Figura 4 - A viúva Carolina. Fonte: (XAVIER, 2004, p. 78).

Assim, na fig. 4, o enquadramento é recoberto em um plano americano, de modo que


o uso da cor preta é mais forte que nas outras imagens, pois há a intenção de ressaltar o aspecto
de viuvez da mulher que acabara de perder o marido de forma trágica. Isso é enfatizado pelo
uso de um véu negro, em que nos séculos passados as viúvas utilizavam, além de uma
vestimenta que cobre todo o corpo, para ressaltar a ideia de inocência da mulher diante das
suspeitas do caso, principalmente sobre Miguel ter sido seu amante.
A descrição da mulher perpassa também pelo tópico “cartas de amor”, no qual o
narrador continua caracterizando fisicamente Carolina como “aquela mulher pálida, vestida de
negro, marmórea e impenetrável estátua de beleza” (XAVIER, 2004, p. 80). Diante dos próprios
estudos literários, essa descrição assemelha-se às narrativas presentes no romantismo, em que
as mulheres eram caracterizadas como frágeis, pálidas, belíssimas e marmóreas. Os detalhes da
personagem colocam em uma posição fora de suspeitas, porém alguns dos seus atos podem
condená-la. Porém, a fig. 5, que surge ao fim do tópico do conto evidencia uma suposta ligação
entre ambos:
50

Figura 5 - As cartas. Fonte: (XAVIER, 2004, p. 82).

Conforme visto acima, a fig. 5 é enquadrada em primeiro plano (close-up), focando


nas mãos da personagem, além disso, estão presentes outros objetos, como o relógio,
simbolizando o tempo e o momento exato da ação da personagem tornando mais verídicas as
informações da relação amorosa entre Carolina e o assassino.
Ao escrever uma carta com informações pessoais que apenas diziam respeito a ela e
ao seu marido para uma terceira pessoa, sendo esse um homem que não era seu amigo e nem
familiar, Carolina insere dentro do seu relacionamento esse outro sujeito de forma íntima e
afetuosa enviando-lhe cartas, símbolo de uma relação amorosa. Assim o meio de comunicação
se torna suspeito, pois essa é uma forma discreta de se comunicar, tendo em mente que não é
preciso se encontrar, o que acaba mostrando ser uma preocupação dos dois traidores, pois
ninguém poderia vê-los juntos.
Assim, esse ato se configura como uma traição, e esse enquadramento apenas nas mãos
de Carolina tem o objetivo de confirmar e dar ênfase nesse ato, tornando assim a personagem
culpada, de certa forma, pelo homicído do seu marido, mesmo que indiretamente. Embora a fig.
5 não seja a última imagem a ser posta no conto, pode-se afirmar que ela é o fechamento da
narrativa, pois é primordial para o desvendamento do assassinato de Elias.
51

Considerações finais

Diante dessas ilustrações, é nítido que, dado o contexto do conto ter como base um
acontecimento retirado do mundo real, as imagens contribuem para criar a impressão da
realidade contida na narrativa. Para isso, volta-se a noção de espectador para enfatizar o real,
visto que a o conto traz uma influência de um acontecimento verídico, Valêncio Xavier utiliza-
se da imagem para aguçar no leitor a ideia de que aquilo foi real e existiu, embora existam ali
traços e modificações da própria escrita literária.
O homicídio é retratado através da estética preto e branco, que perdurou nos cinemas
por vários anos. Essa configuração de escolha de cores se mistura aos arquétipos de suspense
criados pela narrativa visual e verbal, construindo uma sequência de recortes que atuam como
um processo de investigação do homicídio, uma vez que a solução de um crime parte de
reviravoltas no caso.
Assim, a partir das leituras do conto juntamente às ilustrações, foi possível entender
que as técnicas da linguagem cinematográfica são evidenciadas a partir do uso de imagens que
se unem à narrativa verbal, fazendo com que, assim, a construção do conto tenha uma totalidade
de sentido uníssono, uma vez que o texto verbal e a imagem não se separam, mas se
complementam no conto.

Referências

ALVES, Allan Luiz Ramos. Valêncio Xavier, o Frankenstein de Curitiba: rastros e formas
da violência no Brasil. 2017. 121 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
GUALDA, Linda Catarina. Literatura e Cinema: elo e confronto. Matrizes, v. 3, n. 2, p. 201-
220, 2010.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
MOURÃO, Maria Dora G. A montagem cinematográfica como ato criativo. Significação:
revista de cultura audiovisual, São Paulo, v. 33, n. 25, p. 229-250, 2006.
NEVES, Lígia de Amorim. Um estudo sobre a escrita literária de Valêncio Xavier. Acta
Scientiarum: Human and Social Sciences, Maringá, v. 28, n. 1, p. 37-46, 2006.
XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo:
Paz e Terra, 2015.
XAVIER, Valêncio. Crimes à Moda Antiga: contos verdade. São Paulo: Publifolha, 2004.
52

MULHERES NA COLONIZAÇÃO BRASILEIRA: UMA REVISITAÇÃO AO


PASSADO PELO PRISMA FEMININO EM ALINA (2017), DE EMILIA LIMA, UM
ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO DE MEDIAÇÃO

Beatrice Uber
Gilmei Francisco Fleck

Considerações iniciais: história e literatura

A história da colonização brasileira foi, amplamente, difundida pelo viés


eurofalocêntrico – homens brancos, cristãos e detentores do poder – enquanto o ponto de vista
feminino permaneceu à margem, inferiorizado e desqualificado. Embora a força masculina se
fizesse necessária para o desbravamento do Novo Mundo, a feminina também foi de grande
valor e, por isso, muitas moças acompanharam suas famílias numa nova aventura e etapa de
desenvolvimento colonial. Isso passou a ocorrer nos meados e final do século XVI, por
exemplo, com a divisão das capitanias hereditárias que foi baseado no sistema de sesmaria
português. Nesse modelo, os reis portugueses cediam terrenos para serem cultivados em troca
de tributos.
A literatura quebrou barreiras disciplinares e transferiu muitos temas da área histórica
para seu campo artístico com o intuito de reler, revisitar e reconfigurar narrativas que foram
apresentadas perante o prisma da cultura patriarcal. Assim, aquele discurso considerado o único
correto tem sua estrutura de poder abalado e novas formas de apresentar um evento são
divulgadas pela arte literária.
Ao tentar definir os termos história e literatura, Pesavento (1999) considera que a
história tem o compromisso de se identificar com o real e com a verdade de um acontecimento,
apresentando um narrador que permeia aquilo que viu e ouviu falar, mas que a ficção surge
como uma possibilidade ou ato de se colocar no lugar de alguém ou alguma coisa e ofertar uma
imagem do real, permitindo que seu público consiga imaginar aquilo que se está narrando.
Os romances híbridos de história e ficção, por exemplo, são obras que mesclam fatos
históricos aos fictícios, transformam figuras históricas em personagens fictícios e recriam
eventos de grande importância para a coletividade humana. Conforme o passar dos tempos, esse
tipo de construção romanesca também se transformou e novas fases e modalidades surgiram.
Em relação a isso, Fleck (2017) divide as expressões do romance histórico em três
fases. A primeira fase é considerada acrítica e engloba duas modalidades, que se fazem
presentes nos períodos literários românticos, realistas e pós-modernistas. Essas modalidades
53

recebem os nomes de romance histórico clássico scottiano, cujas produções ocorreram de 1814
até meados do século XX, e de romance histórico tradicional, cujas obras sucederam de 1826
até os dias atuais.
A segunda fase é a crítica/desconstrucionista e engloba duas modalidades, que
integraram o boom da América Latina. Essas modalidades foram nomeadas como novo
romance histórico latino-americano, cujas obras se fizeram presentes desde 1949 até os dias
atuais, e metaficção historiográfica, que foi produzida na pós-modernidade e segue ativa.
A terceira e última fase é a mediadora e vigente pós-boom da literatura latino-
americana. Ela apresenta uma única modalidade e é chamada de romance histórico
contemporâneo de mediação e sua produção foi desencadeada no final da década de 1970 e
início de 1980, fazendo-se presente até os dias atuais. Essa modalidade é, amplamente, estudada
por Fleck (2017).
Os romances históricos brasileiros, por exemplo, ganham cada vez mais destaque e
carregam consigo diferentes temas, personagens e releituras. No quesito de autoria feminina
atentamos para o fato de que a voz da mulher começa a ter mais visibilidade na temática da
colonização brasileira perante a ficção. A autora Emilia Lima, por exemplo, dedicou-se a
escrever uma trilogia sobre as mulheres da família Cirilo Lima na literatura brasileira e todas
as suas obras receberam o nome dessas personagens fictícias: Alina (2017), Ágata (2018) e
Dandara (s/d). Todas essas mulheres são personagens puramente fictícias e são lapidadas a
partir da imaginação estética da autora.
No primeiro volume, Alina (LIMA, 2017), a autora apresenta uma narradora que
decide contar a história da tataravó da sua bisavó, que atua como protagonista do romance, a
Alina – uma personagem puramente fictícia que aos doze anos de idade veio com sua família
morar na colônia brasileira, na cidade de São Salvador, na Bahia, por volta de 1580, porque sua
família havia herdado uma grande sesmaria do Rei português Felipe I, uma personagem de
extração histórica. O termo extração histórica foi inicialmente proposto por Trouche (2006, p.
44) para indicar referência ao “conjunto de narrativas que encetam o diálogo com a história,
como forma de produção de saber e como intervenção transgressora [...].” Todavia, esse termo
também pode ser usado para fazer referência àquelas personagens que fizeram parte da história
oficial.
Além da protagonista, Alina, há também outras personagens femininas que
compartilham das ações dentro da obra, como: dona Iraildes Zélia Cirilo Lima, a mãe de Alina;
as irmãs Clara, de caráter humilde, e Ágata, de caráter difícil; Dandara – filha de Alina; e dona
Ana, uma nativa que mesmo após ter recebido um nome cristão não abandona sua crença.
54

Uma vez que o cânone, geralmente, de autoria masculina, se sustenta por si e não há
a necessidade de mencionar tal termo, acreditamos na necessidade da divulgação de obras de
autoria feminina para que possa haver uma maior exposição de suas autoras e suas temáticas.
Conforme os apontamentos de Zolin (2009, p. 327) acerca desse ponto, “muitos historiadores
literários começaram a resgatar e a reinterpretar a produção literária de autoria feminina, numa
atitude de historização que se constituiu como resistência à ideologia que historicamente vinha
regulando o saber sobre a literatura.” Consequentemente, prismas considerados únicos e
discursos velados são desestabilizados e, mulheres, outrora relegadas à condição de
inferioridade e depreciadas em seu discurso, redefinem seus valores.

Ressignificação da colonização brasileira: o prisma de personagens femininas

A voz narrativa da obra Alina (2017) inicia seus relatos dizendo “Vou contar a história
da vida de Alina, tataravó da minha bisavó, ou quem sabe, mais longe ainda, uma das pessoas
mais fantásticas de quem eu já ouvi falar. [Ela] era impetuosa quando almejava algo: sobretudo
metódica e teimosa [...].” (LIMA, 2017, p. 11) e, nessa introdução, ela também apresenta a
família: o pai, Luiz Felipe Cirilo Lima; a mãe, dona Iraildes Zélia Cirilo Lima; os irmãos – Luiz
Felipe Segundo, de vinte e dois anos, e Miguel, de dezenove anos; Clara, a irmã mais velha, de
vinte anos; e Ágata, a irmã do meio, de dezesseis anos. Alina, nessa árvore genealógica, é a
irmã mais nova e com doze anos de idade, mas que se torna adulta e madura ao longo dos
eventos fictícios.
A maioria dos acontecimentos ocorre no casarão da família Lima, em São Salvador,
na Fazenda Cirilo Lima, a oitenta quilômetros da cidade de São Salvador, e nas aldeias das
personagens nativas daquela redondeza, que surgem no meio da narrativa para contrastar com
as de origem europeia.
A narradora deixa claro em seus escritos que além da protagonista, Alina, ter vivido
numa época bem distante, o século XVI, e numa sociedade patriarcal, ela “tinha liberdade de ir
e vir, o que não era comum às moças de sua época.” (LIMA, 2017, p. 13). Essa jovem
portuguesa, retratada como uma das tantas moças que acompanhou suas famílias durante a
vinda para o Brasil no início da colonização, não se qualifica como a regra e modelo feminino
instituído, mas como a exceção que vai contra a moral e as boas maneiras que se esperava de
uma mulher naquela época.
Todo o desenvolvimento da narrativa ocorre de maneira linear e caminha de acordo
com os principais eventos históricos, segundo a historiografia tradicional: a chegada da família
55

portuguesa, o estabelecimento de um casarão e uma fazenda, bem como o progresso financeiro.


No romance, a narradora adere a uma linearidade similar, pois menciona a vinda de Alina ao
Brasil, sua paixão pelo advogado Pedro Henrique Garcia – que era casado com Anália –, sua
vida trabalhando ao lado do irmão advogado, Luiz Felipe Segundo, em prol da libertação de
pessoas escravizadas, sua gravidez não planejada, sua relação com as irmãs de caráter diferente
do seu, seu casamento com o nativo Naru e seu reencontro com a família anos depois do
nascimento de seus filhos gêmeos, João e Dandara. Essa linearidade cronológica do romance
se faz presente como uma das características do romance histórico contemporâneo de mediação
apresentado por Fleck (2017).
A obra ficcional Alina (LIMA, 2017) revisita o Brasil colonial do fim do século XVI,
quando sua narrativa tem início no ano de 1580, e transcorre até o início do século XVII. A
pessoa que narra, e que não fornece seu nome, recria como pano de fundo de sua história o
estado da Bahia, em que a cidade de São Salvador era um grande centro em desenvolvimento e
o interior progredia com as sesmarias – um lote de terra ofertado pela Coroa Portuguesa para
um de seus beneficiários, cujo objetivo era o cultivo da área em troca de impostos. O sistema
de sesmaria, antes adotado em Portugal, chega ao Brasil e as capitanias hereditárias se fazem
presentes juntos de seus grandes senhores e famílias que prosperam, como é o caso da família
Cirilo Lima, personagens puramente fictícios. A economia do local desenvolve-se com a
plantação da cana-de-açúcar e a criação de gado, atividades que geravam grande lucro, pois
segundo sua narradora, “Do aclive onde se situava o casarão, avistava-se a plantação de açúcar,
um mundo verde a perder-se de vista [e era] uma verdadeira cidade da produção de açúcar que
abasteceria a Europa.” (LIMA, 2017, p. 17).
Conforme a descrição dessa ambientação, atentamos para o fato de que ocorre a
recriação ficcional de um evento de grande importância para a história brasileira, os primórdios
de sua colonização. Ao associarmos esse ponto narrativo com romance histórico, recorremos
aos estudos de Fleck (2017), que afirma:

A recriação ficcional de um evento empreendida pelo romance histórico


contemporâneo de mediação constituiu-se em uma releitura crítica do passado,
diferentemente das narrativas tradicionais, que ainda seguem, em boa parte, os
parâmetros dos cânones europeus: engrandecer heróis do passado como modelos para
o presente e ensinar história ao leitor. A nova tendência mantém, contudo, o intento
da construção da verossimilhança, em grande medida abandonada pelas narrativas do
novo romance histórico hispano-americano e da metaficção historiográfica, para
conferir um tom de autenticidade aos eventos históricos renarrativizados no romance,
a partir de perspectivas periféricas, ancoradas em narradores-personagens antes vistos
como secundários ou esquecidos pelo discurso historiográfico. (FLECK, 2017, p. 109-
110).
56

Além do espaço recriado, que era “o palco político da maior colônia de Portugal”
(LIMA, 2017, p. 18), a narradora evidencia a escravidão dos negros e mostra que a protagonista,
Alina, era a favor da liberdade e possuía meios para comprar e alforriar escravos que chegava
a causar discórdia entre as outras donas de escravos. Segundo o relato da sua cozinheira, a
personagem Divina: “Que Sinhá causa discórdia entre os escravo delas, pois agora todo
negrinho quer ser livre.” (LIMA, 2017, p. 39 – grifos da autora da obra). Não só essa
personagem feminina descortina a forma preconceituosa como os negros eram vistos pelo povo
português, julgando-se superiores, como ela também deixa claro que Alina se mostrava como
uma mulher além do seu tempo: uma mulher moderna que lutava por igualdade social.
Com ênfase nessa perspectiva – a de uma personagem feminina que vai muito além de
sua época – observamos que o foco da narrativa centra-se sobre uma personagem que era
marginalizada, isto é, uma mulher que tentava reivindicar seus direitos perante a sociedade do
século XVI, conforme é exposto no seguinte trecho “afinal, era mulher, jovem... que voz teria
ela contra todo um sistema?” (LIMA, 2017, p. 21), mas que se deparava com julgamentos e
críticas. Apenas pelo fato de ser do sexo feminino já lhe colocava numa posição de
inferioridade, pois era impossibilitada de ter uma educação formal, como seus irmãos
advogados, e via-se relegada ao casamento e à maternidade.
A respeito desses tipos de personagens marginalizados, Fleck (2017, p. 110) afirma
que “o foco narrativo dos romances históricos contemporâneos de mediação comparte dos
propósitos da nova história de evidenciar perspectivas ‘vistas de baixo’ (SHARPE,1992), pois
privilegia visões a partir das margens, sem centrar-se nas grandes personagens da história [...].”
Não é apenas o prisma e as ações da protagonista que são evidenciados em Alina (LIMA, 2017),
mas de outras personagens retratadas também ao longo desse romance e que poderiam ter tido
seus feitos apresentados à colonização brasileira caso não tivessem sido silenciadas pela
imposição de uma cultura, puramente, masculina e dominante.
Embora a sociedade patriarcal do século XVI impusesse e delimitasse essa condição
do lar, de mãe e de subalternidade para a mulher, a protagonista do romance buscava não agir
dessa forma porque já trabalhava auxiliando o irmão mais velho no escritório de advocacia e,
logo de início, após reconhecer sua paixão impossível pelo advogado português Pedro Henrique
Garcia, personagem fictício e casado, ela não aceita outras propostas casamenteiras, como a de
Augusto Albuquerque, pois sabe da impossibilidade de um homem aceitar uma mulher
independente, como temos no seguinte excerto: “Que homem em pleno século XVI aceitaria
que sua mulher trabalhasse fora?” (LIMA, 2017, p. 25) e, por fim, ela exclama “Não! Mil vezes
não! Não me casarei por conveniência – disse para si resoluta.” (LIMA, 2017, p. 25).
57

A personagem Alina refuta a ideia do casamento por imposição e convenção social e


discorda dos conceitos instituídos, que foram explicados por Del Priore (1992, p. 20), “o
casamento como elemento de equilíbrio social, e dentro dele, a ausência de paixões, a
obediência e a subordinação da mulher.”
Acerca dessa identidade feminina, a personagem Alina se mostra, conforme Hall
([1992] 2011, p. 7), dona de uma identidade descentrada e deslocada, visto que “as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades [...] até aqui visto como um sujeito unificado.” Insatisfeita com a
realidade de sua época, ela se mostra emancipada porque não se rebaixa ao sistema estabelecido
e conta com o suporte – tanto financeiro como moral – de seu pai para ser e agir assim. O pai
consegue deixar a essa jovem uma herança significativa, libertando-a do peso do casamento
para ser vista com respeito e independência.
Ao atentar para a necessidade do casamento como uma característica essencial para o
sexo feminino, Wollstonecraft ([1792] 2016, p. 86) afirma que, “para elevar-se no mundo e ter
a liberdade de correr de um prazer a outro, elas devem casar-se vantajosamente, e a esse objetivo
seu tempo é sacrificado, e sua pessoa, com frequência, prostituída legalmente.” Embora essa
característica não seja observada por Alina, é considerada pela irmã do meio da protagonista, a
personagem Ágata, que gostava de bailes, vestidos e viagens e se encontrava insatisfeita na
colônia brasileira. Seu objetivo é claro: “casar com um nobre rico e voltar para a Europa.”
(LIMA, 2017, p. 14). Dona de um caráter difícil e com uma agilidade imensa para enganar as
pessoas, ela se casa com um conde português mais velho e aceita a oportunidade de regressar à
vida considerada então como civilizada. Não pensa em agir de forma independente como sua
irmã Alina, mas apenas para seu bel-prazer.
Outra personagem feminina fictícia é Clara, irmã mais velha de Alina, que se
desenvolve como uma figura tradicional feminina do século XVI. Ela se casa com a personagem
Francisco, também ficcional, e reside numa fazenda que se localiza mais ao sul da Capitania da
Bahia. De uma conduta dócil e obediente, ela é o modelo esperado da elite portuguesa: dona de
casa, com empregados servindo-lhe e sem conhecimento político e financeiro do mundo.
Preocupada com seus afazeres da fazenda e entretendo a irmã, Alina, que veio lhe visitar antes
de regressar à Europa para tentar colocar um fim ao seu amor por Pedro e fugir do seu erro –
ter se entregado ao jovem rapaz casado e infringido a lei da virgindade, que esperava de uma
mulher – Clara, nada sabe das mudanças corporais da irmã que abriga em sua casa, como
observamos no seguinte trecho:
58

Alina já se encontrava com mais de três meses de gravidez. As negras da fazenda já


estavam desconfiadas, mas Clara, [...] não tinha se dado conta de que as regras da irmã
não vinham mais... até que uma das negrinhas que trabalhavam na cozinha falou:
__Dona Clara, a senhora não tem reparado nas mudanças no corpo da sinhazinha
Alina? Eu acho que ela está grávida.
Clara sobressaltou-se e ralhou com a negrinha:
__Isso é impossível, Jacira. Onde já se viu engravidar de ninguém. Cuida da tua vida
– respondeu a patroa. (LIMA, 2017, p. 67).

A figura de Clara atua conforme a ideologia normativa da época, que segundo Del
Priore (1992), importava-se da metrópole um discurso moralizador sobre o uso dos corpos
femininos relacionados com o desejo de cristianizar as pessoas e com a difusão da fé católica.
Com esse grupo de ideias, adestrava-se a sexualidade feminina por meio de imposição de regras
que solapavam alguma possível forma de conhecimento da mulher. No decorrer da narrativa,
observamos que Clara sente uma parcela de ciúmes da irmã – a filha preferida e protegida do
pai, Luiz Felipe Cirilo Lima – contudo, não toma atitude alguma e permanece com seu papel
de mulher obediente ao pai e ao marido e, principalmente, recatada.
Dona Zélia, a mãe de Clara, Ágata e Alina, age como uma figura materna de família
tradicional. Cumpriu seu papel de gerar e criar filhos e tem pouca atuação ao longo da narrativa.
Mostra-se preocupada com o desaparecimento de Alina, após seu envolvimento com um
homem casado, e adoece por não ter conhecimento do paradeiro de sua filha. As personagens
femininas brancas da diegese romanesca possuem o direito de adoecer dos nervos e permanecer
acamadas enquanto as mulheres negras e nativas do romance não detém essa prerrogativa e
continuam com suas atividades trabalhistas normalmente para que tudo mais continue com seu
funcionamento rotineiro.
Nesse ponto, introduzimos em Alina (LIMA, 2017), a personagem dona Ana, uma
mulher nativa da região que adotou o nome Ana após seu batismo católico. Desde cedo ela toma
um apreço sem fim pela protagonista, Alina, e enxerga nos olhos da menina sua bondade e,
principalmente, sua gravidez, fruto de uma única noite amorosa com Pedro. Com o objetivo de
regressar ao Velho Mundo, em específico o país Portugal, e voltar apenas após o término da
gravidez dizendo que tinha adotado a criança, Alina muda totalmente seu destino e se isola da
colônia brasileira indo viver numa aldeia de nativos: “Desejo conhecer uma tribo indígena,
mudar de ares.” (LIMA, 2017, p. 56). Ao colocar esse plano em prática, a protagonista viola
novamente as regras da sociedade colonial brasileira do século XVI e inverte o costume de fazer
o povo nativo se juntar ao europeu, pois é ela quem vai viver ao lado daquele povo considerado
então não civilizado.
Essa personagem nativa, dona Ana, contrasta com as demais personagens brancas
deixando claro as diferenças de costumes e crenças entre os dois povos, como observamos no
59

seguinte excerto em que aborda algumas das desigualdades sobre casamento, ter filho e o
conceito de honra dentro dos costumes da comunidade nativa:

A idosa, entretanto, acalmou-a e começou a contar como os índios viviam. Eles não
precisavam se casar para ter filhos ou dividirem a mesma oca.
__ Não precisam? E a lei de Deus e dos homens?
__ Nada disso é necessário. Só querer – respondeu a índia. (LIMA, 2017, p. 56).

Com o prosseguimento das ações do romance, a nativa dona Ana também evidencia
como o povo português precisava dos seus conhecimentos sobre o corpo humano, mas que era
tão negligenciado que “carente de profissionais, desprovido de cirurgiões, pobre de boticas e
boticários, Portugal naufragava em obscurantismo, e levava a colônia junto.” (DEL PRIORE,
2011, p. 80). Ela era procurada por todos que enfrentavam alguma mazela física e trazia cura e
paz aos enfermos com seus remédios caseiros, fossem eles nativos ou portugueses.
Além de ter ofertado suporte moral para Alina, a personagem dona Ana agiu igual a
uma mãe para a protagonista e esteve ao seu lado nos momentos mais difíceis, como durante a
sua gravidez e seu trabalho de parto, e nos mais alegres, por exemplo, seu casamento com o
nativo Naru. Enquanto Alina escondia sua gravidez do mundo dos brancos, causando também
um desespero em sua família que a considerava morta, ela se casou com o jovem nativo
chamado Naru, “mestiço, na verdade, já que era filho de pai português e mãe índia daquela
aldeia –, de 20 anos” (LIMA, 2017, p. 71).
Essa união matrimonial não contou com a benção de um padre católico. Alina,
personagem destemida, julgou melhor se casar à moda dos nativos já que eles foram o povo
que a acolheu e não criticaram sua gravidez fora da união matrimonial. Naru, antes mesmo de
se casar, cuidava de Alina como se fosse sua esposa e, inclusive, construiu berços para os
gêmeos de sua esposa. As crianças de Alina receberam os nomes de João, em homenagem ao
pai de Pedro, o pai biológico, e Dandara, em homenagem ao povo nativo. A jovem menina e
filha de Alina, Dandara, era uma cópia da mãe em suas ideias e, desde jovem, enxergava a vida
sofrida dos escravos e os abusos para com esses. Não se deixava deslumbrar pelo mundo
europeu e enxergava uma igualdade social que, infelizmente, não ocorria além de seu olhar:
“Não entendia por que brancos e negros tinham que ser tratados de formas distintas. Criada por
um mestiço, a menina tinha uma mente libertária.” (LIMA, 2017, p. 112). A criança configurada
como Dandara representa a força do renascimento de personagens femininas e uma tentativa de
apresentar visões mais inovadoras acerca da servidão forçada dos nativos e escravos negros que
se fazem presentes ao longo do romance.
60

Segundo a narradora da obra, “a tribo de Naru era colonizada há muitos anos e aceitava
os sacramentos da Igreja Católica, portanto os batizados [de João e Dandara] foram realizados
por um padre. Naru e Alina, porém, optaram pelo casamento convencional indígena [...].”
(LIMA, 2017, p. 100). Embora a protagonista tenha feito a escolha de um batismo dos filhos à
moda europeia cristã, observamos um grande envolvimento de sua parte para com os habitantes
nativos. Todavia, também atentamos para o fato de que há um entrelaçamento maior dos nativos
para com o povo português, fato que denominamos como transculturação. Esse processo de
transculturação, conforme apontado por Rama (2008), pode ser aplicado em obras literárias,
mas devendo ser pensado a partir de três pontos:

Implica en primer término una “parcial desculturación” que puede alcanzar diversos
grados y afectar variadas zonas tanto de la cultura como del ejercicio literario,
aunque acarreando siempre pérdida de componentes considerados obsoletos. En
segundo término implica incorporaciones procedentes de la cultura externa y en
tercero un esfuerzo de recomposición manejando los elementos supervivientes de la
cultura originaria y los que vienen de fuera.22 (RAMA, 2008, p. 45).

A relação das personagens Alina e Naru mostra que a transculturação ocorre em ambas
etnias, contudo, a mais forte se sobressai. Nesse caso, é a cultura dos portugueses que se impõe
sobre a dos nativos, conforme o seguinte trecho:

Desde que Alina fora morar na aldeia, tudo mudara. Com seu jeito doce, mas
determinado, ela disseminava seus valores em meio à tribo. Nada impunha, mas sua
liderança e coragem natural formavam seguidores. Os índios, principalmente os
homens, não se sentiam mais à vontade andando seminus. Aos poucos aderiram às
roupas que a jovem costurava. (LIMA, 2017, p. 80).

O desenvolvimento da protagonista Alina passa por diferentes fases ao longo do


romance. Uma fase de rebeldia e contra o sistema patriarcal. Outra, de fuga dos seus
sentimentos e o acolhimento pela cultura nativa. Todavia, não consegue se distanciar totalmente
dos seus hábitos de origem e, mesmo tendo em vista outros conceitos de formação de sociedade
e comunidade, ainda parece estar bastante conectada a sua base de conhecimento de mundo.
Todas as figuras femininas representadas no romance – Alina, Ágata, Clara, dona
Zélia, dona Ana e Dandara – tem sua função na diegese. Algumas com ações e percepções mais
tradicionais perante os acontecimentos e outras mais críticas e revolucionárias em relação ao

22
Implica, em primeira instância, numa "parcial desculturaçao" que pode chegar a diversos níveis e afetar áreas
variadas, tanto da cultura como do fazer literário, ainda que acarretando sempre numa perda de componentes
considerados obsoletos. Em segunda instância, implica em incorporações procedentes da cultura externa e, em
terceira instância, num esforço de recomposição, administrando os elementos sobreviventes da cultura originária
e aqueles que vêm de fora.
61

que se era esperado de uma mulher no século XVI. Lima (2017) consegue apresentar em sua
narrativa personagens distintas e com caráter variados com a intenção de mostrar não apenas
os modelos tradicionais de personagem, mas que os considerados excepcionais – mulheres
depreciadas em suas ações e discursos – também se fizeram presentes durante o processo de
colonização brasileiro.
Zolin (2009), com base nas pesquisas de Showalter (1985) sobre a literatura de autoria
feminina, elenca três fases em que as autoras mostram personagens femininas inseridas em
diferentes contextos, temáticas e capazes de desenvolver distintas percepções. A primeira delas
é a fase feminina em que as personagens evidenciam uma “imitação e internalização dos valores
e padrões vigentes” (ZOLIN, 2009, p. 330) da época. A segunda é a fase feminista em que
ocorre um “protesto contra os valores e os padrões vigentes [e] defesa dos direitos e dos valores
das minorias” (ZOLIN, 2009, p. 330). A terceira e a última fase, a fêmea ou mulher, ocorre um
processo de autodescoberta surgindo então a “busca de identidade própria” (ZOLIN, 2009, p.
330).
A protagonista Alina transita, de forma desordenada, pelas três fases da literatura de
autoria feminina ao longo da evolução do romance. Primeiro, ela representa a difusão da cultura
patriarcal e internaliza os costumes ao negar a paixão pela personagem fictícia Pedro, um
homem casado, e tenta retornar para Portugal. Nesse momento, sua visão é de obedecer às
regras da sociedade do século XVI e, assim, delimita a fase feminina. Depois, ela luta contra o
sistema de escravidão dos negros e nativos, incutindo as mesmas ideias em sua filha, Dandara.
Essa é a fase feminista. Por último, a fase de autodescoberta, a fase fêmea ou mulher, em que
reconhece o fato de homem algum aprovar uma mulher trabalhar fora, mas que ela tampouco
se renderá ao casamento por conveniência e escolhe não aceitar proposta casamenteira alguma,
porém persiste na ideia de trabalhar com seu irmão advogado e ser independente.
Todos os eventos da narrativa Alina (2017) são expostos por meio de uma linguagem
amena e fluída, característica também do romance histórico contemporâneo de mediação “que
prima pelo emprego de uma linguagem simples do uso cotidiano” (FLECK, 2017, p. 110). Não
são apenas os diálogos de ordem direta que mostram isso, mas também os termos usados pela
narradora, como “a nossa heroína, a rapa do tacho” (LIMA, 2017, p. 14 – grifos da autora) e
“Pedro ficou para trás, sozinho, com um ex-padre que tremia feito vara verde” (LIMA, 2017,
p. 170). Os termos rapa do tacho e vara verde fazem parte de um linguajar mais atualizado e
moderno que aquele do século XVI.
Ao direcionar nossa análise para o fim da narrativa, mostramos que alguns anos se
passaram e, já em 1591, Alina regressa à fazenda Cirilo Lima para rever sua família, pois recebe
62

notícias que sua mãe se encontra muito doente. Nesse ponto, ela e o marido passam a interagir
com a cultura europeia novamente e deixam de lado o modo de vida dos habitantes nativos.
Naru, personagem fictícia, trabalha com o sogro na criação de gado, atividade também lucrativa
como a produção açucareira. Em uma de suas viagens, para comprar mais uma remessa bovina,
ele é ferido, mas é salvo por Pedro Henrique Garcia, o grande amor de Alina, que após anos
vivendo em Portugal e já viúvo, havia decidido regressar e reencontrar sua amada. Ambos
rapazes percebem quem são um na vida do outro e reconhecem que precisam lutar pelo amor
de Alina, a protagonista da obra.
No último capítulo da diegese, Naru vem a óbito, deixando em aberto a possibilidade
de que Alina e Pedro se reencontrem e vivam juntos, o que realmente toma forma no romance.
Mesmo que Pedro tenha conhecimento de que os gêmeos são seus filhos biológicos, ele e Alina
decidem criá-los como filhos de Naru, não com objetivo de esconder a mentira de uma gravidez
fora do laço matrimonial como foi a de Alina, mas para honrar o homem nativo que serviu
como modelo de pai honesto e virtuoso e que acolheu Alina em seus cuidados quando essa mais
precisou.
A autora de Alina (LIMA, 2017) insere em meio ao seu texto revisionista de linguagem
coloquial um trecho adaptado da obra Jane Eyre, de Charlote Brontë ([1847] 2010), para fazer
referência à transformação da personagem Ágata, irmã do meio da protagonista. O excerto
“muitas ervas inodoras só exalam perfume quando pisadas” (LIMA, 2017, p. 144) indica que
ocorre intertextualidade, isto é, “a presença de um texto em outro texto” (SAMOYAULT, 2008,
p. 9) e mostra como essa personagem passa de uma figura arrogante para a de uma moça
domada pela paixão de um homem que a despreza. Ela incorpora outra forma de ser e pede
perdão à irmã pelo caso amoroso que havia desenvolvido com o advogado Pedro, paixão de sua
irmã, enquanto residia em Portugal com seu marido. Ocorre, dessa maneira, um retorno à
personagem feminina submissa que deveria ter sido perante os padrões da época.
Outro exemplo é a dialogia – termo utilizado para mostrar como os elementos de uma
estrutura romanesca podem se encontrar em oposição como contraponto (BAKHTIN, 2010) –
existente entre os dois principais povos que tomam conta da obra ficcional. O povo português
tenta controlar o povo nativo por meio de sua ideologia e ocorre, dessa forma, o choque de
culturas e pontos de vistas. Tal contexto pode ser observado quando a personagem Pedro
encontra em Portugal um ex-padre que relata sua relação amorosa com a nativa Teçá em terras
brasileiras. Por coincidência, essa mulher é mãe de Naru, o marido de Alina. A figura
representada pelo padre reconhece os atos injustos do povo português sobre o povo nativo e
exemplifica momentos de imposição de crenças diferentes, como, “os índios tinham suas
63

próprias regras sociais, com deveres e direitos muito claros, mas nós não os reconhecemos e
muito menos os respeitamos.” (LIMA, 2017, p. 157). Um pouco adiante ele anuncia:

Como fui idiota! Hoje vejo que eram ótimas regras, pois as índias eram boas mães,
tomavam conta das crianças. O problema é que nós éramos ignorantes, por assim
dizer, do ponto de vista dos costumes deles. Eu não estava acostumado a nada daquilo,
não compreendia aquelas normas e pretendia impor meus próprios padrões de conduta
no lugar dos que existiam na tribo. (LIMA, 2017, p. 157).

Consequentemente, a intertextualidade e a dialogia indicam outra característica do


romance histórico contemporâneo de mediação (FLECK, 2017) onde os recursos escriturais
bakhtinianos se fazem presentes em detrimento de recursos desconstrutivos como a
carnavalização, ironia, multiperspectivismo e anacronias exageradas.
Por meio do amalgamento dos gêneros romance histórico e autoria feminina
compreendemos que essas áreas se unem para ampliar a possibilidade de construção de
identidade no imaginário da colonização brasileira. Segundo XAVIER (1991), o discurso
feminino traz a consciência da situação da mulher e “o resgate da memória é um dos caminhos
para o autoconhecimento; a volta às origens, através do tempo passado, faz parte da busca da
identidade, pulverizada em diferentes papéis sociais.” (XAVIER, 1991, p. 13). Assim sendo, a
personagem Alina, protagonista do romance em estudo, tem sua trajetória recontada e sua
identidade é reconstruída como sujeito de suas ações e não mais objeto de desejo e de
manipulação da cultura patriarcal e sociedade vigente da época em que vivia.

Considerações finais

A releitura da colonização brasileira do século XVI, elaborada em Alina (2017),


integra no campo literário a experiência da mulher ao trazer personagens femininas que foram,
por muito tempo, deixadas a margem e oferta um novo modelo de reinterpretação desse evento.
Logo, as obras de autoria feminina mostram que as mulheres têm a chance de refazer a literatura
do passado a partir de sua própria percepção, deixando de serem sujeitos julgados e
inferiorizados. Conforme Lima Duarte (1987), a ênfase sobre a mulher em suas diversas áreas
retira a mulher de sua inferioridade natural, consegue resgatar suas histórias, reivindica sua
condição de sujeito e revê, criticamente, aquilo que foi difundido pela figura masculina.
Tal propósito também é colocado em prática pelo romance histórico contemporâneo
de mediação (FLECK, 2017), que torna visível outras formas de ressignificar o passado por
meio de personagens que exemplificam a história “vista de baixo” (SHARPE, [1992] 2011), e
64

que foram relegadas a uma situação de inferioridade, como as mulheres. Assim sendo, a
literatura, por sua liberdade estética e diversas temáticas, consegue promover a leitura como
uma via de descolonização e oferta novas concepções revitalizando narrativas outrora
consolidadas e despertando um novo olhar.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 2010.
BRONTË, Charlote. Jane Eyre. São Paulo: Editora Landmark, 2010.
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 3 ed. São Paulo: Contexto, 1992.
_____. Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História
das mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2011, p. 78-114.
FLECK, Gilmei Francisco. O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a
tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção. Curitiba: CRV,
2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 11
ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
LIMA DUARTE, Constância. Literatura feminina e crítica literária. Rio de Janeiro:
ANPOLL – II Encontro Nacional, 1987. (Comunicação oral).
LIMA, Emilia. Alina. Domingos Martins, ES: Pedrazul Editora, 2017.
_____. Ágata. Domingos Martins, ES: Pedrazul Editora, 2018.
_____. Dandara. [S.I.: s.n.], [s/d].
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura.
Anais do XX Simpósio Nacional de História – ANPUH, Florianópolis, SC, p. 819-831, jul.
1999.
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. 2 ed. Buenos Aires: El
Andariego, 2008.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo
&Rothschild, 2008.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 2011, p. 39-64.
SHOWALTER, Elaine. A literature of their own. New Jersey: Princeton UP, 1985.
TROUCHE, Andre. América: história e ficção. Niterói: EdUff, 2006.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos da Mulher. Trad. Ivania Pocinho
Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
65

XAVIER, Elódia. Reflexões sobre a narrativa de autoria feminina. In: XAVIER, E. (Org.).
Tudo no feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco
Alves Editora, 1991, p. 9-16.
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. (Org.).
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ed. rev. e ampl.
Maringá: Eduem, 2009. p. 327-336.
66

RELAÇÕES ENTRE A LITERATURA E AS SEMIÓTICAS: ESTRATÉGIAS DE


LEITURA A PARTIR DA OBRA “FÁBULAS” DE MONTEIRO LOBATO

Andreia Monic Viana dos Santos


Valéria Cordeiro Oliveira

Introdução

A literatura, de um modo geral, pode se apresentar de diversas formas. Quando lemos


uma história, por exemplo, construímos através da imaginação um mundo de fatos e
acontecimentos, impossíveis aos olhos humanos, inverossímeis. Provavelmente, isso aconteça
por ser inato ao indivíduo a capacidade de criar e (re) formular concepções que se amoldem às
nossas interpretações de mundo, de quem somos no mundo o qual pertencemos. Nesta ótica, a
estas interpretações podemos chamar de processo de arte/vida, ou seja, a interação entre a
linguagem do gênero literário e o desenvolvimento cognitivo para a formação do indivíduo.
Partindo deste princípio, convém evidenciar que historicamente a literatura infantil
surgiu na Europa em meados do século XVII com a intenção de contribuir na formação moral
e social das crianças. Consequentemente, no século XIX, as crianças começaram a ter maior
visibilidade e por este aspecto, as produções literárias da época voltaram-se para as
necessidades e o desenvolvimento da infância. Já no século XX, com a valorização dos livros,
surge Monteiro Lobato com as histórias do “Sítio do Pica-pau Amarelo” as quais misturam a
realidade e a fantasia a partir de uma linguagem mais informal e acessível.
Neste contexto, com o passar do tempo e os avanços tecnológicos, e a necessidade de
investimento em educação para crianças, jovens e adultos, as escolas começaram a enfrentar
barreiras no âmbito educacional no que se refere ao ensino e práticas que evitassem o
distanciamento do aluno em relação a leitura.
Diante do atual cenário da educação brasileira, o incentivo ao ensino da leitura é de
fundamental importância, tendo em vista que a leitura envolve um processo dialógico, no qual
crianças, adolescentes, jovens e adultos interagem com o texto para compreendê-lo. Todavia,
entendemos que o texto é uma unidade de sentido em que suas partes conversam entre si de
modo coeso, fios que tecem uma trama e contam uma história, e, por isso, é preciso entender
como o texto mostra sua forma e o que mostra. Dentro desse contexto, os gêneros discursivos
continuam sendo excelentes ferramentas de incentivo as práticas de leitura e letramento
literário.
Neste aspecto, a semiótica age como principal objeto a produção de sentido, o que
67

subentende que sua abordagem não se resume apenas à descrição da transmissão de um dado
conteúdo, mas, se relaciona primeiramente ao processo de significação. Este trabalho propõe a
análise semiótica a partir do gênero discursivo de histórias em quadrinhos tendo em vista o uso
da imagem como código de significação para a produção de sentido.
Assim, o presente artigo partiu do interesse em refletir e identificar as relações que
permeiam a literatura com formação do sentido, tendo em vista a dificuldade dos alunos quanto
a compreensão e principalmente a permanência pela prática da leitura. Para tanto, de forma
geral, a elaboração deste trabalho tem como objetivo propor estratégias de leitura usando como
ponto de referência textos infanto-juvenis de Monteiro Lobato, mais especificamente a obra
“Fábulas” e sua adaptação em História em Quadrinhos por Miguel Mendes pela Editora Globo
Livros. Este se caracteriza como um texto sincrético, ou seja, utiliza diferentes linguagens para
construção de sentido.
Como objetivo específico este trabalho propõe a) refletir sobre a relação de linguagem,
língua e ensino para a educação; b) identificar os parâmetros de letramento literário a partir da
perspectiva da semiótica; c) propor estratégias que agreguem valor ao incentivo da leitura
partindo do gênero história em quadrinhos. Para tanto, serão utilizados como metodologia, uma
abordagem qualitativa referenciada a partir de instrumentos bibliográficos, plataformas digitais,
revistas eletrônicas, livros e documentos disponíveis em bibliotecas digitais que ratifiquem a
proposta deste artigo.

Linguagem, língua e ensino: uma relação indissociável.

A variedade dos gêneros linguísticos molda nossa fala e nossa escrita do mesmo modo
que a gramática organiza as formas linguísticas (BAKHTIN, 2011). Nesse sentido, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) apontam que o domínio de uma linguagem
que se relaciona diretamente com a perspectiva de ampla atuação social, sendo através dela o
acesso do indivíduo com a informação e o conhecimento. Este, por sua vez expõe e defende
pontos de vistas, compartilha e reflete sobre o mundo. Os PCN’s aduzem ainda que o domínio
da linguagem, escrita ou falada, promove a criação e construção de novos saberes, princípios,
experiências que levam o indivíduo ao conhecimento.
Como ponto de partida, podemos afirmar que a linguagem é um conjunto de signos
que possibilita o indivíduo dar sentido ao mundo e a realidade em que está inserido. Portanto,
68

conhecer modus operandi23 da linguagem não se reduz apenas em aprender as palavras, mas
antes seus significados culturais e, por eles, os modos através dos quais os indivíduos em
conjunto apreendem e interpretam a realidade de si mesmos. (BRASIL, 1997).
Nesta ótica, tendo em vista que a linguagem vai além de uma dimensão comunicativa,
Bakhtin (2011) aduz que não nos expressamos no vazio, nem produzimos enunciados além das
múltiplas e variadas esferas do fazer humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) terão a
todo o momento um conteúdo temático, uma organização composicional e estilos próprios, que
estarão unidos às condições de produção e às finalidades distintivas de cada esfera de atividade.
Segundo o professor Luiz Carlos Travaglia (2009), a respeito das práticas do professor
de língua materna em sala de aula, a concepção de língua e de linguagem do professor
transforma o modo de organização do ensino no ambiente escolar. O autor aponta três formas
de conceber a linguagem: linguagem como expressão do pensamento; como instrumento de
comunicação e mais recentemente, como interação entre os indivíduos.
A linguagem como expressão do pensamento partilha da visão de que a língua é
monologa, individual, ou seja, é ensinada a partir da análise de partes, tal qual palavras isoladas.
Partir desta visão implica erroneamente crer que o indivíduo que não se expressa corretamente,
não pensa. Este conceito parte da diferenciação do “certo” e “errado, uma vez que o que não
corresponde às regras gramaticais considera-se incorreto.
Assim, na concepção da linguagem como instrumento comunicativo, o contexto de
língua se distancia tendo em vista a base na teoria estruturalista. Travaglia (2009, p. 22) infere
que a língua é um código que precisa ser aprendido pelos falantes para que haja comunicação
a fim de que a mensagem possa ser transmitida efetivamente de um emissor (falante) para um
receptor (ouvinte).
Como premissa para o ensino, este princípio em relação a língua pouco modifica a
concepção de linguagem. Em um contexto educacional, os currículos escolares priorizam, em
geral, o ensino da gramática ao ensino de leitura. As aulas de Língua Portuguesa, pautadas por
esta concepção, focam no estudo da gramática normativa e exercícios estruturais em detrimento
de atividades que reflitam sobre o uso efetivo da língua. Concomitante a isto, as aulas de
literatura tendem a priorizar estudos sobre períodos históricos, biografias dos autores e pouco
sobre o texto literário em si.
Consequentemente, boa parte dos alunos em sala de aula, até mesmo fora do ambiente

23
Modus operandi é uma expressão em latin que significa “modo de operação”, na tradução literal para a língua
portuguesa. Esta expressão determina a maneira que determinada pessoa utiliza pra trabalhar ou agir, ou seja, as
suas rotinas e os seus processos de realização.
69

escolar, não conseguem construir sentidos além do nível mais superficial do texto, ou seja, não
se aprofundam ou pouco se interessam pelo texto. Ocorre que o domínio, compreensão e
interpretação da leitura é fundamental para o aluno refletir de forma autônoma diante de
diferentes contextos que se apresentam no dia adia.
A concepção da linguagem como interação, “analisa a língua como um meio de
interação do falante/leitor com a situação comunicativa em que está inserido” (SOUZA, 2019).
Outrossim, a partir deste contexto, se enfatiza a relevância da interação para interpretação do
mundo, uma vez que a linguagem é histórica, social e coletiva.
Neste sentido, esta última concepção proposta por Travaglia (2009) é a base para o
que recomendam os PCN’s, os quais colocam em destaque que para ensino da língua materna,
a linguagem “seja vista como dinâmica, complexa e historicamente estabelecida, definida pelas
situações de interação exigidas, valorizando, desta maneira, a diversidade linguística de uma
língua autêntica e natural.” (SOUZA, 2019). Assim, é salutar pontuar que a leitura, neste
processo de significação é um instrumento necessário para novas aprendizagens, uma vez que
comporta a interação entre o leitor e o texto, no qual o leitor constrói o significado e o
entendimento do texto, não se limitando apenas a decodificação dos signos (SOLÉ, 1998).

Leitura e as contribuições semióticas para o letramento literário

O conceito de Letramento surgiu com intenção de ampliar o significado de


alfabetização e, segundo Soares (2004), destacar e configurar os comportamentos e práticas do
uso da escrita quando esta estiver relacionada com a leitura em um contexto social. Assim, o
letramento se configura no desenvolvimento de competências e habilidades de uso da leitura e
escrita em práticas sociais. Kleiman (2014) chama de multiletramentos as práticas sociais de
letramento exercidas nos diferentes contextos da vida do indivíduo, pois envolve todos os
sistemas semióticos-linguísticos, tais como visuais, sonoros, espaciais e digitais.
Simões (2017, p. 32) aponta que desde a nossa infância, “o homem começa a praticar
as mais variadas formas de leitura: uma bandeira hasteada, um punho cerrado, nuvens escuras,
todos são textos a serem lidos (compreendidos e interpretados), uma vez que contêm mensagens
a serem decodificadas pelo observador.” Ora, a literatura então é uma linguagem específica que
expressa uma experiência (do autor) e provoca outra (no leitor).
Cabe, referenciar então que os textos possibilitam um exercício para a imaginação. Ao
leitor é dada a posição de sujeito capaz de empenhar-se e entender o modo de dizer e se integrar
ao modo de como é dito. Para Cosson (2014, p. 50), a leitura literária “oferece a liberdade de
70

uma maneira tal que nenhum outro modo de ler poderia oferecer, pois a experiência da literatura
é um modo único de experiência, uma expansão das fronteiras de nossos próprios sentimentos
e mundos, vividos por meio de nós mesmos.”. Portanto, a leitura presume a participação ativa
do leitor na construção de variados sentidos, uma vez que o texto literário é plurissignificativo,
dando autonomia para o indivíduo preencher os espaços e lacunas a medida que lê.
Nesta ótica, é importante trazer a concepção de uma importante teoria intrínseca à
leitura: A estética da recepção. Esta surgiu nos anos 60 na Alemanha, em um período marcado
por revoltas e reformas estudantis. Seu objetivo principal permeia o horizonte da pergunta e
resposta, ou seja, ocorre um diálogo entre o texto e o leitor. Jauss (1974. apud PEREIRA, 2019),
principal idealizador da teoria, revoluciona os estudos da literatura na qual o foco passa a ser o
leitor (ou a recepção), e não exclusivamente o autor e a produção.
Concomitante a ele, surge Iser (1996. apud PEREIRA, 2019), que partindo também da
ideia de que o texto só existe a partir da atuação do leitor, classifica como “estrutura de apelo
do texto”, onde depende do leitor a constituição do seu sentido. Assim, ocorre a distinção entre
duas modalidades de relacionamento entre o texto e o leitor: a recepção e o efeito. Tem- se,
então, na primeira a passagem histórica da obra, (interpretada ao longo do tempo de maneiras
diferentes) firmada no entendimento dos leitores (Jauss); e na segunda, o que a obra provoca
no leitor, firmada no texto (Iser). Portanto,

efeito e a recepção formam os princípios centrais da estética da recepção, que, em face


de suas diversas metas orientadoras, operam como métodos histórico- sociológicos
(recepção) ou teorético-textuais (efeito). A estética da recepção alcança, portanto, a
sua mais ampla dimensão quando essas metas diversas se interligam (ISER, 1996, p.7
apud PEREIRA, 2019).

Desta maneira, a partir da compreensão entre recepção e efeito e a linha tênue que
envolve o leitor e a leitura, retornamos a ideia de que a literatura tem a competência de formar
os indivíduos em árduos leitores responsáveis pelo seu próprio sentido, isto é, de significar,
“afinal construímos o mundo com palavras e, para quem sabe ler, todo texto é uma letra com a
qual escrevemos o que vivemos e o que queremos viver, o que somos e o que queremos ser”
(COSSON, 2014, p. 51).
Ensinar a “amar os livros”, e/ou conviver com eles é uma missão que a muito tempo a
escola vem tentando executar. Ocorre que leitores iniciantes, independentemente da idade,
correm o risco de serem desencorajados se a leitura não fizer parte do seu ambiente cultural, ou
em desacordo com o seu gosto. Histórias em quadrinhos, contos de fadas, fábulas, folclore são
opções que vem agregando valor e transformando a realidade de muitos alunos em sala de aula.
71

Todavia, a leitura vista com um valor em si mesma pode ser um instrumento extremamente
rico.
Inicialmente, a criança se insere no mundo da leitura através da imagem. Neste
aspecto, ao passo em que ela olha (lê) a imagem, cria suas próprias imagens a partir do que viu
e ouviu. Portanto, ao ler uma história, cada criança tem uma impressão pessoal.

A percepção da imagem está relacionada com a forma pela qual cada indivíduo pode
captar a realidade e, ao mesmo tempo, entre outros fatores, está atrelada à história
pessoal e familiar, à cultura, aos interesses e à motivação de cada um. A imagem é
vista e percebida pelo indivíduo que a recorta e a compõe novamente em sua mente,
agregando seus conhecimentos, valores e emoções. (CARNEIRO, p. 13. 2008)

Por conseguinte, podemos chamar de letramento visual a “capacidade de interpretar a


informação visualmente apresentada, baseando-se na ideia de que imagens podem ser lidas,
cujo significado pode ser decodificado por meio de um tipo de leitura” (BRITO e FARIAS, p.
80. 2016). Assim, a exploração de subsídios e técnicas no campo da semiótica permite
o aprofundamento da interação leitor/texto (SIMÕES, 2017), além de propiciar a aproximação
da criança ou jovem com o livro, tendo em vista que estes, em um contexto mais geral, sentem
mais atração pela imagem do que pelo texto.
Atualmente, as escolas convivem com uma cultura eminentemente sensorial,
principalmente visual devido aos meios de comunicação de massa. Esta realidade contribui
negativamente para o crescimento de analfabetos ou pseudo-analfabetos. Isto corre porque para
os primeiros, não há um incentivo frequente que sustente a necessidade da linguagem escrita,
pois o mundo pode ser lido de outras maneiras, de outros códigos, por exemplo, os não verbais.
Quanto ao segundo, percebe-se que o habito da leitura é superficial gerando, assim, uma
deficiência na compreensão do que é lido no entendimento e expressão por meio de letras,
números e imagens.
Desta feita, Simões (2017. p. 44) aduz que “é preciso construir uma competência
comunicativa por meio do relacionamento com outros meios de expressão, conferindo maior
autonomia ao sujeito.” Aqui, a semiótica contribui sendo esta o estudo dos signos e seus
significados, indo além do estudo linguístico, pois considera todos os fenômenos culturais
advindos do homem. Segundo Santaella:

As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem. A Semiótica é a ciência


que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por
objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como
fenômeno de produção de significação e de sentido. (1983, p. 2)

Dentro do contexto de letramento literário, os gêneros discursivos possuem papel de


72

grande importância, promovem o “desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita dos


alunos em práticas sociais de usos da linguagem as quais sejam relevantes na necessária
hibridização entre as experiências locais com escrita e as experiências globais” (PEREIRA,
2019). Nesta perspectiva, um gênero que tem chamado atenção de crianças, jovens e
adolescentes são as histórias em quadrinhos (H.Q), pois é colorido, ilustrado, cheio de recursos
gráficos e acessíveis. Os quadrinhos são uma excelente opção para incentivar a leitura e
despertar a atenção do leitor.

Monteiro Lobato e as estratégias de leituras

As histórias em quadrinhos se constituem como sabemos não da dicotomia entre


palavras e imagem, mas da junção das duas. Estas quando juntas aproximam o leitor
independente da idade. Pois o que se tem é o estimulo lúdico a prática da leitura. Antes de
adentrar a este panorama, cabe fundamentar que neste processo de significação da leitura tendo
em vista o letramento literário, Lobato (1969 p. 17) “define a literatura como a nossa atitude
diante desse monstro chamado Público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com
elegância, arte...”. Esta afirmação foi escrita nos primeiros anos de sua trajetória diante de um
contexto social opressor da época para os escritores.
Monteiro Lobato, em suas histórias, sempre trouxe uma visão moderna do livro. Para
ele, este instrumento sempre foi um objeto fundamental para o progresso da nação. Além de
escritor, Monteiro Lobato era dono de editora, então o processo invasivo da leitura se construía,
para ele, de duas formas: de um lado, a invasão do texto, algo íntimo e pessoal; de outro, a
invasão do livro, algo material, concreto, visível.
Neste sentido, o escritor, ao reprovar os métodos e a inconsistência das produções para
o público infantil na primeira parte do século XX, fez a seguinte crítica:

O menino aprende a ler na escola e lê em aula, à força, os horrorosos livros de leituras


didáticas que os industriais do gênero impingem nos governos. Coisas soporíferas,
leituras cívicas, fastidiosas patriotices.[...]./ A pátria pedagógica, as coisas da pátria
pedagogicada, a ininterrupta amolação duma pátria de fancaria empedagogada em
estilo melodramático, e embutida a martelo num cérebro pueril que sonha acordado e,
fundamento imaginativo, só pede ficção, contos de fada, história de anõezinhos
maravilhosos, “mil e uma noites”, em suma, apenas consegue uma coisa: fazer
considerar a abstração “pátria” como um castigo da pior espécie. (LOBATO, 1969
apud ZILBERMAN; LAJOLO, 1993, p. 290)

Para Monteiro Lobato, o modo de deixar ao alcance das crianças uma literatura
73

conceituada, universalmente conhecida, acordada com a realidade cognitiva das crianças


brasileiras e enriquecendo culturalmente seus pensamentos e ações se concretizou por meio da
tradução e da “adaptação”. Portanto, serão enfatizados os seus feitos presentes no livro
“Fabulas”(1921) as suas contribuições para a aquisição do gosto pela leitura do público infantil,
bem como asua adaptação em HQs realizada por Miguel Mendes (2011).
No livro “Fábulas”, Lobato faz uma conexão da turma do sítio com os enredos das
fábulas. Nesta, a narrativa de Lobato promove reflexões, critica valores e recorre a adaptações
na linguagem para atrair também o interesse do público infanto-juvenil.
É salutar afirmar que não é fácil incentivar a prática da leitura para um público tão
exigente como as crianças. O texto deve ser atrativo e principalmente tem de haver um
envolvimento contínuo entre este recurso linguistico e o imaginário infantil. Nesta perspectiva,
é preciso envolver a criança em universo de viagens e, principalmente, de constantes aventuras,
juntamente com as personagens. Portanto, é necessária uma adaptação lúdica, emocionante,
porém reflexiva.
Em carta ao amigo Godofredo Rangel datada de 08/12/1921 afirma que “nosso sistema
não é esperar que o leitor venha; vamos onde ele está como o caçador. Perseguimos a caça.
Fazemos o livro cair no nariz de todos os possíveis leitores desta terra (LOBATO, 1951, p.
239)”. Ou seja, é preciso produzir possibilidades que levem ao encontroo livro e seus leitores.
Não apenas o livro em sua materialidade, mas principalmente, a disposição estilística de seu
enredo.
Assim, é evidente que a leitura das histórias em quadrinhos como estratégia de leitura
é de total relevância para o desenvolvimento do imaginário infantil e do cognitivo das crianças
e adolescentes, pois traz em sua essência um tratamento interdisciplinar que enquadra variadas
temáticas, situações, tratamentos sociais, culturais e registros linguísticos.
Miguel Mendes, diretor de arte e de criação e autor da Editora Globo e do Grupo
Ziraldo, em 2011, promoveu a “adaptação da adaptação” do livro “fábulas” de Monteiro
Lobato. Nesta, o enredo não sofreu alteração quanto ao original, todavia, conta com recursos
de imagens e figuras coloridas, bem como uma sequência dialógica que dá ritmo ao enredo.
De forma sucinta, a adaptação lúdica começa com todos reunidos em volta de Dona
Benta: Pedrinho, Narizinho, Emília e o Visconde. Ela está contando histórias, e dessa vez lê um
livro de fábulas, aqueles contos nos quais os animais aparecem como protagonistas, e que
sempre trazem uma boa lição. A história começa com a fábula “A Cigarra e a Formiga”, esta
com dois finais diferentes, um deles proposto pela Narizinho (no qual tudo termina bem) e outro
pela Emília (com um final diferente). Assim segue as narrativas das fábulas seguintes.
74

Na construção da adaptação proposta por Mendes (2011), observa-se que o desenho


proporciona a imagem “pronta” para o leitor e com detalhes acentuados. A força da imagem e
o poder de repassar todo o código linguístico exposto em partes por meio dos balões
metricamente encaixados nas ilustrações ficam ressaltados nas palavras de Huyghe “a
linguagem das imagens [...] terá como base a experiência visual da realidade uma alusão, uma
lembrança, uma estrutura, que pode ser criar a beleza harmônica e que a submete a uma função
essencial, que é a de estabelecer comunicação entre os homens” (HUYGHE apud RAHDE,
2000, p. 30).
Todavia, cabe aqui externalizar a seguinte indagação retórica: Quantos significantes e
significados podem ser percebidos por meio das páginas de uma HQ? O signo iconográfico das
personagens (Emília, Visconde, Tia Nastácia), signo analógico (a ação das personagens,
principalmente de Emília), o significante (dentre outros, o clímax de cada enredo) ocasionando
a reflexão diante da lição de cada fábula, que vem a ser o significado de cada ação.
Ao propor a leitura de uma história em quadrinhos tem-se uma junção das expectativas
dos jovens leitores, ou seja, um encontro das tendências educativas da contemporaneidade para
com seu público-leitor oportunizando o encantamento e a atratividade não só por meio da prosa,
mas também devido aos recursos gráficos utilizados.
Os quadrinhos promovem um novo olhar sobre o texto literário. A exemplo de
“fábulas” de Lobato, uma produção atemporal, hoje é (re)adaptada aos ensejos dos leitores
infantis e juvenis do século XXI contemplando as necessidades lúdicas e didáticas dessa nova
era levando em consideração esses dois aspectos essenciais para o desenvolvimento do intelecto
infantil e juvenil que deve permear as leituras de todos os jovens leitores.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fonte, 2011 [1979].

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua


portuguesa. Brasília, 1997.

BRITO, Ana Carolina Vieira de. FARIAS, Jessica Oliveira.O uso de imagens na educação
infantil como instrumento de letramento: uma análise por meio dos conceitos da semiótica.
Cadernos da Educação Básica, Pernanbuco, v. 1, n. 2, p. 77-85, out.2016.
Disponível em: https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/cadernos/article/view/796. Acesso em:
2 nov. 2020.

CARNEIRO, Liliane Bernardes. Leitura de imagens na literatura infantil: desafios e


75

perspectivas na era da informação. 2008. 181 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciência da


Informação, Departamento de Ciência da Informação e Documentação, Universidade de
Brasília, Brasilia, 2008. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/3838. Acesso
em: 14 nov. 2020.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

KLEIMAN, A. B. Letramento na contemporaneidade. Bakhtiniana, São Paulo, 9 (2): 72-


91, Ago./Dez. 2014.
http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/19986/15597

LOBATO, Monteiro. Barca de Gleyre. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1951. 2º Tomo.

LAJOLO, Marisa. Negros e negras em Monteiro Lobato. In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira; GOUVÊA, Maria Cristina Soares de (Org.). Lendo e escrevendo Lobato. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999. p.65-82. ;

MENDES, Miguel. Fábulas em quadrinhos - adaptado da obra de Monteiro Lobato. São


Paulo: Globo, 2011.

PEREIRA, Élida PassonePerretti. Desenvolvimento de estratégias de Leitura: o conta na


sala de aula. 2019. 135 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Assis, 2019. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/182014. Acesso em: 01 dez. 2020.

RAHDE, Maria Beatriz Furtado. Imagem. Estética Moderna & Pós-moderna. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2000.

SOUZA, Cristina Macieira de. Estratégias de leitura para o ensino de fábulas em uma
turma de 6º ano do Ensino Fundamental. 2018. 174 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Letras, Programa de Mestrado Profissional – Profletras, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em:
https://profletras.letras.ufmg.br/arquivos/DISSERTA%C3%87%C3%83OCRISTIANE%20 -
%20VERS%C3%83O%20FINAL%20(4).pdf. Acesso em: 23 nov. 2020.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6° ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção
Primeiros Passos – 103)

SIMÕES, Darcilia. Semiótica e ensino:: letramento pela imagem. Rio de Janeiro: Dialogarts,
2017. Disponível em:
http://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_mdt/semiotica_&_ensino_2017.pdf. Acesso
em: 15 nov. 2020.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de


gramática. 14 ed. São Paulo: Cortez, 2009.

ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 5. ed. São Paulo:
Ática, 1991.
76

A POESIA E A CIRCUNSTÂNCIA

Jeovânia Pinheiro do Nascimento

Utilidade

Qual o lugar da poesia lírica dentro da situação atual do nosso país? Será que a poesia
de circunstância é capaz de suprir essa necessidade de resistência da poesia? Ou a inutilidade
da poesia vem matando-a por dentro e por fora? Essas não são perguntas fáceis de se responder,
mas podemos pelo menos nos dispor a pensar nisso, pois se não pensarmos em tal como
poderemos continuar produzindo literatura e defendendo-a como ‘alimento da alma’, do
intelecto?
Claro que, partindo dessa premissa, teríamos uma utilidade para ela, entretanto sua
inutilidade cresce de forma mais profunda a cada dia frente ao capitalismo, como nos fala Bosi
(1977, p. 143), e, partindo das condições políticas atuais no Brasil, alimentar a alma e/ou o
intelecto é coisa que se deve no mínimo evitar quando não é de fato coisa proibida.
Afinal, a poesia não produz nada, a existência da alma é questionável nos tempos
atuais, pelo menos se partirmos do pensamento de Nietzsche (2000, p. 41)24 não encontraremos
base para afirmar que a alma existe, logo até essa ideia de que a poesia vem a ser alimento da
alma pode ser posta em questão, o que nos leva a nos voltarmos para sua inutilidade.
A poesia não produz nada, não dá dinheiro a ninguém, mas toma daquele que escreve,
do que é capaz de produzir, em certo sentido, não tem mais um valor mítico nem divinizado
como em tempos passados, e o poeta, por sua vez, nada mais é que um vagabundo que não tem
nada o que fazer, pelo menos esse é o discurso do senso comum, então para que escrever? No
lugar de enveredar no mundo dos negócios e ir fazer algo que preste, que renda e crie renda, ele
se lança nessa tarefa cada dia mais marginalizada.
Se, Homero já foi tido como um deus, visto que segundo H. I. Marrou (1955, p.226)
“Homero não é um homem, é um deus” (apud, Bosi, 1977, p. 141), e hoje o poeta é aquele que
anda na contramão do sistema vigente, engendrando apenas superestruturas, então houve o
poder daquele que escreve poesias e o mesmo decaiu.
De forma que na atualidade, quase todos eles não irão a lugar algum, se dependerem
da poesia como fonte de subsistência, já que a passagem de ônibus é muito cara para pagar. E

24
Friedrich Nietzsche na obra Assim falou Zaratustra em ‘dos que desprezam o corpo’, crítica o dualismo
corpo e alma trago por Platão e defende que só existe o corpo como uma unidade.
77

até na hora de expor sua vivência, o poeta se depara com novas questões que caem no âmbito
da linguagem, a saber, hoje a palavra já não pode mais ser tão clara, e é nas entrelinhas do não
dito que precisa ficar o que é de mais importante no poema. Logo, nem gritar, por exemplo, o
preço da passagem é possível, tem que se escamotear o discurso, pois como dizem as regras,
que Adorno entre outros nos apresentam, a poesia mais rica é aquela que mostra escondendo.
E devido ao fato de a política atual exigir daquele que escreve e que fala certa cautela.
Contudo, se a poesia não alimenta a alma, nem o corpo, ela carece ter alguma serventia
para perdurar por milênios, afinal de contas a poesia lírica se mantém desde a antiga Grécia
onde encontramos o grande poeta lírico Píndaro (517 a 437 a.C.) perpassando nomes históricos
na literatura, como é o caso de Goethe (1749 a 1832), Baudelaire (1821 a 1867), Fernando
Pessoa (1888 a 1935), Manuel Bandeira (1886 a 1968), e outros tantos, mantendo-se por séculos
até os dias atuais. Então, para alguma coisa ela serve, se não, ou ela não se manteria viva na
história da humanidade por tanto tempo.
Uma possível via para pensar essa questão é a que defenderemos aqui, isto é, de que o
ser humano tem em si um desejo de autopreservação e uma enorme ambição em busca da
imortalidade. Eis que é nesse desejo de permanecer do homem que encontraremos a serventia
da poesia, e consequentemente da lírica. Visto que ela é um meio para se alcançar a
imortalidade. Pois, a divindade que há de algum modo na poesia, e que é reconhecida em suas
diversas formas por Bosi (1977), por Friedrich (2000) entre outros, se põe como possibilidade
de se alcançar a imortalidade entre os homens aqui mesmo na terra.
Claro, que nem todos podem atingi-la e por isso mesmo é apenas uma possibilidade
que o poeta almeja. Logo, a poesia é uma oportunidade na busca da imortalidade, demonstrando
assim que há uma utilidade para a poesia, entretanto só alguns, eleitos pela própria poesia e pela
sociedade, aquela que eles vivem ou a que surgirá alguns anos após sua morte física 25, é que
conseguem alcançá-la e se tornam imortais.
A poesia lírica também cumpre a função de tornar o particular universal, retirar um
objeto do mundo externo, transformá-lo e devolvê-lo para o mundo universalizado, e disso
trataremos mais adiante. Ela usa a palavra para dizer o que o outro sente e não é capaz de
expressar. Portanto, sim, ela serve para alguma coisa, ela consegue se dispor a algo e realizar
aquilo a que se propõe, não é apenas um tempo vazio, perdido, de um homem ocioso que não

25
É muito comum que os poetas sejam reconhecidos como tais e alcancem a imortalidade após sua morte, muitos
deles vieram a ter sua obra reconhecida não no seu tempo, mas anos depois como, por exemplo, no Brasil Carolina
Maria de Jesus só teve sua obra estudada após cem anos do seu nascimento. E outros/as autores/as são esquecidos
pelo tempo porquê a sociedade ainda não é capaz de aceitá-lo/a.
78

vive mais os tempos em que o ócio era bem-visto. Ela chega até mesmo a realizar uma função
social de representar as formas de pensar e agir dentro de um determinado tempo e cultura.
Nos livremos, pois dessa ideia triste que o capitalismo e os dias de hoje tentam nos
encerrar de que a poesia é algo inútil, e sigamos bem mais tranquilos quanto ao nosso objeto de
investigação, e pensemos um pouco mais sobre ele e os variados ângulos nos quais podemos
mirar a poesia lírica.

Origem da poesia e da circunstância

A poesia como bem nos apresenta Hegel, na Estética, possui três gêneros, a épica, a
lírica e o drama. Aqui nos centraremos na lírica, mas esta também tem muitos desdobramentos.
E ao se pensar a poesia lírica e a relação do Eu autor e do Eu ficcional encontraremos um debate
amplo, significativo e histórico, mudando de concepções de acordo com cada período em que
o problema é pensado.
Em meio a este turbilhão de informações e questionamentos sobre a poesia precisamos
definir mais claramente o que tratar, a saber, nos deteremos sobre a questão da poesia de
circunstância na lírica. Esta, por sua vez, não é caminho tão linear, visto que se apresenta em
Goethe e é defendida por este, como sendo “o primeiro e o mais genuíno de todos os tipos de
poesia” (GOETHE, 2017, p. 475).
A poesia de circunstância marca o romantismo, mas também está presente no
modernismo e é retomada novamente nos anos 70. Ela é uma das características encontradas na
poesia marginal. Importante de se notar é que em cada momento histórico ela se apresenta de
um modo, e mesmo assim mantém seu carácter circunstancial.
Quando observamos a mudança que há na poesia de ocasião percebemos que ela se
realiza tanto na linguagem quanto no motivo que leva o poeta a ater-se a tirar das circunstâncias
do dia a dia elementos para seu fazer poético. Pensemos na linguagem, no romantismo há uma
elevação da língua para o sublime, o belo, se fala das coisas da vida de forma grandiosa, não
existe um apelo ao uso trivial do linguajar.
Pelo contrário, no Modernismo a palavra já não está mais a serviço do divino, esse
movimento literário no Brasil, como nos diz Carvelli, iniciasse como uma “reação modernista
contra a ofensiva da gramática, do purismo da língua e da revolução estética” (2016, p. 41). Por
conseguinte, busca fazer uso da linguagem corriqueira, coloquial, presente no dia a dia do
brasileiro. Se realizando de fato de forma mais profunda, nos anos 70.
79

Carvelli defende que a poesia marginal é a mais profunda realização do projeto


iniciado em 1922, tanto pelo fato de que na poesia marginal o coloquialismo ganha uma
intensidade maior, adentra os termos chulos, os palavrões, o pornô. Quanto por ser a superação
de movimento que almeja superar. Então, pode ser visto como a realização de si mesmo, o
Modernismo que busca transpor, criando uma geração que o ultrapassa, porquê isso foi o que
ele a ensinou fazer.
Todavia, voltemo-nos um pouco mais sobre o Romantismo. Uma vez que ele carrega
consigo a natureza, contudo em Escritos sobre literatura, Goethe traz à luz a ideia que a
natureza presente no romantismo não é só daquela paisagem da árvore no alto no morro. Como
também, é a própria natureza humana, visto que a “substância poética é a substância da própria
vida” (2008, p. 18). Com isso há um imbricamento entre Eu do autor e o poeta, e assim o poeta
está ali fazendo poesia a partir das Verdades de sua própria vida, demostrando a característica
de experiência individual na poesia de circunstância do romantismo.
Entretanto, o eu lírico sofre transformações no decorrer da história e o modernismo
provoca uma cisão nesse Eu autor e poeta, promovendo a separação de ambos. Isso movido
pela própria crise do sujeito vivenciada no modernismo. Esse sujeito cheio de razão, de
racionalidade, que nega essa união entre o poeta e o autor. Que põe o autor como um ser capaz
de olhar de fora o poeta ou o inverso. O poeta que é capaz de ter um olhar externo para o mundo,
e para si próprio, o autor.
As teorias contemporâneas como, por exemplo, a da pesquisadora e poeta argentina,
Laura Scarano (1997), vão de encontro a esse modo de pensar moderno, defendendo que não
há como separar autor de poeta. Não que, necessariamente o que se escreva esteja dentro da
visão proposta por Goethe, de que se deve escrever a Verdade da vida do autor. E sim que, as
experiências individuais do autor, sua história, sua cultura, seu tempo, seu gênero se tornam
presentes em suas escritas, como se por mais que o autor quisesse separar um do outro não
tivesse como.
É nessa perspectiva que seguimos nossa leitura sobre a poesia de circunstância, assim
como, buscaremos demonstrar que a poesia de circunstância que encontramos nos anos 70 deixa
de ser individual como era no Romantismo para ser coletiva como nos alerta Adorno (2003) em
Palestra sobre lírica e sociedade.
Notamos que a lírica possui algumas funções como é o caso da capacidade de tirar do
particular tanto o objeto quanto a experiência tornando-os universais. Todavia, lembremos que
a experiência no romantismo é vista de forma individual, é a experiência do poeta, do sujeito.
E na modernidade ela ganha uma nova perspectiva, em que ela passa a ser vista como coletiva.
80

Ambas as formas passam por um processo de transfiguração ou de ressignificação na


poesia e ganham um estatuto universal. Pois, a experiência do poeta enquanto eu, e enquanto
parte de um todo. Passa a ser a representação do Todo que se sente, que se vive, de forma a
tocar qualquer pessoa, mesmo sem ser o poeta ou sem ter lido ‘a’ poesia. Mesmo assim, a poesia
consegue abarcar sensações e sentimentos dos homens, até daqueles que não a conhecem,
contudo se lessem, seriam capazes de dizer: “ele disse exatamente o que eu sinto”, ou, “ele/a
escreveu isso para mim”.
Quando os estudantes de Hegel compilam seu curso de estética, e o transformam na
obra Estética, dividida hoje em alguns volumes, entre eles a Poesia, encontramos a questão da
transfiguração estética que a lírica traz em si. Essa obra nos diz que a poesia cumpre a função
de libertar a alma do homem, quando o homem poeta se apropria das suas ideias e impressões,
e as transforma em poesia. Não como pensamento ordinário, limitado ao eu particular, mas
capaz de despertar nas outras pessoas o mesmo sentimento, trazendo à luz a universalidade dos
seus sentimentos (1980, p. 217-218).
Esta questão já tinha sido abordada em Goethe, quando este nos fala do seu exemplo
de grande poeta, dizendo que Güther, “em seus poemas de circunstância, fazia as emoções
engrandecerem situações mais banias, retratadas com sensações e imagens sempre tão precisas”
(2017, p. 319).
Com isso, deixamos claro que tanto para Goethe quanto para Hegel a poesia lírica, de
circunstância tem a função de ressignificar. De transcender ao banal. De transformar as coisas
simples. Tirando-as do particular e tornando-as universais.
Uma coisa que devemos ter clara, é que Hegel colhe na poesia de Goethe a sua
definição de lírica, e é por isso que, ao falar do poeta lírico autêntico, ele define o poeta que
parte dos pressupostos que Goethe defende. Isto é, da poesia de circunstância como sendo “o
primeiro e o mais genuíno de todos os tipos de poesia” (2017, p. 475).
Entretanto, o que é a poesia de circunstância? É essa poesia que se alimenta das
ocasiões, da experiência de vida, da Verdade do poeta? É essa a poesia lírica que Hegel defende
como sendo a autêntica? Como aquela que não busca nas coisas exteriores alimento para a
poética, “mas ele (o poeta)26 é por si mesmo um mundo subjetivo fechado, de modo que pode
procurar em si mesmo o estímulo e o conteúdo e, por conseguinte, pode se ater ao seu próprio
coração e espírito nas situações, estados, eventos e paixões interiores” (HEGEL, 2004, p. 165).

26
Grifo nosso.
81

Existem algumas características da poesia de circunstância que Goethe nos traz que
não podemos esquecê-las, a saber, esse valor de Verdade, de autenticidade que a poesia veste.
Também, essa forma de pensar a poesia como uma paisagem em versos, que se tornou quase
DNA da poesia lírica, e que mesmo muitos racionalistas modernos não quiseram lançar mão.
A lírica se desenvolve na história junto com o homem, seus pensamentos, teorias, e
ganha novas formas de acordo com cada tempo vivido. A Estética de Hegel, tão representativa
e importante para conhecer a lírica, não traz consigo a Verdade do que seja ‘A Lírica’. Pois, a
verdade é relativa, ela leva um conhecimento válido sobre um período, e um modo de escrever,
e de pensar a lírica, mas não é capaz de fechar em si tudo o que é a lírica. Não podemos fazer
isso, afinal, o mundo está o tempo todo em transformação, e o homem, e a sociedade junto, e
com eles a poesia lírica.
Por isso que, mesmo pensando apenas uma parte dela, a circunstância, precisamos vê-
la em momentos diferentes da história, para podermos entender o que se mudou nela, em cada
fase, como ela se mostra. Visto que, tanto no romantismo, quanto no modernismo, quanto na
poesia marginal a poesia circunstancial se apresenta de modo distinto. Isso é uma consequência
do tempo, do homem, da sociedade, o que faz com que cada momento histórico literário a poesia
de ocasião seja distinta.
A linguagem extremamente culta do Romantismo, não é mais a mesma no
Modernismo que busca a coloquialidade, e muito menos nos anos 70, onde o poeta marginal
desbunda, despreocupado de tudo, de todas as regras, falando da vida sem pudores linguísticos,
morais, éticos, estéticos. O poeta marginal quebra com toda a beleza da palavra que
encontramos no Romantismo, se o Modernismo colocasse como uma proposta de transposição
literária. É na marginalidade que encontramos o pólo oposto entre a poesia de circunstância do
Romantismo e a dos anos 70.
O Modernismo fica no meio, como uma ponte que leva o poeta de um lado para o
outro, saindo de um purismo linguístico para uma nova forma de linguagem, capaz de usar
qualquer palavra, em qualquer situação. Ele movido por um modelo nacionalista, se vê frente a
necessidade de se alcançar a linguajar brasileiro, e é nesse intento, abraçando o coloquial de
forma mais comedida, que ele cria uma nova geração. Esta, capaz de se livrar das amarras
linguísticas e sociais presentes em seu momento histórico. E cantar a vida, usando a palavra
como um brinquedo que possibilita tirar a coisa do mundo, e transformá-la em poesia, invadindo
o que há de mais banal, e transmutando-o em verso.
82

Marginalidade

Voltemo-nos para algumas questões postas no início deste artigo. Como nos dias de
hoje a poesia lírica pode resistir? Será que temos algo a aprender com a poesia marginal, Visto
que politicamente vivemos um tempo de trevas muito parecido com o que foi vivido pós 64?
Será que compreendendo a lírica, naquele momento histórico, encontraremos algum elemento
que alimente essa necessidade intrínseca que a poesia tem de resistir?
Devemos, então, atentar para algumas questões, que são: “quem é o homem dos anos
70?”, “o que leva ao poeta marginal a voltar-se a poesia de circunstância?”. Aquela lírica de
circunstância que é impressa por Goethe no romantismo, e que é ultrapassada pela subjetividade
e individualidade do sujeito lírico no modernismo, pode ser a mesma que encontramos nos anos
70?
Ora, temos o poeta marginal dentro de uma circunstância histórica que o afasta do
subjetivismo individualista do sujeito moderno, pois ele não é mais só um rosto na multidão.
Ele é um sujeito “fraturado”27, consciente de si, e que busca se unir a outros iguais, para juntos
lutarem contra o medo e pela própria sobrevivência.
Logo, a experiência desse homem, poeta, nos anos 70 é uma experiência coletiva e que
tenta expressar o que se vive historicamente. O medo de um, é o mesmo medo que se espalha
pelas ruas, e entra em todas as casas, em todos os homens. Portanto, a vida, a verdade do poeta
ultrapassam a realidade e torna-se poesia. Uma poesia de circunstância, e que ao mesmo tempo
traz consigo conceitos impressos pela modernidade, sendo, pois, um neorromantismo como
afirma Flora Sussekind (1985), é uma nova leitura da poesia circunstancial.
Essa lírica de circunstância nos anos 70, não é a mesma que encontramos em Goethe,
pois ela já não parte mais de uma experiência individual, como o é no poeta romântico. Ao
invés disso, advém de uma experiência coletiva, e contém um eu lírico dialético. Pois, é um eu
lírico que é ele mesmo, o mundo e suas relações com o mundo, tornando dele o que ele É.
Além disso, essa lírica não retrata um mundo mais idealizado como no romantismo, o
que tem nela é uma expressão real, essa que o modernismo traz com o nacionalismo, com o
olhar para a própria realidade do povo e da cultura brasileira. Uma realidade tanto do mundo
quanto da língua, uma linguagem que perpassa as bocas das pessoas, que é corriqueira, que se
apresenta na vida ela mesma, nas gírias, no coloquialismo do dia a dia, como nos diz Mattoso:

27
Termo cunhado por Adorno em Palestra sobre lírica e sociedade. In. Notas de Literatura. Tradução de Jorge de
Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
83

Para pesquisadores como Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Pereira, a


poesia marginal, literalmente falando, consiste no estilo coloquial encontrado na
maioria dos autores da geração-mimeógrafo, caracterizado pelo emprego de um
vocabulário baseado na gíria e no chulo, e de uma sintaxe isenta das regras de
gramática, tal como no linguajar falado(1981, p. 32).

Desse modo, usando a linguagem corriqueira e se utilizando dos elementos da vida


cotidiana é que os poetas dos anos 70 “acreditavam transformar, no pulo, tudo o que tocavam
em poesia” (SUSSEKIND, 1985, p. 68).
A poesia marginal põe a temporalidade no instante, transformando-a no agora,
portanto não é a memória, é o que se vive, no momento que se vive, como um flash, take, flagra.
Dessa forma, a poesia se diferencia da prosa literária dos anos 70, pois a prosa imprime a
memória, relata os fatos, perseguições, prisões, assassinatos vivenciados na Ditadura Militar.
Enquanto, o poeta se atém ao que está acontecendo no momento em que ocorre. Ele
percebe a necessidade de se olhar para a vida, para as coisas simples e aparentemente supérfluas
do dia a dia. Já que as pessoas estão presas ao medo, se alimentam da dor expressa nas torturas,
como nos mostra Flora Sussekind, em Literatura e vida literária, certamente a poesia se
apresenta nesse momento como uma válvula de escape, da qual o agora passa a ter importância
e ser alimento da própria poesia. A lírica circunstancial da Geração Mimeógrafo é uma forma
de resistência, que retira do mais simples o substrato para se produzir o mais sublime, a poesia.
A própria relação que existe no romantismo com a natureza é um construto, que
contém nele a natureza externa do mundo, das plantas, das paisagens e do homem, de tudo
aquilo que está no poeta. Nos anos 70, com a ditadura militar, há um rompimento entre o homem
e a contemplação da natureza frente ao medo, à opressão, à condição política vivida naquele
momento.
No entanto, se não é possível essa relação com a natureza, o homem também vive
naquele período uma necessidade de reconciliação com a própria vida. Ao perceber as coisas
simples da vida, é que ele consegue viver o que está na sua frente. É isso que o faz retomar a
poesia de circunstância, e encontrar nela o elemento poético capaz de suprir as exigências da
sua realidade histórica, política, social e literária.
A poesia marginal também se caracteriza por ser disforme, por não seguir padrão, por
ser desbunde, um averso da informação. Ela não comporta um estilo definido no qual se deve
seguir, ela se põe por ela mesma, como uma superação da poesia moderna, dos versos livres,
que agora não são mais os versos livres, toda ela é livre, cada autor a cria ao seu próprio modo.
Além disso, ela não vem até o leitor “bonitinha” em livro convencional, nisso ela
também rompe. Pois, o autor produz sua própria obra, vai às gráficas, participa do processo de
84

manufatura e de distribuição da obra. Esse novo modo de produção inserido nos anos 70 é um
dos motivos que leva a denominação “poesia marginal”. Visto que, a produção pelas grandes
editoras é o que comanda a sociedade literária, e quando o poeta se propõe a fazer seu próprio
livro, e ele mesmo vender, de forma independente.
Nas ruas, nos bares, ele transforma a forma do livro chegar às mãos do leitor. E muda
o formato do livro, deixando-o mais próximo ao cordel, faz com que naturalmente esse modo
de produção seja algo que vai para a margem da sociedade. Não é a forma de editoração aceita
e definida pela sociedade, como sendo a escolhida, o livro bem editado, com todo um requinte
de capa, formatação, de divulgação e distribuição em grandes livrarias.
O livro mimeografado é outra coisa, é um monte de páginas cheias de poesia, e
dobradas, vendidas e entregues pela própria mão do poeta. Capa? Quando há, nem de longe
podem vir a ser laminada ou fosca, é só mais uma folha de papel dobrada, que vem assim, por
primeiro, e até traz o nome da obra. Mas, em nada se assemelha ao formato do livro, da capa,
de uma obra editada pelas formas vigentes e tradicionais de editoração de um livro.
Além disso, essa nova forma de manufaturação não só proporciona ao poeta ter um
contato mais íntimo com seu livro, como leva o leitor a uma aproximação com o escritor,
tornando aquele que escreve como um ser real, capaz de sentar, conversar, ser uma pessoa como
qualquer outra, e não uma idealização de um gênio inalcançável.
Todos esses elementos levam a poesia dos anos 70 à se pôr a margem da sociedade, a
ser uma forma de resistência do próprio homem frente ao caos, da poesia não se dobrar a
barbárie. Da linguagem ir além, e tornar belo o cotidiano mais simples, e com qualquer termo
corrente da linguagem popular. Da poesia poder chegar as mãos das pessoas sem atravessador,
de vir com cara de jornal dobrado, e não se submeter as regras das grandes editoras e das suas
seleções, de quem deve ou não ser publicado. O autor se publica, ele mesmo grita, ele mesmo
vende, ele mantém viva no dia a dia, uma poesia que ele a alimenta com a própria vida.
Por fim, percebemos que a poesia de circunstância anda em comunhão com a própria
história da lírica, de modo que as fases e as transformações que uma passa a outra também
passa. Mesmo a poesia circunstancial sendo apenas uma das formas de lírica. E que, isso se dá
devido ao fato de existirem interferências históricas, culturais, sociais e literárias que o homem,
o poeta e a própria lírica vivenciam. Logo, se a poesia marginal é um retrato de puro
desbravamento, de libertação da língua e do homem, é porque houve um dia um poeta capaz de
ver as coisas simples da vida como poesia, e outro capaz de jogar tudo pro ar, e viver.
85

Referências

ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In. Notas de Literatura. Tradução de Jorge de
Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
CARVELLI, Keissy Guariento. A linguagem modernista e a realização na poesia marginal.
Interfaces. Guarapuava: UNICENTRO. Vol. 7, n. 3, p. 40-52, 2016.
HEGEL. Estética: Poesia. Tradução de Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães & Cª, 1980.
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade / Johann Wolfgang von Goethe;
coordenação Mário Luiz Frungillo; tradução Maurício Mendonça Cardozo- 1. ed. -São Paulo: Unesp,
2017.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Escritos sobre literatura / Johann Wolfgang von Goethe;
organização e tradução Pedro Süssekind-2. ed. -Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. (Disponível em:
https://books.google.de/books?id=6sAlko7_tNMC&printsec=frontcover&dq=%27Johann+Wolfgang+
von+Goethe%27&hl=&cd=3&source=gbs_api#v=onepage&q='Johann%20Wolfgang%20von%20Goe
the'&f=false, em 11/08/2019).
MATTOSO, Glauco. O que é Poesia Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2000.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
SCARANO, Laura. Travesías de la subjetividad: Ficciones del sujeto/ Posiciones del sujeto.
CELEHIS: Revista del Centro de Letras Hispanoamericanas. Mar del Plata: Facultad de
Humanidades UNMDP, Nº 9, p. 13-29, 1997.
THEODOR, Adorno W. Palestra sobre lírica e sociedade. (Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1034117/mod_resource/content/1/Theodor%20W.%20Adorn
o.pdf, em 03/08/2019).
86

MULHER, AMOR E FAMÍLIA EM CLARICE LISPECTOR:


CONFLITO E ALTERIDADE

Meire Oliveira Silva

A primeira vez que o conto “Amor”, de Clarice Lispector, foi publicado remete aos
anos 1950, na Revista Senhor. Época que marcou os estudos feministas, a partir da publicação
de O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, inaugurando-se a chamada “segunda onda
feminista”. A diferença entre esta fase e as reinvindicações atribuídas à “primeira onda”, quanto
às pautas acerca dos direitos das mulheres, marcou-se, para além dos protestos de direito ao
voto e à maior inserção na vida pública, pelos anseios femininos relativos ao corpo; como a
maternidade e a vida sexual. O pioneirismo de Lispector revela-se nas passagens aparentemente
mais prosaicas de suas narrativas. Nesse enredo, por exemplo, a protagonista Ana, em mais um
dia de sua rotina, consegue condensar angústias que marcam a existência humana, mas também
nuances da trajetória feminina. O foco narrativo em terceira pessoa tem caráter de observação,
mas também onisciência porque acompanha o que se passa no interior da personagem. Aliás, a
narração é atravessada por uma verve psicológica em que a dimensão exterior importa muito
pouco. Desse modo, a escrita clariceana, também em “Amor”, dialoga com as estéticas de James
Joyce e Virginia Woolf a partir do fluxo de consciência.
Dessa forma, longas passagens de mergulho na intimidade da personagem Ana
estabelecem vínculos com os leitores arrastando-os também pelas suas inquietações. E é nas
margens dessa quase ausência de acontecimentos que um vendaval de manifestações
psicológicas parece erigir a verdadeira trama. A história, iniciada em media res, traz a presença
do bonde que espectralmente conduz uma das camadas internas do conto, ou seja, como se
norteasse a vida interior da personagem no dia a dia em meio a obrigações domésticas e
familiares:
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no
bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então
no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação (LISPECTOR, 1998,
p. 19).

Sua “meia satisfação” é um indício que chama a atenção no primeiro parágrafo do


enredo que, todavia, parece seguir um curso simples – como o do próprio bonde ou de mais um
bonde anônimo –, no que se refere a ações. A dona de casa Ana, em uma tarde comum, termina
suas tarefas domésticas enquanto o marido e os filhos estão fora de casa, trabalhando e
87

estudando. Diante da casa toda arrumada, sai às compras para trazer ovos para o jantar; a última
etapa de sua jornada diária de obrigações. No bonde, ao voltar, após uma freada brusca do
veículo, vê os ovos se despedaçando em uma viagem repleta de atribulações. Já que, deste
bonde também avista um cego parado na rua mascando goma, tirando-lhe momentaneamente
de sua trajetória ordinária a fim de lhe atirar em um turbilhão de pensamentos. Pensamentos
aos quais ela não parecia estar habituada. Por isso, vêm carregados de incômodos e incertezas.
Afinal, o bonde foi sacudido por um imprevisto.
Diante desse fator inesperado, a mulher um tanto desnorteada resolve descer do bonde.
Vê-se em meio ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Apesar de não saber bem o porquê dessa
decisão, e após novas perturbações vividas dentro do jardim, volta para casa – limpa, segura,
ampla e organizada – a tempo de preparar o jantar para sua família e parentes visitantes. Retorna
a tempo de buscar apaziguar aquelas sensações estranhas que pareciam estar tão bem guardadas
em seus dias, afazeres, filhos e marido seguros. O enredo aparentemente simples possui uma
estrutura que alerta, por meio de algumas pistas ao leitor, que existe um descompasso entre o
que se narra e o que é vivenciado pela protagonista. Todo o esforço para mostrar o quão
saudáveis e completos eram os membros de sua família se embate diretamente com a descrição
da vida de Ana. Embora fosse uma mulher casada de classe média com apartamento próprio –
“[...] no apartamento que estavam aos poucos pagando” (LISPECTOR, 1998, p. 19) –, sente-se
sozinha quando não está a serviço dos filhos e do marido: “Certa hora da tarde era mais
perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de
sua força, inquietava-se” (LISPECTOR, 1998, p. 19). O sentimento de perturbação faz então
elo com um “suspiro de meia satisfação” como o início em que Ana senta-se no bonde. Há
vestígios de frustração ao longo da narrativa e esse acúmulo de percalços crescem de acordo
com o desenrolar do enredo que se passa na mente da protagonista.
E, dessa forma, a trama apresenta-se como uma armadilha que exige diversas camadas
de leitura. Em um primeiro momento, é preciso tentar apreender a Ana contida em suas
múltiplas faces, como em um exercício lúdico de desvendar quantas matrioskas formam a sua
psique. Existe uma breve descrição da vida anterior da Ana ainda jovem, que ficou
aparentemente perdida e esquecida no passado: “[....] no modo como cortava blusas para os
meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico
encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos” (LISPECTOR, 1998,
p. 20). Por outro lado, existe a descrição da Ana adulta, dona de casa, mãe e esposa. E, de modo
geral, o grande conflito parece residir na Ana antes e após o casamento que funciona à narrativa
como um divisor de águas e, provavelmente, o catalisador de sua crise. Assim sendo, é possível
88

entrever a presença de uma Ana ocultada que cede lugar uma nova Ana, portanto, um duplo de
existência que precisa ficar abafado e não pode vir à tona.
É possível também ver alusões a essa outra Ana em teorias psicanalíticas e de gênero.
Sigmund Freud (1919) classifica, no ensaio Das Unheimliche, o Outro como algo inquietante e
perturbador que precisa ficar escondido em camadas profundas da psique. O conceito freudiano,
neste conto, será compreendido como símbolo do que está recalcado, mas retorna
vigorosamente. No caso da literatura de Clarice Lispector, por meio de uma revelação quase
religiosa, que a crítica especializada associará à epifania. O próprio ensaio “No raiar de Clarice
Lispector” (CANDIDO, 1977) já vislumbrará a potência de sua primeira obra, Perto do coração
selvagem, composta por inúmeras esferas de significados, que se revelariam aos poucos. Em
divisões recorrentemente ambíguas como uma dimensão interior oposta à exterior ou um eu
versus o outro.
Conseguintemente, o conceito de Duplo, caro à Literatura também é desenvolvido no
referido conto, como uma projeção do eu, por vezes, desconhecida. Essa dualidade do indivíduo
na Literatura vai ao encontro da psicanálise também. Por fim, a filósofa Simone de Beauvoir
inicia O segundo sexo associando o gênero feminino a uma categoria secundária; outra, em
relação à dominante presença do homem. Refutando as categorias biológicas que permeiam a
questão, demonstra como as construções sociais moldaram a mulher em uma classificação
secundária, uma projeção e uma sombra do desejo masculino:

Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o “sexo” para dizer que
ela apresenta diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo
ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem,
e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o
Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. A categoria do Outro é tão original quanto a própria
consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias encontra-se
sempre uma dualidade que é a do Mesmo e do Outro [...] a alteridade é uma categoria
fundamental do pensamento humano” (BEAUVOIR, 2016, p. 12-13).

Desse modo, é possível entrever a constituição de Ana em meio a dilemas universais


e perseguida pela própria complexidade de sua constituição de mulher em uma vida toda
planejada para ela atuar senão como coadjuvante dos acontecimentos. Enquanto ela está
fragmentada entre o antes e o depois do casamento, sua família estava completa, afinal, “Ana
dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida” (LISPECTOR,
1998, p. 19). Em meio à emaranhada teia de pensamentos suscitada em Ana pelos
acontecimentos banais como o rompimento dos ovos, a visão de um cego mascando chicletes e
a observações da natureza independente e selvagem do Jardim Botânico; vêm à tona outras
possibilidades de existência que desvelam sentimentos perturbadores como a incerteza da vida
89

em sua trajetória imprevisível. Desse fluxo de consciência, diversas sensações transbordam


inclusive ao leitor, e sua participação é fundamental para se acompanhar o olhar agora mais
atento da personagem após transformações a que é exposta. Cada evento desperta naquela
mulher reações com as quais não consegue lidar imediatamente. Parecem distantes de sua
compreensão não habituada a lidar com situações que fugissem ao controle de sua vida
ordenada com filhos e marido perfeitamente adequados às necessidades impostas a ela a partir
da vida matrimonial. Enquanto observava que “[...] cresciam seus filhos, crescia a mesa com
comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome [...]” (LISPECTOR, 1998, p.
19), surdamente “inquietava-se” (p. 19).
Seu mal-estar associa-se à insatisfação com a vida ordenada e exemplar segundo os
parâmetros sociais e a ênfase ao final de dois parágrafos “Assim, ela quisera e escolhera”
(LISPECTOR, 1998, pp. 20-21). Consequentemente, parecem-se apaziguar as sensações de
conflito decorrente de sua “vida de adulto” (p. 20) porque “De manhã, acordaria aureolada pelos
calmos deveres” (p. 21). As descrições que envolvem a vida de Ana orbitam em torno de suas
atividades domésticas e familiares de modo alienada. “Estava bom assim” (p. 21) e outras frases
semelhantes estimulam o lado positivo de sua entrega completa à casa e à família para que a
vida possa seguir seu fluxo sem que haja qualquer ato reflexivo da protagonista que prefere se
manter ocupada a pensar em sua existência.
Nesse sentido, os pensamentos prosaicos de Ana suscitam questionamentos acerca da
“categoria identidade” atribuída às mulheres pelas imposições sociais. Ao compreender que
suas obrigações maternas e matrimoniais davam ao seu rosto “um ar de mulher” seguindo um
“destino de mulher” como um fim inescapável imposto socialmente (BEAUVOIR, 1949 28). O
próprio modelo binário do que é ser mulher alerta para as construções sociais de gênero como
conceito cultural. Segundo Butler, “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino”
(BUTLER, 2016, p. 29). De qualquer modo Clarice Lispector, em sua Literatura profundamente
atrelada à sociedade, analisa o ser-mulher em diversas esferas, sempre muito atenta ao momento
histórico. O bonde, que conduz a protagonista, pode também metaforizar a sua condição de
mulher: “O bonde vacilava nos trilhos [...]” e “O bonde se arrastava [...]” ao seu destino incerto
e é nele que reconhece em seu estranhamento de se deparar com o cego. A desconstrução dos
modelos aos quais Ana se acomodou a partir do que a sociedade moldou para ela, se dá por
contiguidade em sua relação consigo mesma a se reconhecer e estar no mundo. O bonde aparece
como sua existência que apenas segue, assim como o Jardim Botânico apresenta-se como o

28
Para este artigo foi utilizada uma edição de 2016 desta obra lançada originalmente, em 1949, pela Editora
Gallimard.
90

oposto de sua casa clara e brilhante. O jardim é denso, escuro e repleto de texturas, visões e
sons inesperados, como um mergulho em profundezas, que podem se referir a suas próprias
entranhas. Igualmente, os ovos também parecem funcionar como metáforas e chamada de
consciência para Ana:

Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas


pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos
inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi
jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde
deu a nova arrancada de partida (LISPECTOR, 1998, p. 24).

Por meio dos ovos quebrados, emergem compreensões abafadas junto a uma Ana que
passa a sentir, primeiro, constrangimento de ser notada: os passageiros riram dos ovos atirados
ao chão, assim como “as árvores que plantara riam dela”. Os risos das plantas que constatavam
a sua falta de importância diante das tarefas eram o mesmo riso de quando notaram que ela
havia deixado os ovos se quebrarem no bonde. Todas as suas certezas pareciam ter ruído junto
aos ovos por mais esforço que ela tivesse feito para manter tudo em ordem: “No fundo, Ana
sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe
dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber
como se o tivesse inventado” (LISPECTOR, 1998, p. 20, grifos meus). Ana segue então
caminhos desordenados, mas suavemente, não se deixando entusiasmar por mudanças, era uma
mulher enraizada e firme em suas funções de dona do lar.
É possível encontrar referências a essa presença fantasmagórica dedicada ao lar, no
ensaio “Profissões para mulheres” (2012), de Virginia Woolf:

[...] descobri que se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o
fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor dei a ela o nome da heroína de
um famoso poema, o “Anjo do lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o
papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo
e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher (WOOLF, 2012, p. 11).

Ao comentar o ideal de mulher presente no longo poema “Anjo do lar”, de Coventry


Patmore, Virginia Woolf insurge-se contra o padrão opressivo de conduta social de gênero.
Diante do texto que canta o papel destinado à mulher como o de servir e agradar ao marido no
casamento, Woolf alerta para a necessidade de matar esse fantasma idealizado de mulher antes
que ele aniquile o ser em que habitam essas crenças destrutivas à personalidade feminina. O
poema do século XIX, segundo a escritora inglesa, traz questões relativas a classificações
estanques que desconsideram a mulher como um indivíduo, impedindo assim qualquer
protagonismo de sua parte e muito menos demonstração de que seria um sujeito detentor de
91

pensamentos e opiniões. E, portanto, descreve o “Anjo do lar” como o padrão de mulher da Era
Vitoriana ainda presente em outras eras e culturas:

Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta.


Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. [...] seu
feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as
opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura.
[...] Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um
homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: ‘Querida, você é uma
moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja
meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe
ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura (2012, p.
11-12).

Ana, sem opiniões, e como bom “anjo do lar”, atordoa-se diante dos ovos partidos e
do seu ideal de vida fragmentado e desnudado diante dos desconhecidos no bonde. Avistar o
cego que mascava goma distraidamente desencadeia uma série de questões para a vida dessa
mulher, fazendo-se perturbar-se com aquilo ao que estava acostumada a fazer diariamente. Por
alguns instantes, as antigas convicções de que, por exemplo, “[...] tudo era passível de
aperfeiçoamento [porque], a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; [já que] a
vida podia ser feita pela mão do homem” (LISPECTOR, 1998, p. 19) era também possível em
seu contrário, sem aperfeiçoamento, harmonia justamente porque poderia ser destruído pela
mão do homem, ou por forças que nem suas mãos segurando o pacote de compras poderiam
prever. E o imprevisível, que havia deixado para trás, em sua versão antiga de Ana jovem
imbuída de dons artísticos, parecia retornar. A surpresa de redescobrir o imprevisível retornava,
de fato, com os ovos quebrados; ao mergulhá-la de novo no incompreensível que se desenhava
em uma Ana do passado, esquecida na vida adulta, que parecia não mais ao seu alcance. Outra
Ana que padecia doente de vida:

Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos
poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a,
encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha –
com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava
para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se
confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível,
uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera (LISPECTOR, 1998, p. 20).

Descobrir-se perturbada, diante do não calculado, pode ter despertado uma sensação
há muito esquecida como a felicidade que tinha antes da sua “vida de adulto”, já que em sua
vida tudo estava em um lugar específico isento de emoções ou qualquer incômodo: “Mas na
sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma
92

habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido” (LISPECTOR, 1998, p. 19). Dessa
forma, as sensações confusas despertadas pelo avistamento do cego a retiram de um contínuo
estado de tranquilidade; o que coincide com a freada do bonde:

Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele
mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento
da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de
sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão
de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde
deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô
despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de
parada antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros olharam
assustados (LISPECTOR, 1998, p. 20-21, grifos meus).

Por que o cego havia despertado tantos sentimentos em Ana? O cego se interpõe
também como outro duplo de sua existência. Como aquele que não enxergava e, portanto, não
era salvo pela harmoniosa aparência das coisas com a qual a protagonista apaziguara a sua
rotina. O cego estava mergulhado em escuridão profunda e, sem conseguir apreender o
aparente, não precisava se esforçar para mantê-lo em ordem. Já Ana moldava seus dias à
“revelia deles” buscando aperfeiçoar cada espaço do dia, de seu apartamento e de sua família.
A repetição de que “o mal estava feito” enfatiza que outra Ana se apercebera ali como
despertando de um outro estado: “E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor.
O mal estava feito” (LISPECTOR, 1998, p. 21). A perturbação e este mal podem ser novamente
associados à psicanálise.
A própria perturbação das repetições revela que Ana, como sujeito imerso em uma
série de contradições de uma exigência de conduta de mãe e esposa exemplares em sociedade,
a deixaram angustiada por caber em um modelo incoerente de vida que não levava em
consideração seus anseios e desejos. Ela servia a todos, ao passo em que apagava sua identidade
de sujeito para caber em um “destino de mulher”. Ao se deparar com o cego percebe o mal-
estar de sua existência que, assim como os ovos, estava despedaçada em fragmentos;
transformando a sua relação com o mundo.
Neste conto, forma literária própria da modernidade, é possível entrever inquietações
dos indivíduos submetidos a ordens diárias que lhes isentam de uma vida de devaneios e
prazeres. As lacunas de suas vidas, por meio da palavra, traduzem-se em desamparo, solidão e
incerteza. Ana só consegue lidar com sua “vida de adulto” ao escamotear a Ana sonhadora do
passado:
93

O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas


escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão – e por
um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente,
como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a
mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. que chamava
de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas,
sofrendo espantada (LISPECTOR, 1998, p. 20-21, grifos meus).

Seu grito diante da freada do bonde revela a dificuldade de lidar com os eventos
inesperados que a fazem mergulhar no desconhecido de emoções há tanto tempo evitado por
sua vida ordenada (FREUD, 2016b). A crise a fizera retomar consciência de fatos desagradáveis
abafados em seus dias perfeitos, como a fome, a miséria e os cegos. Mais do que isso, refletir e
sentir a fizeram ter contato com outras realidades das quais fugia sem saber e que estavam
apenas adormecidas em si mesma. Desejos com os quais, por mais que abafe, vêm à tona
desvelando também suas camadas da psique mais profundas em seus recalques do ego: “É a
princípio objeto vago do desejo ou o impulso sem nome que aprisiona e liberta [...], o Eu à
busca do seu outro mais profundo, personificando-se e fazendo-se personagem, o porquê do
narrar jamais é puro” (NUNES, 2009, p. 207, grifos meus).
Ela que cuidava para que “a vida não explodisse”, sentiu a explosão de ver e sentir
após encontrar o cego. Saiu de sua caverna platônica, enxergando aquilo até então não visto já
que apaziguado nas camadas ocultas de sua mente. Sua entrada no Jardim Botânico, após perder
o ponto de descida, a faz mergulhar em uma escuridão que lhe transporta para um mundo oculto
com imagens, texturas e cheiros até então evitados, causando-lhe o mal-estar soturno por estar
longe da vida apaziguada com leis e clareza remetendo-a ao nojo fascinante de imergir na
escuridão. Um assassinato ocorria em meio ao cenário fantasmagórico, provavelmente,
levando-a à morte de alguma coisa em si mesma:

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão.


Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa
emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se
aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços
secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava
manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco
da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era
tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos
(LISPECTOR, 1998, p. 24, grifos meus).

Seria a morte do “Anjo do lar” encarnado na Ana perfeccionista que vivia para agradar
a todos na vida e “à revelia deles”? E, apesar do nojo, mergulha no jardim profundamente, e só
94

se levanta para ir embora ao se lembrar dos filhos, em culpa que não a deixam tranquila até
chegar à entrada do prédio. Assim, adentra seu apartamento encontrando o cenário oposto ao
do Jardim com “sala [era] grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela
brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa?” (LISPECTOR, 1998, p. 26) E começa
a questionar a alienação à qual havia submergido por tanto tempo, tão cartesianamente
adequada, limpa e sadia: “E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um
modo moralmente louco de viver” (LISPECTOR, 1998, p. 26). Estranha também seu filho,
estranha tudo até o final do dia, após o jantar que prepara para receber seus parentes junto a
seus filhos e marido. Até que o fogão dá um estouro e a remete imediatamente à explosão de
consciência que a acometera naquela tarde fatídica. No entanto, é protegida pelo marido da dor
do mundo. E, assim, ela apaga a luz para adormecer e buscar alento, ocultando suas descobertas
perigosas acerca da existência.
O conto “Amor”, de Clarice Lispector, toca em diversas questões examinando a
dimensão feminina em uma teia de emaranhadas referências desde a própria literatura até a
filosofia e a psicanálise para aludir a questões muito avançadas para o momento histórico de
sua produção. Por mais que nos anos 1960, as ideias relativas aos gêneros estivem em discussão,
no Brasil o avanço desses debates foi tímido e recente, não configurando grande expressividade
no período. E mesmo Clarice Lispector nunca se declarou filiada a nenhuma corrente feminista,
mas era uma leitora ávida e uma mulher profundamente atenta ao seu tempo. Nesse conto, assim
como em outras obras, alude a questões atreladas aos Direitos Humanos, à violência sexual, a
preconceitos diversos fazendo da Literatura porta-voz de angústias diversas que, mesmo
individuais, se universalizam em dialogismos atemporais.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2016.
CANDIDO, Antonio. “No raiar de Clarice Lispector”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1977.
FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. 18: O mal-estar na civilização, novas conferências
introdutórias e outros textos (1930-1936). Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010a.
95

FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. 14: História de uma neurose infantil (‘O homem
dos lobos’), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad.: Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.
FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Rio de Janeiro: Vozes Limitada, 1971.
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NUNES, Benedito. A clave do poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
WOOLF, Virginia. Profissões para as mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre:
L&PM Editores, 2012.
96

CAXIAS-MA EM IMAGEM: O POTENCIAL DA FOTOGRAFIA PARA A


CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DE MEMÓRIA29

Marinalva Aguiar Teixeira Rocha


Max Mateus Moura da Silva

De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para


sempre o instante preciso e fugidio. [...] Lidamos com coisas que estão
desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há nenhum esforço sobre
a terra que possa fazê-las voltar. Não podemos revelar ou copiar uma
memória. (CARTIER-BRESSON, 1991, p. 21)

Introdução

É notório que, em um determinado momento da história, o homem sentiu a necessidade


de preservar o que o cercava, tudo que, de certa forma, aos poucos, podia se desfazer. Desde a
pré-história, é possível perceber a manifestação do desejo humano em manter as suas
produções. Tal realidade pode ser atestada pelos registros dos desenhos rupestres. De fato, para
Souza (2013, p. 02), “a pintura nas cavernas é o indício primordial da necessidade de expressão
e compreensão dos costumes do ser humano. Os desenhos representavam o estilo de vida do
homem primitivo”.
Revisitando o percurso da história, segundo Kossoy (2014, p. 39), o homem se valeu
da câmera escura, por séculos, para manter “uma paisagem que por alguma razão lhe interessou
conservar a imagem”. Sem dúvidas, há certa poeticidade na elaboração da fotografia, pois ela
testifica a necessidade do ser humano de reter ao menos um fragmento do real: a existência
concreta contida em um simulacro.
Ciavatta (2002, p. 74), por sua vez, referindo-se à fotografia, afirma que o “seu
elemento próprio é o duplo sentido, porque o fenômeno indica a essência, mas também a
esconde”. À primeira vista, o que diz Ciavatta pode parecer um tanto paradoxal, contudo, o que
se ressalta é que o registro fotográfico não é a realidade objetiva completa, mas uma pequena
porção dela transposta para um espaço de armazenamento de dados. Desse modo, por ser uma
representação do real, a fotografia carrega a essência, mas ao mesmo tempo a encobre, porque
o sentido contido no objeto (fotografia) só pode ser percebido considerando o mundo que o
cerca em uma análise contextual, cultural, social e histórica.
É importante dizer que o presente artigo, que tem como pano de fundo imagens
fotográficas de Caxias-MA, resulta de uma das ações do Projeto PIBIC/UEMA intitulado

29
Artigo produzido a partir do Projeto PIBIC/UEMA (2019/2020) intitulado “Caxias em imagens: preservando a
memória da cidade por meio da fotografia”.
97

“Caxias em imagens: preservando a memória da cidade por meio da fotografia”, trabalho esse
desenvolvido em 2019/2020 e que pesquisou, no acervo do fotógrafo Sinésio Santos, imagens
da cidade de Caxias no século XX, com foco no cenário urbano, com vistas a realçar e manter
viva a memória caxiense. Vale informar, ainda, que a pesquisa é de caráter documental,
bibliográfica e de campo, com abordagem qualitativa, uma vez que, segundo Lira (2014, p. 26),
neste tipo de pesquisa “o autor atribui significados aos fenômenos observados e coletados em
campo, apoiando-se em teóricos que já estudaram a temática”.
Para efetivação do projeto, foram realizadas, a princípio, leituras de textos que
abordam questões concernentes à temática, a fim de obter conhecimentos teóricos e
metodológicos para a análise proposta. De maneira concomitante, realizou-se a seleção de
fotografias capturadas por Sinésio Santos, momento em que foram escolhidas imagens cuja
análise respondia ao que propunha o trabalho. A referida análise, que foi pautada pelo
referencial bibliográfico apontado para a pesquisa, pretendeu demonstrar que o papel da
imagem fotográfica vai além da função de guardá-la como uma lembrança de um evento, espaço
ou pessoa, uma vez que a fotografia possibilita refletir sobre o seu papel enquanto artefato para
a valorização e manutenção da memória, como também para a asseveração da identidade.
Finalmente, foram realizadas entrevistas com pessoas que vivenciaram momentos
representados nas imagens selecionadas, a fim de coletar informações acerca do que
explicitavam as imagens produzidas por Sinésio Santos no século XX, assim como observar e
analisar os depoimentos que servem para constituir o discurso de memória.

Fotografia e memória: revisitando conceitos

É evidente que, nos últimos anos, as sucessivas revoluções tecnológicas foram


responsáveis por modificar as formas de armazenamento de dados relacionados a situações
vividas, eventos, pessoas e lugares. A função da câmera fotográfica foi incorporada por
smartphones, o que potencializou a difusão da fotografia, tornando-a presente no cotidiano de
quase todos. Contudo, o desenvolvimento do hábito de fotografar tem sua origem ainda na
antiguidade, segundo Lima,

A busca incessante do homem por uma técnica de captação e fixação de imagens


remonta à antiguidade. Técnicas para preservação da memória e para a documentação
da realidade, através da captação e projeção de imagens, já vinham sendo utilizados
pelos gregos, chineses e árabes do mundo antigo, através da câmera obscura, ou a
projeção de imagens pela reflexão da luz que atravessa um orifício (LIMA, 2007, p.
16).
98

Embora a câmera obscura tenha surgido para armazenar imagens do mundo real, em
si possuía uma inconsistência prática, seus registros desapareciam rapidamente com o passar
do tempo. O mistério para conseguir que os registros não entenebrecessem permaneceu
encoberto por aproximadamente 20 séculos (LIMA, 2007).
Apesar de não se ter como objetivo, nesse texto, discorrer acerca da invenção da
câmera, esta contextualização se faz necessária, pois corrobora o que já foi dito anteriormente;
a fotografia surgiu em decorrência da vontade humana de preservar frações do real. Sendo
assim, “as imagens, assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma
importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular” (BURKE, 2004,
p. 17).
Todo registro imagético possui uma história que escapa a câmera fotográfica. “Toda
fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si um fragmento determinado
da realidade registrado fotograficamente” (KOSSOY, 2014, p. 49). Por isso, o aspecto de
memória se entrelaça com a fotografia, tornando-os um todo, de modo que essa ganha sentido
na relação com aquele. Cada registro evoca lembranças a ele vinculadas, sendo um agente
propiciador da memória.
Nas palavras de Kossoy (2014, p. 40), “toda fotografia tem sua origem a partir do
desejo de um indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real,
em determinado lugar e época”. Nesse sentido, Rocha (2017, p. 703) ainda afirma que “a
fotografia permanece viva, pois o momento registrado ficou estático, preservado para tempos
futuros”. Sendo assim, as sucessivas evoluções experimentadas pela câmera fotográfica podem
ser reflexo da tentativa de reter, com maior riqueza de detalhes possíveis, uma determinada
situação, local ou pessoa para além do alcance do esquecimento ocasionado pelo avançar do
tempo. Determinado fato, uma vez registrado, permanece vivo, podendo ser reencontrado pelo
sujeito que observa a fotografia e transpor a noção fugaz da sua existência para as gerações
futuras.
Em consonância com Kossoy, Barthes afirma o seguinte: “o que a fotografia reproduz
ao infinito só ocorreu uma vez; ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente” (BARTHES 1984, p. 13).
A linguagem fotográfica é capaz de estabelecer uma comunicação que é única, pois
preserva aspectos que são mensuráveis somente por meio dos sentidos da visão. Uma descrição
escrita de uma determinada paisagem, por exemplo, por mais detalhada que seja, não pode ser
comparada ao registro fotográfico quando se trata de representar a forma de algo ou alguém.
99

“Enquanto representação ela [a fotografia ] nos faz imaginar os segredos dos implícitos, os
enigmas que esconde, o não manifesto, a emoção e a ideologia do fotógrafo” (KOSSOY, 2007,
p. 157).
É inegável que a fotografia, para usar os termos de Sontag (2004, p. 174), “tem poderes
que nenhum outro sistema de imagens jamais desfrutou”. Tal pensamento é justificado pelas
sensações que uma fotografia desperta nos que as contemplam, visto que, segundo Gaskell
(1992, p. 265), “a fotografia é o meio visual em que os acontecimentos passados são com
frequência tornados mais acessíveis pela resposta emocional do momento. Isto porque a
fotografia traz em si uma relação material e causal com seu sujeito”.
Dessa forma, torna-se relevante a seguinte indagação postulada por Kossoy (2014, p.
113): “existe melhor exercício para reviver o passado que a apreciação solitária das nossas
próprias fotografias?”. Parafraseando o aludido autor, observar os registros fotográficos de
álbuns antigos está atrelado a um valor emocional, pois cada registro deixa evidente, de forma
clara e inequívoca, a ação implacável do tempo. Talvez ninguém consiga fugir de seus efeitos
e das marcas causadas por ele. Para Kossoy,

Estamos envolvidos afetivamente com o conteúdo dessas imagens; elas nos dizem
respeito e nos mostram como éramos, como eram nossos familiares e amigos. Essas
imagens nos levam ao passado em uma fração de segundo; nossa imaginação
reconstrói a trama dos acontecimentos dos quais fomos personagens em sucessivas
épocas e lugares (KOSSOY, 2014, p. 114).

A história local, cultural e particular de cada indivíduo é passível de ser apresentada


por meio dos registros fotográficos. Embora muitas vezes as informações presentes nas imagens
se manifestem de maneira fragmentada, tais fragmentos são de grande valia na elaboração de
uma narrativa que se pauta no discurso memorialístico. Para Rocha (2019, p. 119) “a imagem
trazida pela foto brinda os sujeitos com as reminiscências, ao trazerem à tona momentos
passados, cujos sentidos dependem daquilo que a imagem pode despertar em cada um”.
Assim, no exercício da observação das fotografias, a noção cristalizada do passado se
ressignifica, o presente de outrora pode ser reencontrado, vivido na memória do observador.
“Contemplar uma fotografia pode significar trazer para o presente o que está posto no passado,
pois essas imagens, muitas vezes, ativam a imaginação, acionando a memória” (ROCHA, 2017,
p. 705). Dada a estreita relação constatada entre fotografia e memória, sendo demarcada, por
vezes, por uma linha tênue, abordar o recurso de imagem, enquanto meio de preservação da
história, trata-se de algo essencial, “uma vez que [...] testemunha o cotidiano de um grupo, em
100

um tempo, e serve para resguardar as lembranças desse tempo, no âmbito individual e coletivo.”
(ROCHA, 2017, p. 705).
A fotografia constitui-se, também, uma importante ferramenta que possibilita a
manutenção das reminiscências. Por isso, ao serem selecionados alguns registros fotográficos,
os quais apresentam diferentes representações, vinculando-os às falas dos entrevistados, foi
possível desenvolver reflexões relacionadas ao valor das informações obtidas para a
compreensão do potencial presente nas imagens, além de atestar o quanto a fotografia trata-se
de um exímio recurso para auxiliar pesquisas acadêmicas centradas na interação entre a
linguagem verbal e não verbal no cerne da (re) elaboração da memória.

Caxias em imagens: conjugando texto imagético e discurso de memória

O discurso oral, ancorado ao texto imagético, pode funcionar como suporte para
discutir questões relacionadas à identidade e à memória. Atualmente, a história oral tem sido
um vigoroso campo observado por muitos pesquisadores, no sentido de capturar informações
possíveis de serem analisadas para fins de aquisição de conhecimentos. Para tanto, é preciso
saber ouvir, visto que, “a história oral é, primordialmente, uma arte da escuta” (PORTELLI,
2016, p.10).
A fotografia e os testemunhos orais são instrumentos que se articulam mutuamente,
uma vez que ambos se valem da memória para extrair informações e conhecimentos histórico-
culturais, por exemplo. Além disso, “a entrevista propiciará, também, um meio de descobrir
documentos escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sidos localizados.”
(THOMPSON, 1992, p. 25). As imagens aqui apresentadas foram utilizadas para provocar nos
depoentes sentimentos e recordações. Conforme Rocha (2017, p. 702), “a memória busca
reconstruir elementos do passado, no sentido de manter viva a história e as lembranças de um
tempo de outrora”. Portanto, é possível dizer que a fotografia é uma importante fonte de
informações da história e da cultura de um povo.
“A imagem fotográfica fornece provas, indícios e funciona sempre como documento
iconográfico acerca de uma realidade, um testemunho que contém evidências sobre algo que
em algum momento existiu” (NEUMANN, 2015, p. 41). Observando, portanto, os registros
fotográficos aqui apresentados, buscou-se, a partir dessas imagens, as quais foram reveladas na
segunda metade do século XX, evidenciar espaços, costumes e eventos que compõem a
memória da cidade, permitindo, com isso, (res) guardar a memória local, o que é fundamental
para as gerações vindouras.
101

Tendo como base a concepção da fotografia como excerto de um dado momento,


inserida em um contexto, pode-se concluir que “o vestígio da vida cristalizado na imagem
fotográfica passa a ter sentido no momento em que se tenha conhecimento e se compreendam
os elos da cadeia de fatos ausentes30 da imagem. Além da verdade iconográfica” (KOSSOY,
2014, p. 132). Portanto, ao relacionar o retrato com a fala de depoentes, alguns desses elos se
entrelaçarão, resultando em uma (re) construção mais próxima do momento retratado.
Dentre as características que tornam o recurso de imagem propício na busca por
elaborar o discurso memorialístico, destaca-se o fato que “a fotografia [...] revoluciona a
memória: multiplica-a e democratiza-a, dando lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca
antes atingida, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE
GOFF, 1985, p. 39). Neste sentido, sujeitos que não vivenciaram certa festividade, por exemplo,
podem tomar conhecimento, ao contemplarem fotografias do acontecimento. Sendo assim, para
tais sujeitos, a fotografia servirá para elucidar questões das quais não se tenha vivido. Por outro
lado, afere-se que uma mesma fotografia, quando apresentada a uma pessoa que participou do
que foi retratado, possui outra significação, sendo comumente utilizada para resgatar
lembranças há muito não revisitadas.
Ao se referir à rememoração, Halbwachs destaca a importância da memória coletiva,
isto é, reunir depoimentos de diversas pessoas a respeito de uma mesma ocorrência na
expectativa de verificar similaridades,

Uma ou mais pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita
exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até
reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias
definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso (HALBWACHS, 2013, p.
31).

No entanto, no processo de rememoração, segundo o Halbwachs (2013), não é


suficiente ter como base a memória individual, mas esta, vinculada à memória coletiva. Para
tanto, tratando-se de fotografia, é preciso que o evento evocado pela imagem faça parte da vida
e experiência do grupo social.
À guisa de evidenciar o modo como a fotografia suscita a memória, serão apresentadas,
a seguir, algumas imagens pertencentes ao acervo fotográfico de Sinésio Santos (In Memoriam),
imagens essas que, em conexão com o depoimento de pessoas previamente selecionadas,
auxiliarão na discussão. Dentre as fotografias escolhidas, encontram-se registros de locais que,

30
Grifo do autor.
102

com o passar do tempo, tiveram a função alterada para sanar novas demandas que surgiram;
outros, encontram-se abandonados por motivos diversos.
A imagem a seguir (Fig. 1)31 registra o Hospital Miron Pedreira, instituição que recebia
diariamente inúmeras pessoas de Caxias e de localidades próximas. Neste caso, pode-se
perceber que tal fotografia revela a existência de um espaço que, em outra época, servia para
atender a saúde da população. Atualmente, no espaço foi construída a sede do UniFacema
(Centro Universitário de Ciências e Tecnologia do Maranhão). Os mais jovens, possivelmente,
não poderiam saber da existência de tal hospital se não fora pela fotografia. Conforme declara
Rocha (2017, p. 710), a mudança de função desse estabelecimento pode constituir exemplo de
“fatos que ficaram na memória dos mais antigos e que merecem ser narrados para os mais
novos”.
Para Edileusa, uma das colaboradoras entrevistadas, os jovens não têm conhecimento
de como era Caxias de antigamente, mas ressalva que deveria saber sobre o que já existiu na
cidade. Ao se referir aos espaços que foram depredados ou retirados, como, por exemplo, ao
ver a foto do Hospital Miron Pedreira (Fig. 1), a depoente diz o seguinte:

Eles pensam que nunca aconteceu nada [se referindo aos mais jovens]32, nunca teve
nada assim de valor no tempo passado. Teve muita coisa de valor, tinha fábrica de
tecidos, tinha muitas fábricas aqui, tinha hospitais, tinha o Miron Pedreira [...], ele era
bom, tive meu filho aqui. Minha filha tava doente, ela veio para cá. Ele atendia muito
bem as pessoas, era muito legal lá, e tinha muita gente mesmo, a gente daqui de
Caxias, gente dos interiores. Mas depois foi acabando, e acabou mesmo. (Depoimento
de Edileusa Pinheiro de Sousa, 2019).

Figura 1 – Hospital Miron Pedreira (década de 1970)

31
As informações acerca dos locais apresentados foram extraídas de entrevistas com antigos moradores e da tese
de doutorado da pesquisadora Marinalva Aguiar Teixeira Rocha, conforme referenciado ao fim do texto.
32
Acréscimo nosso.
103

Fonte: Acervo do Projeto Fundo de Memória Sinésio Santos

A fala da depoente, além de revelar a falta que o antigo hospital traz para a população,
mostra certo saudosismo de uma época em que Caxias possuía determinadas instituições, as
quais beneficiaram muito a população, mas que deixaram de existir. O texto da depoente parece
querer demonstrar que no passado, em Caxias, já existia benfeitorias, e que a nova geração
precisa tomar conhecimento para valorizar. Nesse caso, a fotografia funcionará como um
importante artefato que dará prova dos acontecimentos.
Por sua vez, a próxima imagem (Fig. 2) apresenta a fachada do antigo Cassino
Caxiense, também foi conhecido como Clube Recreativo Caxiense. O espaço era sede de
encontro e recreação de membros da elite da cidade. O Cassino foi palco de grandes festas que
reuniam os principais nomes da música local. Todavia, em claro contraste ao brilhantismo do
passado, hoje o prédio encontra-se sem abrigar nenhuma espécie de evento, estando em ruínas.
Os que atualmente passam em frente ao local, se não tiveram contato com a história do prédio,
dificilmente imaginariam a representatividade que ele já teve. Rocha (2019, p. 109) se referindo
ao espaço destaca, “aqueles que viveram tal época hão de refletir sobre o deslumbre vivido,
sobre o glamoroso clube que abrigava a sociedade caxiense se faz acompanhar das imagens
fotográficas registradas por Sinésio”.
É certo que em situações como essa, a fotografia atesta a veracidade do relato das
pessoas de mais idade que presenciaram a fase de opulência do clube.
104

Figura 2 – Cassino Caxiense (criado em 1934)

Fonte: Acervo do Projeto Fundo de Memória Sinésio Santos

Um dos entrevistados, ao falar sobre a atual situação do Cassino Caxiense, demonstra-


se nostálgico. Segundo Adelson, a representatividade do antigo Cassino era enorme. Por ser
local de diversão, o fechamento das portas do estabelecimento foi, além de o fim de um espaço
de recreação, foi também, simbolicamente, a representação do fim de um ciclo de ouro na
cidade. Na entrevista é possível notar que o depoente via o estabelecimento como importante
ambiente de lazer, sentindo falta de algo semelhante atualmente. “Hoje o Cassino até acabou,
que está desmoronado lá. Ali era bom, tinha festa, era animado demais”. (Depoimento de
Adelson Rocha Rodrigues, 2020).
Na imagem a seguir (Fig. 3) está representado um importante evento religioso da
cidade, responsável por reunir pessoas de diferentes denominações cristãs. O chamado Dia da
Bíblia, realizado no segundo domingo de dezembro, era responsável por congregar fiéis de
várias denominações. Embora o evento ainda seja realizado na cidade, a fala dos depoentes
parece indicar que o brilho de outrora em parte se esvaiu.
Para Márcia, outra entrevistada e filha do fotógrafo Sinésio Santos, é necessário
valorizar a história local, e nesse sentido a fotografia funciona como um imprescindível recurso,
pois a imagem manifesta de maneira não verbal o que o testemunho oral manifesta verbalmente.
105

Figura 3 – Evento religioso (Dia da Bíblia)

Fonte: Acervo do Projeto Fundo de Memória Sinésio Santos

A depoente demonstra certa frustração por não perceber uma valorização da memória
local. Todavia, parece considerar que as fotografias têm servido como meio de afirmar a história
da cidade no consciente coletivo, como sugere o trecho seguinte:

Então, essa retratação aqui demonstra o quanto é importante a gente se transportar


para essa época e perceber que a gente tem que valorizar nossa história, mesmo que
seja nossa singularidade, nossa história pessoal, mas é importante que a gente
preserve, que a gente tenha o álbum de fotografia e lembre aquele período em que foi
tirado e de todo o contexto social envolvido aqui. (Depoimento de Márcia Regina
Ferreira Santos, 2019)

Desse modo, por meio das entrevistas e imagens aqui apresentadas, nota-se que o
encontro da fotografia com o depoente resulta sempre em um exercício da memória. O sujeito
que se depara com uma imagem (re) visita a situação nela contida. Portanto, no ato de olhar
uma imagem, busca-se também perscrutar os múltiplos sentidos que ela pode comportar. A
memória, vista dessa forma, é imanente à fotografia. Em contrapartida, é preciso entender que
a fotografia é um meio de conhecer o passado, mas o conhecimento do passado não está
propriamente nela, o que assevera a necessidade de tê-la aliada ao discurso oral (KOSSOY,
2014).

Considerações finais

No presente trabalho, buscou-se, ao conjugar alguns registros fotográficos de


diferentes representações com a fala de depoentes selecionados, observar a relevância das
106

informações obtidas no que se refere à compreensão do potencial presente nas imagens, além
de explicitar o quão a fotografia é importante instrumento para subsidiar pesquisas acadêmicas
que buscam atrelar linguagem verbal e não verbal na (re) elaboração da memória. Ao confrontar
a fotografia com o discurso oral, ela funcionará como um importante artefato que,
possivelmente, dará indício dos acontecimentos.
O potencial expressivo das fotografias atrelado às informações coletadas nas falas dos
entrevistados foram elementos essenciais para elucidar a pesquisa.
Importa mencionar que as imagens têm se tornado uma ferramenta capaz de lançar luz
em eventos de outrora. O registro fotográfico permite que se acesse um tipo de conhecimento
que é único, pois não é apenas uma descrição, é uma revelação dos espaços em sua forma física
visível. Há muito mais em um registro fotográfico do que a mera representação, ela traduz, com
detalhes minuciosos, o que, muitas vezes, a memória busca reconstruir.
Se a mutabilidade de eventos, costumes, lugares e formas são constantes, a fotografia
pode minorar o risco de que as informações sobre bens culturais se percam. Dessa forma, há
uma urgência de resguardar a memória para que as futuras gerações possam conhecer as
práticas, os costumes, as tradições e a cultura de uma época passada. Nesse sentido, a fotografia
colabora para arquivar as marcas que têm sido obliteradas pelas transformações ocorridas no
espaço geográfico.
Caxias é uma cidade extremamente rica em história, arte e cultura, sendo necessário
preservar sua memória. Para tanto, é necessário reunir, de forma material, um conjunto de
informações que não devem ser esquecidas, de modo que possibilitem aos moradores o
conhecimento da história local. Portanto, a fotografia se insere como ferramenta que possibilita
a manutenção da memória.
Com este trabalho, percebeu-se, ainda, que a fotografia pode funcionar como fonte
inesgotável de pesquisa documental por conter informações históricas sobre o processo de
construção da cidade. Desse modo, Caxias de outrora é revisitada por seus moradores, por meio
das imagens fotográficas reveladas, a partir de 1950, material fartamente colecionado pelo
fotógrafo maranhense Sinésio Santos e contidos, ainda, nos álbuns de várias famílias caxienses.

Referências

BARTHES, Roland. A Câmara clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru: EDUSC, 2004.


107

CARTIER-BRESSON, Henri. O momento decisivo. In. Bloch Comunicação. Vol. 6. Rio de


Janeiro: Bloch, (sd). 1991. p.19-25.

CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica


(Rio de Janeiro, 1990-1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história. São
Paulo: UNESP, 1992.
´
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo:
Centauro, 2013.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5 ª ed. Revisada. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.

________. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi. Vol. 1 (Memória – História). Lisboa:


Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

LIMA, Manoel Roberto Nascimento de. A fotografia como instrumento da documentação


e preservação da memória: Arte e sobrevivência no Alto Vale do Ribeiro. Dissertação
(Mestrado em Comunicação e Semiótica). PUC-SP, São Paulo, p. 111. 2007.

LIRA, Bruno Carneiro. O passo a passo do trabalho científico. 2ª ed. Petrópolis - RJ: Vozes,
2014.

NEUMANM, Rosane Marcia. Cartões-postais: representação do espaço colonial no início do


século XX. In: MEYER, Marlise Regina; NEUMANM, Rosane Marcia (Org.). História,
imagem e representação: possibilidades de leitura. São Leopoldo - RS: Oikos, 2015. p. 25-56.

PORTELLI, Alessandro. História oral como a arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

ROCHA, Marinalva Aguiar Teixeira. Caxias/MA revelada pelas lentes do fotógrafo Sinésio
Santos, 1950 – 1990. Tese (Doutorado em História) PPH-UNISINOS, São Leopoldo-RS, p.
278. 2019.

________. Revelando a memória patrimonialística de Caxias - MA pela lente do fotógrafo


Sinésio Santos. In: Anais do II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-
americanos (CI-EHILA) PPH-UNISINOS, São Leopoldo – RS, p. 702-712. 2017.

SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.

SOUZA, Carlaile José Rodrigues. A fotografia em questão: um mecanismo de expressão na


sociedade e profissional na imprensa. In: Anais do 9° Encontro Nacional de História da
Mídia UFOP, Ouro Preto-MG, p. 1-13. 2013.
108

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Fontes orais

SANTOS, Márcia Regina Ferreira. Entrevista concedida à Max Mateus Moura da Silva.
Caxias, em 02 de dezembro de 2019.

SOUSA, Edileuza Pinheiro de. Entrevista concedida à Max Mateus Moura da Silva. Caxias,
em 01 de dezembro de 2019.

RODRIGUES, Adelson Rocha. Entrevista concedida à Max Mateus Moura da Silva.


Caxias, em 15 de março de 2020.
109

MAUS, BLACK DOG E CHLEB WOLNOŚCIOWY: NARRATIVAS DE TESTEMUNHO

Karina Moraes Kurtz

Introdução

O presente artigo é oriundo da etapa inicial de uma pesquisa de doutorado que procura
respostas para questionamentos, ainda pouco debatidos, a respeito da capacidade das graphic
novels em auxiliar nos testemunhos de guerra e das catástofres como a Shoah. Propõe-se que o
resultado da pesquisa seja essencial para o estudo deste gênero que é pouco difundido, em
consideração com sua vastidão e sua história na própria evolução da memória da humanidade.
A pesquisa encontra-se ainda na primeira etapa, portanto, este artigo, é fruto de uma leitura
inicial, não podendo apresentar resultados profundos. Mesmo assim, uma análise superficial
das obras já aponta o efeito positivo que elas exercem em seus leitores, ao narrar as memórias
daqueles que sofreram as barbáries da guerra e da violência. O desenvolvimento da pesquisa a
respeito das obras “Maus”33, “Black Dog”34 e “Chleb Wolnościowy”35 pretende-se devolver à
comunidade acadêmica uma pesquisa sólida a respeito do tema auxiliando pesquisadores da
área, assim como de outras, também, que possam ter interesse no tema, proporcionando um
novo pensamento crítico com relação as graphic novels36.
Essa pesquisa apresenta um caráter inédito, pois não houve outra que envolvesse essas
três obras, focando não somente na shoah, mas sim na narrativa do trauma sofrido no campo de
batalha da I Guerra Mundial. O assunto ainda não ganhou a atenção que realmente merece. As
três HQs selecionadas trazem em suas narrativas algo em comum: a resistência, seja do próprio
autor ou testemunhos de terceiros.
Por muito tempo as graphic novels foram limitadas ao conceito de gibis, ou seja,
literatura infantojuvenil, como por exemplo: “Turma da Mônica”, “Monstro do Pântano”,
“Homem-Aranha”, etc. Obviamente, em hipótese alguma deseja-se subestimar ou reduzir
qualquer HQ a um conceito simplório, muito pelo contrário. É importante valorizar as obras
desse gênero, que desenhadas à mão, surgiram, fizeram (e fazem) anedotas com as mais
diversas situações, provocando reflexão através do humor. Esses gibis atraíram a atenção das

33
Significa ‘rato’ na Língua Alemã.
34
Significa ‘cão negro’ na Língua Inglesa.
35
Significa ‘pão da liberdade’ na Língua Polonesa.
36
“Romance gráfico” (tradução minha). Neste artigo, utilizarei a sigla HQ para me referir às histórias em
quadrinhos a fim de evitar uma repetição desnecessária do significado da sigla, famosa há décadas.
110

crianças e as divertem até hoje, provocando reflexões sobre a própria vida, trazendo ironia a
situações absurdas das mais diversas naturezas, desde o cotidiano à política, e noções de
alteridade e de convivência com o outro (ALVES, 2001).
Cada uma das HQs selecionadas retrata um período sombrio e sofrido por parte de seu
narrador e de outros personagens cujos relatos foram incluídos e que hoje estão vivos apenas
nas memórias de seus familiares e amigos queridos. O resultado final é um trabalho não apenas
literário e poético frente ao horror vivido por estes sobreviventes, como é um trabalho artístico
que utiliza imagens com cores densas, tanto quentes como frias, e possuem características
oníricas. Isso ocorre pois muitas vezes os sobreviventes, tanto da guerra quanto dos campos de
concentração, retornam com PTSD37, causando-lhes uma série de sintomas desagradáveis como
pesadelos, terror noturno, e devido ao trauma sofrido, tendo muita dificuldade em expressar,
através da fala, o que lhes aconteceu.
A maioria dos HQs facilitam a abordagem de um assunto como este, tanto para os
sobreviventes quanto com o público leitor, como por exemplo, jovens do Ensino Fundamental
e Médio, visto que é repleto de gravuras e de fácil entendimento. Muitos questionam se não é
tendencioso manipular o leitor jovem através das imagens, que ficam por tanto tempo gravadas
na memória. Que a Shoah foi uma abominação, com aproximadamente seis milhões de mortos,
não há dúvidas. Por isso mesmo o autor que trabalha com testemunhos e resistência sabe a
importância de ser fiel às memórias do sobrevivente. O propósito da obra do gênero de
testemunhos é o de relembrar parte do que ocorreu com os sobreviventes e com os mortos,
mantendo vivo aquilo que jamais pode ser esquecido. E isso pode ser feito através de imagens,
que chocam e permanecem por mais tempo. Tanto as HQs quanto os livros são bem-vindos,
pois o sentimento de rememorar é o mesmo, apenas de maneiras diferentes.
Este estudo visa responder a seguinte questão: se as graphic novels atuam como um
facilitador do gênero testemunho? Auxiliando não apenas a compreensão do leitor a respeito
do assunto, mas a do sobrevivente que pode encontrar um meio diferente de contar (e mostrar)
a sua história através da escrita e das imagens. Sem a necessidade de falar sobre aquilo que
ainda não foi possível configurar um pensamento organizado. Será que o formato utilizado pelas
graphic novels são dignas de abordar assuntos tão dolorosos como a IGM e a shoah? Ou o
gênero HQ poderia causar até mesmo espanto e acabar fomentando a indústria atual da violência
gratuita, em virtude das imagens que utiliza?

37
Post Traumatic Stress Disorder (Síndrome do Estresse Pós-Traumático).
111

São duas questões que não serão respondidas com facilidade e nem devem, ou corre-
se o risco de excluir inúmeras obras que se encontram nesse “limbo”, distante do gênero
conhecido como narrativa testemunhal. Tentar responder apressadamente essas questões apenas
causaria limitações e perdas (ALVES, 2001). Acontece que as HQs estão ganhando força já faz
algum tempo, mas não o reconhecimento merecido da sociedade em geral, muitos ainda são
contra e até censuram a produção de algumas. Elas são usadas com o propósito de provocar
reflexão e questionamentos e desde a década de oitenta estão adentrando no gênero do
testemunho. As graphic novels servem para mostrar, com o uso da arte gráfica, situações que
ocorreram nos campos de concentração e no espaço das guerras permanecendo por mais tempo
na memória de quem as lê (CUADROS, 2019). Elas também utilizam balões e onomatopéias
para apresentar o discurso livre, trazendo, inclusive, pequenos trechos narrativos nos cantos das
páginas.
É importante salientar que, com a tecnologia atual, a criação desta arte tornou-se mais
acessível e mais rápida, assim, o processo criativo é finalizado com mais facilidade e rapidez.
A importância da arte de se renovar constantemente repousa no fato de que cada vez mais o
público jovem está em busca de produtos diferentes que chamem a atenção e difiram dos
publicados há alguns anos atrás. É fato também de que a escola está cada vez mais apressada
em formar jovens adultos prontos para o mercado de trabalho, e com isso, acabam esquecendo
do processo criativo necessário para a humanização. As diversas áreas das artes poderiam
compor um currículo escolar recheado de oportunidades para o jovem de baixa renda, visto que
não possuem um acesso tão simples e fácil em casa aos livros ou à tecnologia. Ensinar os jovens
a ler e a escrever sobre assuntos que provoquem reflexão é um ato libertador e necessário. Mas
infelizmente acaba acontecendo o contrário, uma exclusão das disciplinas artísticas em sala de
aula e uma desvalorização das artes em geral (TODOROV, 2009). Muitas pessoas não
percebem o impacto negativo disso. Então, qual é a importância das artes, exatamente? Nisso,
acaba-se perdendo não apenas um modo lúdico de humanizar e debater assuntos
interdisciplinares, mas de oferecer ao público jovem, narrativas que incluem sobrevivência,
resistência e memória.
Em suma, a importância em realizar a pesquisa com as três obras citadas também está
em como o processo de criação da graphic novel ocorre, ao tratar de testemunhos de
sobreviventes em tempos de guerra. Visto que estas são diferentes dos gibis infantis e dos
quadrinhos publicados nos jornais. As HQs se adequam para os mais variados públicos, muitas
vezes, como um exercício de pré-leitura, uma apresentação do tema de uma forma mais sutil,
ou até mais direta. Para os jovens as HQs são excelentes, visto que estes muitas vezes não têm
112

o incentivo para a leitura em casa, facilitando o conhecimento histórico através das imagens e
das falas curtas. Servem também para adultos que ainda estão em processo de alfabetização ou
que não possuem muito tempo ou desejo pela leitura, essa é uma maneira de estimulá-los.
Também auxiliam aquele que deseja trazer à tona uma memória dolorosa, já esquecida, mas
que não sabe como expor em palavras. Momento que entra a Arterapia, para auxiliar a expressar
aos poucos, aquilo que é impossível de narrar.

Fundamentação teórica

Para realizar a presente pesquisa, pretende-se contar com uma bibliografia vasta e
importante acerca do assunto, utilizando autores como Néstor Braunstein, Jeanne M. Gagnebin,
Dori Laub, Enrique Serra Padrós, Michael Pollak, Anna Richardson, Márcio Seligmann-Silva,
Paul Ricoeur, Walter Benjamin, Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Antonio Candido, Tzvetan
Todorov, Giorgio Agamben, Lev Vygotsky, Alfredo Bosi, Marianne Hirsch, Stuart Hall, Will
Eisner, Sidney Gusman, entre outros. A fim de compreendermos como as HQs escolhidas
honram a memória de sobreviventes com relação ao gênero testemunhal.
As chamadas histórias em quadrinhos, ou HQs, também recebem outros nomes que
podem fazer referência a outros gêneros, como por exemplo, comic books (livros cômicos) e
graphic novels (romances gráficos). Ao compreender a terminologia utilizada entende-se o
receio que o próprio Spiegelman sentiu ao publicar a história partilhada por seu pai ao longo
dos anos. Temia que com a publicação de Maus, sua história ficasse conhecida como puramente
ficção em virtude do termo utilizado, graphic novel (romance gráfico). Ou pior ainda, que
remetesse a uma história engraçada (CALLARI, 2019). Percebemos que os testemunhos de
pessoas que tiveram suas vidas destruídas surgem em todos os locais, não fazendo distinção
entre gêneros textuais. Isso demonstra a importância da aceitação de novos estilos narrativos
que abordem assuntos sérios.
O tema da shoah, por ser de tamanha magnitude e por tratar da barbárie humana, torna
o ensino em sala de aula difícil, muitas vezes não recebendo a devida atenção que merece no
Ensino Fundamental e Médio. Muitas pessoas crescem sem saber o que foi de fato a shoah, ou,
diminuem os fatos, chegando ao ponto de negar a existência, tendo sido uma atrocidade sem
proporção, de difícil assimilação. Nesse ponto, a HQ entra com o propósito de chamar a atenção
de uma forma diferente, sem exigir muito tempo de um público jovem que está conectado
constantemente, instigando-o através de imagens e discurso direto.
113

Ao realizar um trabalho artístico, seja através da literatura ou de outras formas, é uma


maneira de organizar o pensamento e trabalhar a presença do trauma; o processo artístico pode
atuar como um caminho para a cura dos eventos traumáticos, para o sobrevivente. Como o
trauma atrapalha o processo de representação do sujeito, desorganizando o pensamento,
modificando-o e deixando-o incapaz diante de determinadas situações, a arte entra como um
processo que naturalmente faz com que o sujeito ressignifique esses sentimentos turbulentos e
supere-os ou até elimine-os (VYGOTSKY, 1998).
Nos dias modernos, a arte tem sido utilizada inclusive como terapia, pois provoca uma
autorreflexão no indivíduo que a exercita, seja através da escrita, do desenho, do teatro, da
costura, entre outros. Segundo Andrade (2000, p. 18), “a expressão “artística" revela a
interioridade do homem, fala do modo de ser e visão de cada um e seu mundo”. Seria o “fazer
arte” que possibilita ao sujeito “o autoconhecimento, a resolução de conflitos pessoais e de
relacionamento e o desenvolvimento geral da personalidade”. De acordo com Vygotsky (1998,
p. 307), “a arte recolhe da vida seu material, mas produz acima desse material algo que ainda
não está nas propriedades desse material", isto é, a arte faz uso daquilo que é vivido pelo sujeito
para fazer surgir o processo criativo, produzindo algo muito maior que ainda não foi descoberto
pelo sujeito. Fazendo com que assim ele conheça melhor a si mesmo, através do processo
criativo, sendo capaz de lidar com seus sentimentos e traumas. Essas experiências são
canalizadas para a criação de algo maior que reflete a sua psique, auxiliando-o a conviver com
seus sofrimentos internos. A criação artística estética possibilita a recriação de cenários e
estabelece um “diálogo” entre eles (BAKHTIN, 2002). As graphic novels vêm com o intuito
de renovar esse produto artístico que tem abordado cada vez mais sistemas opressores e
autoritários. É contra-intuitivo e desumano censurar qualquer forma de arte que provoque
reflexão acerca de governos opressores e totalitários.
Segundo Vygotsky (1998), a arte provoca no ser humano um realinhamento das
emoções, uma organização do pensamento. Muitas vezes, o processo de criação artística
proporciona a catarse necessária para o caminho da cura, da ressignificação do trauma. É
também através desse processo que o sujeito não só organiza o mundo existente dentro de si,
mas o externo também. Para o famoso pintor Van Gogh, em seu livro “Cartas a Théo” (2008),
o artista é aquele que provoca reflexão, que está em constante metamorfose, que relembra,
rememora, que se distancia e se coloca em exílio para exercer o processo de criação, se tornando
criador. O artista não só provoca questionamentos, mas também promove a libertação e a
iluminação em tempos difíceis. Assim, fica clara a necessidade da valorização das artes, da
literatura, dos jovens artistas, que com suas ideias inovadoras são capazes de transformar o
114

próprio (pré)conceito das coisas e das pessoas. Com isso, a pesquisa pretende questionar e
responder como as graphic novels são capazes de auxiliar nos testemunhos de sobrevivência e
instigar uma reflexão sobre a valorização das mesmas, pois compreende-se que “alterar a
narrativa dos fatos, pode ser decisivo” para que o sobrevivente volte a ter vontade de viver,
como diz o psicanalista Contardo Calligaris (2019, p. 37-38), compreendendo que as HQs vão
além do que parecem ser, como toda obra de arte.
É também necessário levar em conta que a arte não possui o propósito de servir a
alguém e muito menos como mero objeto decorativo. A arte, seja ela abstrata ou não, é a forma
que o sujeito de sua época encontra para se comunicar com a sociedade onde vive e com seus
governantes. A arte faz parte também do patrimônio cultural, pois é nela que muitas vezes as
memórias são marcadas, são lapidadas e expostas ao público, tanto idoso quanto jovem,
mantendo vivo aquilo que jamais deve ser esquecido. Para Candido (1995, p. 175), “os valores
que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas
manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática.”

As HQs: Maus, Black Dog e Chleb

“Maus”, “Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash” e “Chleb Wolnościowy” (ou “o pão
da liberdade”) são obras artísticas que abordam dois temas principais entre si: o testemunho e
a sobrevivência em tempos autoritários. Os três livros configuram aquilo que é conhecido por
graphic novel, em outras palavras, os famosos quadrinhos ou HQs. Porém, atribuí-los
sinônimos como o termo ‘gibi’, não faz jus a todo preparo da equipe técnica e dos escritores
que trabalham em uma HQ. Principalmente por terem todo o cuidado em abordar os relatos de
resistência com respeito e conectá-los às imagens densas que foram gravadas naquelas páginas.
As cores representam na arte a circunstância, por exemplo, as cores frias podem
simbolizar a solidão, a realidade caótica em que se vive, o sofrimento, o luto. Muitas vezes
esses momentos são impossíveis de narrar, dolorosos demais para contar a um ouvinte. Nesse
caso, outras formas de se manifestar podem ser positivas, como a pintura ou o desenho foi para
Paul Nash. Algumas das imagens não possuem cor alguma por assim dizer, que se explica frente
aos temas representados, como a Primeira Guerra Mundial em “Black Dog”, e a shoah, tanto
em “Maus” quanto em “Chleb Wolnościowy”. Seria inapropriado como também insensível
diante do sofrimento alheio, utilizar cores alegres e uma ambientação jovial, como na “Turma
da Mônica”, para representar tamanho crime contra a dignidade humana que foram as duas
guerras mundiais. Não apenas livros, mas estas graphic novels se transformam em registros de
115

memórias desses tempos de outrora que não devem ser esquecidos e muito menos sufocados,
devem ser lembrados para que jamais se repitam.
Em “Maus” há a representação da perseguição nazista contra os judeus; inicialmente
foi lançado em duas versões, a primeira em 1986 e a segunda em 1991, desfazendo a crença de
que as HQs estariam relacionadas ao humor e a historinhas infantis. O autor Art Spiegelman
(2005), criou a HQ baseado nas conversas com seu pai, Vladek, o que é detalhado através das
imagens e dos diálogos logo nas primeiras páginas. Vladek, um judeu polonês, revela memórias
de quando era mais novo e como sobreviveu ao campo de concentração nazista. A história
revela pontos fortes como as memórias que o pai relata desde que foi preso no começo da guerra
até o fim dela, nisso tudo há o suicídio da mãe, Anja, que não sobreviveu ao horror do campo
de concentração e a morte do irmão, Richieu.
Em Maus, é justamente o processo criativo utilizado por Spiegelman na produção desta
obra junto às memórias do pai que fazem desta HQ algo especial e único. Os judeus são
representados por ratos, os poloneses por porcos e os nazistas por gatos. Uma primeira versão
da obra circulou, em 1980, onde os judeus seriam pequenos ratos e os nazistas são gatos grandes
e com traços de vilania. Porém, ao ser reformulado, Spiegelman decidiu refazê-los de maneira
diferente, todos do mesmo tamanho e sem expressões faciais de tirania ou de inocência, para
que o próprio leitor pudesse realizar suas reflexões sem ser sugestionado a determinados
estereótipos. No entanto, algumas tendências realmente permaneceram na HQ, como por
exemplo, os americanos serem representados por cães, animais conhecidos por sua lealdade e
bravura.
Spiegelman demonstra nos quadros e nos diálogos a relação sofrida que possui com
seu pai, a dor de uma mãe suicida e do irmão que jamais conheceu. Spiegelman não viveu as
situações que seus pais e irmão viveram de maneira direta, porém, o estigma delas
permaneceram e influenciaram a sua identidade em formação (CUADROS, 2019). Para Hirsch
(2012), é importante “classificar” a obra de Spiegelman como pós-memória, o termo criado por
ela serve para estabelecer quando os filhos herdam as memórias de seus pais, como é o caso de
“Maus”. A HQ revela de maneira sutil, porém amendrontadora, o sofrimento durante a IIGM.
Utiliza como base o testemunho de sobrevivência de seu pai, Vladek. Ou seja, Vladek foi quem
viveu os dias sombrios no campo de concentração de Auschwitz. Porém, Spiegelman cresceu
em um lar que foi tomado pelo trauma pós-guerra, com uma mãe que cometeu suicídio e um
pai que não gostava de partilhar as lembranças e, inclusive, discriminava alguns grupos sociais.
Spiegelman cresceu com essas memórias, assim, os poucos relatos e as “feridas” foram
transferidos para o dia a dia do artista.
116

Em “Black Dog”, temos a transposição dos sonhos de Paul Nash pela mente criativa
de Dave Mckean (2018). Paul Nash foi um artista britânico de grande importância e influência.
Suas pinturas constam, inclusive, como documentos da Primeira Guerra Mundial (IGM) de
maior importância (WALDMAN, 2018, p. 5). O artista serviu como soldado e como um oficial
artista de guerra no Exército britânico em 1914. Registrar o ocorrido é impedir que a memória
se perca ou seja apagada, “Black Dog” é parte do 14-18 NOW, “uma programação de cinco
anos de novas obras culturais criadas especialmente para marcar o centenário da Primeira
Guerra Mundial” (WALDMAN, 2018, p. 5). Os sonhos de Paul Nash refletiam as marcas que
a guerra havia deixado em sua identidade, o choque pós-guerra (Transtorno de Estresse Pós-
Traumático, TEPT ou PTSD). A arte já fluía em Paul antes da guerra, e acabou servindo de
auxílio como processo de ressignificação do horror vivido, concordamos que é difícil imaginar
um artista em um campo de batalha. A arte atua como processo terapêutico e faz com que o
sujeito explore sua psique trabalhando os eventos traumáticos (VYGOTSKY, 1998).
Buscava-se o artista ideal contemporâneo que pudesse transpor os sonhos e os relatos
pós-IGM de Paul Nash para uma HQ. Eis que surgiu Dave Mckean que conseguiu criar uma
“obra de arte que iria iluminar de uma nova maneira, as experiências e o impacto da Primeira
Guerra” (TAIT, 2018, p. 5). Aproximando diversos leitores e apreciadores do desenho e da
pintura artística, procurando refletir sobre a vida de um outro artista e o impacto que a guerra
teve na vida dele. Paul Nash também representou através das imagens tudo que viveu de melhor
e de pior no período da IGM. Como por exemplo, sua cerimônia de casamento, em meio a
bombardeios.

Paul Nash tem sido descrito como um artista romântico que criou um panorama do
sentimento em sua obra, que promoveu uma ponte entre o indíviduo e o mundo
natural, que foi tanto um pintor como um poeta, e não só. Em nossa visão, Dave
proporciona uma nova dimensão para o entendimento e a apreciação de Nash e suas
experiências na Primeira Guerra. Usando sua genialidade para a criação de imagens,
no campo narrativo e visual, ele criou uma obra de arte original que dialoga de forma
poderosa com o público dos dias de hoje (TAIT, 2018, p. 5).

Segundo Jenny Waldman (2018), diretora da programação artística do Reino Unido a


respeito do centenário da IGM, (14-18 NOW), a reflexão do artista diante da guerra é de
extrema importância para a sociedade. Pois ele consegue “iluminar eventos que podem parecer
abstratos para aqueles de nós que vivem a alguma distância dos horrores do campo de batalha”
(WALDMAN, 2018, p. 5). Ou seja, a arte:

[...] carrega um poder profundo e único, moldando nossa compreensão dos episódios
históricos que a inspiraram. [...] Isso é verdadeiro principalmente em relação às
pinturas de Paul Nash, que mantêm sua relevância e ressonância um século após sua
117

criação, e igualmente verdadeiro em relação a esta nova obra essencial de Dave


Mckean (WALDMAN, 2018, p .5).

Em Chleb Wolnościowy, o autor Paweł Piechnik (2019) utilizou o testemunho de onze


pessoas que sobreviveram a shoah e utilizou imagens fortes para acompanhar os
acontecimentos nos relatos desses sobreviventes. Com o intuito de chamar mais atenção e ficar
por mais tempo nas memórias dos leitores, as graphic novels servem a outros propósitos que os
livros de testemunhos. Elas conseguem abordar as narrativas de maneira diferente. Nos
desenhos de Piechnik há a presença da empatia e da preocupação com o outro entre os judeus,
mesmo sendo uma situação catastrófica. No campo de concentração de Majdanek, mais de 150
mil pessoas sofreram e permaneceram no local até o final da Segunda Guerra Mundial (IIGM).
Estima-se que em torno de 80 mil pessoas morreram por inúmeros motivos, dentre eles a miséria
e doenças, como é descrito e mostrado na HQ. O significado do título representa um tipo de
pão que era tradição da gastronomia dos poloneses, e esse mesmo pão era feito nos campos de
concentração e pequenos pedaços distribuidos entre os que trabalhavam, esporadicamente. O
cheiro do pão assado provocava saudade do lar e tristeza ao mesmo tempo que lhes dava
esperança (PIECHNIK, 2019).
Assim, nos deparamos com esta criação de Paweł Piechnik, onde o artista trabalhou
juntamente com o Museu do Estado em Majdanek, na Polônia, em comemoração ao aniversário
do museu de setenta e cinco anos de existência. Em virtude da importância da data, o museu
realizou diversos trabalhos educacionais, um deles foi a HQ. No website38 da graphic novel há
informações a respeito do museu e inúmeras fotos do campo de concentração, que ficava há
quatro quilômetros de Lublin, assim como fotos de pertences e utensílios das vítimas, que foram
encontrados no campo. No site, é explicada a missão do museu com a sociedade: proporcionar
educação histórica e cultivar a memória da ocupação alemã em Lublin durante a IIGM. Assim
como relembrar as vítimas e as histórias daqueles que foram assassinados nos campos de Bełżec
and Sobibór (dois campos de extermínio).

Considerações Finais

As imagens cuidadosamente criadas e colocadas nas três obras retratam o horror que
é a guerra, seja qual for, o que ela é capaz de causar naqueles envolvidos, e com isso me refiro
tanto aos soldados quanto aos civis. É percebendo a importância deste assunto e seu dinanismo

38
http://chlebwolnosciowy.pl/en/
118

diante de tempos modernos que essa pesquisa vem para somar ao conhecimento existente. E
com isso, busca solucionar certas questões ainda não resolvidas.
Assim, pode-se afirmar que estas obras também falam de resistência e esperança de
dias melhores apesar do horror e da barbárie. Para Bosi (2002) o ato de resistir a algo é como
um ato de se opor à uma força, por isso a palavra ‘resistência’, resistir à violência e aos
perpetuadores de eventos que possam ferir a dignidade humana. Nesse caso, devemos
considerar a obra de arte como um movimento de “(r)existir” às brutalidades da violência
exercida por grupos que detêm o poder político e/ou econômico. O ato artístico se torna
libertador, seja através da literatura ou de outro processo, pois é também um ato de resistir
(GOGH, 2008).
Dessa forma, a pesquisa engloba as três obras citadas, seus respectivos temas e seus
processos criativos. Os testemunhos de sobreviventes que sofreram com governos opressores
autoritários e suas práticas violentas são contadas de duas formas diferentes, uma narrada e
outra mostrada, literalmente, através de discursos diretos e imagens (LODGE, 2010), onde um
meio favorece e corrobora o outro. As graphic novels estão cada vez mais procuradas e
conhecidas nos mais diversos públicos, abordando os mais diversos temas. Por exemplo,
“Maus” já foi premiado com o Pulitzer em 1992 e traduzido para mais de vinte línguas. A
pergunta que não quer calar é como alguém pode narrar o inenarrável? Esta pesquisa vem com
o propósito de tentar responder parte dessa questão com o auxílio das graphic novels. Há uma
outra alternativa para o sobrevivente que não consegue narrar, há outra forma de tentar contar
a sua história pessoal a fim de dar sentido a ela.

Referências

ALVES, J. M. Histórias em quadrinhos e educação infantil. Psicol. cienc. prof., Brasília, v.


21, n. 3, p.2-9, 2001.

ANDRADE, L. Q. Terapias Expressivas. São Paulo: Vetor, 2000.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2002.

BOSI, A. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CALLARI, V. Um problema de taxonomia? Graphic Novels como literatura de testemunho:


O caso de Art Spielgeman. Intellèctus, n.1, p. 209-226, 2019.

CALLIGARIS, C. Cartas a um jovem terapeuta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.


119

CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CUADROS, L. C. F. Maus: a legitimação pós-moderna da graphic novel como espaço de


rememoração e resistência à barbárie. Afluente, UFMA/Campus III, v.4, n.12, p.215-231,
2019.

GOGH, V. Cartas a Théo. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2008.

HIRSCH, M. The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the
Holocaust. Columbia University Press, 2012.

LODGE, D. A Arte da Ficção. São Paulo: L&PM, 2010.

PIECHNIK, P. Chleb Wolnościowy. Lublin: Majdanek, 2019.

SPIEGELMAN, A. Maus. Tradutor Antonio de Macedo Soares. Rio de Janeiro: Quadrinhos


na Cia, 2005.

_______ . Metamaus: A Look Inside a Modern Classic. Nova Iorque: Pantheon Books,
2011.

TAIT, J. Prefácio. In: ______. MCKEAN, Dave. Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash.
Tradução de Bruno Dorigatti. Rio de Janeiro: Editora Darkside Graphic Novel, 2018.

TODOROV, T. A Literatura em Perigo. Tradução Caio Meira. Rio de janeiro: DIFEL,


2009.

VYGOTSKY, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

WALDMAN, J. Prefácio. In: ______. MCKEAN, Dave. Black Dog: Os Sonhos de Paul
Nash. Rio de Janeiro: Editora Darkside Graphic Novel, 2018.
120

LITERATURA E MULTILETRAMENTO LITERÁRIO: POSSÍVEIS IMPACTOS DO


(SUPER)USO DA TECNOLOGIA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 NA
FORMAÇÃO DO LEITOR

Claudia Regina Camargo

Introdução

O presente artigo busca estimular a reflexão sobre a importância da literatura para a


aquisição pessoal de cultura, como meio de melhorar o raciocínio crítico, levar conhecimento
sobre o mundo e tantos outros aspectos interessantes que a literatura pode proporcionar para a
formação do indivíduo. Desta forma, pensar como este período de pandemia da COVID-19,
com a intensa imersão tecnológica que grande parte da população foi submetida, na forma de
home office, vendas e compras on-line, estudos (desde a educação infantil até os níveis mais
altos de pós-graduação), além das interações sociais que se intensificaram na web, pode
modificar a maneira como lemos e, ainda, se a tecnologia pode colaborar na formação de
leitores. Especificamente, buscaremos compreender a importância da mediação da leitura no
ambiente formal e, além disso, refletir como o multiletramento, através da tecnologia de
hiperlinks, pode contribuir para a formação de um tipo de leitor que se interesse por leituras de
contexto não linear, que por vezes pode demandar idas e vindas no texto semelhantes a
fragmentação que o hiperlink representa.
Justifica-se esta pesquisa pela oportunidade de aprofundamento nos estudos sobre
habilidades de leitura, formação de leitores e a tecnologia como coadjuvante neste processo.
Para tanto, a metodologia utilizada será a exposição de algumas informações sobre leitura no
Brasil, com o auxílio dos dados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2020), entre
outras estatísticas, e uma breve revisão bibliográfica para a conceituação sobre a leitura e seus
processos, a mediação e a formação do leitor e o contexto tecnológico e de multiletramento em
que nos encontramos e que é essencial para a interação com o mundo multissemiótico em que
vivemos.

Leitura, formação do leitor, multiletramento e a pandemia

Antonio Candido vem, desde os anos 1970, chamando a atenção para o poder
humanizador da literatura. O crítico propõe que a literatura “exprime o homem e depois atua na
própria formação do homem” (2002, p. 80). Em artigo publicado posteriormente, o teórico
121

retoma e aprofunda essas reflexões, afirmando que “a literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2004, p. 180). Candido entende que “a função da
literatura está ligada à complexidade de sua natureza” (CANDIDO, 2004, p. 176) e que ela atua
sobre o leitor principalmente por causa de sua elaboração formal. A “maneira pela qual a
mensagem é construída (...) é o aspecto, senão mais importante, com certeza crucial, porque é
o que decide se uma comunicação é literária ou não” (CANDIDO, 2004, p. 177, ênfase no
original). A leitura envolve e desenvolve muitas habilidades cognitivas durante a interação do
leitor com o texto, pela significação do código literário que é construída através da participação
ativa do receptor. Dessa forma, podemos afirmar que, sem a leitura a teoria literária não faria
qualquer sentido, existindo, portanto, em função da leitura, da literatura e do leitor. Levar isso
em consideração no contexto escolar e na formação dos leitores é fundamental, já que a
formação de leitores habilidosos, capazes de desenvolver uma leitura crítica do mundo, deve
ser papel da escola, que, contudo, muitas vezes não consegue exercer essa função
eficientemente, sendo, na maioria das vezes, mais voltada ao consumo de textos rápidos.
A questão da competência leitora torna-se complexa quando analisamos a pesquisa
realizada pela Ação Educativa (2016), o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) que,
embora aponte um número de analfabetos de apenas 8% da população, mostra dados
assustadores sobre o analfabetismo funcional. Apenas 12% da população é considerada
proficiente em leitura e compreensão de texto, considerando a população que finalizou o Ensino
Médio de forma competente. Essa competência pode ser aprendida por meio da exposição do
indivíduo, e falemos aqui do aluno especificamente, a novos gêneros e tipos de textos diversos.
Portanto, é função da escola oportunizar essa formação.
Desse modo, a literatura deve ser trabalhada como um meio dos leitores ampliarem a
compreensão crítica do mundo, investindo-se na formação consciente de seu papel no ato
dinâmico da leitura. Devemos ponderar, é claro, que a família e o próprio indivíduo têm sua
responsabilidade na formação leitora. Quando o estímulo à leitura acontece também no
ambiente informal (fora da escola), percebe-se que o leitor consegue compreender o mundo,
lidar com os signos e desenvolver senso crítico precocemente de uma maneira muito melhor do
que seria, se o leitor tivesse contato com a literatura apenas no ambiente escolar, especialmente
porque se a leitura faz parte do contexto familiar, obtém-se um hábito mais sólido, já que ele
fica ligado às memórias afetivas dentro do contexto do letramento literário. Além disso, para
que o leitor conheça o prazer da leitura e queira se aventurar pelos diversos estilos, ele precisa,
acima de tudo, ser instigado a isso.
122

Em geral, a escola não oferece espaço para troca de experiências, discussões e


valorização da interpretação dos alunos, práticas fundamentais para a interação do texto e do
leitor, o que pode ser desmotivador. O currículo e a formação necessária para passar no
vestibular são muito mais valorizados pela quantidade do que pela qualidade da leitura. É dever
do ensino de literatura ir além disso, removendo obstáculos e proporcionando ocasiões para que
o aluno vivencie a experiência literária, já que mesmo quando recebe o incentivo familiar e
aprecie a leitura, esse leitor pode não avançar muito, pela falta de oportunidade de discussão e
compreensão dentro do ambiente formal, proporcionando uma melhor interpretação do texto
literário. Mas, além da interpretação, a conexão sentimental, a empatia e o estímulos aos
sentimentos todos que um texto pode gerar, são essenciais para que o vínculo com a leitura
literária seja estabelecido.
A busca de sentidos pode tornar a leitura incompleta “porque, se lhe sobra razão, lhe
falta alma” (DINIZ, 2016, p. 33). Desta forma, a formação literária não deve somente ensinar
a observar alguns aspectos e contextos, mas lembrar que a leitura é fruição, que deve cativar
não somente nosso intelecto, mas também nosso emocional. Portanto, proporcionar esta
formação adequada de leitores que possam encontrar emoção, prazer e desafios na leitura
literária se inicia com a ação mediadora na formação de novos leitores e deve ser uma das
maiores preocupações da escola e da academia.
Dentro desse contexto, podemos dizer que a literatura de massa pode ter um papel
importante na formação inicial de leitores, em criar o hábito de leitura, em proporcionar o
prazer, sensações, que “tornam o mundo real mais pleno de sentido e mais belo” (TODOROV,
2010, p. 23). A literatura de massa, considerada como um tipo de leitura com linguagem pobre
e repleta de clichês, que não oferece desafios ao leitor, e por isso a crítica literária a classifica
como uma literatura de qualidade duvidosa, de qualquer forma é uma porta de entrada para o
mundo literário clássico, especialmente quando falamos de jovens leitores. Seria ingênuo
pensar que um leitor adolescente preferisse uma obra de Machado de Assis, ou José de Alencar,
a uma obra de J. K. Rowling e o seu incrível Harry Potter, por exemplo.
Mas quem é o leitor na verdade? Intuitivamente, leitor é qualquer pessoa que se
disponha ao ato da leitura. No entanto, podemos dizer que variadas questões envolvem a
atividade de ler, auferindo-lhe certa complexidade.
Barthes (2004) atribui ao leitor o papel de produtor de sentidos que deve cobrir todos
os pontos do texto, mediante o processo de leitura, ou seja, um texto é feito de escrituras
múltiplas, oriundas de diversas culturas que dialogam, e essa multiplicidade pode ser
reconhecida no leitor:
123

(...) o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações
de que é feita uma escritura: a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu
destino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história,
sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um
mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES, 2004, p.
64)

A vida cotidiana desse leitor está repleta de informações, disponíveis e acessíveis


facilmente. A escola não precisa ser mais um agente fornecedor delas. Talvez a escola devesse
se preocupar menos com informações e mais com formação intelectual pautada na
transdisciplinaridade (articulação e integração de conteúdo). Essa formação intelectual
necessita de uma educação sensibilizadora que pode ser fornecida pela arte e, portanto, também
pela literatura. Segundo o documento Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (PCNEM) de
2006, “a educação da sensibilidade tornou-se tão importante quanto a científica”. Por meio da
arte e da educação estética é possível a “(...) humanização do homem coisificado” (BRASIL,
2006, p. 53). É pensando na formação de um leitor que não seja apenas funcional – recolhedor
de informações (BALULA, 2009), mas também produtivo, capaz de criar, produzir sentidos,
ser sensibilizado e que transite por várias narrativas, apreendendo sentidos e sentimentos, que
pensaremos uma forma de mediação capaz de colaborar nessa formação.
Petit (2008, p. 166) aponta que “não é a biblioteca ou a escola que desperta o gosto de
ler, por aprender, imaginar, descobrir. É um professor, um bibliotecário que, levado por sua
paixão, a transmite por meio de uma relação individual”. É, portanto, papel do professor
apresentar obras da literatura clássica, moderna e pós-moderna. Para que haja o interesse por
essa leitura, o professor deve ser o “elo de ligação (sic) que costura, articula, incentiva,
discretamente interferindo, para enriquecimento no que tange ao texto em sua materialização
ou em inferências” (PEREIRA; PONCIANO, 2009, p. 63). É claro que, para a concretização
dessa proposta, a formação leitora dos professores deve também ser adequada. Em Retratos da
leitura no Brasil (2016), muitos professores apontaram não gostar de ler. Se o repertório cultural
e o prazer de leitura não fizerem parte do acervo do docente, certamente ele não poderá oferecer
isso aos seus alunos.
O primeiro passo é, então, dispor de professores de literatura, ou de mediadores de
leitura com a qualificação adequada: que tenham prazer na leitura e que disponham de um rico
repertório cultural a oferecer. O segundo passo é ter em mente que tipo de leitor se quer formar.
E a resposta é: um leitor que não seja apenas capaz de codificar os códigos da língua, sua
morfologia ou sintaxe, mas que vá além disso, que abra sua mente para novas interpretações e
que saia da sua zona de conforto. Para alcançar essa formação é necessário que o leitor seja
124

introduzido a textos os mais variados possíveis, por meio de um repertório gustativo capaz de
aguçar sua curiosidade pela experimentação literária.
Um exemplo de como a escola trata (quando trata) de literatura, de forma superficial,
sem instigar o leitor na busca do que é realmente importante no texto, é o que Todorov (2010,
p.29) diz sobre o poema Perceval (Chrétien Troyes): “Os alunos serão interrogados sobre o
papel de tal personagem, de tal episódio, de determinado detalhe na busca pelo Graal, mas não
sobre a própria significação dessa busca”.
Percebemos assim que, se vamos falar de leitura e formação do leitor, temos que
considerar as mudanças que acontecem todos os dias nesse tripé (leitor, texto e leitura). Essas
mudanças passam, atualmente, pelas leituras em diferentes suportes, que têm ganhado um
grande público, especialmente entre os mais jovens, proporcionando uma dinâmica diferente
no ato de ler. O universo digital, especificamente falando dos smartphones, mas também dos
computadores, e-readers e tablets, proporciona um novo ambiente e novas formas de se ler um
texto, tudo graças ao advento da tecnologia e da internet, que trouxe com ela o hipertexto.
O termo hipertexto foi cunhado por Theodore Nelson (1992) em meados dos anos
1960, para exprimir a ideia de escrita/leitura não-linear em um sistema de informática, sendo,
portanto, um conceito próprio dessa área. O conceito é formado pela adoção do morfema hiper,
que se deve à noção de extensão e amplitude e veio ressignificar a linearidade e a não
linearidade discursiva, semelhante ao que ocorre com muitas obras literárias, que podem ser
bastante desafiadoras para os leitores, pela falta de linearidade na sua estrutura, dada pelas
questões temporais (analepses, prolepses ou outras anacronias). Este vai-e-vem no texto pode,
muitas vezes, se assemelhar a este caminhar que fazemos quando navegamos na internet,
através dos hipertextos. Assim, a literatura também pode ser favorecida pela familiaridade que
o leitor tenha com esses multimeios, facilitando a compreensão de literaturas que transgridam
essa linearidade, por exemplo.
Quando falamos de leitura não linear, estamos falando de um modo de se comunicar
o que deseja, um arranjo de texto, uma coesão multimodal a partir de sua organização, sendo
que esse aspecto da construção textual irá determinar o caminho de leitura, pois quando os
elementos são organizados de forma linear o caminho de leitura é mais restrito do que quando
a organização é mais dinâmica e modular, permitindo ao leitor percorrer caminhos diversos de
leitura. Segundo Kress e Van Leeuwen:

Se um caminho de leitura é circular, alguém pode ler de dentro para fora, em círculos
concêntricos, começando no que seria o coração da mensagem. Se o caminho de
leitura é linear e horizontal, ele constitui uma progressão, movendo inevitavelmente
125

em direção ao futuro (ou ao contrário, em direção à origem de todas as coisas). Se é


vertical, um sentido de hierarquia é produzido, um movimento do geral para o
específico, do título para o rodapé. (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 205,
tradução nossa39).

O hipertexto traz a experiência conferida pelos hiperlinks, que pode, dessa forma,
proporcionar habilidades de leituras mais dinâmicas para quem está familiarizado com a leitura,
nos diferentes suportes digitais. Hiperlinks são recursos digitais utilizados para oferecer
informações complementares por meio de navegação por partes destacadas no texto (texto
digital), como o que acontece numa leitura analógica (livro impresso), quando a partir de uma
citação de rodapé, desviamos nossa atenção do texto central para apreender uma informação
secundária e subsidiária a este texto. Essa forma de ler por hiperlinks confere fragmentação ao
texto, pois o leitor sai do texto A para o B, e por vezes, para o C, para o D, para então ir
refazendo o caminho de volta (quando não há mais hiperlinks, ou seu interesse pelo conteúdo
principal o chame de volta), trazendo várias informações antes de chegar ao ponto A
novamente, do qual poderá sair em seguida, dependendo dos hiperlinks encontrados e de sua
decisão de como construir os caminhos de leitura, pondo um fim à linearidade do texto.
Lévy (2010, p. 56) apresenta todo o potencial de leitura a partir do hipertexto: “Agora
é um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à
vontade frente ao leitor”. Esse conceito de texto que o autor nos apresenta assemelha-se muito
a teoria ergódica da literatura40, desenvolvida por Aarseth (1997) que tem como elementos
chaves: o romance em formato hipertextual, o discurso multiusuário (MUD), a ficção
algorítmica e os jogos de aventura. Assim, o pesquisador ressignifica o (ciber) texto a partir
dessa nova possibilidade:

Em vez de definir o texto como um encadeamento de significantes, à maneira dos


linguistas e semióticos, utilizo a palavra para abarcar toda uma série de fenômenos
que vão de poemas breves até programas e bases de dados informáticos complexos.
Como o prefixo ciber indica, o texto é encarado como uma máquina – não
metaforicamente, mas como um dispositivo mecânico para produção e consumo de
signos verbais41. (AARSETH, 1997, p. 20-21)

39
If the reading path is circular, one reads outwards, in concentric circles, from a central message which forms
the heart, so to speak, of the cultural universe. If the reading path is linear and horizontal, it constitutes a
progression, moving inexorably forwards towards the future (or backwards, towards the ‘origin’ of all things). If
it is vertical, a sense of hierarchy is signified, a movement from the general to the specific, from the ‘headline’ to
the ‘footnote’.
40
Teoria Ergódica é um ramo da matemática que estuda sistemas dinâmicos. O termo ergódico vem do campo da
física, sendo etimologicamente originário do grego, onde ergon significa trabalho e hodos significa trajetória.
Sendo assim, a literatura ergódica seria uma nova maneira de ler que implica num gasto de energia tanto mental
quanto física do leitor, já que este precisa manipular os fragmentos do texto. (AARSETH, 1997, p. 1)
41
Instead of defining text as a chain of signifiers, as linguists and semioticians do, I use the word for a whole
range of phenomena, from short poems to complex computer programs and databases. As the cyber prefix
126

É visível que a cultura contemporânea está imersa na cibercultura, criando relações


entre a técnica e a vida social. A literatura digital insere-se neste contexto de diversas formas,
por meio da linguagem hipermidiática, que proporciona novas formas de escrever, ler,
compartilhar e difundir histórias. Para Ferreiro (2012, p. 13) “ler e escrever são construções
sociais; cada época e cada circunstância histórica dão novos sentidos a esses verbos”. Chartier
(2002) afirma que os novos meios de comunicação fortalecem a cultura textual, pela
imensurável disponibilidade de textos nos suportes digitais (telas de computadores, tablets,
smartphones) e que a relação do leitor com o texto dependerá sempre do contexto, de práticas
cognitivas do leitor e da forma como ele encontra o texto lido. Santaella também depreende as
mudanças que acontecem no conceito de texto integrado às multimodalidades que o podem
compor:

É notório que o conceito de texto vem passando por transformações profundas desde
que as tecnologias digitais entraram em uso. A integração do texto, das imagens dos
mais diversos tipos, fixas e em movimento, e do som, música e ruído, em uma nova
linguagem híbrida, mestiça, complexa, que é chamada de “hipermídia”, trouxe
mudanças para o modo como entendíamos não só o texto, mas também a imagem e o
som. (SANTAELLA, 2007, p. 286, ênfase no original)

De forma geral, os livros de literatura se apresentam de forma monomodal, ou seja,


possuem apenas letras, o que é completamente diverso do contexto atual, repleto de
representações e fontes de linguagem, como imagens em forma de gráficos, charges,
ilustrações, memes, etc., ou seja, diversos modos de produzir mensagem. Essa multiplicidade
de modos é o que chamamos de multimodalidade. Segundo Kress e van Leeuwen (2006):

Definimos multimodalidade como o uso de vários modos semióticos na concepção


de um produto ou evento semiótico, juntamente com as maneiras particulares em
que esses modos são combinados - eles podem, por exemplo, reforçar uns aos outros
(dizer a mesma coisa de maneiras diferentes), cumprir funções complementares,
(...), ou serem ordenados hierarquicamente (...). (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001,
p. 20, tradução nossa42).

O objetivo pedagógico dos multiletramentos “é dar aos alunos uma noção sobre como
padrões de significação são produtos de diferentes contextos43 (...)” (COPE; KALANTZIS,
2008, p. 205, tradução nossa), e o uso desses depende da manipulação de diferentes modos

indicates, the text is seen as a machine-not metaphorically but as a mechanical device for the production and
consumption of verbal-signs.
42
We have defined multimodality as the use of several semiotic modes in the design of a semiotic product or event,
together with the particular way in which these modes are combined - they may for instance reinforce each other
(‘say the same thing in different ways'), fulfil complementary roles, (…), or be hierarchically ordered (…).
43
The aim is to give students a sense of how patterns of meaning are the product of different contexts (...).
127

semióticos, sendo uma das propostas da pedagogia dos multiletramentos. Assim, a


multimodalidade, como união dos diferentes modos, é apresentada por Kress como as distintas
maneiras de representar o mundo:

(…) os modos oferecem distintas maneiras de se envolver com o mundo e distintas


maneiras de representação do mundo. Eles oferecem potenciais distintos e diferentes
para apresentar o mundo; distintas possibilidades de transcrição; e com isso distintas
“tecnologias culturais” de transcrição44. (KRESS, 2010, p. 96, tradução nossa, ênfase
no original).

Dessa forma, vários estudos têm sido feitos sobre as práticas de ensino que envolvem
multimodalidades, inserindo o aluno em contextos culturais diferentes com a ajuda da
tecnologia. As mídias digitais e a web fazem com que os aparelhos como computadores, tablets
e smartphones se transformem cada vez mais em máquinas de produção colaborativa,
permitindo tanto a interação, quanto a colaboração e o compartilhamento de múltiplas
linguagens e fontes culturais.
Atualmente, jovens e crianças (incluindo jovens professores) são, quase na totalidade,
fluentes nas linguagens desses aparelhos e aplicativos. Assim, o multiletramento não tem a
função de ensinar a usar as ferramentas informacionais, mas se preocupa em como essas
ferramentas podem colaborar no desenvolvimento de habilidades cognitivas que permitam o
ensino e a aprendizagem.
Segundo Rojo (2012), essas novas práticas de letramento vêm suprir a necessidade
contemporânea dos inúmeros conhecimentos que as atividades cotidianas nos exigem e estão
baseadas numa multiplicidade de linguagens, culturas, práticas sociais e contextos. Essa nova
pedagogia foi proposta em 1996, num manifesto do Grupo de Nova Londres (GNL) – formado
por pesquisadores (americanos, ingleses e australianos) que se reuniram em Nova Londres
(Connecticut, EUA), afirmando a necessidade de a escola tratar desses novos letramentos
presentes na sociedade contemporânea. A autora propõe que o multiletramento se refere tanto
“a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos
textos pelos quais ela se comunica” (ROJO 2012, p. 13), textos compostos de muitas
linguagens, que exigem práticas de compreensão e produção para cada uma delas –
multiletramentos - para se fazer significar.
É pensando nessa perspectiva de múltiplas linguagens verbais e não verbais,
competências e saberes, que a ideia de características multimodais se apresenta em todos os

44
In that perspective, modes offer distinct ways of engaging with the world and distinctive ways of representing
the world. They offer different and distinct potentials for presenting the world. They offer different and distinct
possibilities of transcription; and, with that distinct ‘cultural technologies’ of transcription.
128

gêneros textuais, falados (entonação, gestos, expressões) e escritos (palavras, imagens,


tipografias). Assim, o multiletramento pode oferecer uma experiência enriquecedora no
desenvolvimento da competência leitora, ao introduzir ilustrações e recursos gráficos,
audiovisuais, hiperlinks, colaborando na construção de sentidos de um leitor que, na
contemporaneidade, precisa ser “competente intersemioticamente, isto é, um leitor que saiba
ler e relacionar as temáticas concretizadas nesses dois tipos de texto (o verbal e o visual)”
(GREGORIN FILHO, 2010, p. 55).

Um leitor plural não é somente aquele que consegue ser eficiente na leitura da
linguagem verbal em norma culta, mas aquele que consegue ler e traduzir as diferentes
linguagens presentes nos diferentes textos veiculados na sociedade: da norma culta às
gírias, das pinturas acadêmicas dos grandes artistas aos trabalhos de grafite
contemporâneos. (GREGORIN FILHO, 2010, p. 56)

É dentro desse entendimento do ciberespaço, das múltiplas linguagens, das mudanças


na interação de leitor e leitura, e também das mudanças sociais, cognitivas e discursivas que o
letramento digital e a cibercultura proporcionam, que pensaremos o multiletramento como
forma de auxiliar em uma formação de leitura competente, colaborando positivamente na
formação de leitores capazes de percorrer quaisquer caminhos literários de forma satisfatória.
Para termos uma visão sobre o cenário da leitura no país, e como os leitores usam os
recursos tecnológicos para suas leituras, vamos observar alguns dados divulgados pela 5ª edição
da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada em 2019 e divulgada em 2020. Nesta
pesquisa, foi considerado leitor todo aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro
nos últimos 3 meses. Desta forma, 52% da população se declarou “leitor”, sendo que menos de
60% destes leitores leram um livro inteiro (59,9%).
Ainda nesta pesquisa, verificamos no perfil dos leitores, dentro da base de leitores de
livros, que os leitores de literatura em outros formatos que não o formato impresso, somam 52%
entre as mulheres, ou seja, das mulheres que leem, 52% só lê em outros formatos (on-line, e-
book, PDF, Kindle, etc.), e entre os homens o número é um pouco menor, 48%. As idades que
preferem esses outros formatos se concentram entre 18 e 69 anos, com maior incidência entre
30 e 39 anos.
Falando sobre livros digitais, entre os leitores de livros apenas em outros formatos, a
pesquisa mostrou que 51% já tinham ouvido falar de livros digitais e 42% nunca tinha ouvido
falar de livros digitais. Quando a pergunta era se a pessoa já tinha lido um ebook, entre os
leitores de livros de literatura temos que 53% já leram e 40% dos leitores em outros formatos
também.
129

Vale lembrar que esse número deve aumentar, já que essa pesquisa foi feita antes da
pandemia, logo, é bem provável que em uma próxima pesquisa, os números sejam bem
diferentes, pois em 2020 o acesso ao livro impresso ficou um pouco prejudicado e as pessoas
se familiarizaram mais com a tecnologia. Portanto, o número de pessoas que talvez considerem
o livro digital mais vezes no futuro, pela experiencia que puderam ter durante a pandemia com
a imersão tecnológica, e também por considerar a questão do preço do ebook em relação ao
livro impresso, a facilidade de acesso (você adquire e já está com ele no seu dispositivo, sem
pagar frete) além da facilidade de carregar diversos tipos de livros em um dispositivo que pesa
apenas alguns gramas.
Aliás, é importante registrar que esse contexto da pandemia da COVID-19 transformou
muito nossa sociedade. Estamos enfrentando a segunda pandemia deste século, (a primeira foi
a H1N1) mas esta é, certamente, muito diferente de tudo o que se quer imaginávamos passar.
Segundo Barifouse (2020) da BBC News, em 2009, depois de quatro décadas sem uma
pandemia, a H1N1 contaminou, em cerca de 18 meses, 1,7 bilhão de pessoas e o número de
mortes chegou a 400 mil pessoas no mundo, sendo 80% deste número entre os jovens.
A COVID-19, em um ano, já infectou 77 milhões de pessoas e o número de mortes já
vitimou mais de 1,7 milhões45 de pessoas, e até que a população seja vacinada, esse número só
tende a aumentar. A solução encontrada até o momento é a prevenção, e para isso o isolamento
social é medida imprescindível para combater a propagação do vírus, e assim muitas atividades
estão suspensas ou restritas até a normalização da situação, e isto tem sido um desafio para
todos.
Essa parada forçada no mundo deixou as pessoas sitiadas dentro de suas próprias casas,
provocando uma alteração na rotina e no estilo de vida de todos. Leitura e práticas culturais
viraram a moda do momento. Tudo está disponível na rede: peças de teatro, shows ao vivo,
direto da casa dos cantores e bandas, bate-papos e palestras com escritores/autores (lives),
contação de histórias, leituras on-line, dicas e grupo de leitura, entre diversas outras atividades
disponíveis para quem se interessar.
Além disso, como um grande incentivo a disseminação da literatura e da leitura, neste
momento, diversas editoras têm disponibilizado materiais educacionais ou literários, em meio
digital, de forma gratuita ou com desconto46. É certo que isso se deve a uma expectativa criada

45
Dados do dia 21 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.covidvisualizer.com/. Acesso em 21 dez.
2020.
46
Uma pesquisa no buscador Google com os termos materiais educacionais literários gratuitos editoras pandemia,
traz mais de 165.00 resultados. Como exemplo:
130

no mercado editorial de que haja um interesse na compra de materiais (físicos ou digitais) na


pós-pandemia. Este setor que enfrenta dificuldades há tempos, teve um impacto grande desde
o início da pandemia, pois como a China é responsável pela impressão de maior parte dos livros
de grande tiragem, especialmente para o mercado europeu, muitas obras ficaram com as
entregas atrasadas. Nos Estados Unidos, atual epicentro da pandemia, as entregas feitas pela
Amazon não tem sido prioridade, causando uma queda ainda maior nas vendas dos livros
físicos47.
Na rede, o fomento à leitura digital ganha hashtags como #juntospelolivro,
#LeiaEmCasa, #FiqueEmCasaLeiaMais e diversos sites oferecem neste momento materiais
gratuitos: Editora Harper Coolins no Brasil, L&PM Editores, Livraria Cultura, Lelivros, Open
Library, Project Gutenberg, Editora Moinhos, Ubu, Amazon, (diversos títulos de textos
acadêmicos e ebooks), Editora Pedregulho, Google Play (3 milhões de livros gratuitos),
Universia (mais de mil livros gratuitos), Domínio Público (site do governo brasileiro),
Brasiliana (USP), Biblioteca Digital mundial ( www.wdl.org/pt), Biblioteca Europeana
(www.europeana.eu/pt), site do Plano Nacional de Leitura (pnl2027.gov.pt), entre outros.
Considerando a crise financeira atual, além do fato de as bibliotecas estarem fechadas, a
estratégia de oferecer materiais digitais gratuitos, é uma maneira amigável e criativa de oferecer
ao leitor essa experiência, uma familiaridade com o livro digital que muitos ainda não possuíam.
Outro aspecto de suma importância a ser abordado agora, diz respeito às aulas on-line
ou homeschooling, que a imperativa necessidade da pandemia trouxe para todas as escolas,
públicas ou particulares, em todos os níveis de educação, e em todo o mundo.
Neste sentido, uma rápida adaptação de pais, alunos, professores e instituições foi
necessária para atender uma demanda de ensino não presencial. Essa demanda foi atendida de
formas muito diferenciadas, considerando o nível de informatização que as próprias escolas já
possuíam, em termos de plataformas educacionais, ou de condições para se integrarem nessas

Editoras acadêmicas disponibilizam e-books gratuitos. Disponível em:<https://sistema.bibliotecas-


sp.fgv.br/noticias/editoras-academicas-disponibilizam-e-books-gratuitos>. Acesso em: 26 mar. 2021.
Literatura: 8 e-books gratuitos para baixar. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19594/8-e-books-
gratuitos-para-baixar. Acesso em: 26 mar. 2021.
Professora de Letras dá dicas de leitura para equilíbrio diante de pandemia; confira materiais, feira e clube online.
Disponível em: http://www.agenciacomunicacao.ufpr.br/site/?p=1652. Acesso em: 26 mar. 2021.
Livros e conteúdos gratuitos para ler na quarentena: veja 20 plataformas e sites. Disponível em:
https://www.zoom.com.br/livros/deumzoom/coronavirus-conteudo-e-books-livros-gratuitos-para-ler-na-
quarentena. Acesso em: 26 mar. 2021.
Livros on-line e gratuitos para as crianças na quarentena. Disponível em: https://lunetas.com.br/livros-gratuitos/.
Acesso em: 26 mar. 2021.
47
O mercado editorial na quarentena: como fica o mundo dos livros durante a crise? Disponível em:
https://www.vailendo.com.br/2020/05/05/o-mercado-editorial-na-quarentena-como-fica-o-mundo-dos-livros-
durante-a-crise/. Acesso em: 26 mar. 2021.
131

plataformas. Além disso, o próprio acesso à internet, por parte das diferentes regiões e os
acessos que as famílias possuem (aparelhos e conectividade à rede) foram decisivos na maneira
como as aulas on-line ou não presenciais aconteceriam.
Muitos desafios foram enfrentados por todos para conseguir realizar o ensino diante
de uma pandemia. Para os governos (municipais, estaduais e federais) o desafio foi conseguir
equacionar uma forma equilibrada para oportunizar o acesso de forma democrática para todas
as pessoas, o que certamente não foi fácil, e muitas vezes, nem possível. Para as instituições
públicas e particulares ainda houve resistência de professores e famílias quanto ao ensino
virtual. Para os professores, a dificuldade foi adaptar as aulas para o formato digital, seja na
forma de videoaula, aula interativa, ou outras formas, sem treinamento adequado sobre a melhor
pedagogia a ser utilizada por esses canais e sobre a própria tecnologia que seria utilizada. Para
os alunos, foi necessário aprender a utilizar a tecnologia de outra forma, não mais como apenas
entretenimento, mas sim como ferramenta de aprendizagem, além de gerenciar o tempo de
estudos, não se distraindo com outras redes sociais e apps durante as aulas. Para as famílias,
assumir a tarefa de tutor dos filhos na educação formal, especialmente com as crianças menores,
auxiliando com a tecnologia, com o cumprimento das atividades e, muitas vezes, com o próprio
ensino, visto que, por vezes, era mais fácil assumir esta tarefa que utilizar os canais oferecidos
pela instituição para contactar os professores.
Neste contexto, algumas soluções para o ensino de leitura literária foram adotadas em
algumas instituições, por meio de plataformas digitais: rodas de leitura em voz alta por meio da
plataforma Zoom ( MESCLE – UFRGS48); Tertúlia Literária Dialógica do programa de
aprendizagem do Instituto Natura e Universidade Federal de São Carlos 49; experiências de
letramento literário por meio de plataformas digitais de reunião — webconferências (oficinas
literárias, diários de leitura, encontros para discussão); letramento literário por meio de outras
plataformas como podcasts, grupos de discussão na plataforma WhatsApp, chats on-line e
recursos como vídeos e formulários on-line também foram usados para auxiliar nessa tarefa.
Desta forma, percebemos a importância do multiletramento, na medida que amplia
muito às possibilidades de ensino de diferentes disciplinas, logo, também da literatura. Isso se
faz muito importante, especialmente no contexto de leitura literária em que nosso país se
encontra, além dos desafios que podem surgir quando menos se espera, como foi a pandemia

48
Projeto de extensão MESCLE do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
voltado à escrita e à leitura, com público alvo da faixa etária de 14 a 18 anos, com divulgação por meio das redes
sociais. Disponível em: https://www.facebook.com/Mescle-104556338052568/. Acesso em 14 dez. 2020.
49
Disponível em: https://tertulias.faiufscar.com/#/. Acesso em 14 dez. 2020.
132

de COVID-19. Além disso, oferecer um multiletramento pode ser também uma estratégia de
melhorar a formação de leitores com competência diferenciada para apreciação de textos não
lineares ou com multiplicidade de itens, muito comuns em vários gêneros na literatura
contemporânea.

Considerações finais

Esta reflexão é parte de um estudo que se inicia para o doutoramento em Teoria


Literária e que pretende focar a formação do leitor não profissional de literatura para obras não
lineares e fragmentadas, com uma estrutura mais complexa. Desta forma, observamos que a
leitura no universo digital segue o padrão fragmentado e não linear, por meio dos hipertextos,
podendo, assim, colaborar com esse tipo de letramento dos leitores, oferecendo uma habilidade
diferenciada para a leitura.
O Brasil ainda é um país com um grupo de poucos leitores, sendo que estes, em grande
parte, preferem estilos que não oferecem muitos desafios além do simples entretenimento, em
histórias com linearidade, trama simples e, preferencialmente, com final feliz, marginalizando
a leitura de narrativas não convencionais.
No entanto, não devemos pensar apenas em formar leitores, mas, sobretudo, buscar
uma formação de leitor mais competente, capaz de desenvolver uma leitura crítica do mundo
que o cerca. Assim, devemos entender primeiro que, dentro de uma análise literária formativa,
deve existir a preocupação primária com a fruição. Sentir prazer na leitura deve ser o primeiro
passo para formar um leitor. A seguir, é preciso pensar que este leitor deve ter acesso aos bens
culturais, neste caso livros, seja com investimento em bibliotecas públicas e escolares, seja com
políticas públicas que viabilizem a aquisição dos livros pelos leitores. Só se pode pensar em
formação de leitor se este consegue acessar os livros de alguma forma.
Superados esses desafios é necessário que este leitor desenvolva habilidades diversas
dentro do vasto campo de gêneros literários. Dentro da perspectiva das artes pós-modernas
encontramos obras que podem ser muito instigantes para a interpretação. Obras sem linearidade,
com transgressões temporais, fragmentadas, niilistas, minimalista, com finais em aberto, enfim,
obras que desafiam o leitor a ir além da fruição, através de uma interpretação mais profunda.
Assim, a ideia é pensar como a tecnologia pode colaborar nesta capacitação. O
multiletramento já utiliza os recursos tecnológicos de várias formas para colaborar na formação
133

de alunos em diversas disciplinas. E claro, novamente aqui, precisamos pensar em acesso aos
recursos tecnológicos que possibilitem esse multiletramento.
Neste tempo de pandemia que estamos vivendo, e embora, abordar essa questão torne
este trabalho marcado no tempo, seus efeitos serão, de muitas formas, marcos para muitas
mudanças, e uma delas certamente será no ensino, que de muitas maneiras se transformou para
atender a demanda das escolas e dos alunos. E a tecnologia foi a maior aliada para grande parte
desta transformação.
Desta forma, a proposta aqui foi mostrar como os hipertextos com sua possibilidade
de ir e vir nos textos, caminhando de um ponto para outro, permitindo ao leitor a escolha do
percurso de leitura, pode colaborar na capacitação de leitura de textos não lineares e
fragmentados. Com base no que foi colocado, a ideia é dar um enfoque multidisciplinar ao
ensino de literatura, pensando no sujeito que se encontra nesse mundo multissemiótico e que
precisa de habilidades variadas para interagir com ele.
Assim, associar conceitos do multiletramento na formação do leitor, pode ampliar e
potencializar as habilidades e as possibilidades de interpretação, contribuindo com uma
formação de leitor que avance além do mero entretenimento literário, construindo um caminho
mais eclético e crítico de interpretação, colaborando assim na sua formação como leitor
competente.

Referências
AARSETH, E. J. Cibertext: perspectives on ergodic literature. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1997.

AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. O Alfabetismo Estudo


especial sobre o alfabetismo e o mundo do trabalho. Inaf – Indicador de Alfabetismo
Funcional. São Paulo. 2016. Disponível em <https://acaoeducativa.org.br/wp-
content/uploads/2016/09/INAFEstudosEspeciais_2016_Letramento_e_Mundo_do_Trabalho.p
df>. Acesso em 14 dez. 2020.

BALULA, J. P. R. Estratégias de leitura funcional: uma proposta de abordagem didáctica.


In: ENCONTRO DE INVESTIGAÇÃO E FORMAÇÃO – FORMAR PROFESSORES,
INVESTIGAR AS PRÁTICAS. 4., 2009, Lisboa: Centro Interdisciplinar de Estudos
Educacionais. Disponível em:
<https://repositorio.ipv.pt/bitstream/10400.19/716/1/Balula_2009_Estrat%C3%A9gias_de_Le
itura_Funcional.pdf >. Acesso em: 06 jul. 2020.

BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


134

BARIFOUSE, R. Como o Brasil foi afetado pela pandemia de H1N1, a 1ª do século 21? BBC
NEWS Brasil. São Paulo, 20 mar. 2020. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52042879. Acesso em: 26 mar. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares


para o Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.

CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa Oficial do


Estado de São Paulo; Editora UNESP, 2002.

COPE, B.; KALANTZIS, M. A Language education and multiliteracies. In: HORNBERGER,


N. H. (Org.). Encyclopedia of language and education, New York: Springer, v.1, p. 195-
211. 2008.

DINIZ, L. G. Por uma impossível fenomenologia dos afetos: imaginação e presença na


experiência literária. 2016. 333 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literaturas).
Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/22988/1/2016_LigiaGon%c3%a7alvesDiniz.pdf.
Acesso em: 28 mar. 2020.

FERREIRO, E. Passado e presente dos verbos ler e escrever. São Paulo: Cortez, 2012.

GREGORIN FILHO, J. N. Literatura infantil: múltiplas linguagens na formação de leitores.


São Paulo: Melhoramentos, 2010.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. 4. ed. São Paulo: Instituto Pró-
livro, 2016. Disponível em: http://prolivro.org.br/wp-
content/uploads/2020/07/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf. Acesso em:
01 jun. 2020.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. 5. ed. São Paulo: Instituto Pró-
livro, 2020. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-
brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/. Acesso em: 01 jun. 2020.

KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Multimodal discourse: the modes and media of
contemporary communication. London; New York: Arnold; Oxford University Press, 2001.

______; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual Design. London e
New York: Routledge, 2006.

_____. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. New


York: Routledge, 2010.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2010.

PEREIRA, M. T. G.; PONCIANO, M. R. R. A relevância da linguagem da literatura


brasileira em contextos de inclusão social. Revista Philologus, Rio de Janeiro, ano 15, n. 43,
p. 61-68, jan./abr. 2009.

PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008.
135

ROJO, R; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.


136

PRÍNCIPE OTTO ENTRE DOIS MUNDOS: O CONFLITO DA TRADIÇÃO DO


POVO E DA CORTE

Wladimir D’Ávila Uszacki

Introdução

O romance de Robert Louis Stevenson, Príncipe Otto, publicado em 1885, apresenta


uma “não aventura” de Otto, um príncipe de um infinitésimo principado germânico europeu
fictício do século XIX. O romance retrata como um governante negligente com seu Estado e
com seu casamento, através da experiência com as pessoas comuns, descobre que seu
principado está à beira da guerra, uma revolução é iminente e que sua esposa o está traindo com
um de seus súditos. A presente análise busca elaborar os traços textuais da personagem Otto
que apresentam uma fragmentação do sujeito, um conflito entre dois mundos: o social e o
pessoal. Sendo um príncipe, seu mundo social envolve a corte e o poder da autoridade de
príncipe; como marido, ele tenta reatar os laços de amor com a esposa, rumorada como infiel
pela população local e estrangeira. A análise é feita contextualizando as falas e comportamentos
de Otto, assim como suas (in)ações no mundo e que efeitos elas têm sobre sua reputação e sua
consciência.
Príncipe Otto retrata uma visão de mundo extremamente preconceituosa do final do
séc. XIX, onde perdura um ideal de raça forte e máscula, contrastando com uma família real
fraca, sensível e afeminada. Um lugar onde os interesses egoístas das personagens podem levar
à catástrofe pela ganância, ambição, ou mesmo pela negligência. A aventura de Otto é muito
mais psicológica que geográfica, saindo de seu lugar extremamente privilegiado e omisso, a um
governante preocupado, e um marido tentando reaver o afeto de sua esposa.
A narrativa de Stevenson frequentemente esbarra em longas descrições empilhadas,
uma sobre a outra, de forma a criar um eixo vertical descritivo. Essa construção textual oferece
um recorte do texto, criando a ilusão de cenas estáticas “em que pouco acontece, mas onde o
tempo parece não correr” (SANDISON, 1996, p. 153–154). Essa ilusão narrativa dá a certos
momentos do texto uma apresentação quase onírica, como a descrição idílica do principado de
Grünewald, ou a fuga da princesa pela floresta, fugindo dos revolucionários, como alguém que
finalmente acordou para a realidade. A característica atemporal do romance é reforçada pelo
fato de, no primeiro capítulo, o narrador afirmar que a data dos acontecimentos não é
importante, subentendendo-se que tudo se passou em poucos dias no centro da Europa em
algum momento do séc. XIX. Isso configura um aspecto pseudo-mítico à narrativa,
137

O Fantástico ou o Mítico é um modo disponível em todas as idades para alguns


leitores; para outros, em idade alguma. Em todas as idades, se é bem usado pelo autor
e atende ao leitor correto, ele tem o mesmo poder: generalizar enquanto permanece
concreto, apresentar de forma palpável não conceitos ou mesmo experiências, mas
classes inteiras de experiência e descartar irrelevâncias. Mas, em seu melhor, pode
fazer mais: pode nos dar experiências que nunca tivemos e, portanto, em vez de
“comentar a vida”, pode enriquecê-la (LEWIS, 2018, p. 94–95).

Segundo Lewis, uma obra Fantástica, ou Mítica, pode servir para mostrar algo da vida,
uma gama de experiências e sentimentos, talvez alheios ao leitor. Consideramos Otto um
exemplo disso em que mostra dois distintos ramos sociais: a vivência política e o afeto amoroso.
No aspecto político, Stevenson nos mostra um sujeito que não tem o interesse em governar,
mas se vê obrigado a fazê-lo, como um sacrifício pelo bem maior. Ao mesmo tempo, mostra a
submissão dele pelo amor, um tipo de altruísmo sincero que busca apenas o melhor para a
pessoa amada, de forma não exigente, mas que revela as falhas mais íntimas das personagens
como o pilar fundamental para um relacionamento verdadeiro.

As (con)tradições do Príncipe e do principado

Enquanto o narrador apresenta a terra de Grünewald, o principado fictício governado


por Otto, a narrativa nos apresenta um personagem pela perspectiva de terceiros. O título do
primeiro capítulo anuncia o início da aventura do príncipe: “In which the prince departs on na
adventure” (STEVENSON, 2015, p. 2). Os caçadores estão em busca do príncipe pelas colinas
e florestas do principado, pois ele saíra sem dar explicações a ninguém. Um dos caçadores de
Kuno, um dos caçadores amigos de Otto, comenta: “No, it’s begun again; it’s as it was three
years ago, before he married; a disgrace! Hereditary prince, hereditary fool! There goes the
government over the borders on a grey mare” (STEVENSON, 2015, p. 5). A personagem dá
indícios de que esta não é a primeira vez que o príncipe abandona o principado em busca de
alguma “aventura”, é algo que já aconteceu antes, um comportamento esperado dele. Ele afirma
sarcasticamente que o governo saiu à fronteira sobre um cavalo, ao invés de permanecer e
cumprir seu dever de governar.
No segundo capítulo, a narrativa apresenta um aprofundamento na percepção do
príncipe. Otto, escondendo sua verdadeira identidade, se hospeda em uma pequena fazenda na
fronteira entre Grünewald e Gerolstein, o grão-ducado vizinho. Na fazenda vive o trabalhador
Killian Gottesheim, com sua filha Ottilia e o noivo dela, Fritz. Pessoas simples, que, na
narrativa, representam a população média, as pessoas comuns da região, com alguma
138

consciência política, mas com fortes julgamentos morais sobre o príncipe. Interpretando
“Haroun al-Rashid”, Otto conversa com os habitantes da fazenda e ouve suas perspectivas sobre
a política local, em especial, como eles veem o famoso príncipe Otto. Killian revela que Otto
não é apenas mal visto pelo povo, mas que é de fato desprezado:

'Yes, sir, despised,' nodded Killian, filling a long pipe, 'and, to my way of thinking,
justly despised. Here is a man with great opportunities, and what does he do with
them? He hunts, and he dresses very prettily--which is a thing to be ashamed of in a
man--and he acts plays; and if he does aught else, the news of it has not come here'
(STEVENSON, 2015, p. 9).

Os motivos do desprezo são muitos, mas principalmente por ser ocioso, não aproveitar
seus privilégios e ser um governante “ruim”. Killian apresenta uma ética evidentemente
protestante, “tão conhecida por Stevenson” (SANDISON, 1996, p. 161) a respeito da
hombridade e da dignidade do homem. Ele encara o príncipe como um homem que não respeita
a si à sua autoridade régia, pois apenas goza dos prazeres da vida e negligencia seus deveres de
príncipe.

'But here it is; I have been fifty years upon this River Farm, and wrought in it, day in,
day out; I have ploughed and sowed and reaped, and risen early, and waked late; and
this is the upshot: that all these years it has supported me and my family; and been the
best friend that ever I had, set aside my wife; and now, when my time comes, I leave
it a better farm than when I found it. So it is, if a man works hearty in the order of
nature, he gets bread and he receives comfort, and whatever he touches breeds. And
it humbly appears to me, if that Prince was to labour on his throne, as I have laboured
and wrought in my farm, he would find both an increase and a blessing'
(STEVENSON, 2015, p. 9)

De acordo com o fazendeiro, sem o trabalho “honesto” e suado, Otto não tem o direito
de colher as coisas boas da vida. Ele propõe um ideal de recompensa através da labuta. Se ele
laborasse, em seu trono, como o fazendeiro o fez no campo, colheria os frutos e deixaria o reino
um lugar melhor. Essa perspectiva ignora totalmente a experiência de Otto em sua vida de corte,
cuja bajulação é a moeda corrente. “A doença da política é a doença das palavras” (RANCIÈRE,
2017, p. 247), na corte não existem resultados diretos, apenas jogos de interesse entre os
poderes. Não há uma mensurável melhora do governo quando inúmeros interesses subjetivos
estão competindo constantemente, a política não funciona com medidas exatas e mensuráveis.
Fazer a política diariamente não implica, necessariamente, que haverá prosperidade. A
perspectiva de Killian é uma perspectiva linear do progresso baseado na moral protestante, que
a simples dedicação e o esforço dão frutos. Como se governar um Estado fosse algo simples,
139

cuja mera dedicação total desses resultados imediatos e melhorasse o país de forma uniforme.
Problema este logo percebido por Otto em sua primeira fala aparentemente sincera:

'I believe with you, sir,' Otto said; 'and yet the parallel is inexact. For the farmer's life
is natural and simple; but the prince's is both artificial and complicated. It is easy to
do right in the one, and exceedingly difficult not to do wrong in the other. If your crop
is blighted, you can take off your bonnet and say, "God's will be done"; but if the
prince meets with a reverse, he may have to blame himself for the attempt. And
perhaps, if all the kings in Europe were to confine themselves to innocent amusement,
the subjects would be the better off ' (STEVENSON, 2015, p. 10).

Otto demonstra já ter pensado a respeito do assunto, ter um bom entendimento das
diferenças entre a vida dos trabalhadores braçais e a vida da política. Ele replica, de forma
concisa, que uma má decisão do governante pode afetar incontáveis vidas e gerar infortúnio, e
o único responsável ser o governante, no caso, o príncipe. Governar, agir na corte, fazer política
é algo muito mais complexo, não tem a simplicidade de trabalhar com a terra, e, ao se deparar
com um revés, a responsabilidade recai sobre quem tomou a decisão. Otto tem uma plena
consciência das funções da política e da diversidade entre um trabalho manual e um trabalho
subjetivo. O príncipe também joga um pouco de sua opinião pessoal junto a isso quando diz
que, talvez, os súditos de um reino pudessem viver melhor se os governantes apenas passassem
seu tempo divertindo-se, ao invés de governando através da política. Ele tenta justificar,
rapidamente, o mérito de uma vida privilegiada, como se ela fosse uma boa solução que
acabasse com os conflitos de interesse nos Estados. Esse é, provavelmente, o grande desejo de
Otto: que sua vida de prazeres, a vida de um príncipe bon-vivant, seja o ideal, seja o governo
perfeito para todos. Se essa filosofia política fosse a ideal, nada em sua vida precisaria mudar,
não teria que alterar qualquer comportamento, não precisaria responder a ninguém e teria uma
justificativa perfeita para se abster do poder, seria “pelo bem maior”, como se seu prazer e
negligência fosse algo benéfico para todos aqueles sob sua rege. Os Estados poderiam manter
plenamente o status quo governamental europeu dos séculos XVIII e XIX, de uma forma
idealista em que monarquias absolutistas cuja aristocracia exerce seu poder sem afetar os
súditos.
Killian, sem ter como argumentar contra tal desejo idealista, traz uma outra
preocupação do povo sobre o príncipe de Grünewald: a fraqueza física. O fazendeiro se
vangloria como descendente de Grünewalders, sendo de um local na fronteira, o contato entre
os dois países era frequente, e o povo de Grünewald é tido como uma raça muito forte, um ideal
de hombridade natural.
140

a very pleasant state, and a fine race, both pines and people. We reckon ourselves part
Grünewalders here, lying so near the borders; and the river there is all good
Grünewald water, every drop of it. Yes, sir, a fine state. A man of Grünewald now
will swing me an axe over his head that many a man of Gerolstein could hardly lift;
and the pines, why, deary me, there must be more pines in that little state, sir, than
people in this whole big world (STEVENSON, 2015, p. 8).

Os homens Grünewalders natos são tidos como fortes acima da média, como se sua
genética fosse superior à dos vizinhos. Um ideal de masculinidade baseado na força física, e na
falta de vaidade. No entanto, Otto não é “puro”, seu sangue não é todo de Grünewald, pois sua
ascendência é miscigenada. Há muito tempo, houve da família real do principado com a
Bohêmia Marítima.

Several intermarriages had, in the course of centuries, united the crowned families of
Grunewald and Maritime Bohemia; […] That these intermarriages had in some degree
mitigated the rough, manly stock of the first Grünewalds, was an opinion widely held
within the borders of the principality. The charcoal burner, the mountain sawyer, the
wielder of the broad axe among the congregated pines of Grunewald, proud of their
hard hands, proud of their shrewd ignorance and almost savage lore, looked with an
unfeigned contempt on the soft character and manners of the sovereign race.
(STEVENSON, 2015, p. 3–4).

A crença popular é de que a família real de Grünewald não tem o vigor físico da
população. Enquanto o homem típico do principado é um trabalhador, com orgulho de suas
mãos grossas, o carvoeiro, lenhador e o caçador, a corte possui costumes de caráter muito
sensível. A corte vive de intrigas e bajulação, enquanto o “trabalhador honesto” é honesto e
direto até com suas palavras, na corte há a mentira, o engodo. Dentro do principado, o ideal de
povo é que o trabalhador braçal deve tirar seu prazer do próprio trabalho, dos resultados de seu
esforço físico, enquanto a corte se regozija com peças teatrais e com a mais recente moda de
vestuário. Esse é mais um motivo pelo qual o desprezo é tamanho do povo sobre Otto, ele
descende de uma família de pessoas sensíveis demais para serem considerados verdadeiros
Grünewalders. Ele vive em um meio que propicia esses comportamentos sensíveis, certamente
vistos como afeminados e impróprios em um local que valoriza a força física como sinal de
autoridade. Para reforçar o argumento, o fazendeiro usa a anedota de que Otto teria brigado
fisicamente com um de seus caçadores, Kuno, e que este lhe teria dado uma surra, e após a
derrota os dois se tornaram amigos, mas Otto não se convence, pois sabe que essa história conta
os fatos de maneira errada, e que Otto não teria perdido a briga.
A narrativa apresenta ao leitor uma série de elementos, advindos do narrador e das
personagens, sobre como o mundo enxerga Otto. Disfarçado, ele tenta se justificar, sem muito
sucesso, mas consegue ao menos fornecer um outro ponto de vista sobre a suposta simplicidade
141

do trabalho, sobre os deveres dos governantes e sobre a suposta superioridade física da raça de
seu principado. No entanto ele é pego por um fato que o transtorna: ser visto como um homem
traído pela esposa.

But the truth is, that the whole princely family and Court are rips and rascals, not one
to mend another. They live, sir, in idleness and--what most commonly follows it--
corruption. The Princess has a lover--a Baron, as he calls himself, from East Prussia;
and the Prince is so little of a man, sir, that he holds the candle. while the Prince takes
the salary and leaves all things to go to wrack. There will follow upon this some
manifest judgment which, though I am old, I may survive to see (STEVENSON, 2015,
p. 12).

Não bastasse ser visto como um ocioso inútil, parte de uma corte suja e vil, mas ainda
é visto como um homem traído. Sua masculinidade é tão rebaixada por isso que é imaginado
como aquele que segura a vela enquanto a esposa o trai. O fazendeiro Killian ainda profetiza
que, por esse comportamento, o príncipe vai sofrer algum tipo de julgamento em breve,
atentando Otto de que algum tipo guerra está para acontecer, o país se arma sob esse governo
da princesa e seu “amante” Gondremark.
Com uma vida de privilégios e despreocupação, é neste momento que Otto enfrenta o
primeiro choque de realidade. Conversando com as pessoas comuns ele vê sua imagem de uma
maneira completamente distorcida, sem os filtros da corte, sem a bajulação da aristocracia, ele
descobre como a população o vê como homem. Neste caso, como um homem abjeto. Killian e
Fritz fazem a comparação direta de sua imagem com a do grande rival político e, supostamente,
amoroso: o “barão” Gondremark. Este é um estrangeiro, vindo do leste da Prússia, que se
instalou na corte de Otto e que detém o poder de facto do Estado.

It could be argued that although he was constantly on the move in far-flung lands,
Stevenson returned again and again in his creative fiction, explicitly or implicitly, to
the tensions of his own personal and national heritage—to the pronounced conflicts
of his upbringing and of Scotland's somber, religiously oppressive society
(GREENBLATT, 2006, p. 1643).

O romance traz algo de contemporâneo de Stevenson, de maneira direta, da opressão


religiosa da Escócia do século XIX, especialmente na visão de alcançar o paraíso através do
trabalho duro. Entretanto, também traz outro acontecimento corrente daquela época: a ascensão
de Bismarck e a unificação da Prússia. Um “estrangeiro” que se instala no governo e usa seu
poder traz uma relação muito semelhante, até mesmo o nome Gondremark parece fazer
referência à Bismarck, e sua origem também é extremamente semelhante. A comparação entre
Otto e Gondremark é inevitável, e o príncipe se vê em contraste ao homem de interesse e
142

ambição. Enquanto Otto gostaria de apenas aproveitar a vida, Gondremark faz seu nome e sua
reputação através do jogo político. Faz isso tão bem que é visto como um homem “da liberdade
e patriota” (STEVENSON, 2015, p. 5). Como se o estrangeiro fosse mais patriota que o próprio
príncipe. Tudo aponta para o fato de que Otto é visto como inútil, e Gondremark como o
administrador ideal para o principado.
Após uma noite digerindo as informações, o príncipe se encontra em profunda reflexão
à beira do rio que cruza a fazenda.

Otto, who was weary with tossing and beset with horrid phantoms of remorse and
jealousy, instantly fell dead in love with that sun-chequered, echoing corner. Holding
his feet, he stared out of a drowsy trance, wondering, admiring, musing, losing his
way among uncertain thoughts. […] obstructions. It seems the very play of man and
destiny, and as Otto pored on these recurrent changes, he grew, by equal steps, the
sleepier and the more profound. Eddy and Prince were alike jostled in their purpose,
alike anchored by intangible influences in one corner of the world. Eddy and Prince
were alike useless, starkly useless, in the cosmology of men. Eddy and Prince--Prince
and Eddy (STEVENSON, 2015, p. 16).

O choque das informações provoca um certo remorso no príncipe, ele reflete e se


questiona, perdido em seus pensamentos. Os pensamentos incertos que o abalam, transformam
a forma como Otto resolve encarar o mundo. O príncipe é tão inútil quanto os turbilhões na
água do rio, príncipe e turbilhão. Como se fossem a mesma coisa, passageiros, inúteis, aparecem
e se dissipam em meio a uma imensidão de águas, apenas seguindo seu fluxo, como algo
intangível em seu lugar estático. Ele cai em um rancor profundo consigo mesmo, que sua
descrição de si para Ottilia é autodepreciativa: “Well now, have you not seen good food so
bedevilled by unskilful cookery that no one could be brought to eat the pudding? That is me,
my dear. I am full of good ingredients, but the dish is worthless. I am--I give it you in one word-
-sugar in the salad” (STEVENSON, 2015, p. 18). Como se, uma união de vários ingredients
feitos por alguém que não sabe cozinhar, um açúcar na salada que estraga tudo. Ele detém o
título, pode ter o poder, o carisma, a capacidade, a inteligência para fazer o que precisa, mas é
incapaz de fazê-lo.
Fritz confronta Otto e Ottilia por terem conversado à sós perto do rio, e isso enciúma
o futuro noivo. Fritz diz que está desperdiçando seu amor com ela, e que ele tem seu orgulho
próprio, que um homem é um homem, e uma mulher, apenas uma mulher. Otto é impelido a
responder que Fritz olhe para seu próprio comportamento antes de criticar outrem:

When you have studied liberal doctrines somewhat deeper, […] you will perhaps
change your note. You are a man of false weights and measures, my young friend.
You have one scale for women, another for men; one for princes, and one for farmer-
143

folk. On the prince who neglects his wife you can be most severe. But what of the
lover who insults his mistress? You use the name of love. I should think this lady
might very fairly ask to be delivered from love of such a nature. For if I, a stranger,
had been one-tenth part so gross and so discourteous, you would most righteously
have broke my head. It would have been in your part, as lover, to protect her from
such insolence. Protect her first, then, from yourself. (STEVENSON, 2015, p. 23)

É a partir deste momento que ele demonstra uma reflexão mais profunda a respeito de
si e de sua posição no mundo. Mesmo que perdido em remorso e ciúmes, a sua sensibilidade
faz com que ele comece a agir de maneira diferente. Se as pessoas o veem de maneira vil, ainda
não significa que ele o é. Sua sensibilidade é humana e ele busca tratar de maneira igual homens
e mulheres. Otto critica Fritz por reclamar do príncipe que negligencia a mulher, mas ao mesmo
tempo, tratar a sua noiva como um ser inferior. Que tipo de doutrina liberal prega valores
diferentes para pessoas? Se um estranho jamais poderia tratar sua mulher de tal maneira, o
próprio homem tratar sua mulher com tamanha impropriedade deve ser inadmissível. Fritz,
então, deveria protegê-la de si mesmo, de seu comportamento inadequado e agressivo. Viajando
em companhia de Fritz, que se revela um revolucionário Vermelho, Otto apresenta um de seus
valores liberais ao companheiro: “Well, sir, the great thing for the good of one's country is, first
of all, to be a good man. All springs from there” (STEVENSON, 2015, p. 25). O ideal é que a
pessoa mude a si e seu comportamento antes de tudo, e o bem de todo o resto, da família à
nação, nasce desta mudança. Se a pessoa for boa, ela pode trazer o bem à sua casa, comunidade
ou país.
Ao chegar em uma pousada em Beckstein, cidade de Gerolstein, Otto encontra um
estudioso lendo, o licenciado Roederer, um autoritário convicto, que lhe dá sua opinião sobre a
política e o governante ideal.

a country in the condition in which we find Grunewald, a prince such as your Prince
Otto, we must explicitly condemn; they are behind the age. But I would look for a
remedy not to brute convulsions, but to the natural supervenience of a more able
sovereign. […] I would not have a student on the throne, though I would have one
near by for an adviser. I would set forward as prince a man of a good, medium
understanding, lively rather than deep; a man of courtly manner, possessed of the
double art to ingratiate and to command; receptive, accommodating, seductive. […]
were I a subject of Grunewald I should pray heaven to set upon the seat of government
just such another as yourself. […] But yet I assure you, a man like you, with such a
man as, say, Doctor Gotthold at your elbow, would be, for all practical issues, my
ideal ruler (STEVENSON, 2015, p. 31–32).

A visão de Roederer abre uma porta para Otto. Ele percebe que, nesta visão, ele talvez
tenha uma chance de mudar e poder governar. Otto percebe que ele tem seus próprios ideais, e
que ele pode e deve mudar. Para o bem do principado e para evitar a revolução iminente, se não
pelo amor da esposa, que agora já parece desfeito. Sendo o homem que é e que pode ser, e com
144

os conselhos de seu primo Gotthold, o intelectual, ele poderia ter chance de governar. Depois
desta conversa, Otto encerra sua aventura e volta para seu palácio, com uma faísca de esperança
pelo bem maior, com a intenção de tentar mudar as coisas para evitar que a crise termine de
forma violenta. O retorno do príncipe e a conversa com o primo revelam que Otto tem a intenção
de mudar seu comportamento, de, ao menos, tentar governar. As revelações das opiniões
públicas dele surtiram efeito suficiente para que ele se sinta culpado a ponto de tentar fazer
alguma coisa, parte por ciúme da esposa, parte por receio da revolução.
O príncipe se encontra exatamente no meio de diversas circunstâncias que estão contra
ele. O governo está à beira de uma drástica e violenta revolução, sua esposa aparenta não ter
mais interesse nele, e ninguém lhe credita qualquer chance de fazer algo. Ele é visto como
incompetente, como traído e totalmente incapaz de fazer qualquer coisa. Não é visto como
másculo nem autoritário o suficiente para fazer o que precisa ser feito, e agora não é tão alienado
a ponto de não ter ideia do que está por vir.

'if my friends admit it, if my subjects clamour for my downfall, if revolution is


preparing at this hour, must I not go forth to meet the inevitable? should I not save
these horrors and be done with these absurdities? in a word, should I not abdicate?
[…] [I] must make a great gesture, and come buskined forth, and abdicate. […] I
cannot rest at uselessness; I must be useful or I must be noxious--one or other. […]
But now, when I have washed my hands of it three years, and left all--labour,
responsibility, and honour and enjoyment too, if there be any--to Gondremark and to-
-Seraphina—[…] what has come of it? Taxes, army, cannon—[…] And the people
sick at the folly of it, and fired with the injustice! And war, too—[…] And when the
inevitable end arrives--the revolution--who will be to blame in the sight of God, who
will be gibbeted in public opinion? I! Prince Puppet!' […]I could never bear to be
bustling about nothing; I was ashamed of this toy kingdom from the first; […] And it
was the same thing in my marriage, […] I did not believe this girl could care for me;
I must not intrude; I must preserve the foppery of my indifference. What an impotent
picture! (STEVENSON, 2015, p. 38–40).

Otto é a personagem que, com toda a insegurança, põe-se no lugar que precisa: ele
sabe que algo precisa ser feito, mesmo que seja desistir de tudo, não apenas se resignar e deixar
que tudo aconteça. Ele sabe que precisa fazer algo, como um grande gesto de abdicação, algo
que tente acalmar os ânimos, que evite a guerra iminente, alguma ação precisa ser tomada.
Agora ele colhe os frutos de suas negligências. Negligenciou o principado, que está à beira da
revolução, negligenciou a esposa, que acredito sequer ser capaz de amá-lo, e agora acredita tê-
la perdido. Tudo porque quis manter a aparência de indiferença, não quis se impor sobre os
outros. Jamais usou sua autoridade como deveria, nem autoridade régia, nem autoridade
matrimonial. Tudo que pensa de si e percebe que os outros nele veem se confirma ao ler o relato
145

de viagem de John Crabtree, preso sem o conhecimento de Otto por escrever um relato
veementemente injurioso ao príncipe e seu principado.

He has a worthless smattering of many subjects, but a grasp of none […] The results
of his dilettanteism are to be seen in every field; he is a bad fencer, a second-rate
horseman, dancer, shot; he sings […] like a child; he writes intolerable verses in more
than doubtful French; he acts like the common amateur; and in short there is no end
to the number of the things that he does, and does badly. His one manly taste is for
the chase. In sum, he is but a plexus of weaknesses; the singing chambermaid of the
stage, tricked out in man's apparel, and mounted on a circus horse. […] disregarded
by all, […] (STEVENSON, 2015, p. 46).

Foi a leitura deste texto que enfureceu Otto a ponto de fazê-lo agir. Foi ver a sua vida
e seu reino postos cruamente em tinta sobre o papel que lhe deu o ânimo e raiva para realmente
agir. O príncipe experimenta essa transformação extrema de indiferença à ação em um curto
período de um dia. Digerir todo o conhecimento popular sobre sua incompetência como
governante e como marido culmina quando tudo isso é exposto de maneira histórica. Quando
os relatos de sua vida e seu principado tornam-se parte integral, mesmo que mentirosa e
extremamente parcial, de um registro de viagem sobre a “história do mundo” de acordo com o
viajante inglês. Otto começa a agir quando entende que tudo aquilo que ouvira até então tornar-
se-á parte da história da Europa de maneira inevitável. É só nesse momento que ele, de fato,
age. Sua ação se dá por libertar o viajante, preso injustamente, e conversar com ele, para
satisfazer o motivo das mentiras expostas no livro do inglês. Ao fazê-lo, encontra em Crabtree
um amigo inesperado, alguém que afirma ter julgado mal o príncipe, e assim destrói o capítulo
que escrevera sobre Grünewald.
É apenas com a ação que a mudança se revela frutífera para Otto. O agir, ao contrário
da indiferença, lhe traz um novo amigo e lhe dá um novo ímpeto para seguir com a ação. O
príncipe, aos poucos, mostra sinais de mudança, exibe os sintomas de um homem afetado pelo
amor e começa a fazer o que deve ser feito para alcançar seus resultados. Ele dá o primeiro
passo para sair deste entrelugar no qual se encontra desde o início do romance. Ele vai até sua
esposa.
Na antecâmara, antes de poder falar com Seraphina, sua esposa. É este o ambiente no
qual o Príncipe tem naturalidade: a corte. Onde várias cortesãs encontram-se. É um dos poucos
lugares onde ele sabe que é popular. Cumprimenta diversas damas, honrando-as
imparcialmente. A bajulação da corte é uma das coisas que agrada Otto. Porém, ao finalmente
ser recebido pela esposa, tudo que ele recebe é algo que interpreta como frieza da mulher, que
confirma ter sido deixada junto com o governo por meros divertimentos, e não tem o menor
146

interesse em boatos de corte sobre ela e Gondremark. Otto se sente arrasado por tentar fazer
uma declaração de amor à esposa, de maneira respeitosa, mas submissa, e não receber nada de
volta. Ainda incerto sobre a traição da esposa, recebe uma carta do primo Gotthold lhe avisando
que o conselho se reunirá em segredo, temendo a presença do príncipe. Essa é a palavra que o
move para a ação novamente, mesmo incerto no amor, ele age firme tentando evitar uma
catástrofe no principado. Uma possível declaração de guerra contra Gerolstein, o grão-ducado
que por séculos esteve em paz com Grünewald, o príncipe pressente ser o único a evitar isso,
quando os governantes “verdadeiros” desejam invadir o país vizinho. Otto sente nas mãos o seu
poder régio e, finalmente, pretende usá-lo. É ele quem detém o poder de veto contra uma
ofensiva militar, e ele finalmente, age como um príncipe.
Ao chegar no conselho reunido, pronto para assinar a declaração de guerra, Otto faz
um excelente trabalho de ator. Ele finge a surpresa de não saber sobre a declaração de guerra,
e exige, como um verdadeiro príncipe deve, ver toda sua documentação. Pela primeira vez em
anos o príncipe age com autoridade. “'War!' cried the Prince, 'and, gentlemen, with whom? The
peace of Grunewald has endured for centuries. What aggression, what insult, have we
suffered?'” (STEVENSON, 2015, p. 79) Otto demanda que o conselho ali reunido lhe dê alguma
explicação para essa declaração de guerra, inconsistente com os séculos de paz, e tudo que
conseguem lhe dar é uma mera reivindicação de uma pequena porção de terra. O próprio
Gondremark afirma que é meramente um pretexto, o motivo da guerra é para suprimir revoltas
internas, tentando defender a posição belicosa. A resposta de Gondremark é que a guerra é
popular: “the war is popular; were the rumour contradicted to-morrow, a considerable
disappointment would be felt in many classes; and in the present tension of spirits, the most
lukewarm sentiment may be enough to precipitate events. There lies the danger”
(STEVENSON, 2015, p. 82). Baseado meramente no interesse pessoal, assim como no suposto
interesse das classes da sociedade, Gondremark defende a guerra ao país vizinho como algo
para apaziguar os ânimos, uma distração e uma tentativa de melhorar o sentimento nacionalista
em Grünewald. Otto veta a guerra, declarando que a guerra é inadmissível. “If we have
misgoverned here in Grunewald, are the people of Gerolstein to bleed and pay for our mis-
doings? Never, madam; not while I live.” (STEVENSON, 2015, p. 82). Otto mantém a injustiça
da guerra como fruto do desgoverno de seu próprio principado, algo do qual também é culpado.
Mantendo-se firme em sua convicção, ele consegue parar a guerra antes que ela inicie. O
confronto é apenas o começo de um longo dia trabalhando no governo do principado.
Otto passa o dia, finalmente, administrando seu reino, como deve, enquanto formula
um meio de comprar a fazenda do velho Killian. Trabalhar o cansou, mas comprar a fazenda o
147

reanimou, e pronto para seguir seu trabalho como príncipe, querendo mais elogios e bajulação,
vai até o primo Gotthold, esperando que fosse elogiado por sua atuação no conselho e no
governo. O intellectual imediatamente o desanima “You are unfitted for a life of action; you
lack the stamina, the habit, the restraint, the patience” (STEVENSON, 2015, p. 102). Todo o
árduo trabalho que Otto teve para se forçar a trabalhar se esvai com algumas palavras. O primo
prossegue, enfatizando a hostilidade pública de Otto com a esposa durante o conselho. A sua
vontade de trabalhar era passageira, um humor. A sede de mudança de Otto necessitava de
bajulação para continuar, sem isso, ele volta a sentir-se como antes: despreparado,
incompetente, impotente. Mesmo a despeito de tudo que Gotthold fala ao primo, Otto o perdoa,
como sua última virtude restante:

God has granted me one virtue, and I can still forgive. I forgive you; […] You have
the satisfaction to see your sovereign weep; and that person whom you have so often
taunted with his happiness reduced to the last pitch of solitude and misery. No,--I will
hear nothing; I claim the last word, sir, as your Prince; and that last word shall be--
forgiveness.' (STEVENSON, 2015, p. 107).

Após este momento, Otto perde as esperanças e se entrega ao destino, ele mesmo aceita
a conspiração contra si para ser preso, considerando o prospecto da cela com um certo alívio,
como se suas preocupações não mais fossem sua responsabilidade. Entrega seu corpo e sua
alma à conspiração, e deixa uma última carta à esposa Seraphina, sua amada, onde relata seus
sentimentos e sua resignação. “Seraphina, […] I will write no syllable of reproach. I have seen
your order, and I go. What else is left me? I have wasted my love, and have no more. To say
that I forgive you is not needful; at least, we are now separate for ever” (STEVENSON, 2015,
p. 128). Ele é preso e apenas experimenta seu destino. A esperança só volta a Otto quando a
Condessa von Rosen lhe traz uma carta de soltura, escrita por Seraphina, e quando descobre
que ela está na estrada, próximo de onde saiu da prisão. Correndo em busca de sua amada, ele
ainda se resigna a amar alguém que não retribui nada além de desafeto. Ele corre a estrada para
encontrá-la mesmo que ela não o queira “his anger assumed the carriage of a hostile generosity;
he would utterly forgive indeed; he would help, save, and comfort his unloving wife; but all
with distant self-denial, imposing silence on his heart” (STEVENSON, 2015, p. 164).
O capítulo final do romance mostra um amor reatado através da aceitação dos erros.
Algo idealizado, onde tudo que há de melhor no mundo é abstrato, artístico, perfeito. É uma
visão harmoniosa, totalmente oposta da vida política, diferente da vida em sociedade. Juntos na
floresta, eles se entregam aos sonhos. O principado e a floresta passam a ser atemporais, tudo
deixa de existir no mundo político e histórico e passa a existir apenas na arte. “Sua vida se
148

encerra, como num sonho, e tudo, antes e depois, é arte” (SANDISON, 1996, p. 173). Seraphina
confessa que seguiu maus conselhos e, com isso, fomentou a revolução, enquanto Otto, mais
uma vez, assume que foi omisso e negligente com a esposa. É com o diálogo e o perdão, não
apenas do outro, mas de si, que Otto e Seraphina se reencontram como amantes, uma segunda
“primeira vez” na floresta, como almas agora inocentes e expurgadas das falhas cometidas
dentro do palácio, um com o outro.
A identidade de Otto passa por transformações ao longo do romance, sofrendo um arco
complexo, que sai de um ponto de partida inicial, se modifica, e depois retorna a um ponto
semelhante, porém, diferente daquele ponto primeiro. Otto inicia o romance puramente omisso
e desinteressado, mesmo que já tenha pensado sobre sua condição. O contato com pessoas
comuns, de fora de seu círculo social, o influencia a rever suas ações, e, assim, o que entende
sobre si como sujeito, homem e príncipe. “A identidade é realmente algo formado, ao longo do
tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento” (HALL, 2006, p. 38). Otto passa por um processo consciente de
identificação com sua autoridade e seu poder, utilizando-o na tentativa de um bem maior, e, ao
mesmo tempo, na esperança de restabelecer seu casamento, identificando duas áreas distintas
do eu: o eu político e o eu afetivo.

Conclusão

A personagem Príncipe Otto passa por uma significativa transformação ao longo de


sua aventura. Aventura essa que é muito mais mental que de viagem. Ele parte de seu
egocentrismo, autodenominado covarde, tentando fugir das responsabilidades de sua vida,
viajando à sós e disfarçado. Porém, mesmo assim é confrontado com os problemas advindos
desta negligência. Em particular, percebe que por ignorar o governo, pode estar causando uma
guerra e uma revolução, e por não dar atenção à esposa, pode ter perdido seu amor para outro
homem. Ele percebe que não atende a nenhuma de suas obrigações, como príncipe governante,
como marido, nem mesmo como homem. Ele percebe estar em um lugar privilegiado, quase
infantilizado, de ignorar o mundo à sua volta, apenas atendendo a seus prazeres imediatos e
evitando suas incumbências.
A experiência com as pessoas comuns faz com que ele reflita sobre suas circunstâncias
e atitudes de maneira mais decisiva, encerrando sua aventura e retornando a seu palácio,
obstinado a fazer alguma coisa para evitar o fim de seu principado e de seu casamento. É apenas
149

quando ele sai de sua bolha social, a corte onde a bajulação, o agrado e a mentira imperam, que
ele pode experimentar a vida real e perceber a realidade em que se encontra.
O preço de arcar com suas responsabilidades, ainda mais quando fora omisso por tanto
tempo, prova ser muito alto, mesmo assim ele se consente pagar, na tentativa de evitar uma
guerra inútil e na esperança de reaver o amor de sua esposa. A responsabilidade como
governante requer disciplina e vontade, mas um simples discurso negativo de seu primo o
desanima de maneira incisiva e Otto desiste rápido dessa responsabilidade. Entretanto, ele se
conforma ao encargo de tentar dar o melhor à Seraphina, recebendo o (des)afeto da esposa da
forma como vier, resignando-se ao que for melhor para ela. É apenas quando Seraphina e Otto
aceitam e perdoam suas falhas que seu amor e seu casamento podem ser retomados, de maneira
honesta e positiva para ambos. Mesmo que percam o status de governantes de um reino, eles
ainda permanecem como um casal cuja sinceridade no amor os reuniu. O romance de Stevenson
joga com a natureza e a vontade das personagens, os desejos e o preço desses desejos; o oneroso
custo da ambição e os sacrifícios necessários do amor. Mas, acima de tudo, o valor do perdão
e da aceitação.

Referências

GREENBLAT, Stephen. (Ed. Geral); ABRAMS, M. H. (Ed. Fund. Emérito) et al. The Norton
anthology of English literature. 8. ed. London: W. W. Norton & Company. 2006. 2 v.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de T. T. da Silva e G.
L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A. 2006.
LEWIS, Clive S. Sobre histórias. Tradução de F. Nunes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
Brasil. 2018.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de R. Ramalhete, L. E. Vilanova, L.
Vassalo e E. A. Ribeiro. São Paulo: Editora 34. 2017.
SANDISON, Alan. Robert Louis Stevenson and the appearance of modernism: a future
feeling. London: Palgrave Macmillan. 1996.
STEVENSON, Robert L. Prince Otto: annotated edition. [S.l.]: Createspace Independent
Publishing Platform. 2015. E-book Kindle. 186 p.
150

DE UM REDEMOINHO EM DIA QUENTE À FORMAÇÃO DE LEITORES: UMA


PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO

Carla Alves da Silva

Introdução

O trabalho com a leitura em sala de aula tem sido um desafio para os mediadores de
tal prática, principalmente, no que tange à apresentação e ao conhecimento de obras a variados
públicos, principalmente o infantojuvenil. Partimos do princípio de que estudantes, em especial
os que fazem parte da educação básica, muitas vezes, são fisgados a diferentes formas de atração
e, por isso, em alguns casos, colocam o ato de ler como a última opção a se desfrutar em meio
a tantas outras que lhes são sugeridas.
Todavia, é importante refletir sobre a necessidade de direcionar o aluno à reflexão, a
partir da leitura de obras literárias, sobre diferentes aspectos que fazem parte da vida cotidiana
do educando, principalmente as que convergem com as temáticas sociais. A leitura dos textos
literários tem relevante papel para o estudante, principalmente no que se refere ao exercício de
tal prática no ambiente escolar, haja vista que “a sala de aula é um espaço privilegiado para o
desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um intercâmbio da cultura literária, não
podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua utilidade” (ZILBERMAN, 2012, p. 16).
Um dos principais agentes responsáveis por proporcionar o exercício à leitura, este do
qual discute Regina Zilberman, é o docente em suas práticas escolares. Sabemos das
dificuldades enfrentadas pelos sujeitos que optam por tornar possível tais práticas aos
estudantes. Citamos como um dos empecilhos para tornar a leitura um hábito no ambiente
escolar, a precariedade das bibliotecas inseridas nas escolas públicas. Muitas vezes esses
espaços são utilizados apenas para depósito de livros didáticos. Somando-se a tal agravante,
temos um ambiente pouco propício à leitura nesses mesmos ambientes, ocupados, às vezes,
para correções disciplinares de alunos que infringem as regras escolares. Soma-se às várias
contrariedades citadas o pouco incentivo à leitura por parte de algumas famílias, que, por falta
de conhecimento, colocam-na em segundo plano ou, ainda, nem a incluem na rotina familiar
do discente.
Apesar de toda a problemática em torno das dificuldades de se inserir o trabalho com
o texto literário em sala de aula, em percentuais, podemos comprovar o quanto o papel do
professor em sala de aula é relevante e serve como ponte para a construção de um perfil de
151

leitores que buscam, por meio da literatura, expandir o conhecimento e ampliar as discussões
em torno dos temas que permeiam os livros de caráter literário.
De acordo com a 5ª edição de Retratos da leitura no Brasil, o Instituto Pró-Livro
concluiu que, em 2019, 52% dos leitores partícipes da referida pesquisa responderam que
começaram a se interessar por literatura devido à indicação da escola ou de um professor ou
professora. No que tange à faixa etária, 77% dos participantes entre 11 a 13 anos e 68% entre
14 a 17 anos responderam que o interesse por literatura como contos, crônicas, romance ou
poesia surgiu por influência da escola ou de um professor ou professora (INSTITUTO PRÓ-
LIVRO, 2020, p. 8-9). É importante salientarmos que os dados citados aparecem em primeiro
lugar em uma lista considerável de elementos característicos para a pesquisa como vemos nos
gráficos das fig. 1 e 2 a seguir.

Figura 6 – Gráfico Retratos da leitura no Brasil

Disponível em: https://cutt.ly/1ggERbb. Acesso em: 09 out. 2020.


152

Figura 7 – Gráfico Retratos da leitura no Brasil

Disponível em: https://cutt.ly/1ggERbb. Acesso em: 09 out. 2020.

A partir de tais dados apresentados, dialogamos com Michèle Petit, ao destacar que:

De fato, para "encontrar vida nas palavras", é preciso "estar com os livros, sem
pudores" [...]. Em outras palavras, esses objetos não podem constituir um monumento
intimidador, enfadonho. Se o adulto impõe à criança o comportamento que ela deve
ter, o bom jeito de ler, se ela se submete passivamente à autoridade de um texto,
encarando-o como algo que lhe é imposto e sobre o que ela deve prestar contas, são
poucas as chances de o livro entrar na experiência dela, na sua voz, no seu
pensamento. Apropriar-se efetivamente de um texto pressupõe que a pessoa tenha tido
contato com alguém — uma pessoa próxima para quem os livros são familiares, ou
um professor, um bibliotecário, um fomentador de leitura, um amigo — que já fez
com que contos, romances, ensaios, poemas, palavras agrupadas de maneira estética,
inabitual, entrassem na sua própria experiência e que soube apresentar esses objetos
sem esquecer isso. Alguém que desconstruiu o monumento, fazendo com que
encontrasse uma voz Singular (PETIT, 2009, p. 33).

A socióloga Michèle Petit, ao destacar a importância do mediador da leitura para a


construção do indivíduo leitor, permite-nos compreender o quanto tal influência é benéfica e
deve se perpetuar de modo a provocar mudanças, embora mínimas, aos indivíduos que a
praticam, bem como à sociedade na qual fazem parte.
No que tange às questões em torno da escolha do texto literário, adentramos à
discussão com base na escolha da obra literária direcionada ao público infantojuvenil. A
proposta apresentada neste artigo é pautada em torno de uma proposta de leitura do conto
“Telhado quebrado com gente morando dentro”. Todavia, antes de nos fincarmos em uma breve
discussão sobre o referido texto, traremos uma breve apresentação de Redemoinho em dia
quente, que se trata de uma coletânea de contos da escritora contemporânea Jarid Arraes.
153

Cearense, da região do Cariri, Jarid Arraes tem sido aclamada nos principais eventos
de literatura, principalmente por ter ganhado importantes prêmios por conta da sua escrita
peculiar. Em uma das premiações – Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos Teatrais) -
ela levou a estatueta na categoria de melhor livro de contos de 2019. No ano de 2020, a
caririense ficou entre os cinco finalistas do aclamado Prêmio Jabuti, também com a obra
contística da autora.
Dividida em trinta contos que versam sobre diferentes abordagens em torno de
personagens femininas, sejam elas crianças, adolescentes, jovens, adultas, a obra Redemoinho
em dia quente (ARRAES, 2019) nos permite refletir sobre o papel da mulher na sociedade, bem
como nos propicia notar como a figura feminina ainda vive sob jugos e subjugos independente
da faixa etária da qual faz parte. Temas como liberdade, independência financeira e afetiva,
mas também violência de gênero, abuso sexual são alguns tópicos chave dos enredos presentes
nos contos da obra.
A obra Redemoinho em dia quente é dividida em dois momentos, intitulados,
respectivamente, “Sala das candeias” e “Espada no coração”. A narrativa contística trabalhada
neste artigo – “Telhado quebrado com gente morando dentro” – insere-se na primeira parte do
livro. A partir do título, já é possível fazermos inúmeras reflexões em torno da escolha, já que,
ao longo do enredo, a casa, no sentido de lar, da protagonista, junto com os seus integrantes –
familiares – degrada-se a medida que as atitudes se potencializam em torno das personagens
secundárias que compõem a história.
A narrativa “Telhado quebrado com gente morando dentro” conta, a partir da
perspectiva de uma das personagens femininas, a história de duas irmãs que convivem em meio
a um ambiente divertido e comum em relação às brincadeiras de infância. Todavia, ao longo da
construção do enredo, a casa vai se desmontando e percebemos isso a partir de elementos que
são fornecidos ao leitor em toda a construção contística. Notamos a pluralidade envolto,
especificamente, a essa narrativa, com temas que permeiam entre a liberdade vivida durante a
fase da infância, as relações familiares (entre irmãs, entre amigos, entre os pais), as condições
humanas e as adaptações a tais condições, o processo de trânsito entre o final da infância e
início da adolescência, as paixões na adolescência, os conflitos a partir das paixões na
adolescência, a violência sexual e os conflitos da personagem a partir das situações nas quais
vive.
Logo no início do conto, já há uma discussão que nos faz prever conflitos,
principalmente no que tange à condição feminina em sociedade. A protagonista, ao se referir à
irmã, destaca que “sempre fomos parceiras, amigas, cúmplices do crime que era ser menina
154

num mundo todo feito para nos dobrar, dobrar e dobrar até que a coluna não aguentasse”
(ARRAES, 2019, p. 37). A dor sofrida pela menina protagonista é capaz de compadecer
também o leitor do texto.
Jarid Arraes, ao construir “Telhado quebrado com gente morando dentro”, desde o
início da história, tem o compromisso com o leitor de oferecer pistas capazes de dar primazia à
narrativa. Nesse sentido, há o dialogismo com as discussões de Júlio Cortázar a respeito dos
aspectos do gênero conto. Em Valise de Cronópio, o autor afirma que “o contista sabe que não
pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é
trabalhar, em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo do espaço literário”
(CORTÁZAR, 2006, p. 152). Percebemos, por exemplo, que, por mais que a personagem
mantenha uma relação de fidelidade com a irmã, ao longo do enredo, as situações externas às
duas colocam-nas em caminhos capazes de mudar a vida de cada uma delas, inclusive, de torná-
las incrédulas com situações das quais elas farão parte como personagens principais.
Além de ser construído de modo a sensibilizar o leitor a partir das reflexões envolto às
personagens, o conto em pauta também acompanha o crescimento das meninas e envereda pelos
conflitos típicos da adolescência, regados de medos, de insegurança e de anseios. Todos esses
elementos fornecidos ao leitor são possíveis porque a protagonista, a partir do olhar dela sobre
as histórias que a circundam, conta o enredo ao leitor, permitindo-nos tirar nossas conclusões
em torno do que é lido. Beth Brait, ao definir um protagonista personagem e narrador do próprio
enredo, enfatiza que:

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica,


necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos”
que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor
para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam
diretamente ao leitor através de uma personagem (BRAIT, 1985, p. 60).

Confirmamos, assim, o quanto a irmã de Juliana nos permite entrar na sua casa e
percebermos como os problemas gerados ao longo do enredo a fazem sofrer e, de certo modo,
a definham psicologicamente durante a história. Esta culmina-se, ao final, com uma reflexão
em torno do que acontece, rotineiramente, com as meninas e mulheres que sofrem abusos
sexuais e, mesmo com a violência sofrida, precisam continuar vivendo como se aquilo fosse
precisasse fazer parte da vida da vítima.
O conto finaliza-se com uma reflexão, “eu olhei para os olhos da minha irmã e vi uma
Juliana ainda mais velha do que aquela que eu conhecia. Não era mais a garota que tinha muita
força. Era uma casa com telhado quebrado, mas com gente ainda morando dentro” (ARRAES
155

2019, p. 42), e nos permite concluir sobre como a interrupção de uma vida, mesmo que ela
continue vivendo, a partir da violência sofrida ao longo do enredo, é totalmente possível, já que
diferentes forças externas se voltam contra a figura feminina e moldam-na de modo a encaixá-
la em padrões que só perpetuam ainda mais a violência de gênero.
Quanto à construção da obra narrativa, é válido destacarmos que:

O texto literário remete sempre a uma pluralidade de significações [...]. O leitor dispõe
assim de uma certa latitude quanto à sua interpretação. A leitura literária é, mais do
que qualquer uma, marcada subjetivamente: enriquecedora do plano intelectual,
autoriza também o investimento imaginário (JOUVE, p. 137, 2002).

Assim, a partir dos diversos temas que perpassam a narrativa, haverá sempre o diálogo
em torno das temáticas sociais presentes na construção contística. Percebemos, por exemplo, a
fragilidade da protagonista sempre que um elemento surpresa afeta o relacionamento dela com
a irmã. A narradora da história sempre é acometida por algum mal-estar físico ao externar um
conflito de relação entre ela e Juliana, o que nos permite compreender que o telhado não se
quebra da noite para o dia, mas sim a partir de diversas situações que perpassam à medida do
crescimento e do amadurecimento fraternal. Ao final do conto, constata-se tal vulnerabilidade
quando a personagem principal conclui o texto com uma afirmação que retoma também o título
da narrativa: “eu olhei para os olhos da minha irmã e vi uma Juliana ainda mais velha do que
aquela que eu conhecia. Não era mais a garota que tinha muita força. Era uma casa com telhado
quebrado, mas com gente ainda morando dentro” (ARRAES 2019, p. 42).
Para a leitura e a análise da obra “Telhado quebrado com gente morando dentro”, em
sala de aula, optamos pela utilização da proposta de sequência básica de Rildo Cosson (2016).
Todavia, é importante ressaltarmos que, apesar de nos determos em tal escolha, sempre
direcionamos o discente para uma leitura livre e com vistas a incitar a formação crítica do leitor,
sempre com intuito de buscar, a partir de reflexões, respostas para as perguntas a respeito do
mundo que o cerca.
Baseando-se no letramento literário, em diálogo com a teoria e a prática, Cosson
sugere quatro etapas – motivação, introdução, leitura e interpretação. A motivação é
conceituada pelo estudioso como “uma atividade de preparação, de introdução dos alunos no
universo do livro a ser lido” (COSSON, p. 77, 2016). Além disso, o autor também destaca que,
para o efetivo trabalho dessa etapa, faz-se necessário “estabelecer o objetivo, aquilo que se
deseja trazer para os alunos como aproximação do texto a ser lido depois” (COSSON, p. 79,
2016).
156

Na etapa seguinte, a que Rildo Cosson intitula de introdução, tem-se a apresentação


do autor e da obra que será trabalhada. O autor apenas destaca sobre o cuidado que o mediador
deve ter no desenvolvimento deste momento de inserção à obra para que “não se transforme em
longa e expositiva aula sobre a vida do escritor, com detalhes biográficos que interessam a
pesquisadores, mas não importantes para quem vai ler um de seus textos” (COSSON, p. 60,
2016).
À leitura, terceira etapa do processo de sequência básica proposto por Rildo Cosson,
deve ser dada atenção redobrada, pois trata-se do momento de apreensão do texto e do contato
intrínseco com a obra, que deve ser vivenciado por cada aluno singularmente. Cabe, portanto,
ao professor, propiciar meios para possibilitar ao educando o traquejo com a obra a ser
trabalhada, haja vista que “a leitura do texto literário [...] é uma experiência única e, como tal,
não pode ser vivida vicariamente” (COSSON, p. 63, 2016).
Por fim, no último momento da sequência básica, denominado interpretação, parte-se,
de acordo com Rildo Cosson, “do entretecimento dos enunciados, que constituem as
inferências, para chegar à construção do sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve
autor, leitor e comunidade” (COSSON, p. 64, 2016). O autor subdivide esta etapa em dois
momentos: interior e externo. No primeiro, há a “apreensão global da obra que realizamos logo
após terminar a leitura”, enquanto no segundo, a partir de tal compreensão, “há a materialização
da interpretação como o ato de construção de sentido em uma determinada comunidade”
(COSSON, p. 65, 2016).
As quatro etapas descritas até agora serão retomadas na próxima seção, tendo em vista
que será o momento de apresentarmos uma sugestão de proposta de letramento literário a partir
do conto “Telhado quebrado com gente morando dentro”, presente na obra Redemoinho em dia
quente, de Jarid Arraes.

Proposta de letramento literário a partir do conto “Telhado quebrado com gente morando
dentro”

A sugestão que apresentaremos nesta seção, como proposta de letramento literário,


trata-se de um estímulo para que o professor, enquanto mediador, seja motivado a trabalhar
com as variadas obras literárias. Tais textos permitem ao leitor gerar reflexões em torno do
papel social enquanto indivíduo pertencente à sociedade e de suas possíveis formas de
mudanças a partir de olhares sobre o mundo.
157

Para a etapa da motivação, sugerimos ao professor a exposição de manchetes que


relatem sobre assédio, abuso e violência sexual. A seguir, apresentamos algumas sugestões de
recortes retirados de portais de notícias, todavia, destacamos que há uma infinidade de
exemplos que podem ser explorados para embasarem a discussão. É importante salientarmos
também que essa predição será retomada nas etapas seguintes justamente para que o discente
seja direcionado à reflexão em torno da temática abordada.

Figura 3: trecho de matéria do Jornal Figura 4: manchete e olho da notícia sobre abuso
O Povo sexual

Disponível em: https://bityli.com/IvaHU.


Acesso em 28 out. 2020.

Disponível em:
https://bityli.com/wYcdB. Acesso em 28 out.
2020.
Figura 5: manchete de matéria da Revista Carta Capital

Disponível em: https://bityli.com/Ra7R8. Acesso em 28 out. 2020.

Figura 6: manchete de matéria do portal G1 Figura 7: trecho do Art. 5º da Constituição


Federal

Disponível em: https://bityli.com/VoGrV.


Disponível em: https://bityli.com/jUOG9. Acesso em 28 out. 2020.
Acesso em 28 out. 2020.

Na etapa da introdução, sugerimos a apresentação do próprio site50 de Redemoinho em


dia quente, onde é apresentada a obra de modo detalhado, bem como se expõe consideráveis
informações sobre Jarid Arraes. Acrescentam-se a isso, ainda, informações relevantes,

50
Disponível em: http://redemoinhoemdiaquente.com.br/jarid-arraes/. Acesso em 20 nov. 2020.
158

presentes no mesmo endereço disponibilizado, já que a autora oferece ao navegante fotografias


feitas ao longo do processo de produção dos contos da coletânea em pauta.
No que se refere à etapa da leitura, é necessário nos atentarmos à cadência disposta
nas linhas do conto, bem como em todo Redemoinho em dia quente. A obra completa é
construída em torno dessa proximidade com a linguagem do dia a dia e com o sotaque caririense
como um dos elementos principais presentes na construção contística. Esse momento pode ser
realizado tanto em sala de aula como nos arredores dela, justamente para que haja uma
apreciação maior ao que será lido.
Na última etapa – interpretação – sugerimos algumas questões, dispostas a seguir, a
fim de direcionar toda a abordagem realizada ao longo de todos os momentos de apreensão ao
texto e com intuito de levar o discente à reflexão, objetivo principal da proposta de letramento
literário apresentada neste trabalho.
1. Como se dá a quebra familiar que acontece na vida da protagonista? Aponte três
motivos, em diferentes momentos (cronologicamente) do texto, em que isso se torna claro.
2. Justifique o título do texto a partir da narrativa lida por você.
3. Relacione a atitude da mãe e das pessoas que vivenciam a violência sofrida por
Juliana com o Artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e discuta com os
colegas sobre a temática.
4. Como a violência sofrida por Juliana transforma a vida das duas irmãs?
Sugerimos, por fim, uma atividade de extrapolação, que tem como intuito levar o aluno
a concretizar as reflexões em torno das discussões feitas a partir da leitura realizada até o
presente momento. Para isso, propomos a exibição ao aluno de um perfil na rede social
Instagram, intitulado “Eu me protejo Brasil”51. A página da web diz respeito a um projeto
educativo que visa formas de prevenir o abuso sexual infantil.
Como atividade, propomos que os discentes apreciem as imagens a seguir, retiradas
do perfil “Eu me protejo Brasil”.

51
Disponível em: https://www.instagram.com/eumeprotejobrasil/. Acesso em 26 nov. 2020.
159

Figura 8: imagens do perfil "Eu me protejo Brasil"

Disponível em: https://www.instagram.com/eumeprotejobrasil/. Acesso em 26 nov. 2020.

Em seguida, recomendamos que o mediador sugira aos discentes a criação de artes


(imagens com texto, por exemplo), para que sejam compartilhadas nas redes sociais da escola,
com intuito de combater e conscientizar a comunidade escolar sobre o problema da violência
sexual contra crianças e adolescentes. Propomos, ainda, que os alunos discutam sobre diferentes
formas de combate a tal problemática. Além disso, apresentamos como sugestão a criação de
uma #hastag para melhor alcance do que é proposto e de modo a envolver todos os discentes,
bem como atrai-los à atividade sugerida.

Considerações finais

Percebemos o quanto é árduo o caminho para se chegar a discussões relevantes em


sala de aula, principalmente, embasadas a partir do trabalho com o texto literário. Este artigo
anseia por plantar a semente em leitores da educação básica, sempre em diálogo com as
questões sociais que permeiam o educando. Soma-se a isso o nosso intuito de levar o aluno à
reflexão, principalmente, em relação aos temas direcionados ao papel da mulher na sociedade,
bem como apontar possíveis caminhos para a liberdade feminina em diferentes âmbitos sociais.
Acreditamos que as escolhas feitas pelo docente, visto aqui como o mediador de
leitura, pode ser capaz de propiciar discussões de modo a tornar possível pequenas mudanças à
sociedade. O cuidado na seleção de textos que podem ser apresentados pelos professores ao seu
público é primordial para possibilitar discussões amplas em torno de diferentes abordagens. Por
fim, entendemos que esse processo é longínquo, todavia oportuno e deveras urgente. Cabe a
nós ampliarmos as reflexões em torno das sugestões de leitura no que tange aos discentes
leitores de modo a mostrarmos a importância do ato de ler com vistas à mudança social.
160

Referências
ARRAES, Jarid. Redemoinho em dia quente. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2019.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.

CORTÁZAR, Julio. Valize de Cronópio. Tradução de Haroldo de Campos e Davi Arriguei Jr.
São Paulo: Perspectiva, 2006.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da Leitura no Brasil. 5. ed. São Paulo: Instituto Pró-
Livro, 2020. Disponível em: https://cutt.ly/1ggERbb. Acesso em: 09 out. 2020.

JOUVE, Vicent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002.

PETIT, Michele. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Tradução de Arthur Bueno e
Camila Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2012.


161

CÃO SEM PLUMAS: A PALAVRA DANÇANTE

Caroline Cavalcante do Nascimento

Entre palavras, passos e informações

aqueles homens são como cães sem plumas


(um cão sem plumas é mais que um cão saqueado;
é mais que um cão assassinado.)
Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz.
(MELO NETO, 2009)

Dentre as mais variadas formas de manifestação da arte, este elemento que perpassa a
sociedade e a influência, está a Literatura. O modo de expressão da língua por meio do texto
literário, cuja definição está longe de ser consensual entre os estudiosos da área, pode ser
concebido de diversas maneiras. Interessa-nos, aqui, uma reflexão de Paul Valéry: “a Literatura
é, e não pode ser outra coisa senão uma espécie de extensão e de aplicação de certas
propriedades da linguagem” (VALÉRY citado em COMPAGNON, 2001, p. 40).
Sabemos que a utilização das propriedades da linguagem de modo que esta se insira
no campo do fazer literário e estético é uma prática que, desde os seus primórdios, esteve
relacionada com outras formas de arte. O poema configura-se como um dos meios de aplicação
da linguagem literária. Imagético por natureza, é capaz de trazer à tona dimensões da realidade
que geralmente passam despercebidas. Tais noções do real evocadas pela poesia devem-se,
muitas vezes, às imagens produzidas pelo poema.
O escritor argentino Júlio Cortázar (2004) certa vez, afirmou que uma imagem seria
capaz de funcionar como meio de o homem suplantar toda a sua percepção corriqueira e
cotidiana da vida. Deste modo, destacamos a poesia como sendo um vetor de imagens hábeis a
promover deslocamentos do nosso lugar comum, transportando-nos a um campo múltiplo de
imagens e saberes.
Partindo de tal constatação, tratamos do espetáculo “Cão sem plumas” como uma obra
interartística na qual a mescla de poesia, cinema e dança reverberaria, através do conceito de
“Corpomídia” de acordo com as estudiosas Christine Greiner e Helena Katz (2005) no qual o
movimento é entendido como matriz da comunicação. Elas explicam que qualquer informação
162

ao chegar no corpo, deve ser negociada com as que lá estão. Portanto, nosso corpo é resultado
desses cruzamentos e não apenas um espaço onde se guardam dados memorialísticos. Ou seja,
o corpo seria mídia de si próprio: [...] A mídia à qual o Corpomídia se refere, diz respeito ao
processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se
transmite em processos de contaminação [...] (2005, p. 131).
Sabemos que a dança é também um procedimento visual, no qual coabitam elementos
dialógicos da imagem, em relação ao que nos dispomos realmente a “ver” com o olhar e não,
simplesmente, enxergar. Se pensarmos nos corpos dos bailarinos como sendo “Corpomídias”
temos então corpos que dançam a partir de inúmeras informações (além das que já carregam)
sendo algumas delas: o poema Cão sem plumas, a vivência que foram expostos em Pernambuco
em meio à população ribeirinha e ainda, a música e o filme em cena durante o espetáculo,
protagonizado pelos próprios bailarinos.
Entendemos o corpo que dança como um sistema dinâmico e em constante fluxo de
tempo, que atua contaminando ao mesmo tempo em que é contaminado, descrevendo em tempo
real o estado em que se encontra. O corpo que vive a experiência da ação cênica da dança, está
externalizando os pensamentos que o formam. Não há pensamento sem ação, e não há ação sem
pensamento. O corpo que dança está em permanente produção de ideias, reflexões e
significados. Todas essas atividades de criar pensamentos e movimentos se dão
concomitantemente. E não cessam de produzir outros sentidos a partir delas próprias.
A dança carrega informações que demonstram seu modo de existir. Analisada essa
condição, ela se situa no campo do geral enquanto que, no seu processo de individualização,
também se insere no privado. Portanto, o Corpomídia dançante torna-se um produtor de
significados e de imagens as quais dependendo da maneira como são recepcionadas, acabam
provocando em nós implicações de urgência filosófica, ou até mesmo da ordem do sentir.
Na esteira de tais pensamentos, nos propomos a pensar “Cão sem plumas” como uma
criação interartística na qual há uma sobreposição de imagens dando corpo às informações que
são evocadas durante as cenas.
Ao analisar o espetáculo Cão sem plumas pela ótica do conceito de Corpomídia, somos
levados a percorrer o caminho do rio Capibaribe e sua paisagem árida pela via da dança. E nesse
lugar de enunciação, os poemas se inscrevem nos corpos e são “lidos” por nós de outro modo,
diferente do que costumeiramente fazemos enquanto leitores de poesia.
Os bailarinos sujos de lama, tanto no palco quanto no filme, surgem aos nossos olhos
movimentando-se de modo a personificar os caranguejos dos mangues pernambucanos. Neste
momento, a imagem projetada funde-se à imagem do corpo que dança, os movimentos
163

mesclam-se e se complementam. Em se tratando da poesia cabralina, sabemos que o rio ocupa


o papel de protagonista e desenha durante a narração do seu percurso os detalhes da região, do
povo que ali vive, do que se passa em suas margens.
Aquele rio jamais
se abre aos peixes,
ao brilho. (...)
(MELO NETO, 2009, p. 105)

As descrições do real apresentadas no poema relatam aos leitores as condições sociais


do homem daquela região:
Em silêncio o rio carrega sua fecundidade
pobre,
grávido da terra negra
(MELO NETO, 2009, p. 105)

O poeta demonstra nos versos transcritos a falta de perspectiva de vida deste rio. Está
grávido de lama, portanto, pobre de recursos, já que a riqueza de um rio está em ter água em
abundância. A junção das imagens projetadas na tela, acrescida a coreografia dos corpos em
cena, produzem imagens que remetem aos versos de Cabral.
Didi-Huberman, em seu livro O que vemos, o que nos olha (1998), menciona o fato de
que, em todo procedimento visual, coabitam elementos dialógicos e dialéticos da imagem, em
relação ao que nos dispomos realmente a “ver” com o olhar e não, simplesmente, enxergar.
Portanto, dependendo da maneira como recepcionamos determinadas imagens, elas
acabam provocando em nós implicações de carácter filosófico, obrigando-nos a “escrever esse
olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-lo” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 172).
A idealizadora do espetáculo, Débora Colcker, em entrevista sobre a concepção
coreográfica de Cão sem plumas afirma que a poesia é irmã da dança e que em se tratando de
João Cabral, essa mesma poesia é ácida, crua e brutal. O conceito-chave da dança proposto por
Colker, o de um “bicho-homem”, surge nas imagens dialéticas evocadas pela dança dos corpos
sujos de lama que (re)agem à música. No palco, a lama, os movimentos dos caranguejos e uma
mistura que tem coco, maracatu e outros ritmos do agreste pernambucano dão o tom da
coreografia.
À esteira do conceito promulgado por Didi-Huberman, as imagens provocam em nós,
espectadores, urgências da ordem do ver e do pensar.
164

FIGURA 1: Foto do espetáculo “Cão sem plumas” Disponível em:


https:// www.ciadeborahcolker.com.br/csp

Tais urgências nascem da violência dialética destas imagens. Por meio delas, sentimo-
nos parte da história desta gente, deste rio, destes corpos que 184 dançam as agruras dos
bichos/homens que ali vivem. A figura 1 é um recorte do filme projetado durante a dança. Ainda
sob o aspecto dos postulados de Huberman, esta imagem nos olha, nos toca, nos devolve
história. Somos cúmplices do sofrimento da população de Recife que vive às margens do rio,
do descaso com a natureza, da história do povo nordestino rejeitado e estigmatizado. É neste
momento que “experimentamos o que não vemos”, o que, nas palavras de Huberman, indica
uma das modalidades do visível: ela torna-se inelutável, ou seja, voltada a uma questão de ser
afetado pelo que se olha, quando ver é sentir.

O poema x A dança

A dança, a meu ver, não se limita a um exercício, um divertimento,


uma arte ornamental e, por vezes, um jogo de sociedade; ela é coisa
séria e em certos aspectos, coisa muito venerável (VALÉRY, 1996).

É fato que a análise da dança, em conjunto com a literatura, ainda não constitui tradição
em termos de estudos acadêmicos. Ainda que a arte coreográfica já tenha seu lugar na história
do pensamento estético e literário – haja vista, por exemplo, a citação de Valéry –, nota-se uma
necessidade de maior atenção da academia a esta gama de investigações que são suscitadas pelo
entrecruzamento destas duas expressões estéticas. A pesquisadora Roberta Diniz (2016), ao
165

investigar o que se tem discutido academicamente a respeito de literatura e dança, afirma ter
encontrado “dificuldade” em localizar textos teóricos que tratem dessa relação:

Pensando nessa dificuldade, pode-se argumentar que as atenções voltadas sobre as


artes performáticas (e, mais atualmente, a ênfase semiótica sobre o corpo em sua
“midiaticidade” ou instrumentalidade, enquanto veículo/suporte de uma linguagem
não verbal) já proliferam no cenário acadêmico brasileiro – principalmente
transitando entre as áreas interdisciplinares da comunicação, das artes visuais ou
cênicas, das tecnologias digitais, e mesmo da literatura ou até da dança, embora menos
frequentemente. No entanto, devemos reconhecer sua restrição; afinal, quando esse
interesse de fato existe, ele se concentra muito mais sobre o medium (o corpo que
dança) e a cena que engloba a performance do que sobre a arte em si, deixando, assim,
de abordar questões estéticas que lhe são inerentes e que, sem dúvida, enriqueceriam
sua comparação com as outras artes (DINIZ, 2016, p. 16).

A partir de tal abordagem, mostra-se relevante a incursão acadêmica acerca de obras


que trazem, justamente, esse cruzamento interartístico tão profícuo em termos de reflexões e
saberes. Como ponto de referência para nossa discussão, optamos por analisar o diálogo
produzido entre texto literário e movimento coreográfico a partir da obra “Cão sem plumas”,
cuja estreia se deu em 2017, da companhia brasileira de dança contemporânea Déborah Colker.
No texto literário, as rimas tratam do rio Capibaribe, dos percalços sofridos por quem
mora no sertão pernambucano, da rotina dos ribeirinhos, do que é ser “cão no sertão”. Na dança,
há a mescla com o cinema. O filme realizado por Deborah Colker e pelo pernambucano Cláudio
Assis é projetado no fundo do palco e há um diálogo entre as imagens da tela e a movimentação
em cena. As imagens foram registradas em novembro de 2016, quando a coreógrafa, o cineasta
e toda a Companhia viajaram durante 24 dias, no limite entre sertão e agreste, até Recife. Assim,
enquanto as cenas são projetadas no palco, os treze bailarinos parecem se unir às imagens.
Deborah já tinha uma parte do roteiro do espetáculo quando viajou com a Companhia
para a nascente do Capibaribe. A intenção era a de acompanhar o curso do rio e filmar os
bailarinos enquanto interagiam com as paisagens e os habitantes. Neste ambiente, foram
captadas as filmagens que compõem todo o espetáculo. Conforme Colker, foram 24 dias de
filmagens e experiências que envolveram oficinas e saraus com artistas locais em busca de
referências musicais e corporais para criar a coreografia.
Na obra literária em questão, nota-se que o espaço e a matéria do poema (a lama, a
água quase estagnada do Capibaribe) não apenas acossam a figura, o homem, mas se influem
nele: o homem torna-se, também, paisagem. O aspecto desarticulado da matéria, penetrando a
paisagem (em que tudo vira lama) termina por contaminar o próprio corpo do homem, que
adquire não apenas a configuração do produto exterior, mas também as suas características: o
166

movimento moroso, quase estancado, da matéria pegajosa: Na água do rio, lentamente, se vão
perdendo em lama; numa lama que pouco a pouco também não pode falar: que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos da lama; o sangue de goma, o olho paralítico da lama (...) (MELO
NETO, 2009, p. 85).
Em linhas gerais, o poema é composto de quatro momentos: Paisagem do Capibaribe
I, Paisagem do Capibaribe II, Fábula do Capibaribe III e Discurso do Capibaribe IV. Nota-se,
a estreita relação do poema com o rio Capibaribe, rio que corta quase todo o estado de
Pernambuco, em um movimento do interior até Recife, a capital.
Há uma profunda descrição deste rio cuja representação da realidade está ligada à
condição do material humano existente em suas margens, a secura do rio mescla-se à secura
humana em um processo de esgotamento e aniquilamento de ambos. A figura do cão que intitula
o poema possui uma relação simétrica à imagem do rio. O cão transforma-se em uma alegoria
séria, problemática e mesmo trágica, como se vê logo no início:

A cidade é passada pelo rio


como uma rua é passada por um cachorro;
uma fruta por uma espada;
O rio ora lembrava
A língua mansa de um cão
Ora o ventre triste de um cão
Ora o outro rio
De aquoso pano sujo
Dos olhos de um cão.
(...)
(MELO NETO, 2009, p. 105).

Deste modo, enfatizamos que em tal espetáculo, a dança e a poesia tornam-se um modo
de legitimação dos diálogos já estabelecidos entre a literatura e as artes. As imagens do poema,
da dança e do filme se entrecruzam e nos auxiliam na compreensão dessa obra imagética por
natureza e que agora dança diante de nosso olhar.

O espectador emancipado

Parece-nos oportuno pensar na dança contemporânea como pertencente ao campo das


“práticas estéticas”, definidas por Rancière (2009, p.17) como “formas de visibilidade das
práticas da arte, do lugar que ocupam, do que ‘fazem’ no que diz respeito ao comum”. Rancière,
167

ao tratar das relações entre arte e política, ressalta a dimensão estética da política e a dimensão
política da estética, cunhando o conceito de “partilha do sensível” definido por ele como: Eu
chamo de partilha do sensível este sistema de evidências que dá a ver ao mesmo tempo a
existência de um comum e as divisões que definem os lugares e as partes respectivas. Uma
partilha do sensível fixa ao mesmo tempo um comum partilhado e partes exclusivas.
“Esta repartição das partes e dos lugares se funda sobre uma partilha dos espaços, dos
tempos e das formas de atividades que determinam a maneira mesmo na qual um comum se
presta a participação e na qual uns ou outros são parte desta partilha” (RANCIÈRE, 2009, p.
17). Portanto, o autor concebe a ideia que há uma estética nos pilares da política justamente por
haver no “comum” uma perspectiva estética. O comum aqui pode ser entendido como o campo
coletivo no qual atuam nossas subjetividades, nossa dimensão política e social. Campo este que
organiza hierarquicamente fazeres, competências e visibilidades.
Parafraseando Rancière, a “ocupação” de cada indivíduo designa competências ou
incompetências para o comum, define quem pode tomar parte do comum, quem é adequado
para ver e para falar sobre o que vê. Deste modo, as já citadas “práticas estéticas” são modos
de fazer que possuem a capacidade de interferir na “ordem” do comum, deslocando lugares e
estruturas do sensível que é partilhado – reside aí, portanto, a dimensão política 185 da arte. A
arte é política pela atuação na composição do sensível e pela sua ordenação, pela produção de
regimes específicos de afetabilidade e de visibilidade. A dança, o teatro, as pinturas e outras
manifestações artísticas atuam como formas de partilha do sensível, pois propõem distintas
configurações da sensibilidade, aliando-se a determinados grupos e regimes culturais. As artes
apresentam a possibilidade de (des)ordenar discursos e posições sociais. Tomemos como
referência Cão sem plumas e sua definição conforme descrito no release, disponível no site da
Cia: “Um espetáculo sobre coisas inconcebíveis, que não deveriam ser permitidas. É contra a
ignorância humana. Destruir a natureza, as crianças, o que é cheio de vida” (CÃO SEM
PLUMAS, 2017).
Temas como morte, degradação ambiental, relação homem x natureza, denúncia social
e aspectos geográficos da paisagem, conforme descritos nos versos de Cabral, são
ressignificados em cena pelos corpos dos bailarinos que, com sua dança, acabam por tornarem-
se vetores de discussão política dessas problemáticas. Analistas e críticos de dança ao referirem-
se à obra, classificaram-na como a “mais brasileira das coreografias de Colker”. Entendemos
que tais deslocamentos temáticos propostos pela Companhia podem ser lidos como uma das
várias formas de partilhas do sensível encontradas no espetáculo. Pois é um modo de abrir um
novo espaço de visibilidade para uma questão social marginalizada: é uma maneira de gerar
168

reflexões sobre essas problemáticas e criar visibilidade dessa dimensão sensível que passa a ser
partilhada em uma nova esfera. O sensível é suporte para as discussões e de certa forma
denúncias trazidas ao palco.
A dança participa da partilha do sensível ao se tornar um meio de problematização
destes discursos, o que nos leva a pensar uma reorganização do comum, do social. A experiência
sensível do espectador é reconfigurada.

FIGURA 2: Foto do espetáculo “Cão sem plumas” Disponível em:


https:// www.ciadeborahcolker.com.br/csp

Dedicando-se às implicações políticas do espetáculo teatral – o que nos auxilia a


pensar a dança –, Rancière discute o lugar do espectador, situando-o no centro do debate sobre
as relações entre arte e política. Para o autor, o lugar deste espectador não é o lugar da
passividade. Ainda sobre o espectador, Rancière detalha a ação de “ver”. Para ele, se
considerarmos que o espectador apenas olha passivamente um espetáculo, ser espectador seria
“algo ruim”. Em contrapartida, o autor estabelece outro paradigma sobre a ação do espectador,
no qual ver é agir: Por que identificar “olhar” com “passividade”, se não pela pressuposição de
que olhar significa olhar para uma imagem ou para uma aparência e isso significa estar separado
da realidade que está sempre atrás da imagem? Por que identificar o ato de ouvir com ser
passivo, se não pela pressuposição de que agir é o oposto de falar, etc.? (RANCIÈRE, 2007, p.
108). O autor afirma, ainda, que o poder do espectador é o de escolher entre uma “imagem
dominante” e outra construída a partir de relações individuais. Desta forma, ele desloca a
posição do espectador, mostrando que olhar é sinônimo de conhecer e não significa apenas
contemplar a obra de arte. Se ler uma obra passa pelo julgamento do espectador, que filtra
aquilo que lhe apetece e ressignifica o espetáculo mediante suas experiências, ele se torna
também um co-criador, imprimindo sua autoria àquilo que assiste. Tal ação é que emancipa o
169

espectador, ou seja, a sua releitura das cenas confere a ele uma igualdade de criação dentro do
espetáculo.
O espectador, como observador da totalidade da obra, finaliza o espetáculo, tornando-
o uma experiência estética singular. Ao longo da composição, as imagens criadas pela dança e
pelo filme são mescladas, várias cenas se desenrolam ao mesmo tempo, o que cria no espectador
a sensação de múltiplas imagens que o “veem” e o “olham”. Há ainda a possibilidade de ater-
se à poesia, uma vez que palavras e versos ecoam em certos momentos, trazendo uma terceira
leitura do conjunto da obra. É um modo de emancipar o espectador ao apresentar uma
construção cênica aberta, que exige a participação ativa na escolha do que é visto e no modo de
compreender as relações entre as cenas e os personagens. Devido à natureza da dança e da
concepção coreográfica de Cão sem plumas, entendemos que é possível intitular a obra como
sendo uma criação que permite a emancipação do espectador. O fato de termos uma dupla
narrativa em cena (a fílmica e a dançada) já a “emancipa”, pois o espectador pode ater-se
somente ao filme ou unicamente à dança de modo que ambas as linguagens possibilitam uma
gama de produção de sentidos e imagens políticas, por natureza, dada a temática trabalhada.
Citamos, como exemplo, os comentários de alguns espectadores que associaram o fato de os
bailarinos dançarem sujos de lama como sendo uma crítica ao rompimento da barragem de
Fundão, ocorrido em 2015 a 35 km de Mariana, Minas Gerais.
Na ocasião, os rejeitos de mineração, controlados pela empresa VALE de Mineração,
foram despejados e chegaram ao rio Doce. Tal acidente causou um impacto ambiental de
proporções incalculáveis, lançando cerca de 62 milhões de metros cúbicos de lama no rio e,
consequentemente, no mar. Recentemente, em janeiro deste ano, outro acidente envolvendo
rompimento de barragem de rejeitos causou uma tragédia ambiental de proporções ainda
maiores que o rompimento da barragem do Fundão, resultando em mais de 200 mortes. Trata-
se da barragem localizada na mina Córrego do Feijão em Brumadinho/MG. Diante de duas
tragédias de tamanho impacto, ocorridas em menos de cinco anos de distância uma da outra, é
quase impossível assistir Cão sem plumas sem associar a obra a tais fatos. O espectador é
convidado a criar novos significados e sentidos para o espetáculo, a arte como espaço de
discussão política ganha terreno. A lama pernambucana confunde-se com a lama mineira,
revisitadas como metáforas da morte, do sofrimento e da degradação ambiental e humana que
ainda se faz presente em nossa realidade social. O leitor das poesias, das imagens e das cenas
de dança torna-se, portanto, um reconfigurador de sentidos e conceitos. As imagens contribuem
para gerar novas configurações do visível, dizível e pensável. O existir da arte (re)afirma-se
entre o gesto que faz e o olhar que significa, sempre.
170

Referências

CORTÁZAR, JÚLIO. Jogando amarelinha com Julio Cortázar. In: Prosa & Verso. Rio de
Janeiro: Jornal O Globo, 21 ago. 2004.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

DINIZ, Roberta Kelly Paiva. Literatura e Dança: Rastros de um diálogo e sua manifestação
em Mallarmé, Valéry e Nijinsky. 2016. Fls. 307. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

KATZ, H.; GREINER, C. Por uma teoria corpomídia. O corpo: pistas para estudos
indisciplinares. São Paulo: Editora Annablume, 2005. p. 131.

MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas (1953). In: ____. Morte e vida Severina: e
outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. In: Revista Urdimento, PPGAC/UDESC,


Santa Catarina, 2007.

VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Trad. Marcelo Coelho. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.

VALÉRY, Paul. “L’enseignement de la poétique au Collège de France”. In: COMPAGNON,


Antonie. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p.1440.

SITES:

CÃO SEM PLUMAS. Release, 2017. Disponível em: https://www.ciadeborahcolker.


com.br/csp Acesso em 16 fev. 2021.
171

UM ESTUDO SOBRE A LONGEVIDADE DA OBRA ATRAVÉS DO BRASIL DE


OLAVO BILAC E MANOEL BOMFIM

Gabriela Fernanda Sêjo

Introdução

Através do Brasil de Olavo Bilac e Manoel Bomfim foi publicado originalmente em


1910 pela editora Francisco Alves. Com 66 edições, permaneceu “adotado nas escolas por mais
de seis décadas” (OLIVA, 2004, p. 111). Em 1965, a obra deixa de ser editada pela Francisco
Alves e é reeditada em 2000, pela Companhia das Letras - organização de Marisa Lajolo. Sua
edição mais recente foi publicada pela Fundação Darcy Ribeiro em 2013, escrita pelo autor
Manoel José do Bomfim com prefácio de Claudio Murilo Leal e organizado por Paulo de F.
Ribeiro. E é por conta da quantidade imensa de reedições, que esse artigo questiona o que
explica essa longevidade do livro, permitindo que seja editado e reeditado várias vezes, em
diferentes tempos e sociedades. Buscando se orientar por aquela assertiva de que uma literatura
é expressão da “maneira como os homens viam a si mesmos” 52, nossa proposta se refere ao
lugar social que Através do Brasil pode assumir em 1931, graças a algumas palavras-chave,
como “mulato”, por exemplo. Dessa maneira, segundo Sêjo:

Quando o livro foi reeditado pela vigésima terceira vez, tal palavra-chave presente no
livro, desde a primeira edição, só pode ser reconhecida em toda sua força semântica,
podemos levantar essa hipótese, graças ao debate sobre questões étnicas da década de
1930 (SÊJO, 2018, p. 15).

Segundo a autora ainda foi possível perceber que a mudança que a obra sofreu de uma
edição a outra foi em relação a sua materialidade, pois o texto permaneceu o mesmo. Contudo,
em relação do ponto de vista semântico houve algumas mudanças, “pois a presença do livro se
alargou numa época diferente que o viu nascer. A obra criou outro universo de sentido, graças
à ressignificação de algumas palavras-chave em um novo contexto social” (SÊJO, 2018, p. 16).
Nesses termos, é importante ressaltar que nessa pesquisa não estamos considerando
Através do Brasil em seu nascedouro (1910), mas sim em 1931. A obra “teve mais de 60
edições, [...], e esse fato tem nos provocado a pensar como outras sociedades diferentes daquela

52
A assertiva é de Erich Auerbach. Segundo Leopoldo Waizbort, leitor de Auerbach, no ensaio sobre Montaigne,
o filólogo alemão apresenta uma teoria de compreensão histórica a partir da compreensão de si mesmo, algo
exposto nas literaturas. Conferir WAIZBORT, Leopoldo. Erich Auerbach sociólogo [Vico e Auerbach,
esquematicamente]”. In: Tempo social, vol.16, n.1, São Paulo, Junho 2004. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702004000100004>; acesso em: Abril 2017.
172

que lhe deu vida, foi também sua portadora e suporte” (SÊJO, 2018, p. 60) Exemplos de outras
obras literárias longevas são os Lusíadas, a Bíblia, entre outras. Todas elas têm um único
sentido, na verdade: o de evidenciar que “o tempo impõe um ritmo diferente para alguns
escritores de romances”, (PAIXÃO, 2016, p. 275) o que permite que as suas “personagens e
suas aventuras sejam não apenas reconhecidas por diferentes gerações de leitores, mas
ganhando outros matizes pela cor local de cada época. Algo que as palavras-chave nos
anunciam” (SÊJO, 2018, p. 60). Portanto, trata-se de um mapa temporal no qual podemos
perceber e percorrer o lugar que um determinado livro, como é o caso de Através do Brasil,
ocupa em um tempo específico (1931), “diferente daquele que o viu nascer” (SÊJO, 2018, p.
60).
A expressão palavra-chave foi utilizada por Raymond Williams para “analisar os
processos culturais relativos à comunicação envolvendo a Inglaterra após a Segunda Guerra
Mundial” (SÊJO, 2018, p. 13). As pessoas continuavam a falar a sua língua nativa, mas os seus
usos e seus significados haviam mudado: tinham sido modificados em função da guerra. Ele
considera que “[...] são significativas e vinculantes em certas atividades e em sua interpretação;
são palavras significativas e indicativas em algumas formas de pensamento” (WILLIAMS,
2007, p. 32). Da nossa parte, consideramos como sendo de época. “O termo está nos vocábulos,
nas mensagens, nos pensamentos da sociedade e nos ajudam a pensar, podemos sugerir
novamente, como os homens viam a si mesmos em uma determinada época” (SÊJO, 2018, p.
14). Escolhemos essa análise, pois:

vamos analisar uma época específica da sociedade brasileira (1930), uma única obra
(Através do Brasil) escrita por dois autores específicos (Olavo Bilac e Manoel
Bomfim), não tendo a pretensão de realizar explanações sobre diferentes épocas e
variados autores e obras, tal como realiza Raymond Williams em sua obra capital
Cultura e Sociedade (1958). Nosso esforço, portanto, é mais restrito e centrado na
reedição de uma única obra literária, que terá seus momentos decisivos reconhecidos
pelo estudo das palavras-chave (SÊJO, 2018, p. 14).

Através do Brasil narra à história de dois irmãos: Carlos e Alfredo, o primeiro de 15


anos e o segundo de 10 anos. Ambos eram alunos de um internato na cidade de Recife que, num
desses dias qualquer, receberam a triste notícia de que seu pai havia morrido vítima de uma
doença desconhecida. Tomados de desespero pela notícia, os irmãos fogem do internato a sua
procura, iniciando assim uma viagem pelo Brasil. O trajeto começa na cidade de Recife e
termina no estado do Rio Grande do Sul. Durante o percurso Carlos e Alfredo conhecem
Juvêncio. A história termina com os irmãos descobrindo que seu pai não estava morto e com a
173

sua ida para buscar Juvêncio que estava doente em Manaus. Ambos retornariam depois, juntos
para o Rio Grande do Sul.
Contudo, antes de partimos propriamente para o texto faz-se necessário uma última
ressalva. A palavra-chave “mulato” que iremos analisar aparece representada na história pelo
personagem “mulato” Juvêncio. Neste momento, “retomaremos essa discussão eminentemente
sociológica da questão racial e como o livro de Bomfim e Bilac expõem o assunto” (SÊJO,
2018, p. 17). Partimos, portanto da consideração colocada previamente que essa palavra-chave
na década de 1930 é uma porta de entrada para compreendermos a forma “como os homens
viam a si mesmos”.

Palavra-chave “mulato”

A palavra-chave “mulato” aparece em Através do Brasil no capítulo VIII “A fazenda”


e no capítulo XIII “Um novo companheiro”. Vale destacar também, que ela é representada na
história pelo personagem Juvêncio. Para começarmos, vamos mergulhar no interior do livro e
iniciar a análise dessa palavra-chave do fim para o começo, ou seja, do capítulo XIII para o
capítulo VIII porque ali ela aparece citada uma única vez. Nesse capítulo, o sentido de “mulato”
é empregado fortemente para caracterizar o personagem Juvêncio morfologicamente, conforme
podemos observar no fragmento abaixo:

Era um rapazinho de dezeseis ou dezesete anos, vestido á moda do sertão: camisa de


algodão grosso branco, paletó e calças de algodão riscado, sapatos e chapéo de couro
vermelho. O typo era sympathico, moreno, entre caboclo e mulato, - de rosto largo,
bocca rasgada, olhos vivos e inteligentes (BILAC; BOMFIM, 1931, p. 70).

Nestes termos, o que podemos dizer sobre o personagem Juvêncio? A resposta vem de
Antonio Candido (2009) e de seu termo “personagem esférica”. As personagens esféricas: “[...]
se reduzem ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizados
com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender”
(CANDIDO, 2009, p. 63). Juvêncio é pois “esse tipo de personagem, nada central, ao contrário,
é posto propositalmente à margem, mas nos surpreende ao longo da narrativa por circundar as
personagens principais e dar sentido ao fato narrado” (SÊJO, 2018, p. 65). No decorrer da
história nos surpreende a cada novo episódio narrado, pois tais informações não se conectam
com o que veio antes, “dando uma dimensão sempre inédita da experiência, como se o lastro
cultural, o passado, a memória, não fosse uma realidade, ou seja, ser ‘mulato’ é não ter história”
(SÊJO, 2018, p. 65).
174

Já no capítulo VII, a palavra-chave “mulato” aparece escrita quatro vezes. Ela refere-
se primeiramente a um “mulato” que estava tocando pandeiro. Nas outras três vezes, faz
referência ao cantar dele em um desafio com um caboclo. Isso pode ser observado na trova
abaixo:
Já chegou, já está cantando:
Canta no seco e na lama;
Caboclo, tome sentido!
Quero ver a sua fama!
Quero ver a sua fama,
Diz você; pois há-de ver:
Mulato, chegou seu dia,
Você tem de padecer.
Você tem de padecer...
Quem de nós padecerá?
Caboclo a mim náo me espanta,
Nem mesmo do Ceará! (BOMFIM, BILAC, 1931, p. 50) – grifo dos autores

Partindo da análise da trova, podemos perceber que o caboclo “chama” o “mulato”


para uma disputa em que deixa evidente a sua intenção de derrota-lo no jogo das palavras. Ele
por sua vez mostra-se corajoso para o certame. Contudo, o que chama atenção é que o “mulato”
precisa desaparecer. E por quê? Isso ocorre, pois ajuda a demonstrar o lugar do “mulato” à
margem da sociedade. Segundo Sêjo (2018) essa disputa provém de uma sociedade rural no
sertão do Ceará e não na cidade. O padecer podia significar a sua morte, pois a disputa podia
envolver ou não violência, mas:

para as pessoas ali envolvidas era uma forma de resolverem seus problemas e
desavenças com as outras pessoas. Sendo assim, elas aconteciam em lugares públicos,
seja nos quiosques ou botequins, pois eram os lugares comuns frequentados tanto por
‘mulatos’ como por brancos mestiços, como os caboclos (SÊJO, 2018, p. 72).

Os conflitos ocorriam “pelos mais variados motivos, desde os problemas ligados ao


trabalho e a habitação, passando pelas questões de amor e de relações entre vizinhos [...]
(CHALHOUB, 2001, p. 312)”. No caso da trova, como já dissemos “é o sertão, e a dura disputa
pela sobrevivência em terras secas e escassas de ‘trabalho e aventura’” (SÊJO, 2018, p. 72).
Dessa maneira, por falar no binômio trabalho e aventura, podemos inferir também que isso se
refrata no tipo português colonizador do qual nos fala Sérgio Buarque de Holanda (1982).
Noutras palavras: “[...] a hipótese aqui é que a sina de todo emigrante português (e seus
herdeiros) é ser bem-aventurado” (PAIXÃO, 2016, p. 143). Eles desempenhavam no Brasil um
ofício que não era fixo e nem previamente determinado. Ao contrário, ele acontecia por meio
de situações compartilhadas, relações mútuas e “os aspectos intrincados de sociabilidade, tudo
175

se esvazia e se resolve em função de uma lógica pessoal e de troca de favores” (PAIXÃO, 2016,
p. 122).
Assim, podemos perceber nesse imigrante às qualidades próprias do aventureiro do
qual podemos aproximar do espírito de aventura, guardadas as proporções que nos apresenta
Holanda em seu livro Raízes do Brasil (1982). Todavia, sentimos esses mesmos elementos
constitutivos no personagem Juvêncio. Ele segundo Sêjo:

Trabalha e se aventura pelo Brasil ao lado de dois outros meninos, fazendo jus a sua
sina de aprendiz e de destino incerto. Essas peripécias, próprias de um menino de
dezessete anos, na verdade, são sinônimos de muitas tensões, brigas, conflitos, rixas,
algo que acompanha a existência do tipo ‘mulato’ desde o período da colônia,
conforme nos ensina Buarque de Holanda (SÊJO, 2018, p. 73).

O sentido de aventura ao qual nos referimos é o de ascender a novas classes sociais,


explorar o desconhecido e ultrapassar as fronteiras. Isso demonstra que o “mulato” ascendeu a
novas posições sociais na sociedade brasileira pelos mais variados trabalhos artesanais, como
os oleiros, os sapateiros, dentre outros. E não apenas isso. A obra Através do Brasil nos
apresenta outra dimensão também: Juvêncio é retratado como esperto e considerado inteligente,
mas detém um saber não adquirido na escola e sim em seu ambiente de sociabilidade, em cada
ofício realizado. Em outras palavras, o que estamos afirmando é que “mesmo não frequentando
o ambiente escolar em seu espaço físico, o ‘mulato’ aprendeu em seu próprio ambiente de
trabalho” (SÊJO, 2018, p. 69). Segundo afirma Sarita Maria Affonso Moysés:

Como leitores ouvintes, o que os define, nessa forma socializada de leitura, ainda é o
vínculo dessa leitura/escrita com o trabalho. Principalmente nos espaços urbanos, pela
inserção no mercado de trabalho, onde os escravos de ganho aprendem não só a língua,
mas a contar (MOYSÉS, 1995, p. 59).

No contato que tiveram com o branco, mais propriamente a partir da oralidade no seu
ambiente de trabalho, ele tornou-se um ouvinte das leituras que ele fazia e que aconteciam nas
canções, nos folhetins, etc. Isso ocorria a partir da voz e não do texto escrito propriamente.
Desses cantarejos “[...] com os ês da fonética de tal método de leitura, dessa mistura com textos
religiosos de estruturas, orações e desinências latinas, se traça uma certa orientação para a
textualidade” (MOYSÉS, 1995, p. 60). Além disso, “isso fez com que ele criasse também um
tipo de saber específico acerca da escrita, que sucedia em encontrar no texto essa oralidade e a
relação som letra” (SÊJO, 2018, p. 70).
176

Nesse sentido, o Censo Demográfico: Estados do Brasil 53 entre 1930 – 1940 aponta
que 13.292.605 pessoas sabiam ler e escrever e 27.735.140 não sabiam ler e nem escrever. Já a
população total era de 41.236.315 pessoas, composta por: 26.171.778 brancos 14.780.234
pretos e pardos; 242.320 amarelos e 41.983 de cor não declarada. Com esses dados, é possível
perceber que mais da metade da população não era alfabetizada (67,26%) e era composta por
mestiços, os chamados “mulato”, o que corresponde a 35,84%.
Essa realidade impulsionará também uma série de projetos e reformas na sociedade
brasileira voltada a educação: trata-se da reforma do ensino secundário de 1942, do projeto da
“universidade-padrão” e da implantação do ensino industrial. O primeiro deveria conter “um
conteúdo essencialmente humanístico, estaria sujeito a procedimentos bastante rígidos de
controle de qualidade, e era o único que dava acesso à universidade” (SCHWARTMAN, 2000,
p. 206). Outro ponto importante é a obrigatoriedade de sua frequência que:

[...] seria o processo através do qual assegurava-se que as novas gerações se sentariam
nos bancos escolares e neles permaneceriam o período suficiente para o aprendizado
de uma cultura comum, que transmitisse a consciência de que pertenciam a uma nação
comum e de que eram responsáveis pela manutenção e difusão de seus valores ao resto
da população (SCHWARTMAN, 2000, p. 210).

Assim, conforme afirma Sêjo (2018, p. 78): “é possível perceber que a frequência à
escola era uma prática que não ocorria de forma concreta em todas as escolas secundárias”.
Além dessa reforma, houve também a Criação da Universidade do Brasil que “teria como seus
principais objetivos implantar em todo o país um padrão nacional e único de ensino superior,
ao qual a própria USP se deveria amoldar” (SCHWARTMAN, 2000, p. 223). Estruturas para
os campi foram criadas e toda uma regulamentação foi feita para que os cursos pudessem
funcionar. O ensino industrial por sua vez, teve como objetivo proporcionar mão de obra as
funções que iam surgindo no mercado de trabalho. Foi destinado primeiramente:

para o treinamento de aprendizes, passando depois ao treinamento profissional dos


empregados da indústria. Tratava-se do ensino técnico, que propiciava tanto a
formação comercial, industrial e agrícola, como também a formação do magistério
por meio das escolas normais. Era dirigido pela Confederação Nacional de Indústrias
e mantido pelas contribuições das empresas a ela filiadas (SÊJO, 2018, p. 79).

53
Conferir IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico população e habitação:
quadros de totais para o conjunto da união e de distribuição pelas regiões fisiográficas e unidades federadas.
Rio de Janeiro, 1950, p. 1.
177

Diante disso, é válido ressaltar que tais projetos estavam ligados a um movimento
renovador no campo da educação brasileira. Trata-se do movimento da Escola Nova que
segundo Sêjo (2018, p. 79): “no qual visava um ensino destinado para a população em geral e
não somente à elite. Propunham um conteúdo pragmático, um incremento à pesquisa e ao
pensamento reflexivo, dentre outras ações”. Ele deveria ser assumido pelo Estado a quem
caberia a parte de centralizar e gerenciar a educação. Ele instituiu-se:

a partir do Plano Nacional de Educação de 1937. Nele não é mencionado,


explicitamente, a quem esses projetos se destinavam. O “mulato” não aparece citado,
enquanto “pessoa”, mais como povo, população, pois representa grande parte da
população brasileira, conforme vimos anunciado no Censo Demográfico (SÊJO,
2018, p. 79).

Contudo, eles deveriam criar oportunidades para determinados grupos sociais, mas não
é isso o que acontecia, pois “nada propõe em relação ao ensino primário e à educação (FILHO,
s/d, p. 3) e as reformas são marcadas por um forte elitismo e um conteúdo enciclopédico que
“controlado do centro, exigente e exagerado, quanto ao eúmero de provas e exames, fez que a
seletividade fosse a tônica de todo o sistema” (ROMANELLI, 1999, p, 137). Dessa forma,
“favorecia os alunos avindos das camadas mais abastadas. Dificultava o acesso e a permanência
dos alunos pobres oriundos de famílias desfavorecidas economicamente” (SÊJO, 2018, p. 80),
onde é possível encontrar o tipo social “mulato”.
É importante ressaltarmos também nesse processo, a presença de práticas pedagógicas
voltadas à educação escolar e popular, como a criação do Instituto Nacional do Cinema
Educativo (INCE) em 1937. O cinema era “uma maneira de contribuir para a propaganda, a
integração nacional e a mobilização das massas, [...], ele não seria apenas um auxiliar para a
transmissão do saber, mas para formar o povo, mais especificamente uma população letrada”
(SÊJO, 2018, p. 80).
Os filmes documentários ajudariam na “[...] presença da natureza para a sala de aula e
aproximaria determinados fenômenos sociais vividos pelas populações do mundo” (VENÂNCIO
FILHO, 1941, p. 52). Ele “[...] poderia resgatar aqueles que estavam excluídos do saber oficial e,
por isso, o filme educativo deveria ser acessível à compreensão dos espectadores, de modo a
abranger toda a sua diversidade” (CATELLI, 2010, p. 617-618). Dessa maneira, podemos perceber
novamente o papel que a educação tinha tanto dentro como fora do ambiente escolar.
Além disso, é importante refletir também sobre a presença marcante do “mulato” na
sociedade brasileira. A imprensa do período nos ajuda a testemunhar isso. No Jornal do Brasil
de 6 de dezembro de 1930 é afirmado que: “Que importa que sejas branco, mulato ou preto!
178

Sob a tua pelle ferve o sangue novo. Que importa que sejas ou não nascido nessa terra! Tu és o
homem revolucionário, tu és o meu irmão, tu és o criador do novo Brasil” (ARANHA,1930, p.
6). No dia 31 de janeiro de 1934, a matéria Registro Literário afirma:

- Fulano de tal (senhor de engenho), é mulato, não é? está-se vendo.


- Foi mulato, sim, senhor, mas agora não é mais.
Entrara na aristocracia dos senhores, que deram os chefes políticos, os grandes do
Imperio, deputados e senadores, alguns do beiçolas, narizes chatos e pichain evidente.
Esses mulatos generalizam-se prolíficos e foram êles que fizeram a Abolição, a
Republica, sanearam as cidades, progrediram enfim (JORNAL DO BRASIL, 1934, p.
10).

Já a Revista da Semana afirma no dia 1 de outubro de 1938:

Quando o nascimento, as allianças, as riquezas ou o mérito pessoal permittem que um


Mulato aspire a collocações, é raro ou nunca sucede que a côr ou a mistura do sangue
sejam para ele um obsttaculo. Mesmo de matiz mais carregado, é inscripto como
Branco, e como tal figura não só nos papeis que lhe entregam como ainda em toda
sorte de negocio, e de então por deante está apto para todos os empregos. Seria
facil citar numerosos exemplos de homens que occupam os mais destacados logares
e que se contam entre os funccionarios mais habeis, embora o seu aspecto exterior
revele, indubitavelmente, o sangue indio ou africano que lhes corre nas veias. No paiz,
isso não suscita difficuldade alguma, e quando se fala no caso é quasi sempre para
responder á pergunta de um extrangeiro e nunca como espirito de mofa ou de
descredito (REVISTA DA SEMANA, 1938, p. 98).

Por meio desses registros podemos perceber mais uma vez o papel do “mulato”
na sociedade brasileira, que é de um coadjuvante, surpreendente e esférico, assim como o nosso
personagem Juvêncio presente em Através do Brasil, que foi reeditado nessa mesma época.
Dessa maneira, é possível perceber também como a questão do “mulato” é assunto de uma
época, mais propriamente da década de 1930. Os nossos autores apesar de terem escrito sua
obra em 1910, passados 20 anos, trabalham com a temática do “mulato” por meio do
personagem Juvêncio, que está em destaque e isso pode ajudar a reedição da obra em 1910.
“Mas não apenas isso. A própria imprensa do período recupera o papel do livro para a literatura
brasileira e a instrução” (SÊJO, 2018, p. 76), como vimos. Além disso, segundo a autora:

elucidamos também que os homens e mulheres pobres e trabalhadores da sociedade


brasileira figuram dentro e fora do texto literário e sociológico, apresentando-se como
um símbolo de uma identidade nacional em construção. Daí nosso desejo de repassar
aqui as diferentes representações desse tipo social, [...] na ficção do período, como em
Através do Brasil. Era uma obra criada na década de 1910, mas que ao ser reeditada
na década de 1930, pode ser vista como uma das expressões literárias daquela época,
pois repassa notas dominantes de um determinado momento histórico refratadas na
[...] palavras-chave que analisamos (SÊJO, 2018, p. 81)
179

Para terminar, podemos nos perguntar em que aspectos Através do Brasil se combina
com a década de 1930? Combina no que apresentamos sobre o emprego da palavra-chave
“mulato”. Ele “contribui para um vocabulário de época, em que um tipo social é pauta literária,
intelectual e política” (SÊJO, 2018, p. 81).

Considerações Finais

Para encerrar, gostaríamos de enfatizar, primeiramente que esta pesquisa buscou se


orientar pela assertiva da qual aquilo que vivem os personagens acontece com os homens em
geral e a relação do texto com o contexto foi proporcionada pelo estudo da palavra-chave
“mulato”. Partimos, portanto da perspectiva de que o que é escrito em uma obra ficcional, como
é o caso de Através do Brasil, mais especificamente que a palavra-chave “mulato” tem uma
relação mediada com a realidade. Isso nos ajudou a perceber como a obra passou por mudanças
significativas graças à década de 1930, ou seja, posterior daquela que é o seu nascedouro (1910).
Em segundo lugar, é importante destacarmos a função social de Através do Brasil. O
que estamos afirmando é todo um trabalho ideológico que percorre a obra. Ele é “marcado por
um caráter conformador, no qual não desperta no aluno a fantasia, a reflexão e o questionamento
social por parte dos personagens” (SÊJO, 2018, p. 82). Ao contrário, há uma explanação
doutrinária, um tanto dominadora que sirva talvez de pretexto para ensinar as diversas lições,
como a do civismo e a da higiene, entre outros. Isso ocorre “dentro de um caráter didático e
conformista, conforme a própria tradição crítica desse livro [...]” (SÊJO, 2018, p. 83).
Em terceiro lugar, discutimos a palavra-chave “mulato” que é representada na história
pelo personagem Juvêncio. Combinado com o que trouxemos da análise da sociologia brasileira
e dos jornais e revista foi possível perceber como essa palavra-chave “era um vocabulário de
época bastante dominante na década de 1930, não em 1910, o que significa que somente na 23ª
edição foi possível reconhecer a força semântica desta palavra-chave” (SÊJO, 2018, p. 83).
Bomfim e Bilac, com a reedição de Através do Brasil em 1931, trabalham com
diferentes imagens, palavras e temas, mas foi à palavra-chave “mulato” que especificamente
nos permitiu “compreender como uma obra poderia ser reconhecida numa sociedade diferente
daquela que a produziu, originalmente, criando outro universo de sentido para uma mesma obra
ficcional” (SÊJO, 2018, p. 83). Portanto, não havia somente um interesse editorial em Através
do Brasil, ele confirma visões de época, um mesmo sentimento nacional e conformador certas
vezes e algumas notas dominantes, algo que o estudo de significativas “palavras-chave”
conseguiu demonstrar.
180

Referências

ARANHA, Graça. O Rio ouviu pelo radio o seu “Canto do Revolucionario”. In: JORNAL DO
BRASIL, Rio de Janeiro: RJ, 6 de Dezembro de 1930, p. 6. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_05&pesq=Mulato&pasta=an
o%2019> Acesso em: 16/04/2017.
BILAC, Olavo; BOMFIM, Manoel. Pratica da Lingua Portugueza Atravez do Brasil
(Narrativa) Livro de leitura para o curso medio das Escolas Primarias. Rio de Janeiro, RJ:
Livraria Francisco Alves, 1931.
CANDIDO, Antônio; GOMES, Paulo Emílio Salles; PRADO, Décio de Almeida e
ROSENFELD, Anatol. A Personagem de Ficção. São Paulo, SP: Perspectiva, 2009.
CATELLI, Rosana Elisa. Coleção de imagens: o cinema documentário na perspectiva da Escola
Nova, entre os anos de 1920 e 1930. Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 111, Abr.-Jun., 2010, p.
613. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v31n111/v31n111a16.pdf> Acesso em:
13/03/2018.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2001.
FILHO, João Cardoso Palma. A educação brasileira no período de 1930 a 1960: A era Vargas.
UNESP, s/d, p. 3. Disponível em:
<https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/107/3/01d06t05.pdf> Acesso em:
09/03/2017.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 15. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1982.
IBGE. Censo demográfico população e habitação: quadros de totais para o conjunto da
união e de distribuição pelas regiões fisiográficas e unidades federadas. Rio de Janeiro,
1950, p. 1. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/65/cd_1940_v2_br.pdf> Acesso em
01/05/2017.

JORNAL DO BRASIL. Registro Literario. Rio de Janeiro: RJ, 31 de Janeiro de 1934, p. 10.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_05&pesq=Mulato&pasta=an
o%20193 > Acesso em: 16/04/2017.

MOYSÉS, Sarita Affonso. Literatura e história Imagens de leitura e de leitores no Brasil


do Século XIX. Revista Brasileira de Educação, Set/Out/Nov/Dez Nº 0, 1995.

PAIXÃO, Alexandro Henrique. O gosto literário pelos romances no Gabinete Português de


Leitura do Rio de Janeiro. In: ABREU, Márcia. Romances em movimento: a circulação
transatlântica dos impressos (1789-1914). Campinas-SP: Editora Unicamp, 2016.
PAIXÃO, Alexandro Henrique. Memórias de um Sargento de Milícias. Educação primária e
trabalho livre no tempo d’el-rei. Pro-posições, V. 27, N. 3 (81) / Set. Dez, 2016. Disponível
181

em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010373072016000300121&script=sci_abstract&tl
ng=pt> Acesso em: 25/03/2018.

REVISTA DA SEMANA. Rio de Janeiro: RJ, 1 de Outubro de 1938, p. 98. Disponível


em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=025909_03&pesq=Mulato&pasta
=ano%20193> Acesso em: 16/04/17.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. 23. ed. Petrópolis (RJ):
Editora Vozes, 1999.
SCHWARTMAN, Simon. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio
Vargas, 2000.
SÊJO, Gabriela Fernanda. Momentos Decisivos em “Através do Brasil” [recurso eletrônico].
Campinas, SP: [s.n.], 2018.
VENÂNCIO FILHO, F. A educação e seu aparelhamento moderno. Rio de Janeiro:
Nacional, 1941.
WAIZBORT, Leopoldo. Erich Auerbach sociólogo [Vico e Auerbach, esquematicamente]. In:
Tempo social, vol.16, n.1, São Paulo, Junho 2004. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702004000100004>; acesso em: Abril 2017.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de


Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.
182

RESISTANCE THROUGH NARRATION: MEMÓRIA E TESTEMUNHO EM OS


TESTAMENTOS, DE MARGARET ATWOOD

Mikael de Souza Frota

Quem é você, leitor? E quando está você? Talvez no dia de


amanhã, talvez a cinquenta anos de mim, talvez nunca.
Os testamentos – Margaret Atwood

Introdução

Margaret Eleanor Atwood é poetisa, romancista, ensaísta e crítica literária. Nascida no


dia 18 de novembro de 1939, em Otawa – Canadá, é considerada uma das escritoras mais
importantes da literatura mundial e a principal referência literária do Canadá. Atwood iniciou
a carreira de escritora aos 16 anos com a publicação do poema The Circle Game em 1964.
Ativista ecológica, social e feminista, a autora publicou 19 romances, 10 contos, 16 livros de
poesia e 9 livros de ensaios e críticas literárias. Atwood é mundialmente conhecida por sua
magnum opus: The Handmaid’s Tale (O conto da Aia), principalmente após a popularização da
série de TV com o mesmo título do romance hospedada pela plataforma de streaming norte-
americana Hulu em 2017.
Os romances publicados por Margarett Atwood no Brasil são acessíveis, uma vez que
todos foram traduzidos para o português brasileiro, assim como um número considerável de
contos. No entanto, dos 16 livros de poesias publicados, apenas The Door (2007) foi traduzido
para a língua portuguesa como A porta (2013). A flexibilização de acesso as obras de Atwood
no Brasil instigou pesquisadores a explorarem o universo literário da escritora canadense.
Contudo, durante as pesquisas para elaboração do presente estudo no Google Scholar, em
bancos de dissertações e teses de diferentes e renomadas universidades do Brasil e em revistas
de periódicos eletrônicos, notei uma concentração de investigações e análises no romance O
conto da Aia. Portanto, o interesse pela rica literatura de Margaret Atwood, aliado a necessidade
do aumento progressivo de investigações dos demais romances da autora no Brasil, encorajou
a elaboração deste artigo.
Margaret Atwood apresenta e problematiza nas suas obras a representação feminina,
ficcionalizadas em sociedades patriarcais opressoras. O protagonismo dessas personagens
femininas está ambientado em espaços apocalípticos, cuja projeção futurística da autora é
claramente pessimista. À vista disto, é possível encontrar no vasto acervo de livros publicados
por Atwood um tom crítico e preocupado com o meio ambiente, com a tonicidade do discurso
183

conservador relacionados à família, a questão de gênero, a religião, a representação da infância


e ao aborto.
O estilo e a escrita de Margaret Atwood tiveram influências que variam desde os
contos de fadas e das histórias em quadrinhos, até as leituras teóricas sobre o feminismo, a
história norte-americana e a memória. A propósito, a memória é tema central nas obras da
autora, pois é possível notar em romances como Vulgo Grace (2008), Oryx e Crake (2004), A
odisseia de Penélope (2005), O ano do dilúvio (2011) e Maddadão (2019) narrativas e/ou
escritas memorialistas. O caráter memorialista das obras de Atwood é influenciado pelas
experiências de leituras e de observações históricas feitas pela autora. Assim, a maioria de suas
histórias são narradas em flashbacks e com variações dos narradores, como é o caso do último
romance da autora: Os testamentos (2019).
Os testamentos é a continuação da saga gilediana quinze anos após os eventos
acontecidos em O conto da Aia. O novo romance de Margaret Atwood conta a história do
colapso das engrenagens do regime teocrático e totalitário da fictícia República de Gilead. A
derrocada das estruturas políticas dessa sociedade conservadora e opressora é crucial para o
entrelaçamento da vida de três personagens: Agnes Jemima, Daisy (Bebê Nicole) e Tia Lydia.
Dessa forma, a história de Os testamentos se desenvolve através dos relatos dessas três vozes
narrativas, cujas identificações estão descritas no início de cada capítulo do romance como: “O
hológrafo de Ardua Hall [...], transcrição do depoimento da testemunha 369A, [...] transcrição
do depoimento da testemunha 369B” (ATWOOD, 2019, p. 11, 17 e 47).
A primeira voz narrativa do romance é Tia Lydia. Essa personagem é conhecida como
uma das fundadoras do regime de Gilead e como autoridade implacável na imposição dos ideais
teocráticos dessa república. A violenta autoridade e a implacável devoção religiosa dessa
personagem, claramente perceptíveis em O conto da Aia, são dissuadidas com o seu revelador
manuscrito. Nele, Tia Lydia revela as entranhas do funcionamento de Gilead e denuncia as
atrocidades cometidas e impostas pelos seus líderes. A narrativa de Tia Lydia se divide entre as
lembranças de uma vida antes da “revolução” gilediana, no que era conhecido como os Estados
Unidos, e a escrita testemunhal do manuscrito.
A segunda e a terceira vozes narrativas do romance são das irmãs Agnes e Daisy, filhas
da protagonista do primeiro livro da saga, isto é, a aia Offred. No entanto, antes da descoberta
deste surpreendente relato, o leitor fica exposto à duas perspectivas diferentes sobre Gilead. A
começar por Agnes Jemima, criada em meio a privilégios como filha adotiva de um importante
Comandante gilediano, essa personagem é uma tábula rasa, cujo conhecimento é adquirido
através de distorções dos preceitos religiosos contidos na bíblia e no terrorismo sexual imposto
184

pelas tias educadoras. Além do mais, Agnes não conhece nada exterior ao sistema social no
qual está inserida. À vista disso, Daisy mora no Canadá, onde usufrui de sua liberdade, e seus
pais adotivos mantêm uma organização anti-Gilead, o que também colabora para a visão crítica
dessa personagem em relação a este lugar. Ela participa de protestos contra os horrores
praticados na república vizinha, até ficar “órfã” e descobrir os responsáveis pela morte dos seus
pais adotivos in loco.
A morte e o sofrimento fazem com que os destinos dessas personagens se cruzem no
decorrer da narrativa. Tia Lydia está disposta a registrar a tirania e a desumanidade praticadas
em Gilead. Para isso, ela vai usar as duas irmãs a levarem provas dos crimes praticados pelos
Comandantes e vai ajudá-las no processo de fuga desse lugar. Consequentemente, ao chegarem
no Canadá, Agnes e Daisy também registram o que viveram no país vizinho.
Os registros dessas personagens, sejam eles transcritos ou manuscritos, servirão como
objetos de análises das temáticas da memória e do testemunho na presente pesquisa. Portanto,
o estudo seguirá para uma discussão teórica acerca da memória e se estenderá em um mesmo
diálogo sobre o testemunho, ambos entrelaçados à literatura. Por fim, a análise de recortes do
romance Os testamentos ajudará na ilustração do debate relacionado às temáticas propostas
como categorias de análises.

Memória e testemunho: breves considerações

Não há tempo e realidade sem o conceito de memória. O passado, o presente e o futuro


estão encadeados com as linhas do tempo e da vida e são tecidas por sujeitos que passam a
materializar o que não mais existe, isto é, o passado. O presente é o ponto intangível de
experiências e de aprendizados, através da memória, que projeta algo quase imaterial, ou seja,
o futuro. Aristóteles no livro Parva Naturalista, menciona que “nada há no intelecto que não
tenha estado antes nos sentidos” (2012, p. 77). Quer dizer, a memória não é uma faculdade
inventada, mas fruto de algo que já foi experenciado, percebido e/ou sentido por um sujeito.
A partir do breve conceito aristotélico de memória e experiência, Ecléa Bosi
problematiza os estudos da memória no sujeito, ou melhor, no homem que passa a ter “uma
função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da
sociedade” (2016, p. 63). O papel social do homem, e na literatura do narrador, é registrar
experiências passadas. Partindo dessa discussão, Ecléa Bosi designa duas funções para a
memória: preservação e restauração do passado. Nas palavras da teórica, a memória “poderá
ser a conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem
185

acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligência, que é capaz de
inovar (2016, p. 68). Por fim, Bosi, assim como Aristóteles (2012), concebe a memória como
uma faculdade flexível: “a lembrança é a história da pessoa e seu mundo, enquanto vivenciada”
(2016, p. 68, grifos do autor). A teórica “refere-se ao estrato objetivo da lembrança (‘história’,
‘mundo’), mas subordina-o manifestamente à subjetividade (‘seu’, vivenciada’). O passado
entra plasticamente no universo pessoal” (BOSI, 2016, p. 68). Dessa forma, é possível trabalhar
com as duas funções da memória, ou seja, tanto no plano de preservação das experiências
quanto na sua função de restaurá-las sob o ponto de vista do indivíduo que a registra e/ou a
materializa.
É o que Pierre Nora chamou de “homens-memória”, pois,

quando a memória não está mais em todo lugar, ela não estaria em lugar nenhum se
uma consciência individual, numa decisão solitária, não decidisse dela se encarregar.
Menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens
particulares que fazem de si mesmos homens-memórias (1993, p. 18).

Não é o objetivo desta pesquisa conceituar gêneros, mas é preciso ressaltar e expandir
o conceito de “homens-memória” aos demais indivíduos pertencentes a um grupo social e não
restringi-lo ao sexo masculino. Portanto, “homem”, “sujeito” e “homens-memória” também
podem ser facilmente entendíveis através de seus antônimos. Isto posto, e tendo em vista o
romance Os testamento, é possível entender o papel das narradoras do livro de Margaret
Atwood, tendo como principal voz memorialista e testemunhal o manuscrito da Tia Lydia.
Assim, repensando o termo de Pierre Nora, essas três vozes narrativas seriam “mulheres-
memória”.
O manuscrito e as transcrições dos depoimentos das duas irmãs na obra de Atwood,
envereda a discussão teórica para a relação entre memória e a sua documentação escrita. Sendo
assim, Douwe Draaisma, constata que “a palavra latina memoria tinha duplo sentido:
“memória” e “autobiografia”. Entre usos antigos, hoje obsoletos, da palavra inglesa “memorial”
(“monumento” em português) figuravam tanto “memória” quanto “registro escrito” (2005, p.
49). Essa dualidade destaca a ligação entre a memória humana e os meios inventados para o seu
registro.
O teórico francês Maurice Halbwachs (2006) foi um influente pensador acerca da
memória coletiva e da experiência. Em A memória coletiva, Halbwachs evidenciou na sua tese
o coletivismo memorialista dos trabalhadores operários e também ressaltou a dicotomia entre
memória e escrita:
186

Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte
um grupo, o próprio evento que nele esteve envolvido ou que dele teve consequências,
que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrição ao vivo de atores e espectadores de
primeira mão –quando ela se dispersa por alguns espíritos individuais, perdidos em
novas sociedades que não se interessam mais por esses fatos que lhe são
decididamente exteriores, então o único meio de preservar essas lembranças é fixá-
los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras
e o pensamento morrem (HALBWACHS, 2006, p. 101, grifos do autor).

As narradoras de Os testamentos tecem suas narrativas com um apanhado


memorialista de sequências de acontecimentos bárbaros vivenciados por elas em Gilead. Os
relatos envolvem o leitor e o faz perceber que os testemunhos delatados por essas personagens
não passam de arquivos registrados e estudados por arqueólogos e historiadores anos após a
queda da República de Gilead, conforme a última sessão do livro intitulada “O décimo terceiro
simpósio” (ATWOOD, 2019, p. 433).
Contudo, antes deste estudo ater-se a análise e a comentários sobre o romance de
Margaret Atwood, é preciso entender o conceito do termo testemunho. Logo, a origem da noção
de testemunho é jurídica e remete etimologicamente à voz que toma parte de um processo em
situação de impasse, isto é, ela pode contribuir para desfazer uma dúvida. Além disso, “o termo
se associa na tradição com a figura do mártir, o sobrevivente de uma provação” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 378). As duas situações remetem as falas em tensão com realidades conflitivas.
A “literatura de testemunho”, termo cunhado pelo teórico Márcio Seligmann-Silva,
ganhou ênfase nos círculos acadêmicos das Letras após o Shoah judaico, em outras palavras, o
holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, os sobreviventes do genocídio
nazista passaram a testemunhar através de narrativas o que vivenciaram durante a guerra. Obras
literárias como É isto um homem, de Primo Levi e O diário de Anne Frank são exemplos de
literatura da Shoah.
O período das ditaduras nas américas, em particular na América do Sul, trouxe para o
universo das Letras outro termo referente as narrativas de testemunho: o testemonio. Após a
repressão militar, os exilados, os presos políticos, os sobreviventes torturados e/ou alguns
parentes das vítimas desse período autoritário e totalitário ganharam espaço e voz para
testemunharem os crimes humanitários e políticos. No contexto brasileiro é possível encontrar
nas densas narrativas de Bernardo Kucinski a crueldade e a desumanidade ocorridas no período
ditatorial brasileiro.
O testemunho na literatura contemporânea pode ser entendido como uma forma de
recriação de mundos baseados em experiências memorialísticas de sujeitos que as
187

testemunharam. As narrativas de testemunho apresentam um olhar mais equilibrado, mesmo


que traumático e até distorcido, de algum evento vivenciado pelo autor e/ou sujeito da história
contada. O ato de testemunhar, atribuído à literatura, levanta questões problemáticas de um
passado recente e concede voz as minorias sociais, as vítimas do holocausto e de outras formas
de genocídio e as repressões e violações dos direitos humanos.
Todavia, é preciso salientar que o testemunho remete aos discursos histórico e
ficcional, ou seja,

não podemos pensar em literatura de testemunho sem ter em mente essa concepção
anti-essencialista do texto. Nesse gênero, a obra é vista tradicionalmente como a
representação de uma “cena”. Mas qual é a modalidade dessa representação?
Certamente não podemos mais aceitar o seu modelo positivista. O testemunho escrito
ou falado, sobretudo quando se trata do testemunho de uma cena violenta, de um
acidente ou de uma guerra, nunca deve ser compreendido como uma descrição
“realista” do ocorrido (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 10, grifos do autor).

Maximizando o pensamento de Seligmann-Silva (2003), o testemunho não pode ser


uma representação propriamente dita da realidade, uma vez que toda catástrofe violenta
vivenciada pelo sujeito está saturada por traumas. Dessa forma, o real presenciado ou narrado
não pode ser confundido com a nossa realidade, pois “o testemunho é, num sentido, uma
extensão do campo da memória, em que as narrativas são fragmentos de experiências do trauma
e do traumatizado” (RICOEUR, 2018, p. 40). O narrador testemunhal pode ser examinado como
um narrador em confronto com um senso de ameaça constante por parte da realidade.
Portanto, o testemunho se torna necessário em contextos políticos e sociais em que a
violência histórica foi marcante. Nesses contextos, as diferenças de perspectivas entre os setores
em conflito implicam em diferenças formais e temáticas nas concepções de escrita e em seus
recursos institucionais de legitimação. É o que Márcio Seligmann-Silva chama de
“ambiguidade testemunhal”, ou seja, “por um lado a necessidade de narrar o que foi vivido, e
por outro, a percepção de que a linguagem é insuficiente para dar conta do que ocorreu” (2003,
p. 46).
Wilberth Salgueiro (2012) dedica seus trabalhos ao testemunho na literatura e enumera
algumas características semelhantes que compõem esse tipo de narrativa. São elas:

(1) o registro em primeira pessoa (2) um compromisso com a sinceridade do relato (3)
desejo de justiça (4) a vontade de resistência (5) abalo da hegemonia do valor estético
sobre o valor ético (6) a apresentação de um evento coletivo (7) presença do trauma
(8) rancor e ressentimento (9) vínculo estreito com a história (10) sentimento de
vergonha pelas humilhações e pela animalização sofridas (11) sentimento de culpa
por ter sobrevivido (12) impossibilidade radical de reapresentação do vivido/sofrido
(2012, p. 292-293).
188

Partindo das discussões teóricas sobre memória e testemunho, a pesquisa enveredará


para a análise do romance Os testamentos. O estudo dialogará com a memória sob os olhares
de experiência e de escrita, abrangendo também os conceitos testemunhais e contemplando
algumas das características em comum nessas narrativas propostas por Salgueiro (2012). A obra
de Margaret Atwood tem como principal característica os relatos em primeira pessoa de três
vozes narrativas que compreendem o desejo de justiça, a vontade de resistência, a apresentação
de um evento coletivo, a presença do trauma, o rancor e ressentimento e o sentimento de
vergonha pelas humilhações e animalização sofridas.

Memórias do testemunho: uma análise de Os testamentos, de Margaret Atwood

Os testamentos é a retomada de Margaret Atwood, trinta e quatro anos após o


lançamento de O conto da Aia, à República de Gilead. Enquanto que no primeiro romance da
saga, Atwood faz o leitor se questionar quanto a natureza e a veracidade dos flashbacks narrados
por Offred, em Os testamentos a autora tece os fios narrativos ao revelar “uma imagem mais
completa e perturbadora de Gilead e suas práticas” (ADAMS, 2020, p. 37) 54. A professora e
crítica literária Halina Adams (2020, p. 37) ao se referir às três vozes narrativas do romance,
informa que o manuscrito de Tia Lydia é um mergulho profundo na história e nas práticas das
Tias, a transcrição de Agnes Jemima detalha o processo de uma jovem gilediana ao casamento
e a persistente violência sexual existente na república e o testemunho de Daisy é um indício da
“evangelização” praticada pelas Pearl Girls e do grupo anti-Gilead Mayday.
Margaret Atwood, em uma recente entrevista concedida à revista Rolling Stones 55,
menciona que iniciou a escrita de Os testamentos oficialmente em abril de 2016, após consultar
um apanhado de anotações que havia feito anos antes para continuar a história de Gilead. A
autora ainda menciona que Os testamentos não é sobre o início de Gilead, mas sim a história
de seu desmoronamento, conforme os relatos de Tia Lydia e as duas irmãs.
A ficção de Margaret Atwood é um alerta contra a opressão política e religiosa de
grupos extremistas de direita que chegaram ao poder no século XXI. É de surpreender que a
saga gilediana, iniciada há trinta e quatro anos e retomada em 2019, ainda torna esse debate
bastante atual sobre o avanço teocrático, “como forma de estabelecer o domínio do pensamento

54
No original: a fuller, and more disturbing image of Gilead and its practices. Todas as traduções em Língua
Inglesa foram feitas pelo autor deste artigo e serão referenciadas com uma nota de rodapé no seu original.
55
A entrevista pode ser lida ou assistida através do link: https://www.rollingstone.com/culture/culture-
features/margaret-atwood-handmaids-tale-testaments-authoritarian-feminism-1065629/
189

criador e progressista” (SILVA, 2018, p. 84). O professor e crítico literário Lajosy Silva (2018)
traça um estudo sobre a ficção especulativa e a política de resistência na obra de Margaret
Atwood. O teórico, quando se refere à memória na obra de Atwood, afirma que “a memória [...]
não deve ser entendida como a reminiscência minimalista ou introvertida, bastante comum na
ficção produzida no século XXI, quando a partícula da memória retoma a vivência interior”
(SILVA, 2018, p. 84). Seguindo com o raciocínio de Silva,

a memória na obra de Atwood é contestadora e descreve a opressão pela qual suas


personagens, femininas em sua maioria, buscam resistir e impor uma vitória, quando
a liberdade na sua totalidade é negada. A memória não é fuga e se propõe como uma
tentativa de resgatar a sanidade para sobreviver à barbárie proposta pelo totalitarismo,
já que lembrar é uma forma de resistir, recolhendo os cacos do que outrora se
conheceu como civilização (2018, p. 84).

A contestação das opressões descritas pelas personagens de Os testamentos


evidenciam o pensamento do professor Lajosy Silva. Dessa forma, a análise da memória
testemunhal neste estudo se inicia com o relato de Tia Lydia, em uma tentativa de explicar a
ascensão do regime teocrático e totalitário de Gilead, referentes aos problemas políticos e
sociais dos Estados Unidos:

Nesse meu país desaparecido, as coisas andavam mal fazia anos. Enchentes,
incêndios, tornados, furacões, secas, faltas d’água, terremotos. De certas coisas havia
de mais, de outras coisas havia de menos. A infraestrutura decadente – por que alguém
não desativou aqueles reatores atômicos antes que fosse tarde demais? A economia
em declínio, o desemprego, a baixa natalidade.
As pessoas ficaram com medo. Depois elas ficaram com raiva.
A falta de soluções viáveis. A busca de um bode expiatório.
Por que achei que apesar de tudo as coisas correriam normalmente? Acho que porque
já estávamos ouvindo notícias como aquelas há muito tempo. Você não acredita que
o céu está caindo até que um pedaço dele caia em cima de você (ATWOOD, 2019, p.
76-77, grifos do autor).

O relato de Tia Lydia tem vínculo estreito com a história dos Estados Unidos. Aqui, a
voz narrativa é conciliada com as observações históricas e sociais da autora. Os trechos
destacados na citação fazem parte da recente história estadunidense, o que culminou no slogan
Make America Great Again (Torne a América grande novamente), originada na campanha
presidencial de Ronald Reagan em 1980 e popularizada por Donald J. Trump em 2016. Os
problemas elencados por Tia Lydia serviram de desculpas para tomada dos Estados Unidos na
ficção de Atwood, como ao mesmo tempo serviu para a ascensão do conservadorismo
estadunidense no plano real da história.
190

O domínio teocrático e totalitário da República de Gilead omitiram as violações


sexuais as quais as meninas e mulheres estavam sujeitas. A narrativa de Agnes Jemima, em um
primeiro momento, tenta justificar os desejos sexuais dos homens culpando as próprias
mulheres por estimularem a imaginação masculina de alguma forma. No entanto, essa
personagem passa a fazer questionamentos quanto à essa imaginação, após a seguinte passagem
do romance:

Foi nesta época que aconteceu uma coisa que eu deveria deixar passar, porque é
melhor esquecer, mas teve peso na escolha que eu faria pouco tempo depois. [...] Foi
horripilante, isso sim. Também foi vexaminoso: quando fazem algo vergonhoso com
você, a vergonha se cola a você. Você se sente suja.
O começo foi trivial: eu precisei ir ao dentista para minha revisão anual.
[...] O dr. Grove estava bem atrás de mim, de forma que era a mão esquerda dele no
meu seio esquerdo. [...] Repousava sobre meu seio feito um caranguejo quente e
enorme. Eu não sabia o que fazer. [...] Aí a mão apertou meu seio. Os dedos
encontraram meu mamilo e o apertaram. Foi como se tivessem enfiado uma tachinha
na minha pele. Levantei meu tronco – precisava sair correndo daquela cadeira –,
mas a mãe estava me perdendo ali.
[...] – Já era tempo de você ter visto um desses – disse ele na voz normal com que
dizia tudo. – Logo vai ter um desses dentro de você. – Ele pegou minha mão e a
posicionou naquela parte do corpo dele.
Não acho que precise te contar o que aconteceu em seguida. Ele tinha uma toalha à
mão. Ele se limpou e enfiou seu apêndice de volta nas calças (ATWOOD, 2019, p.
108-109, grifos do autor).

É preciso destacar que Agnes Jemima é fruto dessa teocracia, ou seja, todo o
conhecimento que ela possui é fruto dos ensinamentos distorcidos das Tias de Gilead. Todavia,
o sentimento de vergonha pela humilhação sofrida no consultório odontológico e a dificuldade
de testemunhar o que ela vivenciou fizeram essa personagem indagar os preceitos puritanos da
república a qual pertencia. O sentir-se suja e a vergonha remetem ao sentimento de culpa
vivenciado pela menina no momento da violência praticada contra ela, o que gerou um trauma.
Esse trauma limitou o uso lexical de Agnes no momento do seu testemunho, pois está
perceptível na citação que ela não quer lembrar do ocorrido, uma vez que é melhor esquecer o
que aconteceu.
Tia Lydia é o principal exemplo dentro da narrativa de um compromisso com a
sinceridade nos seus relatos. O acontecido no capítulo Estádio, ilustra o que foi supracitado:

Às quatro da tarde, nos apresentaram um espetáculo. Vinte mulheres, de diversos


tamanhos e faixas etárias, mas todas com roupas profissionais, foram levadas para o
centro do campo. Digo levadas porque estavam vendadas. Suas mãos, algemadas à
frente do corpo. Elas foram dispostas em duas fileiras, de dez e dez. A fila da frente
foi obrigada a se ajoelhar, como se fosse para uma foto de grupo.
191

Um homem de uniforme preto discursou num microfone sobre como os pecadores


sempre eram observados pelo Olho Divino e seu pecado ia acha-los.
[...] – Deus vai prevalecer – concluiu o orador.
Ouviu-se um coro barítono de améns. Então os homens que haviam escoltado as
mulheres vendadas ergueram suas armas e atiraram nelas. Tinham mira certeira: as
mulheres tombaram (ATWOOD, 2019, p. 132).

O testemunho de Tia Lydia é a apresentação de um evento coletivo, com o intuito de


mostrar quem está no controle. Na citação, a violência e o discurso religioso são as armas
impostas para controlar o grupo de mulheres que assistiam, além de justificar a matança e avisar
que as “espectadoras” poderiam ser as próximas vítimas. Dessa forma, os testemunhos
apresentados têm em comum o resgate de uma memória coletiva, o desejo de justiça, a vontade
de resistência, a presença de traumas e o sentimento de rancor. Tia Lydia é enfática e ressalta:
“vocês vão me pagar por isso. Não me importa quanto tempo leve nem quantos sapos eu tenha
que engolir, mas vou me vingar” (ATWOOD, 2019, p. 167).

Considerações finais

Os questionamentos de Tia Lydia contidos na epígrafe deste artigo encontraram o seu


sujeito e o seu tempo. As memórias e os testemunhos dessas personagens não podem ser
engavetados por se tratarem de uma obra fictícia. A crítica tem designado como distopia a
maioria dos romances de Margaret Atwood. No entanto, a própria autora já mencionou que suas
obras são especulações futurísticas, ou melhor, um futuro especulativo.
Há características distópicas nos romances de Atwood? Sim. Contudo, se pensarmos
que a distopia é uma ficção dentro de outra ficção, as problemáticas levantadas pela autora
seriam anuladas. A leitura memorialista e testemunhal de Os testamentos nos faz refletir quanto
ao valor designado ao acervo de livros publicados por Margaret Atwood. As atrocidades
cometidas na República teocrática e totalitária de Gilead podem ser vistas e são vivenciadas no
nosso século e, até mesmo, no nosso âmbito social.
Suprimir o debate proposto por Atwood no que se refere ao feminismo, ao valor da
mulher em uma sociedade, a violência contra os direitos humanos, aos crimes cometidos contra
o meio ambiente e a ameaça conservadora religiosa a uma distopia, seria desvalorizar a
importância intelectual, literária e social que Margaret Atwood exerce no mundo e daria espaço
para a violação moral e intelectual proposta por esses grupos de extremistas radicais.
Em síntese, o resgate memorialístico, testemunhal e traumático das personagens de Os
testamentos serve como uma reflexão acerca do populismo de direita que vem se estendendo
pelo mundo. A memória será um dos pilares fundamentais na construção e/ou reconstrução de
192

um mundo melhor, pois nada é criado a partir do “nada”. Assim, as referências da nossa e de
outras histórias e os desdobramentos dos conflitos humanos diante da barbárie terão como
principal ligação entre presente, passado e futuro a memória e os testemunhos de seus
envolvidos.

Referências

ADAMS, Halina. Book Review - Margaret Atwood, The Testaments. New York:
Doubleday, 2020. p. 36-37.

ARISTÓTELES. Parva Naturalista. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012.

Atwood, Margaret. Os testamentos. Tradução de Simone Campos. Rio de Janeiro: Roco, 2019.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.

DRAAISMA, Douwe. Metáforas da memória: uma história das ideias sobre a mente.
Tradução de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2005.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro, 2006.

NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Tradução de Yara
Aun Khouri. In: Projeto História 10. São Paulo: Editora da PUC-SP, 1993. p. 7-28.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2018.

SALGUEIRO, Wilberth. O que é literatura de testemunho (E considerações em torno de


Graciliano Ramos, Alex Polari e André DuRap). Matraga, Revista do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro, UERJ, v. 19, n. 31, jul./dez. 2012, p. 284-
303.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o real. In: ___, org. História,
memória, literatura. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

SILVA, Lajosy. A ficção especulativa e a política da resistência em O conto da Aia, de Margaret


Atwood. In: ___, org. Folhas: escritoras, política e representatividade, vol. 3. São Paulo:
Livrus, 2018. p. 83-103.
193

A “NATUREZA FEMININA” DE ERNESTO, SEGUNDO CRUZ E SOUSA, NA


NOVELA “SAPO”, DE NESTOR VICTOR

Roberto da França Neves

Considerações iniciais – a androginia como conceito

Os gregos, em especial Aristóteles na obra Ética a Nicômaco, difundiram na cultura


ocidental o conceito de sophrosýne, que, geralmente traduzido por moderação, é o meio-termo
entre condições ou comportamentos binários. Esse conceito, sobre o qual se debruçaram
inúmeros pensadores, filósofos e artistas no decorrer dos séculos que chegaram até nós,
alcançou a reflexão sobre os comportamentos do seres humanos, especialmente em relação às
escolhas que seriam típicas da masculinidade e da feminilidade. No século XX, propagou-se o
modelo de uma nova humanidade que se construiria a partir daqueles que assumidamente optam
por não acatar tão somente valores, atitudes e comportamentos associados a um dos gêneros.
Tal empreendimento antropológico não é novidade; é oriundo do mito do Andrógino, no
Banquete, de Platão, mito que consistia no ser metade homem, metade mulher. Por outro lado,
o contrário disso, a exacerbação dos caracteres masculinos ou femininos num indivíduo, foi
duramente criticada por Friedrich Schlegal, que, segundo Mircea Eliade, sintetiza assim o novo
projeto de humanidade: “a finalidade para a qual deve tender a espécie humana é a reintegração
progressiva dos sexos até a obtenção da androginia” (ELIADE, 1999, p. 104). Esse novo
modelo de ser humano, no século XX, também alcançou a filosofia de Gaston Bachelard, que
observa na alma humana primordialmente a poesia do masculino e do feminino, conforme
indica Marcelo de Carvalho (2013, p.203): “É importante compreender que tal androginia está
diante de nós como perspectiva de realização de um masculino e de um feminino que,
idealizados, tornam-se valores de nossa interioridade”. Carl Jung também idealizou o nível mais
saudável do ser humano na combinação dos gêneros, a partir dos conceitos de animus e anima,
que devem estar associados no indivíduo.
Em consonância com os escritores que se colocaram a par das questões relativas ao
gênero e a um novo modelo de humanidade que mistura doses adequadas de comportamentos
masculinos e femininos, Cruz e Sousa, autor de poemas em verso e em prosa, e o seu amigo
Nestor Victor, também literato, resolveram, nos anos 1890, se apropriar desses conceitos
antropológicos. Nesse momento, é necessária uma pequena digressão acerca dessa amizade.
Cruz e Sousa é considerado o mais importante poeta brasileiro que representou as estéticas
finisseculares e deve consideravelmente a sua memória aos esforços de Nestor Victor, que
194

procurou consolidar as produções literárias do amigo, mesmo após o seu falecimento precoce,
com apenas 36 anos, em 1898. Até a ocasião do falecimento, eles compartilhavam entre si obras
que viriam a ser publicadas: alguns poemas, contos e ensaios de um tiveram uma participação
indireta do outro. Nos últimos instantes da vida de Cruz e Sousa, Nestor dedicou-lhe, em
gratidão da companhia e da aprendizagem, um ensaio que o homenageava, com toda a
admiração de um discípulo diante do grande mestre e de um arguto crítico que se dedicava a
enfrentar o poder da axiologia conservadora.
Em 1897, Nestor Victor publica seus contos em Signos e Cruz e Sousa, certamente,
foi o primeiro leitor da obra, em especial da novela “Sapo”. Percebe-se já no mesmo ano de sua
publicação uma compreensão mais profunda dessa obra; ele então publica no jornal A República
três artigos-folhetim que comentam a obra de contos de Nestor Victor. Entre as novelas
mencionadas, “Sapo” chama a atenção pelas palavras de elogio que lhe foram destinadas. Trata-
se da história da patologia de Bruce, desencadeada pelo rompimento da sua única amizade e
experiência real de afeto, após tomar-se de ciúmes do ex-companheiro, Ernesto, que
subitamente passa a dispensá-lo para dar preferência a uma companhia feminina. O protagonista
inclina-se a viver fatalmente na solidão, sem possibilidades efetivas de reversão. Ernesto, a
partir do segundo capítulo, sai da cena principal, embora ainda apareça poucas vezes na trama,
enquanto Bruce cai pouco a pouco no estado de agravamento da patologia mental. O narrador
acaba por fazer um contraponto entre o ciúme e a agressividade de Bruce e a passividade de
Ernesto. Os comportamentos estereotipados deste acabam se transformando numa
representação da feminilidade, na verdade, a representação da feminilidade conforme a
sociedade conservadora a via. Assim, a narrativa pode ser percebida como uma crítica a esse
modelo que separa homens e mulheres em comportamentos estanques e díspares. Só para
termos uma pequena noção da complexidade desse tema, no percurso do século XX, muitos
pesquisadores atuaram pela reformulação dos conceitos híbridos de masculinidade e
feminilidade. Lázaro Oliveira (1983, p.23), que realizou um trabalho estatístico sobre caracteres
enquadrados para cada gênero e enfatizou o perfil andrógino como um ideal para o mundo
moderno, parte da crítica de um desbotado modelo de masculinidade e feminilidade, que foi
predominante por muitos séculos: “O pressuposto central deste modelo é o de que homens e
mulheres devem diferir psicologicamente tanto quanto diferem fisicamente, e que as
características de um sexo são antagônicas às do sexo oposto”. Sócrates Nolasco tem apontado
pistas para o problema da masculinidade nos tempos modernos através da separação dos
gêneros: “Os homens têm descoberto um excesso de polarização em suas maneiras de perceber
e compreender o mundo, que os leva a opor masculino e feminino, dever e prazer, controle e
195

descontrole” (NOLASCO, 1995, p. 40). As consequências são catastróficas para os homens,


uma desorganização da sua identidade mais profunda e uma insegurança nos seus
comportamentos, que os leva ao conflito entre a sua natureza e a sociedade: “Uma das
consequências desta polarização pode ser observada pela dificuldade dos homens de formar
uma imagem sobre eles mesmos que leve em conta diferentes aspectos de suas identidades, e
não particularmente aqueles esperados socialmente” (NOLASCO, 1995, p. 40). Mas vejamos
como o nosso bravo Cruz e Sousa descreve o nosso herói Ernesto, com a complexidade que
descaracteriza os modelos binários.
Pesam sobre Ernesto os nervos de mulher, com toda a psicologia da energia mental
feminina, num corpo de homem (com toda a complexidade de quem posteriormente assumiria
um romance heterossexual com uma mulher na história). Foi Cruz de Souza quem percebeu
nele essa “natureza feminina”: “É quase uma natureza feminina, nervosamente histérica, de um
fundo tocantemente romântico, de onde mórbidas e mornas vicejam flores pálidas e lascivas de
timidez, de frouxidão” (CRUZ E SOUSA, 1961, p. 801). O Poeta Negro considera que na
novela a vida humana ganha densidade ao se opor ao sistema moral e o personagem não deve
ser tratado como um personagem-tipo, característico do conto: “A vida ali ganha uma
inconcebível densidade e crueza, uma irradiação, mórbida, de eclipse de morte. Secretos, os
instintos da destruição moral, do aniquilamento de tudo, fazem a sua catequese feroz e sombria
na já devastada alma do Bruce” (CRUZ E SOUSA, 1961, p. 800). As palavras do genial Poeta
merecem ser analisadas integralmente, uma vez que a sua preocupação com a composição do
personagem fez com que a obra ganhasse vida, vida que combate a realidade decadente da
imposição do sistema moralista. Ele foi responsável por representar, no final do século XIX, o
combate às ideologias eivadas de equívocos, por justamente ferir a saudável dialética natural
das coisas. Valci Vieira dos Santos (2017, p. 127) expressa uma mágoa poeticamente refinada
na sua condição de poeta contra as ideologias sociais e políticas:

A abundância de poemas, com temas e motivos sociais dá o tom exato ao desejo do


Poeta de rebelar-se contra ideologias, organizações e discursos preconceituosos, além
de não perder de vista os problemas políticos da República e os sociais ocasionados
pela escravatura, quase sempre responsável pela pobreza generalizada.

Se Cruz de Souza notou em Ernesto uma natureza feminina, Nestor Victor demonstra
isso de modo muito transparente. Mesmo nos momentos de raiva, Ernesto não deixa de
demonstrar uma ternura de vergonha e recato, até mesmo quando passa por um momento de
virilidade: “O Ernesto encarou-o um momento. Seus olhos, que eram tão brandos, quase
196

femininos, esfuziavam agora de raiva” (VICTOR, 1897, p. 133). É por essas características que
Cruz e Sousa sente-se fascinado pela sua organização psíquica, como que disposto a se opor ao
modelo binário do sexismo e ceder aos traços que não se coadunam com a virilidade do homem:

O próprio Ernesto é um perfil cativante, amorável. Dessas organizações lânguidas ,


cuja juvenilidade solitária, desabrochada na amargura e no abandono, parece provocar
sempre uma simpatia imediata, um movimento de amparo e uma irresistível atração
(CRUZ E SOUSA, 1961, p. 801).

Para Cruz e Sousa (1961, p. 795), o livro Signos, de Nestor Victor, é uma obra que
procura fazer o leitor “agitar-se, palpitar, estremecer o sentimento ocioso e covarde que dormita
dentro das almas”. De fato, o leitor deve se sentir inclinado a isso, a partir do apontamento de
uma “natureza feminina” num homem, o personagem Ernesto, de “Sapo”. A partir do paradoxo
referendado, devemos apresentar um Cruz e Sousa empenhado na reformulação de conceitos
humanos, através da tradição criada por autores decadentistas, que realizaram, mesmo que de
modo incipiente, uma revisão da normatividade de comportamentos masculinos e femininos.

O corpo como negação da masculinidade

A novela, que trata da patologia mental do protagonista Bruce, é um manancial do


debate sobre a concepção nociva de masculinidade aprisionada às características biológicas.
Veremos uma superação dos limites tradicionais do masculino no corpo e na psicologia de
Bruce e de Ernesto. A narrativa trabalha a confecção dos personagens de modo a deixar no
leitor a impressão de uma anarquia de comportamentos e valores considerados típicos dos
gêneros. Tudo se inclina em Bruce e Ernesto para uma descaracterização da masculinidade,
pois o protagonista vivia experiências que excediam as limitações do corpo masculino e de uma
consciência que deve se entregar integralmente a um dos dois gêneros: “Ele, naquela hipertrofia
de orgulho, naquele amor andrógino de si mesmo, se olhava assombrado, parecia-lhe que
unicamente seu vulto enchia o espaço” (VICTOR, 1897, p. 176). Bruce, na vaidade da
autossuficiência de seu corpo andrógino, deve ter sensibilizado as atenções de Cruz e Sousa. O
conceito de androginia também aparece relacionado ao Ernesto, que aos olhos do desafeto
chegou a parecer um estranho anjo boêmio: “Aquele rapaz era de um fundo angélico e boêmio”
(VICTOR, 1897, p. 146). Em outra ocasião, manipulando fantasticamente o paradoxo como
estilo que mistura sexualidades, além de outros conteúdos, como a tradicional separação entre
mundo inteligível e fenomênico, o narrador observa em Bruce, quando este decide implorar o
197

perdão do amigo, um anjo que deseja o retorno das relações afetivas de alguém que mais parece
o demônio, com seus chifres: “Aquela alma, quase de anjo, agora estava de joelhos na lama,
adorando, como por castigo, um ídolo cornoide” (VICTOR, 1897, p. 150). Ao Ernesto também
se aplica o conceito de ser andrógino, uma vez que ele parece um eleito com delírios de
contemplar o infinito, numa alusão a um tipo de platonismo vulgar: “Que alma triste que tinha
o Ernesto, alma de eleito, com nostalgias do desconhecido!” (VICTOR, 1897, p. 146).
Importante considerar que não é qualquer manifestação de união entre masculino e
feminino que caracteriza a androginia; existe um aspecto muito singular nisso, que quase não
pode ser confundido com homossexualidade ou hermafroditismo: “A androginia refere-se a
uma maneira específica de juntar os aspectos ‘masculinos’ e ‘femininos’ de um único ser
humano” (SINGER, 1969, p. 28). É importante considerar a declaração de June Singer (1969,
p. 33) para entendermos a psicologia de Ernesto, uma vez que o andrógino é geralmente um ser
biologicamente masculino, que vai aderindo mentalmente aos traços femininos: “A nova
orientação, cuja influência vai aumentando, pode ser caracterizada por sua ênfase nos valores
‘femininos’ – valores que, ao menos no passado, eram mais associados à mulher do que ao
homem”. Esse conceito encontra-se em oposição à tendência de determinar as coisas do
universo pelo estigma do gênero masculino e feminino: “Arbitrária em estado isolado, a divisão
das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino
recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições
homólogas, alto/baixo, em cima/ embaixo etc” (BOURDIEU, 2002, p. 15). Este pesquisador e
pensador, Pierre Bourdieu (2002, p. 16), detecta a crise cultural da dominação masculina, a
partir do compartimento comportamental dos seres no binarismo sexual:

A divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, como se diz por vezes
para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente em
estado objetivado nas coisas, em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de
percepção, de pensamento e de ação.

Cruz e Sousa e Nestor Victor perceberam os problemas da imposição arbitrária do


sexismo. Seus personagens respondem ao anseio de restauração do ser humano primordial, algo
que foi notado por Cruz e Sousa em Ernesto. Se Bruce era (hipoteticamente) um andrógino,
Ernesto também era, aos olhos dele, um andrógino, alguém que tinha o aspecto de anjo, pálido,
sem vida (nessa “alma de eleito”), a partir da perspectiva em que trazemos para ele os
estereótipos de passividade e recato da mulher socialmente idealizada:
198

Nem ele sabia como encontrara o Ernesto na vida. Tão meigo, tão compassível, tão
dedicado a ele! Além de tudo, – e fora isto que solidificara melhor a amizade entre os
dois, – debaixo daquelas aparências de frívolo feliz, que alma triste que tinha o
Ernesto, alma de eleito, com nostalgias do desconhecido! (VICTOR, 1897, p. 146).

Temos em mente que o lado feminino de Ernesto acabou sendo um espelho para Bruce:
essa androginia de Bruce era um quadro de personalidade adquirida após a desavença com
Ernesto, quando se torna acometido da solidão e da patologia mental. Ele passa a absorver a
feminilidade do ex-companheiro e deixar de lado gradativamente os elementos mais flagrantes
da masculinidade. Num primeiro momento (o primeiro capítulo), Ernesto foi a representação
da feminilidade e Bruce, da masculinidade.
Um dado curioso que faz a masculinidade de Bruce ser percebida – o que coloca em
contraposição à feminilidade de Ernesto – era a caracterização do vestuário e da postura. Bruce
não se importava com a elegância. Era um sujeito mau vestido, além de uma pequena
desatenção aos cuidados nos tratos da higiene: “Apenas o cabelo, de um loiro puxando a ruivo,
descuidado, comprido, e a roupa cheia de rugas acentuadíssimas, como as dos bronzes,
contradiziam com o asseio e o capricho dos padres, em geral, quando envergam o casaco
paisano” (VICTOR, 1897, p. 132). É exatamente o contrário do tradicional comportamento
feminino. Ao lado desses desleixos que ficam bem nos homens, os aspectos fisiológicos da
postura contida também reforçam uma caracterização tipicamente masculina em Bruce, se
levarmos em conta os conceitos de gravidade, retidão e inflexibilidade dos modos dos machões
sociais, que devem sustentar a inalterabilidade do estado psíquico diante dos problemas da vida:

Entre os dois um contraste de aparências completo. Enquanto o Bruce tinha aquela


compostura inalterável, aquela rígida gravidade de maneiras, todos os membros do
corpo em disposição determinada para fazer o conjunto, que já se fixara de um modo
definitivo, irrevogável, o outro era todo desconjuntado, atirava as pernas à toa, um
passo cá, um passo lá, como marinheiro em terra, trazia os braços sem saber onde pô-
los, e era alegre, ria, ria a perder, por qualquer frase que o amigo, olhando para diante,
dizia entre dentes, enquanto este guardava, apesar dessa hilaridade que provocara, os
seus modos soberanos e sérios (VICTOR, 1897, p. 139).

Nesse trecho, em que percebemos a caracterização e a comparação dos personagens,


Ernesto parece sentir-se fisiologicamente livre e repete o jeito espontâneo da mulher, ou melhor,
do que se espera da mulher. Na narrativa, Ernesto é novamente comparado a mulher com suas
“lágrimas femininas” no instante da desavença com o Bruce, ao mesmo tempo em que possui
a fragilidade infantil dos “soluços de criança”, o que lhe confere a reunião dos traços de
feminilidade e ingenuidade: “o Ernesto sem palavras, mas com lágrimas femininas, com soluços
199

de criança, seu coração transbordando de mágoas humanas, como uma taça de ouro, feita para
atestar-se de néctar, que encheram, no entanto, de fel” (VICTOR, 1897, p. 149).

Agressividade e passividade em Bruce e Ernesto

Bourdieu afirma que a dominação é um código da identidade masculina, sendo uma


consequência da sua agressividade, o que impõe à mulher recato, submissão e obediência. Por
tabela, a associação entre relação sexual e dominação confere uma amplitude dessa identidade
e faz confluir vestígios da posição sexual masculina na forma como age socialmente
(BOURDIEU, 2002, p. 30):

Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela
está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo,
e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo
– o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo
feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou
mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação.

A briga entre Bruce e Ernesto representa exatamente as identidades masculina e


feminina, pois é a relação de dominação que potencializa o relacionamento. Dissemos que no
primeiro capítulo o narrador nos expõe o ritual da desavença entre eles. A caracterização
psicológica de Ernesto era típica de um homem frágil que não tem convicção de seus atos, que
não sabe exatamente o que fazer nos momentos decisivos e que titubeia diante dos conflitos.
Analisamos o trecho em que são assimilados feminilidade, infantilidade e inocência. Vamos
verificar a construção desse traço a partir do início: na situação em que foi afrontado por Bruce,
o rapaz de vinte e quatro anos apenas usou de uma diplomacia, que, diante da grosseria de
Bruce, pode nos sugerir um indício de fraqueza: “–Mas, afinal, parece que eu tenho o direito de
dispor de mim mesmo... opôs o Ernesto” (VICTOR, 1897, p. 131).

Bruce deve se definir como homem em oposição à passividade; enquanto isso, o


narrador vai caracterizar Ernesto como um homem quieto, que não reage ou toma iniciativa
diante das agressões de Bruce. Cruz e Sousa notou exatamente isso nesse comportamento
singelamente calmo, através dessas palavras: “Ernesto é o lírio magoado e doce, é a sombra
acariciadora e terna daquele Vale de lágrimas, que é o Bruce; é o canto matinal e lírico daquela
epopeia humana, é a água dessedentadora, ainda que nublada, daquele deserto horrível” (CRUZ
E SOUSA, 1961, p. 801-2). Em consonância com isso, os quadrantes sociais assim determinam
a masculinidade e a feminilidade para homens e mulheres:
200

A passividade, a quietude e a submissão são qualidades opostas àquelas pelas quais


serão socializados os meninos. Contudo, essas qualidades serão desejadas nas
mulheres, como se com isto pudessem ver e sentir, no outro, o próprio imobilismo (e
submissão) a que está referida a transformação de seu modelo de subjetividade
(NOLACO, 1995, p. 68).

Os gestos físicos de Ernesto, como o de dispor as mãos no bolso num momento de


desavença, demonstram passividade diante dos conflitos, como que não prevendo uma agressão
física que certamente viria: “Voltou o Ernesto, mãos nos bolsos, retorcendo-se, com um sorriso
amarelo” (VICTOR, 1897, p. 132). Ele não consegue prever que Bruce fecharia a porta e o
deixaria trancado; ele simplesmente faz a constatação sem demonstrar maiores iniciativas: “–
Então ficamos fechados aqui? Interrogou, fugindo à confirmação exigida. Deixe-me sair de uma
vez!” (VICTOR, 1897, p. 133). Às vezes, o narrador deixa clara a ausência de coragem e o
medo diante de Bruce: “O Ernesto abaixou os olhos, com os lábios trêmulos e brancos”
(VICTOR, 1897, p. 133). Algum nuance de reparação à intransigência agressiva de Bruce
apenas acompanhava a reação mecânica de retrucar o ato mais grosseiro do desafeto, com
alguma dose de coragem tardia: “–Imbecil! teve o companheiro afinal a coragem de repetir”
(VICTOR, 1897, p. 134). Sua falta de iniciativa, ou a própria ausência da coragem estereotipada
do masculino, acaba por fazer Cruz e Sousa notar nele uma “castidade meiga”, algo que lembra
a retração do ser diante da expansão da masculinidade, através da negação de um traço de
virilidade: “Lembra um ser esquecido em si mesmo, adormecendo, do fundo da sua castidade
meiga e da sua melancolia, num desejo impreciso, vago de que ele mesmo não sabe explicar
nem acompanhar as ondulações e as curvas” (CRUZ E SOUSA, 1961, p. 802).
O estado agressivo é identificado socialmente como parte do universo masculino: “A
legitimidade social da agressão transformou-se para os homens em sinônimo de iniciativa.
Incorporada às suas identidades, a agressão passou a ser, para um homem, elemento de
constituição que, sobreposto à virilidade, produz os machões” (NOLASCO, 1995, p. 76). Nesse
quadrante, reforçamos que Ernesto e Bruce gravitam em oposição. Esse rapaz “esquecido em
si mesmo”, nesse primeiro momento da narrativa, jamais investe em sua causa própria e deve
objetivamente retrair-se para caracterizar o estado de recato e obediência diante de seu senhor.
Vejamos a masculinidade de Bruce, que ocupa, em relação a Ernesto, uma posição ativa e
agressiva: “Mas nisto estrondou-lhe na face uma bofetada horrível. (...) e, com método, como
o Ernesto estivesse atordoado com a primeira, ele pespegou-lhe nova bofetada, e mais outra,
escolhendo lugar” (VICTOR, 1897, p. 134). Ele vai ser comparado a animais selvagens que
vivem para vencer o outro pela violência da força física: “Essa calma, dentro desse desvario,
parecia vir-lhe da consciência absoluta de sua superioridade sobre a vítima” (VICTOR, 1897,
201

p. 134). Qualquer nuance agressiva, a reação física de Ernesto não passa de um gesto de fuga,
sem premeditação do ímpeto: “Mas o rapaz fugindo-lhe, afinal, de um salto, com um
movimento de navio que bordeja para dar a volta, veio cair sobre ele de chofre, atirando-lhe
convulsas punhadas ao peito” (VICTOR, 1897, p. 134). Nesse sentido, a narrativa atribui a
Ernesto uma caracterização feminina. No fundo, essa agressividade típica do homem se mescla
contraditoriamente, no final das contas, com traços femininos escolhidos pela sociedade, uma
vez que tal ação expõe os sentimentos de Bruce e caracteriza o seu ciúme. O homem deve evitar
a exposição dos sentimentos; seria natural para ele uma disciplina nesse sentido: “o cotidiano
dos homens não é constituído de estimulação, contato e expressão imediata do que sentem mas,
ao contrário, da disciplinarização do sentir e do condicionamento a comportamentos
estereotipados, viris e agressivos” (NOLASCO, 1995, p. 46). Sua agressividade apenas
expressa a exposição mais franca e nítida dos sentimentos que os homens devem guardar dentro
de si e não expô-los à sociedade. Na verdade, Victor desejava expressar que naturalmente os
quadros de masculinidade e feminilidade, que socialmente foram delimitados, apresentam-se
confluídos em qualquer comportamento humano. Ou seja, é impossível separá-los totalmente.
No escritório onde trabalhavam, enquanto se relacionava com Ernesto, Bruce foi a
representação mais nítida do acúmulo de masculinidade e da rejeição de traços femininos no
homem. Ele não deixava se afetar por sentimentos nas relações sociais: “Ele não tinha
misericórdia humana” (VICTOR, 1897, p. 148). Bruce era visto, pelos colegas de trabalho,
como um urso, no que diz respeito ao seu comportamento hostil ao meio, associado à macheza
da virilidade e a desatenção às emoções: “Ele era o urso da casa, o alvo da curiosidade e da
calúnia, o prisma onde todos os tédios vagos, onde todas as cóleras de origem inconfessável
vinham objetar-se, negras, amarelas ou verdes, sem reservas, sem comiseração” (VICTOR,
1897, p. 147-8).
É importante constatar que o narrador tinha a noção desses estereótipos dos
sentimentos e os traz para evidenciar a hipocrisia dessas concepções. O que parece ser um
comportamento normal para os homens, que devem evitar a fraqueza da compaixão, é a causa
da tragédia de Bruce. Indo por esse caminho, os seus colegas do escritório industrial, onde
trabalhavam juntos, são comparados às mulheres pelo traço estereotipado da vingança: “Daí
todo aquele inferno em redor. Os medíocres são como as mulheres: pagam com onzenas o mal”
(VICTOR, 1897, p. 148). Logicamente, o narrador está provisoriamente ambientando na
narrativa a mente de Bruce, que rejeita os comportamentos psíquicos agregados à feminilidade,
como compaixão, fraqueza e vingança. Nesse sentido, para corroborar as vantagens da mediania
entre misericórdia e vingança, Ernesto, ao contrário da inclemência de Bruce, parece ter tido,
202

na ocasião da demissão do ex-amigo, compaixão do seu infortúnio. Ele manifesta o sentimento


da compaixão, que a princípio deveria ser renegado pelos homens, porém com a vantagem de
estabilizar-se no emprego e de estar satisfeito com a sua vida; nota-lhe um passageiro aceno
para um passado com gratidão e misericórdia: “Apenas o Ernesto fitou-o de frente, com um
olhar indizível, reservado, mas cheio de saudade e de dor” (VICTOR, 1897, p. 168). Desse
modo se descaracteriza, no entrelaçamento das personalidades de Ernesto e Bruce, os padrões
sociais. Embora rejeite a aproximação do ex-amigo, tendo se inclinado para a companhia de
uma mulher, posteriormente o desafeto não vai deixar de sentir compaixão pelo destino de
Bruce, demonstrando acima de tudo o efeito bem dosado da feminilidade que o caracteriza, o
que coloca em xeque a posição da piedade ser atrelada às mulheres ou ser um sintoma de
fraqueza, que deve ser evitada pelos homens.
Para conotar sua virilidade, Bruce é às vezes comparado a animais ferozes que atacam
cruelmente suas vítimas, para enfatizar a violência típica da masculinidade, ação (que é um
estereótipo aderente ao homem em oposição à passividade da mulher): “E, como um tigre que
assanham dentro da jaula, ele se atirava de uma extremidade à outra, no seu quarto de
pensionista solteiro, com violentas passadas” (VICTOR, 1897, p. 137). Em outro momento,
Bruce é comparado ao boi, um animal forte e potente. Mais uma vez Bruce é comparado a um
animal feroz em movimento, representando a ação masculina, em oposição à passividade: “Com
o sentimento dessas ideias, ruminando-as, como um boi fora de horas, entrecruzando com ele
sentimentos correlativos, numa obsessão mortal, o Bruce percorreu umas dez vezes com o seu
andar de rei sonâmbulo, inalterável aqui fora, aquelas alamedas, em quadro” (VICTOR, 1897,
p. 140).
Prosseguindo, podemos verificar que, em determinado momento, Bruce, em sua
posição ativa em relação à passividade de Ernesto, vai parecer o homem primitivo que se
relaciona sexualmente com a mulher, oferecendo representação a essa caracterização de
robustez dos estereótipos de masculinidade e feminilidade: “Ele como que punha naquilo uma
volúpia sexual de conquistador primitivo. Era semelhante ao antropoide vencendo pelo terror a
fêmea que ele estava revel” (VICTOR, 1897, p. 134). Em outro momento, notamos a mesma
grosseria, com a violência física: “Abriu a porta com energia e puxando os cabelos ao Ernesto
atirou-o para fora com um pontapé sobre a nádega” (VICTOR, 1897, p. 134-5). Em vários
momentos, nós colecionamos dados da ação física agressiva de Bruce sobre Ernesto, que se
amontoam não por acaso para transcender na reflexão das nossas noções de força e passividade:
é “–Era preciso esta vassourada naquele lixo!” (VICTOR, 1897, p. 135). Em outro momento,
retém-se o mesmo propósito, com mais alguma noção que deve amparar o leitor: “Ele o
203

apanhou, raspando o soalho com as unhas, pô-lo para fora, e tornou a atirar a batente, impetuoso,
voltando-se para dentro com o ar desimpedido de quem acaba de liquidar uma situação”
(VICTOR, 1897, p. 135). Desse modo, reforçamos uma composição de masculinidade em
Bruce, que deve ser, de vários modos, rasurada: primeiro, pela falta de pragmatismo, uma vez
que consideramos o destino trágico dessa masculinidade exacerbada. Depois, a hipótese de
homogeneidade é algo antinatural.
Em contraposição à concepção homogênea de masculinidade em Bruce e o reflexo
disso em Ernesto, há outra quebra de expectativas no sentido de anarquizar os conteúdos
atrelados aos gêneros. No primeiro capítulo, em que se apresenta o quadro de desavença com o
Ernesto, Bruce também demonstra a feminilidade de vários modos, como meio de lançar o
paradoxo e apontar uma flexibilidade. Ao lado da masculinidade típica, às vezes Bruce pode
parecer uma mãe, que acalenta seu filho no colo: “Depois de eu andar todo este tempo
acalentando aquela cobra no seio” (VICTOR, 1897, p. 136). Possui toda a mágoa feminina ao
se referir ao ex- amigo com ressentimento. O Ernesto é “um pobre diabo a quem até agora eu
dei a honra de repartir com ele o ar da minha atmosfera” (VICTOR, 1897, p. 136). Era o amigo
de Ernesto, mas considerava a sua namorada como uma rival, sendo compreendido pelo
narrador a partir da perspectiva do ciúme feminino: “Aquela mulher se lhe tornara uma espécie
de rival, uma concorrente insuportável que lhe andava pleiteando essa posse afetiva, da qual já
se habituara ele a ser o exclusivo senhor” (VICTOR, 1897, p. 136). Num momento futuro,
Bruce continua a remoer as mágoas que tinha de Ernesto: “Era como se fosse um indivíduo que
de repente lhe tivesse tomado uma mulher” (VICTOR, 1897, p. 157-8). Percebemos uma
hibridação de masculinidade e feminilidade nesses pontos e ainda poderíamos elencar muitos
outros. E desse modo, estamos diante de uma literatura que procura realizar a representação da
desconstrução da homogeneidade da masculinidade.
Em outro momento em que se compara o personagem a um animal, a águia dessa vez,
Bruce agora adiciona um ingrediente à ação típica do masculino. Ele decide entregar-se à
espiritualidade e ao céu, renegando a natureza terrena. Nesse sentido, paradoxalmente nós
temos o movimento da força ativa e o desejo de deixar a realidade social, evadindo-se no
universo espiritual. Nesse momento, dá-se a transformação defeituosa de uma caracterização
masculina numa mente andrógina, que extrai os traços masculinos: “O espírito voando para o
Ideal, como uma águia de envergadura de aço para o píncaro descalvado de montanhas perdidas
no céu” (VICTOR, 1897, p. 142).
Para robustecer as afirmações acima, levamos em flagrante consideração a
feminilidade de Bruce como presença marcante na novela a partir do segundo capítulo, o
204

momento em que tenta recomeçar a vida sem Ernesto. Após a separação, a mágoa era parte das
afetações de Bruce. Mesmo após o evento, ele ainda pensava nos insultos e na sua queixa, como
alguém que se deixa neuroticamente levar pelos sentimentos: “–Imbecil! Rememorava agora,
citando a injúria que lhe fizera o velho amigo” (VICTOR, 1897, p. 136). Outro insulto se
relaciona à perversão moral, relacionada às inclinações sexuais, motivo do qual Bruce estaria
ressentido contra o amigo, como se este fosse uma namorada que o tivesse substituído por outra:
“O devassozinho de pantomima tem espírito!” (VICTOR, 1897, p. 136). A partir daí, a mágoa
se fará presente com insultos e manifestações de ódios a todos os homens, como nesse momento
em que se lembra de Ernesto e afirma: “Refinadíssimo canalha!...” (VICTOR, 1897, p. 136). A
partir de então, Bruce cairá fatalmente na loucura. Concluímos até aqui que, apesar da
caracterização feminina de Ernesto, a caracterização viril de Bruce não é unilateral, pois há
traços da feminilidade. Ou seja, as pressões sociais para o comportamento sexista dos seres
humanos não apenas corrompem a natureza do indivíduo, mas são também irreais e
impossíveis.

Natureza feminina e heterossexualidade em Ernesto

Essa natureza totalmente feminina de Ernesto, ou a sua suposta homossexualidade


(uma hipótese bombardeada na história), deve ser ajustada sob novos moldes, uma vez que
levamos em conta a perspectiva de que ele se assumiu satisfeito e maduro diante de um namoro
heterossexual. Nesse caso, Cruz e Sousa e Nestor Victor idealizaram uma reformulação dos
conceitos humanos, que se opõe aos modos convencionais de conhecimento natural do homem
e da mulher. Em suma, por que um homem de “natureza feminina” não pode realizar-se diante
de uma namorada?
De outro modo, a narrativa, como discurso híbrido, incorpora a voz do estrato social
que retém determinados comportamentos para um único sexo anatômico para, por fim,
anarquizá-los. Ele deseja desqualificar o atrelamento de diferença biológica e social no papel
do homem e da mulher, atrelamento este identificado por Bourdieu: “A diferença biológica
entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a
diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da
diferença socialmente construída entre os gêneros (BOURDIEU, 2002, p. 19)”. De certa forma,
para irrupção do irracionalismo próprio das estéticas finisseculares (uma dose, é claro, advinda
do Decadentismo brasileiro), o feminino Ernesto está agora oportunamente adequado ao
estereótipo desse bem-visto jovem, que deve realizar-se como companheiro de uma mulher:
205

“Há um grupo de mulheres com as quais os homens viverão aventuras. Estas, de contato casual,
serão as personagens das estórias por eles contadas, troféus exibidos aos demais e que têm por
função polir a imagem de virilidade” (NOLASCO, 1995, p. 69). Sem maiores esclarecimentos
sobre o personagem, foi-nos fornecida a história de um jovem imaturo e tímido, que conviveu
durante muitos anos isoladamente preso a uma amizade masculina, mas que de repente apega-
se a uma concubina.
Essa desagregação das expectativas sociais é algo recorrente. Em certa ocasião,
Ernesto caminha com a sua namorada pelas ruas, encontra Bruce e pede para que ele não se
aproxime. O ex-amigo estaria disposto a oferecer-lhe o perdão e a restituição da antiga amizade,
mas Ernesto se recusa a conversar com ele. Assim, assume de vez a complexidade de uma
personalidade que esteve presa a uma amizade masculina, mas que amadureceu com uma
namorada. Ele desfila diante da sociedade com o seu troféu, sua mulher, mostrando o esplendor
da sua masculinidade: ele cumpre o requisito para um homem jovem da sua idade. Na verdade,
o que Ernesto faz é representar a complexidade da personalidade humana, que não obedece a
estereótipos, pois, ao mesmo tempo em que possui uma natureza feminina, não deixa de se
realizar como homem heterossexual. Ele combina uma “natureza feminina” com a queda nas
armadilhas da paixão, destino fatal atribuído à masculinidade. A feminilidade de Ernesto é
anarquizada: “A única culpa do Ernesto era esse fato a que tinham aludido. Ele tomara à sua
conta, por desvario da mocidade, uma mulher de baixa espécie, com todo o fogo da primeira
paixão carnal” (VICTOR, 1897, p. 135). Desse modo, Ernesto cede ao instinto da
masculinidade, confundindo os estereótipos de uma natureza feminina, e com isso anarquizando
qualquer tentativa de unilateralidade da sua concepção.

Considerações finais

Cruz e Sousa teria percebido em Ernesto uma energia feminina. Isso se dá pela
passividade de Ernesto diante de Bruce e por outras caracterizações. Tudo isso acabaria
contribuindo também para que Ernesto pudesse ser encarado pelo leitor como um objeto de
feminilidade do Bruce. Por outro lado, o personagem nos traz a surpresa de se libertar da
unilateralidade do comportamento associado à cultura do sexismo. Nestor Victor, autor da
história, e Cruz e Sousa, autor do ensaio crítico, querem despertar o leitor para outros sentidos
de masculinidade e romper com os conceitos conservadores. A desavença entre os amigos
decorre do fato de Ernesto passar a se ocupar com uma amizade feminina que seduziu as suas
atenções. Este passa a reproduzir satisfatoriamente o típico comportamento do jovem
206

heterossexual. Confere-se certa neutralidade diante do binarismo a que estamos acostumados.


A androginia, a partir da caracterização da natureza feminina em Ernesto e da diluição da
masculinidade em Bruce, pode trazer novos paradigmas de investigação para os estudos de Cruz
e Sousa e Nestor Victor.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CARVALHO, Marcelo de. Conhecimento e Devaneio: Gaston Bachelard e a androginia da


alma. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.

CRUZ E SOUSA. João da. Cruz e Sousa: Obra completa. Org. Andrade Muricy. Rio de
Janeiro: José Aguilar, 1961.

ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

OLIVEIRA, Lázaro Sanches. Masculinidade – feminilidade – androginia. Rio de Janeiro:


Vozes, 1983.

SANTOS, Valci Vieira. Tragicidade nas poéticas de Cesário Verde e Cruz e Sousa.
Campinas: Pontes Editores, 2017.

SINGER, June. Androginia – Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade. Tradução: Carlos
Afonso Malferrari. São Paulo: Cultrix, 1990.

VICTOR, Nestor. Signos. Rio de Janeiro: Tipografia Correia, Neves C., 1897.
207

DA MÚSICA EM ÁLVARO DE CAMPOS

Marcelo Alves da Silva

Duas são as frentes de reflexão crítica assumidas por Fernando Pessoa ele-mesmo
(1888-1935): a poesia e os escritos em prosa. Nenhuma dessas produções, no que tange aos
seus modos de apresentação e ao seu caráter no seio de uma tradição poético-especulativa da
modernidade, é um ponto pacífico entre os estudiosos pessoanos. Isso significa dizer que ambas
– a poesia e a prosa – revelam determinados programas estéticos que, se por um lado, apontam
para a formação anglo-saxã de Fernando Pessoa e para a atenção que ele dá a um lastro de
conhecimento sintonizado com a sua própria época, por outro forcejam uma originalidade nas
terras portuguesas, o que acaba sugerindo-lhe a pecha de um sujeito alienado. Que este poeta
português do início do século XX é um colaborador do nosso cânone, ninguém haverá de
discordar – ainda que o acusem, por exemplo, a partir do Livro do Desassossego, de uma
postura estética desconectada com a dinâmica da modernidade. Poderíamos, entretanto, acolher
menos alguma ingenuidade imediata e, assim, perguntarmo-nos: qual é o Fernando Pessoa
reconhecido pelos seus leitores lusófonos ou até mesmo pelos de língua estrangeira? Bem, é
nesta seara que o nosso texto procura brevemente adentrar: por acreditarmos que não se pode
fazer um exercício crítico orientado para a produção poética pessoana se não levarmos em
consideração não somente os programas estéticos particulares do ortônimo e dos heterônimos,
mas também a materialidade editorial dos textos que se querem dar atenção, é que procuramos
iniciar a discussão sobre um influxo musical a partir do estatuto do corpus camposiano.
Em primeiro lugar, chama-nos atenção de que o heteronimismo, palavra usada pelo
próprio Fernando Pessoa, não seria apenas um capricho psicológico de quem, no início do
século XX, descobria, por meio do panorama científico da época, a inexistência de uma unidade
espiritual do sujeito, sobretudo no âmbito das artes56. Enquanto leitor de poetas como William
Shakespeare (1564-1616), John Milton (1608-1674), Alfred Tennyson (1809-1892), John Keats

56
Cabe esclarecer que na famosa Carta de 13 de janeiro de 1935 - publicada no número 49 da Revista Presença
(junho de 1937) (Fig. 1 e 2) -, Fernando Pessoa escreve a Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), apresentando-lhe
uma explicação psicologizante, que guarda, na verdade, uma compreensão livresca que o próprio Pessoa tinha
acerca do saber psiquiátrico: “(...) Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço
de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-
neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria,
propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas.” Cf. PRESENÇA, Ano 11, vol. 3, nº 49 (Jun. 1937).
Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/bg4/UCBG-RP-1-5-s1_3/UCBG-RP-1-5-s1_3_master/UCBG-RP-1-5-
s1/UCBG-RP-1-5-s1_item1/P473.html. E também PESSOA, Fernando. Cartas entre Fernando Pessoa e os
directores da presença. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, 251-262.
208

(1795-1821), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e até mesmo de franceses como
Anatole France (1844-1924), Fernando Pessoa compreende que, em primeiro lugar, a poesia é,
como as demais artes, um sítio que alberga uma continuidade de formas poéticas, ou seja, uma
razoável quantidade de questões que, como tais, estimulam exercícios criativos. A criação, pois,
para Fernando Pessoa, não seria um sinal de novidade fulgurante, mas sim de permanência
depurada naquilo que outros poetas realizaram nas suas empreitadas particulares.
É preciso, por isso, fazer uma nota: se levarmos a sério que o heteronimismo,
compreendido pelo próprio Fernando Pessoa, tratar-se-ia de um fenômeno, está claro que
apenas alguns traços identitários não seriam suficientes para caracterizar definitivamente os
heterônimos. Isso porque ao longo do manuseio de mais ou menos 15% dos quase 30 mil papeis
deixados por Fernando Pessoa na sua famosa arca, descobrimos que a mitologia construída pelo
poeta português, por exemplo, para personas como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo
Reis e o semi-heterônimo Bernardo Soares não converge integralmente com os testemunhos
manuscritos e datiloscritos. A pluralidade, pois, defendida por Fernando Pessoa carrega
também um dinamismo originário, como se pode perceber na construção da figura de Álvaro
de Campos.

Figura 8 - Primeira página do número 49 de Presença: Folha de Arte e de Crítica, com destaque
para a Carta de Fernando Pessoa a um dos editores e amigo, Adolfo Casais Monteiro.
209

Figura 9 - Trecho da Carta de Pessoa a Casais Monteiro. Detalhe para


a explicação psicológica e para o uso da palavra "heteronimismo"

Do ponto de vista interno – que é o modo como nós chamamos a mitologia particular
presente nos próprios papeis de Fernando Pessoa – o que verificamos? Pela Carta de 13 de
janeiro de 1935, Fernando Pessoa nos informa o dia – 15 de outubro de 1890 - e o local de
nascimento de Álvaro de Campos - Tavira, pequena cidade que fica ao Sul de Portugal, no
distrito de Faro, região e sub-região do Algarve (Fig.3). Acrescenta dados que seriam relevantes
para a montagem do que, na Astrologia, chama-se mapa natal, como, por exemplo, a hora de
nascimento: 13h30 da tarde. Indica ainda seu aspecto físico, sua condição de saúde, sua
formação escolar e acadêmica. Faz-lhe um contraste físico, psicológico e poético com os demais
heterônimos. Por fim, atribui-lhe o poema “Opiário”. No espólio de Fernando Pessoa,
entretanto, descobriu-se a existência de outro mapa natal para Campos, com data e hora de
nascimento diferentes da Carta: 13 de outubro de 1890, às 13h15. Além disso, anotações de
Pessoa sugerem outro local de nascimento para Álvaro de Campos - a cidade de Lisboa, o que
justifica a existência de poemas como “A Praça da Figueira de Manhã” e “Lisbon Revisited”.
Nas anotações descobertas por volta de 2012 Pessoa acrescenta que Álvaro era um tipo
210

“vagamente de judeu portuguez”, órfão, que viveu na Irlanda, visitou Londres e Escócia e que
escreveu a “Ode Triunfal”.
Muito mais poderia ser dito neste artigo acerca do que ainda não sabemos sobre uma
biografia, digamos assim, inédita ou mal observada da figura de Campos57. Entre o que está
registrado na carta destinada a Casais Monteiro e o que está reservado ao espólio pessoano -
textos biográficos, planos de elaboração de livros assinados por Campos, escritos estéticos
camposianos, diálogos com outros heterônimos -, importa saber que, ao menos em vida,
Fernando Pessoa não tomou uma decisão expressiva sobre o que viria a ser a persona que ele
próprio denominou como Álvaro de Campos. Lidar, portanto, com este heterônimo requer
observar que ele é detentor de uma biografia que não saiu do seu estado work in progress e cuja
produção poética está, fundamentalmente, contingenciada à trajetória intelectual de Fernando
Pessoa: Campos possui poemas assinados de 1912 até o ano da morte de Fernando Pessoa, em
1935. Quanto a sua prosa, Campos assinou textos entre 1917 e 1935. Nesse intervalo, o estatuto
da constituição poética deste heterônimo é relativamente rigoroso, por assumir, desde a
concepção, distensões do Sensacionismo para se estabelecer, poeticamente, um modo de
ensaiar interrogações de ordem metafísica. Aliás, a crítica literária pessoanista não cansa de
sinalizar que dentre os heterónimos assumidos por Fernando Pessoa, Álvaro de Campos é
aquele que mais se aproxima das preocupações de ordem metafísica do próprio poeta português.

57
Cf. PESSOA, Fernando. 136 pessoas de Pessoa. Ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Rio de Janeiro: Tinta-
da-China Brasil, 2017, p.395-399.
211

Figura 10 - Mapa de Portugal. Ao sul, em


destaque, encontra-se a cidade de Tavira.

Em segundo lugar, como forma suplementar ao dinamismo latente na biografia


mitológica de Campos, a materialidade de sua poesia, desde os anos 1940, é um exemplo para
refletirmos quantas versões deste heterônimo convivem, digamos assim, numa nuvem editorial,
o que, positivamente, interfere na maneira como fruímos sua obra literária. A história das
edições das poesias de Fernando Pessoa é uma espécie de campo de batalha bastante delicado,
porque entre 1940 até os dias de hoje, muitos foram os pesquisadores – do Brasil, de Portugal
e de demais países – que procuraram dar respostas editoriais mais ou menos cristalizadas (e
bastante diferentes entre si!) para a produção poética do ortônimo e do heterônimo. Nem
sempre, num trabalho de crítica literária, este aspecto é levado em consideração, sobretudo
porque exige do pesquisador um levantamento exaustivo das vulgatas, das edições diplomáticas
e crítico-genética existentes, bem como conhecimentos mínimos de Crítica Textual. Cada editor
segue um conjunto de critérios genéticos para o estabelecimento do texto e leva, nesta tarefa,
um gesto hermenêutico. Isso significa dizer que para além do que as lições apresentam, isto é,
212

do que se lê, no cotejo entre as variantes de um testemunho datiloscrito, manuscrito ou misto,


o editor possui um plano de intenções para a recepção não somente da sua edição como também
para as edições posteriores. Importante recuperar aqui as longas palavras de Ivo Castro,
professor catedrático de Filologia da Universidade de Lisboa e coordenador, desde o final dos
anos 1980, da “Equipa Pessoa”, primeiro conjunto de pesquisadores interessados em
estabelecer de forma mais científica os escritos pessoanos:

(...) apesar de denunciarmos a atitude básica dos editores da vulgata58 e muitas das
suas aplicações inconsistentes – e de estarmos seguros de que a edição crítica
implicará o fim do tempo da vulgata -, não podemos ignorar que esse texto corrupto
a que o leitor está habituado foi o único texto pessoano disponível durante quarenta e
tantos anos, o texto que se divulgou, que tornou Pessoa conhecido e admirado, que foi
traduzido e em que os críticos confiaram para interpretar os sentidos da obra pessoana.
Ora bem, não é ligeiramente que se pode abolir um texto tão profunda e diversamente
enraizado no público. Duvido mesmo que ele desapareça completamente da cena:
quando o texto crítico começar a ser discutido em nome de outras maneiras de utilizar
os testemunhos, é possível que surjam propostas de reabilitação das lições da vulgata.
Tudo isso entrará no caminho dialético que convém a estas situações, e será natural
ou, pelo menos, inevitável (CASTRO, 1990, p. 59).

A poesia de Fernando Pessoa começou a ser publicada aproximadamente 9 anos após


a morte do poeta. Eduardo Freitas da Costa59 (1915-1980), primo de Fernando Pessoa, João
Gaspar Simões (1903-1987) e Luís de Montalvor (1891-1947), amigos do poeta, lançaram-se a
esta tarefa de realização das publicações. Em 1933, Luís de Montalvor havia fundado a casa
editorial Ática, em Lisboa, e foi nela que saíram, no total, 11 volumes de escritos de Fernando
Pessoa e de seus heterónimos sob a rubrica de "Obras completas de Fernando Pessoa". Em
1944, vem à lume o segundo volume daquilo que os editores chamaram de Poesias de Álvaro
de Campos (Fig.4). Entre 1944 e 1980, todas as edições da poesia de Fernando Pessoa -

58
Ivo Castro refere-se às edições princeps (em latim, editio princeps, isto é, a primeira edição impressa duma obra)
dos escritos de Fernando Pessoa.
59
São parcas as informações acerca do primo de Fernando Pessoa. No Diccionário Cronológico de Autores
Portugueses de 1997 diz-se: “Jornalista e ensaísta. Grande defensor da causa nacionalista, adepto incondicional
do Estado Novo e admirador de Salazar, dedicou-se, nesse contexto, a uma actividade ensaística por vezes
polémica, mas não despicienda de interesse. Foi chefe da redacção do jornal de extrema direita A Vitória e do
Diário da Manhã, órgão da União Nacional. Ocupou o lugar de adido de imprensa na Embaixada de Portugal junto
do Governo de Franco e dirigiu, na Presidência do Conselho salazarista, um Gabinete de Estudos de Informação.
Foi também administrador da Rádio Televisão Portuguesa. Com o "25 de Abril", exilou-se em Espanha, em cuja
capital viria a falecer. Numa perspectiva nacionalista, ocupou-se da vida e da obra de Fernando Pessoa, tendo,
nomeadamente, publicado um livro polémico - Fernando Pessoa: Notas a Uma Biografia Romanceada (1951) -,
onde faz algumas rectificações de ordem biográfica à Vida e Obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões.
Já no exílio de Madrid, foi ali responsável, com José António Llardent e Joaquim Puig, por um número duplo
monográfico da revista Poesia (Nos. 7/8, Primavera de 1980), dedicado a Fernando Pessoa.” Cf. Base de Dados
de Autores Portugueses. Disponível em:
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/Autores.aspx.
213

publicadas no mercado editorial lusófono - e traduções - publicadas no mercado editorial não


lusófono - basearam-se nas edições da Ática.

Figura 11 - Edição princeps da poesia de Álvaro de


Campos. Hoje, ela é considerada uma das vulgatas.

Em 1988, com a criação da “Equipa Pessoa” a que nos referimos, dá-se um turning
point acerca da natureza dos testemunhos publicados pela Ática. Cleonice Berardinelli e Teresa
Rita Lopes, por exemplo, são as investigadoras pessoanistas que, no final do século XX,
dedicam-se fundamentalmente a estabelecer a poesia de Álvaro de Campos. No ano de 1990,
duas edições saem praticamente ao mesmo tempo: a publicação de Teresa Rita Lopes, pela
editora Estampa, denominada Álvaro de Campos: vida e obras do engenheiro; e a de Cleonice
Berardinelli, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, denominada Poemas de Álvaro de
Campos: Série Maior. O aparecimento dessas duas edições revela que ambas as pesquisadoras,
ainda que se valham dos mesmos instrumentos crítico-textuais, compreendem de forma distinta
a “apresentação material” da poesia camposiana. Em 1992, a Imprensa Nacional-Casa da
Moeda publica a Série Menor dos poemas de Campos, também assinada por Cleonice
214

Berardinelli, com pontuais ajustes derivados do cotejo com a edição de Lopes. Em 1993, sai
outra edição pela editora Estampa e assinada por Teresa Rita Lopes: Álvaro de Campos – Livro
de versos. Por fim, em 1999, no Brasil, a editora Nova Fronteira publica, pela primeira vez,
Poemas de Álvaro de Campos, editada por Cleonice Berardinelli. Nesta publicação, a
pesquisadora indica que:

Continuando neste afã, ao tomar conhecimento da publicação, em 1993, do Livro de


versos, estendeu-se o confronto a todos os textos comuns às edições – Série Maior,
Série Menor, Vida e obras do engenheiro e Livro de versos -, verificando mais uma
vez que havia divergências de leitura bastante numerosas – o que novamente nos levou
a rever as decisões tomadas, optando ora por manter as nossas, ora por adotar as da
outra editora (BERARDINELLI apud PESSOA, 1999, p. 21)

Em 2002, Teresa Rita Lopes traz para o mercado editorial lusófono outra edição da
poesia de Álvaro de Campos: em Lisboa, pela Assírio & Alvim; em São Paulo, pela Companhia
das Letras. Lopes defende uma organização dos poemas de Campos por fases (Decadente,
Sensacionista, Metafísica, Aposentada) como forma de sustentar a dramatização e a
ficcionalização que Fernando Pessoa havia acentuado neste heterônimo. Após um hiato de 13
anos, Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello publicam, em 2015, pela Tinta-da-China (de
Portugal e do Brasil), a Obra completa de Álvaro de Campos. Valendo-se dos critérios genéticos
outrora adotados pela “Equipa Pessoa” (da qual Pizarro também fez parte), a edição da Tinta-
da-China contém duas sessões: Poesia e Prosa, ambas com testemunhos textuais organizados
de maneira cronológica. Em 2019, Teresa Rita Lopes publica, pela Global Editora de São Paulo,
Vida e obras do engenheiro Álvaro de Campos. A organização é uma resposta à edição de
Pizarro e Cardiello e propõe uma montagem distinta daquela que a pesquisadora havia realizado
no início dos anos 2000.
Com estas breves notas acerca do estatuto editorial da poesia de Campos, podemos
esboçar algumas análises sobre a peça poética pertinente à proposta deste artigo: a “Ode
marcial”. A partir das reflexões oriundas das edições existentes, podemos nos perguntar: há
uma “Ode marcial” ou mais de uma “Ode marcial”? As edições da Ática (1944) e suas derivadas
contêm apenas uma parte – um núcleo, melhor dizendo – da “Ode marcial”: o trecho cujo incipit
é “Inúmero rio sem água - só gente e cousas” Já as edições de Cleonice Berardinelli (1990,
1992, 1999), de Teresa Rita Lopes (2002, 2019) e de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello
(2015) apresentam configurações diferentes para a composição poética denominada “Ode
marcial”.
Cleonice Berardinelli entende que a “Ode marcial” possui 10 núcleos, classificados
pelo intervalo (a) a (j). Nenhum dos núcleos apresenta data, apenas a indicação de sua natureza:
215

se são manuscritos, datiloscritos ou mistos (datiloscritos com interferências manuscritas).


Importante mencionar que Berardinelli, a partir da descoberta não só de outros núcleos da “Ode
marcial”, como também de outros poemas (por exemplo, “A Partida”), resolve reconstituir
aquilo que Pessoa havia planejado para Álvaro de Campos: o livro “Arco do Triunfo”, que
havia sido anunciado em Orpheu 1 por ocasião da publicação da “Ode Triunfal”. O poema,
pois, aqui analisado, a “Ode marcial”, ganha a seguinte configuração (Tab.1) nas edições de
Berardinelli (indicaremos, nas tabelas a seguir, apenas os incipit dos núcleos):

a Ave guerra, só de luz e fogo


b Inúmero rio sem água só gente e cousas
c O que quer que seja que cria e mantém este mundo,
d Hela hoho , helahoho !/ Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
e Ai de ti, ai de ti, ai de nós!
f Oh o maior horror de terem cessado os clarins,
g Chove fogo, ouro de barulho estruge...
h (Campina e trigo, campina,
i A Guerra!/Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
j Por aqueles, minha mãe, que morreram, que caíram na batalha...
Tabela 1 - Configuração da "Ode marcial" (Berardinelli, 1990, 1992, 1999)

Teresa Rita Lopes, por sua vez, além de organizar a “Ode marcial” de maneira distinta
da Cleonice Berardinelli, apresenta outras informações relevantes. Em primeiro lugar, com base
no manuscrito 144Y/E3 (Fig.5) – que também havia sido analisado por Cleonice Berardinelli –
Lopes recupera a dedicatória do poema: “A Raul Leal”. Este aspecto é relevante, principalmente
para os propósitos de organização da editora: Raul Leal (1886-1964), escritor amigo de
Fernando Pessoa, de Mário de Sá-Carneiro e dos demais modernistas portugueses, foi uma
figura bastante emblemática. Sá-Carneiro, em carta ao Pessoa, menciona que Raul Leal era “um
pouco Orpheu demais”. Fernando Cabral Martins (2010), em texto de apresentação desta figura
do modernismo português, sinaliza que Raul Leal era, dentre os modernistas, o mais próximo
de um futurismo genuinamente português, por oposição, a saber, a Santa Rita Pintor e Almada
Negreiros, artistas que, respectivamente, recepcionaram o futurismo de teor italiano e de teor
soviético. Não nos esqueçamos, porém, de que o futurismo camposiano é aparente: em
216

realidade, este heterônimo, ao adotar a linguagem e os temas futuristas, subverte-os com senso
crítico. É o que veremos adiante.

Figura 12 - Manuscrito do projeto "Arco do Triunfo". Disponível atualmente


de forma online na página do Espólio de Fernando Pessoa da Biblioteca Nacional
Digital de Portugal. Acesso em: http://purl.pt/1000/1/.

Dos 10 núcleos desta “Ode marcial”, somente 2 possuem data. É assim (Tab.2), pois,
que se configura o poema na edição de Teresa Rita Lopes de 2002:
217

a Clarins na noite
b Ruído longínquo e próximo não sei porquê
c Hela hoho, helahoho!/ Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
d A Guerra!/ Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
e Barcos pesados vindo para as melancólicas sombras
f As mortes, o ruído, as violações, o sangue, o brilho das baionetas...
g Inúmero rio sem água – só gente e coisas,
h Que imperador tem o direito
i Por aqueles, minha mãe, que morreram, que caíram na batalha...
j Ai de ti, ai de ti, ai de nós!

Tabela 2 - Configuração da "Ode marcial" (Lopes, 2002)

Em 2015, como dissemos, vem à lume a edição da Obra completa de Álvaro de


Campos, editada por Jerónimo Pizarro e por António Cardiello. No que tange à “Ode marcial”,
somos apresentados a mais informações. O poema é composto, desta vez, por seis núcleos, de
(a) a (h), com datas precisas e estimadas. Pizarro e Cardiello explicam que esta organização
segue o esquema manuscrito do verso de uma folha datilografada da cota 71-1: 1. “Cavalgada”
(núcleo a); 2. “Saudação aos combatentes” (núcleo b); 3. “Os Destroços” (núcleos c, d, e, f e
g); 4. “Philosophia da guerra – Dobre” (núcleo h); e 5. “Prece” (única parte sem núcleo). Assim,
a “Ode marcial de Pizarro e Cardiello” se configura desta maneira (Tab.3):

a Clarins na noite, c. 1914.


b Ave guerra, som da luz e do fogo – nov. 1915.
c Innumero rio sem água – só gente e cousas, - c. 1914.
d Ruido longínquo e próximo não sei porquê – c.2/08/1914.
e II A Guerra!/ Desfilam deante de mim as civilizações guerreiras – c. 1914.
f Hela hoho!, helahoho!// Desfilam deante de mim as civilizações guerreiras... c.1915.
g Ai de ti, ai de ti, ai de nós! – c. 1915.
h Por aquelles, minha mãe, que morreram, que cahiram na batalha... – c.1916.
Tabela 3 - Configuração da "Ode marcial" (Pizarro e Cardiello, 2015)

Teresa Rita Lopes, ao publicar, em 2019, uma nova organização dos poemas de Álvaro
de Campos, defende, desta vez, a “Ode marcial” como uma composição constituída de duas
Partes (I e II), seguidas de 9 núcleos (a) a (i). É assim (Tab.4), pois, que ela formaliza o poema:
218

I Quem se mexe nas trevas?


II A Guerra!/ Desfilam diante de mim civilizações guerreiras...
a Clarins na noite
b Ruído longínquo e próximo não sei porquê
c Hela hoho, helahoho!/ Desfilam diante de mim civilizações guerreiras...
d Barcos pesados vindo para as melancólicas sombras
e As mortes, o ruído, as violações, o sangue, o brilho das baionetas...
f Inúmero rio sem água – só gente e coisas,
g Se eu tirar com uma pancada
h Por aqueles, minha mãe, que morreram, que caíram na batalha...
i Ai de ti, ai de mim, ai de nós!
Tabela 4 - Configuração da "Ode marcial" (Lopes, 2019)

Em terceiro lugar – e é neste momento que consubstanciaremos o que há de musical


em Álvaro de Campos -, não devemos nos esquecer de que, se por um lado, Fernando Pessoa e
os seus principais heterónimos pensam artisticamente a sua própria produção poética, por outro
lado, há uma faceta de Fernando Pessoa (e também de Álvaro de Campos) que pondera o
relacionamento interartes a partir de uma escrita mais esquematizada, isto é, com
enquadramentos mais sistemáticos, com formulações lógicas próprias da disciplina Estética.
Desde 1946, alguns pesquisadores notaram que na arca de Pessoa, textos assinados pelo
60
ortônimo, por Álvaro de Campos e por António Mora eram possíveis de serem agrupados
sob o nome de “Ideias Estéticas”: tais textos procuram refletir sobre a teoria da arte e do artista,
anotar as observações sobre a constituição do poético, as rubricas acerca da manifestação
literária e as avaliações concernentes a demais artefatos artísticos. Conforme dissemos no início
deste texto, duas são as frentes de reflexão crítico-artística de Fernando Pessoa: a poesia e a
prosa. No âmbito da poesia, está claro que o ortônimo e os heterônimos “pensam o que sentem”.
Já no campo da prosa – a de não-ficção ainda por delinear em futuros projetos editoriais –,
textos sobre filosofia, política, crítica literária, crítica cultural e até mesmo sobre ocultismo
também são aparatos fundamentais suplementares ao que existe – de modo polêmico,
lembremo-nos disso! – no âmbito da poesia. Nesse quesito, duas palavras, respectivamente, são

60
Trata-se de outro heterônimo pessoano, com textos em prosa de índole neopaganista. Esteve nos projetos de
publicação da revista Athena (1924-1925), mas permaneceu relativamente inédito até 2002, ano em que Luís Filipe
B. Teixeira publica, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a edição crítica Obras de António Mora. Destacamos
também outra coletânea que, embora não seja de caráter crítico-genético, reúne, porém, textos significativos deste
heterônimo: O Regresso dos deuses e outros escritos de António Mora (Assírio & Alvim, 2013), organizada por
Manuela Parreira da Silva.
219

importantes: as de António Mora e as de Fernando Pessoa. São elas que indicam as


contribuições reflexivas do relacionamento interartes.

Mas o critério de perspicuidade não limitará demasiado a arte? Não limita, se


atendermos a um ponto importante, que é que há várias artes, cada uma das quais
corresponde a um género de perspicuidade. Certos sentimentos vagos e pensamentos
nebulosos, que são naturais a todos os homens, encontram a sua expressão em a
música. (PESSOA, 1973, p.17)
Poesia lírica primeiro música + poesia, poesia cantada. Depois a poesia tomou para si
o ritmo. A música passou a expressar sentimentos por si, e a poesia lírica a ter música
em si (Cf. as poesias de Shelley e a sua má musicabilidade). A sátira, o epigrama são
duros, mas é porque a música do satirizar é a aspereza e a [...]
Toda a poesia lírica tem, ou deve ter, uma música própria (como Tennyson tem). —
A arte que poetas líricos, às vezes instintivos de todo, têm, é uma composição musical.
Uma poesia (lírica ou outra) exige intérprete, como uma partitura (trecho musical); só
que na poesia a interpretação é mais restritamente inindividualizável por causa do
elemento fixador. (PESSOA, 1973, p.74)

É, pois, com a ideia de perspicuidade e da exigência de um intérprete sensível ao que


há de mais musical num poema, de acordo com Mora/Pessoa, que se pode pensar a “Ode
marcial” como uma espécie de escala histórico-musical a tocar de forma irônico-crítica os
resultados da miserabilidade humana no painel da Primeira Guerra Mundial. A “Ode marcial”
parece cumprir, desta maneira, o que Theodor Adorno demonstra nas suas anotações presentes
em Teoria Estética (2008): de que as obras de arte contêm um fundo socio-histórico com o qual
elas não são coniventes; e de que esta não conivência, justamente, engendraria posturas críticas
orientadas para a mobilização e o deslindamento dos paroxismos e antíteses entre a vida e a
obra de arte.
Conforme mencionamos, a edição de Pizarro e Cardiello indica as datas – exatas e
estimadas – dos núcleos da “Ode Marcial”. A partir disso, podemos extrair três anos de
composição do poema: 1914, 1915, 1916. Tais datas são, a princípio, a medida dos conflitos
pelos quais o mundo passava e que ganha seu epíteto na Grande Guerra. Mas as datas também
permitem um experimento digamos assim curatorial, à Aby Warburg (2015) quando da
composição dos seus Atlas Mnemosyne. Reorganizando os núcleos a partir das datas,
observamos qual acentuação, pois, a aproximação entre núcleos de mesma data oferece. Ao
olhar para as datas da composição dos núcleos e para o que eles outorgam nesta nova
organização, percebemos o modo de arpejo.
Em Teoria Musical, arpejo é uma espécie de ornamento para a frase musical e consiste
em executar de maneira sequenciada notas de uma escala. Por exemplo: tomando-se a Escala
220

Maior de Dó, suas notas Dó, Mi e Sol, se tocadas de maneira sequenciada, independentemente
da ordem, constituem um arpejo da Escala Maior de Dó.

Figura 13 - Arpejo da Escala Maior de Dó (notas Dó, Mi e Sol arpejadas)

Dito isso, o que temos? Os núcleos de 1914, por exemplo, variam o mesmo tom: o
extermínio do outro anunciado pelo som cuja singularidade originária está no ambiente de
guerra. Em “Clarins da noite”, o horror da destruição bélica legitimada assenta-se nas notas da
noite e no ruído das cavalgadas; em “Inúmero rio sem água”, os sons arriscam, sem sucesso, a
obstrução da consciência dos “destroços”. Em “ruído longínquo”, isto é, o “ruído de universo
da catástrofe”, Álvaro limpa, porém, os nossos ouvidos: “os sons indecisos” e o “murmúrio
incompreensível” são distinguidos nesses versos cristalinos:

A guerra, a guerra, a guerra realmente./ Excessivamente aqui, horror, a guerra real.../


Com a sua realidade de gente que morre realmente,/ Com a sua estratégia realmente
aplicada a exércitos reais compostos de gente real/ E as suas consequências, não coisas
contadas em livros,/ Mas frias verdades, de estragos realmente humanos, mortes de
quem morreu, na verdade,/ E o sol também real sobre a terra também real/ Reais em
acto e a mesma merda no meio d’isto tudo! (PESSOA, 2015, p. 159).

E em “A Guerra!”, o entendimento de que as “civilizações guerreiras” são eternas


prolonga a propriedade da situação histórica: “panorama confuso e lúcido”.
Os núcleos de 1915 tonificam, aparentemente, a materialidade técnica e exuberante
desta civilização guerreira, o que, no conjunto da “Ode Marcial”, tende a ser um acidente. Seu
último andamento, “Ai de ti, ai de ti, ai de nós” é, contudo, o ajuste que desmancha a opulência
beligerante de “Ave guerra, som de luz e fogo” (um núcleo breve e ligeiro) e de “Hela hoho,
helahoho/ Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras” (que passam, também, de maneira
veloz, como se desafiassem a captação do olhar). Em “Ai de ti, ai de ti, ai de nós”, vigoram as
reticências de Campos, todas emanando as lembranças e lamentações de uma mãe cujo filho
morre em batalha: “E o teu coração de mãe sangrou tanto por esse herói de que a história não
dirá nada...”.
Com o núcleo de 1916, escutam-se os dobres. E os dobres são dedicados aos mortos.
Álvaro, neste núcleo, configura o tom como condolência. Longe de aplacar, porém, a dor
específica e capital da guerra, reitera-a: “Loucos, minha mãe, loucos, porque os corpos morrem
e a dor não morre”. Como nota, o núcleo de 1916 alonga a finalização do último núcleo de
221

1915. Não se preocupa, porém, em ser encerrado. Os sinos, no último núcleo, continuam a tocar,
como se indicassem que a dor – da guerra, da morte, da barbárie – vibra, musicalmente, no
poema e está convertida, enquanto tonalidade, em alerta.
Finalizamos o texto com uma reiteração: quaisquer que sejam os critérios de
estabelecimento do texto pessoano, há, nas edições existentes da poesia de Álvaro de Campos,
um imaginário e uma atitude hermenêutica da parte do investigador. Seria possível concordar,
a princípio, com Ivo Castro (1990), sobre a necessidade de que o editor de Pessoa não tenha de
ser um pesquisador pessoano, isto é, um crítico que se dedique também a interpretar a obra de
Fernando Pessoa e de seus heterônimos. Entretanto, entre a produção poética de Fernando
Pessoa e a do heteronimismo, há também vários projetos de publicação e de edição do ortônimo,
voltados tanto para o que ele próprio assina poeticamente como para (como demonstraram as
consultas dos editores desses últimos anos) a poesia de Álvaro de Campos.
Solicitar os projetos de Pessoa para a organização de sua produção poética ou
reorganizá-la, sem considerar tais projetos, com o objetivo exclusivo de fazer uma certa
manutenção do “drama em gente” são modos crítico-ensaísticos de encarar o texto de Pessoa,
colocando-se, em cada produto editorial, como uma espécie de páthos daquilo que, como
referência – Fernando Pessoa – já se tornou tradição e clássico. Ainda que o editor de Fernando
Pessoa se situe num lugar de recusa a estabelecer qualquer gesto hermenêutico seja da obra do
ortônimo seja da obra dos heterônimos, a indagação que se estabelece é: será realmente possível
suspender de maneira total este gesto, se organizar também é, conforme pudemos demonstrar,
executar a obra artística? Será que não é exatamente a intensificação de interpretações em
formatos exclusivamente interartísticos - semelhante ao que Walter Benjamin (2018) entende,
na leitura dos primeiros teóricos românticos alemães –, sem negligenciar, claro, uma base
crítico-textual, o legado que os escritos de Pessoa deixam à posteridade?

Referências

ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008.


BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo:
Iluminuras, 2018.
CABRAL MARTINS, Fernando. Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português. São Paulo: Leya, 2010.
CASTRO, Ivo. Editar Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
FONSECA, Branquinho (org.). PRESENÇA: folha de arte e crítica. Ano 11, vol. 3, nº 49.
Coimbra: Atlântica, 1937. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/bg4/UCBG-RP-1-5-
222

s1_3/UCBG-RP-1-5-s1_3_master/UCBG-RP-1-5-s1/UCBG-RP-1-5-s1_item1/P645.html.
Acesso em: 17 de novembro de 2020.
MED, Bohumil. Teoria da Música. Brasília: Musimed, 1996.
PESSOA, Fernando. 136 pessoas de Pessoa. Ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Rio de
Janeiro: Tinta-da-China Brasil, 2017
PESSOA, Fernando. Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da presença. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998.
PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. Ed. Jerónimo Pizarro e António
Cardiello. Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2015.
PESSOA, Fernando. Obras de António Mora. Ed. Luís Filipe B. Teixeira. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2002.
PESSOA, Fernando. O Regresso dos deuses e outros escritos de António Mora. Ed. Manuela
Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.
PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria e de Crítica Literárias. Lisboa: Ática,
1973.
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Ed. Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
PESSOA, Fernando. Poesia - Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
PESSOA, Fernando. Vida e obras do engenheiro Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes.
São Paulo: Global, 2019.
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.
SPAGGIARI, Barbara, PERUGI, Maurizio. Fundamentos da Crítica Textual. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2004.
WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
223

EXPERIÊNCIAS AFETIVAS ENTRE MIÚDOS E MAIS-VELHOS NA


LITERATURA DE ONDJAKI

Aparecida Cristina da Silva Ribeiro

O escritor angolano Ondjaki (Ndalu de Almeida) ganhou o mundo com as estórias


(narrativas) confeccionadas de lirismo e que se passam em Luanda, musa inspiradora da sua
ficção. Na literatura do autor, a experiência inventiva da palavra concentra-se na força
propulsora da linguagem, como artesania verbal que busca o efeito lírico de experiências lúdicas
no texto. O escritor tem várias obras publicadas entre prosa e poesia, além da produção infantil
e infanto-juvenil. Por ordem de publicação, as narrativas de destaque são Bom dia, camaradas,
Os da minha rua: estórias, AvóDezanove e o segredo do soviético e Os Transparentes.
Na literatura do ficcionista, memória e infância são temas privilegiados. Contudo,
evocar a infância não é característica específica apenas da literatura do autor. O tema pode ser
encontrado na literatura (poesia e prosa) de múltiplos escritores angolanos e de gerações
diferentes. Carlos Ervedosa considera que desde os escritores do Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola (1950) encontram-se, com frequência, as “evocações da infância
associadas a um sentimento de profundo amor à terra natal [...] paraíso perdido da infância e
pela sua antiga cidade, que fora o cenário desses tempos” (ERVEDOSA, s/d, p. 92). O que
significa que desde as produções literárias da geração de 1950, evocam-se, com frequência, a
infância, e com isso revelam um misto de sentimentos – como passado/presente e amor à terra
natal – e valorização de elementos da tradição, com ênfase na oralidade.
As evocações do passado e da infância não configuram saudosismo, tampouco
regresso ao tempo perdido. Manuel Ferreira (1977, p. 25), compreende que no fundo “é um
processo de acusação através de formas eufemísticas, necessárias para iludir a Censura e
evidenciar a erosão que o sistema repressivo colonial ia sublimando de ano para ano”. A
abordagem ficcional do tema problematiza a dura realidade política e social para aqueles que
tiveram de aprender desde a infância a lidar com o enfrentamento de uma série de conflitos que
aconteceram principalmente no espaço da cidade, como em A cidade e a infância, de Luandino
Vieira. Na literatura de Luandino, a infância é também um mote usado para driblar a censura
sobre as manifestações artísticas e denunciar a violência do colonizador sobre o colonizado em
terras africanas durante o tempo colonial.
Em uma nova fase da literatura angolana contemporânea, as narrativas de Ondjaki Bom
dia, camaradas, AvóDezanove e o segredo do soviético e Os da minha rua compõem um
224

conjunto de textos situados na década de 1980 e que são construídos na linha de intersecção
ficção e autobiografia. As narrativas incursionam por meandros do tempo de antigamente
(designação que prefere o autor) e são conduzidas pela memória afetiva dos miúdos (crianças)
narradores, que contam, em linguagem escrita, estórias do tempo de infância. São narradores
curiosos e encarregados da missão de interrogar o passado/história de Angola, como meio de
compreender o presente, por isso questionam certas mudanças ocorridas no sistema político.
Astúcia e curiosidade, próprias das crianças, são características dos narradores ondjakianos.
Eles são meninos inteligentes, que pertencem a uma nova geração de angolanos, que têm acesso
à educação escolar. Por frequentarem a escola, têm posicionamentos críticos aguçados para
refletir sobre sombras do passado que assombram o presente.
Nas respectivas narrativas, os relatos são construídos de afetos e surgem através das
relações entre memória e sociedade, de modo que se percebe a valorização da memória coletiva
e múltiplas vivências de um conjunto de meninos e meninas que partilharam a infância na
cidade de Luanda, pós-independência. Na literatura de Ondjaki, a capital angolana figura como
centro do poder político e econômico do país. As duas primeiras narrativas citadas são
romances. E a última, um conjunto de estórias curtas (vinte e dois contos) construídas através
da intersecção entre ficção e autobiografia. Os contos de Os da minha rua narram diversas
experiências do menino Ndalu (Dalinho) e seus avós, tios, amigos, vizinhos e professores, sobre
a aprendizagem da vida em uma sociedade marcada pela violência de conflitos históricos e
políticos. O uso do plural no título da obra e na voz narrativa marca um estilo de linguagem dos
narradores ondjakianos, que narram memórias coletivas do tempo da infância, como no
fragmento: “Nós, as crianças, vivíamos num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos
calendários de verdade” (ONDJAKI, 2007, p. 59). Narrar sobre o tempo de “antigamente”
permite aos narradores realizarem incursões no passado/história – de si mesmos e de Angola –
para extrair a materialidade ficcional.
Em Os da minha rua (2007), a análise incidirá sobre um conto, “Manga verde e o sal
também”, escolhido pelo diálogo com o romance AvóDezanove e o segredo do soviético (2009).
A leitura das narrativas nos permite pensar o romance como versão ampliada do conto, tendo
em vista que o conto foi publicado primeiro. No conto, o narrador relata memórias de infância
que se passam na década de 1980, Praia do Bispo, bairro de sua avó Agnette (AvóNhé) em
clima de construção do chamado “mausoléu”, edifício moderno sob planejamento e
coordenação soviética, construído pelo governo angolano para armazenar a história e os restos
mortais do fundador da nação angolana, o primeiro presidente António Agostinho Neto.
225

Era assim, antigamente, na casa da minha avó. [...] Ali, mesmo em frente à casa da
avó Nhé, havia muita poeira dos camiões com trabalhadores soviéticos. Todos saíam
do trabalho com fatos azuis e capacetes amarelos. Eram as obras do mausoléu que
estavam a construir para o camarada presidente Neto. O mausoléu que nós
chamávamos de “foguetão” pois parecia um foguetão que ia mesmo voar (ONDJAKI,
2007, p. 79).

A construção do mausoléu ou “foguetão”, obra de engenharia civil a que o narrador


confere destaque na narrativa, refere-se ao (MAAN)61 Memorial Dr. António Agostinho Neto,
em Angola, um projeto iniciado na década de 1982 pelo governo do presidente da República
José Eduardo dos Santos, sucessor de Agostinho Neto. Na década de 1990, as obras ficaram
suspensas por causa da guerra civil e devido ao agravamento das condições econômicas do país.
Posteriormente, a retomada aconteceu em 1998 e foi preciso um projeto de reformulação
estrutural diante dos desgastes causados pela degradação do tempo. Entre o lançamento da
primeira pedra (1982) e a inauguração (2012) do moderno edifício arquitetônico histórico e
cultural são trinta anos de história sobre a famosa obra, que tem como objetivo perpetuar a
memória do líder da luta de libertação pela nação angolana. Além do MAAN, outra homenagem
ao líder angolano é a (UAN) Universidade Agostinho Neto, que data de 1976.
Nota-se no fragmento da narrativa que a designação temporal antigamente é uma
denominação de intenção poética utilizada pelo ficcionista para recorrer ao passado, que no
português angolano, entende-se como uma forma de contar estórias “era uma vez”. Quando o
narrador faz uso dessa palavra mágica abre no texto literário a chave da memória do tempo de
infância. Observa-se no discurso que o conto/estória diz sobre a lembrança de experiências da
infância, mas é sobretudo a memória coletiva que predomina na narrativa e serve de guia para
os relatos do narrador.
Maurice Halbwachs (1990) entende que a memória coletiva é uma construção de
imagens que surge da experiência individual e relações sociais. Por esse motivo, nossos
sentimentos e pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias
sociais definidas, afirma o filósofo francês.

A sucessão de lembranças, mesmo aquelas que são mais pessoais, explica-se sempre
pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos,
isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte, e
em seu conjunto (HALBWACHS, 1990, p. 51).

61
AMARAL, E. J. C. do. Memorial Dr. António Agostinho Neto (MAAN). NewPaper, p. 1-2. N.01/2017.
226

Observa-se que é através do tecido social marcado de relações afetivas que surgem as
lembranças do narrador, como a convivência com as avós, tias, primos, vizinhos e amigos do
bairro. “Estávamos sentados no muro. [...] Éramos ainda alguns: nós, os primos, os da casa do
senhor Tuarles e até o Gadinho e o Paulinho” (ONDJAKI, 2007, p. 79,80). Nas diversas
narrativas de Os da minha rua os relatos de Dalinho são construídos de imagens sobre o
passado, que surgem reconstruídas pela ótica de um garoto esperto e sensível, que aprendeu a
ler a vida e a contar/inventar estórias com os mais-velhos da família e do bairro de sua infância.
E que aprendeu também a observar de forma lírica o mundo à sua volta. A obra é construída de
memórias que produzem sentido quando relacionadas ao conjunto de transformações históricas,
sociais e políticas que remetem à memória coletiva do povo angolano, como no conto/estória
que narra o início da construção do MAAN, na década de 1980.

Relações afetivas entre crianças e velhos nas narrativas

A lembrança é uma imagem engajada em outras imagens, uma


imagem genérica reportada ao passado. (Maurice Halbwachs)

Afirmou-se no início do texto que na literatura de Ondjaki infância e memória são


temas recorrentes e por esse motivo as experiências entre miúdos e mais-velhos acontecem por
meio da presença de avós na vida dos netos marcada de afetos. Nas narrativas, as avós
representam a voz da sabedoria ancestral, são conhecedoras da vida e advinhas de futuros. Ao
velho é facultado o poder da memória, portanto, quando as avós decidem dar conselhos
resgatam vivências de outro tempo, cindido por mudanças do presente.
A memória está relacionada com a tradição e é considerada a mais épica de todas as
faculdades. De acordo com o pensamento de Walter Benjamin, ela é a reminiscência que “funda
a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração [...] e que tece a
rede que em última instância todas as histórias constituem entre si” (BENJAMIN, 1994, p. 211).
A narrativa oral, patrimônio cultural da tradição, é entendida pelo teórico como dimensão
utilitária para a vida. Por isso, o narrador benjaminiano é aquele que tem histórias para contar
e sabe dar conselhos.
Na literatura angolana a oralidade é valorizada tanto na poesia quanto na prosa e
compreendida como um traço cultural associado à formação das identidades. Proveniente da
tradição oral e entendida como conjunto de valores, que passam de geração em geração, a
oralidade é considerada uma das formas de manifestação da ancestralidade angolana e que a
227

literatura de Ondjaki (e de outros ficcionistas) traz como símbolo de identidade e de pertença à


terra.
No conto “Manga verde e o sal também” e no romance AvóDezanove e o segredo do
soviético percebem-se marcas da oralidade nos discursos dos narradores e personagens como
símbolos de identidades culturais, por isso, expressões oriundas das línguas nacionais de
Angola são incorporadas aos textos literários. O narrador do romance usa com frequência a
linguagem informal que tem estruturas da fala/oralidade. O relato do menino narrador é
conduzido em linguagem humorada, que expõe detalhes sobre a construção do MAAN e
principalmente os planos de sabotagem das crianças (o narrador e os amigos Pinduca e Charlita)
para explodi-lo e impedir o avanço da obra, que para os mais-velhos causaria o fim da vida
pacata no bairro Praia Do Bispo, em Luanda.

[...] poucos notaram que a enorme obra, que os mais-velhos diziam ser vertical, alta e
com figura de um foguetão, essa obra de tantas tarefas com poeira e mil trabalhadores
cansados, tinha começado a não existir mais, sobrando apenas uma poeira cinzenta
que demorou muito tempo a baixar. [...] Foi num tempo que os mais-velhos chamam
de antigamente (ONDJAKI, 2009, p. 8).

O menino narrador relata memórias do tempo de infância, de brincadeiras por ruas de


terra em Luanda, de passeios em quintais alheios na procura de frutas e de fugas da casa das
avós para saborear com primos e amigos mangas verdes com sal. “A Avó Nhé regava as plantas,
os arbustos e as árvores com um fiozinho de água que aparecia às terças e quintas-feiras. Regava
a goiabeira e a figueira, a árvore de sape-sape, as rosas, a palmeira e a mangueira” (ONDJAKI,
2009, p. 11). Nota-se no fragmento a descrição dos quintais das avós e a importância atribuída
a esses espaços da infância, onde plantava-se árvores frutíferas, criava-se aves e crescia o
imaginário fabular das crianças. Jorge Miguel Marinho (2015) 62 afirma que o fabular “faz parte
da natureza humana e significa um modo de ser que acorda em cada um de nós o apelo ao
sonho, a necessidade da fantasia, a vivência da imaginação”. O narrador é um exímio
contador/inventor de estórias. Ele ouve e aprende com as avós.

- Não tenho hábito de inventar. Só que às vezes é preciso fazer um pouco de


adaptação.
- “Adaptação” é o quê, então?
- É dares um jeitinho...A estória melhora e quem ouve gosta mais.
- Acho que as minhas avós fazem muitas adaptações (ONDJAKI, 2009, p. 55).

62
MARINHO, J. M. Fabulação: um mundo onde todos sonham. 06/02/2015. Artigo publicado no portal
Plataforma do Letramento. http://www.plataformadoletramento.org.br/em-revista/384/fabular-e-preciso.html.
Acesso em 20/12/2020.
228

O romance valoriza a oralidade, a linguagem cotidiana e a memória coletiva,


conferindo destaque às crianças e aos velhos. Às crianças como sujeitos em fase de crescimento,
descobertas e curiosidades sobre o espaço que habitam, em constantes transformações. E aos
velhos, provedores de sabedoria e conhecimento adquiridos no percurso da vida: “[...] e eu
lembrei dos mais-velhos, de tantos mais-velhos que eu já tinha conhecido e que não sabem às
vezes acreditar nos segredos simples das crianças [...]” (ONDJAKI, 2009, p. 173). Três avós
são destaque na narrativa: a Avó Agnette, avó do narrador, chamada de Avó Nhé e conhecida
na Praia Do Bispo por Avó Dezanove, depois de uma cirurgia no pé para a retirada de um dedo;
a Avó Catarina, irmã da Avó Agnette, que aparece na casa envolta em sombras e mantém sábios
diálogos em silêncio com o narrador, mas já não se encontra entre os vivos; e a vizinha Avó
Maria, avó da Charlita (amiga do narrador), que conta estórias em kimbundu e é especialista
em fazer kitabas, espécie de doces de amendoim que faz sucesso entre as crianças.
Laura Padilha afirma que as figuras de velhos na literatura angolana são usadas pelo
ficcionista para “por intermédio delas reconstruir-se ao universo de origem [...] e o principal
traço é a atividade de sua memória pela qual o passado retorna e se pode capturar a profunda
fragmentação do presente” (PADILHA, 2007, p. 143). Observa-se nas narrativas que as avós
são as principais responsáveis pelos cuidados e convivência afetiva com as crianças durante o
tempo que os pais se encontram no trabalho.
O relato do narrador protagonista segue uma certa cronologia sobre a passagem do
tempo e das transformações que acontecem no espaço urbano. O romance valoriza a experiência
da memória coletiva, a construção afetiva e relações sociais estabelecidas no tempo da infância,
como a convivência dos miúdos protagonistas (o narrador, o Pinduca e a Charlita) com
soviéticos (operários) e cubanos (professores e médicos) em Angola.
Maurice Halbwachs (1990, p. 38) observa que “se não nos recordamos de nossa
primeira infância é porque nossas impressões não se podem relacionar com esteio nenhum,
enquanto não somos ainda um ente social”. Representações da infância na literatura de Ondjaki
associam-se a um tempo de alegrias, amizades, solidariedade e coletividade entre famílias,
amigos e vizinhos que partilham a vida e diversas estórias, inclusive de guerras.

[...] sem essa vida toda que os mais-velhos já tinham vivido, mas nós sabíamos de
todas as pessoas e de todas as estórias que tínhamos visto e inventado, mais as que
eram contadas, recontadas e aumentadas pelo EspumaDoMar [...] estórias em
kimbundu da AvóMaria que não entendemos nada até hoje porque na escola nunca
nos ensinaram a falar nem escrever kimbundu [...] estórias do SenhorTuarles que fala
pouco mas que afinal tem boas estórias do tempo de antigamente, estórias da
AvóCatarina [...] estórias da PraiaDoBispo no tempo dos tugas [...] as estórias todas
que a AvóDezanove me conta [...] (ONDJAKI, 2009, p. 109).
229

Na literatura do autor, a infância não é perspectivada na visão de um narrador adulto


que recorre à memória. É a criança que narra as suas versões de acontecimentos bons ou ruins
que se passaram em Angola, como os mujimbos (boatos) sobre a construção do MAAN e os
rumores da guerra que chegam a Luanda. A paridade velho/novo contracena na ficção por meio
da convivência entre crianças e avós destacando a relação basilar de experiências em família,
como pode-se verificar no fragmento da narrativa:

A AvóAgnette fazia entrar num abraço todos os miúdos netos que nós éramos, nem
sei como conseguíamos caber naquela cama, mesmo sendo de casal, uma cama não
foi feita para tantos netos ao mesmo tempo. Ela cantava músicas de fados lentos e
adaptados para nós dormirmos, e ninguém dormia. Contava estórias malucas da amiga
dela, CarmenFernandez que tinha ficado grávida uma vez mas tinha parido um enorme
saco de formigas que lhe picavam dentro da barriga, a segunda vez que ficou grávida
acabou por ter um bebé, mas que tinha cabeça e asas de pássaro e, como a janela estava
aberta, fugiu a voar. A Avó disse que a CarmenFernandez tinha medo de engravidar
a terceira vez, mas nós não adormecíamos mesmo assim (ONDJAKI, 2009, p. 26).

A arte de narrar na literatura de Ondjaki privilegia a oralidade como matéria extraída


do cotidiano. E também convoca os mais-velhos, com a sabedoria, que intercambiam
experiências com os mais-novos, para fornecer relatos sobre o passado (tempo dos
tugas/portugueses e da guerra) que são convertidos em estórias ficcionais. Se o advento do
romance na tradição ocidental nasceu da experiência subjetiva do homem solitário aprisionado
em si mesmo, na literatura angolana são valorizadas experiências coletivas, como as da infância,
das lutas de libertação nacional e da guerra. A literatura de Ondjaki não apresenta um eu sozinho
enclausurado em conflitos de ordem psicológica e não narra experiências exclusivamente
subjetivas. A sua ficção opta por narrar experiências plurais e o que existe são conflitos de
ordem social, histórica e política que afetam o coletivo. Os narradores ondjakianos narram no
plural, portanto, a voz narrativa (nós) evidencia a pluralidade da vida, como pode-se ver no
fragmento:

O CamaradaBotardov ria à toa. E olhava para a AvóAgnette que não sabia bem onde
olhar. Nós não saíamos dali, gostávamos de assistir àquelas cenas como se fosse
novela ao vivo. [...] O português angolano do CamaradaBotardov era mesmo muito
engraçado, mas nós tínhamos conseguido descodificar (ONDJAKI, 2009, p. 24).

A personagem CamaradaBotardov (apelido atribuído pelas crianças) é um oficial


soviético, Bilhardov, encarregado da obra de construção do MAAN. Ele frequenta diariamente
a casa da avó do narrador e pretende levá-la para a sua terra no “tão-longe” para conhecer a
neve. É na oralidade que Ondjaki recolhe o material linguístico que concede ao conto e ao
230

romance o tom de contação para a estória do MAAN, que começou a ser construído ainda
durante a infância do autor. O segredo, afirma o narrador do romance, é seguir “escutando
estórias para dar a ler a história”. A ênfase concedida à memória coletiva, aos espaços da
infância e à relação afetiva entre crianças, avós, amigos e vizinhos caracteriza na literatura
angolana a ideia de família extensiva.
Observa-se nas narrativas que essas relações sociais marcadas de afeto representam
uma grande família que ultrapassa a ascendência biológica. A literatura do autor valoriza o
tempo de antigamente (da infância) e demonstra que são estórias ficcionais
recolhidas/inventadas sobre a sua própria experiência da infância, vivida num bairro pacato, de
casas com quintais amplos, quando todos se conheciam. São estórias sobre o tempo que os
mais-velhos podiam dar conselhos e os mais-novos nutriam respeito. São estórias sobre o tempo
que os mujimbos (boatos/fofocas) sobre a vida alheia produziam efeito porque a vida no bairro
era coletiva. São estórias de antigamente quando as personagens compartilhavam relatos,
momentos e experiências, seja para dividir um lanche, o café da tarde, uma boa estória, e
podiam reunir a família, amigos e vizinhos porque a vida urbana era ditada por uma outra
ordem. As narrativas demonstram que tanto as relações familiares quanto as sociais eram
marcadas de coletividade e solidariedade, pois um ajudava o outro no tempo difícil da guerra,
de constantes faltas de abastecimento de alimentos e de água em plena capital Luanda.
Apesar de existir nos textos literários marcas de violências causadas pelo contexto
duradouro da guerra civil, a ficção do autor demonstra que conflitos históricos, políticos e
sociais que afetam o ser humano podem ser tratados com lirismo, humor e sobretudo com
esperança. A técnica de criar meninos narradores que relatam suas versões sobre o
passado/história (de Angola) permite ao autor tratar com leveza assuntos de teor político.
Ondjaki produz uma escrita em estado de infância – não no sentido de imaturidade – pela
maneira como brinca com a linguagem, fazendo da língua material para experiências lúdicas.

Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, V.I.
São Paulo: Brasiliense, 1994 (p.197-219).

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da Literatura Angolana. 4ª Ed. União dos Escritores


Angolanos, Luanda, s/d.
231

FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Vol. I e II. Portugal:


Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

ONDJAKI. Bom dia, Camaradas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

ONDJAKI. AvóDezanove e o segredo do soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ONDJAKI. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana
do século XX. 2ª edição. Niterói: EdUFF, Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.

VIEIRA, José Luandino. A cidade e a infância: contos. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
232

MULHERES EXCLUÍDAS DA LITERATURA: ESCRITORAS QUE NÃO FORAM


ACEITAS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS POR SEREM MULHERES,
DENTRE ELAS JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

Karolina Adriana da Silva63


Vanessa Cezar Nunes64

Introdução

A Academia Brasileira de Letras (ABL) reúne escritores e figuras notáveis da


sociedade brasileira. É conhecida por tornar os seus membros imortais, tornando-os
reconhecidos dentro e fora do país. Fazer parte da Academia não é para qualquer um, além de
ter que esperar um membro vir a falecer para um novo assumir o seu lugar, ocorre uma votação
para escolher quem será o próximo imortal, com base em critérios muitas vezes abstratos.
A Academia foi fundada em uma época em que as mulheres eram vistas como pessoas
que serviam apenas para cuidar da família e do lar, e isso excluiu, de forma irremediável, uma
grande escritora da história da literatura brasileira pelo simples fato de ela ser mulher. Júlia
Lopes de Almeida (1862-1934), além de ser uma das fundadoras da ABL – juntamente com
Machado de Assis (1839-1908), José Veríssimo (1857-1916) e outros escritores – era uma
grande escritora do século XIX conhecida e reconhecida por publicar seus romances, crônicas
e outros gêneros textuais, mas que, infelizmente, teve o seu nome removido da lista dos
fundadores da Academia e a cadeira que seria sua ocupada pelo marido, Filinto de Almeida
(1857-1945), tendo em vista que ela não poderia ocupar por ser mulher.
O objetivo deste artigo é expor o apagamento da literatura feminina da história da
literatura brasileira por questões sociais da época, impossibilitando que diversas escritoras,
assim como a escritora Júlia Lopes de Almeida, se tornassem consagradas ou pelos menos
conhecidas atualmente como os demais escritores que fizeram – e ainda fazem – parte da
Academia são.
Analisamos duas obras literárias para expor esse apagamento, uma delas foi o romance
O Cortiço, publicado em 1890, de Aluísio Azevedo (1857-1913), escritor fundador da Cadeira
4 da ABL, e também o romance A falência, publicado em 1901, de Júlia Lopes de Almeida.
Fizemos uma leitura atenta das obras, registrando as principais características presentes em cada
uma delas para podermos comparar e identificar as suas principais semelhanças e diferenças.

63
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas (UFSC). E-mail: karolina.adrianadasilva@gmail.com.
64
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas (UFSC). E-mail: vanessacezarnunes@gmail.com.
233

Nossa intenção com essa análise não foi questionar a causa pela qual a escritora foi rejeitada na
Academia e o escritor não, até porque já se sabe a razão, mas sim, inquirir o porquê de, em
pleno século XXI, ainda não ter ocorrido uma revisão na lista de fundadores da Academia,
substituindo o nome do marido pelo o de Júlia Lopes de Almeida, e também questionar a
circunstância de atualmente somente cinco dos quarenta membros da ABL serem mulheres.

Júlia Lopes de Almeida e a Academia Brasileira de Letras

A Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 no Rio de Janeiro, conta


atualmente com quarenta membros, dentre eles escritores, jornalistas, professores e até
políticos. A Academia contém quarenta cadeiras que, na época de sua fundação, foram
ocupadas pelos escritores fundadores. Cada membro fundador escolheu um escritor para o
homenagear, os chamados patronos. À medida que os escritores fundadores foram falecendo,
novos membros foram ocupando os seus lugares. Até chegarmos a hoje, em que, dos quarenta
membros da Academia, somente cinco são mulheres, sem contar que nenhum deles é negro.
Quando da fundação da Academia, todas as suas cadeiras foram ocupadas por homens,
uma vez que mulheres não eram permitidas, de acordo com o “[...] art. 2.º dos Estatutos, dentre
os brasileiros, do sexo masculino, que tenham publicado, em qualquer gênero de literatura,
obra de reconhecido mérito, ou, fora desses gêneros, livros de valor literário” (FANINI, 2010,
grifo nosso). Somente 80 anos após a sua fundação que uma mulher entrou para a Academia,
sendo a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) a primeira mulher a ocupar uma cadeira na
ABL, ela que foi a quinta ocupante da Cadeira 5, que antes era ocupada por Candido Motta
Filho (1897-1977). Quantas escritoras se perderam nesses 80 anos em que uma mulher não
pôde se tornar imortal? É uma perda incalculável.
Por não admitirem mulheres na Academia, diversas escritoras perderam a chance de
se tornarem imortais, dentre elas a escritora Júlia Lopes de Almeida que, além de ser uma ótima
pretendente para ocupar a cadeira, foi uma das fundadoras da Academia. A escritora Júlia Lopes
de Almeida, assim como Machado de Assis, Aluísio Azevedo e diversos outros escritores
fundadores da Academia, tinha grande reconhecimento por sua literatura na época. Júlia Lopes
de Almeida foi uma importante contista, romancista, cronista, teatróloga, poeta, tradutora e
jornalista dos séculos XIX e XX. Nascida no Rio de Janeiro, a escritora publicou, em sua
maioria, romances e contos, dentre eles o livro que é considerado sua obra-prima, o romance A
falência. Inicialmente, seu nome constava na lista dos fundadores da ABL, mas logo foi
omitido. Essa omissão resultou no apagamento da escritora na história da literatura, tornando-
234

a cada vez menos conhecida e lida, e seus livros cada vez menos publicados. Diversos livros
importantes da história da literatura brasileira não citam em momento algum a escritora, como
se ela não tivesse existido ou não tivesse feito parte da Academia e da história literária brasileira,
conforme afirma Ruffato (2012) em artigo no Jornal Rascunho:

Um dos casos mais graves de omissão da ensaística brasileira, na minha opinião, é o


da escritora Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) [...] Seu nome não consta da
História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi[1], um dos maiores
sucessos editoriais junto ao público universitário; nem da História da literatura
brasileira em cinco volumes, de Massaud Moisés[2]; nem dos seis volumes de A
literatura brasileira, de vários autores[3]; tampouco a encontramos na extensíssima
A literatura no Brasil, seis volumes dirigidos por Afrânio Coutinho e Eduardo Faria
de Coutinho[4]; nem nos dois tomos de A literatura brasileira — origens e unidade,
de José Aderaldo Castello[5] [...] (RUFFATO, 2012, grifo do autor)

Pode-se citar aqui, complementando a citação à Ruffato, A literatura brasileira (1879),


de Sílvio Romero (1851-1914) e A literatura brasileira (1895), de Múcio Teixeira (1857-1926),
que não trazem em momento algum o nome da escritora. São vários os livros de história da
literatura que não a citam, porém, deve-se atentar ao fato de que é somente em 1886 que Júlia
Lopes de Almeida se lança como escritora, em Lisboa.
O nome Júlia Lopes de Almeida começa a aparecer nos livros de história literária a
partir de 1950, 16 anos após sua morte, com a primeira publicação de História da literatura
brasileira – prosa de ficção de 1870 a 1920, de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), depois em
História da inteligência brasileira, de Wilson Martins (1921-2010), em 1976-78, seguido de
Escritoras brasileiras do séc. XIX, de Zahidé Lupinacci Muzart (1939-2015), que teve sua
segunda edição em 2000 e em História das mulheres no Brasil, de 2004, organizado por Mary
Del Priore.
A obra da escritora contém críticas à sociedade da época, tratando de temas como a
abolição da escravidão, racismo, religiosidade e a emancipação feminina.

Tivesse Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) se limitado a colaborar em jornais e


revistas, sempre defendendo a importância da educação das crianças e a valorização
do papel da mulher na sociedade, já lhe caberia o honroso lugar de uma das mais
importantes vozes feministas brasileiras (RUFFATO, 2012).

No livro de João do Rio (1881-1921), O momento literário, que agrupa uma série de
entrevistas com diversos escritores, em sua maioria membros da Academia Brasileira de Letras,
há um trecho de uma conversa com Filinto de Almeida, marido da escritora, em que ele afirma
ao entrevistador reconhecer que sua esposa era uma escritora muito melhor do que ele e que era
235

ela quem devia fazer parte da Academia e não ele, após o entrevistador afirmar que “Há muita
gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro” (RIO, 1908, p. 11, grifo
nosso), e ele diz “Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era
eu quem devia estar na Academia, era ela” (RIO, 1908, p. 11). Nota-se que, ao falar de Júlia
Lopes de Almeida, o autor do livro e também entrevistador, João do Rio, apesar de falar que há
muita gente que considera a escritora como sendo pioneira no romance brasileiro, ele utiliza a
expressão “o primeiro romancista”, equiparando a escritora aos escritores da época, como se
quisesse dizer que ela, mesmo sendo uma mulher, escrevia tão bem quanto os homens, abrindo
espaço para outra discussão sobre e gênero.
José Veríssimo em Livros e literatos, reconhecendo a importância da escritora, afirma
que:

Depois da morte de Taunay, Machado de Assis e de Aluísio de Azevedo, o romance


no Brasil conta apenas com dois autores de obra considerável e de nomeada nacional
– D. Júlia Lopes de Almeida e o Sr. Coelho Neto, eu, como romancista, lhe (sic)
prefiro de muito D. Júlia Lopes (VERÍSSIMO, 1936, p. 15).

Affonso Celso (1860-1938) em artigo na Revista Academia Brasileira de Letras, fala


que Júlia Lopes de Almeida:

[...]foi mestra na acepção mais elevada da palavra, o que quer dizer propiciadora de
nobres ensinamentos, modelo de raras virtudes, irradiadora de salutar influência.
Mestra de língua e mestra de vida, quer pela excelência de sua produção literária, quer
pela pureza sem jaça de sua existência (CELSO, 1935, p. 259).

Análise dos romances

O romance A falência, publicado em 1901 – ano em que: se estabelece a Política dos


Governadores e a Política do Café com Leite que teve como governante Campos Sales; Santos
Dumont voa com seu dirigível, N-6, na cidade de Paris ao redor da Torre Eiffel e ganha o
Prêmio Deutsch; é publicado Poesias Completas de Machado de Assis e falece a poetisa
brasileira Auta de Souza (1876-1901) – conta a história de Francisco Teodoro, imigrante
chegado ainda criança de Portugal que alcança a fortuna e se torna dono de uma das casas mais
ricas no comércio de café do Rio de Janeiro. Com ares de um homem satisfeito, mora com a
família em uma mansão na praia de Botafogo. Um homem preocupado em acumular riquezas
para ostentar luxo e poder ignorar o que ocorre sob seu teto. A mulher, Camila, vive para festas
e para o amante, Dr. Gervásio. Por conta de negócios mal sucedidos, Francisco Teodoro acaba
236

falindo e cometendo suicídio. Empobrecida, a família do português muda-se para uma casa no
subúrbio, enquanto Camila descobre que o amante havia mentido o tempo todo.
A ação do romance transcorre em 1891, ano “em que o preço do café assumira
proporções extraordinárias” (p. 28), logo após a implantação da República, época também das
grandes especulações financeiras da Bolsa de Valores, período conhecido como
“Encilhamento”. Segundo a Companhia das Letras (2020):

Ícone do modernismo brasileiro, Júlia Lopes de Almeida consegue oferecer um


notável panorama das repercussões do boom do café no final do século XIX na
formação da nascente burguesia urbana, e também retratar, com impecável maestria,
os meandros de uma sociedade machista e hipócrita, em que subsistem as relações
escravocratas e aprofundam-se as desigualdades sociais (GRUPO COMPANHIA
DAS LETRAS, 2020).

As críticas à sociedade da época, à estrutura familiar, ao racismo e ao modo como as


mulheres eram vistas e tratadas aparecem ao longo de toda a narrativa, como é possível observar
em: "[...] uma esposa dedicada e meia dúzia de filhos [...]" (p. 39), "[...]aquela mulher, talhada
para rainha, passasse os dias a picar os dedos na agulha ou a calejar as mãos com o uso da
vassoura ou ferro." (p. 40), "[...] trabalhar é bom para os homens [...]” (p. 40), "[...] mãos
desenvolvidas pelo uso da vassoura e da cozinha." (p. 83) e "[...] a vida foi feita para as mulheres
[...] o lar é seu altar; deslocada dele não vale nada!" (p. 69).
Júlia Lopes de Almeida contribuiu em várias revistas femininas escrevendo
principalmente sobre a condição da mulher naquele tempo. Na revista A Mensageira, onde
colaborou por pouco mais de dois anos, escreveu o seguinte texto de apresentação da revista,
mostrando o seu posicionamento para as questões que traz em suas obras, intitulado Duas
palavras:

A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que
pode fazer mais do que até aqui tem feito. [...] Esta revista, dedicada às mulheres,
parece-me dever dirigir-se especialmente às mulheres, incitando-as ao progresso, ao
estudo, à reflexão, ao trabalho e a um ideal puro que as nobilite e as enriqueça,
avolumando os seus dotes naturais. // Ensinará que, sendo o nosso, um povo pobre, as
nossas aptidões podem e devem ser aproveitadas em variadas profissões remuneradas
e que auxiliem a família, sem detrimento do trabalho do homem (ALMEIDA, 1897,
p. 5-7).

Um outro romance muito semelhante ao A falência da escritora Júlia Lopes de


Almeida, é o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. O romance conta a história de João
Romão, um português que vem para o Brasil a fim de encontrar uma vida melhor e que se torna
dono de uma pedreira, de uma venda e de algumas casas com o auxílio de Bertoleza, uma
237

escrava que pensa que está liberta. Miranda, outro português que vive em um dos sobrados ao
lado do cortiço, acaba fazendo inveja aos olhos de João Romão e ambos acabam entrando em
uma luta por conta de um pedaço de terra. Assim que Miranda passa a ser barão, João Romão
se aproxima dele e tem intenções de casar com a filha do homem, Zulmira. Para não ter
Bertoleza como “estorvo”, João Romão entrega a escrava que estava sendo considerada como
fugida, e ela, para não regressar à vida de escravidão, tira a própria vida.
Enquanto A falência traz críticas à sociedade, à estrutura familiar, ao machismo, ao
racismo e à ganância, O Cortiço expõe a miséria e a promiscuidade dos habitantes do lugar, que
são descritos como preguiçosos e viciosos. O autor relata a questão da prostituição, violência,
homossexualidade e os casos de traições, comportamentos tidos como comuns da baixa classe
social. Enquanto o cortiço é descrito dessa maneira, o sobrado é exibido ao público leitor como
um lugar onde a vida é tranquila, onde há pessoas cultas e não há trabalho pesado, pessoas mais
afortunadas e de classe média. Pode-se dizer que a obra faz uma crítica ao modo como cada
uma das classes é representada. É visível uma representação desequilibrada e cheia de
diferenças entre ricos e pobres. O autor quer demonstrar que sempre haverá locais “corruptos”
onde acontece tudo de errado e que, por isso, sempre haverá desigualdade. O período em que
ocorre a obra não é determinado ao longo da narrativa, porém sabe-se que se passa no Rio de
Janeiro, em pleno século XIX, tempo em que a cidade era a sede do império e se tornava, desta
forma, a cidade brasileira inicial a ser dita como “moderna”. A obra expõe a evolução do
ambiente urbano daquela época, o princípio de uma recente classe burguesa a qual vivia
paralelamente com a miséria total.
É importante ressaltar, após fazer essa conexão entre os romances, que em O Mulato
(1881), Aluísio Azevedo tem tendências abolicionistas assim como Júlia Lopes de Almeida em
A família Medeiros (1891). Além disso, a escritora escreve um de seus romances abordando a
questão dos cortiços antes mesmo de Aluísio Azevedo, no livro Memórias de Marta (1888-
1889). Essa ligação entre Aluísio Azevedo e Júlia Lopes de Almeida acaba evidenciando cada
vez mais a questão do machismo daquele tempo, que tirou de Júlia Lopes de Almeida a chance
de ser tão conhecida como Aluísio atualmente. A literatura dos dois se aproxima em diversos
momentos e em diversos modos, não havendo como falar que a obra da escritora não é boa ou
não é merecedora de ter o seu espaço na Academia.

Considerações Finais
238

O objetivo deste artigo foi indagar o motivo pelo qual ainda não houve uma ratificação
na lista de fundadores da ABL para incluir o nome de Júlia Lopes de Almeida, trazer a escritora
à tona novamente e levantar o questionamento sobre o porquê de somente cinco dos quarenta
membros da ABL serem mulheres, considerando que se passaram 80 anos desde a sua fundação
até o empossamento da primeira mulher na Academia e que desde então, 124 anos depois, as
mulheres ainda têm esse espaço tão reduzido.
Refletir a respeito dessas questões nos dias atuais é importante não só para
reconhecermos a importância de Júlia Lopes de Almeida na história da literatura brasileira, mas
também para nos fazer refletir sobre o próprio apagamento, sobre quantas outras mulheres
também tentaram e não conseguiram se tornar imortais fazendo parte da Academia e hoje são
esquecidas, sobre quanta literatura se perdeu por conta disso.
Júlia Lopes de Almeida escreveu os romances: A família Medeiros (1891), Memórias
de Marta (1889), A viúva Simões (1895), A falência (1901), A intrusa (1905), Cruel amor
(1908), Correio da roça (1909), A Silveirinha: Crônica de um verão (1912), A casa verde
(1898) e Pássaro tonto (1934); os contos: Traços e iluminuras (1887), Ânsia eterna (1903), A
Isca (1923); as crônicas: Eles e elas (1907), Livro das Noivas de receitas e conselhos
domésticos (1896), Livro das Donas e Donzelas (1906); os livros infantis e juvenis: Contos
Infantis (1886), História da nossa terra (1907), Era uma vez (1917), A árvore (1916); as peças
de teatro: A herança: peça em um ato (1909), Teatro (1917); peças em manuscritos: O Caminho
do Bem (1883), A Última Entrevista; ensaios e conferências: Brasil (1922), Cenas e paisagens
do Espírito Santo (1919), Maternidade (1925), Oração a Santa Dorotéia (1923), Corimbo
(1918); traduções: Les Porcs (1929), Les Roses (1928); e outros escritos: Jardim florido,
jardinagem (1922) e Jornada no meu país (1920).
Júlia Lopes de Almeida escreveu em diversos jornais: Almanaque - Gazeta de Notícias
(1897-1898), Almanaque Literário de São Paulo (1884), Gazeta de Campinas (18881), A Bruxa
(1897), A Estação (1888-1891), A Semana (1885-1887, 1894), Correio de Campinas (s.d),
Diário de Campinas, Estado de São Paulo, Gazeta de Notícias (1888-1894), Ilustrada Brasil-
Portugal (1899-1914), Jornal do Comércio, Kosmos, O Mundo Literário, O País (1907-1912),
Revista Brasil, Revista dos Novos (1895-1886) e Tribuna Liberal (1888-1889).
Júlia Lopes de Almeida colaborou nas revistas femininas: A família, São Paulo e Rio
de Janeiro (1888-1889), A mensageira, São Paulo (1897-1900), Nosso Jornal, Rio de Janeiro
(1919-1920) e Revista Feminina, São Paulo (1915-1917).

Referências
239

ALMEIDA, Júlia Lopes de. Duas palavras. A Mensageira, São Paulo, v. 1, n. 1, out. 1897.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Secretaria de Estado da Cultura, 1987.
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A falência. Prefácio de Luiz Ruffato. 1. ed. São Paulo: Penguin
Classics Companhia das Letras, 2019.
AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. 33. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 39. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira — origens e unidade. 2. ed. São Paulo:
Edusp, 1999.
CELSO, Affonso. Homenagem à D. Júlia Lopes de Almeida. Revista Academia Brasileira
de Letras, v. 48, 1935, p. 259.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo Faria de. A literatura no Brasil. 3. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1986.
DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-
2004. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846066.pdf. Acesso: 4 jun.
2019.
FANINI, Michele Asmar. As mulheres e a Academia Brasileira de Letras. História, São
Paulo, v. 29, n. 1, jan. 2010. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
90742010000100020. Acesso em: 4 jun. 2019.
FERREIRA, Ivanir. Escritora mais publicada da Primeira República foi vetada na ABL.
Jornal da USP, São Paulo, ago. 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=103858.
Acesso em: 4 jun. 2019.
GRUPO COMPANHIA DAS LETRAS. A falência. 2020. Disponível em:
https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=85233. Acesso em: 13 jun.
2019.
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 3. ed. Paraná: Editora UEPG, 2010.
MASSUELA, Amanda. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro. Revista CULT, São
Paulo, fev. 2018. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-
escreve-o-autor-brasileiro/. Acesso em: 4 jun. 2019.
MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras Brasileiras do século XIX. 2. ed. Florianópolis:
Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1989.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira – prosa de ficção de 1870 a
1920. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
PRIORE, Mary Del et al. História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira: Suas relações com a portuguesa; o Neo-
realismo. Rio de Janeiro: Revista Brasileira, 1879.
RUFFATO, Luiz. Júlia (1). Disponível em: http://rascunho.com.br/julia-1/. Acesso em: 4 jun.
2019.
240

RUFFATO, Luiz. Júlia (2). Disponível em: http://rascunho.com.br/julia-2/. Acesso em: 4 jun.
2019.
RUFFATO, Luiz. Júlia (3). Disponível em: http://rascunho.com.br/julia-3/. Acesso em: 4 jun.
2019.
TEIXEIRA, Múcio. A literatura brasileira: Síntese histórica. Rio de Janeiro: Revista
Brasileira, 1895.
VERÍSSIMO, José. Letras e literatos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
241

O SEQUESTRO DO FANTÁSTICO NA LITERATURA BRASILEIRA

Karla Menezes Lopes Niels

Mas, afinal, o que é fantástico?

Fantástico, para o senso comum, é aquilo que só existe num mundo de imaginação,
muitas vezes relacionado ao que é extraordinário, ao prodigioso. Talvez, por isso,
recorrentemente apareça relacionado simplesmente à fantasia, quando não como sinônimo de
excêntrico, mirabolante e exagerado (VOLOBUEF, 1999). O que obviamente não dá conta da
complexidade em torno do termo para os Estudos Literários.
O termo fantástico, no campo dos Estudos Literários, foi usado, e ainda é, para
designar as mais diferentes manifestações literárias, às vezes de gêneros não afiliados entre si,
dificuldade que remonta às diferentes concepções filosóficas do final do século XVIII que lhe
atribuíram os mais diversos sentidos (CESERANI, 2006). Sem contar ainda os problemas
relacionados à tradução do termo de uma para outra língua europeia (BATALHA, 2011, 2012;
CAMARANI, 2014).
O que percebemos é que a categorização do fantástico, desde a publicação de
Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov (2012), não tem sido algo inequívoco
e, muito menos, pacífico no campo dos Estudos Literários. Há oscilações, convergências e
divergências entre os diversos críticos e teóricos que têm se dedicado ao estudo do fantástico.
Os estudos do gênero em causa, desde o ensaio do franco-búlgaro, parecem seguir duas
tendências contrapostas. A primeira limita o gênero a determinadas estratégias narrativas e
temas, localizando-o historicamente no século XIX. A segunda o alarga de forma a abranger
outros períodos históricos, bem como outros gêneros, gerando uma espécie de arquigênero
(CESERANI, 2006). Comentamos a seguir alguns desses pontos de vista.
Grosso-modo, Todorov (2012) define a essência do fantástico na narrativa ficcional
como um efeito decorrente de um acontecimento aparentemente sobrenatural, mas que se
mantém na interseção entre o real e o imaginário, entre o sólito e o insólito. Que gera um
sentimento de hesitação tanto na personagem quanto no leitor. A incerteza e a dúvida acerca da
natureza do fenômeno narrado é o que definiria o fantástico enquanto gênero literário. Gênero
que estaria em constante flutuação entre outros dois, a saber, o estranho e o maravilhoso.
O português Filipe Furtado (1980, 2012), assim como Todorov (2012), entende que o
fantástico se configura pela manutenção da ambiguidade narrativa. Enquanto houver dubiedade
242

entre duas situações limítrofes, isto é, a personagem puder hesitar entre as possibilidades natural
e sobrenatural, haverá fantástico. A delimitação teórica feita tanto pelo português quanto pelo
franco-búlgaro, no entanto, é demasiadamente estreita, não dando conta, portanto, da vastidão
de textos que podem ser lidos como fantásticos. Entrementes, Furtado admite que “as obras
literárias [estariam] em permanente flutuação entre vários gêneros sem alguma vez se permitir
fixarem-se definitivamente num deles” (FURTADO, 1980, p. 77). Por isso, anos após a
publicação de A construção do fantástico na narrativa, apresentará outra noção de fantástico,
que nos parece mais adequada, especialmente quando consideramos a estética objeto de nosso
estudo para além do fazer literário oitocentista. Trata-se do modo fantástico – um macrogênero
que abarcaria todos os gêneros que esteticamente se ocupam da fantasia em sentido lato, ou
seja, as narrativas maravilhosa, gótica, fantástica, estranha, sobrenatural, absurda, real mágica,
real maravilhosa, real animista, ficção científica, além dos romances policiais e de mistério
(FURTADO, 2012).
Irène Bessière (2009), por seu turno, parece vislumbrar o fantástico não exatamente
como um gênero ou uma modalidade literária, mas como um modo discursivo que privilegia o
trabalho com a incerteza. Seria, portanto, uma lógica narrativa que é tanto formal quanto
temática e que, surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção
pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário coletivo. Sendo assim, a estrutura que
enforma o fantástico não é estanque e muito menos imutável, o que Louis Vax (1972), antes de
Todorov, já considerava.
Filipe Furtado (2012), ao discorrer sobre o modo fantástico, vê nesse fazer literário
mais do que a possibilidade de hesitar entre uma explicação natural ou sobrenatural para dado
acontecimento, mas a necessidade primeira da manifestação de um evento sobrenatural, ou
metaempírico como prefere chamar, relevante para o enredo e que, sobretudo, o torne ambíguo.
Furtado (2020) esclarece que o conceito de metaempírico, por ele proposto ainda na década de
1980,
procura sobretudo caracterizar uma vasta esfera semântica ocorrente no domínio
específico da ficção literária. Com efeito, reporta-se não apenas ao sobrenatural
(religioso ou tradicional), com surgimento frequente em textos do maravilhoso ou
do fantástico, mas também à imensa e variada temática da ficção científica ou da
fantasia histórica. (FURTADO, 2019, s/p)

Para Maria Cristina Batalha (2011), o fantástico deve ser entendido como um gênero
em que o real e o irreal se combinam e assim provocam incertezas acerca das leis de
casualidades do mundo empírico do leitor. Neste contexto, a principal diferença de um texto
fantástico para o de outros gêneros seria o pacto de leitura estabelecido com o leitor. Por
243

exemplo, o estranho (no sentido freudiano) está presente no romance policial e de mistério, na
ficção científica, no conto de fadas, como também no fantástico. A anormalidade dos eventos
nesses gêneros, com exceção ao fantástico, ocorre sem que haja alteração da noção de
causalidade apresentada como natural. No fantástico, por outro lado, há um rompimento com o
real, o que o torna, portanto, quase insuportável. A dúvida acerca da veracidade dos fatos é tão
forte que, para o leitor, é como se ocorresse, nas palavras de Batalha, um “curto circuito” nas
relações de causa e efeito estabelecidas pela narrativa.
Cumpre ressaltar que, a despeito da oscilação de nomenclaturas – para Todorov
(2012), hesitação; para Vax (1972) e Bessière (2009), incerteza; para Furtado (1980),
ambiguidade – o cerne da ideia é sempre o mesmo: abolir a concepção que o leitor tem acerca
do real com a finalidade de inquietá-lo com a possibilidade do impossível, e do inconcebível, o
que se coaduna, portanto, com a perspectiva de David Roas (2012). Nesse caso, a hesitação de
que fala Todorov (2012) funcionaria, ao nosso ver, como um mecanismo de mobilização do
leitor que, quando diante de um fenômeno que excede a sua compreensão, compartilharia da
hesitação da personagem.
Por fim, é pertinente considerar o que Flavio García (2014, 2020) chama de insólito
ficcional, uma categoria ainda mais abrangente e acolhedora do que o modo fantástico proposto
por Furtado, posto tratar-se de uma macro categoria, ou nas palavras do mesmo, de uma
“categoria operacional” (GARCÍA, 2014) que abrange as diversas vertentes possíveis da
literatura de cunho fantástico:

Tratar-se-ia da manifestação, em uma ou mais categorias básicas da narrativa –


personagens, tempo, espaço – ou na ação narrada – sua natureza –, de alguma
incoerência, incongruência, fratura de “representação” – no sentido mais primário
de mímesis – referencial da realidade vivida e experienciada pelos seres de carne e
osso em seu real quotidiano, como, por exemplo, mimetiza a verossimilhança real-
naturalista. Nesse sentido, pode-se dizer que existem, no mínimo, dois sistemas
narrativos literários: um real-naturalista, comprometido com a representação
referencial da realidade extratextual; outro insólito – “não real-naturalista” –, que
prima pela ruptura com a representação coerente, congruente e verossímil da
realidade extratextual (GARCÍA, 2014, p. 181).

García (2019), a partir da etimologia da palavra, aponta para o fato de que o insólito
seria aquilo que não é comum, usual, recorrente. Sendo assim, mais do que a ocorrência de um
evento sobrenatural, ou metaempírico como sugere Filipe Furtado (1980, 2012, 2019), a
narrativa insólita seria aquela que através de inúmeras estratégias narrativas apresenta “traços
que borram, rasuram, arranham, fissuram, quebram, rompem, em diferentes graus, aspectos
advindos de seus referentes buscados na realidade extratextual de que se nutre” (GARCÍA,
244

2019, s/p).
Entendendo, portanto, o fantástico como esse enorme arquigênero, que abarca desde o
gótico à ficção científica, é que falaremos sobre o sequestro desse na literatura brasileira ainda
no século XIX.

Obstrução ou sequestro?

Murilo Gabrielli, em 2004, defendeu a tese de que a literatura de cunho fantástico (ou
insólita) brasileira teria sido obstruída ainda em seu nascedouro. Para Gabrielli (2004), a
publicação póstuma de Noite na Taverna e Macário, de Álvares de Azevedo, teria dado início
a um fazer literário de estética fantástica no Brasil que, na poesia, seria marcado pelo byronismo
e pelos exageros da Sociedade Epicureia65. Se bem vista na poesia, na prosa tal estética seria, a
priori, rechaçada pela crítica.
É fato que durante o Romantismo, o sistema narrativo-literário real-naturalista, nas
Américas como um todo, ganhou supremacia sobre qualquer outra vertente. (PRADA
OROPEZA, 1999; FUENTES, 2000). No caso brasileiro, é importante lembrar que o
movimento da independência durante o século XIX firmou o compromisso de, por meio da
literatura, afirmar a identidade brasileira e, consequentemente, inventariar o nosso passado
cultural, como, aliás, foi próprio da estética romântica em várias partes do mundo. Aqui, mais
acentuado dado à necessidade de nos desvincularmos culturalmente da metrópole, Portugal.
Nesse respeito, retratar por meio da literatura as diversas regiões do neonato país, como forma
de afirmação das particularidades da terra e de seu povo, como fez José de Alencar, era
imperativo.
É preciso também lembrar que Álvares de Azevedo era um autor ainda muito jovem
que, apesar de genial, ainda havia de amadurecer sua obra. No entanto, com sua morte precoce,
perdeu a oportunidade de fazê-lo e, quiçá, de levar à cabo seu projeto literário como esboçado
em Literatura e Civilização em Portugal. Ademais, apenas dois anos após a publicação
póstuma de Noite na Taverna e Macário, viria a público os primeiros capítulos de O Guarani
(1857), de José de Alencar, esse fruto da querela em torno do poema épico Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves de Magalhães. O romance, inclusive, teria sido um sucesso de público,

65
A Sociedade Epicureia foi um grupo criado em 1845, composto por estudantes da Faculdade de Direito de São
Paulo. Era liderado pelos seus fundadores, a saber, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e o próprio Álvares de
Azevedo. Em suas reuniões, segundo alguns relatos duvidosos, praticavam-se orgias e outras depravações
inspiradas na literatura byroniana.
245

tal qual os contos do jovem Azevedo (TAUNAY, 1923). No entanto, enquanto o cearense caía
nos braços da crítica, o paulista nem tanto.
A concorrência esmagadora do projeto alencariano, bem como a estética por ele
apontada naquele momento, sufocaria uma estética então nascente – a fantástica –, posto que,
qualquer texto que divergisse da estética anunciada pela obra do cearense não tinha mérito
estético para compor o cânone. O que fica evidente na apreciação da fortuna crítica do jovem
Azevedo, especialmente, nos comentários feitos aos contos e ao drama pela crítica e
historiografia oitocentista que concederam pouco, ou nenhum, espaço a essa parte de sua obra.
Vejamos, à guisa de exemplo, o que falou Ferdinand Wolf naquela que foi uma das
primeiras historiografias da literatura brasileira:

Macário e Noite na taverna, em prosa e que têm por heróis verdadeiras caricaturas
meias Fausto, meio Don Juan, delirando como loucos, e expondo aos olhos um
cinismo aborrecido. Suas expressões são a um tempo de uma sentimentalidade
procurada e de uma rudeza de mau gosto, a dicção é amaneirada. [...] são na verdade
aberrações de espírito, sem maturidade, transviado por leituras sem escolha e agitado
por uma ambição enferma [...] (WOLF, 1863, p. 317).

Poucos anos após, Joaquim Norberto de Sousa Silva, em discurso no Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro, depois publicado como prefácio da 3ª edição das Obras
Completas de Álvares de Azevedo, apesar de reconhecer a originalidade do jovem Azevedo na
composição dos contos e do drama, não se esquiva da crítica negativa ao referir-se,
especialmente aos contos, como “uma sequência de narrações monstruosas [...]”, em que
“amontoam-se as inverossimilhanças” (SILVA, 2005, p. 160,161).
Outro a tecer um juízo negativo sobre a prosa de Azevedo seria Joaquim Nabuco. Em
1875, publica, no folhetim d’O Globo, o artigo “Álvares de Azevedo”, uma análise da terceira
edição das Obras Completas. No texto, diminui a produção em prosa de Álvares de Azevedo,
argumentando que seria melhor para a memória do jovem paulista que esta parte de sua obra
fosse esquecida. Há, sobretudo, um pequeno detalhe no texto que chama atenção, no que diz
respeito à recepção literária da obra, quando Nabuco lamenta o fato de haver estudantes que
soubessem “de cor nas Academias a Noite na taverna” (NABUCO, 1875, p. 8). O que
demonstra o gosto do público leitor da época por uma literatura de cunho mais imaginativo e
menos realista, o que ia na contramão da crítica e da historiografia da época.
Mesmo Silvio Romero, um grande elogioso da lírica de Azevedo, faz considerações
muito superficiais sobre sua prosa, mas ainda assim atesta o quanto essa era afamada pela crítica
de outrora (ROMERO, 1888). Da mesma maneira, ocorre posteriormente com José Veríssimo
246

que dirá que a prosa de Álvares de Azevedo é a parte de sua obra “que certamente não merece
o apreço e sobretudo a estima, que lhe deram” (VÉRÍSSIMO, 1977, p. 32) os leitores.
De fato, essa visão da incipiente crítica e historiografia oitocentista relaciona-se ao
fato de não compreenderem que “Álvares de Azevedo e sua obra estão imersos em um contexto
social e histórico que ultrapassa o contexto brasileiro” (PONCIANO, 2003, p. 9 e 10), e,
sobretudo, com o pouco prestígio que gozou a estética fantástica naquele século.
Em suma, o projeto literário de Alencar, somado à morte precoce de Azevedo e aos
juízos negativos que sua obra de cunho fantástico obteve, teriam sido os principais fatores a
obstruir o livre curso de uma literatura fantástica em nossas Letras. Dado a essa obstrução,
nomes como Lindorf França, Zoroastro Pamplona, Bruno Seabra, Teodomiro Alves Pereira,
Afonso Celso, Tomás Lopes, Rocha Pombo, Rodrigo Otávio, Emília Freitas, Júlia Lopes de
Almeida teriam sido sequestrados de nossa história da literatura (os dois últimos nomes por
motivos que ultrapassam a opção estética de suas obras). E, ainda, nomes que se consagraram
entre nós pela sua estética real-naturalista, tiveram suas obras de estética fantástica igualmente
sequestradas, a exemplo de Fagundes Varela e Franklin Távora.
O primeiro escreveu uma série de contos fantásticos, sob a forma de folhetim, no
Correio Paulistano, a saber, “As ruínas da Glória”, de 9 a 3 de outubro, “Esther”, de 6 a 19 de
outubro, “Inak”, de 20 a 22 de outubro, “As bruxas”, de 26 a 29 de outubro e, por fim, “A
guarida de pedra”, de 30 de outubro a 5 de novembro, de 1861. Contos que só seriam reeditados
no século seguinte. Nem mesmo sua obra completa editada pela Garnier e publicada em 1892,
bem como as edições posteriores, contou com esses contos. Para a crítica e historiografia
daquele século, o autor deveria ser lembrado pela sua lírica, não por sua prosa.
O segundo, no mesmo Correio, publicou o folhetim A trindade maldita: contos de
botequim, de 9 a 12 de abril de 1862, esse uma evidente emulação dos contos da taverna de
Azevedo. Mas, diferentemente de Varela, ou mesmo de Júlia Lopes de Almeida e Emília
Freitas, a Trindade Maldita ainda não contou com nova edição após entrar em domínio público.
Talvez porque a primeira parte desse folhetim esteja perdida, não sendo possível a localizar
nem mesmo na Biblioteca Nacional, onde encontram-se facilmente todas as outras partes do
folhetim.
Entrementes, mesmo aqueles autores canônicos, como Machado de Assis e Aluísio
Azevedo, que não tiveram seus títulos de cunho fantástico obscurecidos porque não
mencionados ou reeditados como no caso dos anteriores, assim como o jovem Azevedo não
escaparam de um certo juízo nefasto que via na literatura de estética fantástica somenos um
fazer menor. Por exemplo, sobre os contos fantásticos de Machado de Assis, Sílvio Romero
247

dirá ter o Bruxo do Cosme Velho “veleidades de pensador, de filósofo, e entende que deve
polvilhar os seus artefatos de humour e, às vezes, de cenas com pretensão ao horrível”
(ROMERO Apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 8).
Sobre os contos e romances de Aluísio Azevedo considerados ‘folhetinescos’, dentre
eles os de cunho fantástico, outro historiador, José Veríssimo, afirmará serem de “pura
inspiração industrial” (VERÍSSIMO, s/a, p.142), sem qualquer valor estético. Juízo, cumpre
ressaltar, que influenciaria a crítica posterior que via nesse fazer do naturalista uma violência
necessária face ao “gosto dos leitores e [às] condições do mercado do livro no Brasil [...] em
razão de sua situação financeira” (MÉRIAN, 1988, p. 436). O que nos leva a pensar hoje em
Azevedo como o autor do Cortiço não como o autor de Demônios, assim como lembramos de
Fagundes Varela por sua lírica, de Franklin Távora por seu regionalismo e de Machado de Assis
por sua crítica social.

Enfim, o resgate.

A despeito da opção de nossa primeira crítica e historiografia literárias, que fizeram


parecer que em terras brasileiras não houve uma literatura de cunho fantástico profícua, desde
fins da década de 1950, temos assistido a um intenso resgate deste fazer literário sequestrado
de nós.
São exemplos deste movimento, as diversas coletâneas de contos fantásticos
brasileiros que se publicaram entre 1959 e 2019 que reuniram contos fantásticos de autores
canônicos e menores, a fim de resgatar essa vertente de nossa literatura que esteve enevoada
por tanto tempo, como O conto fantástico, de 1959, oitavo volume da coleção Panorama do
conto brasileiro organizado por Jerônimo Monteiro; Maravilhas do conto fantástico – antologia
de contos estrangeiros, mas que contém três narrativas brasileiras –, de 1960, organizado por
Fernando Correia da Silva e José Paulo Paes; Obras primas do conto fantástico – antologia de
contos estrangeiros que traz cinco narrativas nacionais –, de 1961, organizado por Jacob
Penteado; Páginas de Sombras: contos fantásticos brasileiros, de 2003, organizado por Bráulio
Tavares; O fantástico brasileiro: contos esquecidos, de 2011, organizado por Maria Cristina
Batalha; Páginas Perversas: narrativas brasileiras esquecidas, de 2017, sob a curadoria de
Maria Cristina Batalha, Júlio França e Daniel Augusto P. Silva; Medo Imortal, de 2019,
organizado por Romeu Martins, reúnem contos de natureza fantástica a fim de resgatar essa
vertente de nossa literatura que esteve oculta por tanto tempo. Por fim, há de se mencionar uma
248

obra resgatada em 2020, não em uma coletânea, mas cuja reedição é de extrema importância
para os Estudos Literários, qual seja, A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas.
É também digno de nota, no sentido de inventariar a literatura fantástica produzida no
Brasil, dos oitocentos à contemporaneidade, uma história concisa do fantástico brasileiro,
publicada em 2018, por Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, intitulado O Fantástico
Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo, título que lista e comenta uma
gama de textos literários nacionais que, em algum momento, foram considerados como
fantásticos no âmbito brasileiro.
Tal movimento de resgate, por fim, tem inflamado os estudos acerca deste fazer
literário e propiciado uma profusão de artigos, dissertações e teses que se voltam para essas
narrativas, antes esquecidas, e, por conseguinte, paulatinamente reparam os males causados
pelo sequestro de outrora.

Referências

BATALHA, Maria Cristina. (org). O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Rio de


Janeiro: Ed. Caetés, 2011.

BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: uma forma mista de caso e advinha. In: Revista
Fronteiraz. São Paulo: PUC-SP. v. 3 – nº 3, 2009.

CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2014.

CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. de Nilton César Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR,
2006.

FUENTES, Carlos. “O milagre de Machado de Assis”. Folha de São Paulo (Caderno +mais!),
01 out. 2000. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/inde01102000.htm,
acesso em: 08/07/2013.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980.

FURTADO, Filipe. “Fantástico (gênero)”; “Fantástico (modo)”. In: CEIA, C. (org.). E-


Dicinário de termos literários. Disponível em: http://www.edtl.com.pt, acesso em:
24/07/2020. [2012]

GABRIELLI, Murilo Garcia. A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na


literatura brasileira. 2004. Tese (Doutorado em Letras) Instituto de Letras, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2004.

GARCÍA, Flavio. Entrevista com o professor Flavio García acerca da literatura insólita
em Língua Portuguesa. In: Revista Desassossego. nº. 11, jun. de 2014.

GARCÍA, Flavio. “Insólito”. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO, Filipe;
249

GARCÍA,Flavio; FRANÇA, Júlio (Editores). Dicionário Digital do Insólito Ficcional (e-


DDIF). Rio de Janeiro: Dialogarts. Disponível em
http://www.insolitoficcional.uerj.br/m/medo/ Acesso em 30 nov. 2020. [2019]

MERIÁN, Jean-Yeves. Aluísio Azevedo: vida e obra (1857-1913). Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo Banco Sudameris, 1988.

NABUCO, Joaquim. Álvares de Azevedo. O Globo, Rio de Janeiro, 12 set. 1875. Folhetim
do Globo.

PRADA OROPEZA, Renato. Literatura y realidade. México: Universidad Autônoma de


Puebla, Universidad Veracruzana y FCE, 1999.

PONCIANO, Marcos Rogério Ribeiro. Vapores soturnos: uma análise de Macário e Noite
na taverna, de Álvares de Azevedo. 2003. Dissertação (Mestrado em Letras) Faculdade de
Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003

ROMERO, Silvio. História da Literatura brasileira. Tomo II. Rio de Janeiro: Garnier,
1888.

ROMERO, Silvio. Estudo comparativo de Literatura brasileira apud MAGALHÃES JR, R.


(Org.) Contos fantásticos: conto fantásticos. Rio de Janeiro: Bloch, 1998.

SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. Notícia sobre M. A. Álvares de Azevedo e suas obras.
In: MIRANDA, José Américo; MOREIRA, Maria Eunice; SOUZA, Roberto Acízelo (Org.)
Crítica Reunida 1850-1892. Porto alegre: Nova Prova, 2005.

TAUNAY (Visconde de), Alfredo d'Escragnolle. Reminiscência.

São Paulo: Melhoramentos, 1923.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 2012.

VAX, Louis. A arte e a Literatura fantásticas. Lisboa. Arcádia, 1972.

VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia, 1977.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Ministério da Cultura: FBN, s/d.


Disponível em: http://redememoria.bn.br/wp-content/uploads/2011/12/historia-da-literatura-
brasileira.pdf Acesso em 03/04/2017.

VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no


Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

WOLF, Ferdinand. O Brasil literário. São Paulo: Companhia Nacional, 1955.


250

A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS E TRANSSEXUAIS EM


CONTOS DE RUBEM FONSECA

Renan Ferreira da Silva


Danila Melo de Oliveira

Introdução

O presente trabalho tem por finalidade analisar os contos “Corações solitários”,


“Colégio” e “Cibele” do autor Rubem Fonseca66, buscando refletir, debater e ampliar a inserção
construtiva da sexualidade em personagens homossexuais e transsexuais na literatura brasileira
e estabelecer um paralelo com a sociedade atual. O primeiro conto contempla a obra Feliz Ano
Novo, publicada em 1975, livro que trata a realidade social de forma crítica e extrema, com uma
linguagem precisa, contundente e profundamente coloquial, fazendo com que o leitor reflita
sobre diversas questões sociais, como a desigualdade social. Por esse motivo, a obra sofreu
censura durante o regime militar, sendo proibida de circular no ano seguinte ao seu lançamento
e apenas depois de uma extensa batalha judicial, a referida obra foi liberada para circulação, em
1989. Para Lopes (2012), os contos presentes em Feliz Ano Novo apresentam uma imagem da
sociedade, sem hipocrisia ou disfarces, e ainda salienta que Fonseca “mostra a revolta das
classes social e economicamente menos favorecidas/subalternas. Por outro lado, retrata também
a violência que se instala entre os privilegiados financeiramente.” (LOPES, 2012, p. 8).
Os outros dois contos compõem uma das obras mais recentes do autor, intitulada
Calibre 22 (2017), na qual Fonseca aborda temas que contribuem para uma crítica social, entre
elas a violência instigada pelo racismo e homofobia. Esse estilo impetuoso reproduzido neste
novo livro foi criticado pelo colunista da Folha de S. Paulo, Sérgio Rodrigues (2017), pois
segundo o jornalista: “são poucos os contos nesse livro que podem ser chamados de corretos e
a maior parte vai do trivial ao constrangedor”, e ainda ressalta que: “alguns, como ‘Pródromo’,
‘Outro Anão’ e ‘Ópera, Foder e Sanduíche’, parecem esboços malogrados que o autor resgatou
do lixo para fazer volume” e alega que isso poderia ser caracterizado como uma perda de fé na

66
José Rubem Fonseca nasceu no dia 11 de maio de 1925 em Juiz de Fora, Minas Gerais, o autor formou-se em
direito pela Universidade do Brasil, atualmente Universidade do Rio de Janeiro. Entrou como comissário para a
polícia do Distrito Policial de São Cristóvão, mas trabalhou pouco tempo nas ruas, pois era um policial de gabinete,
que cuidava dos serviços de relações públicas da corporação. Foi escolhido em 1953, para se aperfeiçoar nos
Estados Unidos e durante esse período fez mestrado em Administração na New York University, um ano depois
regressou ao Brasil. Em 1958 foi destituído da polícia e se dedicou integralmente à literatura e estreou na mesma
em 1963, aos 38 anos com o livro de contos Os Prisioneiros. Fonseca é considerado um dos maiores ficcionistas e
prosadores contemporâneos do Brasil, por isso, durante sua trajetória, recebeu vários prêmios importantes, entre
eles a Coruja de Ouro, o Kikito do Festival de Gramado, o Prêmio Jabuti e o Prêmio Camões. O autor morreu no
dia 15 de abril de 2020, acometido de uma grave tuberculose.
251

literatura. Contudo, essa perda de fé é expressa pelo próprio colunista ao instigar uma
abordagem qualificatória entre as narrativas, elegendo-as como “contos ruins”, “contos bons”
ou “contos corretos”, e não buscando enxergar uma literatura crítica e totalmente engajada
histórico-socialmente.
De acordo com Jaime Ginzburg (2012), compreende-se a literatura “como produção
constituída historicamente, e não como objeto fechado em si mesmo” (GINZBURG, 2012, p.
134). Isto é, a literatura estaria ligada a um determinado enfoque histórico de forma natural,
estabelecendo uma inerência entre ambos os campos de estudo, assim, tornando-se também um
mecanismo para dar voz ao povo. Essa ideia também é defendida pelo sociólogo Antonio
Candido, ao nos relatar que “[...] certos elementos da formação nacional (dado histórico-social)
levam o escritor a escolher e tratar de maneira determinada alguns temas literários (dado
estético).” (CANDIDO, 2000, p. 16). Dessa maneira, o escritor nos evidencia que literatura,
sistema social e cultural, juntamente com a nação, expressam-se sincronicamente. Com isso,
percebemos que Fonseca insere a literatura como membro essencial na representatividade de
um povo e/ou de uma determinada classe.
À vista disso, para uma melhor compreensão dos temas tratados, este artigo está
estruturado em três momentos. No primeiro momento, realizaremos uma breve discussão acerca
da importância dos estudos de gêneros na literatura. No segundo momento, interpretaremos e
analisaremos os contos citados, relacionando-os com as discussões teóricas, com o objetivo de
fundamentar nossa análise. E no terceiro momento, teceremos algumas considerações sobre o
que foi discutido nesta pesquisa.

A literatura e estudos de gênero

Fonseca possui uma obra vasta, que em sua maioria exibe e critica, às vezes de forma
sutil, outrossim de modo feroz, assuntos que permeiam a sociedade brasileira. Diante disso, um
dos temas retratados em suas obras é a homossexualidade, juntamente com a transexualidade,
visto que por muito tempo os indivíduos homossexuais foram postos em condições de
marginalização pela sociedade, fato este que, infelizmente, perdura até a contemporaneidade.
Um desses problemas foi a condição pela qual as pessoas que sentiam atração por outras do
mesmo sexo eram compreendidas no século XX através da medicina e da psiquiatria, como
seres que possuíam uma desordem mental. Assim, o homossexualismo era tratado puramente
como uma doença.
252

Porém, esse tipo de exclusão não ficou apenas vinculado ao mundo real, na literatura,
a representação de personagens que se sentiam atraídos por pessoas do mesmo sexo biológico
também foi de certa forma silenciada durante muito tempo. Isso porque a crítica literária não
conseguia dissociar as questões “escritor” e “obra”, que eram tratados como algo estritamente
atrelado. Por consequência, o resultado foi a exclusão do elemento do homoerotismo de fora da
análise, uma vez que “[...] negar o homoerotismo da obra era também negar o desejo
homoerótico de seu criador. Já que esse desejo era associado, comumente, à doença e ao crime,
ele tornou-se um tabu para a crítica literária.” (SOUZA, 2010, p. 10). Vale ressaltar que isso
ocorreu principalmente por conta dos preconceitos sociais que afloravam na época e para se ter
uma ideia, no Brasil, a primeira obra a retratar as relações homoeróticas foi o romance O Bom
Crioulo (1895), de Adolfo Caminha.
Essas questões passaram a tomar reconhecimento apenas com o surgimento da Teoria
Queer, que deu visibilidade aos indivíduos excluídos, nas ciências sociais e, principalmente nos
estudos literários. Com isso, levando em consideração a carga semântica que a palavra
“homossexualismo” carrega, sendo vinculada ao preconceito e, antes de tudo, ao termo médico
que tratava o desejo pelos sujeitos do mesmo sexo biológico como uma doença, se torna
inapropriada utilizá-la, dando lugar ao termo “homoerotismo”.
Conforme Barcellos (2006), o homoerotismo busca atender às formas de
relacionamento entre homens e também mulheres do mesmo sexo biológico, sem levar em
consideração as suas preferências culturais ou modo de se viver. Em suma, o que prevalece
nesse conceito é o desejo e a atração dos indivíduos de sexos iguais, não levando em
consideração que a pessoa se constitua ou não como gay. Vale frisar que o “gay” está ligado a
um estilo de vida que abarca uma cultura própria, com características linguísticas específicas e
pensamentos políticos. A identidade gay, assim, está ligada ao social e coletivo, em um grupo
que compartilha das mesmas preferências. Por esse motivo, optamos por utilizar o termo
“homoerotismo” ou “homoafetismo”, quando estiver relacionado ao desejo, e “gay” apenas
quando se referir ao modo de vida.

Conto “Corações solitários”

A presença do indivíduo homoerótico e gay é vista em “Corações solitários”, narrada


através de um ex-repórter de polícia que passa a trabalhar como um conselheiro de
relacionamentos no jornal Mulher, dedicado exclusivamente ao público feminino, no qual
assume o pseudônimo de “Nathanael Lessa” ao escrever as suas matérias respondendo às mais
253

diversas indagações do público. Durante sua jornada de trabalho, ele passa a conviver com o
editor-chefe Peçanha, um homem que guarda um segredo: a atração e o desejo que ele sente por
pessoas do mesmo sexo biológico.
Tal segredo pode ser contemplado pelo título do conto, que a princípio, remete às
mulheres solitárias e desesperadas que enviam cartas à edição do jornal pedindo conselhos que
ajudem em seus relacionamentos amorosos. Todavia, o título, assim, nada passa de um pano de
fundo, que na verdade diz respeito ao próprio Peçanha, que, por ser um sujeito homoerótico não
assumido, acaba criando sentimentos de solidão por não poder expor o seu verdadeiro “eu”,
tendo que manter o seu desejo reprimido dentro do seu próprio corpo.
Dessa forma, o mascaramento desse homoerotismo ocorre por meio do estilo de vida
do editor-chefe do jornal. Ao conversar com o narrador sobre como o conselheiro deve produzir
o conteúdo jornalístico, Peçanha tira uma caixa de charuto se revelando fumante, além disso,
ele demonstra alterações de humor quando não concorda com as perspectivas de Nathanael:
“Peçanha deu baforadas no charuto, irritado.” (FONSECA, 2017, p. 18). Isso corrobora para a
construção de uma imagem padrão dos homens heterossexuais, na qual os grandes chefões de
empresas são adeptos do cigarro, ressaltando a masculinidade.
Além do mais, a irritabilidade é construída socialmente como uma emoção ligada ao
masculino e reprimida na feminilidade. Dessa maneira, ao ser caracterizado como um indivíduo
visualmente heterossexual, há uma facilidade em velar o desejo de Peçanha, uma vez que,
quando uma pessoa se declara homoerótica, é corriqueiro que a sociedade tenha em mente a
figura de um sujeito com características femininas e que também age como uma mulher, o
famoso “efeminado”.
Assim, o desejo homoerótico de Peçanha se constitui desde a situação inicial até o
desenvolvimento da narrativa de modo reprimido e mascarado, comumente atribuído como o
famoso “gay” que não sai do armário. Para Oliveira e Silva (2017), o “armário” delimita uma
dualidade de espaços, no qual o local público é atrelado ao espaço do heterossexual, enquanto
o privado é o lugar do sujeito que mantém relações com pessoas do mesmo sexo. Diante disso,
é perceptível uma construção dualizada entre o “ficar” e “sair” do armário, visto que o editor-
chefe se mantém fechado no armário desde a situação inicial até o clímax do conto.
Simbolicamente, o armário é visto no próprio ambiente de trabalho, pois todos os
editores que criam conteúdo são moldados como homens heteroeroticamente inclinados, mas
que utilizam pseudônimos femininos, tais como “Elisa Gabriela”, “Maria de Lourdes”, “Sandra
Marina” e “Marlene Kátia”, ao escreverem a matéria do jornal e também nos momentos de
diálogo entre si. Dessa forma, o “estar” dentro do armário ocorre pelo uso dos pseudônimos
254

femininos, simbolizando a repressão do desejo pelo mesmo sexo, enquanto o “sair” do armário,
representa o espaço heterossexual composto pelos repórteres homens.
Porém, essa situação começa a mudar com a chegada das cartas do público do jornal.
Em meio a tantas correspondências falsas de mulheres supostamente frustradas com os
relacionamentos amorosos e sexuais, Nathanael acaba recebendo, em seu escritório, uma carta
verdadeira de uma leitora da seção:

[...] Tenho usado gloriosamente os meus vestidos longos. E minha boca tem sido
vermelha como o sangue de um tigre e o romper da aurora. Estou pensando em
colocar um vestido cetim e ir ao Teatro Municipal. O que achas? E agora vou lhe
contar uma grande e maravilhosa confidência, mas quero que faças o maior segredo
de minha confissão. Juras? [...] Oh, como gostaria de viver isolada, num mundo
utópico feito de amor e bondade. Meu sensível Nathanael, deixe-me pensar. Dê-me
tempo. Na próxima carta contarei mais, talvez tudo. Pedro Redgrave. (FONSECA,
2017, p. 25, grifo nosso).

É a partir dessa carta, assinada por Pedro Redgrave, que se inicia a revelação da
personagem gay na narrativa, fato visto pelo uso do advérbio “isolada”, marcado com a
desinência de gênero feminino, que retrata assim um padrão linguístico dos gays. Além disso,
o correspondente descreve a utilização de peças do vestuário de uma mulher, ressaltando sua
identificação como um gay. É interessante notar que, ao insinuar que ele vai usar um vestido
para ir ao teatro, Redgrave traz uma volta à teoria do “armário”, pois é nítido que ele só utiliza
essas peças em casa, e não em espaços públicos como o teatro.
Além do mais, Redgrave alega que nas próximas correspondências irá fazer uma
confissão, o que dá pistas de que ele irá se assumir como homoerótico. Ao receber a outra carta
de Pedro Redgrave, o conselheiro amoroso se depara com a confissão de que Redgrave possui
sentimentos amorosos por outro homem, assim, concretizando o relacionamento homoerótico:

[...] Eu amo um amor proibido, um amor interdito, um amor secreto, um amor


escondido. Eu amo outro homem. E ele também me ama. Mas não podemos andar nas
ruas de mãos dadas, como os outros, trocar beijos nos jardins e cinemas, como os
outros, deitar abraçados nas areias e praias, como os outros, dançar nas boates, como
os outros. Não podemos nos casar, como os outros, e juntos enfrentar a velhice, a
doença e a morte, como os outros [...] (FONSECA, 2017, p. 27).

Ao responder a carta, Nathanael devolve-a para o escritório de Peçanha e acaba


descobrindo que Pedro Redgrave é na verdade o Peçanha. Ao descobrir que o escritor sabe do
seu segredo, Peçanha diz:

Entreguei a ele a carta de Pedro Redgrave. Peçanha leu a carta e percebendo o engano
que havia cometido empalideceu, como era do seu feitio. Nervoso, mexeu nos papeis
sobre a sua mesa. Era tudo uma brincadeira, disse depois tentando acender um charuto.
255

Você está aborrecido? A sério ou a brincadeira, para mim tanto faz, eu disse. Minha
vida dá um romance..., disse Peçanha. Isto fica entre nós dois, está certo? [...] Claro,
só entre nós dois. Obrigado, disse Peçanha. E soltou um suspiro que cortaria o coração
de qualquer outro que não fosse um ex-repórter de polícia. (FONSECA, 2017, p. 32).

Assim, o conto se desfecha com a revelação de quem estava por trás das cartas
misteriosas. De acordo com Porto (2016), a construção de um personagem homoerótico na
literatura pode ser vista a partir de três concepções: “homoafetividade sugerida”,
“homoafetividade reprimida/condenada” e a última que se caracteriza pela “homoafetividade
revelada”. A primeira concepção retrata o relacionamento de modo velado na narrativa, apenas
sugerindo um envolvimento entre os personagens. Já na segunda, a homoafetividade é
reprimida tanto pelo indivíduo homossexual, quanto pelos outros personagens, estes de
construção heterossexual e/ou homossexual. Na última concepção, como a própria expressão
“revelada” sugere, o desejo homoerótico está explícito na narrativa, podendo o personagem
concretizar essa relação ou não, além disso, ela é revelada seja pelo narrador ou pelo próprio
personagem homoerótico, característica que se enlaça ao conto analisado.
Desta forma, o armário para Peçanha se torna um local de conforto, proteção e
resistência à opressão. Dessa maneira, esse ato de se “privar” do mundo, mantendo em segredo
o seu desejo pelo indivíduo do mesmo sexo biológico, concebe ao personagem uma maneira de
viver a homossexualidade em lugares que não era possível viver ao ar livre. Mas isso não se
aplica a todos os personagens da literatura de Fonseca, como veremos no decorrer das outras
análises.

Conto “Colégio”

Diferentemente da narrativa anterior, o personagem Ivo, do conto “Colégio” não


possui o seu homoerotismo aceito pelos outros indivíduos da narrativa. Aliás, o que transparece
na narrativa é uma repressão severa que ele sofre a partir do preconceito que vivencia tanto
pelos seus familiares quanto pelos colegas de escola, com um forte teor homofóbico. Assim
como em “Corações solitários”, a presente narrativa é contada a partir da perspectiva de um
narrador-personagem, não sendo retratado pelo sujeito homoerótico.
Esse olhar preconceituoso é fruto das experiências e vivências em sociedade,
principalmente na família, que é o primeiro sistema educacional de um indivíduo. Isso é
refletido na visão do narrador, pois o ambiente familiar que o personagem convive já aponta
para um lar preconceituoso, que moldou o seu pensamento daquela forma. É em suma, a própria
256

descrição da relação com seus progenitores, uma vez que o pai é um homem extremamente
preguiçoso e a mãe é quem trabalha e faz todos os afazeres domésticos, corroborando para a
inferiorização da figura feminina, a qual é condicionada a ser dona do lar. Bem como em relação
à mulher, o narrador traz consigo esse olhar de discriminação e menosprezo também com as
pessoas homoeróticas.
Além desse ambiente do lar, o outro espaço físico é a escola, local que, infelizmente,
já é conhecido por problemas de bullying entre os estudantes. É no desenvolvimento da
narrativa que a homofobia ganhar vigor, no momento em que o narrador encontra Ivo no
banheiro e começa a pensar sobre ele, utilizando adjetivos que caracterizam um discurso
altamente preconceituoso, principalmente pelo uso da palavra “veado”, um termo adotado para
designar os indivíduos homoafetivos:

Um dia eu estava no banheiro quando entrou o Ivo. Ele é veado e não consegue fingir
que não é, sabe aqueles trejeitos de mãos, a maneira de arrumar os cabelos? Eu me
dou bem com ele, não tenho nada contra veados, bom, mas não queria ter um irmão
veado, nem um primo veado, nenhum veado na família (FONSECA, 2017, p. 38).

É a partir desse discurso homofóbico do narrador que a face do preconceito e agressão


verbal ganha luz, pois sua fala compactua com o que muitas vezes ocorre em nossa sociedade,
o famoso discurso de uma pessoa que diz não ter preconceito, pois possui amigos ou familiares
que são homoafetivos. Contudo, pior do que a agressão verbalizada, é a física, e nesta narrativa
nos deparamos em uma representação que se opõe aos outros textos de Fonseca que foram
analisados anteriormente. Primeiramente, porque não existe aqui uma relação homoerótica com
consentimento, o que há é uma explícita cena de violência sexual descrita de forma pesada aos
olhos do leitor:

Eu estava conversando com o Ivo quando apareceu no banheiro a Gangue dos


Tiradentes. “Olha quem está aqui”, disse o Gordo, agarrando o Ivo pelo pescoço. Os
outros dois, os Parrudos, tiraram a calça do Ivo e começaram a enfiar os dedos no cu
dele. “Você gosta de levar pica, não gosta”, disse um dos Parrudos enfiando dois
dedos no cu do Ivo (FONSECA, 2017, p. 38).

Esse clímax narrativo que rasga a construção de uma história que antes aparentava
trazer à tona apenas o preconceito do narrador, é enfatizado com a chegada dos valentões da
escola, que começam a violentar Ivo. No Brasil, de acordo com os dados do Grupo Gay da
Bahia (GGB), a cada 19 horas uma pessoa LGBT é vítima de “LGBTfobia”. Diante da
violência, Ivo assume uma postura de passividade, enquanto que os violentadores promovem
seu ódio ao personagem por meio da dominação na violação sexual. Essa agressão ocorre
257

porque, segundo a abordagem de Souza (2010), a inferioridade mantém uma relação de ligação
com a passividade. Para entender melhor, pensemos em uma relação heteroerótica, ou seja,
entre dois indivíduos de diferentes sexos biológicos, na qual durante o ato sexual, o homem
assume a condição de dominador, enquanto a mulher é dotada de uma postura de submissão.
Levando isso para a relação homoerótica, essas atribuições de papeis assumem uma
construção histórica, uma vez que quando um sujeito homem é o passivo da relação sexual, ele
automaticamente está assumindo o papel de uma mulher, sendo submisso e consequentemente
inferiorizado. Enquanto que o indivíduo que postula o papel de ativo, continua mantendo a sua
posição de masculinidade e explorando o seu lado dominador, que mantém ali a relação de
poder sob o passivo. Muito embora os agressores não sejam declarados homoeróticos, eles
utilizam de um contato sexual com a pessoa do mesmo sexo para humilhar e desprezar inflando
o seu preconceito da homofobia.
Assim, na narrativa, a humilhação é construída também por um viés histórico que
envolve conceitos de feminilidade, em que a mulher sofre preconceito pois, segundo Souza
(2010), a homofobia não é uma aversão ao desejo homoerótico, mas sim ao que ele representa:
o feminino. E é exatamente isso que Ivo está assumindo ao ser violentado, ele é rebaixado à
condição submissa de uma mulher, que é ressaltada também pelo próprio nome do personagem,
Ivo, que remete à uma masculinização do nome Eva, do discurso bíblico de Adão e sua parceira.
Em vista do que foi dito, é impossível separar o feminino e o homoerótico, pois assim
como as mulheres sofrem uma exclusão na qual ainda são silenciadas pela sociedade, os
homoeróticos também presenciam esse problema. O silenciamento de Ivo na narrativa ocorre
primordialmente pelo evidenciamento do seu desejo por pessoas do mesmo sexo biológico, que
é apresentado pelo narrador e não pelo próprio personagem gay. Segundo Porto (2016), quando
a revelação parte do discurso do narrador personagem, ocorre a denominada “homoafetividade
revelada”, que aparece de forma explícita no texto.
Ademais, a maior marca de opressão e silenciamento é visível no próprio discurso dos
personagens, já que Ivo em nenhum momento fala, ele não estabelece nenhum diálogo
explicitamente com ninguém, caracterizando o silêncio do indivíduo homoerótico na sociedade.
Essa falta de voz é transportada para a narrativa na construção de um personagem que em
nenhum momento tem uma voz, até mesmo quando ele está sofrendo o estupro: “Ivo chorava.
Eu saí de mansinho. Não tive coragem nem de ir falar com seu Libório, da portaria”
(FONSECA, 2017, p. 39). Diante disso, a única forma que ele encontra para lidar com essa
agressão é emocionalmente através do choro, além de também corroborar para a opressão que
ele sofria em sua vida.
258

Em última instância, o silenciamento do sujeito também ocorre no desfecho da


narrativa, pois diante de tantas agressões verbais e também o estupro, Ivo não consegue tomar
uma posição frente a essa problemática pela qual ele vem passando. Desse modo, Ivo é um
sujeito que se encaixa como um “personagem homossexual como um indivíduo ambíguo, sem
identidade homossexual definida, ou sem voz.” (PORTO, 2016, p. 81). Ele é um indivíduo
homoerótico excluído e que muitas vezes, infelizmente, acaba assumindo uma condição de um
fantasma invisível perante a sociedade em que convive, o que é recorrente em nossa realidade,
e que Fonseca conseguiu transpor essa problemática de modo crítico.

Conto “Cibele”

Já no conto “Cibele”, diferentemente dos anteriores, é abordada a questão da


transexualidade. No início da narrativa, o narrador personagem, que não se identifica, relata ao
leitor aspectos da sua vida amorosa com uma garota chamada Eliane, ressaltando a sua beleza
estética, porém para ele, em Eliane faltava certa maturidade e inteligência, e isso caracterizava
uma limitação, um empecilho para a continuidade do relacionamento. Foi então que ele
conheceu Cibele, sem saber que a mesma era uma “mulher trans”. Para ele, a moça era perfeita,
ela era detentora do que faltava em Eliane, pois Cibele era uma mulher inteligente, “falava sobre
qualquer assunto” (FONSECA, 2017, p. 80), assim tornando-se o oposto da sua antiga
namorada.
No decorrer da narrativa, o narrador personagem relata o seu desejo por conhecer a
ilha de Brocoió, a qual Cibele teria ido visitar duas vezes. É então que o narrador a convida
para ir a ilha com ele, e “ela relutou um pouco, mas acabou aceitando” (FONSECA, 2017, p.
80). Quando chegaram à ilha, Cibele o levou para visitar o antigo palácio do francês, contando
detalhadamente cada particularidade do ambiente, ele estava deslumbrado com tamanho
conhecimento da garota. Foi então que em frente a uma das pinturas clássicas do palácio, Cibele
pergunta ao narrador personagem se ele poderia lhe emprestar um dinheiro, o mesmo responde
que sim, mas quando pergunta à garota a finalidade, a moça responde que depois explicaria,
porém não volta ao assunto e continua a detalhar o espaço.
E ao detalhar cada recanto do palácio, os dois são surpreendidos por uma tempestade
e a mesma veio revestida de trovões e raios, e nesse momento o narrador personagem propõe a
Cibele que os dois deveriam entrar no mar pelados, em uma rápida resposta a moça diz que ele
não iria gostar de lhe ver nua, logo após o narrador pergunta o motivo e ela tenta se justificar:
“Olha, eu não sinto vergonha de ser quem sou” (FONSECA, 2017, p. 81). E o narrador
259

personagem lhe fala: “Nem tem motivos para isso”, e ela responde: “Exatamente”. Em seguida,
o narrador nos relata que neste momento um relâmpago cortou o céu, gerando uma onda de
choque sônica, algo que Cibele, com toda sua inteligência, soube explicar detalhadamente.
Posteriormente à explicação, o narrador personagem continua instigar Cibele para que
ela tire a roupa, todavia como era uma pessoa inteligente, conhecia o perfil do narrador e sabia
que ele não iria gostar, por isso deu uma gargalhada logo após a afirmação dele. Contudo, ela
começou a tirar a roupa, iniciando pela blusa, o narrador relata que logo em seguida tirou o
short e Cibele viu o seu membro ereto, sem nenhuma surpresa:

“Vou amar ver você nua, Cibele.” Ela deu uma gargalhada. Cibele começou tirando a
blusa e vi os seios. Eram um pouco volumosos, pareciam sólidos. Prefiro mulheres de
seios pequenos, mas mesmo assim fiquei excitado. Tirei o meu calção. Ela viu o meu
membro ereto sem demonstrar surpresa (FONSECA, 2017, p. 82).

Dessa forma, é exposto que Cibele ao ver o narrador despido não demonstra reação
alguma, pois para ela não era algo indiferente. Posteriormente, ele pede para que Cibele tire o
short, a mesma atende o pedido do narrador e começa a tirar o short, chegando ao clímax da
narrativa, quando Cibele vira-se de frente e o narrador vê um pênis pequeno. Nesse momento
há uma frustação por parte do narrador personagem, e ao perceber isso Cibele tenta se justificar,
alegando que precisava fazer uma ablação peniana total, e ele relata que nessa hora não soube
o que dizer, o que fazer, estava sem reação diante da informação:

Eu não sabia o que dizer. Não via os raios nem ouvia os trovões. Eu estava, eu estava...
pasmo. “Meu nome era Sílvio. Mas Cibele já está registrado. Vamos nadar?” Cibele
pulou no mar e sai nadando. Fiquei sentado na areia pensando em Eliane (FONSECA,
2017, p. 82).

À vista disso, é possível perceber que Cibele configura-se como uma transsexual, não
se reconhecendo com o gênero de nascença. Para Bento (2008), a transexualidade é uma
experiência de reconhecimento da própria identidade, motivada pelo conflito com as normas de
gênero. A propósito, essa nova informação inserida no conto ocasionou um nítido desencanto
do narrador personagem e o deixou pensando na ex-namorada, que diante de Cibele, logo após
a inserção da nova informação, tornava-se novamente uma opção de relacionamento para o
narrador. Enquanto que Cibele deixava de ser perfeita por apenas um motivo pequeno, reflexo
de uma sociedade na qual o gênero importa mais do que as relações sociais e a capacidade
pessoal de cada indivíduo. Desse modo, notamos que além da crítica com relação ao
260

desconhecimento referente à questão da transexualidade, o autor também deixa nítido a


abordagem de aspectos a respeito das relações artificiais perpetuadas nos dias de hoje.
Dessa maneira, Fonseca aborda a questão da “Literatura trans”, que para Rodrigues
(2017), estaria relacionada com as construções de personagens representativos na literatura,
contudo a escritora ressalta a importância dessa construção ser realizada de forma responsável,
pois os “estereótipos sociais referentes a qualquer classe minoritária da sociedade existem e,
portanto, podem ser passados para a literatura.” (RODRIGUES, 2017, p. 183). Com isso,
observa-se a ampliação de novos horizontes em meio às ramificações da literatura, que segundo
Miranda e Garcia (2012) está intrinsecamente ligada à Teoria Queer com relação à proposta de
uma desconstrução, essa que tem como objetivo a contestação dos conhecimentos e hierarquias
sociais dominantes.

Considerações finais

Portanto, diante das três narrativas analisadas é possível perceber que mesmo em
ambientes distintos, seja em uma editora de jornal, um âmbito escolar ou até mesmo em uma
ilha, que ao mesmo tempo poderia representar uma imensidão de lugares, os desafios presentes
na vida de pessoas LGBTQI+ é frequente. Desse modo, a violência e humilhação sofrida por
Ivo é exatamente o medo de Peçanha, é o que faz ele se esconder no “armário” e se comunicar
por meio de cartas, essa violência também faz com que Cibele seja cheia de receios, ao ponto
de a todo momento recursar e se justificar em uma tentativa de que o outro busque entendê-la.
Assim, embora que os três contos detenham de diferentes características e
personagens, eles apresentam realidades que se entrelaçam entre si e também se assemelham
com a realidade social brasileira, na qual vários homoeróticos e transsexuais são mortos de
forma banal, sem nenhum escrúpulo. Por isso é importante falar sobre essa minoria presente no
meio social para que se possa conhecer o desconhecido, e a literatura, essa que se transforma
em uma ferramenta social há séculos para dar voz a tantas questões sociais, se faz mais uma
vez presente com relação à “Literatura trans”, emprestando sua essência por um ponto de
representatividade.

Referências

BARCELLOS, José Carllos. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro:


Dialogarts, 2006.
261

BENTO, Berenice. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.

GRUPO GAY DA BAHIA. Assassinatos LGBT no Brasil- Relatório 2017. Disponível em:
https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2020/03/relatorio-2017.pdf Acesso em
21/11/2020.

LOPES, Hans Stander Loureiro. Contemporaneidade, subalternidade e violência em Feliz


Ano Novo, de Rubem Fonseca. Dissertação (Mestrado em Estudos em Linguagens).
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 2012.

MIRANDA, Olinson Coutinho. GARCIA, Paulo César. A Teoria Queer como


representação da cultura de uma minoria. III Encontro Baiano de Estudos em Cultura,
2012.

PORTO, Luana Teixeira. Literatura e sociedade: uma leitura da representação da


homoafetividade em contos brasileiros do século. Santa Cruz do Sul: Signo, 2016, v. 41, p.
79-87.

RODRIGUES. Diana da Silva. A LITERATURA TRANS: Uma introdução. In: VII


Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF, 7.,
2017, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: editora UFF, 2017. p. 180-190.

RODRIGUES, Sérgio. Rubem Fonseca parece encher obra com esboços tirados do lixo. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 08 de abr. de 2017. Disponível em: <
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/04/1873569-rubem-fonseca-parece-encher-
nova-obra-com-esbocos-tirados-do-lixo.shtml> Acesso em: 23 de jul. de 2020.

SOUZA, Warley Matias. Literatura homoerótica: o homoerotismo em seis narrativas


brasileiras. Belo Horizonte: Dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Letras da
UFMG, 2010.
262

A REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO: TRAÇOS HISTORIOGRÁFICOS DA


CULTURA NORDESTINA N’O AUTO DA COMPADECIDA, DE GUEL ARRAES67.

Tatiana da Silva Santos


Marlúcia Mendes da Rocha

Introdução

O cinema sempre buscou mostrar certas obras literárias, melhor dizendo, os textos
literários sempre foram fonte de inspiração para a cinematografia, especialmente os de grande
apelo popular, bastante utilizados por representar temas próximos da realidade do povo. Uma
amostra deste tipo de adaptação é a transposição da peça Auto da Compadecida (1955), de
Ariano Suassuna, para o filme O auto da compadecida, de Miguel Arraes, realizado em 2000.
A filmografia citada mostra as peripécias de João Grilo e Chicó, nordestinos que fazem
as mais diversas trapaças para sobreviver. Esses personagens vivem por enganar o padre, o
bispo, o padeiro e sua mulher, assim como Antônio Moraes no pacato povoado, em Taperoá.
Há, inclusive, um temido cangaceiro que persegue a região: Severino de Aracaju. Neste sentido,
ao considerar a relação entre cinema e literatura, propõe-se uma discussão referente ao
personagem Severino de Aracaju, presente no filme de Guel Arraes. A narrativa fílmica traz à
cena elementos da tradição popular e aspectos relevantes da história do cangaço e evidencia
particularidades significativas das raízes da cultura brasileira.
Dessas particularidades há o banditismo, que foi um movimento ascendente na
caatinga do sertão nordestino, ao perdurar durante anos. Esse fenômeno sociológico se
caracterizou pelo surgimento de grupos denominados cangaceiros, homens vítimas da seca e
das desigualdades sociais que formavam milícias privadas, por assolar o nordeste brasileiro
com terror e violência. Esse aspecto, que se cristalizou na cultura popular, foi exibido nas telas
do cinema, fato que demonstra a permanência desse homem típico na memória coletiva desse
lugar.
Nesse sentido, convém mencionar Pesavento (2003), que relaciona a história e a
literatura, ao ressaltar o conceito de representação como possibilidade de compreender a
cultura. A autora trata da construção intertextual de um fato passado, como reapresentação de
um novo que, a partir de traços extraídos de fontes que relatam o fato histórico, veiculam
representações sociais construídas pelo imaginário social.

67
Este artigo é resultado da dissertação de mestrado do Programa de pós-graduação em Letras: Linguagens e
Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
263

Além desse pressuposto, são relevantes as discussões propostas por Carneiro (2010),
Facó (1972) e Lajolo (1994). O primeiro cita Bourdieu ao sustentar a ideia de que o poder
simbólico é um elemento existente na construção da realidade social, sendo instrumento de
conhecimento e de comunicação. O segundo defende a concepção de ascensão da classe pobre,
que se desenvolve por meio das lutas sociais no ambiente rural brasileiro, e a última trata do
texto literário enquanto documento da história.
A escolha deste objeto justifica-se pela possibilidade de reconhecer as características
da seca, as marcas que vitimizaram grupos desprivilegiados e as formas que usavam para
sobreviver em um espaço castigado pela injustiça social. Desse modo, investiga-se a
representação do cangaço com o objetivo de analisar as cenas em que esse movimento é
representado, ao estudar os traços historiográficos do bando na narrativa fílmica, a fim de
mostrar a tradição e sua influência até os dias de hoje.
Em outras palavras, o cenário apresentado mostra uma face da identidade brasileira,
principalmente por apresentar um pouco da cultura e da tradição popular nordestina. Nota-se
ainda que a produção de Guel Arraes realiza uma releitura deste sertão ávido de aventuras e
destaca uma área cercada pela seca e a miséria. Nesta localidade, surge a figura desse tipo
significativo: o cangaceiro.
No filme, percebe-se que a caricatura representada por Severino de Aracaju e sua
gangue mostram um Nordeste sofrido, um ambiente marcado pela injustiça que desperta a
bravura do homem da caatinga, que tenta combater as adversidades em meio à exclusão
empregada pelas autoridades civis, religiosas e pela mesquinhez da população. Nesse contexto,
o personagem tenta mudar sua própria realidade, ainda que haja o descaso e abandono do
governo, bem como da sociedade local.
Assim, a viabilidade desta proposta se realiza por meio de investigação qualitativa de
caráter biblio-filmográfico, ao fundamentar-se em livros e artigos em periódicos online. Nesta
perspectiva, busca-se apresentar o cangaceiro como aquele que é durão, possui valor histórico
e é símbolo de resistência, com a finalidade de mostrar a identidade regional do personagem.
Por fim, esse trabalho aspira contribuir em futuras pesquisas que abarquem a temática do
cangaço.
O artigo se estrutura em três tópicos, propondo-se em apresentar, no primeiro, uma
perspectiva do cangaceiro e sua formação no contexto da referida obra fílmica. Esse
representativo sertanejo traz aspectos que demonstram sua inserção na cultura, ao permitir
compreender as características que se conservam na lembrança do povo. No segundo ponto, são
salientados os aspectos da historiografia que correspondem à forma de ressignificar o ambiente,
264

o comportamento, a forma do grupo se organizar e o vestuário, considerados marcos de uma


identidade social. Por fim, o terceiro tópico finaliza a análise ao evidenciar o fenômeno do
cangaço como aquele que mantêm significado e grande alcance na contemporaneidade, por
disseminar expressões que se destacaram, sobretudo visualmente, a partir das vestes, presentes
no filme referido.

O cangaço n’O Auto da Compadecida, de Guel Arraes

O roteiro de Guel Arraes tratou do Nordeste brasileiro em uma época que a população
ainda era predominantemente rural e os donos de engenho possuíam a mentalidade dos antigos
senhores de escravo, que não concebiam o trabalho livre e até acreditavam que a liberdade traria
sérios danos à economia e à sociedade. A classe dos senhores de engenho sobrevivia às custas
de extrema exploração da população. Tal quadro possibilitava o surgimento de manifestações
de insubmissos que adquiriam armas para sobreviver e de grupos de fanáticos missionários que,
a seu modo, exteriorizavam suas aflições. De fato, a escolha do personagem Severino de
Aracaju na adaptação fílmica O Auto da Compadecida, de Guel Arraes (2000), ocorre por esse
ser “o correlativo da figura do cangaceiro, outro protótipo da Literatura de Cordel” (CURRAN,
1991, p. 63-64). Acerca disso, Facó (1972, p. 37) afirma que:

O cangaceiro e o fanático eram os pobres do campo que saíam de uma apatia


generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social, lutas, portanto,
que deveriam decidir, mais cedo ou mais tarde, seu próprio destino. Não era ainda
uma luta diretamente pela terra, mas era uma luta em função da terra – uma luta contra
o domínio do latifúndio semi-feudal.

Dessa forma, a obra cinematográfica em análise afirma-se como uma narrativa que
carrega peculiaridades da tradição popular, a partir das crenças, valores religiosos e raízes da
cultura brasileira. Dentre as inúmeras cenas dessa produção fílmica, o diretor destaca esses
elementos do imaginário popular. De acordo com Durand (1997, p. 14), o imaginário social se
apresenta como um “conjunto de imagens e das relações de imagens que constitui o pensamento
do homo sapiens [...]”, sendo esse imaginário essencial na constituição de todos os
processamentos do pensamento humano.
O filme evidencia aspectos pertencentes ao típico cangaceiro, principalmente por
apresentar um papel de caráter semelhante a inúmeros nomes do cangaço, que estiveram
presentes por longas décadas e permanecem vivos no imaginário popular nordestino. O
265

personagem Severino de Aracaju representa o antagonista cujas marcas delineiam um perfil que
marcou, durante muito tempo, o cenário brasileiro. Ao abordar essa temática, Guel Arraes
acresce valor histórico ao propor representações desse universo vivo na memória do povo
nordestino.
Neste sentido, percebe-se que as cenas exibidas se assemelham à realidade ao mostrar
o cotidiano desse bando, o comportamento e a forma de se organizarem. Conforme Pesavento
(2003, p. 32), discussões que articulam narrativas históricas e literárias tentam responder as
perguntas sobre o homem e sua cultura; isso também pode ser percebido em relação ao roteiro
cinematográfico que, assim como “a História e a Literatura oferecem o mundo como texto”.
Portanto, constata-se essa relação na obra fílmica, já que Severino é líder de um movimento
social composto por marginalizados, sendo essa condição também fator de denúncia.
Em sua primeira aparição cênica, o chefe do cangaço se apresenta com um disfarce de
pedinte, estratégia que utiliza para observar a conduta do povo e buscar informações sobre a
rotina da cidade, como na caracterização que pode ser observada nas imagens:

Imagem68 1. – Severino como pedinte

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)

Imagem 2. – Severino como pedinte na cidade de Taperoá

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)

68
O vocábulo “Imagem” foi utilizado neste artigo, tendo em vista que foram realizadas capturas.
266

Ao primeiro olhar, Severino se aparenta como um pobre, submisso, vestido de maneira


simples, uma pessoa humilde que necessita de ajuda. Durante sua passagem pela cidade, o
cangaceiro constata não haver nenhuma autoridade policial para proteger o povo. Por essa
razão, ao voltar para seu bando no agreste do sertão, o personagem se transforma, sente-se
indignado e decide tomar posse dos recursos financeiros dos moradores. As fotografias a seguir
mostram o retorno deste figurão antagonista para o grupo pertencente, lugar em que arquiteta a
invasão da cidade. O jagunço que o acompanha demonstra fraqueza em relação ao plano
contado, sendo que são explicados os procedimentos para a ação que seria realizada na cidade.

Imagem 3. – Severino com os cangaceiros

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)

O filme supracitado parte das peculiaridades do cangaço ao destacar a conduta do


bando, principalmente por reproduzir situações que estão presentes na memória e na história.
Dessa maneira, esses fatores podem ser compreendidos como “modalidades de um exercício
imaginário de reconstrução do mundo” (PESAVENTO, 2003, p. 32), já que as características
que delineiam o perfil do típico sertanejo presentes no longa-metragem relevam o agenciamento
das lembranças do povo nordestino.
Assim, pode-se afirmar que a filmografia o Auto da Compadecida traça um perfil de
“afirmação sobre a história do passado” (PESAVENTO, 2003, p. 32) ao construir uma nova
perspectiva entorno de marcas presentes na própria História. Desse modo, o fenômeno do
cangaço ocorre no sertão do nordeste como símbolo da identidade cultural nordestina e do
homem sertanejo. Nessa discussão, ao mencionar o livro Poder Simbólico, de Pierre Bourdieu,
Carneiro (2010, p. 95) ressalta que “as imagens são formas de sacralizar e atribuir valor a
determinados elementos, pois é na expressão dessa pluralidade simbólica que a expressão se
mostra e se valoriza”.
267

Por esta razão, o referido fenômeno passou de regional a nacional, principalmente


porque esse contexto é decorrente da estrutura social e político-econômica da população
nordestina da época. À vista disso, nota-se que a produção fílmica analisada adquire valor ao
tratar dessa realidade em que são apresentados os tipos de cangaceiros, homens vinculados a
um movimento social que realmente pertenceu e construiu uma simbologia típica do nordeste
brasileiro.
A Literatura e a História se entrelaçam na cinematografia de Arraes quando os
elementos da memória do povo são resgatados e utilizados como “recurso ilustrativo do
passado” (PESAVENTO, 2003, p. 32). Em outras palavras, a partir do momento em que
Severino e o bando invadem Taperoá, percebe-se que o personagem não demonstra nenhuma
compaixão para com os habitantes, já que a motivação do cangaceiro ocorre por causa da falta
de auxílio da população e, por conta disso, mantêm sua impiedade, como na imagem seguinte:

Imagem 4. – Severino na igreja de Taperoá

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)

A cidade é invadida pelo cangaceiro Severino e o seu capanga mata praticamente todos
(o bispo, o padre, o padeiro e a mulher). Quando chega a hora de João Grilo e Chicó – principais
protagonistas da narrativa fílmica – João Grilo inventa uma história para tentar se safar da
morte. O personagem diz a Severino que deseja dar-lhe uma gaita de presente. Após isso,
Severino pergunta qual o motivo de querer uma gaita, como resposta, João diz que é para nunca
mais morrer dos ferimentos que a polícia venha lhe fazer.
No diálogo, João ainda afirma que a gaita é mágica, benzida pelo padrinho Padre
Cícero. Assim, Severino fala que só acredita vendo. A partir desse momento, João Grilo pede
o punhal do cangaceiro e acerta na barriga de Chicó, em uma bexiga que estava cheia de sangue.
Nesse instante, conforme planejado anteriormente pelos dois amigos, ele começa a tocar a gaita
e ressuscita Chicó, para admiração de Severino, como pode ser observado na imagem a seguir:
268

Imagem 5. – Severino, o capanga e João Griló com a gaita mágica

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)

Severino acredita que visitaria seu Padrinho Padre Cícero e depois voltaria à vida, pede
ao seu cabra que caso João não toque a gaita, deve matá-lo. Assim, o Cangaceiro é morto e,
como era de se esperar, a gaita acaba não surtindo efeito. Em outras palavras, Severino:

Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a
marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala
tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo que é vivo, morre
(SUASSUNA, 2005, p.113).

Depois que Severino morre, todos se encontraram no céu para o julgamento final. Após
uma discussão acirrada com o Diabo, João Grilo consegue a presença de Nossa Senhora, que
sugere ao filho, Jesus Cristo, o destino de Severino, vez que este se tornara mau por conta de
ser instrumento da cólera divina. Em determinado momento, o filme explica que este sujeito
passou por muito sofrimento e matou mais de 30 pessoas após o massacre de seus pais.
Mediante as dificuldades por que passara acaba enlouquecendo e, por esse motivo, resolve ser
herói da sua própria história na busca de procurar corrigir os atos do mundo. Por essa razão, a
Compadecida solicita que esse seja enviado diretamente para o céu.

A historiografia do cangaço n’O Auto da Compadecida

Inicialmente, a obra cinematográfica de Guel Arraes apresenta um enredo que valoriza


a memória e o imaginário nordestino, principalmente pela trama, na qual o espectador passa a
conhecer a historiografia do cangaço. De acordo com Döppenschmitt (2008, p. 2), “a memória
269

é o alicerce de construções e desconstruções narrativas possibilitando que a voz do eu, do outro


ou da cultura apareça e se renove em registros diversos”.
Neste sentido, Guel Arraes ressignifica os elementos pertinentes ao ambiente, bem
como ao próprio cangaço. Nota-se que o diretor utilizou como fonte de inspiração uma ficção
próxima da realidade, com cenas desse local onde o sertanejo desenvolveu intimidade com o
ambiente para conseguir sobreviver. A região em que se desenvolveram as filmagens da
narrativa cinematográfica se passaram no sertão da Paraíba, numa localidade próxima a
Taperoá. Pode-se entender, a partir disso, que o diretor teve o interesse em colocar este tipo de
fonte como modo de aproximar, para o espectador, o referido fato da ficção.
Dessa maneira, o banditismo colocado no filme representa um modo específico de
narrar os aspectos da história do cangaço. Além disso, a cinematografia apresentada veicula
informações de comportamento, vestuário e cenário que se relacionam com “parte da história
social” (FRANCHETTI, 2002, p. 4), ao mostrar que a forma de organização do grupo se
aproxima do comportamento dos típicos cangaceiros do sertão. Assim, o cangaço, enquanto
fenômeno histórico, traz referências deste passado para o presente.
Do mesmo modo, cabe reiterar que a historiografia do cangaço é um traço da cultura
brasileira e se firma na filmografia em análise ao aproximar-se de fatos históricos, ao apresentar
o movimento com significativa riqueza de detalhes. No que diz respeito à relação entre literatura
e história, Pesavento (2006) salienta que:

Assim, literatura e história são narrativas que têm o real como referente para confirmá-
lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão ou ainda para ultrapassá-
lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Mas,
dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferença? Quem trabalha
com história cultural sabe que uma das heresias atribuídas a esta abordagem é a de
afirmar que a literatura é igual à história... A literatura é, no caso, um discurso
privilegiado de acesso ao imaginário das diferentes épocas (PESAVENTO, p. 14).

Desta forma, percebe-se que a História e a Literatura se aproximam muito da


filmografia apresentada por Arraes, haja vista que o diretor, ao salientar cenas do cangaço,
mostra aspectos tanto literários quanto históricos. Ainda conforme Pesavento (2003, p. 32), a
história e a ficção são “formas próximas de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos”,
ao possibilitar construir posicionamentos e visões de mundo. Assim, O Auto da Compadecida
exibe o sertão ao apresentar as condições em que o povo vivia, sobretudo por conservar questões
que visavam denunciar a pobreza, característica marcante da cultura nordestina. Ao se
profundar na relação entre discursos literários e fontes históricas, Pesavento (2006) assevera
que:
270

A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará
acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras
fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes
cifrada, as imagens, sensíveis do mundo. A literatura como narrativa que, de modo
ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa, romanesca fala do mundo de forma
indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário
apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras
tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu (PESAVENTO, p.
220).

Enquanto narrativa e fonte de sentidos, a cinematografia de Arraes exibe imagens do


Nordeste como estratégia de mostrar as camadas populares e as injustiças sociais provocadas
pela desigualdade econômica brasileira, de forma suave, com humor. Ainda de acordo com
Pesavento (2003, p. 33), “a História é uma urdidura discursiva de ações encadeadas que, por
meio da linguagem e de artifícios retóricos, constrói significados no tempo”. Isso pode ser
percebido nas telas do cinema, em que são mostrados elementos regionais que marcaram e
caracterizaram um espaço e período histórico específico.
No filme, a chegada do cangaceiro à cidade é um marco, sobretudo porque Severino
de Aracaju apresenta o tamanho da sua fé, pois acredita na crendice da gaita mágica e na
devoção a Padre Cícero. O personagem é definido por uma postura violenta, personalidade
decorrente do sofrimento e das perdas que o fizeram entrar para o cangaço. Neste sentido,
Severino mostra-se como um sobrevivente que, ao seguir sempre devoto, lutou muito para
chegar a tais condições. Sua condição de vítima em um contexto violento se esclarece no
diálogo subsequente:

A COMPADECIDA: Quanto a Severino ...


MANUEL: Quanto a esse, deixe comigo. Não foi a sua morte que o redimiu, mais a
de seus pais. Com oito anos de idade, ele conheceu a fera que existe entre os homens.
Severino enlouqueceu depois que a polícia matou a família dele Ele não era
responsável pelos seus atos. Está salvo!
ENCOURADO: Isto é um absurdo contra o qual...
MANUEL: Contra o qual, já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você
não entende nada dos planos de Deus. Severino está salvo! Ele foi mero instrumento
da cólera divina. Severino meu filho, pode ir por ali (ARRAES, 2000).

Essa produção popular cinematográfica apresenta uma identidade social que é fruto de
um cenário esquecido pelo governo. Dessa forma, pode-se analisar o cangaceiro Severino de
Aracaju à luz do que afirma Pesavento (2003, p. 37), como “uma modalidade narrativa
referencial ao mundo, com pretensão aproximativa”, sobretudo, porque “o cinema apresenta
um “poder excepcional” que vem do fato de sua linguagem funcionar a partir da reprodução
fotográfica da realidade” (MARTIN, 2011, p. 18).
271

Assim, percebe-se na obra cinematográfica O Auto da Compadecida, elementos


representativos da historiografia do cangaço, em que são desenvolvidos traços que mostram
uma representação do passado com nova ressignificação. Neste aspecto, o que produz
significado ocorre a partir do recorte da vida social, conforme ressalta Lajolo (1994). Arraes
conserva as características da obra dramatúrgica de Suassuna, de modo que o cenário arcaico,
a pobreza e os aspectos religiosos carregam percepções singulares e percepções que acabam
por relacionar-se com a história.

A tradição do cangaço e sua influência

O cangaço foi um fenômeno cujo legado inspira diferentes segmentos expressivos até
os dias de hoje, sendo que a representação do grupo resgata e atribui valor à cultura nordestina.
Neste processo, alguns produtos ganharam mercado na atualidade, a exemplo do filme que, ao
mostrar os cangaceiros, destaca seu vestuário. Acerca disso, em epígrafe de seu artigo, Chaves
(2018, p. 47) reproduz a seguinte fala de Ariano Suassuna:

E se há no cangaço um elemento épico, este é ainda exacerbado pelos trajes e


equipagem dos cangaceiros, com os seus anéis e medalhas, seus lenços coloridos, seus
bornais cheios de dobraduras, os chapéus de couro enfeitados com estrelas e moedas
– tudo isso que coaduna perfeitamente com o espírito dionisíaco de dança e de festa
de nossos espetáculos populares e compõe uma estética peculiar, rica e original [...].

As indumentárias usadas na narrativa cinematográfica ressaltam uma visão


caricatural, a partir dos excessos de adornos e enfeites, ao evidenciar traços simbólicos da
imagem dos cangaceiros na sociedade, como pode ser percebido na imagem a seguir:

Imagem 6. – Estilo de roupas dos cangaceiros

Fonte: ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida (2000)


272

Desse modo, o vestuário dos cangaceiros se caracterizava como uma indumentária que
despertava admiração por ser uma roupa colorida e decorada. Assim, os trajes, ícones dessa
cultura, conservam um pouco dessa tradição tão enraizada no contexto atual. Neste âmbito,
Pesavento (2003, p. 33) ressalta que os procedimentos de representação social utilizados pela
Literatura e História servem para atribuir significado ao imaginário, seja “para negá-lo,
ultrapassá-lo ou transfigurá-lo”. Pode-se afirmar, a partir disso, que a referida obra
cinematográfica se utiliza de referências ao real para promover novas significações, ao
confirmar a influência marcante dos cangaceiros no contexto do árido sertão nordestino.
Além disso, percebe-se que os aspectos da cultura sertaneja difundidas na
cinematografia de Arraes conservam elementos típicos do Nordeste, o que valoriza a identidade
cultural do povo, pois o diretor disseminou, através da mídia, outras formas representativas de
evidenciar os atributos da obra dramatúrgica de Suassuna. Ao trabalhar os figurinos com
tamanha riqueza de caracterização, cheia de ornamentos, enfeites e materiais de relevância que
adornavam ainda mais os trajes, o filme reporta-se à caracterização do cangaço e ao imaginário
da região nordestina.
Em suma, a narrativa fílmica relaciona com maior visibilidade ao espectador à
realidade, ao revelar cenas marcantes que, através das telas do cinema, apresentam situações
que resgatam a herança e os traços da cultura popular. Sobre isso, cabe ressaltar os dizeres de
Santiago (1974, p. 166) ao reiterar a importância dessa “tradição viva, peculiar e fecunda, [...]
fonte para uma literatura erudita fundamentalmente brasileira”. Sendo assim, as imagens
exibidas no longa-metragem trazem personagens significativos, ao corroborar para ilustrar
ainda mais aspectos pertinentes à história e que se personificam em expressões literárias
transpostas para as telas do cinema.

Considerações Finais

A obra cinematográfica O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, é um filme que


enaltece a cultura nordestina, sobretudo por mostrar a historiografia do cangaço e suas
influências. A partir do personagem Severino de Aracaju, se conhece um pouco da história
desse ícone que se vincula às características dos verdadeiros cangaceiros típicos da caatinga.
A imagem do cangaceiro, símbolo de resiliência social nordestina, caracteriza uma
representação de valor histórico. A partir dessas imagens, pode-se conhecer as várias vertentes
do movimento, como a exemplo da “estética do cangaço”, conforme Mello (2010). Além disso,
273

nota-se a influência da religião, estilo muito presente no imaginário popular, pois a trama
desenvolvida para o cinema carrega tradições e crenças religiosas ligadas ao catolicismo
popular, por ter sido adaptada para a realidade da região.
Percebe-se que o cangaço é um fenômeno que agrega e sintetiza tanto elementos do
meio físico quanto dos aspectos culturais do sertão nordestino. Neste sentido, O Auto da
Compadecida reproduz a típica representação do cangaceiro, principalmente com a finalidade
de ressaltar elementos da cultura popular. Além disso, o diretor agrega valor ao filme por trazer
para a cena o perfil representativo do cangaceiro mais famoso da história, Lampião.
Neste âmbito, a realidade construída a partir dos episódios valoriza ainda mais o
imaginário popular, a exemplo da gaita mágica. Ademais, ao expor tudo a partir de um cenário
rico em detalhes, tanto na paisagem, quanto no social, a produção cinematográfica apresenta de
modo dinâmico representações acerca da realidade e da cultura do povo.
Dessa forma, observa-se que as representações historiográficas do cangaço atribuem
valor à cultura nordestina, principalmente por reiterar o vasto legado e os traços que continuam
ainda na memória do povo nordestino. O filme de Arraes, nesse entender, amplia ainda mais
esses aspectos por destacar as particularidades mais relevantes pertencentes à religiosidade
popular e de que maneira o povo sertanejo mantém essa marca viva no cotidiano.
A imagem fílmica oferece uma visão específica do real, principalmente por reforçar o
poder e a penetração que essa promove sobre as peculiaridades que se apresentam como
“princípio de uma realidade” (DUBOIS, 1993, p. 43). Com efeito, o filme mistura esses
atributos relacionados à história ao inserir nas cenas nuances que dialogam com a tradição do
cangaço.
Assim, os traços dos cangaceiros n’O Auto da Compadecida delineiam caminhos que
permitem simultaneidades com a obra dramatúrgica de Suassuna. Os aspectos históricos
apresentados caracterizam representações populares de um ambiente típico do sertanejo. Por
esta razão, mesmo que os acontecimentos da trama não façam parte da historiografia oficial,
buscou-se apresentar as especificidades relacionadas à historiografia do cangaço na referida
obra fílmica.

Referências

BARRETO, Sérgio Alberto Menezes. A História do Cangaço Enquanto Atrativo Turístico:


O Caso do produto Xingó (Canindé do São Francisco – Se.). 2004. 136 p. Dissertação –
Mestrado em Cultura e Turismo, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2004.
Disponível em:
274

https://ww.uesc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/turismo/dissertacao/dissertacao_sergio_al
berto.pdf. Acesso em 10 de jan. 2019.

CARNEIRO, Gabriel de Campos. Nos Rastros dos Cangaceiros: Em busca de novas trilhas
para apreensão de um movimento social. 2010. 110 p. Dissertação – Programa de Pós-
graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2010. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7848/1/2010_GabrielCamposCarneiro.pdf. Acesso
em 10 de jan. 2019.

CHAVES, Luciano Gutembergue Bomfim. A Estética do cangaço à luz das noções


nietzscheanas de apolíneo e dionisíaco. Revista AnaLógos, Rio de Janeiro, n. 1. 2018.
Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/34414/34414.PDF. Acesso em 16 de janeiro de
2019.

CURRAN, M. J. A Literatura de Cordel: antes e agora. Hispania – Revista Española de


História, v. 74, n. 3, sept. 1991.

DÖPPENSCHMITT, Elen. Dossiê Jerusa Pires Ferreira. Revista Intermídias. In:


CERQUEIRA, Aliana Georgia Carvalho; MENDES, Patrícia Adorno; GÓES, Maria das Graças
Teixeira. O papel da memória na letra da música de Zé Ramalho “A peleja de Zé Limeira
no final do segundo milênio”. Disponível em:
http://seer.ucp.br/seer/index.php/vernaculum/article/download/925/414. Acesso em 10 jan.
2019.

DUBOIS, Philippe. O Ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993.

DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1998.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

FRANCHETTI, Paulo. História literária: um gênero em crise. Revista Semear, Rio de Janeiro,
n. 7, p. 247-264, 2002. Disponível em: http://www.letras.puc-
rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_18.html. Acesso em 10 de jan. 2019.

LAJOLO, Marisa. Literatura e história da literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALARD,
Letícia et al. História da literatura: ensaios. Campinas, SP: Editora UNICAMP. 1994. p. 19-
36.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2011.

MELLO, Frederico Pernambucano de. Estrelas de couro: a estética do cangaço. São Paulo:
Escrituras Editora, 2010.

O Auto da Compadecida. Direção de Guel Arraes. São Paulo: Globo Filmes, 2000. 1 DVD
(105 min).

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2003.
275

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, Cléria
Botelho da; MACHADO, Maria Clara Toniaz (Orgs.). História e Literatura: identidades e
fronteiras. Uberlândia: EDUF, 2006. p. 14 – 220.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da História e da Literatura.


História da Educação, Porto Alegre, RS, n. 14, p. 31-45, 2003. Disponível em:
http://www.seer.ufrgs.br/asphe/article/viewFile/30220/pdf. Acesso em 10 jan. de 2019.

SANTIAGO, Silviano. Situação de Ariano Suassuna. In: SUASSUNA, Ariano. Seleta em


prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p. 166.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agi


276

DA SALA AO SAGUÃO E DO TEXTO AO CORPO: RELATO DE UMA


EXPERIÊNCIA DE TEATRO NA ESCOLA

Ágata Cristina Kaiser


Caroline Cavalcante do Nascimento

Introdução

Ana Maria Machado, dialogando com Italo Calvino em um livro intitulado Como e
por que ler os Clássicos Universais desde cedo, apresenta, logo no início de sua abordagem,
uma série de memórias do primeiro contato de escritores com a literatura, ainda muito jovens,
e de como essa experiência ficou registrada. Além de contar sobre sua própria vivência, ela cita
recordações de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos,
Roland Barthes, Jorge Luis Borges, Umberto Eco e ainda outros. E diz:

Em todos esses casos, o que me interessa destacar não é a variedade de leitura dos
clássicos feita por gente famosa. Prefiro chamar a atenção para o fato de que esses
diferentes livros foram lidos cedo, na infância ou adolescência, e passaram a fazer
parte indissociável da bagagem cultural e afetiva que seu leitor incorporou pela vida
afora, ajudando-o a ser quem foi. (MACHADO, 2002, p. 11).

Diversos mediadores podem ser os responsáveis por esse encontro fortuito entre o
jovem indivíduo e as histórias que compõem os livros: o pai, a mãe, a avó, uma ex-escrava, um
professor. Ana Maria Machado, então, considerando as diferenças existentes entre o ensino de
sua juventude e o que hoje podemos, como professores, fornecer, dá uma série de orientações
para que possamos facilitar este encontro. Uma das sugestões consiste na não obrigatoriedade
da leitura por meio da exigência de provas e notas, uma vez que, para ela, ler é um direito, e
não um dever. Outra ideia é a de que o contato com esse texto (clássico, no caso da proposta
deste livro) possa ser realizada a partir de uma “adaptação bem-feita e atraente” (MACHADO,
2002).
Paulo Freire, por sua vez, em Pedagogia da Autonomia, propõe de maneira enfática
que o aluno também seja “sujeito da produção do saber” e que nosso papel como professores
seja o de “criar possibilidades para sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996),
impondo-nos a necessidade de trabalhar com o texto literário ativamente e de fornecer de
maneira profunda ao menos lampejos do que seja este “clássico” a que aquele jovem está tendo
acesso. Paulo Freire, nesta mesma obra, critica a figura do “intelectual memorizador”,
277

que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas


leituras quase como se estivesse recitando-as de memória – não percebe, quando
realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país,
na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo
pessoal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como
se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade
de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma
escola que vai virando cada vez mais um dado aí, desconectado do concreto.
Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria
por atacado.
Ler vinte livros, trinta livros. A leitura verdadeira me compromete de imediato com o
texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou
tornando também sujeito.
Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela
produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada
que ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo (FREIRE, 1996,
p. 15).

Este “pensar certo” de Paulo Freire tem a ver com a capacidade de o professor se
perceber tanto como alguém repleto de incertezas quanto como alguém que se propõe a
conhecer o mundo, a identificar que não conhece tudo e que se abre também para um
conhecimento que ainda nem existe, que está em processo e cuja construção depende de sua
forma de se relacionar com o que está por vir. Portanto, para Freire, ainda que “pense errado”,
ou seja, que se equivoque em alguma interpretação, o professor só pode “ensinar certo” desde
que “pense certo”. Especialmente porque este professor se reconhece também, com esta forma
de pensar e de ensinar, em uma postura de constante aprendizado (FREIRE, 1996).
O ensino da literatura, então, para nós, professores, passa a se delinear como um
desafio. Nosso propósito sempre foi o de “ensinar” a literatura buscando algum tipo de
envolvimento do aluno com o texto. A princípio, a partir dessa tentativa de proporcionar um
encontro que possa reverberar como memória afetiva incorporada à bagagem pessoal do jovem
leitor, depois, que possa conduzi-lo a uma leitura ampla, que ultrapasse os limites da página e
que funcione como uma leitura do mundo, desenvolvendo nele a capacidade de identificar a si
e às situações do mundo metaforizadas e desautomatizadas pela literatura.
Apesar de não termos formação em teatro, esta prática sempre nos pareceu ser eficaz
para criar este vínculo entre texto literário, indivíduo e mundo, especialmente pelo
atravessamento que a representação do texto produz no corpo, seja pela repercussão da voz no
ato de recitar um poema ou o texto memorizado, seja pela performance no momento presente
da ação, seja pela identificação gradativa daquela representação com o mundo que o cerca.
Além disso, a preparação para encenar uma peça teatral necessariamente exige certo empenho
para que possa ser concretizada, como a preparação do texto para este formato caso o texto
literário não seja teatral; a seleção dos atores para cada papel; o ensaio da movimentação do
278

corpo e da impostação da voz para que todos possam ouvir; a memorização das falas; a
construção do cenário e do figurino; a escolha de uma possível trilha sonora e efeitos especiais
possíveis para quem é apenas amador.
Estes pressupostos têm respaldo no estudo de Paul Zumthor sobre a relação entre a
literatura e a performance e as percepções sensoriais que o texto escrito pode produzir no corpo.
Para ele, em Performance, recepção, leitura, tanto a palavra “literatura” quanto a palavra
“performance” estão bastante vinculadas à palavra “teatralidade” (ZUMTHOR, 2002). Seu
estudo se desenvolve tanto em relação à voz, o gesto e a cena que constroem um recital poético
quanto em relação à sensibilidade provocada no corpo receptivo à leitura, ainda que silenciosa.
Zumthor, interrogando-se “sobre o papel do corpo na leitura e na percepção do literário”, diz:

O que entender aqui pela palavra "corpo"? Despojado como ele está em minha frase,
parece escapar, por demasiado puro e abstrato, ideal, como o ego transcendental de
Husserl! No entanto, é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo;
ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido
na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é
próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de
uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo,
possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da
vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os
quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço, menos para
apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som
dos seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos;
tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas
também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de
segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou
pena provindas de uma difusa representação de si próprio (ZUMTHOR, 2002, p. 23-
24).

O corpo surge, então, a partir da perspectiva de Paul Zumthor, como elemento


essencial da recepção literária. Surge também, como vimos, como destinatário da efetiva
construção da memória afetiva e cultural que procuramos, como professores, provocar nos
alunos e como vetor de percepção a respeito de si e do mundo que os cerca. Ainda que
conscientes da nossa limitação em relação às técnicas e estratégias profissionais da dramaturgia,
arriscamos trabalhar o teatro como forma de promover o contato entre texto literário e aluno
nas aulas de literatura, buscando concentrar neste trabalho uma experiência que pudesse levá-
los do texto literário, inerte, à vivacidade que a interpretação da leitura destes textos produz no
corpo quando encenados.
Com base nestas premissas, compartilhamos, então, o processo de construção deste
projeto.
279

Sarau Cultural
Este projeto, no qual trabalhamos juntas por dois anos consecutivos, 2015 e 2016, foi
realizado durante nosso período como professoras substitutas de língua portuguesa, literatura e
cultura brasileira e redação e estudos linguísticos no Cefet-MG, em Belo Horizonte. A escola,
como Centro de Educação Tecnológica, privilegia bastante a tecnologia e as engenharias.
Apesar de a área de Linguagens ter alcançado conseguir seu próprio departamento e o curso de
Letras ser um dos cursos superiores oferecidos pela instituição e muitos dos seus professores
serem também escritores de literatura, o foco é em edição. A escola tem seu espaço dividido
entre os cursos do Ensino Médio integrado e a graduação, sendo longo o tempo de permanência
dos alunos na escola, já que muitos almoçam lá mesmo por terem aulas de manhã e à tarde, o
que tornam o saguão e os corredores lugares bastante movimentados nos momentos das
refeições. É importante frisar isso para que este relato consiga narrar com mais proximidade o
impacto que a sua realização atingiu ao acontecer neste lugar. Nosso encontro para o
desenvolvimento deste projeto surgiu por compartilharmos essa visão a respeito do ensino de
literatura e uma tendência à ruptura de determinadas regras, o que permitiu que esse trabalho
se realizasse para além do espaço da sala de aula.
Como professoras de literatura e redação de uma grande quantidade de turmas,
decidimos desenvolver este projeto de teatro com todas elas. Era algo que estávamos
acostumadas a fazer de forma mais íntima, no espaço da sala de aula, em apresentações para os
próprios colegas. Desta vez, propusemos que os alunos fizessem uma intervenção no saguão da
escola, durante os intervalos, como uma espécie de teatro de rua, com poucos recursos, pouco
cenário e pouco figurino, pois a produção teria que ser rápida para se construir e rápida para se
desfazer, pois em alguns dos dias haveria mais de uma peça e o tempo para a apresentação
deveria se limitar ao intervalo. Isso se deu porque, além de não termos conseguido aulas de
outros professores para que os alunos pudessem se preparar melhor, queríamos que outros
alunos assistissem às peças, para que este não fosse um trabalho de sala para ser apresentado
apenas ao professor. O empenho certamente seria mais incisivo.
Além disso, as peças e os textos literários que propusemos precisariam de uma
adaptação, pois deveriam se concentrar neste pouco tempo disponível. Para isso, os alunos, que
foram divididos em grupos e tiveram que se organizar para elaborar toda a produção, como
roteiro, figurino, trilha sonora, cenário, divulgação e atuação, precisaram também selecionar os
eventos que teriam prioridade na encenação, exigindo deles essa leitura minuciosa e detalhada
que imprimiu também a própria interpretação do texto. Assim, durante algumas semanas, na
hora dos intervalos, tivemos o Sarau Cultural produzido pelos alunos das nossas turmas. Os
280

textos que oferecemos aos alunos na verdade faziam parte das leituras obrigatórias do currículo
do ano que estavam estudando, a maioria do primeiro ano do Ensino Médio. Algumas das peças
trabalhadas foram Édipo Rei, de Sófocles; Romeu e Julieta, de Shakespeare; “Caso do Vestido”
(Fig. 1), de Drummond; Auto da Barca do Inferno e Auto da Lusitânia (Fig. 2), de Gil Vicente;
o poema “A valsa”, de Casimiro de Abreu, foi escolhido pela musicalidade; Eles estão apenas
ensaiando, de Bernardo Carvalho; diversas peças de Nelson Rodrigues, entre outras.

Fig. 1 – Foto para flyer elaborado pela turma do curso técnico em Edificações (EDI), 2015, para divulgação da
peça “Caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade.
281

Fig. 2 - Turma do curso técnico de Eletrônica (ELT), 2015, após apresentação das peças “A valsa”, de Casimiro
de Abreu e Auto da Lusitânia, de Gil Vicente.

Como não conseguimos efetiva ‘licença’ para a utilização do espaço e o horário de


algumas aulas limítrofes ao intervalo para o prestígio e valorização deste trabalho, a forma de
atuação foi como uma ‘ocupação’, mesmo. Em pouco tempo os alunos chegavam ao saguão
com sacolas, caixas de som e com a organização deles mesmos o espaço logo ficava pronto. E
ainda que nem sempre houvesse um público grande esperando e já ciente do que aconteceria
(algumas vezes o grupo de divulgação não atingia todas as turmas da escola), em pouco tempo
havia uma aglomeração potente em torno da peça e ela se desenrolava criando muitas reações:
de riso, de susto, de surpresa, de espanto. Muitos transformaram textos canônicos inserindo no
enredo e nos diálogos referências contemporâneas, em ápices de criatividade e diálogo com seu
próprio tempo e espaço, atualizando as narrativas e conseguindo levar a compreensão que
construíram sobre a peça para todos que estavam assistindo.
Qual não foi nosso deslumbre ao observarmos, muitas vezes, os funcionários da
limpeza apoiados nas vassouras, em pausa e atenção plenas, observando o desenrolar dos
eventos de peças clássicas, ainda que simples e amadoras, com a mesma fruição que os
estudantes em preparo para assumirem profissões de destaque social! As emoções
compartilhadas igualavam a todos naquele momento, e a promoção de um contato agradável,
282

prazeroso e alheio à carga da obrigatoriedade entre jovem e literatura se deu em amplitudes não
previstas. O texto literário silencioso se transformava em voz e se movimentava no corpo não
só daquele que encenava, mas ensaiava seus efeitos também no corpo do outro, que via e
apreciava. Difícil chamar de ‘avaliativa’ uma atividade que na verdade deveria ter tido como
nome ‘artística’.
Quando decidimos contar aqui sobre este trabalho, depois de quatro, cinco anos de sua
realização, entramos em contato com alguns alunos para saber como aquelas semanas de
preparo e finalização das cenas reverberavam em suas vidas agora universitárias. A nossa
surpresa com os depoimentos que compartilharam conosco ultrapassou uma vez mais a previsão
já pretenciosa de conseguirmos tornar este encontro escolarizado entre aluno e texto literário
uma experiência no mínimo diferente e curiosa. Apresentamos alguns deles como resposta e
reflexo daquilo que, mais do que um resultado profissional bem sucedido para nós, funcionou
tanto como construção da bagagem afetiva e cultural que tanto almejamos que ficasse como
uma memória agradável quanto como o despertar de talentos ainda adormecidos naquela
ocasião.

Depoimentos
1-
“Bom, essa atividade aconteceu em 2015, no primeiro ano da minha turma no CEFET.
Na época, serviu muito para integrarmos como uma turma e nos ajudarmos, apesar de
sermos pessoas tão diferentes que já estavam fragmentadas em vários grupos. Lembro
de como aumentou o diálogo entre todos nós e como foi prazeroso o processo e o
resultado final. Hoje, como um aluno de licenciatura, consigo dar ainda mais valor a
este tipo de atividade, entendendo a importância da socialização e integração entre os
estudantes para que seja criado um bom ambiente na sala de aula”
(João Pedro Martins da Cruz - João foi nosso aluno no curso técnico de Meio
Ambiente (MEI), hoje é acadêmico do curso de Geografia na UFMG).

Notamos pela fala de João Pedro como os processos de criação de saberes dos quais
trata Freire podem ser aqui constatados. Entendemos que em um ambiente de ensino-
aprendizagem é imprescindível que haja boa convivência por parte dos discentes, haja vista que
é na socialização e no diálogo com o outro que se constrói conhecimento. Ao mencionar que a
realização das esquetes teatrais integrou a turma que já encontrava-se “fragmentada”, e que
possibilitou a ampliação do diálogo entre os estudantes envolvidos, confirma-se nossa hipótese
de que o trabalho com a arte em sala de aula é mais do que um simples processo avaliativo. É
também parte da formação do indivíduo enquanto persona consciente do seu papel social e
lugar no espaço escolar e (arriscamos afirmar) no mundo em que vive.
283

O prazer também é rememorado no seu discurso, prazer esse muito já debatido e citado
como sendo primordial para que haja aprendizado. Entendemos que quando há afeto e
motivação, os alunos buscam o conhecimento de modo muito mais instigante do que quando
há somente a obrigação. E ainda podemos ressaltar a ressignificação do processo educativo pelo
indivíduo, uma vez que, passados cinco anos e numa outra esfera de ensino (a universitária),
João consegue associar o seu novo papel (de acadêmico e futuro a professor) à experiência pela
qual ele passou. Sendo assim, notamos como a experiência corporal/educativa/literária
perpassou por esse sujeito de modo a ressignificar seu olhar ainda depois de tanto tempo.

2–
“No terceiro ano do CEFET nossa professora de literatura, Ágata Kaiser, nos passou
um trabalho no formato de teatro. Nosso grupo ficou responsável por produzir a peça
com base no poema “Caso do Vestido”, de Drummond, com trechos de “Dez
chamamentos ao amigo”, de Hilda Hilst. Para transformar o poema principal em peça
teatral cada pessoa leu individualmente o conteúdo e depois trocamos ideias em grupo,
comentando sobre as reações que tivemos, nossa interpretação mesmo. Enxergamos
o texto como uma narração, uma conversa, só que em versos. Então optamos por
manter o texto original na peça, apenas dividindo os diálogos entre as personagens e
inserindo pausas estratégicas (…) Foi uma experiência incrível. Deu muito trabalho,
mas foi muito gratificante. Gostamos muito do resultado. Todos tiveram participações
e contribuições fundamentais para tudo dar certo e não me lembro de nada sair dos
trilhos na hora da peça. (...) Só me arrependo de não ter pedido algum colega de outro
grupo para gravar. Seria muito bom ter essa recordação em vídeo. Mas consigo
lembrar de forma muito viva vários flashs de tudo, de todo mundo, desde os ensaios
nos locais mais inóspitos daqueles campi até o dia da apresentação. As aulas que
tivemos naquele ano e esse trabalho foram tão marcantes pra mim que contribuíram
para minha mudança de trajetória. Fui de Edificações para Letras ao invés de
Engenharia porque me apaixonei de vez por literatura.”

(Karen Elisa Rodrigues Louback Ferreira - Karen foi nossa aluna no curso técnico de
Edificações (EDI), hoje é acadêmica do curso de Letras na UFMG).

3-

“(...) Diante de nós, que tivemos vocês como professoras, surgiu o teatro, gênero
desafiador de expressão. É preciso uma dose grande de "cor-agem" (agir com o
coração) para encará-lo. É preciso uma dose grande de desapego à sua imagem para
se permitir ser um outro alguém, mesmo que por um tempinho. E a oportunidade de
fazer a peça de teatro no CEFET me fez trabalhar isso. É um grande tesouro o que o
teatro pode nos dar: a possibilidade de ser outro alguém; de se expressar; de tentar ver
uma pessoa com outros olhos de maneira muito mais íntima; de se soltar na frente de
outras pessoas; diminuir o nervosismo; entre outros.(...) Pode ser assustador ter que
encenar na frente de outras pessoas? Pode sim. Entretanto, isso nos dá novas
perspectivas e, além de promover um ambiente seguro de expressão, ter outros em
mesma situação ajuda a nos libertar das correntes que invisivelmente nos prende o
corpo. A escola, sendo um lugar em que se promove a educação, pode encontrar no
teatro muito a contribuir no desenvolvimento dos alunos. A aula de vocês duas eram
284

complementares. Estudo de produtos e produção, de um modo mais genérico, que, por


vezes, se intercambiavam. Por último, gostaria de relatar alguns reflexos que as aulas
de vocês tiveram em mim. Coisas em que elas contribuíram. Uma delas foi o próprio
teatro: no terceiro ano, embarquei numa jornada de artista e me matriculei em um
curso profissionalizante de teatro. Hoje, no último período e a poucos passos de poder
tirar o registro profissional de ator, me encontro muito evoluído em termos da
representação artística. O teatro me proporcionou experiências incríveis. Já fiz
diversas apresentações e me soltei bastante. O incômodo ainda me persegue, mas isso
é apenas um sinal de que estou evoluindo. Ademais, vislumbro uma possível carreira
como tradutor. Descobri-me de forma mais recente como um maior amante das
palavras do que eu já era. Acredito que essa estrada possa me proporcionar uma
conciliação entre a minha natureza de amante e o mercado de trabalho.

(Ruan Bertuce – foi nosso aluno no curso técnico de Informática (INF), hoje está
concluindo um curso profissionalizante de teatro).

Em ambos os depoimentos percebemos novamente a menção à noção do prazer,


associada aqui à ideia da paixão e da transformação do indivíduo. Os dois alunos relatam ter
mudado suas opções profissionais devido à experiência que tiveram com o teatro e a literatura
em nosso projeto. O contato com a arte proporcionou, nesses casos, uma espécie de “auto-
conhecimento” já que pelos relatos nota-se a questão da mudança de olhar, de percepção de si
e do outro, bem como do próprio desejo.

Considerações finais

Conceber a leitura como uma atividade emancipatória e de natureza criativa-


instigadora nos levou às práticas aqui relatadas. Estamos certas de que a leitura e os trabalhos
que têm como fim a avaliação devem ser moldados também pelo gosto e, sobretudo, pela arte.
Ler relatos como os acima descritos nos provam que educação se faz com desejo e que essa
potência está acima do que se espera de uma sala com portas fechadas e alunos enfileirados,
aquietados.
Nossa perspectiva é que possamos seguir com práticas de ensino como as supracitadas
e que as marcas deixadas tanto em nós como nos estudantes sejam a confirmação de que o
caminho para a educação - de fato - transformadora passa pela noção do saber enquanto
construção coletiva de conhecimentos e também de afetos.

Referências
285

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2002.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. de Jerusa Pires Ferreira; Suely
Fenerich. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
286

A POÉTICA DO ROMANCE HISTÓRICO DO SÉCULO DEZENOVE

Jorge Antonio Berndt


Gilmei Francisco Fleck

Introdução

A relação entre história, memória e literatura remonta à Antiguidade e à Idade Média


– um tempo em que as grandes narrativas de Rama, Aquiles e Cid, por exemplo, imiscuíam
caracteres poéticos e de extração histórica sem uma diferenciação rigorosamente estipulada dos
domínios da “realidade” e da “ficção”. Não obstante, a partir do início da Modernidade, eles
foram sendo paulatinamente distinguidos. Resultado do processo de busca de uma suposta
“verdade”, cuja base se sustentou na ascensão da burguesia ao status de classe dominante, esse
desmembramento entre as esferas científicas e artísticas, materializado no rápido
desenvolvimento de disciplinas como a História e a Biologia, coincidiu, não aleatoriamente,
com o nascimento de diversos gêneros que, a partir desse ponto, passaram a misturar aqueles
elementos considerados verdadeiros aos falsos, de maneira consciente e lúcida.
Em um cenário de descobertas científicas e definições de distintos campos do saber,
em que sobremaneira “el concimiento del passado se afina rapidamente”69 (ALONSO, 1942, p.
39), essa nova tipologia histórico-literária teve no romance histórico um de seus desenlaces
mais produtivos, pontilhando toda a trajetória da escrita do século XIX europeu e americano.
Uma parcela relevante da crítica, como Lukács (2011), Alonso (1942), Mata Induráin (1995) e
Fleck (2017), reconheceu em um escocês a responsabilidade por estabelecer as suas bases: de
textos como Waverley, Guy Mannering, The Antiquary, Rob Roy e The Heart of Midlothian,
Sir Walter Scott (1771-1832) teria lançado, sob essa visada, as sementes de uma nova forma
cujas distintas manifestações atravessariam o século XIX para ainda hoje serem apreciadas ao
redor de todo o globo.
Ao analisar alguns dos textos que exemplificariam as principais diretrizes e
transformações do gênero ao longo de seu percurso, encetado em 1814 e em constante
metamorfose até a pós-modernidade, Fleck, em O romance histórico de mediação: entre a
tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção (2017), reconheceu
que as suas vertentes se distinguiriam, apesar das repetições que fariam delas um gênero, em
razão de determinados traços fundamentais. Estes seriam o emprego de estratégias escriturais,

69
Nossa tradução livre: “o conhecimento do passado se afina rapidamente.”.
287

a inserção do material histórico, a circunscrição das ideologias e a integração de intenções


motivadoras. Sob essa visada, o leitor – e especialmente o professor – poderia identificar a
configuração de fases acríticas e críticas, dos grupos desconstrucionistas e mediadores e das
modalidades que iriam da scottiana à contemporânea, definida pela mescla dos traços
estruturais tradicionais ao conteúdo desmistificador.
Considerando a condição da escritura do romance pós-revolucionário, atravessada por
um conjunto de transformações, às vezes coerentes e outras não, buscamos identificar os traços
que reúnem e afastam algumas das diretrizes que se configuram na intriga do romance histórico
do século XIX a fim de, assim, reconhecer os seus principais movimentos. Segue-se que de
Ivanhoe (1944), publicado por Sir Walter Scott, em 1819; Lichtenstein (1929), publicado por
Hauff, em 1823; O Vermelho e o Negro ( 2017), publicado por Stendhal, em 1830; e Mercedes
of Castile; or, the Voyage to Cathay (1944), publicado por James Fenimore Cooper, em 1840,
desdobramos paulatinamente as convergências e divergências de suas estruturas, levando em
conta que o estudo da poética dessas narrativas, da Literatura Comparada e da própria “[...]
crítica não é absolutamente uma tabela de resultados ou um corpo de julgamentos, ela é
essencialmente uma atividade, isto é, uma série de atos intelectuais profundamente engajados
na existência histórica e subjetiva daquele que os realiza, isto é, os assume.” (BARTHES, 1970,
p. 160).

A intriga de Ivanhoe (SCOTT, 1994), Lichtenstein (HAUFF, 1929), o Vermelho e o Negro


(STENDHAL, 2017) e Mercedes of Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944)

O estruturalismo levantou como premissa inicial a ideia de que o texto literário é


composto por frases cujo tecido se desdobra em torno de diferentes registros de fala. Ao
assimilar esses conceitos, Todorov (1971) indicou a existência da dicotomia entre o enunciado,
de natureza verbal, e a enunciação, não-verbal e, logo, caracterizada pelas instâncias do emissor,
do receptor e do contexto. Do interior do enunciado, o autor ainda promoveu uma segunda
distinção: haveria, de um lado, a referencialidade e, de outro, a literalidade. A consequência do
sistema que se estabeleceu desde a visada oferecida foi a do surgimento de certas tipologias
discursivas que se integrariam à narrativa, como a transitiva, a abstrata, a figurada, a conotativa,
a narrada (diálogo e monólogo), a avaliatória e assim por diante. A partir da distribuição e
integração desses elementos ao nível das visões da narrativa, Todorov (1971) postulou ainda a
possibilidade de se observar os vínculos de dominância e importância entre as suas estruturas
288

gerais, de sorte que se diferenciariam três áreas de análise dessa poética, a saber: “estudo da
sintaxe narrativa, estudo temático e estudo retórico.” (TODOROV, 1970, p. 87).
Para Todorov (1970), enquanto a investigação temática se associaria ao aspecto
semântico evocado, a retórica trataria das frases concretas pelas quais o leitor tem contato com
a narrativa. Por sua vez, o estudo da sintaxe narrativa se referiria à “[...] combinação das
unidades entre si, as relações que elas mantêm mutuamente” (TODOROV, 1982, p. 18). De
fato, as três esferas da narrativa brotariam, nesta acepção de ordem estruturalista, de maneira
indistinta, pois um elemento sintático deveria encontrar simultaneamente um conteúdo
semântico e uma disposição verbal pela qual o leitor seria capaz de depreender a narrativa.
Assim o é: uma alteração na situação de determinada relação entre duas personagens só se
firma, por exemplo, a contar do momento em que se articula a um conteúdo, como o
matrimônio, e a uma forma, como o posicionamento e a visão do narrador ou o registro figurado.
Não obstante, a aparente irredutibilidade das unidades narrativas se desfaz quando passamos de
uma consciência semântica ou simbólica para uma paradigmática, esta que define o sentido
como uma modulação de coexistência, substituindo as antecedentes “[...] por uma relação (pelo
menos) quadrilateral, ou mais exatamente, homológica.” (BARTHES, 1970, p. 44). Então
menos do que o esvaziamento do significado, tal perspectiva sintagmática propiciaria o
nascimento de múltiplas significações ao designar o processo de significância em seus liames,
constrangimentos, tolerâncias ou liberdades.
É no acolhimento dessas orientações, cujo sustentáculo se baseia na rede de
interdependências lógicas/causais, temporais e espaciais que se perfazem na sintaxe das
narrativas, que identificamos a correspondência de certo número delas à fórmula geral do
romance histórico. O gênero em questão não se caracterizaria pela romancização da história, a
saber, um puro gesto de inscrição histórico-arqueológica em prosa, ou, ainda, pela sobreposição
absoluta do discurso imaginativamente arranjado sobre aquele que é transposto da historiografia
ao texto. Ao contrário, como em uma espécie de jogo, ele se estabeleceria, conforme Mata
Induráin (1995), no equilíbrio de duas tensões que incessantemente dialogariam, chocando-se
e lutando de maneiras distintas.
A despeito desses índices de gênero serem pouco motivados ou abstratos, Ivanhoe
(SCOTT, 1994) é uma amostra exemplar de tal paradigma. Em sua fábula, Wilfred of Ivanhoe
pretende se casar com Rowena, que é mantida sob a custódia do pai do herói (Cedric), em razão
de ser a herdeira de uma notável estirpe saxã. Impossibilitado de realizar o seu desejo, ele se
associa a Ricardo Coração de Leão e vai às cruzadas. Ao voltar da terra santa, o jovem,
disfarçado de Cavaleiro Deserdado, participa e vence o torneio fomentado pelo príncipe regente
289

(João). Como o protagonista se encontra à beira da morte, após os combates, os judeus Isaac e
Rebecca levam-no, sem que ninguém veja, para casa. Eventualmente, Rebecca é capturada por
um templário do séquito de João. Já recuperado, Ivanhoe, com a intervenção de Ricardo
Coração de Leão, domina os seus adversários, lacaios do príncipe, convence seu pai a deixar
que ele se case com Rowena e liberta a judia. Tudo se encerra com Rebecca indo à Espanha,
sem conseguir confessar o seu amor por Ivanhoe, e este se casando, finalmente, com a donzela,
Rowena. A recepção exitosa da narrativa impactou de maneira significativa toda a produção
literária da Europa e da América, como Fleck (2017, p. 56) explanou:

Essa modalidade de romance encontrou grande aceitação pelos leitores da época e


espalhou-se rapidamente por toda a Europa e América. Seu público leitor, além de
estabelecer vínculos com seu passado real, por meio das personagens do “pano de
fundo” presentes na obra, bem como pelo modo de pensar, agir e ser destas, também
encontrava aí prazer, diversão, emoção, objetivos de todo e qualquer texto literário.

Lichtenstein (HAUFF, 1929) ilustrou bem esse sistema apresentado por Fleck (2017).
Georg Sturmfeder, um jovem militar sem preferências políticas delimitadas, vai a Ulm, onde a
Schwäbischer Bund (Liga) se concentra para prevenir que Ulrich von Württemberg reaveja seu
trono. Nesse cenário, após se envolver com Marie von Liechtenstein e seu pai, o jovem
abandona a Liga, formada pelos comandantes Volland, Frondsberg e Waldburg, e foge da
cidade. Como nesse percurso ele é gravemente ferido pelo inimigo, uma família apoiadora do
duque, além de o salvar e curar, o envia para Liechtenstein. No local, o protagonista duela com
um pretenso amante e, em seguida, conversa com sua futura noiva, Marie, para auxiliar na fuga
do duque a Mömpelgard. Depois de, em conjunto do príncipe, perder os combates em Stuttgart
e ser feito cativo pela Liga, Georg se dirige mais uma vez para Liechtenstein, cujo castelo passa
a servir de moradia para o casal, Georg e Marie, no fim da história.
Uma das ameaças ao esquema dessa primeira tipologia do romance histórico foi
oferecida mais tarde por O Vermelho e o Negro (STENDHAL, 2017). Acompanhamos Julien
Sorel, filho de serralheiros, aspirante à carreira eclesiástica e amante absoluto dos valores
revolucionários franceses, tendo por “livros sagrados” As Confissões de Rousseau, o Memorial
de Santa Helena e o conjunto de boletins do exército napoleônico. Por indicação do abade
Chélan, ele acaba sendo contratado para trabalhar como preceptor dos filhos do prefeito da
cidade, Senhor de Renâl. A partir daí, vê-se no protagonista uma mescla de ambição e ódio em
relação à aristocracia e à burguesia francesa. Tal viés se materializa em seu arrivismo latente
na segunda parte: tudo se torna matéria para sua ascensão, de modo que o pano de fundo dá
lugar a um único argumento: o ficcional, que, metafórica e metonimicamente, apresenta um
290

universo que, conforme Auerbach (2015), irmana-se do fenômeno sócio-político histórico da


Restauração.
Retomando as formulações perpetradas por Scott (1994) e Hauff (1929), Mercedes of
Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944) figura, em sua construção, a
desestabilização das relações entre Luis e Mercedes: a única maneira de convencer Beatriz
(legalmente, a mãe da donzela) e a própria rainha a aceitarem o seu casamento com a nobre de
Valverde é por meio de seu engajamento em uma aventura de valor financeiro e heroico
palpável. Animado por tal objetivo, o jovem se integra ao grupo do honrado e misterioso
Cristóvão Colombo para, logo em seguida, aportar sobre o solo do Novo Mundo e conhecer a
indígena Ozema. Ao levá-la junto de si à Espanha, Luis, já reconhecido por seus feitos nas
Índias Ocidentais e transformado depois de se tornar amigo do almirante, vê-se traído pelas
circunstâncias: estaria ele envolvido amorosamente com a pagã? Porém, a dúvida ou
ambiguidade gerada por tal situação é solucionada com a intervenção de Isabel e Colombo, cujo
auxílio final proporciona a união derradeira entre os dois amantes, Luis e Mercedes, perante a
morte da nativo-americana.

As diretrizes do romance histórico do século XIX

A partir da redução dos deslocamentos cardinais das intrigas de Ivanhoe (SCOTT,


1994), Lichtenstein (HAUFF, 1929), O Vermelho e o Negro (STENDHAL, 2017) e Mercedes
of Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944) a um conjunto de resumos, o leitor pode
constatar a recorrência de certos atributos. Ele é capaz de encontrar nesse ambiente de
enfrentamentos referências às personagens que incorporam o nome de personalidades históricas
importantes. Ele ainda pode observar que estas podem aparecer determinantemente na diegese,
modificando a condição das personagens fictícias, mas que se adaptam perfeitamente ao
ambiente histórico. A fim de reter tão somente o essencial, citamos a confluência relativamente
semelhante dos componentes ficcionais e históricos, cuja aparição se dá por meio da presença
de actantes (como Ricardo Coração de Leão, Ulrich von Württemberg e Cristóvão Colombo) e
informantes (como as delimitações espaciais, temporais de ordem histórica no universo de
Julien Sorel) ou pelas próprias circunstâncias responsáveis por restringir as ações e
combinações funcionais (como o posicionamento social eminentemente histórico
desempenhado não só pelas protagonistas mas por todas as personagens das diegeses).
Entretanto, tal generalidade se mostra apenas no nível da presença ou da mistura dos
carácteres históricos aos literários, visto que ao se observar a especificidade da aplicação de tais
291

termos, notamos que os quatro romances se direcionam a dois caminhos dispares: há, de um
lado, a modalidade escritural clássica do romance histórico, que acompanha os preceitos
difundidos por Scott (1994), e, de outro, uma vertente responsável por romper com aquele
modelo através de uma forma, senão crítica, subversiva. Nesse primeiro percurso, encontram-
se congregados a Ivanhoe (SCOTT, 1994), Lichtenstein (HAUFF, 1929) e Mercedes of Castile;
or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944). Pode-se a partir desse ponto dar uma apresentação
mais concisa da repetição que se performa nessas três intrigas: designando por “+” a
consecução, por “>” a causalidade e por “A”, “B”, “C” e assim por diante os agentes, passamos
a uma breve esquematização:

Figura 1. Esquematização da intriga

Na figura 1, enquanto A designa os protagonistas (Ivanhoé, Georg e Luis), B denomina


as “donzelas” (Rowena, Marie e Mercedes). Na estipulação, eventualmente, surge uma
interferência na relação entre os amantes; o que causa, seja para comprovar algo (na aventura
de Luis) ou por valores pessoais (no caso de Ivanhoé e Georg), a integração do herói ao
movimento de uma personagem de extração histórica (D, isto é, Ricardo Coração de Leão,
Ulrich von Württemberg e Cristóvão Colombo em suas realizações), que irromperá como
fundamental para o processo dialético do pano de fundo da diegese. Depois de uma certa
emersão desse momento, mas ainda no interior de uma conjuntura histórica, algo interfere na
derradeira união do casal, como um mal entendido em razão de uma terceira pessoa ou das
circunstâncias históricas, a despeito de não ser capaz de pará-la. Conforme Márquez Rodríguez
(1996) estipulou, as relações entre esses dois universos que se imiscuem na modalidade que
toma a forma de Scott (1994) poderiam ser reagrupadas a partir de quatro traços principais, os
quais misturariam indiscriminadamente os elementos semânticos, sintáticos e verbais das
narrativas:

1. um “pano de fundo” cuja ambientação é feita com base em um período histórico


real, mais ou menos distante do tempo do romancista [...] 2 - ao “pano de fundo” se
sobrepõe uma trama ficcional na qual personagens e ações artisticamente compostos,
[...] vivenciam suas aventuras que são o centro da diegese [...] 3 – [...] a grande maioria
das obras de Scott [...] apresenta, nessa trama ficcional em primeiro plano, uma
história de amor problemática [...] 4 - [...] É do enfrentamento entre as personagens
principais [...] e das secundárias [...] que se originam alguns dos argumentos
fundamentais da diegese (MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, 1996, p. 21).
292

Os dois primeiros tópicos descritos pelo crítico apresentam características


eminentemente temáticas e retóricas: nessa modalidade, o conteúdo se sedimenta por meio do
encontro de dois polos bem distintos – um intertextualmente composto e o outro que, apesar de
seu feitio ficcional, adequa-se ao primeiro –, e o foco da narrativa recai sobre a ação dessas
personagens elaboradas sem fundamentos “reais”. Contudo, ao conectarmos o jogo dos panos
de fundo e de frente aos apontamentos finais de Márquez Rodríguez (1996), torna-se possível
precisar: I) a concepção de tempo cronológica que se perfaz nas ordenações de consecução dos
dados de extração histórica; II) a construção causal dos acontecimentos que dificultam a
estabilização da trama amorosa nesse cenário de “fidelidade histórica” (LUKÁCS, 2011, p. 80);
III) e o emprego de índices responsáveis por mitificar, de modo indireto, os sujeitos
coadjuvantes da narrativa (Ricardo Coração de Leão, Ulrich e Cristóvão Colombo) e as suas
ações. Esses exemplos revelam o caráter da escritura inaugurada por Scott (1994), com suas
escolhas de tom e de etos exaltadores; suas preferências pela linearidade à semelhança do
discurso historiográfico tradicional positivista e pelo amor burguês; e suas decisões de forjar
uma tensão entre os elementos protagônicos e coadjuvantes, de sorte que a grande personagem
histórica se desenvolva tal e qual um “indivíduo histórico mundial” (LUKÁCS, 2011, p. 56).
É, por meio dessas seleções e exclusões que tomam lugar na organização da sintaxe narrativa,
que se deslindam, segundo Del Pozo González (2017), as intenções propagandísticas e o teor
avaliativo-ideológico do texto de Scott (1994) e de seus seguidores.
No continente americano, e mais especificamente nos Estados Unidos da América, as
estratégias dessa modalidade fundada por Scott (1994), com todas as suas predileções e
anteposições ideológicas e intencionais, foram utilizadas em favor da comemoração de uma das
personalidades mais ambíguas da história: o almirante Cristóvão Colombo, autor do suposto
descobrimento europeu do Novo Mundo. Publicado em um período definido pela construção
de uma identidade nacional e territorial, cujo mote principal foi a expansão estadunidense rumo
ao oeste; o romance Mercedes of Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944), de 1840,
renarrativizou a formação do estado espanhol, materializado no casamento de Isabel e
Fernando, a expulsão dos judeus e, sobretudo, a primeira viagem do marinheiro às “Índias
Ocidentais”, com o seu contato junto aos nativos, ao ser acompanhado pelo protagonista, Luis.
Neste texto, a biografia de Colombo não é assumida como o único eixo da diegese devido à
rearticulação da forma clássica scottiana do gênero, implementada por Cooper (1944). Nesta,
“o grande homem tinha importância na história não isolado, em si e para si, em consequência
de uma enigmática ‘grandiosidade’ psicológica, mas como representante das correntes mais
importantes da vida nacional.” (LUKÁCS, 2011, p. 95). Ampliando as palavras de Lukács
293

(2011) para o caso de Mercedes of Castile; or, the Voyage to Cathay (COOPER, 1944), o
grande herói nacional surgiria, do interior do processo histórico dialético, como o símbolo das
aspirações e das tensões coletivas não só do universo narrado, porém também daquele que
produz e recebe o texto. Decorre dessa acepção que o Colombo de Cooper (1944) se transfigura
em uma personalidade entrecruzada por vozes que não lhe pertencem. Em suma, ele se torna
uma Forma-desejo, um composto de significações, uma quimera de sentimentos e virtudes
alheias a si, porque, representando os valores histórico-sociais e ideológicos selecionados na
escritura do texto, a sua imagem se irmana de qualidades que o projetam à semelhança do self-
made man estadunidense. Verificamos o funcionamento desse mecanismo mediante a
exposição do itinerário calcorreado pela personagem em sua vida; esta que tem, no ínterim entre
o aceite dos monarcas espanhóis e a viagem em si, o seu começo definido pela voz enunciadora
da seguinte maneira:

On a rocky promontory, at a distance of less than a league from the village of Palos,
stood the convent of La Rabida, since rendered so celebrated by its hospitality to
Columbus. At the gate of this building, seven years before, the navigator, leading his
youthful son by the hand, had presented himself, a solicitor for food in behalf of the
wearied boy.70 (COOPER, 1944, p. 178).

Posicionado em um momento em que o narrador elabora uma descrição da situação de


Palos antes da jornada em direção ao Ocidente, o fragmento opera como uma recuperação do
passado do navegador: de um lado, aparecem os signos do marinheiro e de seu filho padecendo
de fome ao tentar sobreviver, portanto, em uma posição de necessidade; do outro, os clérigos,
que o auxiliam, e o convento, celebrado desde então por tal feito. Assim, por meio de uma
estratégia que utiliza “o fenômeno dos ‘lugares da memória’ [...]” (RICOEUR, 2007, p. 58)
para retornar sete anos no tempo, na disposição A(2) B(1), o escritor delimita as condições
iniciais da vida de Colombo, omitindo “[...] os rumores sobre os conhecimentos prévios que
Colombo tinha acerca de Vincolândia e seu contato com um piloto desconhecido [...] o período
de Colombo em Portugal [...] sua relação pessoal com a Rainha Isabel e suas questões familiares
[...]” (STAVANS, 2001, p. 70, nossa tradução livre). A certeza desses acontecimentos que são
renarrativizados é reafirmada pelo uso do verbo no passado simples, cuja ideia “[...] é,
finalmente, a expressão de uma ordem e, por conseguinte, de uma euforia. Graças a ela, a
realidade não é nem misteriosa, nem absurda; é clara, quase familiar, a cada momento reunida

70
Nossa tradução livre: “Em um cabo rochoso, a uma distância de menos de uma légua da vila de Palos, ficava o
convento de La Rabida, desde aquele tempo tão celebrada por sua hospitalidade a Colombo. No portão desta
construção, sete anos antes, o navegador, levando o seu jovem filho pela mão, apresentara-se como um solicitante
por comida em nome de seu filho que se encontrava exausto.”
294

e contida na mão de um criador; sofre a pressão engenhosa de sua liberdade (BARTHES, 1974,
p. 134). Não obstante, tão logo a viagem tem seu ponto de partida, o discurso de sofrimento
cede ao de esforço e luta que tem no instante da partida o encetamento do senso de recompensa,
como o leitor pode observar pelo excerto a seguir:

The instant of departure at length arrived. The moment so long desired by the Genoese
was at hand, and years of poverty, neglect, and of procrastination were all forgotten
at that blessed hour; or, if they returned in any manner to the constant memory, it was
no longer with the bitterness of hope deferred. The navigator at last saw himself in the
possession of the means of achieving the first great object for which he had lived the
last fifteen years, with the hope, in perspective, of making the success of his present
adventure the stepping-stone toward effecting the conquest of the Holy Sepulchre.
While those around him were looking with astonishment at the limited means with
which ends so great were to be attained […] he had grown more tranquil as the time
for sailing drew nearer […].71 (COOPER, 1944, p. 207-8).

A passagem pode ser dividida em duas partes. Na primeira, o leitor contempla um


conjunto de argumentos que estabelecem a imagem do navegador como aquele que, mesmo
enfrentando os problemas da pobreza, da negligência e do esquecimento, foi capaz de se superar
por intermédio do esforço pessoal ao finalmente começar o seu trajeto rumo às terras ainda
desconhecidas do Ocidente. No entanto, os propósitos que o movem não se encerram neste
instante: mesmo que concebido a partir de uma ótica nucleada/individualizada, as suas
aspirações para o bem da nação, do povo e da cristandade se mantém firmes em sua viagem.
No segundo, a voz enunciadora demonstra as consequências da obstinação do marinheiro
através de uma antítese: enquanto os sujeitos que não são nominados, portanto, não possuem
identidade e objetivos individuais bem definidos, encontravam-se em pânico à sua volta; ele,
com vontades e planos precisos, regozija-se pelo acontecimento que se espreita. Após encontros
e desencontros, na sua maioria pacíficos por parte da personagem em questão, a missão se
encaminha para o seu fim: “Thus, virtually, ended the greatest marine exploit the world has
ever witnessed […] Columbus had effected his vast purpose, and his success was no longer a
secret.”72 (COOPER, 1944, p. 444). Em seguida, ao retornar para o local onde os monarcas que

71
Nossa tradução livre: “O instante da partida chegou. O momento por tanto tempo desejado pelo Genovês estava
agora em suas mãos; os anos de pobreza, abandono e procrastinação foram todos esquecidos nessa hora sagrada,
ou, se eles retornaram de alguma maneira à memória constante, não foi mais com a aspereza da esperança deferida.
O navegador se viu, finalmente, na posse dos meios para atingir o primeiro grande objetivo pelo qual vivera os
últimos quinze anos, com a esperança em perspectiva de fazer do sucesso de sua presente aventura o primeiro
passo para atingir a conquista do Santo Sepulcro. Assim, enquanto aqueles ao seu redor estavam observando com
espanto os meios limitados com os quais fins tão grandes deveriam ser obtidos [...] ele ficara mais tranquilo ao
passo que a hora para navegar se aproximava.”.
72
Nossa tradução livre: “Então, virtualmente, encerrou-se a maior exploração marinha que o mundo já
testemunhou [...] Colombo alcançara o seu altíssimo propósito e seu sucesso já não era mais um segredo.”.
295

lhe concederam a base material para a viagem estavam, ele recebe o prêmio final por seu
empenho e conquista, como é possível analisar pelo seguinte extrato:

The first few days that succeeded the arrival of Columbus’ courier were days of
delight and curiosity. Answers were sent soliciting his early presence, high honors
were proffered to him, and his name filled all mouths, as his glory was in the heart
of every true Spaniard […] His honors were of the noblest kind, the sovereigns
receiving him on a throne placed in public hall, rising at his approach, and insisting
on his being seated himself, a distinction of the highest nature, and usually granted
only to princes of royal blood.73 (COOPER, 1944, p. 463, nossos grifos).

O emprego excessivo de pronomes cuja referência é o próprio navegador comprovam,


no trecho, que o nome de Colombo é comemorado; o indivíduo, em conclusão, atinge o seu
desígnio: do prisma sintático, ele se constitui em uma intriga mínima completa ao percorrer o
estágio do sujeito à beira da morte (fome) até o que, pacientemente e pelos seus meios/ações,
granjeia as suas posses. Desse ponto em diante, os registros historiográficos que exibem um
Colombo abandonado pela coroa depois das viagens seguintes são ignorados. Ou seja,
finalizado o percurso da ascensão do indivíduo ao status de self-made man, resta,
exclusivamente, o reflexo, que Luis, seu companheiro e protagonista, assume: “Such, indeed,
was the vast reputation obtained by the Genoese, that one gained a species of reflected renown
by being thought to live in his confidence, and a thousand follies of the Count of Llera.” 74
(COOPER, 1944, p. 472). Isso se dá pois nessa modalidade, o escritor “[...] leva seus heróis
“medianos” para o centro da crise histórica, dos grandes conflitos humanos, sobrecarregando-
os com provas e missões extraordinárias a fim de, nessas situações extremas, retratar o
sobrepujamento de sua mediocridade passada” (LUKÁCS, 2011, p. 95), levando-os, assim, à
replicação das Formas, ou das ideologias, instauradas pela figura colonizadora do grande herói
do passado.
Por sua vez, Stendhal (2017), pelo caráter oculto e determinante da história na diegese,
pela proposição atravessada por um viés analítico frente aos monarquistas e republicanos e pela
construção de um protagonista baixo e essencialmente arrivista/tartufo, fomenta uma outra
vertente, que desarticula alguns dos paradigmas encetados por Scott (1994), abrindo caminhos
para a posteridade, que tem naquilo que Alonso (1942) chama de a crise do gênero alguns de

73
Nossa tradução livre: “Os primeiros dias que sucederam a chegada do porta-voz de Colombo foram dias de
deleite e curiosidade. Respostas foram enviadas solicitando a sua presença prematura, grandes honras foram
proferidas a ele e seu nome soou em todas as bocas na medida em que sua glória preenchia o coração de todo o
verdadeiro espanhol [...]. As suas honras foram do tipo mais nobre, com os soberanos recebendo-o no trono
posicionado em espaço público, levantando-se à sua chegada e insistindo que ele se sentasse – uma distinção da
natureza mais altiva e geralmente garantida apenas aos príncipes de sangue real.”.
74
Nossa tradução livre: “Tal foi a reputação obtida pelo genovês, que qualquer um ganhava uma espécie de renome
refletido por ser de sua confiança, de modo que milhares de tolices do Conde de Llera.”.
296

seus exemplos. Esse texto significa, portanto, a mutação da figuração que víamos voltar em
Scott (1994), Hauff (1929) e Cooper (1944). O jogo entre o pano de fundo e a trama ficcional,
bem como a pura aventura de amor não dominam mais o seu universo: o condicionamento
inefável da história, máxime na cena da Mansão de La Mole, afirma-se sobre a dialética em que
se insere o “herói” mediano de Scott (1994). Com efeito, O Vermelho e o Negro (STENDHAL,
2017) se integra a uma linha crítica de romances históricos, que tem em Cinq de Mars (VIGNY,
1970) e Xicotencatl (ANÔNIMO, 2020) um marco inaugurador, na medida em que, conforme
Fleck (2020, p. 45):

[...] são elas que introduziram a maior transformação na escrita híbrida de história e
ficção, após as inovações de Walter Scott em 1814, ou seja, a inversão do discurso
exaltador dos heróis consagrados pela historiografia, com a qual comungava toda a
literatura da época, para uma perspectiva discursiva crítica, uma releitura ficcional
dos eventos e personagens do passado sob um ângulo questionador e, no caso da
América Latina, anticolonialista em primeira instância.

Em resumo, a despeito de não terem configurado uma modalidade crítica, tais textos
apresentam um enfrentamento aos ditames canônicos da escrita romanesca híbrida de história
e ficção. Alguns dos atributos compartilhados por essa nova perspectiva são: “1. Eliminação
dos aspectos históricos inseridos na tessitura da obra como pano de fundo [...] 2. Inversão das
ações das personagens [...] 3. Foco estabelecido na perspectiva dos colonizados, dos vencidos
e silenciados [...] 5. Inversão nas dicotomias – ‘bons’ versus ‘maus’ [...]”. Cabe salientar, nesse
cenário, a recente tradução de Xicotencatl (ANÔNIMO, 2020): possibilitar aos leitores o acesso
a uma obra como o primeiro romance histórico da América Latina, depois de quase 200 anos
de sua publicação no México, é uma ação descolonizadora promovida pelo Grupo de Pesquisa
“Ressignificações do passado na América: processos de leitura, escrita e tradução de gêneros
híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”, no ano de 2020.

Considerações finais

De acordo com Barthes (1978), como código da linguagem, a língua é fascista: muito
mais do que o depósito de materiais, ela é o céu, o chão e o horizonte que limita, barra e
enclausura o seu “usuário”. Por ser uma propriedade excepcionalmente humana, ela se
estabelece tal e qual uma área de ação, um objeto social e não individual, “um emprego ao
mesmo tempo livre e regrado” (SAUSSURE, 1978, p. 4). De modo semelhante, mas
inversamente proporcional, o estilo “tem uma dimensão vertical, mergulha na lembrança
fechada da pessoa, compõe sua opacidade a partir de uma certa experiência da matéria”
297

(BARTHES, 1974, p. 123). Em conclusão, Barthes (1974) indica que a língua oculta a
coletividade da história e o estilo o passado do sujeito. Segundo Barthes (1974), a escritura é,
ao contrário da escuridão que fixa a língua e o estilo, uma função que se liga à intencionalidade
e à história, que redireciona a linguagem para o campo social, que conecta o seu produto e a
sociedade. Ela é, enfim, uma escolha de tons, fluxos verbais, formas, naturalizações, morais e
etos, sob a pressão instituída pela história e pela tradição. Decorre do último raciocínio que o
escritor jamais pode escrever sem se tornar prisioneiro de suas próprias palavras e das dos
outros, de sorte que ele nunca consegue se livrar da escritura anterior e daquela do seu próprio
passado. O seu produto, o texto, torna-se, enfim, “um espaço de dimensões múltiplas, onde se
casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original” (BARTHES, 2012, p.
62).
A contingência do texto, visível a partir do aspecto plural e hipertextual da escritura,
como exposto por Barthes (2012), aprofunda-se mais ainda ao se perceber o caráter
essencialmente verbal da escritura. Isto é, ao fazer da matéria da escritura o seu próprio fim, ao
exercer uma atividade sobre o seu próprio instrumento (a linguagem), absorvendo-o, a literatura
se torna para o escritor uma tautologia, uma sobre-palavra ou ainda uma metalinguagem: o
mundo além da página lhe serve, então, de pretexto, pois escrever passa a ser simultaneamente
uma função e uma construção intransitiva. Para Barthes (1970), em oposição à linguagem
transitiva – que funde o logos à práxis através de atos, técnicas e palavras invocadas a fim de
mudar o mundo sensível, por exemplo –, a intransitiva retem apenas o logos e, desse modo,
torna-se capaz de apenas duplicar o “real”, condenando-se à “irrealidade” e ambiguidade. É,
assim, sobre esse feitio aparentemente banal da escritura/literatura, de “fazer vários sentidos
com uma palavra só” (BARTHES, 1970, p. 174), que reside o seu duplo poder: I)
primeiramente, ela escancara o aspecto manuseável da palavra ao mostrar que a própria
escritura “é um discurso no qual se acredita sem acreditar, pois o ato de sua leitura se funde
num torniquete incessante entre dois sistemas: vejam minhas palavras, sou linguagem; vejam
meu sentido, sou literatura.” (BARTHES, 1970, p. 171); II) por fim, ela, precisamente por esse
sentido fugidio, faz-se apta a perguntar ao mundo, “abalando os sentidos assegurados, que as
crenças, as ideologias e o senso comum parecem guardar em seu poder”. (BARTHES, 1970, p.
162).
O problema é que “na América Latina, a trajetória da leitura e da escrita está
estritamente vinculada a tudo o que representou o processo de colonização: dominação,
imposição, exploração, subjugação.” (FLECK, 2018, p. 33). Aproveitou-se desse mecanismo
opressivo, em que apenas uma parcela da elite dominante tinha e tem acesso à escrita e leitura,
298

para manter a estratificação social que deu origem às nações latino-americanas. Como
resultado,

sob os ditames de preceitos colonizadores que ainda vigoram na atualidade, a


escola começou, assim, a produzir usuários de textos [...] ao invés de gerar
leitores literários capazes de entender que a linguagem, assim como o gesso, as
tintas, o mármore e tantas outras matérias primas que geram obras de artes, é
absolutamente manipulável. (FLECK, 2019, p. 65).

É, a contar desse ponto de vista, que buscamos, por conseguinte, resgatar, neste texto,
o percurso de alguns dos textos que se integram ao romance histórico do século XIX, como
Ivanhoe (SCOTT, 1994), Lichtenstein (HAUFF, 1929), O Vermelho e o Negro (STENDHAL,
2017) e Mercedes of Castile; or the Voyage to cathay (COOPER, 1944) para, desse modo,
proporcionar o avanço de posturas ledoras críticas e um passo rumo à descolonização ainda
necessária da identidade dos povos e das nações latino-americanas.

Referências

ALONSO, Amado. Ensayo sobre la novela histórica y el modernismo en La Gloria de Don


Ramiro. Buenos Aires: Instituto de Filologia, 1942.

ANÔNIMO. Xicotencatl. Curitiba: CRRV, 2020.

AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2015.

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo:
WMF, 2012.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. In: BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos
seguidos de o grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974.

COOPER, James Fenimore. Mercedes of Castile; or, the voyage to Cathay. London:
Dappleton & Company, 1944.

FLECK, Gilmei Francisco. Quando as palavras saltam à vida, geram sentidos e criam
consciência, forma-se um leitor. EntreLetras, Araguaína, v. 10, n. 2, p. 54 – 69, jul./dez. 2020.

FLECK, Gilmei Francisco. Introdução. In: LOPEZ, Cristian Javier et al (org.). A pesquisa em
literatura e leitura na formação docente: experiências da pesquisa acadêmica à prática
profissional no ensino – volume I. Campinas: Mercado de Letras, 2018.
299

FLECK, Gilmei Francisco. O romance histórico de mediação: entre a tradição e o


desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção. Curitiba: CRV, 2017.

FLECK, Gilmei Francisco. Xicoténcatl (1826): cenário de rupturas e enfrentamentos com os


ditames europeus do século XIX na América Latina. In: ANÔNIMO. Xicotencatl. Curitiba:
CRV, 2020.

HAUFF, Wilhelm. Lichtenstein: romantische Sage. Leipzig: Tufts College Library, 1929.

LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.

MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, Alexis. Historia y ficción en la novela venezolana. Caracas:


Monte Ávila, 1996.

MATA INDURÁIN, Carlos. Restrospectiva sobre la evolución de la novela histórica. In:


MATA INDURÁIN, Carlos et al. La novela histórica: teoría y comentarios. Barañáin:
EUNSA, 1995

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora UNICAMP,


2007.

SAUSSURE, Ferdinand. As palavras sob as palavras. In: SASSURE, Ferdinand et al. Textos
selecionados de Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Louis Trolle Hjelmslev, Noam
Chomsky. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SCOTT, Walter. Ivanhoe. London: Penguin, 1994.

STAVANS, Ilan. Imagining Columbus: the literary voyage. United States of America:
Palgrave, 2001.

STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Martin Claret, 2017.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.

TODOROV, Tzvetan. Estruturalismo e poética. São Paulo: Cultrix, 1971.

TODOROV, Tzvetan. A gramática do Decameron. São Paulo: Perspectiva, 1982.

VIGNY, Alfred de. Cinq mars. São Paulo: Otto Pierre Editores, 1970.
300

CLARICE LISPECTOR E ALBERT CAMUS: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E


MECÂNICA SÍSIFICA

Ariane da Mota Cavalcanti

Músculos ficcionais de mulheres e homens transitam e sentem

A Literatura cria personas. Essas personas têm um corpo biológico-textual cujos


músculos são palavras. Este corpo se tece, por sua vez, dentro de sua conjuntura ficcional,
trançado a construções sociais de papéis de gênero que atravessam as carnes de mulheres e
homens vivos e mortos em países, cidades e famílias do plano material real e seus respectivos
lugares históricos. Teórico que discute a ficcionalidade literária, Wolfgang Iser (2002) define
literatura como o tipo de ficção que desnuda sua própria ficcionalidade, colocando-se
explicitamente como uma “desrealização do real” e uma “realização do imaginário”, através de
três atos de fingir: I) a seleção (o autor escolhe diante da sua percepção particular de real,
elementos que irão compor sua trama: tipos sociais, espaços, tempos, etc); II) a combinação (os
elementos selecionados pelo autor irão ser compostos dentro de uma organização subjetiva e
formal particular); III) o “como se” (a seleção de elementos combinada pela autoria dentro de
uma sistemática formal específica pretende se passar como algo que não se trata do real, mas
tomado como se o fosse). Dito isso, a ficção de Clarice Lispector é aqui encarada dentro da
seguinte particularidade nela observada: trata-se de uma ficção que “seleciona” protagonizar
corpos e mentes femininos, uma ficção que aponta para como corpos de mulheres se sentem e
se deslocam num mundo habitado por filhos, mães, homens, maridos outras mulheres, todos
ocupando seus lugares e seus papéis numa existência biológica, psíquica, social, geográfica,
temporal. Nesta perspectiva, o trabalho discute as representações de gênero operadas pela
literatura clariceana, focalizando como as mulheres se apresentam no mundo ficcional da autora
na sua relação com seus afetos, mais especificamente com o amor, dentro do esquema familiar.
É pinçado da obra “Laços de Família” (1960) o conto “Amor”, para, nele, demonstrar uma
ponte percebida com a imagem filosófica do mito de Sísifo, desenvolvida por Albert Camus no
ensaio homônimo O mito de Sísifo (1942). A leitura crítica que, a partir de então, será aqui
construída se baseia na premissa de que as mulheres e homens de papel em Clarice Lispector
representam-se como Sísifo: a repetir um movimento mecânico de empurrar um peso de modo
contínuo e ininterrupto: afetos laçados à família.
301

A perspectiva teórico-crítica que orienta a leitura aqui proposta segue, nesse sentido,
objetivo semelhante ao perseguido por Tânia Ramos no ensaio “Começar de novo: a escrita
feminina na zona do afeto”, disposto na coletânea organizada por Regina Dalcastagné e Virgínia
Leal, Espaço e gênero na literatura contemporânea (2015): recuperar imagens do feminino,
instalando um olhar sobre as ficções que ressalte a sua possibilidade de oferecer uma construção
“narrativa dissolutória de relações institucionais fixas” (2015, p.186). A professora, ainda que
em seu artigo se atenha à escrita de mulheres contemporâneas, como Elvira Vigna, cita e insere
a obra de Clarice Lispector nesse panorama precursor de ficções que reorganizam o olhar sobre
os papeis de gênero dentro das relações amorosas na maternidade e no casamento. Na esteira
de Ramos, objetiva-se aqui estudar a obra clariceana, recuperando

Histórias escritas no feminino, as representações de mulheres, as sensibilidades e


angústias, as decisões e superações, as ousadias, as transgressões, questões
importantes para o corpo textual como dualidade, multiplicidade e ilusão, a função
simbólica da atuação formal de mulheres viajantes, o feminino como personagem
principal de textos filosófico-literários, em sua dimensão de subjetividade e
alteridade, mecanismos patriarcais construídos pela lógica ocidental e os cruzamentos
entre gênero e cultura levados para o texto ficcional, além da noção de cidadania
expressas em narrativas de si e textos da intimidade (2015, p. 185).

Destarte, o trabalho está organizado na seguinte sequência: 1) Discussão da imagem


de Sísifo em Camus e a interposição particular da sua relação com os afetos de homens e
mulheres e seus papéis hegemônicos de gênero; 2) Análise do conto “Amor” da autora
brasileira, apontando as Sísifas e Sísifos na “montanha familiar” criada em sua ficção; 3)
Considerações finais que atentam para um paralelo entre as mecânicas das personas de Clarice
Lispector na década e 60 e as figuras femininas no ano de seu celebrado centenário de
nascimento: 2020.

Camus e Lispector: Sísifos e Sísifas transitam entre Filosofia e Literatura

A produção filosófica camusiana no Pós-guerra dialoga com a realidade nazista e as


dores europeias daquele período frente à barbárie humana e capitalista que marcou o século
XX. No mito grego de Sísifo, o filósofo encontra o que considera o emblema de seu tempo: o
ser humano estaria num mundo onde Deus e os preceitos cristãos de vida após a morte são
desacreditados face a tanta destruição deliberada em contexto de guerra. Navegando nesse
território do vazio de um mundo anterior não mais recuperado, o homem não encontra mais
sentidos, vendo-se um “estrangeiro”. Tal é a configuração do que Camus cunha, de modo
302

célebre, com o conceito de “absurdo”, desenhado tanto na sua produção filosófica em O mito
de Sísifo, quanto literária em O estrangeiro, ambas dos anos iniciais da década de 40. Dessa
forma, como o personagem do mito grego, o “homem moderno” se locomoveria para o esforço
absurdo e sem sentido de empurrar o peso da vida, ícone da “pedra”, ao topo da montanha e
voltar, de seu cume, a rolá-la para baixo de modo repetitivo e ininterrupto. Eis sua punição e
seu destino.
Na visão camusiana, Sísifo teria consciência de sua própria tragédia: viver numa vida
mecânica, repetitiva e sem sentido, de modo que seu olhar diante de si não seria o de um tolo
que lutaria incessantemente conta a realidade posta a ele instransponível. Sua consciência da
tragédia que encena, enfim, não causaria a ele o desgosto completo, pois Sísifo se move, a partir
da aceitação e do desprezo, sem exatamente sofrer mais do que poderia um outro homem
inconsciente e desgastadamente relutante diante da própria desgraça. Sua realidade está posta e
diante dela, não havendo outra escolha, assume e enfrenta seu destino, como destaca o filósofo:
“A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso
imaginar Sísifo feliz” (CAMUS, 2018 p. 141). Cita-se, novamente, Camus:

Esse mito é trágico porque seu herói é consciente. O que seria sua pena se a esperança
de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário hoje trabalha todos os dias de sua
vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos
raros momentos em que se torna consciente. Sísifo proletário dos Deuses, impotente
e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a
descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo,
sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo (2018, p. 139).

Note-se que Camus associa Sísifo a uma figura masculina e à figura do operário na
conjuntura capitalista de seu tempo. Na relação com a ficção de Clarice Lispector, pode-se
suplementar a prática sísifica humana na dimensão das representações de gênero, caso se
perceba que suas personagens femininas e masculinas, assim como Sísifo, estão a repetir suas
tarefas diárias em seus papéis de esposas, mães, filhas e filhos, maridos. E também, como Sísifo,
elas aparentam ter consciência de seus destinos aprisionados a esses papéis, carregados como
“peso-pedra” no dia-dia. É o que se pretende destacar, mais especificamente, na análise da
personagem Ana, do conto “Amor”, mas o que também se verifica em Catarina no conto “Laços
de família”.
Antes da análise literária, contudo, faz-se pontual destacar o tema do amor na
perspectiva sísifica pensada por Camus. O autor francês seleciona a figura literária do Don Juan
para discorrer sobre conceitos diversos de amor a) para o sujeito masculino, pensado a partir do
trajeto do personagem clássico do individualismo moderno (WATT, 1997), e b) para os sujeitos
303

femininos, estabelecendo comparações entre o herói individualista e as figuras das mulheres e,


entre essas, também as que são mães, seres dados, pelas construções sociais de gênero, ao
cuidado para com o outro. Cita-se, novamente, Camus na sua descrição dos modos diversos de
se sentir e viver o amor e doar-se:

Há várias maneiras de suicida-se, uma delas é a doação total e o esquecimento da


própria pessoa. Don Juan, como qualquer outro sabe que isso pode ser emocionante.
Mas ele é um dos poucos a saber que não é o mais importante. Sabe muito bem:
aqueles que são afastados de toda a vida pessoal por um grande amor talvez se
enriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo seu amor. Uma mãe,
uma mulher apaixonada têm necessariamente o coração seco, porque afastado do
mundo. Um único sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo acaba
devorado. É outro amor que faz Don Juan estremecer, e este é libertador (2018, p. 89).

Diante do trecho, é relevante destacar que Don Juan é sísifico por repetir o amor
sempre e novamente na conquista de diferentes mulheres. Estaria aí a sua liberdade: não se
esquecer de si numa dedicação exclusiva a uma única pessoa, mas à sedução de várias senhoras,
já que ele deseja o mundo em quantidade de mulheres que o desejem para se autoafirmar, ter
fama e desfrutar da existência. O seu amor é pela sua relação com o mundo, não exatamente é
um amor pelas mulheres e suas subjetividades, daí a sua liberdade: interessar-se pelo que vem
de si e não entrega-se a uma dependência afetiva ao outro.
As personas de Clarice Lispector mães e mulheres, em contrapartida, estão
representadas atadas aos laços da família, não à liberdade do mundo, embora até percebam, por
meio de experiência epifânicas, que esta liberdade exista na natureza de espaços fora do lar.
Dedicadas ao amor de esposas ou ao amor materno, elas estão representadas secas de si mesmas
e do mundo. Elas podem ser encaradas, defende-se aqui, “sísificas antidonjânicas”, porque
presas a um amor doação ao outro, impedidas de viverem um amor pleno por si mesmas na
relação com o mundo externo ao do lar. São mulheres privadas da liberdade do amor
donjuânico. Os homens de Clarice Lispector também se assemelham a Sísifos, mas sua
mecânica é centrada em si mesmos, como Don Juan é senhor de si e do seu mundo.
Esse quadro de representações de gênero ligado ao Sísifo camusiano é o que se
pretende demonstrar na análise da narrativa da autora brasileira: a mulheres clariceanas
estariam, percebe-se, “sisifando antidonjuanicamente”. Entre as pedras que carregam está o
amor nos laços da família. Os homens, por seu turno, estão atados à pedra do controle de si
mesmos e de suas mulheres. De qualquer forma, a dinâmica nos contos clariceanos disposta em
Laços de Família oferece aos leitores personas cujos corpos transitam seus músculos de
304

palavras dentro de uma mecânica sísifica da repetição de papéis engessantes de suas


subjetividades como seres sociais. Segue-se, desse modo, à análise do texto.

Clarice Lispector e o trânsito de personas sísificas em Laços de família

A leitura aqui desenvolvida visa observar como os atos de seleção e combinação


operados pela escritora revelam uma atmosfera mecânica “como se” recriasse a realidade das
relações em família da classe média do Brasil na década de 60 do século XX, momento em que,
no âmbito ocidental, tal como remarca Cecil Zinani

o feminismo, efetivamente assume o caráter de força política social. A partir de então,


abrange um amplo espectro, discutindo a opressão feminina, originária do regime
patriarcal, reivindicando igualdade nas oportunidades de educação, de emprego e
remuneração, de autonomia corporal, entre outros aspectos (2015, p. 415).

Nesse sentido, a obra da autora, em diálogo com o panorama feminista dos anos 60,
pinta uma tela para que sejam vistos corpos em trânsito de mulheres que sentem afetos
amordaçados e coloridos pela hegemonia de papéis fixos de gênero. Revelar tais figuras, suas
subjetividades, dores e enfrentamentos é uma forma de quebrar um silêncio que se faz
responsável pela insistência, ainda em pleno século XXI, de uma concepção de família
fantasiosa, normativa e engessada (como atestam discursos publicitários no mercado
globalizado, bem como imagens de selfs construídos em redes sociais, hoje dominantes
culturalmente, na conjuntura da moderna “sociedade do espetáculo”). No seio dessa “fantasia”
de família, seria falaciosamente experienciável, de modo praticamente unitário, um modelo de
“amor completamente bom” em meio, paradoxalmente, a um controle violento que se impõe ao
corpo e à mente femininos na mecânica de seus deslocamentos num trajeto reduzido entre o lar
(abrigo e prisão) e a rua (o misterioso e o selvagem), entre o papel de mãe e esposa.
Clarice Lispector apresenta, pois, na contracorrente da ideologia que constrói e reforça,
ainda hoje, a instituição da família, outras formas mais desagradáveis de representações do
amor: um “amor doloroso” (LISPECTOR 2026, p. 222), como o vivido pela personagem
Catarina, do conto “Laços de Família”, e um “amor ruim” em “Amor”, vivido por Ana. Catarina
e Ana podem ser lidas como corpos que se revelam, na perspectiva de um narrador onisciente,
com vozes interiores de crítica a um sistema patriarcal, o qual, na Literatura brasileira, a autora
ajuda a problematizar e denunciar como uma lógica de estrutura de segurança da manutenção
de certas relações, uma lógica também de sofrimento e prisão, assim como seria a condição
punitiva imposta a Sísifo.
305

O “Amor ruim”: o conto “Amor” e a mecânica sísifica dos “laços de família”

Ana, protagonista da narrativa em terceira pessoa, é retratada como uma mulher, uma
esposa, uma mãe. Sua rotina se apresenta como dotada de um trajeto mecânico e repetitivo:
cuidar, organizar a casa, a dispensa e, inquietamente, lidar com a tal “certa hora da tarde”, a que
“era mais perigosa” em seus dias (LISPECTOR, 2016, p. 145), como assevera e escolhe tais
palavras a voz narrativa. A “certa hora mais perigosa” era justo aquele momento em que, uma
vez cumpridos seus afazeres domésticos, a mente de Ana ganhava a oportunidade desafiante
para encarar a si mesma, seus próprios pensamentos. Havia um “perigo” em olhar pra si, em
usar a mente para pensar quando o restante da família já estava com seus cuidados diários
encaminhados, se o leitor toma a perspectiva dessa mãe e esposa indicada nanarração. Na
realidade, a narrativa abre espaço para conceber o status esposa/ mãe, de Ana, como um destino
do qual poucas mulheres escapariam, pensariam poder ou mesmo desejariam escapar. No texto,
sobressai a ideia de que o lar e a família funcionariam como um destino de “segurança”, de
desejo que precisa ser cumprido para gerar as raízes necessárias de uma vida alicerçada. Cita-
se a autora: “No fundo, Ana sempre teve a necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso
um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a
surpresa de nele caber como se o tivesse inventado” (2016, p. 146). No trecho, é possível
estabelecer uma ponte com a mecânica camusiana do mito de Sísifo: como ele, Ana está presa
ao seu destino, isto é, empurrar a pedra do lar, dos laços da família. De modo semelhante ao
modo de “aceitar o seu destino” do qual Sísifo é dotado e louvado por Camus por esta ser uma
espécie de virtude (desejar outro destino só traria esperanças sem sentido), Ana aceita a sua
condição: “Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu ao seu rosto um ar de
mulher” (LISPECTOR, 2016, p. 147). Aqui, o narrador deixa à mostra que mulheres, como
Ana, estariam laçadas ao destino de serem quem são: seres que aceitam, seres passivos; seres
que, por tradição, signo da continuidade, repetem a mecânica de seus caminhos nas veredas do
lar.
Aprofundando a descrição do trajeto Sísifico de Ana, ressaltam-se os eixos de seu
descolamento corporal nos espaços restritos da narrativa: casa, ônibus, jardim botânico, casa.
O ciclo sísifico de Ana (as dimensões de sua “montanha”) se inicia no lar e a ele retorna, como
se esse fosse o destino prisioneiro dos limites espaciais do corpo da personagem, de suas
possibilidades de ser e amar. Na tragédia grega, o destino é superior aos homens, no conto
clariceano o destino de mulher é também hegemônico sobre Ana, que mesmo tomando
306

consciência de que deseja a vida “lá fora”, na natureza, a vida do jardim botânico e seu mistério,
tal desejo não vence o desejo pelo o que é convencionalmente “seguro” e que estaria presente
nas paredes do apartamento, nas mão do marido que a conduzem ao sono ao final do dia, na
cozinha em meio ao preparatório do jantar, uma cozinha que, conflituosamente, e aí está o sofrer
da personagem, se invade metaforicamente pela perturbação de aranhas e folhagens que
povoam a sua mente tomada por um afeto por esses bichos vistos e sentidos no trajeto pelo
jardim botânico. Este é espaço narrativo do conto que representa o encontro máximo com tudo
aquilo que não é parede de apartamento e amor familiar. O jardim botânico na obra é o lugar
de encontro frontal do seu corpo e mente com a tal “certa hora perigosa”, porque é a hora
ausente da casa e presente em si mesma, no trajeto que a desordena pela experiência de
caminhar alheia à ordem do tempo e espaço do lar, o caminhar na rua. O jardim botânico, assim,
é o lugar de acolhimento das novas descobertas, da expansão da consciência de Ana. Lá ela vai
parar após a epifania com a qual se dá conta, ao olhar, do ônibus (espaço locomotivo, espaço
de trânsito) para o cego que masca chicletes mecanicamente sorrindo, de que não consegue
mais ser cega frente ao destino mecânico e seco que a sua vida tomou.
Faz-se relevante colocar em destaque que a epifania de Ana ao depara-se com o cego,
de que como ele, que mascava mecanicamente chicletes, uma borracha mastigável, porém não
nutricional para o corpo, ela vivia sua rotina na vida familiar, a colocava agora diante de uma
outra consciência de si responsável por lhe trazer mal-estar e uma “doce náusea”. Descobrir-se
é transformar seu autoconhecimento, porém este lhe impeliria a desejos e verdades sobre si e
sobre o mundo que são da ordem do mistério, do inseguro e fogem ao familiar, causando-le
culpa e sofrimento. Seu trajeto de saída de casa a conduz à crise: “O que chamava de crise viera
afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada”
(LISPECTOR, 2016, p. 149). No trecho, semelhante ao modo como Camus percebe Sísifo, Ana
é descrita pelo narrador: ela toma ciência da sua própria tragédia de vida mecânica e há um
misto de dor e prazer no seu trajeto de descoberta de si. O trecho a seguir revela como a
autodescoberta de Ana a equipara a uma mulher atada ao destino de uma mecânica sísifica, na
repetição dos dias e suas tarefas do lar:

Ela apaziguava tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha
tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram
claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite –
tudo feito do modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma
despedaçava tudo isso. E através da piedade apareci a Ana uma vida cheia de náusea
doce, até a boca (LISPECTOR, 2016, p. 149).
307

O contato com o jardim botânico na sequência do seu trajeto após descer do ônibus de
onde avista o cego, personagem de dimensão oracular, revela a Ana seu desejo e prazer pelo
mistério do selvagem, pela vida que não é casa. A sensação que lhe vem, contudo, é a de culpa,
desenhada por uma atmosfera de palavras escolhidas pelo narrador que simbolizam na cultura
cristã a punição: “O jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno” (2016, p 151). Com
mente complexa, conflituosa e ambivalente, Ana se revela. Na narrativa, a mesma experiência
de sentir o jardim a conduzia a extremos de desejo e nojo: “Sob os seus pés a terra estava fofa,
Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo” (2016, p. 151). O corte bruto com
a experiência de fascínio pelo jardim botânico, entretanto, é um golpe que a toma e se dá
atrelado à culpa materna. O laço familiar às suas crianças a rouba do defrontar-se consigo
naquilo que lhe descobria como selvagem dentro da natureza botânica: “Mas quando se lembrou
das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor.
Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda” (2016, p. 151). Em
seguida, a personagem retorna ao edifício (cumpre o ciclo de “sua montanha”: casa-rua-casa),
para a sua vida sísifica e mecânica, na qual vai fritar bifes, jantar em família e dormir junto a
um Marido que a conduz, pela mão (aqui há um corpo de mulher deslocado pelo homem, para
o endereço dominado pelo desejo do marido), para o sono, um sono de si mesma, um sono que
a faz adormecer e acordar presa àquela rotina que lhe é prisão sísifica e, simultaneamente,
segurança diante dos “perigos de viver”. Cita-se a cena em que o marido “castra” as
possibilidades de Ana continuar a se mover por si e pensar sobre si diante do espelho, ao mesmo
tempo em que a “protege” de seus próprios pensamentos fora do lar:

É hora de dormir, disse ele. É tarde. Num gesto que não era seu, mas que
pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-as consigo sem olhar para
trás, afastando-a do perigo de viver (2016, p 155).

E o conto elabora seu desfecho com a imagem do amor nesse trajeto sísifico de Ana:
“E se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante
sem nenhum mundo no coração” (2016, p. 155). Observa-se que o amor é descrito como algo
que contém um inferno. Esse amor a deixa seca em seu coração do mundo. Voltando-se ao que
Camus explica sobre o amor de Don Juan, Ana vive um amor “antidonjuânico”, por conhecer
o desejo pelo mundo lá fora (ao entrar no jardim botânico, entendido aqui como o selvagem e
o indomável de si), mas negar-se a ele em doação ao marido, ao lar, à família. Sísifa, Ana está
laçada à família, ao seu “destino de mulher”, “tão crua como o amor ruim” (2016, p. 154).
308

A imagem dos papéis de gênero na família é assim desenhada pela técnica de desfecho
da narrativa: a masculinidade hegemônica do marido contém, bloqueia e controla o trajeto ao
longo de si da personagem Ana, mulher, mãe, esposa, interrompendo seu momento reflexivo
diante de seu tempo e espaço, diante de sua rotina familiar mecânica. É o que se verifica na
seleção narrativa dos verbos “segurou”, “levando-a”, “afastando-a”, a qual reforça uma imagem
de controle corporal, o qual se repercute num controle do desejo subjetivo e secreto da esposa.
Rebecca Solnit, em A mãe de todas as perguntas (2017), ao discutir diferentes modos de como
os homens que desempenham papéis dentro da “masculinidade hegemônica” cerceiam as
mulheres na vida pessoal, pontua as táticas da intimidação, isolamento e controle como atuantes
no desenho político do abuso que se impõe às mulheres na sociedade patriarcal. O marido de
Ana assume, como aponta a linguagem na narrativa e sua seleção verbal acima indicada, a tática
do controle sobre o seu corpo (mãos tomadas) e seu sono (descanso). Contudo, em “Amor”, ao
homem cabe o papel dúbio de “controlador” da mulher de “coração selvagem” e ao mesmo
tempo seu “herói”, ao defendê-la do “perigo” que seria entregar-se ao mundo, à natureza
selvagem de seu coração fora do lar.
O laço de família se mostra, assim, no conto “Amor” de modo ambivalente:
prisão/opressão da coisa “laçada”, prisão/segurança da coisa “envolvida”. Um laço é, em si,
algo que prende, mas também algo que sustenta e segura, é igualmente algo que enfeita pacotes
de presentes, vestidos de mulheres, cabelos de meninas. O conto “Amor”, de Clarice Lispector,
nesse sentido, em plena década de 60 do século XX, momento de efervescência do movimento
feminista no Ocidente, que lutava por pautas de liberdade frente ao corpo, está, pois, a gritar
que o trânsito da mulher de classe média brasileira está laçado a esse desejo e a esse destino de
mulher: sufocar o amor pelo mundo e sisifar dentro do amor doação vivido no espaço do lar,
controlado por um homem: ora herói, ora opressor. Esse amor doação, amor laçado a uma culpa
materna em desejar a rua, em desejar o jardim botânico e seu mistério característico por
oposição aos limites de um apartamento e suas paredes, seus múltiplos seres selvagens a amar
(folhagens, gato, aranha, frutas) é a pedra que empurrariam estas mulheres corporal e
afetivamente contidas. O “amor ruim” seria, lê-se aqui, “a pedra”, o peso a movimentar no
trajeto diário. Ao mesmo tempo em que a empurram de modo doloroso, cansativo, as mulheres
se agarram a esta pedra como a um destino “seguro”. É como se elas ainda não se permitissem
a coragem de enfrentar outras formas de amar e de indagarem a si mesmas. Esses corpos
clariceanos apresentam-se desejantes, mas ainda afastados de uma experiência concreta frente
ao resultado das seguintes perguntas e reflexões em torno do amor materno e familiar
levantados por Rebecca Solnit em A mãe de todas as perguntas:
309

O que de mais significativo você pode fazer com sua vida? Qual é a sua contribuição
para o mundo ou para a sua comunidade? Você vive de acordo com seus princípios?
Qual será o seu legado? O que significa a sua vida? Talvez a nossa obsessão pela
felicidade seja uma maneira de não responder a essas outras perguntas, uma maneira
de ignorar a amplitude que as nossas vidas podem ter, o resultado que o nosso trabalho
pode trazer, a abrangência que o nosso amor pode alcançar (SOLNIT, 2017, p. 21).

2020, centenário de Clarice Lispector: sua ficção é vacina ao “amor absurdo” das
mecânicas sísificas de gênero?

Com tal desenho, o conto “Amor”, uma vez lido em 2020, ano pandêmico e histórico,
ano de centenário da autora, coloca leitoras e leitores contemporâneos a pensar sobre a
persistência desse destino em relação ao amor na mecânica das famílias. Famílias inteiras
durante este ano estiveram laçadas ao espaço físico e simbólico do lar, devido ao confinamento
imposto pela medida de segurança pública de combate à pandemia de Covid-19, de modo que
esse “enlace”, possivelmente, fez com que muitas mulheres não pudessem pegar ônibus,
transitarem pelas ruas e jardins botânicos, como fez Ana, num trajeto que, no século XXI, as
levariam a pensar sobre o que seriam e o que desejariam secreta e misteriosamente ser, para si
e para o mundo fora do espaço da casa. A experiência pandêmica, paradoxalmente, conjectura-
se aqui, tornaria a persona de papel Ana, criada em 60, muito menos enlaçada à família do que
muitas mulheres contemporâneas sujeitas ao isolamento em função da pandemia de Covid-19
estão sendo aqui e agora. Essa conjuntura controversa seria a amostra das possíveis surpresas
entre a vida e a arte no tempo e no espaço sobre as quais nem sempre imagina a “nossa vã
filosofia”.
Entre o século XX e o XXI, a leitura de Clarice Lispector se faz, assim, incandescente
face ao que homens e mulheres de músculos de carnes reais poderiam refletir sobre os trajetos
de seus corpos e papeis no mundo, que, hoje, literalmente, se mascara diante de uma doença
que mata e matou milhares de gentes e povos. Formulando o argumento de modo mais
apropriado, a obra de Clarice Lispector, uma vez lida hoje e apontando para Ana, mulher de um
passado-presente patriarcal brasileiro desenhado no século XX, se apresenta como um
questionamento intermitente diante da permanência sísifica de certos papéis de gênero. Sua
obra denuncia uma mecânica que enlaça nossa sociedade na forma como esta concebe o amor
e o controle dos corpos. A literatura da autora não é exatamente colocada aqui como uma
“vacina” para a pandemia patriarcal que assola as cidades, suas ruas, seus jardins botânicos. A
literatura não resolve, não imuniza, mas tem a potência de apresentar o quadro de nossas
310

doenças, nos convida ao enlace com a construção de uma habilidade coletiva para ver e entender
um pouco mais e de outros modos os trajetos dos nossos corpos adoecidos.
Cem anos de Clarice Lispector, milhares de anos de patriarcado. Seu modo de
ficcionalizar, seus “atos de fingir” (ISER, 2002), “selecionando”, “combinando” elementos do
real e das formas narrativas, “realiza um imaginário” que precisa de cura, porque mergulhado
em opressões de gênero. O que sua ficção faz em termos práticos é oportunizar o choque com
a mecânica sísifica operada por homens e mulheres na vida ficcional e real. Ana não narra; é
um narrador onisciente que a “invade”, a “penetra”, “viola” suas crises mais íntimas para dizê-
la aos leitores. O modo de narrar selecionado em “Amor” é uma práxis/ fala que ainda persiste
frente à mente de muitas mulheres (de papel ou não), mesmo que se reconheça que há novos
espaços para vozes femininas, como mostra Ramos (2016), ao analisar a literatura
contemporânea de Elvira Vigna dotada da voz feminina que se impõe como narradora e ironiza
o gênero confessional vitimizante, quebrando a ordem do silenciamento. Tal modo de narrar,
visto e analisado aqui em “Amor”, que silencia e invade as mulheres, embora as dizendo naquilo
que elas não conseguem dizer ou ver ou ter escuta para, é um ponto que a ficção clariceana põe
para que se reflita e se questione. Modos de narrar e de amar parecem pedir, a partir de sua
leitura, uma ponte reflexiva com o que Camus entende como o “absurdo sísifico” no mundo
moderno. Suplementando o pensamento do escritor francês, a obra da autora faz toda uma
plateia assistir às tragédias de Sísifas e Sísifos dentro do trânsito a que seus corpos (de palavras
ou carnes) se destinam.
Referências

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo.14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.


ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria
da Literatura em suas fontes. Vol 2. Rio de Janiero: Civilização brasileira, 2002, p.955-984
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Começar de novo: a escrita feminina na zona do afeto. In:
DALCASTAGNÉ, Regina; LEAL, Virgínia Maria. Espaço e gênero na literatura brasileira
contemporânea. 1 ed. Porto Alegre: Zouk, 2015, p. 185-195.
SOLNIT, Rebecca. A mãe de todas as perguntas. Reflexões sobre os novos feminismos. Trad.
Denise Bottman. 1ed. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Feminismo e literatura: apontamentos sobre crítica feminista.
In: SEDYCIAS, João. Repensando a teoria literária contemporânea. Recife: Editora UFPE,
2015, p. 406-434.
WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
311

A ARQUITETURA DE CAXIAS-MA NO CIBERESPAÇO: TECNOLOGIA E ARTE


NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO

Antônia Valtéria Melo Alvarenga


Marinalva Aguiar Teixeira Rocha
João Batista Vale Júnior

Introdução

O Curso de Licenciatura Plena em História do Centro de Estudos Superiores de


Caixas – CESC/UEMA tem como uma de suas áreas de pesquisa a História Social, o que se
reflete na prevalência dessa área nos trabalhos de conclusão dos cursos da graduação e da pós-
graduação lato sensu oferecidos na instituição, bem como nas demais pesquisas a ele
vinculadas. O incentivo à produção de uma História local vem permitindo a descoberta de
sujeitos, acontecimentos e fontes que revelam aspectos ainda poucos conhecidos da história de
Caxias. Nesse processo, o campo tem crescido pela descoberta e uso de um conjunto de fontes
de pesquisas bastante diferenciadas, a exemplo do acervo de um fotógrafo caxiense que, por
quase 4 (quatro) décadas, atuou como renomado profissional na cidade, produzindo um material
memorável sobre os acontecimentos da esfera pública e da vida privada dessa sociedade.
Trata-se do fotógrafo Sinésio Santos, fotógrafo que iniciou seus trabalhos na década
de 1940, e encerrou deixando suas atividades profissionais no final da década de 90, deixou,
aproximadamente, dez mil (10.000) películas (negativos). Imagens que retratam eventos, os
quais podem ser classificados como parte da história de Caxias: festas cívicas, religiosas, lazer,
rituais fúnebres, arquitetura urbana e rural, patrimônio ambiental, vida privada, eventos
políticos, entre outros. Tal acervo vem subsidiando pesquisas sobre a história local [projetos
desenvolvidos em cursos de pós- graduação stricto sensu, de iniciação científica e de pesquisas
para realização de Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação], como também dando
visibilidade ao trabalho do autor. Essas experiências criam a possibilidade de crescimento
desses profissionais e alunos, tanto em suas áreas de formação, como na construção de uma
cultura ampla sobre a cidade, beneficiando a sociedade caxiense com o conhecimento de sua
história.
O presente estudo faz parte do projeto intitulado “Organização urbana e relações de
poder em Caxias-MA: o espaço público sob o olhar de Sinésio Santos (1950-1980)”,
aprovado para o Edital 002/2018 - UNIVERSAL, com o objetivo de conhecer a organização
do espaço urbano da cidade de Caxias –MA, na segunda metade do século XX para, em
312

seguida, montar um repositório virtual com o material produzido por Sinésio Santos sobre a
arquitetura de Caxias- MA. Para este estudo tem sido utilizada, além da literatura e
documentação sobre o tema, a produção do fotógrafo Sinésio Santo, acervo esse que evidencia
diferentes aspectos da arquitetura urbana de Caxias, entre as décadas de 1950 e 1980.
O referido acervo, através da arquitetura local, informa a configuração dos espaços,
como também a distribuição populacional, o que permite analisar as transformações e as
conservações da cidade, como um fragmento do seu processo histórico, oportunizando o
entendimento de aspectos do seu passado e do seu presente e problemas sociais que a cidade
apresenta na atualidade, a exemplo da falta de segurança, de moradia digna para população
carente, problemas sanitários, crescimento urbano desordenado e outros que estão relacionados
às modernas configurações espaciais, agravados com o processo de periferização ocorrida após
os anos de 1970.
Assim, objetivou-se, ainda, com este trabalho, organizar um repositório virtual, onde
constará o material fotográfico produzido por Sinésio Santos sobre a arquitetura de Caxias-
MA. Nesse sentido, com vistas a garantir organicidade e qualidade das fotografias analisadas,
foram selecionadas 1.250 imagens, documentos que servirão para subsidiar pesquisas
científicas. Tais imagens comporão o citado repositório, espaço que se encontra em fase de
organização.
Barros (2007), ao discutir sobre a história de uma cidade e de sua população, mostra
que ela revela, na sua estrutura espacial e nos seus múltiplos acessos e interditos, os critérios de
seus avanços técnicos, da sua vida mental, das formas de segregação que lhes constituem, da
hierarquia social e da materialização de preconceitos que lhes definem. É com a finalidade de
conhecer aspectos poucos evidenciados dessa cultura citadina por outros tipos de fonte, que se
destaca a importância do acervo fotográfico de Sinésio Santos para a história da arquitetura
urbana de Caxias-MA.

A fotografia de Sinésio Santos da Silva no cenário caxiense

A organização desse material fotográfico revelou uma grande quantidade de imagens


que mostram a cidade em diferentes ângulos e perspectivas: são ruas, prédios, construções de
obras particulares e de infraestrutura pública, movimentos de pessoas de várias idades, etnias e
classes sociais e acontecimentos públicos e privados que revelam muito do cotidiano local, na
segunda metade do século XX. Tais imagens representam o testemunho de experiências de um
313

povo desejoso de se marcar no tempo. Analisando o acervo, é possível observar que Sinésio
registrou momentos do nascer e do morrer, o movimento e a permanência. Nele, encontra-se a
esperança, a exemplo das cerimônias de matrimônio, dos batismos realizados nos templos da
cidade, dos rituais de passagens, como bailes de debutantes que deram brilho aos clubes da
cidade; colações de graus escolares que marcaram a memória dos estudantes.
No acervo, é possível observar também a presença de tragédias individuais e coletivas
que atingiram a comunidade: mortes de lideranças locais, as quais foram imortalizadas com
seus nomes gravados nas fachadas dos prédios públicos e pelas ruas da cidade. A fotografia
produzida por Sinésio Santos não parece ser despretensiosa, ao contrário, ela evidencia como
se manifestavam os diferentes grupos sociais em Caxias nas quatro primeiras décadas do século
XX. Cada aspecto representado pela lente do fotógrafo faz expressar essa realidade.
Por ser um aspecto bastante destacado no trabalho de Sinésio Santos, a arquitetura
retratada registrou como foi sendo realizado o projeto urbano da cidade, ao longo dos 40 anos
em que esteve ativo profissionalmente. Esse foi um momento privilegiado para registro das
cidades brasileiras, visto ter sido depois das três primeiras décadas desse século que o país
recebeu maior estímulo para a modernização dos seus espaços geopolíticos. Desde os anos 70
do século XX, a população rural brasileira entrou em processo de encolhimento, ampliando os
residentes em áreas urbanas. O fragmento de texto a seguir, confirma o exposto:

Em termos de distribuição populacional rural-urbana, tem-se observado uma


concentração progressiva e acentuada da população nas áreas urbanas, notadamente
nas grandes cidades. Em 1940, 31% da população brasileira residiam nos quadros
urbanos. Em 1996, essa proporção atingiu 78%. A proporção da população residente
nas áreas rurais e em localidades com menos de 20 mil habitantes declinou de 80,5%
em 1940 para 34% em 1996. Em compensação, a proporção da população vivendo em
cidades com mais de 500 mil habitantes passou de 10,8% para 35,7% no mesmo
período. Aproximadamente 17% da população brasileira viviam em 1996 em apenas
duas cidades — São Paulo e Rio de Janeiro. Em contrapartida, a percentagem de
pessoas vivendo nas áreas rurais decresceu de 68,8% para 22,0%%. ( CAMARANO
E BELTRÃO, 2000,p. 14)

Como pode ser percebido nos dados acima, a vida urbana brasileira, na segunda
metade do século XX, sofreu grandes transformações, com mudanças nos modos criação,
organização, distribuição e ocupação dos espaços. Como lugar público, as cidades passaram a
comportar relações mais complexas entre diferentes grupos sociais que se encontravam em
permanentes mutações, realizando apropriações distintas e muitas vezes conflituosas desse
espaço. Essa foi uma realidade presente nas cidades do Nordeste brasileiro, especialmente após
os anos de 1960, quando a saída da população do campo para a cidade foi motivada pela busca
314

de empregos com melhores remunerações, fugas de desastres naturais [secas, enchentes, etc.],
procura por ensino de qualidade, infraestrutura e serviços essenciais.
Informações fornecidas pelo IBGE mostram que, até os anos de 1990, a maior
população do Maranhão residia em áreas rurais, mas o processo de urbanização crescente já
começava a mudar esse quadro. Na década de 1980, de um total 3.996.404 residentes, 1.255.156
habitavam em áreas urbanas e 2.741.248 em áreas rurais. Os dados referentes à década seguinte
revelam que a taxa de crescimento da população rural foi menor que o identificado para a
população urbana: é o que se observa nas informações fornecidas pelo IPEA para o período: do
total de 4.929.029 residentes, 1.972.008 estavam localizados em áreas urbanas e 2.957.021 em
áreas rurais. (IBGE, Censos de 1980,1990).
Conforme Censo de 2010, o Maranhão era o 10º Estado mais populoso do país e o 4º
do Nordeste. Apesar do crescente movimento campo-cidade ainda possuía a maior população
rural nacional e, apenas nessa década foi identificada a superação do número de residentes em
áreas rurais pelos residentes em áreas urbanas. Caxias – MA é um dos municípios maranhenses
que apresenta um dos maiores números de pessoas vivendo na cidade. Situado na Microrregião
de Caxias, Meio-Norte do Brasil, na década de 1960 ocupava a segunda maior posição nesse
ranque, passando para a terceira nos anos de 1970 e 1980. Em 2010 o censo contou uma
população de 162.657 habitantes, com aproximadamente 76% vivendo na cidade e apenas 24%
habitando as áreas rurais. (IBGE, 2017).
Apresentando uma arquitetura herdada do século XIX e início do século XX no estilo
português, sua paisagem vem sofrendo mutações na estrutura e distribuição populacional. A
ampliação do circuito urbano dá-se pela criação das novas áreas residenciais. Ocorre, também,
a reorganização dos espaços centrais da cidade, com a finalidade de dar vasão às demandas
decorrentes do crescimento econômico do município. É sobre essa reorganização do espaço
urbano caxiense que se objetivou discutir na proposta a “Organização urbana e relações de
poder em Caxias-MA: o espaço público sob o olhar de Sinésio Santos (1950-1980)”.
Nesse sentido, procurou-se, também, analisar como vem sendo processado o
movimento de transformação e modernização da cidade, movimento esse que ora é
caracterizado como símbolo de progresso, ora como expressão da destruição, assim como
pretendeu-se compreender no que diz respeito à organização arquitetônica da cidade de Caxias-
MA da segunda metade do século XX como estão configuradas as relações de poder que
constituem o processo identificado como racionalidade e planejamento e, ao mesmo tempo,
como fonte de fragmentação do indivíduo e das culturas tradicionais locais. Ou seja, pretendeu-
se captar, a partir da organização do espaço urbano local, ocorrida no período definido para a
315

pesquisa, algo maior e que a ela se associa: as posições políticas e filosóficas que lhe integram
e as estruturas de poder que lhe compõem.
É importante frisar que o material foi organizado de acordo com a categorização das
imagens segundo área, tipo de arquitetura e estilo. O objetivo é estabelecer alguns filtros que
permitam o acesso rápido a pesquisadores que busquem por essas informações sobre a história
de Caxias- MA. As imagens e informações que são apresentadas a seguir são exemplificativas
e objetivam permitir ao leitor uma visualização da maneira como esse material será disposto no
repositório.

Aspectos metodológicos da pesquisa

Objetivando a montagem do ambiente virtual, a pesquisa conta com um acadêmico


com formação na área de informática, cujos conhecimentos e habilidades lhe permitam
colaborar na criação de um repositório virtual que possa hospedar a parte do acervo fotográfico
de Sinésio Santos imagens que retratam a arquitetura de Caxias-MA. Esse material deverá
integrar, posteriormente, o projeto “Fundo de Memória Iconográfica de Caxias Sinésio
Santos”75, que será disponibilizado, virtualmente, no formato acesso livre.
Conforme colocam Volpato; Rodrigues e Silveira (2014), os repositórios institucionais
participam de um movimento amplo de acesso livre ao conhecimento. São geralmente
consideradas duas vias paralelas para o acesso livre à informação: revistas com acesso livre,
nas quais os artigos ficam disponíveis sem restrições ao grande público, desde a sua
disponibilização e auto arquivamento, ou postagem realizada por especialistas interessados em
divulgar conhecimentos e outros meios e instrumentos para construção de saberes, a exemplo
de fotografias, vídeos e demais materiais que contribuam para o maior número de produções de
conhecimentos.
É importante dizer que para a realização das atividades referentes ao desenvolvimento
da presente pesquisa, o Centro de Estudos Superiores de Caxias conta com a infraestrutura
necessária às reuniões com a equipe de pesquisadores, espaço para sistematização do material
e sala para montagem do repositório. Dessa forma, foram delineadas as seguintes etapas para a
efetivação do que se propõe, a saber:

75
Projeto instituído por um grupo de professores pesquisadores, sob a coordenação da Professora Antonia Valtéria
Alvarenga, do Departamento de História da UEMA, o qual visa digitalizar todo acervo fotográfico de Sinésio
Santos da Silva, assim como produzir material impresso, documentário, entre outras ações.
316

1. Identificação técnica do tipo e da quantidade de fotografias existentes com no


acervo;
2. Catalogação do material fotográfico por período e zona, tipo de arquitetura, etc.;
3. Implementação do repositório digital para acomodação do acervo, sendo
planejado com base na quantidade e no tipo de material identificado e em filtros definidos a
partir de metadados previamente identificados como os mais relevantes, para o acesso ao
material fotográfico pelo público acadêmico e para a comunidade em geral;
4. Acomodação e disponibilização desse conjunto de fontes fotográficas para
pesquisa;
5. Testes e ajustes para liberação do acesso ao repositório.

4 Discussões e resultado

O acervo trabalhado foi digitalizado a partir de negativos deixado pelo fotógrafo


Sinésio Santos. Sua principal característica é se constituir como um material em preto e branco
e encontrar-se na forma como foi digitalizado, ou seja, não tendo sofrido qualquer tipo de
intervenção técnica, a fim de não alterar a qualidade apresentada. Por se tratar de um acervo
que possui, aproximadamente, 70 anos e não ter sido conservado de maneira que pudessem
ficar protegido das ações do tempo, tendo sido submetido às consequências da umidade, da
poeira e de outros tipos de desgastes, cerca de 250 fotografias foram descartadas no primeiro
momento. Tal descarte ocorreu pelo fato de que a digitalização realizada dos negativos não
apresentou a qualidade adequada para exposição digital, e as condições de recuperação
exigiriam esforços e investimentos que não estavam disponíveis para as condições apresentadas
à execução dessa proposta de trabalho.
Aproximadamente, 1020 fotografias foram selecionadas para preparação desse
primeiro momento. A etapa seguinte foi a melhoria da qualidade do material através de
programa Corel draw, visando adequar brilho, contraste, recuperar alguns aspectos de desgaste
possíveis de serem realizados. As alterações foram realizadas procurando preservar o traçado
original, mantendo as características das imagens em relação à enquadramento, foco, nitidez e
outros. O objetivo é que o material possa ser utilizado para leitura dos fatos, espaços e situações
representadas, assim como possa servir para informações de trabalhos que objetivem analisar
as técnicas de fotografar da época, através das limitações e das possibilidades identificadas.
Cumprido essa etapa, as fotografias passaram a ser categorizadas por área, tipo de
arquitetura, tipo de ambiente e período. A categorização por período ficou bastante prejudicada,
317

pois as referências para uma periodização exata são restritas, exigindo estudos mais profundos
na produção de informações seguras sobre esse aspecto. Pesquisas foram realizadas no Instituto
Histórico e Geográfico de Caxias, bem como nos acervos da Biblioteca da Universidade
Estadual do Maranhão-CESC/UEMA, porém não alcançaram o resultado desejado a esse
respeito, havendo a necessidade da utilização de outros recursos, notadamente pesquisa oral,
para essa finalidade. Isso fez com que a equipe de execução planejasse uma nova etapa de
atividades com esse propósito.
A categorização por tipo de arquitetura teve um efeito satisfatório, sendo esse um dos
critérios definidos para a indexação das imagens na organização do repositório. O primeiro
critério utilizado para a sistematização desse conjunto de material foi a sua divisão em duas
categorias: bens de uso comum e bens de uso específicos. Os bens de uso comum foram
definidos como aqueles ambientes que eram acessados pela população sem a necessidade de
uma autorização especial, enquanto os bens de uso específico se subdividiram em dois grupos:
os de natureza pública, a exemplo de escolas e prédios da administração pública, Igrejas; e os
de natureza privada, como imóveis residenciais e comerciais.
A primeira categoria, os bens de uso comum ou logradouros públicos [jardins, parques,
passeios, avenidas, ruas, alamedas, áreas de lazer, calçadões, praças e largos], mostraram-se
bastante diversificados. O fotógrafo Sinésio Santos apresentou-se muito sensível para a captura
dos movimentos que vinham ocorrendo na cidade de Caxias no final da primeira metade do
século XX e praticamente todo a segunda dessa mesma centúria. Nesse conjunto de fotografias,
foi possível observar o processo de transformação das ruas centrais da cidade com instalação
das primeiras pavimentações poliédricas, uma alteração do seu traçado original e a maneira
como os sujeitos foram se relacionando com esses espaços. Segue, a título de exemplo, a
categorização realizada para o filtro específico. Para que não seja necessário especificar em
cada fotografia o nome do autor, é importante ratificar que todas as fotografias aqui
apresentadas pertencem ao acervo do fotógrafo Sinésio Santos da Silva. Segue Fig. 1, Fig. 2,
Fig. 3, Fig. 4 e Fig. 5.
318

RUAS E PRAÇAS

Foto Nº 03

PANORAMA DA CIDADE DÉCADA DE 1950

PONTES DA CIDADE

Embora não tenha sido possível realizar uma identificação precisa do período em que
o ambiente foi fotografado, além da categorização por ambiente usada na disposição das fotos,
foi feito a identificação de todos os espaços, nominando-os por ruas, avenidas, praças e banhos
públicos, de maneira que facilite a busca refinada realizada pelo pesquisador, ao acessar o
319

repositório virtual a ser montado com esse material. A disposição aqui utilizada exemplifica a
organização das pastas já realizada para a postagem, em conformidade com o desenho que será
desenvolvido pelo especialista em tecnologia e design gráfico para o repositório. Isso implica
que o planejamento pode sofrer os ajustes necessários que serão recomendados pelos
programadores, bem como pelo padrão estabelecido pela UEMA para esse tipo de ambiente.
Um segundo grupo do material definido para essa organização diz respeito aos
ambientes de uso privado, destinados ao público. Nesse aspecto, um dos espaços privilegiado
pelo o fotógrafo foram as Igrejas católicas e Evangélicas, mas, predominantemente, templos
católicos. Cerca de 60 fotografias no total definido para esse primeiro momento da montagem
do repositório são de templos religiosos. Foram identificados 10 (dez) templos, sendo 08 (oito)
ligados à Igreja Católica; um (01) da Assembleia de Deus e 01 (um) da Adventista. Predominou
nesse grupo de fotografias a representação das fachadas externas dos templos, podendo ser
indexado a partir de vários critérios: localização, estilo arquitetônico, vinculação religiosa, entre
outros.
Segundo Oliveira e Lima (2018), alunas egressas do curso de História do
CESC/UEMA e que participam da equipe desse projeto de pesquisa, os templos da cidade
mostram não só a perícia técnica e o estilo arquitetônico daqueles que lhes conceberam, mas,
também, os valores e padrões culturais das gerações que lhes preservaram. Destacam seus sinos
obcônicos, fabricados em bronze, em tamanho grande e instalados no alto das torres para
badalar a fé do povo caxiense, em uma comunicação perfeita em que o conteúdo é decifrado
independente do teor da mensagem informada. Abaixo Fig. 6 e Fig.7.

IGREJAS DE CAXIAS

Ainda na categoria dos ambientes de uso privado destinados ao público foram


identificadas as fotografias de escolas. Foram fichadas um total de noventa (90) fotografias
320

desse tipo de ambiente, retratando o cotidiano das instituições educacionais públicas e privadas
da cidade. Nesse subgrupo foi possível verificar que tanto os espaços internos quanto os
externos chamavam a atenção do fotógrafo (Fig. 8 e Fig.9). Ao retratar os ambientes internos
na sua dinâmica, o fotógrafo capturou diversos elementos que podem ser utilizados como filtro
de busca das imagens: tipos de fardamento, sexo dos alunos, disposição de salas de aulas,
posturas, relações de gênero, datas comemorativas, materiais escolares e pedagógicos, entre
outros.

AMBIENTE ESCOLAR

Também mereceram a atenção do fotógrafo os prédios da administração pública local.


Vários imóveis antigos onde funcionavam serviços públicos foram imortalizados na fotografia
de Sinésio Santos. Chama a atenção as secretarias municipais, os prédios da justiça, hospitais
públicos, correios e o antigo mercado municipal, permitindo compreender como estava
organizada a administração pública na cidade nessas quase cinco décadas. Esse aspecto da
arquitetura é importante porque esse período é considerado pela literatura local como sendo de
significativo desenvolvimento econômico e cultural da cidade, superado apenas pelas primeiras
décadas do século, momento em que a atividade têxtil e a culturas do algodão e do babaçu
proporcionaram grande desenvolvimento da região.
As imagens (Fig. 10, Fig.11 e Fig.12) vão mostrando as transformações e a
permanências dos espaços públicos da cidade. Alguns desses prédios já não existem mais, tendo
sofrido desgaste do tempo e da pouco disposição da administração pública em mantê-los
preservados. Essas áreas fazem parte do patrimônio histórico da cidade. Nem por isso observa-
se uma postura positiva das autoridades locais ou mesmo da sociedade no sentido de manter
sua integridade, fortalecendo a política de preservação histórica e cultural local.
321

PRÉDIOS PÚBLICOS

A atividade econômica de Caxias foi bastante registrada por Sinésio Santos,


permitindo que se organizasse pastas com informações de diferentes momentos dessas práticas.
Utilizando a estrutura arquitetônica da cidade relacionadas aos bens pessoais de uso público,
com o filtro em prédios e ruas em que estava instalado o maior movimento comercial, foi
organizado um grande volume de imagens: casas comerciais, o trânsito das pessoas por essas
áreas, da maneira como a pessoas ocupavam os logradouros públicos, consumiam,
comportavam-se, o tipo de indumentária que utilizavam para essas ocasiões, entre outros
elementos forneceram um cenário rico em detalhes do cotidiano local. É o que se percebe nas
imagens (Fig. 13 e Fig. 14) abaixo, que integram o material que foi selecionado para constituir
esse item:

COMÉRCIO LOCAL
322

Ribeiro (2018) ao analisar edições do jornal local “Cruzeiro” que circularam na década
de 1940 em Caxias-MA, com o propósito de compreender as representações construídas sobre
a modernização da cidade, mostrou que os elementos que compunham esse processo eram
fortemente marcados por um sentimento de nostalgia e religiosidade. Ao destacar esses
aspectos, ressalta como a memória positiva sobre as fábricas instaladas na cidade, no final do
século XIX e primeiras décadas do século XX em Caxias, eram apropriadas pelos grupos
hegemônicos da política local, para conservação desses espaços de poder. O autor adverte, no
entanto, que nessa engenharia de construção da cidade moderna produzida pelo periódico, nada
era falso. A cidade era verdadeira, com seus fatos e processos. Porém, o que ocorria era uma
construção discursiva que aplicando os recursos linguísticos com finalidades específicas,
orientava à construção de uma determinada compreensão da experiência.
Esses elementos da memória construída sobre a grandeza da cidade estão presentes
nas identidades que sujeitos locais produziram com a cidade. O passado glorioso continua
alimentando os projetos recentes elaborados para Caxias, e especialmente sendo usado como
um mecanismo de captura da confiança da população local pelos diferentes grupos políticos da
região. Segue algumas das fábricas (Fig.15 e Fig. 16) que permanecem na memória do caxiense,
como expressão do esplendor e da glória dessa cidade.

INDÚSTRIAS CAXIENSES

Foi organizada uma pasta com a arquitetura residencial de Caxias- MA. Os prédios
centrais reforçam o constatado em relação ao efeito do crescimento comercial de Caxias sobre
a vida de famílias mais abastadas da cidade. É o que se observa nas imagens a seguir: (Fig.17,
Fig. 18 e Fig. 19):
323

CASARÕES RESIDENCIAIS

Observa-se nas imagens acima que as fachadas das residências informam o poder e o
bom gosto dessa população, indicando que a população com maior capacidade de consumo da
cidade mantinha-se integrada aos estilos predominantes nas diferentes regiões do país, e mesmo
com as tendências internacionais, vez que essa era uma elite viajante. Algumas edificações
chamam a atenção para mistura eclética do tradicional com o moderno.

Considerações finais

A proposta de trabalho “A arquitetura de Caxias-MA no ciberespaço: tecnologia e


arte na construção do conhecimento histórico” integrou o projeto “Organização urbana e
relações de poder em Caxias-MA: o espaço público sob o olhar de Sinésio Santos (1950-
1980)”, cujo propósito é compor o repositório Sinésio Santos, o qual será integrado ao Curso
de História do CESC/UEMA. É importante enfatizar que a pesquisa não se esgota, pelo
contrário, ela tem dado margem para se pensar em outras temáticas. Temas esses que, a partir
das análises aqui realizadas, foi possível perceber as diversas possibilidades de pesquisa que o
acervo do fotógrafo permite que se faça, conjunto imagético que conta com, aproximadamente,
dez mil negativo e se encontra à disposição do Centro para realização de pesquisas em diversas
áreas.
Faz-se mister dizer que, com esta pesquisa, percebeu-se que a arquitetura de Caxias
não fala só de sua organização social, do seu passado econômico, de sua religiosidade, de sua
política, mas mostra também muito da cultura desse povo, das suas festividades e do seu lazer,
como também o que revela grande aspecto da vida social da população.
Importa dizer, ainda, que vários espaços foram registrados pelo fotógrafo Sinésio
Santos. No entanto, nessa primeira fase do trabalho será disponibilizado material referentes as
abordagens acima dispostas. Novos estudos estão sendo realizados para melhor exploração de
todos esse acervo, considerando que quanto mais nos apropriamos dele, mas possibilidades nos
apresenta de conhecer a Caxias de ontem e a Caxias de hoje.
324

Referências

BARROS, José D'Assunção. Cidade e história. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2007

CAMARANO Ana Amélia e BELTRÃO, Kaizô Iwakami. Distribuição espacial da


população brasileira: mudanças na segunda metade deste século. 2000, p.14. Disponível em
http://Ipea.gov.br. Acesso em 20.03.2020.

IBGE. Indicadores Sociais . https://www.ibge.gov.br- 1980.

IBGE. Indicadores Sociais . https://www.ibge.gov.br- 1990.

IBGE. Indicadores Sociais . https://www.ibge.gov.br- 2017.

RIBEIRO, Jakson dos Santos. A Princesa e o Mundo das Fábricas: a cidade moderna e a
questão fabrilista em Caxias/MA (1940). Dimensões, v. 43, jul. Dez. 2019, p. 186-213.

Oliveira, Dalva M. de e LIMA, Dalveni de Oliveira. Sinésio Santos e o retrato do sagrado.In:


Alvarenga e outros (Orgs.). Sinésio Santos: a cidade e os olhos. Teresina, EDUFPI, 2018.

VOLPATO, Sílvia M. , RODRIGUES , Berté L. C. e SILVEIRA Amélia. Inovação no acervo


e no acesso de informações: o sistema de repositório institucional nos Tribunais de Contas do
Brasil. In: Perspectivas em Ciência da Informação, v.19, n.4, p.160-181, out./dez. 2014.
325

CLARICE LISPECTOR: (IR)REALIZAÇÕES DO FEMININO E DA


MATERNIDADE

Carmem Teresa do Nascimento Elias

Introdução

Ontem perdi durante horas e horas a minha montagem humana.


Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser?
(LISPECTOR, A Paixão Segundo G.H. 2009, p.7)

A obra de Clarice Lispector é essencialmente perturbadora. Uma obra em busca de


verdades e essências humanas ainda não explicáveis em nossa consciência. Por essência
entende-se aqui a raiz do latim ‘essentia’, palavra relacionada ao verbo latino ‘esse’ (ser). ‘Ser’
não apenas como estado, passivo, mas também ‘ser’ enquanto Verbo, como ação de Ser, ou
ação do Ser. Essência, segundo Flogel (2009) implica a própria dinâmica constitutiva de algo
ao fazer-se ou tornar-se nesse algo, ou alguém. Castro (2016), por sua vez, acrescenta que por
essência entende-se energia ancestral, que recebemos ao sermos concebidos e provém de nossos
pais na forma de uma memória imemorial, que está presente em nossa mente, porém impedida
de acesso consciente. O próprio paradoxo de uma memória imemorial já remete a outras áreas
de conhecimento, como Psicologia e Antropologia, às quais precisamos recorrer para abarcar a
profundidade e complexidade inseridas na literatura de Clarice. Nesta abordagem, constitui uma
obra de raízes ancestrais, primevas, primitivas, que se elabora dos primórdios da humanidade,
da própria concepção de humanidade e de sua gestação enquanto espécie animal humana,
remetendo à tênue transmutação evolutiva entre a bestialidade e a civilidade. Falamos de uma
literatura fronteiriça para a compreensão da existência humana, de um estágio atual que retorna,
em reverso, no resgate de seu marco inaugural. Por lidar justamente com elementos tão sutis
ao entendimento, tão imemoriáveis ao pensamento racional, Clarice transita com sublime
maestria entre terrenos tão insípidos de respostas e tão férteis de perguntas como os arquivos
inconscientes da mente; a palavra, a aquisição da linguagem e da fala; a sexualidade, a
fecundidade e a fertilidade; os ritos do sagrado e a profanação, elementos básicos na
religiosidade; e os tabus, a bestialidade, a selvageria, a monstruosidade animalesca pertencente
às próprias etapas evolutivas da vida.
Analisar a obra de Clarice requer pesquisar domínios múltiplos de conhecimento que
possam lançar luzes sobre o inacessível. Uma tarefa multidisciplinar gregária, e neste aspecto
civilizatória, de reunir a atividade humana em busca de soluções. Literatura, Psicanálise,
326

Antropologia, Psicologia, Sociologia, Teologia...são inúmeras as fontes que confluem para


levantar hipóteses e buscar respostas aos enigmas – nossos, de toda a espécie humana, por sinal
– com os quais Clarice discursa com os leitores. Não há como ler Clarice sem dialogar com ela,
uma verdadeira autora Esfinge, aguçada a nos devorar se não ousarmos ao menos o risco de
uma resposta.

Objetivo

Este trabalho visa analisar o romance A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector e
suscitar perguntas, indagar, dialogar, falar com o romance, recorrendo a informações de
diversas áreas do conhecimento, que possam contribuir e ser acessíveis ao estudo da obra.
Enquanto o foco recai sobre o âmbito da Literatura, visa-se elucidar possíveis interpretações,
compreensões, sem almejar respostas definitivas, uma vez que o terreno do discurso é uma via
inevitável de subjetividade. Assim, elementos de Psicanálise e Antropologia são usados como
instrumentos de apoio à interpretação da obra literária, que, em sua essência literária, pode
quebrar os paradigmas dessas áreas ou até propor novas visões. Talvez, chegar a hipóteses sobre
Clarice Lispector seja um objetivo mais viável que almejar respostas. O objetivo específico,
então, é encontrar fontes teóricas que expliquem a gênese da obra de Clarice, referências de
outros estudos e possíveis desdobramentos para novos estudos em diversas áreas.

Hipótese, Metodologia, Fundamentação da literatura

A hipótese que norteia esta pesquisa é que a obra A Paixão Segundo G.H. tenha
correspondências em textos e estudos das áreas de Psicanálise e Antropologia, e que textos
dessas áreas possam prover fontes tanto de análise como de possível elemento inspirador para
a própria autora.
Para realizar esta pesquisa e análise textual, hermenêutica e interpretativa, aplicada a
teorias psicanalistas, três vertentes na obra de Clarice foram escolhidas para nortear o estudo: a
palavra, a sexualidade e a maternidade, sendo as três intimamente interconectadas. O estudo,
embora direcionado para a interpretação literária, baseia-se sem grandes aprofundamentos em
elementos das teorias de Freud e Lacan.
O primeiro aspecto a ser analisado é a palavra. A obra de Clarice é rica em abordar o
silêncio, os sons, a sonoridade das coisas, o eco e a fala. Por palavra entende-se aqui desde o
Verbo da Gênesis, a ação criadora, o significante e o significado, a linguagem e os modos da
327

apreensão da fala enquanto a ação verbal de falar. Pela Psicanálise a fala é adquirida pelo
reconhecimento da existência de um Outro, com quem a criança tem de estabelecer discurso
para vir a tornar-se um sujeito. A comunicação bebê-mãe é tão forte que, mesmo sem palavras,
a compreensão e a realização do desejo da criança se dá entre os dois. Porém, ao identificar a
existência de uma outra pessoa, no caso, do pai, o bebê se vê diante da necessidade de se
exprimir e desenvolver a fala para haver satisfação de seu desejo e a comunicação. O sujeito,
então, elucida o processo lógico da linguagem pelo ato ‘eu falo’. Como signo de poder,
inclusive, a aquisição da fala se daria então em decorrência do reconhecimento com a figura
paterna, um processo chamado ‘O Nome do Pai’, segundo Lacan. A representação passa a
ocorrer assim no simbólico por meio da fala, do mesmo modo que a palavra é o representante
simbólico de um objeto. A fala, então, marca o acesso à cultura e ao logos, para além da
natureza, por meio da filiação. Em suma, a fala marca uma linha divisória de inserção na
sociedade. A própria lógica, nos primórdios da espécie humana seria uma decorrência da
demanda sobre a paternidade e as relações de parentesco e gerações (BONFIM,2014).
Outro aspecto que emerge da obra de Clarice é a sexualidade. A partir da discussão
sobre a palavra e a fala, surge a discussão psicanalítica do termo ‘falo’, entendido tanto como
a conjugação ‘eu falo’, quanto a representação do órgão reprodutor masculino como símbolo
de fertilidade. A raiz de ‘falar’ é, portanto, uma ação, um símbolo do masculino e um signo de
poder. Embora a associação entre falo e o pênis seja socialmente a mais representada, não se
deve esquecer, principalmente em relação à obra de Clarice Lispector, que anatomicamente
definido, falo é o ‘órgão embrionário que dá origem ao pênis e ao clitóris, ainda não
diferenciados sexualmente. Etimologicamente, falo é símbolo de sexualidade, porém não se
restringe exclusivamente a uma representação apenas do masculino. Neste aspecto, fala e
sexualidade, tão intimamente ligados, aparecem na obra de Clarice desde o silêncio e o embrião
indefinido, até a explosão do gozo, femininamente castrado, exposto e finalmente resgatado e
alcançado como poder da fala da mulher. A castração está marcadamente presente nos textos.
O silêncio do sexo é a infertilidade, tão descritas nas personagens estéreis, nos abortos, nos
ovários vazios mencionados em diversos textos clariceanos. Porém a sexualidade pulsa e
impulsiona a vida, muito mais do que a morte pulsa o silêncio. A sexualidade reprimida, velada,
negada, afloram do não dito, do que necessita ser dito, dos segredos do inconsciente, das
armadilhas dos tabus sociais e fala. Fala independente do gênero. Fala, o sexo fala.
Neste contexto, a maternidade torna-se tema central em A Paixão Segundo G.H. A
sexualidade humana é revestida de tabus, vergonhas, opressões, proibições culturais
antropológicas, que desde priscas eras converteram a sexualidade à esfera do que tem de ser
328

escondido. Não importa a compreensão de que um embrião não tem seu sexo ainda visível. A
repressão se ocupará do feminino, do masculino. O ato sexual é culturalmente pecado original
e ao invés de ser falado tem de ser segredado no turvo terreno do domínio do inconsciente. Lá
onde ninguém vê, como cita a própria escritora. E uma vez invisível, corre solto sob as trevas,
sob a defesa do silêncio. Porém o sexo é ato e, portanto, é verbo que fala. Foge do arcabouço,
dos invólucros, das infertilidades e castrações, impulsionado pela força do desejo. É lá no
inconsciente onde se resgata e onde reside a raiz do verbo e da fala, que a criação do mundo
ficcional de Clarice floresce, ilumina e apavora. Porque é no terreno do obscuro que se
ficcionam os monstros, os medos, os horrores, as bestialidades, os nojos, a repugnância que
vazam e afloram e defloram a consciência humana. Clarice é a ruptura. Seu texto rompe o hímen
da mente e da palavra. Não impõe limites às situ-ações de suas personagens. Clarice varre a
cultura para chegar aos resquícios animalescos da evolução: Clarice é a maternidade animal,
instinto primevo das espécies. É lá, no puro falar dos instintos que ela gesta a ancestralidade
que G.H devora. Clarice é maternal com sua escrita. Clarice fecunda, gesta e pare suas
personagens no mais primitivo e mais forte princípio da aceitação: a maternidade. Maternidade
que acolhe até mesmo a infertilidade do (não) sujeito, do embrião abortado e de uma filha
antropofágica. Maternidade que se acolhe ao outro, como instinto. Maternidade que recupera,
por outro lado, os elos iniciais com o sagrado feminino, com a civilidade do sagrado, como uma
Grande Deusa Mãe, deidade mais ancestral da representação do sagrado, a conceber vida às
vozes até então negadas.
A personagem G.H afirma, ainda no início do romance, ser uma mulher rica, bem
posicionada econômica e socialmente, porém insatisfeita e vazia, sem marido e sem filhos. Uma
mulher que, segundo palavras da personagem, perdera a terceira perna. A partir desta
apresentação da própria personagem, ela desvencilha-se das repressões da sociedade patriarcal,
entendendo-se esta terceira perna simbolicamente como representante do falo, do complexo de
castração, portanto. G.H. inicia, assim, uma decomposição das várias camadas ou invólucros
inconscientes trazidos pela civilidade humana para refazer-se restabelecendo elos com
pressupostos da sociedade matriarcal:

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que não me é mais. Não me é necessária.
Assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava
de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei
a ser uma pessoa que nunca fui. Era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por
mim mesma, e sem precisar me procurar.a ideia que eu fazia de pessoa vinha de minha
terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? Estarei mais livre?
(LISPECTOR, 2009, p. 6).
329

Antropologicamente, as sociedades iniciais da humanidade eram constituídas com


princípios matriarcais, associados como a própria terra. Neste sentido, a obra de Clarice cita
que “essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de
fogo que se esfria em terra”. A personagem, que se desestrutura na função masculina,
reconstrói-se, então, no seu encontro com o matriarcal. Não seria essa nova forma sua
reconstrução como Gaia?
Por toda densidade, profundidade e fluir simultâneo, a obra de Clarice Lispector
requer abertura e amplidão na procura de seus significados, além do escopo abarcado apenas
pela Literatura. Clarice é o mais desbravador, e intrusões, mesmo que como pequenos insights,
na Psicanálise, na Antropologia, na religiosidade, nos ritos, na subjetividade são exigências das
quais o leitor de Clarice precisa a fim de ser tornar capaz de falar com o que a sua obra é capaz
de nos falar.

Análise

A Paixão Segundo G.H. apresenta uma personagem mulher (não) identificada apenas
pelas letras G.H. Ela não é nomeada. G.H é apenas busca de significante, sem significado.
Portanto, uma mulher envolta em silêncios, ou seja, sem inserção na fala (falo), uma mulher em
estado de escuta, atenta como um animal, aos sons da natureza de seu ambiente. G. H parte em
deslocamento dentro de seu apartamento rumo ao quarto que era ocupado pela empregada. A
história se passa então no espaço daquele quarto, pequeno, onde não existe mais distinção ou
hierarquização em seu status social, nem sua cultura, nem sua civilidade. O ambiente precário
que G.H esperava encontrar no aposento na verdade comprova ser tão bem cuidado quanto o
resto de seu apartamento, e, portanto, a diferenciação social entre ela, da classe alta, e a
empregada desaparece uma vez que ambas se inserem em ambientes igualmente bem cuidados.
As barreiras do social assim continuarão a cair ao longo do texto uma vez que a própria
civilização é se torna o elemento questionado por G.H. O deslocamento da personagem avança
dentro do quarto rumo a um armário escuro, ambiente mais estreito. Um espaço
metaforicamente comparável a uma caverna, ou melhor, a um útero primordial, ao inconsciente.
Na parede apenas um desenho feito a carvão, novamente uma alusão ancestral às
pinturas rupestres dos tempos primordiais das cavernas. A imagem descrita segundo a
personagem contém dois vultos humanos mal definidos, apenas como silhuetas grosseiramente
desenhadas de um homem e uma mulher, e um cachorro, que ocupa o lugar de uma criança.
330

Ora, os vultos, comparados aos desenhos rupestres são representação da fase primeva da
instituição da sociedade, ou da família socialmente inserida. Porém, ao invés do filho, surge o
cão, símbolo da domesticação, do adestramento, do condicionamento às regras sociais.
Enquanto a sociedade humana cria suas primeiras regras sociais, a estas devem ajustar-se
humanos e animais domésticos nos primórdios da civilização : “ o viver que eu havia
domesticado para torná-lo familiar” (LISPECTOR, 2009, p.12), ou seja, o viver da criança
substituída por um cachorro como símbolo da domesticação social. E justo lá, naquele quarto
repleto de alusão ancestral se passa a história da personagem, seu confronto com a questão da
fecundação, da gestação e o parto antropofágico da personagem como sujeito de si mesma em
seu encontro com o Outro, no caso, a barata. Lá, naquela representação das origens da
humanidade, a alteridade, o Outro, aparece na forma da barata, do animal medonho precursor
da espécie humana nos tempos imemoriáveis, animal capaz de sobreviver até mesmo a uma
catástrofe atômica e por cheque a civilização humana. Não é à toa que a barata ocupa o
inconsciente humano, aflorando sentimentos de nojo, repulsa.
O romance retrata, portanto, uma viagem ao mundo do inconsciente. E uma vez
exposto o que não se fala, ou seja, o silêncio do inconsciente, ou a não-palavra do inconsciente,
que encontra sua linguagem fora dos ditames canônicos sociais, este inconsciente aflora na
própria recriação de uma linguagem literária própria e única desenvolvida por Clarice
Lispector.
Voltando à personagem, G.H é mulher estéril, de ovários secos, vazios. Sem nome,
sem fertilidade. Ela é a própria castração também da feminilidade, uma mutilação à expressão
da mulher enquanto ser social a quem compete apenas ter filhos, segundo as premissas
patriarcais. Lá, no espaço pequeno e estreito do armário escuro, como a passagem para um
parto, ou anti-parto, ou retorno ao útero, lá transcorre seu encontro com uma barata, descrita
como criatura capaz de carregar centenas de ovos, de ter inúmeros filhos. A barata, por sua vez,
é a representação do grande potencial gerador da maternidade: é a sexualidade, é a fecundidade,
é a grande mãe. Por oposição é uma outra G.H, que excede, transborda, transcende sexualmente
como mulher, gerando fascínio e repulsa. A castração e o gozo feminino estão ali frente a frente
em duelo pelo ato de SER, em’ essentia’.
O que representa esse animal? Uma aberração, uma monstruosidade? O inconsciente
é onde habitam o medo, o horror, o medonho. Quem pratica a bestialidade? Justamente G.H.,
inominável, estéril, como uma criatura animalesca, realiza um rito no qual acaba por devorar
toda aquela criatura repulsiva em um ato completo de prazer e plenitude, transportando de
dentro para fora e de fora para dentro toda a representação do nojo, da repulsa, da bestialidade
331

mais aflorada e, ao mesmo tempo, sacralizada: é O outro que passa a ser ela mesma e que abre
a possibilidade do discurso e da significação para G.H. A bestialidade de G.H. ao devorar a
barata transpõe para ela toda a simbologia da fecundidade, tornando-a a ‘outra’.
Todo o processo de antropofagia é um rito orgânico de construção de si mesma, de
fecundação do EU e um percurso simbólico pela sexualidade, gozo, maternidade e parto.
Representa uma ruptura dos tabus contra a sexualidade feminina, a libertação mais íntima,
inconsciente, ancestral, visceral, que permite uma ruptura com a civilidade, indispensável para
o encontro da mulher com sua essência. Rompe-se com as falsas moralidades, com a repressão,
com todo o arcabouço de uma sociedade patriarcal secular, esmagadora, por séculos de
aprisionamento do feminino. Clarice Lispector liberta a sexualidade feminina, explorando
justamente toda a repulsa e monstruosidade criada pelas sociedades em relação ao sexo. A obra
de Clarice chega ao ponto G, ao gozo de garantir a desconstrução de tabus sexuais e de conferir
voz inquestionável à mulher, redimindo e reconstruindo os instintos primitivos mais reprimidos,
por meio do ritual antropofágico de erotismo e gozo:

E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um


instinto que era ruim, total e infinitamente doce - como se enfim eu experimentasse,
e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira
vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo,
justificado ou não de matar...Há quinze séculos eu não lutava, há quinze séculos eu
não matava, há quinze séculos eu não morria... Como se pela primeira vez enfim eu
estivesse ao nível da Natureza (LISPECTOR, 2009, p. 40).

Justamente pelo choque causado no leitor é que se pode realizar a experiência, o ato
simbólico, limite, para ir em rumo à uma verdade universal renegada. O inconsciente feminino
rompe o silêncio, encontra passagem para a sua fala, assume o amor não como fantasia, porém
como Real. Real indizível sob os padrões da civilidade. A ficção lispectoriana traspassa a
verossimilhança literária para por meio da fantasia do texto alcançar o simbólico e fazer dele
um ato do Real. G.H. comunga animalesca-mente e religiosa-mente, uma comunhão sexual de
sêmen, líquidos uterinos e leite (líquido da barata), de pecado original, levando para suas
entranhas secas e vazias toda a fecundidade que a natureza animal representava.

Origens do rito sacrificial

A cena de devorar a barata é acompanhada por uma paródia ao sagrado em forma de


oração em evocação à Mãe (mãe carnal e a Mãe religião). Trata-se de um rito voltado também
332

ao sagrado. Rito, grito, g-rito de gozo, de confissão, de clamor por perdão, sacrifício. Um rito
de comunhão. Um rito orgástico. Seria uma absolvição para o pecado original? Ou a
reinstalação do mesmo? Seria uma redenção para a perda do paraíso? Ou seria justamente o
momento da (re)inauguração da civilidade? Ora, é justamente pelo reconhecimento da culpa e
do proibido, do ato de transpor a proibição, como o provar da maçã do paraíso, que se inaugura
a civilização, segundo padrões bíblicos. G.H. cumpre sua saída da sociedade e regresso aos
primórdios ao entrar no quarto da empregada e vivenciar o primitivo, mas justamente na
consumação do primitivismo, a obra lispectoriana nos confronta de volta com à civilização por
meio da presença das evocações religiosas.
Aqui mais questões podem ser suscitadas. A primeira se refere ao aspecto religioso,
ou sagrado propriamente dito, associado ao banquete sexual. Vale relembrar que ancestralmente
a deidade criadora era a representação de deusas mulheres, grávidas e dotadas de grandes e
inúmeros fartos seios. Assim essa deidade é representada na arte primitiva. A religiosidade
surgiu associada a um poder divino atribuído à mulher por conta da fertilidade. As primeiras
sociedades eram matriarcais. Os cultos pagãos eram voltados para a natureza e a fartura de
alimentos. Por essa linha interpretativa, sendo a barata considerada como símbolo desta deidade
feminina, G.H comunga com a grande deusa mãe, e alimenta-se justamente da aliança entre o
sagrado e o feminino, restabelecendo o poder divino natural ao feminino. Mais uma vez, essa
interpretação reforça o confronto no texto lispectoriano entre as sociedades matriarcal e
patriarcal: na condição subalterna de Eva, G.H. dispensa o paraíso: “essa coisa corajosa que
será entregar-me, e que é como dar a mão à mão mal assombrada do Deus, e entrar por essa
coisa sem forma que é um paraíso. Um paraíso que não quero!” (LISPECTOR, p. 12). Uma
trindade feminina então se forma no romance entre a barata, G.H e a grande deusa mãe,
conferindo ao feminino o poder uno natural e divino. Sendo o inconsciente assim então UNO,
onipresente, onisciente e onipotente, pela própria força de unidade adquiri o poder sobre o
mistério, o desconhecido, e, consequentemente, o sagrado. A Grande Deusa Mãe, Gaia, e os
inúmeros nomes atribuídos à entidade feminina surgiram originariamente nas mais variadas
civilizações primitivas, unificando o campo semântico de deusa-criação-fertilidade- gestação-
maternidade-mãe. Essa deusa, diria, é a deidade que ocupa o quarto escuro do inconsciente
humano. O deus homem trazido pela força, pela punição, pelo poder, pela proibição só surge a
posteriori à medida que as sociedades precisam guerrear por seus territórios, por sua supremacia
sobre outros povos.
Freud (1913) em sua obra Totem e Tabu escreve sobre a possível descoberta da
monstruosidade do incesto ao elaborar o mito sobre as origens. Freud já descrevera a cena
333

antropofágica primordial muito semelhante à cena reescrita por Clarice Lispector. Reescrita,
não repetida. Com uma diferença: Freud traz a interpretação patriarcal, enquanto Clarice inova
ao reescrever a marca da percepção incestuosa por meio de uma verdade vivencial matriarcal.
Ambos autores, porém, moviam-se pelos territórios arqueológicos dos mitos que povoam a
perspectiva psíquica e social da humanidade.
No mito criado por Freud para explicar as origens da civilização, ocorre um conflito
entre um pai todo poderoso, chefe de um clã (horda) que tomava para si todas as mulheres.
Somente a este chefe, a este pai, cabia o direito à sexualidade e à procriação. Os demais
membros do clã, todos irmãos e irmãs entre si, a sexualidade é proibida. O chefe toma para si a
mulher e as próprias filhas. Até que um dia os filhos homens revoltaram-se contra esse pai-
chefe-todo-poderoso e violentamente o matam. Depois, então, os filhos devoram esse pai
assassinado num ritual canibalístico, até que tomam consciência do ato, do horror do assassinato
do pai e da culpa. Culpa à qual soma-se a percepção que doravante caberá a eles o ato sexual
com a própria mãe e as próprias irmãs. Eis um dos marcos iniciais da civilização: a consciência
e o banimento do incesto. Três marcos caracterizam o ingresso na civilização: a aquisição da
fala, a consciência da morte e a consciência e proibição do incesto. De modo semelhante, G.H.,
sem direito à maternidade, volta-se contra a barata símbolo da fertilidade e a devora também
num rito sagrado profano canibalesco. A comparação entre a história mítica de Freud e de
Lispector diferem-se apenas no tocante à visão patriarcal e matriarcal do mito. Segundo Freud,
ao explicar seu mito, “o acontecimento da eliminação do pai pelos filhos deixou traços na
história da humanidade” (FREUD,1913, p 143, p. 15). Esses traços moldaram a memória
imemoriável do ser humano e habitam o espaço obscuro do inconsciente, onde permanecem
silenciados e sentenciados pelas regras civilizatórias:

A verdade já me ultrapassara: levantei a mão como para um juramento, e num só golpe


fechei a porta sobre o corpo meio emergido da barata . Ao mesmo tempo eu também
havia fechado os olhos. E assim permaneci, toda trêmula. Que fizera eu?
Eu fizera de mim isto: eu matara. Eu matara! Mas por que aquele júbilo, e além dele
a aceitação vital do júbilo? Há quanto tempo, então, estivera eu por matar? Não,
não se tratava disso. A pergunta era: o que matara eu? (LISPECTOR, 2009, p.40).

Freud (1913) aborda a questões originárias da civilização, une a família ao sagrado ao


deduzir que os membros de um clã perpetuam uma obrigação sagrada a um antepassado. A
barata de G.H. portanto encontra eco sagrado se associada com essa mãe antepassada. Freud
conclui que o horror ao incesto vai organizar a sociedade com seus tabus, proibições como
processo de passagem da natureza para a cultura. Clarice, entretanto, transmutou a explicação
de Freud para a esfera do feminino e em reverso realiza o processo da cultura para a natureza
334

até o ponto imediatamente anterior da hominização, quando o ser humano se diferencia do


animal. É nessa passagem que o romance de Clarice encontra o seu tempo narrativo. Nesse
tempo deve-se perguntar quem eu sou e de onde eu venho ao animalesco ou ao sagrado, à
natureza ou a uma deidade mitológica. A construção mítica da barata no romance da Clarice é
simultaneamente animal e sagrada. Explicar a origem humana, para qual não há explicação, é
uma construção que só pode ser operada pela construção mítica. E para que haja uma
mitificação é necessário que haja um rito associado ao mito com a finalidade de estabelecer
uma percepção de pertencimento ou identificação. Clarice então lança mão da sagração e do
sacrifício, que vão, por sua vez, lidar com a difícil questão do incesto envolvido, no romance,
com a maternidade.
Skowronsky, estudiosa da obra de Freud, levanta a hipótese se o interdito do incesto
abre caminho para a sexualidade neutralizar a violência. Explicando Totem e Tabu a autora cita
que ‘o primeiro estado social é a horda e o pai todo poderoso’. A memória do crime de
parricídio, assassinato e canibalismo; a memória de castigo, com a responsabilidade e culpa; e
o efeito da interdição compõem os alicerces da ordem social, origem do estado e da sociedade.
Essa marca de origem se relaciona com os primórdios do sagrado, da moral e da sociedade,
também das artes e das religiões.
Freud (1915) deixa clara a relação do horror do incesto vinculado aos apetites
incestuosos com os pais, como fonte do amor e das rivalidades: “ O festim totêmico é o ato
canibal de devorar o corpo do pai primordial, violento, temido e invejado”. Explica Freud que
“no ato de devorar (o pai), (os filhos irmãos) consumiam a identificação com ele, apropriando-
se da força dele” ( p. 143). O ato canibal carrega em si a identificação e a posse. E também o
amor! “A identificação é a forma mais originária de laço afetivo”, diz Freud (1921, p. 100).
Completa Skowronsky que “mantém-se assim a nostalgia do amor ao pai, misturando-se ao
medo e à admiração, que então se transformam em obediência. E seguindo por esse raciocínio,
também a mais forte aliança afetiva. Imagem e Semelhança de Deus, que se transformará em
‘obedecer a Deus acima de todas as coisas’. Eis o princípio da comunhão sagrada: comer para
a união, o pão da vida, hóstia, corpo e sangue de Deus. Não estaria o conceito de um Deus
temeroso relacionado ao pai ancestral?

Conclusão
335

A pesquisa, análise comparativa possibilitaram a conclusão de que existem


semelhanças entre a obra Totem e Tabu de Freud e o romance A paixão Segundo G.H. de Clarice
Lispector. Ambas as obras tecem mitos que inconscientes psicanalíticos que organizam a
civilização humana. Estudar Clarice demanda um conjunto de pensamentos e aponta para a
necessidade de se vir a desvendar mais cuidadosamente os meandros do inconsciente feminino.
Tanto Freud quanto Lacan desenvolveram uma Psicanálise pela interpretação masculina
patriarcal. Clarice é a primeira autora da Literatura Brasileira a apontar e a trazer à luz, à fala a
possibilidade de se ter de reescrever uma teoria psicanalítica a partir de uma análise de e para
o universo feminino.
Lacan fez vasto uso da literatura para desenvolver sua psicanálise por meio de seus
estudos com a obra Ulisses de James Joyce. Clarice Lispector é uma dessas grandes mentes
autorais que vão além da palavra simbólica do cotidiano, ou vão tão fundo nele, para uma fala
que rasga o silêncio e o invólucro das camadas do inconsciente. Um brotar, um afloramento,
uma nascente, um rio que borbulha a partir de uma pedra ou de um fundo arenoso. Uma
efervescência, uma explosão da fala, um gozo múltiplo.
Em outras palavras, a questão da importância do feminino é um elemento dos mais
significativos e poderosos no inconsciente ancestral, marcas que não se apagam e justo por isso
precisam ser tão reprimidas pelo patriarcado. O poder do feminino e da sexualidade feminina é
tamanho que o masculino não o comporta sem a necessidade de castrá-lo. Civilizar a mulher é
uma luta de poder. A mulher goza, a mulher pode gozar inúmeras vezes, pode ter gozo múltiplo,
como múltiplos são os ovos da barata. A mulher possui os seios que amamentam os filhos
homens também. A mulher possui duas fontes de orgasmo, o clitoriano e o vaginal. Como se
situa a sexualidade masculina diante dessas realizações femininas? A solução antropológica do
homem foi sacrificar a mulher, demonizá-la, vertê-la em figura repulsiva, pecadora, tirando-lhe
a representação do sagrado e atribuindo a ela a profanação, a culpa de um suposto pecado
original.
Clarice nos faz rever a trajetória antropológica e religiosa. E nesse contexto, explica-
se por que a obra se intitula ‘paixão’.

Referências
CASTRO, Manuel Antônio. Filosofia e o pensamento do corpo. In: Desdobramentos do
Corpo no século XXI. MONTEIRO, Maria Conceição & GIUCCI, Guilhermo (orgs). Rio de
Janeiro, FAPERJ, Editora Caetés, 2016.
336

CAVALCANTE, Lina & Oliveira, Debora. Os Impasses do Feminino e os Possíveis


Entrelaçamentos com a Maternidade. In: PePSIC- Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza.
Dossiê: DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p503-522.
DE BONFIM, Flavia G. Perspectivas sobre o escrito lacaniano: a significação do falo. In
Analytica: revista de Psicanálise. São João del Rei, vol. 3 nº 5, 2014
FARACO MOURA, Carlos. Linguística Histórica. Rio de Janeiro, Ática. 1998
FOGEL. Gilvan. ‘Pensamento, elemento, transcendência’, In:Revista Scintilla, Curitiba,
volume especial, n.6-o3, 2009.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Buenos Aires: Amorrortu, 2000


FREUD, Sigmund. Trabalhos sobre metapsicologia. In Obras Completas. Buenos Aires:
Amorrortu,2000
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Ed. Comemorativa, Imago, 2001
LACAN, J. Função e campo da fala e da Linguagem em Psicanálise. 1953, in Escritos. Rio
de Janeiro, 1998
____________ O seminário de Jacques Lacan. Livro V: As formações do inconsciente
(1957-58 ). Rio de Janeiro, Zahar, 1999

LISPECTOR. Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro. Rocco, 2009.

PEREIRA, Neudir. https://www.sbpi.org.br/psicanalista-clinico-e-professor-de-linguistica

SKOWRONSKY, Silvia Brandão. O Mito freudiano sobre as origens. Ensaio apresentado


na Mesa: O Mito freudiano sobre as origens. Campo Grande, XXIV Congresso Brasileiro de
Psicanálise, 2013.
337

OS AUTORES

Ágata Cristina Kaiser é licenciada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2002) e
mestre em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (2005).
Professora substituta do CEFET-MG/Belo Horizonte por quatro anos (de 2009 a 2011 e de 2015
a 2017). Professora adscrita das disciplinas Literatura Latino-americana II e Escrituras Latino-
americanas (1990-2010) para graduação em Letras por dois anos (de 2012 a 2013) na
Universidad Nacional de Córdoba/Argentina e doutoranda em Letras por esta mesma
universidade. Professora substituta do curso de licenciatura em Letras da UEMS/Cassilândia
desde junho de 2018.

Amanda da Silva Ferreira Graduada em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade


Federal da Paraíba.
Ana Paula Nunes de Sousa é Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa
Carina (UFSC). Graduada no curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua
Portuguesa, do Centro de Estudos Superiores de Caxias (CESC), da Universidade Estadual do
Maranhão (UEMA). Membro colaborativo e participativo do Núcleo de Pesquisas em
Informática, Literatura e Linguística (NUPILL/CNPq); e do Núcleo de Pesquisa em Literatura,
Arte e Mídias (LAMID/CNPq).
Andreia Monic Viana dos Santos Especialista em Pedagogia Empresarial e Educação
Corporativa pela Faculdade Católica Paulista – UCA e Psicologia Educacional pelo centro
Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI); Graduada em Letras – Português pela
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA; Professora da Faculdade
Carajás.

Antônia Valtéria Melo Alvarenga é Pós-doutora em Direito pela Università degli Studi de
Messina -Itália. Pós-doutora em História pelo PNPD-CAPES, Doutora em História Social pela
Universidade Federal Fluminense (2011). Possui mestrado em Educação, área de concentração
Docência Superior pelo Instituto Latino Americano e Caribeño, com revalidação pela
Universidade Federal do Piauí. É doutoranda em Direito pela Universidad Lomas de Zamora-
AR. É especialista em Ensino Superior; em Educação e Sociedade; em História Política
Contemporânea; em Direito Processual e em Direito Constitucional. Possui graduação em Lic.
Plena em História pela Universidade Federal do Piauí (1990), graduação em Bacharelado em
Direito pela Universidade Estadual do Piauí (2005). Atualmente é professora adjunta da
Universidade Estadual do Piauí e da Universidade Estadual do Maranhão. É líder dos grupos
de pesquisa Estado, Poder e Política (UESPI) e História e Políticas Públicas (UEMA). Membro
da Academia de Ciência do Piauí- ACIPI.

Aparecida Cristina da Silva Ribeiro possui Graduação em Licenciatura em Letras/Língua


Inglesa (2006-2010) pela Unemat - Universidade do Estado de Mato Grosso. Mestrado (2011-
2013) e Doutorado (2015-2019) pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos
Literários (PPGEL) da Unemat, Campus Universitário de Tangará da Serra, MT. Atuou como
professora universitária na FAPAN - Faculdade do Pantanal e na Universidade do Estado de
Mato Grosso, Campus Universitário de Pontes e Lacerda.

Ariane da Mota Cavalcanti é doutoranda em Letras pelo Programa de Pós-graduação em


Letras da Universidade Federal de Pernambuco (entrada em 2017), possui mestrado em Letras
pela Universidade Federal de Pernambuco (2009) e graduação em Letras pela Universidade
Federal de Pernambuco (2005).
338

Beatrice Uber Doutoranda em Letras, na área de Linguagem Literária e Interfaces Sociais:


Estudos Comparados e Literatura pela Unioeste, campus de Cascavel. Integrante do grupo de
pesquisa “Ressignificações do passado na América Latina: leitura, escrita e tradução de gêneros
híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”, coordenado pelo Prof. Dr. Gilmei
Francisco Fleck.

Carla Alves da Silva é graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Especializanda
em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Unilab. Mestra em Letras pela
Universidade Estadual do Ceará. Professora de Língua Portuguesa da rede municipal de
Maracanaú – CE.

Carmem Teresa do Nascimento Elias é pós-graduada em Letras com Mestrado em Língua


Inglesa pela Universidade Federal Fluminense (1998), com linha de pesquisa em Gêneros
Textuais. Possui Especialização em Língua Inglesa pela Universidade do Estado de Rio de
Janeiro - UERJ (1984). Formada em Letras com Bacharelado e Licenciatura Plena em Língua
Inglesa, Língua Portuguesa, Literaturas de Língua Inglesa e Literaturas de Língua Portuguesa
(1982).

Caroline Cavalcante do Nascimento é doutoranda em Estudos de Linguagens no Centro


Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Possui graduação em Letras
- UFMS (2008) e Mestrado em Estudos de Linguagens - UFMS (2013). Atua como
pesquisadora/bolsista pela CAPES. Integrante dos grupos de pesquisa: Corpo, Movimento e
Tecnologia: Núcleo de Pesquisa e Experimentação em Poéticas do Corpo e do Movimento
COMTE/CEFET-MG e do Grupo de Pesquisa Edudança- EEFFTO/UFMG.

Claudia Regina Camargo é doutoranda e Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário
Campos de Andrade (UNIANDRADE). Possui graduação em Administração pela Universidade
Federal do Paraná (2001). Pós-graduação Lato sensu em Agronegócios e Administração de
Pessoas (ambas UFPR). Tem formação também como tutora em ensino presencial e a distância
e formação técnica em informática pela Universidade Federal do Paraná, onde atua
profissionalmente no Sistema de Bibliotecas desde 1997.

Damaris Pereira Santana Lima possui graduação em Letras Português Espanhol pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1998), especialização em Língua e Literatura
Espanhola pela AECI (2000), mestrado em Lingüística pela Universidade de Brasília (2005) e
doutorado em Literatura pela Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" -Unesp/
Assis - (2013)
Danila Melo de Oliveira Possui Graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade
Federal da Paraíba (2021), com habilitação ao ensino de Língua Portuguesa e suas respectivas
Literaturas. Atualmente é corretora freelancer de textos na Plataforma Imaginie.
Emanoel Cesar Pires de Assis possui graduação em Letras Licenciatura em Português/ Inglês
e respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA Campus Caxias
(2008). Mestre em Letras - Estudos Literários - pela Universidade Federal do Piauí- UFPI.
Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Líder do grupo
de pesquisa CNPq: Literatura, Arte e Mídias - LAMID. Editor Gerente da Revista de Letras
Juçara- UEMA. Bolsista de produtividade em pesquisa - UEMA 2018-2019.
Erika Maria Albuquerque Sousa é graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua
Portuguesa pela Universidade Estadual do Maranhão - CESC/UEMA. Membro do grupo de
339

pesquisa CNPq: Literatura, Arte e Mídias - LAMID e do Núcleo de Pesquisa em Literatura


Maranhense - NUPLIM/ CNPq. Presidente da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras
(LICLE/CESC-UEMA). Bolsista FAPEMA 2020-2021.
Gabriela Fernanda Sêjo é graduada em Pedagogia pela FAM - Faculdade de Educação e
Mestra pela Faculdade de Educação (UNICAMP). Foi Bolsista de Mestrado do CNPQ e
membro pesquisadora do LECHES (Laboratório de Estudos de Cultura, História, Educação e
Sociologia)

Gilmei Francisco Fleck Professor Associado da UNIOESTE/Cascavel-PR-Brasil na


Graduação em Letras, nas áreas de Literatura e Cultura Hispânicas, na Pós-graduação em Letras
(Mestrado Acadêmico e doutorado) nas áreas de Literatura Comparada e Tradução e no
Mestrado profissional – Profletras- Cascavel-PR na área da Leitura do texto Literário. Pós-
doutor em Literatura Comparada e Tradução pela UVigo-Espanha, com bolsa da CAPES.
Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de
Literatura e Cultura. Coordenador do Projeto de pesquisa “Ressignificações do passado na
América Latina: leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a
descolonização”.

Jeovânia Pinheiro do Nascimento é poeta, escritora; bacharel, licenciada e mestre em


Filosofia pela UFPB, também licenciada em Letras pela UFPB Virtual, especialista em
Educação pela UEPB, atualmente é aluna especial do doutorado em Letras da UFPB. É
professora de Filosofia efetiva pela SEE/PB. Livros individuais publicados: “Palavras Poéticas”
(2016) pela editora Ixtlanem; “Poeticamente Entre Versos & Bocas” (2019), pela editora Ixtlan;
“A-M-O-R” (2019), pela editora Sangre Editorial; “Quem abriu a boca da pedra” (2019), pela
editora popular Vernas Abiertas; “Re[s][x]istência”, (2020) pela editora da UFPB; e "Na
estrada poesia" (2021), pela editora popular Vernas Abiertas. Coletâneas que organizou: “O
Livro das Marias”, (2019); “Escrituras Negras_ A Mulher que Reluz em Mim” (2020); “O Livro
das Marias II” (2020); “Escrituras Negras_ As Marcas” (2021) todas pela editora Ixtlan.

João Batista Vale Júnior fez pós-doutorado em História, Área de Concentração "História,
Cultura e Arte" pelo Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade
Federal do Piauí (UFPI). É doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí
(1997) e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Piauí (2000). Bacharelando em
Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI.) É professor Adjunto da Universidade
Estadual do Piauí (UESPI), Integra o Núcleo de pesquisa Estado, Poder e Política do CNPQ.

Jorge Antonio Berndt é graduado em Letras Português/ Inglês pela Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (Unioeste). Graduando em Letras Português/Espanhol pela Unioeste.
Colaborador do grupo de pesquisa "Ressignificações do passado na América: processos de
leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção - vias para a descolonização".
Karolina Adriana da Silva é graduanda em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista de Iniciação Científica no Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT Brasil Plural) pelo projeto de pesquisa
"A Covid-19 no Brasil: análise e resposta aos impactos sociais da pandemia entre profissionais
de saúde e população em isolamento" através da Rede Covid-19 Humanidades (UFRGS,
Fiocruz, UnB, Unicamp, UFSC, UFRN e UNIDAVI) e revisora de textos na Karolina Silva
Editorial.
340

Karla Menezes Lopes Niels é Doutora em Estudos de Literatura - subárea Literatura


Comparada (UFF), mestra em Letras - subárea Literatura Brasileira (UERJ), graduada e
licenciada em Letras, com habilitação em português, italiano e respectivas literaturas (UERJ).
Foi bolsista CNPQ durante a graduação e bolsista CAPES durante o mestrado e o doutorado. É
professora docente I na Seeduc- Rj e professora mediadora no Consórcio CEDERJ/UFF/UAB,
atuando, respectivamente, no ensino médio e na graduação em Letras, especificamente, nas
áreas de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Língua Portuguesa.
Marcelo Alves da Silva é especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas contemporâneas
(UFRJ). Mestre em Estudos de Literatura – Teoria da Literatura e Literatura Comparada
(UERJ). Doutorando em Literatura Portuguesa (UERJ).
Marcus Rogerio Tavares Sampaio Salgado é doutor em Ciência da Literatura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) e mestre em Letras Vernáculas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Sua experiência laboral com docência de ensino
superior inclui instituições federais como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a
Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade de Brasília (UnB). Foi Professor de
Literatura Brasileira na Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. Atualmente é
Professor Adjunto na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Marinalva Aguiar Teixeira Rocha é doutora em História, área de concentração: estudos


históricos latino-americanos (UNISINOS); mestre em Letras, área de concentração em língua
portuguesa (UERJ); mestre em Ciências da Educação (IPLAC/CUBA); especialista em língua
portuguesa (PUC/MG). É professora adjunto I do CESC/UEMA, com atuação na área de língua
portuguesa. Possui experiência na orientação de Projeto de Iniciação Científica
(FAPEMA/UEMA) e projeto de extensão (UEMA). É membro do Núcleo de Pesquisa em
Literatura Maranhense (NUPLIM/CESC), do Grupo de Estudos em Literatura, Memória e Artes
(GELMA/CESC) e do Grupo de Pesquisa Descrição e ensino de língua: pressupostos e práticas
(UERJ). Membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/ UEMA. É autora de artigos e capítulos
de livro sobre leitura, recursos linguístico-expressivos e uso de fotografia em estudos sobre
memória e história. Organizou em parceria o livro Letras em diálogos: estudos sobre linguagem
e literatura (Editora UEMA), Sinésio Santos: a cidade e os olhos (EDUFPI). Em 2014, publicou
o livro A expressividade em Ana Maria Machado e José Paulo Paes: uma proposta para motivar
a leitura (Appris).
Marlúcia Mendes da Rocha é graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro - PUCRJ - (1978), mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo
ECA/USP - (1996) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo PUCSP -(2009). Profª do Curso de Comunicação Social (Rádio, TV e
Internet) e do Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagens e Representações da
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC, Ilhéus/BA.. Profª da Faculdade de Ilhéus.

Max Mateus Moura da Silva é graduando no curso de Letras - Português, Inglês e Respectivas
Literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão (CESC-UEMA) e, também, em
Psicologia, pelo Centro Universitário de Ciências e Tecnologia (UniFacema). Foi bolsista do
PIBIC/UEMA no período 2019-2020, atuando na pesquisa 'Caxias em imagens; preservando a
memória da cidade por meio da fotografia', tendo como orientadora a professora Dra. Marinalva
Aguiar Teixeira Rocha. Desde 2020, tem sido pesquisador voluntário, vinculado à UEMA. É
membro da Sociedade Brasileira do Design Inteligente ? TDI BRASIL. É membro fundador da
Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras - LICLE (CESC-UEMA), exercendo o cargo de
341

Secretário. É membro do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense - NuPLiM


(CNPq/CESC-UEMA).

Meire Oliveira Silva Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é docente
do curso de Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus Foz do
Iguaçu.

Mikael de Souza Frota é professor graduado em Letras, com habilitação em Língua Inglesa
(2016), pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE - SER EDUCACIONAL). Mestre em
Letras - Estudos Literários (2020), pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Tem
experiência na área de Letras - Literatura, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas.
Atua principalmente nos seguintes temas: conto, romance e teatro em língua inglesa, literatura
anglófona, literatura infanto-juvenil, literatura western, teoria literária e narratológica
(envolvendo descrição, espaço, foco narrativo, personagem e tipologia de narrador), distopias
literárias, ecocrítica e estudos sobre a memória. Produz pesquisas também nas áreas de
letramento literário e ensino de literatura. Atualmente, está desenvolvendo pesquisas em: -
Teatro norte-americano negro (Black-American Theater) e sonho americano (American
Dream); - Estudos sobre a memória: trauma e testemunho; - Metodologia para a pesquisa em
estudos literários; - Letramento Literário. Membro do grupo de pesquisas Literatura, Educação
e Dramaturgias Contemporâneas (LEDrac/UnB). É Professor Auxiliar na Universidade Federal
do Amazonas (UFAM).

Renan Ferreira da Silva é graduado em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Possui experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura e suas
ramificações, em especial, as que permeiam a Crítica e a Historiografia Literária. Atualmente é
pesquisador no Laboratório de Estudos de Poesia (LEP).

Renan Ramires de Azevedo é Graduado em Letras Licenciatura - Habilitação em


Português/Espanhol pela Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC-UFMS).
Desenvolve pesquisas na área de Linguística, Análise do Discurso e Semiótica Greimasiana. É
membro do Grupo de pesquisa SEMIOMS - Grupo de Estudos Semióticos de Mato Grosso do
Sul, certificado pelo CNPq.
Roberto da França Neves possui graduação e licenciatura em Português/Literaturas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro-Faculdade de Letras (2008), Especialização Lato Sensu
em Literaturas Portuguesa e Africanas (2009) e Mestrado em Literatura Comparada, pelo
PPGCL -UFRJ (2013). Possui Mestrado em Literatura Brasileira pelo PPGLV-UFRJ
Atualmente está concluindo a graduação de licenciatura em Grego pela UFRJ. Possui diversos
artigos sobre a obra Signos, de Nestor Victor. Exerce a atividade profissional de professor de
Literatura na Educação Básica pela FAETEC na Escola Técnica Ferreira Viana.

Solange Santana Guimarães Morais possui doutorado em Ciência da Literatura-


UEMA/UFRJ (2014), mestrado em Teoria da Literatura-UFPE (2002), especialização em
Leitura e produção de texto-PUC/MG (2000). Atualmente é Professora Adjunto II, 40h,
Diretora dos Cursos de Letras do CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES DE CAXIAS, da
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO. Docente do Mestrado em Letras/UEMA.
Coordenadora da Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa- CESC. Membro do Núcleo
Estruturante do Curso de Letras do CESC/UEMA. Líder do Núcleo de Pesquisa em em
Literatura Maranhense-NuPLiM/CNPq-CESC/UEMA. Pesquisadora no Grupo de Estudos
Literários Memória e Arte- GELMA/CNPq - CESC-UEMA. Membro do CEP (Conselho de
342

Ética em Pesquisa) da UEMA. Editora-Chefe da Revista de Letras - Juçara, do Departamento


de Letras do CESC-UEMA. Coordenadora da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras-
LICLE/CESC-UEMA.
Tatiana da Silva Santos é mestra em Letras: Linguagens e Representações PPLGR.

Vanessa Cesar Nunes é graduanda em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas pela


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Valéria Cordeiro Oliveira Graduada em Letras – Português pela Universidade Federal do Sul
e Sudeste do Pará – UNIFESSPA.

Wladimir D’Ávila Uszacki é licenciado em Letras Inglês pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) e Mestrando em Estudos literários pela mesma, sob orientação do Prof. Dr.
Lawrence Flores Pereira.
343

A ORGANIZAÇÃO

Emanoel Cesar Pires de Assis possui graduação em Letras Licenciatura em Português/ Inglês
e respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA Campus Caxias
(2008). Mestre em Letras - Estudos Literários - pela Universidade Federal do Piauí- UFPI.
Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Líder do grupo
de pesquisa CNPq: Literatura, Arte e Mídias - LAMID. Editor Gerente da Revista de Letras
Juçara- UEMA. Bolsista de produtividade em pesquisa - UEMA 2018-2019.
Ligia Vanessa Penha Oliveira é doutoranda em Letras/ Estudos Literários pela Universidade
Federal de Goiás/UFG. Mestra em Letras, com área de concentração em Literatura, Memória e
Cultura, linha de pesquisa: Literatura, Memória e Relações de Gênero, pela Universidade
Estadual do Piauí/UESPI. Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Língua Inglesa pelo
Instituto de Ensino Superior Franciscano/IESF, Graduada em Licenciatura em Letras com
Habilitação em Português/ Inglês e Respectivas Literaturas, pela Universidade Estadual do
Maranhão/UEMA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias- LAMID
/CNPq-UEMA. Atua como Editora de Seção na Revista de Letras Juçara, Revista dos Cursos
de Letras do CESC/UEMA.
Solange Santana Guimarães Morais possui doutorado em Ciência da Literatura-
UEMA/UFRJ (2014), mestrado em Teoria da Literatura-UFPE (2002), especialização em
Leitura e produção de texto-PUC/MG (2000). Atualmente é Professora Adjunto II, 40h,
Diretora dos Cursos de Letras do Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade
Estadual do Maranhão. Docente do Mestrado em Letras/UEMA. Coordenadora da Pós-
Graduação em Ensino de Língua Portuguesa- CESC. Membro do Núcleo Estruturante do Curso
de Letras do CESC/UEMA. Líder do Núcleo de Pesquisa em em Literatura Maranhense-
NuPLiM/CNPq-CESC/UEMA. Pesquisadora no Grupo de Estudos Literários Memória e Arte-
GELMA/CNPq - CESC-UEMA. Membro do CEP (Conselho de Ética em Pesquisa) da UEMA.
Editora-Chefe da Revista de Letras - Juçara, do Departamento de Letras do CESC-UEMA.
Coordenadora da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras-LICLE/CESC-UEMA.

Você também pode gostar