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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MIGRAÇÕES IMAGINÁRIAS E
REPRESENTAÇÕES DA DIFERENÇA
NA “AUTOBIOGRAFIA AMERICANA”
DE DANY LAFERRIÈRE
Por
MIGRAÇÕES IMAGINÁRIAS E
REPRESENTAÇÕES DA DIFERENÇA
NA “AUTOBIOGRAFIA AMERICANA”
DE DANY LAFERRIÈRE
Por
2
BANCA EXAMINADORA
3
AGRADECIMENTOS
tese.
québécoise” (CRILCQ), onde pude realizar pesquisas, encontrar pessoas que foram
e do imaginário quebequense, por me abrir suas portas e me acolher com tanto carinho.
acadêmica.
final da tese.
Aos amados Pytha, Quequel, Marcelinho e Mari, apoio afetivo essencial nesse e
em todos os momentos.
4
Ao Leonardo, parceiro de vida, de sonhos e de desejos, pai da Clara e grande
amor, por tão profunda felicidade. Obrigada também pela leitura atenta, inteligente e
carinhosa da tese.
À Clara, que foi gerada junto com tese, em meio a um turbilhão de idéias e
5
RESUMO
americana” de Dany Laferrière, obra autoficcional, pós- moderna, que transmite a idéia
6
RÉSUMÉ:
Cette recherche s’inscrit dans le contexte d’une réflexion sur le rôle de la littérature dans
de l’idée que la littérature en tant que lieu de rencontre entre le monde vécu, le monde
de la postmodernité, est élaboré par la critique littéraire québécoise et par les écrivains
7
SUMÁRIO
0. Introdução......................................................................................................... 09
2.6. Cette Grenade dans la main du jeune nègre: um romance “em guerra” contra o
estereótipo.................................................................................................................43
6. Referências Bibliográficas..............................................................................198
8
1. INTRODUÇÃO
um conjunto de obras onde narra seu percurso pelo continente americano 2 : sua infância
em Petit Goâve (Haiti) – L’Odeur du Café [1991]3 e Le charme des après-midi sans fin
[1997]; sua adolescência em Porto Príncipe (Haiti) – Le goût des jeunes filles [1992] e
La chair du maître [1997]; os últimos momentos antes do exílio – Le cri des oiseaux
[1994], Comment faire l’amour avec un Nègre sans se fatiguer [1985] e Éroshima
[1987]; as experiências nos Estados Unidos – Cette grenade dans la main du jeune
Nègre est-elle une arme ou un fruit?[1993]; por fim, seu retorno ao Haiti, 20 anos
depois – Pays sans chapeau [1996]5 . O autor reflete, em uma narrativa autoficcional,
1
Embora não considere este conjunto de obras uma autobiografia, mas uma autoficção, manterei o nome,
“autobiografia americana”, que foi dado pelo autor.
2
As obras, embora narrem o percurso do autor, da infância à volta ao país natal, vinte anos depois do
exílio, não são publicadas em ordem cronológica.
3
As datas entre colchetes se referem ao ano da primeira edição de cada romance.
4
Unicamente para facilitar a apresentação da análise das obras, dividi a “autobiografia americana” em
dois grupos: o “ciclo haitiano”, as cinco primeiras obras que narram a vida do autor antes do exílio e o
“ciclo americano”, as cinco últimas obras que narram sua vida após o exílio. É importante ressaltar que
minha compreensão da “autobiografia americana” é global e não fragmentada.
5
A partir deste momento, as obras com título mais extenso como Comment faire l’amour avec un Nègre
sans se fatiguer, Cette grenade dans la main du jeune Nègre est-elle une arme ou un fruit?, Chronique
de la dérive douce, Le charme des après-midi sans fin serão, respectivamente, chamadas assim :
Comment faire l’amour, Cette grenade, Chronique, Le charme.
9
sobre como sua história e identidade vão sendo construídas à medida que é atravessado
pelas diferentes culturas que compõem o universo americano, com as quais convive e
que o formam, e sua escrita refletirá esta pluralidade. Ele dá voz a um personagem-
linhas, analisar como são representadas as diferenças visíveis (de gênero, mas,
contemporaneidade era preciso acercar-se deste tema árido e controverso. Como vêm
apenas mais um modismo festejado pela crítica especializada? Em que aspectos essa
6
É importante reafirmar que o conceito de raça humana é questionado e mesmo refutado pela ciência
atual. Sua inoperância vem do fato de não conseguir caracterizar o homem nem geneticamente, nem
biologicamente, muito menos determinar as diferenças culturais e comportamentais dos grupos que
pretendeu subdividir. Esse conceito arbitrário se tornou, contudo, uma “verdade” social e psicológica. É
levando em conta esses aspectos, bem como o interesse de Laferrière pelos estereótipos raciais, que este
termo é empregado neste estudo.
7
“Outro”, com maiúscula, é usado a fim de reforçar a idéia do sujeito não-igual, que é excluído ou exclui
pela suposta ausência de semelhança; e “outro”, com minúscula, quando me refiro ao semelhante, ao
sujeito que é supostamente igual.
10
migrantes, como Laferrière, estão contribuindo para pensar esta nova noção de
Estas, entre muitas outras, foram perguntas que me estimularam a iniciar esta pesquisa,
algumas delas ainda ficarão sem respostas ou serão só parcialmente respondidas, mas,
reflexões.
começam a ocorrer nas sociedades avançadas a partir das décadas de cinqüenta (com a
crítica cultural), abrangendo, nos anos oitenta, uma ampla esfera social. Momento em
pelas quais passa a complexa sociedade pós- moderna. Os velhos referenciais modernos
pureza – noção, que de acordo com o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, atribui às
coisas luga res “justos” e “convenientes” – que a pós- modernidade questiona e reavalia.
11
a fantasia e a realidade, o significado e o significante, em síntese, entre o real e sua
liberdade) de construir seus próprios sentidos e dar vazão à sua alteridade. Nitidamente
turbulento tribalismo que nega aos outros o direito de comparar e avaliar” (BAUMAN,
1997, p.103). Seria possível falar de alteridade sem contrapor identidades? Ora,
8
Objeto de pesquisa de minha dissertação de mestrado: “Fantasmas e representações: construções e
desconstruções de identidades do negro em Dany Laferrière”.
12
especular que depende do outro, de sua imagem, de seu olhar – é a imagem que
construímos do outro, unida à imagem que esse outro fabrica de nós que nos remete à
nossa própria imagem. Buscarei, a partir dessas reflexões, compreender em que aspectos
essa nova noção de identidade contribui para ampliar a compreensão da relação entre
quem são e como são caracterizados os Outros (os estranhos) no contexto pós- moderno.
entre outras coisas, a respeito do que significa ser negro, imigrante, escritor, americano 9 ,
Laferrière vivencia desde muito cedo, em sua própria vida, deslocamentos geográficos
9
O termo América ou americano(a)(s) será usado para se referir ao continente americano e não aos
Estados -Unidos, para os quais usaremos o termo estadunidense.
13
Príncipe, mas aos quatro anos é forçado, por questões políticas (1957 é o primeiro ano
Kleber, jornalista e homem público, foi prefeito de Porto Príncipe aos 23 anos e aliado
morre no exílio (Nova York,1984), solitário e louco – “il avait simplement perdu la tête.
L’exil l’avait rendu fou” (LAFERRIÈRE, 2000, p.29). O pequeno Laferrière, tendo
herdado o nome do pai e correndo perigo, é levado para Petit Goâve pela mãe, que o faz
prometer- lhe (sem que ele saiba por quê) jamais revelar a público seu verdadeiro nome.
Em Petit Goâve passa uma infância feliz ao lado de sua maior inspiração, a avó Da.
Esta fase, importantíssima para sua formação afetiva, é narrada em L’Odeur du café –
“j’ai écrit ce livre pour toutes sortes de raisons. Pour faire l’éloge de ce café (le café de
Palmes) que Da aime tant et pour parler de Da que j’aime tant ” (LAFERRIÈRE, 1999
B, p.216) – e revisitada, seis anos mais tarde, em Le Charme. Embora durante esse
período receba uma educação escolar católica e francesa, vive imerso na cultura crioula,
obriga, novamente, a se mudar. Laferrière volta, assim, a Porto Príncipe para viver com
exclusivamente feminino influencia muito sua identidade e sua escrita – “les hommes
étaient d’une certaine manière absents de la vie quotidienne, de la vie réélle. Ils
m’avaient laissé aux femmes. J’étais entouré des femmes. Je dormais avec les femmes.
J’étais cousu des femmes” (LAFERRIÈRE, 2000, p.39). O universo feminino, do desejo
Jeunes filles. Em 1972 (um ano após a morte de François Duvalier e do início do
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governo de seu filho Jean-Claude Duvalier) Laferrière, seguindo os passos do pai, inicia
sua carreira de jornalista, primeiro como crítico de arte no jornal Nouvelliste, o mais
antigo do Haiti, mais tarde como comentarista político no jornal Le Petit Samedi Soir.
depois da publicação, no Le Petit Samedi Soir, de uma série de artigos sobre a primeira
greve sindical no Haiti. Após esse episódio dramático, narrado em Le Cris des oiseaux
fous, Laferrière se sente mais uma vez ameaçado. Sabendo que tem poucas chances de
sobreviver à ditadura, decide deixar o país para não morrer, mas também para buscar
uma possível felicidade, uma identidade da qual pudesse se orgulhar – sua busca é
Je veux tout :
les livres,
le vin,
les femmes,
la musique,
et tout de suite (LAFERRIÈRE, 1994, p.44).
Laferrière chega em Montreal, aos 23 anos, com vinte dólares no bolso e muitos
desejos. Os primeiros anos serão muito duros, mas a publicação do seu primeiro e
um escritor prolífero e reconhecido. Em 1990 o autor se muda para Miami, onde passa a
morar e sobretudo a escrever – oito dos dez romances que compõem sua “autobiografia
publicar em 2000 o último livro da “autobiografia americana”, Le cri des oiseaux fous,
Laferrière publica ainda quatro obras e dois roteiros – Je suis fatigué em 2000, uma
nova versão de Le goût des jeunes filles em 2004 (adaptado para o cinema, com roteiro
15
do autor, em 2006), uma nova versão de Je suis fatigué em 2005, Vers le sud em 2006
ciclo americano, embora faça referências e transite pelas demais obras do autor,
Quebec, província que acolheu, entre as décadas de sessenta e oitenta, um enorme fluxo
“escrita migrante” pressupõe, como apontou o crítico literário Pierre Nepveu, uma
“autor migrante”, que se desloca entre culturas, pode ser um elemento libertador, pois
olhar mais aguçado e crítico do Outro e de si. Interessa- me igualmente pensar como os
identidade nacional.
16
inscreve na abertura pós- moderna, na medida em que transmite a idéia de movimento,
a clivagem inerente a todo ser humano. É aquele que reatualiza o sentimento da falta
como a criança deve fazer o luto do objeto perdido, em suas primeiras experiências de
diferenciação da mãe, o estrangeiro precisa, para viver bem a realidade, fazer o luto da
origem idealizada. Mais tarde, como faz a criança, esse objeto perdido será
reconstrução histórica. Enfim, o que nos afirma a psicanálise é que, para que essa
seja tolerada é necessário elaborar uma representação psíquica desse passado, dar a ele
17
real10 impossível de simbolizar, que se tecem as representações – “on écrit à cause d’un
manque. D’un TROU ” diz o narrador de Cette Grenade. E, de acordo com Lacan, cada
sujeito ou sociedade vai lidar com essa falta de uma forma diferente: escrevendo,
narrativas de ficção, que narram histórias pessoais e/ou coletivas, que essas ausências
Quanto mais o mundo real é instável, inseguro, mais a ficção oferece opções,
intelectual que o mundo real não pode oferecer. Lemos romances a fim de localizar uma
não mais visando o monopólio como sua realização ideal, e não mais
procurando o consenso e a fundamental confirmação de sua validade, as
verdades nascidas na obra de ficção, e por meio dela, podem – apenas podem –
preencher a deficiência, na existência humana, deixada pela espécie de
realidade que faz todo o possível para tornar a busca de significado redundante
e irrelevante (BAUMAN, 1997, p.159).
passado, mesmo que seja através do presente. Neste sentido, tendo em vista o
migrante” seria, segundo Simon Harel, aquele que, nas sociedades contemporâneas,
melhor contribuiria para este desejo, esta necessidade de reescrita da história, individual
10
O conceito de Real para a psicanálise diz respeito ao incognoscível, a tudo aquilo que não pode ser
nomeado, significado e que não terá jamais acesso à consciência.
18
um instrumento para dizer-se – “l’histoire me sert d’afrodisiaque”, afirma o autor-
perda do objeto, por espelhar em si mesmo uma dualidade, não seria aquele que através
da escrita traduziria um nós possível, um diálogo, uma conciliação possível entre o “eu”
história coletiva?
pluralidade? Não seria esta a mais instigante função da literatura: se propor a “objetivos
1990, p.127)?
19
2. A CONSTITUIÇÃO DE NOVAS SUBJETIVIDADES NA PÓS-
MODERNIDADE
tardia, sobremodernidade, o que escolher? Por um lado, o conceito (ou a ausência dele)
surpreende por sua pouca coesão, homogeneidade ou unanimidade. Por outro, não é de
necessariamente marcado pela incerteza, pela confusão, pelo erro” (CALHOUM citado
conceito. Harvey, por exemplo, se pergunta se o pós- moderno não seria apenas mais um
modismo acadêmico. Terry Eagleton, por sua vez, afirma que a crítica pós- moderna
para o Outro, é tão ortodoxa quanto a que pretende criticar. Eagleton “denuncia” a
Apesar das freqüentes controvérsias, uma certa unanimidade da crítica pode ser
20
antitotalitário, antiautoritário, sobretudo anti! A crítica pós- moderna mais contesta do
Segundo a teórica da literatura Linda Hutcheon, a teoria pós- moderna não é nem
revolucionária como querem seus adeptos, nem neoconservadora como afirmam certos
sobre o poder, o desejo, a identidade e o corpo. Segundo ele, sua conquista mais
etnicidade com tanta firmeza na pauta política, a ponto de não concebermos sua retirada
pertinentemente, afirma Fredric Jameson, isso implicaria julgar a nós mesmos. Diante
partir de episódios “sólidos” ocorridos a partir das décadas de cinqüenta e sessenta e que
subjetividade do homem contemporâneo. E que, por sua vez, alteraram nossa forma de
Harvey “façamos o que fizermos com o conceito, não devemos ler o pós- moderno como
uma corrente artística autônoma; seu enraizamento na vida cotidiana é uma de suas
21
real. Segundo Harvey, as oposições entre muitas das características da modernidade e da
raça, do gênero, da religião, sem jamais perder de vista as relações de poder que
encobrem toda prática social. É igualmente deste ponto que parto para pensar as
A teoria pós- moderna, que ganhou maior visibilidade nos anos setenta,
La Condition postmoderne (1979), a obra mais citada sobre o assunto. Este livro foi o
afetaram as regras dos jogos de linguagem, da ciência, da literatura e das artes a partir
– grandes textos fundadores tomados como verdade, que regem nossas visões de
22
foram profundamente desafiadas, na pós- modernidade, enquanto instrumentos de
filosofia, Ihab Hassan, na pintura e na música. Jameson trata das artes, da cultura como
capitalismo – que poderia se situar a partir de 1970, com a ruptura do Fordismo, modelo
fundamental na experiência pós-moderna. Mas, para ele, foi, sobretudo, uma mudança
experimenta uma “vastidão sem limites” (JAMESON, 2004, p. 53). Segundo Lacan, a
23
encadeamento dos significantes, um em relação ao outro, é o que produz significado.
Essa experiência pode se dar na produção literária e artística e, neste caso, esta sensação
Perry Anderson, por sua vez, afirma que na pós- modernidade a “vida psíquica torna-se
1999, p. 64).
com os iluministas, que pensavam que através da razão, das artes e da ciência poderiam
progresso. Somente através desse projeto seria possível revelar as qualidades universais,
adjetivos recorrentes para definir este período. A modernidade buscava valores morais e
estéticos estáveis, durabilidade, tanto nas relações quanto nas ações, demarcava limites,
metas e valores, nesse ponto muito diferente da pós- modernidade que celebra o híbrido,
24
a instabilidade e a efemeridade. Segundo Jameson, a grande diferença está no fato de a
pós-modernidade buscar (no presente) o evento revelador depois do qual nada mais foi
o mesmo e a modernidade voltar sua atenção para o que aconteceria após a mudança
parte da sociedade a desejar valores estáveis (como família, religião, Estado) e a buscar
raízes históricas. Segundo Eagleton, “quanto mais instabilidade, mais teremos de insistir
Nos anos que precederam as transformações que nos levaram à chamada pós-
França, etc., mas aos poucos as utopias políticas e revolucionárias foram se esgotando.
quando, sem qualquer vitória, esse adversário desaparece” (ANDERSON, 1999, p.102).
Muitos temas, sem, no entanto, terem desaparecido, não são mais discutidos como
antes, como as lutas de classe, a fome, o socialismo (ou outras utopias coletivas que
desafiam o capitalismo).
25
Harvey afirma que há muito mais continuidade do que descontinuidade entre o
“uma crise que enfatizou o lado efêmero e caótico da formulação de Baudelaire [...]
Para o teórico da literatura Stuart Hall, também há continuidade, pois o pós- moderno
seria a fase mais popular do modernismo, e, por ser mais contestador, descentrado,
política e na vida social ocorreu nas décadas de setenta e oitenta. A enorme volatilidade
26
renováveis, instabilidade nos laços sociais, prazeres de consumo oscilantes, proliferação
amoroso, econômico, etc.. Uma sede de variedade, de renovação toma conta do mundo,
constantemente.
atraídas e repelidas pelas sensações de sincronicidade de pânico (às vezes moral, mas
grande interlocutora das novas gerações, criando uma virtualização das relações e uma
estetização da realidade.
a tevê a cabo, por exemplo, nos colocaram em contato com todo tipo de imagens do
mundo inteiro. “Parece que por meio da experiência da comida, da televisão, do cinema,
27
da música, etc. é possível vivenciar a geografia do mundo, como um simulacro”
‘retro’ em Hong-Kong” (LYOTARD citado por HARVEY, 1992, p. 86). Certos teóricos
simulacros – réplicas tão próximas da perfeição que não é possíve l fazer a diferença
passamos a viver em um mundo “de estímulos artificiais e experiência via tevê: nunca,
simulacros e que tudo absorve cria, por sua vez, uma massa da excluídos: os sem-poder-
de-consumo. Indivíduos que não se encaixam, que não encontram espaço nesta corrida
desenfreada pelo consumo, pelo poder e pelos “quinze minutos de fama”. Trata-se de
uma exclusão social, econômica e cultural advinda da falta de trabalho, salários dignos,
desse Outro-excluído – ora invisível (ignorado), ora ameaçador; por outro lado, há uma
valorização e uma abertura (nem que seja teórica) para os Outros marginalizados, já que
28
ideológico e o estético. A raça, o sexo, o etnicismo, a preferência sexual – tudo
isso passa a fazer parte do domínio do político, à medida que diversas
manifestações de autoridade centralizantes vão sendo desafiadas
(HUTCHEON, 1991, p.247-248).
O Outro silenciado começa a aparecer mais intensamente nos discursos teóricos e nas
artes nos anos setenta e oitenta. Saussure, Lacan e Derrida inauguram importantes
novo modo de se relacionar com os Outros – “o capit alismo não inventou o Outro, mas
Para Hutcheon, o grande paradoxo da teoria pós- moderna está no fato de ser
identidades locais; a pós- modernidade ao mesmo tempo em que está inserida subverte a
reflexiva que questiona tudo, mas que não pretende resolver, solucionar seus problemas
ou suas contradições. Questionar, neste caso, não significa propor saídas ou respostas
E não mais como, segundo Karl Marx, uma espécie de distorção histórica, uma
29
construção simbólica que encobre a real (a “verdadeira”) maneira como as relações
sociais são produzidas. Para a crítica pós- moderna, tudo existe na ideologia e por meio
dela, não importa em quais práticas sociais, culturais, familiares ou políticas. Logo, as
Eagleton, a ideologia existe muito mais como legitimação do que como reflexo do que
se faz, e significa “as formas nas quais aquilo que dizemos e em que acreditamos se liga
questionar o poder ideológico pressupõe analisar o que está por trás de toda produção
cultural e de toda representação. Hoje, analisar uma obra literária implica, muito
não é um simples tema geral de romance. Ele também assume uma poderosa força
dos conceitos nos quais nos apoiamos para julgar, ava liar e organizar o mundo. Assim,
30
2.4. O pós-moderno, o pós-colonial e a experiência da alteridade
suas verdades, propondo novas possíveis narrativas. A escrita está no centro de sua
multicultural.
em vista seu objetivo de dar voz a povos e culturas que foram silenciados. Tendo em
vista que de acordo com grande parte dos críticos, a maior qualidade da pós-
No que diz respeito à História, o que se percebe nas teorias pós- modernas e pós-
narrativa de grande valor, mas não em si mesma, pois cada narrativa cria sua própria
visão do mundo, narra a partir de seu ponto de vista dos acontecimentos, dá contornos
31
acordo com seus interesses. Nesse sentido, é indiscutível que é a classe detentora do
poder quem escreve a História. São esses discursos e práticas do poder que a pós-
No entanto, não faltam críticas a uma ala mais radical da pós- modernidade que,
só uma violência teórica poderia forçar a unidade” (EAGLETON, 1998, p.51). Outros
críticos afirmam que a pós- modernidade faz, sobretudo, citações do passado, de forma
nossas próprias imagens e simulacros pop dessa história” (JAMESON citado por
HARVEY, 1992, p.65), fazendo deste ecletismo midiático uma forma de representação
contemporânea.
32
periferia, eu e o Outro. Este Outro ao qual a crítica pós-colonial se opõe é
foi visto em sua diferença, mas em sua ausência de semelhança, logo em sua falha. “A
diferença que é quase a mesma, mas não exatamente” (BHABHA, 1998, p.163). Ou
a ‘diferença’, ao contrário da ‘não- identidade’, não tem nenhum oposto exato contra o
qual ela se possa definir” (HUTCHEON, 1991, p.22). A pós- modernidade proporia,
assim, uma compreensão mais democrática e menos excludente da relação com o Outro.
Mas até que ponto isso é possível? Até que ponto os sujeitos da diferença podem ser
a idéias como unidade, identidade e universalidade. Para o autor, a teoria escolhe falar
33
da cultura humana, mas não da natureza; do gênero, mas não da classe; do corpo, mas
isso não pode constituir um bem por si só. É preciso, segundo ele, sempre situar e
1998, p.124). O que o crít ico pretende dizer é que a valorização da diferença não
cêntricos ou o fim das desigualdades, pois sua percepção e estima não bastam em si
mesmas, são apenas passo indispensável para o diálogo e a abertura para o Outro.
34
marcadas, ainda que por um viés individual ou autoficcional, pelo questionamento da
interessa pelo lado obscuro da História, jamais pela propaganda nacionalista que afirma
que a vítima ignora o mal. O autor procura, sobretudo, repensar a ideologia colonial,
ponto de vista dos estereótipos raciais e do sexo inter-racial, enquanto nos romances do
François Duvalier a seu filho Jean Claude Duvalier, e narra as mudanças – maior
abertura para novos costumes, o jazz, o rock, o cinema, o sexo, as drogas – vivenciadas
35
presente ditatorial, tornando, a cada novo capítulo, a violência e a desigualdade mais
explícitas. No capítulo “La maîtresse du colonel” o autor deixa claro que a história
colonial, apesar da distante e bem sucedida luta pela independência, é uma presença
do colonizador francês: “Etzer Vilaire est-il un poète français exilé sur la terre d’Haïti
p.197). O narrador conclui : “nous ne sommes pas des Français en Amérique, ni des
Africains en exil, nous sommes des Haïtiens, vous comprenez? » (LAFERRIÈRE, 2000
t-elle été un bien ou un mal pour Haïti?” (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.196), também tema
Laferrière a esta questão não oferece, todavia, ambigüidades; para ele, não se trata de
socioeconômica do Haiti.
En Haïti il y avait un million d'Indiens. Ils ont été exterminés par le travail, pas
par la guerre. Ce fut un génocide total. Ils ont été écrasés par la machine
européenne, qui comprenait les Français, les Espagnols, les Italiens et les
Anglais. Donc, que Dessalines et son groupe aient pu se révolter et mener le
pays à l'indépendance, ce n'est pas un débat. L'être humain doit avoir sa
liberté, et ce n'é tait pas une situation comme au Québec, où l'économie va bien
ou mal, mais où on peut discuter. On parle ici d'esclavage. Durant la traversée
des esclaves venant d'Afrique en Amérique, il y a eu 300 000 morts, tout
simplement parce que les gens étaient entassés les uns sur les autres dans les
cales des bateaux et que, là où aurait dû se trouver une dizaine de personnes,
ils étaient 200, 300. On avait affaire à des gens qui n'avaient aucune morale
(LAFERRIÈRE, 1997).
36
La chair du maître se transforma, assim, no romance da “autobiografia americana” com
como afirma Gilbebrto Freyre “não há escravidão sem depravação sexual” (FREYRE,
2001, p.322).
está no fato de que no primeiro o real não aparece, “o que deixa em aberto a
o objeto aterrador é um objeto cotidiano” (ZIZEK citado por RINALDI, 1996, p.76). A
montagem, colagem, “cópias, intertextos, paródias – esses são alguns conceitos que
Tudo se passa como se esta escrita fosse secretamente motivada por uma pulsão
de dilaceramento […] a ruptura instaura uma nova ordem no discurso ; instaura
a ordem da pluralidade, da fragmentação, da abertura; ela instaura, em síntese,
a ordem do heterogêneo (PATERSON, 1993, p.20).
37
A estética pós- moderna celebra o deslocamento e a fragmentação, “personagens
confusos e distraídos vagueiam por esses mundos sem um claro sentido de localização”
história, de uma memória, de um passado, mesmo que seja através do presente – “je
suis un écrivain du présent. J’essaie de repérer les traces du passé dans le présent”,
afirma Laferrière –, que o configure, que lhe sirva de moldura, daí a importância da
escrita. De acordo com Hutcheon essa nova escrita, que de alguma forma valoriza a
identidade e dar a ilusão de uma homogeneidade que não existe. E uma das
espaço e no tempo simbólicos” (Hall, 2002, p. 71). No mundo atual, de acordo com
que buscam resgatar sua história, sua pureza e uma suposta unidade perdidas. Existem,
no entanto, outras identidades que aceitam a idéia de que são fruto da interação com
outras culturas e que serão sempre influenciadas por elas, ou seja, jamais poderão ser
as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua
terra natal” (HALL, 2002, p.88): elas carregam elementos de todas as culturas, as
38
tradições e as línguas que as formaram. Para indivíduos que vivem entre duas, ou mais,
culturas, a idéia de traduzir é essencial, pois significa transportar-se entre dois mundos,
construção, desse entre- lugar cultural, que produz identidades híbridas, que fala a
début, je pensais que c’était pour me libérer, me séparer [...] Écrire ça relie”
do tempo foi abalada, não podendo viver nem pensar exceto em fragmentos de tempo,
cada um dos quais segue sua própria trajetória e desaparece de imediato” (HARVEY,
suas migrações, mas, principalmente, em função de suas escolhas; uma vez que vive em
unilateral. Suas obras são, assim, como ele próprio, voluntariamente, inclassificáveis.
39
Je ne sais pas à quel genre appartiennent mes livres. Je les crois assez
hybrides, inclassables, à la fois mémoire, reportage, peinture, musique - car il
y a un rythme dans ces textes-là. Quand j'écris, j'essaie d'utiliser tous les
instruments imaginables (LAFERRIÈRE, 1997)
a caótica Porto Príncipe. Na pós- modernidade viver nas grandes cidades pode ser
outro lado, pode ser estressante e desestabilizador. Trata-se de espaço urbano híbrido e
plural que favorece as heterogeneidades humanas e culturais – das práticas de lazer, dos
diverge ntes.
Diferentemente do espaço na modernidade – visto como algo que podia ser moldado,
40
Outrora a cidade podia ser arquitetonicamente projetada e mentalmente
representada como um habitat compreensível. Mas com o industrialismo a
cidade foi encaixada em sistemas abstratos que não podiam mais ser captados
esteticamente numa presença inteligível (ANDERSON, 1999, p.51).
romances pós- modernos – está presente, sobretudo, nos romances do ciclo americano,
todo. Comment faire l’amour, Pays sans chapeau e Cette grenade – que inclusive são uma
mise en abyme do romance que escreve o narrador – são textos que tematizam o ato de
literária. Em Éroshima, embora o narrador não revele sua profissão, faz freqüentes
referências ao seu hábito de fazer anotações – “je note dans mon carnet trois choses: le
sexe, la bombe et la mémoire” ou “au printemps 1987, je commence à rassembler des notes
à propos de ma rencontre avec Hoki” ”(LAFERRIÈRE, 1998 A, p.47) . Chronique, por sua
vez, narra o momento que antecede a decisão mais transformadora da vida do narrador:
tornar-se escritor.
autobiografia que seria a escrita do passado. Laferrière procura, justamente, fazer uma
presentes. Nos romances do ciclo haitiano e em Chronique, embora Laferrière narre sua
vida passada, antes da carreira de escritor, escreve no presente e sempre começa e/ou
41
leitor e contextualizando a história – “J’ai passé mon enfance à Petit Goâve, à quelques
ele essa volta no tempo, uma viagem até a casinha de sua avó, “88 de la rue Lamarre”,
Il est fort possible que vous voyiez, assis sur la galerie, une vieille dame au
visage serein et souriant à côte d’un petit garçon de dix ans. La vieille dame,
c’est ma grand mère. Il faut l’appeler Da. DA tout court. L’enfant c’est moi. Et
c’est l’été 63 (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.13).
Laferrière continua narrando no passado até o momento que começa a descrever, como um
transportasse para o ano de 63 em Petit Goâve, começa a escrever no presente, dando voz
ao pequeno Vieux Os. No último capítulo, intitulado “Le livre (trente ans plus tard)”,
(trinta anos depois) e começa a falar das razões subjetivas que o motivaram a contar esta
história. Assim, Laferrière, ao mesmo tempo em que resgata o mundo através do olhar da
criança, do jovem, que foi, deixa entrever o adulto escritor que se tornou. Mas, segundo o
autor, foi um árduo trabalho dar voz à criança e ao jovem que foi, já que isso representa,
afirma:
le narrateur dans ce livre ne sait pas plus qu'un jeune homme de 23 ans. Il
apprend les choses. J'ai été obligé de le contenir, car je suis maintenant un
homme de 41 ans. J'ai été obligé de le restreindre un peu, de mesurer son
ignorance ou son savoir, de ne pas aller trop loin et de conserver les émotions
dans leur état premier, par exemple cette petite distance légèrement ironique
que peut avoir un jeune homme de 23 ans, qui cache généralement une passion
bouleversante, une sensibilité à fleur de peau (LAFERRIÈRE, 1994).
42
2.6. Cette grenade dans la main du jeune nègre: um romance “em guerra”contra o
esterótipo
melhor ilustraria a subjetividade e a estética pós- moderna. Laferrière pinta nesta obra
orientada pelo consumismo, pela estética audio- visual, pela ética hedonista, pela
ficção. Trata-se aqui das impressões e experiências do alter ego de Laferrière pela
América do Norte, logo após a publicação de Comment faire l’amour, obra de grande
Segundo o narrador, Cette Grenade é fruto de uma reportagem encomendada – “on m’a
commandé un long reportage pour un influent magazine de la côte est. Ils préparent,
semble-t-il, un spécial sur l’Amérique […] Je suppose qu’ils veulent un Nègre qui ne
soit pas d’ici et en même temps en connaisse bien le coin” (LAFERRIÈRE, 1993, p 12-
13).
característica das obras pós- modernas e bastante presente nas obras de “escritores
11
Refiro -me aqui prioritariamente à primeira edição do romance e não à edição aumentada de 2002.
43
composto por quarenta e três partes, divididas em seis principais temas, aparentemente
“L’Amérique est un énorme téléviseur avec plein d’images dedans” ; “Le retour”. A
fazendo com que o leitor busque, por si mesmo, a coerência no texto. Nas palavras do
próprio narrador,
modernos, estão, em grande parte, presentes em Cette grenade. Embora na capa do livro
cotidiano do que a um romance. Sua escrita se localiza em um entre- lugar, entre o real e
reportagem, títulos impactantes, “faits divers”. No capítulo “Hall of fame (dix héros
descontínuo, pelas frases curtas, pelo estilo enxuto, direto da pós- modernidade.
44
Naomi ne regarde que les vieux films à la télé. Naomi aimerait être Ingride
Bergman. Naomi pense qu’Onassis serait encore plus séduisant s’il était moins
riche. Naomi n’aime pas le type italien. Naomi mange du spaghetti tous les
jours. Naomi n’a jamais été en Afrique. Naomi déteste qu’on l’appelle la
Bardot noire (LAFERRIÈRE, 1993, p. 173).
No que diz respeito à sua viagem pela América do Norte, o autor- narrador de
Montreal. Muitas vezes, no entanto, Laferrière não faz uma distinção precisa entre os
países ou regiões pelos quais circula, fala da América do Norte como um todo, dando
passando a impressão de que a América não tem fronteiras. São as heranças coloniais,
circular para além da província do Quebec (experiência narrada nos dois livros
anteriores, Comment faire l’amour e Éroshima), Laferrière expande ainda mais sua
visão do continente americano. Assim, a obra se aproxima de uma noção essencial para
J’ai depuis quelques années pris l’habitude de croire que nous sommes en
Amérique, je veux dire que nous faisons partie du continent américain. Ce qui
me permet de résoudre quelques problèmes techniques d’identité. Car, en
acceptant d’être du continent américain, je me sens partout chez moi dans cette
partie du monde. Ce qui fait que, vivant en Amérique, mais hors d`Haïti, je ne
me considère plus comme un immigré ni un exilé. Je suis devenu tout
simplement un homme du Nouveau Monde (LAFERRIÈRE, 2001 A, p 84).
45
contemporânea, sobretudo a estadunidense. Laferrière mostra os discursos
contraditórios desta América face à comunidade negra, bem como sua enorme
comuns ou com diferentes personalidades negras (de Spike Lee a Billie Holliday).
Assim, há, por um lado, em Cette grenade, uma idéia de americanidade, que descreve
realidade cultural que possui elementos em comum, onde os habitantes partilham certos
food, etc.. A Laferrière interessa, à medida que escreve, desvendar, (re) significar e (re)
A América não é a terra onde o homem branco europeu tem toda a liberdade
de recomeçar o mundo, de reconquistar o Paraíso perdido e de tornar-se o novo
Adão. A descolonização (por que não dizer a verdadeira descoberta ?) da
América não terminou com a vitória de Dessalines, Bolivar, Sucre, O'Higgins e
claro de Georges Washington. Resta ao homem americano se autodescobrir. E
parece que para muitos se trata de uma "terra incógnita", mais difícil de
alcançar que as Índias míticas que procuravam os navegadores do passado
(LAROCHE, 1993, p.68).
46
outras coisas. Vieux narra, assim, o encontro com uma jovem leitora que esquece tudo
que lê, uma caricatura da efemeridade pós- moderna, onde o livro, como qualquer outro
- Comment, rien ?
Como sobreviver neste império voraz e megalômano, que cultua o efêmero, a imagem,
virtualizadas e estetizadas?
vivent entre eux comme si personne d’autre qu’eux n’existait sur le continent ”
47
(LAFERRIÈRE, 1993, p17) – e contraditória. Sem preconceitos, mas extremamente
n’ai songé qu’à apporter ce rire dans ma vieille valise en tôle. Vieil héritage ancestral.
Chez moi on a toujours ri” (LAFERRIÈRE, 1993, p.37) afirma o narrador. Apesar de
seu desejo de se apropriar de todos os poderes, luxos e prazeres prometidos pelo sonho
americano.
A l’époque, j’essayais (je ne sais pas comment une telle ambition s’était
infiltrée en moi) d’écrire un roman et de survivre en Amérique. L’une des ces
deux activités était de trop. Faut choisir, Vieux. Justement, je voulais tout.
C’est le propre des noyées. Je voulais le roman, les filles (ces filles fascinantes
inventées par la modernité, les régimes-minceur et le désir fou des hommes
d’âge mûr), l’alcool et le rire. Tout ce qui m’était dû. Tout ce que l’Amérique
m’avait promis (LAFERRIÈRE, 1993, p 36).
Estão todos em busca de sucesso, fama e olhares, o apelo capitalista é tão poderoso que
seduz a todos, o autor, o homem comum, as celebridades e até mesmo os Deuses negros
do imaginário vodu! Laferrière diverte o leitor mostrando que nem mesmo a bela
Erzulie, Deusa do amor vodu, escapa desta perseguição frenética por seus quinze
Tu as a écrit un bouquin pour être connu... Eh bien, moi aussi, je veux la même
chose que toi... Je veux être dans ton prochain livre pour les mêmes raisons. Je
48
me fous de ce que tu écriras sur moi, et même pour être honnête avec toi, je ne
crois pas que je lirai ton bouquin... Si tu n’étais pas connu, je ne serais pas là
à te raconter ma vie...C’est tout ce que je demande... Bye (LAFERRIÈRE,
1993, p.106).
Laferrière faz, assim, da autoderrisão uma grande aliada neste percurso pelo espaço,
mas, sobretudo, pelo imaginário norte-americano. Rir de si mesmo, dos mitos de sua
cultura natal, pode ser libertador, pois transforma situações que poderiam gerar
pequenas crônicas que narram encontros casuais, um garçom negro em Boston, Madona
em Los Angeles, uma jovem atraente no metrô de Nova York, um casal inter-racial no
mundo. Assim, descreve uma festa insólita em Berverly Hills, freqüentada pelos ícones
J’ai été invité par ce jeune prince africain qui vit maintenant avec Madonna
[…] c’est qui ? demande quelqu’un en train de grignoter une carotte. Le
prince. Vous ne connaissez pas le nouvel amant de Madonna ? Il paraît qu’elle
l’a trouvé dans un petit village de l’Afrique du Nord. Il ne sait même pas qui
est Michael Jackson. Ses grands-parents étaient les derniers rois du Bénin. Il
ne connaît que Madonna en Amérique. Il paraît qu’il est génial. Qu’est-ce qu’il
fait ? Il est génial, c’est tout. Il fallait Madonna pour aller cueillir sur place le
dernier prince africain. Quand Madonna l’a trouvé il était en train de mourir,
couvert de poux […]. L’histoire édifiante de Madonna et du prince africain
circulait ce jour-là de bouche à bouche (LAFERRIÈRE, 1993, p.141-142).
coesão temática: olhar (de uma ironia mordaz) sobre o racismo na América do Norte,
49
formador de opinião. A ironia se apresenta, assim, como uma estratégia essencial nas
obras do ciclo americano, como saída para fazer pensar e questionar as hipocrisias
racistas.
bastasse ter o adjetivo “negro” perseguindo-o por toda parte, agora, sem pedir licença,
mais três significantes lhe colariam à pele – não apenas talentoso, mas substituível, não
apenas escritor, mas escritor- negro, não apenas sujeito, mas sujeito de cor!
“L’Amérique est une montagne de clichés” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 27), afirma. Sem
veiculados por esta América tão capitalista quanto racista. Embora Laferrière parta dos
habituais clichês sobre o negro para falar de seus personagens – mentalidade primitiva,
CLICHÉS sur les nègres? C’est une mine à ciel ouvert. Tout le monde a le droit d’aller
puiser là-dedans” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 89) No caso dos negros, esta semântica da
associado ao racismo. Laferrière explora os clichês sobre os negros não apenas a fim de
desconstruí- los, e aí está sua originalidade, mas para mostrar que dificilmente se escapa
ileso dessas construções ideológicas. O que ele nos faz compreender é que a perversa
cadeia significante, que ainda caracteriza o negro, também o constrói e o determina. Por
um lado, o autor mostra que certos estereótipos foram, efetivamente, absorvidos pelos
negros: “Au début, je voulais détruire ces clichés…Ah ! ah ! ah !...Quel naïf j’étais ! Je
suis tout de suite arrivé à cette conclusion qui m’a littéralement terrifié : la plupart des
50
clichés sur les rapports entre le Nègre et la Blanche sont vrais” (LAFERRIÈRE,1993,
p. 80). Embora Vieux manifeste um profundo desejo de se ver livre dos rótulos raciais,
- Malheureusement non.
- Alors ?
- Comme ça !
- Oui.
- Dommage.
- Comme quoi ?
em um primeiro momento, como uma “verdade” imposta. Mas à medida que a narrativa
nègre doit- il toujours avoir une position politique ?” “Pourquoi un écrivain nègre doit- il
toujours parler de sexe ?” “Pourquoi les écrivains nègres préfèrent- ils les blondes ?”
“Pourquoi écrivez- vous ?”. Por que escrever, se para ser aceito é preciso se adequar, ser
“Comment un écrivain nègre peut- il retrouver son chemin dans cette jungle ?”
51
“Comment un honnête écrivain nègre peut- il travailler dans de telles conditions ?” etc..
aos limites impostos à “literatura negra”. Segundo o autor, Cette Grenade é uma
reflexão sobre :
[...]l’Amérique, le succès, l’écriture, une sorte de bilan, sur les vingt dernières
années du narrateur en terre nord-américaine. En quoi vivre en Amérique du
Nord a-t-il changé sa vie ? se demande le narrateur en prenant un ton
sceptique. Il remet en question même sa posture d’écrivain nègre
(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.239).
Cabe ao leitor encontrar suas respostas. Assim como quase tudo na pós- modernidade, o
discurso de Laferrière dificilmente se encaixa num rótulo que o engesse, sua escrita é
temática. Assim, a penúltima parte do livro, que se intitula “Je ne suis plus un écrivain
afirmando-se como um escritor, apenas. Esta atitude sinaliza uma reorientação do olhar
suspensa, e com ela a necessidade de poupar o outro – “moi je veux être lu précisément
par les gens qui me détestent ” (LAFERRIERE, 1993, p.70), afirma Vieux. Há nesta
essencialização do negro e para fugir do gueto que o narrador recusa este rótulo, abrindo
52
do gênero. Considerar-se unicamente um escritor é libertador, pois permite acumular
moderna.
Je suis aussi tout ce que je ne veux pas être. Je suis un écrivain haïtien, un
écrivain caribéen (ce qui est légèrement différent d'un écrivain antillais, mais
je suis aussi un écrivain antillais), un écrivain québécois, un écrivain canadien
et un écrivain afro-canadien, un écrivain américain et un écrivain afro-
américain, et, depuis peu, un écrivain français. (...) Je change peut-être de
chapeau mais jamais de discours […] Je veux être pris pour un écrivain, et les
seuls adjectifs acceptables dans ce cas-là sont : un bon écrivain (ce qualificatif
a bien sûr ma préférence) ou un mauvais écrivain. Il faut tenir en même temps
les deux termes de cette contradiction (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.86).
J’errais, le soir tard, dans ces territoires lunaires où les sensations ont pour
toujours remplacé les sentiments. Je prenais des notes. J’écrivais dans les
toilettes de ces bars minables. Je tenais d’interminables conversations
jusqu’au petit matin avec des intellectuels affamés, des comédiennes en
chômage, des philosophes sans pouvoir, des poétesses tuberculeuses, enfin
toute la racaille des sans grade (LAFERRIÈRE, 1993, p.37).
presente na pergunta do título – cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une
arme ou un fruit?–, a fim de refletir sobre o olhar que, ainda hoje, rotula e duvida das
53
ingênuo, assimilado (como pregou a ideologia colonial)? Será que “au fond, c’est vrai,
nigeriano, do cantor de rap Ice Cube, do escritor James Baldwin, entre outros. O taxista
nigeriano, defensor intransigente da raça, com quem o narrador tem uma longa
conversa, considera seu romance (que toca na questão racial, mas de forma irônica e não
écrivain nègre doit-il toujours avoir une position politique ? ” […] “c’est contraire à
negro tem uma espiritualidade, uma cultura e uma pátria que lhe são próprias.
- Sur ce point je suis d’accord avec le Klan. La place des noirs est en Afrique.
Em outra cena, o narrador descreve uma conversa imaginária com o escritor negro
estadunidense James Baldwin – voz importante durante a luta pelos direitos civis, no
54
pensamentos profundos dos negros norte-americanos. “Il faut absolument que le Blanc
puisse s’occuper du racisme lui aussi” (LAFERRIÈRE, 1993, p.180), afirma o Baldwin
de visão unilateral sobre a questão racial, contribuindo para uma compreensão mais
global da noção de Outro e das identidades que se elaboram a partir da noção de raça.
referências tanto em Cette grenade quanto em Comment faire l’amour a escritores afro-
Grenade, nos primeiros ensaios de Baldwin sobre a América – “je me suis dit que
j’allais adopter la forme des premiers livres de Baldwin et y mettre un peu de fiction....”
diferentes teóricos pós-coloniais, entre os quais citaria o antilhano Frantz Fanon (Peau
noire, masques blancs), o africano Kwame Anthony Appiah (A Casa de Meu Pai) e o
ideologias racistas e falsas crenças. Appiah questiona a idéia, forjada pelo europeu e
apenas no sentido geográfico, mas uma unidade política, racial e cultural, a pátria dos
Il m’explique que ce sont les colonisateurs qui ont découpé l’Afrique telle qu’on
la voit aujourd’hui. Il est contre naturellement [...]. Au début, il tenait bon,
expliquant qu’il n’y avait qu’un seul peuple en Afrique et que l’expression
55
‘Afrique noir’ est non seulement un pléonasme, mais une stupidité politique,
une infamie, une saloperie de plus inventée par les occidentaux pour jeter le
doute dans l’esprit des africains. La couleur n’existe pas en Afrique
(LAFERRIÈRE, 1993, p. 65-66).
devient” (LAFERRIÈRE, 1985, p.153). Em Cette grenade, o autor retoma o tema: “la
couleur n’existe pas en Afrique (...) quand tout le monde est de la même couleur il n’y a
O negro, escreve Fanon, ‘nunca foi tão negro quanto a partir do momento em
que foi dominado pelos brancos’. Mas a realidade é que a própria categoria do
negro é, no fundo, um produto europeu, pois os ‘brancos’ inventaram os negros
a fim de dominá-los. Dito de maneira simples, o curso do nacionalismo cultural
na África tem consistido em tornar reais as identidades imaginárias a que a
Europa nos submeteu (APPIAH, 1997, p. 96).
Em uma entrevista bem humorada e cheia de provocações, feita para o site de Alain
- Ah bon ?
- Oui. La couleur noire est une invention de l’homme blanc avec la complicité
de l’homme noir. Il faut d’abord réinventer l’individu noir.
56
Quand exactement un homme a-t-il regardé un autre homme, s’est-il étonné de
sa peau et a conclu qu’il était son inférieur ? […] Qui s’est mis à hurler en
premier : t’es moins bien que moi ? Le noir ou le Blanc ? Le Jaune ou le
Rouge ? Je parle du premier mouvement. La grave question du premier
regard” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 153-154).
principalmente os que narram sua experiência no exílio, pelo uso do significante Nègre
fixidez em que foi aprisionado o homem negro e de tornar seu significado menos hostil.
Je n’ai pas dit que je ne voulais pas aborder la question raciale, mais je rêvais
de l’aborder en esquivant la propagande. Dire le mot Nègre si souvent qu’il
devienne familier et perde son soufre. Me vautrer là-dedans, me rouler dans le
racisme, devenir en quelque sorte LE NÈGRE, comme le Christ a été
L’HOMME (LAFERRIÈRE, 1985, p. 213).
57
Finalmente, o que busca Laferrière, através de estratégias bastante diferentes, é, assim
como propôs Fanon, descolonizar psicologicamente o negro, a fim de que ele possa se
“Comment devenir célèbre sans se fatiguer” encontra seus leitores e cataloga suas
importância central de Cette grenade. Na conversa fictícia que tem com Baldwin, sua
- J’ai été d’une certaine manière un écrivain de mon époque, et tu vois ce qui
arrive…
fois que je désespère des hommes, j’ouvre un bouquin de Baldwin pour y trouver
l’intelligence la plus fine mêlée à la plus vive sensibilité” (LAFERRIÈRE, 1993, p.70).
feu (1963), que, por sua vez, se refere a uma profecia bíblica feita por um escravo:
58
Et Dieu dit à Noé
Il me reste le feu...
Baldwin faz um apelo aos brancos e aos negros relativamente conscientes, afirmando
contrário os resultados serão catastróficos: “Si nous n’avons pas, et dès aujourd’hui,
toutes les audaces, l’accomplissement de cette prophétie, reprise de la Bible dans une
chanson écrite par un esclave, est sur nos têtes” (BALDWIN, 1963, p.19). No prefácio
Apesar das ameaças e profecias, La prochaine fois le feu é um texto cheio de esperança,
pois acredita que os negros devem agir juntos, «nous autres, les Blancs et les Noirs
avons profondément besoin les uns des autres si nous avons vraiment l’intention de
devenir une nation, si nous devons, réellement veux -je dire, devenir nous-mêmes,
devenir des hommes et des femmes adultes” (BALDWIN, 1963, p.127). Devem se unir,
59
Les craintes et les aspirations personnelles de l’homme blanc – secrètes et pour
lui inexprimables – il les projette sur le Noir. Il ne saurait se libérer du pouvoir
tyrannique que le Noir exerce sur lui qu’en consentant pratiquement à être noir
lui même, à devenir partie de cette nation dansante et souffrante
qu’aujourd’hui il observe pensivement des hauteurs de sa puissance solitaire
[...] (BALDWIN, 1963, p.126).
Segundo Baldwin, o negro tem metaforicamente a função de uma estrela fixa: caso
abandone seu lugar, tudo se abala na terra, “essaie d’imaginer tes réactions si tu
t’éveillais un matin pour trouver le soleil brillant de tout son éclat au milieu d’un
scintillement d’étoiles. Tu aurais peur parce que ceci serait contraire à l’ordre de la
crença da inferioridade do negro, e manter tudo em seu lugar. Mas o que Baldwin quer
dizer é que é preciso mudar e o risco dessa mudança para o branco americano seria a
“le prix de la libération des Blancs c’est la libération des Noirs” (BALDWIN, 1963,
p.127).
60
O narrador de Cette grenade, ainda de acordo com Baldwin, recusa terminantemente o
gueto – “Je n’avais aucunement l’intention de laisser les habitants de race blanche de
É dessa busca de uma saída possível para a questão da segregação racial que fala Cette
seu quarto onde “se prépare à bombarder l’Amérique blanche. D’abord un sévère
avertissement, mais la prochaine fois le feu” (LAFERRIÈRE, 1993, p.178). Essa idéia
do fogo sobre a América, de uma espécie de revanche negra iminente, reaparece sob
início dos anos noventa, desencadeando uma série de distúrbios raciais na cidade. A
cena foi filmada, mas um júri composto por brancos absolveu os policiais: “les Noirs,
ivres de colère, ont foutu le feu partout dans la ville” (LAFERRIÈRE, 1993, p.176).
Com relação a essa metáfora do fogo, também poderíamos pensar na revolução dos
escravos iniciam os incêndios das casas e plantações. A idéia de incendiar tem uma
força simbólica muito grande; para o vodu, o fogo é o símbolo da regeneração periódica
guerra racial que explode (invisível) nas margens da América. Há um campo lexical
que nos remete reiteradamente a esse universo: guerre, guerrier, ennemi, lutter, se
battre, bombarder, capituler, réagir, arme, grenade, front, colère, apocalypse, feu,
etc.. A dedicatória do livro é feita a três personalidades negras mortas (“em guerra”) na
61
América: “Au romancier James Baldwin, au musicien Miles Davis, au jeune peintre
Jean-Michel Basquiat, tous trois morts en Amérique. La guerre fait rage au nouveau
monde. (Bien sûr Baldwin est mort en France, mais il a reçu la blessure mortelle en
Amérique)”. Basquiat é descrito como “un jeune guerrier prêt à sauter à la gorge de
quiconque essaie de lui cacher le soleil” (LAFERRIÈRE, 1993, p.169). E o cantor Ice
Cube explica, em uma entrevista com o narrador, no que consiste a sua guerra :
-Nous nous battons sur deux fronts. Contre l’ennemi et contre ce que l’ennemi a
fait de nous.
homem, um Outro, ele carrega uma arma – “Fais gaffe au type qui remonte le courant,
a última parte do livro, “Le feu sur L’Amérique”, descreve o caminhar quase dançante
intenções desse jovem que caminha, aparentemente, distraído, “visage souriant, détendu
même, qui contraste avec le torse un peu contracté et les jambes graciles légèrement
fléchies”, “un jeune animal qui s’apprête à bondir ou a lancer quelque chose. Ce truc
62
vert qu’il tient dans sa main, est-ce une arme ou un fruit? ” (LAFERRIÈRE, 1993, p.
216). O que se apreende é sua iminente intenção de luta, seu desejo, quase imperativo,
de ser notado (olhado, ouvido, lido) e respeitado em sua alteridade. O que esse jovem
que avança, em direção ao Outro, tem nas mãos não importa muito, suas armas, suas
uma ação radical ou pacifista, o importante é que ele está alerta, mais consciente de sua
63
3. A AUTOFICÇÃO AMERICANA DE DANY LAFERRIÈRE
único livro que chamou de sua “autobiografia emocional”. Esta “autobiografia” possui,
autobiográfico. Narrativa em prosa onde um autor (uma pessoa real) narra a história de
compromete a dizer a verdade e o outro a acreditar nela. Segundo Philippe Lejeune, este
pacto, que deverá ser sempre respeitado para que haja autobiografia, se resume,
mesma pessoa; o nome do autor será o mesmo do narrador e deverá constar na capa e na
fatos reais, os personagens evocados devem ter realmente existido e uma declaração que
diga que se trata de uma história real, e não ficcional, deve constar no livro. Em síntese,
nada deve ser inventado ou fictício. É, sobretudo, na verdade que se ancora este gênero.
“Je ne pouvais pas publier dans un ordre chronologique parce que ce serait trop
ennuyeux, j’ai préféré découper ça selon mes humeurs, selon mon désir et passer d’un
64
tradicional, em contrapartida, procura organizar com maior coerência e menos
por ele usado pela primeira vez em 1977 no livro Fils, a fim de conceituar a estratégia
que usou na elaboração deste romance. O conceito nasce para dialogar com o livro de
Lejeune Le pacte autobiographique (1975), onde o autor afirma não existir exemplo de
obras regidas por um pacto romanesco em que o nome do narrador coincida com o do
autor. Doubrovsky desconfia do pacto proposto por Lejeune, pois acredita que nenhuma
narrativa, sobretudo aquela que é escrita em primeira pessoa, possa ser verídica e
coerente a ponto de escapar da ficção. Segundo ele, o texto autoficcional não é nem
1979, Fils, obra ficcional cujo personagem- narrador tem o mesmo nome do autor. O
romance e afirma: “a autoficção é a ficção que eu decidi como escritor me dar de mim
1988, p. 76). Esta experiência da análise produziu um saber que foi, por sua vez, sendo
última é uma escrita do “eu” (consciente) que deixa surgir constantemente a pulsação do
relativizada; em ambas as abordagens, a narrativa é uma criação, que não precisa buscar
65
sujeito a se liberar de seus fantasmas recalcados e a recriar um universo “alternativo”
para uma vida que considera estática ou insatisfatória, havendo, nos dois casos, uma
uma primeira narrativa sobre si que é perturbada por este, não para criar uma versão
definitiva que aprisione o analisando em um “eu” rígido, mas para, ao contrário, lhe dar
p.18). Não se trata de se apropriar do tempo, mas de criar novas versões para o passado.
desejos. Mas não se trata, neste caso, segundo Philippe Vilain, de uma escrita
terapêutica, pois o escritor não escreve para se livrar de seus fantasmas e sim para
reencontrá-los.
verdade sobre uma vida. O que ele afirma é que essa escrita híbrida que associa fatos
reais, fantasia e imaginação sempre existiu, a exemplo das obras de Rousseau, Proust,
sendo, não seria coerente afirmar que se trata de um novo gênero, mas de um novo
66
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da
sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro,fios de
palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da
literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção,
pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer
(DOUBROVSKY citado por FIGUEIREDO, 2007, p.56).
profunda da qual faz parte toda a crítica pós-moderna; uma transformação cabe
reafirmar, que atingiu não apenas a compreensão da arte, da literatura, mas do próprio
conceito de identidade, raça, cultura e verdade. Por acreditar que sujeito, sociedade e
história se constroem pelo discurso, a ideologia pós- moderna atenua os limites entre a
entre- lugar, entre o real e sua representação, que a autoficção se situa, revelando-se,
Laferrière, por sua vez, deixa bem claro que o que importa para ele não são as
O autor chamou, por exemplo, os cinco livros do ciclo haitiano de “quinteto dos
sentidos” – Le cri des oiseaux fous representaria a audição, Le goût des jeunes filles, o
paladar, L’odeur du Café, o olfato, Le charme des après-midi sans fin, a visão, La chair
67
Laferrière, estão, muitas vezes, na origem de sua motivação e desejo de escrever. O
romance pós- moderno tem, nesse sentido, segundo Douwe W. Fokkema, uma estrutura
moderno, deixa-se levar menos pelo intelecto, pelo compromisso de explicar e ordenar e
D’où vient, quand il pleut, cette envie folle de manger de la terre? A cause de
son odeur, sûrement. Au début, on ne sent rien. Puis quand la pluie commence
à tomber, l’odeur monte. L’odeur de la terre. La mangue sent la mangue.
L’ananas sent l’ananas. Le cachiman ne sent pas autre chose que le cachiman.
La terre sent la terre (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.53).
fez descobrir a questão racial através das cores: o vermelho, o preto, o amarelo e o
branco. As quatro cores primárias, segundo Matisse, e ao mesmo tempo as cores das
l’amour temos o negro e o branco. O autor procura misturar as cores (e as raças), assim
68
como um jovem pintor que experimenta tons, livremente e sem preconceitos, para em
apelido do narrador nos romances do Haiti, Vieux Os, é o mesmo do autor quando
criança.
C’est ma grand-mère qui m’appelait Vieux Os. C’est une vieille expression
haïtienne pour dire qu’on ne compte pas se coucher avec les poules. Ma grand-
mère et moi, on avait l’habitude de rester tard la nuit sur la galerie à admirer
les étoiles (LAFERRIÈRE, 2000, p.18).
Laferrière tem seu verdadeiro nome revelado – no livro Le cri des oiseaux fous, onde
narra seus últimos momentos no Haiti e em Pays sans chapeau onde narra o retorno ao
país.
Il retrouve son nom dans les moments critiques. A mon avis, il y a deux grands
moments chez un voyageur – et tout être humain est un voyageur d’une
certaine façon –, c’est le moment du départ et celui du retour (LAFERRIÈRE,
2000 A, p.19).
Segundo Laferrière, na mitologia haitiana assim que alguém revela seu nome tira sua
máscara, mostra sua verdadeira face. Em L’odeur du café o narrador diz que não pode
revelar seu verdadeiro nome – “personne ne connaît mon nom, à part Da. Je veux dire
mon vrai nom. Parce que j’ai un autre nom. Da m’appelle quelques fois Vieux
os” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.25) –, pois aquele que o conhecerá fará dele seu escravo
–“Da dit qu’on est à la merci da la personne qui connaît notre vrai
69
de criar um personagem através do qual possa dizer suas verdades. Em Pays sans
Chapeau o narrador sente-se livre para revelar seu nome, pois já passou por muitas
maneira simbólica de dizer que acabou – “le type a enlevé son maquillage. C’est fini. Il
territórios por onde passou. É o continente americano que lhe interessa, os países que o
habitam, que vão sendo desvendados e (re) significados à medida que escreve. O
continente americano tem para Laferrière uma importância indiscutível no que diz
negro, ter como língua natal o crioulo, ter no histórico um passado de exploração
paradoxal e risível.
Mon combat ne se faisait plus avec la France. J'avais réglé le cas de la France
d'une manière inusitée, en lui faisant affronter un monstre plus fort que lui,
l'Amérique. Comment? Et bien, j'avais découvert par hasard que je vivais en
Amérique, qu'Haïti était en Amérique et non en Europe. Pour moi, tout
devenait alors simple: si la France, comme je le constatais (le cinéma, la
littérature, la gastronomie même, puisque le hamburger est l'aliment préféré
des jeunes Français, le sport aussi puisque les dieux du basket règnent aussi en
France, etc.) se mettait à genoux devant l'Amérique, cette Amérique, alors
70
pourquoi je baisserais la tête devant la France? Pourquoi ne pas adorer le vrai
dieu? L'ancienne équation (J'adore la France qui adore l'Amérique) me parut
brusquement étrange. Je n'ai qu'à répéter sans arrêt: je suis en Amérique. C'est
moi l'Amérique. On se demande même comment la France s'était prise pour
m'enfoncer un tel bobard dans la tête? Me faire croire que je n'étais pas en
Amérique. Il faut, malgré tout, applaudir le magicien. Le Barnum de l'identité.
Quel exceptionnel tour de passe-passe: Faire croire à des millions de gens
pendant au moins deux siècles qu'ils ne vivent pas à l'endroit où ils habitent.
Chapeau! (LAFERRIÈRE, 1999 D).
il faut la France pour que l'Afrique, cette Afrique-là, puisse exister dans ma
tête. C'est un couple, et comme pour tout couple, on ne sait plus avec le temps
qui avait raison ou qui avait tort. Franchement, mon cher, je m'en fous. La
France et l'Afrique m'ont créé. Si j'élimine un, l'autre disparaît au même
moment. Cette Afrique mythique n'existe que dans la Caraïbe. C'est une
invention d'intellectuels aux abois. Contre la trop puissante France, ils ont
inventé cette Afrique. Mais ça ne marche pas. Un rêve contre un mythe. Trop
fantasmatique. Cet Univers complètement artificiel a contribué à créer une
élite intellectuelle véritablement schizophrène. La France colonisatrice et
l'Afrique mythique. Réveillez-vous les gars, nous sommes en Amérique. Mais
quelle Amérique? [...] Le Nouveau Monde fut ma réponse (LAFERRIÈRE,
1999 D).
fantasias e expectativas.
71
Monde. Un monde à la fois réel et rêvé. A partir de ce moment, j'ai remonté la
piste jusqu'à mon enfance (LAFERRIÈRE, 1999 D).
Em síntese, foi a partir dessas reflexões sobre o que significava para ele a França, a
sonhar e narrar seu percurso pelo continente, que é parte de uma realidade e ao mesmo
ou vivências estritamente reais, conforme fez Doubrovsky em seu livro Fils. Mesmo
que retome diversos dados referenciais, estes estão em segundo plano quando
de sua vida pessoal nas páginas de seus livros e, em sua opinião, estas não são uma
porque se trata de sua emoção e falso porque ele é capaz de tudo inventar para
experiências muitos similares às vividas por Laferrière antes do sucesso como escritor:
palestra proferida no Rio de Janeiro em 2007, Laferrière confessa ter descrito, neste
romance, com precisão, o quarto onde morava e os móveis, mas ter inventado tudo o
que lhe faltava: as mulheres, os vinhos, os amigos, etc.. O autor também afirmou nunca
ter escrito o artigo que foi encomendado ao narrador de Cette grenade, negando
igualmente ter visitado, como este, a América do Norte de ônibus para escrever o livro.
72
Na última parte de Éroshima, romance que narra seu encontro e descoberta com a
cultura e as mulheres orientais, afirma: “je ne sais rien du Japon, et le Japon ne sait
rien de moi” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.143). Segundo ele, com isso, quis enganar a si
Certains « je » sont simplement une ruse de narration afin de rendre plus aisée
la lecture : le lecteur est habitué au « je », donnons-lui du « je ». Par contre, il
y a un «je », le plus couramment utilisé, qui est très juste, très directe et
vraiment naturel : le « je » de « L’odeur du café », de même que celui du
« Charme des après-midi sans fin », de « Chronique de la dérive douce » et de
« Pays sans chapeau ». Il y a aussi le « je » de « Éroshima » (je n’ai pas vécu
dans la chambre de cette japonaise, mais cela m’aurait beaucoup plu) ; c’est
un « je » de fantasme, mais c’est aussi important que le « je » authentique. Le
« je » contaminé consiste à phagocyter les «je » des autres (se servir d’une
histoire qui est arrivée plutôt à un ami). J’aurais pu ajouter un « je »
générationnel quand il s’agit d’un ensemble de personnes qui ont grandi
ensemble dans la même époque, sous une même dictature (je tente alors de
fondre toutes ses sensibilités dans le « je » du narrateur (LAFERRIÈRE, 2000
A, p.199).
narrador. O “eu” autoficcional presente nos romances do ciclo haitiano, com exceção de
La chair du maître , tende a ser mais espontâneo e sensorial, captando as emoções a flor
73
da pele, de maneira mais direta e com menos mediação. Este também é o caso de
Chronique, que, embora narre o primeiro ano em Montreal, traz um olhar ainda
ingênuo, sem grandes máscaras, mesmo que levemente irônico. Esse “eu” dos primeiros
romances (na ordem cronológica), mais transparente, vai-se transformando, a cada novo
exílio, a cada nova perda e percepção das desigualdades e opressões que o cercam – o
exílio do pai, a dor da mãe, o assassinato do amigo, a mão de ferro e a censura diária do
estranheza, de estupefação, vai tomando conta do “eu” do narrador, que se torna mais
ao último (Pays sans chapeau) há uma grande transformação: vai-se de uma narrativa
ficção e realidade, entre vida real e vida sonhada atinge seu ápice.
resgatar o “eu” da criança, sua linguagem, desejos e olhar. A postura do narrador diante
l’amour, Eroshima e Cette grenade, é simples, doce – “Je remarque qu’après une forte
mais brève pluie les gens semblent plus heureux” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.55) e ao
mesmo tempo poética – “Da m’a toujours dit que si le ciel est bleu, c’est à cause de la
mer. J’ai longtemps confondu le ciel avec la mer. La mer a des poissons. Le ciel, des
74
étoiles. Quand il pleut, c’est la preuve que le ciel est liquide”(LAFERRIÈRE, 1999 B,
p.141). Laferrière retoma neste livro temas essenciais em sua literatura – a verdade, a
familiar, a casa da avó na pequena Petit-Goâve, onde a vida passa lentamente – “Da
boit son café. J'observe les fourmis. Le temps n'existe pas”. Laferrière, procurou, em
pessoas se sintam surpresas por estarem no lugar onde nasceram; suas mentes ficam tão
povoadas por referencias externos que elas passam a explicar seu próprio universo
cultural, como se ele não lhes pertencesse intimamente. Assim, a noção de identidade
narrador como algo inquestionável, que ainda lhe pertence. Vieux Os se sente parte de
uma coletividade, solidária, que o acolhe sem distinção – “ça, c'est Haïti. On n'est
jamais Seul” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.90). Há, nesses romances, uma noção de
obra pela ordem de publicação), assim como os romances anteriores, mostra a sociedade
haitiana do interior, a partir da vida privada, das residências, dos quartos de hotéis, das
madrugadas, dos banheiros, dos bares, mas ao contrário deles, além de abordar
75
commencé il y a très longtemps, j’avais à peine quinze ans. C’était 1968, l’année de
( “La nuit d’un fauve”) passa a escrever no presente, mantendo a primeira pessoa, “j’ai
leitor que já tomara contato com as obras anteriores, deduz que o narrador é,
naturalmente, Vieux Os, o alter ego de Laferrière. No entanto, ele depara-se com
afirmar que seu pai morreu há alguns anos, enquanto o Vieux de Pays sans chapeau
(obra publicada anteriormente, mas posterior pela ordem cronológica) viria a narrar uma
tentativa de reencontro com o pai em Nova York, que, por sua vez, faleceu anos mais
Os vão sendo reveladas: seus olhos claros, o nome da irmã, Maryse – o nome
saudosa com relação a esta ausência, a única irmã, a idade, a cidade de Porto Príncipe
escreve em primeira pessoa (mas já se chama Manoel) e, assim como Fanfan, tem um
pai ausente e uma mãe que sofre a perda, mas por razões diferentes de Vieux Os.
Mon père vit avec une autre femme. Faut dire qu’ils n’ont jamais vécu
ensemble. Pour être sincère, je ne le connais même pas. Elle souffre. Je la
regarde. Elle s’active près de la petite cuisinière. L’air soucieux. Sa main
droite effleure son front comme pour calmer une vieille douleur (« sois calme,
ô ma douleur ») (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.59).
76
No quarto capitulo (“Nice girls do it also”) há uma mudança radical de perspectiva, com
um narrador onisciente, sobre o qual o leitor não tem nenhuma informação, narrando em
terceira pessoa a história de uma família estadunidense em Porto Príncipe. A partir deste
histórias reais ou fictícias. O único fio condutor é a memória emocional do autor, das
coisas que viu, ouviu, viveu ou fantasmou na Porto Príncipe do início da década de
setenta. Nesse sentido, assim como o ano de 1968, este é o romance “de tous les
sobre ela mesma. Segundo Laferrière, “il y a un côté homme-orchestre dans cette
1997).
narrador, que se torna mais irônico e ainda mais ficcionalizado. Ao deixar o Haiti para
viver no Quebec, o autor se descobre negro, pela segunda vez, já que essa “novidade” o
12
O Indigenismo – importante movimento artístico e literário que precedeu e influenciou o movimento
da Negritude – foi criado no Haiti na década de 20 por jovens mulatos de origem burguesa e recém
chegados da Europa. Esses jovens descobrem e se envolvem no velho continente com os movimentos
estéticos e políticos das vanguardas e retornam à América com diferentes e irreverentes propostas
artísticas, intelectuais e literárias. Muitas mudanças culturais e políticas estavam acontecendo na Europa:
o comunismo e a crítica aos valores burgueses, a valorização da arte negra (Picasso passou se interessar
pelas máscaras africanas e diversos artistas e escritores começaram a voltar a sua atenção para a África), o
Dadaísmo, o Cubismo, as pesquisas etnográficas.
77
Et brusquement je suis devenu noir. Oui, je vais à l’école, et puis on dit
« l’école indigéniste ». On m’apprend que j’étais noir, on m’apprend que toute
la culture haïtienne est basée là-dessus et que Price-Mars avait écrit un livre
pour dire que j’étais (LAFERRIÈRE, 2000 D).
diferença. O autor cria, assim, uma espécie de lenda em torno de sua existência,
escrita do fantasma, pois dá lugar ao ego fragmentado do escritor, permitindo que diga
real, é casado e tem três filhas. Em Comment faire l’amour e Eroshima ele vive às
voltas com suas diversas amantes, louras e anglófonas, no primero caso, e morenas e
diaspórico, sem raízes, livre para viajar, ir e vir como bem lhe convenha e realizar seus
fantasmas. Segundo o autor, este personagem “c’est le même qui traverse tous mes
romans. Il peut être tendre, cynique, violent passionné, sec ou mouillé. C’est un être
déroutant. Il est á la fois ce que je suis, ce que je ne suis pas et ce que j’aimerais être”
(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.56). Por um lado, existe o homem que quer narrar suas
78
emoções, ir ao mais profundo de si e, por outro, o escritor que quer realizar seus
Ao flutuar entre realidade e ficção, ao expor seus fantasmas, mudar datas, omitir,
muitas vezes confunde o leitor. E este nem sempre lida bem com a dúvida, com a
dificuldade de distinguir o real e o ficcional. Mas o que fazer quando o pacto começa a
jeunes filles uma conversa que tem com a tia sobre L’odeur du café:
- Ah non, tu ne vas pas t’en tirer comme ça...Quand on ne sait pas quoi
dire, on ne met pas les noms des gens dans son affaire...
- En fait, cette histoire est arrivé à Oginé, mais pour mon récit c’était
mieux avec Timise...
Em seu livro de entrevista J’écris comme je vis, o autor comenta essa divertida recepção
da “autobiografia americana” por sua tia Raymonde, crítica feroz das mentiras
Souvent elle rit, mais le plus souvent elle fronce les sourcils devant ce qu’elle
appelle un mensonge éhonté. Et elle écrit au crayon rouge dans les marges de la
page. Ce n’est pas une lecture c’est un véritable dialogue. À la fin, elle m’envoie
son livre maculé de ratures et d’interjections [...]. J’ai beau lui faire comprendre
que mon travail ne consiste pas à dire les faits mais plutôt de faire surgir l’émotion
79
d’une situation, que pour moi c’est la vérité de l’émotion qui compte et rien
d’autre, pour elle, je déforme la réalité (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.44).
Je lui réponds que je peins plutôt les choses telles que je les ressens [...].
« Alors pourquoi mêler de vraies gens à ton cinéma ? ». « j’ai besoin de ces
personnes, tante Raymonde, j’ai besoin de leur énergie, de leur sensibilité, de
leur caractère pour dire ma vérité profonde » (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.44).
Raymonde se diz profundamente magoada pelo fato de ter sido descrita com um vestido
cinza que ela NUNCA teve; ela, que odiava cinza, passou horas procurando o vestido
sobrinho. Laferrière rebate dizendo que a cor do vestido não tem a menor importância,
que a palavra “gris” simplesmente soava melhor naquela frase. Raymonde também acha
inadmissível a terrível mentira contada por Laferrière em Pays sans chapeau, sobre sua
volta ao Haiti, quando sua avó Da já havia morrido. Na realidade, Laferrière voltou pela
primeira vez ao país muitos anos antes e Da ainda era viva. “Tu dis souvent que les
gens et les lieux sont vrais dans tes livres” contesta, “ oui, mais pas les histoires, et puis
je n’ai pas signé le pacte de vérité avec personne” (LAFERRIÈRE, 2000, p.49)
responde Laferrière. A tia conclui bem humorada que Laferrière passa seu tempo
roubando a vida dos outros. Em Cette Grenade o narrador também é interrogado por
Un temps bref.
-Oui...pourquoi ?
80
- Et s’il vous mentait ?
-Comment ça ?
-S’il vous disait que c’est son histoire alors que c’est faux ?
- On serait déçu (un petit rire gêné). Au fond on ne saura pas la vérité.
-Alors, pourquoi ?
-Une fantaisie.
Elle rit.
detalhes do passado, a melhor saída é inventar, pular certas etapas, recriar, fantasiar –
(DOUBROVSKY citado por LAOUYEN, 2000, p.1). Para Laferrière, cabe ao leitor,
não ao autor, decidir se ele quer ver nas obras de autoficção uma série de presentes
Je n'ai pas eu besoin de sortir des notes d'un tiroir pour revivre au jour le jour
les moments, les émotions de l'année 1976. Je ne prends pas de notes, je ne
tiens pas de journal parce que je crois que c'est justement le meilleur moyen
pour oublier les sensations, les émotions (LAFERRIÈRE, 1994, p.1).
Laferrière escreveu Chronique em fichas, colocando em cada uma tudo que lhe vinha à
cabeça sobre aquele primeiro ano, imagens, impressões e sensações soltas. Em seguida,
organizou tudo, tirou o que havia de repetido e completou o texto com idéias novas e
um pouco de imaginação.
81
Nesse sentido, os sonhos, os fantasmas e as fantasias têm um papel fundamental
na escrita autoficcional; mas até que ponto estes elementos teriam conteúdos
“confiáveis” (questão que tanto preocupou tia Raymonde)? A psicanálise pode nos
oferece a melhor resposta, já que compreende que o essencial, a verdade do sujeito, está
sujeito unificado, com total domínio de si, é substituída por outra versão do sujeito.
Enquanto a autobiografia busca narrar a história de uma vida se fiando na memória, nas
82
A verdade pode, por vezes, não nascer da confissão, mas nascer da mentira.
esnobe grupo que a mãe freqüenta, que dizer a verdade (os fatos), de maneira artificial ,
escondendo as emoções, os afetos, é o mesmo que mentir – “Bien sûr, il y a des faits
vrais, des anecdotes vraies, mais si le cœur n’y est pas, alors tout cela est faux. Elles
ont une définition du mensonge à laquelle je n’adhère absolument pas. Elles savent
bem, a população pobre mente por medo da repressão ditatorial. Neste caso, mentir é
83
A verdade (a realidade) encontra-se em um entre- lugar entre a vida real e a vida
Este entre-lugar de onde parte a autoficção – que muitas vezes gera ambigüidade e
Laferrière acredita que instaurar a dúvida no leitor, isto é, fazê- lo pensar por si mesmo,
traduz perfeitamente a idéia que o autor faz da literatura e de seu próprio percurso – pois
jamais separa sua vida vivida de sua vida sonhada. É neste entre- lugar que se construiu
como homem e como escritor, entre diferentes países, línguas, profissões, referenciais
84
2.5. Pays sans chapeau: entre e o real e o sonhado
Tout ce que j’aime c’est croire que la vie rêvée d’un individu est
intimement mêlée à sa vie réelle. On peut rêver sa vie. Je suis
tissé de rêves. Voilà, c’est moi, plus rien à dire
(LAFERRIÈRE).
traduzem a transformação pela qual passa em sua deriva americana. Há tanto a doçura, a
a ironia, a lucidez de Vieux no exílio. Estes dois lados de um mesmo homem estão,
todavia, reunidos em Pays sans chapeau, romance que narra a volta do narrador Vieux
ao Haiti vinte anos depois de sua partida forçada para Montreal, para rever um mundo
com o qual, apesar da distância física, jamais deixou de sonhar. Por um lado, o autor
fala da vida privada, da intimidade – o encontro emocionado com a mãe Marie e com a
tia Renée, com os amigos de infância, Philippe e Manu, com Lisa, mulher por quem se
apaixonou sem nunca se declarar – com uma doçura rara e uma emoção discreta. Por
outro lado, descreve a vida pública – as caminhadas por Porto Príncipe, os anônimos, a
pobreza, os lugares por onde passa – sem perder a lucidez e uma eventual ironia. Em
sua redescoberta do país natal, Laferrière se deixa capturar por uma infinidade de
privado), o narrador reencontra o Haiti mitológico, o qual, apesar dos anos no exílio,
Foi este refúgio imaginário que lhe permitiu sobreviver na América do Norte, conviver
85
com a solidão, o preconceito, o racismo, as dificuldades financeiras. Foi, assim,
diferenças e desvendou a cultura do Outro. Sem nunca deixar de estar imerso nesse
imaginário haitiano, foi, com o passar do tempo, transformando essa herança cultural
O Haiti ocupa uma dupla função: ausente, é o lugar da falta, de onde surgirá a
escrita; presente, ele se revela alienante, daí a necessidade de exorcizá-lo, ou
seja substituí-lo por um Haiti ideal, do qual se poderia sentir saudade sem as
dores da ambivalência que se sente em relação a uma terra natal vitimizada e
brutal ao mesmo tempo. A partir desta relação dilacerante com a ilha natal
nasce a escrita, tentativa perpétua de resgatar as memórias afetiva, cultural e
coletiva, para retomar os esquemas teóricos propostos por Régine Robin a
propósito da escrita e do exílio (VITIELLO citado por MATHIS, 2003,
p .282).
companhia da família e a escrita – “j'écris tout ce que je vois, tout ce que j'entends, tout
ce que je sens”, pois “tout. Tout, m’intéresse” afirma (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.81).
experimenta ao rever o país – “tiens, un oiseau traverse mon champs de vision. J’écris:
oiseau. Une mangue tombe j’écris: mangue” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.15). Em Pays
sans chapeau, assim como em Comment faire l'amour, o narrador está escrevendo um
romance que funciona como uma mise en abyme do romance que escreve Laferrière, a
história que lemos corresponde ao texto que escreve Vieux Os durante a viagem, no
quintal da casa materna, sob uma mangueira. Assim como no quadro de Matisse,
“Intérieur rouge”, que Vieux afirma admirar em Comment faire l'amour, um quadro é
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pintado dentro do quadro, nessas duas obras, um romance é escrito dentro do romance.
prendendo ao passado nem se fixando no futuro, esses três pólos estão, inevitavelmente,
Príncipe é uma volta no tempo, uma tentativa, no fundo frustrada, de fazê- lo parar. “Je
suis resté vingt ans en chemin” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.19), afirma Vieux, que
perdeu neste percurso a noção do tempo, e justamente por isso gostaria de reencontrar
tudo como antes. De fato, em diversos momentos do livro o autor tem a impressão de
que o tempo não passou no Haiti, sobretudo, nos espaços da cumplicidade familiar. Ele
reencontra a mãe com o mesmo sorriso, a mesma doçura e a mesma dor recolhida; assim
como tia Renée vê em Vieux Os o mesmo menino indefeso, de há vinte anos atrás.
inalterado; o sapateiro, por exemplo, que há anos trabalha no mesmo lugar, atrás do
87
vinte anos atrás. Assim, a passagem do tempo é mascarada – “sommes-nous em 1976 ou
em 1996” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.144), indaga o narrador, que afirma: “je reprends
ma vie au moment où je l’ai quittée. Je respire à plein poumons : libre dans la nuit à
que tudo está igual, que o tempo parou, este sentimento oscila, uma vez que também se
surpreende e se sente perdido diante das inevitáveis transformações pelas quais passou
que c’est que d’avoir passé près de vingt ans hors de son pays. On ne comprend plus les
realmente novo, mas impressiona; o calor também causa um certo incômodo, “mon
corps a vécu trop longtemps dans le froid du nord” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.36).
Mas o que mais o surpreende é a falta que todas essas coisas simples, e não
necessariamente boas, podiam lhe fazer : “cette poussière, les gens, la foule, le créole,
les odeurs de fritures, les mangues dans un arbre, les femmes, le ciel bleu infini, les cris
a idéia de que a literatura é fruto do encontro entre mundo vivido, mundo fantasiado e o
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mundo pensado. É o romance que melhor transmite, tanto na forma como no conteúdo,
a experiência do entre- lugar: entre a realidade e o sonho, a vida privada e a vida pública,
biografia.
Muitas questões movem o narrador neste retorno ao país natal: no que o Haiti”se
qui ont vécu trop longtemps à l’étranger comme des Haïtiens ?” (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.184). São estas entre outras perguntas que o romance busca responder.
Je suis là, devant cette table bancale, sous ce manguier, à tenter de parler une
fois de plus de mon rapport avec ce terrible pays, de ce qu’il est devenu, de ce
que je suis devenu, de ce que nous sommes devenus, de ce mouvement incessant
qui peu bien être trompeur et donner l’illusion d’une inquiétante immobilité
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.37).
O romance tem uma estrutura binária que alterna capítulos cujos títulos são
“País real” e “País sonhado” e cujas epígrafes são provérbios crioulos traduzidos,
“prends ton temps Vieux...Ici, le temps ne coûte rien” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.155).
A morte sempre iminente, antes por causa da ditadura, agora por causa da miséria e do
Haiti, mas, por falta de escolha, todos aprendem a sobreviver. Laferrière narra os
dramas pessoais dos haitianos que cruzam seu caminho, a dificuldade para sustentar e
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silence n’existe à Port-au-Prince qu’entre une heure et trois heures du
sonhado é o país do vodu, das superstições, das fantasias, dos mitos e das crendices
populares. É um país onde os deuses ainda circulam ao lado dos homens, onde o diabo
se parece com um amigo da família, onde o mal existe de fato e não é apenas um tema
On dirait que deux pays cheminent côte à côte, sans jamais se rencontrer. Un
petit peuple se débat le jour pour survivre. Et ce même pays n’est habité, la
nuit, que des dieux, des diables, d’hommes changés en bêtes. Le pays réel : la
lutte pour la survie. Et le pays rêvé : tous les phantasmes du peuple le plus
mégalomane de la planète (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.46-47).
Mas entre o país real e o país sonhado, entre o Haiti e o Quebec, entre a magia e a
Num país onde importa mais crer do que saber, o próprio autor se diz
profundamente marcado por esta crença no sobrenatural; assim, seu saber intelectual,
sua ironia, suas leituras, nada pode protegê- lo da fantasia; o imaginário o povoa e é isso
que traduzirá na escrita. Além das histórias, dos contos e dos provérbios crioulos que
sempre ouviu de sua avó, Laferrière conviveu com o vodu, com o catolicismo e com o
protestantismo desde a infância. O autor deixa entrever essas referências em suas obras.
C’est durant cette époque magnifique, mon enfance au coeur de la magie, que
ma sensibilité a été formée. Je ne discute pas la véracité de tels événements. Ce
sont des choses qui m’habitent profondement. Je peux toujours, le jour, em
parler avec um sourire amusé, mais je sais qu’il n’est pas de même la nuit
(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.209).
“País sem chapéu” é como se chama, no Haiti, o mundo dos mortos, porque nunca
90
Para muitos haitianos, como a avó do narrador, a morte é, por um lado, cercada de uma
aura de mistério e medo, por outro, é vista como uma continuação da vida. Um morto da
Quel que soit l’âge de la personne, quel que soit la cause de sa mort, c’est
toujours une histoire de diable. ‘On l’a mangé’ […] les morts ne quittent pas
les vivants, on fait comme s’ils y étaient parmi nous (LAFERRIÈRE, 1999 A,
p.201).
A fronteira que separa a vida e a morte é bastante tênue no romance, não há dicotomia –
“ici, il n’y a ni bons ni méchants, juste des morts” diz Marie (LAFERRIÈRE, 1999 A,
p.94). A afirmativa de que quase todos estão mortos no Haiti é repetida em diversos
momentos no romance: pela mãe, pelo pai (em uma lembrança do personagem), por
pessoas que Vieux encontra na rua, pelo vizinho, por intelectuais e pelo próprio
narrador: “le pays est devenu le plus grand cimetière du monde” (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.54).
C’est ainsi que Da me décrivait les gens qui vivaient dans l’au-delà, les yeux
très grands dans les visages osseux, et surtout cette fine poussière. L’au-delà.
Est-ce ici ou là-bas? Ici n’est-il déjà là-bas? C’est cette enquête que je mène
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.65).
Segundo Philippe, amigo de Vieux, não há saída para os haitianos: ou estão mortos ou
estão loucos, por causa do sol constante, da fome de poder e da falta de sexo (em função
Tu n’as pas vu ce terrible soleil? Il tape trop fort sur les crânes et il a fini par
nous rendre fous. Il n’y a pas d’arbres dans ce pays, et il n’y a pas d’eau non
plus. C’est un caillou au soleil. Nous sommes à la merci du soleil. Ce que les
gens ne savent pas, c’est que nous sommes devenus fous (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.184 -185).
Todos têm uma teoria para a “loucura” que invade o haitiano. Segundo Philippe, todo
haitiano é megalomaníaco e tem uma única ambição: “devenir président du pays peut-
91
être le plus pauvre du monde” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.186) ; já, na opinião do
narrador, todo haitiano tem um pouco de ditador e de Deus vodu em si ; “il n’y a pas de
solution tout nous pousse vers la folie et le désespoir” afirma Philippe (LAFERRIÈRE,
1999 A, p.184). O próprio pai do narrador enlouquece por achar que estavam todos
mortos no Haiti; o autor narra neste último romance, o único encontro que teve, doze
O retorno ao país natal e a visita ao país sem chapéu é, sem dúvida, uma tentativa de
compreender tudo isso. Que país é esse que produz loucos, mortos- vivos, megalomania
atrocidades?
intelectuais, artistas ou pessoas do povo. A mãe de Vieux Os morre de medo dos zumbis
- L’armée de zombis, finit-elle par murmurer. Ils sont des dizaines de milliers.
Les prêtres vaudou ont ratissé le pays du nord au sud, de l’est à ouest. Ils ont
ratissé tous les cimetières du pays. Ils ont réveillés tous les morts qui
dormaient du sommeil du juste […] (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.48).
92
- Les gens sont morts, conclut-elle, et on refuse de les laisser se reposer en
paix. Avant, le cimetière était le seul endroit sûr en Haïti. Maintenant je me
demande si on fait une bonne affaire en mourant dans ce pays (LAFERRIÈRE,
1999 A, p.50).
Existem tipos diferentes de zumbis, o zumbi cuja alma é controlada pelo feiticeiro, o
zumbi que é um morto-vivo e que pode ser escravizado e o zumbi que voltou à vida. No
imaginário popular, os zumbis são considerados ora dignos de piedade, ora perigosos e
ameaçadores. Tornar-se um zumbi pode ser também uma espécie de punição por certos
zumbis seriam vítimas dos houngans (pais de santo) que, através de uma droga, fazem
com que suas vítimas pareçam mortas – pois apesar da aparente paralisação das funções
O vodu – palavra de origem africana que significa espírito – é uma prática religiosa
bastante semelhante. Criado a partir de diferentes ritos africanos, o vodu, assim como o
candomblé, começou a ser praticado pelos escravos que não podiam exercitar
práticas religiosas dos colonizadores católicos. Esta prática religiosa sincrética tornou-se
uma forma de resistência à condição escrava e à opressão colonial, tendo em vista sua
espíritos que encontram equivalência nos santos católicos. Existe uma grande variedade
de loas, entre os quais estão Legba (corresponderia a Exú no candomblé), que tem a
amor sob todos os aspectos, espiritual ou carnal. Vieux Os tem o prazer, ou o desprazer,
93
de conhecer estes loas durante sua visita ao país sem chapéu. O vodu, assim como o
catolicismo, prega a proteção e a ajuda aos mais fracos, seja pelas pessoas próximas ou
pelos ancestrais mortos. O que se espera desta religião é o que se espera das religiões em
vingança, em síntese, o que o mundo real, freqüentemente, não pode oferecer. Tendo em
por trás da qual forças sobrenaturais, espirituais, vivem e exercem seu poder, protegendo
de Laferrière,
se estar em contato com “o outro lado”. Esta prática religiosa traduz fantasias coletivas,
94
estar em contato permanente com os deuses e com os mortos. Ora os zumbis são temidos
porque podem fazer o mal, ora são escravizados, explorados e dignos de piedade. Trata-
que o povo haitiano se orgulha de sua força, de ter sido a primeira república negra no
mundo, sofre com a situação de pobreza e de exploração que viveu e ainda vive.
dia e a noite, está presente em todo o romance. De dia, o exército americano é sinônimo
situação : “le jour, ce ne sont que des nègres mal equipés[...]mais la nuit...” afirma
Marie, “oui maman, je trouve cette division du travail parfaite. Le jour à l’Occident. La
uma crítica da terrível situação haitiana percebe que, apesar de todas as dificuldades, o
povo consegue, com esperteza, driblar a miséria e a fome, viver apesar de mortos, ou
melhor, tudo suportar porque já se está morto. “Si on était des êtres humains, continue-
t-il, vous croyez qu’on survivrait à cette famine, à tous ces tas d’immondice qu’on
trouve à tous les coins de rue ? ” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.54), diz um engraxate,
com quem Vieux Os conversa em um de seus passeios pela capital. A morte se mostra
uma saída para todos os males, inclusive para as humilhantes diferenças sociais; “os
95
mortos são mais felizes do que nós”, afirma uma mulher que o narrador encontra no
táxi.
Regardez les châteaux que les riches se font construire sur la montagne, alors
que nous nous enfonçons de plus en plus dans cette boue noire et puante. Je
dois respirer ça tous les jours. S’il n’y avait pas les enfants, il y a longtemps
que j’aurais mis fin à mes jours. D’ailleurs, je n’ai pas peur de mourir,
madame, dit-elle, s’adressant à ma mère…Les morts sont plus heureux que
nous (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.133).
narrativa irônica que Laferrière faz de Bombardopolis, cidade no norte do Haiti, cujos
habitantes só precisam comer de três em três meses, e que está sendo objeto de estudo
haitianos, com exceção de um lingüista belga que afirma ser a língua crioula a grande
- Mais je parle créole aussi! S’exclame Philippe sur un ton sarcastique. Alors
pourquoi je suis obligé de manger trois fois par jour ?
- Il paraît que le créole de Bombardopolis est le plus pur d’Haïti. L’accent
aussi. Je n’ai pas très bien compris, mais les types de la NASA ont pris des
notes durant toute son intervention. Le linguiste belge a expliqué que ces
hommes, les habitants de Bombardopolis, sont devenus, d’une certaine
manière, des plantes. Il a longuement expliqué comment la photosynthèse a
fonctionné dans ce cas-ci. Par une sorte d’accord total entre l’homme et la
nature… (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.169-170).
Philippe (o amigo mais rico de Vieux Os) conclui, ironicamente, que o crioulo e a
contra a fome : “dans moins de deux cents ans, le créole risque de devenir la langue
1999 A, p.170).
96
A volta ao Haiti é tão intensa que o narrador não se limita apenas a visitar o país
da mãe. Também não se limita a falar com intelectuais crédulos, como fez nas partes
intituladas “País sonhado”, onde inicia uma pesquisa para compreender todas estas
histórias de zumbis e mortos que ouve por toda parte. O que se observa em suas
exército de zumbis, é que todos narram esses episódios sobrenaturais com grande
naturalidade. Mas nada do que ouve é suficiente para Vieux Os; ele quer compreender
profundamente seu país, saber de onde vêm seus fantasmas e mitos, por isso continua a
viagem até o mundo dos mortos, le pays sans chapeau, para conhecer de perto os
deuses vodus que povoam o imaginário mítico do seu povo. Mas esse mergulho no
imaginário vodu não é feito com reverência; o narrador, ao contrário, mantém o mesmo
olhar curioso, por vezes, cético e irônico. Antes de partir, Vieux Os encontra um
poderoso feiticeiro, que vive entre os dois mundos, e que lhe propõe a chance de visitar
o mundo dos mortos. Assim, durante um sonho, esta porta lhe é aberta.
afirma Legba. Legba, segundo a tradição vodu, é o primeiro loa que se encontra ao
penetrar no outro mundo, aquele que abre caminho para a comunicação com os outros
loas. Ele é freqüentemente representado sob a aparência de São Pedro, que guarda as
97
chaves do paraíso. A primeira impressão do país sem chapéu surpreende pela
semelhança com o país real: a mesma aridez, a mesma poeira fina e branca, e alguns
burros.
Je continue mon chemin, l’œil aux aguets, m’attendant à voir à chaque pas
quelque chose d’inattendu, une forme mystérieuse quelconque. Rien de tout
cela, à part cette légère poussière blanche que soulève un petit vent coquin.
De temps en temps je croise un âne chargé de calebasses, mais rien d’autre
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.218).
diferença entre o que se vê e o que se esperava ver naquele lugar. A primeira loa com
quem fala é Marinette, uma adolescente brincalhona filha de Ogou, que o narrador vê
em seguida, estressado com a esposa Erzulie. Ogou, além de estar prestes a quebrar o
mais universal dos tabus, se casar com sua filha Marinette, é totalmente desmoralizado
por Erzulie:
Je dois te dire que, depuis que ce cher Ogou ne bande plus, je suis obligée de
trouver mes partenaires chez les mortels, et ils ne font pas le poids,
naturellement. C’est que je peux baiser facilement tout un mois sans m’arrêter
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.224).
Erzulie muitas vezes aparece sob a aparência da Virgem Maria, mas na crença vodu é
romance é quase uma caricatura, come lagarto, é tarada, muito sexy, um pouco
histérica, quer fazer sexo um mês seguido com o narrador, critica o desempenho sexual
de Ogou e admira Martin Luther King. O autor pinta, assim, um retrato bastante
Moi qui pensais tomber sur une pluie de formes étranges dans un monde bizarre,
un univers si puissant, si gorgé de symboles, si complexe [...]. Au lieu de ça, j’ai
à me mettre sous la dent les ricanements d’une déesse adolescente, et les
98
lamentations d’un père, supposément le terrible Ogou Ferraille, qui m’a plutôt
l’air d’un pauvre ouvrier pris jusqu’au cou des frustrations matrimoniales.
Étais-je ici pour entendre un dieu me raconter ses misères avec sa femme ? Et
surtout, est-ce avec ce ramassis de ragot petit bourgeois que le vaudou compte
faire face aux mystères du catholicisme ? Je ne veux pas le croire
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.222-223).
A ironia está no exagero e na semelhança com os homens. Estes seres que deveriam ser
um exemplo de sabedoria, força e coragem são, segundo Vieux, “des dieux de classe
deuses vodus não tem grandes diferenças do mundo real. Esta é a idéia fundamental da
obra: o mundo real e o sonhado estão entrelaçados, formam um todo complementar, por
isso mesmo o último capítulo se intitula “País real/País sonhado”, já que estes mundos
de um homem, assim como a vida de uma nação, precisa de sonhos e fantasmas para se
Nesta viagem ao mundo dos mortos, Laferrière ironiza também a reputação negativa e
os clichês que se criaram em torno do vodu.
Ce n’est pas avec ce ramassis d’anecdote terne, des clichés imbuvables que les
dieux du vaudou se feront une réputation internationale (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.230).
haitiano tem sobre sua cultura e sobre si mesmo, também questiona a ambivalente
representação que o negro, o Haiti e o vodu têm para o mundo. O humor e a ironia são,
nesse sentido, estratégias importantes – “ quand tout le monde fait de l’humour dans un
pays, c’est qu’il n’y a plus rien à faire. L’humour c’est l’affaire des desesperes”
99
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.194). Entre a morte, a loucura, o desespero, a crença
Laferrière fala do Haiti de diferentes lugares e é isso que torna Pays sans
chapeau uma obra tão fascinante, plural e enriquecedora. São três olhares diferentes: do
haitiano residente, que ainda sonha com seres enfeitiçados, que se identifica com as
tradições de seu país e que o percebe de dentro; do haitiano emigrante que viajou pelo
mundo, que é crítico, irônico, grande leitor, e que se surpreende com o que vê e, por
fim, do escritor que transita nestes dois mundos e que é capaz de uni- los e recriá- los em
sua narrativa, através da fantasia e da imaginação. Laferrière volta ao Haiti não para
mudá-lo – “je ne suis qu’un voyageur ”(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.150), mas para
100
4. ESCRITA MIGRANTE : MIGRAÇÕES IMAGINÀRIAS
movimento cultural da pós- modernidade, vem sendo elaborado pela crítica literária
foi e qual tem sido o seu papel na (re) elaboração identitária do Quebec contemporâneo?
quebequense não seriam possíveis sem a Revolução Tranqüila, movimento que atingiu
seu ápice nos anos 60 e gerou transformações irreversíveis no plano social, político e
católica para uma sociedade moderna, industrializada e laica. Em 1960 o partido Liberal
toma o poder ao eleger Jean Lesage como primeiro ministro da província, dando fim ao
101
que resultariam em uma verdadeira revolução cultural: a separação do Estado da Igreja;
coisas. Essas transformações serão fundamentais, pois embora o Quebec tenha tido,
após a segunda guerra, uma urbanização semelhante ao resto do Canadá, estava atrasado
em relação à educação, à saúde, à habitação e aos direitos sociais. Essa fase da história
quebequense marca seu momento de maior abertura para o mundo exterior, tanto em
De fato, o quebequense sempre sentiu que, por representar uma minoria cultural e
lingüística dentro de um país anglófono, sua identidade estava ameaçada e esse medo do
culturais da província.
quebequense era aquela produzida por escritores nascidos na província e que tratassem
102
movimentos pela independência começam a se organizar neste período), que estava em
jogo.
mesma enquanto uma sociedade plural. No que diz respeito ao Canadá, a partir da
diferentes grupos étnicos instalados no país. Sendo assim, ela se contrapunha à política
racialmente discriminatória praticada no país antes dos anos 60, que evitava a entrada
quebequense era, colocando em prática uma política de mosaico que não apagasse as
103
diferenças mais marcantes das culturas de origem, acima de tudo, integrar os imigrantes
à maioria francófona. O fluxo migratório, tendo começado há pelo menos três séculos,
não era algo novo na província – no século XIX a região recebeu muitos franceses,
diáspora inaugura, para a literatura haitiana, uma nova cena literária, pois a maioria dos
romances de autores haitianos escritos nesse período, e ainda hoje, foram produzidos,
Haiti.
Laferrière faz parte deste grupo de escritores que emigrou, vítima da violenta
repressão duvalierista – o autor narra com detalhes as razões de sua partida forçada
para o Quebec (em 1976) em Le Cris des oiseaux fous. Na opinião do autor 13 , essa
famílias foram destruídas, pois um milhão e meio de haitianos deixaram o país a partir
da segunda metade dos anos 60; por outro, foi isso que permitiu ao Haiti sair de sua
13
Divulgada em entrevista concedida a Isabelle Langlois em 2004 .
14
Segundo dados oficiais do site do governo do Quebec, o número de residentes permanentes admitidos
no Quebec na segunda metade da década de 90 foi de aproximadamente 30.000. Este número tem
aumentado sensivelmente nos últimos anos, passando de cerca de 29.000 em 1999 para cerca de 39.500
104
mesmos das décadas anteriores: garantir o crescimento demográfico, a perenidade da
quebequense, que durante séculos se ancorou na língua e na origem francesa, passa a ser
reavaliada e se amplia. É nesse momento que uma nova concepção do que seria o Outro
o ameríndio, à de 70, que valoriza a escrita fe minina e à de 80, que introduz o ponto de
cosmopolita de Montreal que inspira a última fase, à medida que a metrópole adquire o
críticos são unânimes em afirmar que esse encontro de culturas, sobretudo na região de
em 2003. Assim, a proporção de imigrantes passou de 15,4% em 1999 para 17,9% em 2003, sendo a
China e a França os países de origem de maior número de imigrantes. Dados ainda mais recentes mostram
que o número de imigrantes no segundo trimestre de 2007, de maioria magrebina, sul-americana e
européia, corresponde a aproximadamente 12000, volume superior ao mesmo período do ano anterior.
105
Montreal, contribuiu muito para a elaboração de um novo território imaginário. A
Montreal, onde se encontra, não por acaso, a maior parte das editoras quebequenses,
passa, assim, a ser a fonte de uma nova concepção da literatura quebequense – “Em
um tema estruturante, que motiva novas formas estéticas, lingüísticas e temáticas. Harel
Montreal, cidade onde Laferrière residiu por longos anos e para a qual voltou em 2002,
tem importância fundamental em sua obra e, sobretudo, em seu desejo de escrever. São
as experiências pelas ruas de Montreal, onde se depara com a diversidade cultural, com
15
Emile Ollivier nasceu em 1940 em Porto Príncipe e emigrou para o Canadá em 1964.
106
“Montréal se trouve au centre de mon désir incroyablement douloureux d’être écrivain”
revistas Dérives (1975), dirigida pelo poeta e ensaísta haitiano Jean Jonassaint,
Spirale (1979), Vice Versa (1983), fundada pelos italianos Lamberto Talissari e
Fulvio Cássia, e nas publicações da Maison d’Édition Guernica 16 , uma fértil reflexão
para acolher outras vozes. A questão que se colocava a princípio era de ordem
compreender e traduzir essa nova realidade social. Alguns termos, como “étnico”, são
culturas ?”, indaga Simon. O termo “migrante” acaba por se tornar unanimidade entre
os críticos.
16
A editora, fundada por Antonio D'Alfonso em 1979, tinha como ideologia a valorização da etnicidade e
publicava, em francês, inglês e italiano, autores canadenses de origem italiana. Em 1983 D'Alfonso cria a
antologia Quêtes, com Caccia e outros autores italianos que quisessem expressar sua etnicidade.
107
das problemáticas migratórias; a literatura do exílio, que pode tomar, de acordo
com o caso, a forma da biografia, do ensaio ou da narrativa de viagem; a
literatura diaspórica, obras produzidas por imigrantes em diferentes países, mas
que se ligam às instituições literárias de seus países de origem; a literatura
imigrante, corpus sócio-cultural transnacional dos escritores que viveram esta
experiência traumatizante, mas, freqüentemente, fértil da imigração e por
último, a literatura migrante, que se define por temas ligados aos
deslocamentos e hibridismos (NAJM, 2004, p.5).
É na revista Vice Versa que lemos pela primeira vez a expressão “escrita
imigrante”, muito usado entre 1976 e 1985. Berrouët-Oriol concebe, nesta primeira
imaginária. A revista Vice Versa – que publicava artigos em inglês, francês e italiano
e deve seu nome ao significado comum de movimento que a expressão evoca nas três
propostas:
[...] a nossa intervenção [é] sobre o terreno que representa um ponto de junção
de diversos universos culturais. Queremos investigar, queremos reconstituir,
queremos criticar, queremos rir, queremos imaginar; tudo isto através de um
modelo flexível, que pode levar tanto a marca do intelectual inspirado, do
imigrante recentemente desembarcado ou do quebequense de raiz (1ª edição
Vice-Versa, 1983).
108
Em 1985, a revista organiza e publica um colóquio, intitulado “Écrire la différence”,
que contou com a participação de escritores como Sherry Simon, Fulvio Caccia,
Antonio D'Alfonso e Marco Micone, Jean Jonassaint e Régine Robin, entre outros.
Esses debates foram de grande importância para o avanço das reflexões sobre as
colóquio afirma:
“transcultura” como conceito essencial que a revista Vice Versa contribuiu para o
voga no início do século passado, pressupõe um movimento de dar e receber e não uma
nos dois sentidos, o imigrante é influenciado, assimila a cultura do Outro, mas também
unicamente um conceito, mas uma filosofia de vida, um modo de olhar, sendo o Quebec
17
O termo transculturação foi criado em 1940 pelo cubano Fernando Ortiz ao estudar o desenvolvimento
etnocultural de Cuba.
109
um terreno fértil para a experiência transcultural, em função de suas múltiplas heranças
reafirmar sua contemporaneidade e mostrar que as discussões propostas pela revista nas
sociedade quebequense.
A revista Vice Versa abre as portas para o debate, mas é, sobretudo, através da
das pesquisas de Simon Harel18 , entre outros, que são iniciadas reflexões mais
sistema literário e no imaginário quebequense. O autor opta pelo termo “migrante”, que
segundo ele, englobaria um sentido estético, ao invés do termo “imigrante”, que tem um
18
Voleur de Parcours, escrito em 1989, faz uma análise da representação do estrangeiro na literatura quebequense.
Harel mostra como o cosmopolitismo literário contribui para uma revisão da identidade nacional e para a
construção de um discurso sobre a alteridade. O livro é considerado, por alguns críticos, uma continuação
da reflexão iniciada por Nepveu um ano antes em L’Écologie du réel.
110
transpasse e diálogo de culturas. Em síntese, o autor anuncia uma mudança de
paradigmas, que vai de uma literatura voltada para a cultura de origem a uma literatura
que se abre ao Outro. Outro crítico de importância para os estudos dos discursos
Ouellet, que analisa obras literárias de origens diversas, opta pela expressão “migrance”
si em outro, cria uma nova forma de se estar no mundo, mais aberta às diferentes
identidade.
19
Um programa de pesquisa subvencionado pelo Conseil de Recherches en Sciences Humaines du
Canada (CRSH) e que tem como objetivo principal o estudo de fenômenos identitários em contextos de
sociedades pós-coloniais e pós-industriais caracterizadas pela diversidade e hibridização cultural. Onze
de seus quatorze membros, dentre eles Ouellet, são membros do CELAT (Centre interuniversitaire
d’études sur les lettres, les arts et les traditions des francophones em Amérique du Nord).
111
Para Ouellet, essa “passagem ao outro” pressupõe um movimento de transgressão que
passa pela descoberta do Outro e se revela através de uma narrativa que revisita o
passado, redescobre o presente e tem o “eu” não unicamente como narrador, mas como
debate gera polêmicas, toma constantemente novos rumos e ganha novos críticos e
adeptos. Muitos são os paradoxos e os perigos apontados tanto por parte da crítica,
estrangeira em uma categoria e problemática únicas. Seria, nesse caso, uma contradição
subjetivo, se descobre plural, em função de sua etnia e origem. Caccia, por exemplo,
embora não questione as boas intenções dos que a conceberam, que desejavam o
reconhecimento dos autores imigrantes, antes marginalizados, acredita que esta tentativa
112
pode se tornar uma armadilha quando se reconhece mais a categoria “migrante” do que
a obra. Nepveu, ainda nos anos 80, em L’écologie du réel, previa os perigos que corria o
conceito: “há o perigo do clichê, da escrita migrante muito pós- moderna ; perigo de um
atento para não fazer do “escritor migrante” “uma posição, um estatuto, uma identidade,
problemática única que condena ao gueto étnico, que muitos autores de origem
desloca estereótipos e clichês. O autor detesta, nesse sentido, a idéia de ser visto e ver o
Comment le goût se forme-t-il avec un goût unique? C’est là qui arrivent ces
guides des portes étroites qui nous indiquent d’autres passages. Des passages
qui débouchent sur des univers différents [...] Il est impossible de comprendre
la notion de différence si on se nourrit tous intellectuellement à la même
source [...] C’est que nous sommes en guerre contre l’uniformisation
(LAFERRIÈRE, 2006, p.15).
com autores de origem estrangeira residentes no Quebec, Ollivier afirma que escrever
não tem limites, “é como jogar uma garrafa ao mar. Eu acredito que o escritor é um
113
mediador de sentidos, de imagens novas e de palavras. Ele é um tradutor ” (OLLIVIER,
2001, p.60). O escritor judeu de orige m iraquiana Naïm Kattan, também em entrevista
para o livro Passeurs Culturels, diz que toda escrita é, por excelência, migrante, assim
como toda cultura e toda língua não podem ser propriedade de ninguém – “eu acredito
Por sua vez, Regine Robin, nascida na França, de pais judeus poloneses, afirma no
como única temática o exílio e o resgate do passado, seria uma contradição com a
114
imigração, o estrangeiro, o passado, a viagem, a memória, etc., aparecem com
iniciática, por exemplo, retoma os grandes mitos universais que narram a aventura
humana – os desafios, a travessia perigosa e inevitável daquele que deseja uma nova
115
A necessidade e o desejo de escrever sobre o passado e o desenraizamento também não
romance torna-se, de uma forma ou de outra, uma busca do tempo perdido, individual ou
coletivamente.
Não conheço nenhum verdadeiro romancista cuja ambição não tenha sido
tentar apreender a ligação entre o momento presente e o passado mais remoto,
entre o instante presente e as profundezas abissais do tempo, da tradição, dos
mitos e da cultura (OLLIVIER, 1984, p.116).
poderia me perguntar por que razão o conceito foi tão celebrado e valorizado no Quebec
dos últimos anos explicam apenas em parte o evidente interesse do quebequense pelas
invade, inevitavelmente. O italiano Caccia, por exemplo, afirma partilhar com o escritor
autóctone “este ecletismo das origens, esta flutuação do sentido, que surpreende sempre
ex-colonizador francês, que oscila entre identificação e rejeição, também contribui para
116
cultura francesa, que “mantém aberta a ferida original, que permite reconhecer o outro,
uma língua (diferente do francês da França) cheia de empréstimos (do inglês, das
línguas ameríndias e mais recentemente das diversas línguas faladas pelas comunidades
Esses sentimentos são abordados nos poemas Speak White (1968) da canadense Michèle
Lalonde e Speak What (2001) de Micone, que foi uma espécie de resposta ao poema de
Lalonde. Speak White20 – expressão usada como insulto pelos canadenses de língua
inglesa quando os canadenses francófonos falavam sua língua em público – foi escrito a
fim de defender e mostrar a opressão sofrida pela língua francesa no Quebec. Speak
What, em contrapartida, fala da situação dos imigrantes que experimentam, assim como
20
A expressão era dirigida originalmente aos negros que deveriam usar a língua do colonizador branco.
117
os quebequenses, um sentimento de desconsideração e medo do apagamento de suas
línguas e culturas de origem. Micone procura em Speak What dar voz às diversas
imigrante, pois, assim como o segundo, se reconhece Outro, tem uma ligação profunda
com o passado, uma preocupação com a identidade plural, um imaginário povoado por
nacional. Entretanto, para que um efetivo diálogo com o Outro se estabeleça, é preciso
grande parte nascidos na própria província, que, diferentemente dos autores que
obras “migrantes”), têm uma outra percepção da imigração. Talvez por não terem
118
diferenças étnicas e culturais, estes jovens escritores trazem um novo olhar e uma nova
abordagem literária. Por outro lado, também é preciso repensar a forma de se considerar
hoje os autores tidos "migrantes” de grande visibilidade como Dany Laferriere, Émile
Ollivier, Régine Robin, Naïm Kattan, Ying Chen, Marco Micone, Sérgio Kokis, entre
a cidade de Montreal tão sua quanto Porto Príncipe, é um homem da mídia: cronista em
quebequense. Torna-se, assim, distante o tempo em que estes autores eram excluídos
pela instituição literária e a urgência que se tinha de situar e nomear suas produções
literárias. Por fim, para que as discussões sobre a alteridade e a pluralidade se ampliem,
ao mundo fechado (Quebec), do mundo do calor ao mundo do frio, do mundo dos vivos
119
mundo da adolescência. “Je vivais tranquillement la fin d’une très longue enfance. Tout
Dans mes livres, on scrute à la loupe ce qui vient d’Haïti [...] Les chemins sont
tous tracés pour vous définir, alors que le choc culturel dont on voudrait
m’entendre parler, ce n’est pas en quittant Port-au-Prince que je l’ai vécu, c’est
en sortant de l’enfance (LAFERRIÈRE citado por CHOUINARD, 1999).
deusa do amor vodu, reaparece. O narrador também faz referências a outros romances
conceito de “escrita migrante” significa, nesse sentido, expandi- lo, abri- lo para as mais
textos (de origens diversas) e não autores. O “texto migrante” passa, deste modo, a ser
120
não unicamente como a narrativa do encontro entre diferentes etnias, mas entre
outro, mas entre diferentes espaços imaginários. Em síntese, deixa de existir em função
de uma imposição, que se define em nome da origem, mas em função de uma escolha,
migrante. Proponho, por fim, receber o “texto migrante” como uma forma de tradução
liberdade.
americana” devido ao seu tom provocador e a sua ironia mordaz, é o que melhor traduz
uma avalanche de citações de livros, autores, músicos, músicas e lugares, das mais
resultados deste diálogo cultural. Laferrière procura, nesse sentido, construir identidades
121
O romance narra um período da vida, um verão extremamente quente, de Vieux e
dividem um quarto e sala em uma região popular de Montreal. Bouba passa boa parte de
seu tempo deitado em um divã depenado – “boit, lit, mange, médite et baise dessus”
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.12) – lendo e ouvindo jazz, enquanto Vieux está escrevendo
preconceito racial –, os personagens estão sempre às voltas com jovens brancas, ricas,
anglófonas, belas, que se deixam facilmente seduzir e estão sempre prontas para servi-
los. Uma coleção de “Miz” (Miz Sophisticated Lady, Miz Punk, Miz Snob, Miz Mystic,
Miz Littérature, etc.) passa pela vida do narrador, “filles aux joues roses et aux cheveux
blonds” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.19). Miz Littérature, sua companhia mais constante,
“(...) a une famille importante, un avenir, de la vertu, une solide culture, une
connaissance exacte de la poésie élisabéthaine et même, elle est membre d’un club
122
na instituição literária nacional, os debates sobre a transcultura e o surgimento da
“escrita migrante”. Laferrière chega em Montreal em 1976, às vésperas das eleições que
lutas pela independência, que Laferrière tem seus primeiros contatos com o Quebec. O
autor faz, inclusive, rápida menção no romance à crise de outubro de 197022 , iniciada
nacionalistas sustentadas pelo PQ. Nesse sentido, a década de 80 foi, como mostrei, de
na língua e na origem francesa, passa a ser reavaliada e se amplia. Há neste período uma
maior abertura para as vozes estrangeiras, uma série de artigos sobre as obras migrantes
e acerca do racismo e da xenofobia são publicados. Comment faire l’amour nasce neste
21
Em outubro de 1967, René Lévesque deixa o Partido Liberal do Québec, em função de suas
convicções, julgadas muito nacionalistas, para fundar, no ano seguinte, o Partido Quebequense (PQ). O
PQ ganha as eleições para o governo do Quebec em 1976, tendo Lévesque como primeiro ministro, e se
engaja na luta pela realização de um plebiscito pela separação da província do resto do Canadá.
22
Em outubro de 1970, o Québec vive a maior crise política de sua história moderna : a Crise de
Outubro. O grupo armado Le Front de libération du Québec (FLQ), seqüestra no dia 5 de outubro de
1970, o diplomata britânico no Canadá James Richard Cross e o ministro do trabalho quebequense, Pierre
Laporte, cinco dias depois. Uma lei com medidas de guerra é instaurada pelo primeiro ministro Pierre
Elliott Trudeau.
123
de reconhecimento, Laferrière descreve o percurso de uma geração de escritores que,
embora tenha imigrado por diferentes razões, certamente partilhou os mesmos desejos e
motivações do alter ego de Laferrière – sonho de inserir-se como escritor e como sujeito
e de ter uma recepção positiva e inteligente de sua literatura. Laferrière descreve, nesse
sentido, um sonho do narrador (de certa forma premonitório), que mais se assemelha a
uma fabulação consciente, onde se torna um escritor de sucesso. Vieux fantasia a bem
ela depois do sucesso de Comment faire l’amour). O narrador Vieux, em sua fantasia,
também recebe artigos elogiosos – que parecem dar conta com bastante precisão das
23
Esteve no ar de 1979 a 1983 e foi o primeiro programa de entrevistas apresentado por uma mulher no
Quebec. Bombardier entrevistou no programa personalidades como o primeiro ministro do Canadá Pierre
Elliott Trudeau, o escritor Georges Simenon, o presidente da França Valéry Giscard d'Estaing, bem como
o seu sucessor François Mitterrand.
24
Jornalista, escritora, produtora e apresentadora de televisão, Denise Bombardier inspira, ao mesmo
tempo, admiração e críticas. Admiração por ter trabalhado por mais de trinta anos para o canal de
televisão Radio-Canada e críticas por ter um posicionamento de direita, enquanto jornalista.
124
actuellement en anglais et compte en tirer une pièce : NÈGROVILLE
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.153-154).
Marcotte certamente não é citado por acaso, suas reflexões sobre os caminhos da
Je n’ai jamais rien lu d’aussi fort, d’aussi neuf, d’aussi évident. C’est le plus
terrible portrait de Montréal que j’ai eu sous les yeux depuis des années. Si ce
que ce jeune homme dit est vrai, alors notre libéralisme est la pire saloperie
qu’il y a (ce dont je me doutais bien). Et Pierre Vallière, lui, clame sur cinq
colonnes dans La Presse: « VOICI, ENFIN, LES NÈGRES NOIRS D’
AMÈRIQUE » (LAFERRRIÈRE, 2002 A, p.151).
Com um olhar crítico e atento ao que lhe parece Outro, novo ou ambíguo, Vieux pinta,
terrível”, mas, quem sabe, o mais irônico e paradoxal. Comment faire l’amour propõe,
cultural e do prazer em ser migrante na cosmopolita Montreal, Laferrière opta por não
125
tratam a questão de forma irônica, negando ao interlocutor (e ao leitor) a chance de
esclarecer a dúvida. Em mais de uma situação, Vieux reage à pergunta, que considera
similar ironia, escolhendo, a fim de seduzir uma jovem branca, o Harlem, bairro- fetiche
Em outra ocasião escolhe aleatoriamente um país africano, como suposta origem, fazendo
126
O narrador, mesmo em uma reflexão solitária, aborda a questão da origem de maneira
vaga: “je pense à mon village au bout du monde. A tous les Nègres partis pour la richesse
chez les blancs et qui sont revenus bredouilles” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.48). Ao
negar, ironizar ou desconsiderar este aspecto de sua identidade, o que o narrador procura
fazer é ser investido de um olhar multifocal, que ultrapasse as noções de origem e “raça”,
prendendo a oposições como o país de origem versus o país de chegada. Comment faire
dividido entre as diferentes culturas que compõem seu imaginário, e coloca em cena
passado perdido que os exilaria em um mundo muitas vezes irreal, os jovens imigrantes
cultura universal e de uma Montreal plural, eclética e cheia de signos. Vieux e Bouba
possuem, no plano pessoal, uma vasta gama de interesses, são amantes de música e
das Obras Completas de Freud. É leitor assíduo deste último e, ironicamente, pratica a
cura pelo sono, não pelo sonho. A teoria psicanalítica, advento marcante da cultura
“espiritualizada” de Bouba.
Bouba est affalé sur le Divan dans sa pose habituelle (couché sur le côté
gauche, face à la Mecque) à siroter du thé de Shanghai tout en feuilletant un
bouquin de Freud. Comme Bouba est complètement toqué de jazz et qu’il ne
reconnaît qu’un gourou (Allah est grand et Freud son prophète), ça ne lui a
pas pris de temps à bricoler cette thèse complexe et sophistiquée où, au bout
127
du compte, Sigmund Freud devient l’inventeur du jazz (LAFERRIÈRE, 2002
A, p.13).
É esta jocosa e estranha combinação que compõe o universo do personagem. Vieux, por
sua vez, vive às voltas com a escrita de seu romance e a leitura de uma vasta coleção de
livros. Sua narrativa, seu olhar para o mundo é intertextual e grande parte de seus
comentários e reflexões são permeados por alusões à literatura. Leitor voraz, faz
americanos Hemingway, Miller, Bukowski, Jong, T. Capote, Julien Green, Mario Puzo,
franceses Proust, Gide, Apollinaire, Yourcenar, Duras, Collete, St. John-Perse, Villon;
o Quebec e o Haiti), bem como aos cânones da literatura ocidental. Há, por outro lado,
128
frequentemente associados a este continente. Vieux é um homem ocidental, mas é,
acima de tudo, um grande leitor e, como para todo grande leitor, a literatura jamais é
sinônimo de assimilação passiva. Vieux lê, por exemplo, Gide, seu diário de viagem
Retour du Tchad, sem perder o olhar crítico, diz que o que impressionou Gide foi o
cheiro, um cheiro de folhas, "LE NÈGRE EST DU RÈGNE VÉGÉTAL” ironiza, “les
blancs oublient toujours qu’ils ont, eux aussi, une odeur”(LAFERRIÈRE, 2002 A,
ocidental, por outro, usa a ironia como grande aliada – “un Nègre qui lit, c’est le
eu, finalement, un sens. C’est vrai, l’Occident a pillé l’Afrique, mais LE NEGRE EST
central de Comment faire l’amour: além desta evidente paixão pela leitura, o narrador é
um escritor, às voltas com a criação de seu primeiro romance, tem diversas discussões
sobre literatura, interpreta (lê) o mundo a partir de suas leituras e não por acaso sua
amante mais constante é apelidada por ele de Miz LITTÉRATURE. Trata-se de uma
obra metaficcional, que fala sobre o processo de escrita, sobre a literatura e suas
influências.
procedências está presente não apenas na vida pessoal de Vieux e Bouba, mas pelas
ruas e casas da babélica Montreal. À medida que a leitura avança, Montreal também vai
se tornando um personagem do romance, Vieux e Bouba vêm e vão pelas ruas, bares,
boates, praças, ônibus, metrôs, apartamentos (de todos os estilos) da cidade: rue Saint
Denis, Ontário, Sainte Catherine, Carré Saint-Louis, Métro Place des Arts, Bus 80, rue
129
Laurier, Avenue du Parc, Bar Isaza, Croix du Mont Royal, etc.. Montreal desfila sob os
olhos do leitor menos francesa e mais multicultural, híbrida, pós- moderna e paradoxal.
conversas, encontros, sonhos, o narrador apresenta seu olhar, sua versão, da cidade. O
leitor, assim como um voyeur, entra nas casas, nos bares, observa as estantes de livros,
babel, fragmentado e marcado por mesclas interculturais. Bar Isaza: público: negros e
endereço: 3670, rue Saint Denis; música: jazz; bebida: vinho barato; atividades:
literatura, música e sexo; vista: para a cruz do Mont- Royal; aluguel: 120 dólares. Nas
Une chronique de ma chambre au 3670, rue saint Denis (description faite avec
l'accord de ma vieille Remington 22).
J'écris: LIT
Je vois: matelas poisseux, drap crasseux, sommier grinçant, divan gondolé.
Je pense: dormir (Bouba dort douze heures d'affilée), baiser (Miz Sophisticated
Lady), rêvasser au lit avec Miz littérature, écrire au lit le « Paradis du
dragueur nègre », lire au lit (Miller, Cendras, Bukowski) (LAFERRIÈRE,
2002 A, p.106).
universo cultural que vai muito além do nacional, e com o qual, eventualmente, se
daiquiri; livros: eróticos; editor: J.J. Pauvert, escritores: Miller, Lucien de Samosate,
L’Aretin, Rachilde, Octave Mirabeau, autores que têm em comum a queda pela sátira
e pela transgressão; fotos : de gatos famosos (de Malraux, Céline, Cocteau, Colette,
130
etc); tema de conversa: a fome e os gatos. Miz Littérature: música: Roy Orbison, Men at
Work, Simon and Garfunkel, Furey; bebida : cherry; pintores: Pieter Brueghel, Utamaro
Kitagawa, Piranèse, Hokusai Holbein; fotos: Virginia Wolf; fotógrafa: Gisele Freund.
Miz Mystic: endereço: Park Avenue; fotos: do guru indiano Maharishi e de outros
iluminados; música: hindu, “la musique sacrée des plantes de l’Inde orientale”
de Miz Mystic e Miz Littérature, por exemplo, Vieux, entra, curiosamente, mais em
contato com a cultura oriental do que com a quebequense, ele observa os quadros dos
pintores japoneses Hokusai e Kitagawa, ouve as músicas da Índia Oriental, toma chá de
Shangai, observa as fotos do guru indiano Maharishi, entre outras coisas. Miz Snob:
Marguerite Duras; pintor: Chagall; escultor: Dahomey; música: Cohen, Dylan, Rampal;
- As-tu lu Burroughs?
- Oui, dans le genre, je préfère Corso. [...]
- Junkie, ça t’a plu?
Miz Snob aime citer des noms.
- Pas mal. Je préfère Le festin nu.
- Je trouve ça un peu trop direct et ça vaut pas grand-chose à
côté du Journal de De Quincey.
Rampal, au fond c’est de la merde. Je m’en fous
(LAFERRRIÈRE, 2002 A, p.118).
Vieux, ao contrário das expectativas, parece ter coisas em comum com a “esnobe”
amiga. Além de gostar de citar nomes, também parece conhecer e se identificar com os
131
“autobigrafia americana” como um todo) está em busca de movimento, seja um
da escrita.
Au "d'où viens-tu?" qui pose la question de l'origine, je réponds plutôt par "où
veux-tu aller?", je pose la question du destin. Mais je crois quand même que la
réponse est quelque part entre les deux, dans ce que Montaigne appelle le
passage. C'est le mouvement qui comp te (LAFERRIÈRE, 2008).
Além do diálogo com Miz Snob sobre Burroughs e Corso, Vieux faz alusão a um bar
(que freqüenta) chamado Les Clochards Célestes, nome da uma obra de Jack Kerouac,
um dos mais importantes escritores da geração beatnik, e tem certa “obsessão” por
Henry Miller, um dos precursores do movimento. Miller é um dos nomes mais citados
pelo narrador – Vieux lê Miller, “il faut lire Miller en été... » (LAFERRIÈRE, 2002 A,
p. 111), sonha com Miller, observa os leitores de Miller, cita supostas frases ditas por
Miller, "Miller dit qu'il n'y a rien de mieux que faire l'amour à midi" (LAFERRIÈRE,
Montreal.
Je n'en crois pas mes yeux. Miller assis tranquillement à boire une Molson.
Comme ça. Henry Miller. Miller, vieille branche. Pas croyable. Je dois rêver.
Je délire. Ça doit être la faim. Je me pince. Encore là. Le Miller. [...] Une
sirène de police. On ramasse un type en sang. C'est Bukowski. BUKOWSKI
EST DANS LA MERDE JUSQU'AU COU (LAFERRIÈRE, 2002 A, P.107).
Em suas entrevistas, Laferrière costuma confessar sua identificação com o estilo direto,
duro, pungente e ao mesmo tempo terno de Bukowski – e embora não seja considerado
literatura beatnik.
132
Je savais de quoi parlait ce Bukowski qui vivait dans une chambre crasseuse de
Los Angeles. J’ignorais qu’on pouvait écrire ainsi - avec un tel naturel. Il faut
toute une vie de travail pour atteindre cette simplicité. Faites gaffe, car rien n’est
plus subtile que ce style en coup de poing qui n’ignore pas la tendresse
(LAFERRIÈRE, 2007C).
personagens de Comment faire l’amour são típicos anti-heróis, deslocados, passam seu
tempo filosofando, lendo, bebendo, ouvindo jazz e fazendo sexo, enfim, à margem do
sistema ou, dependendo do ponto de vista, como Bukowski no sonho de Vieux, “dans la
amigas budistas e hinduístas, se interessa pelo Kama Sutra, pela arte assíria e tem a
133
Boub(d)a, que vive deitado “meditando” , é ironicamente apelidado por Vieux de
maintenant couché sur le Divan comme s’il était le Dalaï-lama du carré Saint-
freqüentemente versículos das suratas do livro sagrado –, suas citações são muitas vezes
irônicas ou vazias de sentido. Vieux me nciona, por exemplo, o Alcorão ao matar uma
mosca – “La mouche aspirée, file droit vers un monde meilleur. (“Assurément, j’en jure
par la lune”, Sourate LXXIV, 35). Adieu, Mouche" (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.29) – ou
ao fazer sexo – “le cœur de mon sexe jubile comme un poisson dans l’eau. Le Coran
p.80). Em seus comentários o narrador também não deixa de “blasfemar” : “J’ai rendez-
vous sur Prince-Arthur avec CL. Sur Prince-Arthur, mais où ? Salaud d’Allah”
tom: “Je vois cette saleté de Croix dans l’encadrement de ma fenêtre” (LAFERRIÈRE,
2002 A, p.109), ao se referir à cruz do Mont Royal. Em outro momento, durante o sexo,
compara sua amante inglesa a Santa Teresa de Lisieux e cita uma passagem do Cântico
dos Cânticos (declaração de amor do rei Salomão à noiva Sulamita) que muitos
Ses yeux sont tournés vers l’intérieur (elle me rappelle cette image de mon
enfance d’une sainte Thérèse de Lisieux en extase). Son cou cassé repose sur
mon épaule gauche (« son bras gauche est sous ma tête et sa droite m’étreint »,
Les cantiques des cantiques). Pas un cri. Communication non verbale. Baiser.
Baiser. Baiser. [...] elle commence à râler une sourate personnelle
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.80).
134
Assim, as alusões religiosas se mesclam e se fundem sem hierarquias, Alá, Santa Teresa
Essa falta de hierarquia revela algo sobre a forma que Laferrière escolheu para compor
preconceitos culturais. Citações como estas, sem sentido, irrelevantes (ou simplesmente
hábito, o leitor desavisado. Neste jogo intertextual, o narrador mostra que nem sempre é
preciso levá-lo a sério, ele próprio dá a pista –“j’avais laissé entendre que Virginia
Woolf valait bien Yeats ou une bêtise de ce genre" (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.26).
Vieux (assim como Miz Snob) gosta de citar nomes, mas o faz, muitas vezes, pelo
epígrafe) – que reduzia o negro a um objeto, proibia sua relação sexual com o branco,
seu aprendizado da leitura e da escrita, entre outras coisas. O narrador também cita os
J’écris: JAZZ.
j’écoute Coltrane, Parker, Ellington, Fitzgerald, Smith, Holiday, Art Tatum,
Miles Davis, B.B. King, Bix Beiderbecke, Jelly Roll Morton, Armstrong, T.S.
Monk, Fats Waller, Lester Yong, John Lee Hooker, Coleman, Hawkins et Cosy
Cole (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.109).
135
O jazz é a trilha sonora do texto, paira no ar como a marca de uma história que não se
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.13), às suas raízes negras, “et ça fait un Nègre nostalgique”
Entre esses diferentes autores (e abordagens literárias), Vieux termina optando pela
Richard Wright e James Baldwin, também citados. Esta escolha não é anódina, a obra de
Himes e o próprio Himes, filho de pai negro e mãe branca, traz em si a idéia da mistura
étnica. Himes, assim como Laferrière em seus romances que se passam na América do
Norte, explora os clichês do negro sexual e sua relação com a branca, compreendendo a
relação inter-racial a partir das relações de poder e dos desejos de vingança que a
encobrem.
submissa e dócil, entre a alta e a baixa estima, entre a passividade e a irreverência, que de
136
alguma forma, abalam as certezas quanto ao significante Nègre. Os personagens de
faire servir par une Anglaise (Allah est grand). Je suis comblé. Le monde s’ouvre enfin à
“Au fond” afirma Vieux, “le Nègre n’est qu’un pétard mouillé” (LAFERRIÈRE, 2002
negro ou branco.
tipicamente humanas.
137
negro. Enfim, entre Freud e Alá, entre um chá chinês e uma estátua egípcia, entre Meca
ou cínico, o narrador opta pela acumulação. Não há menção, por parte dos personagens,
Laferrière proclama o direito à diferença, e assim, elabora, com muita liberdade, sua
138
5. DESFIANDO AS TEIAS INVISÍVEIS DA DIFERENÇA
não- igual? Em algum momento da História, esse olhar foi isento do desejo de dominar?
imaginá-lo inferior, porque diferente de nós: não chega nem a ser um homem, e, se for
homem, é um bárbaro; se não fala a nossa língua, é porque não fala língua nenhuma
superioridade são práticas comuns, tendo em vista a dificuldade que os homens têm em
“perceber a identidade humana dos outros, isto é, admiti- los, ao mesmo tempo, como
139
que se define exclusivamente por oposição. O grupo de referência, geralmente
privilegiadas por Laferrière para narrar o encontro com o Outro, em outras palavras, os
caminhos trilhados por ele a fim de desfiar (desafiar) as teias invisíveis da diferença.
Ao afirmar que o que mais lhe interessa é narrar, olhar, desvendar e “démonter ce
système”, Laferrière fala de uma (sua) concepção de literatura, que procura desmascarar
inverso, ou seja, da desconstrução das tramas dos estereótipos, dos clichês, que
aprisionam homens e culturas. Para ele, o homem está freqüentemente imerso em uma
140
representações, freqüentemente maniqueístas, que aumentam demasiadamente as
sobre os homens e os grupos sociais ou étnicos. Ele é, segundo Bhabha, “uma forma de
conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já
conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (BHABHA, 1998, p.106), seu
maior paradoxo está nesta contradição: pretende traduzir verdades, mas deve reafirmá-
las exaustivamente para que pareçam naturais. É a força da ambivalência que, segundo
(TODOROV, 1999, p.59), afirma Todorov. Usar a cor como principal significante da
mas para que seja efetivamente assimilado é preciso associá-lo a uma vasta rede de
significantes.
significantes, que determinará a imagem que este terá de si mesmo. Ou seja, todo ser
141
humano é sobredeterminado por uma cadeia de significantes que o constrói e determina.
Bhabha, “nega uma identidade original ou uma singularidade aos objetos da diferença
Antes de poder dizer ‘noite e dia’, explica Lacan, a noite e o dia não existem.
Não há nada além de variações de luz. Uma novidade absoluta, total, surge
quando se introduzem no mundo os significantes ‘noite e dia’. A própria
experiência se estrutura a partir do significante que engendra a oposição como
começo absoluto (MILLER, 1987, p.136).
142
Nas palavras de Homi Bhabha, é, justamente, através de uma “estrutura de cisão e
sujeito e da identidade (unificada) enquanto uma fantasia, um discurso, uma ficção, uma
maneira que o sujeito ou o grupo social encontra para se afirmar e ter a ilusão da
possível pela identificação. Lacan dá ênfase a esta idéia em sua teoria do “estádio do
espelho”, onde afirma que o “eu” se forma a partir da projeção especular em um outro,
ou seja, o ego da criança constitui-se a partir do seu semelhante (ego especular) – o “eu
se confunde com esta imagem que o forma e o aliena, a captação especular abole o
sujeito no outro” (LAPLANCHE, 1992, p.177). Para Lacan, a identidade da criança não
se forma sozinha, no interior de seu ser, mas, necessariamente, a partir do contato com
um outro, mesmo que esse outro seja sua própria imagem refletida. Assim, a auto-
diferentemente do animal que nasce com uma bagagem de instinto que lhe
permite uma relativa autonomia desde o nascimento, o homenzinho é um
parasita que não pode sobreviver sem a presença de um outro (GRACCHUS,
1986 , p.136).
Segundo Homi Bhabha, é justamente essa fa lta – de uma auto- imagem totalizante – que
143
sujeito só experimenta a necessidade de criar uma imagem, ou melhor, uma
uma presença” (BHABHA, 1998, p.90) – que seria a ilusão de plenitude, da fusão
completa com a mãe. De acordo com Lacan, essa projeção necessária no outro inaugura
Sem ela o sujeito seria auto-referente, não sairia do narcisismo primário, já que a
reconhece pela primeira vez como um outro) e do outro através de si. O ego nasce,
assim, dessa confusão entre o “eu” e o outro. É essa identificação primária (instantânea)
quais o sujeito deve passar durante a vida. Adulto, o homem só poderá reconhecer sua
que tem sobre si. O fato do homem só se constituir como alteridade em relação ao
desgraça, pois o sujeito que se identifica com o outro é dele eternamente “escravo”. É
da identificação com um Outro, do olhar que este Outro lhe impõe, e, finalmente, do
144
romanesca e com a idéia de que a obra autobiográfica nasce de um único olhar de si
para si mesmo.
especular em um outro. O contraponto entre sujeitos, mas também entre culturas, raças,
classes, sexos, subjetividades, está presente em todas as obras. Nos romances do ciclo
americano há o inevitável olhar que transita entre o país de origem e o de chegada, o sul
dominador e o dominado. Já nos romances do ciclo haitiano, esse confronto pode ser
percebido em outra medida, entre o poder (do governo ditatorial) e o povo, entre os
ricos (minoria no Haiti) e os pobres, entre pais e filhos (conflito de gerações), entre a
Vous savez, c'est une société très dure en Haïti à cause de l'écart entre les
riches et les pauvres. Toute l'Amérique latine est un peu comme cela; les gens
sont d'une violence inouïe face aux autres. Les inférieurs sont écrasés, les
domestiques sont humiliés. Les riches sont d'une arrogance absolue
(LAFERRIÈRE, 1997).
Seja pela diferença de cor, do credo ou da classe social, o sujeito que foi excluído pela
não semelha nça almejará, com freqüência, se afirmar no plano comparativo. Segundo
Eurídice Figueiredo,
145
O encontro com o Outro (e a representação da diferença) na “autobiografia
americana” pode ser observado a partir das seguintes estratégias (as quatro atividades
primeiro contado com o mundo, que motiva desejos, afetos e medos, que descortina o
novo e reavalia antigo; a leitura, prática solitária, que simboliza a apropriação cultural
metamorfoseado.
imprevisíveis nuances, para narrar esses encontros com o diverso. Ela poderia ser
homens e deuses –; estas dessemelhanças motivam, por sua vez, o desejo, o fascínio ou
25
Não haverá no capítulo uma seção específica para tratar dos temas da leitura e da escrita, pois eles
além de terem sido desenvolvidos em diversos momentos da tese (sobretudo nos tópicos 2.6 e 4.1), serão
retomados sob novas perspectivas e mais detalhadamente na conclusão intitulada “A literatura – uma
viagem inesgotável e sem fronteriras”.
146
sempre renovada do Outro e do “eu”. Trata-se de um movimento cíclico que reaparece
Laferrière para uma entrevista no café “Les Gâteries”, na rua Saint Denis (rua fetiche do
no início de sua carreira, quando ainda escrevia Paradis du Dragueur Nègre. Durante
esta entrevista tive a oportunidade de conversar um pouco com o autor e expor meu
C’est bien ça, c’est un rêve d’écrivain, au lieu de montrer des gens très
naturels, très simples et qui à la fin on voit que ce sont des clichés ou qui
deviennent des clichés, je préfère montrer des clichés et les rendre de plus en
plus humains, je préfère cela, je montre les clichés d’abord, alors le lecteur dit
« ah oui, ça a l’air facile » et puis après je les laisse plus complexes, et ensuite
les gens deviennent des gens et dans la vie c’est comme ça, tout le monde est
assez différent tout le temps. Mais la différence ce n’est que le regard des
personnes qui voient qu’ils sont différents, dans la réalité ils ont tellement de
fils, des connections qu’on ne voit pas, qu’on ne connaît pas... Et souvent, les
gens qui veulent se connaître apprennent à se connaître très vite, c’est à dire,
apprennent à reconnecter les fils invisibles et laissent les visibles à quelqu’un
qui les regarde de loin, ils voient qu’ils sont un homme ou une femme, un noir
ou un blanc, alors que le rapport, des fois, c’est l’amitié, l’affection, la haine,
le désir, c’est d’autres fils invisibles. Enfin, je les présente comme ça et après
j’essaie de montrer les fils invisibles où, d’abord, les contrastes ne sont pas
négatifs, dans le sens que ce qui les différencie les rapproche, les attires. C’est
pour ça que je déteste, dans les bars branchés, de voir la belle fille avec le
beau garçon, je trouve que c’est la chose la plus banale, c’est même une
vulgarité, quel manque d’imagination ! Pour moi, le sommet de l’ imagination
c’est une femme extraordinairement belle qui sort avec un clochard, parce
qu’elle a remarqué chez ce clochard-là une élégance que les autres n’ont pas
remarqué et quand je dis ça, je dis pour un homme aussi, par exemple, un
homme très connu et qui arrive dans un endroit et qui parle avec la personne
147
avec qui il a envie de parler, c’est à dire, qu’on ne soit pas tout le temps en
train de rassembler les puissants avec les puissants, les beaux avec les belles,
mais donner l’impression que la vie peut avoir des surprises, essayer de
trouver des fils invisibles, l’ironie (LAFERRIÈRE, 2007 A).
autor para narrar o encontro com o diverso, farei a seguir uma análise mais aprofundada
(de) si. Segundo o autor, o olhar é uma maneira de escrever e o estilo do texto vem do
estilo do olhar. “Écrire, c’est une façon de regarder les autres et soi
ausência – “l’impression d’être un mur lisse et blanc. Sans aucune aspérité. L’œil ne
peut s’accrocher nulle part. En un mot, vous n’existez pas” (LAFERRIÈRE, 1993, p.86)
em direção ao novo e à diferença. Cada obra, cada contexto, cada etapa de vida do
narrador exige, por sua vez, diferentes formas de olhar e de narrar, embora o prazer (o
– “à Petit Goâve je me laissais regarder par ces gens bienfaisants qui sont mes voisins
148
qui m’ont connu quand j’étais bébé, les animaux, les arbres” (LAFERRIÈRE, 2007 A).
Neste romance ele vê o mundo através do olhar da avó Da, e usa inúmeras vezes o
discurso indireto para narrar suas impressões e comentários sobre a vida na cidadezinha.
Da, por sua vez, é uma grande observadora, ela passa a maior parte de seu tempo
sentada na varanda de sua casa olhando, “DA sait tout ce qui se passe dans la ville sans
olhar da avó e dos que passam pela sua casa que Vieux Os tem suas primeiras
impressões da ditadura e suas iniqüidades, bem como das histórias fantásticas de mortos
e zumbis tão presentes na cultura popular haitiana. Esse olhar distraído da criança e que
se deixa contagiar pela doçura da relação com a avó vai gradualmente se afastando do
olhar mais atento, mas não menos prazeroso, de Vieux em Porto-Príncipe. Vieux Os em
Le goût des jeunes filles fala do simples deleite de ver passar a vida, e fazer o tempo
parar.
Je m’assois dans les marches de l’escalier qui donne sur la rue et je regarde
passer les gens. Juste ça. C’est tout ce que je fais l’après-midi. Rien d’autre.
Des fois, je regarde passer les nuages. Je peux passer des heures à regarder
les nuages. La course des nuages. Je me demande où va tout ce temps que je
perds à regarder les nuages. Les nuages ou la lune. La lune c’est encore mieux
(LAFERRIÈRE, 2004 A, p.52).
Em La chair du maître e Le cri des oiseaux fous o olhar do prazer se mescla ao olhar do
C’est le regard de celui qui se demande d’où viendra le danger, ce n’est pas le
regard de l’individu, [...] mais on fait confiance on y est né, on doit avoir des
réflexes. On se dit que s’il y a un mauvais regard, on va le capturer et choisir
de l’affronter ou de s’enfuir (LAFERRIÈRE, 2007 A).
obstinado, que prefere olhar à agir, “préfère regarder plutôt que de participer”
149
(LAFERRIÈRE, 2000 C, p.63) [...] “assis sur un muret, on voit même des choses que
les gens tentent de dissimuler à tout prix. Par exemple le désir” (LAFERRIÈRE, 2000
C, p.64).
bastante diferente do olhar crítico e ácido do narrador de Comment faire l’amour, que se
Je ne cherche pas à être drôle [en Comment faire l’amour], sinon je l’aurais
été dans tous les livres. Ce livre a un contenu acide parce que l’atmosphère est
acide, parce que cette urbanité exige un tel regard, l’autodérision et la
dérision ce sont des valeurs urbaines, de grandes villes.[...] Moi je ne fais pas
de l’humour, c’est la situation qui dégage son ironie. L’ ironie vient de ma
posture de ma façon de regarder les choses, mais au fond c’est la façon d’où
on se place. [...]Quand je regarde un arbre québécois bien sûr, il y a un regard
qui est d’étonnement, c’est un arbre qui peut perdre toutes ses feuilles puis
avoir de la neige dessus, c’est un arbre qui change. Mais l’arbre haïtien, je ne
le vois pas parce qu’il ne change pas, il fait partie de ma vie, il est lié à mon
enfance, il est plus vieux que moi, mais moi je suis plus vieux que l’arbre
québécois parce que j’étais déjà un adulte quand je l’ai vu, et l’arbre haïtien,
lui, m’a vu, parce que j’étais enfant, et je suis né devant lui, dans sa présence.
C’est pour cela que je dis souvent que je ne fais pas d’ironie. C’est la situation
qui va faire en sorte que je le regarde ainsi et que l’ironie paraît
(LAFERRIÈRE, 2007 A).
autoderrisão é menos presente, pois o narrador não se expõe tanto, ele narra mais o que
vê, ouve ou imagina do que o que propriamente vive. Vieux se esconde atrás do olhar,
como se este fosse um câmera, fotográfica ou de filmagem, que mediasse sua relação
com o mundo – “zoom sur la nuque de keiko (utiliser un objectif tamron 35/80)”
ângulos, a melhor luz, os diálogos, o final de cada história narrada, como se o mundo
150
existisse em função de seu olhar e não por si mesmo – “J’aime aussi flâner seul. Sans
rime ni raison. Comme ça. Pour voir. Je ne connais pas de plus vif plaisir [...] que celui
L’unique règle” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.40). Para Vieux, a viagem do olhar está
sempre associada à viagem da escrita, olhar é uma forma de significar – ler e escrever –
o mundo. O narrador descreve, assim, uma viagem de metrô por Montreal, que é
Je suis dans un autre monde. Je regarde mes voisins. Avez-vous déjà regardé
un visage humain? La peau, le grain de la peau, les os sous la peau. Les poils
(cils, moustache, barbe). Les trous (yeux, nez, bouche). Les dents, les lèvres, le
menton. Drôlement fait les humains. Tout ça terne ou vivant, frémissant ou
épuisé, lisse ou granuleux, frais ou en sueur. Je m’installe dans un coin et
j’observe. J’apporte un calepin avec moi. Je note les gestes naturels, des bouts
de dialogues (je peux suivre trois ou quatre dialogues à la fois), les visages
perdus dans des mo nologues intérieurs. Je note (LAFERRIÈRE, 1998 A,
p.95).
tempo, prazeroso. A grande mudança está no olhar que o mundo passa a lançar para o
151
No romance o sucesso é diretamente associado ao olhar, ser olhado é como vencer uma
T’arrives quelque part et immédiatement tous les regards se tournent vers toi.
Tu t’assois pour manger dans un restaurant et tu t’aperçois, un moment après,
que les gens mangent au même rythme que toi. Une horrible synchronisation.
Comme s’il n’y avait qu’une personne dans le restaurant. TOI à la puissance
cent. Le succès, frère, c’est quand le ‘moi’ d’un individu devient si fort qu’il
oblige les autres ‘moi’ autour de lui à capituler (LAFERRIÈRE, 1993, p130).
pelo discurso capitalista, que “vende” o sonho de tornar a todos celebridades. Todo
sujeito é mo tivado pela busca da visibilidade, pelo desejo de ser visto, ouvido,
152
Embora o narrador de Cette grenade experimente o gozo de ser olhado pela primeira
como uma celebridade e viver seus minutos de fama, não quer se deixar totalmente
1976, o primeiro do narrador fora do Haiti –, pois neste romance o olhar se apresenta
imigrante pobre, só e recém chegado, de encontro com o Outro. Única saída, pois negar-
Agudo, perplexo e sem direção definida, esse é o olhar do recentemente exilado, que,
suis dit, je ne connais personne, je ne connais aucun code, il faut regarder, il faut
p.5 ) afirma o autor. É, sem dúvida, neste primeiro romance do ciclo americano que o
olhar que transita entre “o lá e o aqui” se mostra mais aguçado, revelando o choque da
153
– Parce que c’est là -bas.
– Son nom c’est Montréal.
– Je ne sais pas de quoi tu parles.
– Je vécu vingt ans là...
– Je le sais que tu as vécu vingt ans là -bas.
– Marie achète un calendrier chaque année, juste pour toi, lance
tante Renée. Elle fait une croix sur chaque jour qui passe.
– Je comprends, mais elle peut quand même dire Montréal.
– Tu ne peux pas lui demander ça, dit simplement tante Renée.
Marie garde le silence (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.28).
clichês ou, no caso da mãe do narrador, a dor da perda, da ausência do filho, do marido,
das irmãs, todos exilados, “là-bas”. Todavia, ao partir em exílio, rumo à diferença
vivências do jovem narrador, aos 23 anos, pelas ruas da cidade. Oscilando entre a
etc.. O romance, embora tenha sido escrito por volta da mesma época de Comment faire
l’amour, tem um tom menos irônico e mais ingênuo, como se o mesmo tema tivesse
154
desnudo de máscaras, revela suas dores, fraquezas, desamparos e se permite falar
e seus habitantes, se estabelece no romance. É por seu intermédio que o narrador busca
Je marche, je marche,
je marche, je marche,
je marche toute la nuit
dans la nouvelle ville.
Je ne connais pas encore
les quartiers qu’il ne faut pas fréquenter
ni les filles qu’il ne faut pas respecter.
Je suis un innocent (LAFERRIÈRE, 1994, p. 18).
– seu olhar é capturado por imagens rápidas, cotidianas e urbanas. O narrador percorre a
155
importância da experiência visual para o narrador – linguagem de um homem ainda sem
voz.
Quand je m’ennuie,
J’achète un ticket
et je passe la journée
dans le métro
à lire les visages(LAFERRIÈRE, 1994, p.38).
Je suis assis
sur un banc
dans le petit parc fleuri
du quartier italien.
Je regarde passer
Les filles.
Mon seul luxe (LAFERRIÈRE, 1994, p.40).
156
Mais tout ça n’est qu’une intuition (LAFERRIÈRE, 1994, p.14).
Mas em pouco tempo, é capaz de relatar, sem hesitar, uma série de impressões causadas
distribuição no espaço:
Com relação ao feminismo (no início dos anos 70 mais difundido entre os grupos mais
ainda ingênua, típica de um recém chegado de uma sociedade bastante dura com as
mulheres:
J'ai rencontré le féminisme sur la rue Saint-Denis vers cinq heures de l'après-
midi. Il avait pris l'apparence de cette toute jeune fille au visage lisse et doux,
qui m'expliquait calmement qu'elle ne se rasera jamais les jambes pour plaire
à un homme (LAFERRIÈRE, 1994, p.47).
Je le savais déjà
pour l’avoir lu
pour l’avoir vu au cinéma.
157
Mais c’est différent dans
la vraie vie.
Je suis noir
et tous les autres sont blancs.
Le choc ! (LAFERRIÈRE, 1994, p.14).
Vieux constata, muito rapidamente, que o que, em seu país de origem, era natural, a
ponto de não ser lembrado, sua origem e sua cor, transformara-o, instantaneamente, em
Je me retourne
des gens que je n’avais jamais
vus auparavant me regardent
comme si j’étais un mur lisse (LAFERRIÈRE, 1994, p.24) .
O racismo se mostra obscuro para quem nunca havia saído de seu país natal, assim,
Est-ce un incident?
Un acte de racisme primaire?
Quelque chose qu’il faut que j’oublie?
158
Ou quelque chose que je ne dois jamais oublier ?
(LAFERRIÈRE, 1994, p.49).
O olhar do Outro, que fabricada a suposta essência negra, revela-se, contudo, difícil de
ignorar – “eu sinto, eu vejo nos olhares dos brancos que não é um novo homem que
entra, mas um novo TIPO de homem, um novo GÊNERO. Um negro, ora!” (FANON,
1952, p.96) afirma Fanon em Peau noire, masques blancs, onde reflete sobre a
“coisificação” do homem negro. O jovem negro, à deriva pelo espaço americano, se vê,
assim, capturado pela típica dialética do exilado: olhar (único prazer verdadeiramente
democrático) e ser olhado (realidade inevitável), ora como ausência, ora como
negatividade.
O olhar aparece pela primeira vez como tema filosófico, válido em si, na obra de
essência (conhecimento intelectual). São os sentidos que, segundo ele, põem os seres
será sempre confrontada ao olhar do outro, que tende a vê- lo como se sua natureza fosse
o “eu” de sua existência e atos, pois ao ser visto, no mesmo plano das coisas, se
159
descobre – “sou visto, logo existo”. É impossível escapar totalmente do julgamento do
outro, eis o ciclo infernal proposto por Sartre 26 .Este jogo de olhares é de mão dupla,
objeto inferiorizado, este ‘eu’ inferiorizado não poupará seu carrasco (de um olhar
que produz um saber sobre si e sobre o Outro, sobre o negro e o branco, sobre o
preciso tentar se proteger deste “jogo” arriscado, onde o “inferno é o outro”. Para isso
sorte.
Vieux descobre também que, para ser livre, é preciso agir, e, assim, começa a pôr em
prática a representação positiva que tinha de si mesmo: “un écrivain, quelqu'un de libre
qui marche, seul, dans la bonne direction” e fazer da viagem forçada uma oportunidade
de recomeço.
26
Este drama é metaforicamente vivido pelos personagens da peça Huis Clos de Sartre. Sem espelho eles
só podem se ver através do olhar deturpado do outro.
160
Ni de domicile fixe.
Ma vie est entre mes mains
(LAFERRIÈRE, 1994, p. 17).
significa ver outras cores, sentir outros cheiros, experimentar outros sabores, ouvir
outras músicas, porque a viagem lhe abre as portas de um mundo “sem fronteiras” e de
haitiano e mais como membro atuante de nova comunidade sem fronteiras da qual se
sente parte. É neste momento que o narrador elabora sua concepção de americanidade,
ficar (neste espaço que descobre como seu) e se reinventar. Essas escolhas são
É a sua posição (social e afetiva) que o narrador decide mudar (embora a nova posição
também seja transitória), tornar-se aquele que narra, não somente o que vê, mas
161
também o que fantasma e cria. Vieux decide ser escritor (do seu destino). Há, nesse
composição. Não é por acaso que Laferrière faz, com seu humor característico, a
Somente mais tarde, o autor se reapropria dessa energia transbordante da libido para
162
pensar criticamente as complexas relações de poder que encobrem os encontros e
desejos sexuais.
Cette grenade e Éroshima que o sexo ou o fantasma sexual se apresenta como estratégia
fundamental de encontro com o Outro. Não se trata, aqui, de um olhar romântico, puro
“le sexe seul ne m'a jamais intéressé. Il faut qu'il soit mélangé à autre chose. Sexe et
politique. Sexe et race. C'est ma mine d'or ” (LAFERRIÈRE, 2001 B) afirma o autor.
Mais do que desejos carnais, o sexo representa nos quatro romances em questão a
est l’un de plus explosifs qui soit ”(LAFERRIÈRE, 2002, p.134). O sexo não representa
propriamente uma abertura para o Outro, mas um acerto de contas, o único caminho
desejo; por outro, denuncia velhas formas de submissão e controle. Em Comment faire
l’amour, o que motiva a atração sexual é o desejo fantasmático entre negros e brancos,
163
diament pur. Les extrémités du spectre. La lumière et les ténèbres.
Complémentarité absolue (LAFERRIÈRE, 1993, p.87).
Comment faire l’amour, Cette Grenade e, em certa medida, Chronique, nos mostram
que o homem ainda tem dúvidas a respeito da verdadeira natureza do negro. “Qu’est-ce
que coloca prontamente uma segunda pergunta, não menos importante: “qu’est-ce que
crítica profunda aos estereótipos “raciais”. Neste romance o objeto do desejo de Vieux
p.15). O sexo é narrado sob o ângulo dos inúmeros clichês criados em torno do negro e
c’est l’érotisme” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.137), afirma o narrador, que passa toda a
primeira parte do romance (“Le zoo Kama sutra”) no apartamento de uma japonesa
Hoki – “quoi qu’il arrive je ne bougerai pas du lit. Il n’y a rien de plus neuf que de se
réveiller dans un loft aménagé par une Japonaise” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.13).
Quebec, à América do Norte e ao Haiti, lugares que fazem parte da história do autor,
164
Eroshima narra histórias que se passam em diferentes cidades no mundo (Pequim, San
Juan, Berlim, Hiroxima, entre outras) e aborda a cultura japonesa como tema central.
Cultura que o narrador pouco conhece, a não ser pela forte presença asiática em
Montreal. As cidades citadas também não têm uma identidade forte, são mencionadas
lugar do mundo.
O espaço explode aqui com muita violência. Ele se torna plural, dilatado,
descentrado, incluindo Montreal, assim como grandes cidades dos Estados-
Unidos, da Europa, das Antilhas, etc. .Estas cidades não têm, no entanto, nem
rosto nem contorno próprio e se parecem com não-lugares híbridos, se
resumindo a camas de hotel, quartos, bares, olhares frios pela janela,
aeroportos (MATHIS-MOSER, 2003, p.106-107).
O narrador, à imagem dessas cidades sem rosto, também se mostra um sujeito sem
vínculos, sem passado, sem memória – “negro novamente, ele adquire apenas
“j'étais allé encore plus loin dans ce que les Haïtiens ne font jamais, puisque le
Cette grenade também retoma o tema do sexo inter-racial, mas com um tom
menos pessoal; não há, por exemplo, narrativas de sexo entre o narrador e suas parceiras
como nos outros três romances. A questão sexual coloca-se no plano coletivo, uma
massa de imigrantes, pronta para repovoar o planeta em uma “guerra” de sexos e raças.
Durante uma conversa com o editor da revista para qual escreverá sua matéria sobre a
América do Norte, o narrador deixa claro que a questão racial é essencial para ele: “ –
sexuel” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 15). Para escrever essa matéria o olhar de Vieux
165
volta-se para a América inter-racial, negros, brancos, amarelos e índios, é a idéia da
social, como metáfora política. O romance fala das transformações vividas pela
sociedade haitiana nos anos 70, início do governo de Jean-Claude Duvalier, entre elas, a
efervescência sexual.
Le père ne voulait rien entendre du sexe (il avait formé un corps : la police des
mœurs). Pour lui, le sexe était le péché absolu. Le meurtre plutôt encouragé.
Le fils, lui, ouvrait les portes de la maison à la musique étrangère (le jazz, le
rock), à la coiffure afro, au cinéma porno, aux films violents et à la drogue.
C’était mon époque (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.11).
cidade e giram em torno da sexualidade, sempre à flor da pele, como uma espécie de
desigual e desumana que se formou no Haiti, em função da enorme pobreza e dos anos
de ditadura:
dans une société où les rapports de classe sont si terrifiants, où l'écart entre les
riches et les pauvres est si grand, où l'humiliation, le dédain, le mépris de l'autre
sont si importants, la seule chose qui peut rapprocher celui-ci de celle-là, ou
celle-là de celui-ci, c'est le désir. Et le désir de transgresser (LAFERRIÈRE,
1997).
Segundo o autor, seu objetivo era explicar a sociedade haitiana, sem passar pelos
relatos de mulheres e homens que rompem com seu meio social ou com padrões pré-
abandonam suas famílias, país, trabalho, para viver uma paixão no Haiti. Como a história
166
da inglesa Becky que deixa o marido (John), os filhos, Londres, para viver em Porto
Becky pense que tout la sépare de John et que tout la relie à cet homme dont
elle ignore même le nom. [...] Peut-être aussi que les noms des gens ne veulent
rien dire. La nature est aveugle, sourde et muette. Alors pourquoi m’avoir
créée à Londres avec des cheveux blonds, des yeux verts, quand je ne suis, en
réalité, q’une paysanne du sud d’Haïti? La nature ne répond pas à cette
question non plus (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.121-122).
homossexuel. C'est peut-être une première fois dans la littérature haïtienne. [...] J'ai
différentes” (LAFERRIÈRE, 1997). Por outro lado, o autor apresenta o sexo como
de desejo, poder, medo e luta pela sobrevivência que faz com que o poderoso e forte
167
Etimologicamente, vem do latim facticius, que significa artificial, fictício e do
casos, há, subentendida, a idéia da ilusão. O significado de fetiche traz, assim, a noção
sentidos. Embora seja um objeto parcial, o fetiche dá a ilusão ao sujeito de que o objeto
desejado é suficiente para representar o outro como um todo. O fetiche também pode se
tornar uma distorção quando se transforma em uma obsessão ou uma fixação por um
brancos e negros, é o fetiche por excelência; o desejo, nesse caso, torna-se indissociável
deste elemento externo, para onde é canalizada quase toda a energia libidinal – “désirs
noirs obsédés par le corps blanc pubère. Désirs enragés. Désirs crépitants. Désirs de la
mistério” da pele negra. O desejo surge, assim, a partir do que foi historicamente
negado ao homem negro – “mon sexe célèbre ces poils dorés, ce clitoris rose, ce vagin
interdit, ce ventre blanc, ce cou ployé, cette bouche anglo-saxonne. Atteindre ton âme
Comment faire l’amour. Durante a colonização francesa, as punições aos negros que
tinham relações sexuais com as brancas podiam chegar a crueldades terríveis, como a
castração, mas, por outro lado, o negro que conseguia ter uma mulher branca era
definitivamente mitificado pelos outros negros (FANON, 1952, p.50). Segundo Fanon,
o rito de iniciação da “autêntica virilidade” do negro era dormir com uma branca assim
168
que sou digno de um amor branco. Amam- me como um branco, logo, sou branco”
Atraído pelo desejo da carne branca, que foi proibida a nós negros desde o
momento em que os homens brancos reinam sobre o mundo, eu me esforço
obscuramente para vingar em uma européia tudo o que seus ancestrais
submeteram aos meus durante séculos (FANON, 1952, p.58).
definem a asiática, os olhos, o cabelo, o tom da pele, etc.. Hoki é a primeira de muitas
amantes asiáticas do narrador; ele, seu primeiro negro entre, certamente, muitos outros.
Vieux desperta em Hoki o desejo pela pele negra e Hoki em Vieux o desejo pela pele
amarela e, nessa perspectiva, a cor vem antes do indivíduo, o encontro é mais estético
do que afetivo – “désormais, il n’y aura pas de party sans Nègre. C’est essentiel pour
Asiatiques m’interéssent-ils autant?” pergunta o narrador, “parce que c’est loin l’Asie”
neste romance, não é nem haitiano, nem imigrante, nem neto de Da ou filho de Marie, é
-Allô
-Hoki est là?
-Hoki est à New York [...]
-Toi c’est qui ?
-L’amant nègre de Hoki (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.18).
outro – “les mains de Hoki font de mon corps un bel objet sexuel” (LAFERRIÈRE,
1998 A, p.16), afirma o narrador. Vieux é, assim, facilmente substituído pelo novo
amante negro de Hoki, um rastafari que toca reggae (o clichê da vez). Vieux, por sua
169
vez, não se importa em ser trocado, pois Hoki, ao contrário de seu loft, poderá ser
“j’aime bien Hoki, Keiko, Misako, Reiko et les autres, mais ce qu’il me fend vraiment le
Em La chair du maître o fetiche está, como diz o próprio título, em possuir “la
chair du maître ”. Na última parte da obra uma senhora rica de Porto Príncipe conta ao
narrador uma anedota significativa a este respeito. A conversa tem início com a
surpresa do narrador ao ver uma foto antiga – “un negre à côté d’une jeune fille
antigo escravo e da filha do senhor, um casal legítimo, raro, mas jamais aceito pela
família dela, contou a senhora. Ela se apaixonou primeiro, ele resistiu a princípio, mas
em pouco tempo se entregou sem reservas ao amor proibido. Neste meio tempo, eclode
comandado pelo general Dessalines, foi obrigado – após a vitória e a ordem para o
massacre geral dos franceses – a interceder junto ao general pela família de sua amante,
permitindo a sua fuga. Por fim, a velha senhora pergunta ao narrador, entre uma e outra
gargalhada, o que Dessalines disse ao negro no momento em que lhe entregou a jovem,
- La chair du maître !
- En effet.
170
Conquistar o Outro-interdito produz muito prazer, mas quanto mais racista e cruel é a
l’amour Vieux descreve, ironicamente, a garota dos seus sonhos: “ une fille normale
avec un père conservateur et une mère bourgeoise (tous deux racistes), une vrai de vrai
um colega negro – “le grand nègre de Harlem baise ainsi à n’en plus finir la fille du
O sexo pode, nesse sentido, revelar o lado instintivo do encontro com o Outro,
causando uma explosão, uma catarse, de vio lência e vingança. Em cada romance Vieux
escolhe seu “inimigo” e inicia a sua “guerra” sexual. Em Comment faire l’amour, o
narrador afirma que “la haine dans l’acte sexuel est plus efficace que l’amour”
pela conquista da branca – “je me lave le visage, vigoureusement. Les dents blanches,
l’œil féroce. Sexy. Prêt pour la guerre de sexes. Je sors” (LAFERRIÈRE, 2002, p.136).
pas me dire, chéri, que tu ne savais pas que la haine est la chose la plus excitante qui
soit ... ” (LAFERRIÈRE, 2000 C p. 108) diz umas das personagens do romance. Esse
e que, por sua vez, transformam o sexo em um negócio. Trata-se de guerra pela
sobrevivência.
On est en présence d'un petit groupe de gens très riches qui peut tout acheter, ou
qui pense pouvoir tout acheter, et les êtres et les choses, et on a ceux qui sont
171
prêts à vendre la seule chose qu'ils ont, c'est-à-dire leur jeunesse et leur corps
(LAFERRIÈRE, 1997).
Esta idéia também está muito presente em Le goût des jeunes filles, onde as personagens
centrais, adolescentes haitianas de classe baixa se prostituem (embora esta palavra não
seja dita), ora por necessidades (e desejos) de consumo, ora por vingança, ora pelo prazer
Étrange désir d'ailleurs. Les filles ne parlent que de sexe mais le désir
pourrait être la métaphore d'autres choses, informulées, comme la liberté
ou la vie, impossibles dans la dictature de Duvalier. Pourtant, rien ne
parvient à emprisonner complètement ces jeunes lianes, la danse de leurs
jeunes avidités forme des figures si vives que la terreur est oubliée au
profit de la transe (LAFERRIÈRE, 1997).
Esse universo de exploração e violência sexual descrito (por vezes sob a simples
aparência de jogos eróticos) em La chair du maître e Le goût des jeunes filles, mascara o
revolta contra Jean-Claude Duvalier – “parce que cette société ne pouvait plus vivre dans
cet univers presque artificiel du sexe où l'on peut perdre son identité
gênese, que transgrida interditos históricos. Trata-se de um combate (de classes) contra as
C'est la lutte des classes qui est reflétée dans toutes ces histoires un peu
insouciantes de gourmandise sexuelle, une lutte terrible liée à l'Histoire. Car il
y a des antécédents à tout cela; les individus en présence sont des ennemis
héréditaires et, dans ce sens-là, ce n'est pas quelque chose qui aurait pu se
produire à Montréal. Ce n'est pas une jeune fille de l'Université du Québec qui
172
rencontre un jeune Haïtien fraîchement arrivé et entretient avec lui une
relation amoureuse. Ce ne sont pas deux jeunes gens de Rimouski
(LAFERRIÈRE, 1997).
Essa guerra dos sexos é marcada por uma flutuação de vida e morte, construção
e destruição, prazer e dor, desejo e rancor, violência e paz. Laferrière resgata duas
figuras da mitologia grega para falar desta ambivalência: Eros, o deus grego do amor, e
contaminou pessoas, rios e plantações: “Hoki s’est amenée avec um grand bol de
entrevista sobre a bomba, em livros. No final do livro o narrador explica onde tudo
começou.
C’est incroyable l’idée d’écrire ce livre m’est venue un jour, brusquement. Une
image. Voilà : un jeune couple en train de faire l’amour dans la ville
d’Hiroshima, le matin de l’explo sion atomique, en 1945. Et la bombe au
173
moment même où ils parviennent à l’orgasme. Éros et Hiroshima. ÉROSHIMA.
Le sexe et la mort. Les deux plus vieux mythes du monde (LAFERRIÈRE, 1998
A, p.140).
O narrador faz referência durante todo o romance “à bomba”, que pode explodir a
J’ai découvert LA BOMBE en même temps que le sexe. J’avais tout de suite
compris que les deux généraient la MORT [...]. J'ai découvert le Sexe (ou le
Désir) à sept ans sous les traits de Rita Hayworth. Ah! qu'elle était jolie, la
Mort! Je n'ai pas arrêté depuis et il m'a fallu vingt-cinq ans (et la mort de Rita)
pour comprendre que c'était une bombe à retardement. Tu peux te cacher
n'importe où sur cette satanée planète, il y aura toujours (comme le feu au cul)
la menace de la Bombe. Et pour attendre cette saloperie de Bombe, rien de
moins que le Sexe (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.91).
Como metáfora do sexo, a bomba tem um poder de gerar vida e morte, é a vitalidade
(LAFERRIÈRE, 1993, p.17). Como metáfora da guerra, “a bomba” pode ser entendida
como uma resposta, uma reação (ou simplesmente uma ameaça?) por parte do
subalterno, das vítimas da violência, seja ele o japonês, o negro ou o imigrante. Este
Norte e possuirem as duas referências culturais. Isto cria uma forte ambigüidade
Japonaise à l’intérieur. Entre les deux vies, il y a un secret. Je crois que Hoki n’a pas
pardonné à ses parents d’avoir choisi l’Amérique après ce qui s’est passé là-
diferentes em cada uma das jovens – “autant Hoki veut oublier ce qui s’est passé là-
bas, autant Kero voue un culte à la mémoire. Tout ce qui est japonais est sacré. Elle
174
veut faire prendre conscience à chaque Américain de la bêtise
Em Cette grenade homens de várias partes do mundo, não somente negros, mas,
“simplement parce qu’on lui avait dit qu’en Amérique la baise est gratuite et
Assim, o romance também anuncia uma guerra de sexos, prestes a eclodir. No capítulo
intitulado “Amérique, nous voilà!”, o narrador descreve, como uma ameaça, uma fila de
Aujourd’hui, vous avez devant vous la longue file des hommes (chez nous
l’aventure est aux hommes) aux pénis arqués, à l’appétit insatiable, prêts pour
la guerre des sexes et des races. Nous irons jusqu’au bout, América
(LAFERRIÈRE, 1993, p.40).
Nesta guerra não declarada “entre o máximo de cores e odores”, o sexo inter-racial
revela-se uma arma muito potente para atingir o branco, procriando, possuindo,
escritor para expressar esta explosão libidinal, esse violento desejo de devorar o Outro.
175
Em Comment faire l’amour, Vieux afirma praticar a “baise cannibale” com sua amante
branca. Segundo ele, “c’est n’est plus l’une de ces baises innocentes, naïves,
végétariennes, dont elle a l’habitude. C’est une baise carnivore” (LAFERRIÈRE, 1985,
lugares e a todo o momento”, de ser como “genitais ambulantes” e ter tantos filhos que
poderiam “inundar a terra de pequenos mestiços” (FANON, 1952, p.128) –, ora visto
O narrador de Comment faire l’amour usa e abusa, com muita ironia, desta imagem do
negro-canibal, como neste exemplo, onde imagina um artigo de jornal que diria:
176
Ça la touche de me voir manger. Elle est incroyable, Miz Littérature. Elle a été
dressée à croire à tout ce qu’on lui dit. C’est sa culture. Je peux lui raconter
n’importe quel bonimen, elle secoue la tête avec des yeux émus. Elle est
touchée. Je peux lui dire que je mange de la chair humaine, quelque part dans
mon code génétique se trouve inscrit ce désir de manger de la chair blanche,
que mes nuits sont hantées par ses seins, ses hanches, ses cuisses, vraiment, je
le jure, je peux lui dire ça et elle comprendra. D’abord, elle me croira
(LAFERRIÈRE, 2002, p. 30-31).
Nesse caso, a ironia está no fato de a branca ser a mais ingênua. Ter um caso com um
Negro é suspense garantido, afirma Vieux, pois com eles nunca se sabe, “si on la
palavras, ao devorar o Outro e sua cultura, o canibal transforma o que foi devorado em
de Antropofagia. Diferente do canibal real que, com freqüência, comia o inimigo morto
para absorver suas qualidades, o canibal simbólico, reatualizado por Oswald e Laferrière,
177
algo novo que tornará mais forte aquele que devora. No editorial do primeiro número da
“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE,
similar, com relação à sua conquista da América e a seu desejo de se apropriar do que,
C’EST SIMPLE, JE VEUX L’AMÉRIQUE. Pas moins. Avec toutes les girls de
Radio City, ses buldings, ses voitures, son énorme gaspillage et même sa
burocratie. Je veux tout : le bon et le mauvais, ce qu’il faut jeter et ce qu’il faut
conserve , ce qui est laid et ce qui est beau (LAFERRIÈRE, 2002, p.31),
escreve Laferrière que, assim como Oswald, volta-se para a diferença do outro para falar
de si. Oswald, em busca de uma nova identidade nacional, propôs a antropofagia como
literária, que tanto o fascina e enriquece. Através desta deglutição simbólica, transforma
178
narrador. Laferrière, como Oswald, escolhe o humor, mais particularmente a ironia,
tudo e todos sem ser trágico. Através do humor, tanto os discursos de vitimização do
nome de uma alquimia da alteridade. Laferrière, além de reforçar a idéia de que a raça é
uma categoria discursiva e não biológica, desinveste o Outro – o branco ocidental, que
Para concluir, diria que o canibalismo simbólico proposto aqui recria o devorador
crítica de toda diversidade. Nesse sentido, Laferrière fala do direito à diferença e, por
179
6. CONCLUSÃO: A literatura – uma viagem inesgotável e sem fronteiras
para anunciar seu cansaço e pedir a seus leitores que cessem de considerá-lo um escritor
em atividade. Todavia, para falar do fim, o autor procura descobrir onde, ou melhor,
duas questões primordiais para Laferrière e para todo escritor: por que escrever? E por
que parar de escrever? A fim de respondê- las Laferrière volta às origens (do desejo pela
escrita) e faz um balanço que entrelaça vida e obra. O autor revisita temas essenciais
estereótipos raciais e nacionais, entre outros. Por essas razões, quis terminar a tese
falando desta obra, tão simples quanto paradoxal, que, apesar de proclamar o fim tem o
fatigué, assim como esta tese, marca o fim de uma etapa e anuncia um re-começo que é
outro e, também, o mesmo. Como o simbólico título da peça de Alfred Musset, citada
inúmeras vezes em Le cri des oiseaux fous, que narra o último dia no Haiti – Il faut
180
aumentadas de Cette grenade (2002), Le goût des jeunes filles (2004) e Je suis fatigué
(2005), onde o autor pratica outra atividade que lhe confere grande prazer: redescobrir e
A fim de fazer uma reflexão sobre sua história como escritor, o narrador de Je
suis fatigué retorna onde tudo começou, a praça Saint-Louis, lugar onde, vinte anos
Je suis assis, au square Saint-Louis, comme il y a vingt ans quand j’ai pris la
décision de commencer mon premier roman. C’est un minuscule parc entouré
de grands arbres feuillus, avec un jet d’eau au milieu, tout cela en plein cœur
de Montréal (LAFERRIÈRE, 2001 A p.13).
É sentado neste banco do jardim Saint-Louis que começa e termina a sua narrativa,
espaço de tempo durante o qual é “invadido” por pessoas, lembranças e reflexões. Vinte
anos antes ele se sentava na mesma praça para observar, sem ser notado; agora, um
conhecidos, leitores e até mesmo por seu editor, que insiste na publicação de um último
livro. A escrita e seu processo criativo estão no centro dos diálogos e das divagações
solitárias do narrador, que reflete sobre os aspectos que foram decisivos na construção
de sua trajetória literária e que estão na raiz de seu imperioso desejo de escrever – os
livros que leu, as cidades por onde passou, os (re)encontros que fez, as perdas que
viveu, os preconceitos que sofreu, os conselhos que ouviu, as livrarias que freqüentou.
começa a “escrever” mesmo antes de saber ler, pois escrever é um jeito de olhar e de
“voler”, délirer” e “vivre pleinement”. Neste caso, escrever é algo muito mais profundo
certain nombre de livres, les gens vous prennent pour ce que vous ne voudriez jamais
181
être: un professionnel. On ne vous parle plus, on vous écoute. Et ça c’est la pire des
choses qui puissent arriver à un être humain, quel qu’il soit ” (LAFERRIÈRE, 2001 A,
p.127). É do amor pela escrita – que existirá ainda que publicamente interrompa sua
carreira, ainda que esteja cansado, ainda que não venda seus livros ou seja esquecido –
que fala em Je suis fatigué. A primeira edição do livro foi, a exemplo disso, distribuída
exemplaires au Québec, 20 000 en France et 5000 en Haïti), j’ai voulu souligner la fin
”(LAFERRIÈRE, site TYPO). Com este livro, o autor completa um ciclo e se despede
do jovem narrador de Comment faire l’amour, faminto por sucesso, fama e olhares, que
via na literatura sua única saída, em um duplo sentido, simbolicamente, para reverter a
“l'écriture, sur un plan plus pratique, m'a littéralement sauvé la vie” (LAFFERIÈRE,
2000 A, p.151).
personagem Kero, uma entre as muitas japonesas – Keiko, Reiko, Hoki, Misako, etc. –
com o passado o narrador revisita o tema dos clichês raciais, amplamente desenvolvido
entre Vieux e Kero é marcada pelo fantasma – “Elle, maso. Moi sado” (LAFERRIÈRE,
contrário de Vieux, que naquele romance nem ao menos o nome de seu país de origem
revela, Kero se mostra uma ferrenha defensora da história, da memória, das tradições e
182
dos rituais japoneses – “je regarde avec fascination Kero exécuter ces gestes avec la
serenidade, à perfeição e à minúcia com que a japonesa prepara e serve o chá japonês.
A partir daí, uma mescla de estranhamento (Kero lhe parece, por vezes, obscura e
pela diferença – “j’étais autant fasciné par son silence qu’elle l’était par mon
dos personagens em Je suis fatigué, que o narrador compreende que Kero, muito mais
do que um clichê, é, assim como ele, um ser complexo e peculiar. A linguagem (do riso)
pela qual se expressava habitualmente Kero, e que parecia para o narrador superficial e
transparente.
Tu sais Kero, je crois de plus en plus que nous faisons le même métier [...]
c’est la même chose, seulement, moi, mon tissu c’est la langue. Le livre étant le
vêtement. Et je te signale que j’utilise une paire de ciseaux afin de donner
forme à mon bouquin. Quand je sens monter en moi une histoire, je vais
toujours me balader, sans trop chercher à savoir où mes pas me conduisent. Et
183
après, exactement comme toi, je laisse passer un long moment afin de
m’assurer que ce n’est pas une toquade, mais une véritable obsession.
J’attends que cela fasse partie de mon être, que cela me devienne aussi
nécessaire que l’oxygène. Ce n’est qu’à ce moment que je commence un liv re.
Tu vois que nous ne sommes pas si différents (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.20).
Kero e Vieux também descobrem, nesse encontro (onde retiram suas máscaras), que
algo essencial: o processo criativo. Laferrière desenvolve, a partir daí, a idéia de que o
estar ou brotar de onde menos se espera, de uma caminhada sem direção, de uma
acaso, de uma nota de jornal, de uma tarde na banheira ou daqueles momentos em que
inspiradora sabedoria da avó, que plantava e colhia generosidade nas situações mais
adversas. Certo dia, conta o narrador, quando ainda vivia com Da em Petit-Goâve,
mesmo sem ter o que comer, a avó encheu uma panela de água, pôs para ferver e foi
para a varanda, esperando que o acaso ou os amigos viessem em seu auxílio. “Mais
Da”, protestou Vieux Os, “on n’a encore rien mis sur le feu. Il n’y aura rien à manger
tout à l’heure”, mas ela respondeu calmamente “on a déjà fait un pas
“receita mágica”, a comida apareceu, oferecida por uns e por outros, sem que em
Des années plus tard, quand j’ai commencé à écrire, je me suis souvent rappelé
de la recette magique de Da. Il faut jeter les idées et les émotions sur la page
blanche, comme des légumes dans un chaudron d’eau bouillante. Mais d’abord
184
et surtout, on doit commencer à écrire même quand on ne sait pas quoi dire
[...]. Da a eu l’audace de croire au hasard de la vie. Et c’est là la raison d’être
même de l’écrivain. Il y a aussi l’idée que la cuisine est l’art la plus proche du
roman (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.65).
Laferrière retoma, com esta anedota, uma outra idéia fundamental em sua
“autobiografia”: a de que sua vida quotidiana está na origem de sua criação literária, em
outras palavras, que sua vida real está intimamente ligada à sua vida sonhada.
No capítulo “Le vert paradis des lectures enfantines” , o narrador afirma que
pelo ato de ler, que o acompanhará durante toda a vida. O narrador faz alusão a um
episódio de sua tenra infância, determinante para a descoberta do intenso prazer que a
o pequeno Vieux Os, que se tornará, mais tarde, um grande adepto das deleitáveis
185
A, p.56). Esta viagem que começou na pequena infância foi capaz de transportá- lo para
imaginário.
sua viagem rumo à diversidade. Vieux passa toda a “autobiografia” lendo, esta atividade
é para ele quase tão importante quanto viver. Na edição revisada de Cette Grenade
(2002), o narrador, após receber um cheque destinado a pagar os custos da viage m que
deveria fazer pela América do Norte (a fim de escrever uma reportagem sobre a região)
ao invés de partir prontamente, se dirige a uma livraria e gasta todo o cachê em livros: a
amigos de que não quer ser incomodado, tranca-se em casa e entra na banheira, seu
Comme je ne paie pas l’eau chaude, je peux passer des journées entières dans
la baignoire. [...] C’est donc dans la baignoire, sans bouger sauf pour aller me
préparer des spaghettis à la tomate la nuit, que j’ai fait le plus inquiétant
voyage de ma vie (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.39).
186
relê com entusiasmo este romance autoficcional sobre as aventuras de dois jovens
je viens de relire ce roman et je ne vois pas comment il pourrait être plus fou,
en tout cas le côté cru, en prise directe sur la vie, y est encore totalement
présent [...] Il est aujourd’hui impossible de traverser l’Amérique sans penser
au moins une fois à ce bon vieux Jack (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.100).
deslocamentos que ele próprio venha a fazer pelo continente. Assim, a viagem literária
lhe fornece um material (e um prazer) subjetivo que substitui a experiência real – “Je
voyage dans ma tête. Je suis en ce moment dans un autobus qui descend dans le sud des
viagem imaginária que para ele agrega dois prazeres: o da leitura e o da escrita –
“Whitman m’avait mis en appétit. Je retourne à ma vieille machine à écrire pour tenter
A viagem, ou melhor, o texto começa a ser “escrito” muito antes de ir para o papel,
Vieux, sua vizinha Sonia, protesta contra tal prática, afirmando que o narrador deixa de
lado o essencial, a veracidade dos dados, e que, assim, corre o risco de ser desonesto. O
187
narrador responde que mais valiosa que a realidade é a sua representação; unicamente
Qu’est-ce qui est malhonnête ? Le fait d’écrire qu’on est dans un autobus
quand on n’a pas bougé de sa chambre ? Tu sais le mot autobus est plus vrai à
mes yeux que l’autobus réel. Je te signale que le meilleur reportage jamais fait
sur l’Amérique a été réalisé par un homme qui n’a presque quitté sa maison
(LAFERRIÈRE, 2002 B, p.49).
Esta idéia da viagem literária que se sobrepõe à viagem real é recorrente na
interlocutora Sonia de Cette grenade, é a mãe do narrador que lhe fala sobre a liberdade
- Par exemple, il ne lit pas les mêmes choses que tout le monde.
[...]
- Maman, presque toutes les personnes de ma connaissance ne lisent que la
poésie haïtienne. Lui, jamais, à part Vilaire. Je ne l’ai jamais surpris non plus
en train d’écouter la musique haïtienne. Il n’écoute même pas les nouvelles à la
radio. Parfois j’ai l’impression qu’il n’est pas d’ici...
- Peut-être ...
- Pourtant, maman, il m’a dit qu’il n’a jamais voyagé.
- On peut aller partout dans sa tête, jette ma mère en soupirant
profondément...(LAFERRIÈRE, 2000 C, p.50-51).
O narrador de Cette grenade, além de passar seus dias entre as sessões de leitura,
romance com a vizinha Sonia – “il y a toujours ce moment décisif où ma voisine, celle
qui prend tous les étés des bains de soleil presque nue sur son balcon, s’amène pour
que je l’aide à déboucher cette bouteille de vin rouge” (LAFERRIÈRE, 2002, p.39)
[...], “je ferme les yeux et elle entre toute habillée dans la baignoire” (LAFERRIÈRE,
188
2002 B, p.40). Assim, sua rotina fica completa: ele lê, dorme, sonha (com o que lê),
come, olha (o mundo pela janela), faz sexo, escreve, lê, dorme, faz sexo e assim
narrador relembra como surgiu pela primeira vez a idéia de se tornar escritor. Logo que
freqüentava o seguinte conselho: era preciso encontrar rapidamente uma mulher para
passar o inverno, senão a vida ficaria penosa demais, mas para conquistá- la haveria de
mostrar algum talento! O narrador tem prontamente a grande idéia de se tornar escritor
para, ao menos, garantir os prazeres do sexo nos meses de frio. O conselho deu certo,
pois as mulheres e a inspiração (que germinava destes encontros) nunca faltaram para o
narrador Vieux – “j’écrivais le matin, nu, généralement après avoir fait l’amour. La
fille encore endormie, je tapais comme un dératé sur ma vieille Remington 22 qui a
appartenue à Chester Himes” [...]. “Il y en a qui perdent leur force, moi, le sexe
também aparecem como grandes estímulos para uma viagem no tempo e para a escrita
vida calma e previsível em Miami, no início dos anos 90, que em suas palavras “est
devenue si simple que ne concerne que moi” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p.31). Até que
três simbólicos episódios – o telefonema de Miki, amiga que não via desde a
época, sobre o estilo de vida no Haiti no final dos anos 60 e, finalmente, a chegada de
uma correspondência enviada pela mãe do Haiti, um livro do poeta haitiano Magloire
189
ou plutôt je l’avais confondue avec le reste” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p 32). As cenas
banheira com o livro de Saint-Aude e inicia mais uma viagem, que entrelaça a leitura do
bains, m’enfonce doucement dans l’eau tiède qui me protège des morsures du temps et
des malheurs de la vie. J’ouvre le livre de Saint-Aude et je lis les derniers vers du
nasceu à imagem de Porto Príncipe, uma cidade ao mesmo tempo luminosa e violenta,
sensual e corrompida” (BERNIER, 2002, p.54). Talvez tenha sido, justamente, esses
descobertas e dúvidas. Algumas horas depois, antes de abrir a Vogue, o narrador vai
para um hotel, ao sul de Miami, aluga um quarto com vista para o mar, fecha as cortinas
e novamente se deixa envolver pela água quente da banheira, “j’ai toujours préféré une
bonne salle de bains à quelconque océan. Je fais couler l’eau. Et j’entre doucement
autre monde” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p.31). Na Vogue Vieux descobre que Marie-
Michèle, outra amiga daquele tempo, havia publicado um diário intitulado Fast Lane:
Girls, Food, Sex, Music - The Sixties in Haiti sobre sua vida no final dos anos 60 e
início dos 70 no Haiti. As leituras funcionam como uma espécie de refúgio, que protege,
meninas, que lia Saint-Aude e descobria o desejo. Le goût des jeunes filles narra
190
precisamente o fascinante momento da iniciação sexual e poética do narrador. Pois
Vieux, além de ler e citar o poeta Saint-Aude avidamente, durante toda a narrativa –
je lis encore Saint Aude. Une véritable obsession. Normal, c’est la première fois
qu’un être humain exprime ce que je ressens avec une telle précision. Et va au-
delà de mes sentiments. J’ai l’impression de lire ma vie future. Saint-Aude
exprime ce que je suis et ce que je serai (LAFERRIÈRE, 2004 A, p. 241).
- Qu’est-ce que tu lis là? Tu lis encore....T’as toujours la tête dans ton livre,
alors que j’ai l’impression que tu sais beaucoup de choses [..].
Elle monte sur le divan avec ses souliers. Je me tasse près de la petite table.
Elle me regarde tout en retirant chacune des ses chaussures qu’elle lance
contre le mur (LAFERRIÈRE, 2004 A, p. 269).
Quase trinta anos depois, no espaço íntimo e solitário da banheira, se deixa envolver
pelas lembranças iluminadas de poesia e desejo – “mon adolescence fut un tunnel noir
A, p.32). E o resultado desse passeio pelo túnel do tempo é um livro que intercala
da época de origem rica, e do texto que inicia e termina o romance, escrito pelo narrador
aos quarenta anos. Estes narradores, embora tenham pontos de vistas, idades e classes
sociais diferentes, têm em comum o amor pela literatura, pelo ato de escrever e um forte
191
O diálogo intertextual também se mostra central em Le cri des oiseaux fous. O
assassinado pelos ditadores, se confunde com o drama vivido pela protagonista da peça
citada inúmeras vezes pelo autor. Trata-se de uma adaptação para o crioulo, feita pelo
poeta haitiano Félix Morisseau- Leroy27 , que pretendia mostrar que essa língua,
conta, em grandes linhas, a história da jovem Antígona, filha de Édipo, que deseja
enterrar seu irmão, Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, mas o tirano da
cidade, Creonte, promulgou uma lei impedindo que os mortos que se voltaram contra as
leis locais fossem enterrados. Antígona, enfurecida, vai então, sozinha, desafiar o poder
vodu – são colocados em cena diversos deuses (loas) do imaginário vodu, como Erzulie,
Legba, entre outros – e a coragem da heroína Antígona pode ser associada à força da
identidade cultural do povo haitiano. Em Le cri des oiseaux fous a mãe e a irmã de
Gasner, assim como a jovem Antígona, foram proibidas de velar e enterrar o corpo do
27
Félix Morisseau-Leroy nasceu em 1912 no Haiti, onde exerceu as profissões de dramaturgo,
romancista, poeta, diretor de teatro e tradutor.
192
Duvalier-Créon qui s’oppose à ce qu’on l’enterre selon les rites funéraires de
la foi de sa famille (LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 283).
Segundo Vieux Os, o caráter subversivo da peça fez com que não pudesse entrar em
cartaz no Haiti durante muitos anos, mas com a morte de Gasner os alunos do grupo de
se tornou um enorme sucesso de público em Porto Príncipe, pois somente através dela,
simbólica. Assistir, participar, ler, debater a peça se torna uma forma de protesto, a
única viável naquele regime ditatorial. Antígona rompe o silêncio e responde por eles,
dá, simbolicamente, voz ao silenciado – “je crois que c’est notre réponse à l’assassinat
de Gasner. Le pouvoir s’attendait à nous voir baisser les bras. On voulait nous
terroriser, nous faire peur, nous désespérer totalement. Antigone répond à notre place ”
(LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 143). Pois os homens, como afirma Antígona, podem ser
silenciados – “por mais que os tiranos sejam afeitos a um povo mudo, o povo sempre
fala. Fala sussurrando, amedrontado, à meia luz, mas fala” (SÓFOCLES, 2005, p.98). A
peça narrada dentro do romance representa para autor e narrador uma forma de traduzir
nous vivons en ce moment. Une pièce à l’intérieur de la grande pièce. Un théâtre dans
uma forma de mostrar que, por trás das aparentes diferenças, há inúmeras teias
a pas une si grande différence entre ma culture et la sienne [de Sófocles]. [...] Sommes-
Chronique, que cronologicame nte sucede Le cris des oiseaux fous, Laferrière também
faz uma referência indireta a Antigone, neste caso, de Jean Anouilh. Vieux Os se
193
negando a aceitar o destino de fracassos e submissões no exílio, sem modéstias,
A personagem Antígona, que na peça de Anouilh poderia ser compreendida como uma
inconformado Creonte: “Moi, je veux tout, tout de suite, et que ce soit entier, ou alors
je refuse! Je ne veux pas être modeste , moi, et de me contenter d'un petit morceau, si
j'ai été bien sage” (ANOUILH, 1946, p.95). Embora se passem em lugares e épocas
L’histoire de cette ardente jeune fille qui a affirmé en face du pouvoir et des
tous les pouvoirs que seul l’amour l’intéressait, que l’amour était au dessus du
devoir d’État et que l’amour est plus fort que la loi. L’amour d’une sœur pour
son frère, d’une mère pour son fils, ou d’un homme pour une
femme (LAFERRIÈRE, 2000 B, p.40).
Laferrière faz, igualmente, referência em Le cri des oiseaux fous a um episódio histórico
fracasso de uma de suas ações para derrubar a ditadura, foram mortos, sendo dois deles
enterrados ou tivessem qualquer ritual fúnebre. Laferrière transita, assim, neste romance
194
e na “autobiografia americana” como um todo, entre obras de ficção existentes – as
“Jeune Haiti” e a morte do amigo jornalista Gasner Raymond em 1976, assassinado por
sua postura política – e a sua própria ficção. Nesse sentido, sua literatura, enquanto
mundo afora.
diferentes textos expressa não somente a visão de mundo do autor, mas sua
Os sentidos nascem das interpretações desta complexa interação textual, que podem
a intertextualidade pode ser entendida como um diálogo entre diferentes textos, autores,
angústias, emoções, pontos de vista sem que seja preciso sair da “banheira natal”. Nesse
sentido, a obra literária não tem nacionalidade, raça, gênero ou classe social, é um
Pour moi, un écrivain c’est quelqu’un qui arrive au-delà de sa langue et son
paysage naturel [...] parce que quand on écrit, on écrit pour se transporter
ailleurs, quand on lit, on lit pour se transporter ailleurs. [...[ Il faut protéger ce
territoire vierge qui est celui de l’imaginaire pour qu’aucun pays ne puisse
mettre sa pelle dessus (LAFERRIÈRE, 2007 A).
195
Na última parte do livro Je suis fatigué, o alter ego de Laferrière tem um
encontro importante, no mesmo banco de jardim onde começou sua história, com uma
leitora que leu toda as suas obras e se diz transformada e positivamente invadida por
elas.
De certa forma, é esta leitora desconhecida e “apaixonada” que melhor vai responder às
perguntas colocadas pelo narrador neste livro, “por que escrever e por que parar de
escrever?”: “vous ne pouvez pas décider, tout seul, d’écrire un livre ou de ne pas
l’écrire. Cela vient d’une zone plus profonde et plus étrange que la
volonté” (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.128). Suas palavras são oportunas, pois vão ao
encontro das ponderações feitas pelo narrador, desde o início de Je suis fatigué, a
escritor a parar (ou não) de escrever forem tantas e tão profundas quanto as que o levam
a começar, uma decisão racional não será suficiente neste sentido. O mesmo se dá com
relação ao leitor, uma escolha consciente não o fará se entusiasmar, se encantar ou, ao
condão” que nos permite descobrir a nós mesmos e ao mundo que nos cerca, a cada
descortina para o leitor. É a magia da literatura que permitiu essa leitora desconhecida
se sentir tão próxima de Petit Goâve e seus habitantes, é essa magia que me faz chorar
196
ao ler a narrativa da morte de Da ou me emocionar com a volta do narrador ao país
natal, ou migrar de Porto Príncipe ao pays sans chapeau e de volta a Montreal, sem sair
do lugar.
Si les livres gardent vivant l’esprit de leurs auteurs, c’est pour qu’on puisse
s’entretenir avec eux. [...] Un livre, c’est un esprit qui frappe à la porte, et non
un idiot qui monologue dans le noir. Pourquoi écrire si ce n’est pas pour
partager des rêves et des angoisses avec des gens d’une autre époque, d’un
autre âge, d’un autre milieu ? Et je suppose qu’on lit aussi pour les mêmes
raisons. Le dialogue est donc possible (LAFERRIÈRE, 2005, p.78).
O que lhe interessa ao escrever é fazer emergir o lado obscuro e imprevisível, tanto do
homem quanto da História. Nesse sentido, concorda com a lição de André Gide,
segundo a qual não se pode fazer boa literatura com bons sentimentos. “C’est mon
travail d’aller patauger dans la boue. Je laisse aux fonctionnaires d’État l’eau claire de
la propagande. Leur devise est d’une netteté impeccable : Si on cache bien le problème,
il finira bien par disparaître” (LAFERRIÈRE, 2000, p.154). Sua literatura se revela,
função mediadora – entre realidade e fantasia, vida pública e vida privada, entre o lá e o
197
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213
7. ENTREVISTA COM DANY LAFERRIÈRE (realizada em Montreal no dia 26 de
abril de 2007)
2. Votre « autobiogra phie américaine » a été écrite et publiée dans un ordre non
Je ne pouvais pas publier dans un ordre chronologique parce que ce serait trop
ennuyeux, j’ai préféré découper ça selon mes humeurs, selon mon désir et passer d’un
mode à un autre, d’une époque à une autre. Je pense que dès le troisième livre, après le
deuxième, après Éroshima, quand je suis allé à Miami et j’ai commencé à penser à
l’idée d’écrire un troisième livre dès lors j’ai eu la vision de cette chose là, c’est-à-dire,
de l’autobiographie américaine et j’ai même d’ailleurs écrit sur une page que j’ai, je ne
sais pas où, les différents titres que j’aurais pour former cela, à peu près tous les livres
3. Comme c’est de l’autofiction, vous pouvez faire comme vous voulez, vous
pouvez suivre les traces de votre mémoire et on n’a pas accès à la mémoire d’une
Oui, même les titres que j’ai mis je ne les ai pas écrits l’un à la suite de l’autre
sur la liste. Et ce n’était pas des histoires, c’était découpé en lieux et en moments et en
temps. On peut aller n’importe où mais si je pense qu’il y a deux livres, l’Odeur du café
et Le charme des après-midi sans fin sur l’enfance et Petit Goâve, et puis il y a trois
peut-être sur Port-au-Prince, Le goût des jeunes filles, La chair du maître et puis Le cri
des oiseaux fous... Dans ma tête, il y avait ces moments- là, l’enfance, l’adolescence,
214
Port-au-Prince, Montréal, l’Amérique du Nord, le retour. Ce n’était pas des histoires qui
étaient sur la liste, c’était des moments. Comme pour Pays sans chapeau, j’aurais pu
écrire un autre livre, un retour complètement différent, ça n’était pas dans la liste, ce qui
était dans la liste c’est qu’il devrait avoir un roman sur le retour.
4. Vous avez affirmé dans le journal Le Devoir être obsédé par la façon de rendre
publique l’intimité, mais aussi de rendre la vie publique intime. Comment d’après
C’est tout à fait normal, parce que c’est un peu ma vie, c’est la vie de beaucoup
de gens des pays du tiers monde qui ont connu la dictature, la politique est toujours liée
à votre vie personnelle, vous êtes en danger, vous devez quitter votre pays parce que
vous êtes en danger, donc il y a toujours un rapport tout à fait individuel. Dans les pays
payer les taxes, où l’individu voit qu’il y avait un État, c'est-à-dire, on doit aller voter
une fois par an ou une fois tous les quatre ans alors que dans un pays comme Haïti, la
vie politique a une implication directe sur votre vie personnelle. Ainsi en racontant
raconter sa vie sans raconter son pays, il peut choisir de le faire. Mais avec un écrivain
du Tiers monde, même dans le livre le plus innocent, comme L’Odeur du Café, où il n’y
question : Mais pourquoi il n’y en a pas, puisque c’était à l’époque de Duvalier aussi?
215
Est-ce que vous étiez pour Duvalier? Est-ce que votre famille était à l’abri? Pourquoi?
La question se pose même pour le lecteur et va au-delà de ce que vous proposez comme
univers. Alors, je dis, non, il n’y a en a pas parce que tout ce qui est public peut ne pas
avoir d’impact sur ce qui est privé si c’est un enfant et les adultes veulent le protéger, un
peu comme dans le film La vie est belle où le jeune garçon n’a même pas vu la seconde
guerre mondiale, il pensait que c’était un jeu. Mais le rapport public/privé, l’imbrication
qu’il y a entre ces deux là, ces deux axes, leur croisement a une incidence même chez le
lecteur, qui a été habitué à des livres venants des pays de dictature beaucoup plus
violents, entre le face à face et qui s’attend à un face à face plus violent chez moi. Mais,
parfois, c’est cela qui arrive à les charmer. Ils ont l’impression que c’est vrai, que c’est
plus vrai, parce que c’est bizarre, il n’y a pas de situations sanglantes comme dans les
films où on tente de décrire la dictature et on voit toujours du sang. Le sang ne doit pas
couler chaque jour, sinon il n’y aurait plus personne dans ces pays. Et quand cela arrive
à pénétrer dans le cerveau du lecteur, il est acquis parce que c’est fondamental que le
lecteur ait l’impression que ce qu’il lit est vrai. Je ne dis pas que c’est la vérité, mais que
c’est vraisemblable.
5. Vos romans qui se passent en Amérique du Nord sont très ironiques, lucide et
dérive douce et réapparaît en Pays sans chapeau. Quel rôle cette l’ironie qui rit de
soi-même joue dans votre œuvre ? Et pourquoi elle disparaît dans les romans du
Moi, je ne fais jamais d’humour, c’est la situation qui dégage son ironie.
L’ironie vient de ma posture, de ma façon de regarder les choses, mais au fond c’est la
216
façon d’où on se place. Pourquoi ce n’est pas le même regard ironique partout? Ce n’est
pas volontaire, regardez un arbre et essayer d’être ironique. Donc, ce n’est pas un
regard personnel, c’est le rapport que j’ai avec l’environnement humain, social et
naturel. Quand je regarde un arbre québécois bien sûr, il y a un regard qui est
d’étonnement, c’est un arbre qui peut perdre toutes ses feuilles, puis avoir de la neige
dessus, c’est un arbre qui change. Mais l’arbre haïtien, je ne le vois pas, parce qu’il ne
change pas, il fait partie de ma vie, il est lié à mon enfance, il est plus vieux que moi,
mais, moi, je suis plus vieux que l’arbre québécois, parce que j’étais adulte quand je l’ai
vu; l’arbre haïtien m’a vu, parce que j’étais enfant et je suis né devant lui, en sa
présence. C’est pour cela que je dis souvent que je ne fais pas d’ironie. C’est la
situation, c’est le contexte qui va faire en sorte que je le regarde ainsi et que l’ironie
apparaît, je ne cherchais jamais à le faire, parce que pour moi c’est pas profond. Ce qui
est important pour moi c’est le regard et à ce moment-ci le regard des narrateurs
croisement crée une sorte de densification, ça donne une force. Mais si c’est une ironie
qui vient de la personnalité de l’individu, on aurait l’impression qu’on lit le même livre.
L’humour est présent dans mes livres, mais pas sous ce mode- là. Donc, je ne cherche
pas à être drôle, sinon je l’aurais été dans tous mes livres. Et le livre Comment faire
l’amour avec un nègre sans se fatiguer a un contenu acide parce que l’atmosphère est
acide, parce que cette urbanité exige un tel regard, l’autodérision et la dérision, ce sont
des valeurs urbaines, de grandes villes, quand on est seul, on sent la collectivité, la
pression, on a une sorte de surplus, de valorisation de soi. Mais quand je suis dans mon
enfance à Petit Goâve, je n’ai pas besoin de regarder, je peux laisser les autres me
regarder, les arbres me regarder, le paysage me regarder, mais à Montréal dans les
217
6. Le regard de l’Autre envers soi, de soi envers l’Autre, de soi envers le monde
ou vers soi-même est très important dans vos textes, comment situez-vous la place
du regard dans votre œuvre? Dans les romans du cycle haïtien, vous ne faites pas
trop attention au regard de l’autre, par contre, dans les premiers ouvrages du
cycle nord-américain ou vous êtes regardé en tant que différent ou, au contraire,
vous n’êtes pas du tout regardé. Mais quand vous devenez un écrivain connu, il y a
un changement par rapport à cela et, tout à coup, le monde commence à vous
J’essaie de ne pas attacher d’importance au fait d’être regardé, parce que, pour
moi, le fait d’être regardé ne m’importe pas et cela ne concerne que celui qui regarde,
comme moi, quand je regarde la ville, ça n’importe pas la ville et ce qui est important,
c’est moi qui regarde. Quand l’autre me regarde, je ne dois pas attacher d’importance.
C’est son affaire, c’est lui qui regarde, avec tous ses sentiments, toutes ses émotions et
qui voit des choses que je ne sais pas de moi- même. Si j’attache trop d’importance à ça,
d’où viendra le danger. Il y a un monde qui est comme une jungle, on ne sait pas, mais
on fait confiance parce qu’on y est né, on doit avoir des réflexes. Les réflexes
remplacent le regard. On se dit que s’il y a quelque chose de mal, s’il y a un mauvais
connais aucun code, donc il faut regarder, il faut analyser, sinon on ne va pas s’en
sortir, on ne va pas survivre. C’est en tant qu’être humain que je parle là. Les gens qui
ne regardent pas sont dans les ghettos, ils conservent le regard qu’ils avaient chez eux.
218
Ils n’ont pas changé de posture et ils se retrouvent dans le ghetto, où c’est plus facile
pour eux, ils continuent à regarder les choses, les gens, les comportements qu’il
connaissent. Mais, moi, je ne voulais pas habiter dans un ghetto, alors, il faudrait que je
C’est aussi l’urbanité. Ma vie à Petit Goâve est différente aussi de ma vie à Port-
au-Prince. À Petit Goâve je me laissais regarder par ces gens bienfaisants qui sont mes
voisins qui m’ont connu bébé et les animaux, les arbres. À Port-au-Prince, c’est plutôt la
jungle, donc il y a d’autres antennes, il faut avoir un oeil derrière la tête. Et à Montréal,
7. Et dans Pays sans chapeau, qui parle du retour, la situation est-elle différente ?
Pays sans chapeau, si je le lis comme lecteur, je dirais que c’est pour dire que
Tiers- monde qui n’acceptent pas qu’ils ont voyagé, parce qu’en l’acceptant ils ont
l’impression d’avoir vraiment trahi. Dans leur littérature, au lieu de montrer, d’accepter
(comme dans L’odeur du café e Comment faire l’amour) les différents mondes dont ils
font partie, ils les cachent plutôt. C’est pour ça qu’ils écrivent à Montréal, à Paris ou à
Berlin des romans qui se passent dans leur pays d’origine, qui sont encore plus enfoncés
dans leur culture, ils deviennent des défenseurs de choses qu’il n’auraient pas défendu
s’ils étaient restés dans leur pays. Précisément, parce qu’ils n’acceptent pas le voyage.
Ils essaient de le dissimuler pour enlever la trace de la trahison parce que, pour
beaucoup d’intellectuels, voyager c’est trahir. Alors que voyager n’est pas trahir
puisque, c’est, précisément, subir. D’accord, on peut voyager tout simplement, mais
dans ces pays- là, souvent pour les intellectuels, c’est un exil ou un semi-exil, donc c’est
subir. C’est au dictateur d’avoir honte, ce n’est pas à moi. Alors qu’est-ce qu’il m’est
219
arrivé durant ce temps à l’étranger ? Bien, voilà, j’ai vécu aussi et j’en tiens compte.
Dans le retour, dans Pays sans chapeau, le narrateur n’essaie pas de dissimuler qu’il est
différent des gens et en même temps il ne cherche pas ses racines non plus, il regarde,
des fois il repère des choses, il questionne, mais c’est tout doux, on a changé, j’ai
changé, ils ont changé, nous avons changé. Mais bon, tout est pareil en fait, c’est un peu
ça.
8. Selon vous, dans quelle mesure votre oeuvre constituerait-elle une contribution
Je ne crois pas beaucoup dans les pays, je ne crois pas beaucoup dans les
ne pense pas que ça existe. Je pense que la librairie c’est un endroit où les peuples se
réunissent. Une toute petite librairie d’un village, on entre là dedans on trouve des
Russes du dix- neuvième siècle, des écrivains américains qui ont publié hier, des poètes
maudits, des bests sellers. Pour moi, c’est un autre pays. C’est pour cela que je mets très
rarement les livres dans un pays réel. Les livres appartiennent à un pays rêvé. Donc,
l’amour, ça parlait de sexe, alors que ce sont des gens très pudiques. Il est mal compris
par certains, mais c’est fait pour ça. Je ne vais pas me plaindre, au contraire! Moi, je ne
comprends pas les gens qui disent « nous, on n’est pas compris, on n’est pas écouté ».
Si vous voulez écrire un livre pour être accepté, vous save z quoi dire, donc pourquoi
vous vous plaignez après? Ma famille dit toujours « fais attention, les gens ne vont pas
220
comprendre ni accepter », je dis, « mais il ne faut pas qu’ils fassent attention, il ne faut
ceux qui n’acceptent pas s’en passeront et c’était ça le but, donc, réveiller, vivre,
exciter. Moi aussi, je n’ accepte pas tout ce que j’écris. C’est comme ça, il faut un petit
peu de danger dans la vie. Il ne faut pas se plaindre quand on a fait quelque chose. Il ne
faut pas se plaindre parce que ce n’est pas une adhésion, un vote électoral, c’est une
10. Et par rapport á Pays sans chapeau, comment a été la réaction pour les
Haïtiens ?
Leur livre c’est L’odeur du café, ils en font des examens du baccalauréat, ils en
donnent des dictées dans les écoles primaires. Mais Pays sans chapeau, il y a quelque
chose, le chapitre sur le vaudou les a troublé un peu, de titrer un chapitre « Des dieux de
classe moyenne », ils n’aiment pas ça, ils sentent qu’il y a une ironie là-dedans. Je ne
vois pas d’ironie, ce sont des dieux de classe moyenne! Des dieux qui ne changent pas.
Mais comme ça ne m’intéresse pas, non plus, de cracher sur les choses et que c’est
ridicule de les adorer, je dis que ce sont des dieux de classe moyenne. Si vous crachez
dessus ils pensent que vous êtes un ennemi, alors ça les rassure, mais si vous dites « ce
11. Dans vos roma ns vous décrivez souvent la rencontre entre des types très
différents qui sont souvent attirés l’un vers l’autre – les noirs et les blanches, les
francophones et les anglophones, les occidentaux et les orientaux, les riches et les
pauvres, même les vivants et les morts, les hommes et les Dieux (dans Pays sans
221
(opposés mêmes) et stéréotypés se révèlent au long de la lecture pluriels et
finalement pas si différents que ça. Je pense, par exemple, à la rencontre entre
Kero la japonaise et le narrateur Vieux, que vous reprenez dans Je suis fatigué.
Malgré leur frappantes différences (l’un ne parle presque pas, l’autre est très
bavard, l’un est oriental, l’autre occidental, l’un est jaune, l’autre noir, l’un est
styliste, l’autre écrivain) ils ont un langage commun qui est le sexe et des points en
roman à l`autre. Vous pouvez me parler un peu plus de cette façon de concevoir la
différence (l’altérité)?
C’est bien ça, je me méfie des stéréotypes, les gens aiment être bien rassurés.
C’est un rêve d’écrivain, au lieu de montrer des gens très naturels, très simples et qu’à la
fin on voit que ce sont des clichés ou qui deviennent des clichés, je préfère montrer les
clichés et les rendre de plus en plus humains. C’est peut-être un truc pour ne pas faire de
cliché. Alors je montre les chiclés d’abord et le lecteur dit « ah oui bon, ça a l’air
facile » et puis après je les laisse plus complexes et les gens deviennent des gens. Dans
la vie c’est comme ça, tout le monde est assez différent tout le temps et pourtant la
différence n’importe pas aux gens. La différence vient de celui qui regarde. Dans la
réalité, les gens ont tellement de fils de connections qu’on ne voit pas, si on ne les
connaît pas. Et, souvent, les gens qui veulent se connaître, apprennent à se connaître très
vite, c’est à dire, apprennent à reconnecter les fils invisibles et laissent les visibles à
quelqu’un qui les regarde de loin, qui voit qu’ils sont un homme ou une femme, un noir
ou autre chose, alors que le rapport, des fois, c’est l’amitié, l’affection, la haine, le désir,
ce sont d’autres fils invisibles. Enfin, je les présente comme ça et après j’essaie de
montrer les fils invisibles où les contrastes, d’abord, ne sont pas négatifs, dans le sens
que ce qui les différencie les rapproche, les attire. C’est pour ça que je déteste, dans les
222
bars branchés, de voir la belle fille avec le beau garçon, je trouve que c’est la chose la
plus banale, c’est même une vulgarité, quel manque d’imagination ! Pour moi, le
sommet de l’imagination c’est une femme extraordinairement belle qui sort avec un
clochard, parce qu’elle a remarqué chez ce clochard- là une élégance que les autres n’ont
pas remarquée et quand je dis ça, je dis ça pour un homme aussi, par exemple, un
homme très connu, qui arrive dans un endroit et qui parle avec la personne avec qui il a
envie de parler ; c’est à dire, qu’on ne soit pas tout le temps en train de rassembler les
puissants avec les puissants, les beaux avec les belles, c’est tellement ridicule. Parce
que, pour moi, ce sont des clichés, ils auraient pu essayer de trouver les fils invisibles à
l’intérieur, l’ironie. Il faut donner l’impression que la vie peut avoir des surprises.
12. Dans Cette grenade, à travers les discours, réel ou fictionnels de différents
C’est une guerre qui se fait sur le même territoire. Généralement on appelle ça une
guerre civile quand les gens d’une même nationalité se battent. Mais c’est une guerre
assez internationale aussi. C’est la guerre contre tout ce qui est différent. C’est la guerre,
partant du principe qu’un petit groupe doit toujours régner, donc il faut raffiner de plus
en plus les critères d’admission pour permettre à ce que le groupe reste petit et puis
aussi défendre le territoire, souvent très vaste, conquis par ce petit groupe. C’est la
guerre pour un territoire qu’on défend, territoire moral, territoire social, financier,
territoire, espace, tout simplement des lieux. Aux États-Unis, dès que vous traversez une
223
ville, si vous êtes dans un quartier où il y a beaucoup d’arbres, vous êtes chez les riches,
souvent blancs, et dès que vous commencez à avoir uniquement des pylônes électriques
et pas d’arbres, vous êtes chez les pauvres, et quand vous traversez les rails de train, de
l’autre côté, là, vous êtes chez les très très pauvres. C’est la guerre des territoires, la
guerre des langages, des accents. Les gens définissent l’autre dès qu’ils entendent tel
type d’accent, des musiques de la langue. On sait très bien comment se comporter avec
telle ou telle personne, si on peut l’humilier ou pas, si on peut lui refuser des choses ou
pas, ou si la personne est supérieure, alors il faut l’accueillir. J’en ai parlé d’ailleurs
dans Cette grenade, Pays sans chapeau et Le Cris des oiseaux fous sur la musique de la
langue bourgeoise, ils ont une musique de langue qui est complètement différente dans
tous les pays et qui dit : « attention produit de luxe, ne touchez pas, vous risquez à avoir
affaire avec l’État, avec les gens qui protègent les produits de luxe ». Plus la voix est
fluette, pointue, aiguë et musicale, plus le produit est de luxe, plus la voix semble sans
protection, plus le produit est de luxe. Parce que l’autre voix est une voix qui doit se
défendre par elle- même; parce qu’elle est habituée à monter pour se défendre, à grossir,
à gonfler, donc à se rendre plus forte. L’autre voix n’en a pas besoin parce que ce n’est
l’humiliation joue un très grand rôle. Les gens humilient, écrasent les autres sans cesse.
13. Somme toute faite, Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme
ou un fruit?
C’est au lecteur de décider. La grenade c’est le livre, alors il doit savoir ce qu’il
a en main.
224
14. Dans l’un de vos articles écrit dans « La Presse » vous affirmez être en guerre
Contre les clichés. Contre le fait que les gens ne font aucun effort pour accepter
l’autre. Pourquoi nous sommes sur le même territoire? Il faut donner une chance aux
autres et ne pas, tout simplement, repérer les gens qui portent le même costume que
nous, qui sont semblables. Ce sont des corps sociaux qui marchent, ce ne sont pas des
individus, c’est une uniformisation des gens qui portent des vêtements de leur groupe,
de leur parti, de leur classe. Cette question de robe griffée a pris une si grande
importance chez les adolescentes parce qu’elles ont senti une guerre. Comment
ressembler à la personne qui nous ressemble dans les ma gazines et qui représente le
mieux l’intouchable, la richesse, la puissance? Cela touche aussi le regard que l’on pose
sur les gens, car on évalue très vite l’autre. C’est la même chose dans la réflexion, dans
les articles, les gens évaluent vite. Ils voudraient bien uniformiser la pensée alors que je
pense que dans un pays où il n’y a pas de guerre réelle avec des armes, cette autre
15. Le 16 mars 2007 vous avez signé un manifeste où vous célébrez la mort de la
vous parliez un peu sur les raisons de ce changement qui est plutôt conceptuel et
ses répercussions.
Les répercussions vont prendre du temps. Tout cela est un peu contre le mot
Francophonie. Mais pourquoi un mot peut- il représenter un danger? Parce qu’il finit par
englober trop de choses. Il n’englobe pas uniquement les racines, les origines de
l’écrivain qui vient d’un pays qui parle français et qui n’est pas la France, mais ça
225
de lire. Les gens n’ont qu’à dire littérature francophone et on dirait qu’ils ont tout dit.
Bon, quant à la forme de la littérature, déjà ce n´était pas tout à fait réel puisqu’il y a des
écrivains qui viennent de ces pays là et qui sont complètement différents entre eux,
même, n’est pas faite pour que des gens qui viennent d’un territoire se ressemblent,
puisqu’elle prend des ingrédients internationaux – tous les livres que nous lisons et qui
sont des écrivains qui viennent de partout. Pour moi, la littérature c’est un territoire, un
pays, un espace, qui n’est pas sur terre, qui n’est pas défini comme un lieu physique,
l’espace des pays qui parlent français, mais qui n’est pas la France. Alors pourquoi j’ai
accepté la langue française? Tout simplement parce que c’est vrai que j’écris en
français, pour moi c’est quelque chose de vrai qui ne devrait pas avoir d’importance,
avec le temps j’espère qu’on verra le caractère inimportant de cela. C’est comme de dire
manifeste il y en a quarante qui signent et il y en a peut-être deux qui l’ont écrit. C’est à
peu près proche de ce qu’on voudrait, mais moi, je ne suis pas dans cela. Ce que je
voudrais c’est qu’on enlève francophonie, langue française, monde, qu’on enlève tout et
qu’on foute la paix aux gens. Il y a des écrivains et des lecteurs, c’est le seul rapport que
je vois avec la littérature, on en fait pas tout un plat pour les médecins, les mécaniciens.
Tout cela est tout à fait vieillot. Il y a beaucoup d’argent qui se donne, c’est peut-être
pour ne pas perdre les subventions. Le mot francophonie veut dire des subventions
venant des ministères. Quand il y a la semaine de la francophonie, les voyages que nous
226
faisons, l’argent qu’ils veulent dépenser ou gagner, tout simplement ce n’est pas pour
faire du bien. Plus il y a des gens qui parlent français et plus la France est un pays qui
vaut la peine, c’est une publicité qu’ils se font avec si peu. Langue française, cela enlève
l’idée qu’il y a une différence entre les écrivains français et les écrivains qui écrivent en
français et qui viennent d’autres pays. Le mot « monde » veut montrer que la langue
concept d’écriture migrante. D’un côté, certains auteurs affirment que la notion
d`écriture migrante est une notion libératrice, une figure d’ouverture vers l’autre.
Ils assurent que les écrivains « néo-québécois » sont considérés comme une partie
l’écriture migrante crée des ghettos et une sorte de réduction, d’exclusion. Quelle
est votre opinion sur ce sujet? Vous croyez que les écrivains d’origine étrangère
Dans mon rêve, tous les écrivains du monde sont d’origine étrangère et nous
parlons tous une langue étrangère, d’ailleurs. Parce que nous n’écrivons pas dans la
langue maternelle, la langue maternelle est une langue plus affectueuse, la langue de la
littérature c’est une autre mécanique complètement différente. Et, pour moi, un écrivain
c’est quelqu’un qui arrive à regarder sa langue et son paysage naturel, comme s’il était
un étranger. Donc tout le débat sur ce qui est étranger et ce qui ne l’est pas, je n’y suis
pas du tout, parce que je ne crois pas à ce débat de territoire. Il faut protéger ce territoire
227
vierge qui est celui de l’ imaginaire pour qu’aucun pays ne puisse mettre leur label
dessus.....
17. Vous avez affirmé dans La presse: « ce n’est pas parce que je suis noir et
LA PRESSE 2001) enfin, plusieurs choses à la fois. Vous avez également réaffirmé
votre refus de tout genre d’étiquette, d’auteur ethnique, noir, postcolonial, etc.
Enfin, d’après ce que je comprends, ce qui vous intéresse c’est d’accumuler des
identités, d’être, selon vous, « une cible identitaire mobile » (LA PRESSE, mai
2001). En quelle mesure ce choix vous paraît-il libérateur? D’après vous, l’identité
On ne devrait même pas avoir à s’en occuper. C’est comme pour nos jambes,
elles sont là solides, mais on n’a pas à s’en occuper si on veut marcher, sinon on va
tomber. Il ne faut pas les regarder quand on marche, elles doivent nous porter tout
simplement. C’est ce que nous faisons avec nos jambes qui compte, mais où nous
voulons aller. Pour moi, c’est un peu ça avec l’identité. Ce n’est pas ce qu’on a reçu qui
compte, c’est ce que nous en faisons. Je trouve qu’il y a un trop gros débat sur l’identité
qui ne mène qu’à des choses déplaisantes. Et je trouve que la littérature c’est
précisément cela, l’anti- identité. C’est pour nous montrer que nous ressemblons
tellement aux autres que notre effort pour nous singulariser est vain et qu’en réalité il
suffit de regarder un peu plus de dix minutes l’autre pour voir combien nous avons des
affinités avec lui. Et la littérature c’est l’un des rares lieux où tu peux passer des années
avec des individus dans une chambre, dans une pièce à les regarder, à les voir vivre.
C’est un territoire de la tolérance. Il faut regarder les hommes, il faut les laisser vivre,
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c’est le seul endroit où on ne juge pas les méchants. Ce territoire là doit exister et il faut
mots?
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