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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MIGRAÇÕES IMAGINÁRIAS E
REPRESENTAÇÕES DA DIFERENÇA
NA “AUTOBIOGRAFIA AMERICANA”
DE DANY LAFERRIÈRE

Por

IRENE CORRÊA DOS SANTOS BARBOSA DE PAULA

RIO DE JANEIRO, 2008


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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MIGRAÇÕES IMAGINÁRIAS E
REPRESENTAÇÕES DA DIFERENÇA
NA “AUTOBIOGRAFIA AMERICANA”
DE DANY LAFERRIÈRE

Por

IRENE CORRÊA DOS SANTOS BARBOSA DE PAULA

Tese apresentada à subárea de Literatura


Comparada para a obtenção do título de Doutora em
Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
Orientadora: Professora Doutora Eurídice
Figueiredo
Área de concentração: Estudos Literários
Linha de pesquisa: Literatura e vida cultural

RIO DE JANEIRO, 2008

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BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Eurídice Figueiredo (UFF)

Profa. Dra. Vera Lúcia Soares (UFF)

Profa. Dra. Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ)

Profa. Dra. Jovita Maria Gerheim Noronha (UFJF)

Profa. Dra. Núbia Hanciau (UFRGS)

Profa. Dra. Paula Glenadel Leal (UFF)

Profa. Dro. Geraldo Pontes Jr. (UERJ)

3
AGRADECIMENTOS

À FAPERJ, pela concessão da bolsa, auxílio essencial para a realização desta

tese.

Ao “Centre de recherche interuniversitaire sur la littérature et la culture

québécoise” (CRILCQ), onde pude realizar pesquisas, encontrar pessoas que foram

indispensáveis para a elaboração deste trabalho e para a melhor compreensão da cultura

e do imaginário quebequense, por me abrir suas portas e me acolher com tanto carinho.

A Dany Laferrière, em primeiro lugar, pela «autobiografia americana », obra

que me habita e me transformou; em segundo, pela entrevista que me concedeu,

momento especial e emocionante neste longo percurso de pesquisas e leituras.

À minha orientadora, Eurídice Figueiredo, mulher exemplar, com quem muito

aprendi, por me acompanhar e incentivar durante todos estes anos de trajetória

acadêmica.

À amiga Marina pela ajuda prática e generosa no difícil momento da revisão

final da tese.

À minha mãe, por tanto amor, a origem de tudo.

Aos amados Pytha, Quequel, Marcelinho e Mari, apoio afetivo essencial nesse e

em todos os momentos.

4
Ao Leonardo, parceiro de vida, de sonhos e de desejos, pai da Clara e grande

amor, por tão profunda felicidade. Obrigada também pela leitura atenta, inteligente e

carinhosa da tese.

À Clara, que foi gerada junto com tese, em meio a um turbilhão de idéias e

reflexões, pela luz que me trouxe e traz, em todos os sentidos.

Às mulheres-amigas Kelmer, Campelo, Janaína e Maria Helena, que, próximas

ou espalhadas pelo mundo, serão sempre um exemplo de força, vitalidade e uma

formidável fonte de inspiração.

5
RESUMO

A presente pesquisa se inscreve no contexto da reflexão sobre o papel da

literatura na constituição de subjetividades e alteridades nas sociedades pós-modernas.

Parto do pressuposto de que a literatura, enquanto lugar do encontro entre mundo

vivido, mundo pensado e mundo fantasmado/imaginado, é, por excelência, um espaço

de construção da realidade, oferecendo, assim, significativa contribuição para a análise

da contemporaneidade. Nesta perspectiva, farei uma análise da “autobiografia

americana” de Dany Laferrière, obra autoficcional, pós- moderna, que transmite a idéia

de movimento, de transpasse de fronteiras, de diálogo de culturas, de zonas de

coexistência simbólica, em síntese, de simbolização da diferença. Pretendo observar na

“autobiografia americana” as estratégias pós- modernas de que se vale o autor para

compor sua obra. As estratégias estilísticas, a saber: a pluralidade de vozes narrativas,

que recusa um mundo unilateral, o humor, a ludicidade e a ironia, a justaposição de

gêneros, a intertextualidade, a confusão entre autor e narrador, ficção e autobiografia.

Mas também as estratégias temáticas e metaficcionais, quais sejam: a representação do

estrangeiro e das minorias étnicas e culturais, a auto-representação do escritor, a

reflexão sobre a escrita, o tênue limite entre realidade e ficção e as representações do

sincretismo americano e da cidade de Montreal enquanto lugar privilegiado de encontro

com o Outro, com o heterogêneo, com a diferença. Procurarei igualmente observar

como o conceito de “escrita migrante”, enquanto parte integrante do movimento cultural

da pós-modernidade, vem sendo elaborado pela crítica literária quebequense e pelos

próprios autores de origem estrangeira residentes no Quebec.

6
RÉSUMÉ:

Cette recherche s’inscrit dans le contexte d’une réflexion sur le rôle de la littérature dans

la constitution de la subjectivités et de l’altérité dans les sociétés postmodernes. Je pars

de l’idée que la littérature en tant que lieu de rencontre entre le monde vécu, le monde

pensé et le monde fantasmé/imaginé est, par excellence, un espace de médiations qui

filtre la réalité offrant ainsi un intéressant éventail des enjeux de la contemporanéité. Je

fais une analyse de “l’autobiographie américaine” de Dany Laferrière, oeuvre

autofictionnel, qui transmet l'idée de mouvement, de dépassement des frontières, de

dialogue de cultures, de zones de coexistence symbolique, bref, de symbolisation de la

différence. Je me propose à observer dans « l’autobiographie américaine » les stratégies

(postmodernes) narratives et stylistiques : la pluralité des voix narratives, l'humour et

l'ironie, la juxtaposition de genres, l’intertextualité, la confusion entre l’auteur et le

narrateur, entre la fiction et l’autobiographie. Mais également les stratégies thématiques

et métafictionnelles : la représentation de l’immigrant et des minorités ethniques et

culturelles, la réflexion sur l'écriture, la limite entre la réalité et la fiction, les

représentations du syncrétisme américain et de la ville de Montréal en tant que place

privilégiée de la rencontre avec l’Autre, l'hétérogène et le divers. J’observerai,

également, comment le concept d’ “écriture migrante” , partie intégrante du mouvement

de la postmodernité, est élaboré par la critique littéraire québécoise et par les écrivains

d’origine étrangère résidant au Québec.

7
SUMÁRIO

0. Introdução......................................................................................................... 09

1. A constituição de subjetividades na pós-modernidade ................................. 20

2.1. A pós- modernidade: um conceito aberto........................................................ 22

2.2. Modernidade e pós- modernidade: continuidade ou ruptura........................... 24

2.3. Ideologias da pós- modernidade........................................................................26

2.4. O pós-moderno e o pós-colonial: a experiência da alteridade..........................31

2.5. A ficção na pós- modernidade..........................................................................37

2.6. Cette Grenade dans la main du jeune nègre: um romance “em guerra” contra o

estereótipo.................................................................................................................43

2. A Autoficção americana de Dany Laferrière ..................................................64

3.1. Pays sans chapeau: entre o real e o sonhado....................................................85

3. A Escrita migrante: migrações imaginárias..................................................101

4.1. Fantasmas de um migrante: o Quebec multicultural de Dany Laferrière em

Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer........................................121

4. Desfiando as teias invisíveis da diferença......................................................139

4.1. Nós e os Outros: o entre- lugar da identidade............................................... 139

5.1.1. O Olhar, uma maneira de se (ins) escrever................................................148

2.5.1 Um canibalismo simbólico: o sexo na “autobiografia americana” .........162

5. Conclusão: A literatura – uma viagem inesgotável e sem fronteiras ........180

6. Referências Bibliográficas..............................................................................198

7. Anexo: Entrevista com Dany Laferrière por Irene de Paula......................214

8
1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa se inscreve no contexto da reflexão sobre o papel da literatura

na constituição de subjetividades e alteridades nas sociedades pós- modernas. Parto do

pressuposto de que a literatura, enquanto lugar do encontro entre mundo vivido

(matéria), mundo pensado (intelecto) e mundo fantasmado/imaginado (espírito), é, por

excelência, um espaço de construção da realidade, oferecendo, assim, significativa

contribuição para a análise da contemporaneidade. Nesta perspectiva, farei uma análise

da obra do escritor de origem haitiana, que se consagrou no Quebec, Dany Laferrière.

Laferrière escreveu, em dez volumes, o que chamou de sua “autobiografia americana”1 ,

um conjunto de obras onde narra seu percurso pelo continente americano 2 : sua infância

em Petit Goâve (Haiti) – L’Odeur du Café [1991]3 e Le charme des après-midi sans fin

[1997]; sua adolescência em Porto Príncipe (Haiti) – Le goût des jeunes filles [1992] e

La chair du maître [1997]; os últimos momentos antes do exílio – Le cri des oiseaux

fous [2000] 4 ; as experiências em Montreal (Canadá) – Chronique de la dérive douce

[1994], Comment faire l’amour avec un Nègre sans se fatiguer [1985] e Éroshima

[1987]; as experiências nos Estados Unidos – Cette grenade dans la main du jeune

Nègre est-elle une arme ou un fruit?[1993]; por fim, seu retorno ao Haiti, 20 anos

depois – Pays sans chapeau [1996]5 . O autor reflete, em uma narrativa autoficcional,

1
Embora não considere este conjunto de obras uma autobiografia, mas uma autoficção, manterei o nome,
“autobiografia americana”, que foi dado pelo autor.
2
As obras, embora narrem o percurso do autor, da infância à volta ao país natal, vinte anos depois do
exílio, não são publicadas em ordem cronológica.
3
As datas entre colchetes se referem ao ano da primeira edição de cada romance.
4
Unicamente para facilitar a apresentação da análise das obras, dividi a “autobiografia americana” em
dois grupos: o “ciclo haitiano”, as cinco primeiras obras que narram a vida do autor antes do exílio e o
“ciclo americano”, as cinco últimas obras que narram sua vida após o exílio. É importante ressaltar que
minha compreensão da “autobiografia americana” é global e não fragmentada.
5
A partir deste momento, as obras com título mais extenso como Comment faire l’amour avec un Nègre
sans se fatiguer, Cette grenade dans la main du jeune Nègre est-elle une arme ou un fruit?, Chronique
de la dérive douce, Le charme des après-midi sans fin serão, respectivamente, chamadas assim :
Comment faire l’amour, Cette grenade, Chronique, Le charme.

9
sobre como sua história e identidade vão sendo construídas à medida que é atravessado

pelas diferentes culturas que compõem o universo americano, com as quais convive e

que o formam, e sua escrita refletirá esta pluralidade. Ele dá voz a um personagem-

narrador que rompe fronteiras espaço-temporais, estabelecendo uma migração

transgressora rumo à descoberta da diferença. Nesse sentido, procurarei, em grandes

linhas, analisar como são representadas as diferenças visíveis (de gênero, mas,

sobretudo, “racial” 6 )e invisíveis (sociais, culturais, subjetivas ou de origem), o encontro

com o Outro, o multiculturalismo, o imaginário migrante e os deslocamentos espaciais e

subjetivos na “autobiografia americana”.

Ao me propor estes objetivos, me deparei, inicialmente, com uma questão

fundamental e não menos complexa que seria compreender o que, efetivamente,

entende-se hoje por pós- modernidade. Antes de pensar o lugar da literatura na

contemporaneidade era preciso acercar-se deste tema árido e controverso. Como vêm

sendo elaboradas as identidades, as ideologias e os discursos sobre o Outro 7 na chamada

pós-modernidade? Como têm se posicionado os críticos a este respeito? Quais as

conseqüências e transformações avassaladoras geradas pelo capitalismo tardio e pela

nova sociedade de consumo nas identidades contemporâneas? A pós-modernidade seria

apenas mais um modismo festejado pela crítica especializada? Em que aspectos essa

nova concepção de identidade, fluida e diaspórica, contribui para ampliar a

compreensão das relações entre “eu” e o Outro? Como os escritores considerados

6
É importante reafirmar que o conceito de raça humana é questionado e mesmo refutado pela ciência
atual. Sua inoperância vem do fato de não conseguir caracterizar o homem nem geneticamente, nem
biologicamente, muito menos determinar as diferenças culturais e comportamentais dos grupos que
pretendeu subdividir. Esse conceito arbitrário se tornou, contudo, uma “verdade” social e psicológica. É
levando em conta esses aspectos, bem como o interesse de Laferrière pelos estereótipos raciais, que este
termo é empregado neste estudo.
7
“Outro”, com maiúscula, é usado a fim de reforçar a idéia do sujeito não-igual, que é excluído ou exclui
pela suposta ausência de semelhança; e “outro”, com minúscula, quando me refiro ao semelhante, ao
sujeito que é supostamente igual.

10
migrantes, como Laferrière, estão contribuindo para pensar esta nova noção de

identidade que se cria e se recria em um ir e vir cultural e geográfico? Em que aspectos

a obra de Laferrière contribui para melhor apreensão da subjetividade pós- moderna?

Estas, entre muitas outras, foram perguntas que me estimularam a iniciar esta pesquisa,

algumas delas ainda ficarão sem respostas ou serão só parcialmente respondidas, mas,

seguramente, serão a motivação para continuar desenvolvendo e elaborando estas

reflexões.

Significativas mudanças, que se convencionou chamar de pós- modernidade,

começam a ocorrer nas sociedades avançadas a partir das décadas de cinqüenta (com a

arquitetura e a computação), sessenta (com a arte pop) e setenta (com a filosofia e a

crítica cultural), abrangendo, nos anos oitenta, uma ampla esfera social. Momento em

que a ciência e a tecnologia passam a fazer, invariavelmente, parte das produções

culturais e do cotidiano como um todo. Ascensão da mídia, valorização da imagem,

individualismo, enfraquecimento da instituição familiar, descrença nos grandes ideais

políticos e humanitários, na noção de Verdade, são alguns exemplos das transformações

pelas quais passa a complexa sociedade pós- moderna. Os velhos referenciais modernos

que pregavam a ordem, o progresso e a continuidade são questionados e o pluralismo, a

imprevisibilidade e as incertezas éticas e morais abundam. São, em síntese, os ideais de

pureza – noção, que de acordo com o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, atribui às

coisas luga res “justos” e “convenientes” – que a pós- modernidade questiona e reavalia.

O que se percebe no universo pós- moderno, segundo o autor, é um “anuviamento entre

o normal e o anormal, o esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o doméstico e o

selvagem – o familiar e o estranho, nós e os estranhos” (BAUMAN, 1997, p.37)

Ao afirmar que a realidade é discurso, ou seja, que só produz significados

através da linguagem e da interpretação, a crítica pós- moderna abole as fronteiras entre

11
a fantasia e a realidade, o significado e o significante, em síntese, entre o real e sua

representação. Assim, o homem pós- moderno se vê diante da possibilidade (da

liberdade) de construir seus próprios sentidos e dar vazão à sua alteridade. Nitidamente

ameaçadas essas distinções (alicerces da concepção iluminista de identidade, do sujeito

unificado), resta a constatação de que só é possível conhecer a si e ao Outro, através do

discurso, das narrativas (orais ou escritas) que permitem ao homem se representar, ou

melhor, se fazer significar.

Como conseqüência, a identidade pós-moderna só pode se revelar multifacetada,

seu horizonte é, segundo Régine Robin, ou a multiplicação do “eu” ou sua

desconstrução e fragmentação. Neste sentido, a reflexão pós- moderna se consagraria à

difícil tarefa de pensar a identidade em termos de diferença e não em termos de

oposições binárias, já que estas tendem a excluir ou a assimilar a diferença. Ao contrário

do sistema de representação criado pelo discurso colonial8 , que se estruturou na

demarcação das diferenças, em uma dinâmica maniqueísta – que se apoiava na

diferença do Outro e no repúdio da mesma –, o discurso pós- moderno pretende traduzir

a pluralidade de vozes e olhares dos sujeitos da diferença (cultural, racial, histórica,

social, etc.). Mas de acordo com Bauman, o reconhecimento da diferença na pós-

modernidade apresenta uma importante ambigüidade: a hesitação entre um “liberalismo

desfibrado, que docilmente renuncia ao direito de comparar e avaliar os outros e um

turbulento tribalismo que nega aos outros o direito de comparar e avaliar” (BAUMAN,

1997, p.103). Seria possível falar de alteridade sem contrapor identidades? Ora,

podemos até renunciar ao direito de avaliar o outro, no entanto é impossível escapar ao

imperativo da comparação, já que todo sujeito só se constitui como alteridade, se auto-

representa em comparação a um outro. A elaboração identitária está presa no jogo

8
Objeto de pesquisa de minha dissertação de mestrado: “Fantasmas e representações: construções e
desconstruções de identidades do negro em Dany Laferrière”.

12
especular que depende do outro, de sua imagem, de seu olhar – é a imagem que

construímos do outro, unida à imagem que esse outro fabrica de nós que nos remete à

nossa própria imagem. Buscarei, a partir dessas reflexões, compreender em que aspectos

essa nova noção de identidade contribui para ampliar a compreensão da relação entre

“eu” e o “Outro”. Partindo do pressuposto de que o “eu” só se constitui num processo

de inesgotável negociação com o outro, me perguntaria, em um segundo momento,

quem são e como são caracterizados os Outros (os estranhos) no contexto pós- moderno.

Laferrière se aproxima do discurso pós-moderno, na medida em que o autor se

recusa a fazer parte de qualquer movimento literário pós-colonial, ou de ser rotulado

como escritor étnico, pós-colonial, negro, francófono, caribenho, etc., e traduz na

escrita o desejo de escapar às verdades totalizantes e às identidades fixas, que vão de

encontro à multicultural realidade americana. Ao produzir uma literatura que se indaga,

entre outras coisas, a respeito do que significa ser negro, imigrante, escritor, americano 9 ,

no mundo contemporâneo, sua obra se abre para o diverso e coloca em questão a

paradoxal identidade do sujeito pós- moderno americano, fragmentada, herdeira da

empreitada colonial e em permanente elaboração.

Je suis un écrivain américain, de ce continent. J'écris avec ce que je suis, avec


mon sang, mon esprit, mes émotions, mes voyages, mes amours, mes
détestations, et mes livres traversent ces trois pays d'Amérique. J'ai l'habitude
de dire avec ironie que je suis un homme en trois morceaux. Très vite, j'ai
compris qu'il ne fallait surtout pas avoir mon corps en Amérique et mon esprit
toujours en Europe, plus particulièrement en France. Bizarrement,
l'intelligentsia caraïbéenne francophone a toujours vécu dans cette situation-là
(LAFERRIÈRE, 1999 C).

Laferrière vivencia desde muito cedo, em sua própria vida, deslocamentos geográficos

(e subjetivos), entre diferentes universos culturais. O autor nasce em 1953 em Porto

9
O termo América ou americano(a)(s) será usado para se referir ao continente americano e não aos
Estados -Unidos, para os quais usaremos o termo estadunidense.

13
Príncipe, mas aos quatro anos é forçado, por questões políticas (1957 é o primeiro ano

de ditadura dos Duvalier no Haiti), a deixar a capital. O pai de Laferrière, Windsor

Kleber, jornalista e homem público, foi prefeito de Porto Príncipe aos 23 anos e aliado

de Duvalier no início da revolução tendo sido nomeado sub-secretário do Estado do

comércio e da indústria. Por sua postura radical contra as injustiças e desigualdades

sociais, torna-se, em pouco tempo, inimigo do Estado, é afastado do cargo, do país e

morre no exílio (Nova York,1984), solitário e louco – “il avait simplement perdu la tête.

L’exil l’avait rendu fou” (LAFERRIÈRE, 2000, p.29). O pequeno Laferrière, tendo

herdado o nome do pai e correndo perigo, é levado para Petit Goâve pela mãe, que o faz

prometer- lhe (sem que ele saiba por quê) jamais revelar a público seu verdadeiro nome.

Em Petit Goâve passa uma infância feliz ao lado de sua maior inspiração, a avó Da.

Esta fase, importantíssima para sua formação afetiva, é narrada em L’Odeur du café –

“j’ai écrit ce livre pour toutes sortes de raisons. Pour faire l’éloge de ce café (le café de

Palmes) que Da aime tant et pour parler de Da que j’aime tant ” (LAFERRIÈRE, 1999

B, p.216) – e revisitada, seis anos mais tarde, em Le Charme. Embora durante esse

período receba uma educação escolar católica e francesa, vive imerso na cultura crioula,

em suas superstições, crenças e religião (o vodu). Em 1964 uma epidemia de malária o

obriga, novamente, a se mudar. Laferrière volta, assim, a Porto Príncipe para viver com

a mãe e as tias Raymonde, Renée, Gilberte e Ninine. A vivência em um contexto

exclusivamente feminino influencia muito sua identidade e sua escrita – “les hommes

étaient d’une certaine manière absents de la vie quotidienne, de la vie réélle. Ils

m’avaient laissé aux femmes. J’étais entouré des femmes. Je dormais avec les femmes.

J’étais cousu des femmes” (LAFERRIÈRE, 2000, p.39). O universo feminino, do desejo

e da fascinação pelo sexo oposto, durante a adolescência, é narrado em Le Goût des

Jeunes filles. Em 1972 (um ano após a morte de François Duvalier e do início do

14
governo de seu filho Jean-Claude Duvalier) Laferrière, seguindo os passos do pai, inicia

sua carreira de jornalista, primeiro como crítico de arte no jornal Nouvelliste, o mais

antigo do Haiti, mais tarde como comentarista político no jornal Le Petit Samedi Soir.

Em 1976 seu amigo e parceiro jornalista Gasner Raymond é brutalmente assassinado

depois da publicação, no Le Petit Samedi Soir, de uma série de artigos sobre a primeira

greve sindical no Haiti. Após esse episódio dramático, narrado em Le Cris des oiseaux

fous, Laferrière se sente mais uma vez ameaçado. Sabendo que tem poucas chances de

sobreviver à ditadura, decide deixar o país para não morrer, mas também para buscar

uma possível felicidade, uma identidade da qual pudesse se orgulhar – sua busca é

penosa, ambiciosa e bastante pretensiosa.

Je veux tout :
les livres,
le vin,
les femmes,
la musique,
et tout de suite (LAFERRIÈRE, 1994, p.44).

afirma o narrador em Chronique, primeiro romance do ciclo americano. Assim,

Laferrière chega em Montreal, aos 23 anos, com vinte dólares no bolso e muitos

desejos. Os primeiros anos serão muito duros, mas a publicação do seu primeiro e

polêmico romance Comment faire l’amour é um divisor de águas, que o transforma em

um escritor prolífero e reconhecido. Em 1990 o autor se muda para Miami, onde passa a

morar e sobretudo a escrever – oito dos dez romances que compõem sua “autobiografia

americana” – até 2002, quando retorna (voluntariamente!) para Montreal. Depois de

publicar em 2000 o último livro da “autobiografia americana”, Le cri des oiseaux fous,

Laferrière publica ainda quatro obras e dois roteiros – Je suis fatigué em 2000, uma

nova versão de Le goût des jeunes filles em 2004 (adaptado para o cinema, com roteiro

15
do autor, em 2006), uma nova versão de Je suis fatigué em 2005, Vers le sud em 2006

(também adaptado para o cinema, nasceu de um capítulo do romance La chair du

maître) e Je suis un écrivain japonais em 2008. Privilegiarei nesta pesquisa as obras do

ciclo americano, embora faça referências e transite pelas demais obras do autor,

inclusive, Je suis Fatigué. Farei igualmente referência ao livro de entrevistas J’écris

comme je vis (2000), realizado por Bernard Magnier com o autor.

A carreira artística e a vida pessoal de Laferrière são hoje indissociáveis do

Quebec, província que acolheu, entre as décadas de sessenta e oitenta, um enorme fluxo

de imigrantes haitianos, que fugiam do regime ditatorial de Duvalier. Escritores da

diáspora haitiana como Laferrière, considerados pela crítica quebequense como

“escritores migrantes”, trazem nova luz para a literatura da província, inovando-a, à

medida que percebem a sociedade quebequense sob novos ângulos. O conceito de

“escrita migrante” pressupõe, como apontou o crítico literário Pierre Nepveu, uma

mudança de paradigma em relação ao conceito de “escrita imigrante”, que se volta

sobretudo para a cultura de origem e a realidade concreta da imigração. Assim, ser um

“autor migrante”, que se desloca entre culturas, pode ser um elemento libertador, pois

narrar a partir de um entre- lugar, de uma experiência transcultural, torna favorável um

olhar mais aguçado e crítico do Outro e de si. Interessa- me igualmente pensar como os

críticos e os autores considerados migrantes no Quebec contemporâneo vêm pensando

(temática e esteticamente) a contribuição das heranças multiculturais e, mais

precisamente, do recente fluxo migratório para a construção de uma nova concepção da

identidade nacional.

O texto literário, segundo Jean-François Lyotard, pode ser considerado pós-

moderno, espaço por excelência do heterogêneo, quando questiona, na forma ou no

conteúdo, as noções de unidade, homogeneidade ou harmonia. O texto migrante se

16
inscreve na abertura pós- moderna, na medida em que transmite a idéia de movimento,

de transpasse de fronteiras, de diálogo de culturas, de zonas de coexistência simbólica,

em síntese, um espaço de simbolização da diferença. Pretendo, neste sentido, observar

as estratégias estilísticas de que se vale o autor, a saber: a pluralidade de vozes

narrativas, que recusa um mundo unilateral, o humor, a ludicidade e a ironia, a

justaposição de gêneros, a intertextualidade, a confusão entre autor e narrador, ficção e

autobiografia. Mas também as estratégias temáticas e metaficcionais, quais sejam: a

representação do estrangeiro e das minorias étnicas e culturais, a auto-representação do

escritor, a reflexão sobre a escrita, o tênue limite entre realidade e ficção e as

representações do sincretismo americano e da cidade de Montreal enquanto lugar

privilegiado de encontro com o Outro, com o heterogêneo, com a diferença.

O estrangeiro, em uma leitura psicanalítica, deixa entrever uma ausência radical,

a clivagem inerente a todo ser humano. É aquele que reatualiza o sentimento da falta

original, na medida que simboliza a ausência do país, da língua, da cultura natal.

Segundo o psicanalista e teórico da literatura Simon Harel, a experiência migratória

pode representar um sentimento de melancolia, se associada à idéia de perda e

abandono, e não à idéia de liberdade e construção. De acordo com o teórico, assim

como a criança deve fazer o luto do objeto perdido, em suas primeiras experiências de

diferenciação da mãe, o estrangeiro precisa, para viver bem a realidade, fazer o luto da

origem idealizada. Mais tarde, como faz a criança, esse objeto perdido será

obstinadamente procurado pelo exilado, através de diferentes formas de narrativa e

reconstrução histórica. Enfim, o que nos afirma a psicanálise é que, para que essa

desconfortante ausência, que o estrangeiro deixa transparecer e igualmente experimenta,

seja tolerada é necessário elaborar uma representação psíquica desse passado, dar a ele

um significado construtivo. Lacan afirma que é justamente em torno dessa fenda, do

17
real10 impossível de simbolizar, que se tecem as representações – “on écrit à cause d’un

manque. D’un TROU ” diz o narrador de Cette Grenade. E, de acordo com Lacan, cada

sujeito ou sociedade vai lidar com essa falta de uma forma diferente: escrevendo,

viajando, lendo, lutando, fantasiando, etc. No entanto, é, privilegiadamente, através das

narrativas de ficção, que narram histórias pessoais e/ou coletivas, que essas ausências

podem ser ilusoriamente preenchidas e as diferenças negociadas.

Quanto mais o mundo real é instável, inseguro, mais a ficção oferece opções,

“verdades” possíveis, é nela que “procuramos a espécie de certeza e segurança

intelectual que o mundo real não pode oferecer. Lemos romances a fim de localizar uma

forma, na informe quantidade de experiências terrenas” (BAUMAN, 1997, p.151).

Segundo Bauman, na pós- modernidade, ao contrário da modernidade, a “verdade”,

banida da realidade, é buscada na arte,

não mais visando o monopólio como sua realização ideal, e não mais
procurando o consenso e a fundamental confirmação de sua validade, as
verdades nascidas na obra de ficção, e por meio dela, podem – apenas podem –
preencher a deficiência, na existência humana, deixada pela espécie de
realidade que faz todo o possível para tornar a busca de significado redundante
e irrelevante (BAUMAN, 1997, p.159).

O “eu” pós- moderno está em busca de uma história, de uma memória, de um

passado, mesmo que seja através do presente. Neste sentido, tendo em vista o

questionamento e transformação das grandes narrativas históricas na pós- modernidade e

partindo do pressuposto que o estrangeiro é aquele que precisa se contar, o “e scritor

migrante” seria, segundo Simon Harel, aquele que, nas sociedades contemporâneas,

melhor contribuiria para este desejo, esta necessidade de reescrita da história, individual

ou coletiva. Mesmo, supostamente, excluído da história, o “escritor migrante” faz dela

10
O conceito de Real para a psicanálise diz respeito ao incognoscível, a tudo aquilo que não pode ser
nomeado, significado e que não terá jamais acesso à consciência.

18
um instrumento para dizer-se – “l’histoire me sert d’afrodisiaque”, afirma o autor-

narrador de Comment faire l’amour. O estrangeiro, justamente pelo fato de ser a

“encarnação” da ausência (da história, da origem), da fragmentação, da desordem, da

perda do objeto, por espelhar em si mesmo uma dualidade, não seria aquele que através

da escrita traduziria um nós possível, um diálogo, uma conciliação possível entre o “eu”

e o “Outro”, o conhecido e o estrangeiro, a falta e o desejo, a história individual e a

história coletiva?

Finalmente, poderia me perguntar: se a literatura pós- moderna busca traduzir a

polifonia do significado, através da desconstrução do mesmo, como pode oferecer

certezas, segurança intelectual, conciliação? Seria este o grande desafio da ficção

contemporânea? Lidar com as contradições pós- modernas – a semelhança na diferença,

a construção na desconstrução, a aproximação no afastamento, a coexistência na

pluralidade? Não seria esta a mais instigante função da literatura: se propor a “objetivos

desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização” (CALVINO,

1990, p.127)?

19
2. A CONSTITUIÇÃO DE NOVAS SUBJETIVIDADES NA PÓS-
MODERNIDADE

Pós-modernidade, segunda modernidade, modernidade líquida, modernidade

tardia, sobremodernidade, o que escolher? Por um lado, o conceito (ou a ausência dele)

surpreende por sua pouca coesão, homogeneidade ou unanimidade. Por outro, não é de

se surpreender que dúvidas, discussões, falta de consenso e de sistematizações mais

definitivas caracterizem, invariavelmente, as análises do presente. Como observa David

Harvey em seu estudo sobre a pós-modernidade, todo momento de transição se mostra

confuso, paradoxal, incerto. “O intervalo entre a decadência do antigo e a formação e

estabelecimento do novo constitui um período de transição, que sempre deve ser

necessariamente marcado pela incerteza, pela confusão, pelo erro” (CALHOUM citado

por HARVEY, 1992, p.115).

Diversos pesquisadores se questionam até mesmo quanto à legitimidade do

conceito. Harvey, por exemplo, se pergunta se o pós- moderno não seria apenas mais um

modismo acadêmico. Terry Eagleton, por sua vez, afirma que a crítica pós- moderna

tende a ter uma prática essencialista e, embora se pronuncie substancialmente aberta

para o Outro, é tão ortodoxa quanto a que pretende criticar. Eagleton “denuncia” a

impossibilidade de se escapar de um certo universalismo, daí a crítica ao

antiessencialismo e antifundamentalismo pós-modernos. Já para Linda Hutcheon “o

pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois

subverte os conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991, p. 19).

Apesar das freqüentes controvérsias, uma certa unanimidade da crítica pode ser

observada quanto à intenção da pós-modernidade de questionar as noções clássicas de

verdade, razão, identidade, progresso, as metanarrativas, as explicações essencializantes

do mundo e os ideais de pureza. Híbrido, descontínuo, plural, heterogêneo,

20
antitotalitário, antiautoritário, sobretudo anti! A crítica pós- moderna mais contesta do

que efetivamente propõe saídas ou afirma suas premissas.

Segundo a teórica da literatura Linda Hutcheon, a teoria pós- moderna não é nem

revolucionária como querem seus adeptos, nem neoconservadora como afirmam certos

críticos, já que a verdade e as referências não desapareceram, mas começaram a ser

necessariamente problematizadas. A pós-modernidade questiona o sentido da realidade,

como ela se dá e pode ser conhecida (HUTCHEON, 1991, p.280).

Eagleton, apesar das inúmeras críticas à teoria, aprecia na pós- modernidade o

aparecimento, nas discussões teóricas, das minorias, de uma revolução do pensamento

sobre o poder, o desejo, a identidade e o corpo. Segundo ele, sua conquista mais

duradoura é “o fato de que ajudou a colocar questões de sexualidade, gênero e

etnicidade com tanta firmeza na pauta política, a ponto de não concebermos sua retirada

sem uma luta tremenda” (EAGLETON, 1998, p.31,).

Não me parece exatamente proveitoso neste momento criticar ou julgar

moralmente a pós- modernidade enquanto prática social, pois como, muito

pertinentemente, afirma Fredric Jameson, isso implicaria julgar a nós mesmos. Diante

de tantas contradições envolvendo essa tal modernidade “líquida”, parece oportuno

partir de episódios “sólidos” ocorridos a partir das décadas de cinqüenta e sessenta e que

acarretaram transformações importantes no modo de vida, nas relações humanas e na

subjetividade do homem contemporâneo. E que, por sua vez, alteraram nossa forma de

compreender o mundo e interpretá- lo estética e intelectualmente. Nas palavras de

Harvey “façamos o que fizermos com o conceito, não devemos ler o pós- moderno como

uma corrente artística autônoma; seu enraizamento na vida cotidiana é uma de suas

características mais patentemente claras” (HARVEY, 1995, p.65); ou seja, é um

movimento que nasce em resposta a demandas concretas, a mudanças efetivas na vida

21
real. Segundo Harvey, as oposições entre muitas das características da modernidade e da

pós-modernidade caracterizam, na verdade, uma oscilação do próprio capitalismo. Em

suas palavras, poderíamos “dissolver as categorias do modernismo e do pós-

modernismo num complexo de oposições que exprime as contradições culturais do

capitalismo” (HARVEY, 1992, p.305).

A mim interessa, justamente, abordar a pós- modernidade em sua valorização da

diferença, da alteridade, em seu respeito das minorias que se organizam em torno da

raça, do gênero, da religião, sem jamais perder de vista as relações de poder que

encobrem toda prática social. É igualmente deste ponto que parto para pensar as

“literaturas migrantes” e, especialmente, a “autobiografia americana” de Laferrière, que

tocam fundo na questão das diversidades culturais, étnicas, e lingüísticas.

2.1. A Pós-modernidade: um conceito aberto

A teoria pós- moderna, que ganhou maior visibilidade nos anos setenta,

originalmente voltou-se para a estética, principalmente para a arquitetura e a literatura.

O filósofo Jean-François Lyotard forneceu a primeira definição filosófica do termo em

La Condition postmoderne (1979), a obra mais citada sobre o assunto. Este livro foi o

primeiro a tratar a pós- modernidade como transformação integral da condição humana.

O termo designa, para o autor, a condição da cultura após as transformações que

afetaram as regras dos jogos de linguagem, da ciência, da literatura e das artes a partir

do final do século XIX. Segundo o filósofo, a narrativa é um importantíssimo

instrumento de poder na medida em que legitima (a ciência) o saber. As metanarrativas

– grandes textos fundadores tomados como verdade, que regem nossas visões de

mundo, como os livros de História, os textos fundamentalistas, a Bíblia, o marxismo,

sistemas por intermédio dos quais unificamos e organizamos qualquer contradição –

22
foram profundamente desafiadas, na pós- modernidade, enquanto instrumentos de

legitimação de teorias pretensamente superiores. De acordo com Lyotard, esses valores

tradicionais foram substituídos por um novo modelo baseado no multicultural e na

abertura para o mundo, que va loriza as pequenas narrativas e desvaloriza um consenso

global. Uma outra conseqüência importante do fim da valorização das metanarrativas é

a desestabilização do sentimento de continuidade, de algo maior e mais duradouro que a

própria existência – ideais, utopias, a família, a nação, valores tradicionais. Uma

angústia tipicamente contemporânea é se sentir “à mercê da finitude”

Fredric Jameson, crítico marxista norte-americano, foi quem deu continuidade

ao debate de maneira contundente, considerando a pós- modernidade a partir de uma

lógica cultural mais global do capitalismo tardio. Baseou-se na concepção de Mandel

(“Capitalismo Avançado”) sobre o capitalismo. Antes dele, as pesquisas eram mais

setorizadas, por exemplo, Lyotard, se concentrou na ciência, Jürgen Habermas, na

filosofia, Ihab Hassan, na pintura e na música. Jameson trata das artes, da cultura como

um todo, situando a pós- modernidade na terceira fase de desenvolvimento do

capitalismo – que poderia se situar a partir de 1970, com a ruptura do Fordismo, modelo

de produção capitalista do pós-guerra.

Para Jameson, assim como para Lyotard, a questão da narrativa é algo

fundamental na experiência pós-moderna. Mas, para ele, foi, sobretudo, uma mudança

na concepção e experiência do espaço e do tempo que caracterizou as transformações da

pós-modernidade. Jameson recorre à metáfora da esquizofrenia para falar da

fragmentação pós- moderna. O esquizofrênico se reduz à experiência dos puros

significantes materiais. Perde a noção de passado, presente, futuro, de sua identidade e

experimenta uma “vastidão sem limites” (JAMESON, 2004, p. 53). Segundo Lacan, a

esquizofrenia representaria um rompimento na cadeia significante do sujeito, pois o

23
encadeamento dos significantes, um em relação ao outro, é o que produz significado.

Essa experiência pode se dar na produção literária e artística e, neste caso, esta sensação

de fragmentação e liberdade pode, segundo o autor, ser bastante positiva e produtiva.

Perry Anderson, por sua vez, afirma que na pós- modernidade a “vida psíquica torna-se

deliberadamente acidentada e espasmódica, marcadas por súbitas depressões e

mudanças de humor que lembram algo da fragmentação esquizofrênica” (ANDERSON,

1999, p. 64).

2.2. Modernidade e pós-modernidade: continuidade ou ruptura?

Falar de pós-modernidade implica, necessariamente, falar do movimento que a

antecede, a modernidade. Trata-se de uma ruptura radical ou uma continuidade? A

desconstrução da tradição, o hibridismo, o descentramento do sujeito característicos da

pós-modernidade encontram suas raízes nos valores de estabilidade, coerência,

exclusividade, homogeneidade, característicos do modernismo?

Segundo Jürgen Habermas, o projeto da modernidade começou no século XVIII

com os iluministas, que pensavam que através da razão, das artes e da ciência poderiam

controlar a natureza e compreender o mundo. Ou seja, ao proteger o homem das

irracionalidades, do lado sombrio da religião, promoveriam a moral, a felicidade e o

progresso. Somente através desse projeto seria possível revelar as qualidades universais,

eternas, imutáveis da humanidade como um todo. Assim, a crença nas verdades

universais, no progresso, na racionalidade, no tecnocentrismo, em ideais utópicos para

as ordens sociais, contavam entre os projetos da modernidade. Livre, unificado,

coerente, consistente, fechado, hierárquico, exclusivista, homogêneo, eis alguns

adjetivos recorrentes para definir este período. A modernidade buscava valores morais e

estéticos estáveis, durabilidade, tanto nas relações quanto nas ações, demarcava limites,

metas e valores, nesse ponto muito diferente da pós- modernidade que celebra o híbrido,

24
a instabilidade e a efemeridade. Segundo Jameson, a grande diferença está no fato de a

pós-modernidade buscar (no presente) o evento revelador depois do qual nada mais foi

o mesmo e a modernidade voltar sua atenção para o que aconteceria após a mudança

(JAMESON, 2004, p.13). Ou seja, a modernidade, embora valorizasse o passado, tinha,

sobretudo, um projeto para o futuro.

Por outro lado, e paradoxa lmente, a instabilidade e a falta de segurança,

sentimentos muito presentes na pós-modernidade, estão recriando uma tendência por

parte da sociedade a desejar valores estáveis (como família, religião, Estado) e a buscar

raízes históricas. Segundo Eagleton, “quanto mais instabilidade, mais teremos de insistir

nos valores tradicionais” (EAGLETON, 1998, p.127) ou produzir algum tipo de

‘verdade eterna’ (HARVEY, 1992, p.263).

Nos anos que precederam as transformações que nos levaram à chamada pós-

modernidade, uma chama revolucionária tomava conta do mundo: a descolonização do

terceiro mundo, a revolução cubana, a revolução cultural na China, maio de 68 na

França, etc., mas aos poucos as utopias políticas e revolucionárias foram se esgotando.

Na opinião de Eagleton e Alex Callinicos, o desapontamento com a esquerda

revolucionária e a derrota do movimento operário, associados a um aumento do

consumo de massa, estão diretamente relacionados ao aparecimento de um pensamento

pós-moderno – mais cético, menos engajado e carente de projetos coletivos

(ANDERSON, 1999, p.96). O modernismo era antiburguês, “o pós- modernismo é

quando, sem qualquer vitória, esse adversário desaparece” (ANDERSON, 1999, p.102).

Muitos temas, sem, no entanto, terem desaparecido, não são mais discutidos como

antes, como as lutas de classe, a fome, o socialismo (ou outras utopias coletivas que

desafiam o capitalismo).

25
Harvey afirma que há muito mais continuidade do que descontinuidade entre o

modernismo e o pós-modernismo. Este último representaria uma crise do primeiro,

“uma crise que enfatizou o lado efêmero e caótico da formulação de Baudelaire [...]

enquanto exprime um profundo ceticismo diante de toda prescrição particular sobre

como conceber, representar ou exprimir o eterno e imutável” (HARVEY, 1992, p.110).

Para o teórico da literatura Stuart Hall, também há continuidade, pois o pós- moderno

seria a fase mais popular do modernismo, e, por ser mais contestador, descentrado,

deslocado de antigas hierarquias, cria espaços de valorização da cultura popular.

2.5. As ideologias da pós-modernidade:

Os efeitos ideológicos mais bem sucedidos são os


que não têm palavras e não pedem mais do que o
silêncio cúmplice. A produção do capital simbólico
serve a funções ideológicas porque os mecanismos
por meio dos quais ela contribui para a reprodução
da ordem estabelecida e para a perpetuação da
dominação permanecem ocultos (HARVEY).

O capitalismo avançado acarretou um novo modo de pensar, viver e se

relacionar com os Outros. O pós- modernismo, enquanto movimento teórico e cultural, é

a resposta a esta nova realidade. Uma indiscutível transformação global na economia, na

política e na vida social ocorreu nas décadas de setenta e oitenta. A enorme volatilidade

do mercado, o visível crescimento do tempo de giro das mercadorias, o avanço das

multinacionais, o fim do estado do bem estar social, o aumento da competição

mercadológica, das sub-contratações e a diminuição do poder sindical, dos contratos

duradouros, etc., passam a fazer parte da realidade. As conseqüências, no plano

concreto, dessas transformações foram múltiplas, dentre elas: o aumento da pobreza, do

desemprego, da instabilidade no trabalho, do caos urbano e das diásporas diversas.

No plano subjetivo, as mudanças não foram menos marcantes, a lógica do

mercado e a crescente falta de garantias gera comportamentos fugidios, valores sempre

26
renováveis, instabilidade nos laços sociais, prazeres de consumo oscilantes, proliferação

de signos, supervalorização da imagem, etc.. “A lógica do mercado é de prazer e

pluralidade, do efêmero e descontínuo, de uma grande rede descentrada de desejo da

qual os indivíduos surgem como meros reflexos passageiros” (EAGLETON, 1998,

p.127). Há algo de móvel, de escorregadio, de movediço nesse capitalismo desenfreado

que tornou o desejo volátil e descartável em diferentes setores: cultural, político,

amoroso, econômico, etc.. Uma sede de variedade, de renovação toma conta do mundo,

o novo se torna um valor em si e compromissos mais definitivos atrapalham o consumo.

Há uma imperativa necessidade no sistema capitalista de se diferenciar e de mudar

constantemente.

Houve um forte investimento no setor de serviços e, sobretudo, no de

comunicação. A informação na sociedade capitalista avançada se torna essencialmente

mercadológica; no mercado financeiro, por exemplo, as informações privilegiadas são a

grande garantia de lucro. As novas tecnologias de comunicação e a televisão, em

especial, ocupam um lugar privilegiado nas sociedades – “oferecem um objetivo comum

(virtual) em torno do qual comunidades virtuais podem se entrelaçar, alternadamente

atraídas e repelidas pelas sensações de sincronicidade de pânico (às vezes moral, mas

geralmente imoral ou amoral) e êxtase” (BAUMAN, 2001, p.299). A mídia tornou-se a

grande interlocutora das novas gerações, criando uma virtualização das relações e uma

estetização da realidade.

Segundo Harvey, existe no capitalismo avançado uma forte tendência da

realidade a imitar imagens da mídia. A publicidade e as imagens da mídia em geral

manipulam os desejos, as escolhas e as identidades (HARVEY, 1992, p. 85). A Internet,

a tevê a cabo, por exemplo, nos colocaram em contato com todo tipo de imagens do

mundo inteiro. “Parece que por meio da experiência da comida, da televisão, do cinema,

27
da música, etc. é possível vivenciar a geografia do mundo, como um simulacro”

(HARVEY, 1992, p.271); “ouvimos reggae, assistimos faroeste, almoçamos no

McDonald’s e jantamos comida local, usamos perfume de Paris em Tóquio e roupas

‘retro’ em Hong-Kong” (LYOTARD citado por HARVEY, 1992, p. 86). Certos teóricos

sociais vêem nessa sobrecarga sensorial e visual um excesso desmedido, pois

freqüentemente as imagens passam a ter mais importância do que os fatos. Os

simulacros – réplicas tão próximas da perfeição que não é possíve l fazer a diferença

entre a cópia e o original – e as fantasias podem, segundo Harvey, nos influenciar a

ponto de alterar a própria realidade ou de se tornar a própria ‘realidade’. Assim,

passamos a viver em um mundo “de estímulos artificiais e experiência via tevê: nunca,

em nenhuma civilização anterior, as grandes preocupações metafísicas, as questões

fundamentais do ser e do significado da vida parecem tão absolutamente remotas”

(ANDERSON, 1999, p.63).

Essa lógica de mercado capitalista, que cultua as imagens, as aparências, os

simulacros e que tudo absorve cria, por sua vez, uma massa da excluídos: os sem-poder-

de-consumo. Indivíduos que não se encaixam, que não encontram espaço nesta corrida

desenfreada pelo consumo, pelo poder e pelos “quinze minutos de fama”. Trata-se de

uma exclusão social, econômica e cultural advinda da falta de trabalho, salários dignos,

estabilidade financeira, educacional, habitacional. O que se observa na pós- modernidade

são dois movimentos antagônicos: por um lado, há o medo da invasão e da violência

desse Outro-excluído – ora invisível (ignorado), ora ameaçador; por outro lado, há uma

valorização e uma abertura (nem que seja teórica) para os Outros marginalizados, já que

as reflexões sobre a diferença e a exclusão têm sido de extrema importância para as

discussões pós- modernas. Nas palavras de Hutcheon,

o ex-cêntrico ou o diferente tem se constituído numa das forças do pós-


modernismo que têm atuado no sentido de restabelecer o vínculo entre o

28
ideológico e o estético. A raça, o sexo, o etnicismo, a preferência sexual – tudo
isso passa a fazer parte do domínio do político, à medida que diversas
manifestações de autoridade centralizantes vão sendo desafiadas
(HUTCHEON, 1991, p.247-248).

O Outro silenciado começa a aparecer mais intensamente nos discursos teóricos e nas

artes nos anos setenta e oitenta. Saussure, Lacan e Derrida inauguram importantes

discussões teóricas sobre a diferença – o sistema diferencial da linguagem e as

significações decorrentes. No caso da teoria psicanalítica, a diferença está na essência

da definição lacaniana de sujeito dividido como entidade produtora de sentido. A pós-

modernidade e as transformações do capitalismo tardio acarretam, nesse sentido, um

novo modo de se relacionar com os Outros – “o capit alismo não inventou o Outro, mas

fez uso dele e o promoveu de forma estruturada” (HARVEY, 1992, p.101).

Para Hutcheon, o grande paradoxo da teoria pós- moderna está no fato de ser

crítica em termos políticos e cúmplice em termos econômicos. De um lado, a cultura de

massa, a globalização, de outro, o regionalismo, a valorização das produções e

identidades locais; a pós- modernidade ao mesmo tempo em que está inserida subverte a

lógica capitalista. Segundo a autora, no pós- modernismo não há dialética. Suas

contradições são explícitas e impossíveis de se resolverem, já que é “fundamentalmente

contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político” (HUTCHEON,

1991, p.20). A pós-modernidade é, sobretudo, uma “força problematizadora” e auto-

reflexiva que questiona tudo, mas que não pretende resolver, solucionar seus problemas

ou suas contradições. Questionar, neste caso, não significa propor saídas ou respostas

definitivas e sim deslocar certezas.

A crítica contemporânea concebe a ideologia como uma produção de sentido.

E não mais como, segundo Karl Marx, uma espécie de distorção histórica, uma

29
construção simbólica que encobre a real (a “verdadeira”) maneira como as relações

sociais são produzidas. Para a crítica pós- moderna, tudo existe na ideologia e por meio

dela, não importa em quais práticas sociais, culturais, familiares ou políticas. Logo, as

representações simbólicas não podem escapar da dominação ideológica. Segundo

Eagleton, a ideologia existe muito mais como legitimação do que como reflexo do que

se faz, e significa “as formas nas quais aquilo que dizemos e em que acreditamos se liga

à estrutura de poder e às relações de poder da sociedade em que vivemos”

(EAGLETON citado por HUTCHEON, 1991, p.227-228). Nada escapa às relações de

poder e o que se discute intensamente hoje é a cumplicidade entre discurso e poder – “o

ato de dizer é um ato intrinsecamente político” (HUTCHEON, 1991, p.235). Assim,

questionar o poder ideológico pressupõe analisar o que está por trás de toda produção

cultural e de toda representação. Hoje, analisar uma obra literária implica, muito

freqüentemente, analisar sua atitude política e ideológica. Na pós- modernidade “o poder

não é um simples tema geral de romance. Ele também assume uma poderosa força

crítica no discurso incorporado e aberto do protesto, especialmente no protesto de

classe, sexo e raça” (HUTCHEON, 1991, p.237).

Em síntese, o que a crítica pós-moderna questiona são as bases das certezas e

dos conceitos nos quais nos apoiamos para julgar, ava liar e organizar o mundo. Assim,

a nova ideologia pós- moderna se resumiria na afirmativa de que tudo é ideológico.

Logo, a consciência da ideologia (a própria crítica pós- moderna) é tão ideológica

quanto o senso comum – que é a não consciência da ideologia.

30
2.4. O pós-moderno, o pós-colonial e a experiência da alteridade

De uma forma curiosa, o pós-colonial prepara o indivíduo


para viver uma relação “pós-moderna” ou diaspórica com
a identidade (HALL).

As teorias pós-coloniais, criadas nos anos oitenta, ocupam-se de temas que

giram em torno dos efeitos da colonização sobre as culturas e sociedades colonizadas e

se interessam, sobretudo, por suas manifestações culturais, em especial pela literária. A

literatura pós-colonial se elabora em torno de uma revisão e uma reformulação da

História, recusa a hegemonia ocidental, revisa os cânones, dá a palavra ao Outro e a

suas verdades, propondo novas possíveis narrativas. A escrita está no centro de sua

temática e é um importante instrumento nesta busca de uma identidade nacional ou

multicultural.

Os estudos pós-coloniais foram influenciados pelas idéias pós-modernas, tendo

em vista seu objetivo de dar voz a povos e culturas que foram silenciados. Tendo em

vista que de acordo com grande parte dos críticos, a maior qualidade da pós-

modernidade está em ouvir as margens e reconhecer “as múltiplas formas de alteridade

que emergem das diferenças de subjetividade, de gênero e de sexualidade, de raça, de

classe, de (configurações de sensibilidade) temporal e de localizações e deslocamentos

geográficos espaços temporais” (HUYSSENS citado por HARVEY, 1992, p.109).

No que diz respeito à História, o que se percebe nas teorias pós- modernas e pós-

coloniais é uma crítica contundente à idéia da História “colonizadora” que rasurou

datas, “verdades” e eventos. A teoria pós- moderna compreende a História enquanto

narrativa de grande valor, mas não em si mesma, pois cada narrativa cria sua própria

visão do mundo, narra a partir de seu ponto de vista dos acontecimentos, dá contornos

particulares, valoriza certas datas, apaga outras, acrescenta anedotas ou as altera de

31
acordo com seus interesses. Nesse sentido, é indiscutível que é a classe detentora do

poder quem escreve a História. São esses discursos e práticas do poder que a pós-

modernidade problematiza. Nesse aspecto, o desejo de preservar e resgatar o passado

não desaparece na pós- modernidade, pois a elaboração da identidade está sempre

associada a um passado individual ou coletivo. Como afirma Hewison:

o impulso de preservar o passado é o impulso de preservar o eu. Sem saber


de onde viemos é difícil saber para onde estamos indo. O passado é o
fundamento da identidade individual e coletiva; objetos do passado são a
fonte de significação como símbolos culturais. A continuidade entre passado
e presente cria um sentido de seqüência para o caos aleatório [...]. O impulso
nostálgico é um impulso agente do ajuste à crise, é o seu emoliente social,
reforçando a identidade nacional quando a confiança se enfraquece ou é
ameaçada (HEWISON citado por HARVEY, 1992, p. 85).

No entanto, não faltam críticas a uma ala mais radical da pós- modernidade que,

segundo Eagleton, vê “a história como uma questão de mutabilidade constante,

exuberantemente múltipla e aberta, uma série de conjunturas ou descontinuidades que

só uma violência teórica poderia forçar a unidade” (EAGLETON, 1998, p.51). Outros

críticos afirmam que a pós- modernidade faz, sobretudo, citações do passado, de forma

fragmentada e heterogênea, em diferentes espaços como a televisão, o cinema, a

literatura, a arquitetura, a música, etc. – misturam-se estilos, épocas, documentário,

biografia e ficção. Segundo Jameson, somos obrigados a buscar a História “através de

nossas próprias imagens e simulacros pop dessa história” (JAMESON citado por

HARVEY, 1992, p.65), fazendo deste ecletismo midiático uma forma de representação

contemporânea.

As teorias pós-coloniais são, em contrapartida, criticadas por reforçarem

oposições binárias tais como: colonizador e colonizado, igualdade e diferença, centro e

32
periferia, eu e o Outro. Este Outro ao qual a crítica pós-colonial se opõe é

freqüentemente único: o ex-colonizador. O pós-colonial se interessa pela demarcação

das diferenças através da dinâmica maniqueísta do colonialismo (onde a inferiorização

do colonizado implica a valorização do colonizador), já que o Outro colonizado jamais

foi visto em sua diferença, mas em sua ausência de semelhança, logo em sua falha. “A

mímica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma

diferença que é quase a mesma, mas não exatamente” (BHABHA, 1998, p.163). Ou

seja, o pós-colonial questiona este discurso construído em torno de uma ambivalência: a

valorização da diferença do Outro e o repúdio da mesma.

Os Outros, que se deseja desafiar na pós-modernidade, são múltiplos e mais

facilmente alteráveis. A pós-modernidade seria, assim, um desdobramento, um segundo

momento, do pós-colonialismo na medida em que busca falar das minorias, das

diferenças, das diásporas e das identidades migrantes tipicamente contemporâneas

(decerto, herdeiras da empreitada colonial) evitando oposições binárias. Segundo

Hutcheon, o “conceito de diferença envolve uma contradição tipicamente pós-moderna:

a ‘diferença’, ao contrário da ‘não- identidade’, não tem nenhum oposto exato contra o

qual ela se possa definir” (HUTCHEON, 1991, p.22). A pós- modernidade proporia,

assim, uma compreensão mais democrática e menos excludente da relação com o Outro.

Mas até que ponto isso é possível? Até que ponto os sujeitos da diferença podem ser

efetivamente representados sem que se recaia em oposições excludentes; como escapar

da perspectiva marginal ou ideal da diferença cultural? O elogio da diferença pode se

tornar reacionário, impossibilitando o diálogo?

Eagleton, crítico feroz, afirma, entretanto, que a pós- modernidade também

trabalha em termos de oposições rígidas, na medida em que se opõe tão ortodoxamente

a idéias como unidade, identidade e universalidade. Para o autor, a teoria escolhe falar

33
da cultura humana, mas não da natureza; do gênero, mas não da classe; do corpo, mas

não da biologia; do pós-colonialismo, mas não da burguesia (EAGLETON, 1998, p.34).

Embora a pós-modernidade valorize as diferenças e a pluralidade, segundo Eagleton,

isso não pode constituir um bem por si só. É preciso, segundo ele, sempre situar e

contextualizar as diferenças antes de fazer um elogio cego das mesmas (EAGLETON,

1998, p.124). O que o crít ico pretende dizer é que a valorização da diferença não

pressupõe, necessariamente, uma maior disponibilidade para o diálogo entre os ex-

cêntricos ou o fim das desigualdades, pois sua percepção e estima não bastam em si

mesmas, são apenas passo indispensável para o diálogo e a abertura para o Outro.

Outra parte da crítica acredita que a teoria pós-colonial é muito mais

contestadora-política e historicizante do que a pós-modernidade, pois pensa que esta

última desconsidera a identidade pós-colonial, que se estrutura em torno da idéia “da

necessidade das vítimas do imperialismo ocidental de adquirir uma noção de si mesmas

não contaminada pelos conceitos e imagens universalistas ou eurocêntricas”

(ANDERSON, 1999, p. 137).

O debate pós-colonial, diferentemente do que aconteceu em grande parte das ex-

colônias americanas, não se desenvolveu amplamente no Quebec. Segundo o crítico

literário quebequense André Lamontagne, há duas possíveis razões para isso :

de duas coisas uma : ou os quebequenses são ainda colonizados demais para


pretender o “Pós” [...] ou nunca foram suficientemente colonizados (mas
semicolonizados, como parecia pensar Jacques Ferron) para se interessar por este
‘depois’ [...]. Da mesma forma que nós vivemos uma independência fantasmada
através da existência da nossa literatura nacional, o pós-colonialismo continua
sendo um tema tabu (LAMONTAGNE, 1995, p.38).
No entanto, os escritores considerados migrantes, tal como Laferrière, originários das

ex-colônias européias, trazem, freqüentemente, à tona a questão da violência colonial e

das conseqüências para o imaginário coletivo. Suas narrativas são comumente

34
marcadas, ainda que por um viés individual ou autoficcional, pelo questionamento da

história coletiva e pela temática da marginalização, aspectos que compõem a condição

pós-colonial. Laferrière, embora afirme construir uma escrita da individualidade, se

interessa pelo lado obscuro da História, jamais pela propaganda nacionalista que afirma

que a vítima ignora o mal. O autor procura, sobretudo, repensar a ideologia colonial,

matriz das representações maniqueístas (superioridade do “colonizador”, a inferioridade

do “colonizado”) do sujeito americano. Segundo Bhabha, “o estado colonial – a

ideologia colonial – perturba a representação social e psíquica do sujeito humano”

(BHABHA, 1998, p.72). Laferrière vai desafiar em muitos momentos na “autobiografia

americana” as representações do negro e do colonizado – freqüentemente através do

humor, da ironia. Neste sentido, resgata a problemática pós-colonial, dando- lhe um

contorno pós- moderno.

As obras do ciclo americano abordam a questão colonial principalmente sob o

ponto de vista dos estereótipos raciais e do sexo inter-racial, enquanto nos romances do

ciclo haitiano a herança colonial é uma presença cotidiana, matriz de grandes

desigualdades. La Chair du maître é a obra da “autobiografia americana” que toca de

maneira mais contundente na problemática colonial haitiana. O próprio título do

romance remete à questão do colonizador, do desejo e do ódio pela “c hair du maître”. O

romance se passa em Porto Príncipe, no período que sucede a transição do poder de

François Duvalier a seu filho Jean Claude Duvalier, e narra as mudanças – maior

abertura para novos costumes, o jazz, o rock, o cinema, o sexo, as drogas – vivenciadas

pela sociedade haitiana da época, principalmente pela juventude. A obra se insere na

temática pós-colonial, na medida em que questiona os abusos da história colonial e

repensa a identidade nacional como conseqüência. Laferrière retoma de uma maneira

indireta, o tema do doloroso passado colonial e, de maneira mais direta, o censurável

35
presente ditatorial, tornando, a cada novo capítulo, a violência e a desigualdade mais

explícitas. No capítulo “La maîtresse du colonel” o autor deixa claro que a história

colonial, apesar da distante e bem sucedida luta pela independência, é uma presença

incontornável no Haiti contemporâneo. O tema da prova de história proposto pela escola

é um exemplo da ambigüidade identitária com relação à influência cultural e lingüística

do colonizador francês: “Etzer Vilaire est-il un poète français exilé sur la terre d’Haïti

ou un poète haïtien avec une sensibilité européenne? ” (LAFERRIÈRE, 2000 C,

p.197). O narrador conclui : “nous ne sommes pas des Français en Amérique, ni des

Africains en exil, nous sommes des Haïtiens, vous comprenez? » (LAFERRIÈRE, 2000

C, p.172). Com relação à importância da independência, a pergunta “l’indépendance a-

t-elle été un bien ou un mal pour Haïti?” (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.196), também tema

da prova de história do narrador, fica no ar e cabe ao leitor respondê-la. A resposta de

Laferrière a esta questão não oferece, todavia, ambigüidades; para ele, não se trata de

questionar a pertinência da independência, mas revisitar e questionar a violência

colonial enquanto marca indelével deixada no imaginário haitiano e na estrutura

socioeconômica do Haiti.

En Haïti il y avait un million d'Indiens. Ils ont été exterminés par le travail, pas
par la guerre. Ce fut un génocide total. Ils ont été écrasés par la machine
européenne, qui comprenait les Français, les Espagnols, les Italiens et les
Anglais. Donc, que Dessalines et son groupe aient pu se révolter et mener le
pays à l'indépendance, ce n'est pas un débat. L'être humain doit avoir sa
liberté, et ce n'é tait pas une situation comme au Québec, où l'économie va bien
ou mal, mais où on peut discuter. On parle ici d'esclavage. Durant la traversée
des esclaves venant d'Afrique en Amérique, il y a eu 300 000 morts, tout
simplement parce que les gens étaient entassés les uns sur les autres dans les
cales des bateaux et que, là où aurait dû se trouver une dizaine de personnes,
ils étaient 200, 300. On avait affaire à des gens qui n'avaient aucune morale
(LAFERRIÈRE, 1997).

36
La chair du maître se transforma, assim, no romance da “autobiografia americana” com

maior número de cenas de violência, social, política e principalmente sexual – pois

como afirma Gilbebrto Freyre “não há escravidão sem depravação sexual” (FREYRE,

2001, p.322).

0.1. A ficção na pós-modernidade

Segundo Slavoj Zizek, a diferença entre pensamento moderno e o pós-moderno

está no fato de que no primeiro o real não aparece, “o que deixa em aberto a

possibilidade de apreendermos o vazio central sob a perspectiva de um Deus ausente”,

enquanto na pós-modernidade ele aparece como “o vazio encarnado, positivado, ‘onde’

o objeto aterrador é um objeto cotidiano” (ZIZEK citado por RINALDI, 1996, p.76). A

literatura ficcional pós-moderna, segundo Lyotard, procura, justamente, apresentar,

tratar, incorporar esse não-representável, sensibiliza e “reforça nossa capacidade de

suportar o incomensurável”. Narrar significa, nesses termos, expor esse estranho

“incomensurável” que habita todo ser humano.

Segundo Hutcheon, a ficção na pós-modernidade agrega compromisso político,

protesto, sátira e ironia. Confunde tempo e espaço, mistura autobiografia e ficção,

montagem, colagem, “cópias, intertextos, paródias – esses são alguns conceitos que

desafiam as noções humanistas de originalidade e universalidade” (HUTCHEON, 2003,

p.243). O romance pós-moderno questiona na escrita e no conteúdo as noções de

unidade, homogeneidade e harmonia.

Tudo se passa como se esta escrita fosse secretamente motivada por uma pulsão
de dilaceramento […] a ruptura instaura uma nova ordem no discurso ; instaura
a ordem da pluralidade, da fragmentação, da abertura; ela instaura, em síntese,
a ordem do heterogêneo (PATERSON, 1993, p.20).

37
A estética pós- moderna celebra o deslocamento e a fragmentação, “personagens

confusos e distraídos vagueiam por esses mundos sem um claro sentido de localização”

(HARVEY, 1992, p.272).

O “eu” pós- moderno, enquanto identidade caleidoscópica, está em busca de uma

história, de uma memória, de um passado, mesmo que seja através do presente – “je

suis un écrivain du présent. J’essaie de repérer les traces du passé dans le présent”,

afirma Laferrière –, que o configure, que lhe sirva de moldura, daí a importância da

escrita. De acordo com Hutcheon essa nova escrita, que de alguma forma valoriza a

presença do passado, não busca nem a redescoberta da origem idealizada, nem o

restabelecimento de um passado fechado. Ao contrário, a ironia, a pluralidade e o

distanciamento são características da busca do passado.

O mito da cultura nacional procura apagar as diferenças em uma única

identidade e dar a ilusão de uma homogeneidade que não existe. E uma das

conseqüências da globalização pós- moderna é justamente o declínio das identidades

nacionais em nome dessas novas identidades – híbridas, ou melhor, que se

compreendem assim, pois considero que “todas as identidades estão localizadas no

espaço e no tempo simbólicos” (Hall, 2002, p. 71). No mundo atual, de acordo com

Hall, existem identidades que gravitam em torno do que se denominou de tradição, e

que buscam resgatar sua história, sua pureza e uma suposta unidade perdidas. Existem,

no entanto, outras identidades que aceitam a idéia de que são fruto da interação com

outras culturas e que serão sempre influenciadas por elas, ou seja, jamais poderão ser

puras ou unas. Essas identidades gravitam em torno do que se denominou de tradução:

“este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e interceptam

as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua

terra natal” (HALL, 2002, p.88): elas carregam elementos de todas as culturas, as

38
tradições e as línguas que as formaram. Para indivíduos que vivem entre duas, ou mais,

culturas, a idéia de traduzir é essencial, pois significa transportar-se entre dois mundos,

negociar significados. É justamente dessas identidades, múltiplas e em constante

construção, desse entre- lugar cultural, que produz identidades híbridas, que fala a

“autobiografia americana” de Laferrière. Texto migrante, autoficcional, multicultural,

político, no sentido de recus ar a assimilação cultural, tradutor e conciliador de

diferenças – a ausência e a presença, a realidade e o fantasma, o conhecido e o

estrangeiro, o presente e o passado, o “eu” e o “Outro” – “on écrit pour appartenir. Au

début, je pensais que c’était pour me libérer, me séparer [...] Écrire ça relie”

(LAFERRIÈRE, 1993, p.43), afirma o narrador de Comment faire l’amour.

A “autobiografia americana” como um todo tem a estrutura das narrativas pós-

modernas, na medida em que é composta por um conjunto de obras de gênero híbrido,

que mesclam autobiografia, ficção, diário, crônica, ensaio, biografias, em narrativas

fragmentadas que transitam entra passado e presente – na pós-modernidade “a dimensão

do tempo foi abalada, não podendo viver nem pensar exceto em fragmentos de tempo,

cada um dos quais segue sua própria trajetória e desaparece de imediato” (HARVEY,

1992, p.263). Laferrière, ao transitar entre diferentes culturas – haitiana, quebequense,

estadunidense, francesa e africana (sendo as duas últimas referências culturais mais

fantasmadas do que vivenciadas) –, gêneros literários, registros de língua, temáticas,

abre-se para uma multiplicidade de interpretações do mundo e de sua própria história.

Jornalista, romancista, ensaísta, poeta, comentarista de arte, roteirista e diretor de

cinema, a pluralidade está presente na vida de Laferrière em função de sua história, de

suas migrações, mas, principalmente, em função de suas escolhas; uma vez que vive em

guerra contra a uniformidade e se recusa a olhar, ler ou narrar o mundo de forma

unilateral. Suas obras são, assim, como ele próprio, voluntariamente, inclassificáveis.

39
Je ne sais pas à quel genre appartiennent mes livres. Je les crois assez
hybrides, inclassables, à la fois mémoire, reportage, peinture, musique - car il
y a un rythme dans ces textes-là. Quand j'écris, j'essaie d'utiliser tous les
instruments imaginables (LAFERRIÈRE, 1997)

Cada romance da “autobiografia americana” elabora à sua maneira esta pluralidade de

contribuições estilísticas, temáticas, metaficcionais e intertextuais.

Nos romances do ciclo americano, os personagens, não somente os

protagonistas, alter egos do autor, são sujeitos tipicamente pós-modernos: migrantes,

fragmentados, sem identidade sólida, desamparados, deslocados pelo espaço urbano e

cosmopolita das grandes metrópoles – Chronique e Comment faire l’amour se passam

unicamente em Montreal, Eroshima se passa em cidades de diferentes partes do mundo,

Europa, América e Ásia, em Cette Grenade o narrador circula entre Montreal e

diferentes cidades norte-americanas, em Pays sans chapeau entre a frenética Montreal e

a caótica Porto Príncipe. Na pós- modernidade viver nas grandes cidades pode ser

libertador no sentido de proporcionar a chance de representar diferentes papéis, mas, por

outro lado, pode ser estressante e desestabilizador. Trata-se de espaço urbano híbrido e

plural que favorece as heterogeneidades humanas e culturais – das práticas de lazer, dos

espaços públicos, da arquitetura – e permite o confronto de códigos culturais

diverge ntes.

O fragmento é, com efeito, a marca existencial do caráter necessariamente


múltiplo da cidade. Trata-se do descontínuo, o movimento, o mesmo e o
diferente, o passado e, neste caso, o futuro. Trata-se do único discurso possível,
pois o único a poder apreender o acontecimento em seu imediatismo, sua
pontualidade, sua vulnerabilidade (DEMERS citada por MATHIS-MOSER,
2003, p.196).

Diferentemente do espaço na modernidade – visto como algo que podia ser moldado,

controlado – o espaço pós- moderno é independente e autônomo.

40
Outrora a cidade podia ser arquitetonicamente projetada e mentalmente
representada como um habitat compreensível. Mas com o industrialismo a
cidade foi encaixada em sistemas abstratos que não podiam mais ser captados
esteticamente numa presença inteligível (ANDERSON, 1999, p.51).

A auto-representação do escritor e do processo da escrita – uma tendência dos

romances pós- modernos – está presente, sobretudo, nos romances do ciclo americano,

sendo a intertextualidade uma marca fundamental da “autobiografia americana” como um

todo. Comment faire l’amour, Pays sans chapeau e Cette grenade – que inclusive são uma

mise en abyme do romance que escreve o narrador – são textos que tematizam o ato de

escrever e a literatura, com freqüente autoderrisão. Trata-se de um narrador-escritor, que

conta em primeira pessoa suas experiências autobiográficas e a complexa prática da criação

literária. Em Éroshima, embora o narrador não revele sua profissão, faz freqüentes

referências ao seu hábito de fazer anotações – “je note dans mon carnet trois choses: le

sexe, la bombe et la mémoire” ou “au printemps 1987, je commence à rassembler des notes

à propos de ma rencontre avec Hoki” ”(LAFERRIÈRE, 1998 A, p.47) . Chronique, por sua

vez, narra o momento que antecede a decisão mais transformadora da vida do narrador:

tornar-se escritor.

Segundo Serge Doubrovsky, a autoficção seria a escrita do presente, diferente da

autobiografia que seria a escrita do passado. Laferrière procura, justamente, fazer uma

literatura do presente, ou seja, resgatar as emoções, as impressões do passado, trazendo-

as para o presente. Embora transite em todos os livros do presente ao passado, trata-se

de sempre de um passado recomposto, recriado em função de suas experiências

presentes. Nos romances do ciclo haitiano e em Chronique, embora Laferrière narre sua

vida passada, antes da carreira de escritor, escreve no presente e sempre começa e/ou

termina seus romances dando voz ao narrador-escritor (no presente da enunciação). Em

l’Odeur du café, por exemplo, Laferrière começa o primeiro capítulo dirigindo-se ao

41
leitor e contextualizando a história – “J’ai passé mon enfance à Petit Goâve, à quelques

kilometres de Port-au-Prince. Si vous prenez la Nationale sud, c’est un peu après le

terrible morne Tapion...”(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.13) – e convidando-o a fazer com

ele essa volta no tempo, uma viagem até a casinha de sua avó, “88 de la rue Lamarre”,

Il est fort possible que vous voyiez, assis sur la galerie, une vieille dame au
visage serein et souriant à côte d’un petit garçon de dix ans. La vieille dame,
c’est ma grand mère. Il faut l’appeler Da. DA tout court. L’enfant c’est moi. Et
c’est l’été 63 (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.13).

Laferrière continua narrando no passado até o momento que começa a descrever, como um

pintor naïf, a paisagem local, e, de repente, como se estivesse dentro do quadro, se

transportasse para o ano de 63 em Petit Goâve, começa a escrever no presente, dando voz

ao pequeno Vieux Os. No último capítulo, intitulado “Le livre (trente ans plus tard)”,

retoma a cena inicial, Da e Vieux Os na varanda, volta para o presente da enunciação

(trinta anos depois) e começa a falar das razões subjetivas que o motivaram a contar esta

história. Assim, Laferrière, ao mesmo tempo em que resgata o mundo através do olhar da

criança, do jovem, que foi, deixa entrever o adulto escritor que se tornou. Mas, segundo o

autor, foi um árduo trabalho dar voz à criança e ao jovem que foi, já que isso representa,

em certa medida, um reencontro com um Outro-eu. Com relação à escrita de Chronique,

afirma:

le narrateur dans ce livre ne sait pas plus qu'un jeune homme de 23 ans. Il
apprend les choses. J'ai été obligé de le contenir, car je suis maintenant un
homme de 41 ans. J'ai été obligé de le restreindre un peu, de mesurer son
ignorance ou son savoir, de ne pas aller trop loin et de conserver les émotions
dans leur état premier, par exemple cette petite distance légèrement ironique
que peut avoir un jeune homme de 23 ans, qui cache généralement une passion
bouleversante, une sensibilité à fleur de peau (LAFERRIÈRE, 1994).

42
2.6. Cette grenade dans la main du jeune nègre: um romance “em guerra”contra o
esterótipo

Cette grenade11 – terceiro livro do ciclo americano pela ordem cronológica – é o

romance da “autobiografia americana” que, levando em consideração forma e conteúdo,

melhor ilustraria a subjetividade e a estética pós- moderna. Laferrière pinta nesta obra

um retrato da sociedade norte-americana (sobretudo estadunidense) contemporânea –

orientada pelo consumismo, pela estética audio- visual, pela ética hedonista, pela

fragmentação do tempo e do espaço –, através de um texto híbrido, dinâmico e

fragmentado – ao mesmo tempo reportagem, entrevista, diário de viagem, autobiografia,

ficção. Trata-se aqui das impressões e experiências do alter ego de Laferrière pela

América do Norte, logo após a publicação de Comment faire l’amour, obra de grande

sucesso que o transforma no novo “parfum du mois” da literatura norte-americana.

Segundo o narrador, Cette Grenade é fruto de uma reportagem encomendada – “on m’a

commandé un long reportage pour un influent magazine de la côte est. Ils préparent,

semble-t-il, un spécial sur l’Amérique […] Je suppose qu’ils veulent un Nègre qui ne

soit pas d’ici et en même temps en connaisse bien le coin” (LAFERRIÈRE, 1993, p 12-

13).

Cette grenade, assim como a “autobiografia americana” como um todo, é

elaborada de maneira bastante fragmentada, constituindo-se de “notes prises au vif”,

imagens, sensações, impressões, fatos jornalísticos, diálogos, crônicas, sonhos, que,

mesclados, compõem o universo autoficcional do autor. Essa fragmentação,

característica das obras pós- modernas e bastante presente nas obras de “escritores

migrantes”, segundo Harel, estaria associada a uma angústia de desaparecimento e

esfacelamento identitário, ligado ao afastamento da língua e do país natal. O romance é

11
Refiro -me aqui prioritariamente à primeira edição do romance e não à edição aumentada de 2002.

43
composto por quarenta e três partes, divididas em seis principais temas, aparentemente

desconexos, que têm os respectivos títulos: “Où ?”; “ Pourquoi?” ; “ Comment?” ;

“Chroniques Américaines; Hall of fame (dix héros américain contemporains)”;

“L’Amérique est un énorme téléviseur avec plein d’images dedans” ; “Le retour”. A

escrita pós-moderna, por admitir contradições internas, valoriza a descontinuidade,

fazendo com que o leitor busque, por si mesmo, a coerência no texto. Nas palavras do

próprio narrador,

le roman contemporain américain est, généralement, une collection de textes


brefs reliés entre eux par un fil souple et solide (le sentiment d'être américain).
Comme la vie d'un Américain est une collection de faits (la sensation du vide).
Ce livre n'échappe pas à cette règle (LAFERRIÈRE, 1993, p.28).

Desordem espaço-temporal; descontinuidade; cisão do “eu” narrativo, colagem

de elementos heterogêneos, intertextualidade, auto-representação, ironia, justaposição

de gêneros – ficção, poesia, biografia, teatro, texto jornalístico, crônica, o discurso

literário e discurso teórico –, esses aspectos, característicos dos romances pós-

modernos, estão, em grande parte, presentes em Cette grenade. Embora na capa do livro

esteja escrito “romance”, o livro se assemelha mais a um ensaio ou a uma crônica do

cotidiano do que a um romance. Sua escrita se localiza em um entre- lugar, entre o real e

o ficcional, e mistura procedimentos da escrita jornalística, com pesquisa, entrevistas,

reportagem, títulos impactantes, “faits divers”. No capítulo “Hall of fame (dix héros

américain contemporains)”, o narrador faz a descrição de dez personalidades afro-

americanas, através de anedotas, diálogos, informações biográficas reais ou fictícias, em

tom irônico ou simplesmente divertido. A descrição que faz da modelo Naomi

Campbell, por exemplo, é tipicamente midiática e exemplifica bem a atração pelo

descontínuo, pelas frases curtas, pelo estilo enxuto, direto da pós- modernidade.

44
Naomi ne regarde que les vieux films à la télé. Naomi aimerait être Ingride
Bergman. Naomi pense qu’Onassis serait encore plus séduisant s’il était moins
riche. Naomi n’aime pas le type italien. Naomi mange du spaghetti tous les
jours. Naomi n’a jamais été en Afrique. Naomi déteste qu’on l’appelle la
Bardot noire (LAFERRIÈRE, 1993, p. 173).

No que diz respeito à sua viagem pela América do Norte, o autor- narrador de

Cette grenade, privilegia, sobretudo, os espaços cotidianos, o contato com as pessoas

em situações corriqueiras – um trem em direção a Vancouver, um restaurante

vegetariano em São Francisco, um taxi em Nova York, um bar ou um banheiro em

Montreal. Muitas vezes, no entanto, Laferrière não faz uma distinção precisa entre os

países ou regiões pelos quais circula, fala da América do Norte como um todo, dando

particular importância ao mito do sonho americano e à sociedade estadunidense. Seu

itinerário é, assim, vagamente mencionado, cidades são citadas, aleatoriamente,

passando a impressão de que a América não tem fronteiras. São as heranças coloniais,

os estereótipos, os mitos do Novo Mundo que o autor questiona em Cette grenade. Ao

circular para além da província do Quebec (experiência narrada nos dois livros

anteriores, Comment faire l’amour e Éroshima), Laferrière expande ainda mais sua

visão do continente americano. Assim, a obra se aproxima de uma noção essencial para

Laferrière, a do pertencimento ao continente Americano.

J’ai depuis quelques années pris l’habitude de croire que nous sommes en
Amérique, je veux dire que nous faisons partie du continent américain. Ce qui
me permet de résoudre quelques problèmes techniques d’identité. Car, en
acceptant d’être du continent américain, je me sens partout chez moi dans cette
partie du monde. Ce qui fait que, vivant en Amérique, mais hors d`Haïti, je ne
me considère plus comme un immigré ni un exilé. Je suis devenu tout
simplement un homme du Nouveau Monde (LAFERRIÈRE, 2001 A, p 84).

Este sentimento de pertencimento é, no entanto, acompanhado de uma intermitente

sensação de exclusão e de um olhar irônico para os excessos da sociedade americana

45
contemporânea, sobretudo a estadunidense. Laferrière mostra os discursos

contraditórios desta América face à comunidade negra, bem como sua enorme

heterogeneidade, através de encontros ou entrevistas, reais ou fictícias, com cidadãos

comuns ou com diferentes personalidades negras (de Spike Lee a Billie Holliday).

Assim, há, por um lado, em Cette grenade, uma idéia de americanidade, que descreve

um sentimento de abertura e de movimento, assinalando o pertencimento a uma

realidade cultural que possui elementos em comum, onde os habitantes partilham certos

traços, atitudes e comportamentos, mas que estão em permanente elaboração; e por

outro, uma idéia de americanização, que sobrepõe e supervaloriza a sociedade

estadunidense. A americanização, de um ponto de vista positivo, representaria o lado

empreendedor, do progresso econômico, do conforto, da riqueza, da democracia e do

liberalismo político (encarnação do sonho americano), de um ponto de vista negativo, o

lado do consumo descomedido, da cultura de massa, do enlatado audiovisual, do fast-

food, etc.. A Laferrière interessa, à medida que escreve, desvendar, (re) significar e (re)

descobrir o continente americano, pois como nos lembra Maxilimilien Laroche:

A América não é a terra onde o homem branco europeu tem toda a liberdade
de recomeçar o mundo, de reconquistar o Paraíso perdido e de tornar-se o novo
Adão. A descolonização (por que não dizer a verdadeira descoberta ?) da
América não terminou com a vitória de Dessalines, Bolivar, Sucre, O'Higgins e
claro de Georges Washington. Resta ao homem americano se autodescobrir. E
parece que para muitos se trata de uma "terra incógnita", mais difícil de
alcançar que as Índias míticas que procuravam os navegadores do passado
(LAROCHE, 1993, p.68).

A experiência pela América do Norte serve, portanto, como ponto de partida

para o narrador se questionar sobre o poder, o sucesso, o papel da literatura, o

preconceito, o capitalismo – que dita o ritmo do esquecimento e da fugacidade –, entre

46
outras coisas. Vieux narra, assim, o encontro com uma jovem leitora que esquece tudo

que lê, uma caricatura da efemeridade pós- moderna, onde o livro, como qualquer outro

objeto de consumo, transforma-se em algo descartável, substituível.

- Moi, je lis n’importe quoi…

- Vous êtes la lectrice parfaite alors […]

- Il doit y avoir une faille quelque part, je lance.

Elle rigole doucement.

- Peut-être parce que je ne retiens rien.

- Comment, rien ?

- Je veux dire ni le nom de l’auteur…

Je ressens comme un pincement au cœur.

-…ni même le titre du livre […]

- Je ne retiens pas le sujet non plus…des fois, j’ai l’impression de n’avoir


jamais lu un seul livre. […]

- Pourquoi lisez-vous alors?-

- Pour passer le temps (LAFERRIÈRE,1993, p. 33).

Como sobreviver neste império voraz e megalômano, que cultua o efêmero, a imagem,

o simulacro, indaga-se o narrador. Como sobreviver em um mundo de relações

virtualizadas e estetizadas?

La réalité américaine (l’espace, le temps, les gens et surtout les choses) me


semble plus proche du cinéma que du roman, du montage rapide que des longs
enchaînements, des scènes se télescopant que d’un ordre régulier, de la rage
que du courage, de l’instinct que de l’esprit. Si la réalité américaine ressemble
à un long métrage, la vie d’un Américain est un vidéo-clip (LAFERRIÈRE,
2002 B, p.19).

Esta América pós-moderna descrita por Laferrière é auto-referente – “les Américains

vivent entre eux comme si personne d’autre qu’eux n’existait sur le continent ”

47
(LAFERRIÈRE, 1993, p17) – e contraditória. Sem preconceitos, mas extremamente

racista, miscigenada, mas fechada às diferenças; e ainda assim exporta o mito da

felicidade ideal para o resto do mundo. Como sobreviver a tantas contradições?

A resposta de Laferrière não tarda: é o humor, ou melhor, a ironia, que o ajudará

a “sobreviver”. É através dela que buscará desconstruir certos mitos criados ou

alimentados pela sociedade norte-americana. “En émigrant en Amérique du Nord, je

n’ai songé qu’à apporter ce rire dans ma vieille valise en tôle. Vieil héritage ancestral.

Chez moi on a toujours ri” (LAFERRIÈRE, 1993, p.37) afirma o narrador. Apesar de

se mostrar crítico aos excessos e promessas do capitalismo norte-americano, confessa

seu desejo de se apropriar de todos os poderes, luxos e prazeres prometidos pelo sonho

americano.

A l’époque, j’essayais (je ne sais pas comment une telle ambition s’était
infiltrée en moi) d’écrire un roman et de survivre en Amérique. L’une des ces
deux activités était de trop. Faut choisir, Vieux. Justement, je voulais tout.
C’est le propre des noyées. Je voulais le roman, les filles (ces filles fascinantes
inventées par la modernité, les régimes-minceur et le désir fou des hommes
d’âge mûr), l’alcool et le rire. Tout ce qui m’était dû. Tout ce que l’Amérique
m’avait promis (LAFERRIÈRE, 1993, p 36).

Estão todos em busca de sucesso, fama e olhares, o apelo capitalista é tão poderoso que

seduz a todos, o autor, o homem comum, as celebridades e até mesmo os Deuses negros

do imaginário vodu! Laferrière diverte o leitor mostrando que nem mesmo a bela

Erzulie, Deusa do amor vodu, escapa desta perseguição frenética por seus quinze

minutos de fama. Ela aparece um dia, inesperadamente, na vida do narrador,

implorando para se tornar personagem de um de seus livros.

Tu as a écrit un bouquin pour être connu... Eh bien, moi aussi, je veux la même
chose que toi... Je veux être dans ton prochain livre pour les mêmes raisons. Je

48
me fous de ce que tu écriras sur moi, et même pour être honnête avec toi, je ne
crois pas que je lirai ton bouquin... Si tu n’étais pas connu, je ne serais pas là
à te raconter ma vie...C’est tout ce que je demande... Bye (LAFERRIÈRE,
1993, p.106).

Laferrière faz, assim, da autoderrisão uma grande aliada neste percurso pelo espaço,

mas, sobretudo, pelo imaginário norte-americano. Rir de si mesmo, dos mitos de sua

cultura natal, pode ser libertador, pois transforma situações que poderiam gerar

sentimentos destrutivos, de autopiedade, medo ou insegurança, em gozo e diversão. Já

no capítulo intitulado “Quelques règles pour suvivre en Amérique ” – onde escreve

pequenas crônicas que narram encontros casuais, um garçom negro em Boston, Madona

em Los Angeles, uma jovem atraente no metrô de Nova York, um casal inter-racial no

Alabama, etc. – o autor ri do Outro e do que considera limitado em sua compreensão do

mundo. Assim, descreve uma festa insólita em Berverly Hills, freqüentada pelos ícones

da cultura pop americana, ridicula rizando-os e mostrando o quão artificiais são as

relações que sobrevivem de aparências e clichês.

J’ai été invité par ce jeune prince africain qui vit maintenant avec Madonna
[…] c’est qui ? demande quelqu’un en train de grignoter une carotte. Le
prince. Vous ne connaissez pas le nouvel amant de Madonna ? Il paraît qu’elle
l’a trouvé dans un petit village de l’Afrique du Nord. Il ne sait même pas qui
est Michael Jackson. Ses grands-parents étaient les derniers rois du Bénin. Il
ne connaît que Madonna en Amérique. Il paraît qu’il est génial. Qu’est-ce qu’il
fait ? Il est génial, c’est tout. Il fallait Madonna pour aller cueillir sur place le
dernier prince africain. Quand Madonna l’a trouvé il était en train de mourir,
couvert de poux […]. L’histoire édifiante de Madonna et du prince africain
circulait ce jour-là de bouche à bouche (LAFERRIÈRE, 1993, p.141-142).

Aparentemente desconectadas, essas crônicas se completam entre si, apresentando uma

coesão temática: olhar (de uma ironia mordaz) sobre o racismo na América do Norte,

visto sob diferentes ângulos, o da mídia, o do cidadão comum , o do mundo pop, o do

49
formador de opinião. A ironia se apresenta, assim, como uma estratégia essencial nas

obras do ciclo americano, como saída para fazer pensar e questionar as hipocrisias

racistas.

A fim de lidar com a impossibilidade de se livrar de seu mais novo rótulo

“novo-talento-escritor- negro”, o narrador também opta pela ironia. Como se não

bastasse ter o adjetivo “negro” perseguindo-o por toda parte, agora, sem pedir licença,

mais três significantes lhe colariam à pele – não apenas talentoso, mas substituível, não

apenas escritor, mas escritor- negro, não apenas sujeito, mas sujeito de cor!

“L’Amérique est une montagne de clichés” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 27), afirma. Sem

saída, o narrador, ao invés de se ofender, decide aproveitar, explorar os clichês

veiculados por esta América tão capitalista quanto racista. Embora Laferrière parta dos

habituais clichês sobre o negro para falar de seus personagens – mentalidade primitiva,

erotismo animal, canibalismo, virilidade, selvageria, ingenuidade, entre outros – o

resultado é algo que se distancia do previsível, do lugar-comum. “EXPLOITER LES

CLICHÉS sur les nègres? C’est une mine à ciel ouvert. Tout le monde a le droit d’aller

puiser là-dedans” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 89) No caso dos negros, esta semântica da

dominação é uma forma (degradante) de elaboração identitária, pois o estereótipo

impede a livre circulação do significante e o significante negro é invariavelmente

associado ao racismo. Laferrière explora os clichês sobre os negros não apenas a fim de

desconstruí- los, e aí está sua originalidade, mas para mostrar que dificilmente se escapa

ileso dessas construções ideológicas. O que ele nos faz compreender é que a perversa

cadeia significante, que ainda caracteriza o negro, também o constrói e o determina. Por

um lado, o autor mostra que certos estereótipos foram, efetivamente, absorvidos pelos

negros: “Au début, je voulais détruire ces clichés…Ah ! ah ! ah !...Quel naïf j’étais ! Je

suis tout de suite arrivé à cette conclusion qui m’a littéralement terrifié : la plupart des

50
clichés sur les rapports entre le Nègre et la Blanche sont vrais” (LAFERRIÈRE,1993,

p. 80). Embora Vieux manifeste um profundo desejo de se ver livre dos rótulos raciais,

não deixa de, ironicamente, tirar proveito deles.

- Vous êtes curieux...c’est vrai, vous êtes un écrivain.

- Un écrivain Nègre, je précise en rigolant.

- Qu’est-ce que ça veut dire ? C’est mieux ?

- Malheureusement non.

- Alors ?

- C’est comme ça.

- Comme ça !

- Oui.

- Dommage.

- Il y a certains avantages, vous savez…

- Comme quoi ?

- On est moins nombreux…c’est plus facile de devenir le plus grand

écrivain nègre vivant (LAFERRIÈRE, 1993, p. 35).

O subtítulo da primeira parte, intitulado “Je suis un écrivain nègre”, revela-se,

em um primeiro momento, como uma “verdade” imposta. Mas à medida que a narrativa

avança somos convidados ao diálogo e ao questionamento. A segunda parte é,

justamente, intitulada “Pourquoi?” e traz os seguintes subtítulos: “Pourquoi un écrivain

nègre doit- il toujours avoir une position politique ?” “Pourquoi un écrivain nègre doit- il

toujours parler de sexe ?” “Pourquoi les écrivains nègres préfèrent- ils les blondes ?”

“Pourquoi écrivez- vous ?”. Por que escrever, se para ser aceito é preciso se adequar, ser

previsível? E as indagações continuam na terceira parte, intitulada “Comment” :

“Comment un écrivain nègre peut- il retrouver son chemin dans cette jungle ?”

51
“Comment un honnête écrivain nègre peut- il travailler dans de telles conditions ?” etc..

O romance está repleto de perguntas que dizem respeito à representação do escritor e

aos limites impostos à “literatura negra”. Segundo o autor, Cette Grenade é uma

reflexão sobre :

[...]l’Amérique, le succès, l’écriture, une sorte de bilan, sur les vingt dernières
années du narrateur en terre nord-américaine. En quoi vivre en Amérique du
Nord a-t-il changé sa vie ? se demande le narrateur en prenant un ton
sceptique. Il remet en question même sa posture d’écrivain nègre
(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.239).

Cabe ao leitor encontrar suas respostas. Assim como quase tudo na pós- modernidade, o

que mais importa nesta obra é o questionamento, desafiar as verdades estabelecidas. O

discurso de Laferrière dificilmente se encaixa num rótulo que o engesse, sua escrita é

como a vida, fluida, paradoxal, fantasmática e em constante construção. Depois da

longa viagem pela América do Norte, de muita observação e questionamentos, percebe

que precisa libertar a si mesmo e a sua literatura de qualquer obrigação estética ou

temática. Assim, a penúltima parte do livro, que se intitula “Je ne suis plus un écrivain

nègre”, o narrador, finalmente, nega o estereótipo, deixa de se reconhecer nele,

afirmando-se como um escritor, apenas. Esta atitude sinaliza uma reorientação do olhar

em relação ao Outro, mostra que a necessidade de ser aceito foi provisoriamente

suspensa, e com ela a necessidade de poupar o outro – “moi je veux être lu précisément

par les gens qui me détestent ” (LAFERRIERE, 1993, p.70), afirma Vieux. Há nesta

escolha um desejo de afirmação da alteridade, em uma sociedade onde a humanidade e

a singularidade do negro são, freqüentemente, colocadas em dúvida. É contra a

essencialização do negro e para fugir do gueto que o narrador recusa este rótulo, abrindo

mão, inclusive, da possibilidade de ser o “maior escritor negro vivo”. Os grandes

escritores considerados universais não são classificados em função da cor, da origem ou

52
do gênero. Considerar-se unicamente um escritor é libertador, pois permite acumular

identidades, multiplicar-se. É o princípio da inclusão característico da subjetividade pós-

moderna.

Je suis aussi tout ce que je ne veux pas être. Je suis un écrivain haïtien, un
écrivain caribéen (ce qui est légèrement différent d'un écrivain antillais, mais
je suis aussi un écrivain antillais), un écrivain québécois, un écrivain canadien
et un écrivain afro-canadien, un écrivain américain et un écrivain afro-
américain, et, depuis peu, un écrivain français. (...) Je change peut-être de
chapeau mais jamais de discours […] Je veux être pris pour un écrivain, et les
seuls adjectifs acceptables dans ce cas-là sont : un bon écrivain (ce qualificatif
a bien sûr ma préférence) ou un mauvais écrivain. Il faut tenir en même temps
les deux termes de cette contradiction (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.86).

Em Laferrière a identidade se constrói na relação com o Outro, e esta relação é

necessariamente hierárquica – sobretudo quando se trata do encontro entre brancos e

negros. O narrador de Cette grenade circula, deambula, pelas ruas da cidade,

descobrindo, reconhecendo seus pares, os excluídos – “tous les damnés de la terre.

Indiens, Sud-Américains, Asiatiques, Nègres. Seules les femmes sont blanches”

(LAFERRIÈRE, 1993, p.43).

J’errais, le soir tard, dans ces territoires lunaires où les sensations ont pour
toujours remplacé les sentiments. Je prenais des notes. J’écrivais dans les
toilettes de ces bars minables. Je tenais d’interminables conversations
jusqu’au petit matin avec des intellectuels affamés, des comédiennes en
chômage, des philosophes sans pouvoir, des poétesses tuberculeuses, enfin
toute la racaille des sans grade (LAFERRIÈRE, 1993, p.37).

Laferrière se aproveita do duplo sentido da palavra “grenade”, de fruta ou arma,

presente na pergunta do título – cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une

arme ou un fruit?–, a fim de refletir sobre o olhar que, ainda hoje, rotula e duvida das

intenções e a natureza do homem negro. Instintivo, violento, revoltado ou inofensivo,

53
ingênuo, assimilado (como pregou a ideologia colonial)? Será que “au fond, c’est vrai,

le Nègre, comme le hamburger, est une invention purement nord-

américaine?”(LAFERRIÈRE, 2000, p.112) Laferrière nos mostra que só é possível

(re)nomear, “descolonizar”, este homem negro ao ressaltar sua diversidade, a

pluralidade de olhares e discursos da comunidade negra. No romance, o autor contrapõe

diferentes opiniões a propósito dos conceitos de raça, África, racismo – a de um taxista

nigeriano, do cantor de rap Ice Cube, do escritor James Baldwin, entre outros. O taxista

nigeriano, defensor intransigente da raça, com quem o narrador tem uma longa

conversa, considera seu romance (que toca na questão racial, mas de forma irônica e não

panfletária) a obra de um traidor. “Pourquoi ne pas mettre toute cette énergie au

service de ta race ? ”, pergunta o nigeriano, ao que o narrador responde : “pourquoi un

écrivain nègre doit-il toujours avoir une position politique ? ” […] “c’est contraire à

l’essence de la littérature”(LAFERRIERE, 1993, p. 67). O cantor Ice Cube, tendo

assimilado, como muitos negros da diáspora, as teorias inauguradas no século XIX

sobre a homogeneidade racial e africana, acredita na pureza da raça, e garante que o

negro tem uma espiritualidade, uma cultura e uma pátria que lhe são próprias.

- Je me suis toujours vu comme un Africain.

- Ce n’est pas l’opinion des Africains.

- Ma place est en Afrique.

- C’est ce qui dit le ku klux klan aussi.

- Sur ce point je suis d’accord avec le Klan. La place des noirs est en Afrique.

(LAFERRIÈRE, 1993, p. 164).

Em outra cena, o narrador descreve uma conversa imaginária com o escritor negro

estadunidense James Baldwin – voz importante durante a luta pelos direitos civis, no

início da década de 60 nos Estados-Unidos, que narrou (aos brancos) os sentimentos e

54
pensamentos profundos dos negros norte-americanos. “Il faut absolument que le Blanc

puisse s’occuper du racisme lui aussi” (LAFERRIÈRE, 1993, p.180), afirma o Baldwin

fictício de Laferrière. Ao contrapor discursos e olhares, Laferrière desafia qualquer tipo

de visão unilateral sobre a questão racial, contribuindo para uma compreensão mais

global da noção de Outro e das identidades que se elaboram a partir da noção de raça.

O romance traz, assim, importantes contribuições intertextuais. Laferrière faz

referências tanto em Cette grenade quanto em Comment faire l’amour a escritores afro-

americanos de grande importância, como J. Baldwin e Chester Himes, sendo Baldwin

privilegiado no primeiro romance e Himes no segundo. Laferrière se inspira, em Cette

Grenade, nos primeiros ensaios de Baldwin sobre a América – “je me suis dit que

j’allais adopter la forme des premiers livres de Baldwin et y mettre un peu de fiction....”

(LAFERRIÈRE citado por CHARTIER, 1993 p.20) As interrogações identitárias

presentes em ambos os romances dialogam com os questionamentos feitos por

diferentes teóricos pós-coloniais, entre os quais citaria o antilhano Frantz Fanon (Peau

noire, masques blancs), o africano Kwame Anthony Appiah (A Casa de Meu Pai) e o

búlgaro Tzvetan Todorov (Nós e os Outros).Estes teóricos revêem criticamente os

conceitos de raça que norteiam o pensamento moderno e que sempre sustentaram

ideologias racistas e falsas crenças. Appiah questiona a idéia, forjada pelo europeu e

pelo norte-americano, da homogeneidade da África, vista enquanto um continente, não

apenas no sentido geográfico, mas uma unidade política, racial e cultural, a pátria dos

negros. Essa crença na uniformidade africana é defendida pelo engajado taxista

nigeriano com o qual Vieux mantém uma acalorada discussão.

Il m’explique que ce sont les colonisateurs qui ont découpé l’Afrique telle qu’on
la voit aujourd’hui. Il est contre naturellement [...]. Au début, il tenait bon,
expliquant qu’il n’y avait qu’un seul peuple en Afrique et que l’expression

55
‘Afrique noir’ est non seulement un pléonasme, mais une stupidité politique,
une infamie, une saloperie de plus inventée par les occidentaux pour jeter le
doute dans l’esprit des africains. La couleur n’existe pas en Afrique
(LAFERRIÈRE, 1993, p. 65-66).

Nas palavras do narrador de Comment faire l’amour a problemática racial atual é

resultado de um enorme mal-entendido histórico, pois “on ne naît pas Nègre on le

devient” (LAFERRIÈRE, 1985, p.153). Em Cette grenade, o autor retoma o tema: “la

couleur n’existe pas en Afrique (...) quand tout le monde est de la même couleur il n’y a

plus de couleur, plus de différence épidermique” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 65).

Segundo Fanon, é o racismo, o olhar do outro, já absorvido pelas teorias e ideologias

raciais, que dá origem ao negro enquanto categoria.

O negro, escreve Fanon, ‘nunca foi tão negro quanto a partir do momento em
que foi dominado pelos brancos’. Mas a realidade é que a própria categoria do
negro é, no fundo, um produto europeu, pois os ‘brancos’ inventaram os negros
a fim de dominá-los. Dito de maneira simples, o curso do nacionalismo cultural
na África tem consistido em tornar reais as identidades imaginárias a que a
Europa nos submeteu (APPIAH, 1997, p. 96).

Em uma entrevista bem humorada e cheia de provocações, feita para o site de Alain

Mabanckou, Laferrière faz as seguintes observações:

-La communauté noire n’existe pas.

- Ah bon ?

- Oui. La couleur noire est une invention de l’homme blanc avec la complicité
de l’homme noir. Il faut d’abord réinventer l’individu noir.

- Je ne vous suis plus, Monsieur Dany L.

- Écoutez, ne me faites pas perdre mon temps, relisez Frantz Fanon...


(LAFERRIÈRE, 2007 B)

No capítulo “ Le négoce de la peau”, Vieux se questiona a respeito da questão do olhar

do Outro que nos constrói e está na origem de tudo.

56
Quand exactement un homme a-t-il regardé un autre homme, s’est-il étonné de
sa peau et a conclu qu’il était son inférieur ? […] Qui s’est mis à hurler en
premier : t’es moins bien que moi ? Le noir ou le Blanc ? Le Jaune ou le
Rouge ? Je parle du premier mouvement. La grave question du premier
regard” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 153-154).

Laferrière dialoga igualmente com o escritor martinicano Aimé Césaire (e o movimento

da Negritude) no que diz respeito ao resgate do significante “Nègre”.

Como os antilhanos tinham vergonha de ser nègres procuravam toda espécie de


perífrase para designar um negro. Dizia -se noir, um homem de pele morena e
outras besteiras... e então nós tomamos a palavra nègre como uma palavra
desafio (...). Era um pouco uma reação de jovem raivoso. Já que se tinha
vergonha da palavra nègre, pois bem, retomaremos a palavra négre. Devo dizer
que quando fundamos “L’Étudiant Noir”, eu queria na realidade chamá-la de
“L’Étudiant Nègre”, mas houve uma grande resistência no meio antilhano...
Alguns pensavam que a palavra nègre era muito ofensiva, muito agressiva:
então tomei a liberdade de falar em Negritude. Havia em nós uma vontade de
desafio, uma afirmação violenta na palavra nègre e na palavra negritude
(CÉSAIRE citado por FIGUEIREDO, 1998, p.29).

Como Laferrière se assume como um explorador de clichês opta, em seus romances,

principalmente os que narram sua experiência no exílio, pelo uso do significante Nègre

– ao invés de Noir, considerado menos agressivo – a fim de tornar evidente o lugar de

fixidez em que foi aprisionado o homem negro e de tornar seu significado menos hostil.

Je n’ai pas dit que je ne voulais pas aborder la question raciale, mais je rêvais
de l’aborder en esquivant la propagande. Dire le mot Nègre si souvent qu’il
devienne familier et perde son soufre. Me vautrer là-dedans, me rouler dans le
racisme, devenir en quelque sorte LE NÈGRE, comme le Christ a été
L’HOMME (LAFERRIÈRE, 1985, p. 213).

57
Finalmente, o que busca Laferrière, através de estratégias bastante diferentes, é, assim

como propôs Fanon, descolonizar psicologicamente o negro, a fim de que ele possa se

perceber como singularidade e não como categoria.

Além desse diálogo intertextual que estabelece com diferentes autores

ocidentais, o autor tematiza a própria escrita e a recepção de sua obra – no capítulo

“Comment devenir célèbre sans se fatiguer” encontra seus leitores e cataloga suas

diferentes reações a seu primeiro romance –, fazendo da literatura um tema de

importância central de Cette grenade. Na conversa fictícia que tem com Baldwin, sua

última pergunta é sobre a literatura.

- Comment devenir un bon écrivain des années quatre-vingt-dix ?

- Qu’est-ce que ça veut dire ?

- Un écrivain de son temps.

- J’ai été d’une certaine manière un écrivain de mon époque, et tu vois ce qui
arrive…

- Qu’est ce qui arrive, Jimmy ? dis-je légèrement affolé.

- Regarde, je m’efface de plus en plus

En effet, il ne restait que son sourire (LAFERRIÈRE, 1993, p. 183).

Baldwin, autor pelo qual Laferrière manifesta profunda admiração, é inspiração na

elaboração tanto do romance quanto da reportagem que escreve o narrador – “chaque

fois que je désespère des hommes, j’ouvre un bouquin de Baldwin pour y trouver

l’intelligence la plus fine mêlée à la plus vive sensibilité” (LAFERRIÈRE, 1993, p.70).

Ao escolher o título para a última parte do livro, “Feu sur l’Amérique”,

Laferrière faz implícita referência ao ensaio de Baldwin intitulado La prochaine fois le

feu (1963), que, por sua vez, se refere a uma profecia bíblica feita por um escravo:

58
Et Dieu dit à Noé

Vois l’arc-en-ciel bleu

L’eau ne tombera plus

Il me reste le feu...

(BALDWIN, 1963, p.19)

Baldwin faz um apelo aos brancos e aos negros relativamente conscientes, afirmando

que é preciso agir rápido e conscientizar a todos da necessária transformação, caso

contrário os resultados serão catastróficos: “Si nous n’avons pas, et dès aujourd’hui,

toutes les audaces, l’accomplissement de cette prophétie, reprise de la Bible dans une

chanson écrite par un esclave, est sur nos têtes” (BALDWIN, 1963, p.19). No prefácio

do ensaio, Albert Memmi fala da contribuição do texto de Baldwin para a

conscientização da condição do negro americano.

Il se serait produit en Amérique une transformation irréversible : le Noir


américain sait maintenant qui il est et quelle est sa place réelle au milieu de
ses concitoyens. Lorsqu’un opprimé fait ainsi le tour de son oppression, elle lui
devient inévitable. Lorsqu’un opprimé a entrevu la possibilité d’être libre et
qu’il accepte d’en payer le prix, il est vain d’espérer la paix encore pour
longtemps. Si le problème a été bien posé par Baldwin : une nation de métis ou
la guerre, alors nous avons réellement peur pour l’Amérique et les
Américains (MEMMI, 1963, p.21).

Apesar das ameaças e profecias, La prochaine fois le feu é um texto cheio de esperança,

pois acredita que os negros devem agir juntos, «nous autres, les Blancs et les Noirs

avons profondément besoin les uns des autres si nous avons vraiment l’intention de

devenir une nation, si nous devons, réellement veux -je dire, devenir nous-mêmes,

devenir des hommes et des femmes adultes” (BALDWIN, 1963, p.127). Devem se unir,

pois dependem um do outro, ou seja, a representação de um está atrelada à do outro.

59
Les craintes et les aspirations personnelles de l’homme blanc – secrètes et pour
lui inexprimables – il les projette sur le Noir. Il ne saurait se libérer du pouvoir
tyrannique que le Noir exerce sur lui qu’en consentant pratiquement à être noir
lui même, à devenir partie de cette nation dansante et souffrante
qu’aujourd’hui il observe pensivement des hauteurs de sa puissance solitaire
[...] (BALDWIN, 1963, p.126).

Segundo Baldwin, o negro tem metaforicamente a função de uma estrela fixa: caso

abandone seu lugar, tudo se abala na terra, “essaie d’imaginer tes réactions si tu

t’éveillais un matin pour trouver le soleil brillant de tout son éclat au milieu d’un

scintillement d’étoiles. Tu aurais peur parce que ceci serait contraire à l’ordre de la

nature” (BALDWIN, 1963, p.31). Daí a necessidade do americano branco reafirmar a

crença da inferioridade do negro, e manter tudo em seu lugar. Mas o que Baldwin quer

dizer é que é preciso mudar e o risco dessa mudança para o branco americano seria a

perda da sua identidade. Segundo Baldwin, os negros só se verão livres dos

estereótipos de inferioridade, quando os brancos se libertarem do medo da mudança –

“le prix de la libération des Blancs c’est la libération des Noirs” (BALDWIN, 1963,

p.127).

Laferrière reafirma em seu livro de entrevistas J’écris comme je vis sua

identificação com a visão de Baldwin e vê no autor um visionário que, buscando

compreender a América dos anos sessenta, anuncia o apocalipse.

L’Amérique est un tout. De toute façon, la misère et la honte des Noirs


entraîneront à la longue la dégénérescence des Blancs. Les Noirs ne
retourneront pas en Afrique, comme les Blancs ne retourneront pas en Europe.
C’est l’Amérique qu’il faut continuer à parfaire. C’est là que nous devons vivre
malgré tout. Et nous ne pouvons continuer à vivre comme nous le faisons
(BALDWIN citado por LAFERRIÈRE, 2000, 84).

60
O narrador de Cette grenade, ainda de acordo com Baldwin, recusa terminantemente o

gueto – “Je n’avais aucunement l’intention de laisser les habitants de race blanche de

cette nation me dire qui j’étais, m’entraver ainsi et se débarrasser de moi”

(BALDWIN, 1963, p.26) –, sente-se ameaçado e procura desesperadamente uma saída.

É dessa busca de uma saída possível para a questão da segregação racial que fala Cette

grenade e Comment faire l’amour. O narrador de Cette grenade imagina Baldwin em

seu quarto onde “se prépare à bombarder l’Amérique blanche. D’abord un sévère

avertissement, mais la prochaine fois le feu” (LAFERRIÈRE, 1993, p.178). Essa idéia

do fogo sobre a América, de uma espécie de revanche negra iminente, reaparece sob

diferentes ângulos no romance. O autor faz referência, por exemplo, à história de

Rodney King, afro-americano espancado por policiais brancos em Los Angeles, no

início dos anos noventa, desencadeando uma série de distúrbios raciais na cidade. A

cena foi filmada, mas um júri composto por brancos absolveu os policiais: “les Noirs,

ivres de colère, ont foutu le feu partout dans la ville” (LAFERRIÈRE, 1993, p.176).

Com relação a essa metáfora do fogo, também poderíamos pensar na revolução dos

escravos pela independência no Haiti, a cerimônia vodu realizada no dia 14 de agosto

de 1791 no Bois-Caiman, é considerada no país como um ato fundador da revolução,

mas a guerra de independência só começa efetivamente no dia 22 de agosto, quando

escravos iniciam os incêndios das casas e plantações. A idéia de incendiar tem uma

força simbólica muito grande; para o vodu, o fogo é o símbolo da regeneração periódica

e da purificação. Nesse sentido, percebemos referências a uma guerra anunciada, uma

guerra racial que explode (invisível) nas margens da América. Há um campo lexical

que nos remete reiteradamente a esse universo: guerre, guerrier, ennemi, lutter, se

battre, bombarder, capituler, réagir, arme, grenade, front, colère, apocalypse, feu,

etc.. A dedicatória do livro é feita a três personalidades negras mortas (“em guerra”) na

61
América: “Au romancier James Baldwin, au musicien Miles Davis, au jeune peintre

Jean-Michel Basquiat, tous trois morts en Amérique. La guerre fait rage au nouveau

monde. (Bien sûr Baldwin est mort en France, mais il a reçu la blessure mortelle en

Amérique)”. Basquiat é descrito como “un jeune guerrier prêt à sauter à la gorge de

quiconque essaie de lui cacher le soleil” (LAFERRIÈRE, 1993, p.169). E o cantor Ice

Cube explica, em uma entrevista com o narrador, no que consiste a sua guerra :

-Crois-tu à la pureté de la race ?

-Je crois que nous sommes en guerre.

-Écoute, Ice, je voyage partout aux États-Unis pour faire ce reportage et je


peux dire que le ghetto noir américain est le groupe le plus fermé de la planète.
Vous ne vous ouvrez à personne.

-Les ghettos sont des casernes. Nous sommes en guerre.

-Parle -moi de cette guerre.

-Nous nous battons sur deux fronts. Contre l’ennemi et contre ce que l’ennemi a
fait de nous.

-Qu’est-ce qu’il a fait de vous ?

-Tu viens de le dire : le groupe humain le plus fermé de la Terre


(LAFERRIÈRE, 1993, p.165).

Na parte intitulada “Chroniques américaines”, o narrador descreve tipos

previsíveis que encontra na multidão; no entanto, contra a corrente, caminha um

homem, um Outro, ele carrega uma arma – “Fais gaffe au type qui remonte le courant,

vieux. Regarde bien sa main droite. Il a un couteau” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 137). Já

a última parte do livro, “Le feu sur L’Amérique”, descreve o caminhar quase dançante

de um jovem oriundo de um gueto norte-americano, um jovem-Outro, que avança. As

intenções desse jovem que caminha, aparentemente, distraído, “visage souriant, détendu

même, qui contraste avec le torse un peu contracté et les jambes graciles légèrement

fléchies”, “un jeune animal qui s’apprête à bondir ou a lancer quelque chose. Ce truc

62
vert qu’il tient dans sa main, est-ce une arme ou un fruit? ” (LAFERRIÈRE, 1993, p.

216). O que se apreende é sua iminente intenção de luta, seu desejo, quase imperativo,

de ser notado (olhado, ouvido, lido) e respeitado em sua alteridade. O que esse jovem

que avança, em direção ao Outro, tem nas mãos não importa muito, suas armas, suas

estratégias de luta, são ilimitadas: um romance, um poema, um discurso panfletário,

uma ação radical ou pacifista, o importante é que ele está alerta, mais consciente de sua

força e de suas infinitas possibilidades.

63
3. A AUTOFICÇÃO AMERICANA DE DANY LAFERRIÈRE

Segundo Laferrière, os dez livros da “autobiografia americana” compõem um

único livro que chamou de sua “autobiografia emocional”. Esta “autobiografia” possui,

no entanto, inúmeras particularidades que a distanciam da definição clássica do gênero

autobiográfico. Narrativa em prosa onde um autor (uma pessoa real) narra a história de

sua vida pessoal e personalidade, comprometendo-se a dizer toda a verdade quanto a

ambas. Cria-se, então, um pacto fundamental entre leitor e autor, onde um se

compromete a dizer a verdade e o outro a acreditar nela. Segundo Philippe Lejeune, este

pacto, que deverá ser sempre respeitado para que haja autobiografia, se resume,

essencialmente, nos seguintes pontos: o autor, o narrador e o protagonista precisam ser a

mesma pessoa; o nome do autor será o mesmo do narrador e deverá constar na capa e na

folha de rosto do livro; os acontecimentos narrados devem ser verdadeiros, baseados em

fatos reais, os personagens evocados devem ter realmente existido e uma declaração que

diga que se trata de uma história real, e não ficcional, deve constar no livro. Em síntese,

nada deve ser inventado ou fictício. É, sobretudo, na verdade que se ancora este gênero.

A “autobiografia emocional” de Laferrière, ao contrário, se situa em um ponto

intermediário entre a realidade e a fantasia, a experiência vivida e a experiência

sonhada, o passado e o presente, a seriedade e a ironia. É principalmente na

ambivalência do desejo que se ancora a obra de Laferrière. Segundo o autor, as obras de

sua “autobiografia” não foram publicadas em ordem cronológica, pois se basearam em

suas memórias afetivas, cujo acesso é, naturalmente, desorganizado, livre e paradoxal.

“Je ne pouvais pas publier dans un ordre chronologique parce que ce serait trop

ennuyeux, j’ai préféré découper ça selon mes humeurs, selon mon désir et passer d’un

mode à un autre, d’une époque à une autre” (LAFERRIÈRE, 2007A). A autobiografia

64
tradicional, em contrapartida, procura organizar com maior coerência e menos

ambigüidades a história de uma vida e de uma personalidade.

Segundo Serge Doubrovsky, criador do termo, a autoficção é uma narrativa

autobiográfica que estaria entre o real e o ficcional – um entre- lugar “impossível e

inaccessível fora da operação do textual” (DOUBROVSKY, 1988, p.70).O termo foi

por ele usado pela primeira vez em 1977 no livro Fils, a fim de conceituar a estratégia

que usou na elaboração deste romance. O conceito nasce para dialogar com o livro de

Lejeune Le pacte autobiographique (1975), onde o autor afirma não existir exemplo de

obras regidas por um pacto romanesco em que o nome do narrador coincida com o do

autor. Doubrovsky desconfia do pacto proposto por Lejeune, pois acredita que nenhuma

narrativa, sobretudo aquela que é escrita em primeira pessoa, possa ser verídica e

coerente a ponto de escapar da ficção. Segundo ele, o texto autoficcional não é nem

unicamente autobiográfico, nem unicamente ficcional. Doubrovsky escreve então, em

1979, Fils, obra ficcional cujo personagem- narrador tem o mesmo nome do autor. O

autor se apropria de suas experiências psicanalíticas (como analisando) para escrever o

romance e afirma: “a autoficção é a ficção que eu decidi como escritor me dar de mim

mesmo, incorporando, no sentido exato do termo, a experiência analítica, não somente

no que diz respeito à temática, mas também na produção do texto” (DOUBROVSKY,

1988, p. 76). Esta experiência da análise produziu um saber que foi, por sua vez, sendo

assimilado pela ficção e transformado por ela.

Com relação à ligação entre a psicanálise e a autoficção, segundo Simon Harel, a

última é uma escrita do “eu” (consciente) que deixa surgir constantemente a pulsação do

inconsciente. Tanto na psicanálise quanto na autoficção a no ção de realidade é

relativizada; em ambas as abordagens, a narrativa é uma criação, que não precisa buscar

referenciais concretos para se fazer significar. Ambas as abordagens podem ajudar o

65
sujeito a se liberar de seus fantasmas recalcados e a recriar um universo “alternativo”

para uma vida que considera estática ou insatisfatória, havendo, nos dois casos, uma

tentativa de reformulação da realidade. Na psicanálise, o sujeito apresenta ao analista

uma primeira narrativa sobre si que é perturbada por este, não para criar uma versão

definitiva que aprisione o analisando em um “eu” rígido, mas para, ao contrário, lhe dar

a consciência de sua pluralidade, mobilidade e capacidade de inovar (GLEIZE, 2000,

p.18). Não se trata de se apropriar do tempo, mas de criar novas versões para o passado.

Em um segundo momento, o analisando, com a ajuda do analista, reescreverá e dará

novo sentido ao presente e, conseqüentemente, ao futuro. A autobiografia

corresponderia apenas a este primeiro momento da reflexão analítica, marcado por um

desejo de renascimento simbólico e reescrita subjetiva. Nesse sentido, narrar a sua

história, desestabiliza algumas certezas, produz prazer, conhecimento de si e de seus

desejos. Mas não se trata, neste caso, segundo Philippe Vilain, de uma escrita

terapêutica, pois o escritor não escreve para se livrar de seus fantasmas e sim para

reencontrá-los.

A intenção de Doubrovsky não era, no entanto, criar um novo gênero, mas

questionar a capacidade da autobiografia de fazer o que pretende, ou seja, narrar a

verdade sobre uma vida. O que ele afirma é que essa escrita híbrida que associa fatos

reais, fantasia e imaginação sempre existiu, a exemplo das obras de Rousseau, Proust,

Céline, Malraux, entre outros. Segundo Doubrovsky, mesmo nas autobiografias

clássicas, em que o papel da memó ria se sobrepõe ao da imaginação, há ficção. Assim

sendo, não seria coerente afirmar que se trata de um novo gênero, mas de um novo

conceito de autobiografia. Na quarta capa de seu livro Fils o autor explica :

Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste


mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de

66
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da
sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro,fios de
palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da
literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção,
pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer
(DOUBROVSKY citado por FIGUEIREDO, 2007, p.56).

Esta nova interpretação da escrita autobiográfica reflete uma transformação

profunda da qual faz parte toda a crítica pós-moderna; uma transformação cabe

reafirmar, que atingiu não apenas a compreensão da arte, da literatura, mas do próprio

conceito de identidade, raça, cultura e verdade. Por acreditar que sujeito, sociedade e

história se constroem pelo discurso, a ideologia pós- moderna atenua os limites entre a

ficção e a realidade, a fantasia e a experiência vivida, a verdade e a mentira. É neste

entre- lugar, entre o real e sua representação, que a autoficção se situa, revelando-se,

assim, um instrumento privilegiado de elaborações identitárias. A autoficção seria a

versão pós- moderna da autobiografia, mais consciente de seus limites e possibilidades,

mais consciente de que o ser humano é plural e está em constante reelaboração.

No que diz respeito ao estilo, embora Doubrovsky dê livre curso a sua

imaginação, procura preservar, ao má ximo, os dados referenciais em suas obras

autoficcionais; em Fils, por exemplo, afirma ter verificado escrupulosamente as datas.

Laferrière, por sua vez, deixa bem claro que o que importa para ele não são as

informações factuais, mas suas emoções, subjetividade, impressões afetivas e sensoriais.

O autor chamou, por exemplo, os cinco livros do ciclo haitiano de “quinteto dos

sentidos” – Le cri des oiseaux fous representaria a audição, Le goût des jeunes filles, o

paladar, L’odeur du Café, o olfato, Le charme des après-midi sans fin, a visão, La chair

du maître, o tato. As percepções sensoriais têm um lugar essencial na literatura de

67
Laferrière, estão, muitas vezes, na origem de sua motivação e desejo de escrever. O

romance pós- moderno tem, nesse sentido, segundo Douwe W. Fokkema, uma estrutura

semântica própria porque, diferentemente do romance moderno, é marcado pela

recorrência de um campo semântico da percepção.

Em vez de discutir, de forma intelectual e desprendida, como fazia o


modernista, as vária s opções que se lhe abrem, o pós-modernista assimila,
absorve o mundo que percepciona, sem saber ou sem querer saber como
estruturar esse mundo para que ele possa fazer sentido. O campo semântico da
percepção, incluindo “observação”, mas também “leitura”, “escuta”, fala”, está
perto do centro do universo semântico pós-modernista, mas é uma percepção
assimilada e possessiva, não reservada e judicativa como no modernismo
(FOKKEMA, 1983, p.75-76).

O narrador pós-moderno não tem a pretensão de neutralidade e isenção do narrador

moderno, deixa-se levar menos pelo intelecto, pelo compromisso de explicar e ordenar e

mais pelas sensações, que o invadem e absorvem.

D’où vient, quand il pleut, cette envie folle de manger de la terre? A cause de
son odeur, sûrement. Au début, on ne sent rien. Puis quand la pluie commence
à tomber, l’odeur monte. L’odeur de la terre. La mangue sent la mangue.
L’ananas sent l’ananas. Le cachiman ne sent pas autre chose que le cachiman.
La terre sent la terre (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.53).

afirma Vieux Os em L’odeur du café. Laferrière chamou de “quarteto das cores”, os

quatro romances do ciclo americano, porque a descoberta do continente americano o

fez descobrir a questão racial através das cores: o vermelho, o preto, o amarelo e o

branco. As quatro cores primárias, segundo Matisse, e ao mesmo tempo as cores das

quatro “raças”. Em Chronique o índio representa o vermelho, em Éroshima a japonesa

e a comunidade asiática representariam o amarelo, em Cette grenade e Comment faire

l’amour temos o negro e o branco. O autor procura misturar as cores (e as raças), assim

68
como um jovem pintor que experimenta tons, livremente e sem preconceitos, para em

seguida conferir o resultado.

Em relação ao pacto do nome, Laferrière o respeita apenas parcialmente. O

apelido do narrador nos romances do Haiti, Vieux Os, é o mesmo do autor quando

criança.

C’est ma grand-mère qui m’appelait Vieux Os. C’est une vieille expression
haïtienne pour dire qu’on ne compte pas se coucher avec les poules. Ma grand-
mère et moi, on avait l’habitude de rester tard la nuit sur la galerie à admirer
les étoiles (LAFERRIÈRE, 2000, p.18).

Nos romances do ciclo americano é chamado simplesmente de Vieux. No entanto, em

dois importantes momentos de transição, a partida e a volta ao país de origem,

Laferrière tem seu verdadeiro nome revelado – no livro Le cri des oiseaux fous, onde

narra seus últimos momentos no Haiti e em Pays sans chapeau onde narra o retorno ao

país.

Il retrouve son nom dans les moments critiques. A mon avis, il y a deux grands
moments chez un voyageur – et tout être humain est un voyageur d’une
certaine façon –, c’est le moment du départ et celui du retour (LAFERRIÈRE,
2000 A, p.19).

Segundo Laferrière, na mitologia haitiana assim que alguém revela seu nome tira sua

máscara, mostra sua verdadeira face. Em L’odeur du café o narrador diz que não pode

revelar seu verdadeiro nome – “personne ne connaît mon nom, à part Da. Je veux dire

mon vrai nom. Parce que j’ai un autre nom. Da m’appelle quelques fois Vieux

os” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.25) –, pois aquele que o conhecerá fará dele seu escravo

–“Da dit qu’on est à la merci da la personne qui connaît notre vrai

nom (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.26). Esconder o nome é uma maneira de se proteger,

69
de criar um personagem através do qual possa dizer suas verdades. Em Pays sans

Chapeau o narrador sente-se livre para revelar seu nome, pois já passou por muitas

provas, já enfrentou o inimigo invisível, já narrou sua vida e a história de seus

fantasmas, e está disposto a voltar e confrontar a realidade, sem máscaras. É uma

maneira simbólica de dizer que acabou – “le type a enlevé son maquillage. C’est fini. Il

ne peut plus remonter sur scène” (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.229).

Para Laferrière, é o lugar que determina o estilo e as estratégias estilísticas que

priorizará em cada obra. Sua autobiografia é, sobretudo, uma autobiografia dos

territórios por onde passou. É o continente americano que lhe interessa, os países que o

habitam, que vão sendo desvendados e (re) significados à medida que escreve. O

continente americano tem para Laferrière uma importância indiscutível no que diz

respeito à construção de sua identidade, enquanto homem e escritor, e a seu

posicionamento, sobretudo em relação à França – referência frequentemente idealizada

nas ex-colônias francesas do Caribe. Viver no Caribe, no continente americano, ser

negro, ter como língua natal o crioulo, ter no histórico um passado de exploração

colonial e escravocrata e ao mesmo tempo se considerar europeu, francês, e se

identificar com o branco, produz uma representação ambivalente e fragmentada do

“eu”, que estaria no limite da esquizofrenia. Laferrière considera esta situação

paradoxal e risível.

Mon combat ne se faisait plus avec la France. J'avais réglé le cas de la France
d'une manière inusitée, en lui faisant affronter un monstre plus fort que lui,
l'Amérique. Comment? Et bien, j'avais découvert par hasard que je vivais en
Amérique, qu'Haïti était en Amérique et non en Europe. Pour moi, tout
devenait alors simple: si la France, comme je le constatais (le cinéma, la
littérature, la gastronomie même, puisque le hamburger est l'aliment préféré
des jeunes Français, le sport aussi puisque les dieux du basket règnent aussi en
France, etc.) se mettait à genoux devant l'Amérique, cette Amérique, alors

70
pourquoi je baisserais la tête devant la France? Pourquoi ne pas adorer le vrai
dieu? L'ancienne équation (J'adore la France qui adore l'Amérique) me parut
brusquement étrange. Je n'ai qu'à répéter sans arrêt: je suis en Amérique. C'est
moi l'Amérique. On se demande même comment la France s'était prise pour
m'enfoncer un tel bobard dans la tête? Me faire croire que je n'étais pas en
Amérique. Il faut, malgré tout, applaudir le magicien. Le Barnum de l'identité.
Quel exceptionnel tour de passe-passe: Faire croire à des millions de gens
pendant au moins deux siècles qu'ils ne vivent pas à l'endroit où ils habitent.
Chapeau! (LAFERRIÈRE, 1999 D).

Ao buscar se desligar ideologicamente da França, despede-se, igualmente, do fantasma

da África mítica, nostálgica e idealizada pelos negros da diáspora e em particular pelos

“indigenistas” do Haiti. Pois segundo ele,

il faut la France pour que l'Afrique, cette Afrique-là, puisse exister dans ma
tête. C'est un couple, et comme pour tout couple, on ne sait plus avec le temps
qui avait raison ou qui avait tort. Franchement, mon cher, je m'en fous. La
France et l'Afrique m'ont créé. Si j'élimine un, l'autre disparaît au même
moment. Cette Afrique mythique n'existe que dans la Caraïbe. C'est une
invention d'intellectuels aux abois. Contre la trop puissante France, ils ont
inventé cette Afrique. Mais ça ne marche pas. Un rêve contre un mythe. Trop
fantasmatique. Cet Univers complètement artificiel a contribué à créer une
élite intellectuelle véritablement schizophrène. La France colonisatrice et
l'Afrique mythique. Réveillez-vous les gars, nous sommes en Amérique. Mais
quelle Amérique? [...] Le Nouveau Monde fut ma réponse (LAFERRIÈRE,
1999 D).

Se despreender da França sonhada e da África mítica implica para ele reconstruir

simbolicamente a idéia de Novo Mundo – em parte criada pelo imaginário do

colonizador europeu – e desvendar a América de dentro, a partir de suas experiências,

fantasias e expectativas.

J'ai découvert qu'en parlant de ma grand-mère dans cette petite ville de la


frontière sud-ouest d'Haïti, Petit-Goâve, je me plaçais au cœur du Nouveau

71
Monde. Un monde à la fois réel et rêvé. A partir de ce moment, j'ai remonté la
piste jusqu'à mon enfance (LAFERRIÈRE, 1999 D).

Em síntese, foi a partir dessas reflexões sobre o que significava para ele a França, a

África e a América que o autor decidiu se nomear um escritor americano e reviver,

sonhar e narrar seu percurso pelo continente, que é parte de uma realidade e ao mesmo

tempo de um fantasma coletivo, que é passado e é presente.

Nesse sentido, a “autobiografia americana” não parte de acontecimentos, fatos

ou vivências estritamente reais, conforme fez Doubrovsky em seu livro Fils. Mesmo

que retome diversos dados referenciais, estes estão em segundo plano quando

comparados aos fantasmas, sonhos e emoções do autor. Segundo Laferrière, as pessoas

se enganam muito freqüentemente a seu respeito, pois procuram se informar a respeito

de sua vida pessoal nas páginas de seus livros e, em sua opinião, estas não são uma

fonte confiável. Tudo o que escreve é, simultaneamente, verdadeiro e falso; verdadeiro

porque se trata de sua emoção e falso porque ele é capaz de tudo inventar para

(re)encontrar e traduzir essa emoção. Em Comment faire l’amour, o narrador vive

experiências muitos similares às vividas por Laferrière antes do sucesso como escritor:

o autor também morou com um amigo em Montreal, perto do Carré Saint-Louis, em

um minúsculo apartamento, onde escrevia seu primeiro romance sobre fantasmas e

sexualidade. No entanto, essas referências ao mundo real vão, aos poucos, se

confundindo com uma infinidade de situações claramente imaginárias. Em uma

palestra proferida no Rio de Janeiro em 2007, Laferrière confessa ter descrito, neste

romance, com precisão, o quarto onde morava e os móveis, mas ter inventado tudo o

que lhe faltava: as mulheres, os vinhos, os amigos, etc.. O autor também afirmou nunca

ter escrito o artigo que foi encomendado ao narrador de Cette grenade, negando

igualmente ter visitado, como este, a América do Norte de ônibus para escrever o livro.

72
Na última parte de Éroshima, romance que narra seu encontro e descoberta com a

cultura e as mulheres orientais, afirma: “je ne sais rien du Japon, et le Japon ne sait

rien de moi” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.143). Segundo ele, com isso, quis enganar a si

mesmo. Nesse sentido, segundo Eurídice Figueiredo, “o procedimento de Laferrière

não é tão “puro” quanto o de Doubrovsky (e outros escritores franceses

contemporâneos como Philippe Vilain, Annie Ernaux, J.M.G. Le Clézio, Patrick

Modiano, Robbe-Grillet e outros)” (FIGUEIREDO, 2007, p.61).

Segundo Laferrière, existem três tipos diferentes de “eu” em seus romances: um

autêntico, mais próximo do “eu” do autor, presente, sobretudo, nos romances da

infância e adolescência; um “eu” ma is próximo dos fantasmas do autor e, finalmente, o

“eu”que toma emprestado as histórias alheias.

Certains « je » sont simplement une ruse de narration afin de rendre plus aisée
la lecture : le lecteur est habitué au « je », donnons-lui du « je ». Par contre, il
y a un «je », le plus couramment utilisé, qui est très juste, très directe et
vraiment naturel : le « je » de « L’odeur du café », de même que celui du
« Charme des après-midi sans fin », de « Chronique de la dérive douce » et de
« Pays sans chapeau ». Il y a aussi le « je » de « Éroshima » (je n’ai pas vécu
dans la chambre de cette japonaise, mais cela m’aurait beaucoup plu) ; c’est
un « je » de fantasme, mais c’est aussi important que le « je » authentique. Le
« je » contaminé consiste à phagocyter les «je » des autres (se servir d’une
histoire qui est arrivée plutôt à un ami). J’aurais pu ajouter un « je »
générationnel quand il s’agit d’un ensemble de personnes qui ont grandi
ensemble dans la même époque, sous une même dictature (je tente alors de
fondre toutes ses sensibilités dans le « je » du narrateur (LAFERRIÈRE, 2000
A, p.199).

Nesse sentido, as abordagens de ficcionalização da realidade presentes na

“autobiografia americana” variam em função do lugar e do momento que vive o autor-

narrador. O “eu” autoficcional presente nos romances do ciclo haitiano, com exceção de

La chair du maître , tende a ser mais espontâneo e sensorial, captando as emoções a flor

73
da pele, de maneira mais direta e com menos mediação. Este também é o caso de

Chronique, que, embora narre o primeiro ano em Montreal, traz um olhar ainda

ingênuo, sem grandes máscaras, mesmo que levemente irônico. Esse “eu” dos primeiros

romances (na ordem cronológica), mais transparente, vai-se transformando, a cada novo

exílio, a cada nova perda e percepção das desigualdades e opressões que o cercam – o

exílio do pai, a dor da mãe, o assassinato do amigo, a mão de ferro e a censura diária do

regime ditatorial, a miséria de muitos e a fortuna de poucos. Uma mudança muito

flagrante de olhar e postura do narrador diante do mundo (e do texto) se dá ao fazer a

passagem do “mundo negro” ao “mundo branco”. Gradualmente, um sentimento de

estranheza, de estupefação, vai tomando conta do “eu” do narrador, que se torna mais

ficcionalizado e fantasmático. A linha divisória, que separa realidade e ficção, fica

mais tênue a cada romance. Do primeiro romance da “autobiografia” (L’odeur du café)

ao último (Pays sans chapeau) há uma grande transformação: vai-se de uma narrativa

de infância com muitos elementos autobiográficos a uma narrativa povoada pelo

universo fantasioso, supersticioso e mágico da cultura haitiana, onde a fusão entre

ficção e realidade, entre vida real e vida sonhada atinge seu ápice.

Laferrière afirma ter buscado em L’ odeur du café fazer um mergulho profundo

no passado a fim de resgatar a emoção primeira, os sentimentos e vivências que,

efetivamente, experimentou durante os primeiros anos da infância. O autor procurou

resgatar o “eu” da criança, sua linguagem, desejos e olhar. A postura do narrador diante

do mundo, ao contrário do provocador e dissimulado narrador de Comment faire

l’amour, Eroshima e Cette grenade, é simples, doce – “Je remarque qu’après une forte

mais brève pluie les gens semblent plus heureux” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.55) e ao

mesmo tempo poética – “Da m’a toujours dit que si le ciel est bleu, c’est à cause de la

mer. J’ai longtemps confondu le ciel avec la mer. La mer a des poissons. Le ciel, des

74
étoiles. Quand il pleut, c’est la preuve que le ciel est liquide”(LAFERRIÈRE, 1999 B,

p.141). Laferrière retoma neste livro temas essenciais em sua literatura – a verdade, a

mentira, o sexo, o livro, a morte, o tempo, etc.– dentro de um contexto íntimo e

familiar, a casa da avó na pequena Petit-Goâve, onde a vida passa lentamente – “Da

boit son café. J'observe les fourmis. Le temps n'existe pas”. Laferrière, procurou, em

L’odeur du café, traduzir a cultura local, descrever um ambiente onde a criança

estivesse completamente integrada e confortável e, assim, se afastar do folclórico.

Segundo o autor, o grande problema da colonização é, justamente, fazer com que as

pessoas se sintam surpresas por estarem no lugar onde nasceram; suas mentes ficam tão

povoadas por referencias externos que elas passam a explicar seu próprio universo

cultural, como se ele não lhes pertencesse intimamente. Assim, a noção de identidade

é, nos romances da infância, em L’odeur du café e Le Charme, vivenciada pelo

narrador como algo inquestionável, que ainda lhe pertence. Vieux Os se sente parte de

uma coletividade, solidária, que o acolhe sem distinção – “ça, c'est Haïti. On n'est

jamais Seul” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.90). Há, nesses romances, uma noção de

identidade que se constrói em função das experiências, cotidianas e afetivas, em meio à

cultura popular haitiana. Trata-se do olhar introspectivo de um membro da

comunidade, de dentro, e não do olhar do estrangeiro, atento, porém distante.

La chair du maître, quarto romance do ciclo haitiano (no entanto, a penúltima

obra pela ordem de publicação), assim como os romances anteriores, mostra a sociedade

haitiana do interior, a partir da vida privada, das residências, dos quartos de hotéis, das

madrugadas, dos banheiros, dos bares, mas ao contrário deles, além de abordar

explicitamente a questão da violência, do sexo e da ditadura, apresenta uma

multiplicidade de perspectivas narrativas. No primeiro capítulo intitulado “Pour planter

le décor”, Laferrière começa escrevendo no passado e em primeira pessoa: “tout a

75
commencé il y a très longtemps, j’avais à peine quinze ans. C’était 1968, l’année de

tous les bouleversements” (LAFERRIÈRE, 2000 C, p. 9), mas no segundo capítulo

( “La nuit d’un fauve”) passa a escrever no presente, mantendo a primeira pessoa, “j’ai

dix-sept ans et je vis à Port-au-Prince...” (LAFERRIÈRE, 2000 C, p. 19). A partir daí, o

leitor que já tomara contato com as obras anteriores, deduz que o narrador é,

naturalmente, Vieux Os, o alter ego de Laferrière. No entanto, ele depara-se com

diversas informações contraditórias, como o fato de o narrador do segundo capítulo

afirmar que seu pai morreu há alguns anos, enquanto o Vieux de Pays sans chapeau

(obra publicada anteriormente, mas posterior pela ordem cronológica) viria a narrar uma

tentativa de reencontro com o pai em Nova York, que, por sua vez, faleceu anos mais

tarde. Progressivamente outras características do narrador que se distanciam de Vieux

Os vão sendo reveladas: seus olhos claros, o nome da irmã, Maryse – o nome

verdadeiro da irmã do autor é Ketty, há uma dedicatória a ela em L’odeur du café –, e,

finalmente, o nome do próprio narrador, Fanfan. Por outro lado, há inúmeras

semelhanças entre o adolescente Vieux Os e Fanfan: a ausência do pai, a postura da mãe

saudosa com relação a esta ausência, a única irmã, a idade, a cidade de Porto Príncipe

etc., o que só faz confundir o leitor. No entanto, conforme o livro avança, as

contradições e ambigüidades entre os dados autobiográficos e ficcionais só aumentam.

No terceiro capítulo (“La gifle”), assim como no anterior, o narrador é um adolescente,

escreve em primeira pessoa (mas já se chama Manoel) e, assim como Fanfan, tem um

pai ausente e uma mãe que sofre a perda, mas por razões diferentes de Vieux Os.

Mon père vit avec une autre femme. Faut dire qu’ils n’ont jamais vécu
ensemble. Pour être sincère, je ne le connais même pas. Elle souffre. Je la
regarde. Elle s’active près de la petite cuisinière. L’air soucieux. Sa main
droite effleure son front comme pour calmer une vieille douleur (« sois calme,
ô ma douleur ») (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.59).

76
No quarto capitulo (“Nice girls do it also”) há uma mudança radical de perspectiva, com

um narrador onisciente, sobre o qual o leitor não tem nenhuma informação, narrando em

terceira pessoa a história de uma família estadunidense em Porto Príncipe. A partir deste

ponto não há mais nenhuma previsibilidade narrativa, os narradores podem ter

diferentes sexos, idades, classes sociais, escreverem em primeira ou terceira pessoa,

histórias reais ou fictícias. O único fio condutor é a memória emocional do autor, das

coisas que viu, ouviu, viveu ou fantasmou na Porto Príncipe do início da década de

setenta. Nesse sentido, assim como o ano de 1968, este é o romance “de tous les

bouleversements”. Talvez o mais transgressor do ciclo haitiano e, em certos aspectos,

da “autobiografia americana”, pois se distancia da estrutura narrativa dos outros

romances. Há, em síntese, uma multiplicidade de perspectivas narrativas que traduzem,

ao mesmo tempo, o olhar do narrador, do estrangeiro e da própria sociedade haitiana

sobre ela mesma. Segundo Laferrière, “il y a un côté homme-orchestre dans cette

fresque où l'on trouve 24 tableaux et énormément de personnages” (LAFERRIÈRE,

1997).

Os romances do ciclo americano marcam uma mudança de perspectiva do

narrador, que se torna mais irônico e ainda mais ficcionalizado. Ao deixar o Haiti para

viver no Quebec, o autor se descobre negro, pela segunda vez, já que essa “novidade” o

havia surpreendido na adolescência através dos debates indigenistas 12 .

12
O Indigenismo – importante movimento artístico e literário que precedeu e influenciou o movimento
da Negritude – foi criado no Haiti na década de 20 por jovens mulatos de origem burguesa e recém
chegados da Europa. Esses jovens descobrem e se envolvem no velho continente com os movimentos
estéticos e políticos das vanguardas e retornam à América com diferentes e irreverentes propostas
artísticas, intelectuais e literárias. Muitas mudanças culturais e políticas estavam acontecendo na Europa:
o comunismo e a crítica aos valores burgueses, a valorização da arte negra (Picasso passou se interessar
pelas máscaras africanas e diversos artistas e escritores começaram a voltar a sua atenção para a África), o
Dadaísmo, o Cubismo, as pesquisas etnográficas.

77
Et brusquement je suis devenu noir. Oui, je vais à l’école, et puis on dit
« l’école indigéniste ». On m’apprend que j’étais noir, on m’apprend que toute
la culture haïtienne est basée là-dessus et que Price-Mars avait écrit un livre
pour dire que j’étais (LAFERRIÈRE, 2000 D).

Enquanto o Indigenismo buscava valorizar a cultura negra, o que estava em jogo no

exílio era bem diferente: exclusão e preconceito, e uma conseqüente necessidade de

auto-afirmação. A partir daí a identidade do narrador vai sendo construída em termos de

diferença. O autor cria, assim, uma espécie de lenda em torno de sua existência,

construindo paralelamente à realidade um roteiro fantasmático, bem estruturado e com

estreita relação com o desejo.

Segundo Doubrovsky, a dinâmica fantasmática que guia as atitudes na vida real é

a mesma que inevitavelmente governa o texto literário. A autoficção seria assim a

escrita do fantasma, pois dá lugar ao ego fragmentado do escritor, permitindo que diga

todos os seus « eus » ao mesmo tempo. As criações fantasmáticas abundam na

“autobiografia americana” e nos romances do ciclo americano em particular. Nesses

romances o Narrador Vieux é solteiro e mulherengo, ao passo que Laferrière, na vida

real, é casado e tem três filhas. Em Comment faire l’amour e Eroshima ele vive às

voltas com suas diversas amantes, louras e anglófonas, no primero caso, e morenas e

orientais no segundo. Estas experiências, certamente, fazem parte de um roteiro

imaginário, de desejos interditos. Laferrière cria o personagem do escritor como um ser

diaspórico, sem raízes, livre para viajar, ir e vir como bem lhe convenha e realizar seus

fantasmas. Segundo o autor, este personagem “c’est le même qui traverse tous mes

romans. Il peut être tendre, cynique, violent passionné, sec ou mouillé. C’est un être

déroutant. Il est á la fois ce que je suis, ce que je ne suis pas et ce que j’aimerais être”

(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.56). Por um lado, existe o homem que quer narrar suas

78
emoções, ir ao mais profundo de si e, por outro, o escritor que quer realizar seus

fantasmas através da escrita e que se esconde por trás da ironia.

Ao flutuar entre realidade e ficção, ao expor seus fantasmas, mudar datas, omitir,

acumular ou deslocar acontecimentos no tempo, cria uma ambigüidade intencional, que

muitas vezes confunde o leitor. E este nem sempre lida bem com a dúvida, com a

dificuldade de distinguir o real e o ficcional. Mas o que fazer quando o pacto começa a

se afrouxar e o leitor se encontra sem certezas ? O narrador descreve em Le goût des

jeunes filles uma conversa que tem com a tia sobre L’odeur du café:

- Rien n’est vrai dans ce livre [...]

- Bien sûr tante Raymonde c’est de la fiction.

Naturellement elle ne marche pas.

- Ah non, tu ne vas pas t’en tirer comme ça...Quand on ne sait pas quoi
dire, on ne met pas les noms des gens dans son affaire...

- Au fond, c’est un mélange de fiction et de réalité...[...]

Elle feuillette fébrilement le livre.

- Où as tu pris l’histoire de Timise ?

- En fait, cette histoire est arrivé à Oginé, mais pour mon récit c’était
mieux avec Timise...

- Bravo (avec un sourire de mépris)...Et si en lisant ton livre, Timise...


(LAFERRIÈRE, 2004 A, p.17).

Em seu livro de entrevista J’écris comme je vis, o autor comenta essa divertida recepção

da “autobiografia americana” por sua tia Raymonde, crítica feroz das mentiras

deslavadas contadas pelo sobrinho.

Souvent elle rit, mais le plus souvent elle fronce les sourcils devant ce qu’elle
appelle un mensonge éhonté. Et elle écrit au crayon rouge dans les marges de la
page. Ce n’est pas une lecture c’est un véritable dialogue. À la fin, elle m’envoie
son livre maculé de ratures et d’interjections [...]. J’ai beau lui faire comprendre
que mon travail ne consiste pas à dire les faits mais plutôt de faire surgir l’émotion

79
d’une situation, que pour moi c’est la vérité de l’émotion qui compte et rien
d’autre, pour elle, je déforme la réalité (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.44).

Laferrière insiste, mas Raymonde não se conforma.

Je lui réponds que je peins plutôt les choses telles que je les ressens [...].
« Alors pourquoi mêler de vraies gens à ton cinéma ? ». « j’ai besoin de ces
personnes, tante Raymonde, j’ai besoin de leur énergie, de leur sensibilité, de
leur caractère pour dire ma vérité profonde » (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.44).

Raymonde se diz profundamente magoada pelo fato de ter sido descrita com um vestido

cinza que ela NUNCA teve; ela, que odiava cinza, passou horas procurando o vestido

em seu armário e ficou possessa ao perceber que se tratava apenas da imaginação do

sobrinho. Laferrière rebate dizendo que a cor do vestido não tem a menor importância,

que a palavra “gris” simplesmente soava melhor naquela frase. Raymonde também acha

inadmissível a terrível mentira contada por Laferrière em Pays sans chapeau, sobre sua

volta ao Haiti, quando sua avó Da já havia morrido. Na realidade, Laferrière voltou pela

primeira vez ao país muitos anos antes e Da ainda era viva. “Tu dis souvent que les

gens et les lieux sont vrais dans tes livres” contesta, “ oui, mais pas les histoires, et puis

je n’ai pas signé le pacte de vérité avec personne” (LAFERRIÈRE, 2000, p.49)

responde Laferrière. A tia conclui bem humorada que Laferrière passa seu tempo

roubando a vida dos outros. Em Cette Grenade o narrador também é interrogado por

uma leitora desconhecida a respeito da veracidade de suas histórias: “ Pourquoi est-ce si

important de savoir que l’histoire s’est vraiment passée ?” responde ele.

Un temps bref.

-On veut savoir si tout ça est vraiment arrivé à l’auteur.

-Oui...pourquoi ?

-Je ne sais pas, dit-elle ce sourire douloureux...on se sent comme ça plus


proche de lui.

80
- Et s’il vous mentait ?

-Comment ça ?

-S’il vous disait que c’est son histoire alors que c’est faux ?

- On serait déçu (un petit rire gêné). Au fond on ne saura pas la vérité.

-Alors, pourquoi ?

-Une fantaisie.

Elle rit.

-Vous me cachez quelque chose ?

-Peut-être, mais je ne sais pas quoi…

Elle sourit de nouveau (LAFERRIÈRE, 1993, p.32).

Segundo Doubrovsky, diante da impossibilidade de se lembrar de todos os

detalhes do passado, a melhor saída é inventar, pular certas etapas, recriar, fantasiar –

“se eu tento me rememorar, eu me invento... SOU UM SER FICTÍCIO”

(DOUBROVSKY citado por LAOUYEN, 2000, p.1). Para Laferrière, cabe ao leitor,

não ao autor, decidir se ele quer ver nas obras de autoficção uma série de presentes

descontínuos ou uma totalização coerente. É a sensação, a emoção que, acima de tudo,

interessa a Laferrière. Fazendo referência ao romance Chronique, afirma:

Je n'ai pas eu besoin de sortir des notes d'un tiroir pour revivre au jour le jour
les moments, les émotions de l'année 1976. Je ne prends pas de notes, je ne
tiens pas de journal parce que je crois que c'est justement le meilleur moyen
pour oublier les sensations, les émotions (LAFERRIÈRE, 1994, p.1).

Laferrière escreveu Chronique em fichas, colocando em cada uma tudo que lhe vinha à

cabeça sobre aquele primeiro ano, imagens, impressões e sensações soltas. Em seguida,

organizou tudo, tirou o que havia de repetido e completou o texto com idéias novas e

um pouco de imaginação.

81
Nesse sentido, os sonhos, os fantasmas e as fantasias têm um papel fundamental

na escrita autoficcional; mas até que ponto estes elementos teriam conteúdos

“confiáveis” (questão que tanto preocupou tia Raymonde)? A psicanálise pode nos

oferece a melhor resposta, já que compreende que o essencial, a verdade do sujeito, está

fora do alcance da consciência, emerge em fragmentos, lapsos, chistes, fantasmas,

sonhos, ou associações livres. Em função da descoberta do inconsciente pela psicanálise

– que desconstrói a idéia de que a consciência é o centro da identidade – a concepção do

sujeito unificado, com total domínio de si, é substituída por outra versão do sujeito.

Ao mesmo tempo que obliterava a estranheza do outro exterior, a civilização


ocidental encontrava um outro interior. Da era clássica até o fim do romantismo
(isto é, até hoje) os escritores e os moralistas não pararam de descobrir que a
pessoa não é uma, ou que ele não é nada, que eu é um outro, ou uma simples
câmara de eco. Já não se acredita em homens-fera na floresta, mas descobriu-se
a fera dentro do homem (...) A instauração do inconsciente pode ser
considerada como ponto culminante da descoberta do outro em si mesmo
(HALL, 2002, p.45).

Nessa perspectiva, a verdade não tem existência em si mesma, é necessariamente

parcial, está entre o imaginário e o simbólico, é parte do sujeito e da sociedade.

Enquanto a autobiografia busca narrar a história de uma vida se fiando na memória, nas

lembranças conscientes, em pesquisa e datas, na autoficção o “eu” fala de si nas

entrelinhas da criação. Assim, a autoficção se dispensa da tarefa de apresentar uma

imagem homogênea do sujeito, pouco significativa em tempos pós-modernos, onde se

acredita que a verdade, a identidade, a ideologia e a história se constroem, acima de

tudo, através de representações e narrativas. Diferentemente da literatura na

modernidade, que ainda estava em busca da Verdade, de valores sólidos, da essência do

homem, a literatura pós-moderna mostra que a verdade é, justamente, o que falta ao

texto. Ela se propõe a gerar questionamento, dúvida e desafiar a lógica.

82
A verdade pode, por vezes, não nascer da confissão, mas nascer da mentira.

A pior ingenuidade na literatura consiste em acreditar que a verdade surge,


sobretudo, onde a narrativa coincide com os fatos, enquanto ela se manifesta,
justamente, pela pura invenção, que nasce das pulsões inconscientes e responde em
seguida a critérios puramente estéticos (ZAGOLIN, p.60, 1993).

Marie-Michèle, umas das narradoras da edição revisada e aumentada de Le goût des

jeunes filles, se questiona, em seu diário, a respeito da importância da “verdade”, tanto

na escrita autobiográfica quanto na vida.

Je cherche, aujourd’hui, beaucoup plus à bien dire qu à dire la vérité. La vérité


c’est ce que je vis, mais l’écriture c’est ce que j’aimerais vivre. J’attrape les
émotions au lasso de mes phrases. Qu’est-ce qui est plus important, la vérité ou
l’émotion ? La vérité ne gagne pas toujours de l’émotion (LAFERRIÈRE,
2004, p.153 ).

A jovem, membro da minoria afortunada de Porto Príncipe, conclui, referindo-se ao

esnobe grupo que a mãe freqüenta, que dizer a verdade (os fatos), de maneira artificial ,

escondendo as emoções, os afetos, é o mesmo que mentir – “Bien sûr, il y a des faits

vrais, des anecdotes vraies, mais si le cœur n’y est pas, alors tout cela est faux. Elles

ont une définition du mensonge à laquelle je n’adhère absolument pas. Elles savent

comment mentir en racontant une histore vraie”(LAFERRIÈRE, 2004, p.170 ). Este

questionamento, sobre o valor da verdade ou a mentira, está muito presente na

“autobiografia americana”. As jovens protagonistas Le goût des jeunes filles, Miki e

Marie-Michèle, mentem para sobreviver, a mãe de Marie-Michèle mente para se sentir

bem, a população pobre mente por medo da repressão ditatorial. Neste caso, mentir é

uma forma de ser verdadeiro; de se proteger, de se defender, de conservar sua auto-

estima e, assim, ser sincero consigo mesmo.

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A verdade (a realidade) encontra-se em um entre- lugar entre a vida real e a vida

imaginária, entre a ficção e a autobiografia, no que há de mais difícil de descrever ou

alcançar. Assim, a história e a verdade de um sujeito se elaboram na confluência de

elementos vividos, fantasiados e intelectualizados, entre diferentes esferas da realidade,

a psíq uica e a concreta, a individual e a coletiva.

O entre-lugar, se apresenta como a verdadeira realidade, porque "o real"


começa onde o sentido vacila. O sentido de uma vida não está em lugar algum,
ele não existe. Não se trata de descobri-lo, mas de inventá-lo, não com todas as
peças, mas com todos os vestígios; é preciso construí-lo (DOUBROVSKY,
1988, p.77).

Este entre-lugar de onde parte a autoficção – que muitas vezes gera ambigüidade e

dúvidas no leitor – é o entre-lugar da própria vida. A incerteza é um desafio cotidiano.

Laferrière acredita que instaurar a dúvida no leitor, isto é, fazê- lo pensar por si mesmo,

é uma das mais importantes funções da literatura. A literatura, segundo Doubrovsky,

existe para compensar faltas, falhas, seria um espaço de compensação, construção e

descoberta da identidade. Acredito, assim, que a escolha da autoficção por Laferrière

traduz perfeitamente a idéia que o autor faz da literatura e de seu próprio percurso – pois

jamais separa sua vida vivida de sua vida sonhada. É neste entre- lugar que se construiu

como homem e como escritor, entre diferentes países, línguas, profissões, referenciais

culturais. Híbrida por natureza, a escrita autoficcional, segundo Harel, expressa um

impasse produtivo e tipicamente pós- moderno.

Eu gostaria unicamente de acentuar que a autoficção, gênero literário híbrido


duramente criticado por certos teóricos da literatura, torna-se de grande valor
se ele for considerado como a expressão de um impasse. Poderíamos dizer,
igualmente, fazendo referência à psicanálise, que se trata de uma resistência
produtiva porque é um espaço de contradições e revelações. É a partir destes
parâmetros que me parece sensato buscar a sua originalidade (HAREL,2000
A).

84
2.5. Pays sans chapeau: entre e o real e o sonhado

Tout ce que j’aime c’est croire que la vie rêvée d’un individu est
intimement mêlée à sa vie réelle. On peut rêver sa vie. Je suis
tissé de rêves. Voilà, c’est moi, plus rien à dire
(LAFERRIÈRE).

A “autobiografia americana” apresenta facetas contraditórias de Laferrière, que

traduzem a transformação pela qual passa em sua deriva americana. Há tanto a doçura, a

ingenuidade e a espontaneidade de Vieux Os nos primeiros romances, quanto o cinismo,

a ironia, a lucidez de Vieux no exílio. Estes dois lados de um mesmo homem estão,

todavia, reunidos em Pays sans chapeau, romance que narra a volta do narrador Vieux

ao Haiti vinte anos depois de sua partida forçada para Montreal, para rever um mundo

com o qual, apesar da distância física, jamais deixou de sonhar. Por um lado, o autor

fala da vida privada, da intimidade – o encontro emocionado com a mãe Marie e com a

tia Renée, com os amigos de infância, Philippe e Manu, com Lisa, mulher por quem se

apaixonou sem nunca se declarar – com uma doçura rara e uma emoção discreta. Por

outro lado, descreve a vida pública – as caminhadas por Porto Príncipe, os anônimos, a

pobreza, os lugares por onde passa – sem perder a lucidez e uma eventual ironia. Em

sua redescoberta do país natal, Laferrière se deixa capturar por uma infinidade de

impressões sensoriais, odores, cores, imagens e sabores, que o impressionam e captam

permanentemente sua atenção. Finalmente, como contraponto ao país real (público e

privado), o narrador reencontra o Haiti mitológico, o qual, apesar dos anos no exílio,

nunca deixou de povoar seu imaginário.

O imaginário popular, as referências culturais e afetivas, as primeiras e

formadoras experiências da infância e da adolescência de Laferrière pertencem ao Haiti.

Foi este refúgio imaginário que lhe permitiu sobreviver na América do Norte, conviver

85
com a solidão, o preconceito, o racismo, as dificuldades financeiras. Foi, assim,

povoado de contos, mitos, provérbios e lendas crioulas, que enfrentou o frio, as

diferenças e desvendou a cultura do Outro. Sem nunca deixar de estar imerso nesse

imaginário haitiano, foi, com o passar do tempo, transformando essa herança cultural

em algo novo, híbrido. O Haiti, segundo Joëlle Vitiello, é freqüentemente representado

de maneira ambivalente pelos escritores migrantes residentes no Quebec.

O Haiti ocupa uma dupla função: ausente, é o lugar da falta, de onde surgirá a
escrita; presente, ele se revela alienante, daí a necessidade de exorcizá-lo, ou
seja substituí-lo por um Haiti ideal, do qual se poderia sentir saudade sem as
dores da ambivalência que se sente em relação a uma terra natal vitimizada e
brutal ao mesmo tempo. A partir desta relação dilacerante com a ilha natal
nasce a escrita, tentativa perpétua de resgatar as memórias afetiva, cultural e
coletiva, para retomar os esquemas teóricos propostos por Régine Robin a
propósito da escrita e do exílio (VITIELLO citado por MATHIS, 2003,
p .282).

Vieux Os passa a maior parte de seu tempo entre o reconhecimento da cidade, a

companhia da família e a escrita – “j'écris tout ce que je vois, tout ce que j'entends, tout

ce que je sens”, pois “tout. Tout, m’intéresse” afirma (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.81).

Como um “peintre primitif ”, Laferrière “attrape au vol un souvenir” (LAFERRIÈRE,

1999 A, p.153), tentando traduzir na escrita as múltiplas e efêmeras emoções que

experimenta ao rever o país – “tiens, un oiseau traverse mon champs de vision. J’écris:

oiseau. Une mangue tombe j’écris: mangue” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.15). Em Pays

sans chapeau, assim como em Comment faire l'amour, o narrador está escrevendo um

romance que funciona como uma mise en abyme do romance que escreve Laferrière, a

história que lemos corresponde ao texto que escreve Vieux Os durante a viagem, no

quintal da casa materna, sob uma mangueira. Assim como no quadro de Matisse,

“Intérieur rouge”, que Vieux afirma admirar em Comment faire l'amour, um quadro é

86
pintado dentro do quadro, nessas duas obras, um romance é escrito dentro do romance.

E assim, a realidade se desdobra, passado, presente e futuro se encontram nesta

encruzilhada de impressões – “écrire c’est essayer de maîtriser le temps, en racontant

je me rends par un moment maître du temps”(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.25) afirma o

autor. Embora Laferrière ocupe-se especialmente do presente imediato, não se

prendendo ao passado nem se fixando no futuro, esses três pólos estão, inevitavelmente,

ligados em seus romances, formando um todo interdependente.

A questão do tempo é muito tematizada em Pays sans chapeau, a volta a Porto

Príncipe é uma volta no tempo, uma tentativa, no fundo frustrada, de fazê- lo parar. “Je

suis resté vingt ans en chemin” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.19), afirma Vieux, que

perdeu neste percurso a noção do tempo, e justamente por isso gostaria de reencontrar

tudo como antes. De fato, em diversos momentos do livro o autor tem a impressão de

que o tempo não passou no Haiti, sobretudo, nos espaços da cumplicidade familiar. Ele

reencontra a mãe com o mesmo sorriso, a mesma doçura e a mesma dor recolhida; assim

como tia Renée vê em Vieux Os o mesmo menino indefeso, de há vinte anos atrás.

-Bon dis-je, je vais vous demander de vous retourner.


-Pourquoi? Demandent-elles en chœur.
-Parce que je vais me changer, mesdames.
Un brusque éclat de rire.
-Ça ne nous fait pas peur, hein Marie ! lance tante Renée un peu
gaillardement.
Sourire vaguement gêné de ma mère.
-Écoutez, j’ai quarante-trois ans…
Ciel ! qu’ai-je dit pour provoquer cette explosion de rires en
cascades. Tante Renée se jette littéralement sur le lit […]
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.32).

Durante todo seu reconhecimento da cidade e das pessoas, observa e ressalta o

inalterado; o sapateiro, por exemplo, que há anos trabalha no mesmo lugar, atrás do

mesmo balcão, ou os amigos de infância, que o recebem com o mesmo carinho de há

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vinte anos atrás. Assim, a passagem do tempo é mascarada – “sommes-nous em 1976 ou

em 1996” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.144), indaga o narrador, que afirma: “je reprends

ma vie au moment où je l’ai quittée. Je respire à plein poumons : libre dans la nuit à

Port-au-Prince” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.83). Embora em diversas ocasiões sinta

que tudo está igual, que o tempo parou, este sentimento oscila, uma vez que também se

surpreende e se sente perdido diante das inevitáveis transformações pelas quais passou

tanto o país quanto ele mesmo. Em um primeiro momento, ao ouvir as inverossímeis e

cotidianas histórias de zumbis, sente-se um estrangeiro em seu próprio país – “voilà ce

que c’est que d’avoir passé près de vingt ans hors de son pays. On ne comprend plus les

choses les plus élémentaires” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.104). As diferenças e

injustiças sociais também o impressionam: a população aumentou, mas o espaço e as

condições de habitação continuam as mesmas. A pobreza, o mau cheiro, a falta de

higiene, os ambulantes, os bairros populares, a falta de informação, nada disso é

realmente novo, mas impressiona; o calor também causa um certo incômodo, “mon

corps a vécu trop longtemps dans le froid du nord” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.36).

Mas o que mais o surpreende é a falta que todas essas coisas simples, e não

necessariamente boas, podiam lhe fazer : “cette poussière, les gens, la foule, le créole,

les odeurs de fritures, les mangues dans un arbre, les femmes, le ciel bleu infini, les cris

interminables, le soleil impitoyable...” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.154). Os sentimentos

do narrador são contraditórios, resvalam entre o reconhecimento e a incompreensão, a

identificação e a estranheza. Pays sans chapeau é a combinação perfeita do sentimento

de pertencimento e do de estranheza, do olhar cúmplice e do olhar distanciado, da

experiência sensorial, estética, afetiva e ao mesmo tempo intelectual.

Pays sans chapeau é o romance da “autobiografia americana” que melhor traduz

a idéia de que a literatura é fruto do encontro entre mundo vivido, mundo fantasiado e o

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mundo pensado. É o romance que melhor transmite, tanto na forma como no conteúdo,

a experiência do entre- lugar: entre a realidade e o sonho, a vida privada e a vida pública,

as experiências cotidianas e os mitos populares, a escrita e a observação, o lá (Quebec) e

o aqui (Haiti), o passado e o presente, a imobilidade e a transformação, a ficção e a

biografia.

Muitas questões movem o narrador neste retorno ao país natal: no que o Haiti”se

transformou? No que o “eu” do narrador se transformou ? “Faut-il considérer les gens

qui ont vécu trop longtemps à l’étranger comme des Haïtiens ?” (LAFERRIÈRE, 1999

A, p.184). São estas entre outras perguntas que o romance busca responder.

Je suis là, devant cette table bancale, sous ce manguier, à tenter de parler une
fois de plus de mon rapport avec ce terrible pays, de ce qu’il est devenu, de ce
que je suis devenu, de ce que nous sommes devenus, de ce mouvement incessant
qui peu bien être trompeur et donner l’illusion d’une inquiétante immobilité
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.37).

O romance tem uma estrutura binária que alterna capítulos cujos títulos são

“País real” e “País sonhado” e cujas epígrafes são provérbios crioulos traduzidos,

literalmente, para o francês. As partes intituladas “País real” são subdivididas em

pequenas prosas, acompanhadas de um título, aparentemente aleatórias, que narram

impressões diversas. O país real é a ternura da mãe, as refeições em família, o cotidiano,

os amigos, os encontros fortuitos com pessoas comuns, os bairros pobres, o medo de

ficar ainda mais pobre, os imprevistos constantes, a concepção diferente do tempo –

“prends ton temps Vieux...Ici, le temps ne coûte rien” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.155).

A morte sempre iminente, antes por causa da ditadura, agora por causa da miséria e do

abandono do estado, é um tema recorrente; a luta pela sobrevivência não dá tréguas no

Haiti, mas, por falta de escolha, todos aprendem a sobreviver. Laferrière narra os

dramas pessoais dos haitianos que cruzam seu caminho, a dificuldade para sustentar e

criar os filhos, a informalidade, o desânimo. Há desordem em todas as partes: “le

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silence n’existe à Port-au-Prince qu’entre une heure et trois heures du

matin”(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.13) afirma o narrador, mostrando que a vida tende a

ser pública nesta confusa capital.

Na parte intitulada “País sonhado” o texto é fluido, sem subdivisões. O país

sonhado é o país do vodu, das superstições, das fantasias, dos mitos e das crendices

populares. É um país onde os deuses ainda circulam ao lado dos homens, onde o diabo

se parece com um amigo da família, onde o mal existe de fato e não é apenas um tema

de dissertação. É como se todo um país não distinguisse mais o sonho da realidade.

On dirait que deux pays cheminent côte à côte, sans jamais se rencontrer. Un
petit peuple se débat le jour pour survivre. Et ce même pays n’est habité, la
nuit, que des dieux, des diables, d’hommes changés en bêtes. Le pays réel : la
lutte pour la survie. Et le pays rêvé : tous les phantasmes du peuple le plus
mégalomane de la planète (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.46-47).

Mas entre o país real e o país sonhado, entre o Haiti e o Quebec, entre a magia e a

racionalidade, está a literatura – a representação desta realidade multifacetada.

Num país onde importa mais crer do que saber, o próprio autor se diz

profundamente marcado por esta crença no sobrenatural; assim, seu saber intelectual,

sua ironia, suas leituras, nada pode protegê- lo da fantasia; o imaginário o povoa e é isso

que traduzirá na escrita. Além das histórias, dos contos e dos provérbios crioulos que

sempre ouviu de sua avó, Laferrière conviveu com o vodu, com o catolicismo e com o

protestantismo desde a infância. O autor deixa entrever essas referências em suas obras.

C’est durant cette époque magnifique, mon enfance au coeur de la magie, que
ma sensibilité a été formée. Je ne discute pas la véracité de tels événements. Ce
sont des choses qui m’habitent profondement. Je peux toujours, le jour, em
parler avec um sourire amusé, mais je sais qu’il n’est pas de même la nuit
(LAFERRIÈRE, 2000 A, p.209).

“País sem chapéu” é como se chama, no Haiti, o mundo dos mortos, porque nunca

ninguém é enterrado com chapéu. A morte é definitivamente uma presença no Haiti.

90
Para muitos haitianos, como a avó do narrador, a morte é, por um lado, cercada de uma

aura de mistério e medo, por outro, é vista como uma continuação da vida. Um morto da

família, por exemplo, nunca deixará os vivos.

Quel que soit l’âge de la personne, quel que soit la cause de sa mort, c’est
toujours une histoire de diable. ‘On l’a mangé’ […] les morts ne quittent pas
les vivants, on fait comme s’ils y étaient parmi nous (LAFERRIÈRE, 1999 A,
p.201).

A fronteira que separa a vida e a morte é bastante tênue no romance, não há dicotomia –

“ici, il n’y a ni bons ni méchants, juste des morts” diz Marie (LAFERRIÈRE, 1999 A,

p.94). A afirmativa de que quase todos estão mortos no Haiti é repetida em diversos

momentos no romance: pela mãe, pelo pai (em uma lembrança do personagem), por

pessoas que Vieux encontra na rua, pelo vizinho, por intelectuais e pelo próprio

narrador: “le pays est devenu le plus grand cimetière du monde” (LAFERRIÈRE, 1999

A, p.54).

C’est ainsi que Da me décrivait les gens qui vivaient dans l’au-delà, les yeux
très grands dans les visages osseux, et surtout cette fine poussière. L’au-delà.
Est-ce ici ou là-bas? Ici n’est-il déjà là-bas? C’est cette enquête que je mène
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.65).

Segundo Philippe, amigo de Vieux, não há saída para os haitianos: ou estão mortos ou

estão loucos, por causa do sol constante, da fome de poder e da falta de sexo (em função

da superlotação das casas, não há espaço para a relação íntima).

Tu n’as pas vu ce terrible soleil? Il tape trop fort sur les crânes et il a fini par
nous rendre fous. Il n’y a pas d’arbres dans ce pays, et il n’y a pas d’eau non
plus. C’est un caillou au soleil. Nous sommes à la merci du soleil. Ce que les
gens ne savent pas, c’est que nous sommes devenus fous (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.184 -185).

Todos têm uma teoria para a “loucura” que invade o haitiano. Segundo Philippe, todo

haitiano é megalomaníaco e tem uma única ambição: “devenir président du pays peut-

91
être le plus pauvre du monde” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.186) ; já, na opinião do

narrador, todo haitiano tem um pouco de ditador e de Deus vodu em si ; “il n’y a pas de

solution tout nous pousse vers la folie et le désespoir” afirma Philippe (LAFERRIÈRE,

1999 A, p.184). O próprio pai do narrador enlouquece por achar que estavam todos

mortos no Haiti; o autor narra neste último romance, o único encontro que teve, doze

anos antes, com o pai exilado em Nova York:

- Qui est là?


- Ton fils, dis-je.
- Je n’ai pas d’enfant, tous mes enfants sont morts.
- C’est moi papa, je suis venu te voir.
- Retourne d’où tu viens, tous mes enfants sont morts en Haïti.
- Mais je suis vivant papa.
- Non, il n’y a que des morts en Haïti, des morts ou des zombis. Il
n’a pas ouvert la porte et je suis parti. Ce fut notre unique
conversation (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.212).

O retorno ao país natal e a visita ao país sem chapéu é, sem dúvida, uma tentativa de

compreender tudo isso. Que país é esse que produz loucos, mortos- vivos, megalomania

coletiva ou desesperança? O que significa tanta superstição? Que tipo de insatisfação e

de sofrimento a sociedade haitiana tenta transmitir ou abafar através desta fixação na

morte, na crença em zumbis errantes, miseráveis, escravizados ou capazes das maiores

atrocidades?

Nenhum personagem do romance se esquiva do sobrenatural, sejam eles

intelectuais, artistas ou pessoas do povo. A mãe de Vieux Os morre de medo dos zumbis

e narra, com grande seriedade, a fuga dos mortos de um cemitério:

- L’armée de zombis, finit-elle par murmurer. Ils sont des dizaines de milliers.
Les prêtres vaudou ont ratissé le pays du nord au sud, de l’est à ouest. Ils ont
ratissé tous les cimetières du pays. Ils ont réveillés tous les morts qui
dormaient du sommeil du juste […] (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.48).

92
- Les gens sont morts, conclut-elle, et on refuse de les laisser se reposer en
paix. Avant, le cimetière était le seul endroit sûr en Haïti. Maintenant je me
demande si on fait une bonne affaire en mourant dans ce pays (LAFERRIÈRE,
1999 A, p.50).

Existem tipos diferentes de zumbis, o zumbi cuja alma é controlada pelo feiticeiro, o

zumbi que é um morto-vivo e que pode ser escravizado e o zumbi que voltou à vida. No

imaginário popular, os zumbis são considerados ora dignos de piedade, ora perigosos e

ameaçadores. Tornar-se um zumbi pode ser também uma espécie de punição por certos

atos degradantes, como a ambição em excesso, a difamação, a traição, etc. No Haiti, os

zumbis seriam vítimas dos houngans (pais de santo) que, através de uma droga, fazem

com que suas vítimas pareçam mortas – pois apesar da aparente paralisação das funções

vitais continuam conscientes – a fim de escravizá- las.

O vodu – palavra de origem africana que significa espírito – é uma prática religiosa

próxima do candomblé e da santeria (praticada em Cuba), com um panteão de deuses

bastante semelhante. Criado a partir de diferentes ritos africanos, o vodu, assim como o

candomblé, começou a ser praticado pelos escravos que não podiam exercitar

abertamente a sua própria religião, mas foram forçados a adotar, publicamente, as

práticas religiosas dos colonizadores católicos. Esta prática religiosa sincrética tornou-se

uma forma de resistência à condição escrava e à opressão colonial, tendo em vista sua

capacidade de manter a comunicação, a coesão e certas tradições culturais. A crença

vodu se fundamenta em uma linhagem de deuses, os loas (os orixás no candomblé),

espíritos que encontram equivalência nos santos católicos. Existe uma grande variedade

de loas, entre os quais estão Legba (corresponderia a Exú no candomblé), que tem a

função de intermediário, de mensageiro dos Deuses, Ogou (corresponderia a Ogum),

que representa a força guerreira e Erzulie (corresponderia a Iemanjá), que representa o

amor sob todos os aspectos, espiritual ou carnal. Vieux Os tem o prazer, ou o desprazer,

93
de conhecer estes loas durante sua visita ao país sem chapéu. O vodu, assim como o

catolicismo, prega a proteção e a ajuda aos mais fracos, seja pelas pessoas próximas ou

pelos ancestrais mortos. O que se espera desta religião é o que se espera das religiões em

geral, uma explicação compartilhada do mundo, um pouco de esperança, de justiça ou de

vingança, em síntese, o que o mundo real, freqüentemente, não pode oferecer. Tendo em

vista o cenário e as circunstâncias do nascimento do vodu – em meio ao sofrimento, ao

medo e à violência da escravidão e do sistema colonial – percebe-se como conseqüência

um temor desmedido e coletivo dos espíritos maléficos, medo de se transformar em

escravo ou em zumbi. Esta fé se baseia na idéia de que a realidade é um tipo de máscara

por trás da qual forças sobrenaturais, espirituais, vivem e exercem seu poder, protegendo

ou punindo. É como se dois mundos existissem de fato paralelamente, não há separação

entre o sagrado e o profano, o material e o espiritual, os vivos e os mortos. Nas palavras

de Laferrière,

si le catholicisme a servi à garder le peuple en esclavage le vaudou va l’aider à


en sortir. En effet, le vaudou permettra aux gens de croire qu’ils sont approuvés
par leurs Dieux. Ce sera donc Erzulie Freda face à Marie Immaculée
Conception. Si Marie est une jeune femme qui a accouché d’un garçon bien
joufflu sans cesser d’être vie rge, Erzulie ignore le nombre exacte de ses amants
(hommes et femmes). Elle est la maîtresse de tous ceux qui s’étaient réunis au
Bois-Caimaïan, dans la nuit du 22 au 23 août 1791. Durant la cérémonie où des
esclaves de plantation du nord s’étaient juré de mourir plutôt que de vivre en
esclavage (LAFERRIÈRE, 2004 B).

O vodu seria, assim, uma resposta aos sofrimentos e humilhações sofridas

durante a colonização e à miséria que permanece; transmite a angústia e a esperança de

se estar em contato com “o outro lado”. Esta prática religiosa traduz fantasias coletivas,

simultaneamente ameaçadoras e libertadoras. Por um lado, vive-se com medo de ser

atacado ou transformado em zumbi, por outro se vive a chance de fugir da realidade e de

94
estar em contato permanente com os deuses e com os mortos. Ora os zumbis são temidos

porque podem fazer o mal, ora são escravizados, explorados e dignos de piedade. Trata-

se de uma ambigüidade experimentada pela própria sociedade haitiana; da mesma forma

que o povo haitiano se orgulha de sua força, de ter sido a primeira república negra no

mundo, sofre com a situação de pobreza e de exploração que viveu e ainda vive.

Diz-se morto-vivo e isso indica a posição ontológica do personagem que oscila


entre a vida e a morte, que se encontra, por conseqüência, em uma verdadeira
terra-de-ninguém onde não se sabe mais se é um ser vivo, logo uma pessoa de
direito, ou um morto, logo uma não pessoa, um puro e simples objeto
(LAROCHE citado por BERND, 1997).

Essa dualidade entre o poder e a fraqueza, o orgulho e a piedade, a ciência e a magia, o

dia e a noite, está presente em todo o romance. De dia, o exército americano é sinônimo

de poder na capital haitiana, mas à noite só o exército de zumbis detém o controle da

situação : “le jour, ce ne sont que des nègres mal equipés[...]mais la nuit...” afirma

Marie, “oui maman, je trouve cette division du travail parfaite. Le jour à l’Occident. La

nuit à l’Afrique” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.61).

Essa presença constante da morte e do sobrenatural no romance também pode

ser compreendida como uma crítica à situação socioeconômica do país e como

metáfora da sobrevivência à miséria. Ou seja, Laferrière ao mesmo tempo em que faz

uma crítica da terrível situação haitiana percebe que, apesar de todas as dificuldades, o

povo consegue, com esperteza, driblar a miséria e a fome, viver apesar de mortos, ou

melhor, tudo suportar porque já se está morto. “Si on était des êtres humains, continue-

t-il, vous croyez qu’on survivrait à cette famine, à tous ces tas d’immondice qu’on

trouve à tous les coins de rue ? ” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.54), diz um engraxate,

com quem Vieux Os conversa em um de seus passeios pela capital. A morte se mostra

uma saída para todos os males, inclusive para as humilhantes diferenças sociais; “os

95
mortos são mais felizes do que nós”, afirma uma mulher que o narrador encontra no

táxi.

Regardez les châteaux que les riches se font construire sur la montagne, alors
que nous nous enfonçons de plus en plus dans cette boue noire et puante. Je
dois respirer ça tous les jours. S’il n’y avait pas les enfants, il y a longtemps
que j’aurais mis fin à mes jours. D’ailleurs, je n’ai pas peur de mourir,
madame, dit-elle, s’adressant à ma mère…Les morts sont plus heureux que
nous (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.133).

Um bom exemplo da morte como metáfora da capacidade de sobrevivência está na

narrativa irônica que Laferrière faz de Bombardopolis, cidade no norte do Haiti, cujos

habitantes só precisam comer de três em três meses, e que está sendo objeto de estudo

de cientistas de todo o mundo. Os pesquisadores não detectam nada de diferente nesses

haitianos, com exceção de um lingüista belga que afirma ser a língua crioula a grande

responsável pelo ocorrido:

- Mais je parle créole aussi! S’exclame Philippe sur un ton sarcastique. Alors
pourquoi je suis obligé de manger trois fois par jour ?
- Il paraît que le créole de Bombardopolis est le plus pur d’Haïti. L’accent
aussi. Je n’ai pas très bien compris, mais les types de la NASA ont pris des
notes durant toute son intervention. Le linguiste belge a expliqué que ces
hommes, les habitants de Bombardopolis, sont devenus, d’une certaine
manière, des plantes. Il a longuement expliqué comment la photosynthèse a
fonctionné dans ce cas-ci. Par une sorte d’accord total entre l’homme et la
nature… (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.169-170).

Philippe (o amigo mais rico de Vieux Os) conclui, ironicamente, que o crioulo e a

miséria haitiana seriam, por conseguinte, os grandes salvadores da humanidade na luta

contra a fome : “dans moins de deux cents ans, le créole risque de devenir la langue

universelle, ce qui réglerait par le fait même le problème de la faim ” (LAFERRIÈRE,

1999 A, p.170).

96
A volta ao Haiti é tão intensa que o narrador não se limita apenas a visitar o país

real, observar a pobreza crescente, encontrar amigos ou ouvir as histórias sobrenaturais

da mãe. Também não se limita a falar com intelectuais crédulos, como fez nas partes

intituladas “País sonhado”, onde inicia uma pesquisa para compreender todas estas

histórias de zumbis e mortos que ouve por toda parte. O que se observa em suas

entrevistas, dentre elas com um professor de etnologia que relata a revolta de um

exército de zumbis, é que todos narram esses episódios sobrenaturais com grande

naturalidade. Mas nada do que ouve é suficiente para Vieux Os; ele quer compreender

profundamente seu país, saber de onde vêm seus fantasmas e mitos, por isso continua a

viagem até o mundo dos mortos, le pays sans chapeau, para conhecer de perto os

deuses vodus que povoam o imaginário mítico do seu povo. Mas esse mergulho no

imaginário vodu não é feito com reverência; o narrador, ao contrário, mantém o mesmo

olhar curioso, por vezes, cético e irônico. Antes de partir, Vieux Os encontra um

poderoso feiticeiro, que vive entre os dois mundos, e que lhe propõe a chance de visitar

o mundo dos mortos. Assim, durante um sonho, esta porta lhe é aberta.

Je sens une main sur mon cou. Je fais un rêve étrange,


et dans ce rêve, on me poursuit […]
Quelqu’un finit par me prendre par le cou. Une main rugueuse.
- C’est le temps.
- Hein ! Quoi? […]
- On doit partir maintenant.
- Où va-t-on ?
- Vous verrez... […]
- Dès qu’on franchira cette barrière, dit-il, on tombera dans l’autre
monde (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.216-217),

afirma Legba. Legba, segundo a tradição vodu, é o primeiro loa que se encontra ao

penetrar no outro mundo, aquele que abre caminho para a comunicação com os outros

loas. Ele é freqüentemente representado sob a aparência de São Pedro, que guarda as

97
chaves do paraíso. A primeira impressão do país sem chapéu surpreende pela

semelhança com o país real: a mesma aridez, a mesma poeira fina e branca, e alguns

burros.

Je continue mon chemin, l’œil aux aguets, m’attendant à voir à chaque pas
quelque chose d’inattendu, une forme mystérieuse quelconque. Rien de tout
cela, à part cette légère poussière blanche que soulève un petit vent coquin.
De temps en temps je croise un âne chargé de calebasses, mais rien d’autre
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.218).

Em seus encontros com os deuses do vodu, Vieux não os reconhece, tamanha é a

diferença entre o que se vê e o que se esperava ver naquele lugar. A primeira loa com

quem fala é Marinette, uma adolescente brincalhona filha de Ogou, que o narrador vê

em seguida, estressado com a esposa Erzulie. Ogou, além de estar prestes a quebrar o

mais universal dos tabus, se casar com sua filha Marinette, é totalmente desmoralizado

por Erzulie:

Je dois te dire que, depuis que ce cher Ogou ne bande plus, je suis obligée de
trouver mes partenaires chez les mortels, et ils ne font pas le poids,
naturellement. C’est que je peux baiser facilement tout un mois sans m’arrêter
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.224).

Erzulie muitas vezes aparece sob a aparência da Virgem Maria, mas na crença vodu é

extremamente sensual e provocadora, meio virgem e meio prostituta. A Erzulie do

romance é quase uma caricatura, come lagarto, é tarada, muito sexy, um pouco

histérica, quer fazer sexo um mês seguido com o narrador, critica o desempenho sexual

de Ogou e admira Martin Luther King. O autor pinta, assim, um retrato bastante

surpreendente dos deuses do vodu, aproximando os deuses dos homens, exagerando

seus defeitos e qualidades.

Moi qui pensais tomber sur une pluie de formes étranges dans un monde bizarre,
un univers si puissant, si gorgé de symboles, si complexe [...]. Au lieu de ça, j’ai
à me mettre sous la dent les ricanements d’une déesse adolescente, et les

98
lamentations d’un père, supposément le terrible Ogou Ferraille, qui m’a plutôt
l’air d’un pauvre ouvrier pris jusqu’au cou des frustrations matrimoniales.
Étais-je ici pour entendre un dieu me raconter ses misères avec sa femme ? Et
surtout, est-ce avec ce ramassis de ragot petit bourgeois que le vaudou compte
faire face aux mystères du catholicisme ? Je ne veux pas le croire
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.222-223).

A ironia está no exagero e na semelhança com os homens. Estes seres que deveriam ser

um exemplo de sabedoria, força e coragem são, segundo Vieux, “des dieux de classe

moyenne” (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.222), estranhos e nada virtuosos. O mundo dos

deuses vodus não tem grandes diferenças do mundo real. Esta é a idéia fundamental da

obra: o mundo real e o sonhado estão entrelaçados, formam um todo complementar, por

isso mesmo o último capítulo se intitula “País real/País sonhado”, já que estes mundos

se mostram inseparáveis e interdependentes. O que nos mostra Laferrière é que a vida

de um homem, assim como a vida de uma nação, precisa de sonhos e fantasmas para se

dizer e se fazer significar.

Pourquoi ces Américains refusent-ils d’admettre que ce pays possède quelques


dons particuliers et qu’ils ne sont pas à vendre ? Nos rêves, nos passions, notre
histoire, tout ceci n’est pas à vendre (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.137).

Nesta viagem ao mundo dos mortos, Laferrière ironiza também a reputação negativa e
os clichês que se criaram em torno do vodu.

Ce n’est pas avec ce ramassis d’anecdote terne, des clichés imbuvables que les
dieux du vaudou se feront une réputation internationale (LAFERRIÈRE, 1999
A, p.230).

Laferrière embora se interesse neste romance, prioritariamente, pelo o olhar que o

haitiano tem sobre sua cultura e sobre si mesmo, também questiona a ambivalente

representação que o negro, o Haiti e o vodu têm para o mundo. O humor e a ironia são,

nesse sentido, estratégias importantes – “ quand tout le monde fait de l’humour dans un

pays, c’est qu’il n’y a plus rien à faire. L’humour c’est l’affaire des desesperes”

99
(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.194). Entre a morte, a loucura, o desespero, a crença

desmedida no sobrenatural, o autor escolhe o humor. “

Laferrière fala do Haiti de diferentes lugares e é isso que torna Pays sans

chapeau uma obra tão fascinante, plural e enriquecedora. São três olhares diferentes: do

haitiano residente, que ainda sonha com seres enfeitiçados, que se identifica com as

tradições de seu país e que o percebe de dentro; do haitiano emigrante que viajou pelo

mundo, que é crítico, irônico, grande leitor, e que se surpreende com o que vê e, por

fim, do escritor que transita nestes dois mundos e que é capaz de uni- los e recriá- los em

sua narrativa, através da fantasia e da imaginação. Laferrière volta ao Haiti não para

mudá-lo – “je ne suis qu’un voyageur ”(LAFERRIÈRE, 1999 A, p.150), mas para

redescobri- lo e ressignificá- lo.

100
4. ESCRITA MIGRANTE : MIGRAÇÕES IMAGINÀRIAS

Les écritures émigrent, elles sont de grandes


voyageuses (MOSSETO).

A fim de melhor compreender a escrita de Laferrière, procurarei observar neste

capítulo como o conceito de “escrita migrante”, enquanto parte integrante do

movimento cultural da pós- modernidade, vem sendo elaborado pela crítica literária

quebequense e pelos próprios autores de origem estrangeira residentes no Quebec. Qual

foi e qual tem sido o seu papel na (re) elaboração identitária do Quebec contemporâneo?

A sociedade quebequense e a sua literatura nacional se transformaram neste caminho de

reconhecimento do Outro? Qual seria a pertinência do conceito no Quebec atual?

A literatura nacional quebequense – embora ainda motive debates acalorados

entre os defensores de uma produção mais conservadora, que contribua para a

construção de uma identidade nacional, e os que vêem a literatura como um campo

fértil, sem fronteiras de raça, gênero ou nacionalidade – vem, incontestavelmente, nas

últimas décadas, se reelaborando e se abrindo para o diverso. Alguns críticos falam da

passagem de um paradigma da identidade para um paradigma da pluralidade, mas o que

se percebe na prática é que a instituição literária quebequense, considerada sob muitos

aspectos frágil e minoritária, ainda hesita entre esses dois paradigmas.

As transformações pelas quais passou e vem passando a identidade e a literatura

quebequense não seriam possíveis sem a Revolução Tranqüila, movimento que atingiu

seu ápice nos anos 60 e gerou transformações irreversíveis no plano social, político e

cultural da província, como a passagem de uma sociedade rural, agrária, patriarcal e

católica para uma sociedade moderna, industrializada e laica. Em 1960 o partido Liberal

toma o poder ao eleger Jean Lesage como primeiro ministro da província, dando fim ao

governo conservador, anticomunista e fortemente apoiado pela Igreja Católica, de

Maurice Duplessis, do partido da União Nacional. A partir de então ocorrem mudanças

101
que resultariam em uma verdadeira revolução cultural: a separação do Estado da Igreja;

a reforma do sistema educacional e a criação de um ministério da educação; a

elaboração de medidas relativas aos direitos sociais (como a sindicalização do

funcionalismo público e a instauração do seguro saúde); a nacionalização da produção e

distribuição de eletricidade (com a criação da companhia Hydro-Quebec), entre outras

coisas. Essas transformações serão fundamentais, pois embora o Quebec tenha tido,

após a segunda guerra, uma urbanização semelhante ao resto do Canadá, estava atrasado

em relação à educação, à saúde, à habitação e aos direitos sociais. Essa fase da história

quebequense marca seu momento de maior abertura para o mundo exterior, tanto em

função da crescente industrialização e desenvolvimento dos meios de comunicação,

quanto de uma importante mudança na política de imigração. No período anterior à

Revolução Tranqüila, a troca com o mundo exterior e a entrada de estrangeiros na

província era bastante limitada, em parte, em decorrência de um forte sentimento de

insegurança e medo da perda da “identidade francesa” e da invasão cultural “inglesa”.

De fato, o quebequense sempre sentiu que, por representar uma minoria cultural e

lingüística dentro de um país anglófono, sua identidade estava ameaçada e esse medo do

aniquilamento identitário influenciou de forma considerável as produções literárias e

culturais da província.

A literatura quebequense produzida nos anos 60 (antes nomeada canadense-

francesa), embora questionasse o discurso nacionalista tradicional, procurava valorizar

uma identidade coletiva que partilhasse hábitos culturais, a origem e um sentimento de

pertencimento francófono. Neste primeiro momento, a literatura considerada

quebequense era aquela produzida por escritores nascidos na província e que tratassem

de temas que dissessem respeito à história, à cultura e ao imaginário quebequense. Era

a identidade política do Quebec, em busca de autonomia em relação ao poder inglês (os

102
movimentos pela independência começam a se organizar neste período), que estava em

jogo.

A literatura “nacional”, estava no entanto longe de ser unicamente militante; os


anos 60 se caracterizam pela emergência de um romance freqüentemente
político que renova brilhantemente as regras do gênero (Hubert Aquin, Jacques
Ferron, Réjean Ducharme) e, por uma poesia onde o engajamento se traduz por
um lirismo de extraordinário ardor (GREIF, 2004, p.15).

A mudança na política de imigração – tema incontornável para abordar a

identidade do Quebec contemporâneo – tem grande influência na mudança e na abertura

que viverá a sociedade quebequense em relação ao reconhecimento do Outro e de si

mesma enquanto uma sociedade plural. No que diz respeito ao Canadá, a partir da

década de 70, milhões de imigrantes começaram a se instalar nas suas principais

cidades, resultado da política de imigração iniciada, em 1971, pelo primeiro ministro da

época, Pierre Elliot Trudeau. Houve grande valorização e encorajamento ao

multiculturalismo, diversos estrangeiros foram recrutados no setor público através do

que se chamou de “discriminação positiva” – o reconhecimento e a inserção no mercado

de trabalho de pessoas que representassem as “minorias visíveis”, como negros, árabes e

asiáticos, em outras palavras, os não-brancos. Essa nova política de imigração

procurava, em tese, preservar as tradições e evitar a “discriminação negativa” contra os

diferentes grupos étnicos instalados no país. Sendo assim, ela se contrapunha à política

racialmente discriminatória praticada no país antes dos anos 60, que evitava a entrada

no país das minorias étnicas.

Embora a imigração tenha sido intensa em todo o Canadá, somente no Quebec a

valorização do multicultural significou ao mesmo tempo uma busca de afirmação e

consolidação da identidade local, no caso a francófona. O objetivo do governo

quebequense era, colocando em prática uma política de mosaico que não apagasse as

103
diferenças mais marcantes das culturas de origem, acima de tudo, integrar os imigrantes

à maioria francófona. O fluxo migratório, tendo começado há pelo menos três séculos,

não era algo novo na província – no século XIX a região recebeu muitos franceses,

irlandeses; de 1900 a 1939, francófonos europeus; de 1940 a 1959, poloneses, romenos

e italianos; na década de 60, francófonos europeus, africanos e antilhanos; nos anos 70 e

80 magrebinos, orientais e antilhanos – principalmente haitianos.

O Haiti foi o país de maior representatividade na imigração quebequense entre

as décadas de 70 e 80 devido à constante repressão da ditadura dos Duvalier. Essa

diáspora inaugura, para a literatura haitiana, uma nova cena literária, pois a maioria dos

romances de autores haitianos escritos nesse período, e ainda hoje, foram produzidos,

sobretudo, no Canadá, nos Estados-Unidos e na França. Esse fato transformou a

literatura haitiana em uma literatura híbrida, que se apropria de diferentes culturas e

tradições, se diferenciando esteticamente da literatura tradicionalmente produzida no

Haiti.

Laferrière faz parte deste grupo de escritores que emigrou, vítima da violenta

repressão duvalierista – o autor narra com detalhes as razões de sua partida forçada

para o Quebec (em 1976) em Le Cris des oiseaux fous. Na opinião do autor 13 , essa

migração maciça de haitianos teve repercussões negativas e positivas: por um lado, as

famílias foram destruídas, pois um milhão e meio de haitianos deixaram o país a partir

da segunda metade dos anos 60; por outro, foi isso que permitiu ao Haiti sair de sua

insularidade e se abrir para o mundo. A política de imigração quebequense se estende

até os dias atuais, com um número crescente de imigrantes oriundos de diversos

países 14 . Os objetivos desta contínua abertura migratória se mantêm, basicamente, os

13
Divulgada em entrevista concedida a Isabelle Langlois em 2004 .
14
Segundo dados oficiais do site do governo do Quebec, o número de residentes permanentes admitidos
no Quebec na segunda metade da década de 90 foi de aproximadamente 30.000. Este número tem
aumentado sensivelmente nos últimos anos, passando de cerca de 29.000 em 1999 para cerca de 39.500

104
mesmos das décadas anteriores: garantir o crescimento demográfico, a perenidade da

língua francesa na América do Norte, a mão-de-obra especializada e qualificada e,

conseqüentemente, uma economia próspera.

A imigração das últimas décadas traz, todavia, elementos novos e inusitados,

entre os quais o grande volume e variedade de nacionalidades representadas, a

influência que essas comunidades culturais passam a exercer na província e finalmente

um maior respeito e valorização da diversidade. A década de 80 foi de particular

importância no processo de conscientização da heterogeneidade da sociedade

quebequense, em parte em função da derrota do plebiscito independentista de 1980 e da

conseqüente pausa nas discussões nacionalistas. A concepção de identidade

quebequense, que durante séculos se ancorou na língua e na origem francesa, passa a ser

reavaliada e se amplia. É nesse momento que uma nova concepção do que seria o Outro

– historicamente associado ao autóctone, mais tarde ao anglófono – começa a aparecer.

No campo literário, o Outro passa a ser representado de forma menos

estereotipada e mais cosmopolita. O teórico da literatura canadense Réjean Beaudoin

define as três etapas que caracterizariam a descoberta do Outro no romance

quebequense. Essas etapas corresponderiam, em síntese, à década de 60, que descobre

o ameríndio, à de 70, que valoriza a escrita fe minina e à de 80, que introduz o ponto de

vista das comunidades culturais. Segundo Beaudoin, “ é, sobretudo, o caráter

cosmopolita de Montreal que inspira a última fase, à medida que a metrópole adquire o

status de personagem do romance quebequense” (BEAUDOIN, 1991, p.76). Diferentes

críticos são unânimes em afirmar que esse encontro de culturas, sobretudo na região de

em 2003. Assim, a proporção de imigrantes passou de 15,4% em 1999 para 17,9% em 2003, sendo a
China e a França os países de origem de maior número de imigrantes. Dados ainda mais recentes mostram
que o número de imigrantes no segundo trimestre de 2007, de maioria magrebina, sul-americana e
européia, corresponde a aproximadamente 12000, volume superior ao mesmo período do ano anterior.

105
Montreal, contribuiu muito para a elaboração de um novo território imaginário. A

pluralidade montrealense vem, segundo o escritor haitiano Emile Ollivier15 ,

influenciando de maneira considerável a forma como a cultura quebequense se concebe.

O que eu observo depois de 35 anos de vida em solo quebequense, é a


« crioulização » da sociedade quebequense. Quando cheguei aqui, o pluralismo
já existia, mas a monocultura predominava. É possível hoje falar de uma
passagem da cultura quebequense à mestiçagem montrealense (OLLIVIER,
2001, p.47).

Montreal, onde se encontra, não por acaso, a maior parte das editoras quebequenses,

passa, assim, a ser a fonte de uma nova concepção da literatura quebequense – “Em

Montreal o escritor está imerso na diversidade, no pluralismo, na mistura, na incerteza,

no incompleto” (MARCOTTE, 1997, p.10). Segundo o crítico quebequense Gilles

Marcotte, Montreal deixa de ser um tema unicamente descritivo na literatura e torna-se

um tema estruturante, que motiva novas formas estéticas, lingüísticas e temáticas. Harel

também aborda, em Voleur de Parcours, a importância do cosmopolitismo

montrealense para a abertura da literatura quebequense.

Diante de uma literatura que buscava desesperadamente privilegiar os valores


agrários, alojada em um espaço inalterado, é evidente que Montreal pode
suscitar um questionamento, uma atualização dos códigos lingüísticos e sociais
heterogêneos. Chegar em Montreal significa, por conseguinte, aceitar
fatalmente tornar-se um itinerante, enfim, submeter a escrita a uma deriva de
significação (HAREL, 1989, p.41).

Montreal, cidade onde Laferrière residiu por longos anos e para a qual voltou em 2002,

tem importância fundamental em sua obra e, sobretudo, em seu desejo de escrever. São

as experiências pelas ruas de Montreal, onde se depara com a diversidade cultural, com

a liberdade, mas também com a solidão e o preconceito, que o motivam a escrever.

15
Emile Ollivier nasceu em 1940 em Porto Príncipe e emigrou para o Canadá em 1964.

106
“Montréal se trouve au centre de mon désir incroyablement douloureux d’être écrivain”

(LAFERRIÈRE, 1996, p.33). Laferrière pinta, nesse sentido, um quadro subjetivo da

metrópole, que, simultaneamente, lhe revela sua ausência e existência.

Segundo importantes pesquisadores, como Sherry Simon, o que se inaugura de

realmente novo nos anos 80 é o reconhecimento, por parte da crítica, da pluralidade

da literatura quebequense. Inicia-se em diversas publicações literárias como nas

revistas Dérives (1975), dirigida pelo poeta e ensaísta haitiano Jean Jonassaint,

Spirale (1979), Vice Versa (1983), fundada pelos italianos Lamberto Talissari e

Fulvio Cássia, e nas publicações da Maison d’Édition Guernica 16 , uma fértil reflexão

sobre as produções dos autores imigrantes e a capacidade da literatura quebequense

para acolher outras vozes. A questão que se colocava a princípio era de ordem

conceitual, como situar esses recém-chegados e como nomear suas produções

literárias. O uso de expressões como literatura étnica, pluriétnica, imigrante, migrante,

menor, transcultural, mestiça, das comunidades culturais, da periferia, da deriva, do

entre- lugar, entre outras, oscilava e se multiplicava, revelando uma sede de

compreender e traduzir essa nova realidade social. Alguns termos, como “étnico”, são

rapidamente descartados: “como conciliar esta noção anacrônica com a

desterritorialidade, a intercambialidade, a mutação tecnológica, a livre circulação das

culturas ?”, indaga Simon. O termo “migrante” acaba por se tornar unanimidade entre

os críticos.

A escrita migrante representa antes na história da literatura quebequense uma


corrente literária, que é necessário distinguir dos conceitos que lhe são
similares: a literatura étnica, que remete a elementos biográficos ligados ao
pertencimento cultural, sem que haja para tanto a necessidade de uma
passagem migratória; a literatura de imigração, um corpus temático que trata

16
A editora, fundada por Antonio D'Alfonso em 1979, tinha como ideologia a valorização da etnicidade e
publicava, em francês, inglês e italiano, autores canadenses de origem italiana. Em 1983 D'Alfonso cria a
antologia Quêtes, com Caccia e outros autores italianos que quisessem expressar sua etnicidade.

107
das problemáticas migratórias; a literatura do exílio, que pode tomar, de acordo
com o caso, a forma da biografia, do ensaio ou da narrativa de viagem; a
literatura diaspórica, obras produzidas por imigrantes em diferentes países, mas
que se ligam às instituições literárias de seus países de origem; a literatura
imigrante, corpus sócio-cultural transnacional dos escritores que viveram esta
experiência traumatizante, mas, freqüentemente, fértil da imigração e por
último, a literatura migrante, que se define por temas ligados aos
deslocamentos e hibridismos (NAJM, 2004, p.5).

É na revista Vice Versa que lemos pela primeira vez a expressão “escrita

migrante” no artigo do poeta Berrouët-Oriol, em substituição ao termo “escrita

imigrante”, muito usado entre 1976 e 1985. Berrouët-Oriol concebe, nesta primeira

abordagem, a “escrita migrante” como um espaço dialógico, onde escritores de

diferentes origens se mesclam à cultura quebequense estabelecida em sua busca

imaginária. A revista Vice Versa – que publicava artigos em inglês, francês e italiano

e deve seu nome ao significado comum de movimento que a expressão evoca nas três

línguas – foi de fundamental importância para as reflexões sobre o intercultural e na

luta contra a homogeneização identitária. As reflexões gravitavam em torno da

construção de uma identidade quebequense que fosse plural – desvinculada da idéia

da França como referência e origem privilegiada – e reconhecesse a todos, os

ameríndios, os ingleses, os irlandeses e os imigrantes, como parte efetiva da sua

sociedade e história. Na primeira edição da revista podemos ler as seguintes

propostas:

[...] a nossa intervenção [é] sobre o terreno que representa um ponto de junção
de diversos universos culturais. Queremos investigar, queremos reconstituir,
queremos criticar, queremos rir, queremos imaginar; tudo isto através de um
modelo flexível, que pode levar tanto a marca do intelectual inspirado, do
imigrante recentemente desembarcado ou do quebequense de raiz (1ª edição
Vice-Versa, 1983).

108
Em 1985, a revista organiza e publica um colóquio, intitulado “Écrire la différence”,

que contou com a participação de escritores como Sherry Simon, Fulvio Caccia,

Antonio D'Alfonso e Marco Micone, Jean Jonassaint e Régine Robin, entre outros.

Esses debates foram de grande importância para o avanço das reflexões sobre as

literaturas produzidas pelas minorias no Quebec. Caccia, em um artigo publicado para o

colóquio afirma:

Penso que está na hora de sair do etnocentrismo, do gregarismo para pensar o


Quebec não mais como francês, triste fábula colonialista, mas como plural,
espaço geopolítico aberto às múltiplas influências, às múltiplas tradições como
as que o habitam, o habitaram ou o habitarão. Neste sentido, não existe uma
literatura quebequense, mas literaturas quebequenses, de épocas e registros
diferentes (CACCIA, 1985, p.13).

Foi, assim, defendendo o pluralismo como fundamento de toda identidade e a

“transcultura” como conceito essencial que a revista Vice Versa contribuiu para o

movimento de transformação e redefinição do que seria o “centro” na sociedade

quebequense. A idéia de transcultura 17 , diferentemente da noção de “aculturação”, em

voga no início do século passado, pressupõe um movimento de dar e receber e não uma

mera assimilação da cultura supostamente superior. Na transcultura, as trocas se fazem

nos dois sentidos, o imigrante é influenciado, assimila a cultura do Outro, mas também

a transforma, há diálogo e intercâmbio. E o resultado desta troca com o Outro produz

transformações necessariamente imprevisíveis para ambas as partes. O conceito foi

introduzido no Quebec por aquele que se tornaria um de seus maiores defensores no

país, Fulvio Caccia. Segundo o autor, a transcultura é a experiência da diversidade, não

unicamente um conceito, mas uma filosofia de vida, um modo de olhar, sendo o Quebec

17
O termo transculturação foi criado em 1940 pelo cubano Fernando Ortiz ao estudar o desenvolvimento
etnocultural de Cuba.

109
um terreno fértil para a experiência transcultural, em função de suas múltiplas heranças

e do enorme fluxo migratório das últimas décadas.

Não é por acaso que a experiência de Vice Versa nasce no contexto


quebequense, cuja cultura política é herdeira de quatro patrimônios: o
patrimônio ameríndio intimamente recalcado, dupla herança colonial francesa e
inglesa e, por último, a recente kkolcontribuição imigrante. Esta quádrupla
herança deu origem a um frágil espaço de liberdade transcultural (CACCIA,
2007, p.1).

Para mostrar que o projeto transcultural ainda permanece vivo no Quebec

contemporâneo, antigos membros da revista Vice Versa organizaram em 2007 um

colóquio intitulado Diversité culturelle et transculture ou Vice Versa - Qu’est-ce que la

transculture aujourd’hui ?, que procurou retomar os debates sobre a transcultura,

reafirmar sua contemporaneidade e mostrar que as discussões propostas pela revista nas

décadas de 80 e 90 ainda podem ser valiosos instrumentos para a compreensão da

sociedade quebequense.

A revista Vice Versa abre as portas para o debate, mas é, sobretudo, através da

obra do precursor Pierre Nepveu, L’Écologie du reel (1988) – fundamental para

compreender as mudanças de perspectiva na abordagem da literatura quebequense –, e

das pesquisas de Simon Harel18 , entre outros, que são iniciadas reflexões mais

aprofundadas acerca da “escrita migrante”. Nepveu fala em L’Écologie du réel do

nascimento de uma literatura pós-quebequense e do impacto da “escrita migrante” no

sistema literário e no imaginário quebequense. O autor opta pelo termo “migrante”, que

segundo ele, englobaria um sentido estético, ao invés do termo “imigrante”, que tem um

sentido mais sócio-cultural, referindo-se à realidade concreta da imigração. Haveria no

primeiro termo maior flexibilidade, pois insiste na idéia de movimento, de deriva, de

18
Voleur de Parcours, escrito em 1989, faz uma análise da representação do estrangeiro na literatura quebequense.
Harel mostra como o cosmopolitismo literário contribui para uma revisão da identidade nacional e para a
construção de um discurso sobre a alteridade. O livro é considerado, por alguns críticos, uma continuação
da reflexão iniciada por Nepveu um ano antes em L’Écologie du réel.

110
transpasse e diálogo de culturas. Em síntese, o autor anuncia uma mudança de

paradigmas, que vai de uma literatura voltada para a cultura de origem a uma literatura

que se abre ao Outro. Outro crítico de importância para os estudos dos discursos

estéticos e as elaborações identitárias em contextos multiculturais é Pierre Ouellet –

autor de L’esprit migrateur (2003) e principal pesquisador do projeto Le soi et l'autre19 .

Ouellet, que analisa obras literárias de origens diversas, opta pela expressão “migrance”

por razões similares às apresentadas por Nepveu.

“Migrance”, em latim, designa ao mesmo tempo a “mudança de lugar” ou “o


transporte de um lugar a outro” e o próprio ato de “transgredir” ou “infringir”.
É uma passagem ao outro, um movimento transgressivo do Um em direção ao
Outro, que transgride as leis do próprio, cruza as fronteiras da propriedade ou a
individualidade para ir além, do lugar de onde viemos e onde buscamos a nossa
identidade, para melhor rescindir o lugar de origem e reconciliá -lo a um novo
destino; um “outro tornar-se” que é também um “tornar-se outro” (OUELLET,
2003, p.17).

Esse movimento simbólico em direção ao Outro, nas palavras de Ouellet, de tradução de

si em outro, cria uma nova forma de se estar no mundo, mais aberta às diferentes

influências e que se emancipa de uma determinada idéia – homogênea e original – de

identidade.

[...] Uma espécie de tradução ou translação de si em outro, para se dar uma


história, um destino ou um devir, que não se inscrevem mais na bela
continuidade causal de uma memória única e homogênea – que nos ancora a
uma única fonte, a uma única origem (OUELLET, 2003, p.17).

19
Um programa de pesquisa subvencionado pelo Conseil de Recherches en Sciences Humaines du
Canada (CRSH) e que tem como objetivo principal o estudo de fenômenos identitários em contextos de
sociedades pós-coloniais e pós-industriais caracterizadas pela diversidade e hibridização cultural. Onze
de seus quatorze membros, dentre eles Ouellet, são membros do CELAT (Centre interuniversitaire
d’études sur les lettres, les arts et les traditions des francophones em Amérique du Nord).

111
Para Ouellet, essa “passagem ao outro” pressupõe um movimento de transgressão que

elabora novas alternativas estéticas e temáticas. É um processo de descoberta de si que

passa pela descoberta do Outro e se revela através de uma narrativa que revisita o

passado, redescobre o presente e tem o “eu” não unicamente como narrador, mas como

ator principal. Compreendida nesse sentido, “a literatura migrante” remete-nos,

necessariamente, às noções de alteridade, deriva, desenraizamento e auto-representação

tipicamente pós- modernas, que valorizam a subjetividade, recusando categorizações ou

qualquer tipo de plenitude formal ou identitária.

A escrita migrante tornou-se um dos emblemas da literatura do final do século


XX, particularmente no Quebec, ela se inscreve na flutuação mais geral do pós-
modernismo, que, assumidamente investido de um excesso de saberes [...],
questiona a unicidade dos referentes culturais e identitários (CHARTIER,
2002, p.303).

O conceito de “escrita migrante” está, no entanto, longe de ser um consenso, o

debate gera polêmicas, toma constantemente novos rumos e ganha novos críticos e

adeptos. Muitos são os paradoxos e os perigos apontados tanto por parte da crítica,

quanto pelos próprios autores considerados migrantes. Para começar, há controvérsias

quanto à existência ou não de um imaginário propriamente migrante. Segundo Nepveu,

um paradoxo intrigante acerca de certa concepção de “escrita migrante” estaria no fato

de as instâncias literárias, por um lado, valorizarem e celebrarem a pluralidade, a

mestiçagem e a diferença, mas por outro, enquadrarem os escritores de origem

estrangeira em uma categoria e problemática únicas. Seria, nesse caso, uma contradição

definir o escritor que, através de suas experiências de deslocamento geográfico e

subjetivo, se descobre plural, em função de sua etnia e origem. Caccia, por exemplo,

embora não questione as boas intenções dos que a conceberam, que desejavam o

reconhecimento dos autores imigrantes, antes marginalizados, acredita que esta tentativa

112
pode se tornar uma armadilha quando se reconhece mais a categoria “migrante” do que

a obra. Nepveu, ainda nos anos 80, em L’écologie du réel, previa os perigos que corria o

conceito: “há o perigo do clichê, da escrita migrante muito pós- moderna ; perigo de um

pluralismo onde todas as diferenças se equivalham e neguem a alteridade ; perigo de um

mimetismo do outro”(NEPVEU, 1998, p.202). Em outras palavras, o autor teme a

abstração de um pluralismo que consistiria em descrever processos impessoais,

globalizantes e não aspectos pessoais e subjetivos. É preciso, segundo Nepveu, estar

atento para não fazer do “escritor migrante” “uma posição, um estatuto, uma identidade,

o que confina rapidamente à mediocridade” (NEPVEU, 1998, p.200).

É justamente contra essa compreensão do conceito e da própria literatura, como

problemática única que condena ao gueto étnico, que muitos autores de origem

estrangeira residentes no Quebec, se posicionam. São autores em busca de liberdade,

que rejeitam a idéia de, a priori, serem enquadrados em determinada categoria.

Laferrière acredita que a literatura é, essencialmente, marginalidade, desconstrução e

deslocamento e o escritor é aquele que escuta os rumores do mundo, que questiona e

desloca estereótipos e clichês. O autor detesta, nesse sentido, a idéia de ser visto e ver o

mundo de maneira unidimensional e luta contra todo tipo de uniformização.

Comment le goût se forme-t-il avec un goût unique? C’est là qui arrivent ces
guides des portes étroites qui nous indiquent d’autres passages. Des passages
qui débouchent sur des univers différents [...] Il est impossible de comprendre
la notion de différence si on se nourrit tous intellectuellement à la même
source [...] C’est que nous sommes en guerre contre l’uniformisation
(LAFERRIÈRE, 2006, p.15).

No livro de entrevistas Passeurs Culturels: une littérature en mutation (2001), realizado

com autores de origem estrangeira residentes no Quebec, Ollivier afirma que escrever

não tem limites, “é como jogar uma garrafa ao mar. Eu acredito que o escritor é um

113
mediador de sentidos, de imagens novas e de palavras. Ele é um tradutor ” (OLLIVIER,

2001, p.60). O escritor judeu de orige m iraquiana Naïm Kattan, também em entrevista

para o livro Passeurs Culturels, diz que toda escrita é, por excelência, migrante, assim

como toda cultura e toda língua não podem ser propriedade de ninguém – “eu acredito

que a grandeza de um país está em sua capacidade de permitir a todo migrante

contribuir” (KATTAN, 2001, p.204).O dramaturgo de origem italiana Marco Micone

enfatiza a idéia de que a origem é, em muitos aspectos, irrelevante.

Que tenhamos vindo da bacia mediterrânea, das Antilhas, do Extremo Oriente


ou que sejamos descendentes dos primeiros colonos franceses, não sentimos a
mesma vulnerabilidade, a mesma impotência diante dos fenômenos
incontroláveis de ordem física ou metafísica? (MICONE, 1996, p.20).

Por sua vez, Regine Robin, nascida na França, de pais judeus poloneses, afirma no

Colóquio “Écrire la différence” publicado por Vice Versa:

Todo o trabalho do escritor, salvo aquele se torna um porta-voz das


comunidades, é um perpétuo deslocamento de estereótipos, uma perpétua
interrogação sobre os clichês, seu trabalho consiste em fazer migrar as imagens
(ROBIN, 1985, p.19).

Limitar esses escritores a uma narrativa, necessariamente autobiográfica, que tenha

como única temática o exílio e o resgate do passado, seria uma contradição com a

própria noção de literatura, compreendida por Laferrière, Ollivier, Kattan, Micone e

Robin, entre outros, como um espaço por excelência de liberdade, fantasia e

desconstrução. Em síntese, o que esses autores reivindicam em sua maioria é,

simultaneamente, o pertencimento à cultura e à literatura quebequenses, a liberdade de

criação e o direito à diferença, certamente uma árdua empreitada.

Com relação à existência de um “imaginário migrante”, muitos críticos estão de

acordo em afirmar que certos temas, como o desenraizamento, a identidade, a

114
imigração, o estrangeiro, o passado, a viagem, a memória, etc., aparecem com

freqüência nas produções dos autores imigrantes, através de narrativas em primeira

pessoa e freqüentemente autoficcionais. Ouellet seleciona, nesse sentido, quatro tipos de

personagens que fariam parte dessa estética migrante: o estrangeiro, o exilado ou o

viajante, que fazem do deslocamento um motor para a constituição de novas

subjetividades; o artista, o escritor ou o intelectual, que permitem outro tipo de

migração, mais metafórica; o louco, o demente ou o neurótico, invadidos por uma

alteridade que os toma; finalmente, o excluído, o marginal e o itinerante, que migraram

para fora, estão à margem da sociedade. Todos esses temas e personagens

contemporâneos são efetivamente recorrentes nas obras de escritores de origem

estrangeira, mas não exclusividade delas. A narrativa dos deslocamentos e das

migrações é, simultaneamente, uma prática atual e atemporal. O tema da viagem

iniciática, por exemplo, retoma os grandes mitos universais que narram a aventura

humana – os desafios, a travessia perigosa e inevitável daquele que deseja uma nova

vida. Já a necessidade de representar as minorias excluídas, os estrangeiros e suas

migrações e deportações, é uma característica relevante das sociedades pós-modernas,

onde a lógica da estabilidade é substituída pela do deslocamento e da heterogeneidade,

criando uma estética da instabilidade.

Nesta época de dessacralização, o artista ocupa mais do que nunca o papel do


fabricante de mitos, e as novas imagens que ele cria alcançam o universal pelas
vias da contemporaneidade. Neste vasto campo de amarguras que é o mundo, o
artista lança os personagens do nosso tempo: os emigrantes, os exilados, os
refugiados e os apátridas, os sem teto, os sem caminhos, os sem objetivos, os
sem raízes. Mas para que eles falem à nossa condição, é preciso fabricar-lhes
um rosto e insuflar-lhes uma alma (ZAGOLIN, 1993, p.60).

115
A necessidade e o desejo de escrever sobre o passado e o desenraizamento também não

é, evidentemente, um privilégio dos escritores imigrantes. Segundo Ollivier, todo

romance torna-se, de uma forma ou de outra, uma busca do tempo perdido, individual ou

coletivamente.

Não conheço nenhum verdadeiro romancista cuja ambição não tenha sido
tentar apreender a ligação entre o momento presente e o passado mais remoto,
entre o instante presente e as profundezas abissais do tempo, da tradição, dos
mitos e da cultura (OLLIVIER, 1984, p.116).

Diante de tantas argumentações por parte dos críticos e de diversos escritores

contra as possíveis segregações que a noção de “escrita migrante” possa provocar,

poderia me perguntar por que razão o conceito foi tão celebrado e valorizado no Quebec

contemporâneo. O que fascina tanto os quebequenses na “literatura migrante”? Por que

ela se tornou uma referência nas reflexões contemporâneas sobre a alteridade e a

identidade nacional? As mudanças na política de imigração e o grande fluxo migratório

dos últimos anos explicam apenas em parte o evidente interesse do quebequense pelas

questões relativas à imigração e à diferença. Talvez o grande responsável por esta

fascinação seja o aspecto identificatório implicado neste encontro: tanto imigrantes

quanto quebequenses fazem parte de um grupo minoritário, a situação dos primeiros

face à maioria francófona se assemelha à situação dos segundos face ao Canadá

anglófono, sendo assim, um sentimento de desamparo, estranheza ou exclusão os

invade, inevitavelmente. O italiano Caccia, por exemplo, afirma partilhar com o escritor

autóctone “este ecletismo das origens, esta flutuação do sentido, que surpreende sempre

o interlocutor francês" (CACCIA, 2001, p.32). A ambígua relação entre o Quebec e o

ex-colonizador francês, que oscila entre identificação e rejeição, também contribui para

suscitar no quebequense um sentimento de pertencimento ambivalente, incompleto, à

116
cultura francesa, que “mantém aberta a ferida original, que permite reconhecer o outro,

reconhecer-se outro [...] e tornar-se outro” (CACCIA, 1986, p.45). A historiadora

quebequense Anne Trépanier observa, referindo-se à expressão “nous-autres”, usada

especificamente no Quebec, o quanto este sentimento de iminente exclusão marca o

imaginário (e a identidade) quebequense.

A ameaça da exclusão, assim como o desejo de inclusão, está inscrita na


angústia do hífen. De fato, quando um locutor enuncia o “nous-autres”, como
sujeito, tende a delimitar o seu grupo através de um complexo procedimento de
exclusões. [...] Parece-nos que a noção de sociedade no Quebec se atrela,
explicitamente, ao conceito de “nous-autres”, idéia que se complexifica em
função do duplo referencial identidade/diferença. A definição do “nous”
quebequense insere-se nessa reflexão tautológica: nós somos outros, logo
somos nós (TRÉPANIER, 2002 p.28).

A questão da língua também seria, segundo Micone e Caccia, um importante ponto de

identificação entre o imigrante e o colonizado quebequense, já que o “quebequense” é

uma língua (diferente do francês da França) cheia de empréstimos (do inglês, das

línguas ameríndias e mais recentemente das diversas línguas faladas pelas comunidades

culturais), neologismos e arcaísmos. Além dessas múltiplas influências, a diglossia em

relação à língua inglesa, no caso do quebequense, e com relação à língua francesa, no

caso do imigrante, causa em ambos um medo da perda de seus referenciais identitários.

Esses sentimentos são abordados nos poemas Speak White (1968) da canadense Michèle

Lalonde e Speak What (2001) de Micone, que foi uma espécie de resposta ao poema de

Lalonde. Speak White20 – expressão usada como insulto pelos canadenses de língua

inglesa quando os canadenses francófonos falavam sua língua em público – foi escrito a

fim de defender e mostrar a opressão sofrida pela língua francesa no Quebec. Speak

What, em contrapartida, fala da situação dos imigrantes que experimentam, assim como

20
A expressão era dirigida originalmente aos negros que deveriam usar a língua do colonizador branco.

117
os quebequenses, um sentimento de desconsideração e medo do apagamento de suas

línguas e culturas de origem. Micone procura em Speak What dar voz às diversas

comunidades culturais presentes no Quebec:

speak what now


que personne ne vous comprend
ni à St-Henri ni à Montréal-Nord
nous y parlons
la langue du silence
et de l'impuissance (MICONE)

O Quebequense constrói, nesse sentido, uma relação de identificação especular com o

imigrante, pois, assim como o segundo, se reconhece Outro, tem uma ligação profunda

com o passado, uma preocupação com a identidade plural, um imaginário povoado por

imagens de perda, despossessão, ameaça de aniquilamento e desenraizamento.

A partir dessas reflexões, fica evidente a importância das discussões sobre a

“escrita migrante” no Quebec contemporâneo, sobretudo para o processo de visibilidade

do Outro, os estudos sobre o multicultural e a revisão da concepção de literatura

nacional. Entretanto, para que um efetivo diálogo com o Outro se estabeleça, é preciso

ampliar e (re)atualizar a compreensão do conceito. É preciso que a noção de “escrita

migrante” acompanhe as constantes mudanças no quadro sócio-cultural do Quebec

contemporâneo. Este vê nascer uma nova geração de escritores, filhos de imigrantes, em

grande parte nascidos na própria província, que, diferentemente dos autores que

imigraram nas décadas de 60 e 70 (período de maior engajamento político dos

escritores) ou na década de 80 (período de efervescência dos debates teóricos sobre as

obras “migrantes”), têm uma outra percepção da imigração. Talvez por não terem

vivenciado a realidade da imigração, o estranhamento, o entre- lugar e o luto do país de

origem, por terem crescido em um Quebec em transformação, mais aberto para as

118
diferenças étnicas e culturais, estes jovens escritores trazem um novo olhar e uma nova

abordagem literária. Por outro lado, também é preciso repensar a forma de se considerar

hoje os autores tidos "migrantes” de grande visibilidade como Dany Laferriere, Émile

Ollivier, Régine Robin, Naïm Kattan, Ying Chen, Marco Micone, Sérgio Kokis, entre

outros, que, embora, tenham estado um dia à margem da instituição literária

quebequense, são hoje consagrados e reconhecidos, tendo em vista os prêmios literários,

o grande número de leitores, as publicações em revistas e periódicos, a grande aceitação

da crítica especializada. Laferrière, que imigrou há mais de 30 anos, além de considerar

a cidade de Montreal tão sua quanto Porto Príncipe, é um homem da mídia: cronista em

um importante e hegemônico jornal quebequense, La Presse, apresentador de um

programa da tevê, ganhador de diversos prêmios literários e muito conhecido do público

quebequense. Torna-se, assim, distante o tempo em que estes autores eram excluídos

pela instituição literária e a urgência que se tinha de situar e nomear suas produções

literárias. Por fim, para que as discussões sobre a alteridade e a pluralidade se ampliem,

é preciso ultrapassar a necessidade de reduzir o escritor à sua singularidade de

imigrante; a origem, embora importante, não determina temática ou esteticamente uma

obra. O território do escritor, de todo escritor, é o imaginário, e a experiência da

migração pode, nesse sentido, ser vivenciada de múltiplas formas.

A especificidade cultural da origem torna-se um elemento privilegiado de


exploração, sim, mas ela não determina em nada o caráter da escrita. A escrita
não é a expressão de uma identidade preexistente, pré-discursiva; é, pelo
contrário, uma revelação (SIMON, 1994, p.394).

Para Laferrière, a literatura é feita de migrações. Na “autobiografia americana” o autor

narra a passagem (real ou imaginária) de um universo a outro: do mundo aberto (Haiti)

ao mundo fechado (Quebec), do mundo do calor ao mundo do frio, do mundo dos vivos

ao mundo dos mortos, do mundo real ao mundo sonhado, do mundo da infância ao

119
mundo da adolescência. “Je vivais tranquillement la fin d’une très longue enfance. Tout

à coup, ce brusque virage. Un nouveau monde s’ouvrait brutalement à mes yeux ”

(LAFERRIÈRE, 1997, p.10).

Dans mes livres, on scrute à la loupe ce qui vient d’Haïti [...] Les chemins sont
tous tracés pour vous définir, alors que le choc culturel dont on voudrait
m’entendre parler, ce n’est pas en quittant Port-au-Prince que je l’ai vécu, c’est
en sortant de l’enfance (LAFERRIÈRE citado por CHOUINARD, 1999).

O deslocamento também está presente na forma como Laferrière constrói, compõe e

transita pelos dez romances de sua “autobiografia americana”. O autor rompe a

linearidade temporal da narrativa ao publicar as obras fora da ordem cronológica, ao

transitar constantemente entre épocas e lugares diferentes. O narrador (Vieux Os e

Vieux), circula de um livro a outro, reencontra lugares e personagens citados

anteriormente, familiares, amigos de infância, antigas paixões e até mesmo Erzuli, a

deusa do amor vodu, reaparece. O narrador também faz referências a outros romances

escritos anteriormente. Assim, Laferrière termina transformando a própria obra e sua

elaboração, em um tema central de sua "autobiografia”. Migrar, nesse sentido, muito

mais do que se deslocar geograficamente, representa um deslocamento simbólico e

subjetivo do sentido, através da experiência da alteridade.

A literatura é um ato de linguagem que abre portas, oferece saídas e formas

alternativas de vivenciar os diferentes “exílios”. Em outras palavras, é o espaço do olhar

para o “eu” e o Outro, o semelhante e o diferente, o próximo e longínquo. Repensar o

conceito de “escrita migrante” significa, nesse sentido, expandi- lo, abri- lo para as mais

diversas contribuições narrativas e, assim, reunir em torno dessa idéia especialmente

textos (de origens diversas) e não autores. O “texto migrante” passa, deste modo, a ser

compreendido não unicamente como o imperativo de narrar a experiência do

deslocamento, o exílio geográfico, mas o exílio enquanto desenraizamento subjetivo,

120
não unicamente como a narrativa do encontro entre diferentes etnias, mas entre

diferenças, não unicamente a passagem de um país a outro ou de um centro urbano a

outro, mas entre diferentes espaços imaginários. Em síntese, deixa de existir em função

de uma imposição, que se define em nome da origem, mas em função de uma escolha,

de um desejo. É dessa mobilidade, imaginária e intercultural, que se trata o texto

migrante. Proponho, por fim, receber o “texto migrante” como uma forma de tradução

(simbólica e cultural), um espaço privilegiado de descoberta do espaço, do outro e de si;

a idéia de traduzir é, tanto para os escritores imigrantes quanto para os autóctones,

essencial, pois significa transportar-se entre diferentes mundos, reais ou fictícios,

negociando significados. Estar um escritor migrante é, nessa perspectiva, um modo de

olhar, transgredir e se traduzir em Outro, em síntese, de se deslocar em um espaço de

liberdade.

4.1 Fantasmas de um migrante: o Quebec multicultural de Dany


Laferrière em Comment faire l’amour avec um Nègre sans se fatiguer

Comment faire l’amour, romance mais emblemático da “autobiografia

americana” devido ao seu tom provocador e a sua ironia mordaz, é o que melhor traduz

o heterogêneo diálogo de culturas proposto pelo autor. Laferrière dá voz no romance a

um personagem- narrador que rompe fronteiras e estabelece uma migração transgressora

e subjetiva rumo à descoberta da diferença e da experiência transcultural. Através de

uma avalanche de citações de livros, autores, músicos, músicas e lugares, das mais

diferentes origens, o autor descreve, de forma divertida e inusitada, a pluralidade de

culturas que compõe o espaço montrealense, bem como os inesperados e risíveis

resultados deste diálogo cultural. Laferrière procura, nesse sentido, construir identidades

com base na inclusão e na pluralidade de referenciais e escolhas.

121
O romance narra um período da vida, um verão extremamente quente, de Vieux e

seu amigo Bouba. Os personagens, ambos negros, pobres, desempregados, imigrantes,

dividem um quarto e sala em uma região popular de Montreal. Bouba passa boa parte de

seu tempo deitado em um divã depenado – “boit, lit, mange, médite et baise dessus”

(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.12) – lendo e ouvindo jazz, enquanto Vieux está escrevendo

seu primeiro romance, “Paradis du dragueur Nègre”, uma mise-en-abyme de Comment

faire l’amour. O livro, segundo o narrador, fala de velhos fantasmas:

– Qu’est-ce que tu fais? Me demande-t-elle.


– J’écris. Écrivain.
– Ah! Bon. Qu’est-ce que tu écris?
– Des phantasmes.
– Quel genre?
– Les miens (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.128-129).

Apesar dos percalços vividos – a difícil condição social, a origem estrangeira, o

preconceito racial –, os personagens estão sempre às voltas com jovens brancas, ricas,

anglófonas, belas, que se deixam facilmente seduzir e estão sempre prontas para servi-

los. Uma coleção de “Miz” (Miz Sophisticated Lady, Miz Punk, Miz Snob, Miz Mystic,

Miz Littérature, etc.) passa pela vida do narrador, “filles aux joues roses et aux cheveux

blonds” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.19). Miz Littérature, sua companhia mais constante,

“(...) a une famille importante, un avenir, de la vertu, une solide culture, une

connaissance exacte de la poésie élisabéthaine et même, elle est membre d’un club

littéraire féministe à McGill”(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.42).

Este primeiro romance foi publicado no Quebec em 1980 e, como expus

anteriormente, está inserido em um contexto de efervescentes transformações sociais e

questionamentos teóricos e culturais: o reconhecimento por parte da crítica da

pluralidade da literatura quebequense, as reflexões sobre o lugar do escritor imigrante

122
na instituição literária nacional, os debates sobre a transcultura e o surgimento da

“escrita migrante”. Laferrière chega em Montreal em 1976, às vésperas das eleições que

colocam, pela primeira vez, os independentistas do Partido Quebequense (PQ) no

poder21 . Este é um importante momento político, de consolidação no Quebec dos

valores trazidos pela Revolução Tranqüila e de luta pelo reconhecimento de uma

identidade coletiva, histórica e cultural, da província. É durante este período, de fortes

lutas pela independência, que Laferrière tem seus primeiros contatos com o Quebec. O

autor faz, inclusive, rápida menção no romance à crise de outubro de 197022 , iniciada

com uma ação da organização revolucionária de extrema esquerda Le Front de

Libération du Québec (FLQ), dando início a um conjunto de medidas drásticas do

governo contra os militantes separatistas. No entanto, poucos anos depois de sua

chegada, Laferrière presencia, em 1980, a derrota do plebiscito pela independência e

uma decorrente pausa nas discussões nacionalistas e enfraquecimento das ideologias

nacionalistas sustentadas pelo PQ. Nesse sentido, a década de 80 foi, como mostrei, de

particular importância no processo de conscientização da heterogeneidade da sociedade

quebequense. A concepção de identidade quebequense, que durante séculos se ancorou

na língua e na origem francesa, passa a ser reavaliada e se amplia. Há neste período uma

maior abertura para as vozes estrangeiras, uma série de artigos sobre as obras migrantes

e acerca do racismo e da xenofobia são publicados. Comment faire l’amour nasce neste

contexto histórico. Ao contar a história de um escritor migrante em Montreal em busca

21
Em outubro de 1967, René Lévesque deixa o Partido Liberal do Québec, em função de suas
convicções, julgadas muito nacionalistas, para fundar, no ano seguinte, o Partido Quebequense (PQ). O
PQ ganha as eleições para o governo do Quebec em 1976, tendo Lévesque como primeiro ministro, e se
engaja na luta pela realização de um plebiscito pela separação da província do resto do Canadá.

22
Em outubro de 1970, o Québec vive a maior crise política de sua história moderna : a Crise de
Outubro. O grupo armado Le Front de libération du Québec (FLQ), seqüestra no dia 5 de outubro de
1970, o diplomata britânico no Canadá James Richard Cross e o ministro do trabalho quebequense, Pierre
Laporte, cinco dias depois. Uma lei com medidas de guerra é instaurada pelo primeiro ministro Pierre
Elliott Trudeau.

123
de reconhecimento, Laferrière descreve o percurso de uma geração de escritores que,

embora tenha imigrado por diferentes razões, certamente partilhou os mesmos desejos e

motivações do alter ego de Laferrière – sonho de inserir-se como escritor e como sujeito

e de ter uma recepção positiva e inteligente de sua literatura. Laferrière descreve, nesse

sentido, um sonho do narrador (de certa forma premonitório), que mais se assemelha a

uma fabulação consciente, onde se torna um escritor de sucesso. Vieux fantasia a bem

sucedida recepção de seu “Paradis du dragueur Nègre” pela crítica: o narrador é


23
entrevistado no célebre programa de TV Noir sur blanc , apresentado pela famosa

jornalista e escritora Denise Bombardier 24 (Laferrière é efetivamente entrevistado por

ela depois do sucesso de Comment faire l’amour). O narrador Vieux, em sua fantasia,

também recebe artigos elogiosos – que parecem dar conta com bastante precisão das

intenções do jovem autor – de críticos e escritores de referência no Quebec

contemporâneo, como o professor da universidade McGill, Jean Éthier-Blais, o cronista

e escritor Réginald Martel e o crítico literário Gilles Marcotte.

Miz Bombardier, faisant face à la caméra, commence l’émission : « Le roman


que vous lirez cette saison s’appelle : PARADIS DU DRAGUEUR NÈGRE. Il a
été écrit par un jeune écrivain noir de Montréal. C’est son premier roman. Il a
été chaleureusement accueilli par la critique. Jean Éthier-Blais affirme n’avoir
rien lu d’aussi fort depuis longtemps. Réginald Martel y voit le signal d’un
mouvement vers de nouvelles formes littéraires. Gilles Marcotte parle de « filtre
de lucidité à travers lequel la violence et l’érotisme le plus crus acquièrent de la
pureté ». Un professeur d’un collège de Montréal a recommandé à ses étudiants
dans le cadre de son cours Racisme et Société. David Fennario le traduit

23
Esteve no ar de 1979 a 1983 e foi o primeiro programa de entrevistas apresentado por uma mulher no
Quebec. Bombardier entrevistou no programa personalidades como o primeiro ministro do Canadá Pierre
Elliott Trudeau, o escritor Georges Simenon, o presidente da França Valéry Giscard d'Estaing, bem como
o seu sucessor François Mitterrand.

24
Jornalista, escritora, produtora e apresentadora de televisão, Denise Bombardier inspira, ao mesmo
tempo, admiração e críticas. Admiração por ter trabalhado por mais de trinta anos para o canal de
televisão Radio-Canada e críticas por ter um posicionamento de direita, enquanto jornalista.

124
actuellement en anglais et compte en tirer une pièce : NÈGROVILLE
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.153-154).

Marcotte certamente não é citado por acaso, suas reflexões sobre os caminhos da

literatura quebequense e, em particular, montrealense, a partir das novas influências

multiculturais, é de grande contribuição para uma nova compreensão de que seria a

literatura nacional e do conceito de “escrita migrante”. Éthier-Blais, na fantasia do

narrador, fala justamente da contribuição do romance de Vieux, texto migrante, nascido

em contexto montrealense, para a (re)elaboração identitária do Quebec contemporâneo.

Je n’ai jamais rien lu d’aussi fort, d’aussi neuf, d’aussi évident. C’est le plus
terrible portrait de Montréal que j’ai eu sous les yeux depuis des années. Si ce
que ce jeune homme dit est vrai, alors notre libéralisme est la pire saloperie
qu’il y a (ce dont je me doutais bien). Et Pierre Vallière, lui, clame sur cinq
colonnes dans La Presse: « VOICI, ENFIN, LES NÈGRES NOIRS D’
AMÈRIQUE » (LAFERRRIÈRE, 2002 A, p.151).

Com um olhar crítico e atento ao que lhe parece Outro, novo ou ambíguo, Vieux pinta,

efetivamente, um curioso “portrait” de Montreal e seus habitantes, talvez não o “mais

terrível”, mas, quem sabe, o mais irônico e paradoxal. Comment faire l’amour propõe,

nesse sentido, uma interessante reflexão (auto-reflexão) sobre o papel da literatura na

sociedade quebequense, e em outras palavras, sobre a contribuição dos textos migrantes

(das obras de Vieux e Laferrière) para a constituição (e compreensão) de novas

subjetividades em cenário montrealense.

A fim de reforçar as marcas da experiência multicultural, do desprendimento

cultural e do prazer em ser migrante na cosmopolita Montreal, Laferrière opta por não

revelar as nacionalidades de Vieux e Bouba. Embora fique claro que se trata de

estrangeiros, não há uma única referência às memórias de infância ou a qualquer

sentimento de nostalgia em relação ao passado ou ao país natal. Ao serem indagados

(fato recorrente) sobre suas origens, os personagens imigrantes e, sobretudo o narrador,

125
tratam a questão de forma irônica, negando ao interlocutor (e ao leitor) a chance de

esclarecer a dúvida. Em mais de uma situação, Vieux reage à pergunta, que considera

desnecessária e até ofensiva, em tom jocoso:

- Tu viens d’où ? me demande brutalement la fille qui accompagne


Miz Littérature.
A chaque fois qu’on me pose ce genre de question, comme ça sans
prévenir, sans qu’il ait question, auparavant, du National
Geographic, je sens monter en moi un irrésistible désir de meurtre
[...].
- Tu viens de quel pays ? me redemande-t-elle.
- Le jeudi soir, je viens de Madagascar
(LAFERRRIÈRE, 2002 A, p. 112).

Um personagem senegalês, também vítima da mesma obsessiva questão, reage com

similar ironia, escolhendo, a fim de seduzir uma jovem branca, o Harlem, bairro- fetiche

da cultura negra, como lugar de origem:

KoKo, un des musiciens Sénégalais, me fait un clin d’œil. Frère. Miz


Punk l’intercepte :
- Tu viens d’où, toi ?
- Harlem.
- Harlem ! J’adore Harlem.
- Ah bon !...
Miz Punk est survoltée.
- C’est plein de crimes ?
- On fait ce qu’on peut (LAFERRRIÈRE, 2002 A, p. 100).

Em outra ocasião escolhe aleatoriamente um país africano, como suposta origem, fazendo

o que se espera de um negro.

- Ça va. Montre-moi ton pays sur la carte.


- Côte d’Ivoire. Voilà, c’est ici.
Je lui montre le premier pays que je peux épingler (LAFERRIÈRE,
2002 A, p. 124).

126
O narrador, mesmo em uma reflexão solitária, aborda a questão da origem de maneira

vaga: “je pense à mon village au bout du monde. A tous les Nègres partis pour la richesse

chez les blancs et qui sont revenus bredouilles” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.48). Ao

negar, ironizar ou desconsiderar este aspecto de sua identidade, o que o narrador procura

fazer é ser investido de um olhar multifocal, que ultrapasse as noções de origem e “raça”,

ao menos em sua acepção de estereótipo e exclusão. O autor distancia, assim, seus

personagens da pretensão de um pertencimento exclusivo a uma cultura, não se

prendendo a oposições como o país de origem versus o país de chegada. Comment faire

l’amour rompe, nesse sentido, com um tipo de representação dilacerada do imigrante

dividido entre as diferentes culturas que compõem seu imaginário, e coloca em cena

homens do “novo mundo”, de origens múltiplas, metamorfoseados em americanos.

Assim, “livres” do “peso” da origem, indiferentes à busca incessante de um

passado perdido que os exilaria em um mundo muitas vezes irreal, os jovens imigrantes

de Comment faire l’amour experimentam um desprendimento que lhes abre as portas da

cultura universal e de uma Montreal plural, eclética e cheia de signos. Vieux e Bouba

possuem, no plano pessoal, uma vasta gama de interesses, são amantes de música e

literatura; no plano coletivo, são confrontados a diferentes culturas e identidades. Bouba

vive ouvindo jazz, cercado de um velho Alcorão, de um dicionário faltando páginas e

das Obras Completas de Freud. É leitor assíduo deste último e, ironicamente, pratica a

cura pelo sono, não pelo sonho. A teoria psicanalítica, advento marcante da cultura

ocidental, e o Alcorão são, curiosamente, as grandes referências na vida

“espiritualizada” de Bouba.

Bouba est affalé sur le Divan dans sa pose habituelle (couché sur le côté
gauche, face à la Mecque) à siroter du thé de Shanghai tout en feuilletant un
bouquin de Freud. Comme Bouba est complètement toqué de jazz et qu’il ne
reconnaît qu’un gourou (Allah est grand et Freud son prophète), ça ne lui a
pas pris de temps à bricoler cette thèse complexe et sophistiquée où, au bout

127
du compte, Sigmund Freud devient l’inventeur du jazz (LAFERRIÈRE, 2002
A, p.13).

É esta jocosa e estranha combinação que compõe o universo do personagem. Vieux, por

sua vez, vive às voltas com a escrita de seu romance e a leitura de uma vasta coleção de

livros. Sua narrativa, seu olhar para o mundo é intertextual e grande parte de seus

comentários e reflexões são permeados por alusões à literatura. Leitor voraz, faz

referência durante todo o romance a autores de diferentes continentes e países: os norte-

americanos Hemingway, Miller, Bukowski, Jong, T. Capote, Julien Green, Mario Puzo,

Tennessee Willian, Salinger, Dos Passos, Kerouac, Himes, Baldwin e Wright; os

franceses Proust, Gide, Apollinaire, Yourcenar, Duras, Collete, St. John-Perse, Villon;

os quebequenses Ducharme, Aquin, G. Roy, Marie-Claire Blais, Beaulieu, Cohen e

Fennario; os haitianos Alexis, Roumain e Ollivier; a canadene Atwood; os argentinos

Cortazar e Borges; o colombiano Márquez; o brasileiro Jorge Amado; o cubano

Carpentier; o guatemalteco Astúrias; o mexicano Fuentes; o suíço Cendrars; os

austríacos Freud e Handke; o espanhol Cervantes; o belga Simenon; os italianos Pisan,

Moravia e Dante; os ingleses Virginia Woolf e De Quincey; o grego Homero; os

japoneses Mishima e Basho; os russos Limonov, Vladimir e Dostoievski ; o senegalês

Sembène, entre outros. Através de citações, mais ou menos relevantes, o narrador

transita entre obras de diferentes origens, períodos, registros de língua, temáticas ou

tradições. Do oriente ao ocidente, de Homero a Ducharme, de Roumain a Bukowski,

Vieux se mostra um leitor curioso e eclético. Há, todavia, um maior número de

referências aos escritores originários de países que, direta ou indiretamente, tiverem

influência na formação intelectual e cultural de Laferrière (os Estados-Unidos, a França,

o Quebec e o Haiti), bem como aos cânones da literatura ocidental. Há, por outro lado,

pouca ou quase nenhuma referência à literatura africana, embora os personagens sejam

128
frequentemente associados a este continente. Vieux é um homem ocidental, mas é,

acima de tudo, um grande leitor e, como para todo grande leitor, a literatura jamais é

sinônimo de assimilação passiva. Vieux lê, por exemplo, Gide, seu diário de viagem

Retour du Tchad, sem perder o olhar crítico, diz que o que impressionou Gide foi o

cheiro, um cheiro de folhas, "LE NÈGRE EST DU RÈGNE VÉGÉTAL” ironiza, “les

blancs oublient toujours qu’ils ont, eux aussi, une odeur”(LAFERRIÈRE, 2002 A,

p.27). Por um lado, é evidente que o narrador se orgulha de dominar a cultura

ocidental, por outro, usa a ironia como grande aliada – “un Nègre qui lit, c’est le

triomphe de la civilisation judéo-chrétienne! La preuve que les sanglantes croisades ont

eu, finalement, un sens. C’est vrai, l’Occident a pillé l’Afrique, mais LE NEGRE EST

EN TRAIN DE LIRE” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.42). Vieux é um leitor livre, no

sentido amplo do termo, que busca através da literatura descobrir e descortinar o

mundo, o homem – o eu e o Outro. Inúmeros elementos fazem da literatura um tema

central de Comment faire l’amour: além desta evidente paixão pela leitura, o narrador é

um escritor, às voltas com a criação de seu primeiro romance, tem diversas discussões

sobre literatura, interpreta (lê) o mundo a partir de suas leituras e não por acaso sua

amante mais constante é apelidada por ele de Miz LITTÉRATURE. Trata-se de uma

obra metaficcional, que fala sobre o processo de escrita, sobre a literatura e suas

influências.

O interesse pela arte (literatura, música, pintura, fotografia, etc) de múltiplas

procedências está presente não apenas na vida pessoal de Vieux e Bouba, mas pelas

ruas e casas da babélica Montreal. À medida que a leitura avança, Montreal também vai

se tornando um personagem do romance, Vieux e Bouba vêm e vão pelas ruas, bares,

boates, praças, ônibus, metrôs, apartamentos (de todos os estilos) da cidade: rue Saint

Denis, Ontário, Sainte Catherine, Carré Saint-Louis, Métro Place des Arts, Bus 80, rue

129
Laurier, Avenue du Parc, Bar Isaza, Croix du Mont Royal, etc.. Montreal desfila sob os

olhos do leitor menos francesa e mais multicultural, híbrida, pós- moderna e paradoxal.

Através da descrição de diferentes lugares (públicos e privados), de fragmentos de

conversas, encontros, sonhos, o narrador apresenta seu olhar, sua versão, da cidade. O

leitor, assim como um voyeur, entra nas casas, nos bares, observa as estantes de livros,

de CDS, vê as fotos, ouve as conversas e vai, assim, pintando um retrato da cidade-

babel, fragmentado e marcado por mesclas interculturais. Bar Isaza: público: negros e

brancas em busca de aventuras amorosas; música: reggae e samba. Bistrô à Jojo:

bebida: cocktail zombie e cerveja; ambiente: suntuoso; público: africano; tema da

conversa: a imigração e a relação entre negros e brancas. Apartamento Vieux:

endereço: 3670, rue Saint Denis; música: jazz; bebida: vinho barato; atividades:

literatura, música e sexo; vista: para a cruz do Mont- Royal; aluguel: 120 dólares. Nas

palavras do narrador seu apartamento poderia ser descrito assim:

Une chronique de ma chambre au 3670, rue saint Denis (description faite avec
l'accord de ma vieille Remington 22).
J'écris: LIT
Je vois: matelas poisseux, drap crasseux, sommier grinçant, divan gondolé.
Je pense: dormir (Bouba dort douze heures d'affilée), baiser (Miz Sophisticated
Lady), rêvasser au lit avec Miz littérature, écrire au lit le « Paradis du
dragueur nègre », lire au lit (Miller, Cendras, Bukowski) (LAFERRIÈRE,
2002 A, p.106).

Ao visitar a residência de suas diferentes amantes quebequenses, Vieux descobre um

universo cultural que vai muito além do nacional, e com o qual, eventualmente, se

identifica. Miz Chat: endereço: Notre-Dame-de-Grâce; vista: para um parque; bebida:

daiquiri; livros: eróticos; editor: J.J. Pauvert, escritores: Miller, Lucien de Samosate,

L’Aretin, Rachilde, Octave Mirabeau, autores que têm em comum a queda pela sátira

e pela transgressão; fotos : de gatos famosos (de Malraux, Céline, Cocteau, Colette,

130
etc); tema de conversa: a fome e os gatos. Miz Littérature: música: Roy Orbison, Men at

Work, Simon and Garfunkel, Furey; bebida : cherry; pintores: Pieter Brueghel, Utamaro

Kitagawa, Piranèse, Hokusai Holbein; fotos: Virginia Wolf; fotógrafa: Gisele Freund.

Miz Mystic: endereço: Park Avenue; fotos: do guru indiano Maharishi e de outros

iluminados; música: hindu, “la musique sacrée des plantes de l’Inde orientale”

(LAFERRIÈRE, 2002 A, p. 139). Nessas visitas às residências quebequenses, fora o

endereço, as referências à cultura quebequense praticamente inexistem. Na visita à casa

de Miz Mystic e Miz Littérature, por exemplo, Vieux, entra, curiosamente, mais em

contato com a cultura oriental do que com a quebequense, ele observa os quadros dos

pintores japoneses Hokusai e Kitagawa, ouve as músicas da Índia Oriental, toma chá de

Shangai, observa as fotos do guru indiano Maharishi, entre outras coisas. Miz Snob:

endereço: Outremont, “coin boisé. Près de Saint-Viateur. Boucherie française.

Pâtisserie grecque” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p. 114); fotógrafos: Lewis Hine e Henri

Cartier-Bresson; fotos: Truman Capote (por And y Warhol); escritora fetiche:

Marguerite Duras; pintor: Chagall; escultor: Dahomey; música: Cohen, Dylan, Rampal;

bebida: Chá de Shangai; tema de conversa: os escritores beatniks.

- As-tu lu Burroughs?
- Oui, dans le genre, je préfère Corso. [...]
- Junkie, ça t’a plu?
Miz Snob aime citer des noms.
- Pas mal. Je préfère Le festin nu.
- Je trouve ça un peu trop direct et ça vaut pas grand-chose à
côté du Journal de De Quincey.
Rampal, au fond c’est de la merde. Je m’en fous
(LAFERRRIÈRE, 2002 A, p.118).

Vieux, ao contrário das expectativas, parece ter coisas em comum com a “esnobe”

amiga. Além de gostar de citar nomes, também parece conhecer e se identificar com os

autores beatniks e outros “malditos”. Assim como os beatniks, o narrador (da

131
“autobigrafia americana” como um todo) está em busca de movimento, seja um

deslocamento geográfico, pela cidade ou pelo continente americano, seja um

movimento (imóvel) através do imaginário, das lembranças, das fantasias, da leitura ou

da escrita.

Au "d'où viens-tu?" qui pose la question de l'origine, je réponds plutôt par "où
veux-tu aller?", je pose la question du destin. Mais je crois quand même que la
réponse est quelque part entre les deux, dans ce que Montaigne appelle le
passage. C'est le mouvement qui comp te (LAFERRIÈRE, 2008).

Além do diálogo com Miz Snob sobre Burroughs e Corso, Vieux faz alusão a um bar

(que freqüenta) chamado Les Clochards Célestes, nome da uma obra de Jack Kerouac,

um dos mais importantes escritores da geração beatnik, e tem certa “obsessão” por

Henry Miller, um dos precursores do movimento. Miller é um dos nomes mais citados

pelo narrador – Vieux lê Miller, “il faut lire Miller en été... » (LAFERRIÈRE, 2002 A,

p. 111), sonha com Miller, observa os leitores de Miller, cita supostas frases ditas por

Miller, "Miller dit qu'il n'y a rien de mieux que faire l'amour à midi" (LAFERRIÈRE,

2002 A, p.45). O narrador descreve, inclusive, um sonho em que ele, Miller e

Bukowski, também citado diversas vezes, se encontram em um jardim público de

Montreal.

Je n'en crois pas mes yeux. Miller assis tranquillement à boire une Molson.
Comme ça. Henry Miller. Miller, vieille branche. Pas croyable. Je dois rêver.
Je délire. Ça doit être la faim. Je me pince. Encore là. Le Miller. [...] Une
sirène de police. On ramasse un type en sang. C'est Bukowski. BUKOWSKI
EST DANS LA MERDE JUSQU'AU COU (LAFERRIÈRE, 2002 A, P.107).

Em suas entrevistas, Laferrière costuma confessar sua identificação com o estilo direto,

duro, pungente e ao mesmo tempo terno de Bukowski – e embora não seja considerado

membro do movimento, sua obra possui um certo número de coincidências com a

literatura beatnik.

132
Je savais de quoi parlait ce Bukowski qui vivait dans une chambre crasseuse de
Los Angeles. J’ignorais qu’on pouvait écrire ainsi - avec un tel naturel. Il faut
toute une vie de travail pour atteindre cette simplicité. Faites gaffe, car rien n’est
plus subtile que ce style en coup de poing qui n’ignore pas la tendresse
(LAFERRIÈRE, 2007C).

Esses autores (incluindo Laferrière) têm em comum a recusa a conservadorismos,

academicismos, uniformidades (literária e socialmente), em síntese, ao lugar que a

história ou a geografia lhes destinou. Escreveram, cada um a sua maneira, obras de

cunho autobiográfico, contendo críticas contundentes aos valores burgueses da

sociedade americana, esbanjaram temáticas sexuais e personagens marginais. Os

personagens de Comment faire l’amour são típicos anti-heróis, deslocados, passam seu

tempo filosofando, lendo, bebendo, ouvindo jazz e fazendo sexo, enfim, à margem do

sistema ou, dependendo do ponto de vista, como Bukowski no sonho de Vieux, “dans la

merde jusqu’au cou”.

A multiplicidade de referências e o ecletismo e a intertextualidade, estão

presentes em todas as situações do romance, inclusive quando o assunto é

espiritualidade e religiosidade –, islamismo, budismo, voduísmo, hinduísmo,

cristianismo, são abordados de maneira lúdica e irônica. O leitor é, incessantemente,

convidado a mergulhar em um heterogêneo mar de signos; Bouba é muçulmano, tem

amigas budistas e hinduístas, se interessa pelo Kama Sutra, pela arte assíria e tem a

imagem de uma princesa egípcia ao lado do divã.

L’effigie de la princesse égyptienne Taïah surmonte le vieux divan où Bouba


passe ses journées couché ou assis sur ses jambes repliées à brûler des résines
odorantes dans un brûle-parfum oriental. Il se fait, sans arrêt, du thé sur un
réchaud à alcool en lisant des livres rares sur l’art assyrien, les mystiques
anglais, les Vèvès du vaudou, la Fata Morgana de Swinburne. Il passe ainsi
son temps précieux à admirer sur une gravure, achetée rue Saint-Denis, le
corps gras de la Beata Béatrice de Dante Gabriel Rossetti (LAFERRIÈRE,
2002 A, p.14).

133
Boub(d)a, que vive deitado “meditando” , é ironicamente apelidado por Vieux de

“Bouddha Nègre” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.70) ou de Dalaï- Lama, “Bouba est

maintenant couché sur le Divan comme s’il était le Dalaï-lama du carré Saint-

Louis” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.120). Embora os personagens pareçam ser

muçulmanos – Bouba reza e está sempre acompanhado do Alcorão e Vieux cita

freqüentemente versículos das suratas do livro sagrado –, suas citações são muitas vezes

irônicas ou vazias de sentido. Vieux me nciona, por exemplo, o Alcorão ao matar uma

mosca – “La mouche aspirée, file droit vers un monde meilleur. (“Assurément, j’en jure

par la lune”, Sourate LXXIV, 35). Adieu, Mouche" (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.29) – ou

ao fazer sexo – “le cœur de mon sexe jubile comme un poisson dans l’eau. Le Coran

dit : “Dis-tu la vérité ou plaisantes-tu”? (Sourate XXI, 56) ” (LAFERRIÈRE, 2002 A,

p.80). Em seus comentários o narrador também não deixa de “blasfemar” : “J’ai rendez-

vous sur Prince-Arthur avec CL. Sur Prince-Arthur, mais où ? Salaud d’Allah”

(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.152). As referências às outras religiões se dão no mesmo

tom: “Je vois cette saleté de Croix dans l’encadrement de ma fenêtre” (LAFERRIÈRE,

2002 A, p.109), ao se referir à cruz do Mont Royal. Em outro momento, durante o sexo,

compara sua amante inglesa a Santa Teresa de Lisieux e cita uma passagem do Cântico

dos Cânticos (declaração de amor do rei Salomão à noiva Sulamita) que muitos

afirmam ter um tom erótico.

Ses yeux sont tournés vers l’intérieur (elle me rappelle cette image de mon
enfance d’une sainte Thérèse de Lisieux en extase). Son cou cassé repose sur
mon épaule gauche (« son bras gauche est sous ma tête et sa droite m’étreint »,
Les cantiques des cantiques). Pas un cri. Communication non verbale. Baiser.
Baiser. Baiser. [...] elle commence à râler une sourate personnelle
(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.80).

134
Assim, as alusões religiosas se mesclam e se fundem sem hierarquias, Alá, Santa Teresa

de Lisieux, Buda, Ogum são igualmente injuriados: “est-ce le courroux d’Allah? ou

“est-ce Ogoum, le Dieu de feu du panthéon vaudou? ” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.15).

Essa falta de hierarquia revela algo sobre a forma que Laferrière escolheu para compor

o heterogêneo universo cultural de seus personagens – sem fronteiras e sem

preconceitos culturais. Citações como estas, sem sentido, irrelevantes (ou simplesmente

irreverentes) – usadas unicamente como parte deste cenário multicultural – se mesclam

às referências relevantes. Assim, Laferrière “brouille les pistes” e confunde, como de

hábito, o leitor desavisado. Neste jogo intertextual, o narrador mostra que nem sempre é

preciso levá-lo a sério, ele próprio dá a pista –“j’avais laissé entendre que Virginia

Woolf valait bien Yeats ou une bêtise de ce genre" (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.26).

Vieux (assim como Miz Snob) gosta de citar nomes, mas o faz, muitas vezes, pelo

prazer de testar a perspicácia de seu interlocutor.

Em meio a esse “caos intertextual”, há importantes referencias à cultura afro-

americana e ao movimento negro, indispensáveis para compreensão do seu

posicionamento crítico. Há, assim como em Cette grenade, menção (indireta) à

Negritude, a Frantz Fanon e a Aimé Césaire, e (direta) ao código negro (citado na

epígrafe) – que reduzia o negro a um objeto, proibia sua relação sexual com o branco,

seu aprendizado da leitura e da escrita, entre outras coisas. O narrador também cita os

"Panteras Negras", Malcom X e diversos escritores e músicos negros, muitos deles

engajados na luta contra o preconceito e pela inserção do negro. Vieux chega a

catalogar, em seu caderno de notas, os músicos de jazz que escuta:

J’écris: JAZZ.
j’écoute Coltrane, Parker, Ellington, Fitzgerald, Smith, Holiday, Art Tatum,
Miles Davis, B.B. King, Bix Beiderbecke, Jelly Roll Morton, Armstrong, T.S.
Monk, Fats Waller, Lester Yong, John Lee Hooker, Coleman, Hawkins et Cosy
Cole (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.109).

135
O jazz é a trilha sonora do texto, paira no ar como a marca de uma história que não se

quer esquecer, e como afirma Vieux, o jazz “ramène toujours à la Nouvelle-Orléans”

(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.13), às suas raízes negras, “et ça fait un Nègre nostalgique”

(LAFERRIÈRE, 2002 A, p.13). Antes de escrever a primeira linha de seu romance

Vieux faz uma lúdica, embora relevante, escolha:

la voix du brocanteur ne m’a lâché pas un seul instant, me proposant tour à


tour la discrète machine de Salinger, la machine d’occasion de Gabrielle Roy,
la pudique machine de V. Woolf, etc. Voici la machine terroriste qui a servi à
taper les déclarations des Black Panthers, c'est une portative. Au bout du
compte j'avais le choix entre la vieille Underwood d'Hemingway et cette
Remington 22 qui a appartenu à Chester Himes (LAFERRIÈRE, 2002 A,
p.60).

Entre esses diferentes autores (e abordagens literárias), Vieux termina optando pela

máquina que “pertenceu” a Chester Himes – autor afro-americano contemporâneo de

Richard Wright e James Baldwin, também citados. Esta escolha não é anódina, a obra de

Himes e o próprio Himes, filho de pai negro e mãe branca, traz em si a idéia da mistura

étnica. Himes, assim como Laferrière em seus romances que se passam na América do

Norte, explora os clichês do negro sexual e sua relação com a branca, compreendendo a

relação inter-racial a partir das relações de poder e dos desejos de vingança que a

encobrem.

A questão do preconceito racial e da suposta “identidade negra”, embora seja

tratada de forma irônica e não panfletária por Laferrière, é um aspecto essencial de

Comment faire l’amour. Laferrière, como um bom explorador de clichês, se reapropria

neste romance dos estereótipos sobre os negros, sobretudo os sexuais, de maneira

burlesca e caricata, subtraindo a carga dramática. Com condutas imprevisíveis, os

personagens oscilam entre um comportamento machista e inflexível e uma atitude

submissa e dócil, entre a alta e a baixa estima, entre a passividade e a irreverência, que de

136
alguma forma, abalam as certezas quanto ao significante Nègre. Os personagens de

Laferrière são pretenciosos, bem dotados sexualmente, símbolo de masculinidade – “se

faire servir par une Anglaise (Allah est grand). Je suis comblé. Le monde s’ouvre enfin à

mes vœux” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.29) – e, ao mesmo tempo, ocupam um papel de

objeto sexual da mulher branca, agem como se lhes devessem um favor .

LA BLANCHE DOIT FAIRE JOUIR LE BLANC, ET LE NÈGRE, LA


BLANCHE. D’où le mythe du Nègre grand baiseur. Bon baiseur, oui, mais pas
avec la Négresse. C’est à la Négresse de faire jouir le Nègre (LAFERRIÈRE,
2002 A, p.48).

“Au fond” afirma Vieux, “le Nègre n’est qu’un pétard mouillé” (LAFERRIÈRE, 2002

A, p.20). A fixidez do estereótipo mascara sempre algo da verdade, da singularidade do

sujeito; Laferrière transita justamente entre a máscara do estereótipo e a subjetividade

do sujeito, mostrando o quão paradoxal e plural pode ser a identidade de um homem,

negro ou branco.

Je n’ai pas voulu présenter un personnage noir, pauvre, analphabète et


désorganisé, on avait trop utilisé ce genre de sujet. Mon propos c’était de
montrer des noirs qui connaissent la littérature, la peinture et le jazz [...] pour
qu’il [le lecteur] comprenne que ces gens connaissent très bien les codes et
savent lire les signes du monde occidental. J’évite ainsi le débat sur le choc de
l’encontre de deux cultures. J’ai même présenté des noirs cyniques afin
d’évacuer le pathos (LAFERRIÈRE, 1986, p.80).

Em síntese, ao descrever seus personagens através de uma cortina de estereótipos e

simultaneamente de inúmeras excentricidades, ousadias, desejos e interesses culturais,

Laferrière se ocupa do espaço da contradição, da pluralidade e da ambivalência,

tipicamente humanas.

Através de muitas ironias, desconstruções e jogos intertextuais, Comment faire

l’amour faz emergir identidades híbridas, diaspóricas e migrantes, que destabilizam os

clichês e as representações folclóricas ou essencializantes do homem, principalmente do

137
negro. Enfim, entre Freud e Alá, entre um chá chinês e uma estátua egípcia, entre Meca

e Montreal, entre Miller e Bukowski, entre um comportamento ingênuo, ousado, terno

ou cínico, o narrador opta pela acumulação. Não há menção, por parte dos personagens,

a um desejo de restringir suas escolhas em nome da coerência cultural ou identitária, há,

ao contrário, uma recusa às identidades essencializantes e aos pertencimentos

exclusivistas. Através desta proliferação e desordem de signos interculturais, Laferrière

descreve um mundo em construção, transcultural e aberto às diferentes contribuições.

Laferrière pinta um retrato da América pós-colonial e da babélica Montreal

(multicultural e ainda racista) e suas metamorfoses imprevisíveis. Em síntese, ao criar

personagens estrangeiros, plurais, paradoxais, que acumulam identidades e culturas,

Laferrière proclama o direito à diferença, e assim, elabora, com muita liberdade, sua

(uma) versão pessoal (possível) do texto migrante.

138
5. DESFIANDO AS TEIAS INVISÍVEIS DA DIFERENÇA

5.1. Nós e os Outros: o entre -lugar da identidade

É somente pela compreensão da ambivalência e do


antagonismo do desejo do outro que podemos evitar a
adoção cada vez mais fácil da noção de um Outro
homogeneizado, para uma política celebratória
oposicional, das margens ou minorias (BHABHA).

Como o homem, de uma maneira geral, enxerga e define o Outro, o diferente, o

não- igual? Em algum momento da História, esse olhar foi isento do desejo de dominar?

Segundo Tzvetan Todorov, a primeira reação, espontânea, em relação ao estrangeiro é

imaginá-lo inferior, porque diferente de nós: não chega nem a ser um homem, e, se for

homem, é um bárbaro; se não fala a nossa língua, é porque não fala língua nenhuma

(TODOROV, 1999, p.90). Associar a diferença à inferioridade e a semelhança à

superioridade são práticas comuns, tendo em vista a dificuldade que os homens têm em

“perceber a identidade humana dos outros, isto é, admiti- los, ao mesmo tempo, como

iguais e como diferentes” (TODOROV, 1999, p.90).

Nesse sentido, perguntaria: é possível conhecer o Outro? As teorias pós-

modernas tendem a considerar que o (re)conhecimento do Outro como sujeito (do

desejo), pressupõe a aceitação de sua ambivalência, de sua fragmentação e de sua

opacidade, bem como o consentimento da impossibilidade de percebê- lo inteiramente.

Ao conceber a identidade como um discurso (em constante elaboração), as teorias pós-

modernas compreendem o conhecimento integral de si e do Outro como algo de

impossível acesso. Ou seja, quando se trata da identidade ou do reconhecimento do

Outro, não há verdades e sim elaborações de linguagem. O Outro, segundo M. Janet

Paterson, só é percebido através de relações onde há uma diferença; e essa diferença só

faz sentido quando há comparação e se os grupos em questão fizerem parte de um

mesmo contexto sócio-cultural. A alteridade é, nesse sentido, um conceito relacional

139
que se define exclusivamente por oposição. O grupo de referência, geralmente

dominante, é quem define quem são os Outros aos quais se opor.

Toda a “autobiografia americana”, como mostrei, é intensamente marcada por

deslocamentos em espaços reais e imaginários que narram o encontro entre diferentes

culturas e subjetividades. Durante o longo percurso americano, guiado por um olhar

atento e curioso, o alter ego de Laferrière descobre o semelhante e o diferente, o

familiar e o estrangeiro, o próximo e o distante, a fantasia e a realidade, e um intrínseco

desejo de simbolização da diferença. Interessa- me observar agora as estratégia

privilegiadas por Laferrière para narrar o encontro com o Outro, em outras palavras, os

caminhos trilhados por ele a fim de desfiar (desafiar) as teias invisíveis da diferença.

Proponho- me dar início a essa reflexão partindo da seguinte declaração do autor,

onde define sua maior obsessão:

écrire, dire, narrer, décrire, regarder, expliquer cela et démonter ce système,


expliquer ces stratégies puisque, derrière tout cela, je rêve au dévoilement des
comédies. Pour moi, la littérature, c'est dévoiler la comédie, c'est la
destruction de la comédie, c'est lever le voile sur les choses cachées, essayer
d'aller au plus profond - à cause, peut-être, d'une vieille frustration - pour
montrer à l'autre que je sais très bien comment ce jeu se fait, que je connais les
deux parties qui y jouent (LAFERRIÈRE,1997).

Ao afirmar que o que mais lhe interessa é narrar, olhar, desvendar e “démonter ce

système”, Laferrière fala de uma (sua) concepção de literatura, que procura desmascarar

sistemas ideológicos e estratégias discursivas que veiculam e legitimam visões

estereotipadas do mundo. A literatura de Laferrière caminha, justamente, no sentido

inverso, ou seja, da desconstrução das tramas dos estereótipos, dos clichês, que

aprisionam homens e culturas. Para ele, o homem está freqüentemente imerso em uma

rede de percepções unilaterais, que simplificam as diferenças, recorrendo a

140
representações, freqüentemente maniqueístas, que aumentam demasiadamente as

distâncias entre o “eu” e o Outro.

O estereótipo é compreendido, nesse sentido, como uma simplificação, uma

forma fixa e superficial de representação, que pretende veicular “verdades absolutas”

sobre os homens e os grupos sociais ou étnicos. Ele é, segundo Bhabha, “uma forma de

conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já

conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (BHABHA, 1998, p.106), seu

maior paradoxo está nesta contradição: pretende traduzir verdades, mas deve reafirmá-

las exaustivamente para que pareçam naturais. É a força da ambivalência que, segundo

Bhabha, legitima o estereótipo, posto que este reconhece a diferença e a recusa ao

mesmo tempo, mascarando-a, ou seja, substituindo-a por representações e crenças

alienantes. “Toda a história da descoberta da América, primeiro episódio da conquista, é

marcada por esta ambigüidade: a alteridade é simultaneamente revelada e recusada”

(TODOROV, 1999, p.59), afirma Todorov. Usar a cor como principal significante da

representação identitária do negro é um exemplo do que o estereótipo é capaz de fazer;

mas para que seja efetivamente assimilado é preciso associá-lo a uma vasta rede de

significantes.

Como forma de crença dividida e múltipla, o estereótipo requer, para uma


significação bem sucedida, uma cadeia contínua e repetitiva de outros
estereótipos. O processo pelo qual o “mascaramento” metafórico é inscrito em
uma falta, que deve então ser ocultada, dá ao estereótipo sua fixidez e sua
qualidade fantasmática – sempre as mesmas histórias sobre a animalidade do
negro, a inescrutabilidade do cule ou a estupidez do irlandês têm de ser
contadas (compulsivamente) repetidamente, e são gratificantes e aterrorizantes
de modo diferente a cada vez (BHABHA, 1998, p.120).

Segundo Lacan, o sujeito é capturado por um número extremamente limitado de

significantes, que determinará a imagem que este terá de si mesmo. Ou seja, todo ser

141
humano é sobredeterminado por uma cadeia de significantes que o constrói e determina.

No caso dos negros, a semântica da dominação é uma forma limitada e negativa de

elaboração identitária, já que o estereótipo impede a livre circulação do significante, o

significante negro fica invariavelmente associado ao racismo. A palavra, segundo

Bhabha, “nega uma identidade original ou uma singularidade aos objetos da diferença

(sexual ou racial)” (BHABHA, 1989, p.107). Segundo Jacques Lacan, o significado é

um efeito do significante e o sentido nasce, justamente, da substituição de um

significante por outro.

Antes de poder dizer ‘noite e dia’, explica Lacan, a noite e o dia não existem.
Não há nada além de variações de luz. Uma novidade absoluta, total, surge
quando se introduzem no mundo os significantes ‘noite e dia’. A própria
experiência se estrutura a partir do significante que engendra a oposição como
começo absoluto (MILLER, 1987, p.136).

As representações essencializantes, embora possam ter uma função na auto-

afirmação identitária do sujeito, mascaram algo fundamental: o lado obscuro, inusitado,

paradoxal e imprevisível do sujeito. Precisamente o que Laferrière procura revelar. O

autor coloca, permanentemente, em cena personagens que apresentam identidades

contraditórias, fragmentadas e fluidas. A “autobiografia americana” se insere, assim, em

um contexto de importantes reflexões a respeito da fragmentação do sujeito e do

(re)conhecimento das minorias.

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades


modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais
de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando
a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2002, p.9).

142
Nas palavras de Homi Bhabha, é, justamente, através de uma “estrutura de cisão e

deslocamento – ‘o deslocamento fragmentado e esquizofrênico do eu’ – que a

arquitetura do novo sujeito histórico emerge nos próprios limites da representação”

(BHABHA, 1998, p.298)

A psicanálise tem fundamental importância na descoberta da fragmentação do

sujeito e da identidade (unificada) enquanto uma fantasia, um discurso, uma ficção, uma

maneira que o sujeito ou o grupo social encontra para se afirmar e ter a ilusão da

inteireza. O sujeito, embora seja incompleto, solitário, fragmentado, é, de acordo com

Lacan, uma desordem de identificações imaginárias e sempre precisará do outro para

construir-se, para falar de si. Em síntese, toda e qualquer representação identitária só é

possível pela identificação. Lacan dá ênfase a esta idéia em sua teoria do “estádio do

espelho”, onde afirma que o “eu” se forma a partir da projeção especular em um outro,

ou seja, o ego da criança constitui-se a partir do seu semelhante (ego especular) – o “eu

se confunde com esta imagem que o forma e o aliena, a captação especular abole o

sujeito no outro” (LAPLANCHE, 1992, p.177). Para Lacan, a identidade da criança não

se forma sozinha, no interior de seu ser, mas, necessariamente, a partir do contato com

um outro, mesmo que esse outro seja sua própria imagem refletida. Assim, a auto-

imagem do sujeito nunca será totalizante e auto-suficiente, será eternamente dependente

do outro. Nas palavras de Fritz Gracchus,

diferentemente do animal que nasce com uma bagagem de instinto que lhe
permite uma relativa autonomia desde o nascimento, o homenzinho é um
parasita que não pode sobreviver sem a presença de um outro (GRACCHUS,
1986 , p.136).

Segundo Homi Bhabha, é justamente essa fa lta – de uma auto- imagem totalizante – que

funda a demanda da identidade. É a partir dela, ou seja, da impossibilidade de dizer-se

sozinho, que a relação com o outro (e conseqüentemente com o “eu”) se constrói. O

143
sujeito só experimenta a necessidade de criar uma imagem, ou melhor, uma

representação de si mesmo em função dessa falta inaugural, dessa “falha anterior de

uma presença” (BHABHA, 1998, p.90) – que seria a ilusão de plenitude, da fusão

completa com a mãe. De acordo com Lacan, essa projeção necessária no outro inaugura

sua entrada no mundo simbólico, ou seja, no mundo da linguagem e das representações.

Sem ela o sujeito seria auto-referente, não sairia do narcisismo primário, já que a

identificação pressupõe a criação de uma imagem de si através do outro (o “eu” se

reconhece pela primeira vez como um outro) e do outro através de si. O ego nasce,

assim, dessa confusão entre o “eu” e o outro. É essa identificação primária (instantânea)

que inaugura as futuras e recorrentes identificações (mediadas pela representação) pelas

quais o sujeito deve passar durante a vida. Adulto, o homem só poderá reconhecer sua

diferença, ou seja, sua identidade olhando e comparando-se a um semelhante; o sujeito

concede ao outro um lugar de contraponto identitário, recorrendo a ele a cada dúvida

que tem sobre si. O fato do homem só se constituir como alteridade em relação ao

outro, lhe serve ao mesmo tempo de salvação – a possibilidade de representar-se – e de

desgraça, pois o sujeito que se identifica com o outro é dele eternamente “escravo”. É

nesse eterno reconstruir-se em relação ao outro – olhando e sendo olhado – que o

processo identitário se estabelece. Em resumo, a identidade se constrói na confluência

da identificação com um Outro, do olhar que este Outro lhe impõe, e, finalmente, do

olhar que se tem sobre si mesmo, que escapa ao Outro.

A autoficcão questiona, justamente, essa capacidade do sujeito de dizer-se

sozinho, “como se conhecer se o autoconhecimento passa pelo reconhecimento do

outro?” (DOUBROVSKY, 1988, p.70). “O mesmo deriva do mesmo e do outro”

(DOUBROVSKY, 1988, p.70) e essa compreensão acaba com a noção de solidão

144
romanesca e com a idéia de que a obra autobiográfica nasce de um único olhar de si

para si mesmo.

Laferrière se mostra indubitavelmente consciente da idéia de que toda e qualquer

representação identitária só é possível através do olhar, da comparação ou da projeção

especular em um outro. O contraponto entre sujeitos, mas também entre culturas, raças,

classes, sexos, subjetividades, está presente em todas as obras. Nos romances do ciclo

americano há o inevitável olhar que transita entre o país de origem e o de chegada, o sul

e o norte, o calor e o frio, o negro e o branco, o colonizador e o colonizado, o

dominador e o dominado. Já nos romances do ciclo haitiano, esse confronto pode ser

percebido em outra medida, entre o poder (do governo ditatorial) e o povo, entre os

ricos (minoria no Haiti) e os pobres, entre pais e filhos (conflito de gerações), entre a

ciência e a superstição, os deuses e os homens. É a violência e a injustiça que nasce da

desigualdade que sensibiliza o autor.

Vous savez, c'est une société très dure en Haïti à cause de l'écart entre les
riches et les pauvres. Toute l'Amérique latine est un peu comme cela; les gens
sont d'une violence inouïe face aux autres. Les inférieurs sont écrasés, les
domestiques sont humiliés. Les riches sont d'une arrogance absolue
(LAFERRIÈRE, 1997).

Seja pela diferença de cor, do credo ou da classe social, o sujeito que foi excluído pela

não semelha nça almejará, com freqüência, se afirmar no plano comparativo. Segundo

Eurídice Figueiredo,

a comparação faz parte integrante da vida antilhana, alguém se julgará mais


inteligente, mais bonito ou mais negro que o outro. Ninguém tem valor próprio,
todos são ‘tributários do aparecimento do Outro’, pois o tempo todo eles se
preocupam com a ‘auto-valorização e com o ideal do eu’ (FIGUEIREDO, 1998,
p.72).

145
O encontro com o Outro (e a representação da diferença) na “autobiografia

americana” pode ser observado a partir das seguintes estratégias (as quatro atividades

que preenchem a vida do narrador ao longo de seu percurso americano): o olhar,

primeiro contado com o mundo, que motiva desejos, afetos e medos, que descortina o

novo e reavalia antigo; a leitura, prática solitária, que simboliza a apropriação cultural

(não passiva) e a viagem imaginária rumo à diversidade de interpretações,

sensibilidades, origens, linguagens; o sexo, metáfora política, espaço de transgressões,

simboliza a realização do fantasma de apropriação do Outro interdito e, finalmente; a

escrita 25 , a grande viagem da reconstrução e recriação das histórias, lugares e leituras

que compõem o universo do narrador, que seria a síntese, a expressão do “eu”

metamorfoseado.

Laferrière estabelece, nesse sentido, uma outra estratégia, embora repleta de

imprevisíveis nuances, para narrar esses encontros com o diverso. Ela poderia ser

descrita da seguinte maneira: parte-se do encontro entre diferenças, comumente envoltas

pela máscara do estereótipo – negros e brancos, francófonos e anglófonos, orientais e

ocidentais, pobres e ricos, homens e mulheres, tímidos e extrovertidos, vivos e mortos,

homens e deuses –; estas dessemelhanças motivam, por sua vez, o desejo, o fascínio ou

a atração (recíproca ou não) e, em algum momento, o estranhamento (o Outro não é o

que aparenta, as diferenças parecem misteriosas e o Outro, intraduzível); vai-se, em

seguida, do estranhamento à queda das máscaras (dos clichês) e daí ao re-conhecimento

de espaços de subjetividades e de afinidades, a princípio impensáveis, entre “eu” e o

Outro; a partir deste momento o imprevisível é, invariavelmente, revelado, o re-

conhecimento das subjetividades produz, por sua vez, um desejo de re-descoberta,

25
Não haverá no capítulo uma seção específica para tratar dos temas da leitura e da escrita, pois eles
além de terem sido desenvolvidos em diversos momentos da tese (sobretudo nos tópicos 2.6 e 4.1), serão
retomados sob novas perspectivas e mais detalhadamente na conclusão intitulada “A literatura – uma
viagem inesgotável e sem fronteriras”.

146
sempre renovada do Outro e do “eu”. Trata-se de um movimento cíclico que reaparece

em diversos momentos da “autobiografia americana”.

Em abril de 2007, durante um período de pesquisas em Montreal, encontrei

Laferrière para uma entrevista no café “Les Gâteries”, na rua Saint Denis (rua fetiche do

autor), em frente ao carré Saint-Louis, que Vieux (e Laferrière) costumava freqüentar

no início de sua carreira, quando ainda escrevia Paradis du Dragueur Nègre. Durante

esta entrevista tive a oportunidade de conversar um pouco com o autor e expor meu

olhar sobre as estratégias de representação da diferença as quais lança mão em sua

"autobiografia americana”. O autor assentiu sem hesitar e acrescentou:

C’est bien ça, c’est un rêve d’écrivain, au lieu de montrer des gens très
naturels, très simples et qui à la fin on voit que ce sont des clichés ou qui
deviennent des clichés, je préfère montrer des clichés et les rendre de plus en
plus humains, je préfère cela, je montre les clichés d’abord, alors le lecteur dit
« ah oui, ça a l’air facile » et puis après je les laisse plus complexes, et ensuite
les gens deviennent des gens et dans la vie c’est comme ça, tout le monde est
assez différent tout le temps. Mais la différence ce n’est que le regard des
personnes qui voient qu’ils sont différents, dans la réalité ils ont tellement de
fils, des connections qu’on ne voit pas, qu’on ne connaît pas... Et souvent, les
gens qui veulent se connaître apprennent à se connaître très vite, c’est à dire,
apprennent à reconnecter les fils invisibles et laissent les visibles à quelqu’un
qui les regarde de loin, ils voient qu’ils sont un homme ou une femme, un noir
ou un blanc, alors que le rapport, des fois, c’est l’amitié, l’affection, la haine,
le désir, c’est d’autres fils invisibles. Enfin, je les présente comme ça et après
j’essaie de montrer les fils invisibles où, d’abord, les contrastes ne sont pas
négatifs, dans le sens que ce qui les différencie les rapproche, les attires. C’est
pour ça que je déteste, dans les bars branchés, de voir la belle fille avec le
beau garçon, je trouve que c’est la chose la plus banale, c’est même une
vulgarité, quel manque d’imagination ! Pour moi, le sommet de l’ imagination
c’est une femme extraordinairement belle qui sort avec un clochard, parce
qu’elle a remarqué chez ce clochard-là une élégance que les autres n’ont pas
remarqué et quand je dis ça, je dis pour un homme aussi, par exemple, un
homme très connu et qui arrive dans un endroit et qui parle avec la personne

147
avec qui il a envie de parler, c’est à dire, qu’on ne soit pas tout le temps en
train de rassembler les puissants avec les puissants, les beaux avec les belles,
mais donner l’impression que la vie peut avoir des surprises, essayer de
trouver des fils invisibles, l’ironie (LAFERRIÈRE, 2007 A).

A partir dessas observações e conclusões, a propósito das estratégias empregadas pelo

autor para narrar o encontro com o diverso, farei a seguir uma análise mais aprofundada

sobre como são elaboradas as experiências do olhar e do sexo no reconhecimento do

Outro em diferentes obras da “autobiografia americana”.

5.1.1. O olhar: uma maneira de se (in) escrever

Para Laferrière o ato de olhar ou ser olhado é essencial na descoberta do Outro,

na elaboração subjetiva do “eu” (do personagem- narrador) e na construção da escrita em

(de) si. Segundo o autor, o olhar é uma maneira de escrever e o estilo do texto vem do

estilo do olhar. “Écrire, c’est une façon de regarder les autres et soi

même » (LAFERRIÈRE, 2000 A, p.17). Assim, o tema do olhar reaparece de forma

recorrente em todas as obras da “autobiografia”. O olhar do Outro que julga, ou sua

ausência – “l’impression d’être un mur lisse et blanc. Sans aucune aspérité. L’œil ne

peut s’accrocher nulle part. En un mot, vous n’existez pas” (LAFERRIÈRE, 1993, p.86)

– aparece sobretudo nas obras do ciclo americano, que pressupõem um deslocamento

em direção ao novo e à diferença. Cada obra, cada contexto, cada etapa de vida do

narrador exige, por sua vez, diferentes formas de olhar e de narrar, embora o prazer (o

gozo) do olhar esteja presente em todos os romances.

O olhar do pequeno Vieux Os em Petit-Goâve (L’odeur du café e Le charme),

distraído, lúdico e sem urgências, é fruto de um ambiente confortável, íntimo e familiar

– “à Petit Goâve je me laissais regarder par ces gens bienfaisants qui sont mes voisins

148
qui m’ont connu quand j’étais bébé, les animaux, les arbres” (LAFERRIÈRE, 2007 A).

Neste romance ele vê o mundo através do olhar da avó Da, e usa inúmeras vezes o

discurso indireto para narrar suas impressões e comentários sobre a vida na cidadezinha.

Da, por sua vez, é uma grande observadora, ela passa a maior parte de seu tempo

sentada na varanda de sua casa olhando, “DA sait tout ce qui se passe dans la ville sans

jamais quitter sa vieille chaise de Jacmel” (LAFERRIÈRE, 1999 B, p.60). É através do

olhar da avó e dos que passam pela sua casa que Vieux Os tem suas primeiras

impressões da ditadura e suas iniqüidades, bem como das histórias fantásticas de mortos

e zumbis tão presentes na cultura popular haitiana. Esse olhar distraído da criança e que

se deixa contagiar pela doçura da relação com a avó vai gradualmente se afastando do

olhar mais atento, mas não menos prazeroso, de Vieux em Porto-Príncipe. Vieux Os em

Le goût des jeunes filles fala do simples deleite de ver passar a vida, e fazer o tempo

parar.

Je m’assois dans les marches de l’escalier qui donne sur la rue et je regarde
passer les gens. Juste ça. C’est tout ce que je fais l’après-midi. Rien d’autre.
Des fois, je regarde passer les nuages. Je peux passer des heures à regarder
les nuages. La course des nuages. Je me demande où va tout ce temps que je
perds à regarder les nuages. Les nuages ou la lune. La lune c’est encore mieux
(LAFERRIÈRE, 2004 A, p.52).

Em La chair du maître e Le cri des oiseaux fous o olhar do prazer se mescla ao olhar do

medo, medo do olhar cruel, controlador e punitivo do regime ditatorial.

C’est le regard de celui qui se demande d’où viendra le danger, ce n’est pas le
regard de l’individu, [...] mais on fait confiance on y est né, on doit avoir des
réflexes. On se dit que s’il y a un mauvais regard, on va le capturer et choisir
de l’affronter ou de s’enfuir (LAFERRIÈRE, 2007 A).

O jovem Manuel, um dos narradores de La chair du maître, é um observador

obstinado, que prefere olhar à agir, “préfère regarder plutôt que de participer”

149
(LAFERRIÈRE, 2000 C, p.63) [...] “assis sur un muret, on voit même des choses que

les gens tentent de dissimuler à tout prix. Par exemple le désir” (LAFERRIÈRE, 2000

C, p.64).

Esse olhar que predominou na infância e na adolescênc ia se mostra, no entanto,

bastante diferente do olhar crítico e ácido do narrador de Comment faire l’amour, que se

descobre Outro e escolhe a ironia como arma da sobrevivência.

Je ne cherche pas à être drôle [en Comment faire l’amour], sinon je l’aurais
été dans tous les livres. Ce livre a un contenu acide parce que l’atmosphère est
acide, parce que cette urbanité exige un tel regard, l’autodérision et la
dérision ce sont des valeurs urbaines, de grandes villes.[...] Moi je ne fais pas
de l’humour, c’est la situation qui dégage son ironie. L’ ironie vient de ma
posture de ma façon de regarder les choses, mais au fond c’est la façon d’où
on se place. [...]Quand je regarde un arbre québécois bien sûr, il y a un regard
qui est d’étonnement, c’est un arbre qui peut perdre toutes ses feuilles puis
avoir de la neige dessus, c’est un arbre qui change. Mais l’arbre haïtien, je ne
le vois pas parce qu’il ne change pas, il fait partie de ma vie, il est lié à mon
enfance, il est plus vieux que moi, mais moi je suis plus vieux que l’arbre
québécois parce que j’étais déjà un adulte quand je l’ai vu, et l’arbre haïtien,
lui, m’a vu, parce que j’étais enfant, et je suis né devant lui, dans sa présence.
C’est pour cela que je dis souvent que je ne fais pas d’ironie. C’est la situation
qui va faire en sorte que je le regarde ainsi et que l’ironie paraît
(LAFERRIÈRE, 2007 A).

Apesar de sua proximidade temática com Comment faire l’amour, em Éroshima a

autoderrisão é menos presente, pois o narrador não se expõe tanto, ele narra mais o que

vê, ouve ou imagina do que o que propriamente vive. Vieux se esconde atrás do olhar,

como se este fosse um câmera, fotográfica ou de filmagem, que mediasse sua relação

com o mundo – “zoom sur la nuque de keiko (utiliser un objectif tamron 35/80)”

(LAFERRIÈRE, 1998 A, p.37). À imagem de um diretor de cinema, ele escolhe os

ângulos, a melhor luz, os diálogos, o final de cada história narrada, como se o mundo

150
existisse em função de seu olhar e não por si mesmo – “J’aime aussi flâner seul. Sans

rime ni raison. Comme ça. Pour voir. Je ne connais pas de plus vif plaisir [...] que celui

qu’on trouve à s’asseoir à la terrasse d’un café [...]. On s’assoie et on regarde.

L’unique règle” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.40). Para Vieux, a viagem do olhar está

sempre associada à viagem da escrita, olhar é uma forma de significar – ler e escrever –

o mundo. O narrador descreve, assim, uma viagem de metrô por Montreal, que é

também uma minuciosa viagem do olhar.

Je suis dans un autre monde. Je regarde mes voisins. Avez-vous déjà regardé
un visage humain? La peau, le grain de la peau, les os sous la peau. Les poils
(cils, moustache, barbe). Les trous (yeux, nez, bouche). Les dents, les lèvres, le
menton. Drôlement fait les humains. Tout ça terne ou vivant, frémissant ou
épuisé, lisse ou granuleux, frais ou en sueur. Je m’installe dans un coin et
j’observe. J’apporte un calepin avec moi. Je note les gestes naturels, des bouts
de dialogues (je peux suivre trois ou quatre dialogues à la fois), les visages
perdus dans des mo nologues intérieurs. Je note (LAFERRIÈRE, 1998 A,
p.95).

Em Cette Grenade trata-se também de um olhar crítico, irônico e, ao mesmo

tempo, prazeroso. A grande mudança está no olhar que o mundo passa a lançar para o

narrador. Neste romance o personagem experimenta pela primeira vez, depois do

sucesso de Comment faire l’amour, a sensação de ser olhado, admirado, saindo,

momentaneamente, da posição daquele que olha.

C’est ici le sommet du monde. Surtout : ON VOUS REGARDE. Celui qui


regarde. Celui qui regarde en Amérique est toujours inférieur, jusqu’à ce
qu’un autre se mette à le regarder à son tour. Et c’est un regard furtif, rapide
(pas plus de quinze minutes, ne c’est pas Warhol !), car il y a toujours quelque
chose d’autre à sentir en Amérique. Le nouveau parfum (LAFERRIÈRE, 1993,
p.18).

151
No romance o sucesso é diretamente associado ao olhar, ser olhado é como vencer uma

guerra, obrigar o “inimigo” a se render. A busca do sucesso instantâneo é, todavia,

objeto de diversas ironias.

T’arrives quelque part et immédiatement tous les regards se tournent vers toi.
Tu t’assois pour manger dans un restaurant et tu t’aperçois, un moment après,
que les gens mangent au même rythme que toi. Une horrible synchronisation.
Comme s’il n’y avait qu’une personne dans le restaurant. TOI à la puissance
cent. Le succès, frère, c’est quand le ‘moi’ d’un individu devient si fort qu’il
oblige les autres ‘moi’ autour de lui à capituler (LAFERRIÈRE, 1993, p130).

Segundo o psicanalista Antônio Quinet, a sociedade contemporânea pode ser

considerada e denominada “sociedade escópica”, pois privilegia e é comandada pelo

olhar. Trata-se do olhar do espetáculo e da disciplina, que “faz cada um sentir-se

vigiado e vigiar o outro, e também cada um querer publicidade – “seja uma

celebridade!” – e invadir a privacidade do outro, fazer da intimidade exterioridade,

tornar público o privado” (QUINET, 2002, p. 288). O sujeito é, assim, impulsionado

pelo discurso capitalista, que “vende” o sonho de tornar a todos celebridades. Todo

sujeito é mo tivado pela busca da visibilidade, pelo desejo de ser visto, ouvido,

respeitado, aprovado, amado. Entretanto a “sociedade escópica” privilegia o ser-visto,

seja através do famoso “tenha-seu-minuto-de-fama”, seja pelo controle visual, através

de uma permane nte vigilância do outro.

É o olhar, excluído da simbolização efetuada pela cultura sobre a natureza, que


retorna sobre a civilização, trazendo o gozo do espetáculo e o imperativo do
supereu de um empuxo-a-gozar escópico: um comando de dar-a-ver, seja de
mostrar-se inocente, seja de tornar-se visível. De toda forma, na sociedade
escópica, para existir é preciso ser visto pelo Outro... Tende-se daí a uma
paranóia de massa (QUINET, 2002, p. 280).

152
Embora o narrador de Cette grenade experimente o gozo de ser olhado pela primeira

como uma celebridade e viver seus minutos de fama, não quer se deixar totalmente

seduzir por essa cultura do efêmero, da imagem e do exibicionismo.Seu olhar do

escritor, do cronista do cotidiano, no entanto, nunca descansa, está em constante

movimento: “je vais continuer à parcourir l’Amérique et à noter, en toute liberté, ce

que je vois, pas ce qu’on me recommande de voir. Je suis un reporter de

rue” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 99).

Escolho falar aqui mais detalhadamente de Chronique – que narra o ano de

1976, o primeiro do narrador fora do Haiti –, pois neste romance o olhar se apresenta

como forma privilegiada de sobrevivência e de contato com o mundo. O ato de olhar e

de ser olhado, como mostrei, é essencial em toda “autobiografia americana”, mas em

Chronique apresenta-se como a única maneira (acessível e democrática) para um

imigrante pobre, só e recém chegado, de encontro com o Outro. Única saída, pois negar-

se a olhar (o novo) e limitar-se ao familiar o confinaria, necessariamente, ao gueto.

Agudo, perplexo e sem direção definida, esse é o olhar do recentemente exilado, que,

vivenciando as lacunas e estranhezas do desconhecido, precisa comparar para se nomear

e compreender para sobreviver. “Là en Amérique du Nord quand je suis arrivé je me

suis dit, je ne connais personne, je ne connais aucun code, il faut regarder, il faut

analyser, sinon on ne va pas s’en sortir, on ne va pas survivre” (LAFERRIÈRE, 2007A,

p.5 ) afirma o autor. É, sem dúvida, neste primeiro romance do ciclo americano que o

olhar que transita entre “o lá e o aqui” se mostra mais aguçado, revelando o choque da

diferença e, por conseqüência, um certo desamparo.

Ma mère ne dit jamais Montréal. Elle dit toujours là -bas.


– Pourquoi tu dis toujours là -bas, maman ?
– Ah, oui...
– Oui, même dans les lettres.

153
– Parce que c’est là -bas.
– Son nom c’est Montréal.
– Je ne sais pas de quoi tu parles.
– Je vécu vingt ans là...
– Je le sais que tu as vécu vingt ans là -bas.
– Marie achète un calendrier chaque année, juste pour toi, lance
tante Renée. Elle fait une croix sur chaque jour qui passe.
– Je comprends, mais elle peut quand même dire Montréal.
– Tu ne peux pas lui demander ça, dit simplement tante Renée.
Marie garde le silence (LAFERRIÈRE, 1999 A, p.28).

O “là-bas” é, para os que ficam ou ainda não foram, a metáfora do

desconhecido, do obscuro, do incógnito, também podendo representar um amontoado de

clichês ou, no caso da mãe do narrador, a dor da perda, da ausência do filho, do marido,

das irmãs, todos exilados, “là-bas”. Todavia, ao partir em exílio, rumo à diferença

cultural, o olhar do narrador Vieux descobre um “là-bas” repleto de possibilidades,

complexo e, sobretudo, motor de liberdades. Ao narrar, sob diferentes ângulos, o

confronto, a comparação entre “o lá e o aqui” – o sul e o norte, o verão e o inverno, o

imigrante e o autóctone, o Quebec e o Haiti, etc. – Laferrière insiste na importância do

olhar no reconhecimento da alteridade.

Chronique é composto de 366, tempo exato de dias de um ano bissexto – ano

estranho e incomum. Trata-se de pequenas prosas que descrevem as impressões e

vivências do jovem narrador, aos 23 anos, pelas ruas da cidade. Oscilando entre a

observação do presente e fragmentadas lembranças do passado (indispensáveis em sua

busca de equilíbrio), Vieux narra sentimentos contraditórios – a sensação de perda das

raízes e o prazer das novas descobertas, a pobreza e a ambição, a solidão e a liberdade

etc.. O romance, embora tenha sido escrito por volta da mesma época de Comment faire

l’amour, tem um tom menos irônico e mais ingênuo, como se o mesmo tema tivesse

sido desenvolvido por dois escritores diferentes. O Vieux de Chonique se mostra

154
desnudo de máscaras, revela suas dores, fraquezas, desamparos e se permite falar

abertamente das origens e das razões que motivaram o exílio.

J’ai quitté Port-au-Prince parce qu’un


de mes amis a été trouvé sur une plage la tête
dans un sac et qu’ un autre croupit à Fort Dimanche.
Nous sommes tous les trois de la même fournée : 1953.
Bilan : un mort, un en prison et le dernier en fuite
(LAFERRIÈRE, 1994, p.55).

É através do olhar que a relação com o Outro, no caso, a desconhecida Montreal

e seus habitantes, se estabelece no romance. É por seu intermédio que o narrador busca

o (re) conhecimento de suas diferentes representações e práticas culturais. Vieux se

apresenta como um espectador incansável. Em um primeiro momento, é, especialmente,

o reconhecimento do espaço que lhe interessa –

Je marche, je marche,
je marche, je marche,
je marche toute la nuit
dans la nouvelle ville.
Je ne connais pas encore
les quartiers qu’il ne faut pas fréquenter
ni les filles qu’il ne faut pas respecter.
Je suis un innocent (LAFERRIÈRE, 1994, p. 18).

– seu olhar é capturado por imagens rápidas, cotidianas e urbanas. O narrador percorre a

misteriosa Montreal em uma tentativa de encontrar lugares, amantes, vínculos, abrigos,

ou melhor, sentidos, que preencham faltas e ausência. Olhar e andar, e, por

conseqüência, fazer a experiência do Outro, se mostra uma estratégia fundamental para

marcar a alteridade do personagem. Há no romance inúmeras referências que mostram a

155
importância da experiência visual para o narrador – linguagem de um homem ainda sem

voz.

Quand je m’ennuie,
J’achète un ticket
et je passe la journée
dans le métro
à lire les visages(LAFERRIÈRE, 1994, p.38).

Je suis assis
sur un banc
dans le petit parc fleuri
du quartier italien.
Je regarde passer
Les filles.
Mon seul luxe (LAFERRIÈRE, 1994, p.40).

Ces gens ont l’habitude en été


De laisser leur fenêtre ouverte.
Je m’assois tranquillement
Dans l’escalier
Et je passe la soirée à les
Regarder vivre (LAFERRIÈRE, 1994, p.56).

Neste olhar à deriva, Vieux descobre as hierarquias subjetivas que separam “o lá e o

aqui” e apenas intui semelhanças e diferenças:

D’une certaine façon, ce pays


ressemble au mien.
Il y a des gens, des arbres,
un ciel, de la musique, des filles,
de l’alcool, mais quelque part,
j’ai le sentiment que c’est totalement
différent sur des points très précis :
l’amour, la mort, la maladie, la colère,
la joie, le rêve ou la jouissance.

156
Mais tout ça n’est qu’une intuition (LAFERRIÈRE, 1994, p.14).

Mas em pouco tempo, é capaz de relatar, sem hesitar, uma série de impressões causadas

pelo choque da diferença. Estas emergem em diversas circunstâncias: Com relação à

distribuição no espaço:

La différence entre Port-au-Prince et Montréal


est l’espace. À Port-au-Prince, quand
une filles rencontre un gars, le problème c’est
de trouver un endroit pour être à l’abri du
million de paires d’yeux qui ne vous lâchent
pas une seconde. A Montréal, les deux partenaires
ont chacun leur propre clé (LAFERRIÈRE, 1994, p.29).

Com relação ao clima:

Ma première tempête de neige


à vingt-trois ans.
C’est plus impressionnant
que la mer,
mais moins émouvant (LAFERRIÈRE, 1994, p.97).

Com relação ao feminismo (no início dos anos 70 mais difundido entre os grupos mais

intelectualizados ou de classe social favorecida), que é visto pelo narrador de maneira

ainda ingênua, típica de um recém chegado de uma sociedade bastante dura com as

mulheres:

J'ai rencontré le féminisme sur la rue Saint-Denis vers cinq heures de l'après-
midi. Il avait pris l'apparence de cette toute jeune fille au visage lisse et doux,
qui m'expliquait calmement qu'elle ne se rasera jamais les jambes pour plaire
à un homme (LAFERRIÈRE, 1994, p.47).

E finalmente com relação a sua própria diferença:

Je le savais déjà
pour l’avoir lu
pour l’avoir vu au cinéma.

157
Mais c’est différent dans
la vraie vie.
Je suis noir
et tous les autres sont blancs.
Le choc ! (LAFERRIÈRE, 1994, p.14).

Vieux constata, muito rapidamente, que o que, em seu país de origem, era natural, a

ponto de não ser lembrado, sua origem e sua cor, transformara-o, instantaneamente, em

“minoria visível”. Mas, muito além da simples constatação da diferença, o olhar do

narrador capta o preconceito. A despeito da política de imigração, que encorajava o

multiculturalimo, e da “discriminação positiva” que procurava inserir no mercado e na

sociedade as tais “minorias visíveis”, o narrador percebe a “discriminação negativa”:

racismo, exploração e medo da invasão imigrante. Nesse sentido, Vieux é alvo de

olhares que ora revelam a indiferença, pois é olhado, mas desconsiderado –

Je me retourne
des gens que je n’avais jamais
vus auparavant me regardent
comme si j’étais un mur lisse (LAFERRIÈRE, 1994, p.24) .

– ora revelam a diferença, pois é excluído e “coisificado”.

Une petite affiche rouge


plantée sur le gazon.
C’est écrit : ‘Chambre à louer’
Je sonne.
La porte s’ouvre
et se referme derrière moi (LAFERRIÈRE, 1994, p.43).

O racismo se mostra obscuro para quem nunca havia saído de seu país natal, assim,

perplexo diante do incompreensível, a interrogação fica no ar:

Est-ce un incident?
Un acte de racisme primaire?
Quelque chose qu’il faut que j’oublie?

158
Ou quelque chose que je ne dois jamais oublier ?
(LAFERRIÈRE, 1994, p.49).

O olhar do Outro, que fabricada a suposta essência negra, revela-se, contudo, difícil de

ignorar – “eu sinto, eu vejo nos olhares dos brancos que não é um novo homem que

entra, mas um novo TIPO de homem, um novo GÊNERO. Um negro, ora!” (FANON,

1952, p.96) afirma Fanon em Peau noire, masques blancs, onde reflete sobre a

“coisificação” do homem negro. O jovem negro, à deriva pelo espaço americano, se vê,

assim, capturado pela típica dialética do exilado: olhar (único prazer verdadeiramente

democrático) e ser olhado (realidade inevitável), ora como ausência, ora como

negatividade.

O olhar aparece pela primeira vez como tema filosófico, válido em si, na obra de

Sartre, na teoria existencialista, onde é compreendido como o mais importante

instrumento de descoberta e experiência no mundo. Para o filósofo, “o grande tema do

olhar se liga à problemática da coisificação, em converter o visível (sujeito visível) em

objeto” (JAMESON, 2005, p.129). A política de descolonização psicológica proposta

por Fanon se inspira justamente nestas reflexões. O existencialismo de Sartre se opõe às

filosofias ditas “essencialistas”, ou seja, contrapõe existência (conhecimento sensível) e

essência (conhecimento intelectual). São os sentidos que, segundo ele, põem os seres

em contato; já a inteligência apreende idéias, o que significa dizer, possibilidades,

interpretações do ser e da realidade, inexistentes em si mesmas. Neste caso, a existência

precede a essência. O homem é completamente livre para produzir sua “essência”, e

responsável por suas ações e valores, logo, definir-se, auto-representar-se, só é possível

após a descoberta e a experiência no mundo. Mas, esta inevitável liberdade do homem

será sempre confrontada ao olhar do outro, que tende a vê- lo como se sua natureza fosse

permanente e, assim, o objetiva, reduzindo-o a uma coisa. O olhar, de fora, conscientiza

o “eu” de sua existência e atos, pois ao ser visto, no mesmo plano das coisas, se

159
descobre – “sou visto, logo existo”. É impossível escapar totalmente do julgamento do

outro, eis o ciclo infernal proposto por Sartre 26 .Este jogo de olhares é de mão dupla,

pois, ao mesmo tempo em que o olhar de um estranho pode transformar o ‘eu’ em

objeto inferiorizado, este ‘eu’ inferiorizado não poupará seu carrasco (de um olhar

inquisidor). A experiência do olhar proposta por Laferrière, nos romances do ciclo

americano, reatualiza essa idéia, fazendo do olhar parte indispensável de um processo

que produz um saber sobre si e sobre o Outro, sobre o negro e o branco, sobre o

estrangeiro e o autóctone, sobre o lá e o aqui.

À medida que o tempo passa em terra estrangeira, o narrador conclui que é

preciso tentar se proteger deste “jogo” arriscado, onde o “inferno é o outro”. Para isso

percebe que é preciso escapar do discurso de vitimização, pois, segundo o narrador, as

sociedades judaico-cristãs tendem, curiosamente, a acreditar que a vítima merece sua

sorte.

Ce n’est que vers la fin d’octobre


que j’ai appris cette vieille règle:
ne jamais se plaindre du racisme
si tu ne veux pas être perçu
comme un inférieur (LAFERRIÈRE, 1994, p.91).

Vieux descobre também que, para ser livre, é preciso agir, e, assim, começa a pôr em

prática a representação positiva que tinha de si mesmo: “un écrivain, quelqu'un de libre

qui marche, seul, dans la bonne direction” e fazer da viagem forçada uma oportunidade

de recomeço.

Je constate en souriant que personne


Ne sait où je suis en ce moment.
Je n'ai pas encore d'amis

26
Este drama é metaforicamente vivido pelos personagens da peça Huis Clos de Sartre. Sem espelho eles
só podem se ver através do olhar deturpado do outro.

160
Ni de domicile fixe.
Ma vie est entre mes mains
(LAFERRIÈRE, 1994, p. 17).

E das diferenças um motor de liberdades e encantamento. Porque viver “là-bas”

significa ver outras cores, sentir outros cheiros, experimentar outros sabores, ouvir

outras músicas, porque a viagem lhe abre as portas de um mundo “sem fronteiras” e de

um livre-arbítrio nunca antes saboreado. Assim, uma nova concepção do espaço

apresenta-se inesperadamente para o narrador, que passa a se reconhecer menos como

haitiano e mais como membro atuante de nova comunidade sem fronteiras da qual se

sente parte. É neste momento que o narrador elabora sua concepção de americanidade,

já desenvolvida anteriormente, e decide efetivamente, e em diferentes níveis, se

apropriar do espaço onde vive.

Freqüentemente representado em função de suas partidas e chegadas, o

estrangeiro é aquele que precisa fazer escolhas: ficar ou partir? Assimilar ou

transfigurar? Desistir ou lutar? No caso de Vieux, não é diferente, o narrador decide

ficar (neste espaço que descobre como seu) e se reinventar. Essas escolhas são

transformadoras, já que anunciam uma importante mudança de direção e olhar; não

mais completamente à deriva, a vida de Vieux se ancora em um projeto: a escrita.

Je suis allé voir le boss


après le lunch,
sur un coup de tête,
et je lui ai dit
que je quitte à l’instant
pour devenir écrivain
(LAFERRIÈRE, 1994, p. 136).

É a sua posição (social e afetiva) que o narrador decide mudar (embora a nova posição

também seja transitória), tornar-se aquele que narra, não somente o que vê, mas

161
também o que fantasma e cria. Vieux decide ser escritor (do seu destino). Há, nesse

sentido, um descanso do olhar, de surpresa e perplexidade, do estrangeiro.

Je ne peux pas dire


quand exactement cette ville
a cessé d’être pour moi
une ville étrangère.
Peut-être quand j’ai arrêté
de la regarder (LAFERRIÈRE, 1994, p.135).

5.1.2. Um canibalismo simbólico: o sexo na “autobiografia americana”

Os desejos, os fetiches, os fantasmas sexuais, embora sejam abordados de

formas muito diferentes na “autobiografia americana”, são forças vitais em sua

composição. Não é por acaso que Laferrière faz, com seu humor característico, a

seguinte afirmação ao ser perguntado com que instrumentos escreve:

Sur le plan métaphorique, je te répondrai que je n'écris pas avec un stylo ou


avec un ordinateur, mais avec mon sexe. Il y a une scène dans un de mes livres,
L'odeur du café, où de tout jeunes garçons qui se trouvent dans une école un
samedi, dans une petite ville d'Haïti, discutent à propos de ce qu'est l'acte
sexuel. L'un dit à l'autre, en trempant son pénis dans de l'encre violette: «C'est
comme ça à l'intérieur des femmes, c'est liquide et c'est coloré et tu trempes».
Un jour, on m'a dit que j'écrivais beaucoup de livres qui parlent de sexe et que
ma plume, c'était mon pénis, et j'ai trouvé cela joli, bien que j'aie aussi écrit
beaucoup de livres où il ne s'agit pas de sexe. Donc voilà, j'écris au pênis (
LAFERRIÈRE, 1997).

Segundo o autor, o sexo foi muito importante em seus anos de formação, na

adolescência e na juventude, por representar a extraordinária descoberta do desejo.

Somente mais tarde, o autor se reapropria dessa energia transbordante da libido para

162
pensar criticamente as complexas relações de poder que encobrem os encontros e

desejos sexuais.

É, principalmente, nos romances La Chair du maître, Comment faire l’amour,

Cette grenade e Éroshima que o sexo ou o fantasma sexual se apresenta como estratégia

fundamental de encontro com o Outro. Não se trata, aqui, de um olhar romântico, puro

ou inocente da relação sexual, e sim de suas implicações políticas, sociais ou raciais –

“le sexe seul ne m'a jamais intéressé. Il faut qu'il soit mélangé à autre chose. Sexe et

politique. Sexe et race. C'est ma mine d'or ” (LAFERRIÈRE, 2001 B) afirma o autor.

Mais do que desejos carnais, o sexo representa nos quatro romances em questão a

realização do fantasma de se apropriar ou de tornar-se Outro. O desejo absoluto é

antropofágico, incorporar e ser incorporado realiza o fantasma da fusão dos opostos, da

unidade impossível, assim, o sexo torna-se uma forma privilegiada de apresentar o

encontro entre diferenças ou o “confronto racial” no plano simbólico – “ la sexualité est

avant tout affaire de phantasmes et le phantasme accouplant le Nègre avec la Blanche

est l’un de plus explosifs qui soit ”(LAFERRIÈRE, 2002, p.134). O sexo não representa

propriamente uma abertura para o Outro, mas um acerto de contas, o único caminho

possível de aproximação do Outro-interdito.

O sexo revela, por um lado, um desejo de transgressão dos padrões

comportamentais estabelecidos e um anseio de revelar as faces ocultas e imperativas do

desejo; por outro, denuncia velhas formas de submissão e controle. Em Comment faire

l’amour, o que motiva a atração sexual é o desejo fantasmático entre negros e brancos,

em outras palavras, o prazer clandestino proporcionado pelo encontro de dois “mitos”:

o negro extremamente sexual versus a loura idealizada e inacessível, seres irreais,

construções puramente imaginárias.

La blonde représente la -plus-que-blanche. Nègre/Blanche: couple trop


puissant. L’ inférieur avec la femme du supérieur.Couple rare. Plus rare que le

163
diament pur. Les extrémités du spectre. La lumière et les ténèbres.
Complémentarité absolue (LAFERRIÈRE, 1993, p.87).

Comment faire l’amour, Cette Grenade e, em certa medida, Chronique, nos mostram

que o homem ainda tem dúvidas a respeito da verdadeira natureza do negro. “Qu’est-ce

que c’est du nègre?”, indaga-se ironicamente o narrador de Comment faire l’amour,

que coloca prontamente uma segunda pergunta, não menos importante: “qu’est-ce que

c’est du blanc, de la blanche?”.

Eroshima é uma continuação de Comment faire l’amour e faz igualmente uma

crítica profunda aos estereótipos “raciais”. Neste romance o objeto do desejo de Vieux

é, no entanto, a mulher asiática (tão inacessível quanto a branca):

– Avez -vous déjà vu un Nègre avec une Japonaise ?


– Non.
– Moi non plus.
– C’est connu, les Japonaises ne se mêlent même pas avec les Blancs
(LAFERRIÈRE, 1998 A, p.16).

Trata-se de uma união rara e explosiva – “vous imaginez le CHOC. La sexualité

volcanique des brousses contre la sensualité minutieuse de Kyoto. NOIR CONTRE

JAUNE (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.16), “zen contre vaudou” (LAFERRIÈRE, 1998 A,

p.15). O sexo é narrado sob o ângulo dos inúmeros clichês criados em torno do negro e

da asiática – “je ne m’interesse QU’AUX CHICHÉS, et le premier cliché sur le Japon,

c’est l’érotisme” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.137), afirma o narrador, que passa toda a

primeira parte do romance (“Le zoo Kama sutra”) no apartamento de uma japonesa

Hoki – “quoi qu’il arrive je ne bougerai pas du lit. Il n’y a rien de plus neuf que de se

réveiller dans un loft aménagé par une Japonaise” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.13).

Diferente dos outros romances da “autobiografia”, que fazem referência, sobretudo, ao

Quebec, à América do Norte e ao Haiti, lugares que fazem parte da história do autor,

164
Eroshima narra histórias que se passam em diferentes cidades no mundo (Pequim, San

Juan, Berlim, Hiroxima, entre outras) e aborda a cultura japonesa como tema central.

Cultura que o narrador pouco conhece, a não ser pela forte presença asiática em

Montreal. As cidades citadas também não têm uma identidade forte, são mencionadas

de maneira superficial como moldura de histórias que poderiam se passar em qualquer

lugar do mundo.

O espaço explode aqui com muita violência. Ele se torna plural, dilatado,
descentrado, incluindo Montreal, assim como grandes cidades dos Estados-
Unidos, da Europa, das Antilhas, etc. .Estas cidades não têm, no entanto, nem
rosto nem contorno próprio e se parecem com não-lugares híbridos, se
resumindo a camas de hotel, quartos, bares, olhares frios pela janela,
aeroportos (MATHIS-MOSER, 2003, p.106-107).

O narrador, à imagem dessas cidades sem rosto, também se mostra um sujeito sem

vínculos, sem passado, sem memória – “negro novamente, ele adquire apenas

furtivamente as dimensões de um personagem real” (MATHIS-MOSER, 2003, p.108).

Laferrière subverte, assim, em Éroshima, as habituais temáticas literárias haitianas –

“j'étais allé encore plus loin dans ce que les Haïtiens ne font jamais, puisque le

personnage central était une Japonaise” (LAFERRIÈRE, 1999 C).

Cette grenade também retoma o tema do sexo inter-racial, mas com um tom

menos pessoal; não há, por exemplo, narrativas de sexo entre o narrador e suas parceiras

como nos outros três romances. A questão sexual coloca-se no plano coletivo, uma

massa de imigrantes, pronta para repovoar o planeta em uma “guerra” de sexos e raças.

Durante uma conversa com o editor da revista para qual escreverá sua matéria sobre a

América do Norte, o narrador deixa claro que a questão racial é essencial para ele: “ –

De quelle manière ? Me demande le type à l’autre bout du fil. – Du point de vue

sexuel” (LAFERRIÈRE, 1993, p. 15). Para escrever essa matéria o olhar de Vieux

165
volta-se para a América inter-racial, negros, brancos, amarelos e índios, é a idéia da

miscigenação que lhe interessa.

Em La chair du maître, Laferrière trata, sobretudo, do desejo como transgressão

social, como metáfora política. O romance fala das transformações vividas pela

sociedade haitiana nos anos 70, início do governo de Jean-Claude Duvalier, entre elas, a

efervescência sexual.

Le père ne voulait rien entendre du sexe (il avait formé un corps : la police des
mœurs). Pour lui, le sexe était le péché absolu. Le meurtre plutôt encouragé.
Le fils, lui, ouvrait les portes de la maison à la musique étrangère (le jazz, le
rock), à la coiffure afro, au cinéma porno, aux films violents et à la drogue.
C’était mon époque (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.11).

Apesar do romance conter diferentes narradores, todas as cenas se passam na mesma

cidade e giram em torno da sexualidade, sempre à flor da pele, como uma espécie de

obsessão, “plantée comme une épine au cœur de la ville de Port-au-Prince”

(LAFERRIÈRE, 1997). A grande crítica do romance é à sociedade extremamente

desigual e desumana que se formou no Haiti, em função da enorme pobreza e dos anos

de ditadura:

dans une société où les rapports de classe sont si terrifiants, où l'écart entre les
riches et les pauvres est si grand, où l'humiliation, le dédain, le mépris de l'autre
sont si importants, la seule chose qui peut rapprocher celui-ci de celle-là, ou
celle-là de celui-ci, c'est le désir. Et le désir de transgresser (LAFERRIÈRE,
1997).

Segundo o autor, seu objetivo era explicar a sociedade haitiana, sem passar pelos

tradicionais temas folclóricos, tropicais ou exóticos. Por um lado, o romance apresenta

relatos de mulheres e homens que rompem com seu meio social ou com padrões pré-

estabelecidos para seguir o imperativo do desejo – há narrativas de mulheres que

abandonam suas famílias, país, trabalho, para viver uma paixão no Haiti. Como a história

166
da inglesa Becky que deixa o marido (John), os filhos, Londres, para viver em Porto

Príncipe com um camponês (que acaba de conhecer) e realizar suas fantasias.

Becky pense que tout la sépare de John et que tout la relie à cet homme dont
elle ignore même le nom. [...] Peut-être aussi que les noms des gens ne veulent
rien dire. La nature est aveugle, sourde et muette. Alors pourquoi m’avoir
créée à Londres avec des cheveux blonds, des yeux verts, quand je ne suis, en
réalité, q’une paysanne du sud d’Haïti? La nature ne répond pas à cette
question non plus (LAFERRIÈRE, 2000 C, p.121-122).

Há narrativas de relações sexuais homossexuais, tanto entre mulheres quanto entre

homens, algo extremamente incomum na literatura haitiana – “Oui, c'est un truc

homossexuel. C'est peut-être une première fois dans la littérature haïtienne. [...] J'ai

essayé de mettre beaucoup de choses dans ce livre, d'ouvrir beaucoup de fenêtres

différentes” (LAFERRIÈRE, 1997). Por outro lado, o autor apresenta o sexo como

instrumento de poder e controle (social, político e econômico). É essa mistura subversiva

de desejo, poder, medo e luta pela sobrevivência que faz com que o poderoso e forte

coronel Beauvais e a pequena Josephina, adolescente e filha de camponeses, se tornem

amantes. O sexo tem um poder desestabilizador que faz a aparentemente frágil e

subjugada camponesa dominar o temido e influente coronel. Josephina reverte a situação

a seu favor e transforma a relação, onde, a princípio, era inferiorizada e explorada, em

uma maneira de conseguir o que deseja.

Assim, em uma primeira instância, o encontro (e o desejo) sexual com o Outro

nos romances em questão se dá entre os tipos, estereótipos, supostamente opostos. O

desejo, nestes casos, se mostra, com freqüência, dependente de um elemento parcial,

que se transforma na real fonte de prazer, o fetiche. O fetiche é uma “organização

particular do desejo sexual, ou libido, na qual a satisfação completa só pode ser

alcançada em presença ou uso de determinado objeto” (CHEMAMA, 1995, p.74).

167
Etimologicamente, vem do latim facticius, que significa artificial, fictício e do

português feitiço, que significa poderes mágicos, positivos ou negativos. Em ambos os

casos, há, subentendida, a idéia da ilusão. O significado de fetiche traz, assim, a noção

de ilusão, ou seja, de uma percepção alterada ou fragmentada da realidade ou dos

sentidos. Embora seja um objeto parcial, o fetiche dá a ilusão ao sujeito de que o objeto

desejado é suficiente para representar o outro como um todo. O fetiche também pode se

tornar uma distorção quando se transforma em uma obsessão ou uma fixação por um

determinado objeto. A pele branca, no caso do encontro sexual e fantasmático entre

brancos e negros, é o fetiche por excelência; o desejo, nesse caso, torna-se indissociável

deste elemento externo, para onde é canalizada quase toda a energia libidinal – “désirs

noirs obsédés par le corps blanc pubère. Désirs enragés. Désirs crépitants. Désirs de la

blanche” (LAFERRIÈRE, 1993, p.108), confessa o narrador de Cette Grenade. O negro

fantasma com a “pureza e a beleza” da pela branca, e a branca com “a virilidade e o

mistério” da pele negra. O desejo surge, assim, a partir do que foi historicamente

negado ao homem negro – “mon sexe célèbre ces poils dorés, ce clitoris rose, ce vagin

interdit, ce ventre blanc, ce cou ployé, cette bouche anglo-saxonne. Atteindre ton âme

WASP. Baiser méthaphysique” (LAFERRIÈRE, 2002 A, p.81) afirma o narrador de

Comment faire l’amour. Durante a colonização francesa, as punições aos negros que

tinham relações sexuais com as brancas podiam chegar a crueldades terríveis, como a

castração, mas, por outro lado, o negro que conseguia ter uma mulher branca era

definitivamente mitificado pelos outros negros (FANON, 1952, p.50). Segundo Fanon,

o rito de iniciação da “autêntica virilidade” do negro era dormir com uma branca assim

que chegasse na França. Unir-se à branca realiza o fantasma de tornar-se outro, de

apropriar-se da cultura, da “superioridade” branca – “me amando ela me dá provas de

168
que sou digno de um amor branco. Amam- me como um branco, logo, sou branco”

(FANON, 1952, p.51).

Atraído pelo desejo da carne branca, que foi proibida a nós negros desde o
momento em que os homens brancos reinam sobre o mundo, eu me esforço
obscuramente para vingar em uma européia tudo o que seus ancestrais
submeteram aos meus durante séculos (FANON, 1952, p.58).

Em Eroshima o objeto fetiche do narrador são as características físicas que

definem a asiática, os olhos, o cabelo, o tom da pele, etc.. Hoki é a primeira de muitas

amantes asiáticas do narrador; ele, seu primeiro negro entre, certamente, muitos outros.

Vieux desperta em Hoki o desejo pela pele negra e Hoki em Vieux o desejo pela pele

amarela e, nessa perspectiva, a cor vem antes do indivíduo, o encontro é mais estético

do que afetivo – “désormais, il n’y aura pas de party sans Nègre. C’est essentiel pour

le décor. Sa présence cautionne tous les phantasmes” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.53). O

desejo nasce, justamente, da aparente diferença, da distância cultural – “pouquoi les

Asiatiques m’interéssent-ils autant?” pergunta o narrador, “parce que c’est loin l’Asie”

(LAFERRIÈRE, 1998 A, p.96). Em síntese, há o clássico encontro entre clichês; Vieux,

neste romance, não é nem haitiano, nem imigrante, nem neto de Da ou filho de Marie, é

simplesmente o amante negro de Hoki

-Allô
-Hoki est là?
-Hoki est à New York [...]
-Toi c’est qui ?
-L’amant nègre de Hoki (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.18).

Ambos, o narrador e sua(s) amante(s) asiática(s), se vêem como objeto sexual um do

outro – “les mains de Hoki font de mon corps un bel objet sexuel” (LAFERRIÈRE,

1998 A, p.16), afirma o narrador. Vieux é, assim, facilmente substituído pelo novo

amante negro de Hoki, um rastafari que toca reggae (o clichê da vez). Vieux, por sua

169
vez, não se importa em ser trocado, pois Hoki, ao contrário de seu loft, poderá ser

facilmente substituída (caso o amarelo ainda lhe interesse) na cosmopolita Montreal –

“j’aime bien Hoki, Keiko, Misako, Reiko et les autres, mais ce qu’il me fend vraiment le

coeur, c’est d’être obligé de quitter le futon” (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.58).

Em La chair du maître o fetiche está, como diz o próprio título, em possuir “la

chair du maître ”. Na última parte da obra uma senhora rica de Porto Príncipe conta ao

narrador uma anedota significativa a este respeito. A conversa tem início com a

surpresa do narrador ao ver uma foto antiga – “un negre à côté d’une jeune fille

blanche” (LAFERRIÈRE, 2000 C p. 346) – na casa desta senhora. Trata-se de um

antigo escravo e da filha do senhor, um casal legítimo, raro, mas jamais aceito pela

família dela, contou a senhora. Ela se apaixonou primeiro, ele resistiu a princípio, mas

em pouco tempo se entregou sem reservas ao amor proibido. Neste meio tempo, eclode

a guerra da independência em Santo Domingo e o negro, que era membro do exército

comandado pelo general Dessalines, foi obrigado – após a vitória e a ordem para o

massacre geral dos franceses – a interceder junto ao general pela família de sua amante,

permitindo a sua fuga. Por fim, a velha senhora pergunta ao narrador, entre uma e outra

gargalhada, o que Dessalines disse ao negro no momento em que lhe entregou a jovem,

cuja família tinha acabado de salvar.

- Il lui a dit: “tu aimes bien la chair du maître”

- La chair du maître !

- C’est ainsi qu’il a désigné la jeune fille...Curieux, non ?

- En effet.

- Au fond, conclut-elle après un moment, le désir a toujours été le vrai moteur de


l’histoire.

- Vous voulez dire l’amour...

- Non, insiste-t-elle, le sexe. Le furieux désir de la chair du maître...


(LAFERRIÈRE, 1997, p. 347).

170
Conquistar o Outro-interdito produz muito prazer, mas quanto mais racista e cruel é a

sociedade em questão, mais intenso o gozo da conquista. Vieux em Cette Grenade,

narra o prazer de seduzir a branca esnobe e inacessível – “aux longues jambes, à la

bouche rose et au sourire méprisant” (LAFERRIÈRE, 1993, p.39). Em Comment faire

l’amour Vieux descreve, ironicamente, a garota dos seus sonhos: “ une fille normale

avec un père conservateur et une mère bourgeoise (tous deux racistes), une vrai de vrai

de jeunes filles...” (LAFERRIÈRE, 1985, p.166), em outro momento fala da amante de

um colega negro – “le grand nègre de Harlem baise ainsi à n’en plus finir la fille du

Roi du Rasoir, la plus blanche, la plus insolente, la plus raciste du campus”

(LAFERRIÈRE, 1985, p.19).

O sexo pode, nesse sentido, revelar o lado instintivo do encontro com o Outro,

causando uma explosão, uma catarse, de vio lência e vingança. Em cada romance Vieux

escolhe seu “inimigo” e inicia a sua “guerra” sexual. Em Comment faire l’amour, o

narrador afirma que “la haine dans l’acte sexuel est plus efficace que l’amour”

(LAFERRIÈRE, 2002 p.19). O ódio misturado ao desejo é conveniente em sua guerra,

pela conquista da branca – “je me lave le visage, vigoureusement. Les dents blanches,

l’œil féroce. Sexy. Prêt pour la guerre de sexes. Je sors” (LAFERRIÈRE, 2002, p.136).

Em La chair du maître o sexo também está freqüentemente atrelado ao ódio – “ tu ne vas

pas me dire, chéri, que tu ne savais pas que la haine est la chose la plus excitante qui

soit ... ” (LAFERRIÈRE, 2000 C p. 108) diz umas das personagens do romance. Esse

ódio é uma conseqüência das inúmeras desigualdades experimentadas pelos personagens

e que, por sua vez, transformam o sexo em um negócio. Trata-se de guerra pela

sobrevivência.

On est en présence d'un petit groupe de gens très riches qui peut tout acheter, ou
qui pense pouvoir tout acheter, et les êtres et les choses, et on a ceux qui sont

171
prêts à vendre la seule chose qu'ils ont, c'est-à-dire leur jeunesse et leur corps
(LAFERRIÈRE, 1997).

Esta idéia também está muito presente em Le goût des jeunes filles, onde as personagens

centrais, adolescentes haitianas de classe baixa se prostituem (embora esta palavra não

seja dita), ora por necessidades (e desejos) de consumo, ora por vingança, ora pelo prazer

de se sentirem desejadas, ora para suprir as necessidades de base.

Étrange désir d'ailleurs. Les filles ne parlent que de sexe mais le désir
pourrait être la métaphore d'autres choses, informulées, comme la liberté
ou la vie, impossibles dans la dictature de Duvalier. Pourtant, rien ne
parvient à emprisonner complètement ces jeunes lianes, la danse de leurs
jeunes avidités forme des figures si vives que la terreur est oubliée au
profit de la transe (LAFERRIÈRE, 1997).

Esse universo de exploração e violência sexual descrito (por vezes sob a simples

aparência de jogos eróticos) em La chair du maître e Le goût des jeunes filles, mascara o

enorme descontentamento coletivo com a situação político-econômica do país. Essa

insatisfação popular culminará na mais importante manifestação popular do país: a

revolta contra Jean-Claude Duvalier – “parce que cette société ne pouvait plus vivre dans

cet univers presque artificiel du sexe où l'on peut perdre son identité

même”(LAFERRIÈRE, 1997). O sexo como metáfora da guerra carrega, inevitavelmente,

ódios antigos (herdeiros da empreitada colonial) e ainda a possibilidade de uma nova

gênese, que transgrida interditos históricos. Trata-se de um combate (de classes) contra as

injustiças políticas e sociais e herdeiras da brutalidade colonial.

C'est la lutte des classes qui est reflétée dans toutes ces histoires un peu
insouciantes de gourmandise sexuelle, une lutte terrible liée à l'Histoire. Car il
y a des antécédents à tout cela; les individus en présence sont des ennemis
héréditaires et, dans ce sens-là, ce n'est pas quelque chose qui aurait pu se
produire à Montréal. Ce n'est pas une jeune fille de l'Université du Québec qui

172
rencontre un jeune Haïtien fraîchement arrivé et entretient avec lui une
relation amoureuse. Ce ne sont pas deux jeunes gens de Rimouski
(LAFERRIÈRE, 1997).

Essa guerra dos sexos é marcada por uma flutuação de vida e morte, construção

e destruição, prazer e dor, desejo e rancor, violência e paz. Laferrière resgata duas

figuras da mitologia grega para falar desta ambivalência: Eros, o deus grego do amor, e

Tânatos, a personificação da morte. Eros representa o amor erótico, a atração, a

comunhão e Tânatos, a retração, a descomunhão, a destruição e a busca da morte. O

sexo vem unir estes dois lados, inerentes ao humano.

Il y a Éros et Thanatos, les deux grands mythes de la littérature occidentale.


Dans ce livre, le sexe mène, à tout le moins, à la folie, parce que ce n'est pas
une sexualité innocente, on n'y retrouve pas l'idée du plaisir tout simple de
deux corps qui s'aiment. C'est un règlement de comptes, une guerre et, dans les
guerres, on trouve la mort (LAFERRIÈRE, 1997).

Em Eroshima, o próprio título faz referência à guerra, à violência da bomba

atômica – metáfora da explosão sexual, do desejo, mas também da morte e da destruição

– que destruiu Hiroshima durante a segunda guerra mundial e cuja radioatividade,

contaminou pessoas, rios e plantações: “Hoki s’est amenée avec um grand bol de

concombre farci au gingembre. Je pensais encore aux Japonais en train de manger du

poisson empoisonné. Quel rapport avec Hiroshima ? ”(LAFERRIÈRE, 1993, p.32). O

fantasma de Hiroshima está presente em diversos momentos, no título, em comentários

e pensamentos do narrador e das japonesas, no texto de um fotógrafo japonês, em uma

entrevista sobre a bomba, em livros. No final do livro o narrador explica onde tudo

começou.

C’est incroyable l’idée d’écrire ce livre m’est venue un jour, brusquement. Une
image. Voilà : un jeune couple en train de faire l’amour dans la ville
d’Hiroshima, le matin de l’explo sion atomique, en 1945. Et la bombe au

173
moment même où ils parviennent à l’orgasme. Éros et Hiroshima. ÉROSHIMA.
Le sexe et la mort. Les deux plus vieux mythes du monde (LAFERRIÈRE, 1998
A, p.140).

O narrador faz referência durante todo o romance “à bomba”, que pode explodir a

qualquer momento, ora se referindo à morte, ora ao sexo, ora ao desejo.

J’ai découvert LA BOMBE en même temps que le sexe. J’avais tout de suite
compris que les deux généraient la MORT [...]. J'ai découvert le Sexe (ou le
Désir) à sept ans sous les traits de Rita Hayworth. Ah! qu'elle était jolie, la
Mort! Je n'ai pas arrêté depuis et il m'a fallu vingt-cinq ans (et la mort de Rita)
pour comprendre que c'était une bombe à retardement. Tu peux te cacher
n'importe où sur cette satanée planète, il y aura toujours (comme le feu au cul)
la menace de la Bombe. Et pour attendre cette saloperie de Bombe, rien de
moins que le Sexe (LAFERRIÈRE, 1998 A, p.91).

Como metáfora do sexo, a bomba tem um poder de gerar vida e morte, é a vitalidade

do desejo, explosivo e incendiário – “l’incendie a duré soixante-douze heures”

(LAFERRIÈRE, 1993, p.17). Como metáfora da guerra, “a bomba” pode ser entendida

como uma resposta, uma reação (ou simplesmente uma ameaça?) por parte do

subalterno, das vítimas da violência, seja ele o japonês, o negro ou o imigrante. Este

ressentimento volta-se, freqüentemente, contra os Estados-Unidos, apesar de as

japonesas, com as quais o narrador mais se relaciona terem nascido na América do

Norte e possuirem as duas referências culturais. Isto cria uma forte ambigüidade

identitária e afetiva – “Hoki est très asiatique au fond. Nord-américaine à l’extérieur.

Japonaise à l’intérieur. Entre les deux vies, il y a un secret. Je crois que Hoki n’a pas

pardonné à ses parents d’avoir choisi l’Amérique après ce qui s’est passé là-

bas” (LAFERRIÈRE, 1993, p.18). Esses sentimentos contraditórios produzem reações

diferentes em cada uma das jovens – “autant Hoki veut oublier ce qui s’est passé là-

bas, autant Kero voue un culte à la mémoire. Tout ce qui est japonais est sacré. Elle

174
veut faire prendre conscience à chaque Américain de la bêtise

d’Hiroshima” (LAFERRIÈRE, 1993, p.67).

Em Cette grenade homens de várias partes do mundo, não somente negros, mas,

nas palavras do narrador, toda a “fauna” imigrante, todos os excluídos, todos os

“damnés de la terre”, chegam em massa à “terra prometida” (os Estados-Unidos),

“simplement parce qu’on lui avait dit qu’en Amérique la baise est gratuite et

multiple”(LAFERRIÈRE, 1993, p.39). Segundo o narrador, chegou a hora de cobrar

anos de propaganda enganosa:

La dette de l’Amérique envers les jeunes gens du tiers-monde est immense. Et


là, je ne parle pas de la dette historique (l’esclavage, le pillage des ressources
humaines, l’endettement, etc.), je parle de la dette sexuelle. Tout ce qu’on nous
a promis par les revues, les posters, le cinéma, la télé... (LAFERRIÈRE, 1993,
p.39).

Assim, o romance também anuncia uma guerra de sexos, prestes a eclodir. No capítulo

intitulado “Amérique, nous voilà!”, o narrador descreve, como uma ameaça, uma fila de

homens prontos para a guerra de sexos e de raças.

Aujourd’hui, vous avez devant vous la longue file des hommes (chez nous
l’aventure est aux hommes) aux pénis arqués, à l’appétit insatiable, prêts pour
la guerre des sexes et des races. Nous irons jusqu’au bout, América
(LAFERRIÈRE, 1993, p.40).

Nesta guerra não declarada “entre o máximo de cores e odores”, o sexo inter-racial

revela-se uma arma muito potente para atingir o branco, procriando, possuindo,

devorando a branca. “Le maximum de couleurs. [...] odeurs cosmopolites. Désirs

lourds. Le cannibalisme est la forme absolue de la tendresse. L’amour au premier

degré. Je te mangerai ” (LAFERRIÈRE, 2005, p.50).

O canibalismo, também uma arma de guerra, é um símbolo privilegiado pelo

escritor para expressar esta explosão libidinal, esse violento desejo de devorar o Outro.

175
Em Comment faire l’amour, Vieux afirma praticar a “baise cannibale” com sua amante

branca. Segundo ele, “c’est n’est plus l’une de ces baises innocentes, naïves,

végétariennes, dont elle a l’habitude. C’est une baise carnivore” (LAFERRIÈRE, 1985,

p.41). Através desta imagem, que explora em diversos momentos da “autobiografia”,

Laferrière critica a ambivalente representação do negro, ora visto como primitivo,

canibal, sexualizado e ameaçador – os negros tinham a fama de fazer “sexo em todos os

lugares e a todo o momento”, de ser como “genitais ambulantes” e ter tantos filhos que

poderiam “inundar a terra de pequenos mestiços” (FANON, 1952, p.128) –, ora visto

como ingênuo e desprotegido. E a ambivalência é, como mostrei, uma das mais

importantes estratégias usadas para alimentar os estereótipos coloniais:

O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e


digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade
desenfreada e, todavia, o inocente como uma criança, ele é místico, primitivo,
simplório e, todavia, o mais escolado dos mentirosos e manipulador das forças
sociais (BHABHA, 1998, p.125).

O narrador de Comment faire l’amour usa e abusa, com muita ironia, desta imagem do

negro-canibal, como neste exemplo, onde imagina um artigo de jornal que diria:

TOUTE LA VILLE EN PARLE


– Vous avez vu ça! L’étudiante de McGill mangée par deux Nègres?
– Comment sait-on ça?
– C’est la police qui a découvert un bras dans le réfrigérateur.
– Oh, mon Dieu! C’est la nouvelle politique de l’immigration, hein!
Importer des cannibales.
– Ils n’ont pas violé pendant qu’on y est?
– On ne peut pas savoir madame, ils l’ont mangé (LAFERRIÈRE,
2002 A, p. 43).
Vieux também descreve, em tom sarcástico, a assimilação passiva dos estereótipos

raciais por parte de suas amantes brancas.

176
Ça la touche de me voir manger. Elle est incroyable, Miz Littérature. Elle a été
dressée à croire à tout ce qu’on lui dit. C’est sa culture. Je peux lui raconter
n’importe quel bonimen, elle secoue la tête avec des yeux émus. Elle est
touchée. Je peux lui dire que je mange de la chair humaine, quelque part dans
mon code génétique se trouve inscrit ce désir de manger de la chair blanche,
que mes nuits sont hantées par ses seins, ses hanches, ses cuisses, vraiment, je
le jure, je peux lui dire ça et elle comprendra. D’abord, elle me croira
(LAFERRIÈRE, 2002, p. 30-31).

Nesse caso, a ironia está no fato de a branca ser a mais ingênua. Ter um caso com um

Negro é suspense garantido, afirma Vieux, pois com eles nunca se sabe, “si on la

mangeait, là, d’un coup, mian, mian....”(LAFERRIÈRE, 1985, p. 44). Os fantasmas de

canibalismo sexual também funcionam como vingança simbólica: ao devorar o Outro e

sua suposta superioridade, transfigura a auto- imagem negativa do “eu”.Nesse sentido,

todos os romances estudados aqui estabelecem essa deglutição simbólica do outro.

A escolha da metáfora do canibal como o agente da transformação social e

cultural é de extrema importância. Parte-se de imagens que tanto chocaram os europeus

em seus contatos com os canibais na América ou na África, e que se tornaram fonte

inesgotável de representação tanto do homem americano, quanto do negro,

historicamente associado à ferocidade, à barbárie e selvageria. No entanto, tal

representação é metamorfoseada em signo produtor de uma diferença positiva, dando voz

ao excluído, ao periférico, aos silenciados, aos calibans e animalizados. Em outras

palavras, ao devorar o Outro e sua cultura, o canibal transforma o que foi devorado em

algo novo, do qual se apropria e se orgulha. Neste aspecto, a ironia de Laferrière em

torno do canibalismo, aproxima-se da escolha de Oswald de Andrade ao criar o conceito

de Antropofagia. Diferente do canibal real que, com freqüência, comia o inimigo morto

para absorver suas qualidades, o canibal simbólico, reatualizado por Oswald e Laferrière,

devora (metaforicamente) o bom e o ruim, as qualidades e os defeitos, a fim de produzir

177
algo novo que tornará mais forte aquele que devora. No editorial do primeiro número da

Revista de Antropofagia, “Abre-Alas”, Antônio de Alcântara Machado explica que o

antropófago devora um pouco de tudo que compõe sua história:

O indianismo é para nós um prato de muita substância. Como “qualquer” outra


escola ou movimento de ontem, de hoje e de amanhã. “Daqui e de fora”. O
antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo
os dedos. Pronto para engolir os irmãos (1928).

“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE,

1978, p.13), afirma Oswald no manifesto antropofágico. O narrador de Comment faire

l’amour – em um capítulo intitulado “Le cannibalisme à visage humain” – afirma algo

similar, com relação à sua conquista da América e a seu desejo de se apropriar do que,

a princípio, não lhe pertence.

C’EST SIMPLE, JE VEUX L’AMÉRIQUE. Pas moins. Avec toutes les girls de
Radio City, ses buldings, ses voitures, son énorme gaspillage et même sa
burocratie. Je veux tout : le bon et le mauvais, ce qu’il faut jeter et ce qu’il faut
conserve , ce qui est laid et ce qui est beau (LAFERRIÈRE, 2002, p.31),

escreve Laferrière que, assim como Oswald, volta-se para a diferença do outro para falar

de si. Oswald, em busca de uma nova identidade nacional, propôs a antropofagia como

um gesto relacional, que conciliasse diversidades, aparentemente inconciliáveis. Seria

preciso que o brasileiro devorasse suas múltiplas referências culturais – elementos da

cultura pré-cabralina, indígena, colonial – a fim de reescrever o roteiro (a ficção)

historiográfico criado pelo colonizador ocidental. Laferrière, nos romances estudados,

também devora de tudo um pouco, tanto os estereótipos de inferioridade, ingenuidade,

primitivismo sexual, herdeiros da história colonial, quanto a diversidade cultural e

literária, que tanto o fascina e enriquece. Através desta deglutição simbólica, transforma

o que normalmente é mascarado, motivo de humilhação e vergonha, em algo risível e

positivo, que contribui para a individuação e elaboração identitária do personagem-

178
narrador. Laferrière, como Oswald, escolhe o humor, mais particularmente a ironia,

como estratégia crítica, como tempero fundamental para o antropófago. Segundo

Oswald, através do humor é possível ir fundo no desejo, ser autocrítico e esculhambar

tudo e todos sem ser trágico. Através do humor, tanto os discursos de vitimização do

“bom selvagem” quanto o de culpabilização do “mau colonizador” são superados, em

nome de uma alquimia da alteridade. Laferrière, além de reforçar a idéia de que a raça é

uma categoria discursiva e não biológica, desinveste o Outro – o branco ocidental, que

representaria o colonizador, o poder, o ideal do ego do negro e o objeto de suas principais

identificações (ambivalentes) – do papel de grande culpado ou de grande salvador, de

desgraça ou de única saída para o negro.

Para concluir, diria que o canibalismo simbólico proposto aqui recria o devorador

no devorado. Trata-se de uma passagem, de um movimento transgressivo que transporta

o “eu” em direção ao Outro, e que transforma a ambos. Segundo Oswald, “pode-se

chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si, de constatar-

se em si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro” (ANDRADE,1990, p.157). No

canibalismo metafórico de Laferrière, o narrador “devora” o mundo através do sexo, da

leitura, do olhar, para posteriormente recriar-se (e recriá- lo) através da escrita. A

verdadeira guerra a que se propõe Laferrière é uma guerra simbólica do desejo

(antropofágico) de inclusão, de desconstrução dos estereótipos; uma guerra includente e

crítica de toda diversidade. Nesse sentido, Laferrière fala do direito à diferença e, por

conseguinte, do direito ao reconhecimento da diferença do Outro, seja criticando-a,

admirando-a ou, simples e vorazmente, devorando-a.

179
6. CONCLUSÃO: A literatura – uma viagem inesgotável e sem fronteiras

Par mes routes trépassées…


Bonne route pèlerin…
Aux exploits du poète las
Mon vitrail disloqué
Aux rails de la mélodie
(Saint-Aude)

Após o término da “autobiografia americana” Laferrière escreve Je suis fatigué

para anunciar seu cansaço e pedir a seus leitores que cessem de considerá-lo um escritor

em atividade. Todavia, para falar do fim, o autor procura descobrir onde, ou melhor,

“comment tout a commencé?” (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.95). Je suis fatigué coloca

duas questões primordiais para Laferrière e para todo escritor: por que escrever? E por

que parar de escrever? A fim de respondê- las Laferrière volta às origens (do desejo pela

escrita) e faz um balanço que entrelaça vida e obra. O autor revisita temas essenciais

para a elaboração de sua “autobiografia”: a escrita, a leitura, a dor e o prazer da viagem,

o sexo, as memórias da infância, a luta pela diversidade, a desconstrução dos

estereótipos raciais e nacionais, entre outros. Por essas razões, quis terminar a tese

falando desta obra, tão simples quanto paradoxal, que, apesar de proclamar o fim tem o

início como tema fundamental, apesar de mencionar o esgotamento temático revela um

acúmulo de olhares e vivências, apesar de desejar concluir deixa em aberto, apesar de

ultrapassar seus limites e transgredir a si mesma retorna às origens, renovada. Je suis

fatigué, assim como esta tese, marca o fim de uma etapa e anuncia um re-começo que é

outro e, também, o mesmo. Como o simbólico título da peça de Alfred Musset, citada

inúmeras vezes em Le cri des oiseaux fous, que narra o último dia no Haiti – Il faut

qu'une porte soit ouverte ou fermée –, a literatura de Laferrière celebra o deslocamento,

a transgressão, a pluralidade e estará sempre e, necessariamente, abrindo e fechando

portas. Faço, igualmente, referência nesta conclusão às novas edições revisadas e

180
aumentadas de Cette grenade (2002), Le goût des jeunes filles (2004) e Je suis fatigué

(2005), onde o autor pratica outra atividade que lhe confere grande prazer: redescobrir e

reecrever a própria obra.

A fim de fazer uma reflexão sobre sua história como escritor, o narrador de Je

suis fatigué retorna onde tudo começou, a praça Saint-Louis, lugar onde, vinte anos

antes, tomou a decisão mais importante de sua vida: começar a escrever.

Je suis assis, au square Saint-Louis, comme il y a vingt ans quand j’ai pris la
décision de commencer mon premier roman. C’est un minuscule parc entouré
de grands arbres feuillus, avec un jet d’eau au milieu, tout cela en plein cœur
de Montréal (LAFERRIÈRE, 2001 A p.13).

É sentado neste banco do jardim Saint-Louis que começa e termina a sua narrativa,

espaço de tempo durante o qual é “invadido” por pessoas, lembranças e reflexões. Vinte

anos antes ele se sentava na mesma praça para observar, sem ser notado; agora, um

escritor reconhecido e foco de atenções, é, repetidamente, abordado por antigos amigos,

conhecidos, leitores e até mesmo por seu editor, que insiste na publicação de um último

livro. A escrita e seu processo criativo estão no centro dos diálogos e das divagações

solitárias do narrador, que reflete sobre os aspectos que foram decisivos na construção

de sua trajetória literária e que estão na raiz de seu imperioso desejo de escrever – os

livros que leu, as cidades por onde passou, os (re)encontros que fez, as perdas que

viveu, os preconceitos que sofreu, os conselhos que ouviu, as livrarias que freqüentou.

Em síntese, as vivências que fizeram dele um escritor. Um homem, segundo Laferrière,

começa a “escrever” mesmo antes de saber ler, pois escrever é um jeito de olhar e de

“voler”, délirer” e “vivre pleinement”. Neste caso, escrever é algo muito mais profundo

do que o sucesso de vendas ou a consagração como escritor profissional – “après un

certain nombre de livres, les gens vous prennent pour ce que vous ne voudriez jamais

181
être: un professionnel. On ne vous parle plus, on vous écoute. Et ça c’est la pire des

choses qui puissent arriver à un être humain, quel qu’il soit ” (LAFERRIÈRE, 2001 A,

p.127). É do amor pela escrita – que existirá ainda que publicamente interrompa sua

carreira, ainda que esteja cansado, ainda que não venda seus livros ou seja esquecido –

que fala em Je suis fatigué. A primeira edição do livro foi, a exemplo disso, distribuída

gratuitamente a pedido do autor. “Avec ce titre, distribué gratuitement (5000

exemplaires au Québec, 20 000 en France et 5000 en Haïti), j’ai voulu souligner la fin

de mon autobiographie américaine en offrant au lecteur ‘la tournée du barman’

”(LAFERRIÈRE, site TYPO). Com este livro, o autor completa um ciclo e se despede

do jovem narrador de Comment faire l’amour, faminto por sucesso, fama e olhares, que

via na literatura sua única saída, em um duplo sentido, simbolicamente, para reverter a

lógica da exclusão racial e, na prática, para ganhar a vida e sobreviver dignamente –

“l'écriture, sur un plan plus pratique, m'a littéralement sauvé la vie” (LAFFERIÈRE,

2000 A, p.151).

A primeira conhecida a abordar o narrador em seu banco de praça é a

personagem Kero, uma entre as muitas japonesas – Keiko, Reiko, Hoki, Misako, etc. –

com as quais Vieux se relaciona sexualmente no romance Éroshima. Neste reencontro

com o passado o narrador revisita o tema dos clichês raciais, amplamente desenvolvido

na “autobiografia americana”, e faz descobertas inesperadas. Em Éroshima a relação

entre Vieux e Kero é marcada pelo fantasma – “Elle, maso. Moi sado” (LAFERRIÈRE,

1998, p.68 ) – e pelas flagrantes oposições: um é oriental e o outro ocidental, um

amarelo e o outro negro, um quase não fala e o outro é um falante incorrigível, um

cultua as origens e o outro nem sequer as menciona, um é estilista e o outro escritor. Ao

contrário de Vieux, que naquele romance nem ao menos o nome de seu país de origem

revela, Kero se mostra uma ferrenha defensora da história, da memória, das tradições e

182
dos rituais japoneses – “je regarde avec fascination Kero exécuter ces gestes avec la

plus grande précision” (LAFERRIÈRE, 1998, p.72 ), diz o narrador referindo-se à

serenidade, à perfeição e à minúcia com que a japonesa prepara e serve o chá japonês.

A partir daí, uma mescla de estranhamento (Kero lhe parece, por vezes, obscura e

intraduzível) e encantamento toma conta dos personagens, revelando um mútuo fascínio

pela diferença – “j’étais autant fasciné par son silence qu’elle l’était par mon

bavardage” (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.17 ). Mas é, sobretudo, durante o reencontro

dos personagens em Je suis fatigué, que o narrador compreende que Kero, muito mais

do que um clichê, é, assim como ele, um ser complexo e peculiar. A linguagem (do riso)

pela qual se expressava habitualmente Kero, e que parecia para o narrador superficial e

distante, revela-se subitamente rica em nuances.

Le vocabulaire de ce langage semble au préalable très simple, sommaire


même, par contre sa syntaxe se révèle diablement complexe. Qu’est-ce que j’ai
mis du temps à le comprendre! Et je n’ajouterai rien à propos de son sourire.
Là, le mystère est complet. Je parle ainsi mais peut-être que pour elle je suis
encore plus mystérieux qu’elle pour moi. La parole peut cacher beaucoup plus
que le silence (LAFERRIÈRE, 2001 A, p18).

O narrador percebe, assim, que a linguagem e o silêncio do Outro, a princípio

esvaziados de sentido, podem ser eloqüentes e cheios de significados. Na concepção de

Laferrière, o “verdadeiro” encontro com Outro só é possível quando há um forte desejo

de reconhecê- lo em sua alteridade, de acolher sua estranheza e seu lado inapreensível,

em outras palavras, de abrir mão da tentação de aprisioná- lo em uma identidade sólida e

transparente.

Tu sais Kero, je crois de plus en plus que nous faisons le même métier [...]
c’est la même chose, seulement, moi, mon tissu c’est la langue. Le livre étant le
vêtement. Et je te signale que j’utilise une paire de ciseaux afin de donner
forme à mon bouquin. Quand je sens monter en moi une histoire, je vais
toujours me balader, sans trop chercher à savoir où mes pas me conduisent. Et

183
après, exactement comme toi, je laisse passer un long moment afin de
m’assurer que ce n’est pas une toquade, mais une véritable obsession.
J’attends que cela fasse partie de mon être, que cela me devienne aussi
nécessaire que l’oxygène. Ce n’est qu’à ce moment que je commence un liv re.
Tu vois que nous ne sommes pas si différents (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.20).

Kero e Vieux também descobrem, nesse encontro (onde retiram suas máscaras), que

apesar de todas as diferenças e distâncias são intensamente semelhantes, pois partilham

algo essencial: o processo criativo. Laferrière desenvolve, a partir daí, a idéia de que o

desejo e o ímpeto criativo, além de aproximar práticas aparentemente díspares, podem

estar ou brotar de onde menos se espera, de uma caminhada sem direção, de uma

conversa despretensiosa, de um poema que se lia na adolescência, de um reencontro ao

acaso, de uma nota de jornal, de uma tarde na banheira ou daqueles momentos em que

se acredita estar sem saída, na vida ou na arte.

No capítulo “La recette magique”, o narrador volta a esse tema ao relembrar a

inspiradora sabedoria da avó, que plantava e colhia generosidade nas situações mais

adversas. Certo dia, conta o narrador, quando ainda vivia com Da em Petit-Goâve,

mesmo sem ter o que comer, a avó encheu uma panela de água, pôs para ferver e foi

para a varanda, esperando que o acaso ou os amigos viessem em seu auxílio. “Mais

Da”, protestou Vieux Os, “on n’a encore rien mis sur le feu. Il n’y aura rien à manger

tout à l’heure”, mas ela respondeu calmamente “on a déjà fait un pas

important ”(LAFERRIÈRE, 2001 A, p.62). Surpreendentemente, como se saísse de uma

“receita mágica”, a comida apareceu, oferecida por uns e por outros, sem que em

nenhum momento fosse pedida.

Des années plus tard, quand j’ai commencé à écrire, je me suis souvent rappelé
de la recette magique de Da. Il faut jeter les idées et les émotions sur la page
blanche, comme des légumes dans un chaudron d’eau bouillante. Mais d’abord

184
et surtout, on doit commencer à écrire même quand on ne sait pas quoi dire
[...]. Da a eu l’audace de croire au hasard de la vie. Et c’est là la raison d’être
même de l’écrivain. Il y a aussi l’idée que la cuisine est l’art la plus proche du
roman (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.65).

Laferrière retoma, com esta anedota, uma outra idéia fundamental em sua

“autobiografia”: a de que sua vida quotidiana está na origem de sua criação literária, em

outras palavras, que sua vida real está intimamente ligada à sua vida sonhada.

No capítulo “Le vert paradis des lectures enfantines” , o narrador afirma que

“tout a commencé, il y a très longtemps, au temps de la haute enfance. Je ne savais

encore ni lire ni écrire” (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.55), fazendo referência ao fascínio

pelo ato de ler, que o acompanhará durante toda a vida. O narrador faz alusão a um

episódio de sua tenra infância, determinante para a descoberta do intenso prazer que a

leitura pode proporcionar.

Un jour je suis entré (à l’aube, je m’en souviens) dans la chambre de mon


grand-père. Il était assis, en pyjama, devant sa petite table et ne faisait aucun
bruit. Sa tête se penchait légèrement en avant. Son buste restait tombé comme à
l’ordinaire. Le visage fixe. Seuls les yeux bougeaient. Je fus pris de panique, ne
l’ayant jamais vu dans cette position. S’il n´était qu’à quelques centimètres de
moi, j’avais l’impression presque angoissante qu’il ne se trouvait pas dans la
chambre. Son corps était là, mais son esprit vagabondait ailleurs. [...] Je n’ai
su que des années plus tard que mon grand-père s’adonnait, toujours à l’aube,
au plus intime, au plus jouissant des plaisirs solitaires. Cet homme était en train
de lire (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.55-56).

A cena do avô, presente fisicamente, mas viajando mentalmente, impressiona e encanta

o pequeno Vieux Os, que se tornará, mais tarde, um grande adepto das deleitáveis

viagens literárias, prazer solitário, intenso e íntimo, que a descrição de Laferrière

aproxima do prazer sexual – “le sens et la musique des mots le pénétraient si

intensement qu’ils l’avaient entrainé dans ce voyage mystérieux” (LAFERRIÈRE, 2001

185
A, p.56). Esta viagem que começou na pequena infância foi capaz de transportá- lo para

lugares desconhecidos, misteriosos, abrindo- lhe as portas de um mundo real e

imaginário.

A leitura está, decididamente, na origem da mais profunda viagem feita pelo

autor: sua “autobiografia americana”. Uma viagem feita no interior de si mesmo, de

seus fantasmas, memórias e leituras. O autor revela, através de abundantes referências

literárias, a sua paixão (e a do narrador) pela literatura e a importância da leitura para

sua viagem rumo à diversidade. Vieux passa toda a “autobiografia” lendo, esta atividade

é para ele quase tão importante quanto viver. Na edição revisada de Cette Grenade

(2002), o narrador, após receber um cheque destinado a pagar os custos da viage m que

deveria fazer pela América do Norte (a fim de escrever uma reportagem sobre a região)

ao invés de partir prontamente, se dirige a uma livraria e gasta todo o cachê em livros: a

obra poética completa do poeta estadunidense Walt Whitman, alguns romances de

Fiódor Dostoievski e uma narrativa de viagem de V.S. Naipaul. Em seguida, previne os

amigos de que não quer ser incomodado, tranca-se em casa e entra na banheira, seu

refúgio predileto para ler, ou melhor, iniciar sua viagem.

Comme je ne paie pas l’eau chaude, je peux passer des journées entières dans
la baignoire. [...] C’est donc dans la baignoire, sans bouger sauf pour aller me
préparer des spaghettis à la tomate la nuit, que j’ai fait le plus inquiétant
voyage de ma vie (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.39).

Este prazer, embora solitário, propicia a descoberta da pluralidade – de olhares,

subjetividades e emoções –, que lhe permite vivenciar “exílios”, encontrar o próximo e

o distante, o semelhante e o diferente, o “eu” e o Outro. Sem sair de sua banheira

quente, o narrador lê Whitman e o romancista beat Kerouac, que percorreu durante

anos os Estados-Unidos e posteriormente escreveu o reconhecido On the Road. Vieux

186
relê com entusiasmo este romance autoficcional sobre as aventuras de dois jovens

boêmios que atravessam os Estados-Unidos de Nova York a São Francisco –

je viens de relire ce roman et je ne vois pas comment il pourrait être plus fou,
en tout cas le côté cru, en prise directe sur la vie, y est encore totalement
présent [...] Il est aujourd’hui impossible de traverser l’Amérique sans penser
au moins une fois à ce bon vieux Jack (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.100).

O narrador vai, assim, através de diferentes ângulos, sensibilidades, gêneros e estilos

literários, descobrindo e mergulhando no imaginário norte-americano. E percebe que as

representações da América do Norte podem se revelar tão ou mais significativas que os

deslocamentos que ele próprio venha a fazer pelo continente. Assim, a viagem literária

lhe fornece um material (e um prazer) subjetivo que substitui a experiência real – “Je

voyage dans ma tête. Je suis en ce moment dans un autobus qui descend dans le sud des

États-Unis” (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.49). O narrador se entrega ao bálsamo dessa

viagem imaginária que para ele agrega dois prazeres: o da leitura e o da escrita –

“Whitman m’avait mis en appétit. Je retourne à ma vieille machine à écrire pour tenter

d’inventer un nouveau continent ” (LAFERRIÈRE, 2002 B, p.47). Na origem do

doloroso e avassalador desejo de escrever, a leitura se apresenta na “autobiografia

americana” como uma fonte de inesgotáveis estímulos.

- Qu’est-ce que tu fais ?


- Je commence un reportage.
- Comment ça ?Je croyais que, pour faire un reportage,
il fallait être sur place...
- Le voyage a déjà commencé...(LAFERRIÈRE, 2002 B, p.45).

A viagem, ou melhor, o texto começa a ser “escrito” muito antes de ir para o papel,

através das leituras, das fantasias e das sensações do narrador. A interlocutora de

Vieux, sua vizinha Sonia, protesta contra tal prática, afirmando que o narrador deixa de

lado o essencial, a veracidade dos dados, e que, assim, corre o risco de ser desonesto. O

187
narrador responde que mais valiosa que a realidade é a sua representação; unicamente

através da imaginação é possível se colocar no lugar do outro e se reinventar.

Qu’est-ce qui est malhonnête ? Le fait d’écrire qu’on est dans un autobus
quand on n’a pas bougé de sa chambre ? Tu sais le mot autobus est plus vrai à
mes yeux que l’autobus réel. Je te signale que le meilleur reportage jamais fait
sur l’Amérique a été réalisé par un homme qui n’a presque quitté sa maison
(LAFERRIÈRE, 2002 B, p.49).
Esta idéia da viagem literária que se sobrepõe à viagem real é recorrente na

“autobiografia americana”. Em La chair du maître, por exemplo, o narrador fala com

sua mãe sobre um professor incomum no contexto haitiano. Diferente da inconformada

interlocutora Sonia de Cette grenade, é a mãe do narrador que lhe fala sobre a liberdade

e as viagens que a literatura pode proporcionar.

- Par exemple, il ne lit pas les mêmes choses que tout le monde.
[...]
- Maman, presque toutes les personnes de ma connaissance ne lisent que la
poésie haïtienne. Lui, jamais, à part Vilaire. Je ne l’ai jamais surpris non plus
en train d’écouter la musique haïtienne. Il n’écoute même pas les nouvelles à la
radio. Parfois j’ai l’impression qu’il n’est pas d’ici...
- Peut-être ...
- Pourtant, maman, il m’a dit qu’il n’a jamais voyagé.
- On peut aller partout dans sa tête, jette ma mère en soupirant
profondément...(LAFERRIÈRE, 2000 C, p.50-51).

O narrador de Cette grenade, além de passar seus dias entre as sessões de leitura,

os banhos de banheira e a escrita da reportagem, não poderia viver sem um outro

indispensável estimulante, o desejo sexual. Assim, entre um banho e outro, incia um

romance com a vizinha Sonia – “il y a toujours ce moment décisif où ma voisine, celle

qui prend tous les étés des bains de soleil presque nue sur son balcon, s’amène pour

que je l’aide à déboucher cette bouteille de vin rouge” (LAFERRIÈRE, 2002, p.39)

[...], “je ferme les yeux et elle entre toute habillée dans la baignoire” (LAFERRIÈRE,

188
2002 B, p.40). Assim, sua rotina fica completa: ele lê, dorme, sonha (com o que lê),

come, olha (o mundo pela janela), faz sexo, escreve, lê, dorme, faz sexo e assim

sucessivamente. Em Je suis fatigué, no capítulo “Comment je suis devenu écrivain”, o

narrador relembra como surgiu pela primeira vez a idéia de se tornar escritor. Logo que

chegou em Montreal, se sentindo solitário, recebe do proprietário da boate que

freqüentava o seguinte conselho: era preciso encontrar rapidamente uma mulher para

passar o inverno, senão a vida ficaria penosa demais, mas para conquistá- la haveria de

mostrar algum talento! O narrador tem prontamente a grande idéia de se tornar escritor

para, ao menos, garantir os prazeres do sexo nos meses de frio. O conselho deu certo,

pois as mulheres e a inspiração (que germinava destes encontros) nunca faltaram para o

narrador Vieux – “j’écrivais le matin, nu, généralement après avoir fait l’amour. La

fille encore endormie, je tapais comme un dératé sur ma vieille Remington 22 qui a

appartenue à Chester Himes” [...]. “Il y en a qui perdent leur force, moi, le sexe

m’ouvre l’appétit littéraire” (LAFERRIÈRE, 2005, p.40).

Na edição aumentada de Le goût des jeunes filles, a leitura e o desejo sexual

também aparecem como grandes estímulos para uma viagem no tempo e para a escrita

do romance. O narrador inicia a narrativa falando (no presente da enunciação) de sua

vida calma e previsível em Miami, no início dos anos 90, que em suas palavras “est

devenue si simple que ne concerne que moi” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p.31). Até que

três simbólicos episódios – o telefonema de Miki, amiga que não via desde a

adolescência, a leitura de um artigo publicado na Vogue por Pasqualine, outra amiga da

época, sobre o estilo de vida no Haiti no final dos anos 60 e, finalmente, a chegada de

uma correspondência enviada pela mãe do Haiti, um livro do poeta haitiano Magloire

Saint-Aude, que lia na adolescência – rompem a monotonia e trazem à tona lembranças

de um tempo aparentemente “esquecido”. “J’avais même oublié cette époque de ma vie,

189
ou plutôt je l’avais confondue avec le reste” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p 32). As cenas

que se seguem, narradas no capítulo “Ne jamais quitter ma salle de bains”, se

assemelham às cenas de leitura descritas em Cette grenade, pois o narrador entra na

banheira com o livro de Saint-Aude e inicia mais uma viagem, que entrelaça a leitura do

poeta de sua adolescência e as memórias daquela época – “Je retourne à la salle de

bains, m’enfonce doucement dans l’eau tiède qui me protège des morsures du temps et

des malheurs de la vie. J’ouvre le livre de Saint-Aude et je lis les derniers vers du

poète”(LAFERRIÈRE, 2004 A, p 26). Saint-Aude, poeta preferido do narrador quando

jovem, é um “personagem ambíguo, escritor sensível, porém amigo de Duvalier, ele

nasceu à imagem de Porto Príncipe, uma cidade ao mesmo tempo luminosa e violenta,

sensual e corrompida” (BERNIER, 2002, p.54). Talvez tenha sido, justamente, esses

intensos contrastes que fascinaram Vieux Os na adolescência, período das turbulentas

descobertas e dúvidas. Algumas horas depois, antes de abrir a Vogue, o narrador vai

para um hotel, ao sul de Miami, aluga um quarto com vista para o mar, fecha as cortinas

e novamente se deixa envolver pela água quente da banheira, “j’ai toujours préféré une

bonne salle de bains à quelconque océan. Je fais couler l’eau. Et j’entre doucement

dans le bain”(LAFERRIÈRE, 2004 A, p.31). Ao começar a ler o artigo de Pasqualine,

dá seqüência à sua viagem de volta no tempo – “ je me sens glisser doucement dans un

autre monde” (LAFERRIÈRE, 2004 A, p.31). Na Vogue Vieux descobre que Marie-

Michèle, outra amiga daquele tempo, havia publicado um diário intitulado Fast Lane:

Girls, Food, Sex, Music - The Sixties in Haiti sobre sua vida no final dos anos 60 e

início dos 70 no Haiti. As leituras funcionam como uma espécie de refúgio, que protege,

acolhe e sensibiliza o narrador, fazendo surgir seu desejo de reviver e reescrever o

passado – o tempo em que convivia com Pasqualine, Miki, Marie-Michèle e as outras

meninas, que lia Saint-Aude e descobria o desejo. Le goût des jeunes filles narra

190
precisamente o fascinante momento da iniciação sexual e poética do narrador. Pois

Vieux, além de ler e citar o poeta Saint-Aude avidamente, durante toda a narrativa –

je lis encore Saint Aude. Une véritable obsession. Normal, c’est la première fois
qu’un être humain exprime ce que je ressens avec une telle précision. Et va au-
delà de mes sentiments. J’ai l’impression de lire ma vie future. Saint-Aude
exprime ce que je suis et ce que je serai (LAFERRIÈRE, 2004 A, p. 241).

–, vive sua primeira experiência sexual com a bela e sedutora Miki –

- Qu’est-ce que tu lis là? Tu lis encore....T’as toujours la tête dans ton livre,
alors que j’ai l’impression que tu sais beaucoup de choses [..].

- Pourquoi tu dis ça, Miki ?Je ne sais rien....

- C’est ce que je vais voir...

Elle monte sur le divan avec ses souliers. Je me tasse près de la petite table.
Elle me regarde tout en retirant chacune des ses chaussures qu’elle lance
contre le mur (LAFERRIÈRE, 2004 A, p. 269).

Quase trinta anos depois, no espaço íntimo e solitário da banheira, se deixa envolver

pelas lembranças iluminadas de poesia e desejo – “mon adolescence fut un tunnel noir

et humide. J’avais oublié ce bref passage aveuglant de lumière” (LAFERRIÈRE, 2004

A, p.32). E o resultado desse passeio pelo túnel do tempo é um livro que intercala

diferentes narradores, estilos narrativos e olhares sobre a mesma época. Trata-se de um

suposto roteiro cinematográfico escrito por Vieux Os adolescente (cujos capítulos

possuem epígrafes de Saint-Aude), do diário publicado por Marie-Michèle, única amiga

da época de origem rica, e do texto que inicia e termina o romance, escrito pelo narrador

aos quarenta anos. Estes narradores, embora tenham pontos de vistas, idades e classes

sociais diferentes, têm em comum o amor pela literatura, pelo ato de escrever e um forte

desejo de rever e reinventar o passado.

191
O diálogo intertextual também se mostra central em Le cri des oiseaux fous. O

drama vivido pela família do personagem de Gasner, jornalista e amigo do narrador

assassinado pelos ditadores, se confunde com o drama vivido pela protagonista da peça

Antígona de Sófocles, representada por um grupo de estudantes da escola de Vieux Os e

citada inúmeras vezes pelo autor. Trata-se de uma adaptação para o crioulo, feita pelo

poeta haitiano Félix Morisseau- Leroy27 , que pretendia mostrar que essa língua,

habitualmente subjugada, poderia expressar todas as nuances da alma humana. A peça

conta, em grandes linhas, a história da jovem Antígona, filha de Édipo, que deseja

enterrar seu irmão, Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, mas o tirano da

cidade, Creonte, promulgou uma lei impedindo que os mortos que se voltaram contra as

leis locais fossem enterrados. Antígona, enfurecida, vai então, sozinha, desafiar o poder

e enterrar o irmão. Mas, condenada à morte por Creonte, enforca-se. A peça de

Morisseau-Leroy se passa no meio camponês haitiano, em uma pequena cidade também

chamada Tebas. Na versão haitiana, as adivinhações são feitas através de rituais do

vodu – são colocados em cena diversos deuses (loas) do imaginário vodu, como Erzulie,

Legba, entre outros – e a coragem da heroína Antígona pode ser associada à força da

mulher haitiana. Montar essa peça em crioulo representou para os personagens do

romance de Laferrière, uma maneira de lutar pela liberdade de expressão e pela

identidade cultural do povo haitiano. Em Le cri des oiseaux fous a mãe e a irmã de

Gasner, assim como a jovem Antígona, foram proibidas de velar e enterrar o corpo do

irmão, que estava em propriedade do Estado.

Devant moi se tient la fière Antigone. La soeur de Gasner, comme l’Antigone de


Sophocle et de Morisseau-Leroy, pleure la mort de son frère et se révolte contre

27
Félix Morisseau-Leroy nasceu em 1912 no Haiti, onde exerceu as profissões de dramaturgo,
romancista, poeta, diretor de teatro e tradutor.

192
Duvalier-Créon qui s’oppose à ce qu’on l’enterre selon les rites funéraires de
la foi de sa famille (LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 283).

Segundo Vieux Os, o caráter subversivo da peça fez com que não pudesse entrar em

cartaz no Haiti durante muitos anos, mas com a morte de Gasner os alunos do grupo de

teatro, identificados com o drama da personagem, impõem a sua representação. A peça

se tornou um enorme sucesso de público em Porto Príncipe, pois somente através dela,

sentimentos de revolta coletiva puderam vir à tona, em uma espécie de catarse

simbólica. Assistir, participar, ler, debater a peça se torna uma forma de protesto, a

única viável naquele regime ditatorial. Antígona rompe o silêncio e responde por eles,

dá, simbolicamente, voz ao silenciado – “je crois que c’est notre réponse à l’assassinat

de Gasner. Le pouvoir s’attendait à nous voir baisser les bras. On voulait nous

terroriser, nous faire peur, nous désespérer totalement. Antigone répond à notre place ”

(LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 143). Pois os homens, como afirma Antígona, podem ser

coagidos, humilhados, violentados em sua liberdade, mas jamais serão completamente

silenciados – “por mais que os tiranos sejam afeitos a um povo mudo, o povo sempre

fala. Fala sussurrando, amedrontado, à meia luz, mas fala” (SÓFOCLES, 2005, p.98). A

peça narrada dentro do romance representa para autor e narrador uma forma de traduzir

vivências e sentimentos profundos – “peut-être que l’histoire d’Antigone raconte ce que

nous vivons en ce moment. Une pièce à l’intérieur de la grande pièce. Un théâtre dans

le théâtre de la vie... ” (LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 176). Revisitar Antígona é também

uma forma de mostrar que, por trás das aparentes diferenças, há inúmeras teias

invisíveis de conexão entre as obras de Sófocles, Morisseau- Leroy e Laferrière, “ il n’y

a pas une si grande différence entre ma culture et la sienne [de Sófocles]. [...] Sommes-

nous si différents des autres ? ” (LAFERRIÈRE, 2000 B, p. 42). No romance

Chronique, que cronologicame nte sucede Le cris des oiseaux fous, Laferrière também

faz uma referência indireta a Antigone, neste caso, de Jean Anouilh. Vieux Os se

193
negando a aceitar o destino de fracassos e submissões no exílio, sem modéstias,

estabelece seus objetivos.

J’épingle cette note


sur le mur jaune,
à côté du miroir :
« Je veux tout :
les livres,
le vin,
les femmes,
la musique,
et tout de suite » (LAFERRIÈRE, 1994, p.44) .

A personagem Antígona, que na peça de Anouilh poderia ser compreendida como uma

metáfora da Resistência Francesa durante a segunda guerra, diz algo similar ao

inconformado Creonte: “Moi, je veux tout, tout de suite, et que ce soit entier, ou alors

je refuse! Je ne veux pas être modeste , moi, et de me contenter d'un petit morceau, si

j'ai été bien sage” (ANOUILH, 1946, p.95). Embora se passem em lugares e épocas

diferentes, trata-se de uma mesma história, que fala de amor e lealdade.

L’histoire de cette ardente jeune fille qui a affirmé en face du pouvoir et des
tous les pouvoirs que seul l’amour l’intéressait, que l’amour était au dessus du
devoir d’État et que l’amour est plus fort que la loi. L’amour d’une sœur pour
son frère, d’une mère pour son fils, ou d’un homme pour une
femme (LAFERRIÈRE, 2000 B, p.40).

Laferrière faz, igualmente, referência em Le cri des oiseaux fous a um episódio histórico

(ocorrido em 1964 no Haiti, onze anos após a primeira representação da peça de

Morisseau-Leroy), no qual treze jovens militantes do movimento “Jeune Haiti”, após o

fracasso de uma de suas ações para derrubar a ditadura, foram mortos, sendo dois deles

fuzilados em praça pública. François Duvalier proibiu terminantemente que fossem

enterrados ou tivessem qualquer ritual fúnebre. Laferrière transita, assim, neste romance

194
e na “autobiografia americana” como um todo, entre obras de ficção existentes – as

peças de Sófocles e Morisseau- Leroy –, a realidade – o fuzilamento dos jovens do

“Jeune Haiti” e a morte do amigo jornalista Gasner Raymond em 1976, assassinado por

sua postura política – e a sua própria ficção. Nesse sentido, sua literatura, enquanto

lugar do encontro entre o mundo vivido, pensado e imaginado, se apresenta como um

importante meio de reflexão sobre a realidade, a contemporaneidade e de se transportar

mundo afora.

Recorrente em textos pós- modernos, a intertextualidade revela, segundo

Paterson, um desejo de questionar as hierarquias, as fronteiras, e desmistificar as noções

de originalidade e autonomia que reforçam sistemas de exclusão. Esse diálogo entre

diferentes textos expressa não somente a visão de mundo do autor, mas sua

compreensão de que a obra literária é um espaço de incontornáveis influências e

transferências culturais, que modifica e é, recorrentemente, modificada por outras obras.

Os sentidos nascem das interpretações desta complexa interação textual, que podem

variar em função do leitor, de momento histórico ou das escolhas interpretativas. Assim,

a intertextualidade pode ser entendida como um diálogo entre diferentes textos, autores,

leitores e realidades. Para Laferrière a literatura é, justamente, um importante espaço de

diálogo, em que escritores e leitores de diferentes tempos e origens partilham sonhos,

angústias, emoções, pontos de vista sem que seja preciso sair da “banheira natal”. Nesse

sentido, a obra literária não tem nacionalidade, raça, gênero ou classe social, é um

território livre e sem fronteiras, que pertence ao imaginário.

Pour moi, un écrivain c’est quelqu’un qui arrive au-delà de sa langue et son
paysage naturel [...] parce que quand on écrit, on écrit pour se transporter
ailleurs, quand on lit, on lit pour se transporter ailleurs. [...[ Il faut protéger ce
territoire vierge qui est celui de l’imaginaire pour qu’aucun pays ne puisse
mettre sa pelle dessus (LAFERRIÈRE, 2007 A).

195
Na última parte do livro Je suis fatigué, o alter ego de Laferrière tem um

encontro importante, no mesmo banco de jardim onde começou sua história, com uma

leitora que leu toda as suas obras e se diz transformada e positivamente invadida por

elas.

Je vous ai découvert avec L’odeur du café. Comme je n’ai pas beaucoup


d’argent, je ne voyage pas souvent. Ce livre m’a permis d’aller très loin. Depuis
je connais votre grand-mère, votre chien, les canards de Naréus, le notaire
Loné, tous ces gens d’une petite ville d’Haïti que je ne visiterai peut-être
jamais. La plupart sont morts depuis longtemps, mais je les connais tous. Leur
vie m’emporte plus que celle des gens que je côtoie chaque jour
(LAFERRIPERE, 2001 A, p.127).

De certa forma, é esta leitora desconhecida e “apaixonada” que melhor vai responder às

perguntas colocadas pelo narrador neste livro, “por que escrever e por que parar de

escrever?”: “vous ne pouvez pas décider, tout seul, d’écrire un livre ou de ne pas

l’écrire. Cela vient d’une zone plus profonde et plus étrange que la

volonté” (LAFERRIÈRE, 2001 A, p.128). Suas palavras são oportunas, pois vão ao

encontro das ponderações feitas pelo narrador, desde o início de Je suis fatigué, a

respeito dos incontáveis e incontroláveis sentimentos, episódios, mistérios e desejos que

o levaram a escrever os dez volumes de sua “autobiografia”. Se as razões que levam um

escritor a parar (ou não) de escrever forem tantas e tão profundas quanto as que o levam

a começar, uma decisão racional não será suficiente neste sentido. O mesmo se dá com

relação ao leitor, uma escolha consciente não o fará se entusiasmar, se encantar ou, ao

contrário, abominar um livro. Segundo Antonio Candido, a literatura é uma “varinha de

condão” que nos permite descobrir a nós mesmos e ao mundo que nos cerca, a cada

livro como em um passe de mágica um novo universo, uma nova sensibilidade se

descortina para o leitor. É a magia da literatura que permitiu essa leitora desconhecida

se sentir tão próxima de Petit Goâve e seus habitantes, é essa magia que me faz chorar

196
ao ler a narrativa da morte de Da ou me emocionar com a volta do narrador ao país

natal, ou migrar de Porto Príncipe ao pays sans chapeau e de volta a Montreal, sem sair

do lugar.

Si les livres gardent vivant l’esprit de leurs auteurs, c’est pour qu’on puisse
s’entretenir avec eux. [...] Un livre, c’est un esprit qui frappe à la porte, et non
un idiot qui monologue dans le noir. Pourquoi écrire si ce n’est pas pour
partager des rêves et des angoisses avec des gens d’une autre époque, d’un
autre âge, d’un autre milieu ? Et je suppose qu’on lit aussi pour les mêmes
raisons. Le dialogue est donc possible (LAFERRIÈRE, 2005, p.78).

Para concluir diria que a obra de Laferrière, escrita da alteridade e espaço de

transformação, além de levar à descoberta da diversidade (do inusitado) no Outro, leva à

descoberta do Outro que existe em si – de seus fantasmas, sonhos, medos e perversões.

O que lhe interessa ao escrever é fazer emergir o lado obscuro e imprevisível, tanto do

homem quanto da História. Nesse sentido, concorda com a lição de André Gide,

segundo a qual não se pode fazer boa literatura com bons sentimentos. “C’est mon

travail d’aller patauger dans la boue. Je laisse aux fonctionnaires d’État l’eau claire de

la propagande. Leur devise est d’une netteté impeccable : Si on cache bien le problème,

il finira bien par disparaître” (LAFERRIÈRE, 2000, p.154). Sua literatura se revela,

assim, intensamente política – embora não esteja engajada na defesa de nenhuma

minoria, racial ou nacional –, na medida em que questiona o mundo nomeado pela

cultura hegemônica, expõe suas injustiças, fraquezas e deficiências e desconstrói

representações mono-referenciais e estereotipadas do homem americano, que foram se

criando desde os primórdios da colonização. Em síntese, a ficção de Laferrière tem uma

função mediadora – entre realidade e fantasia, vida pública e vida privada, entre o lá e o

aqui, os desejos inconscientes e a razão – e transgressora, na medida em que questiona,

reinventa e descobre novas possibilidades do mundo real.

197
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213
7. ENTREVISTA COM DANY LAFERRIÈRE (realizada em Montreal no dia 26 de

abril de 2007)

2. Votre « autobiogra phie américaine » a été écrite et publiée dans un ordre non

chronologique, qu’est-ce qui a motivé l’ordre de l’écriture? Aviez-vous dès les

premières publications l’intention d’écrire une autobiographie en plusieurs

volumes? Quand avez-vous décidé de le faire?

Je ne pouvais pas publier dans un ordre chronologique parce que ce serait trop

ennuyeux, j’ai préféré découper ça selon mes humeurs, selon mon désir et passer d’un

mode à un autre, d’une époque à une autre. Je pense que dès le troisième livre, après le

deuxième, après Éroshima, quand je suis allé à Miami et j’ai commencé à penser à

l’idée d’écrire un troisième livre dès lors j’ai eu la vision de cette chose là, c’est-à-dire,

de l’autobiographie américaine et j’ai même d’ailleurs écrit sur une page que j’ai, je ne

sais pas où, les différents titres que j’aurais pour former cela, à peu près tous les livres

que j’ai publiés jusqu’à Je suis fatigué étaient sur la liste.

3. Comme c’est de l’autofiction, vous pouvez faire comme vous voulez, vous

pouvez suivre les traces de votre mémoire et on n’a pas accès à la mémoire d’une

façon organisée et chronologique, on peut aller dans tous les sens.

Oui, même les titres que j’ai mis je ne les ai pas écrits l’un à la suite de l’autre

sur la liste. Et ce n’était pas des histoires, c’était découpé en lieux et en moments et en

temps. On peut aller n’importe où mais si je pense qu’il y a deux livres, l’Odeur du café

et Le charme des après-midi sans fin sur l’enfance et Petit Goâve, et puis il y a trois

peut-être sur Port-au-Prince, Le goût des jeunes filles, La chair du maître et puis Le cri

des oiseaux fous... Dans ma tête, il y avait ces moments- là, l’enfance, l’adolescence,

214
Port-au-Prince, Montréal, l’Amérique du Nord, le retour. Ce n’était pas des histoires qui

étaient sur la liste, c’était des moments. Comme pour Pays sans chapeau, j’aurais pu

écrire un autre livre, un retour complètement différent, ça n’était pas dans la liste, ce qui

était dans la liste c’est qu’il devrait avoir un roman sur le retour.

4. Vous avez affirmé dans le journal Le Devoir être obsédé par la façon de rendre

publique l’intimité, mais aussi de rendre la vie publique intime. Comment d’après

vous le parcours collectif et le parcours individuel se dessinent-t-ils (s’entremêlent)

dans votre œuvre, c'est-à-dire, celui de l’homme américain, noir, antillais,

diasporique et celui de l’individu, de Vieux Os et de son univers intime, sa famille,

ses amis et ses rêves?

C’est tout à fait normal, parce que c’est un peu ma vie, c’est la vie de beaucoup

de gens des pays du tiers monde qui ont connu la dictature, la politique est toujours liée

à votre vie personnelle, vous êtes en danger, vous devez quitter votre pays parce que

vous êtes en danger, donc il y a toujours un rapport tout à fait individuel. Dans les pays

en Amérique du Nord les rapports entre l’État et l’individu se trouvent au moment de

payer les taxes, où l’individu voit qu’il y avait un État, c'est-à-dire, on doit aller voter

une fois par an ou une fois tous les quatre ans alors que dans un pays comme Haïti, la

vie politique a une implication directe sur votre vie personnelle. Ainsi en racontant

Haïti, je devrais raconter ma vie et en racontant ma vie je devais raconter Haïti. Un

écrivain français ou un écrivain Allemand ou Anglais ou Canadien ou Québécois peut

raconter sa vie sans raconter son pays, il peut choisir de le faire. Mais avec un écrivain

du Tiers monde, même dans le livre le plus innocent, comme L’Odeur du Café, où il n’y

a presque pas de présence de tonton macoute ni de situations dangereuses, on pose la

question : Mais pourquoi il n’y en a pas, puisque c’était à l’époque de Duvalier aussi?

215
Est-ce que vous étiez pour Duvalier? Est-ce que votre famille était à l’abri? Pourquoi?

La question se pose même pour le lecteur et va au-delà de ce que vous proposez comme

univers. Alors, je dis, non, il n’y a en a pas parce que tout ce qui est public peut ne pas

avoir d’impact sur ce qui est privé si c’est un enfant et les adultes veulent le protéger, un

peu comme dans le film La vie est belle où le jeune garçon n’a même pas vu la seconde

guerre mondiale, il pensait que c’était un jeu. Mais le rapport public/privé, l’imbrication

qu’il y a entre ces deux là, ces deux axes, leur croisement a une incidence même chez le

lecteur, qui a été habitué à des livres venants des pays de dictature beaucoup plus

violents, entre le face à face et qui s’attend à un face à face plus violent chez moi. Mais,

parfois, c’est cela qui arrive à les charmer. Ils ont l’impression que c’est vrai, que c’est

plus vrai, parce que c’est bizarre, il n’y a pas de situations sanglantes comme dans les

films où on tente de décrire la dictature et on voit toujours du sang. Le sang ne doit pas

couler chaque jour, sinon il n’y aurait plus personne dans ces pays. Et quand cela arrive

à pénétrer dans le cerveau du lecteur, il est acquis parce que c’est fondamental que le

lecteur ait l’impression que ce qu’il lit est vrai. Je ne dis pas que c’est la vérité, mais que

c’est vraisemblable.

5. Vos romans qui se passent en Amérique du Nord sont très ironiques, lucide et

plein d’autodérision, même si cette ironie disparaît un peu en Chronique de la

dérive douce et réapparaît en Pays sans chapeau. Quel rôle cette l’ironie qui rit de

soi-même joue dans votre œuvre ? Et pourquoi elle disparaît dans les romans du

cycle haïtien ? Considérez-vous que votre façon de faire de l’humour a changé au

cours du parcours américain ?

Moi, je ne fais jamais d’humour, c’est la situation qui dégage son ironie.

L’ironie vient de ma posture, de ma façon de regarder les choses, mais au fond c’est la

216
façon d’où on se place. Pourquoi ce n’est pas le même regard ironique partout? Ce n’est

pas volontaire, regardez un arbre et essayer d’être ironique. Donc, ce n’est pas un

regard personnel, c’est le rapport que j’ai avec l’environnement humain, social et

naturel. Quand je regarde un arbre québécois bien sûr, il y a un regard qui est

d’étonnement, c’est un arbre qui peut perdre toutes ses feuilles, puis avoir de la neige

dessus, c’est un arbre qui change. Mais l’arbre haïtien, je ne le vois pas, parce qu’il ne

change pas, il fait partie de ma vie, il est lié à mon enfance, il est plus vieux que moi,

mais, moi, je suis plus vieux que l’arbre québécois, parce que j’étais adulte quand je l’ai

vu; l’arbre haïtien m’a vu, parce que j’étais enfant et je suis né devant lui, en sa

présence. C’est pour cela que je dis souvent que je ne fais pas d’ironie. C’est la

situation, c’est le contexte qui va faire en sorte que je le regarde ainsi et que l’ironie

apparaît, je ne cherchais jamais à le faire, parce que pour moi c’est pas profond. Ce qui

est important pour moi c’est le regard et à ce moment-ci le regard des narrateurs

rencontre le regard de l’autre, le regard du lecteur, le regard de la lectrice, ce

croisement crée une sorte de densification, ça donne une force. Mais si c’est une ironie

qui vient de la personnalité de l’individu, on aurait l’impression qu’on lit le même livre.

L’humour est présent dans mes livres, mais pas sous ce mode- là. Donc, je ne cherche

pas à être drôle, sinon je l’aurais été dans tous mes livres. Et le livre Comment faire

l’amour avec un nègre sans se fatiguer a un contenu acide parce que l’atmosphère est

acide, parce que cette urbanité exige un tel regard, l’autodérision et la dérision, ce sont

des valeurs urbaines, de grandes villes, quand on est seul, on sent la collectivité, la

pression, on a une sorte de surplus, de valorisation de soi. Mais quand je suis dans mon

enfance à Petit Goâve, je n’ai pas besoin de regarder, je peux laisser les autres me

regarder, les arbres me regarder, le paysage me regarder, mais à Montréal dans les

premières années, JE REGARDE.

217
6. Le regard de l’Autre envers soi, de soi envers l’Autre, de soi envers le monde

ou vers soi-même est très important dans vos textes, comment situez-vous la place

du regard dans votre œuvre? Dans les romans du cycle haïtien, vous ne faites pas

trop attention au regard de l’autre, par contre, dans les premiers ouvrages du

cycle nord-américain ou vous êtes regardé en tant que différent ou, au contraire,

vous n’êtes pas du tout regardé. Mais quand vous devenez un écrivain connu, il y a

un changement par rapport à cela et, tout à coup, le monde commence à vous

regarder comme une célébrité, et là vous vous laissez de nouveau regarder.

J’essaie de ne pas attacher d’importance au fait d’être regardé, parce que, pour

moi, le fait d’être regardé ne m’importe pas et cela ne concerne que celui qui regarde,

comme moi, quand je regarde la ville, ça n’importe pas la ville et ce qui est important,

c’est moi qui regarde. Quand l’autre me regarde, je ne dois pas attacher d’importance.

C’est son affaire, c’est lui qui regarde, avec tous ses sentiments, toutes ses émotions et

qui voit des choses que je ne sais pas de moi- même. Si j’attache trop d’importance à ça,

je deviens une star, une starlette, je commence à agir en fonction du regard.

En Haïti on vous regarde aussi, il y a plutôt le regard de celui qui se demande

d’où viendra le danger. Il y a un monde qui est comme une jungle, on ne sait pas, mais

on fait confiance parce qu’on y est né, on doit avoir des réflexes. Les réflexes

remplacent le regard. On se dit que s’il y a quelque chose de mal, s’il y a un mauvais

regard, on va le capter rapidement et choisir de l’affronter ou de s’enfuir. Et là, en

Amérique du Nord, quand je suis arrivé, je me suis dit, je ne connais personne, je ne

connais aucun code, donc il faut regarder, il faut analyser, sinon on ne va pas s’en

sortir, on ne va pas survivre. C’est en tant qu’être humain que je parle là. Les gens qui

ne regardent pas sont dans les ghettos, ils conservent le regard qu’ils avaient chez eux.

218
Ils n’ont pas changé de posture et ils se retrouvent dans le ghetto, où c’est plus facile

pour eux, ils continuent à regarder les choses, les gens, les comportements qu’il

connaissent. Mais, moi, je ne voulais pas habiter dans un ghetto, alors, il faudrait que je

vois comment on me regarde et comment je regarde.

C’est aussi l’urbanité. Ma vie à Petit Goâve est différente aussi de ma vie à Port-

au-Prince. À Petit Goâve je me laissais regarder par ces gens bienfaisants qui sont mes

voisins qui m’ont connu bébé et les animaux, les arbres. À Port-au-Prince, c’est plutôt la

jungle, donc il y a d’autres antennes, il faut avoir un oeil derrière la tête. Et à Montréal,

c’est autre chose, c’est un autre danger.

7. Et dans Pays sans chapeau, qui parle du retour, la situation est-elle différente ?

Vous pouvez me parler un peu de ce livre ?

Pays sans chapeau, si je le lis comme lecteur, je dirais que c’est pour dire que

j’accepte que j’ai voyagé. Il y a toujours un problème avec beaucoup d’écrivains du

Tiers- monde qui n’acceptent pas qu’ils ont voyagé, parce qu’en l’acceptant ils ont

l’impression d’avoir vraiment trahi. Dans leur littérature, au lieu de montrer, d’accepter

(comme dans L’odeur du café e Comment faire l’amour) les différents mondes dont ils

font partie, ils les cachent plutôt. C’est pour ça qu’ils écrivent à Montréal, à Paris ou à

Berlin des romans qui se passent dans leur pays d’origine, qui sont encore plus enfoncés

dans leur culture, ils deviennent des défenseurs de choses qu’il n’auraient pas défendu

s’ils étaient restés dans leur pays. Précisément, parce qu’ils n’acceptent pas le voyage.

Ils essaient de le dissimuler pour enlever la trace de la trahison parce que, pour

beaucoup d’intellectuels, voyager c’est trahir. Alors que voyager n’est pas trahir

puisque, c’est, précisément, subir. D’accord, on peut voyager tout simplement, mais

dans ces pays- là, souvent pour les intellectuels, c’est un exil ou un semi-exil, donc c’est

subir. C’est au dictateur d’avoir honte, ce n’est pas à moi. Alors qu’est-ce qu’il m’est

219
arrivé durant ce temps à l’étranger ? Bien, voilà, j’ai vécu aussi et j’en tiens compte.

Dans le retour, dans Pays sans chapeau, le narrateur n’essaie pas de dissimuler qu’il est

différent des gens et en même temps il ne cherche pas ses racines non plus, il regarde,

des fois il repère des choses, il questionne, mais c’est tout doux, on a changé, j’ai

changé, ils ont changé, nous avons changé. Mais bon, tout est pareil en fait, c’est un peu

ça.

8. Selon vous, dans quelle mesure votre oeuvre constituerait-elle une contribution

à la littérature et culture québécoise?

Je ne crois pas beaucoup dans les pays, je ne crois pas beaucoup dans les

histoires de littérature québécoise, haïtienne ou littérature française. Pour les lecteurs, je

ne pense pas que ça existe. Je pense que la librairie c’est un endroit où les peuples se

réunissent. Une toute petite librairie d’un village, on entre là dedans on trouve des

Russes du dix- neuvième siècle, des écrivains américains qui ont publié hier, des poètes

maudits, des bests sellers. Pour moi, c’est un autre pays. C’est pour cela que je mets très

rarement les livres dans un pays réel. Les livres appartiennent à un pays rêvé. Donc,

littérature québécoise ou haïtienne comptent très peu pour moi.

9. Et la réception des vos ouvrages auprès de la communauté haïtienne?

Au début, je pense qu’ils avaient pris ça un peu personnel. Comment faire

l’amour, ça parlait de sexe, alors que ce sont des gens très pudiques. Il est mal compris

par certains, mais c’est fait pour ça. Je ne vais pas me plaindre, au contraire! Moi, je ne

comprends pas les gens qui disent « nous, on n’est pas compris, on n’est pas écouté ».

Si vous voulez écrire un livre pour être accepté, vous save z quoi dire, donc pourquoi

vous vous plaignez après? Ma famille dit toujours « fais attention, les gens ne vont pas

220
comprendre ni accepter », je dis, « mais il ne faut pas qu’ils fassent attention, il ne faut

pas qu’ils comprennent ou qu’ils acceptent ». Ceux qui comprendront, comprendront et

ceux qui n’acceptent pas s’en passeront et c’était ça le but, donc, réveiller, vivre,

exciter. Moi aussi, je n’ accepte pas tout ce que j’écris. C’est comme ça, il faut un petit

peu de danger dans la vie. Il ne faut pas se plaindre quand on a fait quelque chose. Il ne

faut pas se plaindre parce que ce n’est pas une adhésion, un vote électoral, c’est une

conversation, c’est une discussion.

10. Et par rapport á Pays sans chapeau, comment a été la réaction pour les

Haïtiens ?

Leur livre c’est L’odeur du café, ils en font des examens du baccalauréat, ils en

donnent des dictées dans les écoles primaires. Mais Pays sans chapeau, il y a quelque

chose, le chapitre sur le vaudou les a troublé un peu, de titrer un chapitre « Des dieux de

classe moyenne », ils n’aiment pas ça, ils sentent qu’il y a une ironie là-dedans. Je ne

vois pas d’ironie, ce sont des dieux de classe moyenne! Des dieux qui ne changent pas.

Mais comme ça ne m’intéresse pas, non plus, de cracher sur les choses et que c’est

ridicule de les adorer, je dis que ce sont des dieux de classe moyenne. Si vous crachez

dessus ils pensent que vous êtes un ennemi, alors ça les rassure, mais si vous dites « ce

n’est pas si bon que ça », alors là, ils sont fâchés!

11. Dans vos roma ns vous décrivez souvent la rencontre entre des types très

différents qui sont souvent attirés l’un vers l’autre – les noirs et les blanches, les

francophones et les anglophones, les occidentaux et les orientaux, les riches et les

pauvres, même les vivants et les morts, les hommes et les Dieux (dans Pays sans

chapeau). Ces personnages qui semblent à un premier moment très différents

221
(opposés mêmes) et stéréotypés se révèlent au long de la lecture pluriels et

finalement pas si différents que ça. Je pense, par exemple, à la rencontre entre

Kero la japonaise et le narrateur Vieux, que vous reprenez dans Je suis fatigué.

Malgré leur frappantes différences (l’un ne parle presque pas, l’autre est très

bavard, l’un est oriental, l’autre occidental, l’un est jaune, l’autre noir, l’un est

styliste, l’autre écrivain) ils ont un langage commun qui est le sexe et des points en

commun, la création, par exemple, et des changements de comportements d`un

roman à l`autre. Vous pouvez me parler un peu plus de cette façon de concevoir la

différence (l’altérité)?

C’est bien ça, je me méfie des stéréotypes, les gens aiment être bien rassurés.

C’est un rêve d’écrivain, au lieu de montrer des gens très naturels, très simples et qu’à la

fin on voit que ce sont des clichés ou qui deviennent des clichés, je préfère montrer les

clichés et les rendre de plus en plus humains. C’est peut-être un truc pour ne pas faire de

cliché. Alors je montre les chiclés d’abord et le lecteur dit « ah oui bon, ça a l’air

facile » et puis après je les laisse plus complexes et les gens deviennent des gens. Dans

la vie c’est comme ça, tout le monde est assez différent tout le temps et pourtant la

différence n’importe pas aux gens. La différence vient de celui qui regarde. Dans la

réalité, les gens ont tellement de fils de connections qu’on ne voit pas, si on ne les

connaît pas. Et, souvent, les gens qui veulent se connaître, apprennent à se connaître très

vite, c’est à dire, apprennent à reconnecter les fils invisibles et laissent les visibles à

quelqu’un qui les regarde de loin, qui voit qu’ils sont un homme ou une femme, un noir

ou autre chose, alors que le rapport, des fois, c’est l’amitié, l’affection, la haine, le désir,

ce sont d’autres fils invisibles. Enfin, je les présente comme ça et après j’essaie de

montrer les fils invisibles où les contrastes, d’abord, ne sont pas négatifs, dans le sens

que ce qui les différencie les rapproche, les attire. C’est pour ça que je déteste, dans les

222
bars branchés, de voir la belle fille avec le beau garçon, je trouve que c’est la chose la

plus banale, c’est même une vulgarité, quel manque d’imagination ! Pour moi, le

sommet de l’imagination c’est une femme extraordinairement belle qui sort avec un

clochard, parce qu’elle a remarqué chez ce clochard- là une élégance que les autres n’ont

pas remarquée et quand je dis ça, je dis ça pour un homme aussi, par exemple, un

homme très connu, qui arrive dans un endroit et qui parle avec la personne avec qui il a

envie de parler ; c’est à dire, qu’on ne soit pas tout le temps en train de rassembler les

puissants avec les puissants, les beaux avec les belles, c’est tellement ridicule. Parce

que, pour moi, ce sont des clichés, ils auraient pu essayer de trouver les fils invisibles à

l’intérieur, l’ironie. Il faut donner l’impression que la vie peut avoir des surprises.

12. Dans Cette grenade, à travers les discours, réel ou fictionnels de différents

types noirs nord-américains, vous montrez les contradictions et les tensions de

l’Amérique face à la communauté noire et également les cont radictions et

l’hétérogénéité existantes au sein de la communauté noire elle-même. Et vous faites

référence tout au long du roman à un champ lexical de la guerre. Il s’agit de quel

type de guerre, d`une « guerre » voilée contre le racisme?

C’est une guerre qui se fait sur le même territoire. Généralement on appelle ça une

guerre civile quand les gens d’une même nationalité se battent. Mais c’est une guerre

assez internationale aussi. C’est la guerre contre tout ce qui est différent. C’est la guerre,

partant du principe qu’un petit groupe doit toujours régner, donc il faut raffiner de plus

en plus les critères d’admission pour permettre à ce que le groupe reste petit et puis

aussi défendre le territoire, souvent très vaste, conquis par ce petit groupe. C’est la

guerre pour un territoire qu’on défend, territoire moral, territoire social, financier,

territoire, espace, tout simplement des lieux. Aux États-Unis, dès que vous traversez une

223
ville, si vous êtes dans un quartier où il y a beaucoup d’arbres, vous êtes chez les riches,

souvent blancs, et dès que vous commencez à avoir uniquement des pylônes électriques

et pas d’arbres, vous êtes chez les pauvres, et quand vous traversez les rails de train, de

l’autre côté, là, vous êtes chez les très très pauvres. C’est la guerre des territoires, la

guerre des langages, des accents. Les gens définissent l’autre dès qu’ils entendent tel

type d’accent, des musiques de la langue. On sait très bien comment se comporter avec

telle ou telle personne, si on peut l’humilier ou pas, si on peut lui refuser des choses ou

pas, ou si la personne est supérieure, alors il faut l’accueillir. J’en ai parlé d’ailleurs

dans Cette grenade, Pays sans chapeau et Le Cris des oiseaux fous sur la musique de la

langue bourgeoise, ils ont une musique de langue qui est complètement différente dans

tous les pays et qui dit : « attention produit de luxe, ne touchez pas, vous risquez à avoir

affaire avec l’État, avec les gens qui protègent les produits de luxe ». Plus la voix est

fluette, pointue, aiguë et musicale, plus le produit est de luxe, plus la voix semble sans

protection, plus le produit est de luxe. Parce que l’autre voix est une voix qui doit se

défendre par elle- même; parce qu’elle est habituée à monter pour se défendre, à grossir,

à gonfler, donc à se rendre plus forte. L’autre voix n’en a pas besoin parce que ce n’est

pas à elle de se défendre. Il y a des guerres sans arrêt. La guerre de l’argent où

l’humiliation joue un très grand rôle. Les gens humilient, écrasent les autres sans cesse.

J’ai vu une guerre terrible en Amérique du Nord.

13. Somme toute faite, Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme

ou un fruit?

C’est au lecteur de décider. La grenade c’est le livre, alors il doit savoir ce qu’il

a en main.

224
14. Dans l’un de vos articles écrit dans « La Presse » vous affirmez être en guerre

contre l’uniformisation. En quoi consiste votre « guerre »?

Contre les clichés. Contre le fait que les gens ne font aucun effort pour accepter

l’autre. Pourquoi nous sommes sur le même territoire? Il faut donner une chance aux

autres et ne pas, tout simplement, repérer les gens qui portent le même costume que

nous, qui sont semblables. Ce sont des corps sociaux qui marchent, ce ne sont pas des

individus, c’est une uniformisation des gens qui portent des vêtements de leur groupe,

de leur parti, de leur classe. Cette question de robe griffée a pris une si grande

importance chez les adolescentes parce qu’elles ont senti une guerre. Comment

ressembler à la personne qui nous ressemble dans les ma gazines et qui représente le

mieux l’intouchable, la richesse, la puissance? Cela touche aussi le regard que l’on pose

sur les gens, car on évalue très vite l’autre. C’est la même chose dans la réflexion, dans

les articles, les gens évaluent vite. Ils voudraient bien uniformiser la pensée alors que je

pense que dans un pays où il n’y a pas de guerre réelle avec des armes, cette autre

guerre est bien terrifiante.

15. Le 16 mars 2007 vous avez signé un manifeste où vous célébrez la mort de la

francophonie et la naissance d’une littérature -monde en français. Je voudrais que

vous parliez un peu sur les raisons de ce changement qui est plutôt conceptuel et

ses répercussions.

Les répercussions vont prendre du temps. Tout cela est un peu contre le mot

Francophonie. Mais pourquoi un mot peut- il représenter un danger? Parce qu’il finit par

englober trop de choses. Il n’englobe pas uniquement les racines, les origines de

l’écrivain qui vient d’un pays qui parle français et qui n’est pas la France, mais ça

englobe sa visio n du monde, sa vision de la vie, sa situation économique et ça empêche

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de lire. Les gens n’ont qu’à dire littérature francophone et on dirait qu’ils ont tout dit.

Bon, quant à la forme de la littérature, déjà ce n´était pas tout à fait réel puisqu’il y a des

écrivains qui viennent de ces pays là et qui sont complètement différents entre eux,

comme je me sens totalement différent de Patrick Chamoiseau. Et la littérature, elle-

même, n’est pas faite pour que des gens qui viennent d’un territoire se ressemblent,

puisqu’elle prend des ingrédients internationaux – tous les livres que nous lisons et qui

sont des écrivains qui viennent de partout. Pour moi, la littérature c’est un territoire, un

pays, un espace, qui n’est pas sur terre, qui n’est pas défini comme un lieu physique,

réel et le fait de la rattacher à un espace qui est, mettons, un espace de colonisation ou

l’espace des pays qui parlent français, mais qui n’est pas la France. Alors pourquoi j’ai

accepté la langue française? Tout simplement parce que c’est vrai que j’écris en

français, pour moi c’est quelque chose de vrai qui ne devrait pas avoir d’importance,

avec le temps j’espère qu’on verra le caractère inimportant de cela. C’est comme de dire

nous respirons par l’oxygène.

16. « Littérature monde en français » en quoi ça change exactement?

C’est le côté un peu pompeux, dans un manifeste on signe à 70%. Dans un

manifeste il y en a quarante qui signent et il y en a peut-être deux qui l’ont écrit. C’est à

peu près proche de ce qu’on voudrait, mais moi, je ne suis pas dans cela. Ce que je

voudrais c’est qu’on enlève francophonie, langue française, monde, qu’on enlève tout et

qu’on foute la paix aux gens. Il y a des écrivains et des lecteurs, c’est le seul rapport que

je vois avec la littérature, on en fait pas tout un plat pour les médecins, les mécaniciens.

Tout cela est tout à fait vieillot. Il y a beaucoup d’argent qui se donne, c’est peut-être

pour ne pas perdre les subventions. Le mot francophonie veut dire des subventions

venant des ministères. Quand il y a la semaine de la francophonie, les voyages que nous

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faisons, l’argent qu’ils veulent dépenser ou gagner, tout simplement ce n’est pas pour

faire du bien. Plus il y a des gens qui parlent français et plus la France est un pays qui

vaut la peine, c’est une publicité qu’ils se font avec si peu. Langue française, cela enlève

l’idée qu’il y a une différence entre les écrivains français et les écrivains qui écrivent en

français et qui viennent d’autres pays. Le mot « monde » veut montrer que la langue

française s’écrit et se parle en Algérie, au Maroc, en Haïti et au Liban, en France, en

Espagne, au Brésil, au Québec. C’est une langue française monde.

16. Il y a parmi certains écrivains et critiques littéraires une polémique autour du

concept d’écriture migrante. D’un côté, certains auteurs affirment que la notion

d`écriture migrante est une notion libératrice, une figure d’ouverture vers l’autre.

Ils assurent que les écrivains « néo-québécois » sont considérés comme une partie

effective de la littérature québécoise. D’un autre côté, certains affirment que

l’écriture migrante crée des ghettos et une sorte de réduction, d’exclusion. Quelle

est votre opinion sur ce sujet? Vous croyez que les écrivains d’origine étrangère

sont effectivement intégrés à l’institution littéraire québécoise? Il existe selon vous

un imaginaire migrant ? Ou croyez-vous que le terme est devenu inadéquat?

Dans mon rêve, tous les écrivains du monde sont d’origine étrangère et nous

parlons tous une langue étrangère, d’ailleurs. Parce que nous n’écrivons pas dans la

langue maternelle, la langue maternelle est une langue plus affectueuse, la langue de la

littérature c’est une autre mécanique complètement différente. Et, pour moi, un écrivain

c’est quelqu’un qui arrive à regarder sa langue et son paysage naturel, comme s’il était

un étranger. Donc tout le débat sur ce qui est étranger et ce qui ne l’est pas, je n’y suis

pas du tout, parce que je ne crois pas à ce débat de territoire. Il faut protéger ce territoire

227
vierge qui est celui de l’ imaginaire pour qu’aucun pays ne puisse mettre leur label

dessus.....

17. Vous avez affirmé dans La presse: « ce n’est pas parce que je suis noir et

haïtien que je ne peux qu’être immigrant. J’aime être un voyageur, un dandy… » (

LA PRESSE 2001) enfin, plusieurs choses à la fois. Vous avez également réaffirmé

votre refus de tout genre d’étiquette, d’auteur ethnique, noir, postcolonial, etc.

Enfin, d’après ce que je comprends, ce qui vous intéresse c’est d’accumuler des

identités, d’être, selon vous, « une cible identitaire mobile » (LA PRESSE, mai

2001). En quelle mesure ce choix vous paraît-il libérateur? D’après vous, l’identité

ne peut qu’être mouvante?

On ne devrait même pas avoir à s’en occuper. C’est comme pour nos jambes,

elles sont là solides, mais on n’a pas à s’en occuper si on veut marcher, sinon on va

tomber. Il ne faut pas les regarder quand on marche, elles doivent nous porter tout

simplement. C’est ce que nous faisons avec nos jambes qui compte, mais où nous

voulons aller. Pour moi, c’est un peu ça avec l’identité. Ce n’est pas ce qu’on a reçu qui

compte, c’est ce que nous en faisons. Je trouve qu’il y a un trop gros débat sur l’identité

qui ne mène qu’à des choses déplaisantes. Et je trouve que la littérature c’est

précisément cela, l’anti- identité. C’est pour nous montrer que nous ressemblons

tellement aux autres que notre effort pour nous singulariser est vain et qu’en réalité il

suffit de regarder un peu plus de dix minutes l’autre pour voir combien nous avons des

affinités avec lui. Et la littérature c’est l’un des rares lieux où tu peux passer des années

avec des individus dans une chambre, dans une pièce à les regarder, à les voir vivre.

C’est un territoire de la tolérance. Il faut regarder les hommes, il faut les laisser vivre,

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c’est le seul endroit où on ne juge pas les méchants. Ce territoire là doit exister et il faut

l’affranchir de tout drapeau.

18. Dernière question, pourquoi écrire et pourquoi arrêter d’écrire, en quelques

mots?

J’écris pour pouvoir arrêter.

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