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Reitor
Sandro Roberto Valentini
Vice-Reitor
Sergio Roberto Nobre
Pró-Reitor de Pesquisa
Carlos Frederico de Oliveira Graeff
Pró-Reitor de Pós-Graduação
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Pró-Reitora de Extensão
Cleopatra da Silva Planeta
Diretor do IBILCE
Julio Cesar Torres
Vice-Diretor do IBILCE
Fernando Barbosa Noll
EDITORIA — v. 12, n. 1, 2020 Arnaldo Franco Junior, Claudia Maria Ceneviva Nigro
COMISSÃO EDITORIAL / EDITORIAL BOARD Arnaldo Franco Junior; Márcio Scheel; Orlando Nunes de Amorim;
Wanderlan da Silva Alves
CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COMMITTEE Alvaro Luiz Hattnher (UNESP); André Luís Gomes (UnB);
Angélica Soares (UFRJ); António Manuel Ferreira (Univ. Aveiro); Aparecida Maria Nunes (UNINCOR); Cássio da
Silva Araújo Tavares (UFG); Claudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP); Diana Luz Pessoa de Barros (USP/ Mackenzie);
Ellen Mariany da Silva Dias (UEL); Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP); Giséle M. Fernandes (UNESP); Jaime Ginzburg
(USP); João Azenha (USP); João Luiz Pereira Ourique (UFPel); José Luiz Fiorin (USP); Lúcia Granja (UNESP); Lúcia
Osana Zolin (UEM); Luciene Almeida de Azevedo (UFBA); Luciene Marie Pavanelo (UNESP); Luzia A. Oliva dos
Santos (UNEMAT); Manuel F. Medina (Univ. Louisville); Marcos Antonio Siscar (UNICAMP); Márcio Scheel
(UNESP); Maria Celeste Tomasello Ramos (UNESP); Marisa Corrêa Silva (UEM); Marli Tereza Furtado (UFPA);
Milena Cláudia Magalhães Santos Guidio (UFSB); Milena Mulatti Magri (ad hoc) Mirian Hisae Y. Zappone (UEM);
Nádia Battella Gotlib (USP); Orlando Nunes de Amorim (UNESP); Rejane Rocha (UFSCar); Ria Lemaire (Univ.
de Poitiers); Robert J. Oakley (Univ. Birmingham); Rosani U. Ketzer Umbach (UFSM); Sandra G. T. Vasconcelos
(USP);Sérgio Vicente Motta (UNESP); Susana Souto Silva (UFAL); Susanna Busato (UNESP); Telma Maciel (UEL);
Thomas B. Byers (Univ. Louisville); Thomas Bonnici (UEM).
TRADUÇÃO/REVISÃO DE LÍNGUA INGLESA Claudia Nigro; Davi Silistino de Souza; Fernando Luís de Morais;
Leandro Henrique Aparecido Valentin
INDEXADORES CAPES PERIÓDICOS — DOAJ — ERIHPLUS — IBICT — LATINDEX — LivRe — MLA — OAJI —
REDIB
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Revista Olho d’água / Universidade Estadual Paulista – São José do Rio Preto, UNESP, 2020
Semestral
ISSN 2177-3807
1. Literatura
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APRESENTAÇÃO
VARIA
116 Dança da morte, escrita da vida: narrativas da AIDS, espaço biográfico e escritas de si nas
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert
Death’s Dance, Life’s Writting: Aids’s Narratives, Biographical Space and Self-writting in the Works of Caio
Fernando Abreu and Hervé Guibert
ANDRÉ LUIZ GOMES DE JESUS
135 Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do romance O filho mais velho de Deus e/ou
Livro IV, de Lourenço Mutarelli
A Multifaceted Reading of the Multiple Faces of the Novel O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, by Lourenço
Mutarelli
JOÃO LUÍS PEREIRA OURIQUE
DOUGLAS ERALDO DOS SANTOS
242 A fuga como resistência e busca por novos horizontes em Onde acaba o mapa, de Carol Rodrigues
The Escape as Resistance and Search for New Horizons in Onde acaba o mapa, by Carol Rodrigues
FLÁVIO ADRIANO NANTES
TRADUÇÃO COMENTADA
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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APRESENTAÇÃO
Este número da revista Olho d’água é composto pelas seções Varia, Dossiê e Tradução
Comentada. Nele, damos continuidade ao Dossiê Literatura & Gênero, organizado pela Profª.
Drª. Cláudia Nigro, e à seção Tradução Comentada, que já começa a tornar-se tradicional na
estrutura da revista.
A Seção Varia conta com onze artigos. Vamos à sua apresentação:
No artigo “O Pós-colonial: utopia e distopia na escrita da desilusão moçambicana”,
Renata Ribeiro Munhoz e Alfeu Sparemberger, exploram relações entre utopia, distopia e
teoria pós-colonial. Para isso, apresentam, primeiramente, uma breve história da literatura
africana em língua portuguesa e uma definição do conceito de pós-colonial. Após essa
contextualização, abordam a produção literária moçambicana em seus vínculos com os
conceitos de utopia e distopia, apontando o fato de que as guerras e suas conseqüências
mudaram percepções de mundo e valores no país – o que fez da literatura uma plataforma
para reflexões críticas e denúncias. O último voo do flamingo (2005), livro de Mia Couto, é
tomado pelos autores como eixo para o desenvolvimento de seu estudo.
Em “A felicidade das máquinas: o triunfo dos dispositivos e o aniquilamento do outro
em o apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe”, Vera Bastazin e Humberto Moacir
de Oliveira analisam o terceiro romance do escritor português, cuja obra tem na felicidade
um tema recorrente. Nesse romance, demonstram, três personagens buscam a felicidade na
alienação e na ignorância – que tem implicações assustadoras como, p. ex., o apagamento da
subjetividade e a aniquilação da alteridade. Com base na leitura que Giorgio Agamben faz da
filosofia da alteridade e do conceito de dispositivo de Emmanuel Lévinas, analisam a leitura
crítica que o romance de Mãe faz de nossa sociedade contemporânea.
Em “A inatualidade de Caio Fernando Abreu”, Wanderlan Alves explora a enunciação
e as possibilidades do dizer em seus vínculos com determinado efeito de inatualidade que
caracteriza a literatura de Caio Fernando Abreu. Deste modo, identifica, na obra do escritor
gaúcho, uma potencialidade crítica nas relações tensas com o tempo que solicita uma releitura
atenta neste início do século XXI.
“Da memória à identidade em The Solid Mandala, de Patrick White”, artigo de Tiago
Ferreira Pereira, Monica Stefani e Rosani Ketzer Umbach, analisa a representação da
memória e da identidade nesse romance do escritor australiano. Segundo os autores, memória
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e identidade se retroalimentam no romance – o que é evidenciado pelos protagonistas
Waldo e Arthur Brown, irmãos gêmeos. Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau
(2011), Hall (2015) e Neumann (2008) constituem-se na base teórico-crítica que embasa a
reflexão desenvolvida no artigo, que demonstra que, no romance de White, a rememoração
e a configuração de si têm, necessariamente, íntimos vínculos.
O artigo “Personae em pentimento: considerações sobre a figura de escritor na obra de
Caio Fernando Abreu”, de Ellen Mariany da Silva Dias, aborda as modulações da figura do
escritor em textos do autor. Segundo a articulista, essas figurações de autoria são construídas
por meio de uma poética auto e antropofágica, evidenciando, em mise-em-abyme, diversas
máscaras de escritor em contos, crônicas, cartas, romances, etc. Isso problematiza os
conceitos de autor, autoria, genialidade convertidos em mitos no Romantismo e também
nas Artes de Vanguarda do séc. XX.
Já o artigo “Comentário sobre Poema(s) da Cabra e Comendadores jantando de João
Cabral de Melo Neto”, de Tieko Yamaguchi Miyazaki e Ricardo Marques Macedo, apresenta
uma análise de poemas do autor de A educação pela pedra baseada nos conceitos de “fratura” e
“linguagem poética”, de Greimas. Segundo os autores, o primeiro conceito permite investigar
como a captação do real por um olhar perfurante dá a ver o que existe além das aparências;
o segundo conceito permite identificar na redundância um procedimento que valoriza, em
decorrência da organização paradigmática, o conteúdo e a expressão dos poemas.
“Dança da morte, escrita da vida: narrativas da AIDS, espaço biográfico e escritas de si
nas obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert”, artigo de André Luís Gomes de Jesus,
estuda “Depois de agosto” (1995) e À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990), respectivamente
conto do escritor brasileiro e romance do escritor francês. O entrecruzamento entre trabalho
ficcional e vivência factual é o eixo do trabalho que, segundo o articulista, insere as duas
obras no campo das chamadas escritas de si. Segundo o articulista, a emergência do espaço
biográfico (ARFUCH, 2010) na ficção é o que explica tanto da escolha de Guibert de narrar-
se a partir de um discurso aparentemente referencial quanto a escolha de Abreu de apagar as
marcas da vivência factual em sua obra. Nos dois casos, resistir à morte e valorizar a instância
autoral como portadora do gesto de narrar são traços comuns aos dois escritores.
Em “Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do romance O filho mais velho de
Deus e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli”, João Luís Pereira Ourique e Douglas Eraldo
dos Santos exploram uma possível natureza satírica da obra em seu diálogo com diferentes
gêneros literários, dentre eles a ficção científica. As diversas possibilidades de interpretação
do romance estabelecem, segundo os autores, vínculos com a longa tradição humana de
encontrar sentido para a existência mediante narrativas amparadas em teorias conspiratórias.
No artigo “’Nebulosa e retumbante’”: notas sobre as Badaladas do Dr. Semana”, Victor
da Rosa refaz a trajetória editorial das crônicas publicadas na coluna “Badaladas” da revista
Semana Ilustrada (1860-1876) sob o pseudônimo Dr. Semana e atribuídas, em grande parte,
a Machado de Assis pela pesquisadora Sílvia Maria Azevedo. O estudo aborda o desafio
que, com tal atribuição, a pesquisadora lança a alguns dos nomes consolidados da crítica
machadiana (Lúcia Miguel Pereira, José Galante de Sousa e Raimundo Magalhães Júnior)
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e, também, o modo como Azevedo se vale de uma série de pistas e de procedimentos de
atribuição autoral que estes mesmos críticos deixaram como legado. Segundo o articulista,
as duas principais complicações para tal atribuição de autoria são, por um lado, a escassez de
provas materiais que liguem Machado de Assis a esse grande conjunto de textos, e a natureza
do pseudônimo Dr. Semana, que era usado por diferentes cronistas do periódico.
“Suspensão do espaço-tempo no conto “Morangos mofados”, de Caio Fernando Abreu”,
artigo de Elioenai dos Santos Piovezan, define a narrativa que toma como objeto de estudo
como obra inacabada e lugar de passagem, texto sintomático da chamada crise da narrativa.
Desenvolve a sua análise com base em Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996),
Agamben (2007), Bakhtin (2011) e Reis (2018), destacando o procedimento do narrador de
mesclar vozes e perspectivas do protagonista, das personagens e do próprio narratário na
construção do texto.
Por fim, no artigo “Remodelações da poética romanesca em Cachalote: um estudo de
caso para apreensão do romance gráfico”, Lucas Zafalon Garcia investiga as relações entre os
gêneros romance e romance gráfico. Com base em Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor
Adorno e Lucien Goldmann, estuda Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho como
exemplar de romance gráfico que porta traços importantes do romance, a saber: o desalento
característico do indivíduo moderno sob o capitalismo, a fragmentariedade constitutiva da
experiência moderno-contemporânea e a problemática da individualização da personagem.
A seção Dossiê foi, como já dito, organizada pela Profª Drª Claudia Nigro, da Unesp/
São José do Rio Preto, contando com artigos voltados para o estudo das relações entre
Literatura e Gênero – campo de investigação que está na ordem do dia e, além disso, ganhou
maior relevância política no atual contexto de emergência e disseminação de discursos e
práticas obscurantistas e preconceituosas. Remetemos o leitor à Apresentação do Dossiê,
feita pela organizadora, a quem agradecemos, juntamente com os alunos que a auxiliaram,
pela colaboração para com a produção da revista.
E para finalizar, agradeço, em nome de toda a equipe da revista, a todos os que
colaboraram para que mais este número se concretizasse. Aproveito, também, para agradecer
retrospectivamente a todos os que, de um modo ou outro, contribuíram ao longo dos últimos
12 anos para a existência e a periodicidade da Olho d’água, da qual, como editor-chefe,
agora me despeço.
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VARIA
O Pós-colonial: utopia e distopia na escrita da
desilusão moçambicana
RESUMO: O presente texto visa estabelecer relação entre a teoria pós-colonial, utopias e
distopias. Em seu primeiro momento, uma breve história da literatura africana produzida em
língua portuguesa e a definição de pós-colonial são apresentadas ao leitor, buscando situá-
lo no campo da análise que irá emergir posteriormente. Em seguida, utopia e distopia são
vinculadas à produção literária moçambicana. As guerras e seus desdobramentos mudam as
percepções de mundo e valores do país, servindo a literatura como suporte para reflexões e
denúncias. Para fins de elucidação dos conceitos trabalhados, a obra O último voo do flamingo
(2005), de Mia Couto, permeia a escrita e serve como balizadora do estudo aqui proposto.
ABSTRACT: The present article aims to establish a connection among postcolonial theory,
utopias and dystopias. In its first moment, a brief history of African literature written in
Portuguese and the definition of postcolonialism are presented to the reader, aiming to situate
her or him in the field of analysis that will subsequently arise. Afterward, utopia and dystopia
will be linked to the Mozambican literary production. Wars and their outcomes change world
perceptions and country values, making literature a medium of reflections and complaints. To
elucidate the concepts discussed in the article, the book O último voo do flamingo (2005), by Mia
Couto, pervades the writing and works as a guide to the proposed study.
Duas épocas determinam a literatura africana lusófona, de acordo com Pires Laranjeira
(2001): a Época Colonial e a Época Pós-Colonial. De acordo com o autor, os primeiros
textos relacionados à África, não necessariamente de africanos, datam de 1849. Partindo da
publicação de Espontaneidades da minha alma, poemas de José da Silva Maia Ferreira, livro
impresso em Angola, são consideradas, por Pires Laranjeira, seis fases da literatura africana
de língua portuguesa: “baixo romantismo”, “negro realismo”, “regionalismo africano”, “sócio-
realismo”, “resistência” e “contemporaneidade”.
O “baixo romantismo”, datado de 1849 a 1880, diz respeito a formas e temas portugueses,
à herança cultural lusíada. Existia, de certa forma, uma ideologia de apreço à aristocracia.
A produção baseou-se em poesia, com estruturas de redondilhas. A cultura africana era
pensada, mas por meio de paradigmas portugueses.
Também o “negro realismo”, nas décadas de 80 e 90 do século XIX, é de inspiração
portuguesa, mas o negro aparece como tema central do texto. Contudo, as manifestações
da negritude apareciam sob o ponto de vista de um complexo de inferioridade, de forma
aculturada. Destaque-se que havia, no âmbito da literatura, possibilidade de ascensão social
para os indivíduos.
Entre 1901 e 1941 ocorre, de acordo com Pires Laranjeira, o chamado “regionalismo
africano”. Esse regionalismo denotava uma postura que reagia às guerras e ao colonialismo,
de insurgência antimetropolitana. Existe uma conscientização política e/ou civil. Pensar a
África, nesse momento, é pensar contra Portugal. Aparecem autores como Rui de Noronha,
em Moçambique, que se dedicou à poesia e ao jornalismo.
A quarta fase, o “sócio-realismo”, emerge aprofundando a opção anticolonial, mas agora
de uma forma a utilizar a literatura como instrumento a serviço cívico, de conscientização.
Este movimento seria definido como a procura permanente da herança dos povos, da sua
história profunda. Teve duração de 1942 a 1950/60. No interior do sociorealismo surge o
“movimento da negritude”, em que aparece a figura do colonizado.
Há todo um discurso político que mudou — provavelmente ele não era tão
verdadeiro quanto se pensava, era assumido como um discurso da boca para
fora. Há um verso de um poeta moçambicano da Frelimo que ilustra isso muito
bem. “Não basta que seja justa a nossa causa; é preciso que a pureza e a justiça
existam dentro de nós”. Faltou isso em muitos dirigentes políticos. Por outro
lado, também é verdade que quem está no poder tem que entrar numa lógica
de gestão, na qual é muito difícil perceber onde está o limite entre a traição
do princípio e o momento de adaptação ao mundo real. Isso é muito difícil de
gerir. Vivi esse processo porque eu era da Frelimo, da oposição, e pensava que a
conquista do poder seria o fim do poder — no sentido que todos teriam o poder.
[...] Hoje já não sei o que é ser de esquerda, e provavelmente a própria esquerda
não sabia o que ela é. Mas essa disposição, essa vontade de mudar o que está
errado no mundo têm que ser permanentes (COUTO, 2009 apud FELINTO).
Eu já não tinha crença para converter a minha terra num lugar bem assombrado.
Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em
Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se
embebedavam sem respeito. [...] Os novos-ricos se passeavam em território de
rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos.
Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos
sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil.
Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus
pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam
enriquecer, sem trabalhar (COUTO, 2005, p. 110).
Colocadas lado a lado as diferentes versões do mesmo fato, é percebido que os grupos
entram em conflito com o intuito de que se forme uma memória única. Cada grupo,
entretanto, quer ver privilegiada e favorecida a sua variante. Possuir a memória tida como
“verdadeira” é símbolo de poder, prestígio para o grupo que a detém. Como afirma Foucault
(apud Hilário, 2013, p. 208): “o indivíduo é produto do poder”. O poder é dado quando sua
versão dos fatos passa a ter estatuto de verdade. O problema é que, via de regra, essa verdade
só é crível se vier do discurso da história oficial, do governo, daqueles que estão mandando
nos destinos da nação. O povo, curandeiros, prostitutas, donos de bar (os quais aparecem
como detentores de memória no romance de Mia Couto) detêm o direito ao testemunho;
contudo, esses relatos são tidos como fatos delirantes, não dignos de fazer parte do discurso
constituinte e formador da estória/história.
O belicismo político, citado por Hilário, exclui a democratização das discussões, a
começar pela constituição de binarismos excludentes e pelo fato de que somente um dos
lados do debate possui credibilidade, sem espaço para a contradita. Quem é contra o governo
é suspeito, portanto, vigiado, punido, ameaçado. Passa a haver uma civilização em que a
barbárie é endossada pela maioria, quer seja pelo motivo da concórdia, quer seja pela não
oposição a ela. Assim, para que possa seguir existindo, a sociedade passa a “lançar mão da
barbárie para sua própria manutenção” (HILÁRIO, 2013, p. 213).
A guerra que se instala em Moçambique é um conflito que possui dois momentos: a
guerra da revolução, ou seja, a luta contra o colonizador; e a guerra da desilusão, o conflito
interno moçambicano pela reivindicação do poder. Logo, a literatura moçambicana também
irá refletir esses dois momentos na sua formação e consolidação.
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A produção literária no período pós-colonial se dá por meio de dois momentos distintos.
O primeiro está centrado na exaltação patriótica, na celebração dos heróis, fatos históricos,
referência e exaltação de um país recém-liberto. De acordo com Dutra (2010), o período
tem a duração de quase dez anos, estendendo-se de 1975 a 1984/85. O segundo momento se
constrói justamente no questionamento do status dos heróis de outrora, revolvendo a utopia
e as posições doutrinárias, vale dizer, um momento de desilusão.
O discurso literário moçambicano tem buscado essa fórmula: emprestar voz a sujeitos
ex-cêntricos, mesmo que inicialmente ela seja desacreditada, questionada. A subversão da
história nos é revelada pelas personagens que desvendam os mais íntimos segredos da nação.
Esse testemunho retratado na literatura é uma porta encontrada pelo país para a redenção
das vítimas da guerra. A potência da voz do oprimido denotada na literatura mostra um
movimento de luta contra um sistema que busca o silenciamento dos “de baixo”. Esse sistema
opressivo não quer permitir a formação de um novo espaço cultural e de pensamento, quer-
se uma fala hegemônica, que não permite a expressão dos marginalizados.
Lyman Sargent, em seu livro Utopianism: a very short introduction (2010), faz um
apanhado acerca da utopia nos mais distintos países e continentes. Iniciando pelos conceitos
de utopia e distopia, o autor traz à luz aspectos da obra fundadora do conceito, Utopia (1516),
de Thomas More, para então reconstruir o conceito e demais perguntas que acompanham o
assunto desde então. Assim, os mitos, as sociedades e a literatura são postos lado a lado para
que se compreenda como as utopias foram acontecendo nas nações e de que forma vão sendo
postas à prova conforme o andamento dos processos históricos.
Interessa-nos sublinhar a contribuição do autor acerca da literatura produzida no
período pós-colonial. No terceiro capítulo, o autor discorre sobre o colonialismo e a forma
como as nações foram colonizadas. Inicia dividindo o processo de colonização em dois
quadros: aquela colônia cujos produtos e riquezas serão explorados pela metrópole e outro
projeto de colonização que visa criar um novo país com o excedente populacional, ou seja,
com aqueles cujo perfil não serve para integrar a nação colonizadora. Destarte, os dois tipos
de colônia serviriam para a criação de imaginários utópicos, ou seja, países explorados que,
pré e pós-independência, trazem em seu discurso um tom utópico, glorioso, de liberdade e
construção de uma nova e distinta nacionalidade.
Especificamente sobre a África, Sargent traz o exemplo da África do Sul e a literatura
lá produzida, que discutia a questão racial. Sublinha o fato de que algumas obras produzidas
no país defendiam e justificavam a separação racial. Outros romances, no entanto, tratariam
de instigar a urgência na criação de novas leis (Constituição) que dessem conta de melhor
abarcar as mudanças surgidas no campo étnico-racial. Sargent denota que no pós-apartheid
muitas obras têm um caráter distópico, sinalizando uma preocupação com o futuro e com as
mudanças e rumos traçados pela nação. Mais adiante, Sargent discute a utopia e a distopia em
outros países africanos, acrescentando a ideia de que as ditaduras civis e militares produzem
efeito na temática das obras, fazendo com que romances africanos tragam a problemática
do Estado enquanto detentor do poder. Assim, um futuro imaginado, seja ele positivo ou
negativo, acaba por ser balizado pelas estruturas estatais. A paz e a prosperidade são por
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vezes retratadas, mas elas advém de lugares em que existem reinos, relatos orais, valorização
tribal, de matrizes populares, portanto, não originárias do colonizador.
Muito embora a obra não trate especificamente de Moçambique, o pós-colonial nela
é discutido enquanto pressuposto para o lugar de fala daquele que irá sonhar com uma
nação diferente daquela construída pelo explorador. A obra aqui trazida para ilustração
da distopia moçambicana, O último voo do flamingo, encerra sua diegese com o país sendo
engolido por um abismo:
Os ritos, rezas, tradições do colonizado foram utilizados para que o país melhorasse.
Os “novos governantes”, contudo, desejavam enriquecer rapidamente, sem amor à terra,
desrespeitando os compatriotas. Sendo assim, a memória seria apagada. O país ficaria
“suspenso”, submerso, até que houvesse tempos favoráveis para que o território pudesse se
converter em nação e novas memórias ali brotassem. Ou seja, para que o país possa de fato
existir, uma nação realmente nova precisa emergir. Portanto, a nação tomada pelos corruptos
precisa desaparecer, deixar de existir, para o surgimento de uma utópica nação idealizada.
Logo, a paz e a prosperidade, como nos possibilita ler em Sargent, de fato advém do
elemento tribal, da valorização daquilo que o povo tem de mais seu: a cultura ancestral
guardada e transmitida de geração em geração, ancorada nos valores anteriores à colonização.
A “invocação do tempo antigo” presta-se para o tradutor, Massimo, comparar “os costumes
que vão morrendo aos hábitos do presente, semeadores de discórdia. A visão nostálgica do
passado salienta um tempo de descomunhão em que os novos ricos se passeavam em terra
de rapina, não tinha pátria” (FONSECA; CURY, 2008, p. 56).
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O passado/presente de Moçambique trazido à tona pela literatura é de país desolado
pela miséria, marcado pela guerra e dela ressentido. Um país que sonhou um futuro diferente
e que se viu traído por sua própria gente, que repete as estruturas de poder, a ideologia e os
desmandos do colonizador.
A nação idealizada pelos moçambicanos é aquela que valoriza seus velhos, seu falar, suas
tradições, sua relação com os animais e com a natureza. Uma pátria que busca reconstruir-se
a partir da memória coletiva inserida na literatura, que não é a oficial, mas a conflitante e
rica do povo que originou e povoou a hoje liberta Moçambique. Compreender a desilusão
que a literatura nos apresenta é refazer os passos históricos do país e sua busca constante por
reinventar-se, ainda que imerso em uma ditatorial colonialidade.
Considerações finais
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Referências
APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Trad. Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1997.
BONNICI, T. Introdução ao estudo das literaturas pós coloniais. Mimesis, Bauru, v. 19, n.
1, p. 07-23, 1998. Disponível em: https://secure.usc.br/static/biblioteca/mimesis/mimesis.
Acesso em: 30 jun. 2019.
FONSECA, M. N. S.; CURY, M. Z. F. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.
FELINTO, M. Mia Couto e o exercício da humildade. Folha de São Paulo. Caderno Mundo.
21 jul. 2002. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1393,3.shl.
Acesso em: 28 jul. 2019.
HAMILTON, R.. A literatura dos PALOP e a teoria pós-colonial. 1999. Via Atlântica.
Universidade de São Paulo: São Paulo, s/v., n. 3, 1999, p. 12-23. Disponível em: http://www.
periodicos.usp.br/viaatlantica/article/download/48809/52884. Acesso em: 30 jun. 2019.
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A felicidade das máquinas: o triunfo dos
dispositivos e o aniquilamento do outro em O
apocalipse dos trabalhadores,
de Valter Hugo Mãe
VERA BASTAZIN*
HUMBERTO MOACIR DE OLIVEIRA**
RESUMO: O tema da felicidade é uma constante na obra de Valter Hugo Mãe. Em O apocalipse
dos trabalhadores, terceiro romance do escritor português, os trabalhadores, representados
principalmente por três personagens, buscam a felicidade na quietude da ignorância e da alienação.
O ucraniano andriy é uma das personagens mais radicais nessa busca, chegando a colocar para
si a tarefa de transformar-se numa máquina, o que inicia o apagamento da sua subjetividade e,
principalmente, o aniquilamento do outro. Recuperando as discussões de Giorgio Agamben sobre
o triunfo dos dispositivos e a filosofia da alteridade, de Emmanuel Lévinas, o presente artigo tem
como um dos seus principais objetivos investigar a leitura que o romance de Mãe faz da nossa
sociedade contemporânea.
ABSTRACT: The theme of happiness is a constant in the work of the portuguese Valter Hugo
Mãe. In O apocalipse dos trabalhadores (The Apocalypse of the Workers), the writer’s third novel, the
workers, represented mainly by three characters, seek happiness in the stillness of ignorance
and alienation. One of them, the ukrainian andriy, is more radical in this quest, even putting
himself into the task of becoming a machine. The search for a “mechanical happiness” causes
the erasure of workers’ subjectivity and, above all, the annihilation of the Other. Recovering the
discussions of Giorgio Agamben on the triumph of apparatus and the philosophy of the alterity of
Emmanuel Lévinas, the present article aims to investigate the reading that Mãe’s novel makes of
our contemporary society. In this investigation, a critique of contemporary society was perceived,
which is very close to the reprimand that the two philosophers mentioned.
KEYWORDS: Alterity; Apparatus; Happiness in Literature; The Apocalypse of the Workers; Valter
Hugo Mãe.
A felicidade é tema recorrente nos livros do escritor português Valter Hugo Mãe.
Em seu romance de estreia, o nosso reino, publicado em 2004, o protagonista, num conflito
constante entre o bem e o mal, busca transformar-se em santo para salvar seus conterrâneos
das forças do mal e da morte. Essas forças são representadas no imaginário da personagem
principalmente pela figura do seu mais insistente antagonista, uma espécie de mensageiro
da morte que recebe o epíteto de “o homem mais triste do mundo”. Em contraponto a esse
excesso de tristeza, o menino de apenas oito anos, persistente em sua busca singular pela
santificação, chega a uma definição para a felicidade: “...se é feliz quando se aceita o destino”
(MÃE, 2015, p. 116). Em o remorso de baltazar serapião, o protagonista vislumbra a “felicidade
última do amor” ao lado da formosa ermesinda, com quem se casa num lindo dia de maio: “E
era como se via no ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos lugares” (MÃE, 2010, p.
41). No entanto, após um jogo de poder e violência que incide por parte do patrão sobre ele,
e por parte do próprio baltazar sobre ermesinda, toda felicidade parece se perder num mar
de iniquidades, preconceitos e violências.
Afora seus dois romances de estreia, o tema da felicidade reaparece em outros livros
do autor. Em a máquina de fazer espanhóis, o protagonista, diante da morte de sua esposa,
sente que qualquer possibilidade de felicidade estava extinta. Era como se lhes dissessem:
“lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante”
(MÃE, 2016a, p. 36). Ironicamente, após a morte da esposa, o protagonista passa a residir
num asilo chamado “lar da feliz idade”, onde vê sua felicidade se extinguir ao mesmo tempo
em que assiste ao nascimento de novas, breves e inesperadas formas de ser feliz. Em O filho de
mil homens, o tema da felicidade é ainda mais explicitamente discutido, havendo inclusive um
capítulo intitulado “Os felizes”. Esse romance expectora a todo momento frases que definem
a felicidade, ora encarando-a como “uma imprudência” (MÃE, 2016b, p. 138), ora como
resultado de “ser o que se pode” (MÃE, 2016b, p. 86), ora, ainda, como resultado de alguém
“ser o que não se pode” (MÃE, 2016b, p. 110).
É possível encontrar nos romances de Mãe variadas formas de reflexão a respeito
da felicidade, o que também rende ao escritor a tarefa de responder, vez ou outra, para si
mesmo, o que é ser feliz. No programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura, em janeiro de
2014, a jornalista Mona Dorf citou a recorrência do tema em sua obra e indagou ao escritor
qual seria para ele a definição de felicidade, ao que o mesmo respondeu:
Nesse ponto, a resposta de Mãe está mais próxima das reflexões de Sponville (1952/-)
sobre a sabedoria do que das teorias de Freud (1856/1939) sobre o comportamento sadio. Ao
defender que a finalidade última da filosofia é a felicidade, André Comte-Sponville marca uma
diferença entre o que ele chama de uma “vida verdadeiramente feliz” e as pequenas felicidades
factícias e ilusórias que experimentamos no nosso dia a dia. A sabedoria seria, assim, uma
felicidade na verdade, uma felicidade verdadeira, uma verdade feliz. Essa felicidade, brotada da
esperteza, como diz Mãe, opõe-se a certo tipo de felicidade apresentada por Sponville: “às
1
Nesse texto Freud diferencia Neurose e Psicose a partir de suas relações com a realidade. Enquanto o neurótico,
ao ligar-se à realidade, se afasta de seu mundo interno inconsciente através do recalque, o psicótico suprime algo
da própria realidade ficando mais exposto, portanto, ao material inconsciente. Se o sintoma neurótico é marca
do retorno do recalcado, os fenômenos psicóticos representam, por sua vez, um contato mais direto do paciente
com o material do seu inconsciente. Daí a psicose apresentar sintomas mais extraordinários como alucinação,
delírio, alterações da consciência, enquanto a neurose é marcada por sintomas mais cotidianos como ansiedade,
fobia, depressão.
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nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas
vezes por ilusões, diversão ou má fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos,
estimulantezinhos” (2001, p. 11-12). Por isso, Sponville defende que a felicidade é também
fruto de uma esperteza, por exemplo da esperteza chamada filosofia que, em última instância,
tem como meta a felicidade, embora não tenha essa como uma norma: “A felicidade é a meta
da filosofia, mas não é sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade” (SPONVILLE,
2001, p. 13). Para o autor o que, por vezes, leva a filosofia a verdades tristes nunca é sua meta,
mas sua condição de se submeter à verdade ainda que esta gere sofrimento.
Tanto para o escritor português como para o filósofo francês, a felicidade não pode ser
uma alienação, um estado de quietude ou de euforia apoiado na ignorância. Essa denúncia
da alienação é encenada com mestria por Valter Hugo Mãe no romance o apocalipse dos
trabalhadores. Nele, as personagens principais, contrariando as sugestões de Freud e de
Sponville, buscam se ajustar ao mundo externo, apagando os desejos e os sonhos provindos
do mundo interior, em busca de uma alienação tão brutal que uma delas deseja, efetivamente,
virar uma máquina.
É constante no romance as personagens manifestarem que talvez fossem mais felizes se
lhes faltassem qualquer reflexão ou tipo de pensamento. Em muitas passagens, a alienação e a
ignorância aparecem como uma busca possível para a felicidade. No entanto, não podendo a
felicidade ser consequência de uma alienação, as personagens se frustram. Nessa perspectiva –
de que a felicidade não pode advir de uma alienação e tampouco da anulação da subjetividade
e da relação com o Outro2 – é que as reflexões de Giorgio Agamben sobre o triunfo dos
dispositivos na contemporaneidade e as críticas de Emmanuel Lévinas ao aniquilamento do
outro como pressuposto filosófico sobre o sujeito moderno podem nos ajudar a compreender
essa tese sobre a felicidade que Valter Hugo Mãe apresenta no romance.
2
Em geral, salvo em algumas citações de outros autores, a opção aqui foi seguir a sugestão de Maria Cristina
S. Furtado (2011, p. 150) e grafar o Outro com maiúscula sempre que se referir à alteridade de modo geral, ao
infinito, ao estrangeiro. Quando se tratar do outro enquanto o próximo, um outro ser humano, será mantida a
grafia com letra minúscula. Entretanto, como reconhece Furtado, há uma equivocidade entre as duas formas, já
que o Outro, na obra de Lévinas, está também presente no outro.
3
A escrita de Valter Hugo Mãe ficou bastante conhecida pelo uso que o autor faz das letras minúsculas, optando em diversos
livros, como no próprio o apocalipse dos trabalhadores, por não usar nenhuma letra maiúscula, mesmo para nomes próprios e inícios de
frases. Dessa forma, maria da graça, quitéria, e andriy, assim como todos os demais nomes das personagens da trama serão também
grafados com letras minúsculas. Segundo Shirley de Souza Gomes Carreira (2012), no artigo “O mundo em minúsculas: uma
leitura de ‘A máquina de fazer espanhóis’”, esse destaque às minúsculas é uma forma do autor enfatizar a oralidade do seu texto.
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em velórios sempre que solicitadas. Ambas as mulheres são apresentadas no início do
romance, enquanto andriy só vai surgir já no desenvolvimento da narrativa sendo descrito
como um ucraniano que abandona os pais para tentar a vida no oeste europeu, trazendo
consigo a saudade e o sentimento de abandono por ter deixado o pai, em processo acentuado
de loucura e a mãe, uma mulher forte e extremamente dedicada à família.
Sem dúvidas, andriy, ao assumir seu desejo de virar uma máquina, é quem representa
de maneira mais explícita a alienação como tentativa frustrada de felicidade. No entanto,
antes de andriy ser mencionado no texto, as duas mulheres-a-dias já denunciam essa
condição alienante do trabalhador no sistema capitalista. maria da graça trabalha para o
senhor ferreira, um velho que a molesta sexualmente e por quem ela nutre um sentimento
ambivalente de amor e ódio. Sua amiga quitéria lhe aconselha: “o amor criado assim, a partir
de quem se odeia, é o pior” (MÃE, 2017, p. 25). O senhor ferreira gaba-se de seu repertório
cultural, enquanto graça se dedica exclusiva e arduamente ao trabalho: “pensava que estava
ali apenas para fazer o seu dinheiro e era de coisas de comer e vestir que precisava” (MÃE,
2017, p. 21). O contraste entre o patrão endinheirado e a mulher ocupada apenas com o
essencial à vida (comer e vestir-se) é bastante recorrente quase como forma de denúncia
do homem rico que usufrui atividades de lazer e de conhecimento das artes e da mulher
pobre que luta para obter a mínima sobrevivência. As duas caracterizações seriam alusões
contundentes a nossa sociedade. quitéria, de maneira jocosa, ajuda a denunciar esse contraste
ao dizer que os artistas citados pelo senhor ferreira pouco importam às faxineiras: “és uma
empregada, dizia-lhe a amiga, a menos que esses homens tenham inventado o cif líquido
marine não me parece que te façam mais feliz”(MÃE, 2017, p. 36). Enquanto a felicidade
para o patrão transcorria dos réquiens de Mozart e dos versos de Rilke, às mulheres-a-dias
importam os inventores de produtos de limpeza que lhes tornassem um pouco menos árduo
o trabalho diário.
Assim são descritas as duas primeiras trabalhadoras, personagens que pensavam que
“poderiam ser feitas de pedra” (MÃE, 2017, p. 25). maria da graça chega mesmo a sonhar
em se casar com senhor ferreira e tornar-se uma senhora burra e obediente (MÃE, 2017, p.
29). Em seus sonhos recorrentes com a porta do céu, vê são pedro a lhe reprimir e ela sem
nada a mostrar a deus que o pudesse impressionar. Ao acordar de um desses sonhos, graça se
revolta ao projetar a hipótese de, mesmo no paraíso, ter ainda de pensar e ser astuta:
ter de pensar no paraíso, não lhe parece isso algo mal feito, perguntava ela ao
senhor ferreira, que se esteja no paraíso para pensar [...] o paraíso devia ser feito
só para sentir felicidade, sem limites, para todos (MÃE, 2017, p. 35).
andriy parece uma representação perfeita desse sujeito larval, espectral e alienado
aos dispositivos que o cercam, o modelam e o controlam integralmente. A genialidade do
romancista, Valter Hugo Mãe, é ressaltada pelo fato dele ter conseguido metaforizar esse
sujeito espectral sem usar os artifícios mais previsíveis do avanço exacerbado da tecnologia,
fórmula que rende sucesso, como já colocado, à citada série Black Mirror, na qual o humano
teme ou deseja virar máquina por conta de um certo abuso do uso da tecnologia. Em o
apocalipse dos trabalhadores, um homem deseja virar máquina, alienando-se integralmente
ao dispositivo do trabalho. É como se andriy doasse todo o seu ser à práxis do trabalho e,
consequentemente, ao envio de dinheiro a seus pais. A obra de Mãe demonstra, assim, que
é possível prescindir à tecnologia para os dispositivos triunfarem, basta que a subjetividade
seja terminantemente apagada. Parece-nos claro que Agamben (2009) se dá conta disso e
não coloca o avanço tecnológico como única possibilidade de os dispositivos triunfarem.
Por outro lado, o filósofo não parece se enganar ao dizer que, na contemporaneidade, muito
do nosso ser é alienado a dispositivos eletrônicos e através deles vivemos grande parte da
nossa vida. No entanto, o drama de andriy demonstra como a crítica de Agamben (2009) se
expande para muito além de uma crítica à tecnologia.
Contudo, dizer que o trabalho é um dispositivo e que pode operar de forma a produzir
o apagamento do sujeito, não significa dizer que o trabalho não possa ser também fonte de
subjetivação. Freud (1996a) bem observou essa condição dupla do trabalho - de alienação e
subjetivação -, presente, na verdade, em todos os dispositivos. Para Freud, o trabalho prende
o sujeito à realidade, ao mesmo tempo em que permite o deslocamento de componentes
libidinais narcísicos, agressivos e eróticos para as atividades a ele relacionadas: “A atividade
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profissional constitui fonte de satisfação, se for livremente escolhida, isto é, por meio
de sublimação tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos
persistentes ou constitucionalmente reformados” (FREUD, 1996a, p. 88). Entretanto, o
psicanalista reconhece que o trabalho raramente aparece como um caminho para a felicidade
humana, já que a maioria das pessoas só trabalha sob forte pressão da necessidade – e, aqui,
podemos incluir a necessidade de comer e de vestir-se, como diria graça; e a necessidade do
dinheiro para os pais, como diria andriy.
Evidentemente, essa vertente alienante do trabalho e a falta de sentido das atividades
laborais para seus autores, não é fruto de um acaso histórico, nem de uma indolência individual,
mas remonta ao modo de funcionamento social em que vivemos. Uma observação desse
gênero fez com que Bruno Mazolini de Barros e Luara Pinto Minuzzi (2016) abordassem a
alienação de andriy tanto como uma forma da personagem ceder ao capitalismo tardio, como
uma forma de sobreviver a ele. Os autores, a partir do ensaio de Jonhathan Crary, “24/7
– Capitalismo tardio e os fins do sono”, salientam a incompatibilidade entre o capitalismo
contemporâneo (com sua exigência de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana) e uma
vida de fato humana. Rogério Caetano de Almeida e Jope Leão Lobo parecem concordar com
essa leitura sobre andriy ao dizerem que a vontade do ucraniano de virar máquina advém
da “tentativa de anular o tempo (a força irreversível) da espiral de Sísifo para que fosse a
máquina de trabalho perfeita e, assim, ganhar dinheiro suficiente para mandar aos pais”
(ALMEIDA; LOBO, 2015, p. 196). A metalização descrita por andriy, que transforma todo
o tempo do sujeito em trabalho, soa, portanto, como uma feroz crítica ao sistema capitalista
em que vivemos, que nos afasta da nossa subjetividade, fazendo os dispositivos triunfarem,
além de nos afastarem também dos outros seres humanos, como demonstraremos a seguir.
É verdade que desde o século XIX esse Eu autônomo vem sofrendo muitas críticas e
crises, empreendidas por Nietzsche, Freud, Foucault, entre outros. Mas talvez ninguém tenha
feito um ataque tão radical ao Eu autônomo e racional do Cogito cartesiano quanto Lévinas.
Em seu ensaio “O eu e a totalidade”, o filósofo chega mesmo a dizer que sem a exterioridade,
negada no Cogito, não há sequer pensamento. Lévinas faz então uma distinção que parece nos
ajudar a compreender a equação entre pensamento e felicidade aludida pelas personagens de
o apocalipse dos trabalhadores. Ele distingue o ser vivente que, por ignorar o mundo externo, não
pensa, do ser pensante, que acolhe a exterioridade que o convida ao trabalho e à apropriação.
O falso paraíso de maria da graça consiste exatamente em existir apenas como ser vivente,
não pensante. Para Lévinas, isso não exclui do ser uma consciência; o ser vivente tem
consciência, mas uma “consciência sem problemas, quer dizer, sem exterioridade, mundo
interior cujo centro ele ocupa, uma consciência que não se preocupa em situar-se em relação
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a uma exterioridade” (2004, p. 35). É o que almejam os três trabalhadores do romance: uma
“consciência sem problemas”, distante, como Esteves – em A máquina de fazer espanhóis -, de
qualquer metafísica. E, é justamente a metafísica que o ser pensante não pode ignorar:
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Nesse sentido é interessante lembrar a distinção feita pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek entre violência
subjetiva e violência sistêmica. Para Žižek, a violência subjetiva, diretamente visível, é composta também pela
violência sistêmica, “que consiste nas consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de
nossos sistemas econômico e político” (ŽIŽEK, 2014, p. 17). augusto, o marido de graça, representa nesse sentido
a violência subjetiva, enquanto que todo o sistema que oprime os trabalhadores do livro poderia ser encarado
como uma forma de violência sistêmica.
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felicidade na contemplação da natureza e, principalmente, na partilha, muito semelhante ao
final feliz que irá se concretizar três anos mais tarde em O filho de mil homens. No entanto,
em o apocalipse dos trabalhadores prevalece uma atmosfera trágica exaltada sobretudo pelo
suicídio de maria da graça no último capítulo do livro.
Ainda no ensaio “O eu e a totalidade”, Lévinas faz uma observação que nos pode auxiliar
a explorar essa diferença entre o apocalipse dos trabalhadores e O filho de mil homens. Lévinas
afirma que o amor não garante uma verdadeira acolhida da alteridade, do estranho, do
Outro. O conceito de terceiro homem demonstra exatamente como o amor pode, na verdade,
servir como um empecilho ao acolhimento da extrema alteridade, do que é absolutamente
estranho e estrangeiro ao sistema interior do ser. Para Lévinas, “amar é existir, como se o
amante e o amado estivessem sós no mundo. A relação intersubjetiva do amor não é o início,
mas a negação da sociedade” (LÉVINAS, 2014, p. 43). O filósofo prossegue dizendo que a
sociedade do amor é uma sociedade refratária à universalidade, refratária ao que é estranho
ao par amoroso, àquilo que Lévinas chamou de terceiro homem - um elemento que perturba
a sociedade do amor.
Nesse sentido, a diferença entre quitéria e Crisóstomo, protagonista de O filho de
mil homens, é quase didática. quitéria, é verdade, abre-se ao estrangeiro andriy, e com isso
se humaniza um pouco mais, a ponto de impressionar maria da graça que lhe diz: “não te
entendo. julguei sempre que não tinhas coração” (MÃE, 2017, p. 131). No entanto, a mulher-
a-dias forma com o ucraniano uma sociedade de amor que é posta à prova quando, no auge
da felicidade do casal, glória, irmã mais nova que havia abandonado quitéria aos cuidados
e envelhecimento dos pais, retorna. glória é um terceiro elemento que ameaça a sociedade
amorosa de andriy e quitéria. De início, a irmã mais velha acolhe a caçula, não sem antes lhe
dar uma forte bofetada na cara. Contudo, diante da ameaça que glória representava à felicidade
do casal, quitéria acaba por expulsar a irmã de seu lar. glória é descrita como um cano de
água que rebentou na casa, ou ainda como uma peça de motor que não pertencesse àquela
máquina, tal como a alteridade, em última análise, deve mesmo soar: estranha, incômoda,
ameaçadora. A sociedade formada por andriy e quitéria é refratária à universalidade, porque
a universalidade inclui também o cano estourado, a peça que não se encaixa, a ameaça à
felicidade do casal.
Em O filho de mil homens, a universalidade e, portanto, a alteridade, parecem ter
um lugar muito mais radical na trama do que na história de quitéria. As personagens que
acompanham Crisóstomo inventam uma família – e não propriamente um casal. Uma família,
como percebe o filho de Crisóstomo, é “um organismo todo complexo e variado. Era feita
de tudo” (MÃE, 2016b, p. 188). Antonino, o homem maricas que foi o primeiro marido da
namorada de Crisóstomo, é apresentado também como uma peça que não se encaixava no
quebra-cabeça da família, quase como um cano rebentado à imagem da irmã de quitéria.
No entanto, diferentemente de glória, ele é acolhido e passa a fazer a parte do coletivo. A
própria reflexão de Crisóstomo que dá nome ao romance indica uma abertura mais radical
das personagens a essa dimensão da universalidade:
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todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães [...]. Como se os nossos mil pais e
mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos,
irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão
grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós
(MÃE, 2016b, p. 204–205).
Considerações finais
Atando alguns fios da proposta neste ensaio, talvez possamos afirmar que a obra de
Hugo Mãe, de maneira geral, não apenas revela, mas também estimula instigantes reflexões
sobre o valor e os significados da palavra felicidade – um conceito exaustivamente discutido
nas mais diversas perspectivas, independentemente das circunstâncias de espaço e tempo.
Os caminhos para se afastar ou atingir a felicidade, nos romances de Mãe, abrem-se
em alternativas plurais e atingem o leitor, enredando-o nos conflitos humanos que, pode-se
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dizer, transformam a fluidez do sentimento de felicidade em um conceito cuja abrangência
procura dar conta da multiplicidade de suas significações. As buscas e desencontros das
personagens criadas pelo autor trazem consigo a densidade da questão e a pergunta se coloca
e se repete reiteradamente: onde estaria a felicidade?
Agamben, tal como aqui retomado, desenha o conceito de dispositivos como possíveis
barreiras ou mesmo verdadeiros obstáculos criados pelas ciências, religiões, organismos
públicos ou privados para se atingir este estágio de satisfação e plenitude que seria a felicidade.
Lévinas, por sua vez, argumenta de forma contundente, apontando quase um caminho que
seria fundamental para o cultivo de um verdadeiro humanismo – o foco no Outro seria a
única direção para o resgate do sujeito em direção à felicidade.
Os suportes teóricos aqui abordados, seja via Agamben ou Lévinas, são na realidade
adendos à experiência lúdico-reflexiva proposta por Hugo Mãe, que coloca a consciência
como instrumento fundamental para se alcançar a felicidade.
Na abordagem dos dois filósofos, a verdadeira realização do ser humano só se daria
a partir de valores humanísticos colocados em contraponto à exploração que as sociedades
contemporâneas têm feito em relação às conquistas humanas nos planos materiais, sociais e
mesmo religiosos.
Hugo Mãe, por sua vez, em sua produção literária, entrelaça o imaginário ao seu
propósito criador, tal como deixa transparecer em uma de suas inúmeras entrevistas:
Usar o texto, no depoimento de Hugo Mãe, não parece significar torná-lo um instrumento
de persuasão, de convencimento ao outro, mas, muito pelo contrário, o significado proposto
parece estar ligado ao propósito do ato da escrita criativa, ou seja, de usar o texto como uma
possibilidade real do imaginário vivenciar a experiência da sensibilidade e da consciência
para se atingir uma realização como sujeito – como aquele que pode conquistar seu bem-
estar, sua satisfação, seu prazer de maneira a torna-se o protagonista na construção da sua
própria felicidade.
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ŽIŽEK, S. Violência. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.
WANDERLAN ALVES*
ABSTRACT: In this article, I analyze the enunciation and the possibilities of the saying, as well as
a sort of currentless associated to Caio Fernando Abreu’s oeuvre. These elements allow us to track
and rescue a power of the meanings (shock, confrontation, tension) of his work in relation to time,
for a rereading of his literature in the early 21th Century.
* Departamento de Letras – Centro de Ciências Humanas e Exatas – Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
– 58500-000 – Monteiro – PB – Brasil. E-mail: alveswanderlan@yahoo.com.br
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“Es una historia de objetos policrónicos, de objetos
heterocrónicos o anacrónicos”
Ora, a situação do presente […] torna a obra de Carl Einstein ainda mais ilegível
do que foi em sua época: voltou a ser o que ela fora no começo – uma obra
essencialmente inatual. Pois o que descortina é uma escrita e um pensamento
simultaneamente fulgurantes e sufocantes. Fulgurantes pelo surgimento
perpétuo de fórmulas paradoxais e violentas, nunca “introduzidas” ou
anunciadas, disparadas sempre como muitos outros ataques frontais. [...] Porém
os golpes chovem com tanta frequência, os raios fulgurantes se sucedem num
ritmo tal, que a escrita se torna sufocante, nos estrangula, nos esgota; [...] para
experimentar fisicamente o estranho cansaço dessa “intensa asfixia” [...] e um
movimento crítico que parece jamais poder sair de sua própria tensão, de sua
própria negatividade protestadora (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 342–343)2.
1
Tal questão coloca em debate o desafio às leituras de sua obra à luz dos conceitos de autobiografia e autoficção,
porque nos obriga a problematizar não só a concordância entre fatos narrados e eventos histórico-biográficos, mas
também as relações de homonimato e referencialidade nos escritos de CFA. Ao centrarem-se, fundamentalmente,
nos enunciados, as leituras da obra de CFA pelos vieses autobiográfico ou autoficcional tendem a assumir
como equivalentes ou idênticos o dizer e o dito, no texto literário, o que limita a apreensão e a distinção entre
aquilo que se representa (figura de escritor, alter ego, personagens plasmadas de elementos que se assemelham à
imagem do autor, etc.) e a fratura que marca o processo mesmo de representação (ou autorrepresentação) e suas
escolhas formais. Nesse sentido, seria importante lembrar que tais leituras são, em certo sentido, um exercício
de reficcionalização da obra à luz de elementos que lhe conferem um efeito de real (biográfico, histórico ou
circunstancial), mas que, no procedimento hermenêutico, pouco se distinguem, por exemplo, da alegorização.
Quanto às leituras de CFA à luz dos conceitos de autobiografia e autoficção, ver Barbosa (2009) e Gomes de Jesus
(2014).
2
No original: “Ahora bien, la situación del presente […] hace a la obra de Carl Einstein aún más ilegible de lo que
lo fue en su época: volvió a ser lo que ella había sido al comienzo – una obra esencialmente inactual. Pues lo que
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É, pois, no horizonte de uma obra “sufocante” e marcada por uma “negatividade
protestadora” que CFA figura, atualmente, como um escritor estranhamente positivo, porque
inatual, porque intervém sobre a língua e, por essa via, abre perspectivas de atuação no mundo a
partir de sua condição de escritor. No plano dos enunciados, há pouca positividade nos escritos
de CFA. Um conto como “Mel & Girassóis” (ABREU, 1988) ou certos trechos do romance
Onde andará Dulce Veiga?, por exemplo, portam estilemas que se aproximam da leveza do
cinemão hollywoodiano, e nisso apresentam, de fato, clichês que beiram o gênero autoajuda.
Em seu conjunto, contudo, a obra de CFA, especialmente a produção contística dos anos 1970
e 1980, flerta com a contracultura, opera uma crítica da ditadura cívico-militar de 1964-1985,
assim como ironiza a falência do sonho revolucionário à esquerda e a própria incapacidade de
autocrítica que tanto a esquerda quanto uma elite intelectual burguesa demonstraram, já nos
anos 1980, em relação ao país, a seus rumos políticos e à pouca mudança na ordem das coisas.
No plano dos enunciados, portanto, resta uma perspectiva desesperançada em seus
textos, que poderia ser sintetizada do seguinte modo: chegamos aos anos 1950 conscientes de
nosso subdesenvolvimento – para remeter ao famoso texto de Antonio Candido (1979) – e
chegávamos ao final do século subdesenvolvidos, apesar da aparência de “milagre econômico”
dos anos 1970, em situação talvez só um pouco melhor do que antes (ou nem isso), e só no
que se refere aos indicadores econômicos. A constatação viria, para a geração e CFA, na voz
de Elis Regina, no álbum Falso Brilhante, de 1976: “Minha dor é perceber/ Que apesar de
termos/ Feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E vivemos/ Ainda somos os
mesmos/ E vivemos/ Como os nossos pais”.
Deste modo, ao reler a obra de CFA nos colocamos ante uma espécie de semelhança
na diferença – o tempo que passa, o passado que sobrevive no presente. O mesmo que, ao
repetir-se, já é outro. Sua própria localização no sistema literário brasileiro e no discurso da
crítica já é outra, visto que, nas duas últimas décadas, seus textos foram objeto de inúmeros
estudos, livros e artigos, e o autor passou a integrar um circuito de temas (homossexualidade,
ditadura, contracultura, HIV) que, ainda que continuem sendo porosos ou, mesmo, tabus,
já estão amplamente incorporados às mais diversas esferas de discussão, seja nos espaços
acadêmicos, seja na televisão ou, ainda, no cenário político3. O próprio CFA ironizaria,
já ao final de sua vida e de sua carreira, a possibilidade de acolhida de sua obra por uma
cultura mainstream com a qual a condição de soropositivo lhe acenava: “É a minha cara! E
futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito
in...” (ABREU, 2002, p. 313 – grifo meu).
despliega es una escritura y un pensamiento fulgurantes y sofocantes a la vez. Fulgurantes, por el surgimiento
perpetuo de fórmulas paradojales y violentas, nunca “introducidas” o preparadas, siempre asestadas como otros
tantos golpes frontales. […] Pero los golpes llueven con tanta frecuencia, los rayos fulgurantes se suceden a un
tal ritmo que la escritura se vuelve sofocante, nos estrangula, nos agota; […] para experimentar físicamente la
extraña fatiga de esta “sofocación intensa” […] y un movimiento crítico que jamás parece poder salir de su propia
tensión, de su propia negatividad protestataria” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 342–343).
3
No banco de dissertações e teses da Capes, aparecem 209 trabalhos que tratam de Caio Fernando Abreu,
isoladamente ou em relação com outros autores, sendo 161 dissertações de mestrado e 46 teses de doutorado. No
Google Scholar, a busca pelo termo “Caio Fernando Abreu” leva-nos a mais de 4 mil resultados. Consulta realizada
em 20 de setembro de 2019.
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É preciso, portanto, encontrar caminhos para que sua obra, ao ser lida à luz dessa
conjuntura, potencialize o caráter provocador que tinha quando foi escrita ou publicada,
entre os anos 1970 e meados dos anos 1980, basicamente. Em suma, é preciso imaginar
modos de acesso à sua escritura que acionem perspectivas de leitura capazes de atravessar
temporalidades do seu tempo e do nosso. É nesse sentido que a possibilidade que nos
interessa sondar aqui implica ler literalmente o epíteto autoimposto pelo autor de “escritor
positivo”, alcunha posta aqui deliberadamente fora do lugar, inatual porque sintomática de
sua inscrição numa outra temporalidade (o presente deste início de século XXI).
Ler CFA hoje não é a mesma coisa que tê-lo lido no momento em que seus textos
foram publicados. Mais de 30 anos após o fim da ditadura cívico-militar (1964-1985) e
ante os avanços da ciência nos estudos sobre o HIV, os jovens que, neste início de século
XXI, leem sua obra se deparam com imagens, lamentos, críticas e, por vezes, certo niilismo
que podem soar fantasmagóricos e melancólicos. Sem negar os dramas de portadores de
HIV ou de homossexuais em suas experiências particulares envolvendo aceitação, políticas
públicas, homofobia, etc., é possível dizer que certa noção ligada à defesa dos discursos
politicamente corretos tornou tais temas não só mais amenos, mas até cool, em nossa época
– estão nas telenovelas, na literatura, no cinema, em seriados. Como temas e figurações,
pouco surpreendem (o que não significa que não incomodem setores cuja posição anacrônica
também é parte da temporalidade de nosso presente). Deste modo, ler literalmente a alcunha
de finalmente positivo em CFA constitui-se num modo de promover certo estranhamento
em seus textos e, então, recuperar neles a sua inatualidade e a sua tensão com o tempo e sua
situação de enunciação. É isso o que pode ser lido hoje como positivo em sua obra. Há que
compreender que, nesse movimento,
diante de uma imagem, temos de, humildemente, reconhecer o seguinte: que
ela provavelmente sobreviverá a nós, que diante dela somos o elemento frágil, o
elemento de passagem, e que diante de nós ela é o elemento do futuro, o elemento
da duração. A imagem tem, frequentemente, mais memória e mais porvir do que
o ser que a olha (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32)4.
Os motivos e temas frequentes nos escritos de CFA fazem de sua obra um estranho
sintoma de época. Como lembra Didi-Huberman (2011), o sintoma é algo que aparece sempre
fora de tempo, ou antes ou depois, como prenúncio de algo por vir ou como confirmação de algo
já evidente ou em curso. Por sua vez, os textos de CFA aparentam portar efeitos de “deciframento
profético” – a expressão é de Didi-Huberman (2011) – sobre nosso presente, razão pela qual seu
anacronismo é desestabilizador, como se, parafraseando Didi-Huberman, abrisse uma dobra
onde se conectam tempo e história. Lê-lo como um escritor “finalmente (e, literalmente,)
positivo” implicaria, deste modo, perscrutar alternativas, proposições construtivas, perspectivas
de futuro abertas em (ou por) sua obra, para além da crítica e da ruptura com seu próprio
tempo mais características de sua narrativa no momento de sua publicação.
4
No original: “ante una imagen, tenemos humildemente que reconocer lo siguiente: que probablemente ella nos
sobrevivirá, que ante ella somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es el elemento
del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más de memoria y más de porvenir que el ser
que la mira” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32).
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Poderíamos, então, ler sua obra a partir das fantasmagorias presentes em seus textos
e, também, da imaginação traduzida em linguagem e entendida como “uma capacidade que
define a consciência” e “um modo de relação com o mundo (coisas e fatos, mas também
com os outros” (LINK, 2009, p. 69)5. Para isso, há que entender a fantasmagoria não
necessariamente como imagem falsa, tal como se convencionou na esteira do marxismo.
Como sabemos, uma fantasmagoria é, sempre, produto de uma imagem, signo no lugar
de outra coisa, concepção reconhecida tanto no campo da história e da sociologia quanto
da psicanálise. O importante, contudo, é compreender a lógica por meio da qual uma
determinada fantasmagoria opera (por inversão, por alteração, a partir de uma pretensão
realista, por recalque, etc.): “Não é que o imaginário funcione como máscara (algo que já
se sabe, e é tão conhecido que não tem sentido deter-se nisso), mas que no imaginário se
observa a potência, a força do real” (LINK, 2009, p. 61)6.
É nesse sentido que, ao indagar os escritos de CFA a partir dos modos como operam
suas fantasmagorias e a imaginação, talvez nos encontremos não necessariamente com a arte
(ou com o artístico) própria ou exclusivamente, mas, sim, com “figuras, fantasmas, unidades
do imaginário como forças, potências ou movimentos que estão além do artístico” (LINK,
2009, p. 70-71)7. Em suma, trata-se de um campo de forças no qual atua, também, o não
administrável, o Real8. Quanto a isso, sendo “impossível, como é, de ser representado, ao
real, então, é preciso imaginá-lo” (LINK, 2009, p. 58)9.
Uma vez que nosso desafio é selecionar figuras, fantasmas e unidades de tensão que
forcem os próprios limites do literário na escritura de CFA, situando-a, por vezes, além do
artístico, torna-se fundamental considerar a enunciação como uma instância seminal para
reler sua obra. A enunciação é uma das poucas categorias da linguagem ainda não exploradas
pela crítica que tratou de CFA até o momento10. Concretamente, a enunciação está fora de
todas as categorias de análise da língua (fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica)
5
No original: “una capacidad que define la conciencia”; “un modo de relación con el mundo (cosas y hechos, pero
también con los otros” (LINK, 2009, p. 69).
6
No original: “No es que lo imaginario funcione como máscara (eso ya se sabe, y es tan sabido que no tiene
sentido detenerse en ello), sino que en lo imaginario se nota la potencia, la fuerza de lo real” (LINK, 2009, p. 61).
7
No original: “figuras, fantasmas, unidades de lo imaginario como fuerzas, potencias o movimientos que están
más allá de lo artístico” (LINK, 2009, p. 70-71).
8
Empregamos o termo, aqui, numa acepção lacaniana, tal como é utilizado por Slavoj Žižek, no âmbito do
chamado materialismo lacaniano. Conforme o sintetiza Marisa Corrêa Silva, nesse sentido o “Real é o que está
para além do que pode ser representado na rede do Simbolismo. Se o que chamamos realidade é um produto
distorcido de nossas percepções, o Real é um excesso (surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido
pelo seu brilho, para o qual não se pode olhar diretamente, como o brilho do sol. É indizível e, portanto, chocante,
traumático. Segundo Žižek, o Real pode irromper na vida do sujeito através de um evento traumático, seja
ele físico ou psicológico. No momento em que isso acontece, ‘a vida perde sentido’, por assim dizer, os laços
simbólicos desatam, deixando que mergulhemos no caos. O Real não pode ser dito, representado, mas pode ser
indicado e um dos termos que Lacan utilizou para essa coisa que o indica é, justamente, ‘a coisa’ (Das Ding). Ela
indica o Real indizível mas não é o Real, é externa a ele, da mesma maneira que a emissão de raios X em torno de
um buraco negro invisível não é o buraco, mas o indica” (SILVA, 2009, p. 213).
9
No original: “imposible como es de ser representado, a lo real, entonces, hay que imaginárselo” (LINK, 2009,
p. 58).
10
Esboçamos uma tentativa muito inicial dessa aproximação há alguns anos (cf. ALVES, 2009).
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e está associada àquilo que se perde no momento mesmo em que se enuncia. Dela resta
apenas uma espécie de rastro deixado na linguagem, marca de um sujeito e de subjetividades
que estiveram ali, na língua, em discurso e em ação, e que não estão mais.
Nesse sentido, a enunciação é, na arte ou na literatura, algo que está além do (ou
que não é o) artístico ou literário. Além disso, como assinala Émile Benveniste (1989), a
enunciação e o enunciado são dois mundos diferentes, ainda que relacionados, e olhar para
a enunciação implica modos diferentes de ver, descrever e interpretar as coisas e, neste
caso, a obra, a escritura e as posições de CFA (escritor, figura pública, alter ego de algumas
de suas personagens, etc.). Por sua vez, só é possível reconstruir a enunciação por um
exercício imaginativo e, de certo modo, também, fantasmagórico. Não se trata de apelar ao
subjetivismo ou de negá-lo (o que é, também, uma convenção), mas de ler vazios, lacunas,
aqueles não lugares da língua e do discurso nos quais a enunciação pode ser reconfigurada e
apontar para as inarticulações da língua e seus modos de dizer.
A partir dos rastros da enunciação no discurso literário, pode-se entrar em contato
com uma figura fundamental à escritura de CFA, que a conecta a certa ideia de margem,
de não pertencimento ou de condição periférica típica de suas personagens, especialmente
em relação ao gênero, à opressão política e à doença ou, mesmo, à morte: o não-sujeito. O
que faz do indivíduo um sujeito é não apenas o uso da língua, mas também a sua relação
com ela e com o dizer. Se, por um lado, a língua é um sistema de regras e, como tal, impõe
limites ao que se pode dizer – Barthes (1977) dirá em Aula que a língua é fascista, pois, em
vez de impedir de dizer, ela (nos) obriga a dizer, a partir de formas e percursos previamente
estabelecidos –, por outro lado, em decorrência dessa condição, o indivíduo pode ser, para
a (ou na) língua, um agente ou um sujeito11. A questão, então, não é o que dizer, mas como
dizer e, mesmo, o que e quando não dizer ou calar. Ao tratar da figura (ou des-figura) do
não-sujeito, Alberto Moreiras a considera como
uma figura que permanece não interpelada, de fato além da interpelação, não
porque a interpelação nunca a alcança, mas porque ela marca o próprio limite da
interpelação. [...] é a figura que deve viver, dentro do lugar, com medo e tremor –
com medo e tremor de interpelação, porque sabe que a interpelação pressagia sua
morte: o instante em que sua interpelação acontece é também o instante em que
11
Arthur Giannotti lembra-nos que, no âmbito de um determinado código de regras morais, se alguém “é
responsável pelo cumprimento da regra é porque, de um lado, não está agindo automaticamente, de outro,
preparou-se para tanto, aprendeu a comportar-se de modo a obedecer ao imperativo” (GIANNOTTI, 2007, p.
338), na medida em que, ao menos nas sociedades humanas, os costumes e as práticas sociais são aprendidos e
não simples reflexos dos instintos. Nesse sentido, a convivência social, seja no âmbito da nação, do matrimônio,
da família ou de uma sociedade qualquer na qual os membros se vinculam por um objetivo comum, supõe a
observância de certas regras (às vezes, não necessária ou explicitamente ditas, como o caso da proibição ao
incesto, tal como analisado pela psicanálise freudiana, por exemplo). No entanto, há sempre uma diversidade
de normas e códigos éticos em relação, simultaneamente. Além disso, uma determinada regra difundida como
natural e inquestionada em um terminado meio social não é, obrigatoriamente, benéfica para todos do grupo
ou moralmente boa. O atendimento ou não ao conjunto de regras que organizam as relações do grupo, por sua
vez, orienta-se pela condição de agente ou de sujeito assumida por seus membros. Em linhas gerais, age como
um agente aquele que segue os preceitos que orientam seu universo e age como um sujeito aquele que transgride
as regras ou adota uma posição de abandono ou negatividade em relação a determinado conjunto dessas regras.
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ela mesma deixa de existir. […] [Também] é a figura que chega absolutamente,
independentemente das expectativas, um visitante em vez de um convidado,
um evento que pode ou não produzir medo e tremor, pode ou não produzir
interpelação, mas cuja condição de possibilidade, cuja imanência é justamente
um deslocamento da interpelação, um excesso dela.// Essas duas imagens são os
dois lados, ou melhor, dois dos lados, de uma figura que são muitas figuras, uma
figura que, justamente, não será contada como uma: a figura que eu chamaria de
não–sujeito do político, já não o estrangeiro, nem inimigo nem amigo, mas um
não-amigo absoluto, uma forma estranha e perturbadora de presença política na
medida em que permanece, em e através de sua chegada, uma memória bruta,
uma lembrança bruta daquilo que sempre tinha estado lá, além da sujeição, além
do alcance, além do recuperável, nem mesmo obsceno, nem mesmo abjeto, mas
simplesmente lá, uma tênue facticidade além da facticidade, um punctum invisível
do inelutável, materialidade intratável, sempre do outro lado do pertencimento,
de qualquer pertencimento (MOREIRAS, 2004, p. 2)12.
Caberia entender a facticidade, aqui, não só como aquilo que é relativo aos fatos, mas
também como algo relacionado ao que é fático, por isso seu caráter simultaneamente “tênue”
e “além”, uma espécie de movimento. Na relação com a linguagem, o não-sujeito convocaria,
portanto, formas e movimentos da subjetividade, se não livres, mas alternativos aos regimes
da significação e da ordem (da língua, do tecido social, do dizível) já amplamente codificados
e normatizados, por sua própria impossibilidade de integrar-se a tais regimes. Nesse sentido,
o fático não é apenas uma função da linguagem, mas um modo de relação do não-sujeito com
a linguagem que, mais do que ancorar-se na língua como canal de comunicação, vincula o
não-sujeito a si mesmo, ao mesmo tempo em que cria uma relação deste com o outro (pois
o interlocutor é sempre necessário em qualquer operação de enunciação, mesmo que apenas
de modo imaginário). Trata-se de uma experiência de enfrentamento com a língua e com
as (im)possibilidades do dizer que é fundamentalmente dialógica, na medida em que põe
em relação um eu e um tu. Benveniste lembra que a enunciação constitui-se num “ato de
apropriação da língua que introduz aquele que fala em sua fala” (BENVENISTE, 1989,
p. 84 – grifo meu) e que, “antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua”
(BENVENISTE, 1989, p. 83).
12
No original: “a figure that remains uninterpellated, indeed beyond interpellation, not because interpellation
never reaches it, but rather because it marks the very limit of interpellation. […] it is the figure that must
live, within the place, in fear and trembling – in fear and trembling of interpellation, because it knows that
interpellation spells its death: the instant its interpellation happens is also the instant where it itself ceases to
exist. […] [Also] it is the figure that absolutely arrives, regardless of expectations, a visitor rather than a guest,
an event that may or may not produce fear and trembling, may or may not produce interpellation, but whose
condition of possibility, whose immanence, is precisely a displacement from interpellation, an excess of it.//
These two images are the two sides, or rather two of the sides, of a figure which is many figures, a figure that,
precisely, will not be counted as one: the figure that I would call the non-subject of the political, not yet the
stranger, neither an enemy nor a friend, rather an absolute non-friend, an uncanny and disturbing form of
political presence to the extent that it remains, in and through its arrival, a hard memory, a hard reminder of
that which has always already been there, beyond subjection, beyond grasp, beyond retrieval, not even obscene,
not even abjected, rather simply there, a tenuous facticity beyond facticity, an invisible punctum of ineluctable,
intractable materiality, always on the other side of belonging, of any belonging” (MOREIRAS, 2004, p. 2).
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Para além de aspectos formais da língua, o que está em questão na enunciação são
atos, o que significa que mesmo a ausência formal de discurso verbal está contemplada nesse
processo em que o não-sujeito é, ao menos enquanto considera as (im)possibilidades do (seu)
dizer ou de dizer-se. Na enunciação, aquele que enuncia diz a si mesmo, presentifica-se,
ocupa um lugar, inclusive quando se trata de expressões, categorias de indivíduos, grupos ou
situações para os quais não há lugar na língua, no discurso previamente estabelecido como
sendo o dizível. Tal característica torna a enunciação um dispositivo possível para que o
não-sujeito ocupe, também, um lugar no mundo, ainda que precária e provisoriamente.
De fato, a referência fundamental no processo de enunciação não se dá em relação à
materialidade da língua, mas ao enunciador, pois a “presença do locutor em sua enunciação
faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Essa
situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o
locutor em relação constante com sua enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 84). Como se
sabe, Benveniste inclui em tais formas pronomes, advérbios e demais elementos dêiticos
da língua, assim como verbos e tempos verbais, e poderíamos acrescentar, também, os
desvios da língua (para o enunciador), por meio de não ditos, de fraturas, de certa “gagueira”
através dos quais o que não se enuncia é, indiretamente, dito. E, na literatura, o indireto é
fundamental, como defende Barthes (1977), pois impede, justamente, “o recalque do sujeito
– quaisquer que sejam os riscos da subjetividade. [...] Mais valem os logros da subjetividade
do que as imposturas da objetividade. Mais vale o Imaginário do Sujeito do que sua censura”
(BARTHES, 2005a, p. 4).
Na obra de CFA, há cinco marcos fundamentais de enunciação, que correspondem a
certa performatividade13 do próprio Caio Fernando Abreu: o primeiro se liga a uma atitude
de jogo e experimentação; o segundo relaciona-se a uma atitude intimista ou existencial; o
terceiro se associa a uma atitude crítica da política, da militância, da vida burguesa; o quarto
vincula-se a uma atitude de denúncia ou dissidência; e, por fim, o quinto se conecta a uma
atitude de responsabilidade como intelectual público14. Tais atitudes expressam modos
13
Entendemos a performatividade, aqui, como um modo de agir na/pela linguagem. Ao colocar a linguagem
em movimento, isto é, ao enunciar, aquele que enuncia realiza ações. John Austin (1962) classificou tais atos
em três categorias fundamentais: locucionários, ilocucionários e perlocucionários, sugerindo ao final de seu
trabalho, no entanto, que todo ato de linguagem é perlocucionário em algum nível. Por sua vez, ao compreender
a performatividade à luz da filosofia da linguagem, Judith Butler (2015) concebe as relações de reconhecimento
(eu-tu, eu-outro), justamente, a partir de um processo em que, na linguagem, os indivíduos se colocam em
relação ao (com o) outro e ambos se colocam para o reconhecimento (pelo outro), à medida que reconhecem o
outro e, por essa via, obtêm, para si, também, algum reconhecimento na linguagem.
14
Em sua dissertação de mestrado, Ellen Dias (2006) estuda sistematicamente a recorrência de motivos e situações
dramáticas na obra de CFA, a partir da recorrência dos temas a) repressão às liberdades individuais; b) cisão
psicológica do indivíduo; c) solidão e anonimato nas grandes cidades; d) hedonismo; e e) experiência do corpo
nas drogas, no sexo e na loucura. A autora identifica quatro núcleos em torno dos quais se constrói a literatura
do autor, a saber: 1) núcleo intimista; 2) núcleo psicodélico-fantástico; 3) núcleo dramático; e 4) núcleo lúdico.
Já em sua tese de doutorado, Dias (2010) se debruça sobre as personae de escritor que CFA construiu de (para)
si em sua obra, associadas à projeção de uma imagem autoral que perpassa todo o seu projeto literário. Este
artigo se diferencia de ambos os trabalhos de Dias (2006; 2010) por centrar-se na perspectiva da enunciação e
dos enunciadores, enquanto a autora centra suas análises na recorrência formal, portanto, dos enunciados, seja
em relação aos temas e motivos dramáticos, no primeiro trabalho, seja em relação à autofiguração de escritor,
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de figuração de categorias individuais, em seus textos, e correspondem a “um mecanismo
total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira. A dificuldade é
apreender este grande fenômeno, tão banal que parece se confundir com a própria língua,
tão necessário que nos passa despercebido” (BENVENISTE, 1989, p. 82), pois se vincula ao
dizível e ao dizer, sem necessariamente subsumir-se ao dito, ao enunciado15.
***
no segundo. Em sua tese, a autora também lida com a noção de enunciador, entendendo-a, no entanto, como
projeção de uma persona inscrita no texto literário como representação (centrada, portanto, no enunciado), sem
ligá-la à instância da enunciação, propriamente: “É por meio das personae que se originam desse desdobramento,
sempre, pela via da representação, que o escritor criou, em seus textos/discursos, a possibilidade de,
simultaneamente, ver e experienciar a si mesmo no outro, ver e experienciar o outro em si mesmo” (DIAS, 2010,
p. 146 – grifo meu).
15
Dados os limites deste artigo, lidaremos apenas com alguns textos literários do autor, ainda que nossas hipóteses,
quanto à enunciação, se estendam ao conjunto da obra de CFA, respeitando-se, no entanto, sua diversidade e a
particularidade de cada texto.
16
Nos parágrafos seguintes, ao tratar do marco enunciativo pautado no jogo e na experimentação, retomamos
considerações anteriormente desenvolvidas em Alves (2009). Procuramos, no entanto, dar mais rigor ao
tratamento da enunciação, aqui.
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A fábula da narrativa em questão é trivial e se resume ao seguinte: numa noite de véspera
do dia dos pais, um homem de cerca de quarenta anos, num bar, em um ambiente aberto ao
álcool, às drogas e ao sexo fácil, encontra um jovem de aproximadamente vinte anos, e ficam,
ambos, numa situação em que tudo pode acontecer entre eles, mas nada acontece, restando
apenas expectativa. Quanto à perspectiva enunciativa, o fundamental nesse conto é que “o
jogo encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende
as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação” (HUIZINGA, 1971, p. 4).
Esse entre-lugar aberto pela enunciação é imaginário, e é nele que o enunciador se entrega
aos prazeres do jogo, “Se é que se trata de um jogo” (ABREU, 1988, p. 60). Trata-se, pois, da
aposta num tipo de experiência. No relato, enunciador-narrador e personagens travam uma
relação de permanente reconhecimento, isso “porque somos três e um. O que vê de fora, o
que vê de longe, o que vê muito cedo. Agora quatro?” (ABREU, 1988, p. 62), que traz à tona
os bloqueios e os impasses da linguagem e suas perturbações.
Mas o que o jogo significa para esses jogadores, no conto? Se, do ponto de vista utilitário,
o jogo é supérfluo, o espaço discursivo criado no conto se apresenta como fundamental para
uma posição que se opõe aos valores coercivos da linguagem e à automatização das relações
entre os indivíduos. O jogo funciona como uma forma significante, porque atua de modo
relativamente livre e confere mobilidade ao enunciador (aqui, identificado ao narrador e
ao autor). Tal posição frente aos condicionamentos da linguagem manifesta o desejo de
interrupção da vida cotidiana banalizada, de que as duas personagens do conto são exemplos.
O jogo se oferece como possibilidade de certa “experiência”, que, nesse caso, é também de
ordem estética e supõe os impasses do enunciador com a língua, no exercício de narrar. É
por isso que é fundamental o movimento enunciativo que se organiza nos limites do narrado
e do comentado, nesse conto.
A narrativa, enquanto atitude comunicativa, incide, principalmente, em formas verbais
perfectivas, cuja principal característica é referir-se a ações tidas como certas, passadas e
concluídas. Já o comentário, por sua vez, se estrutura no presente, não só por tomar o fato com
proximidade, mas por permitir a sua problematização. Porém, entre assumir uma posição
subjetiva, a partir de um eu-aqui-agora, ou colocar-se de longe, ele-lá-então, produz-se um
apagamento desses limites em “O rapaz mais triste do mundo”. Todas essas perturbações da
linguagem justificam a opção pela oscilação entre contar e comentar, praticamente ao mesmo
tempo. Ao fugir do perfectivo, a perspectiva enunciativa se posiciona contra a concepção
de um mundo ficcional fechado e acabado, hostil a experiências significativas, mesmo que
ameaçadoras. Problematiza-se, deste modo, a situação do enunciador em relação ao dizer, o
que o impele (e à instância autoral) à experiência com novas formas de exprimir-se – o jogo
é uma delas. Para o enunciador, “o que eu disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto,
sei que continuamos sendo três e quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles próprios, mais
você: nós quatro” (ABREU, 1988, p. 67).
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Diferente da anterior em sua configuração, a atitude enunciativa intimista ou
existencial pode ser sondada em “Linda, uma história horrível”, conto que abre a coletânea
Os dragões não conhecem o paraíso, publicada em 1988. Esse é um dos primeiros textos de CFA
em que certo campo semântico ligado à AIDS e à condição de soropositivo do protagonista
apresenta-se quase explicitamente. A personagem, que poderia ser lida como um alter ego de
CFA, viaja até o interior para visitar a mãe, e as cenas fundamentais do relato transcorrem
durante o encontro dos dois, à noite, logo após sua chegada. No âmbito da história narrada,
porém, (quase) nada se explicita. Os diálogos entre o filho e a mãe são evasivos – perguntam-
se pela vida um do outro, retomam lembranças entrecortadas. Fica a sugestão, porém, de
que o protagonista almejaria contar à mãe que é soropositivo, mas não o faz. Sua condição
é “denunciada”, no plano diegético, pelas associações entre a condição decrépita de Linda,
a velha cachorra de sua mãe, e as manchas na pele do protagonista – possíveis sarcomas de
Kaposi – que se deixam ver quando, pouco antes de ir dormir, ele se olha no espelho com o
corpo parcialmente despido. Não nos interessa, aqui, retomar a representação já amplamente
explorada das metáforas da AIDS, no relato, mas a opção escritural de calar, em vez de fazer
dizer a condição de soropositivo do protagonista. A perspectiva narrativa, cuja focalização
centra-se no narrador onisciente neutro, poderia dizer essa soropositividade, mas não o faz.
O protagonista, por sua vez, também não:
– Tu está mais magro – ela observou. Parecia preocupada. – Muito mais magro.
– É o cabelo – ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. – E a barba, três
dias.
– Perdeu cabelo, meu filho.
É a idade. Quase quarenta anos. – Apagou o cigarro. Tossiu.
– E essa tosse de cachorro?
– Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também
olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos,
subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. Quase falou.
Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com
cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo (ABREU, 1988, p. 18).
Como se nota, pouco se fala concretamente, no fragmento. Aquilo que cada um verbaliza
quase se limita a manter aberta uma via de comunicação. Mais do que a impossibilidade
de dizer-se soropositivo (interpretação quase transparente, para o relato em questão),
gostaríamos de ler, aqui, um calar deliberado. Se a língua obriga a dizer (BARTHES, 1977),
e, ao enunciar, o sujeito se apropria da língua, mas ela também se apropria dele (impondo-
lhe limites àquilo que ele pode dizer), o que se nota em “Linda, uma história horrível” é
a opção por calar-se, uma desapropriação da língua. Num contexto em que assumir-se
soropositivo também está atrelado a incorporar uma série de máculas sociais (“a peste
gay”, “gay degenerado”, “imoral”), calar-se, neste conto, supõe, por parte do protagonista,
mas também do narrador e da própria instância autoral, respeitar (ou conferir) o direito
de não inscrever-se em nenhum desses rótulos predeterminados que podem enclausurar
ou aprisionar o protagonista soropositivo. Trata-se, como se nota, de uma opção intimista
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situada, também, no plano da intimidade (o tema, o ambiente e o conflito dramático são
privados), que mitiga a negatividade associada, na imaginação pública, ao portador de HIV e
lhe permite enunciar-se a si em vez de anunciar sua doença.
Entre o filho e a mãe se estabelece uma relação de cumplicidade, nenhum dos dois
diz muito sobre si mesmos, e a troca de olhares, assim como as poucas palavras que falam,
projetam um contato, um campo de relações e de afeto. Se há uma fratura entre o dizer e
o dito, nesse conto, também há um exercício no qual, ao colocar-se diante um do outro, as
personagens oferecem-se para o reconhecimento mútuo (BUTLER, 2015) – dois corpos
postos numa relação de afecção na qual estão em jogo a vida, a idade e a doença. Porém os
rótulos são deixados de lado. A enunciação intimista confere ao relato certa potência de
afirmação da humanidade das personagens e instaura uma perspectiva ética para a narrativa.
Tais escolhas tanto podem ser associadas às personagens (que não se interpelam, que não
forçam um ao outro a dizer nada), quanto ao próprio escritor, que evita a asserção como
modo de dizer aparentemente neutro no qual, entretanto, se comunica uma certeza que
parece destituída de locutor e, deste modo, obtém imediatamente ares de verdade. Enquanto
ato de enunciação, ao calar-se, o enunciador (e aqui pensamos na instância autoral) desobriga
sua personagem-protagonista de assumir-se soropositivo, salvando-lhe o direito à intimidade
e a não converter-se em objeto de curiosidade ou de interpelação e rotulação pelos outros.
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falam. O fundamental, porém, em “Os sobreviventes”, é o recurso a um agora que se constitui
em núcleo do ato de enunciação. O relato começa com uma ironia em relação à possibilidade
de uma das personagens viajar para a Ásia (Sri Lanka), o que também poderia ser lido como
uma fuga, uma nova “tentativa”, e isso instaura o conflito dramático fundamental que as leva
a situarem-se uma diante da outra, mas, principalmente, diante do tempo. Por um lado, seus
discursos constituem-se em uma espécie de verdade testemunhal muito problemática, que
procura inscrever seu passado como críticos, militantes de esquerda, indivíduos dissidentes
em seu presente. Por outro lado, seu discurso soa insossamente pedagógico – como todo
testemunho (LINK, 2009).
Mais do que fazerem uma autocrítica, no plano global do relato, como texto que é
destinado aos leitores, “Os sobreviventes” se constitui numa afronta a uma elite intelectual
(não necessariamente econômica, mas, em geral, de classe média) que precisa ser confrontada
consigo mesma para admitir que seus membros, apesar de conferirem-se ares muito
modernos, progressistas e críticos do sistema político-econômico e social, não passavam de
“bons-intelectuais-pequeno-burgueses” (ABREU, 2009, p. 18) e, se se quiser, membros de
uma parcela letrada17 da sociedade que nunca esteve, de fato, disposta a abrir mão de seus
privilégios para promover qualquer revolução capaz de alterar a rigidez e as hierarquias
constitutivas da sociedade brasileira. Nesse sentido, trata-se de uma atitude enunciativa
crítica da própria posição da “juventude pensante” à qual as personagens se ligam. O caráter
positivo (e meio extremo) de tal perspectiva está, justamente, na opção por uma espécie de
“invasão”, uma perspectiva enunciativa que não está preocupada em pertencer a um grupo ou
a uma classe. Parafraseando Moreiras (2004), trata-se de um fluxo que chega por invasão, não
por convite: o tom do relato é ácido. Aliás, as personagens vomitam juntas, “os dois abraçados,
fragmentos azedos sobre as línguas misturadas” (ABREU, 1995, p. 21). A atitude é positiva
justamente porque interrompe um fluxo e um estado de coisas ligado à intelectualidade
(burguesa ou não) e sua crítica pautada na imaginação da catástrofe, portadora de ares ennui
e splenn, melancólica e imobilizada, incapaz de encontrar perspectivas de futuro18.
Ao potencializar uma crítica da imaginação da catástrofe ligada às mazelas do período
histórico de sua juventude, a perspectiva enunciativa do relato abre uma possibilidade de
17
Pensamos, aqui, no conhecido sintagma “cidade letrada”, formulado por Ángel Rama (1984) para referir-
se à participação das elites intelectuais latino-americanas, historicamente vinculadas à política, às letras e ao
pensamento crítico, mas restritas, em sua constituição e em suas ações, ao universo das grandes cidades e a certa
homogeneidade ou continuidade (de classe, etnia e gênero, ainda que não seja o propósito de Rama estender-se
por estas duas últimas categorias em sua discussão).
18
Lendo os ensaios de Susan Sontag, Daniel Link chama de imaginação da catástrofe um conjunto de imagens,
fantasmas e fantasmagorias associadas à crise do humanismo e ao horror legado pelas experiências das guerras
mundiais, no século XX: “A imaginação humanista considera o tempo como uma continuidade entre passado,
presente e futuro. Talvez seja isso o que hoje se impõe a nós como algo impossível (queixas benjaminianas
e hosbsbawnianas diante da perda das tradições). Então, deparamo-nos com posições do tipo no future (não
há futuro). Niilismo, depressão, melancolia, unidades da imaginação da catástrofe” (LINK, 2009, p. 650). No
original: “La imaginación humanista considera al tiempo como una continuidad entre pasado, presente y futuro.
Tal vez sea eso lo que hoy se nos impone como imposible (quejas benjaminianas y hobsbawnianas ante la pérdida
de las tradiciones). Entonces, nos encontramos con posiciones del tipo no future (no hay futuro). Nihilismo,
depresión, melancolía, unidades de la imaginación de la catástrofe” (LINK, 2009, p. 650).
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recuperação da experiência que “supõe ao mesmo tempo um ato de despojamento (da vivência
como ato anterior ao discurso, dos pseudo-saberes que a cultura industrial impõe no lugar
da experiência e, também, um ato de encarnação” (LINK, 2009, p. 108-109 – grifos do
autor)19. A experiência deixa de vincular-se a um passado (melancólico) para (re)configurar-
se no presente, na enunciação das personagens. Deste modo, a “experiência não é anterior
ao ato de discurso em que se constitui (a narração), assim como o sujeito também não
pode ser anterior ao processo mesmo de subjetivação e dessubjetivação (ascese) do qual
paradoxalmente depende” (LINK, 2009, p. 109)20. O relato pode ser lido, portanto, como
um ponto de partida, não mais preso a um passado (catastrófico), e sim aberto à experiência
do presente, apontando para um futuro, pois está centrado na tensão entre as escolhas que
ambas as personagens fizeram e o que elas podem fazer a partir de agora. Tendo em vista
que “o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o ‘agora’ e de torná-lo atual senão
realizando-o pela inserção do discurso no mundo” (BENVENISTE, 1989, p. 85), cabe às
personagens imprimir à própria fala uma inflexão pessoal (enunciativa) que lhes proporcione
uma experiência com o tempo que é, também, uma experiência com a própria linguagem,
que resulta em subjetividade e desautomatização.
***
A atitude enunciativa dissidente, por sua vez, caracteriza-se por uma posição de
denúncia e diferencia-se da anterior porque nesta há uma relação de interrogação coletiva
ligada a ideais políticos e intelectuais e à falência de um sonho, como se nota na perspectiva
amarga das personagens de “Os sobreviventes”, ao passo que na enunciação dissidente o que
se coloca em questão são os limites do diálogo (possível) com o outro e suas consequências
(por vezes, violentas e brutais) para os indivíduos. Trata-se de uma relação fantasmática que
coloca em primeiro plano o fantasma como
o não-sujeito (e, por isso mesmo, o político), aquilo que fica de fora como resto
da classe (ou o que existia antes da classe). A classe é o dispositivo de interpelação,
o fantasma é seu resto (tênue facticidade, materialidade intratável além do
pertencimento). [...] o fantasma espera (LINK, 2009, p. 12)21.
22
“Oposições do tipo: só há presente, e tanto o passado quanto o futuro são ilusões. É a imaginação pop” (LINK,
2009, p. 67). No original: “Oposiciones del tipo: solo hay presente y tanto pasado como futuro son ilusiones. Es
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explora o horror da tortura e de tantos outros crimes bárbaros (ligados a ditaduras ou não)
e que está relacionada tanto ao mercado quanto ao teor pedagógico inerente às narrativas
de caráter testemunhal que denunciam tais crimes. A dissidência, por sua vez, no que se
refere à enunciação, está associada a uma recusa inegociável à aceitação de quaisquer regimes
normatizadores (do Estado, da sociedade civil, da língua posta a serviço do fascismo). Em
geral, no entanto, os indivíduos envolvidos nas situações dramáticas pagam um alto preço
por essa recusa, como em “Terça-feira gorda”, no qual, durante o carnaval (e, portanto,
supostamente num contexto de liberação), dois homens são agredidos na praia (um deles é
linchado) em razão de sua aproximação erótica:
Nos empurravam em volta, tentei protegê-lo com meu corpo, mas ai-ai repetiam
empurrando, olha as loucas, vamos embora daqui, disse. E fomos saindo colados
pelo meio do salão, a purpurina no meio dos gritos./ Veados, a gente ainda
ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar (ABREU, 1995, p. 52).
Assim como em “Garopaba mon amour”, a língua é o que obriga a dizer, na cena em
questão. As personagens são interpeladas pela sua sexualidade. Os dois rapazes não têm outra
opção senão inscrever-se na categoria que os demais lhes impõem (veados, bichas, ai-ai). À
medida que a situação discursiva se torna maniqueísta, o lugar para os dois jovens vai ficando
mais restrito, até que não há mais lugar para eles:
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha
mão agarrou o espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele
ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando
para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras
caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o
brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu
corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os
outros todos em volta, muito próximos (ABREU, 1995, p. 53).
O desfecho aberto (não fica claro se o rapaz que ficara caído morre, ainda que tal sugestão
precise ser considerada) associado à cena final do crime de ódio coloca em discussão, nesse
conto, uma estranha forma da presença política, parafraseando Moreiras (2004), aquele resto
fantasmático (LINK, 2009) que acusa que está ali, corpo ferido, ensanguentado, espécie de
discurso mudo, que se nega a desaparecer. Apesar da sugestão de que se trata de uma cena
ruidosa, o narrador-protagonista mantém seu discurso pautado no diálogo com o parceiro
ou no diálogo com o leitor (quando narra, numa perspectiva por detrás (POUILLON,
1974)), mas nunca com os agressores. A dissidência irrompe não só pela tensão e o choque
abruptos entre agressores e vítimas, mas também pela cesura que se imprime no discurso:
não há língua comum com os agressores, não há diálogo possível nesse horizonte, pois os
dois rapazes são, para os demais, “um não-amigo absoluto” (MOREIRAS, 2004, p. 2)23 e não
sujeitos da política e da língua.
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Magli querida:
Pois é, amiga. Aconteceu – estou com AIDS – ou pelo menos sou HIV+ (o que
parece + chique...)” (MORICONI, 2002, p. 311).
Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não
aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que
foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo.
Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por
favor, tente entender o que tento dizer (ABREU, 2014, p. 74).
Sommer observa que, mesmo quando se trata de trabalhos artísticos liderados por
um indivíduo, o que predomina nos atos do ACT UP27, nesse período, é certa noção de
coletividade que transita do eu ao nós, e vice-versa, que se configura como responsabilidade
e como uma espécie de coralidade. Nesse sentido, o CFA-enunciador se identifica às
minorias e às expressões queer que, na época, formam tanto as vítimas quanto a vanguarda
da “invenção” ou da escritura em relação à AIDS (SOMMER, 2014), no campo da arte.
No Brasil, CFA é um dos primeiros escritores a tematizar a questão em sua obra e
provavelmente o primeiro a declarar-se publicamente soropositivo. Essa conexão da arte
(e dos artistas) com os movimentos sociais corresponde às “intervenções de artes que não
desistem” (SOMMER, 2014, p. 64)28.
Nesse sentido, a opção por dizer-se homossexual e soropositivo passa por uma
múltipla inscrição na marginalidade (artista, gay, contaminado), ao mesmo tempo em que
aponta para a emergência de uma atitude não conformista com a tendência à condenação
dos homossexuais e portadores de HIV a guetos ou ao silenciamento social ou institucional
(pelo Estado, por exemplo). Sua condição de artista passa a alinhar-se, portanto, a certa
expectativa em relação à capacidade da escritura de atuar como alternativa de mudança no/
do tecido social – pode parecer estranho à trajetória de CFA, mas neste marco enunciativo é
possível admitir que a escritura aparece atrelada a uma função social. Como observa Sommer,
isso de deve a que uma “interpretação humanística expande o impacto da arte” (SOMMER,
2014, p. 64)29. E a condição de figura pública do autor é o que lhe permite tentar promover
tal expansão e colocar o tema da AIDS como pauta de debate público.
Haveria, nisso, inclusive, certa contradição em relação à desconfiança anterior de CFA
acerca das possibilidades de ação por meio da arte (“Os sobreviventes” é um conto sugestivo a
esse respeito). Entretanto, ante o diagnóstico emerge uma conduta que entende que é preciso
lutar contra a indiferença e, nesse contexto, dizer-se soropositivo pode ser algo necessário
26
No original: “The protagonist of ACT UP is a loose collective of mostly arts activists who fought the AIDS
epidemic. Wisely anonymous, their activists would have been short-lived if each artist had taken credit for
brilliant work in the homophobic and triumphant corporatist environment at the late 1980s and early 1990s. [...]
ACT UP protected itself from persecution with a “first person plural” (SOMMER, 2014, p. 61).
27
ACT UP, em inglês, é uma expressão que indica a adoção de um comportamento rebelde, avesso àquilo que
se espera.
28
No original: “arts interventions that don’t give up” (SOMMER, 2014, p. 64).
29
No original: “humanistic interpretarion expands art’s impact” (SOMMER, 2014, p. 64).
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para levar o tema a um debate ampliado, não mais restrito à comunidade gay ou às equipes
médicas. Apesar de sua postura distinguir-se das ações dos ACT UP estadunidenses, pois
CFA se limita à análise e à divulgação do debate sobre a AIDS, enquanto nos EUA surge
um movimento de ação civil associado à arte (performances, instalações, murais, etc.) que
visa a promover ações concretas, como a redução do preço de medicamentos e atendimento
aos portadores de HIV apoiado pelo Estado, a posição de CFA e o modo como opera a sua
“possibilidade de dizer” deixam claro que, mais do que escrever para afrontar reacionários
ou a classe média, sua atitude atende, agora, à necessidade de confrontar, também, os
progressistas e de provocá-los a agir (aproximando-se, quanto a isso, do marco enunciativo
pautado na crítica do tecido social, que vimos acima).
Nesse sentido, sua enunciação passa a compreender uma relação transitiva eu-nós que
se constitui, também, numa via para narrar e para imaginar novos modos de lidar com a
AIDS, assim como novas possibilidades de vida para indivíduos soropositivos. A experiência
retorna, então, “como o lugar de uma transformação do ‘eu’ [...], o testemunho como espaço
do não construído” (LINK, 2009, p. 110)30 e, portanto, como imaginação, como abertura para
um presente com expectativas de futuro.
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ALVES, W. The Outdatedness of Caio Fernando Abreu. Olho d’água, São José do Rio
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Da memória à identidade em The Solid Mandala,
de Patrick White
RESUMO: Em The Solid Mandala (1966), o escritor australiano Patrick White tece uma narrativa
que emprega uma configuração estética comum à representação da memória e da identidade
em textos literários. Tendo como expoente essas duas temáticas, este artigo oferece uma leitura
possível e breve do romance, explicitando a forma como as temáticas da memória e da identidade
se desenvolvem uma em relação à outra, retroalimentando-se. Para isso, este artigo focaliza a
figura dos protagonistas, os irmãos gêmeos Waldo e Arthur Brown. Conceitos-chave de autores
como Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), além
de outros, são utilizados como referencial teórico. O texto de White prova que a rememoração e a
configuração do “si” são duas peças do mesmo quebra-cabeça.
ABSTRACT: In The Solid Mandala (1966), the Australian author Patrick White builds a narrative
using an aesthetic configuration which is common to the representation of memory and identity
in literary texts. Drawing on these two themes, this paper offers a possible and brief reading of
the novel, exploring how the themes of memory and identity develop one in relation to the other,
feeding each other. To perform the analysis, this paper focuses on the figure of the protagonists of
the novel, the twin brothers Arthur and Waldo Brown. Key concepts from authors such as Bauman
(2005), Erll & Nünning (2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), and others, are used
as our theoretical background. White’s text proves that rememoration and the configuration of
the self are two pieces of the same jigsaw.
Nas palavras de Iván Izquierdo (2011, p. 11): “Memória significa aquisição, formação,
conservação e evocação de informações”. Num sentido mais restrito, evocação é sinônimo de
lembrar ou recordar o passado (IZQUIERDO, 2011). A literatura, como não poderia deixar
de ser, presenteia seus estudiosos com modelos de recordação, ou seja, de representação do
passado (NEUMANN, 2008). Afinal de contas, lembrar não diz respeito a uma reprodução
fiel e exata de eventos e experiências ocorridos no passado, mas implica uma reconstrução,
muitas vezes, incompleta, nebulosa e ambígua. Essa representação do passado poderá ser
marcada também por falhas e deve trazer a perspectiva somente de uma testemunha ou
de um grupo delas, podendo, portanto, excluir outros vetores. A esse respeito, Walter
Benjamin (2014) escreveu que a História é contada sempre do ponto de vista dos vencedores,
e nunca dos vencidos. Assim, lembrar é ressignificar o passado no tempo presente. Ou seja,
passado é sempre presente (SARLO, 2017). Na literatura, estão representados também, ao
lado da memória, diferentes configurações do “si”. Os textos estão repletos de personagens
movidos por atribuir sentidos a sua identidade – ao mesmo tempo em que dialogam com
diferentes espaços socioculturais. Diferentes formatações na narração do “si” podem surgir
no encontro entre o entendimento do Outro e a administração da memória. Em The Solid
Mandala, publicado em 1966, Patrick White utiliza-se de uma configuração estética comum à
representação da memória e identidade em textos literários. Por exemplo, pode-se mencionar
a utilização de narradores-personagens que rememoram de uma perspectiva presente, no
tempo passado, em primeira pessoa ou o uso cronológico de analepses.
Nascido na Inglaterra, mas voltando à Austrália com seis meses de vida, Patrick Victor
Martindale White (1912-1990) é um dos maiores representantes da Literatura Australiana,
tendo sido agraciado, em 1973, com o mais importante prêmio literário que um escritor
possa vir a receber, o Nobel Prize in Literature. Autor de 12 romances, 3 coleções de contos e 8
peças teatrais, tornou-se mundialmente reconhecido (WILLIAMS, 1993) com seu primeiro
romance, publicado em 1929, sob o título de Happy Valley1. Alguns de seus trabalhos
mais famosos incluem The Tree of Man (1955)2, responsável por levar o nome de White
a um nível de reconhecimento internacional, e Voss (1957)3, seu romance mais analisado
(STEFANI, 2011). Barnes (2014, p. 219, tradução nossa), em relação a White, comenta: “Não
é surpreendente que um escritor novo e original deixe os críticos debatendo-se, confusos e
incertos, lutando para se orientarem”4. Ademais, Patrick White tinha formação acadêmica na
área de Letras (Francês e Alemão) pela Universidade de Cambridge, o que poderia justificar a
presença de modelos literários em seus textos que desafiam a percepção de leitores comuns.
1
Texto ainda sem tradução para a língua portuguesa.
2
Texto traduzido para o português sob o título de A Árvore do Homem por Cárdigos dos Reis e publicado em 1981.
3
Texto traduzido para o português brasileiro sob o título de Voss por Paulo Henriques Britto e publicado em
1985.
4
No original: “It is hardly surprising that a new and original writer leaves critics floundering, confused, and
uncertain, struggling to get their bearings.” (BARNES, 2014, p. 219).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Em The Solid Mandala, o leitor conhece a história de dois irmãos gêmeos, Arthur e
Waldo Brown, que migraram com seus pais, Anne Quantrell e George Brown, da Metrópole
(isto é, da Inglaterra), passando a desbravar e a (con)viver no subúrbio ficcional de Sydney,
chamado Sarsaparilla, na primeira metade do século XX (STEFANI, 2011). Uma das
características marcantes do romance é justamente a forma como as dimensões ficcionais
dos personagens principais são construídas em um jogo de oposições, por exemplo, razão
versus emoção. De acordo com o próprio White (WHITE, 1981, p. 34), The Solid Mandala
representa, poeticamente falando, a dicotomia entre luz e escuridão em relação ao “si” do
próprio artista5. Embora traga a perspectiva dos dois irmãos, o foco narrativo permanece,
na maior parte do tempo, centrado em Waldo, caracterizado como o intelectual da família
Brown (BLISS, 1986). No ponto de vista de outro escritor australiano, Christos Tsiolkas
(2019), White contribuiu significativamente para a formação de uma literatura australiana
genuína ao escrever três dos romances mais representativos do século XX, dentre eles The
Solid Mandala. Já de acordo com Bliss (1986, p. 115), o romance, “[...] de forma penitencial,
expõe o artista a si mesmo e explora a relação intrínseca da arte com a vida”6. Nesse sentido,
percebe-se como os dramas familiares envolvendo os irmãos Brown são abordados,
sublinhando a falta de comunicação entre os integrantes da família – de forma que enfatiza
o casal e os gêmeos como dois polos de comunicação na narrativa – e a experiência da
melancolia. O texto já foi traduzido e publicado em diversos idiomas, como o espanhol (que
já conta com duas versões, a mais recente de 2016), o francês e o italiano (STEFANI, 2011).
Recentemente, foi traduzido também para o português brasileiro, por Stefani (2017), como
parte de sua pesquisa de pós-graduação intitulada ‘The Translation of Patrick White’s The Solid
Mandala into Brazilian Portuguese: An Analysis Based on Social, Historical and Cultural Aspects’.
Os irmãos Waldo e Arthur compartilharam de sua infância, juventude, vida adulta e
velhice, com exceção à forma como escolheram lidar com o mundo à sua volta (BARUA,
2006). Dividido em quatro capítulos, inicialmente, o romance de White introduz a família
Brown da perspectiva de um narrador extradiegético, que acompanha a Sra. Poulter –
vizinha da família Brown – e a Sra. Dun em uma viagem de ônibus; no segundo capítulo, as
memórias de Waldo são revisitadas pelo próprio protagonista (que dá nome ao capítulo),
enquanto, no terceiro capítulo, quem rememora é Arthur (que também dá nome ao
capítulo); já o último capítulo explora os eventos da perspectiva da Sra. Poulter no tempo
presente. Essa mudança de pontos de vista na narrativa, segundo Neumann (2008), é uma das
técnicas literárias comumente utilizadas nas ‘Memory Fictions’7. Para Neumann (2008, p. 335):
“Caracteristicamente, as ficções de memória são apresentadas por um narrador reminiscente
5
No original: “I did not question the darkness in my dichotomy, though already I had begun the inevitably
painful search for the twin who might bring a softer light to bear on my bleakly illuminated darkness.” (WHITE,
1981, p. 34).
6
No original: “[...] penitentially' exposes the artist to himself and explores the intricate relationship of art to life.”
(BLISS, 1986, p. 115).
7
A tradução deste termo para o português brasileiro poderia ser ‘Ficções de Memória’. Textos que podem ser
caracterizados como tais incluem relatos de viagem, autobiografias, biografias, diários de guerra, testemunhos,
dentre outros.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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ou figura que olha para trás em seu passado, tentando impor significado nas memórias que
emergem de um ponto de vista do presente”8. Inevitavelmente, falar de memória também
pressupõe falar sobre identidade. Sem memória, o indivíduo perde sua identidade (CANDAU,
2011). Logo, é na memória que a personalidade do sujeito pode encontrar sua origem e o
sentimento de continuidade temporal (CANDAU, 2011).
Como explicitado, os dois capítulos intermediários do romance são narrados do ponto
de vista de cada um dos irmãos. Dessa forma, ambos rememoram de maneiras diferentes um
ponto em comum: uma vida juntos. Afinal de contas, lembrar é sempre um processo que
implica não a reprodução de uma sucessão de fatos lineares, mas reconstrução. Lembrar é
representar. Tendo isso em vista, torna-se problemático para o leitor investir na construção
de uma gênese de sentido desse texto sem preocupar-se com esse aspecto da formatação da
memória dentro da narrativa. O mesmo deve ser considerado quanto à identidade – encenada
com base em referências construídas socioculturalmente e que estão presentes no texto.
São inúmeras as razões para analisar o tópico memória e identidade nesse romance de
Patrick White, mas três merecem destaque para justificar este empreendimento intelectual.
O primeiro deles diz respeito à significância atribuída a White quando se tem em mente um
cânone da literatura de expressão australiana. Ou seja, o autor é uma peça essencial para que
uma herança cultural – como a Literatura Australiana – não se perca no esquecimento. Embora
o autor tenha recebido prêmios e atenção por parte da crítica especializada, sua obra ainda
permanece no Arquivo – aquilo que não circula, mas que ainda não se perdeu inteiramente
– a exemplo disso, pode-se citar o Brasil –, quando comparado a outros escritores do século
passado que comumente são associados a uma ideia de um cânone literário universal, como
James Joyce (1882-1941) ou Virgínia Woolf (1882-1941). Assim, White está à espera de que
novos leitores o (re)descubram e consigam movimentar, de forma progressiva, o mercado
editorial em relação aos textos produzidos por ele (por meio de novas traduções ou de
análises de sua ficção no Brasil). Isso ajudaria a manter seus títulos na memória do presente
e contribuiria para a construção de uma identidade da Literatura Australiana. De fato, o
pico de maior interesse no trabalho de White deu-se nos anos 1970 quando o escritor teve
seu nome canonizado pelo recebimento do Nobel (SCHEIDT, 1997). Em ‘The Life of Patrick
White’, Stewart (2012) disse, no centenário do autor em 2012, que, no mundo acadêmico e
no mercado editorial australiano, Patrick White permanece “a lost memory”:
8
No original: “Characteristically, fictions of memory are presented by a reminiscing narrator or figure who looks
back on his or her past, trying to impose meaning on the surfacing memories from a present point of view.”
(NEUMANN, 2008, p. 335).
9
No original: [...] he has an absolutely secure place among the great novelists in the next division – Beckett,
Nabokov and Waugh. The trouble is that a thousand times more people in the world are aware of their work
than have ever read Patrick White (STEWART, 2012, p. 2).
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Essa relação entre leitor e o Cânone/Arquivo abre discussão para uma dimensão de
grande importância no que se refere à produção da gênese de sentido dentro dos Estudos
Literários. O segundo motivo diz respeito à necessidade de uma revisão e atualização da
fortuna crítica em torno de White visando, dessa forma, a contribuir ainda mais para uma
tradição de pesquisa já estabelecida mundo afora. O terceiro ponto são os poucos estudos já
realizados sobre o autor, particularmente na América do Sul. Há trabalhos como o de Scheidt
(1997), Alexander (2006) e Stefani (2011) realizados em solo brasileiro, mas, até o presente
momento, poucas pesquisas enfocam a relação entre memória e identidade em The Solid
Mandala, ou em qualquer outro romance do escritor.
Cabe a este trabalho oferecer uma leitura breve do romance The Solid Mandala, de
Patrick White, buscando explicitar, na evolução da narrativa, a forma como as temáticas
da memória e da identidade desenvolvem-se uma em relação à outra, retroalimentando-
se. Para isso, este artigo focaliza a figura dos protagonistas do romance, os irmãos gêmeos
Waldo e Arthur Brown. Conceitos-chave de autores como Bauman (2005), Erll & Nünning
(2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), além de outros, são utilizados para
discutir a questão tanto da memória quanto da identidade no texto literário selecionado. O
artigo estrutura-se da seguinte forma: 1) apresentação da análise contendo alguns excertos
do romance de White e conceitos-chave do referencial teórico; 2) retomada dos objetivos
seguido de um esboço dos resultados e sua discussão; e 3) exposição da base teórica consultada
e citada no corpo do texto.
Waldo Brown
White tece a narrativa de The Solid Mandala construindo um jogo de oposições entre
os irmãos Brown. A condição de Waldo como intelectual e literato da família, ao lado de
seu pai, George, não aparece, em um primeiro momento, ameaçada por Arthur, que, ao
contrário do irmão (no capítulo narrado por Waldo) é lembrado como sendo melhor com
números do que com letras (STEFANI, 2011). No entanto, reconhecer a si próprio e ser
reconhecido como o leitor da família não é suficiente para o protagonista, que deseja mais
do que alcançar um status semelhante ao de seu pai (STEFANI, 2011). Waldo apresenta uma
personalidade gananciosa e egocêntrica: é como se ele apenas exigisse do mundo, sem estar
disposto a ceder algo em troca: “Ele odiava quase todos, mas acima de tudo, sua família”10.
A intenção de Waldo de tornar-se um escritor surge frequentemente na narrativa: “[...]
e isso pode ajudar [...] a entender melhor os sentimentos e as reações do personagem em
relação à própria família (principalmente ao irmão gêmeo) e aos seus conhecidos.” (STEFANI,
2011, p. 53 – tradução nossa)11. Sua visão sobre a escrita ficcional, no entanto, é idealizada, ao
ponto de acreditar que ter boas ideias é o suficiente. Com isso, o personagem nutre, em seu
10
No original: “He hated almost everyone, but above all, his family.” (WHITE, 1974, p. 80).
11
No original: “[...] and this might help [...] to better understand Waldo’s feelings and reactions towards his own
family (mainly to his twin brother) and his acquaintances.” (STEFANI, 2011, p. 53).
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íntimo, o desejo de tornar-se um escritor reconhecido, esquecendo-se, entretanto, do quanto
o processo exige dedicação e conhecimento técnico que não possui (STEFANI, 2011).
O retrato que Waldo pincela de si mesmo – como escritor – é uma das imagens que
compõem, dessa forma, os vários estratos de sua identidade multifacetada. Na visão de Hall
(2015), por exemplo, o sujeito não é dotado de uma identidade única e monolítica, pelo
contrário, ela é fragmentada e fluida. O mesmo pode ser dito em relação à identidade de Waldo
que adota o universo das Letras como um ponto de referência para tecer sua narrativa do “si”.
A partir disso, o protagonista tenta fabricar uma identidade que possa chamar somente de
sua, pois tamanho é o desejo de não ser mais definido em relação ao irmão. Isso fica evidente
quando Arthur, entusiasmado com a ideia de Waldo escrever uma tragédia, pede a Waldo
que o deixe fazer parte da encenação. Porém, Waldo não permite a aproximação do irmão:
Pois ele sabia ser algo que ele não poderia suportar compartilhar com seu irmão,
cuja respiração ele ouvia sempre que acordava à noite, o irmão que olhava
quase que diretamente dentro dele quando eles abriam os olhos nos travesseiros
gêmeos pela manhã (WHITE, 1974, p. 39)12.
12
No original: “Because he knew this was something he could not bear to share with his brother, whose breathing
he used to listen to whenever he woke in the night, the brother who looked almost right inside him when they
opened their eyes on twin pillows in the morning” (WHITE, 1974, p. 39).
13
No original: “Twins”.
14
No original: “Beside the promising Waldo, Arthur tended to fade out. Began to work for Allwright, both
behind the counter, and in the sulky delivering the orders after Allwright taught him to drive. Arthur was good
with animals; it was perhaps natural for them to accept someone who was only half a human being. It was sad
for Browns, not to say a real handicap to a fine boy like Waldo, who, they said, was the twin of the other, you
wouldn’t believe it” (WHITE, 1974, p. 75).
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capaz de construir redes de significado (BAUMAN, 2005; HALL, 2015; KEUPP et al., 2002;
MATHIAS, 2013). A partir disso, complexos temáticos são formados pelo sujeito - uma
identidade profissional, identidade privada, identidade artística, etc. - a partir da junção,
interpretação e integração das experiências em sociedade (BAUMAN, 2005; HALL, 2015;
KEUPP et al., 2002; MATHIAS, 2013). Dentro desses pressupostos, de fato, é possível
enxergar Waldo como uma figura preocupada em circular por complexos temáticos em
que o irmão Arthur não seja incluído. Assim, o protagonista insiste na ideia de tornar-se
escritor. Em outro momento da narrativa, Waldo como narrador-personagem relembra a
escrita e a leitura de um ensaio de sua autoria em sala de aula: “Chegando às partes que ele
sabia serem as melhores, Waldo sentia seu coração sufocar sua garganta, até ele quase não
conseguir pronunciar as palavras”15. Embora um entusiasta da literatura, no entanto, parece
mais preocupado em provar que sabe escrever em vez de viver a experiência de ler um ensaio
ou recitar um poema. O sentimento de inferioridade de Waldo em relação ao “Outro” é
marcado nesse evento. De acordo com Stefani (2011, p. 47), “Waldo talvez prove que a
suprema habilidade com as palavras, às vezes, não é muito eficaz, principalmente quando
faltam sentimentos verdadeiros”16. O protagonista precisa ser o melhor, o melhor irmão
ou até mesmo o melhor da turma ao comparar-se com outro colega, Johnny Haynes, por
quem constantemente sente-se ameaçado intelectualmente, em especial após a leitura de
seu ensaio em sala de aula: “Waldo estava nem tanto ouvindo mas observando as costas de
Johnny Haynes, se perguntando o quanto Johnny havia ouvido”17.
De acordo com Stefani (2011, p. 56), a vida de Waldo: “[...] só acontece em um plano
idealizado, e ele não faz quaisquer esforços para transformar essa idealização em realidade”18.
Assim, Waldo passa a escrever um grande número de rascunhos, mas nunca, de fato, termina
algum deles (STEFANI, 2011). O personagem até mesmo faz de tudo para esconder sua
atividade literária do irmão, tanto que, ao ser interrogado por Arthur sobre o que estaria
escrevendo, Waldo nem ao menos consegue resumir em uma única e simples frase do que
trata sua escrita. Ou seja, nem mesmo o próprio Waldo decide sobre o que pretende escrever:
15
No original: “Coming to the bits he knew to be the best, Waldo could feel his heart choking up his throat, till
he almost couldn’t bring out the words.” (WHITE, 1974, p. 43).
16
No original: “Waldo perhaps proves that the supreme ability with words is sometimes not very effective,
mainly when they lack true feelings.” (STEFANI, 2011, p. 47).
17
No original: “Waldo was not so much listening as watching Johnny Haynes’s back, wondering how much
Johnny had heard.” (WHITE, 2007, p. 44).
18
No original: “[...] only happens in an idealized plan, and he does not make any efforts to transform that
idealization into reality.” (STEFANI, 2011, p. 56).
19
No original: “Arthur felt the need to ask: “What are you doing Waldo?” When he had considered long enough,
Waldo answered: “I am writing.” “What about?” Arthur asked. “I don’t know,” Waldo answered, truthfully”
(WHITE, 1974, p. 81).
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Como se não bastasse, Waldo é constantemente afetado com descobertas que só viemos
a saber, como leitores, por meio de inúmeros flashbacks na narrativa de White, o que parece
corroborar a ideia de memória, fragmentação e identidade. Pensando especificamente no
personagem Waldo, em uma das cenas mais representativas de The Solid Mandala (a saber,
quando Waldo, durante sua jornada de trabalho na biblioteca, descobre que Arthur, disfarçado,
frequenta o espaço há um certo tempo para ler – e principalmente, entender – nada menos
do que Os Irmão Karamazov, de Fiodor Dostoiévski), Brugman (1988, p. 205, tradução nossa)
menciona que “O ego machucado de Waldo é finalmente fragmentado quando ele descobre
seu irmão [...] ativamente ocupado lendo na biblioteca, seu próprio sanctum sanctorum”20.
Após juntar, interpretar e integrar diversos elementos em uma rede de significados,
é provável que a identidade tecida pelo indivíduo encontre não só a estabilidade, mas
também instabilidade (MATHIAS, 2013). Essa instabilidade pode ser causada por
contradições/incoerências na relação entre os signos culturais unificados em grupos
temáticos (MATHIAS, 2013). Quando descobre, por exemplo, que Arthur é também (ou
melhor, foi quem primeiro conseguiu se tornar) amigo da família Feinstein e ainda mais
próximo de Dulcie Feinstein, Waldo – que revela ter intenções de casar-se com ela - sente
outro domínio da sua existência sendo invadido pelo irmão. Assim, Waldo tem dificuldade
em alinhar alguns setores da sua identidade com outros, causando, consequentemente, um
conflito entre esferas distintas. Para Mathias (2013):
Waldo é um ser introvertido que tenta encontrar sua identidade por meio da memória,
no entanto, não obtém sucesso (BRUGMAN, 1989). Nas palavras de Brugman (1989, p.
202): “Waldo descobre apenas a escuridão quando examina o seu eu interior”21, e isso se
deve muito à sua visão de mundo, que oscila mais para a fantasia do que para o real, sem
encontrar um equilíbrio entre os dois mundos, como no poema “Birches”, de 1916, do poeta
norte-americano Robert Frost (1939).
Arthur Brown
Em relação ao outro irmão, Arthur, sua identidade intelectual é ofuscada pela tentativa
de Waldo em tornar-se escritor. No entanto, como lembrado por Stefani (2011, p. 62,
tradução nossa): “Ao contrário de Waldo, que parece usar a leitura como uma forma de se
exibir, Arthur revela seu desejo de realmente entender o que lê, apesar de Waldo achar isso
20
No original: “Waldo's bruised self is finally fragmented when he discovers his [...] brother actively busy reading
in the library, his own sanctum sanctorum.” (BRUGMAN, 1988, p. 205).
21
No original: “Waldo discovers only darkness when he examines his inner self.” (BRUGMAN, 1989, p. 202).
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uma tarefa impossível.22”. Dessa forma, Arthur passa a ser construído na narrativa como um
personagem mais próximo da natureza e com o trabalho braçal do que preocupado com seu
desenvolvimento intelectual. Neste trecho fica evidente como Arthur negligencia essa esfera
de sua identidade comparando-se a seu irmão: “Arthur nunca conseguia ter tempo livre
como seu irmão para ler livros.23”.
Além disso, Arthur ainda atribui-se a tarefa de tomar conta de Waldo, servindo de
protetor, como o próprio narrador-personagem relembra:
Era o tipo de momento em que Arthur percebia que teria de proteger seu irmão,
que era inteligente demais pela metade, que lia ensaios em voz alta na aula, que
gostava de livros, e que dizia ser o queridinho da mãe deles. Por causa de tudo
isso, Waldo precisava de defesa contra ele mesmo e os outros. Estava tudo muito
bem segurar a mão de seu irmão porque Waldo era aceito pelo mundo retesado,
de asseio e respostas rápidas, de pontualidade e regras infringíveis (WHITE,
1974, p. 229)24.
Como consequência, ele não se permite mergulhar nos livros tanto quanto seria possível
se Waldo não estivesse sempre por perto: “Ele nunca teria sido capaz de proteger Waldo se
ele, também, tivesse se exposto assim e se enfraquecido. Arthur somente conseguia ver um
livro secretamente.25”. De acordo com Stefani (2011), escrever, para Arthur, trata-se de:
[...] um ato de culpa, já que o único que supostamente faria isso é seu irmão.
Arthur tem qualidades para realmente se tornar poeta, mas sua atividade literária
é (pelo menos psicologicamente) frustrada, pois todos o consideravam incapaz
de desenvolver seu talento literário [...]. (STEFANI, 2011, p. 63).26
Ao contrário de Waldo, Arthur rememora o irmão com afeição, mas também com
piedade: “Mas o coitado do Waldo era tão diferente, e tão frágil”27. Arthur relembra que a visão
de Waldo sobre ele não é validada: “Ele não estava doente. Ele não tinha ficado doente. Waldo
era o doente, eles diziam, Arthur sempre havia sido forte. Assim ele deve continuar a ser28”.
22
No original: “Unlike Waldo, who seems to use reading as a way to show off, Arthur reveals his desire to really
understand what he reads, even though Waldo thinks that an impossible task.” (STEFANI, 2011, p. 62).
23
No original: “Arthur could never take time off like his brother reading books.” (WHITE, 1974, p. 229).
24
No original: “It was the kind of moment when Arthur sensed he would have to protect his brother, who was
too clever by half, who read essays aloud in class, who liked books, and who was said to be their mother’s darling.
Because of it all, Waldo needed defending from himself and others. It was all very well to hang on to your
brother’s hand because Waldo was accepted by the tight world, of tidiness and quick answers, of punctuality and
unbreakable rules.” (WHITE, 1974, p. 229).
25
No original: “He would never been able to protect Waldo if he, too, had so exposed and weakened himself.
Arthur could only afford to look up a book on the sly.” (WHITE, 1974, p. 229).
26
No original: “[...] is a guilty act, since the only one who is expected to do it is his brother. Arthur has the
qualities to actually become a poet, but his literary activity is (at least psychologically) thwarted, since everyone
considered him incapable of developing his literary talent [...]”. (STEFANI, 2011, p. 63).
27
No original: “But poor Waldo was so different, and so frail.” (WHITE, 1974, p. 229).
28
No original: “He wasn’t sick. He hadn’t been sick. Waldo was the sick one, they said, Arthur has always been
strong. So he must continue to be.” (WHITE, 1974, p. 215).
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Pelos olhos de Waldo, o leitor não consegue conectar-se ao personagem, mas no
capítulo narrado por Arthur, a conexão emocional com ele é instantânea por meio da forma
poética com que o personagem abre o capítulo, demonstrando, portanto, que sua inclinação
para a poesia é quase que natural: “No começo havia o mar de sono de um azul tal no qual eles
repousavam juntos com bolos gelados e os fragmentos de vidro aninhando nos braços um
do outro as ondas felpudas de sono roçando neles como animais.” (WHITE, 1974, p. 215)29.
Para qualquer indivíduo, ao afirmar sua identidade, é preciso recorrer à memória
(CANDAU, 2011). É justamente o que Arthur encena em seu capítulo como narrador-
personagem: ao reconstruir seu passado por meio das lembranças, ele atribui significados
e sentidos ao “si” no presente. A memória seria então a base sobre a qual cada indivíduo se
debruça e constrói sua identidade de forma contínua. Para Erll & Nünning (2008), memória e
identidade são duas instâncias intimamente conectadas. Não existe, portanto, uma identidade
monolítica como acreditava-se no passado, como no sujeito do iluminismo descrito por Hall
(2015). Caso contrário, Arthur teria permanecido como o irmão sem proximidade alguma
com a leitura. Dessa forma, identidades são construídas por atos de memória, relembrando
quem um sujeito foi e localizando esse “si” do passado em relação a seu “si” no presente
(ERLL & NÜNNING, 2008).
Considerações finais
Patrick White, em The Solid Mandala, prova ser uma figura significativa tanto para
a Literatura Universal quanto para a Literatura Australiana. Sua escrita traduz-se em
uma enorme sensibilidade artística: adentra e explora a mente e as emoções humanas em
profundidade, revelando um efeito catártico intenso. Não por acaso, este título é um dos
romances mais intrigantes, segundo a crítica especializada. White configura quadros da
memória individual ao dar vida à narrativa dos irmãos Brown na primeira metade do século
XX no continente australiano. É por meio dessa coleção de experiências e eventos em torno
da vida de Waldo e Arthur, que, em paralelo, um esboço sobre a identidade desses dois
personagens é traçado: trata-se de um estudo sobre como duas personalidades, ainda que
tão próximas e conectadas, sejam tão dicotômicas. White concentra-se mais em mapear
os confins da mente humana do que envolver seu leitor em uma sequência de grandes
eventos. Disso resulta a experiência da memória e da identidade, do retorno ao passado e da
configuração do “si”.
Tendo esses dois vetores em vista (memória e identidade), este trabalho procurou analisar
a representação desses horizontes na obra The Solid Mandala, de Patrick White, com base
em conceitos teóricos-chave levantados por Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau
(2011), Hall (2015), Neumann (2008), dentre outros. Verificou-se que Patrick White utiliza-
29
No original: “In the beginning was the sea of sleep of such blue in which they lay together with iced cakes
and the fragments of glass nesting in each other’s arms the furry waves of sleep nuzzling at them like animals.
Dreaming and dozing.” (WHITE, 1974, p. 215).
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se de uma configuração estética comum à representação da memória e da identidade em textos
literários, com narradores-personagens, no tempo passado, rememorando acontecimentos de
suas vidas em primeira pessoa, ou com o emprego cronológico de analepses. Waldo e Arthur
relembram, portanto, da infância até os últimos dias de sua existência.
É possível também afirmar que White prova que a rememoração e a configuração do
“si” são duas peças do mesmo quebra-cabeça. Ou seja, como defendido por Candau (2011, p.
10): “[...] admite-se geralmente que memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas”.
Quanto à configuração do “si”, fica claro que, na construção de uma identidade individual,
contradições e incoerências entre esferas distintas podem ocorrer. Nas palavras de Bauman
(2002, p. 36): “[...] ‘identificar-se com…’ significa dar abrigo a um destino desconhecido que
não se pode influenciar, muito menos controlar”. Fragmentada, a identidade pode entrar
em desacordo e até mesmo em crise. Waldo não consegue, por exemplo, alinhar sua pouca
disposição para com a escrita ficcional ao seu desejo incansável de tornar-se poeta. Já Arthur
parece reprimir sua disposição quase que natural para com a arte em função de não sufocar
ou machucar Waldo. As identidades de ambos os protagonistas são construídas em um jogo
de oposições. Tendo isso em vista, os irmãos aparecem em busca de signos culturais que
possam atribuir a si próprios com a finalidade de tecer uma rede de significados que possam
então chamar de identidade. O personagem de Waldo, para Brugman (1988, p. 199, tradução
nossa), “[...] não pode alcançar um equilíbrio entre o bem e o mal [...]. Como Arthur, a
dualidade em si mesmo não está resolvida no momento de sua morte”30.
Sempre que um indivíduo tenta responder à pergunta “quem eu sou?”, ele
inevitavelmente acaba tomando o percurso em direção ao passado por meio de um processo
mnemônico. A memória revela-se lábil, plástica e ambígua em The Solid Mandala. Nas
palavras de Erll & Nünning (2008, p. 6, tradução nossa): “[...] identidades são construídas
por atos de memória, relembrando quem um sujeito foi e localizando esse ‘eu’ do passado em
relação a seu ‘eu’ no presente”31. Já para Candau (2011, p. 15), a memória participa de uma
ilusão: “[...] o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver
graças à lembrança”.
A maior parte da narrativa é dedicada às memórias de Waldo. Ele reconstrói o passado
em tom pessimista, amargo e cruel, tendo como efeito um sentimento claustrofóbico para
o leitor. Waldo quase sempre culpa a existência do irmão pelos seus próprios fracassos.
Já Arthur rememora o irmão com apreço. É também uma surpresa descobrir que Arthur
não só se interessa por ficção, mas como também apresenta uma inclinação quase que
natural para a poesia. Ambos os irmãos encontram dificuldade em dividir uma esfera da
identidade, a de “irmãos gêmeos”: é algo que os sufoca. O título do romance faz alusão à
ideia de um todo composto por partes, a mandala, que, em um dos planos da narrativa, não
se concretiza. Esses dois personagens deveriam formar uma unidade, mas são construídos
30
No original: “[...] cannot achieve a balance between good and evil [...]. As with Arthur, the duality in his self is
unresolved at the time of his death.” (BRUGMAN, 1988, p. 199).
31
No original: “[...] identities have to be constructed and reconstructed by acts of memory, by remembering
who one was and by setting this past Self in relation to the present Self.” (ERLL & NÜNNING, 2008, p. 6).
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em um jogo de oposições que os repelem constantemente. White, em sua autobiografia
‘Flaws in the Glass’ (1981), relembra a construção de The Solid Mandala e associa a figura de
Waldo a si mesmo: “Vejo os irmãos Brown como minhas duas metades. [...] Waldo é eu
mesmo da forma mais fria e ruim”32.
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32
Tradução nossa. No original: “I see the Brown brothers as my two halves. […] Waldo is myself at my coldest
and worst.” (WHITE, 1981, p. 146-147).
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______. You are what you read: Intertextual relations in Patrick White’s The Solid
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Personae em pentimento: considerações
sobre a figura de escritor na obra de Caio
Fernando Abreu
ABSTRACT: Considering the written production of Caio Fernando Abreu, we will study some
of his representative texts about the writer figures, the projections and the expectations about this
profession that he constituted for himself, his family and friends, for the public and the critics.
These representations, which are made through a self and anthropophagic poetics, unveil the
mise-en-abyme of the various personae as a writer in letters, short-stories, chronicles, novels, and so
on, a peculiarity that evidences the dialogical potency of the said work. An important theoretical
question appears, namely, the insertion of this author in the Brazilian literary system, whose poetic
problematizes the concepts and myths of the author, current authorship and genius, especially in
Romanticism and the Avant-garde Arts.
* Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Centro de Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual
de Londrina – UEL – CEP 86057-960 – Londrina – Brasil. E-mail: ellenmariany@uel.br
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Introdução
Não nos prestamos, aqui, a discutir o quanto de experiência de vida de CFA tornou-se
material de ficção e vice-versa. De acordo com BAKHTIN (2003, p. 09), não se deve confundir
o “autor-criador, elemento da obra, com o autor-pessoa, elemento do acontecimento ético
e social da vida”. Nesta perspectiva, ao utilizarmos a sigla CFA para designar Caio Fernando
Abreu, estamos efetuando, desse modo, uma distinção entre o “elemento da obra” e o
“elemento do acontecimento ético e social da vida”. Nesse sentido, a tarefa de relacionarmos
vida e obra mostra-se, de saída, inviável. Isso porque devemos considerar que os registros
dos conteúdos das cartas aos amigos e aos parentes, das crônicas, inicialmente publicadas
nos jornais O Estado de São Paulo e Zero Hora, de Porto Alegre, das entrevistas, divulgadas nos
jornais e revistas variados e dos prefácios às edições revisadas são feitos por meio da escrita
e são, em última análise, uma representação dos referenciais abordados. Se considerarmos
que essas representações – assim como os contos, os romances e as peças de teatro de CFA
– existem e podem ser lidas, também, como ficção, o caráter de “acontecimento estético”
(BAKHTIN, 2003, p. 09) atribuído a elas auxiliaria na exclusão, do horizonte de nossas
análises, do “elemento do acontecimento ético e social da vida”, i.e., Caio Fernando Abreu2.
1
Utilizamos esta palavra de acordo com a seguinte definição contida no dicionário Houaiss (2001): “2. conjunto
de elementos que formam um todo coerente, ligados por algo em comum”. Vale ressaltar que o estudo
aqui apresentado é uma releitura de algumas das análises presentes em nossa tese de doutorado, intitulada
Pentimento: um álbum de retratos das personae de escritor de Caio Fernando Abreu, defendida em 2010, que se
encontra no portal Domínio Público, no endereço eletrônico: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=172637.
2
Sobre os estudos acadêmicos que consideram as relações entre os aspectos biográficos de um autor e sua obra,
Bakhtin reforça: “[...] o que acabamos de dizer não visa, absolutamente, a negar a possibilidade de comparar de
modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões de mundo, comparação
eficiente tanto para a história da literatura quanto para a análise estética. Negamos apenas o enfoque sem
nenhum princípio, puramente factual desse tema, que atualmente domina sozinho e se funda na confusão do
autor-criador, elemento da obra, com o autor-pessoa, elemento do acontecimento ético e social da vida, e na
incompreensão do princípio criador da relação do autor com a personagem; daí resultam a incompreensão e a
deformação – no melhor dos casos a transmissão de fatos apenas – da personalidade ética, biográfica do autor,
por um lado, e a incompreensão do conjunto da obra e da personagem, por outro” (BAKHTIN, 2003, p. 09).
Um estudo que leva em consideração a confluência entre os fatos reais e ficcionais elaborados pela linguagem,
na obra de CFA, encontra-se em BARBOSA (2009). Em sua tese de doutorado, valendo-se das concepções dos
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No que se refere ao acontecimento estético de CFA, cada gênero discursivo praticado
(re)apresentaria as suas possíveis personae autorais. Haveria, pois, um CFA romancista, um
CFA contista, um CFA dramaturgo, um CFA missivista, um CFA cronista. Sobretudo, há,
também, um CFA que, ao escrever cartas aos amigos e parentes, ao escrever os prefácios
das edições revisadas de seus livros e ao fornecer entrevistas a veículos variados sobre sua
obra, coloca-se, de forma supra-autoral: esta persona de escritor apresenta-se/representa-se,
nessas ocasiões, como o autor responsável pelos demais gêneros de discursos praticados.
Personae auto-elucidativas, essas, ao se valerem de dramas semelhantes, representando-os
por meio da escrita, dão corpo à obra e corporificam-se nela, firmando, multifacetadamente,
a figura de Escritor de CFA.
A rigor, ao reconhecermos algumas de suas personae de escritor, podemos relacionar
sua obra às produções artísticas ocidentais realizadas a partir da segunda metade do século
XX, que se marcam pelo estabelecimento de uma crise nas noções burguesas de autor e de
autoria, vigentes na modernidade. Mais do que negar o mito do escritor como um demiurgo,
que, tomado de uma inspiração genial, é capaz de criar uma obra de arte nova e original, a
produção de CFA, a seu modo particular, ajuda pôr em evidência que este mito não passa
de uma construção, cujas ruínas sobrevivem não somente no que se refere à sua produção
escrita, mas, também, à inserção desta produção no sistema literário. Isto afirmaria a sua
participação na construção de uma espécie de poética do fragmento, o que, em linhas gerais,
consideramos como um traço recorrente nas produções artísticas contemporâneas.
No caso de CFA, muitas vezes, utilizamos, indiscriminadamente, o nome próprio
Caio Fernando Abreu para designarmos a obra, esquecendo-nos de que o autor se faz, nela,
presente como uma instância que só tem existência no plano linguístico/textual. A respeito
deste sujeito – constituído linguisticamente – que é capaz de articular textos/discursos pré-
existentes, deixando, desta maneira, a sua marca autoral, temos os conceitos de escritor, de R.
Barthes, de função autor, desenvolvido por M. Foucault e de autor-criador, proposto por M.
Bakhtin, que contribuem para a problematização da ideia moderna de autor/autoria3.
Considerando as concepções de Barthes e de Foucault, percebemos que cada um, com
suas particularidades, promove um desalojamento do autor burguês, tal como compreendido
na modernidade, de sua posição de fundamento/origem de uma obra. Se relacionarmos a
noção de escritor, de Barthes, segundo a qual quem fala, num texto, é aquele que diz “eu”, ou
seja, a própria linguagem que conhece não uma pessoa e, sim, um sujeito (BARTHES, 1984,
p. 51), com a função autor, de Foucault (2000), que designa uma posição enunciativa que pode
remeter a uma pluralidade de “eus”, aproximamo-nos do autor-criador, de Bakhtin. Vejamos.
Em “O autor e a personagem na atividade estética” (1920-1922), Bakhtin considera
que para cada gênero discursivo existe um enunciador que orienta seu discurso de acordo
teóricos franceses Serge Doubrovsky, Vincent Colonna e Philippe Lejeune, o autor discute as diferenças entre
os discursos biográfico e autobiográfico, utilizando-as para estabelecer relações entre a obra e a vida de Caio
Fernando Abreu.
3
Um estudo comparativo das noções de escritor, de R. Barthes, de função autor, de M. Foucault, e de autor-criador,
de M. Bakhtin, que considera o modo como estes conceitos auxiliam, por meio da negação de uma voz única e
soberana, na problematização da ideia de unicidade do sujeito, encontra-se em CAVALHEIRO (2008).
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com pontos de vista, circunstâncias espaçotemporais e particularidades histórico-sociais
específicos, tendo em mente o seu destinatário. Complementando esta ideia, em Problemas
da poética de Dostoiévski (1929), Bakhtin afirma: “todo enunciado [oral e/ou escrito] tem uma
espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o seu criador” (BAKHTIN,
2008, p. 210 – colchetes nossos). Isso vale, também, para a literatura em que o autor
4
No capítulo “A máquina de tecer”, Lúcia Helena Carvalho (1983, p. 08) aponta que a mise-en-abyme, i.e., a
construção em abismo existe, na pintura e na literatura, desde o século XVI. Contudo, o uso deste termo foi feito,
pela primeira vez, por André Gide, em 1893, para designar a organização de sua própria obra. Esta organização
se caracteriza pela inclusão de um quadro narrativo dentro do outro, uma história dentro da outra, tal como uma
superposição de espelhos, de modo que cada imagem reflita, em menor escala, a imagem que lhe originou.
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Conforme a definição do dicionário Houaiss, pentimento é um termo utilizado na
pintura para designar um
A perspectiva que considera a obra de CFA como uma espécie de tela constantemente
reaproveitada em que o escritor lê a obra de outros autores, lê-se, (re)lê-se, faz-se, (re)
faz-se, faz a sua obra e é feito escritor por ela promove uma constante releitura dessas
personae que se constroem e são construídas, inexoravelmente, por meio da escrita. Nesse
sentido, observaremos, a partir de agora, o que há de mais representativo no que se refere
ao tratamento dado pelas personae CFA às máscaras e mitos de escritor, às ambições e
expectativas sobre o ato de escrever. Nestes trechos, também será possível vislumbrarmos
os principais procedimentos de composição poética do autor-criador, a saber, os processos de
autofagia e antropofagia, ou seja, a apropriação da própria voz e da voz alheia na composição,
por meio do pentimento, de seus textos/discursos.
Em novembro de 1969, Caio Fernando Abreu recebia o Prêmio Fernando Chinaglia, da
UBE – União Brasileira dos Escritores, pelo seu livro de contos Inventário do irremediável. No
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primeiro semestre do ano seguinte, o livro foi publicado pela Editora Movimento, em Porto
Alegre. Nesta época, o escritor tinha 21 anos de idade e fazia sua estreia no cenário literário
brasileiro. Tanto o prêmio quanto a publicação soam como uma espécie de realização do
desejo expresso numa carta sua dirigida a seus pais, datada de 13 de março de 1969. Dentre os
assuntos desta carta, à qual pertence o trecho a seguir, destacam-se a sua demissão da, então,
recém-criada revista Veja, o possível retorno à casa dos pais, em Porto Alegre, e a retomada
do Curso de Letras, interrompido por causa de sua mudança para São Paulo. Além disso,
CFA queixa-se do desamparo e da solidão por ele experimentados. Em contrapartida aos
aspectos negativos, ele tranquiliza os pais dizendo que foi acolhido por um casal de amigos –
a escritora Hilda Hilst e seu marido, o escultor Dante –, e que ainda possui dinheiro para se
manter por algum tempo. Seguem-se a isso algumas notícias promissoras sobre o andamento
de seus projetos literários:
Tenho escrito muito. Um conto meu vai sair numa das próximas Cláudia, talvez
a de abril – e o meu romance está nas mãos de duas pessoas influentes – Carmem
da Silva e Léo Gilson Ribeiro (crítico literário) – que estão procurando editores.
Também estou dando os últimos retoques num livro de contos chamado
Inventário do irremediável, que um amigo escritor – Ignácio Loyola – vai levar
para uma editora só de gente nova, a Senzala. É quase certo que sai. Deste, vou
mandar também uma cópia para uma amiga no Rio, Maria Helena Cardoso, irmã
do Lúcio Cardoso, aquele escritor que morreu há pouco. Se a editora Senzala por
uma infelicidade não der certo, ela me arrumará um editor no Rio. Há também
um outro livro de contos (A margarida enlatada, onde tem um conto dedicado a
vocês) e uma novela (Cavalo branco na escuridão). Estão no Rio, com Carmem da
Silva. Com todas essas coisas engatilhadas, é provável que muito em breve vocês
tenham um filho famoso, com fotografias e entrevistas em jornais, revistas,
noites de autógrafo, viagens à Europa, prêmios – todas essas coisas (ABREU,
2002, p. 358 – grifos nossos).
É interessante notar que, em se tratando do veículo escolhido por CFA para se expressar
– pois o gênero carta pressupõe a determinação do tom a ser utilizado em seu discurso,
tendo em vista o tipo de relações existentes entre o remetente e seu(s) destinatário(s) –,
mais do que um desejo de fama (entrevistas, revistas, fotografias, noites de autógrafo etc.)
há, no trecho aqui reproduzido, a enunciação do CFA-missivista que requer dos seus pais o
reconhecimento tanto de sua condição de filho do casal Nair e Zael Abreu – filho que, dentre
os demais, se destacaria como escritor –, quanto a validação do seu ofício de ficcionista no
sistema literário brasileiro. Melhor dizendo, por meio da carta, podemos perceber um desejo
de conciliação entre a sua condição ocupada na esfera íntima e familiar, em relação aos seus
pais e aos seus irmãos, e o ofício escolhido por ele, cuja afirmação se faz – e foi feita, ao longo
dos quase 30 anos de sua produção – pelo público e pela crítica.
Decorre disto um outro aspecto relevante: o fato de que, hoje, temos acesso a uma parte
da correspondência pessoal de Caio Fernando Abreu, publicada em livro. Não é de se descartar
a hipótese de que ele sabia – e até esperava – que suas cartas viessem a público, devido às
“entrevistas em jornais, revistas, noites de autógrafo, viagens à Europa, prêmios – todas essas
coisas” (p. 358). Suas cartas se constituiriam em canais que auxiliariam na exposição e no
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reconhecimento de sua posição como escritor. Daí trabalharmos com a hipótese de que CFA
se comportasse, nas cartas, de modo a construir uma imagem (e a alimentar o mito) de escritor
em torno de si mesmo, para si, para seus amigos e parentes, para o público e para a crítica.
Embora nosso objetivo neste artigo seja considerar apenas os textos/discursos
proferidos por CFA, sobre as suas personae de escritor, há um outro fator que reforça a
construção do mito de escritor que não podemos ignorar. Trata-se do olhar da crítica sobre
seus textos/discursos. Organizado por Italo Moriconi, Caio Fernando Abreu – Cartas (2002),
livro que reúne parte da correspondência pessoal de CFA, é dividido em duas partes: a
primeira delas, intitulada “Todas as horas do fim”, contém cartas de CFA enviadas a amigos
e a parentes entre os anos de 1980–1996, período que abrange os aspectos da vida e da obra
do escritor até pouco antes de sua morte, em fevereiro de 1996. A segunda parte, “Começo:
o escritor”, relaciona cartas produzidas entre os anos de 1965–1979, momento em que
CFA saiu da casa dos pais, iniciando-se na carreira de jornalista e literato. A nosso ver, esta
organização favorece uma narrativização dos fatos e sentimentos ali relatados, colocando a
vida do escritor como uma espécie de romance narrado em ultima-res. Num certo sentido, as
biografias sobre CFA Inventário de um escritor irremediável (2008), de Jeanne Callegari, e Para
Sempre Teu, Caio F. (2009), de Paula Dip, também constroem personae de escritor de Caio
Fernando Abreu, reforçando os mitos em torno de sua vida e de sua obra.
Como visto, as imagens/mitos de escritor cultivados tanto por CFA quanto pela crítica
especializada dialogam com o que afirma o poeta e crítico literário T. S. Eliot (1888-1965),
em seu ensaio “Tradição e talento individual” (1922):
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu
significado e a apreciação que dele fazemos constitui a apreciação de sua relação
com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo,
para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio
de estética, não apenas histórico, mas no sentido crítico (ELIOT, 1989, p. 39).
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Escrevo, escrevo, escrevo. Quando páro, ando de bicicleta, cuido do jardim
(explodiu em girassóis, alamandas, petúnias e gladíolos – está lindo), faço yoga
e leio a biografia de Clarice Lispector escrita por Nádia B. Gotlib, saindo pela
Ática (leio as provas). Que vida, minha irmã: dá vontade de reler toda a obra
dela. Mas não, porque então páro de escrever. Clarice disse tudo? Certa vez um
crítico do Le Magazine Littéraire disse que meu texto parecia “o de uma Clarice
Lispector que tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado algumas drogas”. Fiquei
lisonjeadérrimo (ABREU, 2002, p. 326).
Nesta carta, CFA descreve a sua rotina na época. Destaca-se, especialmente, a menção
à leitura, por CFA, de uma biografia sobre Clarice Lispector5 (doravante CL), assim como
o fato de ele ter ficado orgulhoso com a comparação de sua obra à obra de CL, feita pelo
crítico do Le Magazine Littéraire6. Comparativamente, mesclam-se, aqui, as representações
da obra e da vida de CFA com as da obra e da vida de CL, em que o saldo, de acordo com o
missivista, é positivo, já que ele ficou “lisonjeadérrimo” (p. 326). Comparemos este trecho
com outro trecho de uma outra carta sua escrita à amiga, e também escritora, Hilda Hilst,
22 anos antes, em 1973:
Meu trabalho está bem diferente do que você conhecia, para melhor, já liberto
de todas aquelas influências de Clarice Lispector. E bem mais objetivo, bem mais
maduro que o Inventário [...]. (ABREU, 2002, p. 431 – grifo nosso)
Nesta carta, de 11 de janeiro de 1973, CFA escreve a Hilda, dando-lhe notícias sobre
seu mais recente trabalho na época, o livro de contos O ovo apunhalado, que seria publicado
em 1975. Como visto, o escritor julga estar livre das “influências de Clarice Lispector” (p.
431). Considerando a distância temporal que separa as duas cartas, um período de 22 anos,
percebemos que a carta de 1995 apresenta o pentimento/”arrependimento” de CFA, no que
se refere a uma mudança na avaliação, feita por ele, sobre si próprio como escritor e sobre a
presença da voz-CL em sua vida e em sua obra representadas em ambas as cartas. Se na carta
de 1973 CFA nega a presença da voz-CL em seu livro O ovo apunhalado (1975), na carta de
1995, CFA revê tal posicionamento, admitindo que CL participa de sua formação, de acordo
com as representações sobre a vida e a obra de CL construídas por ele em 1995, de modo
indiscutível, tanto é que ele se sente elogiado pela fala do crítico do Le Magazine.
Esta “forma de ver, e ver de novo, mais tarde” (HELLMAN, 1980, p. vii) presente no
cotejo das duas cartas acima também pode ser bem observada na comparação de alguns aspectos
das duas edições do livro de contos Inventário do irremediável (1970), com uma diferença de 25
anos da 1ª edição para a edição revista pelo escritor, em 1995. Este livro sofreu uma rigorosa
revisão em que teve até o seu título alterado: de Inventário do irremediável para Inventário do
ir-remediável. Além disso, oito contos foram retirados e os demais reescritos. Vejamos o que
resultou do pentimento sobre a admissão – ou não – da presença de CL por CFA.
5
A biografia mencionada por CFA é Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Batella Gotlib, lançada em 1995.
6
O crítico referido por CFA é Jacobo Machover (1954), professor, escritor e jornalista cubano, radicado na
França desde 1963. A opinião emitida por ele vem impressa na capa da edição do livro Morangos Mofados, de
CFA, lançada pela Companhia das Letras em 1995.
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O trecho “Ver o ovo é impossível; o ovo é supervisível como há sons supersônicos.
Ninguém é capaz de ver o ovo” (LISPECTOR, 1999, p. 46) é parte do conto “O ovo e a galinha”,
de A legião estrangeira (1964), de CL. Ele serve de epígrafe ao conto “O ovo”, do Inventário
do ir-remediável, ed. rev., p. 36. Na narrativa de CFA, um homem é isolado num espaço
inóspito, cuja descrição se assemelha a um quarto de sanatório. A causa deste isolamento vai
ao encontro da referida caracterização espacial: desenvolvendo uma espécie de paranoia, a
personagem se julga perseguida por um ovo que aumenta de tamanho à medida que engloba
pessoas e objetos à sua volta. É, pois, numa espécie de quarto/cela, já que há grades nas
janelas, que, à luz do último toco de vela que lhe resta, o protagonista conta, brevemente,
a sua história de vida. É este relato, feito em 1ª pessoa, que constitui, via metalinguagem, o
conto em questão. Vale dizer que a epígrafe feita a partir do texto de Lispector não existe no
Inventário do irremediável (1ª ed.), sendo inserida por CFA apenas na edição revista.
Algo semelhante acontece nos seguintes trechos que, também, pertencem às duas
edições do Inventário:
[Trecho 1]
“Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E êsse jeito instável de pegar uma maçã
no escuro – sem que ela caia.”
― Que saco, hein? Estava demorando.
― O quê?
― A citação. Aaaarrrrghhhh.
Mas ela não sorri (ABREU, 1970, p. 97).
[Trecho 2]
― Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse jeito instável de pegar uma
maçã no escuro – sem que ela caia.
― Que saco, hein? Estava demorando.
― O quê?
― A citação. Quem é?
― Clarice Lispector.
Ela não sorri (ABREU, ed. rev., 1995b, p. 111).
No trecho 1, as orações que aparecem entre aspas constituem uma parte do discurso
do narrador de 3ª pessoa que encerra o romance A maçã no escuro, de 1961, de CL. O conto
de CFA, “Apenas uma maçã”, no qual esta citação é feita, narra uma conversa entre um casal
de ex-namorados que se encontram depois de muito tempo separados. Ela, enquanto ambos
conversam, manipula uma maçã. Ele, então, recorda e cita o trecho do romance de CL. Ela se
irrita e percebe que, mesmo depois de muito tempo distantes um do outro, ele mantivera os
mesmos hábitos. É importante destacar que a citação do livro de Lispector, na 1ª edição do
Inventário do irremediável, é feita entre aspas e sem mencionar o nome da escritora.
O trecho 2 demonstra que esta mesma citação, feita na 1ª ed. do livro de CFA, existe na
sua edição revista. Contudo, ela é nomeada e as aspas são retiradas. É interessante notar que,
na citação da 1ª ed., a personagem não pergunta ao homem a quem pertence a frase, o que
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pressupõe que ela também conhece o romance de CL. Na citação presente na edição revista,
a personagem também fica irritada, mas desconhece ou ignora que o trecho pertence ao livro
de Clarice Lispector.
Ao observarmos este pentimento/“arrependimento”, percebemos que ele tem por base
a 1ª edição do Inventário – primeira tela/livro de CFA pintada/publicado em 1970. Decorridos
25 anos, esta(e) mesma(o) tela(livro) é retomada(o) e refeita(o). Este refazimento conteria
os traços da 1ª edição que, misturados às “novidades” da edição revista, fariam do Inventário,
simultaneamente, o mesmo e um outro livro. Melhor dizendo, ao realizar a retomada e a
reelaboração do passado do escritor num intervalo de 25 anos, o pentimento concretizado
na edição revista evidencia, também, uma reavaliação da imagem de escritor que o próprio
CFA, em 1970, tinha de si.
Ainda sobre a admissão ou não, por parte de CFA, da presença da obra e da figura de
escritora de Lispector, temos alguns exemplos no livro Ovelhas negras (1995), que reúne contos
e fragmentos produzidos entre 1962 e 1995 que não foram incluídos nos livros anteriores.
No texto de capa da edição de 1995, na perspectiva de CFA, os contos e fragmentos presentes
no referido livro seriam os seus textos “de fundo-de-gaveta”. Tal adjetivo é emprestado/
apropriado da escritora CL, que, em seu mini-prefácio à segunda parte do livro A legião
estrangeira, primeira edição, também qualifica seus textos como fundos de gaveta. Vejamos
como cruzamento das vozes de CFA e de CL sobre seus modos de composição poética se
processam e revelam os desejos e projeções de CFA sobre si mesmo como escritor:
Nunca pertenci àquele tipo histérico de escritor que rasga e joga fora. Ao contrário,
guardo sempre as várias versões de um texto, da frase em guardanapo de bar, à impressão
no computador. Será falta de rigor? Pouco me importa. Graças a essa obsessão foi que
nasceu Ovelhas negras, livro que se fez por si durante 33 anos. De 1962 até 1995, dos
14 aos 46 anos, da fronteira com a Argentina à Europa. Não consigo senti-lo – embora
talvez venha a ser acusado disso, pois escritores brasileiros geralmente são acusados, não
criticados – como reles fundo-de-gaveta, mas sim como uma espécie de autobiografia
ficcional, uma seleta de textos que acabaram ficando fora de livros individuais. [...] Mas
jamais o assumiria se, como às minhas ovelhas brancas publicadas, não fosse eu capaz
de defendê-lo com unhas e dentes contra os lobos maus do bom-gostismo instituído e
estéril. Remexendo, e com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive
tão clara certeza de que criar é literalmente arrancar com esforço bruto algo informe do
Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita
Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas. (O Autor-
Pastor) (ABREU, 1995a – grifos do autor).
Querida mãe, querido pai, não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo
de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas.
Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.
Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o
equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu
próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado (ABREU, 2002, p. 153).
Neste trecho, o missivista aponta a diferença entre a rotina da família, que envolve
um número grande de pessoas numa mesma casa, e a sua, uma vida marcada, como ele
mesmo diz, pelo isolamento e pela solidão. Daí, a sua inabilidade de integrar-se ao cotidiano
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e às teias afetivas familiares, o que lhe provoca uma sensação de inadequação. Dessa forma,
o carinho e o afeto que também poderiam encontrar representação por meio de abraços,
beijos, afagos, etc. são representados por meio da carta, como uma forma de justificar e
procurar suprir esta dificuldade:
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão.
E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas
aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o
destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa,
sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma
janela – mas não consegue vivê-la. Amo vocês como quem escreve para uma
ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a
secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco [...] (p. 153 – grifos
nossos).
No trecho acima, CFA aponta que a sua dificuldade de se relacionar com os pais advém
do fato de ele ser um escritor, ou seja, alguém que só é capaz de lidar consigo, com os outros
e com o mundo que o cerca por meio da ficção, o que se revela como um mito moderno
sobre a figura do escritor considerado como sujeito incompreendido, deslocado socialmente
devido a esta inclinação/função. É dentro deste campo, amparado pela escrita, que o CFA-
missivista expressa seus medos e dificuldades em relação ao afeto familiar. Além disto, ao
assumir a qualidade de escritor, a carta, de certa forma, o liberaria de exercer outros modos
de expor o seu afeto aos pais, já que demonstrar seus sentimentos por meio de outro veículo
que não seja a escrita seria, para o missivista, uma grande barreira.
Justifica-se, pois, a sua opção pela carta: ao estruturar seu discurso em primeira pessoa,
CFA cria, por meio da escrita, uma representação de si e, consequentemente, do(s) seu(s)
destinatário(s), i.e., uma ficção. Semelhante a um pentimento, à ideia de fracasso em relação
ao enfrentamento das dificuldades da vida concreta, CFA sobrepõe, por meio da carta, uma
espécie de correção. O arrependimento nela elaborado possui uma dupla função: ele visa a
corrigir/remediar a falta de habilidade do missivista em integrar-se no cotidiano dos pais e
da vida em família e, ao mesmo tempo, faz existir algo que, no passado recente quando da
visita aos pais, não houve. Aos gestos de compreensão e de afeto em relação aos pais que ele
não foi capaz de realizar na época, soma-se o pedido de desculpas: “Perdoem o silêncio, o
sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É
muito difícil ficar adulto. Amo vocês, seu filho Caio” (ABREU, 2002, p. 153).
Ao vestir, digamos, a máscara involuntária de filho, aquela que Nair e Zaél Abreu lhe
atribuem, note-se que ele assina “seu filho Caio” (p.153), ao produzir a carta, CFA sobrepõe
uma outra máscara, desta vez, escolhida por ele: passando de filho do casal a filho-escritor,
o missivista requer, mais precisamente, ser reconhecido como um escritor, imagem/mito
que ele cultiva já na carta de 13 de março de 1969, estudada anteriormente. Se escrever em
primeira pessoa é uma maneira de representar-se – e de se fazer apresentar –, é interessante
notar que a estruturação dessa representação/apresentação passa, mais uma vez, pela
apropriação do discurso alheio. De modo a definir a si próprio e o modo como quer ser visto
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pelos pais, CFA reitera: “Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir
dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso,
há muito amor. Amor louco [...]” (ABREU, 2002, p. 153). Especialmente nas frases grifadas,
há a apropriação de um trecho de Água viva (1973), de CL. Vejamos:
Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez
os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada.
Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me
arranha como se fossem farpas. [...] (LISPECTOR, 1998b, p. 51 – grifos nossos).
Embora os trechos da carta de CFA e do livro de CL, aqui citados, tratem de circunstâncias
distintas – o missivista dirige-se aos pais, enquanto que a enunciadora-CL direciona o seu
discurso a um interlocutor desconhecido –, há, entre eles, algumas semelhanças; é por meio
da construção de uma representação de si que ambos se caracterizam e se dão a ver para e pelo
outro. Assim como a voz-CL se define como inquieta, áspera e desesperançada, o enunciador
CFA utiliza adjetivos semelhantes para caracterizar as suas ações: “O que sobra é o áspero
do gesto, a secura da palavra” (p. 153 – grifos nossos). Além disso, os dois enunciadores
apontam que, por mais que haja dificuldade de demonstrar afeto por algo ou alguém, já que
suas ações secas e ásperas realizariam, segundo eles, o contrário do que eles sentem, isso não
significa que eles não tenham “muito amor. Amor louco” (ABREU, 2002, p. 153) e “amor
dentro de mim” (LISPECTOR, 1998b, p. 51).
Na comparação entre estes dois trechos, percebemos que o autor-criador CFA – que
é, também o CFA-leitor da obra de CL —, ao escrever sua carta aos pais, um fato concreto,
vale-se de uma situação ficcional, a apropriação da voz-CL, agregando-se a ela para descrever
os seus sentimentos e construir a sua auto-representação. Nesse sentido, assim como visto
anteriormente em relação às citações literais e nomeadas de CL, bem como às menções às
representações de sua vida e de sua obra, é comum que os enunciadores CFA associem uma
ficção (o texto de CL) à representação, na carta, de uma realidade por eles vivida, neste caso,
a dificuldade de demonstrar afeto aos pais, e vice-versa. É por isto que, no momento em que o
missivista escreve “Amo vocês como quem escreve para uma ficção” (ABREU, 2002, p. 153),
ele não está sendo incoerente: no plano da ficção, é possível sanar seus bloqueios afetivos e
concretizar o que seria, no plano real, difícil. Num balanço entre a representação do passado
vivido por ele – em que há o bloqueio afetivo – e a carta como instrumento que possibilita
romper e remediar este bloqueio –, resta a escrita como saldo positivo, já que, além de fazer
a mediação entre a falta de habilidade em se relacionar e a reparação desta falta, o missivista
tem a vantagem de não precisar se despir da persona de escritor para si e para os outros.
Considerações finais
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98
Referências
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______. Estética da criação verbal. Trad. P. Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARTHES, R. A morte do autor. In: ___. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1974.
CARVALHO, L. H. A máquina de tecer. In:___. A ponta do novelo. São Paulo: Ática, 1983, p.
01-19.
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99
DIAS, E. M. S. Paixões concêntricas: motivação e situações dramáticas recorrentes na obra
de Caio Fernando Abreu. 167 f. 2006. Dissertação (Mestrado em Literaturas em Língua
Portuguesa) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual
Paulista “Julio de Mesquita Filho”, São José do Rio Preto: 2006. Disponível em: http://www.
dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=33823.
Acesso em: 29 ago. 2019.
GOTLIB, N. B. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
LEE, R. Ovelha negra. R. Lee [Compositor]. In: ___. Fruto proibido – Rita Lee & Tutti Frutti.
Rio de Janeiro: Som Livre, 1975. 1 CD (36min). Faixa 9 (5 min.38s.)
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100
Comentário sobre
Poema(s) da Cabra e Comendadores jantando
de João Cabral de Melo Neto
RESUMO: O artigo se inspira em dois conceitos de Algirdas Julien Greimas na análise de poemas
de João Cabral de Melo Neto (Poema(s) da cabra; Comendadores jantando). Primeiro no conceito de
“fratura” da obra L’ imperfection (1987), ao examinar como a captação do real pelo ver perfura na
busca do que estaria além da superfície do parecer. Segundo, no conceito de linguagem poética
entendida como aquela em que a redundância valoriza os conteúdos selecionados, em razão da
organização paradigmática da substância, tanto do conteúdo quanto da expressão.
ABSTRACT: The article is inspired by two concepts by Algirdas Julien Greimas in the analysis
of poems by João Cabral de Melo Neto (Poema(s) da cabra; Comendadores jantando). First in the
concept of “fracture” of the work L ’imperfection (1987), when examining as the capture of the real
through the seeing in the search for what would be beyond the surface of the opinion. Second,
in the concept of poetic language understood as one in which redundancy enriches the selected
contents, due to the paradigmatic organization of the substance, both of content and expression.
* Livre-docente em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista ”Júlio de Mesquita Filho”– UNESP
– São José do Rio Preto – 15054–000 – SP – Brasil. E–mail: tymiyazaki@gmail.com
2
Doutor em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – Universidade do
Estado de Mato Grosso – UNEMAT/Tangará da Serra. Professor de Português e Inglês do Instituto Federal do
Mato Grosso – IFMT – Campo Novo do Parecis – MT – Brasil. E–mail: ricj.mt@gmail.com
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Há poucos anos, canais televisivos brasileiros veicularam varias matérias sobre João
Cabral de Melo Neto. Em um vídeo, uma cena: numa cidade europeia – Madri, Paris (?) –
numa sala um encontro de amigos brasileiros, entre eles Vinicius de Moraes que se dispõe a
cantar provavelmente uma nova composição. Ao fundo, Cabral reage amistosamente contra
seu lirismo. E Vinicius lhe dá o troco: falar de cabra? E todos riem. Tinha sentido a referencia
naquelas alturas à cabra. Não a ovelha das fábulas, nem o cordeiro de pratos apreciados de
nossa culinária, mas a cabra, esse animal rústico capaz de adaptar-se a ambientes inóspitos
como a região seca de nosso nordeste. É sobre ela que fala o poeta nordestino em ”Poema (s)
da cabra” (Quaderna - 1959).
A fidelidade de Cabral ao princípio básico de seu anti–lirismo faz com que em seus
poemas prevaleça o ver, sobre outros órgãos do sentido, na percepção e experiência do
mundo. Isso nos leva imediatamente a um livrinho de Algirdas Julien Greimas, muito bem
recebido pela crítica, De l´imperfection, de 1972. Na abertura diz ele:
1
No original: «Tout paraître est imparfait: Il cachê l´être, c´est à partir de lui que se construisent un vouloir-être
et un devoit-être, ce que est déjá une déviation du sens. Seul le paraître en tant que peut être – ou peut-être – est
à peine vivable. // Ceci dit, Il constitue tout de même notre condiction d´homme. Est-il pour autant maniable,
perfectible? Et, pour solde de tout compte, ce voile de fumée peut-il se déchirer um peu et s´entr´ouvrir sur la
vie ou la mort, qu´import?» (GREIMAS, 1987, p. 9).
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esquecer a qualidade’.”2 (GREIMAS, 1987, p. 14 – grifo do autor). Em seu texto Tanizaki
pergunta: ”Já viu você que me lê, leitor, a cor das trevas à luz de uma chama?”(GREIMAS,
1987, p. 47 – tradução nossa)3. Mas a análise de Greimas não permanece só no olhar: faz
emergirem para a experiência estética – graças à fratura – todos os demais sentidos.
Além desse papel primordial atribuído ao ver na produção e leitura da fratura, há outra
observação que interessa muito. Sobre a reação de Robinson, observa Greimas:
2
No original: «une seule fois, ‘certaine obscurité dont (il ne peut) oublir la qualité’.» (GREIMAS, 1987, p. 14 –
grifo do autor).
3
No original: «Avez-vous jamais, vous que me lisez, vu `la couleur des ténèbres à la lueur d’une flamme?»
(GREIMAS, 1987, p. 47).
4
No original: «La rélation de l’expérience”vécu”elle même, cependant, comme si ele ne pouvait être rendue
directement, n’est reprise que plus tard, alors qu’il s’est mis à réfléchir sur”l´extase qui l’avait saisi”et à lui chercher
um nom, en l’appelant”um moment d’innocence”. C’est donc apès coup, en lui donnant la forme d’um souvenir
nostalgique cognitivement elabore, que Robison, délégué par l`auteur, essaiera d’en élaborer la representation, en
évoquant, comme corolaire du silence et obtenue grâce à lui, la pause de ”Ilê tout entière”» (GREIMAS, 1987, p. 14).
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103
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.
Ainda que sem o acento lírico do maranhense, principalmente esses dois poemas de
abertura e fechamento fazem pensar em ”Canção do exílio” às avessas por um contraste
fundamental. No poema de Gonçalves Dias, o lá é marcado pelas coisas distinguidas
hiperbolicamente, em contraste com o cá, sempre minimizado. O que prevalece na composição
é a subjetividade do enunciador, dominada pela saudade do país, exatamente no estilo pouco
apreciado por Cabral. Mas é preciso entender que o cá é imprescindível para a expressão
do sentido do conteúdo manifestado. Não é possível no poema do poeta romântico o lá
sem o cá. Da mesma forma, a paisagem das margens do Mediterrâneo que abre o primeiro
poema de Cabral tem a mesma função: a paisagem do contexto presente não serve só como
contraste, é ela que sustenta todo o movimento subjetivo do enunciador, da mesma forma
ela não existiria plenamente para o sujeito sem a lembrança do lá. Não por acaso é referida no
primeiro verso da primeira estrofe e retomada no primeiro verso da segunda. Além de um
recurso estilístico muito praticado por Cabral, essa reiteração é aqui uma necessidade prática
discursiva do sujeito que lembra e se expressa. A paisagem do Mediterrâneo, presença física,
imediata, não é inspiração mas aquilo a que se agarra o sujeito para que possa assegurar a
lembrança do lá, que de outra forma se escaparia esfumando-se. Se em Gonçalves Dias o
resultado é a manifestação da saudade, sentimento que não precisa de muito para expressar-
se – daí as formas genéricas das coisas nomeadas – em Cabral há um sentimento difícil de
apreender-se pela expressão discreta. Há uma saudade pela distância do lá, mesclada de
uma boa dose de culpa, de estar aqui e não lá. Um lugar marcado não pela abundância que
Gonçalves quer fazer crer, mas exatamente pela carência.“É depois que, dando-lhe a forma
de uma lembrança nostálgica cognitivamente elaborada, Robinson, delegado pelo autor
[...”]5, diz Greimas (1987, p. 14) sobre a narrativa de Michel Tournier. Talvez também aqui
”uma lembrança nostálgica” mas acima de tudo ”cognitivamente elaborada” seja em Cabral a
característica predominante.
O primeiro verso localiza imediatamente o lugar de onde vê e ponto de partida para
a elocução; ao mesmo tempo indica a distancia em que o sujeito enunciador se coloca com
relação ao objeto focado: ”Nas margens do Mediterrâneo/ não se vê um palmo de terra”.
5
No original: «C’est donc apès coup, en lui donnant la forme d’un souvenir nostalgique cognitivement elaboré,
que Robison, délégué par l`auteur, [...]» (GREIMAS, 1987, p. 14). Obs.: Greimas se refere à personagem da obra
Vendredi ou Les limbes du Pacifique (1967), de Michel Tournier.
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104
Também estas são já quase ausências, ainda que mais recentes. Nessa reconstituição,
declaradamente a apreensão do contexto físico é feita pelo olhar que logo vai em busca
do detalhe que caracteriza a totalidade; detalhe apreendido por uma expressão usual para
marcar o excessivo, o que não deixa dúvida, nem exclusão, a medida exata:”um palmo”de
terra. O sujeito não é um sujeito contemplativo, postado às margens apreciando a paisagem
como turista. É um sujeito atento, acima de tudo um sujeito cognitivo que ativa o órgão mais
imediato nessa atividade. Ele olha.
A retomada da palavra ”terra” no verso seguinte, mas com sentido distinto, frisa pela
diferença o mesmo, a mesma coisa. Esse mesmo que se sublinha pela animização graças à
função atribuída a ela, terra, ator que assume a posição de sujeito, totalmente ativo, dotado
não só de querer mas também de poder e saber-fazer; a terra, aplicada sem desvio, tem um
programa: apodera-se do todo, sabe e pode converter tudo em pedra. Além da anadiplose
quase no início do verso seguinte, reforça-se a argumentação pela rima entre ”terra” e
”pedra” no segundo e quarto versos. A relação intrínseca dos conteúdos está dada nessa
correspondência aliterante: ”[...] palmo de terra / que a terra tivesse esquecido / de fazer
converter em pedra.” (MELO NETO, 1994, p. 254).
Retomados na segunda estrofe os dois primeiros versos da primeira, a percepção do
olhar do enunciador se dá conta de uma permuta que vai ser respeitada no desenvolvimento
da argumentação: a terra pode ser substituída por pedra, pois agora já se equivalem na função
de sujeito ativo. Cada qual em seu domínio faz a mesma coisa.
É pela comparação com algo ausente que segue a estrofe terceira: o contraste entre o
escarpado existente e a suavidade ausente (da serra), do que poderia ter sido. Ele prepara a
entrada da personagem animada que, assim já antecipada, recebe a sua caracterização mais
forte, metonimicamente: ela é ”fera”. Ou seja, ainda não ”cabra”. A intrincada relação entre
geografia e personagem se declara pela retomada da mesma estrutura expressiva de quando
o sujeito é ainda a terra: ”[....] um palmo de pedra / que a pedra tivesse esquecido / de ocupar
com sua fera.” (MELO NETO, 1994, p. 254).
Aí o enunciador precisa reiterar quase inteiro o segundo verso, aquele em que a
diferença é anotada, para, voltando ao início do raciocínio, poder conduzi-lo seguramente:
de forma certa, fazendo a ponte entre o já dito –”pedra” – e aquilo a que se vai dar entrada
– ”fera”. A amarração paradigmática é atribuída três vezes à rima – ”pedra” – “fera” – “seja”,
antecipando a do último verso: ”negra”. Isto é, é enlaçando o dito sobre a geografia escarpada,
toda terra/pedra, reiterando isso, é que o poema apresenta o elemento mais importante:
a verdadeira protagonista da história que ali se desenvolve cotidianamente, dedicando-se
também ela à mesma coisa: a cabra negra.
Não se vê um palmo
Por mais pedra ou fera que seja,
Que a cabra não tenha ocupado
Com sua planta fibrosa e negra (MELO NETO,1994, p. 254).
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Vejamos agora como se fecha a moldura enunciativa, com o último poema. Não mais
a terra empedrada é o que chama a atenção mas o mar:
As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do sertão, se existe,
a água corre despenteada.
As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não de piçarra do Sertão (MELO NETO,1994, p. 255).
O sujeito consegue espraiar o seu olhar para além das margens, e procede da mesma
forma que na introdução. Primeiro o mar em sua amplidão, mas o seu efeito só pode ser
apreendido e manifesto recorrendo ao conhecimento da cultura da civilização ocidental.
Melhor ainda: é assim que ele logo se impõe. Ou seja, o mar é reconhecido localizado num
paradigma: é o ”mar clássico”, de material nobre, ”de mármore”, assim como a sua coloração
”azul”. E o ritmo dos dois primeiros versos parece conduzir à contemplação, não à exploração.
No entanto esse ritmo e expectativa são quebrados no terceiro verso, com uma afirmação
que chega sem avisar: ”em nada me lembra”. A partir daqui é a diferença que prevalece.
Seguindo a mesma estratégia, do geral vai-se ao pormenor: as ondas, que não desmentem
o traçado geral, acompanham o desenho do mar a que pertencem. E surpreendentemente não
remetem a mar do Nordeste, presente afinal pelo menos nos famosos poemas de A Educação
pela pedra :”O mar e o canavial” / ”O canavial e o mar”. Recuando, fiel o poeta à sua terra e si
mesmo, é no interior do estado que o outro termo da comparação é buscado. E nessa busca
não há o mais da Canção do Exílio, mas o menos, conforme expressão de Secchin: os rios
sem nobreza, sem classe, não educados do Sertão, mais especificamente o rio Pajeú, sempre
lembrado. Além desse ”despenteado” proletário das águas, da não vaidade, do estar à vontade,
o mais interessante é a observação feita como se quase esquecida, discreta, como se à margem:
”[água] se existe”. Ou seja, à perenidade do Mar Mediterrâneo se opõe a existência pobre,
quase negada dos rios intermitentes do Nordeste. Na penúltima estrofe, volta a geografia
deixada um pouco de lado, cedendo lugar ao mar: as margens do Mediterrâneo também são
desertas, mas nem então o Mediterrâneo se assemelha ao Sertão: a terra assegura nobreza ao
primeiro, a ela não se iguala a piçarra – selvagem, agreste, ferina - do segundo.
Esses dois poemas envolvem os nove que devem focar verdadeiramente o motivo
desse conjunto, a cabra. É a isso que se refere a última quadra do poema–fecho: das cabras do
Mediterrâneo só é possível falar ”em termos da do Moxotó”.
O primeiro poema se inicia reiterando a característica atribuída à cabra no último verso
do poema de introdução: a coloração negra. Mas no poema-introdução o negro aparece
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ocupando uma posição sintática secundária, uma sinédoque da cabra – ”planta fibrosa e
negra”. Agora ela tem posição de destaque, indicando o todo: ”A cabra é negra”. É, entretanto,
uma descrição de superfície, o parecer do animal. E todo o poema, então, se dedica a perfurá-
lo na apreensão do que está mais além, do que se esconde. Expresso pelo lexema ”negro”,
reiterado, salvo engano, onze vezes. O lexema é uma denominação cujo significado é o foco,
que se desdobra em definições que se encadeiam. Na primeira estrofe, o negro da cabra ≠ do
ébano / do jacarandá ≠ mais azul / mais roxo. // negro da cabra = do preto, do pobre, pouco,
poeira (= cinzenta), // pardo (= pardo), ferrugem (= fosco).
Segue-se uma sequência de termos que se encadeiam em aliterações, mas perdem em
concretude material, referencial. Na terceira estrofe, pula-se para a cor da pele e para o social
(negro do pardo, de segunda classe, do inferior, do gasto) até chegar a negro igual à sua
própria ausência: “negro do feio, às vezes branco [...] Disso que não pode ter cor/porque em
negro sai mais barato.” (MELO NETO, 1994, p. 255 – grifo do autor).
Mas o mais interessante por original e inesperado, após essa lista disfórica, é o terceiro
poema. Nele a figura central é o fogo/sul/sol, que toma como contrapartida negativa a
equação negro = noturno. O negro da cabra é: solar, luminar. De onde as derivações: negro
do carvão, hulha, coque, pólvora, para chegar à permuta: ”negro da vida” (“não de morte”).
Essa percepção positiva prossegue quando o negro passa a denominar a natureza
da cabra. É quando a cor se faz equivalente a dureza e do mais profundo (“alma-caroço”,
”alma córnea”). E sintomaticamente, por contraste, novamente aqui se evoca o inexistente,
a carência: o líquido (“sem orvalho”), o vegetal, o flexível. É a natureza não domesticável
da cabra o aspecto enfocado no quarto poema, o que faz vê-la como não amiga do homem,
”jamais contemplativa”, e de onde decorre a expressão ”tem parte com o Diabo”. Nesse percurso,
é só no último verso do oitavo poema que o homem nordestino aparece relacionado a ela:
”O nordestino, convivendo-a, / fez-se de sua mesma casta”. Expressões grifadas pelo próprio
poeta fecham cada unidade-poema.
E nessa trajetória especulativa chega-se ao nono poema, em que se desenvolve a
conclusão do poema anterior: ”O núcleo de cabra é visível/ debaixo do homem do Nordeste.”
// Se adivinha o núcleo de cabra / [...] que reponta sob o seu gesto. [...] debaixo do próprio
esqueleto, / no fundo [...]”. Até chegar à conclusão na última estrofe: ”A cabra deu ao
nordestino / Esse esqueleto mais de dentro: / O aço do osso, que resiste // Quando o osso
perde seu cimento.”(MELO NETO, 1994 , p. 255 – grifo do autor).
“Debaixo de” pode tomar-se como o signo que abriga vários sinônimos tais como
”estofo”, ”núcleo”, ”esqueleto”, ”fundo”. Mas é com a última expressão grifada ”o aço do
osso” que Cabral parece ter chegado à mais apropriada para a definição do Nordestino. Já
anunciada em:
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Ou seja, todos os demais poemas, nessa caminhada, são fraturas no parecer que
permitiram chegar a ”esse osso aço”, tão persistente como as sibilantes. Não fraturas luminosas
como as do guizo, mas da verruma que perfura instigado pelo amor, não do lirismo subjetivo,
mas do conhecimento. Como que inserido entre os dois poemas em itálico, esse conjunto de
poemas enumerados perfaz, portanto, uma trajetória que vai do mais superficial, do visto até
o invisível, não da cabra, mas do homem, do homem nordestino pedra. Não tinham razão,
portanto, os amigos de Cabral.
Com toda certeza, essa temática pedra/nordestino remete imediatamente a A educação
pela pedra, de 1966, e dela a
O sertanejo falando
Não mais as lições pedagógicas mas o próprio sujeito delas em desempenho prático
é que se focaliza agora. Em vários momentos ocorre a identificação entre o sertanejo e a
pedra. Não como simples metáfora expressiva; mas de tal maneira que a palavra supersigno
”pedra” ultrapassa o que se entende como seu referente para indicar uma essência também
aqui não facilmente identificável, como o negro nos Poema(s) da cabra. Daí essa sequência
de termos dele aparentedos ou combinados, tanto da norma popular como da culta: ”dura”,
”endurece”, ”caroço”, ”amêndoa”, ”pétrea”, ”pedrenta”, e ainda a palavra pedra em função
adjetiva: ”amêndoa pétrea”, ”caroço de pedra”, ”expressar em pedra”, ”idioma pedra”, ”palavras
de pedra”, de tal maneira que o referente empírico se dilui para prestar-se à variação desses
contextos; variação que no final obriga a retornar ao começo para reconsiderar o seu sentido.
Na imagem que se quer criar do sertanejo o mesmo denominador comum já visto se
apresenta: a oposição externo/interno ou fora/dentro, para significar a oposição entre o visível
do sertanejo e aquilo que ele traz invisível. Esse contraste fundamenta o discurso desse poema.
O poema intitular-se ”O sertanejo falando” chama a atenção porque, além de evidenciar
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a comunicação, relevante para a poética de Cabral, e a didática tematizada, de insistir na
questão do discurso – metaforizado em ”Rio sem discurso”, ”Tecendo a manha” – coloca
essa personagem em uma situação/ação não predominante em sua vida: o sertanejo é antes
um silencioso. E com razão. A fala do sertanejo só é possível após todo um trabalho de
competencialização, não só do próprio sujeito falante mas do instrumento com que o faz. É
preciso adequar, saber adequar esse instrumento como condição de sobrevivência do sertanejo
enquanto sujeito que fala. O instrumento qualificado como feito de arestas agressivas tem que
ser limado, harmonizando-se a todo o aparelho fonador: não ferir a língua essa é a questão.
A adequação tem que ser feita em ritmo certo, devagar. O custo do trabalho imposto resulta
em outro traço do sertanejo: a economia da fala, ele fala pouco.
A decantada fala demorada do sertanejo que se reflete no seu jeito de ser se explica
assim: ele não só doma o instrumento, como acaba domado por ele: daí a sua fala mansa,
seu andar devagar, traços com que normalmente o sertanejo é identificado, aqui expressos
por imagens apoiadas pela isotopia do maleável, do dócil, do liso e contínuo. O próprio
sistema lingüístico, o instrumento de expressão e manifestação, se torna da mesma natureza,
é ”idioma pedra”.
Essa essência que se tenta expor do sertanejo foge à nomeação, como o negro da cabra.
Também aqui as aproximações metafóricas acabam não especificando esse núcleo que se
identificaria como pedra, pelo contrário torna-o inominável.
Uma aproximação com ”The country of the houyhnhnms” seria iluminadora. Nele, a
pedra se alia a outra simbólica do nordeste:
2.
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Iluminadora porque o poema troca a posição dos interlocutores e do objeto em questão:
não se trata mais do sertanejo enunciador, mas do sertanejo objeto enunciado. Trabalho
análogo ao do sertanejo em adequar o aparelho fonador se exige daquele que dele fala. E as
expressões utilizadas para expressar essa adequação, apesar da aparência de propriedade, não
o são: as palavras devem ”funcionar de pedra”, ”boca para pronunciar pedras”. Ainda que o
resultado dessa combinatória de palavras seja uma frase (“E que a frase se arme do perfurante”)
ela tem que ser eficaz, como sujeito dotado da competência necessária: e a isotopia expressiva
é a da ponta, do agudo, do ferino. Clara na figura da faca, e mais que faca, faca-de-ponta, não
qualquer uma. Específica de Pajeú, é enganosa: não desfaz mas manifesta a sua ambiguidade.
Os dois últimos versos – ”Faca sem dois gumes e contudo ambígua, / Por não se ver onde
nela não é ponta.” – se embaralham: faca sem dois gumes / mas toda gume; toda ponta / toda
ponta invisível. Metáfora novamente do contraste entre o visível e o invisível do sertanejo,
e a má leitura que dele se faz.
Na segunda quadra a outra ponta da comunicação se avalia: o ouvir. E aí uma nova
figura vem ajudar; nela se reconhece aquele que fala no silêncio, pelo silêncio. Não se diz
”ouvir o silêncio”, mas ”ouvir no silêncio”. Da mesma forma que a ambigüidade da faca, nem
o cacto, material, presente, nem o seu silencio são metáforas de nordestino; o abaixo deles,
tão marcado em ”Poema(s) da cabra”, metaforizável, ele sim, pelo ferino, agreste, agressivo
do cacto: isso que o poema denomina o ”cacto não”.
Após esse percurso em que se define o sertanejo, passemos para o seu contexto social.
E a pergunta que se coloca é a seguinte: até agora o poeta viera falando de terceiros - da
cabra e do sertanejo – definidos como de pedra, neste novo poema no seu estilo poético se
flagram os ensinamentos apresentados? Se o seu estilo apresenta traços da dureza da terra, da
ausência da leveza do vegetal e do molhado, dessa dualidade visível/invisível. Para examinar
essa questão, uma boa escolha dentro do domínio d’ A educação pela pedra é o poema em que
o protagonista é o pólo da abundancia representado pela figura do Comendador, a quem
o sertanejo funciona como aquele que, por oposição, lhe confere sentido. Ou seja, não há
comendador sem sertanejo.
Comendadores jantando
Pelo título e inclusive pela disposição dos poemas no livro, este é uma nova versão
de ”Comendadores jantando”. E a relação entre eles está declarada na retomada, senão de
versos, de conjunto inteiro de deles, como os que constroem a cena propriamente do jantar,
como os que abrem tanto uma estrofe quanto a outra. O que diferencia é o aspecto dessa
cena em que se fixa a atenção. Agora, é a disposição anímica que se ironiza mais fundo,
por aguçada pela impaciência glutona, não justificada senão pela cegueira do egoísmo. A
expressão nova para essa espera – ”todoabertos” – um sintagma em que a fusão das duas
palavras justifica as retomadas metalingüísticas – é um expediente formal privilegiado na
segunda parte da estrofe: ”mesa-de-espera”, ”pré-abertos”, ”entreaberto”, ”almiabertos”. A
dosagem na coloração ideológica faz-se mais forte, não se disfarça na elegância do dizer: daí
a insistência numa figura presente no poema anterior – a borda circular do prato – cercada
de um conjunto maior de termos que, ao reiterá-la, parecem diluir a precisão e a contenção
da ironia fina da versão anterior. A circularidade da borda é assimilada num universo mais
violento como fronteira de área belicosa, cuja fortaleza interior, de resistência, encontra na
imagem do caranguejo e da carapaça a sua justeza. Com ela se sustenta o contraste isotópico
entre as duas estrofes, ou entre dois momentos da argumentação.
Pode-se aceitar a denominação da poética de Cabral como anti-lirismo. No entanto,
dificilmente se aceitaria classificar os seus poemas como não líricos. Sabe-se da recusa do
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poeta a falar de si próprio, de sua vida particular. O lirismo em sua obra pertence à dimensão
enunciativa. Ele nasce com a subjetividade que se vai conformando na medida em que se
desenrola o discurso poético. Um discurso que parece alimentar-se de um certo sentimento
de culpa, de filho distante de sua terra, de seu lugar. Tanto que em seus poemas – pelo menos
nos aqui analisados – o sujeito enunciador se posta à distancia, e daí desenvolve, como diz
Greimas, todo um trabalho cognitivo com que elabora a memória do vivido e conhecido.
Nessa atividade, o sujeito é antes de mais nada sujeito da visão: ele vê. É a partir de então
que se encontra e se confronta com o real. Na expressão desse real, o sujeito é antes de mais
nada aquele que cava. Jogando-se numa exploração exaustiva das possibilidades lingüísticas, de
figuras da velha retórica, o poeta parece desprender os pés do chão temático. É saindo do real,
captado em características materiais, que a abstração dele lhe possibilita alcançar significações
simbólicas, alegóricas que, no entanto, produzem a volta do texto ao ponto de partida.
Talvez não seja justo dizer que nos poemas analisados ocorram fraturas no sentido
greimasiano do tipo “guizzo”, luminoso como o salto do peixe na água. Mas provavelmente
seria correto que se identificam vários momentos – se não no poema todo – que lembram a
experiência de Tanizaki, o da “cor da obscuridade”. Para exemplo, a imagem do cacto: “avivar
no silencio os cem espinhos / com que pode despertar o cacto não” (MELO NETO, 1997, p. 26).
Evoquemos, para concluir, novamente Greimas que, no capítulo “La linguistique et la
structure poétique” de Du sens. Essais sémiotiques (1970), diferenciava:
6
No original: «La communication linguistique comporte, de façon générale, une très forte redondance que
l’on peut considérer comme un”manque à gagner”du point de vue de l ´information. L´originalité des
objets”littéraires”(le terme est absolumente imprope) semble pouvoir se definir para une autre particularité de
la communication: l´épuisement progresif de l ´information, corrélatif du déroulement du discours: celle-ci,
arrêtant le flot des informations, donne une nouvelle signification à la redondance, qui, au lieu de constituir une
perte d ´information, va au contraire valorizar les contenus sélectionnés et clôturés. La clôture transforme donc
ici le discours en objet structurel et l´histoire en permanence.»(GREIMAS, 1970, p. 272).
7
No original: «[…] Les relations poétiques ont donc pour fonction l´organization paradigmatique de la substance
investie, aussi bien celle du contenu que celle de l éxpression.» (GREIMAS, 1970, p. 276).
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MIYAZAKI, T. Y.; MACEDO, R. M. Commentary on Poema(s) da cabra and Comendadores
jantando by João Cabral de Melo Neto. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 101-
115, 2020. ISSN 2177–3807.
Referências
MELO NETO, J. C. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997.
TOURNIER, M. Vendredi ou Les limbes du Pacifique. Paris: Gallimard, Folio, 1967. p. 92–95.
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Dança da morte, escrita da vida: narrativas da
AIDS, espaço biográfico e escritas de si nas
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos do romance À l’ami qui ne
m’a pas sauvé la vie (1990), de Hervé Guibert, e o conto “Depois de agosto” (1995), de Caio Fernando
Abreu. Na obra dos dois escritores há um entrecruzamento entre vivência factual e trabalho
ficcional que os insere no campo sempre problemático das chamadas escritas de si. A emergência
da concepção do espaço biográfico (ARFUCH, 2010) como um conjunto de procedimentos
descontínuos que se configuram na estratégia de narrar a si mesmo explica, em certa medida, tanto
o gesto de Guibert de narrar a si mesmo a partir de um discurso aparentemente referencial quanto o
apagamento das marcas da vivência factual, procedimento comum à obra de Abreu. Nesse sentido,
as obras de ambos os escritores parecem confluir para uma noção de resistência à morte e, ainda,
para a valorização da instância autoral enquanto portadora do gesto de narrar.
ABSTRACT: The present work aims to analyze some aspects of Hervé Guibert's novel À l'ami qui
ne m'a pas sauvé la vie (1990), and the tale "Depois de Agosto" (1995), by Caio Fernando Abreu. In
the work of the two writers there is a connection between factual experience and fictional work
that place them in the always problematic field of the so-called written self. The emergence of
the biographical space conception (ARFUCH, 2010) as a set of discontinuous procedures that
configure itself in the strategy of narrating oneself, explains to some extent both Guibert's gesture
of narrating himself from an apparently referential discourse and the erasure of the marks of
factual experience, a procedure common to Abreu's work. In this sense, the works of both writers
seem to converge to a notion of resistance to death and, still, to the valorization of the authorial
instance as bearer of the gesture of narrating.
*
Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação de Literatura e Interculturalidades (PPGLI) – Universidade
Estadual da Paraíba – UEPB – 58429-500 – Campus I – Campina Grande – PB. Bolsista CAPES-PNPD. E-mail:
alsgomes70@gmail.com
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corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa
[...]
levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo.
Al Berto – Corpo
Introdução
1
Os romances de Guibert ganharam traduções brasileiras editadas pela José Olympio Editora. No entanto para o
presente trabalho, assim como para a tese, utilizamos o texto em francês e o traduzimos livremente.
2
O presente texto é uma adaptação e síntese de algumas ideias presentes em nossa Tese de Doutoramento
intitulada Escrevendo o próprio corpo: a problemática da autobiografia e da (auto)ficção nas obras de Caio Fernando
Abreu e Hervé Guibert. Na ocasião, parecia-nos mais produtiva a análise das tipologias textuais de ambos os
escritores, buscando analisar suas obras a partir do estabelecimento de nexos comparativos de diferença. Algumas
dessas perspectivas se modificam no texto atual, especialmente, pela inserção da ideia de espaço biográfico estudada
por Leonor Arfuch (2010). Desse modo, a hipótese inicial da tese de que não há uma divisão dicotômica, mas um
continuum entre as múltiplas formas de escritas de si parece ganhar contornos mais definidos com base na leitura
de Arfuch.
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consciência desse fato, a publicação da condição de soropositivos, bem como a reflexão, por
meio da produção textual, acerca dessa condição, especialmente na relação entre doença,
sobrevida e finitude.
É preciso afastar, contudo, a ideia de que a produção literária de ambos os escritores, ao
proporem uma relação entre literatura e os temas da morte e da doença tenham como traço
a constituição de documentos em que a morbidez e a espetacularização da própria condição
sejam aspectos em destaque. Claro que temos um certo grau de espetáculo, mas nos parece
que essa produção literária joga com a concepção de escrita enquanto forma de resistência.
É importante destacar, desde agora, que há diferenças substanciais entre a produção
ficcional de Abreu e a de Guibert. Enquanto o escritor brasileiro, ainda que se valha da
própria vivência pessoal, produz textos em que não há uma relação direta3 de identificação
entre personagem, narrador e autor, o autor francês constrói um conjunto de textos em que
atribui ao narrador-personagem não apenas a sua vivência, mas também o seu nome e suas
características. Todavia, apesar de, num primeiro momento parecer fácil classificar como
autobiográfica a produção de Guibert, tudo se complica quando percebemos que o relato
porta traços de romance.
Abreu e Guibert produzem os seus textos numa relação ambígua entre realidade e
ficção, estabelecendo , neles, uma relação em que o espaço biográfico4 (ARFUCH, 2010)
3
Há três aspectos importantes que devemos destacar com relação ao corpus de Caio Fernando Abreu. O primeiro
deles diz respeito ao fato de que, para o presente artigo, trabalharemos apenas com um texto em que a relação entre o
tema da morte e os motivos da doença, da sobrevida se inter-relacionam com o procedimento testemunhal. Abreu
se vale, desse modo, do processo de ficcionalização da vivência pessoal, o que não exclui, do campo da recepção,
o reconhecimento de algumas marcas que permitem reconhecer a projeção do autor em suas personagens. Já
o segundo aspecto se refere ao fato de que a AIDS vinha sendo tematizada pelo escritor desde 1983, quando
começam a ocorrer os primeiros casos divulgados pela imprensa como de um “câncer gay”, o que levou a síndrome
a ser conhecida popularmente como “peste gay”. Finalmente, é preciso não perder de vista que o procedimento
de utilização da vivência pessoal para a composição do texto literário parece ser bastante comum na produção de
Abreu. É possível percebê-lo em textos como “Corujas” (1970), “Oásis” (1975), “Garopaba, mon amour” (1977),
“Terça-feira gorda” (1982), “Pela passagem de uma grande dor” (1982). Paula Dip, em sua biografia de Abreu,
com certos tons autobiográficos, intitulada Para sempre teu Caio F. (2009), menciona o fato de que o conto “Pela
passagem de uma grande dor”, publicado em Morangos mofados (1982) tem como origem a sua experiência com um
aborto, assim como “Garopaba, mon amour” diz respeito à prisão de Abreu durante a ditadura militar. É importante
notar o trabalho de desreferencialização efetuado pelo escritor para constituir um texto em que não figuram
quaisquer projeções evidentes de uma imagem de si, exceto quando o leitor tem a chave de leitura. Desse modo, o
texto, apagadas as marcas que o filiariam a um campo de produção autobiográfico, se filia a um espaço estritamente
ficcional, segundo a concepção do autor. Há um grande número de críticos e estudiosos que inserem a produção
de Caio Fernando Abreu no âmbito da autoficção, incluindo a tese Infinitivamente pessoal (2009), de Nelson Luís
Barbosa, que busca explicar as marcas da realidade projetada nos textos do escritor. A questão a se pensar é: em que
medida essa recuperação é imprescindível para a compreensão da obra do autor gaúcho?
4
Arfuch (2010) conceitua o espaço biográfico, não em termos de gênero, mas em termo de procedimento/
momento. Ela toma as proposições de Bakhtin sobre autoria e impossibilidade de, na esfera discursiva, haver
coincidência entre o autor e sua personagem (mesmo que este porte o nome do autor), construindo então a
ideia de que o espaço biográfico pode permear os mais diversos gêneros e discursos, constituindo-se, portanto,
num conjunto de estratégias que representam a projeção do escritor (assim como entrevistados, blogueiros,
youtubers, etc.). Essas estratégias podem apresentar caracteres de veracidade (como é o caso do texto abertamente
autobiográfico) quanto simular essa veracidade ou mesmo não desejá-la (autoficções, romances autobiográficos,
etc.). O espaço biográfico pode, nesse sentido, ser lido como os rastros da vivência empírica deixados pelos mais
diversos tipos de texto.
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emerge como elemento importante para se compreender os projetos de escrita de ambos
os escritores, suas escolhas procedimentais e as diferenças substanciais que suas produções
literárias apresentam. Fica claro, ainda, que outras questões emergem da leitura desses
textos, tais como a ideia de escrita de si como um procedimento de transposição em que
vivido e escrito portam diferenças essenciais (GUSDORF, 1990); a noção da narrativa como
organização temporal de uma vivência, além de uma forma de refletir a vida (RICOEUR,
2011); o cuidado de si como forma de construção de uma relação com a finitude a partir
da concepção do moribundo como portador da autoridade de dizer/narrar (FOUCAULT,
2011; GAGNEBIN, 1994). Desse modo, é a partir do entrecruzamento entre a consciência da
morte e o desejo de sobrevivência que as produções dos dois escritores se encontram.
Leonor Arfuch analisa, em O espaço biográfico (2010), os modos como o relato
autobiográfico se insere como um dado importante no contexto contemporâneo, sobretudo
numa sociedade marcada pela espetacularização das experiências íntimas. Sobre a produção
marcada pela relação com o que denomina espaço biográfico, pergunta a estudiosa: “não se
poderia pensar-se que o relato de si é um desses ardis, sempre renovados à maneira de
Scheherazade, que tentam, dia após dia, a ancoragem com o outro – e a outridade – , uma
‘saída’ do isolamento que é também uma briga com a morte?” (ARFUCH, 2010, p. 130).
Parece-nos que essa indagação pode ser perfeitamente utilizada para uma reflexão sobre as
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, buscando analisar de que modos a escrita
de si presente na obra desses escritores estabelece, a partir dessa percepção aguda da finitude,
uma forma de resistência e um gesto político que tem na narrativa o estabelecimento de uma
temporalidade que, em última instância, é negação da morte e reivindicação por meio da vida.
O entrecruzamento entre ficção e realidade em À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie
5
No original: «passage de l’inconsistence du vécu pour la consistence de l’écrit» (GUSDORF, 1991, p. 14).
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Essa ideia de superação do decoro é reiterada por Bruno Blanckeman, um dos críticos
franceses da obra do escritor, cujas afirmações vêm ao encontro do que propomos. Bruno
Blanckeman em um pequeno ensaio intitulado L‘écriture du trahir-vrai (2003) defende a
ideia de que a escrita Guibert é toda construída a contrapelo do que se classificaria como
literário. Para o crítico, Guibert visa ir sempre mais longe na consignação de certas vivências
singulares. Ele deseja registrar os acontecimentos de sua própria vida, fazendo recuar os
interditos de formulação (BLANCKEMAN, 2003, s/p.), ou seja, o escritor força os limites da
palavra literária, fazendo-a dizer o que seria normalmente indizível, sobretudo, os interditos
sexuais, centrando o discurso de sua obra em acontecimentos de sua vida. Ainda assim, apesar
da busca pela representação de si, a produção literária de Guibert não pode simplesmente ser
classificada como autobiográfica.
É importante notar, desse modo, que desde o início de sua produção, Guibert, talvez
consciente dos limites impostos pelos gêneros autobiográficos e interessado em embaralhar
aspectos abertamente reais de sua vivência com elementos ficcionais, classificou a grande
maioria de seus textos como romances. Este é o caso de À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990),
romance escrito sob a forma de um diário em que o narrador-personagem, identificado como
Hervé Guibert, conta o seu cotidiano como soropositivo e a convivência com a realidade da
contaminação, a progressão da doença, os procedimentos de sobrevivência, os tratamentos
a partir da ingestão de drogas como AZT e, finalmente, a marginalização social a que estava
votado o doente de AIDS.
O romance, dividido em cem fragmentos, narra as memórias de Guibert–personagem
acerca dos possíveis passos que o levaram à contaminação. Escrito sob a forma de carta–libelo
contra Bill, o amigo americano, executivo da indústria farmacêutica a quem o protagonista
acusa de não lhe salvar a vida, a narrativa estabelece uma relação dialógica com a carta e o
diário.
Num primeiro momento, a preocupação da narrativa é colocar em primeiro plano
o reconhecimento do narrador–personagem de sua condição de soropositivo. Passado o
momento de impotência diante do reconhecimento da contaminação6, a narrativa se centra
por alguns momentos na promessa de Bill, o amigo americano, de inserir o narrador–
personagem e Jules no protocolo de vacinas anti–HIV. No entanto, Bill se vê impossibilitado
de cumprir a promessa, uma vez que a vacina se mostra ineficaz. Sentindo-se abandonado,
Guibert acaba por escrever o romance–libelo contra o amigo7.
6
É preciso não perder de vista que a escrita e posterior publicação do romance de Hervé Guibert se dá num
momento em que não há, por parte da ciência médica, solução para o controle da multiplicação do vírus HIV
no organismo infectado. Durante a década de 1980 e boa parte da década de 1990, o único tratamento possível
para os portadores do HIV era o uso do AZT (ou zidovudina), responsável pelo emagrecimento e coloração
amarelada da pele dos doentes de AIDS. Somente a partir de meados de 1995 obteve-se, a partir de um coquetel
de retrovirais e vitaminas, uma taxa de sobrevida, de controle da multiplicação do HIV no interior das células
e até a condição de indetecção de vírus, o que diminui consideravelmente a possibilidade de contaminação. Cf.
A política nacional de luta contra a Aids, tese de doutorado em saúde coletiva defendida na UFBA pela Dra Sandra
Garrido de Barros em 2013.
7
No romance Le protocole compassionel (1991), Guibert afirma ter participado do programa de vacinas, o que
constitui uma contradição entre os dois romances, desvelando, desse modo, o caráter de entrecruzamento entre
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Num primeiro olhar, a promessa de Bill e sua impossibilidade de cumpri-la parecem
ser tratados como tema principal do romance. Porém, se analisado mais detidamente,
percebemos que ela é apenas pretexto para a assunção do tema principal: a narração do
corpo doente e em franco processo de desagregação. Nesse sentido, a narrativa vai colocar
em primeiro plano a dissociação advinda da doença, descrevendo os efeitos dela sobre a
personagem, bem como as reações do corpo às drogas de combate ao vírus. Emerge assim a
imagem literária de uma dança da macabra.
O fio de narrativo, desse modo, é constituído a partir dessa ideia de narrar a experiência
desse corpo marcado por uma doença considerada mortal. A promessa de Bill ocupa, então,
o lugar de motivo para esta representação do corpo. Além disso, é preciso ainda destacar
que o romance apresenta uma série de outras histórias que, engastadas à narrativa principal,
mostram as relações sociais e interpessoais do narrador-personagem. Além de Jules e Berthe,
casados e respectivamente amantes de Guibert, outras personagens figuram no texto, a
exemplo de David, Eugénie, Gustave, Matou e, sobretudo, Muzil e Marine, respectivamente
ficcionalizações de Michel Foucault e de Isabelle Adjani. A narrativa se inicia com a afirmação de
que, reconhecendo-se portador do HIV, o narrador–personagem também se vê como alguém
que possivelmente, de modo milagroso e graças à generosidade de Bill, sairá a salvo da doença:
Eu tive Aids durante três meses. Mais exatamente, acreditei, durante três
meses, que estava condenado por esta doença mortal à qual chamamos Aids.
Porém, eu não imaginava. Eu realmente fora atingido. O teste que autenticou o
positivo, reiterando, assim, as análises anteriores que demonstravam o início do
processo de ruína em meu sangue. No entanto, no fim de três meses, um acaso
extraordinário me fez crer, quase me deu a certeza, de que eu poderia escapar
dessa doença mortal que todos acreditavam ser incurável (GUIBERT, 2006, p.
09)8.
Neste dia em que inicio este livro: 28 de dezembro de 1988 em Roma para onde
vim sozinho [...] me opondo a todos; fugindo desse conjunto de amigos que
tentou me deter, inquietando-se com minha saúde moral, nesse feriado em que
tudo está fechado e que todo pedestre é um estrangeiro em Roma, onde percebo
que definitivamente não gosto dos homens (GUIBERT, 2006, p. 10)9.
ficção e realidade.
8
No original: «J‘ai eu le sida pendant trois mois. Plus exactement, j‘ai cru pendant trois mois que j‘étais condamné
par cette maladie mortelle qu‘on appelle le sida. Or je ne faisais pas d‘idées, j‘étais réellement atteint, le test qui s‘était
avéré positif en témoignant, ainsi que des analyses qui avaient démontré que mon sang amorçait un processus
de faillite. Mais, au bout de trois mois, un hasard extraordinaire me fit croire, et me donna quasiment l‘assurence
que je pourrais échapper a cette maladie que tout le monde donnait encore pour incurable» (GUIBERT, 2006,
p. 09).
9
No original: «Ce jour où j‘entreprends ce livre, le 26 décembre 1988, à Rome, où je suis venu seul, envers et
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Consultando minha agenda de 1987, foi no dia 21 de dezembro que datarei a
descoberta, sob minha língua, no espelho de banheiro, de pequenos filamentos
esbranquiçados, papilomas sem espessura, estriados como aluviões no tecido da
língua (GUIBERT, 2006, 14310).
Entrevejo a arquitetura desse novo livro que retive todas essas últimas semanas,
mas nele ignoro o final do final. Posso imaginar muitos que são nesse instante,
todos eles, do domínio da premonição e da confissão. Todavia, o conjunto de
sua verdade ainda está oculto para mim. Digo que este livro não tem sua razão
de ser senão neste fragmento de incerteza, comum a todos os doentes do mundo
(GUIBERT, 2006, p. 10)11.
contre tous, fuyant cette poignée d‘amis qui ont tenté de me retenir, s‘inquiétant de ma santé morale, en ce jour
férié où tout est fermé et où chaque passant est un étranger à Rome où je m‘aperçois définitivement que j‘ n‘aime
pas les hommes» (GUIBERT, 2006, p. 10).
10
No original: «En consultant mon agenda 1987, c‘est au 21 décembre que je daterai la découverte sous ma
langue, dans le miroir de la salle de bain de petits filaments blanchâtres, papillomes sans épaisseurs, striés comme
des alluvions sur le tégument de la langue» (GUIBERT, 2006, p. 143).
11
No original: «J‘entrevois l‘architecture de ce nouveau livre que j‘ai retenu en moi toutes ces dernières semaines
mais j‘en ignore le déroulement de bout en bout, je peux en imaginer plusieurs fins, qui sont toutes pour l‘instant
du ressort de la prémonition ou du voeu, mais l‘ensemble de sa vérité m‘est encore caché ; jé me dis que ce
livre n‘a sa raison d‘être que dans cette frange d‘incertitude, qui est commune à tous les malades du monde»
(GUIBERT, p.10 2006).
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O romance é o território privilegiado para experimentação, mesmo a mais
perturbadora, na medida em que pode operar no marco de múltiplos “contratos
de veracidade” [...] enquanto a margem se estreita no espaço biográfico, entre
o relato factual e ficcional, para além da declaração do autor ou dos signos
paratextuais: uma vida atestada com o “real” está submetida a uma maior
restrição narrativa. Mas, se os gêneros canônicos são obrigados a respeitar
certa verossimilhança da história contada – o que não supõe necessariamente
veracidade –, outras variantes do espaço biográfico podem produzir um efeito
altamente desestabilizador, talvez como “desforra” diante de um excesso de
referencialidade “testemunhal”: as que, sem renúncia à identificação do autor,
se propõem a jogar outro jogo, o de transtornar, dissolver a própria ideia de
autobiografia, diluir seus umbrais, apostar no equívoco, na confusão identitária
ou indicial (ARFUCH, 2010, p. 127 – grifos da autora).
Escrever isso hoje tão distante do ocorrido, faz meu sexo desativado e inerte
ficar duro novamente. Este esboço de trepada me parecia naquele momento de
uma tristeza intolerável. Eu tinha a impressão de que Jules e eu nos perdêramos
entre nossa vida e nossa morte e que permanecíamos juntos nesse intervalo,
por uma necessidade opaca que agora se tornara nítida de um modo atroz.
Representávamos pela justaposição física, com num quadro macabro, dois
esqueletos sodomitas. Jules me fez gozar olhando nos meus olhos. Era um olhar
12
No original: «La mise en abîme de mon livre se referme sur moi. Je suis dans la merde. Jusqu‘où souhaites-tu
me voir sombrer? Pends-toi, Bill! Mes muscles ont fondu. J‘ai enfin retrouvé mes jambes et mes bras d‘enfant»
(GUIBERT, 2006, p. 284).
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insustentável, muito sublime e doloroso, eterno e ameaçado pela eternidade.
Eu sustive um soluço na garganta, fazendo-o passar por um suspiro de gozo
(GUIBERT, 2006, p. 165 – 166.)13.
A compreensão de uma morte que vai sendo afirmada na própria modificação do corpo,
que gradativamente se desagrega, é experimentação de uma morte antecipada. Essa morte
antecipada vem afirmada no esvaziamento da vontade de se relacionar e, por conseguinte,
no esfriamento dos afetos, daí a necessidade de escrever. Essa relação fica evidente, como
vimos na construção ambiguamente bela e grotesca da relação entre o narrador e Jules, que,
de certo modo, não aceitava a doença inscrita em seu corpo. O sentimento de horror em
relação ao ser amado fica evidente na descrição de um encontro entre os dois personagens e
na comparação de ambos com esqueletos, metáforas da morte ou, melhor dizendo, metáforas
de uma dança da morte.
O romance de Guibert coloca em questão a diferença essencial entre a vivência e a
tomada dela como matéria literária/autobiográfica, uma vez que, nessa tomada, há uma
série de operações importantes: o trabalho de rememoração do vivido, a escolha dos
acontecimentos mais pertinentes para o exercício de escrita, o recorte desse vivido e,
finalmente, o processo de reflexão inerente ao próprio gesto de narrar-se. Ao que parece,
o escritor francês, consciente de que a sinceridade absoluta é impossível no ato de escrita,
opta por embaralhar factual e ficcional de modo a construir um romance que, em última
instância, pode ser lido como um texto híbrido que apresenta traços evidentemente ligados à
autobiografia, mas se insere num campo de produção romanesca. É nessa intersecção ou lugar
intervalar que o escritor rompe com a tradição escritural/literária de seu país, incluindo aqui
autores cujos textos que flertam claramente com as escritas de si (Marguerite Duras, Sartre,
Marcel Proust), forçando o discurso literário a se espraiar por um território inexplorado – o
da espetacularização da intimidade, das relações concernentes à esfera pessoal –, o que, de
certo modo causa escândalo nos meios literários tradicionais da França.
Leonor Arfuch, em seu já citado trabalho, afirma que o espaço biográfico assume
importância na contemporaneidade. Para ela, tal conceito não se manifesta como um gênero
dado e independente que se constitui a partir de um pacto escritural (a coincidência entre
o nome do autor, do narrador e da personagem, bem como a ideia de uma “imagem do
real”) ou mesmo de um pacto autobiográfico que tem no campo da recepção (o leitor aceita
o desejo de sinceridade do autor), mas no processo de aceitação do jogo biográfico pelo
leitor/espectador. Esses conceitos, mobilizados por Philippe Lejeune no já clássico Le pacte
autobiographique (1975), mostraram-se incipientes para a compreensão do procedimento de
tomada de si como personagem. É nesse sentido que, para Arfuch (2010, p. 73), “mesmo
13
No original: «Écrire cela aujourd‘hui si loin de lui refait bander mon sexe, désactivé et inerte depuis des
semaines. Cette ébauche de baise me semblait sur l‘heure d‘une tristesse intolérable, j‘avais l‘impression que
Jules et moi nous étions égarés entre nos vie et notre mort, et que le point qui nous situait ensemble dans cet
intervalle, d‘ordinaire et par nécessité assez flou, était devenu atrocement net, que nous faisions le point, par
cet enchaînement, sur le tableau de deux squelettes sodomites. Jules me fit jouir en me regardant dans les yeux.
C‘était un regard insoutenable, trop sublime, trop déchirant, à la fois éternel et menacé par l‘éternité. Je bloquai
mon sanglot dans ma gorge en le faisant passer pour un soupir de détente» (GUIBERT, 2006, p. 165–166).
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quando estiver em jogo uma certa ‘referencialidade’, enquanto adequação dos acontecimentos
de uma vida, não é isso mais o que importa”, isto porque a tomada da própria vivência e posterior
transposição como material escrito, ainda que haja no horizonte intelectual do escritor um
desejo de sinceridade, é produto de uma série de operações que não permitem a coincidência
entre o sujeito da escritura e sua projeção textual. Desse modo, “não é tanto o ‘conteúdo’ do
relato por si mesmo [...], mas precisamente as estratégias – ficcionais – de autorrepresentação o
que importa (ARFUCH, 2010, p.73 –grifos da autora).
Podemos afirmar que Hervé Guibert, no processo de registro presentificado da
vivência do homem contaminado acaba por, em certa medida, antecipar o zeitgeist desse
início de século XXI: a invasão do que tradicionalmente víamos como estritamente do
campo da privacidade e da intimidade na esfera pública nos mais variados suportes. É
preciso, todavia, não esquecer de que, por trás da espetacularização há pelo menos dois
outros elementos: a luta contra o silenciamento e o esvaziamento de si e a resistência à
morte por meio da narrativa14.
A produção literária de Caio Fernando Abreu, por sua vez, tem como marca fundamental
a diversidade de temas e motivos. Entretanto, os temas do amor, da morte, da doença, da
espera e da marginalidade são bastante recorrentes na obra do escritor. É importante ter em
vista, ainda, que a AIDS emerge como motivo narrativo importante no trabalho literário
de Abreu desde a publicação de “Pela noite”, conto inserido na coletânea de textos Triângulo
das águas (1983), escrito, segundo afirmação do próprio Caio em carta enviada a Jaqueline
Cantore em 05/06/1983 (MORICONI, 2002), sob impacto da morte de Markito, estilista
brasileiro considerado como a primeira vítima do HIV–AIDS no país.
A partir daí a síndrome será um tema ou motivo constante em sua obra, reaparecendo
em contos como “Linda, uma história horrível”, “Dama da noite”, “Depois de agosto”. No
romance Onde andará Dulce Veiga?, embora tratada de modo velado, quase interdito, a AIDS
aparece como uma espécie de impulsionador da busca do narrador-personagem inominado
por Dulce Veiga, uma cantora desaparecida e, no fim das contas, por uma imagem positiva
da sua própria trajetória. Esses textos são produzidos quando o escritor não se sabia portador
da síndrome, embora houvesse suspeitas de sua parte. Além disso, é preciso ainda mencionar
14
Em A aids e suas metáforas (1989), Susan Sontag afirma que a síndrome é, desde a sua origem, tratada como um
mal que afeta especificamente um grupo perigoso de pessoas “diferentes” que não aderem (e não desejam aderir)
à norma social imposta pelo status quo. É claro que isso tem consequências imediatas: a propagação da doença
como um “câncer gay” e a utilização dos discursos políticos, médicos, religiosos para demonizar e marginalizar
ainda mais os doentes. Além disso, Sontag chama a atenção para um dado importante no início da epidemia: o
fato de que os doentes de Aids, em sua grande maioria homossexuais, eram dupla ou triplamente vítimas: tinham
uma doença incurável, devastadora e mortal; sua intimidade e identidade sexuais eram violentamente retiradas
desse campo de privacidade e vinham a público; marginalizados pela família, pelos amigos, sem trabalho ou
quaisquer modos de sobrevivência, estes doentes passavam por uma morte metafórica, ou seja, morriam antes
da morte real.
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as peças teatrais O homem e mancha e Zona contaminada, ambas inseridas na coletânea Teatro
completo (1997) e escritas por Abreu depois do impacto de se descobrir portador do vírus
HIV e, mais do que isso, ter já desenvolvido os sintomas da síndrome.
É preciso notar um dado importante para a leitura da relação entre o discurso literário
de Abreu sobre a AIDS e a relação do autor com a própria doença. Enquanto era apenas uma
testemunha da morte de amigos tocados pela síndrome, o escritor manteve uma discussão aberta
acerca da doença, mas, quando se reconhece soropositivo, sua perspectiva de representação
literária da doença parece se modificar. Desse modo, se antes os índices da doença eram claros,
após a consciência de ter em si uma morte anunciada faz com que o escritor fale menos da
doença e fale mais da sobrevivência. É nessa virada de perspectiva que podemos observar
a emergência de uma escrita de resistência ou de sobrevivência. A escrita de Abreu, assim
como a de Hervé Guibert, torna-se a metaforização do gesto narrativo que impede, ainda que
apenas algum tempo, a presença da morte. Ambos performam literariamente, então, o gesto de
Sherazade: contar/escrever para não morrer, ao menos por um dia.
Deixemos, por um momento, a relação do texto de Abreu com o motivo da doença
na construção de narrativas tanatológicas, para analisarmos outro aspecto também
fundamental para nossa discussão: a relação da obra do escritor com o procedimento
das escritas de si. Como dissemos acima, em nota de rodapé, há em seu projeto literário
a utilização de elementos que podem ser relacionados com suas vivências particulares.
Nesse sentido, podemos pensar em uma série de textos de Abreu que guardam pontos
de ancoragem com episódios de sua vida. Mas a questão que emerge é: de que modo se
efetua essa projeção da vivência pessoal sobre o texto literário? Falaremos sobre isso de
forma ampla mais adiante. Antes, tomemos o conto “Depois de agosto” como exemplo
da confluência entre as narrativas que têm a AIDS por motivo importante e certo
procedimento de projeção da vivência pessoal do escritor em seus textos.
“Depois de agosto” foi publicado por Abreu na coletânea de “fundo de gaveta” intitulada
Ovelhas negras (1995). O conto traz como subtítulo “Uma história positiva, para ser lida ao
som de Contigo en la distancia”, aliás, procedimento narrativo muito comum ao longo da vida
literária do escritor. Ele é considerado o último texto ficcional publicado pelo escritor ainda
vivo e aparece no livro, assim como todos os outros contos, com uma espécie de explicação
do criador acerca do contexto de criação. Abreu se refere a ele desse modo: “Foi escrita em
fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre. Há pouco a dizer sobre ela,
ainda está muito próxima para eu tratá-la com frieza e distanciamento” (ABREU, 2018, p.
667). É interessante notar que maior parte dos textos inseridos em Ovelhas negras contam com
explicações mais claras do seu contexto de produção, enquanto que “Depois de agosto” tem
como dado constitutivo o ciframento desde a apresentação pelo autor, que remata em sua
explicação: “Talvez seja um tanto cifrada, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede
a compreensão” (ABREU, 2018, p. 667). Esse ciframento se espraia por todo o gesto narrativo.
O conto, relativamente curto, apresenta um narrador cujo ponto de vista em relação
ao narrado é onisciente, aderindo à perspectiva do protagonista inominado. Além disso, o
texto é constituído a partir de treze pequenos fragmentos narrativos, referência à ideia de
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morte, que se apresentam, por sua vez, intitulados. São eles: “Lázaro”, “Primavera”, “Jade”,
“Anunciação”, “Oriente”, “Soneto”, “Fuga”, “Sonho”, “Capitulação”, “Espelho”, “Valsa”, “Finais”
e, finalmente, “Bolero”.
É importante observar que o incipit do conto, que apresenta o título de “Lázaro”, joga
com a ideia de sobrevivência e marca pestilencial como dados importantes do texto. Essa
dupla concepção vem mobilizada na palavra “Lázaro”, constituindo-se como referência que
tanto pode ser lida como remissão à personagem da parábola “Lázaro e o rico”, contada
por Jesus no Evangelho segundo São Lucas 16: 19-31, quanto pode apontar para ideia de
sobrevivência mobilizada a partir do intertexto com o episódio da ressurreição por Jesus de
Lázaro de Betânia, quatro dias após seu sepultamento, e narrado no Evangelho de São João 11:
1-29. As duas referências convivem ao longo de todo conto na noção da personagem de que
era tarde para a experiência do desejo e do amor e na veiculação da ideia de sobrevivência.
Num primeiro momento, Lázaro é signo da peste que a personagem, segundo sua própria
perspectiva, porta em si:
Naquela manhã de agosto, era tarde demais. Foi a primeira coisa que ele pensou
ao cruzar os portões do hospital apoiado náufrago nos ombros dos dois amigos.
Anjos da guarda, um de cada lado. Enumerou: tarde demais para alegria, tarde
demais para o amor, para a saúde, para própria vida, repetia e repetia para dentro
sem dizer nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro
lado da avenida Dr. Arnaldo. Tentando não ver os túmulos, mas sim a vida louca
dos túneis e viadutos desaguando na Paulista (ABREU, 2018, p. 667).
É interessante notar que a remissão a Lazaro e a ideia de que “era tarde demais”,
mobilizadas pela personagem, vem somada à própria constituição de uma representação da
morte configurada na imagem de um “sol cinza nos túmulos” do cemitério do outro lado da
avenida. É nessa zona cinzenta de sobrevivência e consciência da finitude que a personagem
é devolvida para a vida, ou se quisermos ler com base na referência ao gesto revivificador
de Jesus no Evangelho de João, é ressuscitada, não de forma divina ou sobrenatural como
no relato bíblico, mas por meio da medicina. Essa noção do protagonista de se ver como
ressuscitado e marcado pela morte ao mesmo tempo se apresenta como um fio condutor
da narrativa, tornando-se baliza, para a personagem, do sentido de sobrevivência e de
consciência da morte. O signo da doença/peste emerge ainda na mobilização de Caim e sua
marca e no gesto de interdição do protagonista ao espelho: “Nem sempre ria. Pois havia
também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens, palavras fugindo, suspeitas no
céu da boca, terror suado e estrangulado as noites e olhos baixos no espelho a cada manhã
para não ver Caim estampado na própria cara” (ABREU, 2018, p. 668 – grifos nossos).
Apesar desse gesto inicial de interdição de olhar para si mesmo no espelho e, num
certo sentido, de olhar-se num sentido de cuidado de si, a personagem acaba por se alinhar,
também, à imagem do ressuscitado, obrigando-se a conviver com a nova condição. É a partir
dessa consciência de sobrevivência, então, que toma a decisão de viajar e, a partir dessa
decisão, o que era visto como irremediavelmente perdido emerge como possibilidade de
comemoração da vida. A viagem se transforma num ato de resistência à ideia de uma morte
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simbólica: “se era tarde demais, poderia também ser cedo demais, você não acha? Perguntava
sem fôlego para ninguém” (ABREU, 2018, p. 669).
Essa mudança de posicionamento do protagonista representa, no âmbito da narrativa,
uma abertura para vida que se configura no encontro com o “outro”, personagem também
inominada que se aproxima eroticamente da personagem principal. O prenúncio de encontro
entre ambas as personagens ocorre no fragmento sob o título de “Anunciação”, outra referência
bíblica que remonta ao próprio nascimento de Jesus, considerado como o portador da vida.
Nesse sentido, o outro representa, com seu telefonema ao protagonista, o anjo que anuncia
a vinda do portador da vida que é, num primeiro momento, repelido por este como parte
“Daquela falange de Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos
Preconceituosos, compreende?” (ABREU, 2018, p. 669). O fragmento seguinte, “Oriente”,
é assim intitulado por causa de características do outro, tais como a “pele morena, talvez os
olhos chineses? [...] certo ar de cigano, seria esse nariz persa?” (ABREU, 2018, p. 669).
O fato, contudo, é que, se num primeiro momento o protagonista coloca a outra
personagem num lugar de indesejado, quase de inconveniente pela intrusão em seu
momento de renascimento. Ao encontrar o outro, todavia, percebe-o como parte do
próprio renascimento, construindo um espaço de reconhecimento afetivo, marcado por
gostos musicais semelhantes, conversas e gestos indiciais do interesse mútuo de ambos. O
protagonista, a partir da noção Lázaro–doente, nega-se ao encontro amoroso, considerando
inapropriado tanto o seu desejo pelo outro quanto o reconhecimento do desejo do outro
por si. O amor proibido emerge como tema e aparece numa notação de interdição. O
encontro, entretanto, faz a personagem deixar o lugar de anunciador para tomar o lugar
de portador da vida e, por essa razão, da possibilidade de realização. O reconhecimento do
outro como objeto de desejo leva o protagonista a fugir dessa possibilidade: “Sim afligia
muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou
qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia
tanto” (ABREU, 2018, p. 671).
O retorno do protagonista à cidade da outra personagem e o seu encontro com ela
constrói a resolução do conto. No fragmento intitulado “Espelho”, ele descobre que a outra
personagem porta o mesmo problema e, diante dessa revelação ambos concretizam o
encontro erótico–afetivo:
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Desse modo, a projeção do escritor para dentro de seus textos e a relação ambivalente
entre se valer da escrita de si, paradoxalmente negando-a por meio da desreferencialização
nos parece um procedimento que não emerge tão somente no período de consciência da
doença, mas em toda produção do autor, o que, certamente não invalida o seu gesto de
resistência. Nesse sentido, a afirmação de que Caio Fernando Abreu tenha se tornado
autobiográfico pós-HIV feita em Os perigosos (BESSA, 2002) nos parece improcedente e,
nesse ponto, concordamos com Nelson Barbosa.
É preciso, contudo, ter em mente que a afirmação de pessoalidade de Abreu não pode
ser lida de maneira ingênua e límpida, sobretudo, quando observamos que o autor, no
processo de constituição de sua obra, embora tenha se valido das vivências pessoais para a
escrita de suas histórias, se amparou no procedimento de apagamento de si para tornar o
escrito completamente ficcional, jogando inclusive com várias referências para a concepção
da obra15. Nesse sentido, qualquer leitura que estabeleça uma relação transparente em que
vida e obra se espelham nos parece, senão problemática, bastante inocente.
Ellen Mariany Dias (2010), a partir da ideia, presente em Bakhtin, da impossibilidade de
coincidência entre a instância autoral e sua personagem – mesmo num relato autobiográfico
–, cria a noção de máscara escritural para afirmar que a obra de Caio Fernando Abreu é
tão somente ficcional. É possível afirmar, todavia, que o texto do escritor gaúcho guarda
relações ambivalentes com as escritas de si. Podemos dizer, então, que embora estabeleça
nexos de ancoragem de sua obra ficcional com as escritas de si, o projeto literário de Abreu
não pode ser lido estritamente nem como autobiográfico nem como autoficcional, mas se
encontra na confluência enviesada com a escrita de si. É em suma uma obra ficcional que
mobiliza aspectos autobiográficos, filtrando-os por meio de um trabalho tradicional com o
discurso literário.
O diálogo que Abreu constituiu desde sempre com a questão da AIDS teve contornos
claramente políticos, dado que, para o escritor, era preciso que a doença não se tornasse
um interdito social, colocando seus portadores em zonas de marginalidade, de isolamento
e de invisibilidade ainda maiores do que as já existentes. Nesse sentido, falar da síndrome
tinha o objetivo de representar seus portadores que, violentados simbolicamente pela perda
de sua liberdade sexual e afetiva, viam-se colocados num plano secundário pela sociedade,
especialmente, pela saúde pública.
Além de questionar esses discursos, Abreu tratou de relativizá-los, sobretudo, os que
gravitavam em torno da moralidade e de uma concepção que inseria a doença num campo
problemático de punição moral/divina ao comportamento de homens gays e de toxicômanos,
primeiras vítimas da síndrome. Houve, certamente, uma mudança de perspectiva quando
crianças, mulheres e hemofílicos também apresentaram os sintomas. Depois da consciência
da contaminação, o olhar para doença se desloca da discussão sobre ela para tratar da
15
Em Onde andará Dulce Veiga? esse gesto de projeção do autor no narrador-personagem por meio da utilização
de dados da vivência pessoal é invalidado pelo procedimento de também conferir a outras personagens traços
biográficos seus. Nesse sentido, todas as personagens são projeção de Abreu e, se todas são, podemos dizer que
não são, ou seja, não há possibilidade de uma identificação autobiográfica/autoficcional estrita.
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sobrevivência, quando o autor escolhe focalizar tanto em suas crônicas quanto no conto
objeto de análise no presente trabalho a representação da resistência e de uma certa abertura
para a vida, negando-se a explorar a representação do corpo doente.
16
Para Arfuch (2010, p. 93), a ideia de autocontrole advinda da Modernidade é o resultado de uma série de
operações, regras e constrições que se iniciaram na Idade Média e ganham impulso sob a égide do capitalismo
que constitui a ideia de um espaço privado em contraposição à esfera pública.
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GOMES DE JESUS, A. L. Death’s dance, life’s writting: Aids’s Narratives, Biographical Space
and Self-writting in the Works of Caio Fernando Abreu and Hervé Guibert. Olho d’água,
São José do Rio Preto, v. 11, n. 2, p. 116-134, 2019.
Referências
ARFUCH, L. O espaço biográfico. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: WMF/Martins
Fontes, 2018.
______. Histórias positivas: a literatura desconstruindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997.
DIAS, E. M. S. Pentimento: o álbum de retratos das personae do escritor Caio Fernando Abreu.
São José do Rio Preto: 2010. Tese (Doutorado em Literaturas em Língua Portuguesa) –
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Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do
romance O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV,
de Lourenço Mutarelli
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise do romance O filho mais velho de Deus
e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli, obra publicada pela Companhia das Letras no contexto
da coleção Amores Expressos. Neste trabalho são observadas as discussões acerca dos gêneros
literários, debatendo a possível natureza satírica do romance e seu convívio com outros diferentes
gêneros, como a ficção científica. As reflexões são sustentadas nas diferentes possibilidades de
leituras da respectiva obra, assim como sua relação com uma longa tradição humana em encontrar
sentido para a existência por meio de narrativas ficcionais amparadas em teorias conspiratórias.
ABSTRACT: The aims of this work is to present an analysis Lourenço Mutarelli’s novel O filho
Mais Velho de Deus e/ou Livro IV published by Companhia das Letras in the context Amores
Expressos Collection. In this article the discussions about literary genres are observed, debating
the possible satirical nature of the novel and its coexistence with other genres , such Science fiction.
The reflections are sustained is different reading and interpretative possibilities this novel, as well
your relationship with a long human tradition of finding meaning for existence through fictional
narratives, such as the conspiracy theories.
* Centro de Letras e Comunicação – CLC – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – 96010-610 – Pelotas – RS
– Brasil. E-mail: jlourique@yahoo.com.br
** Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC – 96815-900 – Santa Cruz do Sul – RS. Bolsista CAPES. E-mail: douglaseralldo@gmail.com
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Introdução
O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli publicado em 2018
pela Companhia das Letras foi lançado com uma década de atraso e não sem antes uma
versão inteira ser legada à lixeira após desacertos entre autor e editora quanto à primeira
versão da obra encomendada pela coleção Amores Expressos1. A palavra “encomendada”,
no caso, não pode ser analisada com pobreza, pois que a natureza distinta da coleção, não
apenas em Mutarelli, mas também em outros autores, acabou acarretando consequências
criativas2. Idealizado pela RT Features o projeto da coleção Amores Expressos consistiu em
levar diferentes autores nacionais a diferentes cidades do mundo pelo período de um mês
ao longo de 2007; posteriormente cada autor teve de escrever um romance ambientado nas
cidades visitadas. No caso de Mutarelli a escolha dos organizadores do projeto, não dele, foi
pela Maçãzona, Nova York. A relação inamistosa para com a cidade dá-se antes mesmo da
viagem, pois o autor chegou pedir a possibilidade de ir a Beja, pequena cidade portuguesa.
Não aconteceu, e ele teve de passar mesmo um mês em Nova York.
Assim como os demais autores participantes do projeto, Mutarelli no período de sua
estadia na metrópole abasteceu um blog3 relatando sua experiência na cidade. A leitura do
blog é bastante interessante ao leitor do livro, não apenas no que diz respeito aos cenários
– o espaço narrativo – e aos objetos que acabam sendo transpostos para a ficção, mas o
próprio ranço e ironia com que o autor vai descrevendo a experiência, sentimentos que serão
extravasados ao extremo na versão definitiva de seu romance. Embora bem saibamos da
independência que as obras finalizadas adquirem, o contexto de produção, especialmente no
caso da coleção Amores Expressos, é um fator a ser considerado, em seus diferentes elementos.
Levaremos tais questões em conta nesta análise, entretanto, procuraremos focar muito mais
nos elementos internos desta curiosa e febril narrativa.
A bem da verdade, em síntese, o romance narra as desventuras de um sujeito medíocre,
desprovido de qualquer identidade, que de maneira oportuna encontra uma forma de
abandonar tal passado mundano para viver uma nova aventura – que lhe soa mais como
um recomeço. Até aí são elementos presentes nas boas e nas terríveis narrativas literárias.
Isso, aliás, poderá levar-nos quem sabe a perdermos um ou outro tema relevante que acaba
surgindo na narrativa por causa de uma aparente pobreza ficcional já que o romance soa
muito como aqueles filmes que ficaram conhecidos como “filmes B”, de baixo orçamento e
execução tosca. Em princípio, leituras superficiais podem levar-nos a pensar isto do romance
de Mutarelli, afinal, grosso modo é a história de um americano de pensamento médio, que
1
Proposta lançada em 2007 pelo produtor cultural Ricardo Teixeira (RT Features) em parceria com a editora
Companhia das Letras. Até o momento foram publicados 11 títulos dos 17 previstos, sendo que um deles foi
publicado pela editora Rocco.
2
Conforme matéria da Folha de 2013, diferentes autores da série sofreram com bloqueios criativos ou
travamentos. À época Mutarelli reescrevia seu romance sobre Nova York e falava da dificuldade em escrever
o romance. (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-travou-escritores-da-
colecao-amores-expressos.shtml)
3
http://blogdolourencomutarelli.blogspot.com/
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sai de Minneapolis a Nova York para adentrar numa trama de elementos conspiratórios que
o levará a trepar com uma bela lagarto do espaço. Isso tudo narrado numa terceira pessoa
altamente informal, desbocada, cheia de exageros escatológicos e pela abundância do chulo,
reverberado na fixação do protagonista pelo ânus alheio. Fixação que vemos noutras obras
de Mutarelli como em O Grifo de Abdera, “tengo um coño apretado y mi culo es lindo como
el nido de um gorrión” (MUTARELLI, 2015, p. 61), ou na própria metáfora de seu romance
mais celebrado, O Cheiro do Ralo (2002). Tendo em mente estas e outras questões, a proposta
deste texto é fugir de uma leitura do senso comum e debater elementos que estejam abaixo
da camada superficial de sua narrativa cheia de delírios, sarcasmo e acidez existencial.
Um romance multigênero?
É bastante consensual a fluidez dos gêneros literários e como os bons autores são
capazes de trabalhar no limite de fronteiras que ora se esgarçam, ora se apertam, afinal, “o
século XX se encarregou de fracionar e desfigurar os gêneros literários e as ideias consagradas
a respeito da literatura" (CASTELO, 2007, p. 95). Em muitos casos os autores quando não
levam determinado gênero a estes limites, os ultrapassam. Além disso, muitas vezes dão vida
a novos gêneros, pois como uma mãe, a literatura é bastante fértil em termos de gênero. De
certo modo a literatura é um belo títere nas mãos de habilidosos titereiros que rompem,
afirmam, corrompem, misturam, enfim, “brincam” com o fazer literário usando de suas
habilidades, aproveitando de todas as ferramentas que a própria literatura lhes possibilita.
Uma “manipulação” mútua. Por isso, em alguns casos é bastante restritivo tentar definir uma
obra a este ou àquele gênero, pois poderá ela possuir um pouco de muitos deles. Além disso,
Seria este o caso de O filho mais velho de Deus? Numa olhada rápida talvez não seja tão
simples classificar (já que não é nossa intenção discutir nesse viés reducionista) a narrativa
de Lourenço Mutarelli, até porque,
A teoria dos gêneros é vista como meio auxiliar que entre outros, nos leva
ao conhecimento do literário, mas nunca deve ser usada para valorização e
julgamento da obra. Por outro lado, o fato de um texto apresentar características
dos gêneros, por si só, não nos leva a localizá-lo na literatura (SOARES, 2007,
p. 21).
4
Referência ao personagem Charlie Brown dos desenhos animados.
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Sarah se aproxima ainda mais de George, até tocá-lo. E, ao ser tocado, suas
emoções se tornam plenas. Boas, intensas. Ao ser tocado, George transborda do
que entende como amor. Sofre uma ereção que chega a ser dolorosa e esporra em
quantidade descomunal. Após o êxtase, Ele relaxa. Sarah/Trudi o abraça. George
sente seu corpo se dissolver. Tudo se dá de forma, ao mesmo tempo, instantânea
e lenta. Um instante comporta o eterno. O corpo gelatinoso de Sarah cobre o
corpo de George. (MUTARELLI, 2018, p. 289).
Ainda que, como argumentamos, seja o romance de Mutarelli, uma narrativa de difícil
classificação, pensaremos que a expressão sátira exerça papel preponderante na identidade
da obra. Tendo isso em mente, nos encaminhamos para a observação de determinados
elementos na estética do romance que talvez possam corroborar tal perspectiva. Não
desprezando discussões acerca da obra, que vimos em resenhas, destacando dentre outras
coisas a reflexão que Mutarelli faz sobre o bem e o mal e a forma binária de lidarmos enquanto
sociedade humana com tais questões, ou os demônios listados de forma enciclopédica no
romance, ou a superficialidade das teorias conspiratórias a que qualquer cidadão médio tem
acesso em canais de televisão a cabo e, não desprezando também os elementos teológicos
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presentes, em especial o conflito aparente entre deísmo e gnosticismo a permear todo o texto
[Curiosamente, a seu modo, e voltando rapidamente a questão de gênero, perceberemos que
a obra de Mutarelli traz questões que (Roberts, 2018) aborda sugerindo que “em termos
históricos, a FC expressa uma dialética particular determinada a princípio pela separação de
visões de mundo protestante e católica” e que para o autor “os textos de FC são mediadores
desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais materialistas, outras
mais místicas ou mágicas” (ROBERTS, 2018, p. 61)] neste trabalho, todavia, nos deteremos
em especial a dois elementos presentes na narrativa e que talvez carreguem mais signos do
que normalmente vem sendo observado por leitores e críticos da obra.
Um dos elementos mais comentados acerca do livro trata-se da escolha de homônimos
para nomear todos seus personagens. Mais do que homônimos, são em sua ampla maioria,
homônimos de serial killers selecionados a partir da murderpedia5. Em geral, das muitas análises
e reflexões que podemos encontrar sobre o livro, não raro, os homônimos na narrativa são
interpretados como crítica de Mutarelli ao “american way of life” fascinado por assassinos
e o armamentismo. Juntam homônimos a típicas frases americanas presentes no romance
como pedaço de bolo para embasar tais leituras. Entretanto, parece-nos especialmente na
questão dos homônimos, tratar-se de leitura mais rasa tais interpretações do fenômeno na
obra. Bem verdade que se tomarmos a explicação do autor sobre tal escolha, parece nos
levar a algo menos pretensioso e consequentemente raso, uma escolha achada ao acaso na
internet. Porém, não se pode desprezar o poder do inconsciente na produção literária, e
tenha sido pelo acaso ou necessidade de entregar uma encomenda, ou algo sendo trabalhado
no inconsciente de Lourenço Mutarelli, como veremos, a homonímia é essencial à gênese
deste romance. Mais do que isso, talvez a escolha seja fundamental para os elementos de
valor da narrativa. Para tanto, é preciso observar que um dos signos que os homônimos e
homógrafos remetem é o da ambiguidade. A natureza ambígua do livro, que como vimos
já se mostra na dificuldade de classificação da narrativa, está presente desde seu título O
filho mais velho de Deus e/ou Livro IV. Tal ambiguidade será reiterada na nomeação de todos
seus capítulos como De cada dez e/ou Na manteiga e Uma nota arbitrária e/ou O diabo entra em
cena. A ambiguidade está presente mesmo na situação que inicia a aventura de George, “não
precisava de proteção alguma. Para Ele, tudo aquilo era apenas uma aventura, uma nova vida”
(MUTARELLI, 2018, p. 74). Isso sem falar na ambiguidade de o cético George defrontar-
se com uma revelação alienígena. São muitos, portanto, os sinais ambíguos presentes na
narrativa, como o fascínio do protagonista por Richard Dean Anderson6, o McGyver, com
5
Em termos de análise e crítica literária não se pode trabalhar com aquilo que não foi efetivado, que não sobreviveu
aos diferentes filtros que envolvem a publicação de um livro. Bem verdade que há estudos da genealogia da
obra literária, entretanto, consciente ou inconscientemente, o literário é aquilo que acaba chegando aos olhos
dos leitores. Nesse sentido a homonímia é uma questão curiosa em O filho mais velho de Deus, pois conforme
o autor declarou ao site Vice, essa foi uma solução que não estava na primeira versão que foi rejeitada pela
editora. A alteração, como veremos, deu bastante consistência à narrativa e evoca signos bem mais relevantes se
comparados à ideia inicial.
6
O “McGyver” não é homônimo, mas sustenta outro símbolo reiterado e de certo fascínio sobre Mutarelli, o número
três. Perceberemos que o três será reiterado de diferentes modos no livro, dos quais se sobressaem os homônimos
geralmente compostos por três nomes. Entre outras evocações, poderíamos lembrar a santíssima trindade.
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o qual George mente ter estudado e que, ademais, provavelmente é mais famoso aqui no
Brasil que nos Estados Unidos. A ambiguidade extremada a desfilar por seus personagens
homônimos no romance vai ainda tocar a natureza ambígua da própria realidade. A reiterada
presença e anúncio de todos estes homônimos convocam para a natureza de simulacro
da trama. A mímesis, e nesse caso, uma cópia satírica, revela-se, por exemplo, quando se
compara pelo narrador a Astrum Argentum com o A. A. “Toda sociedade imita a sociedade”
(MUTARELLI, 2018, p. 86). Nesse mundo-cenário George hospeda-se no Chelsea Savoy,
cópia, imitação do Chelsea, hotel renomado e luxuoso. Aliás, toda essa ambiguidade, como
dissemos, impacta fortemente a realidade, que é uma dúvida constante aos que enredam-se na
paranóia e na conspiração. Isso é o que acaba dando ao romance notas da desconfiança de um
Philip K. Dick à própria realidade. Para o autor americano a realidade é geralmente ambígua
e frágil e Mutarelli parece reproduzir esta desconfiança em O filho mais velho de Deus. Tanto
que George viverá uma experiência epifânica muito semelhante a de personagens de Dick,
quando estes percebem uma realidade simulada da existência, quando “todos os sentidos
se aguçam e fazem com que George sinta o que ele definirá um dia como hiper-realidade”
(MUTARELLI, 2018, p. 208). O protagonista não apenas parece transcender para uma nova
realidade, mas afirmar todas as ambiguidades e reforçar todas as suas desconfianças “do
real”. Por isso, talvez seja bastante redutor observarmos os homônimos no romance apenas
como crítica ou retrato de neuroses americanas. Muito menos uma descoberta ao acaso.
Pelo exposto, parece-nos, que independentemente do processo de escolha de Mutarelli, os
símbolos evocados são bastante fortes. O mesmo ocorre quando o autor distingue o humano
e o não-humano pela onomatopeia.
A curiosa abordagem acaba encontrando uma nova forma de dizer uma das coisas que
nos faz/torna humanos e surge através de Keith Bryan, o Tripinha, amigo o qual George
admira por seus diferentes saberes enciclopédicos “Keith Bryan sabia o som que cada animal
emitia. Keith Bryan sabia que o beija-flor trissa, o besouro zune, o bode bale, o cabrito
barrega, o camelo blatera, a cigarra chichia7, o chacal uiva, a cegonha glotora, e o homem
prega” (MUTARELLI, 2018, p. 91) diz o narrador. Como já dissemos das reiterações, tal
estrutura desfilando onomatopeias será repetida contrastando com o fato de o homem ter
mais do que meros sons, meras onomatopeias. Ao homem cabe, Mutarelli lembra, não
apenas a linguagem, mas o próprio verbo. “O homem prega” dirá o narrador com certa
insistência. Junto disso constrói-se a inferência através do espelho, pois, se o homem prega,
subentende-se que do outro lado há o homem que ouve e também o homem que crê. Ainda
que tal reflexão nos chegue com o sarcasmo da sátira, Mutarelli aborda algo que pensadores
como Yuval Noah Harari têm chamado atenção na tentativa de compreensão dos tempos
presentes e futuros:
7
Como escrito no romance. A onomatopeia de cigarra seria ciciar. Talvez seja um engano do Tripinha.
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que explique o que quer dizer realidade e qual meu papel particular no drama
cósmico. (HARARI, 2018, p. 331).
Harari nos faz tal lembrança em 21 lições para o século 21 (2018) em um capítulo-ensaio
que discute justamente sobre a busca de um sentido para a vida, analisando a questão pelas
narrativas humanas. Parece-nos que a sátira de Mutarelli acaba adentrando a esta questão.
Procura o autor, talvez, condenar essa necessidade histórica humana de produzir sentido
através de narrativas, por mais absurdas que possam parecer, como uma teoria conspiratória
envolvendo lagartos espaciais. Tal relação parece-nos mais clara quando George ainda em
seu princípio de “proteção” começa a analisar as teorias que seu amigo Paul apresentou-lhe
sobre os reptilianos e sobre como eles estão inseridos na sociedade humana em suas mais
altas esferas do poder, “há uma série de vídeos no Youtube demonstrando e, mais do que
isso, desmascarando os reptilianos” (MUTARELLI, 2018, p. 940). É apenas o começo de um
processo de construção de hipertextos e hiperlinks nos quais o narrador parece ser tomado
por um fluxo de consciência:
Apesar de Paul ter trazido muita luz sobre os reptilianos, não podemos deixar
de citar o grande mestre e mentor que foi Bob Lazar [...] quem nos explicou
o ununpêntio [...] Quanto aos reptilianos devemos muito a David Icke [...]
Icke expôs a Fraternidade, os Illuminati ou Elite Global [...] Antes de Icke, veio
Erich von Däniken [...] antes dele, toda a turma da teosofia [...] a isso se soma
Aleister Crowley [...] E antes de Crowley, Jakob Böhme, e seguiremos quase
sem fim, passando por Amônio Sacas, até chegar a Platão [...] seguiremos para
Sócrates [...] E como não poderia deixar de ser, encontraremos o início de tudo
em Hamurabi [...] E antes de Hamurabi houve Elulu [...] Chegaremos aos Vedas
[...] E Undum já falava de fogo vindo do céu... (MUTARELLI, 2018, p. 95-97).
No todo, O filho mais velho de Deus parece-nos mesmo uma grande sátira das improváveis
narrativas. Uma sátira de múltiplos pedaços. Não apenas dela, mas em consequência, da
sociedade que facilmente se enreda neste tipo de teia, senão escapista, como no caso
de George, tentativa última de dar cor ou sentido ao fracasso da existência. Aliás, talvez
tenhamos aí um elemento curioso de reflexão se levarmos em consideração o contraste entre
os distintos momentos do protagonista. O cético Peanuts carrega o amargor e a acidez da
compreensão de sua mediocridade. Não apegado a fantasias e delírios narrativos é capaz de
entender-se como o sujeito medíocre que é. A bem da verdade, sem as máscaras narrativas
que fantasiam a realidade, é provável que todos nós venhamos a compreender toda existência
como medíocre. Numa acepção mais radical desse pensamento, a frase dita pelo pai d’Ele/
Charles/Albert/George “às vezes a vida é tão desnecessária” (MUTARELLI, 2018, p. 57) e
que martela insistentemente o protagonista. Então, no caso de George, seu envolvimento
com os seres reptilianos acaba com o que inicialmente era uma fuga da sua vida pregressa
mundana, atirando-o a uma fuga pela imersão ébria na narrativa senil e improvável. Com
isso, entregando-lhe novas fixações e novos objetivos. Aliás, a embriaguez na parte final do
romance pode ser-nos mais uma mensagem deste quebra-cabeça.
Claro que haverá sempre o risco de estarmos superestimando alguns destes argumentos.
Podemos estar diante de escolhas ao acaso como entrevistas ou postagens podem levar a
supor, entretanto, mais arriscado em termos de literatura é imaginarmos soluções gratuitas.
Consciente ou inconscientemente as mensagens postas numa obra, lá estão por algum motivo.
Ademais, não fossem os tempos vividos neste exato momento, talvez pudéssemos observar
com menor atenção o que seria apenas uma trama tresloucada que não deu certo; porém,
quando os ponteiros do mundo parecem rodar ao contrário e quando líderes de potências
globais e regionais levam para a plataforma política teorias e pensamentos tão obscuros e
insanos quanto o enredo que gruda George numa psicótica teia, a sátira parece ganhar mais
força e relevância. Além disso, não podemos desprezar o papel desempenhado pela própria
internet na narrativa, a quê, referências iniciam desde os agradecimentos. Nesse aspecto é
como se Mutarelli produzisse uma narrativa dadaísta montando sua obra com pedaços de
todas as coisas e conceitos que vigoram nas camadas mais obscuras da internet – e da televisão
a cabo. Há algo proposital de control c + control v transposto para a narrativa, trazendo pedaços
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recolhidos de uma rede cada vez mais dominante e influente no comportamento off-line.
Assim a sátira recai não apenas sobre as narrativas, mas sobre as sociedades viciadas cada
vez mais em enganarem-se. Por isso não é a toa que pouco tenhamos falado neste trabalho
acerca de Nova York, razão de ser da escrita do romance. A cidade retratada com os ranços
de Mutarelli, vistos no material complementar à produção de sua escrita, desempenha o
papel de mero cenário “o lanche tem gosto de papelão na cidade-cenário” (MUTARELLI,
2018, p. 109) no que parece definir a visão da narrativa sobre cidade e reforçar a natureza
de simulacro da trama. Personagens homônimos habitando um cenário impessoal e capaz
de oprimir por meio de sua capacidade de isolar os indivíduos “George nunca se sentiu tão
só. Pensa que talvez seja pela falta de horizonte” (MUTARELLI, 2018, p. 76). Talvez por
isso a cidade a qual a primeira experiência de George tenha sido na infância (numa visita ao
Metropolitan, quando pela primeira vez tem consciência da morte vendo múmias egípcias),
afora a celeuma presente pós 11 de setembro, chegue aos leitores pela colagem de vozes
como Sinatra ou Enrique Discépolo que “caso George falasse espanhol” compreenderia o
caráter ilusório que permeia todo o enredo “verás que é tudo mentira. Verás que nada é
amor. Que ao mundo nada lhe importa. Ele apenas gira, gira...” (MUTARELLI, 2018, p. 51).
No fundo, O filho mais velho de Deus soa como uma sátira ocre de um mundo composto de
ilusões numa roda que gira, gira...
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“Nebulosa e retumbante”:
notas sobre as Badaladas do Dr. Semana
VICTOR DA ROSA*
RESUMO: O presente artigo se propõe a refazer a trajetória editorial das crônicas publicadas
originalmente na coluna “Badaladas” da revista Semana Ilustrada (1860-1876) sob o pseudônimo
Dr. Semana. Em ocasião do recente lançamento de Badaladas do Dr. Semana, volume organizado
por Sílvia Maria Azevedo no qual defende a atribuição de grande parte da série a Machado de
Assis, o artigo procura responder como a pesquisadora desafia, com tal atribuição, alguns dos
nomes consolidados da crítica machadiana, a exemplo de Lúcia Miguel Pereira, José Galante de
Sousa e Raimundo Magalhães Júnior. Mas também como a pesquisadora se vale de uma série de
pistas e de procedimentos de atribuição autoral que estes mesmos críticos deixaram como legado.
No caso dessas “Badaladas”, as duas principais complicações para uma atribuição segura da autoria
se referem, por um lado, à escassez, ou quase inexistência, de provas materiais que liguem Machado
de Assis a esse grande conjunto de textos, assim como pela natureza do pseudônimo Dr. Semana,
que era usado não só pelo autor de Dom Casmurro, mas por diferentes cronistas do periódico,
controvérsia que é tratada pelo artigo em segundo momento, com o auxílio de depoimentos de
outros pesquisadores machadianos, como John Gledson e Lúcia Granja.
ABSTRACT: This article proposes an editorial rebuilding on the chronicles originally published in
the Semana Ilustrada (1860-1876) magazine's column "Badaladas" under the pseudonym Dr. Semana
(Dr. Week). By the recent launching of Badaladas do Dr. Semana (Dr. Semana's Badaladas), a volume
organized by Sílvia Maria Azevedo that defends a large part of the serie's autorship to be atributed
to Machado de Assis, the article seeks to respond how, by doing so, Azevedo challenges some of
the most consolidated scholars in Machado's studies, as Lúcia Miguel Pereira, José Galante de
Sousa and Raimundo Magalhães Júnior. At the same time however, Azevedo makes use of several
clues and procedures for autorship application that these very same researchers developed and left
by as a legacy. In this particular Badaladas' case, the two main intricacies for an ultimate autorship
attribution are the almost non existence of material evidence to link Machado de Assis to this large
set of texts, as well as the nature of the pseudonym Dr. Semana, which was used not only by Dom
Casmurro's author but also by other writers of the same magazine. The pseudonym controversy
is adressed in a second moment of this article with the aid of other Machado's researchers works,
such as John Gledson and Lúcia Granja.
*
Departamento de Letras – Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP – 35420–000 – Ouro Preto – MG –
Brasil. E–mail: victordarosa@gmail.com
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Introdução
Dr. Semana foi um pseudônimo frequente da Semana Ilustrada, revista voltada a charges,
caricaturas e sátiras políticas de meados do século XIX, que no dia 20 de junho de 1869
anuncia a mudança do nome da sua coluna para “Badaladas”, em referência a uma campainha
até hoje usada na sede do Senado e que era, como diz o próprio colunista, “o símbolo do
parlamentarismo” e do “sistema representativo” (ASSIS, 2019, p. 56). Em justificativa logo
na estreia da nova coluna, Dr. Semana argumenta que “cada homem deve ser do seu tempo”,
e que “a [nossa] época é parlamentar” (ASSIS, 2019, p. 56). E por meio de um raciocínio
que soa familiar aos leitores mais habituais de Machado de Assis, lembrando por exemplo
o célebre conto “Uma visita de Alcibíades”, o colunista questiona e conclui: “Que diriam de
um homem que, no tempo de calção e meia, usasse calça moderna, ou fosse apertar a mão do
visconde de Jequitinhonha envergando a túnica de Catão? Era um disparate” (ASSIS, 2019,
p. 56).
A mesma coluna, que recebeu diversos títulos ao longo da história do periódico,
como “Contos do Rio de Janeiro”, “Cousas e lousas”, “Memórias da Semana”, “Crônicas da
Semana”, “O que há de novo?” e “Pontos e Vírgulas”, embora sempre assinada com o mesmo
pseudônimo, agora teria um nome mais bem-humorado e à moda do tempo – mais galante
e mais novo, diria Brás Cubas. “Se a época é de campainha, por que não darei eu badaladas
todas as semanas?”, pergunta o cronista em tom de galhofa (ASSIS, 2019, p. 56).
Para a pesquisadora Sílvia Maria Azevedo, a alteração do nome da coluna do Dr.
Semana vem acompanhada de outra mudança até então não enfrentada em toda a sua
complexidade e alcance por críticos e editores machadianos, e bem mais significativa para
a história da literatura nacional: com as “Badaladas”, a coluna passava a ser assumida pelo
próprio Machado. Foi esta percepção de Azevedo, nascida de uma longa controvérsia da
crítica machadiana em torno da autoria e da edição desses textos, que levou a pesquisadora
a se debruçar durante pelo menos três anos sobre o material, período durante o qual contou
com uma bolsa do CNPq, e analisar cada uma das crônicas, ao todo mais de trezentas – a
coluna “Badaladas” duraria sete anos, até o fim da Semana Ilustrada, que acabou em 18761.
O resultado da pesquisa são dois livros de aproximadamente 1600 páginas lançados em
2019, que contam com todas as crônicas atribuídas a Machado, além de uma longa introdução
de Azevedo, assim como notas de rodapé explicativas, detalhados índices onomásticos e
tabelas com marcas textuais (internas e externas ao texto) que apresentam uma série de
“provas” de autoria (AZEVEDO, 2019, p. 9). As aspas são da própria pesquisadora.
1
Após o fim da Semana Ilustrada, o editor da revista passa a publicar outro periódico ilustrado, a Ilustração Brasileira
(1876-1878), na qual Machado de Assis, como Manassés, assina a seção “História de Quinze Dias” e “História de
Trinta Dias”. Em relação à Ilustração Brasileira e às crônicas de Manassés, Silvia Maria Azevedo publicou dois
livros antes das Badaladas do Dr. Semana, que são os seguintes: Brasil em imagens: um estudo da revista Ilustração
Brasileira (1876-1878) e História de Quinze Dias, História de Trinta Dias: crônicas de Machado de Assis - Manassés.
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Breve história de uma controvérsia
2
Os textos “Chronicas da Semana”, de 1861 a 1864, publicadas no v.1 da Jackson, constam das páginas 169 a 300;
enquanto As “Badaladas”, que aparecem no v.3, ocupam menos espaço, iniciando na página 9 até a 70, com textos
de 1871 a 1873.
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Machado de Assis conquistou, com a maior galhardia, os foros de chronista, escrevendo as
Badaladas da Semana, e assignando-as Dr. Semana” (FLEUISS apud SOUSA, 1955, p.24–25).
Se o comentário de Fleiuss dá a entender, como percebe Galante de Sousa, que a totalidade
dessas crônicas pertence a Machado, o próprio estudioso permanece reticente quanto a isso,
e termina por deixar esta série de fora do índice cronológico do autor fluminense, sugerindo
então que “os mais argutos” tenham “o prazer de resolver o problema” (SOUSA, 1955, p.
434). Foi o que Sílvia Maria Azevedo, sessenta anos depois, se propôs a fazer.
Antes de Galante de Sousa, em 1936, pouco antes das obras completas lançadas pelas
edições Jackson, Lucia Miguel Pereira já havia mencionado, em seu conhecido estudo
biográfico de Machado de Assis, as colaborações do autor na Semana Ilustrada assim como o
pseudônimo Dr. Semana, sendo uma destas menções de grande importância: de acordo com
a crítica, o pseudônimo escondia os nomes de escritores como Pedro Luís, Varejão, Felix
Martins, Quintino Bocaiúva e “vários outros” (PEREIRA, 1955, p. 94), o que se apresentou
como um dos principais complicadores para a atribuição da autoria. Em nota de rodapé, a
crítica esclarece que se baseia também em informação de Max Fleiuss, ao que parece privada.
Outro biógrafo de Machado de Assis, Raimundo Magalhães Júnior, que foi um
profícuo pesquisador das fontes do autor, tendo reunido dezenas de coletâneas a partir dos
anos 1950 com textos esparsos de Machado, contribuiria também, e em vários momentos
de seus estudos, para manter o interesse da crítica em torno deste material em específico.
No ano de 1958, o pesquisador reúne um conjunto de contos e crônicas com vinte e duas
“Badaladas”, publicadas entre 1869 e 1873, e dez “Pontos e vírgulas”, também retiradas da
Semana Ilustrada, de 1867 a 1869, além de folhetins originalmente publicados no mesmo
periódico, como “O Tobias e o Teles”, descrito por Magalhães Júnior como uma “novela
humorística” (MAGALHÃES, 1958, p. 8). Além da reunião das “Badaladas”, a mais volumosa
até então, a edição conta com um prefácio do crítico e com algumas notas em que estabelece
certos critérios para atribuição de autoria e tece críticas ao organizador das mencionadas
obras completas machadianas de 1937, na qual, segundo Magalhães Júnior, “há umas duas
ou três dezenas de páginas que, não resta dúvida, foram atribuídas a Machado, sem qualquer
fundamento idôneo”. Pelo contrário, argumenta ainda que “tudo nelas grita e indica a falsa
atribuição” (MAGALHÃES, 1958, p. 12).
A principal justificativa de Magalhães Júnior para atribuição autoral de um conjunto
de “Badaladas” a Machado de Assis, além de poucas delas serem assinadas com pseudônimos
reconhecidamente machadianos, liga-se a uma observação de fundo estilístico: a de que
Machado era um “repetidor”. Conforme argumenta o crítico sobre o estilo machadiano:
“Uma de suas características, como demonstramos exaustivamente em ‘Machado de Assis
Desconhecido’, era a repetição, de citações, imagens, conceitos e temas” (MAGALHÃES,
1958, p. 9). E ainda esclarece: “Recolhemos apenas as [crônicas] que eram assinadas com
pseudônimos notórios de Machado de Assis, ou que pelo assunto, estilo, ou certas citações,
de que usou e abusou, são visivelmente de sua autoria” (MAGALHÃES, 1958, p. 11). Em
suma, o procedimento de Magalhães Júnior foi o seguinte: no caso de aparecer citado, em
alguma das crônicas a princípio sem autoria das “Badaladas”, um trecho específico da Ilíada
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que seria também citado em outros textos comprovadamente machadianos, ou mesmo um
tema marcante, ou ainda um trocadilho, então teríamos uma prova de que a crônica foi
escrita por Machado. Em todas as “Badaladas” que são reunidas pelo crítico nesta edição
aparecem notas de rodapé dessa natureza, explicitando as repetições, que funcionariam
como provas. No mesmo prefácio, Magalhães Júnior termina por indicar que na
“Semana Ilustrada (...) haverá ainda dezenas de crônicas de Machado de Assis, à espera de
identificação” (MAGALHÃES, 1958, p. 12).
Finalmente, na edição mais recente das obras completas, os organizadores resolveram
ignorar tanto a edição da Jackson quanto também – o que talvez merecesse melhor
explicação – as edições organizadas por Raimundo Magalhães Júnior, assim como outras
informações coletadas em sua volumosa biografia3, fiando-se inteiramente às escolhas de
José Galante de Sousa, e sendo assim toda a seção das “Badaladas” ficou de fora da edição
mais recente, conforme se lê na nota de abertura: “A seção Badaladas, publicada entre
1869 e 1876 na Semana Ilustrada, não foi incluída, mais uma vez respeitando os critérios
de Galante, uma vez que sob o pseudônimo coletivo ‘Dr. Semana’ escondiam-se vários
autores” (ASSIS, 2008, p. IV).
De maneira que a presente edição das Badaladas organizada por Sílvia Maria Azevedo,
ao desafiar nomes consolidados da crítica machadiana, também deve sua existência à longa
história dessa controvérsia que deixou uma série de pistas e mesmo de procedimentos de
atribuição autoral. Afinal, além do próprio exame estilístico, proposto já por José Galante
de Sousa em 1955, a pesquisadora se vale também da técnica usada de modo recorrente por
Raimundo Magalhães Júnior para fixar parte das “Badaladas” em Contos e crônicas, de 1958,
assim como de outros indicadores autorais – que, no entanto, no presente caso, são aplicados
de modo mais coeso e exaustivo, conforme a própria Azevedo esclarece na apresentação:
3
Nos dois primeiros volumes da biografia de Raimundo Magalhães Junior há dezenas de referências e comentários
tanto à publicação Semana Ilustrada quanto ao pseudônimo Dr. Semana, alguns dos quais inclusive corrigindo a
omissão de José Galante de Sousa, como neste caso: “Os primeiros desses artigos saíram na Semana Ilustrada, a
partir de 5 de setembro de 1869, sob o pseudônimo Gil, e se ocupavam do livro de versos Nuvens da América,
do autor paulista Martins Guimarães. Esses e os seguintes não foram assinalados na Bibliografia de Machado
de Assis, de José Galante de Sousa, nem recolhidos nos Dispersos por Jean-Michel Massa. Tampouco assinalou
José Galante de Sousa a publicação, na Semana Ilustrada, a 30 de janeiro de 1870, de uma pequena nota de crítica
sobre o livro de Moreira de Azevedo intitulado Mosaico brasileiro, coleção de pequenas biografias, casos curiosos
e anedotas” (MAGALHÃES, 2008, v. II, p. 106-107).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Provas e contraprovas
4
Este depoimento e os depoimentos seguintes de John Gledson foram enviados por e-mail em 15 de outubro de
2019.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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No mesmo depoimento, Gledson diz acreditar que a edição também colabora para
o estudo da biografia, das opiniões políticas e até religiosas de Machado, assim como das
suas fontes e do seu desenvolvimento artístico. “A publicação faz parte de um movimento
crescente da pesquisa e das edições do seu jornalismo, e, sobretudo, da publicação de boas
edições dessa parte da sua obra, que ajudam a entender a carreira, a personagem e a obra do
autor” (GLEDSON, 2019), destaca o crítico, que no momento está editando as crônicas de “A
Semana”, de 1895, que serão publicadas em breve, com anotações, em uma revista acadêmica.
Mas o crítico chama a atenção também a outros aspectos controversos da edição: “Além
de o pseudônimo Dr. Semana ser coletivo, as Badaladas eram compostas de itens mais ou
menos independentes, e me parece que nada impede que vários autores contribuíssem para
a mesma crônica” (GLEDSON, 2019). O crítico questiona finalmente o critério estilístico
sugerido pelo próprio Galante – sendo um dos critérios usados na presente edição, entre
outros – quando insiste em um estudo sério e meticuloso do estilo. “Honestamente, não sei
como é possível satisfazer este critério. Creio que Galante, influenciado pelo momento na
crítica literária, a estilística, talvez achasse que houvesse um jeito ‘científico’ de atribuir autoria.
Duvido bastante” (GLEDSON, 2019). Ou seja, Gledson acredita que, por mais meticulosa que
seja a análise estilística, jamais será suficiente para provar a autoria desta ou daquela crônica,
e lembra ainda que a própria Silvia Maria Azevedo reconhece que algumas crônicas da série
“Badaladas” não são de Machado, o que aumentaria a incerteza. “Existem alguns textos da série
‘não atribuídos’... Isso não colocaria todos em dúvida?”, questiona (GLEDSON, 2019).
Lucia Granja, uma das principais especialistas das crônicas de Machado, lembra que
a tarefa da pesquisadora Silvia Maria Azevedo é “ambiciosa e arriscada” justamente porque
desafia grandes nomes da crítica machadiana assim como os seus projetos editoriais de maior
relevo, sendo os principais já comentados ao longo deste artigo, e comenta sobre as vantagens
e eventuais desvantagens da nova edição:
Seja como for, tanto Gledson quanto Granja concordam que o mais importante é que
o livro apresenta uma base muito bem estabelecida e critérios consistentes, embora nem
sempre definitivos, para auxiliar nesse julgamento.
5
Este depoimento de Lucia Granja foi enviado por e-mail em 13 de outubro de 2019. Sobre a história da edição
das crônicas de Machado, ver o seguinte artigo da pesquisa: “Das páginas dos jornais aos gabinetes de leitura:
rumos dos estudos sobre as crônicas de Machado de Assis”. Teresa, n. 6-7, 2005, p. 385-399. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116632. Acesso em: 3 mar. 2020.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
153
Outras provas (biográficas)
Aos 30 anos de idade, às vésperas do matrimônio com Carolina Augusta, com quem
se casaria em novembro daquele mesmo ano de 1869, e com alguns problemas financeiros,
como provam as cartas que chegou a enviar a amigos pedindo dinheiro emprestado, Machado
de Assis teria assumido o pseudônimo do Dr. Semana também com este intuito: para ter
uma fonte extra de renda. De acordo com os biógrafos, na ocasião o escritor contava com
um emprego modesto de ajudante do diretor no Diário Oficial e com colaborações esparsas
em outro periódico, o Jornal das Famílias. De acordo com Lúcia Miguel Pereira, o diretor da
Semana Ilustrada, Henrique Fleiuss, amigo de Machado, “homem generoso e serviçal”, foi
quem deu de presente ao escritor o seu enxoval (PEREIRA, 1955, p. 116).
O novo nome da coluna também delimitava um assunto caríssimo ao cronista Machado
de Assis: a política. De 1860 a 1861, aos vinte e poucos anos de idade, o escritor atuou como
uma espécie de repórter de política do Diário do Rio de Janeiro, quando assistia às sessões
tanto do Senado quanto da Câmara. A política era, portanto, um assunto que conhecia bem.
Mas uma das grandes novidades das “Badaladas”, de acordo com a organizadora do volume,
consiste na “perspectiva satírica que o escritor imprime àqueles temas, em consonância com
o perfil da Semana Ilustrada” (AZEVEDO, 2019, p. 20), mais livre e humorístico.
E Machado não tratou apenas de política durante os sete anos que teria permanecido
como colunista da Semana Ilustrada. Em busca de novos temas, o colunista trata também
das polêmicas em torno da maçonaria com a Igreja Católica, de espiritismo, da “epidemia
de poetas que assola o Brasil” (AZEVEDO, 2019, p. 48), do preço do caixão para defuntos,
faz charadas diversas, crítica aos curandeiros, trata dos loucos da cidade, dos “correios
amatórios” (como era chamada a moda de os namorados se corresponderem pelos jornais),
ironiza anúncios publicitários absurdos e chega até mesmo, em crônica de 9 de maio de 1875,
já quase no fim da história da revista, a escrever um poema sem nenhum sentido sobre uma
“mulher tricéfala” vista na rua do Ouvidor, conforme se lê nos primeiros versos:
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Para complicar a história, o próprio Machado de Assis chegou a ser ironizado pelo
Dr. Semana, em seus exercícios hilários de “crítica literária às avessas”, quando se dedicava
a tecer intermináveis elogios a textos literários de péssima qualidade6. Na coluna de 29 de
setembro de 1872, ele lembra do tempo em que o “amigo íntimo, íntimo” – assim se refere a
Machado de Assis – cometia também uma “obra que [...] ressente-se do entusiasmo nebuloso
e palavroso”, e analisa verso por verso o poema “A Um Proscrito” que, segunda nota de Sílvia
Maria Azevedo, foi publicado originalmente em O Espelho na edição de 18 de setembro de
1859, ou seja, trata-se de um poema juvenil de Machado. Após Dr. Semana reconhecer que “lá
se vão uns bons quatorze anos, justamente o tempo necessário para ter nascido um menino,
mamado, mudado os dentes, jogado o pião, frequentado a escola e entrado no colégio de
Pedro II”, tempo durante o qual “fez-se a guerra da Itália, a do México, a da Dinamarca, a
da Abissínia e muitas outras” (ASSIS, 2019, p. 786), o colunista passa a ironizar os versos
de Machado. Diz que “há nos versos que desencavei agora [...] matéria para enforcar um
homem”, com eles “podia-se fazer um enterro de segunda classe”, que imaginava o poeta
“que a política é um conto de cavalaria”, e termina por pedir desculpas ao escritor: “espero
que meu amigo me perdoe a notícia que acabo de dar aos leitores” (ASSIS, 2019, p. 786–788).
Finalmente, termina por classificar a poesia como “nebulosa e retumbante”... epítetos que
nos serviriam para dar uma definição sumária dessas “Badaladas” de Machado de Assis.
ROSA, V. “Nebulous and Resounding”: Notes on the Badaladas do Dr. Semana. Olho d’água,
São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 147-156, 2020. ISSN 2177-3807.
Referências
AZEVEDO, Silvia Maria. “Machado de Assis e as Badaladas do Dr. Semana”. In: MACHADO
DE ASSIS, J. M. Badaladas do Dr. Semana. Organização, apresentação e notas de Maria Silvia
Azevedo. São Paulo: Nankin Editorial, 2019. v. 1.
GRANJA, Lúcia. Das páginas dos jornais aos gabinetes de leitura: rumos dos estudos sobre
as crônicas de Machado de Assis. Teresa, São Paulo, n. 6–7, 2005, p. 385–399. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116632. Acesso em: 18 mar. 2020.
6
Magalhães Júnior dedica um capítulo de sua biografia ao gênero de “crítica às avessas” que Machado desenvolveu,
e que teria desenvolvido justamente nas páginas da Semana Ilustrada: “Já investido no primado da crítica, Machado
de Assis escreveu uma série de artigos sobre alguns livros extremamente ruins, fazendo em tom chocarreiro os
mais desmedidos elogios a seus quatro autores. Coberto por três pseudônimos, nessas páginas jocosas fingia estar
encantado com a leitura de tais livros. A cada um desses autores dedicou vários artigos. Como essas gaiatices
literárias foram escritas num período de apenas seis meses, é lícito concluir que estava ensaiando maliciosamente
um gênero novo, humorístico, de crítica às avessas, que consistia em louvar exageradamente o que era ruim ou
péssimo. Mas sempre com a transcrição de excertos que permitissem ao leitor formar o seu próprio juízo e, portanto,
compreender que as tiradas elogiosas – primeiro de Gil e, mais tarde, do Dr. Semana e de Lara – não passavam de
enormes gozações nos infelizes escrevinhadores de tais monstruosidades literárias” (MAGALHÃES, 2008, p. 106).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
155
JUNIOR, Raimundo Magalhães. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981. 4 v.
______. Badaladas do Dr. Semana. Organização, apresentação e notas de Maria Silvia Azevedo.
São Paulo: Nankin Editorial, 2019. 2 v.
PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Rio de Janeiro: José Olympio,
1955.
SOUSA, J. G. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Inst. Nacional do Livro, 1955.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Suspensão do espaço-tempo no conto
“Morangos mofados”, de Caio Fernando Abreu
E L I O E N A I D O S S A N T O S P I O V E Z A N *1
RESUMO: A crise na literatura não é lugar de situação insolúvel. É, antes, um estado de desequilíbrio
necessário para que uma obra seja uma obra. Um terreno ou interregno onde os pés não pisam
o chão e o abismo convida a um mergulho que não precisa ter fim. Aliás, a queda parece ser o
mais interessante do que a chegada ao fundo. É nesse entremeio de espaço e tempo, abismo e
esquecimento, que “Morangos mofados”, do escritor Caio Fernando Abreu, se nos apresenta como
obra inacabada e lugar de passagem. Esperamos, portanto, neste artigo discutir aspectos do conto
homônimo à obra e de como Abreu desencadeia frenética e desmesuradamente um eu afetado,
e rege com maestria uma trama narrativo-musical, cujo andamento segue o ritmo de emoções
construídas às vezes com lucidez delirante; outras, com monólogos subliminares, que revela um
narrador que mescla simultaneamente protagonista, personagens e narratário. Assim, nosso olhar
recebe a luz de Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996), Agamben (2007), Bakhtin
(2011) e Reis (2018) e busca compreender a crise da narrativa como travessia que não se completa,
como leitura que expande sentidos, sem nunca se fechar.
ABSTRACT: The crisis in literature is not a place of insoluble situation. It is rather a state of
imbalance necessary for a work to be a work. A terrain or interregnum where the feet do not
tread the ground and the abyss invites a dive that does not have to end. In fact, the fall seems to
be more interesting than the arrival at the bottom. It is in this intersection of space and time,
abyss and oblivion, that “Morangos mofados”, by the writer Caio Fernando Abreu, presents us
as an unfinished work and place of passage. We hope, therefore, in this article to discuss aspects
of the homonym tale to the work and of how Abreu frantically and exaggeratedly triggers an
affected self, and rules masterfully a narrative-musical plot, whose progress follows the rhythm of
emotions sometimes constructed with delirious lucidity; others, with sublime monologues, which
reveals a narrator who mixes simultaneously protagonist, characters and narratary. Thus, our
view receives the light of Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996), Agamben (2007),
Bakhtin (2011) and Reis (2018) and seeks to understand the crisis of the narrative as a crossing that
is not complete, as reading that expands without ever closing.
KEYWORDS: Caio Fernando Abreu; Morangos mofados, Narrative in crisis; Storyteller; Tale.
A narrativa na contemporaneidade
O narrador e o narratário
O narrador, segundo Reis (2018), “é, de fato, uma invenção do autor. Este pode, por
isso, projetar sobre o narrador [...] convicções e atitudes ideológicas, éticas ou culturais que
dá a conhecer em textos pragmáticos, em intervenções críticas, em polêmicas etc.” (REIS,
2018, p. 288). Trata-se ainda da “entidade central na análise da narrativa”, pois goza de uma
posição discursiva (sendo uma ou várias vozes) prevalecente (REIS, 2018, p. 290). Tendo
Genette (1972) por referência, Reis (2018) apresenta três tipos de narrador: autodiegético,
heterodiegético e homodiegético.
O narrador autodiegético é o protagonista, “entidade que relata as suas próprias
experiências como personagem central da história” (REIS, 2018, p. 294), sendo ainda um
“sujeito cindido” no centro da fratura que existe entre o eu da história (acontecimentos
como objetos da narração) e o eu da narração (mundo literário) o que acaba por apresentar
“ressonâncias autobiográficas” (REIS, 2018, p. 294). Ressalta-se que a relação do autor e sua
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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obra, como interferente na atuação do narrador, não é consenso. Mesmo no interior da
crítica literária, verificamos, no tocante ao autor e seu estilo narrativo, a existência de diversas
correntes, que remontam a conceitos apresentados por Bakhtin, Foucault, Barthes, Blanchot
e Agamben. Aqui recorremos a três correntes apontadas por Possenti (1993): a corrente
“psicologizante”, que exigiria uma necessária “teoria da subjetividade”, buscada geralmente
na psicanálise; a corrente “sociologizante”, em que haveria a necessidade de conhecer as
“condições de produção” das obras literárias; e a corrente “formalista”, que operaria sobre
o “material especificamente linguístico”, mobilizando tais recursos expressivos tanto para a
“expressão do sujeito” quanto para a “compatibilização da produção com os tempos e seus
rigores de coerção” (POSSENTI, 1993, p. 153).
Já para Agamben (2007), que faz uma profunda análise sobre o artigo de Michel
Foucault (1967), “O que é um autor?” e discursos daí decorrentes, “a função-autor aparece
como processo de subjetivação mediante o qual um indivíduo é identificado e constituído
como autor de um certo corpus de textos” (AGAMBEN, 2007, p. 52). Há concordância sobre
a existência de um sujeito-autor, mas este só “se atesta unicamente por meio dos sinais da
sua ausência” (AGAMBEN, 2007, p. 52) e esta ausência faz com que o autor seja a simples
“testemunha, o fiador da própria falta na obra em que foi jogado” (AGAMBEN, 2007, p. 57).
E finaliza que, por isso,
Para este artigo, consideraremos a ideia de que “uma subjetividade produz-se onde
o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um
gesto a própria irredutibilidade a ela” (AGAMBEN, 2007, p. 58). Mas não se reduzir a uma
subjetividade não significa a sua anulação completa no texto. Ficamos com o gesto do autor,
como um sujeito disperso, deslocado, fragmentado, estilhaçado, porém, que deixa pistas no
texto, verificado principalmente se considerarmos o estilo de um autor como individuação,
que revela sempre diferenças (GRANGER, 1960 apud POSSENTI, 1993, p. 179). Dessa
forma, o conto “Morangos mofados” possui as características de uma narrativa em crise,
com um sujeito que narra em diferentes planos narrativos, mas que deixa pistas da autoria,
como as preferências do autor-pessoa por músicas e leituras, sua orientação sexual e seu
estilo ácido e cinematográfico de linguagem.
Retomando os tipos de narrador, temos o heterodiegético que “relata uma história
à qual é estranho”, pois não integra a cena literária como personagem, atua antes numa
posição de alteridade e ao mesmo tempo como “um demiurgo em relação à história que
conta” (REIS, 2018, p. 296). Por isso, é comum encontrarmos esse tipo de narrador
assumindo um foco na terceira pessoa. O narrador onisciente parece ser o mais apreciado
pelo leitor comum, pois não lhe faz grandes exigências nem o convida a grandes mergulhos.
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162
Tudo fica num plano altamente esclarecido e confortavelmente antecipado, analisado,
descrito, resolvido.
Por fim, há o narrador homodiegético que “relata uma história em que ele mesmo
participou, como personagem” (GENETTE, 1972, p. 252 apud REIS, 2018, p. 297). Ele não
é o protagonista, mas “uma figura secundária, quer numa posição distanciada, quer muito
próxima e solidária com ele” (REIS, 2018, p. 297). Pode ocorrer ainda um nível hipodiegético
de narrador em que uma personagem se faz narratário de um relato. Em “Morangos mofados”,
há momentos em que o narrador funde todos os papéis. O narratário mescla-se à narrativa,
surge repentinamente num entreato, em meio ao fluxo de ações que desdobra na descrição
do narrador, no pensamento do protagonista, no comportamento de uma personagem e
nas considerações do narratário. Em sobreposições, recortes, intervenções, em cenários e
situações que exalam delírios surrealistas.
O narratário, dessa forma, pode ser compreendido como o “o destinatário do discurso
do narrador, constituindo, nesse sentido, uma entidade inerente à narrativa e, como tal,
assumindo uma dimensão puramente textual” (REIS, 2018, p. 298). Assim como se dá a
distinção entre autor/narrador, o narratário se diferencia também do leitor real da narrativa.
Daí decorre uma dificuldade de identificar sua presença ou participação no texto, pois nem
sempre é “explicitamente mencionado” pelo narrador (REIS, 2018, p. 299).
Retomando o conceito de narrador hipodiegético, temos, segundo Reis (2018),
“num caso extremo, narrador e narratário convergem numa única figura, episodicamente
desdobrada: no monólogo interior, o narrador assume-se como destinatário imediato de
reflexões anunciadas na privacidade de sua corrente de consciência” (REIS, 2018, p. 300).
Obviamente que “Morangos mofados” não é um monólogo interior, mas sua construção
altamente crítica utiliza esse recurso de modo amplo por se tratar de uma narrativa
predominantemente psicológica. Isso é perceptível pelas poucas descrições de cenários e
dos deslocamentos espaciais. A mente do protagonista transita do consultório médico ao
apartamento sem perder o enredo que aborda a condição humana. O corpo e a materialidade
parecem em segundo plano. As memórias do protagonista desfilam sempre com considerações
cruas, senão chulas, que apresentam uma personagem, tendo como cúmplice o narrador,
presa ao presente e ao passado concomitantemente.
Após essa breve abordagem teórica dos estudos literários, propomo-nos a verificar no
conto “Morangos mofados” como se constituem e se relacionam o narrador, o narratário
e as demais personagens, em uma narrativa em crise, uma vez que explora o tempo não-
cronológico e subverte noções de espaço. Assim, a partir dos conceitos ora revisados até aqui,
como o sujeito discursivo, a narrativa em crise (pela cisão e fragmentação das relações sujeito,
tempo e espaço) e de posições e níveis narrativos conflitantes e dispersos na construção do
conto, tencionamos constatar o valor literário da obra em que há um “estado de desequilíbrio
necessário” uma vez que escapa às convenções das formas narrativas tradicionais que buscam
soluções fáceis para um público pouco exigente e propenso a uma catarse esperada como
ocorre com muitos best-sellers.
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Diálogo entre expressão musical e arte literária
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era
dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por
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exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-
se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas é-o-final-que-importa (ABREU,
2015, p. 201 – grifos nossos).
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações
sociopolítico-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria
Motivada Pela Paranoia dos Grandes Centros Urbanos, cara bem-
barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa vez disse que os
médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade constante com a carne
humana, considerou), e este? (ABREU, 2015, 203 – grifos nossos).
Nesse trecho, quem diz “cara de próteses perfeitas”? Quem diz “uma puta certa vez
disse...”? Quem pergunta “e este?”? O narrador esteve com (ou ouviu de) uma prostituta sobre
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“médicos tarados”? O narrador é do tipo heterodiegético, homodiegético ou autodiegético;
ou participa da narrativa em nível homodiegético (REIS, 2018, p. 297)? A ambiguidade
parece ser a chave, mas não sem causar desequilíbrio e oferecer um abismo de possibilidades.
Temos ainda que “a tentativa de reproduzir este fluxo da consciência – com sua fusão dos
níveis temporais – leva à radicalização extrema do monólogo interior” (ROSENFELD, 1996,
p. 83). Tal efeito, como já dissemos, é recorrente em todo o conto de Abreu: parece um
monólogo em que as personagens se revezam para exprimirem pensamentos em tempos
desconhecidos ou dispersos, importando mais o impacto de suas revelações do que tentar
situá-las em algum lugar da cena montada.
Esse processo de desconstrução, concordando com Rosenfeld (1996),
não só modifica a estrutura do romance, mas até a da frase que, ao colher o denso
tecido das associações com sua carga de emoções, se estende, decompõe e amorfiza
ao extremo, confundindo e misturando, como no próprio fluxo da consciência,
fragmentos atuais de objetos ou pessoas presentes e agora percebidos com
desejos e angústias abarcando o futuro ou ainda experiências vividas há muito
tempo e se impondo talvez com forma e realidade maiores do que as percepções
‘reais’. A narração torna-se assim padrão plano em cujas linhas se funde, como
simultaneidade, a distensão temporal (ROSENFELD, 1996, p. 83).
1
Canção que possui apenas quatro versos: “Tudo é uma questão de manter / A mente quieta / A espinha ereta /
E o coração tranquilo” (1978).
2
Os movimentos cardíacos, conhecido como ciclo cardíaco, são a sístole e a diástole. A contração ventricular é
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e três” e a sequência de pontos ou reticências múltiplas, conotando o tempo ou a própria
respiração solicitada pelo médico.
Na terceira parte do conto, o título Adagio sostenuto é a expressão musical de andamento
lento e persistente. O termo adagio deriva de "ad agio", que significa “comodamente”
(WIKIPEDIA, 2019), e sustenuto, que significa “executado lentamente”, “sustentado”
(HOUAISS, 2019). No plano narrativo, após o diálogo com o médico, o protagonista busca,
agora em seu apartamento, uma forma de passar o tempo que se arrasta, justificando-se
assim a lentidão teimosa de um adagio sostenuto. Nota-se que Abreu não explora o espaço
físico das cenas. O seu espaço é o da própria narrativa, o “espaço diegético” (REIS, 2018),
onde se apresentam particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor. O “tempo
diegético” (REIS, 2018) é tomado pela introspecção, busca de explicações com retornos
constantes a experiências passadas, como um ser totalizante, feito de todos os tempos pari
passu. As ações se dão em forma de desejos, insinuações e sexualidade.
Nesse sentido, as ações subsequentes sugerem que o protagonista começa a se masturbar:
[...] quis então como antigamente ouvir outra vez os Beatles, mas ainda na
cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos [...] Acariciou o pau
murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível
de apartamento de homem solteiro [...] precisava inventar um dia inteiro ou
dois [...] enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda
desgrenhada de violinos, Wagner, supôs [...], e com a outra acariciava o pau
começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis (ABREU,
2015, p. 205-207 – grifos nossos).
[...] juntas nodosas [das mãos] [a] revelando angústia & sensibilidade, como
diria Alice, [a][b] mas Alice foi embora faz tempo, [b] a cadela que eu até
comia direitinho, estimulando o clitóris comme il faut, [c] não é assim que
se faz que se (ABREU, 2015, p. 206 – grifos nossos).
Aqui, ao mesmo tempo em que faz referência à astrologia [a] em “revelando angústia
& sensibilidade”, o narrador se interpenetra no protagonista em [a][b] “mas Alice foi embora
faz tempo” e, em seguida, o protagonista explícito [b] “...que eu...” e “estimulando o clitóris
comme il faut” (em francês “como deveria”) e na personagem Alice (interlocutora) distante
conhecida como sístole e nela ocorre o esvaziamento dos ventrículos. O relaxamento ventricular é conhecido
como diástole e é nessa fase que os ventrículos recebem sangue dos átrios (SOBIOLOGIA, 2019).
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no tempo e no espaço [c] em “não é assim que se faz que se”. A interrupção da oração é a
própria interrupção do pensamento, construído por sobreposições de frases com imagens
difusas. Assim, de acordo com Rosenfeld (1996), como efeito dessa forma de narração
temos “o intermediário que desaparece ou se omite”, uma vez que o narrador apresenta a
personagem no “distanciamento gramatical do pronome da terceira pessoa ‘ele’ ou ‘ela’ e da
voz do passado” (ROSENFELD, 1996, p. 83).
Vemos ainda que a consciência de Alice, uma personagem distante, apenas figurante da
memória do protagonista, “passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato
presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance” (ROSENFELD,
1996, p. 83-84 – grifo do autor): “não é assim que se faz que se”. Consequentemente, além
das formas de tempo e espaço, desaparecem também as categorias da causalidade e seu
encadeamento lógico de motivos e situações, com seu início, meio e fim, bem como o enredo
e a personagem convencionais.
Em meio ao ato sexual solitário, há pensamentos, devaneios, vertigens, e, em seguida,
o vômito. Novamente, ação e pensamento se mesclam:
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até
o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho,
onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas
as caixas d’água de todas as cidades [...] (ABREU, 2015, p. 207 – grifo nosso).
Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava
Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais
do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday3 em pé na escada entre
paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no
topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you´ve
changed, baby oh baby, you´ve changed so much”, estendeu a mão para socorrer
John Lennon [...] (ABREU, 2015, p. 208-209 – grifos nossos).
3
Billie Holiday (1915-1959): cantora e compositora norte-americana de jazz.
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A sequência é construída a partir de contradições semânticas (“cemitérios sem túmulos”,
“degraus subindo para o nada”), contraposições frasais (“com Billie no topo decepada, solta
no espaço de escombros”) e visões surreais (“estendeu a mão para socorrer John Lennon”).
Ambiguidades lançam o leitor ao abismo de sentidos em que não importa mais tentar
interpretar o texto, mas simplesmente deixá-lo fluir. Não há controle, nunca houve, é a
travessia de Ulisses da qual nos fala Blanchot (2005) em meio ao canto das Sereias. Não
se trata de querer chegar ao fim e declarar o desfecho heroico, mas de se deixar cair, de
experimentar o irreal, a combinação impossível, o não-dizer.
No plano da narrativa, parece ser uma descida a camadas do texto, como as águas do
mar que vão ficando frias à medida que se mergulha, em que o narrador revela o tratamento
psiquiátrico a que o protagonista vinha se submetendo. Repitamos: narrador, protagonista
e narratário são cúmplices na extensa descrição-ação-pensamento. De outro modo, como
explica Rosenfeld (1996), a “desrealização” pressupõe que a personalidade individual carecia
de “desfazer-se”, tornando-se abstrata no processo de “eterno retorno”, para revelar as
“configurações arquetípicas do ser humano”, que são “intemporais como é intemporal o
‘tempo mítico’ que, longe de ser linear e progressivo (como é o tempo judaico-cristão), é
circular, voltando sobre si mesmo” (ROSENFELD, 1996, P. 89). Esse efeito de circularidade,
portanto, é explorado ao extremo no conto de Abreu.
O parágrafo termina com uma referência a diversas escolas ou formas de tratamento
da psicologia em: “Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana jungiana reichiana rankiana
rogeriana gestáltica. E mofo de morangos” (ABREU, 2015, p. 209).
Da relação de escolas de psicologia, colhemos: Melanie Klein (1882-1960), psiquiatra
austríaca que se especializou na mente infantil; Carl Jung (1875-1961), psicanalista suíço,
fundador da psicologia analítica; Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista austríaco; Carl
Rogers (1902-1987), psicanalista estadunidense (Abordagem Centrada na Pessoa) e Gestalt
(doutrina) ou gestalt-terapia, modelo psicoterápico com ênfase na responsabilidade de
si mesmo. Apesar de toda intervenção científica, no final, repercute uma frase verbal
para mostrar a ineficácia dos anos de análises: “E mofo de morangos”, ou seja, o “mofo”
continuava presente.
A última parte do conto é Minueto e rondó, com dupla acepção, sendo o minueto “dança
de passos miúdos” (menus), caracterizada pela delicadeza dos movimentos (WIKIPEDIA,
2019); e rondó, termo surgido em 1858 que, na sonata e na sinfonia clássicas, é uma “peça
brilhante que serve de movimento final, caracterizada pela repetição de uma frase musical
(refrão) entre os couplets” (HOUAISS, 2019).
A delicadeza está presente no recurso da autocorreção, em que o narrador explicita
uma intervenção metanarrativa: “Amanhecia, não havia ninguém na rua. // Não, foi assim:
debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima [...]” (ABREU, 2015, p. 210 – grifos nossos).
Há uma certa leveza nos parágrafos seguintes que condiz com a delicadeza de um
minueto. Inclusive, o narrador começa a introduzir personagens imaginárias, cuja existência
tenta justificar: “Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente
e finalmente apertou o botão? [...] Sabia que não” (ABREU, 2015, p. 210 – grifos nossos).
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Já no movimento do rondó, há o clímax que parece ocorrer em duas frentes, ambíguas,
uma no plano concreto: a ejaculação como êxtase físico do protagonista; e outra no plano
abstrato: a sublimação como êxtase da alma do protagonista. Ele se vê barroco, com sua
“cornucópia4”, e depois bizantino, com “ouro sobre azul”, e, por fim, gótico, em sua “magreza
mística”. Geme e se torce e revela o inesperado: “Poderia talvez ser internado no próximo
minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração
da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido” (ABREU, 2015 p. 208-209).
Em meio ao êxtase, o protagonista parece atingir um outro nível de sensibilidade
humana, alinhando-se à obra que menciona: A sagração da primavera, de Igor Stravinski5
(1913). A música como meio de libertação associada ao sexo, como eros, princípio de vida.
O protagonista, teimosamente, não recorre ao tango argentino, mas à música orquestral
anticlássica e moderna, repleta de dissonâncias e assimetrias. A vida torta, imperfeita,
mofada, agora renovada, porém inacabada, potência do que está por vir, mesmo porque não
sabemos nem podemos afirmar ao certo se o desfecho ocorre no plano físico ou emocional.
E conclui o narrador:
Considerações finais
Referências
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www.letras.mus.br/the-beatles/186/traducao.html. Acesso em: 25 jun. 2019.
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ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ___. Texto/contexto I. 5. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 75–97.
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Remodelações da poética romanesca em
Cachalote: um estudo de caso para apreensão do
romance gráfico
RESUMO: Este trabalho investiga possíveis remodelações do gênero romance no gênero romance
gráfico. Unindo a metodologia bibliográfica ao estudo de caso, relaciona-se, primeiro, uma forma
de conceber o romance, de linhagem marxista, dada por autores como Georg Lukács, Walter
Benjamin, Theodor Adorno e Lucien Goldmann, com o histórico de surgimento e de consolidação
do termo romance gráfico. Em seguida, analisa-se a obra Cachalote, de Daniel Galera e Rafael
Coutinho. Com esse trabalho, percebe-se a forma do romance gráfico como expressão, no interior
da arte sequencial, de um desalento típico do indivíduo moderno imerso no mundo capitalista.
Através de estratégias multimodais, Cachalote associa-se com a fragmentação e a individualização
comuns ao romance.
ABSTRACT: This paper studies how a graphic novel redesigns some aspects of the novel.
Combining a bibliographic research and a case of study, this paper, first, compares a specific view
of the novel, as developed by authors as Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno and
Lucien Goldmann, with the emergence and consolidation history of the graphic novel. After
that, the work Cachalote, by Daniel Galera and by Rafael Coutinho, is analyzed. The reflections
made in this research show how the graphic novel can be seen as a way of expression, inside
the sequential arts, for dealing with an emptiness that is typical of the modern capitalist world.
Through multimodal strategies, Cachalote recollects the fragmentation and the individualization
that are common to the novel.
KEYWORDS: Cachalote; Daniel Galera; Graphic novel; Novel; Poetics; Rafael Coutinho;
Sequential arts.
* Graduado em Letras Português-Inglês – Instituto de Letras e Artes – Universidade Federal do Rio Grande –
96203-900 – Rio Grande – RS – Brasil. E-mail: lucasgarci4@gmail.com
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Objetos relativamente estáveis
Um trabalho como este, que pretende observar e descrever aspectos relativos a gêneros
específicos da expressão pela linguagem, necessita ter como ponto de partida a consciência
da maleabilidade dessas formas composicionais. Afinal, não é por acaso que Mikhail Bakhtin
define os gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,
2011, p. 262) e não apenas como tipos estáveis de enunciação, visto que – apesar de ser
possível, sim, construir sistematizações para os diversos usos da língua – existe sempre algo
de imprevisível na expressão linguística humana, por ser essa produto de uma estrutura
viva, em transformação. Além disso, não apenas cada manifestação da língua constrói-
se em contextos histórico-sociais variados, que delimitam possibilidades situadas de uso,
como também os indivíduos se comunicam a partir de suas individualidades, que, mesmo
atravessadas pelo outro, sempre formam um ponto de vista singular sobre o mundo – o que
acarreta na preferência, pelo filósofo russo, do modificador que relativiza a questão.
No que tange à literatura, então, Bakhtin mostra-se ainda mais preocupado em enfatizar
o quão constante é o fluxo de transformações dessas formas de expressão. Comenta, por
exemplo, como os gêneros da ficção são aqueles mais propícios para a singularidade: nesse
grupo, “o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado, é um de seus
objetivos principais” (BAKHTIN, 2011, p. 265), o que acarreta em um sistema complexo
de estilos de linguagem, em que “o peso específico desses estilos e sua inter- relação no
sistema da linguagem literária estão em mudança permanente” (BAKHTIN, 2011, p. 267).
À luz disso, é possível enxergar mais claramente o porquê de um gênero como o romance,
mesmo sendo um objeto passível de ser mapeado em categorias recorrentes, é tão diverso em
suas manifestações, possibilitando escritas de vertentes das mais variadas e alcançando uma
massa bastante heterogênea de leitores.
Com as palavras de Bakhtin em mente, este trabalho, que se propõe a cotejar o gênero
romance e o gênero romance gráfico (graphic novel), encontra uma justificativa para suas
análises. Por entender a literatura a partir da perspectiva dada, ou seja, como um sistema
vivo (em modificação e em diálogo entre suas formas constituintes), por ser um sistema
produto da linguagem, esta pesquisa encontra validade no movimento de aproximar dois
gêneros de matriz semelhante (no que tange ao universo da narrativa) e, após uma análise
criteriosa e calcada em um estudo de caso, visa propor algumas possíveis considerações
sobre a natureza do gênero ao qual pertence a obra em foco. Essa explanação metodológica
é importante devido à necessidade, cada vez mais emergente, nas áreas relativas aos estudos
literários, de legitimar formas estéticas não privilegiadas pelo cânone; objetivo que se
pretende concretizar com a demonstração de como a narrativa em quadros é, sim, passível
de ser aproximada produtivamente de categorias literárias que já transitam há mais tempo
nos meios acadêmicos. Além disso, a partir das ideias de Bakhtin, leva-se em conta, também,
que todos esses propósitos não podem se desviar do fato de que os gêneros literários não
devem ser sufocados por sistematizações formais muito especificamente delimitadas, devido
à sua maleabilidade inerente.
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Em termos mais específicos, para o propósito geral de entender algumas remodelações
da poética romanesca no romance gráfico, limita-se o estudo aqui proposto a uma obra:
Cachalote, roteirizada por Daniel Galera e ilustrada por Rafael Coutinho. Para isso, inicia-se
com um breve histórico do termo graphic novel (seu surgimento e algumas de suas implicações),
para que então o associe com alguns estudos realizados sobre o romance, visando dar começo
ao aproximar dos dois gêneros, em um processo que culmina na análise da obra citada. Por
fim, na abordagem de Cachalote, apontam-se elementos do livro que possibilitam descrever
como se dá o diálogo entre essa narrativa em quadros contemporânea e a concepção dada
para o romance por alguns autores que seguem uma vertente teórica similar, com um olhar
marcadamente social e ligado com premissas marxistas, como os de Georg Lukács, Walter
Benjamin, Lucien Goldmann e Theodor Adorno – um recorte teórico direcionado que leva
em conta que não se pode acolher todas as discussões já feitas sobre o romance, um objeto
de tão múltipla definição.
É importante destacar, ainda, que a análise de Cachalote aqui proposta visa não se
desviar da especificidade estética da obra em questão. Afinal, sendo o objeto de estudo um
romance gráfico, não se pode, obviamente, relevar a parcela visual de sua natureza, que deve
ser pensada em consonância com a parte verbal da totalidade textual. Portanto, partindo de
categorias e contribuições teóricas que foram pensadas para outro gênero – o romance – que
não compartilha de tais particularidades, faz-se necessário reinterpretar os elementos dados
pela revisão teórica em prol de compreender como esses podem ser percebidos através da
particularidade multimodal do romance gráfico.
O romance gráfico
Para iniciar este trabalho, busca-se desenvolver um breve histórico do gênero romance
gráfico e refletir sobre algumas das implicações dessa terminologia. Para tal, leva-se em conta
o processo de desenvolvimento dos quadrinhos estadunidenses, por ser esse o responsável
pela criação e consolidação do termo graphic novel, que se difundiu para outros países, como
o Brasil, por exemplo. Esse processo foi descrito pelo pesquisador Chris Couch, em artigo
publicado no periódico Image & Narrative, em que o autor ressalta o papel primordial das
bancas de jornais no fomento de uma produção e de um público leitor relativo ao universo
das narrativas em quadros, que resultaria, no século XX, na concepção de romance gráfico:
“Nos Estados Unidos, o romance gráfico é visto como o descendente da revista-panfleto em
quadrinhos, publicada para ser vendida nas bancas de revistas” (COUCH, 2000, s/p.)1.
O autor explicita que com a Grande Depressão, a venda dos jornais diminuiu e, como
consequência disso, a ideia de produzir histórias em quadrinhos em forma de panfleto
(inicialmente apenas antologias, distribuídas como brinde, de tiras já publicadas em jornais)
serviu como medida para incentivar o consumo. No entanto, o que começou como uma
1
No original: “In the United States, the graphic novel is viewed as the descendant of the pamphlet- form comic
book, published for sale on newsstands” (COUCH, 2000, s/p.).
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simples medida para manter o número de vendas das bancas, tornou-se, aos poucos, um
grande sucesso, o que estimulou a produção de novas histórias gráficas para serem compiladas
e vendidas (COUCH, 2000, s/p.).
Nesse mesmo movimento comercial, logo os quadrinhos de super-herói, na década
de 1930, começaram a se desenvolver, constituindo um nicho editorial diretamente ligado
a um público leitor mais popular e, muitas das vezes, infanto-juvenil. Como explicita
a professora e pesquisadora Ermelinda Maria Araújo Ferreira, para que os quadrinhos
alcançassem “as prateleiras de livrarias especializadas, em publicações primorosas, bem
produzidas, com conteúdos críticos e inegável qualidade estética” (FERREIRA, 2012, p. 1),
essa arte precisou, primeiro, transitar entre os “redutos tradicionalmente ligados à cultura de
massa” (FERREIRA, 2012, p. 1), como o ambiente dos jornais, por exemplo – o que, dadas as
devidas proporções, não está tão distante do processo de consolidação do romance, que foi
um gênero que formou um público leitor através da imprensa, quando publicado em forma
de folhetim, até que se consolidasse um grupo de leitores economicamente relevante para
movimentar um mercado editorial e, também, suficiente para receber narrativas de maior
densidade estética.
Provavelmente como herança desses primórdios do percurso das histórias em
quadrinhos, dá-se o preconceito com este tipo de narrativa, responsável por enquadrá-
la como uma categoria menor no campo da literatura, ou, no mínimo, é devido a essa
identificação inicial das HQs com a cultura popular que muitos ignoram a diversidade, em
conteúdo e forma, das obras que fazem parte desse vasto grupo de obras estéticas. Sabe-
se que a arte, por muito tempo, foi um capital concedido a um grupo bastante seleto de
indivíduos e, de certa forma, como resultado disso, ainda se constata no presente a existência
de acadêmicos que confundem o estudo rigoroso do objeto estético (seja por qual viés for)
com um criticismo barato, cheio de julgamentos mais opinativos do que embasados em
análise conveniente a uma reflexão acadêmica. Dessa forma, perpetua-se, muitas vezes, o
repúdio àquelas produções que se vincularam a um público que extrapola as fronteiras que
tentam limitar a cultura e suas múltiplas manifestações – reflexão que cabe ao objeto de
estudo deste trabalho. Na verdade, é exatamente em razão do esforço de inserir as narrativas
gráficas dentro dos espaços de prestígio que o termo graphic novel surgiu: como uma forma
de demonstrar que não só os quadrinhos dialogavam com a cultura popular e de massa como,
também, poderiam transitar por lugares mais legitimados da cultura.
Esses discursos são vistos, por exemplo, no artigo de opinião de Richard Kyle,
intitulado “The future of ‘Comics’”, publicado em 1964 em uma revista direcionada ao mundo
dos quadrinhos, o qual foi provavelmente um dos primeiros textos a se utilizarem do termo
“graphic novel” para se referir às narrativas em quadrinhos. Apesar de o autor aparentar ser um
entusiasta dos chamados comic books, chama a atenção a forma pejorativa como ele enxerga
as histórias assim classificadas. Elas são sempre pensadas em contraste com as exceções
emergentes (do momento de escrita) que apontam, a seu ver, para uma nova forma, mais
madura, da narrativa em quadros – o que ele denomina romance gráfico:
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Hoje, há sinais de que as ‘histórias em quadrinhos’ estão, final e permanentemente,
prestes a romper com o seu isolamento solitário como uma forma trivial de sub-
literatura para crianças atrasadas como nós e a ocupar o seu lugar no espectro
literário […], quando você me ver usando os termos ‘história gráfica’ e ‘romance
gráfico’ para descrever as ‘tiras em quadrinhos’ artisticamente sérias, vocês
saberão, então, o que quero dizer (KYLE, 1964, p. 3-4 – tradução nossa)2.
Essa previsão mostrou-se certeira, como confirma a publicação da obra de Will Eisner,
em 1978, A contract with God, que foi uma das primeiras produções intencionalmente publicadas
sob a etiqueta de romance gráfico e que ajudou a impulsionar, devido à importância de seu
autor já na época de publicação da citada obra, o termo em foco. Como nos ressalta Couch,
Eisner, após um período de afastamento da indústria de quadrinhos, calcada principalmente
no leitor popular, retorna com o ímpeto de publicar algo diferente do que havia sido feito até
então no mundo das narrativas em quadros, algo com maior extensão e com uma estrutura
inovadora em sua forma de contar e em sua abertura para um temário mais denso:
Sem dúvida, as implicações da obra de Will Eisner, mesmo que essa não seja objeto
de descrição neste trabalho, merecem ser ressaltadas. Afinal, é a partir de suas produções
que os autores de quadrinhos depararam-se, definitivamente, com um espaço de expressão
mais legitimado para alcançar o percurso já consagrado da literatura, ascendendo às
grandes editoras e ganhando um tratamento editoral mais bem conceituado socialmente,
ao alcançarem o formato de livros. Dessa mudança de paradigma decorre uma liberdade
maior, que possibilitou ao romance gráfico tornar seus moldes maleáveis, como prevê
Bakhtin. Além das histórias curtas e direcionadas a um público popular, que não pararam
de ser produzidas, a narrativa em quadros, agora também como graphic novel, ganhou maior
extensão, direcionando-se para públicos mais adultos e dialogando mais veementemente
com as obras já canônicas da literatura, amadurecendo não apenas seu temário (cada vez
mais profundo e despreocupado com pudores que afetam produções para o público popular
ou infantil) como, também, em sua estruturação narrativa (alcançando níveis maiores de
complexidade, seja no andamento das ações, na constituição dos personagens ou em qualquer
2
No original: “Today, there are signs the ‘comic book’ is, finally and permanently, about to burst out of its lonely
isolation as a trivial form of sub-literature for retarded children like ourselves and take its place in the literary
spectrum [...] when you find me using the terms ‘graphic story’ and ‘graphic novel’ to describe the artistically
serious ‘comic book strip’ you’ll know what I mean” (KYLE, 1964, p. 3–4).
3
No original: “Eisner has said that he grew tired of working only in the short-story format that had dominated
U.S. comic books almost since the beginning. When he returned to the field, he wanted to do something new, a
novel-length work published as a book. He hit upon the term graphic novel because it combined two words with
positive meanings” (COUCH, 2000, s/p.).
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outra categoria constitutiva das obras). Em suma, como defende Ferreira: “hoje não é possível
negar uma existência diferenciada para o romance gráfico, que amadureceu e recompôs seu
discurso perante a sociedade e a crítica” (FERREIRA, 2012, p. 2).
A partir desta parte, este trabalho se volta para a análise do romance gráfico Cachalote,
publicado pela primeira vez em 2010 pela dupla criadora Daniel Galera e Rafael Coutinho.
Como explicitado na introdução, ao efetuar tal estudo de caso, pretende-se identificar de
maneira mais objetiva como alguns aspectos do romance e de seus elementos narrativos
podem ressoar no tipo de produção em quadrinhos em questão, assim como esses adquirem
remodelações no contexto sócio-histórico contemporâneo. Como se pode perceber pelo
referencial teórico e pela proposta desenvolvida, enfoca-se, primordialmente, possíveis
aspectos dessa concepção moderna e desencantada de romance na obra em quadrinhos
estudada; ponto, esse, que precisa ser esclarecido, visto que reforça a multiplicidade de
análises e interpretações dadas ao gênero romanesco (que não poderiam ser, aqui, abordadas
em sua totalidade).
Até aqui, discutiu-se o surgimento da categoria de romance gráfico e interligou-se esse
histórico com a perspectiva filosófica de Lukács para o gênero romance, principalmente no
que tange ao fato de que ambos os gêneros representam a conquista de certa maturidade
no ímpeto de expressão do indivíduo moderno e de seu desamparo particular. No entanto,
debruçando-se sobre um material mais concreto – um exemplo de romance gráfico –, é
possível perceber que algumas outras formulações de Lukács relativas à essência expressiva
do romance ecoam em Cachalote. Para isso, a figura 1 serve à elucidação de alguns aspectos
globais do propósito comunicativo característico dessa obra que dialogam com análises
presentes em Teoria do romance.
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Figura 1 - (GALERA; COUTINHO, 2010).
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Figura 2 - (GALERA; COUTINHO, 2010).
A figura 3, abaixo, também nos permite uma análise que se coaduna com a interpretação
de Benjamin dessa voz narrativa moderna constatada no gênero romanesco. Aqui, tem-se
uma condução da história que se dá de maneira diferente das anteriormente observadas:
a história de Vitório e de sua relação com uma mulher insolitamente frágil poderia ser
aproximada, com ressalvas, do que conhecemos como a figura do narrador autodiegético, ou
daquele que conta a trama de sua vida. Vez ou outra, por entre as cenas e os diálogos, o próprio
personagem se intromete, por meio de caixas de textos de formato diferente dos balões, para
tentar, assim como leitor, interpretar os fatos dados. Sim, interpretar, pois, curiosamente, a
posição do personagem, como fica claro na figura através das perguntas e da incerteza diante
de suas próprias ações, não é a daquele que compartilha com objetividade uma experiência e
que possui propósitos comunicativos claros. Assim como descrito por Benjamin, Vitório é
um exemplo de narrador que não sabe narrar, visto que não pode expressar claramente uma
lição alcançada a partir de sua história para o aprendizado de um outro. Como é visível na
figura, se há uma tentativa de produzir sentido, essa tentativa é voltada para a própria voz
que narra, pois ela parece interrogar o andamento de sua própria vida.
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Figura 3 - (GALERA; COUTINHO, 2010).
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189
Figura 4 - (GALERA; COUTINHO, 2010).
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Figura 7 - (GALERA; COUTINHO, 2010).
Considerações finais
A partir da ótica teórica proposta, percebe-se que Cachalote é um romance gráfico que
reverbera muito do anseio de expressão romanesco. Aspecto, esse, que pode ser justificado
a partir da noção de que o século XXI, contexto de produção da obra de Galera e Coutinho,
ainda tem em sua estrutura de base muitas semelhanças com o contexto de consolidação
do gênero romance. É claro que não são poucos os teóricos que pensam e descrevem um
momento supostamente diferenciado da história humana chamado de pós-modernidade.
Contudo, é evidente que a lógica capitalista, mesmo com transformações, ainda fundamenta
nossas relações e, por consequência, não deixou de motivar muito da produção artística
(mesmo que seja uma motivação à crítica, à angustia, à resistência). O sujeito só e desnorteado
que se torna personagem central do romance, como observado por Lukács e outros, ainda
encontra, como se pode perceber, certo eco em um romance gráfico publicado em 2010.
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Além dessa constatação de cunho mais social, calcada na observação de como as
relações humanas possivelmente interferem na literatura, não se pode deixar de enfocar
as observações de interesse exclusivamente estético realizadas por este trabalho, visto
que, como dito em ressalva prévia, tratando-se de uma pesquisa na área de literatura, é
necessário que se tenha como propósito principal uma análise própria de tal perspectiva.
Com isso, destaca-se o potencial da literatura para se remodelar em prol de expressar
objetivos comunicativos semelhantes. Como descrito, a problemática da individualização
e suas nuances vistas no gênero romance pelos teóricos marxistas aqui revisitados ainda
se mostra presente no objeto aqui estudado. Devido, porém, à estruturação particular
de Cachalote, que é um romance gráfico, esta se realiza de maneira diferente. Devido à
natureza multimodal da obra, o sentimento de solidão, a caracterização problemática
dos personagens, a incapacidade de narrar e outros aspectos anteriormente descritos se
disseminam pela linguagem não verbal ou, ao menos, apelam para uma construção de
sentido que se apoia no jogo estabelecido entre o verbal e o não-verbal. O vazio da situação
dramática está representado pelo ambiente, do qual emana um silêncio muito significativo
por efeito de uma troca de quadros que rompe com a temporalidade cronológica, pelas
expressões ambíguas dos personagens em cena, pelo texto verbal dramático que confirma
ou questiona o que é dado visualmente e por outras estratégias estéticas que só são possíveis
por meio da singularidade linguística da arte sequencial.
Por fim, não se pode deixar de destacar a capacidade expressiva do gênero romance
gráfico, constatada por meio do estudo de caso aqui realizado. Como proposto, era nossa
intenção entender até que ponto alguns elementos atribuídos ao gênero romance poderiam
ressoar no gênero da obra aqui analisada. Sabendo, porém, que este trabalho é um estudo
pontual, não se pretende concluir esta reflexão com a pretensão de afirmar máximas sobre
o romance gráfico, até porque isso iria contra a própria compreensão de gênero de Bakhtin,
que serve de ponto de partida deste trabalho. Mas, mesmo assim, parece justo afirmar que
o estudo de caso aqui realizado confirma que o romance gráfico, como o romance, pode
servir ao propósito de responder aos anseios dos indivíduos modernos – conclusão que se
faz importante não só pelo indício de que talvez exista uma proximidade relevante entre
o propósito comunicativo e a formulação estética de produções contemporâneas e de
obras que datam até mesmo dos séculos XVIII e XIX, como também pela noção de que
seria uma ignorância, no sentido literal da palavra, rebaixar a arte sequencial e suas formas
composicionais à categoria de “subliteratura” quando há, evidentemente, nessas obras, um
histórico, rico e pouco explorado material literário que pode nos dizer muito sobre o fazer
narrativo e, por consequência, sobre nós mesmos.
GARCIA, L. Z. The Reshaping of the Novel Poetics in Cachalote: a case study for grasping
the Graphic Novel. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12 , n. 1, p. 175-197, 2020.
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196
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ___. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora
WMF; Martins Fontes, 2011. p. 261–306.
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ___. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (obras escolhidas, v. 1). São
Paulo: Brasiliense, 2012. p. 213–240.
COUCH, C. The publication and formats of comics, graphic novels, and Tankobon. Image
& Narrative, v. 1, n. 1, s/p. dez. 2000. Disponível em: http://www.imageandnarrative.be/
inarchive/narratology/chriscouch.htm. Acesso em: 23 out. 2018.
GALERA, D.; COUTINHO, R. Cachalote. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
KYLE, R. The future of “comics”. Capa-Alpha, s/v., s/n., p. 3-4, nov. 1964. Disponível em:
http://www.thecomicbooks.com/misc/Richard%20Kyle%20The%20Future%20o f%20
Comics.pdf. Acesso em: 23 out. 2018.
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dossiê
LITERATURA E GÊNERO II
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Dossiê Literatura & Gênero II
Cláudia Nigro
Davi Silistino de Souza
Fernando Luís de Morais
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200
Notas sobre o abolicionismo racista de O cortiço,
de Aluísio Azevedo
AMARA MOIRA*
RESUMO: O objetivo deste escrito é apresentar e discutir uma estratégia de leitura sobre o romance
O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. O ensaio debruça-se em passagens do romance para estabelecer
uma crítica sobre o narrador e as contradições em torno da “denúncia do regime escravocrata”
supostamente enunciado pela obra, a partir do que se poderia chamar de “abolicionismo racista”.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to present and discuss a reading strategy on the novel
O Cortiço (1890), by Aluísio Azevedo. The essay focuses on passages in the novel to establish a
critique of the narrator and the contradictions surrounding the “denunciation of the slave regime”
supposedly enunciated by the book, based on what could be called “racist abolitionism”.
* Travesti, escritora e doutora em Teoria e Crítica Literária – Programa de Pós-Graduação em Teoria e História
Literária – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – SP – Brasil. E-mail: amoiramara@gmail.com
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Dois momentos marcantes na minha trajetória como leitora: o primeiro quando, numa
mesa redonda que dividi com Conceição Evaristo, a escritora afirmou que a morte de Bertoleza
em O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, era uma das passagens mais abjetas da literatura
brasileira1 e o outro foi quando, numa conversa sobre “Negrinha” (1920), de Monteiro Lobato,
com o estudioso do racismo brasileiro Ale Santos, o pesquisador defendeu que “as pessoas que
enxergam [no conto] crítica à escravidão estão projetando suas próprias visões”2. A partir desses
posicionamentos, a minha maneira de encarar não apenas essas duas obras, como quaisquer
outras de autoria branca em que despontem personagens negros foi transformada. A ideia do
presente ensaio é pensar estratégias de leitura a partir dessas provocações.
Não é difícil identificar passagens racistas no narrador de O Cortiço, sobretudo
desse racismo que buscava “apoio numa pseudo-ciência antropológica que angustiava os
intelectuais brasileiros quando pensavam a mestiçagem local” (CANDIDO, 1993, p. 143).
Irrupções desse racismo em que se amalgamam “o instinto racial, a raça inferior, o desejo
de melhorá-la, o contacto redentor com a raça superior” (CANDIDO, 1993, p. 144 – itálicos
do autor) poderiam ser flagradas, por exemplo, no momento em que o narrador “explica”
a disposição de Bertoleza para ir morar com João Romão (“porque, como toda a cafuza,
Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça
superior à sua” (AZEVEDO, 2012, p. 66), ou, então, na passagem em que nos é apresentado
o “motivo” de Rita Baiana trocar Firmo, o capoeirista negro, pelo português cavouqueiro:
“desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de
animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou seus direitos de apuração, e Rita preferiu
no europeu o macho de raça superior” (AZEVEDO, 2012, p. 272). Observe-se, aí, a pretensa
objetividade e distanciamento do narrador a serviço da veiculação de ideais racistas, bem ao
gosto do nosso naturalismo.
Antes de avançarmos, porém, convém retomarmos alguns pontos da trama que
enreda Bertoleza para escurecer o argumento aqui proposto. O romance se passa no período
escravocrata, mas quando a luta abolicionista já estava se consolidando. Bem no início vemos
o vendeiro português João Romão, de posse das economias de Bertoleza, uma quitandeira
cafuza escravizada com quem se amasiara, dizendo-lhe que inteiraria o que faltava para
que ela obtivesse a liberdade. O que ele fará, no entanto, é falsificar uma carta de alforria,
simulando que ela está liberta, e usar o dinheiro para ir transformando a sua vendinha num
cortiço. Diante da prosperidade dos negócios, a mulher passa a ser vista como um fardo por
João Romão, que agora precisará se livrar dela para poder casar-se com a filha do vizinho
Miranda, um português que recentemente ganhara o título de Barão. A fraude da alforria
só será descoberta na página final do livro, quando Bertoleza descobre que o companheiro-
carrasco, não sendo capaz de matá-la, denunciou-a a seus antigos escravizadores. Estes
1
Trata-se da Mesa-Redonda: “Cotidiano e fronteiras da escritura”, ocorrida no dia 18/07/2019, no Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), na Universidade de Brasília (UNB).
2
A conversa se deu dia 01/05/2020, no grupo de WhatsApp dos apoiadores do seu podcast “Infiltrados No Cast”. O
podcast havia, então, lançado a série “Os maiores racistas da história brasileira”, com um episódio específico sobre
Monteiro Lobato. Os colchetes na fala citada são meus.
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vieram com a polícia buscá-la e ela, percebendo que não conseguiria fugir, rasga diante de
todos eles o próprio ventre com a faca de cozinha que tinha em suas mãos.
Feito esse breve resumo, retorno à minha surpresa diante do apontamento luminoso
de Conceição Evaristo, pois só ali me dei conta de que a morte de Bertoleza, que eu tinha
aprendido a ler como denúncia do estatuto precário da alforria e, ainda, como crítica ao
regime escravocrata, poderia ser entendida também como mais uma das instâncias racistas da
obra. Eu disse “também” porque criticar a escravidão (e, mesmo, defender o Abolicionismo)
não necessariamente implicava uma posição anti-racista, algo que intelectuais negros cansam
de repetir, mas que ainda hoje, para boa parte da sociedade brasileira, incluindo setores de
esquerda, parece um contrassenso flagrante. A seguinte passagem de Menino de engenho
(1932), do paraibano José Lins do Rego, talvez ajude a desfazer essa percepção:
Restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro. Uns vinte quartos com o
mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição,
ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala.
E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa,
Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a
trabalharem de graça, com a mesma alegria dos tempos da escravidão. As suas
filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande
e a mesma passividade de bons animais domésticos (REGO, 1973, p. 54–55).
Ou, então, essa memória do 13 de maio de 1888 em Minha vida de menina, diário que
a adolescente Helena Morley escreveu entre 1893 e 1895, em Diamantina (MG), e que seria
publicado pela primeira vez em 1942:
Joel Rufino dos Santos aponta, em O que é racismo, que “nem mesmo a Campanha
Abolicionista (1879–1888) encarou o negro como gente” (SANTOS, 1984, p. 52), uma
vez que a defesa da Abolição baseava-se, em primeiro lugar, na modernização do país e,
em segundo, na compaixão ante o sofrimento dos pobres pretos. E compaixão, sabemos,
não é suficiente para fundar uma compreensão do Outro como igual. Ale Santos traz
ainda outro aspecto desse debate que não deveríamos esquecer: “A sociedade que aboliu a
escravidão iniciou um plano para embranquecer a população e nossa cultura”3. Nota-se esse
embranquecimento, por exemplo, na obsessão em emplacar heróis brancos como símbolos
3
Afirmação postada em seu perfil pessoal no Twitter (@savagefiction), no dia 15/11/2019. Disponível em:
https://twitter.com/Savagefiction/status/1195348450193412103. Acesso em: 27 jul. 2020.
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mesmo da causa abolicionista, visível na fantasia libertária que se criou em relação à Princesa
Isabel ou, mesmo, no fato de o “poeta dos escravizados” ser o abastado Castro Alves (1847–
1871) e não Luís Gama (1830–1882), autor da obra Primeiras Trovas Burlescas de Getulino
(publicada em 1859, quando Castro Alves contava 12 anos de idade), na qual se encontram
belíssimas provocações à cultura branca letrada de sua época:
E também:
se eu que pretecio4,
d'Angola oriundo,
alegre, jucundo,
nos meus vou cortando;
é que não tolero
falsários parentes,
ferrarem-me os dentes,
por brancos passando (GAMA, 1974, p. 81).
Além disso, Luís Gama ataca os escravizadores – (“Aqui não se ergue altar ou trono
d'ouro / ao torpe mercador de carne humana” (GAMA, 1974, p. 143) –, propõe outro
padrão de beleza para suas musas – “Meus amores são lindos, cor da noite / recamada
de estrelas rutilantes; / são formosa crioula, ou Tétis negra, tem por olhos dous astros
cintilantes” (GAMA, 1974, p. 154) – e, por fim, numa bela composição dedicada à sua mãe,
a lendária Luísa Mahin, recupera a majestade ancestral da figura negra: “Era mui bela e
formosa, / era a mais linda pretinha, / da adusta Líbia rainha, / e no Brasil pobre escrava!”
(GAMA, 1974, p. 139).
4
Segundo a nota que acompanha a edição disponibilizada em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2113 (Acesso em: 27 jul. 2020), significa: “relativo a ficar preto
ou negro”.
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Quão mais simbólico não seria o título de “poeta dos escravizados” concedido a ele, ele
próprio “um dos raros intelectuais negros brasileiros do século XIX, o único autodidata e
o único, também, a ter vivido a experiência da escravidão” (FERREIRA, 2011, p. 17)? Para
além disso, ele teve papel central no abolicionismo paulista. É uma questão que me ocorre
quando, de volta a O cortiço, me deparo com expressões como “a hedionda carapinha da
crioula” (AZEVEDO, 2012, p. 251) no discurso indireto livre de João Romão ou referências
ainda mais ultrajantes à mesma:
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada
de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele
voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra... (AZEVEDO, 2012, p.
199).
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205
nos diretamente a uma outra tradução empreendida pelo narrador, momento em que ele
nos concede acesso à interioridade de Bertoleza para “explicar”, por meio do determinismo
mais rasteiro e racista, os sentimentos que, apesar do desprezo recebido, ela nutria por João
Romão, sugerindo ainda que ela seria capaz de suicidar-se por amor a ele:
5
A frase seguinte, à mesma página, vai ainda mais fundo na desumanização, agora com pensamentos que o
narrador deseja atribuir à própria personagem: “O que custava àquele homem consentir que ela, uma vez por
outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão...”.
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A mensagem transmitida, bem ao gosto duma literatura que se pensava ciência, era
que a mestiçagem só seria razoável se, primeiro, se desse apenas entre as raças consideradas
inferiores e, segundo, servisse para produzir seres úteis à classe dominante branca – esta
precisando manter-se sempre pura. Não há propriamente denúncia da exploração e, sim,
defesa. O trabalho aparecerá no romance, aliás, como um elemento capaz de transformar
a vida do indivíduo branco, mas de manter em posição de eterna subserviência o negro
e/ou o indígena. À medida que João Romão ascende socialmente, ele passa, por um lado,
a rejeitar Bertoleza (de uma perspectiva, sublinhe-se, exclusivamente afetivo-sexual, posto
que seguirá explorando o seu trabalho de forma impiedosa) e, por outro, a almejar uma
posição similar à do Barão Miranda: esses dois movimentos originam a sua transformação
pessoal e a narrativa, a partir desse ponto, vai deixando de animalizá-lo.
Querer ver ironia nessa nova posição da narrativa para com o capitalista é não entender
a mensagem supremacista que ela encapsula. Não, não há ironia, sequer na entrega a João
Romão do diploma de sócio benemérito da comissão de abolicionistas. O abolicionismo não
só podia ser racista, como deveria sê-lo, eis o que o romance nos diz. E aqui me dou conta de
que as palavras de Ale Santos, necessárias para uma melhor compreensão de “Negrinha”, de
Monteiro Lobato, servem também à perfeição para O cortiço.
MOIRA, A. Notes on the Racist Abolitionism of O cortiço, by Aluísio Azevedo. Olho d’água,
São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 201-208, 2020. ISSN 2177–3807.
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FERREIRA, L. Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama: Poemas, artigos, cartas, máximas. São
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207
REGO, J. L. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Redes de solidariedade e interseccionalidades na
literatura e gênero
DAVI SILISTINO DE SOUZA*
C L Á U D I A M A R I A C E N E V I V A N I G R O **
F E R N A N D O L U Í S D E M O R A I S ***
F L Á V I A A N D R E A R O D R I G U E S B E N F A T T I ****
L E A N D R O P A S S O S *****
L U I Z H E N R I Q U E S O A R E S ******
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a importância das diferentes formas de rede de solidariedade
e de interseccionalidade para a abordagem feminista nacional e para os estudos de gênero contemporâneos.
Compreendemos que as críticas provenientes desses estudos buscam questionar o papel de personagens consideradas
subalternas pela tradição patriarcal ocidental, logrando voz e espaço na produção de escritores subalternos. Nossa
ênfase crítica, entretanto, firma-se principalmente nos estudos de gênero, por apresentarem mais abertura para a
união e o estabelecimento de ajuda mútua com outras “minorias” (LGBTQI+, mulheres e homens de etnias diversas,
entre outros). Expande-se, assim, neste trabalho, a concepção de redes de solidariedade dentro dos estudos de gênero,
a fim de rever as heterarquias coloniais, pelas quais as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, segregacionistas,
entre outras, são perpetuadas. Os esforços de pesquisadoras e escritoras contemporâneas fazendo uso de redes de
solidariedade e do conceito de interseccionalidade contribuem para a expansão do conhecimento e do respeito ao
outro, demostrada por ocasiões de enfrentamento e manifestações de subalternos.
ABSTRACT: This article aims to analyze the importance of the different forms of networks of solidarity and
intersectionality for the national feminist approach and for contemporary gender studies. We understand that the
criticisms from these studies seek to question the role of characters considered subaltern by the Western patriarchal
tradition, achieving voice and space in the production of subaltern writers. Our critical emphasis, however, rests
mainly on gender studies, as they present more openness to union and the establishment of mutual aid with other
“minorities” (LGBTQI+, women and men of different ethnicities, among others). Thus, in this work, the conception of
networks of solidarity within gender studies is discussed, in order to review the colonial heterarchies, through which
racist, sexist, homophobic, segregationist ideologies, among others, are perpetuated. The efforts of contemporary
researchers and writers presenting networks of solidarity and the concept of intersectionality contribute to the
expansion of knowledge and respect for others, demonstrated through moments of confrontation and manifestations
of subalterns.
KEYWORDS: Contemporaneity; Gender Studies; Intersectionality; Judith Butler; Kimberlé Crenshaw; Literature;
Network of Solidarity.
* Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dsilistino@gmail.com
** Departamento de Letras Modernas – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São
José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: cmc.nigro@unesp.br
*** Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dmorays_2@hotmail.com
**** Instituto de Letras e Linguística (ILEEL) – Universidade Federal de Uberlândia – 38408-100 – Uberlândia – MG
– Brasil. E-mail: flavia.benfatti@ufu.br
***** Pós-doutorando em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP –
15054-000 – São José do Rio Preto – SP. Professor EBTT do IFMS – Campus Três Lagoas – Três Lagoas – MS – Brasil.
E-mail: leandro.passos@ifms.edu.br
****** Mestrando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: luizhsoares83@gmail.com
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Este artigo, elaborado a partir dos conceitos de rede de solidariedade e de
interseccionalidade, é desenvolvido por integrantes do grupo de pesquisa Gênero e Raça
(CNPQ), liderado pela Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro. Dessa maneira, a presença
de participantes de grupos subalternos como mulheres, negr@s e LGBTQI+ anuncia-se de
modo a representar a ideia de redes. Escrevemos nosso artigo em rede.
É perceptível, na atualidade, o aumento da liberdade de expressão e a expansão dos
direitos das chamadas minorias em sociedades ocidentais. Há de se notar também a existência
de repressão intensa, injustiças e ódio aos grupos subalternos, antes ignorados. Embora de
trajetória árdua e antiga, o embate de mulheres, negr@s, LGBTQI+ e outros, ainda se faz
necessário, sobretudo no contexto nacional1.
Frente a essa contextualização, uma das possíveis estratégias de enfrentamento
ao cerceamento de direitos e liberdade d@s não hegemônic@s engendra-se por meio do
ajuntamento de iguais e de diversos. De fato, o processo de subalternização propicia a
agregação de pessoas vivenciando situações semelhantes e criando, consequentemente,
políticas em conjunto a favor da igualdade social. Em virtude da amplitude e complexidade
das novas manifestações da união de grupos subalternos, buscaremos explorar as distinções
e semelhanças entre a recente proposta de redes de solidariedade, provinda de pesquisadoras
como Butler (2015) e Davis (2017), e a propositura oferecida pelos movimentos subalternos,
como, por exemplo, o movimento feminista.
O conceito por detrás das redes de solidariedade está relacionado ao enfrentamento,
em conjunto, das forças opressoras e injustas que buscam eliminar o poder desses grupos.
Butler (2015), em seus escritos, coloca o ser humano em primeiro plano, independentemente
de qualquer rotulação a ele atribuída na sociedade em que está inserido. Para a filósofa e
professora de literatura da Universidade de Berkeley, é necessário o ativismo político a fim
de criarmos uma rede de solidariedade e, assim, eliminar diferenças que hierarquizem a
sociedade. Butler sabe empreender à literatura essa prática.
O argumento dessas redes de solidariedade está centrado em formas de colaboração, com
a oferta de novas possibilidades de vida àquel@s cujos direitos foram reduzidos ou, muitas
vezes, subtraídos. Na grande rede, esses indivíduos se encontram incluídos, contribuindo
de forma equitativa nas demandas pela inserção e igualdade de direitos. Partindo do
princípio de somatória das forças, Butler defende a discussão de questões contemporâneas
relacionadas a desigualdades sociais, à pobreza e à violência, perpassando necessariamente
por problemáticas de raça e gênero. Esses debates se manifestam em diversas plataformas,
dentre as quais se destacam a arte e a literatura.
No que tange à presença de redes na literatura, é possível notar prenúncios de seu
surgimento em romances como The Front Runner, de Patricia Nell Warren. A obra é o
primeiro livro de ficção gay, parte da lista de best-sellers americanos, no qual a autora trata
1
Não podemos nos esquecer do fato de que o Brasil é um dos países com uma das maiores Paradas do Orgulho
LGBT; no entanto, ao mesmo tempo, é campeão nas estatísticas de assassinato desse grupo. Cf: Brasil é o país
que mais mata LGBTs no mundo, confirma relatório. Disponível em: <https://observatoriog.bol.uol.com.br/
noticias/2018/03/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-lgbts-no-mundo-confirma-relatorio>. Acesso em: 11 abr. 2019.
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da questão da aceitação do casal homossexual na sociedade tradicional na década de 1970,
quando o assunto ainda era considerado tabu. Faz-se viável observar, por parte de Warren,
um movimento a favor da criação das redes, visto ser a solidariedade um conceito cultivado
pelas personagens de Prescott College, como pode ser observado em
Ao criar possibilidades, por meio dos grupos de estudos gays, para o fortalecimento
social da comunidade homossexual, Warren mostra a importância de apoiarmos a causa.
Com o intuito de ouvir o dizer desses indivíduos, podemos perceber muita coisa a ser
mudada, muitas vidas a serem salvas.
A união representada no romance é amplificada e aprofundada pela fala de Angela
Davis durante a conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra
o racismo”, realizada na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2017. No evento, a
pensadora menciona a Marcha das Mulheres em Washington como marco de união de
solidariedade:
A Marcha das Mulheres em Washington foi liderada por mulheres negras, latinas,
asiáticas, indígenas, muçulmanas, e também mulheres brancas. Encontramo-nos
em Washington, por todo o mundo e todos os países, para dizer que resistiremos.
Em todos os dias da presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos
ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero patriarcado. Nós resistiremos ao
preconceito contra o Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós
defenderemos o meio ambiente contra os insistentes ataques predatórios do
capital (DAVIS, 2017).
2
No original: “With Vince and Billy working on it, the gay studies program grew into a counseling service
that was the first of its kind on an American campus. Back in 1971 and 1972, a few tiny programs like this
had sprung up at big universities, as well as administration-condoned "gay lounges" where the gay kids could
meet, talk and be themselves. But our program at Prescott was something unique, and it grew out of athletics”
(WARREN, 1996, p. 194).
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A perspectiva vigente trazida pela rede de solidariedade engloba a compreensão
contemporânea de gênero, pautada e construída sob as bases de reflexões, das pesquisas e da
escrita de cunho feminista. De acordo com Nigro (2017), antes mesmo dos famosos textos
de Beauvoir, o lugar e a luta por direitos da mulher já vinham sendo tratados por escritoras
como Virginia Woolf e Jane Austen. Com efeito, embora Mary-Catherine Harrison (2014),
professora da universidade de Detroit, EUA, aponte o fato de os romances ocidentais do
século XVIII e XIX serem moldados pelo marriage plot3, a representação da mulher na obra
de Jane Austen se mostra complexa e importante para o século XIX podendo ser, sem dúvida,
considerada como modelo, ainda que precursor, para o debate feminista e de gênero.
Além disso, Nigro sustenta que, mesmo contemporâneos a Beauvoir, “[...] Lacan,
Kristeva, entre outr@s, discorrem sobre o assunto, sempre se tomando em conta a
masculinidade e a feminilidade, mas não o gênero como culturalmente dado” (NIGRO, 2017,
p. 124). Assim, a discussão de gênero nos prelúdios do feminismo é ambientada em um
contexto ainda binário. Susana Funck nos auxilia a perceber que o movimento feminista
carrega tentativas de
E, de fato, esse discurso se instituiu ímpar para que, por meio das lutas feministas,
muitos direitos fossem adquiridos. Hoje, o feminismo alcançou um lugar de destaque na
cultura contemporânea, já que a voz da mulher tem sido uma marca insistente em busca de
reconhecimento. A escrita deixa de ser falocêntrica e nomes importantes começam a “surgir”
na contemporaneidade: Conceição Evaristo, Luisa Geisler, Veronica Stigger, Jarid Arraes,
Miriam Alves, Maria Valéria Rezende entre outras.
Algumas ressalvas cabem aqui. Não se pode ignorar o baixo número de mulheres
ganhadoras do prêmio Jabuti – a mais famosa premiação literária nacional –, nem esquecer
a recente decisão de não considerar Conceição Evaristo integrante da Academia Brasileira
de Letras. Esses fatos servem para realçar a falta da equidade quando o assunto incorre na
interseccionalidade.
Para compreender o movimento feminista, devemos nos atentar ao fato de ser ele
regido em concepções de gênero ainda de teor dual:
3
Histórias de amor e cortesia culminando em casamento.
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Percebe-se, nessa definição, uma ênfase nas diferenças entre mulher e homem.
Tratando desse pensamento binário, a autora e ativista Riki Wilchins, em seu livro Queer
Theory, Gender Theory (2004), afirma ser esse tipo de divisão uma tendência manifesta e
persistente no pensamento da civilização ocidental, privilegiando-se, assim, a polarização.
Nesse sentido, o descarte de tudo aquilo que não se enquadra em nenhuma das extremidades
é um efeito inevitável. Nas palavras da própria autora, temos:
4
Tradução nossa do excerto: “Disenchanted and frustrated by repeated, unsuccessful attempts to make our struggles part
of their struggles, some advocate for separate sisterhoods, based on racial alliances (e.g., Black Feminism)” (WILLIAMS;
CHAU, 2007, p. 285).
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Na atualidade, tais questionamentos não se encerram no movimento feminista.
Pode-se notar a necessidade da união de pautas no contexto LGBTQI+. Não são raras as
críticas ao movimento quando estes relevam questões sociais ou relacionadas à raça/
etnia, como foi o caso em que RuPaul Andre Charles, ator, drag queen, modelo, autor e
cantor negro norte-americano, recebeu reprimendas de participantes do RuPaul's Drag Race
pela falta de posicionamento acerca do crescente movimento Black Lives Matter.5 São, de
fato, indissociáveis as categorias gênero e raça, na medida em que um discurso particular
preconceituoso perpassa ambas as heterarquias.
A indissociabilidade das categorias de subalternização traz à baila o aspecto interseccional
da concepção das redes. Embora as ideias que sustentam a noção de interseccionalidade já
tivessem tomado corpo muito antes da década de 90, o termo é cunhado pela advogada
e estudiosa Kimberlé Crenshaw apenas em 1991, em seu célebre artigo “Mapping the
Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color”. Ao
tratar especificamente da violência contra mulheres afro-americanas, admite que
II
Nesse excerto do poema, a revelação do ponto de vista de Don Charles tem especial
significação à luz das discriminações enfrentadas por indivíduos cuja identidade de gênero é
dissidente. Vemos a forte presença da marginalização e da homofobia dentro do seio familiar.
Desse modo, o olhar dos pais é introjetado de preconceitos sociais, frutos de um discurso
moral sustentando em preceitos heteronormativos, como explicitado em “I’m the son he’s not
proud of” (Sou o filho do qual ele não se orgulha.) ou então “I’m the son she’s ashamed of” (Sou
o filho do qual ela sente vergonha.).
6
I / Shape of disappointment. Color of rejection. / In my father’s eyes, / I’m the son he’s not proud of. / A goody-two-shoes,
too nice to say curse words. / A mama’s boy, tied up tight in apron strings. / An impostor who looks like a man, but isn’t.
/ Turn the kaleidoscope, / and the image changes. // II / Shape of disgust. Color of revulsion. / In my mother’s eyes, / I’m
the son she’s ashamed of. / A stranger who buys gay magazines. / A pervert who couples with his own gender. / A health
risk she’s afraid of getting AIDS from. / Turn the kaleidoscope, / And the image changes.
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Notamos como os padrões heteronormativos determinam drasticamente a construção
das masculinidades e das feminilidades. Assim, “A goody-two-shoes, too nice to say curse words”
(Um santinho, educado demais para dizer palavrões) ou “A mama’s boy, tied up tight in apron
strings” (Um garotinho agarrado à barra da saia da mãe) têm a masculinidade comprometida
em razão das construções sociais que controlam e pesam sobre esses corpos e comportamentos.
Percebe-se, ademais, uma necessidade de combater preconceitos arraigados no
imaginário social. Grupos socialmente discriminados e marginalizados podem encontrar
na proposta de redes de solidariedade um refúgio, onde há a recepção e o acolhimento de
tod@s, algum@s inclusive temendo pela própria vida.
Dessa forma, as redes sustentam a percepção de que conceitos de feminilidades e
masculinidades não podem mais permanecer presos a dualidades, ainda mais levando em
consideração outras hierarquias de poder e outros contextos históricos e culturais presentes nas
sociedades: tudo se faz como uma questão de escolha e de reivindicação de posições. Embora
ainda existam o preconceito, a LGBTQI+fobia e a heteronormatividade sexista, a abertura
da conceituação de sexo e de gênero permite que relações desconsideradas anteriormente
aconteçam, desconstruindo a heterossexualidade compulsória. Como discute Butler:
A transformação social não pode ser construída por um grupo de pessoas que foram
agrupadas por acidente de nascimento e pela coincidência da marginalização.
Precisamos nos unir pelo propósito. Precisamos parar de procurar irmãs e
começar a procurar colaboradoras. Essas seriam pessoas que compartilham de
nossa visão política e estão dispostas a participarem em ações políticas coletivas.
Privilegiar o comprometimento político ao invés da equivalência identitária
abre novas possibilidades. Podemos ter colaboradoras em lugares que eram
anteriormente considerados fora dos limites por dicotomias que reforçavam
o status de membro/estrangeiro e hierarquias empoderadas/ desempoderadas
(WILLIAMS; CHAU, 2007, p. 293 – tradução nossa)7.
7
No original: “Social change cannot be engineered by a group of people who have been thrown together by
accidents of birth and the coincidence of marginalization. We must be united by purpose. We need to stop
looking for sisters and start looking for collaborators. These would be people who share our political vision and
are willing to participate in collective political action. Privileging political commitment over identity equivalence
opens up new possibilities. We could have collaborators in places that were previously placed off-limits by
dichotomies that reinforced insider/outsider status and empowered/disempowered hierarchies”.
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Referências
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Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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WITTIG, M. One is not born a woman. In: ABELOVE, H. (Org.). The lesbian and gay studies
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Masculinidades fin de siècle: a patologia do
homem e da nação em O barão de Lavos,
de Abel Botelho
ABSTRACT: This work consists in a review of criticism and reception of the Portuguese naturalist
novel O barão de Lavos, by Abel Botelho. In order to do this, we observe the repercussion in Portugal
and Brazil at the end of the 19th century, with a view to national identity and masculinities
regeneration.
KEYWORDS: Abel Botelho; Criticism; Fin de siècle; Masculinities; Reception; Naturalist Novel.
O Barão de Lavos, primeiro romance publicado pelo português Abel Botelho, é também a
primeira obra de uma pentalogia de sua autoria, a que foi atribuído o título de “Patologia Social”.
A coleção, composta por outros quatro romances – O Livro de Alda (1898); Fatal Dilema (1907);
Amanhã (1901); Próspero Fortuna (1910), além do já referido Barão de Lavos – foi elaborada a
partir da observação e estudo da sociedade portuguesa, sobretudo, da burguesia lisboeta.
O Barão de Lavos examina a vida de Sebastião Pires de Castro e Noronha, o barão.
Sebastião é um homem já desgastado, apesar de contar apenas com 32 anos, “dir-se-ia ao
vê-lo que orçava já pelos quarenta”, sobretudo porque o narrador reflete, no aspecto físico
do personagem, suas qualidades morais. Herdeiro de expressiva fortuna, o barão é casado
com Elvira, com quem mantém uma relação de aparências. Ativo na sociedade lisboeta, seja
pelo título que representa, seja por seu trabalho no jornal, ou mesmo pelo círculo social que
frequenta, o barão representa a sociedade portuguesa, de forte pendor aristocrático, apesar
dos hábitos burgueses que se consolidavam.
1
Magalhães Junior chamou a atenção pelas disputas entre editores brasileiros e portugueses, naquela altura,
potencializada por edições de supostas continuações de romances europeus, notadamente portugueses, bem
como pelo não pagamento de direitos autorais às casas editoriais portuguesas pelas editoras brasileiras ao
publicarem obras de autores portugueses. Várias dessas disputas chegavam às barras dos tribunais e provocaram
um afastamento dos autores portugueses de seus potenciais leitores brasileiros.
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A narrativa se desenvolve entre dois polos ocupados pelos papéis sociais desempenhados
pelo protagonista. Por um lado, o homem público, que atende às demandas do círculo
social do qual participa, por outro, o homem privado, com ímpetos sexuais socialmente
impróprios e considerados pervertidos. Tensionado entre ambos os polos, o barão declina
social, econômica e moralmente.
Os desejos de Sebastião são, num primeiro momento, escamoteados pela admiração
que mantém por corpos perfeitos, mas, depois de serem revelados, passam a controlá-lo,
especialmente, após conhecer Eugênio, um efebo pobre, recém-chegado a Lisboa (BOTELHO,
1982, p.95-97). Instalado em uma casa, na Rua da Rosa, e patrocinado financeiramente pelo
barão, Eugênio percebe que tem poder sobre seu amante e, com isso, passa a extorqui-lo.
Enlouquecido pela paixão que o consome, o barão cede aos caprichos do amante e afasta-se
de seu casamento com Elvira e dos círculos sociais a que pertencia, prejudicando, inclusive,
a sua atividade jornalística.
As duas facetas do barão de Lavos se encontram quando o personagem é desafiado
por um rapaz interessado em Elvira. Tendo que defender a sua honra, Sebastião participa
do duelo e acaba ferido. O que, no entanto, poderia ser o fim do barão, dá início a uma nova
fase para Eugênio, que é admitido formalmente na casa de Sebastião e passa a se relacionar
amorosa e sexualmente com a baronesa. Consciente de sua influência sobre o casal, o efebo,
cada vez mais ardiloso, obtém vantagens tanto de Sebastião, quanto de Elvira. Apesar das
diversas advertências de seus amigos, Sebastião demora a perceber que, assim como sua
própria esposa, é ele enganado e usado por Eugênio. Descoberta a relação do efebo com a
baronesa, o barão entra em incontornável declínio.
Pobre, sem a esposa, mal afamado pela cidade, termina seus dias dependendo dos
poucos amigos que restaram. Não há mais virtude moral em Sebastião – é ele todo movido
pelo seu desejo descontrolado pelos corpos jovens e masculinos.
Registre-se, seguindo o desenvolvimento narrativo, que, concomitante ao declínio
social e moral do barão, também a aparência física do barão se deteriorará. Apesar de não ser
um indício novo no romance, o narrador introduzira Sebastião como um tipo fisicamente
mal constituído, nos momentos finais da narrativa, ao mesmo tempo em que a moral se
esfacela, seu corpo mais se deforma pela sífilis:
Assim, o barão chega ao seu epílogo não apenas empobrecido e miserável, mas alguém
de quem apenas restou o corpo quebrado e o rosto imerso na lama (BOTELHO, 2020, p. 333).
Comum às características da estética literária do Realismo-Naturalismo com que Abel
Botelho se alinha, n’O barão de Lavos o epílogo é movido por suas tentativas de regeneração e,
consequentemente, pela tentativa moralizante da narrativa. Apesar dos sucessivos esforços,
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que incluem até mesmo uma paixão por Emazita, a jovem virgem que, acreditava Sebastião,
poderia salvá-lo dos sintomas de sua doença física, o barão não obtém sucesso. Seu fim é
a lama, o que confirma o rótulo que ele mesmo se atribui: “alma latrinária”. Em resumo, o
romance, sobretudo, examina a homossexualidade de Sebastião e, por conseguinte, a sua
falência frente a um projeto de masculinidade típico de seu tempo (MOSSE, 2000).
Não tardou para que o romance fosse atacado por críticos, ao mesmo tempo em que
era referência para as crônicas policiais de então ao tratarem de crimes passionais cometidos
por homossexuais2.
Das críticas que se preocuparam exclusivamente com o romance de Abel Botelho, duas
delas se destacam, curiosamente publicadas em jornais brasileiros. A primeira que se tem notícia
está na “Chronica litteraria”, assinada por Teophilo Braga, no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro,
do dia 24 de julho de 1891, bem próxima à publicação do romance. Para Braga, o romance de
Botelho será notícia, não mais como “novidade”, mas como “aberração literária”, sobretudo
pelos temas e representações lisboetas que apresenta. Theophilo Braga assumiu em sua leitura
uma ótica realista e mimética da obra e, por este motivo, não a via com bons olhos. Localizando
a obra de Botelho no rol de produções artísticas entendidas por ele como representantes do
“singular phenomeno do conflicto de absurdos, que a sociedade contemporanea soffre, e a que
a imprensa jornalistica chamou – fin de sciècle”, Braga apontava que
2
Publicada no jornal Correio da Manhã, de Lisboa, no dia 07 de dezembro de 1894, encontram-se as informações
sobre o aparecimento do cadáver de Louis Wall, um jovem seminarista inglês. De acordo com o relato
jornalístico, o jovem deveria se encontrar com Wilfred Cabalan, que informara a polícia sobre a existência do
cadáver. A notícia assume um tom jocoso, ao destacar que os jovens eram amigos inseparáveis e que autopsia
poderia confirmar “o que se dizia hontem e que daria uma scena do Barão de Lavos, romance de um escriptor moderno”
(CORREIO DA MANHA, 1894d– grifos nossos).
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Optamos por apresentar este longo excerto de Braga para demonstrar que o crítico
procura, a qualquer preço, se posicionar de maneira isenta em relação ao romance de Botelho.
Isso se demonstra, por exemplo, na preocupação louvar o estilo “vibrante, luminoso e poetico”
da escrita, do mesmo modo a arquitetura do romance. No entanto, quando se volta para os
temas abordados em O barão de Lavos, e, sobretudo, no modo como Abel Botelho desenvolve
suas ideias, Theophilo Braga demonstra seu incomodo, que, visivelmente, é o motivo pelo
qual considera o romance como uma aberração. Apesar dessas tentativas de mascaramento,
a conclusão da crônica literária evidencia a principal preocupação de seu autor
Entendemos que, ao ler o romance por meio de uma visão contemporânea a seu tempo,
Braga encontra, à revelia do que diz, referentes concretos do que descreve Botelho ao longo
de O Barão de Lavos. De certo modo, ao caracterizar o romance como “inventado”, “produto
da imaginação”, dentre outros adjetivos, o próprio Theofilo Braga parece esquecer-se da
ficcionalidade, elemento primordial da criação literária. Parece-nos que o crítico, que viria a
ser presidente de Portugal entre maio e outubro de 1915, adota uma posição de defensor da
nação moralizada e sem vícios. No entanto, sem argumentos que pudessem sustentar seus
ataques ao romance e também a seu autor, resta-lhe criticar o caráter ficcional da obra frente
à escola realista.
É, em contrapartida, exatamente neste ponto da ficcionalidade da obra que se ancora
a segunda crítica de O Barão de Lavos, publicada no jornal carioca O Tempo, em 1º de março
de 1892. De autoria desconhecida, estando assinada pelo codinome IGNOTUS, o texto
intitulado “Um escriptor novo” é não apenas uma resposta às críticas recebidas pela obra
e seu autor como também uma confessa defesa desses dois. Contra o rótulo de imoralidade
imposto pela crítica ao romance, Ignotus rebate
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O texto segue num exercício que desmistifica o olhar do espectador, do leitor, no caso,
da obra artística. Ignotus parte da prática cirúrgica, passando pela contemplação das musas
em telas de museus, para demonstrar que o vício que determinada obra revela está em seu
leitor. Segundo Ignotus, é a posição que o leitor assume diante de uma leitura que faz com
que essa seja moral ou imoral. O texto não é apenas elogioso ao livro. Seu autor localiza e
aponta dois pontos que enfraquecem a narrativa, os quais não abordaremos aqui. Interessa-
nos, no entanto, que Ignotus levanta-se como uma voz defensora não apenas do romance e
de Botelho, mas também da necessidade de se trazer à tona temas cotidianos e que, segundo
a posição que assume o autor da crítica, “não podia semelhante assumpto ser exposto em
luvas de pelica, comprehende-se que por sua propria natureza teria de usar de escabrosidades
e asperezas que offendem ouvidos de uma susceptibilidade casta, almas de pudor virginal”
(IGNOTUS, 1892)3.
Apesar de sua “novidade”, pouca atenção se deu ao seu autor e à sua obra, especialmente
ao Barão de Lavos. Por quase um século, sua fortuna crítica permaneceu rarefeita, especialmente
em Portugal, apesar de, no Brasil, ter encontrado críticos que sobre ele se debruçaram,
especialmente Massaud Moisés (1958) e Maria Leticia Guedes Alcoforado (1988). Moisés se
dedicou ao estudo do naturalismo botelhiano ao longo dos cinco romances que compõem a
pentalogia, ao passo que Alcoforado chegou a Botelho por seu contato com o autor brasileiro
Adolfo Caminha (1867-1897), cuja obra Bom-Crioulo (1896) aproxima-se flagrantemente da
temática da obra de Botelho. Para ambos, Moisés e Alcoforado, o interesse de crítica por
Botelho recaía na sua absorção das teses naturalistas e na constituição de uma obra modelar
submetida àquela estética francesa, como se verá posteriormente, na publicação, do sexto
volume, organizado pela brasileira Maria Aparecida Ribeiro, da História Crítica da Literatura
Portuguesa (1993), onde a mestria naturalista de Abel Botelho também é destacada.
É na década de 1990, entretanto, após o romance completar o seu centenário, sem
comemorações, que a crítica voltará a sua atenção mais fortemente para ele. Os estudos de
gênero que se consolidavam nas universidades (e todos os seus desdobramentos, como os
estudos gays e lésbicos e o estudos queer) encontraram na obra de Botelho terreno fértil para o
seu desenvolvimento, ainda que tímido. Botelho encontrava-se num limbo de esquecimento,
sua obra localizava-se cronologicamente entre Eça de Queirós e Fernando Pessoa, entre a
Geração de 1870 e a Geração de Orpheu. Eclipsado, de maneira que seu naturalismo evidente
pouco ganhava relevo para uma crítica iluminada pela interpretação de Portugal, como
3
Vale a pena apontar aqui, a título de nota informativa, para além das duas críticas anunciadas, a crítica de
Francisco Pacheco sobre o livro Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha. Publicada pela Folha do Norte, jornal do Pará,
em 03 de fevereiro de 1896. A crítica pode ser considerada como uma das primeiras aproximações entre os
autores brasileiro e português. Registramos que essa aproximação entre os romances Bom-Crioulo e O barão de
Lavos apenas voltou a ser realizada por Maria Leticia Guedes do Alcoforado (1988).
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propusera Eduardo Lourenço em seu O labirinto da saudade (1978), e que pouco dava atenção
aos temas e obras que não se conformassem aos grandes movimentos da História. Talvez,
no Brasil, o centenário de Bom-Crioulo (1896-1996) pudesse ter despertado a atenção para
Botelho, mas a investigação de Alcoforado (1988) não recebeu a atenção devida naquela
altura. Foram José Carlos Barcellos e Mário Lugarinho que, em 1998, despertaram O Barão
de Lavos, de seu esquecimento. Primeiramente, Lugarinho, em comunicação ao VI Congresso
da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Florianópolis/SC, 1998), reivindicou O
Barão de Lavos para os estudos gays e lésbicos de então. Na comunicação, apenas publicada
em 2001, Lugarinho observou que a obra, apesar de esquecida pela crítica, fazia parte da
memória oral da nascente comunidade gay portuguesa, tendo sido mantida, por gerações,
como leitura necessária e iniciática aos membros daquela comunidade. Barcellos, por sua
vez, em artigo, voltou a sua atenção à obra de Botelho, dentre outras, explorando-lhe as
várias possibilidades ético-morais, ao lado da verificação de um discurso que dava contornos
a uma identidade específica e inédita, pelo menos em Língua Portuguesa, até então. Barcellos
(1998) e Lugarinho (2001) observaram que a “novidade” de Botelho e seu Barão estava bem
além do naturalismo avant la lettre, mas na precisão com que delineou uma identidade
emergente, apesar de claudicante, que viria a fertilizar uma extensa série literária que pode
ser observada até a contemporaneidade4.
Consecutivamente, Robert Howes (2002) dará contas das “fontes” de Botelho ao
investigar as relações mantidas pela narrativa com eventos sociais e políticos portugueses
das décadas anteriores. De igual maneira, a experiência homossexual do barão também é
examinada em suas “fontes” na medida em que Howes se ampara no estado da psiquiatria
e da medicina legal no tempo de Botelho, tanto em Portugal, quanto na Europa. Destaca,
ainda, a conformação identitária do personagem-título cujo pendor estético parece apontar
para a permanência, ainda no fim do século, das teorias de Winckelmann5. Na mesma altura,
Leonardo Mendes (2003), dando continuidade à aproximação ao Bom-crioulo, inaugurada por
Alcoforado (1988) e Barcellos (1998), observou, concomitantemente a Howes, a excessiva
submissão do barão aos princípios que regiam a medicina de então, conformando-o numa
patologia identitária. A partir daí a obra de Botelho foi ganhando leitores e leituras diversas,
seja como referência histórica ou da história literária, seja como referência discursiva, na
medida em que conforma aspectos identitários e subjetivos relevantes para o século XX.
4
Pode-se requerer para essa série não apenas a produção do fim de século ou da belle époque. Ela se estende às
produções modernistas, como ser verá em António Botto, ou, mesmo, Álvaro de Campos/Fernando Pessoa,
chegando a alcançar a poesia de Al Berto e além. No Brasil, pode-se requerer para a série desde o já citado
Adolfo Caminha, passando por Nelson Rodrigues, Lucio Cardoso, Cassandra Rios, João Silvério Trevisan, Caio
Fernando Abreu, Silviano Santiago ou, mais recentemente, Victor Heringer (v. SANTOS, 1998; BARCELLOS,
1998; LUGARINHO, 2002, 2003; LOPES, 2002; INÁCIO, 2004; VALENTIM, 2016).
5
Johann Joachim Winckelmann (1717 – 1768) foi um historiador de arte e arqueólogo alemão. Sua teoria estética
aliava os ideais estéticos aos aspectos morais dos indivíduos, atualizando o princípio da estética de Platão de que
o Belo era a materialização Bem (CARRIER, 2001). Sua lição adentrou o século XIX e fertilizou, por exemplo, as
teorias do legista italiano Cesare Lombroso (1835-1909).
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Nação e masculinidade em O barão de Lavos
6
É preciso anotar que a palavra “homossexualidade”, ao contrário de hoje, não era corrente na época de Botelho.
Em O Barão de Lavos, Botelho utiliza as denominações mais correntes ao seu tempo, como pederastia, sodomia
ou, como bem aponta Curopos (2018), a denominação de “inversão sexual”, seguindo a nomenclatura médica
daquele tempo.
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Queirós (1878), ou, antes, em A queda de um anjo (1866), de Camilo Castelo Branco7.
Em O Barão de Lavos, no entanto, apesar de o divórcio figurar em certo ponto da
narrativa, é consequência de um “mal maior”. Este mal, por sua vez, não se trata exatamente
da homossexualidade de Sebastião, mas do modo como o personagem lida com ela e,
sobretudo, como o personagem administra seus desejos sexuais. Ao escrutinar a vida de
Sebastião, o narrador já revelara também a sua vivência particular, composta de práticas
próprias, lugares e códigos pré-estabelecidos, próprios de uma comunidade que se reconhece
por suas práticas comuns. O narrador, apesar disso, parece voltar o seu olhar, ao contrário
dos pares de seu tempo, para o elemento masculino das relações matrimoniais. É Sebastião
como homem que parece interessá-lo, um homem ao negativo, um indivíduo incapacitado
de atender aos requisitos de masculinidade, projeto de seu tempo (CONNELL, 1987; Mosse,
2000). É aqui, portanto, neste caráter dialético de O Barão de Lavos, que reside mais uma de
suas novidades, talvez a mais importante.
Apesar deste segundo veio da narrativa vir a reboque do primeiro, tratar da
homossexualidade de Sebastião não parece ser a patologia a ser considerada na pentalogia
de Botelho. É a sua falência como homem que merece a atenção e que lhe dará o fim
melodramático das últimas páginas.
Não seria demais afirmar que O Barão de Lavos se constrói a partir da tensão entre a
vida privada, que engloba o desejo (homos)sexual de Sebastião, e a vida pública, dada pelo
projeto de masculinidade desenvolvido no século XIX e que teimava em não se constituir em
Portugal. Por este motivo, Sebastião é metonímico, ele é a parcela da sociedade, a aristocracia,
que resiste à emergência dos valores modernos e burgueses daquele século. Sebastião se perde
em um mundo onde valores e práticas estão se ressignificando pela emergência, notadamente,
da burguesia urbana. Esse embate entre classes, em que uma representa a tradição e outra
representa a modernidade, parece ainda se desdobrar numa busca clara de uma “essência”,
uma autenticidade adequada à cultura de um Ocidente que abandonava ranços de castas,
fidalguia e aristocracia. Um sujeito capaz de executar a transformação para dele emergir
efetivamente o “novo”, a “novidade”. Esse sujeito deveria refletir
8
No original: “El ideal de masculinidad fue invocado por todos lados como símbolo de regeneración personal y
nacional, pero también como básico para la autodefinición de la sociedad moderna. Se suponía que la masculinidad
salvaguardaba el orden existente contra los peligros de la modernidad, pero también se consideraba como un
atributo indispensable de aquellos que querían un cambio” (MOSSE, 2000, p. 5).
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máxima do ideal iluminista de promover o bem-estar humano” (GRANJA, 2003, p. 40),
é o resultado de dois processos anteriores, o do “sonhador” e o do “amador”, que virão a
propiciar a emergência do “fomentador”.
Apesar de Abel Botelho ter sua estreia como romancista duas décadas depois das
célebres Conferências do Cassino (1870), e a sua narrativa se desenvolver nos anos finais da
década de 1860, pode-se verificar que não ficou alheio ao drama de Goethe – ele ecoa não
apenas em O Barão de Lavos, mas na produção botelhiana de um modo geral. Para isto, o
escritor elege uma tríade que lhe serve como horizonte desejável – a interação orgânica
entre o sentimento, o pensamento e a ação. É neste horizonte que se cruzam os ideais do
romancista português e o tripé proposto pela leitura do Fausto por Berman, já que se tornam
facilmente relacionáveis às equiparações: sonhador = pensamento, amador = sentimento,
fomentador = ação.
Sebastião, o barão, é projetado para ser o fomentador, um homem moderno na burguesia
portuguesa. Para tanto, não lhe faltam recursos: berço, formação, status econômico e social,
casamento e trabalho. O personagem, no entanto, está fadado ao fracasso, pois, apesar de
sua formação na faculdade politécnica, as posses herdadas de sua família e o prestígio social
de que goza na sociedade lisboeta, o barão não consegue articular as três premissas que
mobilizam o modelo de masculinidade de seu tempo.
Como exemplo consideramos a passagem em que Sebastião, já depois de sua derrocada
matrimonial, social e econômica, inaugura um ateliê fotográfico, com o apoio financeiro
de seu amigo Mendonça. Neste trecho é possível vislumbrar a possibilidade de regeneração
do personagem, que explicita, por meio do empreendimento que idealiza, a sua inserção na
modernidade pelo ingresso no mundo do trabalho por meio da prática dada pelos avanços
tecnológicos de seu tempo, a fotografia, e pela consequente promessa de enriquecimento.
Todavia, essa regeneração é posta em xeque exatamente no momento em que é requerida de
Sebastião a capacidade de ação, ou seja, agir como um fomentador. Apesar de apresentar as
competências de idealizar e projetar o empreendimento, que o apaixona, ao ter de comprovar
a competência para empreender, a mais importante porque inscreveria o projeto na vida
prática, ele falha. Sebastião não consegue administrar as suas vontades, especialmente as
sexuais, “porque não era o barão moralmente homem de meias-tintas: a paixão dominava-o
fácil; à menor pressão de contrariedade, o seu temperamento cálido e fraco saltava, como
uma rolha de champagne, como um estampido cavo” (BOTELHO, 2020, p. 170).
George Mosse, como já foi observado, ao tratar da construção da masculinidade
moderna, pontuou, dentre outros aspectos, a necessidade que teve o homem de domesticar
suas paixões, aplacar seu instinto violento e docilizar seu ímpeto, a fim de viver em uma
sociedade urbanizada. Ora, no romance de Botelho falta ao barão exatamente essa capacidade.
Seu descontrole, a submissão às suas paixões impede-o de ascender ao modelo masculino
moderno. N’O Barão de Lavos, a principal interdição, no que se refere à adequação do
personagem ao modelo de homem moderno, dá-se pela incapacidade de Sebastião de domar
o seu ímpeto sexual. Isto se revela já nas primeiras linhas do romance, quando o narrador
apresenta o personagem que, naquele momento, rodeia um circo à caça de algum efebo
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disposto a lhe satisfazer. Tanto nesse primeiro momento, quanto na adiantada passagem
do ateliê fotográfico, o personagem sucumbe ao ímpeto sexual. A diferença entre os dois
momentos narrativos é que, se na primeira cena parece haver no barão algum tipo de pudor
em relação ao que pratica, na segunda cena este pudor é tão irrelevante que Sebastião, tão
breve quanto consegue, reserva o ambiente do ateliê unicamente para a sua satisfação sexual,
negligenciando completamente quaisquer atividades laborais.
Se o que norteou, não apenas O Barão de Lavos, mas, também, o pensamento naturalista,
como um todo, foi o ideal de saúde, força, beleza e juventude, sintetizado na máxima olímpica
do barão de Coubertin, mens sana in corpore sano, a mesma lógica, como demonstraram
Eksteins (1991) e o mesmo Mosse (2000), produziu os corpos atléticos e viris que passaram a
representar a força e o poder das nações modernas. Se, à primeira vista, as ações de Sebastião,
descritas minuciosamente, fazem emergir um personagem contraditório: calculista, por um
lado, submetido aos seus instintos animalescos, por outro, a narrativa trata de levá-lo ao
fracasso frente ao modelo de masculinidade. O continuum descritivo encarrega-se apenas de
acentuar o declínio do personagem.
Mesmo antes de se ocupar em descrever pontualmente o tipo físico do barão, o narrador
dissemina a imagem de um corpo desde sempre doente. Quando descreve, por exemplo, o
jovem Sebastião ao concluir seus estudos, refere-se a ele como:
alto, esgalgado, seco – ardia-lhe na cintilação febril dos grandes olhos negros
o furor perpétuo e insaciável do Desconhecido; e a cada um desses incêndios
ferozes da pupila correspondia instintivamente um abrir das mãos descarnadas
e um trémulo agitar dos dedos, nervoso, inflamado, adunco, uma como ânsia
de apalpar a Vida. Conformação feminina: cabeça pequena, ombros estreitos
e ladeiros, bacia ampla, rins muito elásticos, os pés metendo para dentro. O
rosto, de um alvo lanugento e macio, tinha uma expressão menineira e ingénua,
um ar tocante de fragilidade e doçura. Mas não inspirava simpatia; traía-lhe a
inconsistência do carácter essa linha apagada, miúda das feições. O olhar era de
ordinário baixo; não cruzava com firmeza; e sempre que sentia um outro olhar
a interrogá-lo fito, as pálpebras desciam logo, a garantir-lhe a inviolabilidade do
abismo (BOTELHO, 2020, p. 66).
Eu havia de ser isto, por força! Trago a tatuagem da infâmia. Estava escrito…
A genealogia moral dos meus é edificante… Meu trisavô, inquisidor, era um
verdugo e um místico; meu bisavô, um sodomita incorrígivel, morreu aos
dezanove anos, esgotado, tísico; um irmão dele, que foi cardeal, organizou com
tiples castrados da sé e meninos de coro um harém para seu uso exclusivo; minha
avó paterna, espécie de Egéria debochada e histérica, essa pagava os madrigais e
os sonetos com dormidas, por escala, às noites, no seu leito, à choldra almiscarada
dos seus preciosos turiferários; e meu pai… meu pai foi mignon de D. João VI…
Tudo o mais assim… Ora com tais precedentes, que querias tu que eu viesse a ser,
senão isto que tenho sido - um escanzelo, um pulha? (BOTELHO, 2020, p. 277).
Além dos dados de seu condenável histórico familiar, de modo geral, a própria História
de Portugal condiciona-o à imoralidade e ao desenfreamento sexual. Isto fica em evidência
já no segundo capítulo do romance, quando o narrador, ao discorrer sobre o título de barão
atribuído a Sebastião, recupera a historiografia da nação, atribuindo à colonização grega e
romana a “inversão sexual do amor, o culto dos efebos, a preferência dada sobre a mulher
aos belos adolescentes”, ao mesmo tempo que associa aos “Bárbaros do Norte” a incapacidade
de controlar o ímpeto (BOTELHO, 2020, p. 63-64). Ao verificar a ascendência degenerada
de Sebastião, o narrador não apenas vincula o personagem à história de Portugal, mas
transforma-o em metonímia de uma sociedade toda fadada ao fracasso, incapaz de se domar
e, desta maneira, se modernizar.
Essa percepção distópica do narrador de O Barão de Lavos já se apresentara, como bem
aponta Granja (2003), em carta enviada, em 1890, por Antero de Quental a Alberto Osório
de Castro. Nela, Quental discorre sobre a impossibilidade de uma revolução moderna em
Portugal, já que para tal intento seria necessário “propósito, firmeza e força moral, o que aqui
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não há”. O poeta arremata afirmando: “Portugal é um país eunuco, que só vive duma vida
inferior, para a vileza dos interesses materiais e para a intriga cobarde, que é processo desses
interesses” (QUENTAL, 1980 apud GRANJA, 2003). Se for acrescentada a perspectiva de
Robert Howes (2003)9 a essas considerações, fica clara a crítica de Botelho não à pederastia
como sintoma que detonara a “patologia social”, mas a existência de uma classe dirigente
incapaz de se adequar ao século, ao tempo e ao projeto de modernidade, tão ansiado pelos
intelectuais portugueses do fim do século.
Ao se articular ambos os textos, a carta de Antero de Quental e o romance de Abel
Botelho, fica evidente que ambos tratam do mesmo problema: o caráter pouco viril da nação
e de seus componentes. George Mosse apontou que a associação entre masculinidade e
nacionalidade propiciou a constituição do nacionalismo e da nação modernas na medida em
que o nacionalismo exaltava a masculinidade como forma de auto-representação (Mosse,
2000, p. 65). A nação não deveria lançar mão apenas de símbolos nacionais vinculados
ao masculino, mas ela mesma deveria encarnar em si aspectos da masculinidade, como os
elencados por Quental, como “propósito, firmeza e força moral”. É estabelecida, assim, uma
relação circular, pois na medida em que a nação constrói indivíduos dotados de masculinidade,
também se projeta como uma nação dotada de virilidade (“propósito, firmeza e força moral”,
portanto). Nessa medida, o romance de Abel Botelho é a narrativa da falência de Portugal,
incapaz de se realizar como uma nação forte, pois, “país de eunucos”, como afirmou Antero
de Quental, não produzia filhos capazes de promoverem as revoluções necessárias em si
mesmos ou no contexto nacional.
É importante destacar ainda que, durante parte significativa da narrativa, as ações de
Sebastião são associadas à prática da pederastia grega, dando ensejo à repetida nomeação
dos jovens, buscados pelo barão, como efebos. O recurso é uma artimanha flagrante, porque
amparado em teorias como a do já referido Winckelmann constitui um protagonista cujo
olhar sobre o mundo seria constituído por uma percepção estética das coisas, entretanto,
na medida em que a narrativa avança, quaisquer arrebatamentos pela beleza são facilmente
abandonados em favor da sensualidade e da paixão. Nesse sentido, o discurso da descrição do
quadro do rapto de Ganimedes, caracterizado como a alegoria sublime do amor, é facilmente
substituído pela genealogia familiar do barão, servindo apenas para encobrir as paixões
que subjazem a essa percepção estética do mundo. Ao mesmo tempo, o corpo de Eugênio,
fetichizado, primeiramente, como um corpo esteticamente perfeito, digno de adoração,
provoca ânsia e desejo irrefreáveis:
9
Em seu artigo, Robert Howes (2003) observou a flagrante aproximação da narrativa de Botelho ao episódio
policial que envolvera, em 1881, em escândalo público o Marquês de Valada, D. José de Meneses da Silveira e
Castro (1826–1895). Deputado e figura muito próxima à Família Real, o marquês fora flagrado pela polícia,
na Travessa da Espera, no Bairro Alto, em Lisboa, na noite de 02 de agosto de 1881, com um jovem soldado
em circunstâncias comprometedoras. Segundo Howes, o episódio poderia ter sido facilmente esquecido, já que
a homossexualidade não era crime, não fosse a atuação do artista plástico e chargista Bordalo Pinheiro que,
durante muitos anos, não deixou a memória do episódio esmorecer, muito menos por escândalo moral, e muito
mais por oposição política e anti-monarquismo.
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o barão, começara a preponderar. O apetite carnal cresceu, irreprimível. Num
dado momento, parou a olhar o modelo com a pupila empanada, o lápis caiu-lhe
dos dedos trêmulos, as maxilas oscilaram-lhe num jeito de carnívoro, e então
foi tomar o efebo nos braços e refugiou-se com ele na penumbra da alcova...
(BOTELHO, 2020, p. 85).
Deve-se compreender que O Barão de Lavos, apesar de ter sido reconhecido como
registro da vida social lisboeta do final do século XIX, operando a partir da tematização da
prática da homossexualidade e o seu juízo, o romance é, acima de tudo, uma narrativa sobre
homens dominados pelo desejo e subjugados pela paixão. Apesar de importarem, as práticas
sexuais dos indivíduos não são a única determinante para o seu fracasso ou o seu sucesso, mas
sim o que o indivíduo faz do seu desejo, se o submete ou se é por ele submetido. O domínio
das paixões era condição para a emergência da masculinidade moderna, o domínio sobre
os seus sentimentos, o domínio sobre si eram formas inequívocas para se reger a vida em
uma sociedade urbanizada, posto que o equilíbrio social era a única garantia de estabilidade
política e econômica e de manutenção, por conseguinte, do poder do Estado.
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MOISÉS, M. A patologia social, de Abel Botelho. Tese de Livre-docência. São Paulo: FCL/
Universidade de São Paulo, 1958.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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A fuga como resistência e busca por novos
horizontes em Onde acaba o mapa,
de Carol Rodrigues
RESUMO: O presente trabalho trata de uma leitura de um dos contos que compõe o livro Sem
vista para o mar, de Carol Rodrigues. Busco uma reflexão acerca do conto “Onde acaba o mapa”,
mais precisamente da prática dos afetos homossexuais por parte da personagem central, o “menino
jurado”. Este é nomeado desta forma (ou “menino de mentira”) por ser visto, numa espécie de
flagrante (por “meninos de verdade”), beijando outro “menino de mentira” no muro atrás da escola.
Prática que lhe ocasiona um juramento de morte e, por isso, precisa fugir numa longa viagem pelo
rio-mar. Proponho pensar o conto de Rodrigues por meio da metáfora do armário, i.e, quais as
reações sociais pelas quais passa um sujeito que sai involuntariamente ou opta (de forma deliberada)
pela saída do armário. Ademais, quero refletir onde estão ancoradas as justificativas sociais que
expliquem aquelas reações, se existem territórios específicos para a prática da LGBTfobia, ou se há
lugares mais progressistas e democráticos. Quero pensar essas questões sem deixar de ter em conta
o cuidadoso trabalho com as palavras empreendido por Carol Rodrigues neste livro que recebeu,
entre outros, o Prêmio Jabuti, na categoria contos e crônicas, na edição de 2015.
ABSTRACT: The present work deals with the reading of one of the short stories that make up the
book Sem vista para o mar, by Carol Rodrigues. I seek a reflection on the short story “Onde acaba
o mapa”, more precisely on the practice of homosexual affections by the main character, the “boy
wanted dead”. He is defined as such (or as a “non-real boy”) for being somewhat caught red handed
(by “real boys”) kissing another “non-real boy” behind the school wall. That practice causes his
life to be threatened and, therefore, he needs to flee on a long journey by the river-sea. I propose
to think Rodrigues' story through the closet metaphor, i.e., what are the social reactions that an
individual who came out involuntarily or chose (in deliberate way) to do so. Furthermore, I want
to ponder where the social justifications that explain those reactions are anchored, and if there are
specific territories for the practice of LGBTphobia or if there are more progressive and democratic
places. I want to think about these issues while taking into account the careful work with the
words undertaken by Carol Rodrigues in this book that received, among others, the Jabuti Award,
in the short stories and chronicles category, in the 2015 edition.
* Curso de Letras – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação – FAALC – Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul – UFMS – 79070-900 – Campo Grande – MS – Brasil. E-mail: fa.nantes@gmail.com
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Esse amor é mal entendido nesse século, tão mal
entendido que pode ser descrito como o “amor que não
ousa dizer o nome”.
Avistando um preâmbulo
“Mulher arrepia mais” alude uma das narradoras de Carol Rodrigues, aos leitores, em
um dos contos de Sem vista para o mar: contos de fuga (2014). Provavelmente (peço licença a
todas as mulheres) eu seja uma porque fui arrebatado e durante muito tempo fiquei extasiado
com a escritura desta autora que recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio Clarice Lispector, este
último promovido pela Fundação Biblioteca Nacional, ambos edição de 2015, na categoria
contos e crônicas. Corre à boca miúda que a escritora participou de uma oficina promovida
pelo escritor e produtor cultural Marcelino Freire, e, ao terminar a oficina, foi para casa
escrever e o resultado é uma obra potente, carregada de tensão e força literárias. O conto que
abre o livro, “Onde acaba o mapa”, é muito bonito, extremamente. Mexeu comigo. Adjetivo
difícil de ser retirado do âmbito da crítica literária, eu o sei, mas neste texto, quero, como
Carol Rodrigues, desviar das regras propostas seja pela Academia ou pelos manuais que
regem as normativas para um projeto escritural.
Queria que o mundo todo lesse e chorasse comigo; comigo e com a personagem central
do conto, ao se inteirar da vida precária da personagem nomeada no texto literário de “menino
jurado”; jurado de morte por não ser/se parecer com um “menino de verdade”, ou ainda, pelo
“delito” de relacionar-se afetivamente com alguém do mesmo sexo. A personagem central do
conto é um menino – optei pelo termo menino por repetir o modo descrito no texto literário
– homossexual, logo, de acordo com o pensamento conservador-heterossexista, não merece
circular/estar com os “meninos de verdade”, deve ser rechaçado, invisibilizado, eliminado
letalmente; e reagindo à violência, decide fugir para preservar a própria vida.
A fuga comumente compreendida a partir de um lugar-comum aloca o sujeito que a
empreende numa esfera de covardia, entendida como falta coragem para permanecer e fazer
um enfrentamento olhando no olho daquilo que o desestabiliza, o faz se sentir desconfortável.
A fuga, aqui, ou melhor, no verbo categórico da escritora Carol Rodrigues será pensada como
gesto de coragem e que nada tem a ver com covardia. Não é senão uma ação de sobrevivência
e, por conseguinte, de resistência.
Quero entender a prática da fuga por outra perspectiva semântica: a personagem de
que lanço mão para pensar a fuga é a que escapa à vida pré-estabelecida por outros, seja
a família ou o entorno social. Ela foge, então, por entender que sua vida deve ser livre,
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vivível, vivenciada a partir de outro status quo, i.e., para além das convenções sociais que
regidas pela compulsão heteronormativa que determina como o sujeito deve se mover no
interior da sociedade.
O “menino jurado” cuja prática homossexual é revelada passa a ser medido pelo olhar
social que perscruta a vida dos cidadãos e indica quais práticas são aceitáveis e quais não
são. O gesto – o beijo em outro “menino de mentira” praticado pela personagem central do
conto é entendido como inapropriado, inaceitável, abjeto, logo, o sujeito homossexual não
passa desapercebido. O elemento que desencadeia a violência contra a personagem tem a ver
com a revelação – ainda que involuntária – acerca dos desejos/afetos do “menino jurado”
por um corpo igual ao seu; em outras palavras, a homossexualidade propriamente dita. Por
intermédio da mirada social perscrutadora os sujeitos LGBTs são apontados, assediados,
injuriados, violentados. A saída do armário é uma espécie de revelação de um segredo que
imediatamente põe em marcha todo um movimento homofóbico no interior da sociedade
que visa à destruição da homossexualidade.
Para Eve Kosofsky Sedgwick (2007), a metáfora do armário utilizada para homossexuais
masculinos e femininos estende-se para uma série de outras questões no mundo ocidental.
Em outras palavras, sair ou não do armário não tem a ver apenas com a autodeclaração do
sujeito gay, mas implica questões de classe, etnia, religião, etc. No auge do nazismo, quando
milhares de judeus eram dizimados, era impensável que eles saíssem do armário, expressassem
a sua etnia e/ou a sua religião de forma aberta. Era uma questão de sobrevivência manter
no armário a etnia e a religião judaicas, o que não difere, em muitos casos, quando se trata
da homossexualidade. A metáfora do armário, pensada, quase sempre, para homossexuais se
desloca destes e implica outros grupos e categorias sociais.
Determinados grupos e categorias sociais estão, na atual gestão do presidente Jair
Bolsonaro, sendo severamente atacados, entre eles, mulheres, negros, indígenas, nordestinos,
comunidade LGBT. Um dado importante é a quantidade considerável de apoiadores do atual
governo do Estado-nação; pessoas que endossam um discurso de ódio, de abjeção, de exclusão,
de eliminação, em relação a determinados corpos, saem do armário. Talvez esta saída do
armário se dê pelo fato de que muitos se sentem legitimados pelo chefe de Estado a fazê-lo.
O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas,
para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há
poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais
afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário
não seja ainda uma presença formadora [...]. Numa escala muito mais ampla e
com uma inflexão menos honorífica, a epistemologia do armário também tem
sido produtora incansável da cultura e história do ocidente como um todo
(SEDGWICK, 2007, p. 22-23).
Recentemente chegou até as minhas mãos o livro da filósofa e ativista Djamila Ribeiro,
Quem tem medo do feminismo negro? (2018). Nele, a autora relata uma série de intempéries
que sofreu por sua condição de sujeito negro, entre elas, o fato de professar fé numa religião
de matriz africana, o candomblé. Djamila, ao ter seu turbante arrancado de forma agressiva
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e a exposição da cabeça raspada durante o intervalo na escola, teve sua religião posta para
fora do armário e passou a ser nomeada, de forma depreciativa, de “macumbeira”. Esse fato
a afastou, conforme ela mesma declara, de suas origens, fazendo com que ela se trancasse
no armário juntamente com sua religião. Além disso, a textura original de seus cabelos foi
modificada por alisamento para, num gesto de desespero, ser aceita no seu entorno social.
A personagem do conto de Carol Rodrigues, um adolescente de dezessete anos, em
“Onde acaba o mapa”, cuja proposta de leitura, aqui, está pautada pela metáfora do armário,
sai do seu lugar de clausura de maneira involuntária e passa a sofrer, pela exposição pública
do seu segredo, assédios, injúrias, arguições, questionamentos, ameaças. O armário pode,
então, ser entendido como espaço de refúgio, de proteção, mas caberia uma questão: ter
a vida, o desejo, as práticas afetivo-amorosas enclausuradas dentro de um espaço fechado,
logo, sombrio, seria democrático, justo, para aqueles que não querem estar encerrados nos
mais diferentes armários?
O conto de Carol Rodrigues propõe o fim do mapa, lugar onde o rio-mar acaba,
estabelecendo, assim, o território onde todas as trincheiras são levantadas, e, sem qualquer
opção que saia da manga ou gesto milagroso, a personagem precisa enfrentar seus algozes,
posicionar-se na linha frente. Este território estrategicamente desenvolvido pela escritora
indica as chances que o sujeito ficcionalizado tem para reivindicar a sua existência, posicionar
a sua narrativa ao lado de outras concebidas como melhores e adequadas (hegemônicas),
dessilenciar seu corpo, exigir o direito ao movimento corpóreo (circular nas instâncias
pública e privada. Posiciono-me, então, neste trabalho para pensar um corpo; o corpo de um
adolescente, o armário, a saída involuntária, a fuga como sobrevivência e resistência numa
sociedade cujo imaginário está pautado por uma hétero-ortodoxia, onde a mínima diferença
daquilo em relação àquilo que está validado socialmente como modos de ser e categorias
corretas causa uma onda de revolta contra os sujeitos subversivos.
Carol Rodrigues abre o seu Sem vista para o mar com o conto “Onde acaba o mapa”, e de
imediato o leitor é arrojado para o interior da existência de um adolescente de dezessete anos
que, por subverter a conservadora categoria do desejo (orientação sexual) heterossexual, é
jurado de morte por outros garotos, os “de verdade”. Num primeiro momento o leitor mais
pessimista acreditaria estar diante de uma escrita sem paliativos, sem saída para qualquer parte,
conforme o próprio título do conto alude, mas à medida em que o leitor vai se relacionando
com a potência verbal da autora, percebe que o fim da linha, do mapa, do rio-mar, espaço
que não dá para lugar algum, é justamente o começo; o começo do enfrentamento com o
outro, aquele que se posiciona de forma violenta contra a homossexualidade.
“Onde acaba o mapa” me dá notícias de um menino que beija outro menino em um jogo
de futebol da escola, e os “meninos de verdade” que ali jogam flagram o gesto de afeto entre
os dois e juram o primeiro de morte. O beijo que é um gesto privado, por se tratar de uma
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relação corpórea consensual, torna-se público porque todos no entorno do “menino jurado”
ficam sabendo; a notícia espalha-se de maneira vertiginosa: “Ele não existe e de repente
existe. Faz cinco dias foi jurado” (RODRIGUES, 2014, p. 11). O sujeito até então anônimo aos
olhares sociais passa a existir, mas com um traço marcado no corpo: o da homossexualidade,
demonstrando o modo como são percebidos “os portadores de sexualidades policiadas”
(BHABHA, 1998, p. 24), aquelas que fogem aos padrões determinados/pautados por
determinadas instituições a saber: a escola, as religiões fundamentalistas e, em muitos casos,
o próprio Estado-nação.
É interessante notar o modo como a personagem central passa da não-existência à
existência, ou melhor à existência-gay. Ela passa, então, a existir para logo ser eliminada
pelos “meninos de verdade” que empreenderão o gesto letal contra o seu corpo subversor.
Caberiam aqui alguns questionamentos acerca desta questão no que diz respeito à justiça:
matar é um crime, não se pode matar, mas por quais razões e ancorados em que uns matam
a outros? Jaime Ginzburg (2019), num artigo escrito para o Suplemento Pernambuco –
“Formas de interpretar os desejos assassinos” – empreende alguns questionamentos sobre os
quais me parece interessante pensar:
Para a sociedade contemporânea o que o ato de matar significa? Ele resulta de uma
perda de consciência, ou faz parte do que socialmente é considerado normal? Na
opinião de pessoas à nossa volta, todas as vidas são resguardadas por um direito
sagrado, ou algumas vidas importam mais que outras? É legítimo que alguém
mate, descumprindo a lei, se tiver razão considerada aceitável? (GINZBURG,
2019, p. 13).
[...] minha filha teu vestido, cabelo, sapatilha. Teu noivo ligando minha filha, tua
vó, teu pai a família. Não casou por quê minha filha, saiu assim, coitado, o João,
passou carão lá na igreja rapaz bom. Vai fazer o quê da vida minha filha vai fazer
o mais redondo quê (RODRIGUES, 2014, p. 58).
É clara a preocupação dessa mãe em relação aos rumos que a vida da moça tomará
após ela ter optado por desfazer o casamento. Para os membros da família (leia-se entorno
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social), o noivo, à revelia do desejo da protagonista, seguindo a tradição, ela deveria se casar.
Percebo, também aqui, a hierarquização corpórea, i. e., as relações dissimétricas de gênero,
segundo as quais os deveres que uma mulher tem (e o que se espera socialmente desse sujeito)
estão rigidamente pré-determinados: se casar, ter filhos, cuidar da família, caso contrário
“vai fazer o mais redondo quê”.
No conto “Das oito às oito” a personagem Michelina é uma mulher transexual que,
ao circular em espaços públicos, não passa incólume à perscrutadora mirada social sobre o
sujeito que ousou desafiar a rígida estrutura social que regula o gênero, subvertendo-o. Essa
mulher abdica do modus vivendi hegemônico da masculinidade – o homem cis – e passa a
viver com a constante presença do assédio em razão do deslizamento de um gênero a outro.
Às oito da manhã era o balcão da padaria. Pediu um pão na chapa e requeijão mas
com pouco requeijão tem light? Três homens olhavam, o olho não entende, duas
mulheres inteiras de frente e a cópia mal feita, ali, de peruca. Michelina puxou
a franja solta até o pico do arco desenhado a sobrancelha rala (RODRIGUES,
2014, p. 88).
E ainda:
Voltando pra janela estava lá o olho de mar aberto. Olhou de volta e se olharam
até [...]. Você vai no banheiro de homem ou de mulher. Aqui no ônibus tem um
só. Não, na sua vida normal, vai em qual? De mulher. Ainda bem cortou seu pau?
Cortei. Ainda bem e deitou de volta e bonito o garoto, virado pro oposto o seu
lado o boné enterrado na cara (RODRIGUES, 2014, p. 91).
O amor não nomeado, ou aquele que não ousa dizer o nome, por mais corriqueira que seja
sua performance no interior das sociedades ao redor do mundo, é algo que ainda constrange
os “cidadãos de bem” cujo imaginário está pautado pela perspectiva da heteronormatizante
e heteronormalizante. É o que acontece com o menino, o que foi jurado de morte, que saiu
do armário de maneira involuntária, pois não disse a ninguém que gostava de beijar outros
meninos, mas foi surpreendido numa espécie de flagrante, cometendo um “delito”, e em
consequência disto se viu obrigado a fugir, sair de casa à procura de um lugar seguro, viver
em outras paragens, lá onde o mar acaba...
Porque quando foi a outra vez foi no muro atrás da Escola Estadual Leônidas Ramos
Oliveira, de uniforme, os meninos de verdade jogavam futebol.
Foi com outro menino de mentira, era loiro, era de fora, era gostoso beijar e
sentir no beiço o buço ralo, moço novo, a mão na calça, ele tinha calça, no calor
suava todo, as costas as coxas o buço. Mas pegaram alguém viu contou pro pai
pra mãe pra irmã noiva, ia casar, e dali foi jurado por meninos de verdade que
jogavam futebol.
O outro menino que era de fora voltou para fora. Não fazia bem um moço culto
beijar inculto no cu do mundo o pai falou (RODRIGUES, 2014, p. 15).
A manhã passa na cadência o menino fugiu de casa pelo rio quer dormir. Fala
isso pro chapeiro que é o padeiro que é o dono que é bacana e ofereci um sofá ali
atrás [...] O padeiro é atento e nota, pega uma camisa nova, uma bermuda sem
listra, só sapato que não tem para emprestar (RODRIGUES, 2014, p.14).
Nos textos de Carol Rodrigues nem tudo é dor e sofrimento. No caso específico de
“Onde acaba o mapa” a personagem central encontra abrigo em braços desconhecidos. Talvez
a personagem Huma, do filme Todo sobre mi madre, de Pedro Almodóvar, tenha razão quando
afirma: “Simpre he confiado en la bondad de los desconocidos”, excerto extraído pelo diretor
de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. Um destes bondosos desconhecidos que
povoam anonimamente o mundo encontra-se com o “menino de mentira” que vê no senhor
Nestor a possibilidade de proteção. O padeiro engendra uma espécie de cuidados paternos
em relação ao menino que passa a trabalhar na padaria e se sente protegido, acolhido e,
sobretudo, sem necessidade de dar explicações sobre a fuga empreendida.
Longe das ameaças do juramento de morte, o suposto ex-jurado passa a se integrar
ao lugar, experienciar um espaço salubre para viver a sua vida para além do armário e sem
intervenções sociais sobre aquilo que é de mais privado que existe para o sujeito: o seu
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próprio corpo. Na nova cidade – interiorana, turística e com balneário –, não tardou muito
até o que o menino se encontrasse com outro menino.
Veio um garoto, quer cerveja, levou a cerveja e a mesma troça do moço que
vendia e tinha o mesmo pé cascudo pé de gente que fugia. Era ruivo meu deus
era de longe. Era pelo menos de fora. De onde você é de Londrina visitar família
antiga daqui. Família daqui é ruiva assim? Não, é bem mais escura foi toda
uma mistura mas eu nasci assim, vó da Irlanda por acaso de Deus. Preocupou o
menino era cristão, desistiu de conversar, sorriu, saiu, mas a mão de vermelho
pingado puxou a manga da camisa emprestada do padeiro. E você é de onde? Não
sabia responder.
De bem lá de cima do rio.
Pra gente daqui o rio é mar.
De bem lá de cima do mar.
Quer dançar?
Não sei dançar eu ensino. Foi prum meio de cadeiras o menino e o ruivo colocou
a mão direita bem firme em ficar longe da pele das costas. Era só um calor que
vinha da camisa. A mão esquerda pegou a direita do menino e ergueu noventa
graus quase cem. A cabeça assentiu aguardando a deixa da batida o sertanejo o
primeiro passo. Empurrou de leve o pé que era pra passar pra trás, do menino, e
o dois pra cá um pra lá da região ou do gosto do ruivo se fez.
Olhou em volta ninguém me olha fechou o olho e fez calor pelo queixo no ombro
ruivo do ruivo. Foram assim doze músicas iguais.
Os dois pra cá um pra lá deslocou o conjunto formado em movimento pra fora
do centro. Era um canto a entrada do banheiro e pra dentro do banheiro a boca
ruiva, o lábio mole, quis beijar. Beijaram um beijo ruivo, o lábio fino o lábio mole
[...].
Beijaram mais beijaram muito esqueceram do mundo o sertanejo aquele
bar. E como em filme censurado acordaram abraçados na areia agora quente
(RODRIGUES, 2014, p. 17-19).
Você tá bem? Cadê você sumiu na areia. Minha tia. Que tem a tia? A minha tia
morreu. Foi de quê, foi de velha, sinto muito, quem fala assim, não sei o que falar,
fala nada, falo o quê, me beija, beijo nada você sumiu, tia morreu, e daí avisava,
1
TGEU – ONG Trangender Europe. De acordo com o dossiê elaborado por este organismo, desde 2008 o Brasil
lidera o ranking mundial em assassinatos contra travestis e transexuais. Disponível em: https://tgeu.org/tmm-
update-trans-day-of-remembrance 2019/. Acesso em: 28 abr. 2020.
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como? Se tudo que eu sabia de você era que veio de cima do mar? Beijaram agora
um beijo índio, a boca aberta, deixando o todo da língua pra agora.
Nisso, três quatro rapazes, um grupo sai de um carro sai gritando sai correndo
dizem corre seus viados se não querem morrer e morrer hoje. Menino índio
se comprime todo, tava jurado, tava mesmo, importa não o estado, o vilarejo,
jurado assim pra sempre, é, fazer o quê. Já rezava uma ave nossa enquanto o
ruivo disfarçava (RODRIGUES, 2014, p. 21–22).
O seu Nestor que olhava tudo entrou na van, que trazia o pão, e buzinou, muitas
vezes, atropelando quase o grupo ameaçante. Com filho meu ninguém põe banca
teus pilantras, e gritava a mão buzina um cortador de queijo na outra, corto
tudo teus miolos. O grupo corre entra no carro e sai canta pneu. O menino
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olha espantado envergonhado seu Nestor diz fica calmo eu tô aqui pra tu
(RODRIGUES, 2014, p. 21–22).
Para além da ação de proteção e justiça de Nestor, é interessante notar que a sexualidade
do “menino jurado”, ou “filho novo”, em nada interfere nos afetos do padeiro. Ele não faz
qualquer tipo de arguição ou comentário em relação à orientação sexual do menino, senão
manter um posicionamento de ajuda e amparo. Para o pai-padeiro, os usos que a personagem
faz do próprio corpo diz respeito à ordem do privado: “E nisso tudo seu Nestor não queria
saber, nenhum detalhe nem sinal, só queria saber do filho novo viver muito viver bem
quanto puder” (RODRIGUES, 2014, p. 22).
Marisa Lajolo, crítica literária e júri do Premio Jabuti, afirma, na contracapa de Sem
vista para o mar, que o livro de Carol Rodrigues está construído a partir de um cuidadoso
trabalho de joalheria em relação à linguagem; que nele os sentidos são imprevistos, como
as personagens também o são. E, o que considero mais importante, Lajolo é categórica ao
anunciar que estes contos tratam de personagens com as quais a sociedade em geral cruza
todos os dias. Rodrigues ficcionaliza, então, as pessoas que povoam o mundo empírico, elas
saltam do mundo factual e se alocam no ficcional. É uma literatura com um posicionamento
claramente político, e mais, voltada para sujeitos específicos: aqueles que historicamente
estiveram/estão alijados – e o que é pior, com o aval do Estado-nação – das práticas e projetos
democráticos propostos para os cidadãos.
Carol Rodrigues, em seu Sem vista para o mar, afirma, num gesto ardente por democracia,
que há outros modos, outras possibilidades, outras formas de convivência, aceitação e
respeito em relação ao outro marginalizado. Indica, ademais, que é possível a construção de
territórios democráticos, onde o preconceito, o preconceito de classe social, o racismo, etc.
podem ser destronados e, desta forma, a sociedade pode começar a construir outros saberes,
outras perspectivas democráticas, outros desejos ou, conforme escreve a própria autora, é
possível outro “mapa, agora um mapa grande, um mapa mundi” (RODRIGUES, 2014, p. 23)
onde caibam todos os sujeitos e seus diferentes afetos.
Agradecimentos
Este texto está dedicado para meus/minhas alunxs da disciplina “Literatura e Estudos de
Gênero” (2019), até então inédita na UFMS, por encontrarmos, em conluio, um lugar para
nossas inquietações e caminharmos intelectual e afetivamente.
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NANTES, F. A. The escape as resistance and search for new horizons in Onde acaba o mapa,
by Carol Rodrigues. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 242-254, 2020. ISSN
2177–3807.
Referências
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.
RIBEIRO, D. Quem tem medo do feminismo negro?. São Paulo: Companhia da Letras, 2018.
RODRIGUES, C. Sem vista para o mar: contos de fuga. São Paulo: Selo Edtih, 2014.
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Performativo e subversão em Acenos e afagos,
de João Gilberto Noll
RESUMO: A partir da análise de Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll, procurou-se
demonstrar as subversões provenientes dos atos do narrador quanto ao discurso hegemônico
sobre o gênero sexual. As críticas sobre as considerações de Austin sobre os atos de fala, por meio
da leitura de Derrida (1991) e Butler (2016), sob a interpretação de Culler (2000), Nascimento
(2001) e Rodrigues (2012), mostram a relação do performativo com a linguagem literária como
um discurso parasitário, citacional e iterativo e, por consequência, capaz de instalar a transgressão
das ideias no centro da discursividade, subvertendo tanto a ideia de gênero sexual quanto a própria
ideia de linguagem literária. Busca-se enumerar as subversões do narrador quanto à questão de
gênero e discursividade.
ABSTRACT: In our reading of Noll’s Acenos e afagos (2008), we sought to highlight the
subversions arising from the narrator's actions in relation to the hegemonic speech about gender.
The criticism of Austin's ideas on speech acts, through the readings of Derrida (1991) and Butler
(2016), as interpreted by Culler (2000), Nascimento (2001) and Rodrigues (2012), shows that the
relationship between the performative and the literary language is that of a parasitic, citational
and iterative discourse. Consequently, it is able to install the transgression of ideas at the core of
discourse, therefore subverting both the idea of sexual gender and that of literary language. Our
considerations will point out the subversions of the narrator when dealing with gender and his
discourse.
* Departamento de Letras Modernas –Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP –
15054-000 – São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. E–mail: rodrigues.alves@unesp.br
** Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP – 15054-000 – São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. E-mail: profmarcuss@gmail.com
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Performativo: problematização geral
1
No original: “These performative utterances are neither true or false; they will be, depending on the
circumstances, appropriate or inappropriate, “felicitous” or “infelicitous,” in Austin’s terminology” (CULLER,
2000, p. 504).
2
No original: “In brief, Austin starts from a situation where performatives are seen as a special case of constatives
- pseudo-statements - and arrives at a perspective from which constatives are a particular type of performative”
(CULLER, 2000, p. 505).
3
No original: “Thus uttering the sentence ‘I promise’ is a locutionary act. By performing the act of uttering this
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Um enunciado sob três dimensões aparentemente deixa claro para Austin a intenção
do enunciador, entretanto o problema continua o mesmo: ainda existe a possibilidade de
falha dos atos ilocutórios.
Além da diferença entre o constativo e o performativo e das três dimensões dos
atos, existem outras considerações de Austin, exploradas pelos seus críticos, para poder
ampliar o horizonte de uma teoria geral da linguagem. Culler (2000), ao tratar da relação
da literatura com o performativo mostra que Austin excluiu os enunciados literários de suas
considerações, “o relato sobre os performativos de Austin, longe de ter a literatura em vista, a
exclui explicitamente. Sua análise, ele explica, aplica-se somente a palavras ditas seriamente”4
(CULLER, 2000, p. 507 – grifo do autor; tradução nossa). A literatura e qualquer discurso
dito não seriamente para Austin deveriam ser excluídos da teoria geral para a sustentação
da ideia de sinceridade e criar as condições necessárias para o sucesso do performativo. A
literatura ao não ser um enunciado sincero por não possuir o contexto total requerido, acaba
transformada numa citação de um discurso sério ou como Austin definiu: um parasita da
linguagem (DERRIDA, 1991, p. 367).
Em relação às três dimensões dos atos de fala, Nascimento (2001) mostra que a teoria
de Austin sai do campo puramente linguístico, não dependendo assim do puramente verbal,
“pois um ato de fala é o resultado de uma convenção bem mais ampla do que o componente
linguístico acaso identificado pelos gramáticos” (NASCIMENTO, 2001, p. 158). A tripartição
dos atos seria uma abstração, uma vez que todos os atos são locutórios e ilocutórios ao mesmo
tempo e “a preocupação recai finalmente na força ilocutória, objeto da última conferência
[de Austin], que deve estar presente em qualquer tipo de discurso, donde a necessidade de
estabelecer a tipologia dessa força ou desse valor gerais” (NASCIMENTO, 2001, p. 158). A
força ilocutória dos enunciados, que está para além do puramente linguístico, buscou no
estabelecimento de um valor para os atos ilocutórios as condições para a sua realização. E é a
partir dos problemas sobre a literatura ser um parasita da linguagem e da força ilocutória que
Jacques Derrida (1991) e Judith Butler (2016) iniciam as suas reflexões sobre o performativo.
sentence under certain circumstances I will perform the illocutionary act of promising, and finally, by promising
I may perform the perlocutionary act of reassuring you, for example” (CULLER, 2000, p. 506).
4
No original: “Austin’s account of performatives, far from having literature in view, explicitly excludes literature.
His analysis, he explains, applies only to words spoken seriously” (CULLER, 2000, p. 507).
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substituído pelo de performatividade” (NASCIMENTO, 2001, p. 150), ou seja, não se trata de
ser verdadeiro ou falso, mas sim feliz ou infeliz, apropriado ou inapropriado, bem-sucedido
ou fracassado. A crítica de Derrida concentra-se na possibilidade de falha de um performativo,
“está implicada na lei mesma que torna um performativo realizável” (NASCIMENTO, 2001,
p. 151) porque é preciso levar em consideração não somente o contexto, mas a própria
enunciação. A partir dessas premissas, Derrida vai trabalhar a questão do parasitismo, da
iterabilidade, da citacionalidade e da intenção dos atos de fala.
O ato de Austin ao excluir os enunciados não sérios de sua teoria ao chamá-los de
parasitas dos enunciados, para Derrida, não é acidental:
Austin exclui, portanto, como tudo o que ele chama sea-change, o “não-sério”, a
“parasitagem”, o “estiolamento”, o “não-vulgar” (e com toda a teoria geral que,
ao dar conta disso, não seria já comandada por estas oposições), aquilo acerca do
qual ele reconhece todavia como a possibilidade aberta a qualquer enunciação.
É também como um “parasita” que a escrita foi sempre tratada pela tradição
filosófica, e a aproximação não tem aqui nada de ocasional (DERRIDA, 1991,
p. 367).
Judith Butler é outra teórica que utilizou as considerações de Austin e também de Derrida
para teorizar o conceito de gênero performativo. Esta análise, a partir dos comentários de
Culler (2000) sobre a necessidade de Butler em tratar da noção da identidade feminina e da
leitura do gênero como uma produção cultural e social, sem negar as questões biológicas,
propõe entender o gênero como performativo, no sentido de que não é o que alguém é,
mas o que alguém faz. O gênero, então, seria o ato de alguém, “você torna-se um homem ou
uma mulher por atos repetidos, os quais, como nos performativos de Austin, dependem de
convenções sociais, caminhos habituais de fazer alguma coisa na cultura”5 (CULLER, 2001,
p. 513 – tradução nossa).
Culler (2001) mostra que, nas primeiras considerações teóricas de Butler nas quais ela
trata das questões de gênero, a ideia do performativo confunde-se com a de performance
teatral. Ser homem ou ser mulher é interpretar um papel, o que dá uma ideia de que é possível
escolher o gênero. Já em um outro desenvolvimento das mesmas questões, Butler mostra
que não há um sujeito já constituído devido ao gênero que escolhe, ele é sobredeterminado
5
No original: “you become a man or a woman by repeated acts, which, like Austin’s performatives, depend on
social conventions, habitual ways of doing something in a culture” (CULLER, 2000 p. 513).
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como homem ou mulher: um médico dizer “é um menino” ou “uma menina” no momento do
nascimento não é um enunciado constativo, mas o início de uma série de citações de gênero.
Butler também demonstra que a performatividade do gênero não é uma escolha, mas uma
questão de repetição/iterabilidade da norma da qual o gênero é constituído. A norma seria
uma prática obrigatória relacionada a um gênero e, mesmo assim, pode não funcionar como
esperado. E a possibilidade dessa prática não ser apropriada faz surgir, na proposição de
Culler, uma capacidade de resistência e mudança, mostrando a diferença entre performar as
normas de gênero e seu uso performativo, uma vez que é a citação das normas que liga a ideia
de enunciados performativos e a performatividade de gênero. Para tanto, Butler vai pensar
na violência da repetição obrigatória das normas na produção de efeitos performativos. Os
atos performativos seriam uma forma de discurso autoritário, pois ao realizarem certa ação
exercem um poder vinculante. É a questão da força ilocutória, vista mais acima. Assim, um
performativo cria a situação sob a autoridade do contexto total do falante.
Para finalizar, Culler (2001) demonstra a diferença do que está em jogo [at stake] entre
Austin e Butler na concepção do performativo em si mesmo. É clara na teoria de Butler
que a felicidade de um performativo não era um de seus objetivos, ela não quer mostrar
como performatizar apropriadamente a feminilidade, ou seja, que para ser uma mulher é
necessário preencher todas as condições dessa ideia social, pois “se é uma teoria que aloca
o sucesso na perturbação das normas de gênero, então parece uma diferente concepção do
performativo”6 (CULLER, 2000, p. 516). Assim, entre os teóricos parece haver dois tipos
diferentes de atos. Para Austin, os atos parecem ser singulares, já que podem ser cumpridos
de uma vez por todas ao encontrarem as condições para serem realizados. Já na teoria de
Butler, em contraste, “nenhum ato em si é ocasional. Eu me torno um homem, se é que é,
apenas através da repetição massiva e diária de procedimentos convencionais”7 (CULLER,
2000, p. 516 – tradução nossa).
Butler vai tentar demonstrar que a oposição sexo/gênero estaria inscrita na longa
tradição de oposições metafísicas que orientaram o pensamento ocidental. Para
Butler, a desconstrução da concepção de gênero seria a desconstrução de uma
equação na qual o gênero funcionaria como o sentido, a essência, a substância,
categorias que estão dentro da longa tradição metafísica de hierarquias
(RODRIGUES, 2012, p. 149).
6
No original: “if her is a theory that locates success in the perturbation of gender norms, that seems a different
conception of the performative” (CULLER, 2000, p. 516).
7
No original: “no act in itself brings something about. I become a man, if at all, only through massive, daily
repetition of conventional procedures” (CULLER, 2000, p. 516).
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Para Rodrigues (2012), o sexo é natural e o gênero é socialmente construído e reproduz
um modelo, o binômio sexo/gênero é tão arbitrário como o significante/significado, tantas
vezes pensado pela desconstrução. A partir disso, Rodrigues (2012) entende que “não
existe uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, e que a identidade é
performativamente constituída” (p. 150 – grifos da autora). Ao explorar a ideia de performance,
Rodrigues (2012) analisa:
Butler quer discutir o corpo não como “natural”, mas como tão cultural quanto o
gênero, de tal forma que problematize os limites de gênero e tome como cultural
a vinculação entre sexo e gênero. Com a proposição de gênero como performance,
Butler também vai solapar o peso metafísico da identidade (de gênero). Para ela,
não há identidades que precedam o exercício das normas de gênero, é o exercício
mesmo que termina por criar as normas. É a repetição das normas de gênero que
promove isto, que no pensamento da desconstrução chamamos de “duplo gesto”.
A repetição das normas como performances se dá sempre ao mesmo tempo em
que se dá a possibilidade de burlá-las, de fazê-las nem verdadeiras, nem falsas (p.
150-151 – grifos da autora).
O ressaltado aqui é a ideia da repetição em diferença. E ela conclui: gênero passa a ser,
assim, uma repetição de normas que já não retornam mais a um gênero original [...] mas se
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dá pela repetição de normas que podem ser transgredidas, imitadas, parodiadas, explicitando
a arbitrariedade do par sexo/gênero (RODRIGUES, 2012, p. 153 – grifo da autora).
Essa ideia da existência de um modelo de gênero “original” imitado é explicada por
Butler (2016) por meio da paródia:
A noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um
original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da
própria ideia de um original; assim como a noção psicanalítica da identificação
com o gênero é constituída pela fantasia de uma fantasia, pela transfiguração de
um Outro que é desde sempre uma “imagem” nesse duplo sentido, a paródia do
gênero revela que a identidade original sobre a qual se molda o gênero é uma
imitação sem origem (BUTLER, 2016, p. 238 – grifo da autora).
8
No original: “the iterability that is the condition of possibility of performatives introduces a gap that puts in
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Ao trocar a definição de contexto total de Austin pela noção de eventualidade, Derrida
abre a possibilidade de ler a literatura sob um aspecto singular e iterado, não se esquecendo
de que essa leitura é simultânea. Por um lado, o discurso literário cumpre um ato singular e
específico criando a sua própria “realidade”. Por outro lado, já levando em consideração as
considerações de Rodrigues (2012), o discurso literário é uma repetição em diferença, torna-
se um evento, por uma massiva repetição das normas dos gêneros literários que acaba por
assumir a norma, e possivelmente, desafiando suas estruturas.
Para Culler, a questão está ligada à relação entre forma e conteúdo. O conteúdo em
si é a singularidade do evento do discurso literário, aquele mundo representado é criado
como um ato ilocutório, e na sua força está a sua singularidade, mesmo que representando
certa quantidade de linguagem de uso ordinário ou social nessas considerações, isso é a força
parasitária da literatura. Quanto à forma, a iterabilidade do performativo constitui-se por
meio dos gêneros literários e suas normas e aplicabilidades. Veja-se o caso do romance, por
exemplo, que é discutido desde o Romantismo enquanto forma literária, só para citar um
momento dessa discussão. O problema, que não deixa esse debate fechar-se em si, é o fato
de o romance ser um gênero tão anamórfico e plural, por não seguir as óbvias regras de
construção dos outros grandes gêneros, só para citar à guisa de exemplo, como a epopeia.
Culler (2001), como visto acima, entende também que a literatura tem dentre as suas funções
um efeito social em relação ao leitor por trazer a literatura para o confronto com o mundo.
O gesto da leitura não deixa de afetar o leitor, entenda ele da performatividade ou não do
romance. Isso seria o mesmo que perguntar: que usos o leitor fará da leitura? A maneira
como o leitor recebe a obra é algo que o autor, o crítico ou a literatura de um modo geral
não podem e nem devem controlar. Assim, o que aqui se propõe é entender as subversões
dos discursos como uma proposta de leitura de Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll,
question a rigorous distinction between singular events and repetitions. But this apparent difference between
two sorts of acts brings us back to the problem of the nature of the literary event, accentuating a distinction
that was concealed in the appropriation of the notion of performative for thinking about literature” (CULLER,
2000, p. 516).
9
No original: “If a novel happens, it does so because, in its singularity, it inspires a passion that gives life to
these forms, in acts of reading and recollection, repeating its inflection of the conventions of the novel and,
perhaps, effecting an alteration in the norms or the forms through which readers go on to confront the world.
A poem may very well disappear without a trace, but it may also trace itself in memories and give rise to acts of
repetition. Its performativity, then, is less a singular act accomplished once and for all than a repetition that gives
life to forms that it repeats” (CULLLER, 2000, p. 517).
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demonstrando o quanto as diversas relações entre os performativos servem como uma
maneira de criticar a obra, principalmente a partir da proposta de pensar os enunciados
como efeitos passíveis de análise, ou seja, o gesto usual da desconstrução dos discursos
hegemônicos ou do logocentrismo.
A análise de Acenos e afagos (2008) tem como objetivo ressaltar da narração as sequências
narrativas em que o narrador defronta-se com a questão entre ser homem e ser mulher
para exaltar as diversas subversões no percurso narrativo. Antes de começar a análise desses
excertos específicos é preciso evidenciar a fábula da narrativa de um modo amplo para
demonstrar como o narrador concebe a diferença entre ser homem e ser mulher.
O romance constitui-se de um único grande parágrafo e a diegese pode ser dividia
em duas sequências narrativas a partir do conflito dramático (FRANCO Jr., 2003, p. 34) da
obra: o amor platônico do narrador pelo personagem denominado engenheiro. A divisão
em duas partes da narrativa leva em consideração os motivos geradores da diegese, a saber:
a relação do narrador com o engenheiro; e a transformação do narrador de um homem
em uma mulher por meio do desejo do engenheiro. A partir desses motivos, a fábula dá-
se, num primeiro momento, com o narrador construindo esse amor platonicamente pelo
personagem engenheiro, e, num segundo, concretizando esse amor possível por meio da
transformação. Por fim, o ponto considerado como divisor dessas duas sequências narrativas
é a morte e o renascimento do narrador.
Na relação do narrador com o engenheiro, na primeira sequência é construída a
ideia platônica de amor: o narrador conhece esse personagem desde a infância em Porto
Alegre; eles tornam-se amigos e o desejo do narrador é amplamente revelado durante todo o
percurso e sofrido de uma forma significativa quando ele é abandonado pelo engenheiro, o
que inclusive é a causa da morte do narrador. Após a morte do narrador, a segunda sequência
inicia-se, uma vez que o engenheiro retorna e ressuscita o narrador chamando-o a viver com
ele no Mato Grosso, formando assim a concretização desse amor.
Já com relação à transformação, na primeira parte, o narrador é um homem casado e
com um filho e, apesar de suas experiências sexuais com outros homens, esse fato só afirma
a fluidez da orientação sexual dos narradores criados por Noll, não somente nesta obra, mas
em quase todos os seus romances, tornando uma classificação quanto à orientação sexual
desnecessária. A partir da morte e ressurreição, o narrador sente-se obrigado, sem ser de fato
obrigado, a tornar-se uma mulher para poder concretizar o amor pelo engenheiro.
A partir desses motivos geradores da diegese é possível pensar o quanto o conflito
dramático é, de fato, o amor pelo engenheiro. É esse personagem quem leva o narrador
para a morte, é ele quem ressuscita o narrador, é ele quem obriga o narrador a tornar-
se uma mulher. Entretanto, é preciso pensar na questão do foco narrativo do romance,
principalmente pelo fato de esse romance, em específico, tratar a narrativa não como uma
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representação da realidade, mas que leva às últimas consequências a própria narrativa.
O narrador é autodiegético/protagonista (FRANCO Jr., 2003, p. 41-42) e possui uma
consciência de que seu ato de narrar trata-se somente de narrativa, ou seja, não é um escritor
que deseja criar um efeito de realidade ou verossimilhança do narrado para o leitor. Dessa
forma, ao determinar que o engenheiro é o causador de todos os fatos enumerados acima, há
uma performatividade do narrador diante da sua consciência do narrado. A ideia de obrigação
é debatida de forma irônica em todo o romance ao referir-se ao casamento, à relação sexual,
ao desejo e aos papéis sociais e sexuais preexistentes, ou sem origem, questionados durante
todo o percurso pelo narrador.
Podem-se dividir as cenas selecionadas para a análise em três grandes conjuntos
temáticos: 1) das subversões do narrador diante dos papeis masculinos e femininos por meio
de ironias e alegorias; 2) da obrigatoriedade de sua transformação ou uma força ilocutória
agindo sobre a sua corporalidade; e 3) do corpo em transformação.
O primeiro conjunto trata das transgressões promovidas pelo narrador na discursividade
usual sobre os gêneros sexuais. Pode-se observar isso já no sumário inicial do romance, em
que o narrador rememora uma luta contra uma criança no corredor de um consultório de
um dentista na cidade de Porto Alegre. Provavelmente essa criança é o futuro personagem
engenheiro, ambos ficam excitados e descobrem o corpo um do outro. O narrador expressa
essa descoberta corporal já duvidando dos papéis usuais de gênero: “Sabíamos que o sexo
deveria ser feito entre um homem e uma mulher e que dessa luta em meio aos lençóis
se gestaria a criança, essas crianças correndo por tudo como nós.” (NOLL, 2008, p. 9). A
expressão “sabíamos” não quer dizer, no caso, “deveríamos”; além disso, a expressão utilizada
para descrever o sexo é a luta em meio aos lençóis, o que o narrador e o outro personagem
estavam performando. Esse fato fica ambíguo na última parte da citação: “essas crianças”, no
caso os dois, “correndo por tudo”. A ambiguidade desse “tudo” por meio do ato de correr,
o que se associa à ideia de percorrer tudo, pode estar vinculado à traquinagem usual das
crianças correndo por todos os lugares, mas, também, percorrendo todas as possibilidades
de vida, sejam elas sexuais ou de outras naturezas
Quando o engenheiro desaparece da vida do narrador, ao seguir viagem com um submarino
alemão na primeira sequência do romance, o narrador demonstra mais claramente o quanto
o amor que nutre pelo engenheiro é platônico, pois fica imaginando uma possibilidade de ele
reaparecer e procurando notícias sobre o paradeiro do submarino depois de seu abandono. O
desejo do narrador é tão grande e, por não saber com certeza por qual sexo o engenheiro possui
desejo, chega a cogitar a seguinte possibilidade: “Ele poderia me querer como homem, como
mulher, os dois ao mesmo tempo.” (NOLL, 2008, p. 56). Os jogos não param na segunda parte
da narrativa, em que sua transformação já está em processo – “Ali, às vezes era mais mulher
que muitas outras.” (NOLL, 2008, p. 100) –, ao deixar claro que o engenheiro seria um marido
ausente, pois sairia para trabalhar, provavelmente no tráfico de drogas, e ele performaria a
esposa que espera o marido ao portão desde que lhe trouxesse uma quantidade de dinheiro
suficiente para bancar suas vaidades, no caso, cosméticas. A performatividade de ser mais
mulher que muitas outras é a demonstração da falha das concepções de gênero.
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A força ilocutória desse enunciado falha por completo: como poderia ser mais mulher,
só por performar uma atitude feminina em debate há tanto tempo, sendo um homem
que depende desses efeitos cosméticos para ser uma mulher? Essas questões ficarão mais
claras com a relação da falsa obrigatoriedade da sua transformação, mesmo assim, temos
novamente a ironia: “Grato também pela autêntica mulherzinha que haverei de ser, seguindo
o marido com devoção e obediência. A única coisa que ultrapassava o meu tartamudear
diário e de algum modo se refinava era o sexo da noite. Isso sim servia ao coração de minhas
necessidades.” (NOLL, 2008, p. 103). A ideia de autenticidade de seu futuro enquanto
mulher, ou o modo como ele usa pejorativamente o diminutivo por causa da devoção e da
obediência, justificam-se pela relação sexual com o engenheiro. A questão gira em torno de
um fato duplamente subversivo: é um homem que se transforma aos poucos numa mulher
e, ao exercer esse entre-papel, nem homem nem mulher completos, opta ser uma mulher
construída dentro de um “padrão tradicional”. O significado de padrão tradicional torna-se
relevante nesse caso, uma vez que o narrador, na primeira parte da narrativa, constrói essa
norma possível ao descrever a personagem Clara, sua esposa. “E eu deveria naquela situação
responder pelo meu nexo feminino, afinal eu era a dona que esperava o marido vindo de
não-sei-onde.” (NOLL, 2008, p. 113). E isso era exatamente o que sua esposa fazia por ele
enquanto ele estava com outros homens, explorando as diversas possibilidades sexuais. Mais
adiante, o narrador prossegue:
Uma parte de mim gostava de ser vista como mulher, de ganhar olhares de
desejo que só um homem pode empreender diante de uma fêmea. Mas muito do
meu desejo gostava mesmo era de ser cobiçado por outro macho. Nesses casos
eu pedia para meu pau crescer, eu pedia e ele atendia, ele, o meu pau, e o cara
– mesmo que com todos os disfarces –, dava uma olhada furtiva para a minha
virilha esquerda, onde o fulano costumava ficar de prontidão para se defender de
alguma brochada traiçoeira (NOLL, 2008, p. 105).
Veja-se a construção duvidosa do fato de gostar de ser mulher. Não é uma satisfação
corporal ter um corpo feminino com todos os seus atributos, mas relaciona-se com a
função de ser desejado por outro homem. A referência ao próprio órgão genital como
“fulano” demonstra um falso desapego, pois a esperança de que o outro “broche” é a
oportunidade de o narrador exercer um papel masculino ativo nessa possível relação
sexual. Esse jogo de entender o ativo como masculino e o passivo como feminino é parte
das ironias construídas. É por isso que o narrador chega a dizer: “Eu era uma senhora quase
sem atributos para o papel.” (p. 105). O principal questionamento realizado é a utilização
do termo “papel”, trata-se de um jogo dramático. O narrador interpreta/performa esse
papel feminino sem os atributos necessários: “Eu já era mulher? Não sei, simplesmente me
adiantava para decifrar o que por natureza se encolhia nas tramas grosseiras de um tecido
barato.” (p. 107). A dúvida dessa construção de uma mulher dá-se pelo fato de ser desejada
por um homem: “Hoje eu era um homem melhor. Mesmo confuso entre o macho e a
fêmea, saciava o desejo do engenheiro todas as noites, com direito, em dias de folga dele,
a bagunças orgiásticas também pelas manhãs e tardes ensolaradas.” (NOLL, 2008, p. 110).
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A confusão torna-se o motivo do ir adiante do narrador em função do engenheiro, “E eu
sigo encarnando sua dama. Ou sua alma.” (NOLL, 2008, p. 115).
Já em transformação, o narrador perde as referências corporais e deixa-se levar pelo
tempo, sem forçá-lo para que algo aconteça. Assume uma passividade diante da transformação,
mesmo ironizando-a: “Sei que verá ser eu uma mulher com pau e que nada farei para que
se transforme em vulva. Vejo que agora o garanhão chupa o meu cacete, fazendo o papel
de uma mulher famélica. É que sou bom de piça, eu mesmo acho.” (NOLL, 2008, p. 117). A
construção com o verbo no futuro deixa clara a consciência dos procedimentos do narrador
em não forçar o processo ao não fazer nada por essa transformação. O paradoxo criado entre
“garanhão” e “mulher famélica” reforça ainda mais a questão dos papéis que o narrador vinha
construindo. Qual é o papel da mulher, qual é o papel do homem nessa dramática luta dos
gêneros e suas determinações sexuais? Ressalta-se que o “garanhão” não é o engenheiro,
mas outro personagem, o açougueiro que acompanhou o narrador até sua casa. Mesmo o
narrador performando a mulher padrão do discurso hegemônico, o desejo sexual insaciável
não cessa, o que ele fazia com a esposa na primeira parte é o que ele continua fazendo com o
engenheiro na segunda, não interessa qual papel ele assuma, finge seguir o padrão criado por
ele mesmo: “Entre ser homem ou mulher fico com os dois. E que ninguém me siga.” (NOLL,
2008, p. 122). Permanecer nesse entre-lugar, o lugar vazio de sentido ou determinações é o
desejo do narrador durante a construção da narrativa: “E eu odiaria passar pelos infernos de
uma mulher ciumenta.” (NOLL, 2008, p. 123). É como se a sua transformação o levasse para
esse lugar da necessidade de ter ciúmes, entretanto, por “odiar” passar por essa situação, não
quer vivê-la.
A ideia de construir essa mulher por meio dos padrões tradicionais toca até no papel
da maternidade: “[...] o engenheiro permanecia quieto, mamando nos meus peitinhos
descobrindo só agora a suculenta dádiva das fêmeas. Eu tratava o engenheiro como um
verdadeiro bebê.” (NOLL, 2008, p. 124). E ainda:
Eu vivia o momento com uma espécie de enlevo, por estar doando pela primeira
vez uma produção alimentícia de minha matéria carnal. Eu era uma espécie de
condutora de sua escalada na minha nova morfologia. Eu era um homem expondo
a mãe na própria pele. Sentia-me toda úbere. Meu peito alimentava o viajante.
De certa forma ele precisava mais de mim do que eu dele. De qualquer modo, se
o engenheiro me faltasse agora, a quem eu iria amamentar? Se não surgisse um
nome, que fim eu daria a essa provisão excedente? (NOLL, 2008, p. 125).
Eu lhe devo tanto assim?, pensei. Ainda tentava, sempre lerdo, a travessia
entre meu falecimento e ali onde eu estava agora, nas vizinhanças de Cuiabá.
Por coincidência, essa travessia, essa verdadeira ponte era trabalho para ser
supervisionado por um engenheiro. Eis o homem, meditei (NOLL, 2008, p. 88).
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Toda a transformação processada está entre essa gratidão que o narrador deve ao
engenheiro pelo feito autoritário da ressurreição e pelo que esta leitura está determinando
como o conflito dramático centrado na realização do seu amor pelo engenheiro: “Naqueles
dias levava um leve casaco feminino nos ombros, sem vesti-lo, e esse parco figurino também
me ajudava a compor a mulher que nem o próprio engenheiro me pedira para ser.” (NOLL,
2008, p. 107). É importante ressaltar que essa obrigatoriedade da transformação é ambígua: o
destino pode querer isso, se tinha que ser seria, um plano que latejava em segredo, entretanto:
“Eu deveria continuar a obedecer cegamente os preceitos do meu homem, pois só poderiam
emanar de sua pessoa os cânones difusos do meu cotidiano. Era ele quem ditava, sem saber,
as normas. Voltei da minha morte pelas mãos desse ex-engenheiro.” (NOLL, 2008, p. 113).
A ambiguidade dessa autoridade é percebida na maneira como o narrador somente cita as
normas impostas. Quem diz que um homem ou uma mulher precisa tomar determinadas
atitudes ou não? É o que se vem tentando desconstruir nos meandros sociais ou filosóficos
sobre o pensamento do gênero. Entretanto, na narrativa, essa desconstrução do gênero já
procede a partir da subversão que vem se apresentando e que fica clara no seguinte trecho:
O trecho é longo, mas resume de uma forma eficaz o que se vem afirmando sobre
a obrigatoriedade despersonalizada de sua transformação e a sua transgressão. O roupão
japonês em si, além de ser gritantemente feminino, traz estampas de gueixas servindo chá,
alegoria da função do narrador enquanto mulher. Entretanto, o roupão vem acompanhado
de um recado claro: era para quem viesse a ser namorada do engenheiro. O narrador até se
questiona sobre o gênero feminino da palavra. É a primeira vez na narrativa que tem certeza
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de qual é a preferência sexual do engenheiro, mesmo assim, a subversão vem em seguida: na
cama durante a noite quem exerce a função que o narrador vem construindo como masculina
é ele mesmo: “o engenheiro tinha uma mulher que à noite lhe introduziria um cacete doído de
bom. Pois essa mulher era eu. Precisava me acostumar à nova situação”. Essa nova situação,
além de ser um performativo singular para a construção promovida pelo narrador, exatamente
como Austin desejou ao teorizar a questão, é também um performativo inapropriado para o
que se estabeleceu para cada um dos papéis sexuais esperados tradicionalmente. A dúvida que
o narrador suscita sobre ser o engenheiro, de fato, aquele que o ressuscitou mostra de forma
mais clara a obrigatoriedade despersonalizada que está se construindo: “para que eu lhe fosse
grato para todo sempre” é uma oração subordinada adverbial final. O objetivo do engenheiro
era criar essa obrigação travestida de agradecimento? É onde começam as dúvidas. A palavra
vida é acompanhada das expressões “passava a ter um dono” e “eu lhe devia”, da mesma forma
que ser mulher está acompanhada da expressão de “absoluta abnegação”. A compreensão
da situação à qual o narrador se submeteu se expressa pela palavra ainda em “viver para
o marido, como ainda tantas outras mulheres”. Ele sabe que está construindo um padrão
de mulher que não representa um padrão de fato, mas é o conflito narrativo, o leitmotiv
dessa obra como um todo, que vem como justificativa da transformação: “quem mandara
eu me apaixonar por esse homem desde sempre?”. E é isso que o faz seguir, não no gênero
performativo, mas na performance de gênero por meio de um trabalho: “trabalhar para fazer
de mim uma mulher próxima ao ideal”, pois ainda não era uma mulher acabada.
O não reconhecimento de ser uma mulher acabada leva à última análise: a transformação
do narrador por meio da palavra. Desde a sua ressurreição, o narrador veio assumindo a
forma feminina por meio de roupas e cosméticos; é uma mulher com uma genitália masculina
e tudo isso porque é ele quem assume um papel masculino na cama com o engenheiro.
Porém, quando o engenheiro recupera a sua “potencialidade masculina”, a transformação do
narrador ganha novos rumos:
Com seu corpo em preparação, em transição, sem o peso das determinações, até mesmo
a construção anterior do narrador diante das atribuições de cada papel perde seu valor diante
da maior subversão da narrativa: tudo era novo, até mesmo o prazer (“tentava fazer tudo para
gozar com o meu gozo inédito”). O corpo do narrador tem dimensões impensáveis e somente
realizáveis por meio de palavras: “Olhei o seu pau e me admirei que aqueles centímetros quando
dilatados tivessem se aninhado no meu sexo ainda em custosa mutação. Entre as minhas pernas
já havia certamente uma profundidade que eu ainda não sabia avaliar. Dava-me aflição mirar
até o fundo de minha vagina em formação”. A palavra profundidade possui então dois sentidos:
a profundidade de sua genitália em transformação e a profundidade de si mesmo enquanto
indivíduo: “Era como se eu não pudesse mais voltar se chegasse ao fundo de mim.” (NOLL,
2008, p. 148). Entretanto, a mutação é custosa e, ainda, um entre-lugar: “Ao passar a mão
entre minhas pernas para lavar, veio entre os dedos uma meleca endiabrada, que me dava
cócegas, me dava cócegas até eu começar a sentir o miserável cheiro dessa substância disforme,
mesclando os miasmas do homem e da mulher.” (NOLL, 2008, p. 169). O cheiro de sua genitália
em formação não determinava nenhum dos papéis:
E corri para o banheiro louco para verificar. Entre as minhas pernas toquei,
toquei, tateei, tateei… E acabei me entusiasmando. Pela ordem gradativa das
coisas, tinha me vindo enfim um grelo um pouco acima da zona alagada, por
onde eles todos me comeriam. E comecei a alisar o grelo para cima e para baixo,
para o leste e para o oeste. Chamava o prazer em surdina, mas cada vez mais
rápido. [...] Nesse ponto gozei com um toque enfático e vibrante no tal do grelo
(NOLL, 2008, p. 172-173).
O narrador diante do fato começa pela primeira vez a afirmar-se mulher: “Não sabia
ainda controlar aquele sexo inabordável que, por sinal, já era meu. Comecei a gargalhar
saudando os meus umbrais no prazer feminino. Aliás, já sou uma mulher, eu repetia e
repetia, atuando como uma desatinada perante a suntuosa novidade.” (NOLL, 2008, p. 179).
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A gargalhada possui sentido irônico, o narrador utiliza a palavra atuando ao repetir que era
uma mulher. Dizer é fazer? É um performativo ou uma performance? O narrador não se
deixa determinar. A transformação não cessa: há muitas outras etapas físicas na construção
de uma mulher: “Senti no meu pântano genital um calor de adeus. Ou talvez já era a tal
quentura da menopausa chegando com bastante antecedência.” (NOLL, 2008, p.184). Se há
a menopausa, também há a menstruação:
Passei as unhas, olhei. Era uma DST? Não, um sangue escorria pelas pernas.
Eu estava menstruada, era isso? Comecei a me perceber aliviada, livre de um
peso. E com o meu novo papel. Parece que agora eu já posso gerar como mulher.
O segurança não notou a hemorragia. Talvez meu organismo estivesse apenas
revelando plasticamente a sua oposição à morte. Enquanto o engenheiro se
ressecava, eu sangrava com abundância. Agora que, como mulher completa, eu
até menstruada e tudo, agora então que eu podia dar um filho ao engenheiro,
agora ele morria e seria devorado pela terra (NOLL, 2008, p. 184-185).
Considerações finais
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própria literatura, tratada de uma forma tão irônica, característica própria do romance em
nosso tempo: jogos reflexivos que são levados até o leitor para o confronto com o mundo.
São jogos que iniciam outros jogos.
O problema do performativo e de sua força ilocutória ao invés de criar uma teoria
geral da linguagem aprofundou mais ainda o abismo existente na compreensão do que é a
linguagem e como ela existe dentro do discurso narrativo. Em Acenos e afagos (2008), entre
performar e performatizar, ou seja, entre interpretar e transgredir, os gêneros, o narrador
aprofundou ainda mais a questão da estabilidade do que vêm a ser os gêneros ou do que
os gêneros podem vir a ser. De uma forma geral, parece ser um homem tentando ser uma
mulher mudando seu corpo por meio das palavras, mas é necessário perceber que há questões
outras, principalmente das que tratam de como alguns discursos hegemônicos, não somente
sobre o corpo, estão a todo momento interferindo na existência do narrador. E a subversão
do que poderia ser alguma definição de gênero, criada pela falsa estabilidade na primeira
sequência narrativa, é totalmente desestabilizada em diversos níveis na segunda, como visto
com relação à falsa obrigatoriedade de sua transformação ou, mesmo, a sua função sexual
durante a noite com o engenheiro.
Entretanto, entre essas considerações finais, outras subversões são claras na narrativa
e ainda precisam de análises mais aprofundadas, assim como a percepção da noção da
literatura enquanto performativo. As dúvidas que permanecem giram em torno dos
seguintes fatos: o discurso hegemônico emana somente do engenheiro ou existe de outras
formas dentro da narrativa? A transformação do narrador tem outras consequências além
de atender ao desejo do engenheiro para poder concretizar o amor ou ela estaria ligada ao
fato da consciência do narrador ensejar a dramatização de seu discurso? E com relação ao
performativo: é tão óbvia assim a ligação entre o discurso literário e a performatividade?
Todas as formas de literatura são enunciados performativos? Alguma literatura é mais
performativa do que outra? Tais interrogações nos conduzem a outras que, de alguma
forma, tentam unir a análise da obra ao problema do performativo: o narrador de Noll é
consciente de sua performatividade? Quais as consequências disso para a construção de
sua narrativa? O acúmulo dessas questões ressalta a profundidade do projeto estético de
João Gilberto Noll e o quanto ainda é necessário investigar e decifrar a pluralidade de um
romance cuja compreensão não se limita a uma única leitura.
Referências
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Um teto todo nosso: visibilidade, resistência e
subjetivação em clubes de leitura
RESUMO: Que é o ato da leitura, senão a incorporação da subjetividade de protagonistas e a indivisível produção
dos sentidos. Pensado como monumento, seria o livro e, consequentemente, a literatura, um legado consciente ou
inconsciente das palavras mudas, sobre o qual se expõe uma ordem do discurso. Assim, a partir de Le Goff (1990),
ao propor a necessidade de demolir a construção e analisar as condições sob as quais se produzem os documentos-
monumentos, esse trabalho focaliza sua atenção no consenso, atravessado por relações de poder, da predominância
masculina nos processos literários, desde quem escreve e estendendo-se na escolha de quem o lê. Isso posto,
norteando-se pela asserção de Virgínia Woolf (2014), ao exteriorizar a escassez de espaços às mulheres para a
produção literária, que deram conta também da ausência de reflexões femininas sob um determinado sentido, isto é,
o das mulheres, procura-se, então, destacar o surgimento de clubes de leituras criados sob o propósito de privilegiar,
com exclusividade, a escrita das mulheres. Percebidos como uma das marcas da sociedade contemporânea, bem como
herança das conquistas feministas, tais grupos, constituídos majoritariamente por mulheres, miram, na linha de seus
efeitos, a subversão da velha ordem do discurso de produção literária masculina. Essa é uma posição, obviamente,
promotora da construção de um pensamento crítico e, de forma indissociável, dos processos de subjetivação de suas
integrantes balizados pelas interpretações de si mesmas. Além disso, sob o respaldo do exercício foucaultiano (2014),
no que diz respeito às relações de poder, entende-se que tais espaços, ao se reinventarem sob a idiossincrasia literária
instituída, figuram como um local de protesto, onde, através de suas práticas, sujeitos e impulsos, ousam as mulheres
a se posicionarem do outro lado das relações de forças que atravessam e compõem, também, o universo da literatura,
apregoando-se, assim, como interlocutoras irredutíveis.
ABSTRACT: What is the act of reading, if not the incorporation of the protagonists´ subjectivity and the indivisible
production of the senses? Thought as a monument, it would be the book, and therefore literature, a conscious or
unconscious legacy of mute words upon which an order of discourse is exposed. Thus, based on Le Goff (1990), in
proposing the need to demolish the construction and analyze the conditions in which monuments/ documents are
produced, this paper focuses on the consensus, crossed by power relations, of the male predominance in literary
processes, from the one who writes to the one who reads. So, guided by Virginia Woolf's (2014) statement, in
externalizing the scarcity of adaptations to women for literary production, which also revealed the absence of feminine
reflections in a sense, of the women, it is necessary to emphasize the emergence of reading clubs created to privilege,
exclusively, the writing of women. Perceived as one of the marks of contemporary society, as well as an inheritance
of feminist achievements, such groups, composed mainly of women, have as purpose the subversion of the old order
of the discourse of masculine literary production. This positioning, of course, promotes the construction of critical
thinking and, inseparably, the subjectivation processes of their members marked by the interpretations of themselves.
Moreover, under the support of Foucault (2014), in regard to power relations, it is understood that such spaces, when
reinventing themselves under the established literary idiosyncrasy, mean a place of protest, where, through their
practices, people and impulses, women are challenged to be on the other side of the relations of forces that cross and
also form the universe of literature, proclaiming themselves as irreducible interlocutors.
Seguindo essa linha de raciocínio, é sempre bom lembrar que gênero advém de regimes
culturais que “ditam”, para mais ou para menos, as ordenações do corpo, da conduta e, por
fim, determinam os valores dos sujeitos, em uma disposição quase que hierárquica na qual
sucumbem as mulheres, relegadas às bases dessa pirâmide, quantificada pelo cumprimento de
“padrões de conduta”. A isso, Teresa de Lauretis (1994) denominou “tecnologias de gênero”,
ou seja, institutos sociopolíticos e culturais instrumentalizadores dos sujeitos e das funções
sociais que por eles devem ser exercidas em um verdadeiro sistema do “sexo-gênero”.
Entretanto, ainda que gênero seja entendido como um produto de diferentes dispositivos
sociais, atravessado por uma complexa operação de forças, esse trabalho sustenta sua
1
Iniciativa criada em 2014, na Europa, cujo propósito é a valorização do trabalho intelectual e leitura de mulheres,
chegando ao Brasil, particularmente em São Paulo, em 2015.
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inquietação, para o desenvolvimento das proposituras, sobre a questão do gênero enquanto
propriedade da esfera literária, determinada a garantir, como espelho, a manutenção das
relações hierárquicas e hegemônicas sobre os sujeitos, os espaços e os processos. Assim,
entende-se que a (re) produção dos marcos que limitam e permeiam o gênero na literatura
exercem a função de instrumento da tarefa da biopolítica, definida por Foucault (2014, p.
152) como técnica que opera, também, como fator “[...] de segregação e hierarquização
social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações
de dominação e efeitos de hegemonia [...]”.
A partir dessas considerações, cabe a lembrança de que os homens, patrocinados e
resguardados por códigos e discursos, os quais, para eles confiscaram o direito legítimo
de autoridade, impuseram-se no espaço social. Reservados, consequentemente, com
exclusividade ao domínio da norma, ditavam, sob tal disfarce, competências, condutas e a
hierarquia (in) visível dos sujeitos que com eles partilhavam funções e posições em sociedade,
em especial, as mulheres, metamorfoseadas em silêncio e obrigações, senão reprimidas a
injunções intolerantes, as quais requeriam delas o desaparecimento de qualquer aspiração
à igualdade. Acerca disso, vale a ressalva proposta pela escritora Virginia Woolf (2014, p.
54) ao afirmar: “As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e
deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural”.
Admite-se, portanto, que a delimitação dos espaços e funções sociais, destinando as
mulheres a uma situação de suspensão sobre sua própria subjetividade e busca de si mesmas,
mantém relações íntimas com as configurações de todo um regime social concebido para e
em nome do privilégio do masculino em detrimento do feminino e, cujos efeitos, entre tantos
outros, são as sentenças feitas ao rito da leitura. Observa-se que, a partir do século XIX,
como período de grande preocupação para com a leitura das mulheres, de modo a direcioná-
la e corrigi-la a fim de que convergisse com os interesses e afinidades buscadas pelos homens,
foram as mulheres contaminadas pelas disciplinas do masculino e suas mais variadas formas
de obter êxito sobre as disposições hierárquicas vinculadas, especialmente, a elas, como
sujeitos a serem operados/organizados por eles. Assim, “[...] a literatura contribuiu também
para endossar e difundir o discurso sobre atributos considerados naturalmente femininos,
que excluíam, inclusive, a criação literária, um dom tido como essencialmente masculino”
(MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, p. 30).
A obediência, então, a um sistema social de forças estruturado em prol do masculino, aqui,
com especial atenção aos domínios da leitura, faz um convite às discussões propostas por Michel
Foucault (1979, p. 12) ao abordar as questões do regime de verdade, que, segundo ele, é produtora
da “[...] maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que são valorizados
da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. Em
cima disso, entende-se que, com relação à leitura, permeada por efeitos específicos dos discursos
“verdadeiros”, o século XIX inaugurou não só disciplinas sobre as mulheres, ao dizer o que
elas deveriam ler, mas, também, determinou a importância e, paralelamente, a exclusão de sua
existência tanto no fazer/escrever, como no ler, como ato provido de autonomia e condições de
subjetivações, a partir de outros, que não os espirais do masculino.
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Dessa articulação histórica derivaram, obviamente, constructos singulares sobre
as versões e perspectivas para homens e mulheres, de modo que elas foram relegadas ao
obscuro, haja vista que, no interior do regime de verdade, cuja posição específica de poder e
de voz foi ocupada pelos homens, positivou-se um conjunto de argumentos e de regras que
alimentaram o funcionamento de processos de exclusão, criador do que Foucault (1979, p.
13) chamou de intelectual universal, ou seja, “[...] alguém que ocupa uma posição específica,
mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas
sociedades”. Dessa forma,
[...] melhor instruídas que suas antecessoras, as mulheres do século XIX, tinham
acesso à leitura mais fácil sendo que a maior diferença entre a leitura masculina
e a feminina ficava a cargo do conteúdo. A elas eram dedicados os romances da
vida interior, uma leitura que objetivava o divertimento; aos homens as notícias
sobre eventos públicos, uma leitura que objetivava a informação e o estudo
(MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, 32-33).
Logo, uma vez demarcada a constituição histórica das fronteiras imprecisas público/
privado, como fonte e objeto de hierarquias e propriedades/impropriedades ao feminino
e ao masculino, configuram-se também as codificações sobre e para o sujeito-mulher e
para o sujeito-homem. Entretanto, é justamente dentro dos limites da supressão feminina,
relegadas, então, ao silêncio e ao privado, que ousaram as mulheres a novas conjunturas
produtoras, talvez, de uma “estética da existência”. Segundo as noções de Foucault (2006, p.
290), essa concepção se desenvolve como consequência de “[...] um esforço para afirmar a sua
liberdade e para dar à sua própria vida uma certa forma na qual era possível se reconhecer,
ser reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um exemplo”.
Essas são, obviamente, atreladas a outras coisas; em particular, aos movimentos
feministas, que, impulsionados no decorrer da década de 1970, se impuseram na tentativa de
promover um recuo sobre as intenções e ditames agenciados pela velha ordem e pelas velhas
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280
funções que se estabeleciam ao feminino e, portanto, às mulheres2. Credita-se, então, aos
movimentos feministas, a constituição dialógica/subsidiária dos processos de subjetivação
das mulheres, haja vista que tais movimentos se determinam e se autoconstroem em um
longo processo de vai e vem entre elas e o exercício interlocutório com o ordenamento
social, desmistificando sua aparelhagem e reconstruindo novos padrões de subjetividade
para e a partir dos quais elas podem retornar em um movimento de reciprocidade.
Assim, no que diz respeito à correspondência feminismo e leitura, ocorre o
entendimento de que “A autonomia do leitor depende de uma transformação das relações
sociais que sobredeterminam sua relação com o texto” (CERTEAU, 1998, p. 268). Dessa
forma, faz-se importante a reivindicação das balizas do movimento feminista como o espaço
simbólico de “emancipação”. Por reflexo, tem-se nos questionamentos das experiências do
passado, do presente e do futuro, o compromisso, ainda que árduo e gradativo, com as novas
disposições do sujeito feminino.
Logo, entende-se que as transformações sobre os objetivos na escolha dos conteúdos
voltados/selecionados às mulheres, a forma como se davam as práticas de leitura e, até mesmo,
o deslocamento do privilégio do masculino em ditar o que e para que funcionava a leitura, são
decorrentes/efeitos de toda uma arquitetura macrossocial de luta e engajamentos políticos, de
feministas visionárias e ambiciosas pela desconstrução de modelos tradicionais colapsados em
nome da hierarquia que se impõe aos gêneros e, portanto, às mulheres e aos homens.
Dessa forma, norteadas por pensamentos que mantém relações íntimas à “[...] recusa da
construção hierárquica da relação entre masculino e feminino, em seus contextos específicos,
e uma tentativa de reverter ou descolocar seus funcionamentos” (SCOTT, 1995, p. 19), é que
o feminismo se dispôs e se dispõe a empreender lutas emancipatórias, cuja finalidade é a
obtenção de êxitos na promoção de uma transformação sobre a situação das mulheres, bem
como sobre sua percepção e posição em sociedade. E, ao trazer isso para o âmbito da leitura,
o que se tem é que “A criatividade do leitor vai crescendo à medida que vai decrescendo a
instituição que a controlava” (CERTEAU, 1998, p. 268).
Essa situação abriu espaço para novas dinâmicas espaço-temporais envolvendo as
mulheres e a leitura, cuja escalada vai desde a “transgressão” ao conteúdo selecionado pelos
homens, passando pela posse da escrita, ainda que atravessada pela repetição das funções
instituídas socialmente e, o mais importante, pelo protagonismo do masculino, conforme
aponta Scholze (2002), até a perversão da ordem no que diz respeito aos espaços selecionados
e tidos como genuínos da/para as mulheres e/ou do/para os homens. A exemplo tem-se os
clubes de leituras, cujos encontros ocorrem justamente em locais anteriormente percebidos
como espaços de privilégio dos homens, isto é, nos espaços públicos. Desse modo, assume-se
o entendimento de que, atualmente, sobretudo nos clubes de leituras, o ato da leitura, bem
como os participantes, majoritariamente mulheres, distingue-se do passado, pois
2
Tendo em vista as heterogeneidades e receptividades do feminismo pelo mundo, cabe a contextualização de que
o feminismo apresentado faz referência àquele que, na década de 1970 e fins da anterior, chamou a atenção para
o combate à dominação masculina, bem como para a necessidade de uma produção historiográfica acerca de seus
efeitos nas relações entre mulheres e homens.
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[...] não é mais acompanhada, como antigamente, pelo ruído de uma articulação
vocal nem pelo movimento de uma mastigação muscular. Ler sem pronunciar
em voz alta é uma experiência ‘moderna’, desconhecida durante milênios.
Antigamente o leitor interiorizava o texto: fazia da própria voz o corpo do
outro, era o seu ator. Hoje o texto não impõe mais o seu ritmo ao assunto,
não se manifesta mais pela voz do leitor. Esse recuo do corpo, condição de sua
autonomia, é um distanciar-se do texto (CERTEAU, 1998, p. 271–272).
[...] o poder usa o termo ‘verdade’ para exercer controle; daí o regime de verdade.
A verdade evita a desordem, e é esse medo da desordem (dos desordeiros), ou,
para nos expressarmos de maneira positiva, é esse medo da liberdade (o medo
de dar liberdade a quem não tem), o que vincula funcionalmente a verdade aos
interesses materiais (JENKINS, 2007, p. 59).
Uma pessoa não pode apontar para o mapa e dizer que Colombo descobriu a
América e Colombo era uma mulher, ou apanhar uma maçã e observar que
Newton descobriu as leis da gravidade e Newton era mulher, ou olhar o céu
e dizer que há aviões voando sobre nossa cabeça e os aviões foram inventados
por mulheres. Não há marcas na parede para determinar a altura precisa das
mulheres (WOOLF, 2014, p. 123).
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O reconhecimento de tais situações pelas mulheres e, privilegiadamente, do quanto
foram e são os homens grandes curiosos, atravessadores e sedentos pelo poder – pleno,
unilateral e (in) discreto – carregando consigo todas as balizadas de um sistema ruído pela
parcialidade e fundado em hierarquias, é capaz de conduzir a processos de dobraduras em si
mesmas, ou seja, de subjetivações ou de consciência das contradições inerentes às relações
de gênero de modo a interpretá-las e modificá-las a partir delas e por elas mesmas, em um
importante movimento questionador da agenda masculina voltado às mulheres, que, como
bem observou Ivone Gebara (2005), é criadora da convicção inquestionável de onipotência
dos homens, cedendo às mulheres a sensação eterna de serem elas estrangeiras, ainda que em
suas próprias vocação.
Esse equacionamento traz à tona toda uma história de ambivalências e hiatos
relacionados às mulheres, cujas identificações e processos de subjetivações se faziam existir a
partir e em decorrência de um determinador universal, ou seja, o masculino. Contudo, embora
atravessadas e confinadas a tais regimes de forças e poder, o surgimento de reivindicações no
campo social, político e cultural também se estenderam aos espaços de leituras e à própria
leitura, de modo que o vínculo e as associações estabelecidas sobre as narrativas passaram,
também, a preceituar novos parâmetros, em cujo centro estariam as mulheres e não mais os
homens, agora, “extraditados” aos domínios da própria voz. Era o levante das mulheres, uma
nova era às composições e espaços da prática literária. Era, enfim, o “Leia Mulheres”.
Planejado, então, como consequência e resposta à invisibilidade das mulheres no
mercado editorial, o projeto “Leia Mulheres” surgiu no Brasil no ano de 2015, após, em
2014, a escritora Joanna Walsh ter proposto o projeto #readwomen2014, cuja finalidade
era a leitura de escritoras mulheres. Assim, em 2015, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e
Michelle Henrique trouxeram para São Paulo/SP as contestações fomentadas por Joanna
Walsh3. Afinal, como alegou Regina Dalcastagné (2012, p. 13): “ Muito além de estilos ou
escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo,
de se fazer visível dentro dele”. Daí, então, a necessidade, uma vez não sendo possível espaço
no seio das tradições literárias, de avançar sobre e para campos alheios, rompendo com as
amarras da homogeneidade.
A partir disso, o surgimento do projeto “Leia Mulheres”, é compreendido como
manifestação reivindicatória dos espaços públicos e, paralelamente, um facilitador do embate
político, cuja crítica está voltada para o desmonte dos modelos de valoração e permanências
intelectuais apreciadas no campo literário, isto é, o masculino, o qual segue como retrato
do campo social e de suas mais específicas formas de promoção hierárquica dos gêneros e,
portanto, de mulheres e homens. E “Ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura
como mecanismo de distinção e da hierarquia social, deixando de lado suas potencialidades
como discurso desestabilizador e contraditório” (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 13).
Ocupado majoritariamente por mulheres, o projeto se mantém aberto aos homens.
Entretanto, como agente transformador das antigas tendências, segue na direção de que
as leituras realizadas terão como propósito a garantia da visibilidade das mulheres; logo,
3
Informações retiradas do site:< https://leiamulheres.com.br/sobre-nos/>. Acesso em 12 ago. 2017.
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mensalmente, um livro escrito por uma mulher é selecionado pelas integrantes e pelos
integrantes, a fim de compor a leitura do mês/meses seguinte(s). Tais processos, obviamente,
solidificam as experiências das/ entre as mulheres que se mantêm presentes nesses espaços
de discussões, de maneira que a simples decisão de estar ali é entendida como ato de
sublevação aos regimes históricos e posicionais, que por tanto tempo foram complacentes e
se movimentaram em prol da manutenção do masculino e de seus interesses.
Por fim, sob o respaldo do exercício foucaultiano (2014), no que concerne às relações de
poder, entende-se que tais espaços, ao se reinventarem sob a idiossincrasia literária instituída,
figuram como um local de protesto, onde, através de suas práticas, sujeitos e impulsos,
ousam as mulheres a se posicionarem do outro lado das relações de forças que atravessam e
compõem o universo da literatura, apregoando-se, assim, como interlocutoras irredutíveis.
Ao fazerem isso, acabam por seguir na contramão do imaginário social, segundo o qual
“[...] não cabe à mulher mudar o curso de sua própria história. Essa já estaria determinada
socialmente” (MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, p. 34).
Referências
CAVALLO, G.; CHARTIER, R. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998.
CERTEAU, M. de. Ler: uma operação de caça. In: ___. A invenção do cotidiano. Artes de Fazer.
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286
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Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
287
Tornando visíveis as experiências trans
por meio de traduções*
R E G I A N E C O R R Ê A D E O L I V E I R A R A M O S **
T R A D U Ç Ã O D E D A V I S I L I S T I N O D E S O U Z A ***
Manobi Bandyopadhyay
*
Tradução de “Making Trans Experiences Visible through Translations”, capítulo do livro India in translation,
Translation in India, organizado pelo Prof. Dr. G.J.V. Prasad, da Jawaharlal Nehru University (JNU) de Nova Déli
– Índia. Por sua importância, providenciamos, com autorização da autora, uma tradução do texto para integrar
este Dossiê (Profa. Dra. Cláudia Nigro, organizadora do Dossiê).
**
É professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) da Unidade Jardim. Tem
experiência na área de Língua e Literatura, com ênfase em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua e Literaturas
de Língua Inglesa. Atualmente é pós-doutoranda em Letras no Programa de Pós-graduação em Letras na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP. Atua nos seguintes temas: gênero, raça
e sexualidade. E- mail: regiane.ramos@uems.br
Mesquita Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dsilistino@gmail.com
1
Todos os textos neste artigo, cujos originais são escritos em inglês, têm tradução nossa. Quando não houver
menção ao número de página, é porque se trata de artigo publicado em site, sem paginação. No original, "Beneath
my colourful exterior lies a curled up, bruised individual that yearns for freedom—freedom to live life on her own
and freedom to come across as the person she is. Acceptance is what I seek. My tough exterior and nonchalance
is an armour that I have learned to wear to protect my vulnerability".
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288
A revista acadêmica TSQ: Transgender Studies Quarterly é a primeira revista fora
da medicina dedicada a estudos transgêneros2. Foi fundada por Paisley Currah e Susan
Stryker, cujo objetivo era criar uma plataforma para bolsas e pesquisas inovadoras, que
desafiassem a objetificação, patologização e exotização das vidas de transgêneros. É um
espaço onde a comunidade trans possa fazer suas críticas. A missão, assim como Currah e
Stryker apontam, é:
A primeira edição, organizada por Paisley Currah e Susan Stryker, foi lançada em maio
de 2014 com Chelsea Elizabeth Manning na capa e com o título “Postposttranssexual: Key
Concepts for a Twenty-First-Century Transgender Studies (TSQ: Transgender Studies
Quarterly)”4. Existem oitenta e seis entradas principais para esta edição inaugural, que se
2
Para uma leitura detalhada acerca da história dessa área acadêmica, consultar Stryker e Whittle (2006).
Consideramos a palavra "transgênero" como um conceito do qual se ramificam diversas outras identidades,
seguindo o posicionamento de Paisley Currah e Susan Stryker. Na introdução à primeira edição da revista TSQ:
Transgender Studies Quarterly, as autoras explicam que, desde o começo, a categoria transgênero representa “uma
resistência à medicalização, à patologização e aos vários mecanismos, pelos quais o estado administrativo e suas
instituições médico-legais-psiquiátricas associadas procuraram conter e delimitar os potenciais socialmente
perturbadores da atipicidade, incongruência e não-normatividade do sexo/gênero” (STRYKER; CURRAH, 2014,
p. 5). No original: "a resistance to medicalization, to pathologization, and to the many mechanisms whereby the
administrative state and its associated medico-legal-psychiatric institutions sought to contain and delimit the
socially disruptive potentials of sex/gender atypicality, incongruence, and nonnormativity".
No artigo "(De)Subjugated Knowledges: An Introduction to Transgender Studies", Susan Stryker define
transgênero como ‘alguém que mudou permanentemente o gênero social por meio da apresentação pública de
si mesmo, sem recorrer à transformação genital’ e transexual como “alguém que mudou permanentemente os
genitais, a fim de reivindicar a participação em um gênero diferente daquele atribuído ao nascimento” (STRYKER,
2015, p. 4). No original: "someone who permanently changed social gender through the public presentation of
self, without recourse to genital transformation" e "somebody who permanently changed genitals in order to
claim membership in a gender other than the one assigned at birth".
3
No original: "to foster a vigorous conversation among scholars, artists, activists, and others that examines
how ‘transgender’ comes into play as a category, a process, a social assemblage, an increasingly intelligible
gender identity, an identifiable threat to gender normativity, and a rubric for understanding the variability
and contingency of gender across time, space, and cultures". Essa informação está disponível gratuitamente na
webpage da revista: https://read.dukeupress.edu/tsq/pages/About
4
Chelsea Elizabeth Manning é uma ativista trans, política e ex-soldado do Exército dos Estados Unidos. Manning
ficou famosa por divulgar ao WikiLeaks quase 750.000 documentos militares e diplomáticos confidenciais
ou não. Allucquére Rosanne Sandy Stone é uma transgênero considerada uma das fundadoras da disciplina
acadêmica dos estudos sobre transgêneros nos Estados Unidos. Em 1987, Stone escreveu o ensaio “O império
contra-ataca: um manifesto pós-transsexual”, considerado, nas palavras de Susan Stryker, "o texto multifacetado
do qual emergiram os estudos contemporâneos sobre transgêneros. Desenvolveu uma análise pós-estruturalista
da identidade de gênero, que abriu novas possibilidades para as transexuais – e, por extensão, para outros
tipos de pessoas que se sentem ‘de gênero diferente’ – escaparem dos poderosos efeitos dos discursos médicos
e feministas que objetivaram apagar e invalidar suas experiências de vida." (STRYKER; WHITTLE, 2006, p.
221). No original: " the protean text from which contemporary transgender studies emerged. It developed a
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289
tornou um livro, o qual traz um enfoque em um vocabulário conceitual para os estudos de
transgêneros. Entre eles, encontramos a entrada “tradução” (transportar ou trazer ao outro
lado), de A. Finn Enke. A aplicabilidade da tradução nos estudos de transgêneros é, para Enke,
poststructuralist analysis of gender identity that opened up new possibilities for transsexuals—and, by extension,
for other types of people who feel themselves to be ‘differently gendered’—to escape the powerful effects of both
medical and feminist discourses that have worked to efface and invalidate their life experiences".
5
No original: "a necessary and profoundly hopeful act for those who trans gender, for we have been taught that
transgender is marked by dysphoria, a word from Greek that means difficult to bear, difficult to carry. In order
to carry or bring across, we [transgenders] become poets, storytellers, and artists".
6
No original: "beyond its Anglophone roots, by highlighting texts originating in languages other than English
and by making visible the work of translation necessary to bring to English- reading audiences the work of
researchers, writers, thinkers, and activists from around the world".
7
No original: "historical documents and contemporary voices that simultaneously challenge the Anglocentric bias
of the transgender studies field while expanding the field’s breadth and reach [...] translated fiction, nonfiction,
poetry, and research texts".
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transgêneros é negociada translingualmente; reflexões sobre o ofício e a prática da tradução,
amplamente concebidos; estudos que modelam um “estudo multilíngue de trangêneros”
ou uma futuridade trans multilíngue de maneira mais ampla; reflexões sobre o processo
de tradução de textos que lidam com transgêneros e variações de gênero; ensaios sobre
como pode se parecer a metodologia transgênero na teoria ou prática da tradução; ensaios
explorando o que as práticas de intérpretes e tradutores profissionais (literários, poéticos,
técnicos, diplomáticos) podem revelar sobre a epistemologia transgênero; estudos históricos
vinculando a prática multilíngue, de troca de código e translingual com a concretização
transgênero; estudos históricos ligando a genealogia do monolingualismo a várias linhagens
de normatividade de gênero; e um metacriticismo da área emergente dos estudos sobre
transgêneros, seus termos e metodologias do ponto de vista multilíngue, apenas para
mencionar alguns, pois a lista é longa (GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 345–346)8. Os artigos
compilados nessa edição “procedem como uma residência crítica informal por meio de uma
série de problemáticas que, juntas, testam as capacidades heurísticas e políticas das palavras
tradução e transgênero em vários contextos” (GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 346)9. Esses
artigos induzem perguntas instigantes, que variam de como as pessoas trans participaram
da vocação da tradução e de como elas são consideradas ou desconsideradas da história
geral da tradução, até o que os campos dos estudos de tradução e dos transgêneros têm a
dizer um ao outro – em termos de restrições metodológicas e políticas, suas reivindicações
de relevância interdisciplinar e relacionamento com estruturas e discursos universitários
(GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 347)10. A terceira seção sobre “Tradução” está no volume
4, número 2 (01 de maio de 2017), “The Issue of Blackness”. A “Translation Section: The Issue of
8
Para acessar a listagem levantada por eles, acesse os artigos incluídos na primeira edição, “Untranslatable Subjects:
Travesti Access to Public Health Care in Brazil”, de Alvaro Jarrín; “Language Purism and Gender: Icelandic Trans*
Activists and the Icelandic Linguistic Gender Binary”, de Jyl Josephson; “Þorgerður Einarsdóttir; From Representation
to Corposubjectivation: The Configuration of Transgender in Mexico City”, de Alba Pons Rabasa; “Translating Hijra
into Transgender: Performance and Pehchān in India’s Trans-Hijra Communities”, de Jeff Roy; “Always in Translation:
Trans Cinema across Languages”, de Helen Hok-Sze Leung; “Conceptualizing Sex, Gender, and Trans: An Anglo-
Finnish Perspective”, de Unni Leino; “Pedro Lemebel and the Translatxrsation: On a Genderqueer Translation Praxis”, de
Arielle A. Concilio; “Keeping the Trans in Translation: Queering Early Modern Transgender Memoirs”, de Emily Rose;
“Translation, Transition, Transgender: Framing the Life of Charlotte von Mahlsdorf”, de Brian James Baer; “Untranslating
Gender in Trish Salah’s Lyric Sexology Vol. 1”, de Kay Gabriel; “Plus the Swinging of the Door”, de Nathanaël; “Flows of
Trans-Language: Translating Transgender in the Paraguayan Sea”, de Christopher Larkosh; “In Memoriam to Identity:
Transgender as Strategy in Qiu Miaojin’s Last Words from Montmartre”, de Ari Larissa Heinrich e Eloise Dowd;
“You Have Made Her a Man among Men’: Translating the Khuntha’s Anatomy in Fatimid Jurisprudence”, de Saqer A.
Almarri; e “Translating the Human: The Androginos in Tosefta Bikurim”, de Max Strassfeld.
9
No original: "proceed as a loose critical sojourn through a range of problematics that, together, test the heuristic
and political capacities of the words translation and transgender in various contexts".
10
As outras questões levantadas pelos ensaios são: como a pressão para “ser traduzível” afetou as vidas, as histórias
e as experiências de pessoas transgêneros e qual é a consequência política dessa pressão? Como a tradução rápida
e monetizada de certos discursos na era da transnacionalização institucional – incluindo discursos médicos,
jurídicos, de direitos humanos, de saúde sexual, feministas, cirúrgicos, psicológicos, legislativos e ativistas –
impactou a capacidade de prosperar de pessoas ou comunidades identificadas como trans? Que contingências
específicas acompanham a tarefa de traduzir textos que narram subjetividades de transgêneros? Como a vida
transgênero em contextos históricos segregativos de gênero levou a novas práticas de textualização translacional
– isto é, a maneiras de tornar o corpo significativo como persona humana ou sujeito cívico? (GRAMLING;
DUTTA, 2016, p. 347).
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291
Blackness”, organizada por David Gramling, Patrick Ploschnitzki e Tara Taylor, contém três
artigos curtos, traduzidos do alemão, que refletem sobre a pessoa negra queer na comunidade
negra na Alemanha. A quarta sessão sobre “Tradução” aparece no volume 5, número 1 (01
de fevereiro de 2018), com Emrah Karakus traduzindo vozes trans da Turquia. Assim, a
revista TSQ: Transgender Studies Quarterly destaca que a tradução não apenas faz a narrativa
trans circular globalmente, como também enfatiza a importância de construir uma ponte de
solidariedade para as pessoas trans em todo o mundo. Fornece dados e análises comparativos
sobre aspectos significativos da situação de direitos humanos de pessoas trans e de gênero
variantes e advoga por sua proteção.
Nos últimos dois anos na Índia, houve um grande interesse em traduzir as autobiografias
das hijras para o inglês e para outros idiomas indianos. A relação entre tradução e minorias não
pode, a princípio, ser facilmente vista. No entanto, é um dos temas mais importantes nesse
campo de pesquisa nos últimos anos, como destaca o TSQ. Pessoas que pertencem a grupos
minoritários em uma determinada sociedade, como falantes de um determinado idioma
não oficial ou regional, pessoas com necessidades especiais e comunidades trans, podem
compartilhar suas experiências e tentar se conectar um com o outro por meio de tradutores
e intérpretes. Eles ajudam pessoas trans a espalhar seus pontos de vista e reivindicações
para lugares legítimos em seus países ou sociedade. Isso vale especialmente na Índia, onde
coexistem 22 línguas principais e 22.000 dialetos distintos. Essa diversidade linguística
e cultural significa que enormes barreiras precisam ser ultrapassadas em todo o país, e o
idioma desempenha um papel significativo na vida cotidiana das pessoas. No entanto, mais
do que idiomas diferentes, o subcontinente apresenta uma variedade de culturas locais que,
exceto pela tradução, permaneceriam desconhecidas fora do seu espaço original – e, às vezes,
limitado. A literatura indiana, em línguas vernaculares ou em inglês, foi espalhada por todo
o mundo; escritores indianos contemporâneos, cujos trabalhos são originalmente publicados
em um dos idiomas locais, como sânscrito, bengali, hindi, urdu e outros, são traduzidos para
o inglês, encontrando assim um público mais amplo no país e no exterior. E, acima de tudo,
as minorias indianas podem expressar suas necessidades e esperanças em textos que serão
traduzidos e conhecidos em países distantes como o Brasil.
A voz da comunidade hijra11 está sendo ouvida no Brasil graças às traduções inglesas
de suas (auto)biografias, uma linguagem que proporciona maior visibilidade e alcance
internacional. Entre as comunidades trans locais, as seguintes obras têm boa recepção: I am
Vidya: A Transgender’s Journey (2013) de Living Smile Vidya, The Truth about Me: A Hijra Life
Story (2010) de A. Revathi, Me Hijra, Me Laxmi (2015) de Laxmi Narayan Tripathi e A Gift
of Goddess Lakshmi (2017) de Manobi Bandyopadhyay. Quando apresentadas em congressos,
em inglês ou em tradução de trechos para o português, suas narrativas de intenso estigma,
discriminação e violação dos direitos humanos criam uma sensação de, usando as palavras
11
A comunidade trans na Índia, como aponta Gee Imaan Semmalar, é diversa e inclui várias identidades tais
como: hijra, thirunangai, kinnar, mangalamukhi, aravani, kothi, jogappas, shiv shaktis, thirunambis, bhaiyya e paiyyan
(SEMMALAR, 2014, p. 286). A identidade hijra, como explica Laxmi Narayan Tripathi, pertence a “mais antiga
comunidade étnica de transgêneros” (TRIPATHI apud CROCKER, 2014, s/p). No original: "the oldest ethnic
transgender community".
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de Benedict Anderson, “comunidade imaginada” entre as/os brasileiras/os trans que também
experimentam múltiplas formas de opressão e violação dos direitos.
Como apontei em “The Voice of an Indian Trans Woman: A Hijra Autobiography” (2018), a
literatura hijra, um gênero literário novo e em evolução na Índia, está tentando conscientizar
o/a leitor/a e a sociedade de que “as hijras são capazes de mais do que apenas mendicância
e trabalho sexual” (REVATHI; 2010, p. v)12. É uma compilação das experiências trans e da
cultura das hijras e de sua resistência à heteronormatividade13, que cria processos insidiosos
de estigmatização, discriminação, marginalização, patologização e confinamento, operando
no nível da percepção social, no espaço social, nas instituições sociais, no senso comum, no
sistema judicial, na família, no Estado e no sistema médico (FOUCAULT; 1988, p. 80–81).
Essas autobiografias discutem questões de direitos humanos, democracia, sistema de castas,
leis e igualdade de gênero na Índia. Descrevem também o ativismo trans indiano, que busca
respeitabilidade e representatividade para a identidade trans. Suas preocupações sociais estão
sendo divulgadas na Índia por meio de traduções.
Em 2007, a primeira autobiografia escrita por uma hijra foi a de Living Smile Vidya.
Originalmente escrito em tâmil, o livro foi traduzido para assamês, inglês, canarês, malaiala,
marata e outras línguas. Em 2011, o Sahitya Akademi Award concedeu a Tamil Selvi um
prêmio pela melhor tradução do livro de Vidya. Selvi traduziu Naan Sharavanan lllai. Vidya
(2007), de Tamil para Naanu Avanalla ... Avalu ...! (2015), em canarês. A partir da tradução em
canarês, B. S. Lingadevaru produziu o filme Naanu Avanalla ... Avalu ...! (2015), retratando a
vida de Vidya na tela e tornando visível a comunidade hijra. Na passagem da palavra (texto
literário) para o audiovisual (cinema e teatro)14, a primeira autobiografia de uma hijra ganha
novos registros, novos espaços e novo público. Através dessas diferentes expressões artísticas
(literatura, cinema, traduções e teatro), Vidya faz a sua história circular, rebelando-se contra
o “cis-tema”. O corpo abjeto, portanto, está presente e resistente na (re)escrita.
Em 2010, A. Revathi publica The Truth about Me: A Hijra Life Story. Embora tenha sido
originalmente escrito em tâmil, foi publicado pela primeira vez em inglês com a tradução
de V. Geetha. Foi traduzido depois para as línguas canarês, malaiala, tâmil e telugo. Como
explica Revathi,
esses livros foram armazenados em bibliotecas de mais de 300 faculdades e
universidades do país. Juntos, os livros criam conscientização entre os alunos
sobre gênero e sexualidade. Até onde sei, os livros fazem parte do programa de
20 universidades e faculdades (REVATHI, 2016, p. xiii)15.
12
No original: "hijras are capable of more than just begging and sex work".
13
É a ordem sexual do presente, baseada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. É imposta por meio de
violência simbólica e física, principalmente em relação àqueles que violam as normas de gênero.
14
Em agosto de 2014, Living Smile Vidya, Gee Imman Semmalar e Angel Glady fundaram o Teatro Panmmai.
É a primeira companhia de teatro administrada por pessoas trans, cujo objetivo é usar o teatro como meio para,
conforme Vidya explica, “Panmai começou como uma plataforma para contarmos nossas histórias. Mas, a longo
prazo, esperamos transformá-lo em espaço para outras pessoas marginalizadas contarem as suas” (VIDYA apud
RAJENDRA, 2015, s/p). Segundo Semmalar, na peça Cor de trans, “nosso foco tem sido apresentar a história de
nossas vidas, a percepção das pessoas sobre nós e os problemas que enfrentamos [...] Cor de trans é uma tentativa de
agitar as pessoas e fazê-las perceber que também somos indivíduos” (SEMMALAR apud RAJENDRA, 2015, s/p).
15
No original: "these books have been stocked in libraries of more than 300 colleges and universities in the
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Ela também enfatiza a importância das autobiografias de pessoas trans e argumenta
que dez anos atrás não havia muita discussão entre os estudantes sobre a comunidade
de transgêneros. Essas autobiografias foram, em suas próprias palavras, “reveladoras”
para as pessoas conhecerem a comunidade hijra (REVATHI, 2016, p. xiii). A escrita,
ela afirma, “era poderosa para anunciar mudanças sociais. No entanto, me perguntava
quantos Revathis mais, se tivessem tais oportunidades, teriam surgido? Certamente, não
teriam sido forçadas ao trabalho sexual. Talvez elas também possam ter tido sucesso como
escritoras, artistas e outras profissionais” (REVATHI, 2016, p. 87)16. Também poderíamos
questionar: por que não tradutoras?
The Truth about Me: A Hijra Life Story (2010) forjou “uma nova gramática da escrita”, e
Revathi, como outras hijras, quebrou os cânones literários estabelecidos, introduzindo uma
linguagem intensamente pessoal e direta para falar sobre a transexualidade. Para ela, escrever
é um processo “profundamente catártico e de cura”, onde sua “dor havia sido transformada
em arte” (REVATHI, 2010, p. 87)17. Revathi inscreve não apenas a si mesma no mundo, mas
também a sua comunidade. Escrever (autobiografia) sobre trauma é um dispositivo poderoso
para transformar dor e perda em ação política.
Em 2015, Me Hijra, Me Laxmi foi lançado. O texto original foi escrito em marata pela
jornalista Vaishali Rode, que deu forma à vida de Laxmi. A versão em inglês foi traduzida
por R. Raj Rao e P.G. Joshi e tem, considero, um processo peculiar de tradução ou “criação
literária”18. No prefácio do livro, Rao explica o processo linguístico envolvido na tradução
da história de Laxmi:
country. Together the books create awareness among students about gender and sexuality. As far as I know, the
books form part of the prescribed syllabus in 20 universities and colleges".
16
No original: "was powerful to herald social change. Yet I wondered how many more Revathis, if they had such
opportunities, would have emerged? Certainly, they would not have been forced into sex work. Perhaps they too
could have blossomed as writers, artists and other professionals".
17
No original: "pain had been transformed into art".
18
R. Raj Rao é a primeira pessoa a reconhecer a literatura hijra. Como Rao afirma no posfácio de Eu Hijra, eu
Laxmi (2015), "a autobiografia de Laxmi é uma das primeiras obras que pertencem ao gênero de literatura hijra.
Ela procura conscientizar os leitores sobre quem realmente são as hijras e o que é necessário para moldar suas
personalidades – sim, elas têm personalidades. Procura dissipar os mitos sobre as hijras e nos ajuda a eliminar
nossos preconceitos." (RAO, 2015, p. 183). No original: "Laxmi’s autobiography is one of the earliest works that
belong to the genre of hijra literature. It seeks to make readers aware of who the hijras really are, and what goes
into the shaping their personalities—yes, they do have personalities. It seeks to dispel myths about the hijras and
help us shed our prejudices".
O aspecto mais relevante dessa narrativa é que ela gera um contra-discurso e as hijras ocupam um lugar, tomando
emprestada a palavra de Sandy Stone, “como sujeito falante dentro da estrutura tradicional de gênero para se
tornar cúmplice no discurso que se deseja desconstruir” (STONE, 2006, p. 12). No original: "as speaking subject
within the traditional gender frame to become complicit in the discourse which one wishes to deconstruct".
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própria Laxmi, que não é falante de marata, embora tenha morado em Mumbai
por muito tempo; foi escrita por Vaishali Rode, jornalista marata, para quem
Laxmi contou sua história (RAO, 2015, p. 212)19.
Eu observei todas as regras porque a decisão de se tornar uma hijra era, afinal,
minha. Mas logo chegou um momento em que me rebelei. Eu não aguentava as
restrições à minha liberdade. [...] É cansativo nadar contra a corrente. Eu tenho
nadado contra duas correntes – uma é a sociedade e a outra, a comunidade.
Ambas precisam mudar de atitude. Enquanto a sociedade precisa enfrentar
seus preconceitos em relação às hijras, as próprias hijras devem ser francas
(TRIPATHI, 2015, p. 160)21.
Seu ativismo surge quando observa a vida precária das prostitutas de Kamatipura,
área de prostituição de Mumbai. Enquanto trabalhava para a DWS e Astitva, organizações
não-governamentais, Laxmi busca melhorar as condições de vida de hijras e prostitutas. Seu
trabalho social ganhou repercussões nacionais e internacionais e, em 2017, recebeu o prêmio
de Indiano do Ano da Brands Academy. Ela lutou fortemente contra a Seção 377 do Código
Penal Indiano. Depois da Autoridade Nacional de Serviços Jurídicos e da Poojya Mata Nasib
Kaur Ji (sociedade de bem-estar das mulheres), Laxmi também apresentou uma petição
19
No original: " It is a collaborative translation, with one of us (P.G. Joshi) working with the Marathi original
(the source language) and the other (me) ‘Englishing’ the narrative (putting it into the target language). However,
neither Joshi nor I are completely oblivious of the other’s language: Joshi was, till recently, professor of English
at a college affiliated to the University of Pune, and I am a domiciled Maharashtrian. What complicates the work
is that it was not authored by Laxmi herself, who is not a Marathi speaker, though she has lived in Mumbai for
long, but was written by Vaishali Rode, a Marathi journalist to whom Laxmi spoke".
20
No original: "may shock the conservative society, which has preconceived notions about hijras, about their
way of walking, talking, dressing, and clapping. But Laxmi’s own language and demeanour contest it. She is
cultured to her fingertips".
21
No original: "I observed all the rules because the decision to become a hijra was, after all, mine. But soon
there came a time when I rebelled. I could not stand the restrictions on my freedom. [...] It is tiresome to
swim against the current. I have been swimming against two currents—one society and the other community.
Both need to change their attitude. Whereas society needs to confront its biases towards the hijras, the hijras
themselves must be forthright".
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por escrito. Os esforços dela e também da comunidade LGBTQIA+ foram recompensados
quando a Suprema Corte descriminalizou a homossexualidade em 06 de setembro de 2018.
Essa lei colonial criminalizava as relações homossexuais na Índia por mais de um século.
Foi usada contra comunidades vulneráveis, principalmente hijras e profissionais do sexo. A
Seção 377 negava a dignidade e o respeito próprio que a Constituição da Índia lhes garante.
Em A Gift of Goddess (2017), Jhimli Mukherjee Pandey traduz a história de Manobi
Bandyopadhyay e espera que “como a ‘alma’ de Manobi Di, que fala ao leitor através do
livro, eu possa fazer justiça a ela” (PANDEY, 2017, p. 186)22. Bandyopadhyay, o indivíduo
machucado que anseia por liberdade, tem que se (auto)traduzir, explicando o corpo
trans porque, desta forma, “ajudaria a sociedade a entender melhor as pessoas como eu.
Somos um pouco diferentes externamente, mas somos seres humanos exatamente como
você e temos as mesmas necessidades – físicas e emocionais – da mesma forma que você”
(BANDYOPADHYAY, 2017, p. ix)23. Manobi, como ela gosta de ser chamada, nunca deixou
o bullying afetar seus estudos, sempre tirando boas notas na escola. Ela acreditava que essa
seria a única maneira de superar o preconceito. Como em outras autobiografias trans, Manobi
apresenta os anos escolares como marcados por infinitos abusos e discriminações, uma vez
que seus traços femininos podiam ser identificados em sua infância. O mecanismo que as
escolas desenvolvem para excluir aqueles que vivem feminilidades e/ou masculinidades
diferentes das normas também atinge o nível de graduação:
Ninguém tão baixo como uma hijra deveria poder ensinar em uma faculdade,
compartilhar a mesma sala de funcionários, banheiro e instalações. Inicialmente,
eles pensaram que, se me fizessem sentir infeliz, iria embora por minha própria
vontade. Mas quando perceberam que não desistiria tão facilmente, juntaram-se
para me agredir de vez em quando (BANDYOPADHYAY, 2017, p. 93)25.
22
No original: "as Manobi Di’s “soul”, who speaks to the reader through the book, I have been able to do justice
to her".
23
No original: "it would help society understand people like me better. We are slightly different outwardly, but
we are humans just as you are and have the same needs—physical and emotional—just as you have".
24
No original: "College usually comes as a relief in the lives of most students. They finally find freedom after
fourteen years of regimented school life. But this didn’t happen for me. I found college to be yet another place
where I would have to fight for my identity and respect".
25
No original: "No one as lowly as a hijra should be allowed to teach in a college, share the same staffroom, toilet
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Embora a violência física e verbal tenha sido uma constante em sua vida acadêmica,
a educação para Manobi sempre foi sinônimo de resistência. Em suas aulas de literatura,
ensina os alunos a ler criticamente textos literários bengalis, expondo-os a todas as formas
de diversidade e injustiça social. Ela criou a primeira revista transexual na Índia. O nome
da revista, Abomanob/Subhuman, refere-se ao status dado às pessoas transgênero pela
sociedade. De acordo com Manobi, “foi meu protesto contra a nossa sociedade que finge
ser magnânima e inclusiva, ao mesmo tempo em que é cruamente brutal sob sua máscara”
(BANDYOPADHYAY, 2017, p. 112)26. Em 2005, ela defendeu sua tese de doutorado sobre
transexualidade na Universidade de Kalyani. O diploma não facilitou a vida dela; pelo contrário,
tornou-se um pesadelo. Os certificados acadêmicos carregam o nome masculino Somnath
Bandyopadhyay e o diploma de doutorado leva o nome feminino Manabi Bandyopadhyay.
Como resultado, ela perdeu o direito de uma promoção à posição de leitor. No entanto, isso
não a impede de se candidatar à posição de diretora. Com um bom currículo acadêmico
(boas notas, experiência de graduação, palestras, conferências, publicações e livros), ela
é selecionada para ser a diretora do Krishnagar Women's College em 2015, tornando-se a
primeira diretora transexual da Índia.
Os livros de Revathi e Manobi são publicados pela Penguin Books India e os de Laxmi
pela Oxford University Press, Penguin Random House India e Viking, consideradas algumas das
editoras internacionais mais prestigiadas. Em uma entrevista, o editor executivo da Penguin
Random House India, Vaishali Mathur, argumenta que “a exploração e o ostracismo que elas
enfrentam as tornam quem são – inspiradoras e exemplos do que a determinação pode fazer
diante das probabilidades. É isso que torna suas histórias tão especiais” (MATHUR apud
GUPTA, 2017, s/p)27.
Vidya, Revathi, Laxmi e Manobi apresentam em seus livros a importância de considerar
questões de representação na obra literária. A literatura hijra vai além do guarda-chuva queer.
É a visão de mundo de uma transexual. Essas escritoras são exemplos de vozes de minorias
sexuais que os estudos literários não devem mais ignorar. Durante anos, seu direito de falar
ou escrever foi negado. Não apenas Vidya, mas também Revathi, Laxmi e Manobi tiveram
que, primeiramente, se traduzir (explicar quem são) a fim de fazer a sociedade percebê-las
como seres humanos. Agora elas abriram espaço para se comporem em inteligibilidade e
reexistência, contra a violência social, o apagamento institucional, o encarceramento e o
homicídio. Assim, a literatura para elas se torna um dispositivo de transformação social. A
mudança legal, como Revathi nos lembra,
sem liberdade social não tem sentido” e “a verdadeira igualdade surge apenas
quando as mulheres são tratadas com respeito; como iguais no verdadeiro
and facilities. Initially they thought that if they made me feel miserable, I would leave of my own volition. But
when they realized that I won’t give in so easily, they got together to assault me every now and then".
26
No original: "it was my protest against our society which pretends to be magnanimous and inclusive while
being nakedly brutal beneath its mask".
27
No original: "exploitation and ostracism they face makes them who they are— inspirational and examples of
what determination can do in the face of odds. That’s what makes their stories so special".
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sentido do termo. Somente quando isso acontecer, as pessoas trans também serão
verdadeiramente respeitadas como seres humanos (REVATHI, 2016, p. 237)28.
A. Revathi A. Revathi
Exigimos aceitação
We demand acceptance dos pais
from parents da sociedade
from society do mundo
from the world para sermos vistas como seres
to be human humanos
to live as we have chosen. para viver como escolhemos.
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Referências
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Accessed: 15 nov. 2017.
CURRAH, P.; STRYKER, S. Postposttranssexual: Key Concepts for a 21st Century Transgender
Studies (TSQ: Transgender Studies Quarterly). Durham, Duke University Press, 2014.
GUPTA, K. These books are (not) lost in transgender. DNA 15 March 2017. Available at: http://
www.dnaindia.com/lifestyle/report-these-books- are-not-lost-in-transgender-2352793.
Accessed: 18 dec. 2017.
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to have a space to tell their stories. The Hindu, 2015, Metroplus. Web. 15 March 2017.
Available at: https://www.thehindu.com/features/metroplus/a-chat-with-panmai-the-
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RAO, R. R., Foreword. In: TRIPATHI, Laximi Narayan. Me Hijra, Me Laxmi. New Delhi,
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REVATHI, A. The Truth about Me: A Hijra Life Story. Translated by V. Geetha. New Delhi:
Penguin Books, 2010.
______. A Life in Trans Activism. Translated by Nandini Murali. New Delhi: Zubaan, 2016.
RODE, Vaishali, Preface to the Marathi Edition. Me Hijra, Me Laxmi. By Laxmi Narayan
Tripathi. New Delhi, Oxford University Press, 2015, pp. 221–37.
ROLLMANN, H. How Do You Define the Genre of Trans Literature?’ Popmatters, 2015.
Web 18 dec. 2017. Available at: https://www.popmatters.com/how-do-you-define-the-
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STONE, S. The “Empire” Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto. In: STRYKER, S.;
WHITTLE, S. Transgender Studies Reader. New York: Routledge, 2006.
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TRIPATHI, L. N. Me Hijra, Me Laxmi. Translated by R. Raj Rao and P. G. Joshi. New Delhi:
Oxford University Press, 2015.
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TRADUÇÃO COMENTADA
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Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay
Disponível em: https://pixabay.com/pt/vectors/botas-p%C3%A9-couro-
sapatos-1293810/
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Tradução comentada do conto “Costantino
Fortunato”, de Giovan Francesco Straparola
* Departamento de Letras Modernas – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – São
José do Rio Preto – 15054-000 – SP – Brasil. Bolsista PQ do CNPq. E–mail: mct.ramos@unesp.br
** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP – São José do Rio Preto – 15054-000 – SP – Brasil. E–mail: eucimara@terra.com.br
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Apresentamos a tradução do conto maravilhoso “Costantino Fortunato”, de Giovan
Francesco Straparola que serviu de texto-fonte ou de inspiração, como afirmam vários
estudiosos, entre eles Ítalo Calvino (1996), para a escritura do conto “O gato de botas”, pelo
francês Charles Perrault. O conto que aqui traduzimos com comentários foi originalmente
publicado no livro Le piacevoli notti.
De seu autor se sabe pouco, somente que Giovan Francesco Straparola nasceu em
Caravaggio, na região italiana da Lombardia, por volta de 1480, e faleceu em Veneza, na
região vizinha chamada Vêneto, por volta de 1557. Com certeza seu sobrenome era artístico,
derivado do verbo straparlare, ou seja, falar além da conta, e disso ele realmente entendia,
pois ficou famoso por seus contos reunidos em sua obra-prima Le piacevoli notti, cuja tradução
literal é As noites agradáveis1.
A obra foi publicada pela primeira vez em Veneza, em duas partes. A primeira parte
surgiu em 1550, composta das cinco primeiras noites, e a segunda, composta de oito noites,
em 1553, sendo que última teria sido escrita em virtude do grande êxito da sua precedente.
Há uma homologia estrutural entre ela e a obra Decamerão, de Giovanni Boccaccio, escrita
duzentos anos antes, na qual dez jovens contam dez histórias cada um, por dia, durante dez
dias, reunindo assim cem contos. Na obra de Straparola, damas e cavalheiros narram, uns
para os outros, certas histórias em forma de pequenos contos, em número variável cada
noite, durante treze noites, até reunirem o total de setenta e quatro contos.
Seus temas são muito diversos, várias histórias de origem popular, outras já contadas
antes em obras consagradas como na de Boccaccio, por exemplo. Outras, no entanto, são
exemplares e tocam o maravilhoso, constituindo-se, provavelmente, num dos primeiros
registros do conto desse gênero na Literatura Mundial. Dentre seus contos estão as primeiras
versões que se conhece não somente de “O gato de botas”, mas também de “A bela e a fera”
e outros contos famosos. Sua obra foi texto-fonte para vários escritores posteriores como
Charles Perrault, os Irmãos Grimm e Giambattista Basile, despertando, até hoje, o interesse
dos folcloristas e etnografistas como o brasileiro Luís da Câmara Cascudo, que o cita diversas
vezes, em notas que comentam os contos orais coletados em Contos tradicionais do Brasil.
Em relação à fonte literária da narrativa francesa que tornou famoso o felino com
poderes maravilhosos, popularmente conhecida como “O Gato de botas”, o ensaísta Italo
Calvino (1996) afirma que:
1
Ou somente Noites agradáveis, como consta na obra que contém a tradução de apenas quatro contos de Straparola para
o português: “Cassandrino e o Juiz de Perússia”, “O Abade Scarpacífico”, “Doralice” e “Biancabella” realizada por Renata
Cordeiro, e presentes na edição que a Editora Princípio publicou em 2007 (STRAPAROLA, 2007), que contém um
estudo introdutório bastante detalhado, realizado pela Tradutora (CORDEIRO, 2007, p. 11–57) na “Apresentação”.
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no século XVI já havia sido traduzido para o francês; também nesta coletânea de
novelas do século XVI, na verdade, não faltavam análogos a alguns dos Contes,
mesmo que não tão semelhantes como os de Basile2 (CALVINO, 1996, p. 152 –
grifos do autor e tradução nossa).
2
No original: “Altri argomenti di discussione tra gli studiosi è quello delle fonti delle varie fiabe. Molti di esse
(Pelle d’Asino, Cenerentola, La Bella addormentata nel bosco, Il Gatto con gli stivali, Pollicino, Le fatte) si ritrovano,
in variante assai simili, in un libro in dialetto napolitano pubblicato una sessantina d’anni prima (1634-36): il
Pentamerone o Lo Cunto de li cunti di Giambattista Basile. Ma poteva Perrault leggere l’oscuro napolitano di Basile?
Non è escluso, ma non è provato. Più probabile è che conoscesse Le piacevoli notti di Francesco Straparola che già
nel secolo XVI avevano traduzioni in francese; anche in questo novelliere cinquecentesco infatti non mancano
intrecci analoghi ad alcuni dei Contes, anche se non così somiglianti come in Basile (CALVINO, 1996, p. 152).
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exigiu que fôssemos comparar o texto na língua original, que adotamos como fonte, com
uma adaptação em italiano padrão que, de certa forma, inclui uma pequena adaptação para
a uma linguagem própria do conto de fadas mais moderno (STRAPAROLA, 1927b), e que
traz, vez ou outra, certos floreios, que preferimos não adotar integralmente, uma vez que tais
floreios afastariam nossa tradução da linha norteadora do texto fonte presente na edição da
Liber Liber (STRAPAROLA, 1927a).
A estrutura de Le piacevoli notti é bastante peculiar, pois, a cada noite ficcional de
contação de histórias, há uma pequena introdução colocada antes do primeiro conto da
noite “agradável”, cuja função é narrar como os contadores se reuniram para contar e ouvir.
Desse modo, como a história de “Costantino Fortunato”, ou “Constantino Afortunado” na
versão para o português, é a primeira da décima primeira noite, aproveitamos para traduzir
não só o conto, mas também a pequena introdução de tal noite, no início, e a apresentação
de um enigma3 por parte de Fiordiana, que narra a história da gata maravilhosa, no final,
com a finalidade de dar uma amostra de como as narrativas curtas são interligadas numa só
narrativa longa, por meio de introduções pequenas como essa e finalizações, em forma de
apresentação de enigmas, que vão amarrando os diversos quadros narrativos dos pequenos
núcleos ao grande núcleo entrelaçado pela narrativa moldura – senhores e senhoras reunidos
na ilha de Murano, em Veneza, para se divertir, contam histórias variadas, para um público
privilegiado, em cada noite de reunião.
A maioria dos nomes, presentes na narrativa original, foram mantidos na tradução
como são grafados em italiano: Soriana, Dusolino, Tesífone, Molino, etc. Somente foram
traduzidos o nome do protagonista, pois há uma variante em português bastante conhecida
– Constantino, que no conto é acompanhada por um segundo nome bastante sugestivo,
Fortunato, que provoca uma relação entre os nomes comentada por nós em nota de rodapé
e o de Lionora, que possui a versão para o português – Leonora.
No texto original, os parágrafos são bastante longos, trata-se de uma característica da
escrita da época de Straparola. No entanto, atualmente, sobretudo por se tratar de texto cujo
público-alvo é o infantil, a narrativa fica de leitura mais leve se os parágrafos forem menores.
Assim, ao traduzi-lo, optamos por realizar mais quebras de parágrafos, com o objetivo único
de tornar sua leitura mais leve e mais agradável.
Enfim, ao apresentarmos a leitura desse conto ao público brasileiro, acompanhada
de notas que detalham mais aspectos interpretativos ou tradutórios ligados ao processo da
tradução, esperamos proporcionar uma leitura prazerosa que contribua para que parte da
obra de Straparola e o próprio escritor italiano sejam mais conhecidos no Brasil.
3
A versão que utilizamos como texto original em italiano do conto (STRAPAROLA, 1927a) não traz os enigmas
finais de cada conto. Por sabermos da existência deles, fomos pesquisar e encontramos o trecho do enigma final
do conto em questão na versão do texto em formato de áudio livro (STRAPAROLA, 2019) assim o transcrevemos
e traduzimos tal finalização para que nossa tradução pudesse conter ainda mais este detalhe da obra original do
escritor italiano.
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“Constantino Afortunado”4
Tinha já descido a noite escura, mãe das fadigas mundanas, e os animais cansados
descansavam, quando o grupo amoroso e doce, deixado todos os pensamentos tristes de
lado, dirigiu-se ao lugar de costume; dançaram as nobres moças, de acordo com o costume
habitual foi trazido o vaso: dele foi tirado, por sorte, primeiro o nome de Fiordiana5, depois
de Leonora6, o terceiro foi o de Diana, o quarto de Isabella, e por último o da senhora Vicenza.
Fizeram trazer as liras que foram afinadas, a Senhora ordenou que Molino e Trivigiano7
cantassem uma canção. Eles, sem demora, assim fizeram:
Foi muito grande a alegria de todos pela cantiga leve e doce por Molino e Trivigiano
cantada; e foi de tanta virtude que fez até chorar por doçura àquela que cabia contar a primeira
história. E para que se desse início ao contar histórias, a Senhora ordenou a Fiordiana que
começasse; e ela, feita a primeira reverência, assim narrou:
4
A tradução para o português de Costantino Fortunato, que é não somente o título mais conhecido do conto, mas
também o nome da personagem principal, é bastante significativa para o contexto interpretativo da narrativa,
pois, no decorrer do percurso do protagonista, ser bem-aventurado ou “afortunado” pode significar uma
“constância”. Além disso, a palavra fortuna é traduzida no português por “sorte”, outro indicativo já presente
no nome do protagonista que intitula o conto da possibilidade interpretativa de um desfecho positivo para a
situação inicial do conto.
5
Nome próprio que faz referência ao substantivo fiore, que em italiano é masculino e em português é feminino,
significa “flor” e está unido ao nome próprio Diana, em referência ao nome romano da deusa – Ártemis para
os gregos. Assim, Diana era a deusa romana da vida selvagem, das florestas virgens e da caça, filha de Júpiter e
Latona.
6
Lionora em italiano possui variante em português – Leonora.
7
Trivegiano é, provavelmente, variante de trevigiano, que significa “aquele originário de Treviso”, cidade italiana
da região do Vêneto, da qual Veneza é a capital.
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Conto I
8
Nome em italiano que remete a um tipo de gato de pelagem grossa, cinza, com faixas ou mechas negras no pelo.
9
Nome em italiano que remete a uma figura mitológica conhecida como uma das três erínias (para os gregos)
ou fúrias (para os romanos): monstros que puniam os mortais, personificações da vingança. Seus nomes eram:
Tesífone, Megera e Alecto. Em português, a palavra é acentuada por ser proparoxítona.
10
Utilizamos a expressão “Era uma vez”, por considerar que é comumente utilizada como introdução em contos
infantis, contos maravilhosos, contos populares e fábulas, e também por compararmos com a versão em italiano
padrão, que troca “Trovavasi in Boemia” do texto original por “C’era una volta in Boemia”, ou seja, “Era uma vez
na Boêmia”. A Boêmia é uma região geográfica da Europa Central que já fez parte do Sacro Império Romano-
Germânico, do Império Austríaco e do Império Austro-húngaro. Depois da II Guerra Mundial, passou a fazer
parte da atual República Tcheca.
11
No texto original: “uno albuolo, nel quale le donne impastano il pane, una panára, sopra la quale fanno il pane”.
Foi necessário que recorrêssemos à versão em padrão, uma vez que essas palavras são arcaicas e não têm mais
fácil acesso via dicionários. Em padrão o trecho é o seguinte: “una madia per l'impasto del pane, un'asse di legno
dove stenderlo”.
12
No original comparece a palavra focaccia, que é um tipo de pão achatado (com cerca de 2 cm de altura, é bem
macio, em geral é e feito com sal, azeite e alecrim, algumas vezes colocam outros elementos na cobertura ou
dentro da massa. Provavelmente, originou-se na região italiana chamada Ligúria, especificamente da cidade de
Gênova. É consumido no café da manhã, como aperitivo, ou como entrada para as outras refeições.
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ao saber que uma gata queria falar com ele, a fez vir à sua presença e lhe perguntou o que
desejava, ela respondeu que Constantino, seu senhor, a mandava ali para presenteá-lo com
uma lebre que ele havia caçado, e a deu então ao Rei.
O rei, tendo aceitado o presente, lhe perguntou quem era esse tal Constantino. A gata
respondeu que era um homem que de bondade, de beleza e de poder não havia ninguém
superior. Assim o rei lhe acolheu muito bem, dando-lhe comidas e bebidas boas. A gata,
quanto estava bem satisfeita, com sua patinha e belos modos, não sendo vista por ninguém,
encheu a bolsa13 que trazia pendurada de um lado, com boas comidas, pediu licença ao rei e
foi levar o alimento a Constantino.
Os irmãos, vendo a boa comida da qual se gabava Constantino, lhe pediram que a
partilhasse com eles; mas ele, dando-lhes o troco, negou-se. Por isso nasceu entre eles uma
inveja ardente, que lhes roía o coração.
Constantino, embora fosse belo de rosto, pelo sofrimento e carência que passava,
estava cheio de sarna e a micose lhe atacava. Foi então ao rio com sua gata e por ela foi, da
cabeça aos pés, minuciosamente lambido e penteado, e em poucos dias tornou-se liberado
dos males. A gata, como dissemos acima, continuava a levar presentes ao palácio real e, desse
modo, sustentava o seu mestre. E porque já estava aborrecida daquele ir e vir14 E temendo
cansar os cortesãos15 do rei, disse ao mestre: ― senhor, se fizer tudo o que eu mandar, em
pouco tempo, tornarei você rico. ― E de que modo? disse o mestre. A gata respondeu: ―
Venha comigo, e não questione nada, que estou disposta a tudo para lhe deixar rico.
E foram juntos ao rio, num lugar próximo ao palácio real, a gata despiu o mestre e em
comum acordou o jogou no rio: depois começou a gritar bem alto: ― Socorro! Socorro!
Corram que o senhor Constantino está se afogando! O rei ouvindo aquilo e considerando as
muitas vezes em que fora presenteado por aquele homem, rapidamente mandou pessoas para
ajudá-lo. Saído da água o senhor Constantino, e vestido com roupas novas, foi conduzido
à presença do rei, o qual o recebeu com grande aprovação; e questionado sobre a causa de
ter sido jogado no rio, não podia responder por aflição: mas a gata, que sempre estava junto
dele, disse:
― Saiba, Majestade, que alguns ladrões tinham ficado à espreita de meu patrão e viram
que ele levava joias destinadas a presentear seu rei, então eles o roubaram e lhe tiraram tudo.
Acreditaram que o tivessem matado, assim o jogaram no rio, e por conta destes homens ele
quase morreu, não fosse ter sido socorrido por seus homens.
Ouvindo isso, o rei acreditou e ordenou que fosse bem tratado e ficasse sob sua
proteção16. E vendo-o belo, acreditando ser rico, decidiu dar-lhe a mão de sua filha Elisetta em
13
No texto original bisciaccia, no texto em padrão bisaccia, ou seja, sacola grande de tecido ou de pano, que
normalmente é levada a tiracolo.
14
No texto original a expressão é a seguinte: rincresceva alla gatta andar tanto su e giú, na versão em italiano padrão:
e siccome tutto quell'andirivieni era per lei una gran fática, de forma que optamos por traduzir como segue acima.
15
No original o trecho é o seguinte: e dubitava di venire in fastidio alli corteggiani del re, já na versão em italiano
padrão: e, temendo di dare fastidio ai cortigiani. Assim optamos por traduzir, interpretando o trecho da mesma
maneira que foi interpretado na versão em padrão, como fizemos acima.
16
No texto original: il re ordinò che fusse ben governato ed atteso, ou seja, “o rei ordenou que fosse bem governado
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casamento, dando a ela um dote em ouro, pedras preciosas e belíssimas vestimentas. Feitas as
núpcias e cumpridos os ritos, o rei fez carregar dez mulas com ouro e cinco com vestimenta
muito honrável; à casa do marido mandou sua filha, acompanhada de muita gente.
Constantino, vendo o quão rico e honrado tornou-se, não sabia para onde conduziria
a esposa, e pediu conselho à sua gata; a qual lhe disse: ― Não duvide, meu mestre, que para
cada coisa tomaremos as devidas providências. ― Cavalgando cada um deles alegremente, a
gata com muita pressa tomou a frente; e depois de distanciada de todos, encontrou-se com
alguns cavalheiros, aos quais ela disse:
― O que fazem aqui, pobre homens? Partam rapidamente, pois uma grande comitiva
se aproxima, e criará problemas para vocês17; eis que se aproximam: escutem o barulho dos
cavalos relinchando! ― Os cavalheiros apavorados disseram: ― E o que nós devemos fazer?
― Ao que a gata respondeu: ― Façam deste modo. Se perguntarem a vocês de quem são
cavalheiros, responderão animadamente: do senhor Constantino, e não serão incomodados.
E foi-se a gata mais à frente, até encontrar um grande rebanho de ovelhas, e com o
seu pastor fez algo semelhante; e a todos, que encontrava pela estrada, dizia o mesmo. O
cortejo de Elisetta questionava: ― De quem vocês são cavalheiros, e de quem são tão belos
rebanhos? E todos em bom som respondiam: ― Do senhor Constantino. ― Aqueles que
acompanhavam a esposa diziam: ― Então, senhor Constantino, nós começamos a entrar
em suas posses? ― E ele com a cabeça confirmava que sim; e também a cada coisa que lhe
perguntavam, respondia que sim. E por isso o cortejo o julgava muito rico.
Chegando a gata em um belíssimo castelo, encontrou-o com poucas pessoas reunidas;
e disse: ― O que fazem aqui, homens de bem? Não perceberam a ruína que vem sobre vocês?
― O que? – disseram os castelões. ― A menos de uma hora, virão aqui muitos soldados e os
cortarão em pedaços. Não escutam os cavalos que relincham? Não estão vendo a poeira no
ar? E se não quiserem perecer, aceitem o meu conselho18, que todos estarão salvos. Se alguém
lhes perguntar: de quem é este castelo? Digam: do senhor Constantino Afortunado.
Chegando a nobre comitiva ao belo castelo, questionou os guardiões sobre de quem ele
era; e todos animadamente responderam: ― Do senhor Constantino Afortunado.
E adentraram, acomodaram-se honrosamente. Aquele castelo era do senhor Valentino,
valoroso soldado, o qual um dia19 tinha saído do castelo para ir à casa a mulher com quem se
casaria; e por sua desgraça, antes que chegasse a encontrar a amada esposa, aconteceu com
e esperado”, mas a tradução do trecho não traz um significado apropriado, então, comparando-o com a versão
em italiano padrão, encontramos o seguinte: il re ordinò che Constantino fosse messo sotto la sua protezione. Assim
optamos por realizar uma tradução que considerasse as duas versões.
17
No original aparece o trecho: E faranno ripresaglia di voi. Já a tradução em italiano padrão apresenta a seguinte
versão do mesmo trecho: per voi saranno guai, de forma que optamos por traduzir dessa maneira, visto que em
português, represália inclui um ato anterior do qual aquele que a pratica procura vingar-se, ou buscar indenização,
desforrando-se, e não é o caso.
18
No texto original, o trecho é o seguinte: togliete il mio consiglio, e togliere significa arrancar, tirar. Na versão em
italiano padrão aparece: ascoltate il mio consiglio. Assim, preferimos traduzir com por “aceitem o meu conselho”,
por ser uma expressão muito utilizada em português.
19
No original o trecho é o seguinte: valoroso soldato, il quale poco avanti era uscito. Já na versão em o italiano
padrão aparece assim: un valoroso soldato che un giorno era uscito. Optamos pela escolha realizada nesta última.
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ele um acidente súbito e miserável, no qual ele morreu instantaneamente. E Constantino
Afortunado do castelo se tornou senhor.
Não muito tempo depois, Morando, rei da Boemia, morreu; e o povo aclamou como
seu rei Constantino Afortunado, por ser marido de Elisetta, filha do falecido rei, a quem o
reino por sucessão esperava.
E foi deste modo que Constantino, de pobre e mendigo, senhor e rei se tornou, e com
sua Elisetta viveu por muito tempo, tendo com ela filhos, que foram sucessores no reinado.
Enigma20
Foi agradável para os ouvintes a narrativa contada por Fiordiana; mas para que o
tempo não passasse em vão, a Senhora lhe ordenou que propusesse seu enigma. E ela, alegre
e contente, deste modo disse:
Não houve ninguém que soubesse interpretar o enigma misterioso, e mesmo que um
dissesse uma coisa, outro dizia outra, mas nenhuma de suas declarações estava próxima da
resolução do enigma.
Fiordiana, vendo que seu enigma permanecera não resolvido, disse:
― Senhores, meu enigma descreve a máquina do mundo, que é como um jardim de
flores, ou seja, de estrelas, no interior do qual corre uma flor vermelha, que é o sol, e uma
rosa branca, que é a lua, as duas, dia e noite, giram e iluminam o universo. Nessa máquina
está plantado um carvalho, que é o ano, e tem doze galhos, que são os doze meses, cada um
tem quatro sementes, ou seja, as quatro semanas do mês.
Entendida a verdadeira interpretação do enigma misterioso, todos a cumprimentaram.
20
Com já apontado na introdução à presente tradução comentada, a estrutura narrativa da obra Le piacevoli
notti, de Straparola, é composta por alguns parágrafos que narram como estava o grupo e quem irá contar a
história que compõem o conto, a narrativa equivalente ao conto, e, por fim, a apresentação de um enigma ao
grupo de ouvintes, por parte da narradora do conto, para finalizar cada um dos cento e setenta e quatro contos
presente na obra.
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Referências:
JOLLES, A. O conto. In: Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. p.
186–204.
______. Le piacevoli notti. 1550. Conto: “Costantino Fortunato” (Notte XI, Favola I). Tradução
em italiano padrão de Valentina Vetere. Bari: Laterza, 1927b. Disponível em: http://www.
paroledautore.net/fiabe/classiche/straparola/costantino_fortunato.htm. Acesso em: 03 jun.
2019.
______. Le piacevoli notti. Áudio leituras em arquivos divididos por conto. 2019. Disponível
em: https://archive.org/details/piacevolinotti2_1906_librivox/piacevolinotti2_34_
straparola_128kb.mp3. Acesso em: 02 abr. 2020.
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ÍNDICE DE ASSUNTOS
Abel Botelho (ESNP; MCL, p. 221); Literatura brasileira (JLPO; DES, p. 135);
Abolicionionismo racista (AM, p. 201); Literatura indiana (RCOR, p. 288);
Acenos e afagos (MCRA; MVCS, p. 255); Literatura Italiana (MCTR; ERSS, p. 304);
AIDS (ALGJ, p. 116); Literatura LGBT (FAN, p. 242);
Alteridade (VB; HMO, p. 27); Literatura moçambicana (RRM; AS, p. 14);
Aluísio Azevedo (AM, p. 201); Lourenço Mutarelli (JLPO; DES, p. 135);
Armário (FAN, p. 242); Machado de Assis (VR, p. 147);
Arte sequencial (LZG, p. 175); Masculinidades (ESNP; MCL, p. 221);
Autobiografia (RCOR, p. 288); Memória (TFP;MS;RKU, p. 69);
Autoria (EMSD, p. 83; ALGJ, p. 116; VR, p. 147); Metalinguística (TYM; RMM, p. 101);
Cachalote (LZG, p. 175); Mia Couto (RRM; AS, p. 14);
Caio Fernando Abreu (WA, p. 44; EMSD, p. 83; ALGJ, p. 116; ESP, Morangos mofados (ESP, p. 157);
p. 157); Morte (ALGJ, p. 116);
Carol Rodrigues (FAN, p. 242); Narrador (ESP, p. 157);
Contemporaneidade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Narrativa em crise (ESP, p. 157);
Conto (ESP, p. 157; MCTR; ERSS, p. 304); o apocalipse dos trabalhadores (VB; HMO, p. 27);
Contos (FAN, p. 242); O cortiço (AM, p. 201);
Crítica (ESNP; MCL, p. 221); Ordem do discurso (MSB, p. 276);
Crônica (VR, p. 147); Organização paradigmática (TYM; RMM, p. 101);
Daniel Galera (LZG, p. 175); Patrick White (TFP;MS;RKU, p. 69);
Dispositivos (VB; HMO, p. 27); Pentimento (EMSD, p. 83);
Distopia (RRM; AS, p. 14); Performatividade (MCRA; MVCS, p. 255);
Enunciação (WA, p. 44); Poética (LZG, p. 175);
Estudos de gênero (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Poéticas contemporâneas (EMSD, p. 83);
Experiência trans (RCOR, p. 288); Pós-colonial (RRM; AS, p. 14);
Felicidade na Literatura (VB; HMO, p. 27); Pseudônimo (VR, p. 147);
Feminismo (MSB, p. 276); Racismo (AM, p. 201);
Ficção científica (JLPO; DES, p. 135); Rafael Coutinho (LZG, p. 175);
Fim de século (ESNP; MCL, p. 221); Recepção (ESNP; MCL, p. 221);
Fratura (TYM; RMM, p. 101); Rede de solidariedade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209);
Giovan Francesco Straparola (MCTR; ERSS, p. 304);; Romance (LZG, p. 175);
Guizzo (TYM; RMM, p. 101); Romance gráfico (LZG, p. 175);
Hervé Guibert (ALGJ, p. 116); Romance naturalista (ESNP; MCL, p. 221);
Identidade (TFP;MS;RKU, p. 69); Sátira (JLPO; DES, p. 135);
Imperfeição (TYM; RMM, p. 101); Sobrevivência (WA, p. 44);
Inatualidade (WA, p. 44); Subjetivação (MSB, p. 276);
Interseccionalidade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Subversão (MCRA; MVCS, p. 255);
João Gilberto Noll (MCRA; MVCS, p. 255); Supremacismo (AM, p. 201);
Judith Butler (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Teorias da conspiração (JLPO; DES, p. 135);
Kimberlé Crenshaw (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Tradução (RCOR, p. 288);
Leia Mulheres (MSB, p. 276); Tradução Comentada (MCTR; ERSS, p. 304);
LGBTfobia (FAN, p. 242); Transexualidade (RCOR, p. 288);
Literatura (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); MSB, p. Utopia (RRM; AS, p. 14);
276); Valter Hugo Mãe (VB; HMO, p. 27);
Literatura australiana (TFP;MS;RKU, p. 69);
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SUBJECT INDEX
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ÍNDICE DE AUTORES / AUTHORS INDEX
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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS
INFORMAÇÕES GERAIS
ENCAMINHAMENTO
FORMATAÇÃO
REFERÊNCIAS
As referências bibliográficas e outras devem atender às normas da ABNT (NBR 6023,
de agosto de 2002).
Nas citações feitas dentro do texto, de até três linhas, o autor deve ser citado entre
parênteses pelo sobrenome, em maiúsculas, separado por vírgula da data de publicação:
(SILVA, 2000).
Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data, entre parênteses:
“Silva (2000) assinala...”.
Quando for necessário, a especificação da(s) página(s) deverá seguir a data, separada
por vírgula e precedida de “p.”: (SILVA, 2000, p. 100).
As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem
ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento: (SILVA, 2000a).
Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser indicados, separados por
ponto e vírgula (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); quando houver mais de 3 autores, indica-
se o primeiro seguido de et al.: (SILVA et al., 2000).
As citações diretas, com mais de três linhas, deverão ser destacadas com recuo de 4 cm
da margem esquerda do texto, em fonte Times New Roman tamanho 9 e sem aspas.
REFERÊNCIAS
Dissertações e teses
AUTOR, A. Título da dissertação/tese: subtítulo sem itálicos. número de folhas f. Ano.
Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em Área de Concentração) – Instituto/Faculdade,
Universidade, Cidade, Ano. Disponível em <http://www.______________>. Acesso em: dia
mês ano.
Artigos em periódicos
AUTOR, A. Título do artigo. Nome do periódico, Cidade, v. (volume), n. (número), p.
X-Y, Ano. Disponível em <http://www.______________>. Acesso em: dia mês ano.
ANÁLISE E JULGAMENTO
ENDEREÇO
Revista Olho d’água – PPGLetras – IBILCE - UNESP/ São José do Rio Preto
DELL – Ala 3 – Sala 17
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E-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br
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and left margins and 2 cm lower and right margins.
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the page, according to Word for Windows resources, typed in Times New Roman font 8,
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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT, NBR 6023, August 2002).
The author’s surname should be quoted in brackets, upper case, separated by a comma
from the publication year: (SILVA, 2000).
If the author’s name has been previously quoted in the text, only the date should be
cited in brackets: “Silva (2000) points out that…”.
When necessary, the page number should follow the year, separated by a comma and
preceded by “p.”: (SILVA, 2000, p. 100).
A lower case letter placed after the date without spacing should be utilized to identify
quotations from different works by the same author published in the same year: (SILVA,
2000a).
If a work has two or three authors, all of them should be cited, separated by a semicolon:
(SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000).
If a work has more than three authors, only the first is cited, followed by et al.: (SILVA
et al., 1960).
SEPARATE QUOTATIONS
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text, with a 2 cm indentation in the left margin, no inverted commas and typed in Times
New Roman font 9.
REFERENCES
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alphabetical order according to the first author’s surname. Examples:
Book chapters
AUTHOR, A. Title of chapter. In: AUTHOR, A. Title of book. Name (s) of the
translator (s). Number of edition ed. Place of Publication: Publisher, Year. p. X-Y.
Articles in journals
AUTHOR, A. Title of article. Journal name, Place of publication, v. volume, n. number,
p. X-Y, Year. Available at <http: //www.______________>. Access in: day month year.
Revista Olho d’água employs a double blind review policy (peer-review). The Editorial
Board will send submitted papers to at least two members of the Consultative Committee. In
case of conflicting reviews, a third member of the Consultative Committee shall issue a new
opinion. After the analysis, the authors will be informed of the review’s decision. In the case
of works accepted for publication, the authors will occasionally be allowed to incorporate
modifications in accordance with suggestions made by referees. The best-qualified papers
will be selected, according to their relevance, originality and contribution to the discussion
of the proposed theme, at the Consultative Board’s discretion.
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simple para líneas y párrafos, e interlineado doble entre las secciones del texto. Las páginas,
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tendrán 3 cm y el inferior y el derecho tendrán 2 cm.
REFERENCIAS
CITAS EN EL TEXTO
En cuanto las citas en el texto no superen tres líneas, el apellido del autor va entre
paréntesis en mayúsculas, separándose por coma la fecha de publicación del texto citado:
(SILVA, 2000).
Si el apellido del autor ya está citado en el texto, se indica entre paréntesis sólo la fecha
de publicación del texto citado: “Silva (2000) señala…”.
La indicación del número de página en que se encuentra la cita en el texto original,
debe hacerse luego de la fecha, separada por coma y antecedida de una “p.”: (SILVA, 2000,
p. 100).
En el caso de que se citen diversas obras del mismo autor publicadas en el mismo
año, se debe diferenciarlas con letras minúsculas (en orden alfabético) luego de la fecha, sin
ningún espacio entre la fecha y la letra: (SILVA, 2000a; SILVA, 2000b).
Cuando se cite alguna obra que presente dos o tres autores, van los apellidos de todos
ellos en mayúscula, separados por punto y coma (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); sin
embargo, si hay más de tres autores, se indica sólo el primero seguido de et al.: (SILVA et al.,
2000).
Las citas textuales que superan tres líneas deben colocarse en párrafo aparte, con
sangrado de 4 cm y sin comillas, estilo Times New Roman, tamaño 9. La cita deberá separarse
del texto por un espacio (enter) antes y otro después.
REFERENCIAS
Las referencias se incluyen al fin del artículo en orden alfabético del apellido del primer
autor. Ejemplos:
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Libros y otros estudios monográficos
AUTOR, A. Título del libro. Número de la edición. ed., nombre del (de los) traductor(es).
Ciudad: Editorial, año.
Capítulos de libros
AUTOR, A. Título del capítulo. In: AUTOR, A. Título del libro. Número de la edición.
ed., nombre del (de los) traductor(es). Ciudad: Editorial, año. p. X-Y.
Tesis
AUTOR, A. Título de la tesis: subtítulos sin cursiva. Número de hojas h. Año. Tesis
(Maestría o Doctorado en [se indica el área] – Instituto o Facultad, Universidad, Ciudad,
año. Disponible en: <http://www.______________>. Consultado en: día mes año.
Artículos de periódicos
AUTOR, A. Título del artículo. Título del periódico, Ciudad, v. (volumen), n. (número),
p. X-Y, año. Disponible en: <http://www.______________>. Consultado en: día mes año.
ANÁLISIS Y EVALUACIÓN
La Revista Olho d’água emplea una política de evaluación doble ciega (peerreview).
El Comité Editorial solicita la lectura de dos miembros del Comité Asesor, quienes
emiten un informe con su evaluación. En caso de dos informes con evaluaciones discordantes
se solicita la lectura de un tercer miembro del Comité Asesor. Luego de los análisis, el Comité
Editorial informa a los autores la decisión de la revista (si se publicará o no el artículo). En
cuanto se acepten los artículos para la publicación, los autores podrán hacer modificaciones
en su texto, si así las exigieron los informes de la evaluación. Se elegirán los artículos que
obtengan mejores calificaciones del Comité Asesor, según el interés, la originalidad y la
contribución del artículo para la temática propuesta.
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nelle margini inferiore e della destra.
REFERENZE
Le referenze, alla fine del testo, devono essere organizzate in ordine alfabetica a
partire dal cognome del primo autore. Esempi:
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Dissertazioni e tesi
AUTORE, A. Titolo della dissertazione/tese: sottotitolo senza italico. numero di
foglie f. Anno. Dissertazione/Tese (Magistrale/Dottorato in Area di Studio) – Istituto,
Università, Città, Anno. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.
Articoli in riviste
AUTORE, A. Titolo del articolo. Nome della rivista, Città, v. (volume), n. (numero),
p. X-Y, Anno. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.
Articoli pubblicati negli Annali
AUTORE, A. Titolo del lavoro. In: NOME DEL EVENTO, numero dell’edizione ed.,
anno. Annali... Città: Istituzione. p. X-Y. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.
ANALISE E GIUDIZIO
La rivista Olho d’água utilizza un sistema di valutazione doppio cieco (peereview). La
Commissione Editoriale condurrà gli articoli a, almeno, due membri del Consiglio Consultivo.
Nel caso di valutazioni contrarie, verrà richiesta una nuova valutazione di un terzo membro
della Commissione Assessora. Dopo dell’analisi, gli autori saranno informati del risultato
della valutazione. Nel caso di articoli accettati per pubblicazione, gli autori potranno,
eventualmente, introdurre modifiche a partire delle osservazioni fatte alla Commissione.
Verranno scelti i migliori articoli dal Consiglio Consultivo, secondo l’interesse, l’originalità
e la contribuzione dell’articolo per la discussione tematica proposta.
INDIRIZZO
Rivista Olho d’água – PPGLetras – IBILCE - UNESP/ São José do Rio Preto DELL
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