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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho”

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Diretor do IBILCE
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Vice-Diretor do IBILCE
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Coordenador do PPG Letras


Pablo Simpson Kilzer Amorim

Vice-Coordenador do PPG Letras


Cláudio Aquati
ISSN: 2177-3807

Olho d’água São José do Rio Preto v. 12 n. 1 p. 1-328 jan./jun. 2020


EDITOR-CHEFE Arnaldo Franco Junior

EDITORES-ASSISTENTES Leandro Henrique Aparecido Valentin; Wanderlan Alves

EDITORIA — v. 12, n. 1, 2020 Arnaldo Franco Junior, Claudia Maria Ceneviva Nigro

COMISSÃO EDITORIAL / EDITORIAL BOARD Arnaldo Franco Junior; Márcio Scheel; Orlando Nunes de Amorim;
Wanderlan da Silva Alves

CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COMMITTEE Alvaro Luiz Hattnher (UNESP); André Luís Gomes (UnB);
Angélica Soares (UFRJ); António Manuel Ferreira (Univ. Aveiro); Aparecida Maria Nunes (UNINCOR); Cássio da
Silva Araújo Tavares (UFG); Claudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP); Diana Luz Pessoa de Barros (USP/ Mackenzie);
Ellen Mariany da Silva Dias (UEL); Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP); Giséle M. Fernandes (UNESP); Jaime Ginzburg
(USP); João Azenha (USP); João Luiz Pereira Ourique (UFPel); José Luiz Fiorin (USP); Lúcia Granja (UNESP); Lúcia
Osana Zolin (UEM); Luciene Almeida de Azevedo (UFBA); Luciene Marie Pavanelo (UNESP); Luzia A. Oliva dos
Santos (UNEMAT); Manuel F. Medina (Univ. Louisville); Marcos Antonio Siscar (UNICAMP); Márcio Scheel
(UNESP); Maria Celeste Tomasello Ramos (UNESP); Marisa Corrêa Silva (UEM); Marli Tereza Furtado (UFPA);
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de Poitiers); Robert J. Oakley (Univ. Birmingham); Rosani U. Ketzer Umbach (UFSM); Sandra G. T. Vasconcelos
(USP);Sérgio Vicente Motta (UNESP); Susana Souto Silva (UFAL); Susanna Busato (UNESP); Telma Maciel (UEL);
Thomas B. Byers (Univ. Louisville); Thomas Bonnici (UEM).

EDITORAÇÃO Arnaldo Franco Junior; Leandro Henrique Aparecido Valentin

EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO PROFISSIONAL Editora Caviúna

REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA; NORMALIZAÇÃO E REVISÃO DE REFERENCIAÇÃO Arnaldo Franco


Junior; Diego Jesus Rosa Codinhoto; Hugo Giazzi Senhorini; Leandro Henrique Aparecido Valentin;
Manoela Caroline Navas; Marília Corrêa Parecis de Oliveira; Milena Mulatti Magri; Nícolas Pelicioni
de Oliveira; Thiago Henrique de Camargo Abrahão

TRADUÇÃO/REVISÃO DE LÍNGUA INGLESA Claudia Nigro; Davi Silistino de Souza; Fernando Luís de Morais;
Leandro Henrique Aparecido Valentin

IMAGEM DA CAPA © Kirsty Pargeter | Dreamstime Stock Photos

INDEXADORES CAPES PERIÓDICOS — DOAJ — ERIHPLUS — IBICT — LATINDEX — LivRe — MLA — OAJI —
REDIB
___________________________________________________________________________________
Revista Olho d’água / Universidade Estadual Paulista – São José do Rio Preto, UNESP, 2020
Semestral
ISSN 2177-3807
1. Literatura
___________________________________________________________________________________

CORRESPONDÊNCIA DEVE SER ENCAMINHADA A CORRESPONDENCE SHOULD BE ADDRESSED TO


Revista Olho d’água
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Rua Cristóvão Colombo, 2265
15054–000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil
E-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br – (www.olhodagua.ibilce.unesp.br)
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SUMÁRIO / CONTENTS

APRESENTAÇÃO

10 Olho d’água, v. 12, n. 1, 2020


ARNALDO FRANCO JUNIOR

VARIA

14 O pós-colonial: utopia e distopia na escrita da desilusão moçambicana


Postcolonialism: Utopia and Dystopia in the writing of Mozambican disillusionment
RENATA RIBEIRO MUNHOZ
ALFEU SPAREMBERGER

27 A felicidade das máquinas: o triunfo dos dispositivos e o aniquilamento do outro em


O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe
The Happiness of Machines: The Triumph of the Apparatus and the Annihilation of the Other in The Apocalypse
of the Workers, by Valter Hugo Mãe
VERA BASTAZIN
HUMBERTO MOACIR DE OLIVEIRA

44 A inatualidade de Caio Fernando Abreu


The Outdateness of Caio Fernando Abreu
WANDERLAN ALVES

69 Da memória à identidade em ‘The Solid Mandala’, de Patrick White


From Memory to Identity in ‘The Solid Mandala’, by Patrick White
TIAGO FERREIRA PEREIRA
MONICA STEFANI
ROSANI KETZER UMBACH

83 Personae em pentimento: considerações sobre a figura de escritor na obra de


Caio Fernando Abreu
Personae in Pentimento: Considerations on the Writer Figure in Caio Fernando Abreu’s oeuvre
ELLEN MARIANY DA SILVA DIAS
101 Comentário sobre Poema(s) da Cabra e Comendadores jantando de João Cabral de Melo
Neto
Commentary on Poema(s) da cabra and Comendadores jantando, by João Cabral de Melo Neto
TIEKO YAMAGUCHI MIYAZAKI
RICARDO MARQUES MACEDO

116 Dança da morte, escrita da vida: narrativas da AIDS, espaço biográfico e escritas de si nas
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert
Death’s Dance, Life’s Writting: Aids’s Narratives, Biographical Space and Self-writting in the Works of Caio
Fernando Abreu and Hervé Guibert
ANDRÉ LUIZ GOMES DE JESUS

135 Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do romance O filho mais velho de Deus e/ou
Livro IV, de Lourenço Mutarelli
A Multifaceted Reading of the Multiple Faces of the Novel O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, by Lourenço
Mutarelli
JOÃO LUÍS PEREIRA OURIQUE
DOUGLAS ERALDO DOS SANTOS

147 “Nebulosa e retumbante”: notas sobre as Badaladas do Dr. Semana


“Nebulous and Resounding”: Notes on the Badaladas do Dr. Semana
VICTOR DA ROSA

157 Suspensão do espaço-tempo no conto “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu


Suspension of Space-time in the Short Story “Morangos mofados”, by Caio Fernando Abreu
ELIOENAI DOS SANTOS PIOVEZAN

175 Remodelações da poética romanesca em Cachalote: um estudo de caso para apreensão do


romance gráfico
The Reshaping of the Novel Poetics in Cachalote: A Case Study for Grasping the Graphic Novel
LUCAS ZAFALON GARCIA

DOSSIÊ LITERATURA & GÊNERO II

199 Apresentação – Dossiê Literatura & Gênero II


Presentation – Dossier Literature & Gender II
CLAUDIA MARIA CENEVIVA NIGRO
DAVI SILISTINO DE SOUZA
FERNANDO LUÍS DE MORAIS

201 Notas sobre o abolicionismo racista de O cortiço, de Aluísio Azevedo


Notes on the Racist Abolitionism of O cortiço, by Aluísio Azevedo
AMARA MOIRA
209 Redes de solidariedade e interseccionalidades na literatura e gênero
Networks of Solidarity and Intersectionalities in Literature and Gender
DAVI SILISTINO DE SOUZA,CLAUDIA MARIA CENEVIVA NIGRO
FERNANDO LUÍS DE MORAIS
FLÁVIA ANDREA RODRIGUES BENFATTI
LEANDRO PASSOS
LUIZ HENRIQUE SOARES

221 Masculinidades fin de siècle: a patologia do homem e da nação em O barão de Lavos, de


Abel Botelho
Fin de siècle Masculinities: Pathology of Nation and Man in O barão de Lavos, by Abel Botelho
EDSON SALVIANO NERY PEREIRA
MÁRIO CÉSAR LUGARINHO

242 A fuga como resistência e busca por novos horizontes em Onde acaba o mapa, de Carol Rodrigues
The Escape as Resistance and Search for New Horizons in Onde acaba o mapa, by Carol Rodrigues
FLÁVIO ADRIANO NANTES

255 Performativo e subversão em Acenos e afagos, de João Gilberto Noll


The Performative and The Subversion in Acenos e afagos, by João Gilberto Noll
MARIA CLÁUDIA RODRIGUES ALVES
MARCUS VINICIUS CAMARGO E SOUZA

276 Um teto todo nosso: visibilidade, resistência e subjetivação em clubes de leitura


A Room of our Own: Visibility, Resistance and Subjectivation in Reading Clubs
MICHELLE SILVA BORGES

288 Tornando visíveis as experiências trans por meio de traduções


Making Trans Experiences Visible through Translations
REGIANE CORRÊA DE OLIVEIRA RAMOS
TRADUÇÃO: DAVI SILISTINO DE SOUZA

TRADUÇÃO COMENTADA

304 Tradução comentada do conto “Costantino Fortunato”, de Giovan Francesco Straparola


Commented Translation of the Short Story “Costantino Fortunato”, by Giovan Francesco Straparola
MARIA CELESTE TOMMASELLO RAMOS
EUCIMARA REGINA SANTANA SEGUNDO

314 Índice de Assuntos

315 Subject Index

316 Índice de Autores /Authors Index


Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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317 Normas de publicação

320 Policy for submitting papers

323 Normas para los autores

326 Norme per Consegna di Articoli

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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APRESENTAÇÃO

Olho d’água, v. 12, n. 1, 2020

[...] Neste espaço que ainda resta,


ponha uma cadeira vazia.

Encomenda – Cecília Meireles

Este número da revista Olho d’água é composto pelas seções Varia, Dossiê e Tradução
Comentada. Nele, damos continuidade ao Dossiê Literatura & Gênero, organizado pela Profª.
Drª. Cláudia Nigro, e à seção Tradução Comentada, que já começa a tornar-se tradicional na
estrutura da revista.
A Seção Varia conta com onze artigos. Vamos à sua apresentação:
No artigo “O Pós-colonial: utopia e distopia na escrita da desilusão moçambicana”,
Renata Ribeiro Munhoz e Alfeu Sparemberger, exploram relações entre utopia, distopia e
teoria pós-colonial. Para isso, apresentam, primeiramente, uma breve história da literatura
africana em língua portuguesa e uma definição do conceito de pós-colonial. Após essa
contextualização, abordam a produção literária moçambicana em seus vínculos com os
conceitos de utopia e distopia, apontando o fato de que as guerras e suas conseqüências
mudaram percepções de mundo e valores no país – o que fez da literatura uma plataforma
para reflexões críticas e denúncias. O último voo do flamingo (2005), livro de Mia Couto, é
tomado pelos autores como eixo para o desenvolvimento de seu estudo.
Em “A felicidade das máquinas: o triunfo dos dispositivos e o aniquilamento do outro
em o apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe”, Vera Bastazin e Humberto Moacir
de Oliveira analisam o terceiro romance do escritor português, cuja obra tem na felicidade
um tema recorrente. Nesse romance, demonstram, três personagens buscam a felicidade na
alienação e na ignorância – que tem implicações assustadoras como, p. ex., o apagamento da
subjetividade e a aniquilação da alteridade. Com base na leitura que Giorgio Agamben faz da
filosofia da alteridade e do conceito de dispositivo de Emmanuel Lévinas, analisam a leitura
crítica que o romance de Mãe faz de nossa sociedade contemporânea.
Em “A inatualidade de Caio Fernando Abreu”, Wanderlan Alves explora a enunciação
e as possibilidades do dizer em seus vínculos com determinado efeito de inatualidade que
caracteriza a literatura de Caio Fernando Abreu. Deste modo, identifica, na obra do escritor
gaúcho, uma potencialidade crítica nas relações tensas com o tempo que solicita uma releitura
atenta neste início do século XXI.
“Da memória à identidade em The Solid Mandala, de Patrick White”, artigo de Tiago
Ferreira Pereira, Monica Stefani e Rosani Ketzer Umbach, analisa a representação da
memória e da identidade nesse romance do escritor australiano. Segundo os autores, memória
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e identidade se retroalimentam no romance – o que é evidenciado pelos protagonistas
Waldo e Arthur Brown, irmãos gêmeos. Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau
(2011), Hall (2015) e Neumann (2008) constituem-se na base teórico-crítica que embasa a
reflexão desenvolvida no artigo, que demonstra que, no romance de White, a rememoração
e a configuração de si têm, necessariamente, íntimos vínculos.
O artigo “Personae em pentimento: considerações sobre a figura de escritor na obra de
Caio Fernando Abreu”, de Ellen Mariany da Silva Dias, aborda as modulações da figura do
escritor em textos do autor. Segundo a articulista, essas figurações de autoria são construídas
por meio de uma poética auto e antropofágica, evidenciando, em mise-em-abyme, diversas
máscaras de escritor em contos, crônicas, cartas, romances, etc. Isso problematiza os
conceitos de autor, autoria, genialidade convertidos em mitos no Romantismo e também
nas Artes de Vanguarda do séc. XX.
Já o artigo “Comentário sobre Poema(s) da Cabra e Comendadores jantando de João
Cabral de Melo Neto”, de Tieko Yamaguchi Miyazaki e Ricardo Marques Macedo, apresenta
uma análise de poemas do autor de A educação pela pedra baseada nos conceitos de “fratura” e
“linguagem poética”, de Greimas. Segundo os autores, o primeiro conceito permite investigar
como a captação do real por um olhar perfurante dá a ver o que existe além das aparências;
o segundo conceito permite identificar na redundância um procedimento que valoriza, em
decorrência da organização paradigmática, o conteúdo e a expressão dos poemas.
“Dança da morte, escrita da vida: narrativas da AIDS, espaço biográfico e escritas de si
nas obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert”, artigo de André Luís Gomes de Jesus,
estuda “Depois de agosto” (1995) e À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990), respectivamente
conto do escritor brasileiro e romance do escritor francês. O entrecruzamento entre trabalho
ficcional e vivência factual é o eixo do trabalho que, segundo o articulista, insere as duas
obras no campo das chamadas escritas de si. Segundo o articulista, a emergência do espaço
biográfico (ARFUCH, 2010) na ficção é o que explica tanto da escolha de Guibert de narrar-
se a partir de um discurso aparentemente referencial quanto a escolha de Abreu de apagar as
marcas da vivência factual em sua obra. Nos dois casos, resistir à morte e valorizar a instância
autoral como portadora do gesto de narrar são traços comuns aos dois escritores.
Em “Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do romance O filho mais velho de
Deus e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli”, João Luís Pereira Ourique e Douglas Eraldo
dos Santos exploram uma possível natureza satírica da obra em seu diálogo com diferentes
gêneros literários, dentre eles a ficção científica. As diversas possibilidades de interpretação
do romance estabelecem, segundo os autores, vínculos com a longa tradição humana de
encontrar sentido para a existência mediante narrativas amparadas em teorias conspiratórias.
No artigo “’Nebulosa e retumbante’”: notas sobre as Badaladas do Dr. Semana”, Victor
da Rosa refaz a trajetória editorial das crônicas publicadas na coluna “Badaladas” da revista
Semana Ilustrada (1860-1876) sob o pseudônimo Dr. Semana e atribuídas, em grande parte,
a Machado de Assis pela pesquisadora Sílvia Maria Azevedo. O estudo aborda o desafio
que, com tal atribuição, a pesquisadora lança a alguns dos nomes consolidados da crítica
machadiana (Lúcia Miguel Pereira, José Galante de Sousa e Raimundo Magalhães Júnior)
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e, também, o modo como Azevedo se vale de uma série de pistas e de procedimentos de
atribuição autoral que estes mesmos críticos deixaram como legado. Segundo o articulista,
as duas principais complicações para tal atribuição de autoria são, por um lado, a escassez de
provas materiais que liguem Machado de Assis a esse grande conjunto de textos, e a natureza
do pseudônimo Dr. Semana, que era usado por diferentes cronistas do periódico.
“Suspensão do espaço-tempo no conto “Morangos mofados”, de Caio Fernando Abreu”,
artigo de Elioenai dos Santos Piovezan, define a narrativa que toma como objeto de estudo
como obra inacabada e lugar de passagem, texto sintomático da chamada crise da narrativa.
Desenvolve a sua análise com base em Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996),
Agamben (2007), Bakhtin (2011) e Reis (2018), destacando o procedimento do narrador de
mesclar vozes e perspectivas do protagonista, das personagens e do próprio narratário na
construção do texto.
Por fim, no artigo “Remodelações da poética romanesca em Cachalote: um estudo de
caso para apreensão do romance gráfico”, Lucas Zafalon Garcia investiga as relações entre os
gêneros romance e romance gráfico. Com base em Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor
Adorno e Lucien Goldmann, estuda Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho como
exemplar de romance gráfico que porta traços importantes do romance, a saber: o desalento
característico do indivíduo moderno sob o capitalismo, a fragmentariedade constitutiva da
experiência moderno-contemporânea e a problemática da individualização da personagem.
A seção Dossiê foi, como já dito, organizada pela Profª Drª Claudia Nigro, da Unesp/
São José do Rio Preto, contando com artigos voltados para o estudo das relações entre
Literatura e Gênero – campo de investigação que está na ordem do dia e, além disso, ganhou
maior relevância política no atual contexto de emergência e disseminação de discursos e
práticas obscurantistas e preconceituosas. Remetemos o leitor à Apresentação do Dossiê,
feita pela organizadora, a quem agradecemos, juntamente com os alunos que a auxiliaram,
pela colaboração para com a produção da revista.
E para finalizar, agradeço, em nome de toda a equipe da revista, a todos os que
colaboraram para que mais este número se concretizasse. Aproveito, também, para agradecer
retrospectivamente a todos os que, de um modo ou outro, contribuíram ao longo dos últimos
12 anos para a existência e a periodicidade da Olho d’água, da qual, como editor-chefe,
agora me despeço.

Arnaldo Franco Junior

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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VARIA
O Pós-colonial: utopia e distopia na escrita da
desilusão moçambicana

RENATA RIBEIRO MUNHOZ *


A L F E U S P A R E M B E R G E R **

RESUMO: O presente texto visa estabelecer relação entre a teoria pós-colonial, utopias e
distopias. Em seu primeiro momento, uma breve história da literatura africana produzida em
língua portuguesa e a definição de pós-colonial são apresentadas ao leitor, buscando situá-
lo no campo da análise que irá emergir posteriormente. Em seguida, utopia e distopia são
vinculadas à produção literária moçambicana. As guerras e seus desdobramentos mudam as
percepções de mundo e valores do país, servindo a literatura como suporte para reflexões e
denúncias. Para fins de elucidação dos conceitos trabalhados, a obra O último voo do flamingo
(2005), de Mia Couto, permeia a escrita e serve como balizadora do estudo aqui proposto.

PALAVRAS-CHAVE: Distopia; Literatura moçambicana; Mia Couto; Pós-colonial; Utopia.

ABSTRACT: The present article aims to establish a connection among postcolonial theory,
utopias and dystopias. In its first moment, a brief history of African literature written in
Portuguese and the definition of postcolonialism are presented to the reader, aiming to situate
her or him in the field of analysis that will subsequently arise. Afterward, utopia and dystopia
will be linked to the Mozambican literary production. Wars and their outcomes change world
perceptions and country values, making literature a medium of reflections and complaints. To
elucidate the concepts discussed in the article, the book O último voo do flamingo (2005), by Mia
Couto, pervades the writing and works as a guide to the proposed study.

KEYWORDS: Dystopia; Mia Couto; Mozambican Literature; Postcolonialism; Utopia.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – 96010-610


– Pelotas – RS – Brasil. E-mail: rr.renataribeiro@gmail.com
** Centro de Letras e Comunicação – CLC - Letras – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – 96010-610 –
Pelotas – RS – Brasil. E-mail: berger9889@gmail.com
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Introdução: a África lusófona e o pós-colonialismo

Duas épocas determinam a literatura africana lusófona, de acordo com Pires Laranjeira
(2001): a Época Colonial e a Época Pós-Colonial. De acordo com o autor, os primeiros
textos relacionados à África, não necessariamente de africanos, datam de 1849. Partindo da
publicação de Espontaneidades da minha alma, poemas de José da Silva Maia Ferreira, livro
impresso em Angola, são consideradas, por Pires Laranjeira, seis fases da literatura africana
de língua portuguesa: “baixo romantismo”, “negro realismo”, “regionalismo africano”, “sócio-
realismo”, “resistência” e “contemporaneidade”.
O “baixo romantismo”, datado de 1849 a 1880, diz respeito a formas e temas portugueses,
à herança cultural lusíada. Existia, de certa forma, uma ideologia de apreço à aristocracia.
A produção baseou-se em poesia, com estruturas de redondilhas. A cultura africana era
pensada, mas por meio de paradigmas portugueses.
Também o “negro realismo”, nas décadas de 80 e 90 do século XIX, é de inspiração
portuguesa, mas o negro aparece como tema central do texto. Contudo, as manifestações
da negritude apareciam sob o ponto de vista de um complexo de inferioridade, de forma
aculturada. Destaque-se que havia, no âmbito da literatura, possibilidade de ascensão social
para os indivíduos.
Entre 1901 e 1941 ocorre, de acordo com Pires Laranjeira, o chamado “regionalismo
africano”. Esse regionalismo denotava uma postura que reagia às guerras e ao colonialismo,
de insurgência antimetropolitana. Existe uma conscientização política e/ou civil. Pensar a
África, nesse momento, é pensar contra Portugal. Aparecem autores como Rui de Noronha,
em Moçambique, que se dedicou à poesia e ao jornalismo.
A quarta fase, o “sócio-realismo”, emerge aprofundando a opção anticolonial, mas agora
de uma forma a utilizar a literatura como instrumento a serviço cívico, de conscientização.
Este movimento seria definido como a procura permanente da herança dos povos, da sua
história profunda. Teve duração de 1942 a 1950/60. No interior do sociorealismo surge o
“movimento da negritude”, em que aparece a figura do colonizado.

O colonizado é uma categoria ainda mais generalizante do que a do negro, mas,


por isso, os escritores africanos de língua portuguesa, nos anos 50 assumiram a
Negritude (1949-1959) como realização cultural do pan-africanismo, sobretudo
os que estavam morando fora de África, cultuando com orgulho a raça, as
culturas tradicionais (tribais), relativas ao mato e ao campo, numa estética do
retorno ideal às origens, de reencontro com um passado grandiosos, utopia da
felicidade [...] Agostinho Neto, em Angola, Aguinaldo Fonseca, em Cabo Verde,
Noémia e Craveirinha, em Moçambique e Tenreiro e Tomás Medeiros, em São
Tomé e Príncipe exemplificam esse movimento de aproximação genuína do
povo africano e sua herança (LARANJEIRA, 2001, p. 190).

Uma temática de guerrilha e nacionalismo compõe a fase chamada de “Resistência”. Na


segunda metade dos anos 60, a censura impedia as publicações, e os textos que conseguiam
furar o bloqueio, em jornais ou livros, traziam imbuídos em si a revolução. José Luandino
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Vieira, angolano, e Sebastião Alba, moçambicano, são escritores que se destacam nessa fase,
que perdura até meados de 1975, quando ocorre a independência de ambos os países.
Na “contemporaneidade”, mudadas as estruturas de poder, o patriotismo é inflado e os
escritores das literaturas africanas de língua portuguesa redimensionam o seu fazer literário.
Repensam-se os antigos mitos, sonhos, realidades e utopias. Nesse cenário é que se insere a
literatura moçambicana atual, no âmbito, portanto, do pós-colonialismo.
O pós-colonialismo surge como teorização que visa discutir os efeitos culturais da
colonização. O termo pós-colonialismo pode ser entendido como conceito que engloba todas
as estratégias discursivas e performativas (criativas, críticas, teóricas) que frustram a visão
colonial e fazem uma releitura crítica do colonialismo em várias disciplinas afins: História,
Antropologia, Filosofia, Literatura. O termo também engloba a textualidade produzida pelas
ex-colônias europeias que revelam formas e temas novos, distintos dos imperiais. A crítica
pós-colonial propõe uma nova visão de mundo, caracterizada pela coexistência e negociação
de muitas diferentes línguas e culturas. A atividade crítica coloca-se como uma plataforma de
reinterpretação do mundo colonial, permitindo perceber que a representação de um povo,
e o possível reconhecimento dele em tal representação, é sempre construída a partir de um
determinado imaginário.
Nesse sentido, Achile Mbembe (2001) entende que o colonialismo forjou imagens do
africano e que esse, desconhecendo-se, acaba por vestir tal máscara. O historiador camaronês
sublinha que após as independências na África formaram-se duas correntes de imagens que se
firmam no imaginário elaborado sobre os africanos e pelos africanos. A primeira apresenta o
africano como vítima e espoliado, consequência direta do processo de escravidão. A segunda
supervaloriza o argumento da unidade racial e da singularidade cultural, trazendo à tona
peculiaridades, tradições, exotismo. No entanto, uma unidade africana, de identidade, acabou
sendo esquecida, relegada para um segundo plano.
O desenvolvimento dos estudos culturais, com análises contextualizadas, permite a
abertura para o pós-colonialismo, desenvolvendo uma reflexão dialética entre o local e o
global, produzindo análises de práticas culturais do ponto de vista de suas imbricações com as
relações de poder. Neste sentido, a perspectiva analítica do pós-colonialismo nasce também
de um sentido político da crítica literária. Logo, os estudos teóricos procuram enquadrar
as condições de produção e os contextos socioculturais em que se desenvolvem as novas
literaturas.
É necessário que os textos que surgem não sejam avaliados como extensão da literatura
europeia, mas que sejam balizados de acordo com seu enraizamento local, percebendo que
são atravessados por outras paisagens, filosofias, religiões, diversidades. Olhar a literatura
africana de língua portuguesa sob a ótica do cânone ocidental é reduzi-la, desconsiderando
sua originalidade e a finalidade de ser porta-voz de uma distinta realidade.
O pós-colonial abrange questões variadas e interdisciplinares, como: representação,
universalidade, etnicidade, história, lugar, sentido, valor, hibridação, cânone. Assim, cria
determinada instabilidade no domínio dos estudos literários tradicionais. Como decorrência
deste processo, a literatura pós-colonial, de acordo com Thomas Bonnici (1998), surge de uma
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ilação entre o campo político e o literário, designando as literaturas dos países que passaram
pelo processo de colonização.
De acordo com o primeiro texto a elaborar uma teoria pós-colonial, The Empire writes
back: Theory and Pratice in Post-Colonial Literatures (O império responde escrevendo: teoria e
prática nas literaturas pós-coloniais), de 1989, publicado por Asrehcroft, Griffitins e Tiffin, o
que justifica o interesse ou a pertinência desta literatura numa perspectiva histórica, política,
ideológica e literária é o fato de que três quartos dos países do globo foram colonizados.
A teoria pós-colonial, segundo Bonnici (1998), denomina como Colonial o período
pré-independência; Moderno ou recente, o período da pós-independência; Pós-Colonial, o
da cultura influenciada pelo processo imperial desde os primórdios da colonização até os
dias de hoje; finalmente, Literatura pós-colonial corresponde à produção literária dos povos
colonizados.
De acordo com Russel Hamilton (1999), os estudos sobre a teoria pós-colonial surgem
na década de 1980 e despertam interesse maior ainda na década de 1990. Diversas obras
são publicadas e teóricos discutem questões metodológicas e teóricas. Decorrem daí as
polêmicas, como aquela explanada por Russel Jacoby (apud Hamilton) em artigo intitulado
Marginal returns: the trouble with post-colonial (Rendimento duvidoso: o mal da teoria pós-
colonial), questionando o termo pós-colonialismo. Alguns estudiosos, segundo Jacoby,
afirmam que o pós-colonialismo faz referência às sociedades que surgiram depois da chegada
dos colonialistas. Para a grande maioria dos estudiosos, no entanto, a independência política
de determinada colônia é o fato que dá início ao período pós-colonial.
Outra questão discutida por Hamilton (1999) advém do prefixo pós. Seriam coisas
diferentes “pós-colonialismo” e “póscolonialismo”? Hamilton cita Kwame Anthony Appiah
— africano nascido em Gana e autor de estudo fundamental sobre a África, publicado
no Brasil com o título de Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura (1997) — que
problematiza o prefixo “pós”, perguntando se há diferença entre o pós — do pós-modernismo
e o pós — do pós-colonial. Appiah chega à conclusão de que há diferenças entre um e outro,
mas ambos significam um “gesto de abrir novos espaços” e, além disso, da mesma forma
que o pós- do pós-modernismo, o pós- do pós-colonialismo desafia os discursos legitimados
anteriormente.
Outros teóricos, no entanto, escrevem pós-colonialismo, com traço, referindo-se a algo
cronológico, significando simplesmente “depois” do período colonial. Sem o traço, para eles,
significa “por causa do colonialismo”, ou seja, a rejeição das instituições impostas pelo antigo
regime colonial. Portanto, neste último sentido o póscolonialismo significa anticolonialismo
e antineocolonialismo. O consenso maior, no entanto, vem ao encontro da teoria defendida
por Appiah.
No já citado livro, Appiah é bastante crítico quanto à produção literária africana. O
autor teoriza que a cultura refinada versus a cultura de massa, em África, só persiste em
campos nos quais existe instrução ocidental formal. Sendo assim, exclui desta distinção a
música e as artes plásticas, pois para a apreciação das mesmas não é necessária a instrução
formal. No entanto, inclui a literatura africana escrita em línguas ocidentais:
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O pós-colonialismo é a condição que poderíamos chamar, de maneira pouco
generosa, uma intelectualidade comprista: a de um grupo de escritores e
pensadores relativamente pequeno, de estilo ocidental e formação ocidental, que
intermedeia, na periferia, o comércio de bens culturais do capitalismo mundial.
No ocidente, eles são conhecidos pela África que oferecem; seus compatriotas os
conhecem pelo Ocidente que eles apresentam à África e por uma África que eles
inventaram para o mundo, uns para os outros e para a África (APPIAH, 1997,
p. 208).

A escrita pós-colonial surge com tom de reivindicação, protesto, opondo-se ao regime


colonial. Poder-se-ia pensar então que, logo depois de obtida a independência, os povos
teriam uma estética própria no campo literário, com a definição de novos cânones. No
entanto, romper com as raízes imperialistas não é tarefa fácil. Pensar em uma literatura
pós-colonial abrange questões que versam desde a língua da qual vai servir-se até o modo de
descolonização na literatura.
A língua possui uma relação intrínseca com o colonialismo. Citando Zamparoni
(2009), quando os portugueses se estabelecem em terras colonizadas, como Moçambique, e
tornam-se “nativos”, se veem privados de tudo o que constituiria cultura, na visão europeia
(máquinas, indústrias, arquitetura, ética, língua). Ainda assim, trazem algo de que os nativos
“verdadeiros” são desprovidos: o domínio da língua portuguesa. Desta forma, passam a se ver
como portadores de uma positividade, atribuindo aos nativos uma total negatividade. Surge
então um campo de exclusão linguística dupla: a exclusão das línguas locais (as dos dominados)
das esferas de poder e a exclusão dos falantes dessas línguas, ainda que aprendessem a língua
dominante, o português, estabelecendo-se, então, uma hierarquização racial e linguística em
terras coloniais. A violência física faz-se acompanhar da violência simbólica.

Utopia e distopia na literatura moçambicana

A história da descolonização dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial


Portuguesa) é marcada por uma literatura que reflete a Revolução e a Desilusão. A guerra
pela independência traz para a literatura guerrilheiros que irão produzir textos literários.
Intrínseco a seus discursos há contestação, luta, vigor e esperança por novos tempos.
Quando um país passa por conflitos como guerras, ditaduras, massacres, e estes
acabam por destruir o todo que forma uma nação, é comum que se busquem alternativas
para reconstruir essa identidade esfacelada. Essa utopia sobre um povo que reconstrói sua
nova nação ocupa durante muito tempo a temática da literatura africana lusófona. Assim,
reconstruir a identidade é sinônimo de resistência, repor a cultura na ordem do dia, recuperar
elementos culturais antes não valorizados, ou seja, inventar uma nova identidade, calcada
naquela que antes era desprezada pelo colonizador.
Ainda que marcados pela violência, os textos, sobretudo em meados da independência
de Moçambique, refletem a ideia de nação que se quer criar. Uma nação justa, igualitária,
negra, retomando raízes tribais, utópica. De outra parte, a literatura de Moçambique
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possui o caráter de resistência, no sentido de resistir a outras forças, exteriores ao sujeito.
Resistir seria opor a própria energia à energia alheia, como afirma Bosi (2002, p. 118),
posto que o ato de escrever narrativas não nasce apenas da “força de vontade”, esta viria
depois; primeiramente, esta arte teria a ver “com as potências do conhecimento: intuição,
imaginação, percepção e memória”.
As utopias, então, formaram a base idealista das lutas pela libertação. No entanto, os
países testemunharam suas nações serem engolidas pelas desigualdades que emergiram no
processo pós-colonial, nomeadamente pela força imperialista em subjugá-las no processo
de domínio neocolonialista. A realidade que esses territórios apresentam não pode ser
mascarada, se analisada por um viés crítico.
Conforme Hilário (2013), o gênero literário denominado distopia visa fornecer
elementos que nos façam pensar de maneira crítica a contemporaneidade. Assim, deve-
se pensar o sujeito e suas relações com a sociedade, o poder, a cultura e a subjetividade.
Desta forma, a literatura continua sendo um suporte no qual cabe problematizar a realidade,
ajudando-nos a compreender o contemporâneo. Hilário destaca, em seu artigo “Teoria crítica
e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade”, as obras 1984, de
George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.
Ao analisá-las, o articulista revela as diferentes formas encontradas pela sociedade para
controlar o indivíduo, visando impor a ele a visão dominante do sistema político vigente.
Assim, por meio da tecnologia e da alienação, os mecanismos de controle buscarão eliminar
as formas de resistência existentes na sociedade. Decorre daí que a literatura continua sendo
uma forma de resistência, como espaço de denúncia das condições a que os sujeitos são
submetidos. Tem-se, assim, que os sujeitos são produzidos a partir de determinada estrutura
social e sua subjetividade é regida por ela, como constitutivo do modo de ser de cada um.
Portanto, cabe questionar e problematizar: que sociedade é esta e de que valores está imbuída?
Quais são suas lutas e seus temores? O condicionamento dos sujeitos e o estabelecimento de
diretrizes para o pensamento servem de mote aos grupos detentores do poder?
Se pensarmos o caso específico de Moçambique, por exemplo, após a censura pré-
colonial, como anteriormente citado, nos casos da literatura de “Resistência”, existe, após
a independência, uma nova censura, imposta pelo grupo que chega ao poder em 1975: a
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).
Com a independência nacional e a conquista do poder pela FRELIMO, muda totalmente
o contexto da literatura em Moçambique e, diferentemente do que se poderia pensar, muda
para pior. A FRELIMO entra nas cidades com grande desconfiança e a literatura, ainda que
fosse aliada denunciando o regime colonial, passa a sofrer retaliações. Desaparecem editoras
e livrarias, acentuando no país determinado bloqueio ideológico. Surge nesse período uma
“poesia de combate”, fechada, na qual tradição e africanidade passam a ser, de certa forma,
repudiadas. A literatura afasta-se da história, pois a leitura desta dava-se de forma “unitária”,
perpassando nas obras somente o cunho ideológico pregado pela FRELIMO.
Mia Couto, poeta e prosador moçambicano, lutou pela independência de seu país de
1964 a 1974. Ajudou a compor o Hino Nacional moçambicano e trabalhou para o governo
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durante a guerra civil, entre 1976 e 1992. Depois de firmado o acordo de paz em 1992,
que estabeleceu uma democracia multipartidária, o autor segue apoiando a FRELIMO,
reconhecendo, no entanto, o desencanto dos militantes da esquerda:

Há todo um discurso político que mudou — provavelmente ele não era tão
verdadeiro quanto se pensava, era assumido como um discurso da boca para
fora. Há um verso de um poeta moçambicano da Frelimo que ilustra isso muito
bem. “Não basta que seja justa a nossa causa; é preciso que a pureza e a justiça
existam dentro de nós”. Faltou isso em muitos dirigentes políticos. Por outro
lado, também é verdade que quem está no poder tem que entrar numa lógica
de gestão, na qual é muito difícil perceber onde está o limite entre a traição
do princípio e o momento de adaptação ao mundo real. Isso é muito difícil de
gerir. Vivi esse processo porque eu era da Frelimo, da oposição, e pensava que a
conquista do poder seria o fim do poder — no sentido que todos teriam o poder.
[...] Hoje já não sei o que é ser de esquerda, e provavelmente a própria esquerda
não sabia o que ela é. Mas essa disposição, essa vontade de mudar o que está
errado no mundo têm que ser permanentes (COUTO, 2009 apud FELINTO).

A difícil constatação de que as estruturas de poder vigentes perpetuam as estruturas


coloniais por meio do neocolonialismo, uma ditadura imposta, por meio da qual agora é o
negro que explora o negro, é a expressão maior da melancolia e tristeza que passam a fazer
parte da literatura. As obras, neste momento histórico, estão ancoradas na desilusão e na
denúncia das novas estratégias de corrupção e de exercício do poder.
O romance O último voo do flamingo (2005), de Mia Couto, por exemplo, trata de uma
África liberta que ainda mantém traços dos colonizadores e que, por pior que possa ser,
repete seu comportamento, reproduzindo e tornando cíclicos os atos de corrupção e tirania.
O livro tematiza os primeiros anos do período pós-independência e trata da presença dos
“capacetes azuis”, os representantes da ONU, na vila de Tizangara. Ao longo da narrativa,
os corpos dos soldados são dilacerados, sem motivos ou razões declaradas. Entre outros
aspectos, a obra trata de superstição, abuso de poder e crítica ao velho modelo ainda vigente:

Eu já não tinha crença para converter a minha terra num lugar bem assombrado.
Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em
Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se
embebedavam sem respeito. [...] Os novos-ricos se passeavam em território de
rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos.
Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos
sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil.
Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus
pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam
enriquecer, sem trabalhar (COUTO, 2005, p. 110).

A literatura de Mia Couto denota por meio de metáforas o sentimento do povo,


reflete as angústias, dramas e resquícios da colonização. No Último voo do flamingo existe a
constatação de que o governo é despótico e que a guerra seguirá, triste e inevitavelmente,
acontecendo. O povo, no entanto, não questiona, não se opõe, aceita passivamente a guerra.
Os “bonés azuis”, inoperantes, podem ser vistos como “guardiões da ordem e da justiça”, mas
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“também representam uma forma de interferência no país, já que de algum modo recuperam
as imagens das guerras que desfiguraram as paisagens e os afetos de Moçambique e da África”
(FONSECA; CURY, 2008, p. 57).
Na discussão promovida por Hilário acerca de Fahrenheit 451, o raciocínio complexo
frustra as pessoas. Desta forma, os programas televisivos fazem com que o telespectador se
satisfaça com perguntas e respostas rasas, cuja euforia do acerto à indagação provoca satisfação
e bem estar. Isso ocorre somente em vista da desilusão geral que leva as pessoas a não se
preocuparem mais com a tirania do governo e passem a centrar sua atenção em futilidades.
Questionar as estruturas de poder é assunto que não absorve mais a preocupação do povo,
visto que estratégias para que isso ocorresse foram utilizadas. A literatura moçambicana, por
sua vez, denuncia as novas estratégias usadas para enganar o povo, como, por exemplo, o de
conflitar e desacreditar os discursos. O último voo do flamingo traz uma série de assassinatos
de militares da ONU. Para tais assassinatos, são apresentadas diferentes e distintas hipóteses:

Agora, de boina azul na mão, Massimo se consumia em consumida preocupação:


mais um soldado resumido a um sexo! Que podia escrever ele no relatório? Que
seus homens explodiam como bolas de sabão? Na capital, na sede da missão
da ONU esperava notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele
esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes, no seu parecer. Sentiu-se só,
com toda África lhe pesando (COUTO, 2005, p. 100).

Colocadas lado a lado as diferentes versões do mesmo fato, é percebido que os grupos
entram em conflito com o intuito de que se forme uma memória única. Cada grupo,
entretanto, quer ver privilegiada e favorecida a sua variante. Possuir a memória tida como
“verdadeira” é símbolo de poder, prestígio para o grupo que a detém. Como afirma Foucault
(apud Hilário, 2013, p. 208): “o indivíduo é produto do poder”. O poder é dado quando sua
versão dos fatos passa a ter estatuto de verdade. O problema é que, via de regra, essa verdade
só é crível se vier do discurso da história oficial, do governo, daqueles que estão mandando
nos destinos da nação. O povo, curandeiros, prostitutas, donos de bar (os quais aparecem
como detentores de memória no romance de Mia Couto) detêm o direito ao testemunho;
contudo, esses relatos são tidos como fatos delirantes, não dignos de fazer parte do discurso
constituinte e formador da estória/história.
O belicismo político, citado por Hilário, exclui a democratização das discussões, a
começar pela constituição de binarismos excludentes e pelo fato de que somente um dos
lados do debate possui credibilidade, sem espaço para a contradita. Quem é contra o governo
é suspeito, portanto, vigiado, punido, ameaçado. Passa a haver uma civilização em que a
barbárie é endossada pela maioria, quer seja pelo motivo da concórdia, quer seja pela não
oposição a ela. Assim, para que possa seguir existindo, a sociedade passa a “lançar mão da
barbárie para sua própria manutenção” (HILÁRIO, 2013, p. 213).
A guerra que se instala em Moçambique é um conflito que possui dois momentos: a
guerra da revolução, ou seja, a luta contra o colonizador; e a guerra da desilusão, o conflito
interno moçambicano pela reivindicação do poder. Logo, a literatura moçambicana também
irá refletir esses dois momentos na sua formação e consolidação.
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A produção literária no período pós-colonial se dá por meio de dois momentos distintos.
O primeiro está centrado na exaltação patriótica, na celebração dos heróis, fatos históricos,
referência e exaltação de um país recém-liberto. De acordo com Dutra (2010), o período
tem a duração de quase dez anos, estendendo-se de 1975 a 1984/85. O segundo momento se
constrói justamente no questionamento do status dos heróis de outrora, revolvendo a utopia
e as posições doutrinárias, vale dizer, um momento de desilusão.
O discurso literário moçambicano tem buscado essa fórmula: emprestar voz a sujeitos
ex-cêntricos, mesmo que inicialmente ela seja desacreditada, questionada. A subversão da
história nos é revelada pelas personagens que desvendam os mais íntimos segredos da nação.
Esse testemunho retratado na literatura é uma porta encontrada pelo país para a redenção
das vítimas da guerra. A potência da voz do oprimido denotada na literatura mostra um
movimento de luta contra um sistema que busca o silenciamento dos “de baixo”. Esse sistema
opressivo não quer permitir a formação de um novo espaço cultural e de pensamento, quer-
se uma fala hegemônica, que não permite a expressão dos marginalizados.
Lyman Sargent, em seu livro Utopianism: a very short introduction (2010), faz um
apanhado acerca da utopia nos mais distintos países e continentes. Iniciando pelos conceitos
de utopia e distopia, o autor traz à luz aspectos da obra fundadora do conceito, Utopia (1516),
de Thomas More, para então reconstruir o conceito e demais perguntas que acompanham o
assunto desde então. Assim, os mitos, as sociedades e a literatura são postos lado a lado para
que se compreenda como as utopias foram acontecendo nas nações e de que forma vão sendo
postas à prova conforme o andamento dos processos históricos.
Interessa-nos sublinhar a contribuição do autor acerca da literatura produzida no
período pós-colonial. No terceiro capítulo, o autor discorre sobre o colonialismo e a forma
como as nações foram colonizadas. Inicia dividindo o processo de colonização em dois
quadros: aquela colônia cujos produtos e riquezas serão explorados pela metrópole e outro
projeto de colonização que visa criar um novo país com o excedente populacional, ou seja,
com aqueles cujo perfil não serve para integrar a nação colonizadora. Destarte, os dois tipos
de colônia serviriam para a criação de imaginários utópicos, ou seja, países explorados que,
pré e pós-independência, trazem em seu discurso um tom utópico, glorioso, de liberdade e
construção de uma nova e distinta nacionalidade.
Especificamente sobre a África, Sargent traz o exemplo da África do Sul e a literatura
lá produzida, que discutia a questão racial. Sublinha o fato de que algumas obras produzidas
no país defendiam e justificavam a separação racial. Outros romances, no entanto, tratariam
de instigar a urgência na criação de novas leis (Constituição) que dessem conta de melhor
abarcar as mudanças surgidas no campo étnico-racial. Sargent denota que no pós-apartheid
muitas obras têm um caráter distópico, sinalizando uma preocupação com o futuro e com as
mudanças e rumos traçados pela nação. Mais adiante, Sargent discute a utopia e a distopia em
outros países africanos, acrescentando a ideia de que as ditaduras civis e militares produzem
efeito na temática das obras, fazendo com que romances africanos tragam a problemática
do Estado enquanto detentor do poder. Assim, um futuro imaginado, seja ele positivo ou
negativo, acaba por ser balizado pelas estruturas estatais. A paz e a prosperidade são por
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vezes retratadas, mas elas advém de lugares em que existem reinos, relatos orais, valorização
tribal, de matrizes populares, portanto, não originárias do colonizador.
Muito embora a obra não trate especificamente de Moçambique, o pós-colonial nela
é discutido enquanto pressuposto para o lugar de fala daquele que irá sonhar com uma
nação diferente daquela construída pelo explorador. A obra aqui trazida para ilustração
da distopia moçambicana, O último voo do flamingo, encerra sua diegese com o país sendo
engolido por um abismo:

Afastámos do imenso buraco. Sentámos na sombra de uma floresta. Meu pai


então nos convocou. Sua cara era séria, sua voz solene: ele sabia por que a nação
desaparecera naquela infinita cratera.
— Isso é obra dos antepassados...
— Não. Outra vez os antepassados!?
— Respeito, senhor Massimo. Isto é assunto nosso.
Meu velhote prosseguiu: que a ele já tinham chegado os rumores. A gente recebe
a opinião dos espíritos e até Zeca Andorinho lhe já tinha dito a mesmíssima
coisa — os antepassados não estavam satisfeitos com os andamentos do país. Esse
era o triste julgamento dos mortos sobre o estado dos vivos. Já acontecera com
outras terras de África. Entregara-se o destino dessas nações a ambiciosos que
governaram como hienas, pensando apenas em engordar rápido. Contra esses
desgovernantes se tinha experimentado o inatentável: ossinhos mágicos, sangue
de cabrito, fumos de presságio. Beijaram-se as pedras, rezou-se aos santos. Tudo
fora em vão: não havia melhora para aqueles países. Faltavam homens que
pusessem respeito nos outros homens. Vendo que solução não havia, os deuses
decidiram transportar aqueles países para esses céus que ficam no fundo da terra.
E levaram-nos para um lugar de névoas subterrâneas, lá onde as nuvens nascem.
Nesse lugar onde nunca nada fizera sombra, cada país ficaria em suspenso, à
espera de um tempo favorável para regressar ao seu próprio chão. Aqueles
territórios poderiam então ser nações, onde se espeta uma sonhadora bandeira
(COUTO, 2005, p. 216).

Os ritos, rezas, tradições do colonizado foram utilizados para que o país melhorasse.
Os “novos governantes”, contudo, desejavam enriquecer rapidamente, sem amor à terra,
desrespeitando os compatriotas. Sendo assim, a memória seria apagada. O país ficaria
“suspenso”, submerso, até que houvesse tempos favoráveis para que o território pudesse se
converter em nação e novas memórias ali brotassem. Ou seja, para que o país possa de fato
existir, uma nação realmente nova precisa emergir. Portanto, a nação tomada pelos corruptos
precisa desaparecer, deixar de existir, para o surgimento de uma utópica nação idealizada.
Logo, a paz e a prosperidade, como nos possibilita ler em Sargent, de fato advém do
elemento tribal, da valorização daquilo que o povo tem de mais seu: a cultura ancestral
guardada e transmitida de geração em geração, ancorada nos valores anteriores à colonização.
A “invocação do tempo antigo” presta-se para o tradutor, Massimo, comparar “os costumes
que vão morrendo aos hábitos do presente, semeadores de discórdia. A visão nostálgica do
passado salienta um tempo de descomunhão em que os novos ricos se passeavam em terra
de rapina, não tinha pátria” (FONSECA; CURY, 2008, p. 56).

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O passado/presente de Moçambique trazido à tona pela literatura é de país desolado
pela miséria, marcado pela guerra e dela ressentido. Um país que sonhou um futuro diferente
e que se viu traído por sua própria gente, que repete as estruturas de poder, a ideologia e os
desmandos do colonizador.
A nação idealizada pelos moçambicanos é aquela que valoriza seus velhos, seu falar, suas
tradições, sua relação com os animais e com a natureza. Uma pátria que busca reconstruir-se
a partir da memória coletiva inserida na literatura, que não é a oficial, mas a conflitante e
rica do povo que originou e povoou a hoje liberta Moçambique. Compreender a desilusão
que a literatura nos apresenta é refazer os passos históricos do país e sua busca constante por
reinventar-se, ainda que imerso em uma ditatorial colonialidade.

Considerações finais

A atual fase das literaturas africanas de língua portuguesa, respeitadas especificidades


e idiossincrasias de cada um dos países, e superada a estética do “orgulho pátrio” do período
da pós-independência, liquidou antigos mitos, realidades e utopias, “estando a escrever-se,
na narrativa, um novo capítulo da história dessas cinco literaturas, que é, possivelmente, o
da perplexidade e o da incerteza contemporâneas” [...] (LARANJEIRA, s/d, p. 46). Distopia,
portanto, é termo que pode ser atribuído ao trabalho de ficcionistas como Pepetela, Mia
Couto, José Eduardo Agualusa e Germano de Almeida. Resta saber, como ressalta o professor
da Universidade de Coimbra, se, diante das “contingências e solicitações da instituição
literária na contemporaneidade pós-colonial”, as “literaturas africanas se deslumbrarão
com a sociedade do espetáculo ou se hão-de inscrever na continuidade de um casticismo
intemporal, tendo a capacidade de engendrar e de expressar novas utopias e esclarecimentos”
(LARANJEIRA, s/d, p. 46).
As narrativas das literaturas africanas são permeadas por experiências que, ao
atravessarem as fronteiras territoriais, revelam a história. A articulação das vozes desses
escritores denota o desejo de querer representar-se, seja sob a forma de utopia ou da aceitação
e crítica da sua impossibilidade. A reivindicação do lugar da fala e da experiência quer-se
fazer escutar pelas palavras do sujeito histórico. A denúncia, portanto, está a ser feita pela
voz do povo, por testemunhos dos subalternos que agora se reconhecem enquanto sujeitos
históricos, pelo menos enquanto narradores de experiências em uma literatura engajada.

MUNHOZ, R. R.; SPAREMBERGER, A. Postcolonialism: Postcolonialism: Utopia and


Dystopia in the writing of Mozambican disillusionment. Olho d’água, São José do Rio
Preto, v. 12, n. 1, p. 14-26, 2020. ISSN 2177-3807.

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A felicidade das máquinas: o triunfo dos
dispositivos e o aniquilamento do outro em O
apocalipse dos trabalhadores,
de Valter Hugo Mãe

VERA BASTAZIN*
HUMBERTO MOACIR DE OLIVEIRA**

RESUMO: O tema da felicidade é uma constante na obra de Valter Hugo Mãe. Em O apocalipse
dos trabalhadores, terceiro romance do escritor português, os trabalhadores, representados
principalmente por três personagens, buscam a felicidade na quietude da ignorância e da alienação.
O ucraniano andriy é uma das personagens mais radicais nessa busca, chegando a colocar para
si a tarefa de transformar-se numa máquina, o que inicia o apagamento da sua subjetividade e,
principalmente, o aniquilamento do outro. Recuperando as discussões de Giorgio Agamben sobre
o triunfo dos dispositivos e a filosofia da alteridade, de Emmanuel Lévinas, o presente artigo tem
como um dos seus principais objetivos investigar a leitura que o romance de Mãe faz da nossa
sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Alteridade; Dispositivos; Felicidade na Literatura; O apocalipse dos


trabalhadores; Valter Hugo Mãe.

ABSTRACT: The theme of happiness is a constant in the work of the portuguese Valter Hugo
Mãe. In O apocalipse dos trabalhadores (The Apocalypse of the Workers), the writer’s third novel, the
workers, represented mainly by three characters, seek happiness in the stillness of ignorance
and alienation. One of them, the ukrainian andriy, is more radical in this quest, even putting
himself into the task of becoming a machine. The search for a “mechanical happiness” causes
the erasure of workers’ subjectivity and, above all, the annihilation of the Other. Recovering the
discussions of Giorgio Agamben on the triumph of apparatus and the philosophy of the alterity of
Emmanuel Lévinas, the present article aims to investigate the reading that Mãe’s novel makes of
our contemporary society. In this investigation, a critique of contemporary society was perceived,
which is very close to the reprimand that the two philosophers mentioned.

KEYWORDS: Alterity; Apparatus; Happiness in Literature; The Apocalypse of the Workers; Valter
Hugo Mãe.

* Departamento de Arte e Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária – Faculdade de


Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – 05014–901
- São Paulo – SP – Brasil. E–mail: vbastazin@pucsp.br
* Departamento da Psicologia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG – 31270–901 – Belo Horizonte – Minas Gerais – MG – Brasil. E–mail: beto7296@yahoo.com.br
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Introdução

A felicidade é tema recorrente nos livros do escritor português Valter Hugo Mãe.
Em seu romance de estreia, o nosso reino, publicado em 2004, o protagonista, num conflito
constante entre o bem e o mal, busca transformar-se em santo para salvar seus conterrâneos
das forças do mal e da morte. Essas forças são representadas no imaginário da personagem
principalmente pela figura do seu mais insistente antagonista, uma espécie de mensageiro
da morte que recebe o epíteto de “o homem mais triste do mundo”. Em contraponto a esse
excesso de tristeza, o menino de apenas oito anos, persistente em sua busca singular pela
santificação, chega a uma definição para a felicidade: “...se é feliz quando se aceita o destino”
(MÃE, 2015, p. 116). Em o remorso de baltazar serapião, o protagonista vislumbra a “felicidade
última do amor” ao lado da formosa ermesinda, com quem se casa num lindo dia de maio: “E
era como se via no ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos lugares” (MÃE, 2010, p.
41). No entanto, após um jogo de poder e violência que incide por parte do patrão sobre ele,
e por parte do próprio baltazar sobre ermesinda, toda felicidade parece se perder num mar
de iniquidades, preconceitos e violências.
Afora seus dois romances de estreia, o tema da felicidade reaparece em outros livros
do autor. Em a máquina de fazer espanhóis, o protagonista, diante da morte de sua esposa,
sente que qualquer possibilidade de felicidade estava extinta. Era como se lhes dissessem:
“lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante”
(MÃE, 2016a, p. 36). Ironicamente, após a morte da esposa, o protagonista passa a residir
num asilo chamado “lar da feliz idade”, onde vê sua felicidade se extinguir ao mesmo tempo
em que assiste ao nascimento de novas, breves e inesperadas formas de ser feliz. Em O filho de
mil homens, o tema da felicidade é ainda mais explicitamente discutido, havendo inclusive um
capítulo intitulado “Os felizes”. Esse romance expectora a todo momento frases que definem
a felicidade, ora encarando-a como “uma imprudência” (MÃE, 2016b, p. 138), ora como
resultado de “ser o que se pode” (MÃE, 2016b, p. 86), ora, ainda, como resultado de alguém
“ser o que não se pode” (MÃE, 2016b, p. 110).
É possível encontrar nos romances de Mãe variadas formas de reflexão a respeito
da felicidade, o que também rende ao escritor a tarefa de responder, vez ou outra, para si
mesmo, o que é ser feliz. No programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura, em janeiro de
2014, a jornalista Mona Dorf citou a recorrência do tema em sua obra e indagou ao escritor
qual seria para ele a definição de felicidade, ao que o mesmo respondeu:

A felicidade é talvez podermos ser quem somos e apaziguarmo-nos com isso. É


haver uma ideia de ajuste entre nós e a realidade e aquilo que é a dimensão do
sonho. Porque se vivemos permanentemente no delírio do sonho talvez sejamos
sempre frustrados (MÃE, Roda Viva, 2014: 20 min.).

Voltando-se o literário para o prisma da psicanálise, surpreende-nos a semelhança que


o sentido de felicidade sugerido por Mãe apresenta em relação à ideia proposta por Freud
de um sujeito teoricamente sadio, definido pelo psicanalista como aquele que apresenta um
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comportamento que combina características de duas estruturas clínicas: “Chamamos um
comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas características de ambas as reações
– se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz
uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade” (FREUD, 1996b, p. 207)1. Freud
complementa dizendo que esse comportamento conduz o sujeito a não se deter no mundo
interno, naquilo que Mãe chamou de dimensão do sonho, mas a trabalhar no mundo externo.
“Ele não é mais autoplástico, mas aloplástico” (FREUD, 1996b, p. 207). Tanto para Freud
como para Mãe, a felicidade e a saúde aparecem como uma forma de conciliar a realidade
com a dimensão do sonho. Isso significa que ambos repudiam a ideia de que a felicidade resida
no sonho, na fantasia ou em qualquer outra abstração do gênero. No entanto, significa
também que a felicidade tampouco está no apagamento do mundo interno em prol de um
ajustamento excessivo à realidade. A felicidade aparece como um trabalho de conciliação
entre o sujeito, a realidade e a dimensão do sonho.
Essa ideia de que a felicidade não pode ser fruto de uma total alienação à realidade ou
de um ajustamento absoluto ao mundo externo aparece com mais força em outra entrevista
concedida por Valter Hugo Mãe. Ao ser questionado pela Trip TV sobre o imperativo de
felicidade que reina na contemporaneidade, quando todos devemos ser felizes, o escritor
reflete que, de modo geral, desenvolvemos uma ideia muito prática da felicidade: “As pessoas
acham que a felicidade é um exercício, assim como manter o desporto, como manter uma
atividade qualquer: ‘vou me manter ativo na felicidade’” (MÃE, Trip TV, 2016c, 7 min.).
O romancista complementa dizendo que a felicidade é endêmica e que é resultado de uma
consciencialização e não de uma alienação:

A felicidade está muito mais perto da inteligência do que da ignorância. Há aquela


ideia de que o ignorante é feliz. Não, o ignorante passa pela vida eventualmente
como uma abstração. A felicidade é uma coisa que a gente constrói, sobretudo,
através de uma esperteza, de uma lucidez e nunca da alienação (MÃE, TRIP TV,
2016c: 7 min.).

Nesse ponto, a resposta de Mãe está mais próxima das reflexões de Sponville (1952/-)
sobre a sabedoria do que das teorias de Freud (1856/1939) sobre o comportamento sadio. Ao
defender que a finalidade última da filosofia é a felicidade, André Comte-Sponville marca uma
diferença entre o que ele chama de uma “vida verdadeiramente feliz” e as pequenas felicidades
factícias e ilusórias que experimentamos no nosso dia a dia. A sabedoria seria, assim, uma
felicidade na verdade, uma felicidade verdadeira, uma verdade feliz. Essa felicidade, brotada da
esperteza, como diz Mãe, opõe-se a certo tipo de felicidade apresentada por Sponville: “às

1
Nesse texto Freud diferencia Neurose e Psicose a partir de suas relações com a realidade. Enquanto o neurótico,
ao ligar-se à realidade, se afasta de seu mundo interno inconsciente através do recalque, o psicótico suprime algo
da própria realidade ficando mais exposto, portanto, ao material inconsciente. Se o sintoma neurótico é marca
do retorno do recalcado, os fenômenos psicóticos representam, por sua vez, um contato mais direto do paciente
com o material do seu inconsciente. Daí a psicose apresentar sintomas mais extraordinários como alucinação,
delírio, alterações da consciência, enquanto a neurose é marcada por sintomas mais cotidianos como ansiedade,
fobia, depressão.
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nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas
vezes por ilusões, diversão ou má fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos,
estimulantezinhos” (2001, p. 11-12). Por isso, Sponville defende que a felicidade é também
fruto de uma esperteza, por exemplo da esperteza chamada filosofia que, em última instância,
tem como meta a felicidade, embora não tenha essa como uma norma: “A felicidade é a meta
da filosofia, mas não é sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade” (SPONVILLE,
2001, p. 13). Para o autor o que, por vezes, leva a filosofia a verdades tristes nunca é sua meta,
mas sua condição de se submeter à verdade ainda que esta gere sofrimento.
Tanto para o escritor português como para o filósofo francês, a felicidade não pode ser
uma alienação, um estado de quietude ou de euforia apoiado na ignorância. Essa denúncia
da alienação é encenada com mestria por Valter Hugo Mãe no romance o apocalipse dos
trabalhadores. Nele, as personagens principais, contrariando as sugestões de Freud e de
Sponville, buscam se ajustar ao mundo externo, apagando os desejos e os sonhos provindos
do mundo interior, em busca de uma alienação tão brutal que uma delas deseja, efetivamente,
virar uma máquina.
É constante no romance as personagens manifestarem que talvez fossem mais felizes se
lhes faltassem qualquer reflexão ou tipo de pensamento. Em muitas passagens, a alienação e a
ignorância aparecem como uma busca possível para a felicidade. No entanto, não podendo a
felicidade ser consequência de uma alienação, as personagens se frustram. Nessa perspectiva –
de que a felicidade não pode advir de uma alienação e tampouco da anulação da subjetividade
e da relação com o Outro2 – é que as reflexões de Giorgio Agamben sobre o triunfo dos
dispositivos na contemporaneidade e as críticas de Emmanuel Lévinas ao aniquilamento do
outro como pressuposto filosófico sobre o sujeito moderno podem nos ajudar a compreender
essa tese sobre a felicidade que Valter Hugo Mãe apresenta no romance.

O paraíso é não pensar

Em o apocalipse dos trabalhadores, terceiro romance de Valter Hugo Mãe, os trabalhadores


são representados, principalmente, por duas faxineiras, maria da graça e quitéria, e por
andriy3, um imigrante ucraniano que vai a Bragança a procura de trabalho. As faxineiras, que
em Portugal são chamadas mulheres-a-dias, “como se fosse mulher só de vez em quando, em
alguns dias” (MÃE, 2017, p. 18), complementam seus ganhos como carpideiras, chorando

2
Em geral, salvo em algumas citações de outros autores, a opção aqui foi seguir a sugestão de Maria Cristina
S. Furtado (2011, p. 150) e grafar o Outro com maiúscula sempre que se referir à alteridade de modo geral, ao
infinito, ao estrangeiro. Quando se tratar do outro enquanto o próximo, um outro ser humano, será mantida a
grafia com letra minúscula. Entretanto, como reconhece Furtado, há uma equivocidade entre as duas formas, já
que o Outro, na obra de Lévinas, está também presente no outro.
3
A escrita de Valter Hugo Mãe ficou bastante conhecida pelo uso que o autor faz das letras minúsculas, optando em diversos
livros, como no próprio o apocalipse dos trabalhadores, por não usar nenhuma letra maiúscula, mesmo para nomes próprios e inícios de
frases. Dessa forma, maria da graça, quitéria, e andriy, assim como todos os demais nomes das personagens da trama serão também
grafados com letras minúsculas. Segundo Shirley de Souza Gomes Carreira (2012), no artigo “O mundo em minúsculas: uma
leitura de ‘A máquina de fazer espanhóis’”, esse destaque às minúsculas é uma forma do autor enfatizar a oralidade do seu texto.
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em velórios sempre que solicitadas. Ambas as mulheres são apresentadas no início do
romance, enquanto andriy só vai surgir já no desenvolvimento da narrativa sendo descrito
como um ucraniano que abandona os pais para tentar a vida no oeste europeu, trazendo
consigo a saudade e o sentimento de abandono por ter deixado o pai, em processo acentuado
de loucura e a mãe, uma mulher forte e extremamente dedicada à família.
Sem dúvidas, andriy, ao assumir seu desejo de virar uma máquina, é quem representa
de maneira mais explícita a alienação como tentativa frustrada de felicidade. No entanto,
antes de andriy ser mencionado no texto, as duas mulheres-a-dias já denunciam essa
condição alienante do trabalhador no sistema capitalista. maria da graça trabalha para o
senhor ferreira, um velho que a molesta sexualmente e por quem ela nutre um sentimento
ambivalente de amor e ódio. Sua amiga quitéria lhe aconselha: “o amor criado assim, a partir
de quem se odeia, é o pior” (MÃE, 2017, p. 25). O senhor ferreira gaba-se de seu repertório
cultural, enquanto graça se dedica exclusiva e arduamente ao trabalho: “pensava que estava
ali apenas para fazer o seu dinheiro e era de coisas de comer e vestir que precisava” (MÃE,
2017, p. 21). O contraste entre o patrão endinheirado e a mulher ocupada apenas com o
essencial à vida (comer e vestir-se) é bastante recorrente quase como forma de denúncia
do homem rico que usufrui atividades de lazer e de conhecimento das artes e da mulher
pobre que luta para obter a mínima sobrevivência. As duas caracterizações seriam alusões
contundentes a nossa sociedade. quitéria, de maneira jocosa, ajuda a denunciar esse contraste
ao dizer que os artistas citados pelo senhor ferreira pouco importam às faxineiras: “és uma
empregada, dizia-lhe a amiga, a menos que esses homens tenham inventado o cif líquido
marine não me parece que te façam mais feliz”(MÃE, 2017, p. 36). Enquanto a felicidade
para o patrão transcorria dos réquiens de Mozart e dos versos de Rilke, às mulheres-a-dias
importam os inventores de produtos de limpeza que lhes tornassem um pouco menos árduo
o trabalho diário.
Assim são descritas as duas primeiras trabalhadoras, personagens que pensavam que
“poderiam ser feitas de pedra” (MÃE, 2017, p. 25). maria da graça chega mesmo a sonhar
em se casar com senhor ferreira e tornar-se uma senhora burra e obediente (MÃE, 2017, p.
29). Em seus sonhos recorrentes com a porta do céu, vê são pedro a lhe reprimir e ela sem
nada a mostrar a deus que o pudesse impressionar. Ao acordar de um desses sonhos, graça se
revolta ao projetar a hipótese de, mesmo no paraíso, ter ainda de pensar e ser astuta:

ter de pensar no paraíso, não lhe parece isso algo mal feito, perguntava ela ao
senhor ferreira, que se esteja no paraíso para pensar [...] o paraíso devia ser feito
só para sentir felicidade, sem limites, para todos (MÃE, 2017, p. 35).

A dupla de amigas anuncia, portanto, desde cedo na narrativa, esse processo de


reificação expresso no desejo de serem feitas de pedra, sem pensamento e sem subjetividade.
Mulheres em busca do prazer barato tal qual Sponville aborda como pequenas felicidades.
Felicidade sem esperteza, poderia dizer Valter Hugo Mãe. Como se o verdadeiro paraíso
fosse uma espécie de estado emocional em que não se precisaria pensar, semelhante ao estado
produzido por remédios ou outras drogas; um estado em que seria dispensável qualquer tipo
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de filosofia, não por conta de sua meta, que é também a felicidade, mas por desprezar sua
norma, a verdade.
Enfim, o paraíso imaginado por graça se assemelha à imagem de Esteves sem metafísica,
personagem sem ideal nem esperança que surge no final do poema Tabacaria de Fernando
Pessoa (PESSOA, 1987, p. 189). Talvez não seja por acaso que no próximo romance,
após o apocalipse dos trabalhadores, Mãe faz o Esteves sem metafísica reaparecer na literatura
portuguesa, colocando-o como um dos idosos do lar da feliz idade. Em a máquina de fazer
espanhóis, Esteves denuncia o mau diagnóstico do poeta e reivindica uma metafísica para si,
assinalando uma vez mais que a felicidade não é sem espertezas ou metafísica.

A felicidade das máquinas e o triunfo dos dispositivos

Embora as duas amigas já anunciem a condição alienante dos trabalhadores, dificilmente


uma personagem pode representar tão hiperbolicamente a busca desse estado de alienação
quanto andriy – o ucraniano que procura deliberadamente se transformar em uma máquina. O
imigrante gostava de pensar que poderia passar a existir apenas como uma máquina de trabalho
perfeita, com erros reduzidos e já previstos, cumprindo assim o objetivo único de conseguir
dinheiro para enviar a seus pais na Ucrânia. Como maria da graça e quitéria, andriy não queria
pensar, não queria dramatizar emoções, nem buscar metafísicas que pudessem fazê-lo falhar ou
questionar a vida. Seu intuito seria apenas atingir o que ele chamou de felicidade das máquinas,
“uma espécie de contínuo funcionamento sem grandes avarias ou interrupções. A felicidade
das máquinas, para não sentir senão através do alcance constante de cada meta, sempre tão
definida e cumprida quanto seria de esperar de si”. (MÃE, 2017, p. 58).
Chegamos aqui ao extremo oposto do que Sponville entende por filosofia. Se a filosofia,
segundo o filósofo francês , “é uma prática discursiva que tem a vida por objeto, a razão por
meio e a felicidade por fim” (2001, p. 8), a busca de andriy não é nem uma prática discursiva,
pois nela não há espaço para pensamentos ou linguagem; nem tem a vida por objeto, porque
a máquina representa justamente a morte da vida e da subjetividade; e, muito menos tem
a razão como meio, já que a única coisa que importa é cumprir cada meta ainda que não
haja sentido algum ou mesmo que ela seja extremamente absurda. No entanto, é verdade
que também andriy tem como meta última a felicidade, “a felicidade das máquinas”, que se
assemelha à felicidade de maria da graça e quitéria, uma felicidade que pressupõe a eliminação
total de qualquer dimensão do sonho, do desejo e da reflexão.
O ucraniano é, assim, uma representação do drama contemporâneo do homem que
teme ou deseja ser uma máquina. Se a ficção tantas vezes nos impressionou com histórias
de máquinas que desejavam ser humanas, como o robô Hall, em 2001: uma odisseia no espaço,
ou o menino-robô David, em A. I. - Inteligência Artificial, é provável que nos comova cada
vez mais o drama de humanos que desejam ou temem virar uma máquina, como mostra
o sucesso da série britânica Black Mirror, em que a tecnologia acaba potencializando
dimensões humanas apavorantes.
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Algo assustador nesse fenômeno, de um ser humano que busca a tal “felicidade das
máquinas”, é o aniquilamento do sujeito que ele pressupõe. É justamente isso que o filósofo
italiano Giorgio Agamben (1942/-) salienta ao falar do triunfo dos dispositivos. Para Agamben
(2009), a contemporaneidade é marcada por uma ascensão dos dispositivos e por um
apagamento do sujeito, que passa a existir apenas de maneira espectral. O filósofo italiano
articula seu pensamento a partir do conceito de dispositivo desenvolvido por Foucault
(1926/1984) no primeiro tomo de sua obra História da sexualidade. Em entrevista publicada
no livro Microfísica do poder, Foucault, respondendo à pergunta de Alam Grosrichard sobre
o sentido e a função metodológica do termo dispositivo, esclarece:

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto


decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma,
o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se
pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244).

Giorgio Agamben (2009), após iluminadora discussão sobre o termo foucaultiano e


suas raízes possivelmente hegelianas, resume dizendo que um dispositivo pode ser qualquer
coisa que tenha capacidade de capturar e controlar as ações ou os discursos dos seres viventes.
Por isso, para Agamben (2009), seriam dispositivos não apenas as grandes instituições
criticadas por Foucault, como as prisões, os manicômios, as escolas e as fábricas, mas toda e
qualquer práxis que ordene a vida do ser humano, podendo mesmo uma caneta, um cigarro,
uma filosofia ou alguns aparelhos tecnológicos (celulares, computadores e tablets) serem
encarados como dispositivos. Em última instância, o filósofo defende ainda que mesmo a
linguagem, por ordenar algo da vida humana, já funcionaria como um primeiro dispositivo:
“[a linguagem] talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares de anos um
primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a
inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2009, p. 40).
Agamben (2009) faz, com essa abordagem, uma distinção entre o que seria da ordem
do ser e o que seria da ordem da práxis. Para exemplificar melhor sua hipótese, ele resgata
as discussões teológicas que respondem ao paradoxo da santíssima Trindade dizendo que
Deus, enquanto ser, é uno, mas, em suas atividades práticas, ou seja, em sua práxis, é tríplice.
Inspirado na divisão que os cristãos fazem de Deus, que se manifesta entre ser e práxis,
Agamben pensa a constituição humana também a partir desse ponto. Previsivelmente,
ele coloca os dispositivos dos quais trata Foucault do lado da práxis, como ferramentas
que apresentam “a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”
(AGAMBEN, 2009, p. 40).
Se ampliamos tanto assim a noção de dispositivo, a ponto de inserirmos mesmo a
língua nesse rol, fica fácil perceber que não existe subjetividade que não esteja de algum
modo capturada pelos dispositivos. Isso porque, a própria noção de sujeito aparece em
Agamben como um intermédio entre o ser vivente e sua práxis, sendo o sujeito, na verdade,
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o resultado do encontro do ser com os dispositivos ofertados pelo mundo externo. Os
dispositivos, portanto, ao mesmo tempo que assujeitam o ser, capturando-o e modelando-o,
também permitem sua subjetivação: “Recapitulando, temos assim duas grandes classes, os
seres viventes (ou substâncias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos.
Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes
e os dispositivos” (AGAMBEN, 2009, p. 41).
Se, por um lado, o sujeito não se constitui sem uma alienação aos dispositivos, por
outro, quanto mais restar ou for recuperado algo do ser vivente no processo de ordenação
operado pelos dispositivos, mais poderemos falar em subjetividade. Daí Agamben (2009)
tecer sua crítica à contemporaneidade, ressaltando o papel preponderante dos dispositivos
em nossa época. Citando principalmente os dispositivos eletrônicos, tais como os telefones
celulares, o filósofo italiano ressalta que experimentamos uma época em que o ser se aliena
de forma tão determinante nos dispositivos que resta pouco espaço para processos de
subjetivação. Agamben conclui seu ensaio fazendo um alerta:

o que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de


dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar
a recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer,
espectral (2009, p. 47).

andriy parece uma representação perfeita desse sujeito larval, espectral e alienado
aos dispositivos que o cercam, o modelam e o controlam integralmente. A genialidade do
romancista, Valter Hugo Mãe, é ressaltada pelo fato dele ter conseguido metaforizar esse
sujeito espectral sem usar os artifícios mais previsíveis do avanço exacerbado da tecnologia,
fórmula que rende sucesso, como já colocado, à citada série Black Mirror, na qual o humano
teme ou deseja virar máquina por conta de um certo abuso do uso da tecnologia. Em o
apocalipse dos trabalhadores, um homem deseja virar máquina, alienando-se integralmente
ao dispositivo do trabalho. É como se andriy doasse todo o seu ser à práxis do trabalho e,
consequentemente, ao envio de dinheiro a seus pais. A obra de Mãe demonstra, assim, que
é possível prescindir à tecnologia para os dispositivos triunfarem, basta que a subjetividade
seja terminantemente apagada. Parece-nos claro que Agamben (2009) se dá conta disso e
não coloca o avanço tecnológico como única possibilidade de os dispositivos triunfarem.
Por outro lado, o filósofo não parece se enganar ao dizer que, na contemporaneidade, muito
do nosso ser é alienado a dispositivos eletrônicos e através deles vivemos grande parte da
nossa vida. No entanto, o drama de andriy demonstra como a crítica de Agamben (2009) se
expande para muito além de uma crítica à tecnologia.
Contudo, dizer que o trabalho é um dispositivo e que pode operar de forma a produzir
o apagamento do sujeito, não significa dizer que o trabalho não possa ser também fonte de
subjetivação. Freud (1996a) bem observou essa condição dupla do trabalho - de alienação e
subjetivação -, presente, na verdade, em todos os dispositivos. Para Freud, o trabalho prende
o sujeito à realidade, ao mesmo tempo em que permite o deslocamento de componentes
libidinais narcísicos, agressivos e eróticos para as atividades a ele relacionadas: “A atividade
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profissional constitui fonte de satisfação, se for livremente escolhida, isto é, por meio
de sublimação tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos
persistentes ou constitucionalmente reformados” (FREUD, 1996a, p. 88). Entretanto, o
psicanalista reconhece que o trabalho raramente aparece como um caminho para a felicidade
humana, já que a maioria das pessoas só trabalha sob forte pressão da necessidade – e, aqui,
podemos incluir a necessidade de comer e de vestir-se, como diria graça; e a necessidade do
dinheiro para os pais, como diria andriy.
Evidentemente, essa vertente alienante do trabalho e a falta de sentido das atividades
laborais para seus autores, não é fruto de um acaso histórico, nem de uma indolência individual,
mas remonta ao modo de funcionamento social em que vivemos. Uma observação desse
gênero fez com que Bruno Mazolini de Barros e Luara Pinto Minuzzi (2016) abordassem a
alienação de andriy tanto como uma forma da personagem ceder ao capitalismo tardio, como
uma forma de sobreviver a ele. Os autores, a partir do ensaio de Jonhathan Crary, “24/7
– Capitalismo tardio e os fins do sono”, salientam a incompatibilidade entre o capitalismo
contemporâneo (com sua exigência de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana) e uma
vida de fato humana. Rogério Caetano de Almeida e Jope Leão Lobo parecem concordar com
essa leitura sobre andriy ao dizerem que a vontade do ucraniano de virar máquina advém
da “tentativa de anular o tempo (a força irreversível) da espiral de Sísifo para que fosse a
máquina de trabalho perfeita e, assim, ganhar dinheiro suficiente para mandar aos pais”
(ALMEIDA; LOBO, 2015, p. 196). A metalização descrita por andriy, que transforma todo
o tempo do sujeito em trabalho, soa, portanto, como uma feroz crítica ao sistema capitalista
em que vivemos, que nos afasta da nossa subjetividade, fazendo os dispositivos triunfarem,
além de nos afastarem também dos outros seres humanos, como demonstraremos a seguir.

As guelras da máquina e a alteridade como recomposição do sujeito

O triunfo dos dispositivos provoca um apagamento não apenas do sujeito como


também do Outro. Para tornarem-se máquinas não pensantes, alienadas na felicidade de apenas
cumprirem com o que lhes é destinado, os trabalhadores não podem criar laços duradouros
ou profundos. É o esforço que encontramos em várias reflexões do livro. graça quer negar
que estava aos poucos se apaixonando pelo vil patrão. Por mais que o odiasse, a mulher-
a-dias percebe que também o amava e vê isso como um obstáculo para seu paraíso de não
pensar. Para afastar o amor, graça concentra-se na relação monetária entre ela e o patrão:
“a maria da graça queria negar a si mesma o facto de se ter apaixonado por ele [...] para
sobreviver à violência da situação concentrava-se no dinheiro que ganhava” (MÃE, 2017, p.
21-22). Também quitéria e andriy, depois de um primeiro encontro desastroso – em que o
ucraniano falhou sexualmente e se pôs a falar sobre a saudade que sentia dos pais – fizeram
um acordo tácito de não se envolverem demais. Nos encontros seguintes passaram a não
falar um com o outro. quitéria confirma à amiga a relação do casal: “e vocês continuam
sem se falarem, apenas cama. Pois. Não dizemos nada” (MÃE, 2017, p. 104). O ucraniano
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também percebeu logo o quanto apaixonar-se por uma portuguesa seria um empecilho ao
seu objetivo de substituir sangue por óleo. Por isso, encarava o sexo apenas como uma forma
de abastecer a máquina e advertia a si mesmo do risco de se apaixonar: “estaria ali para o sexo,
como a recolha de uma satisfação necessária, ou até a toma de um medicamento, e mais nada”
(MÃE, 2017, p. 75). O imigrante insistia consigo que “haveria de ter a quitéria as vezes que
quisesse, mas nunca permitir que isso o demovesse da progressiva metalização do corpo
[...] nem por um momento julgou estar interessado na mulher além do sexo” (MÃE, 2017,
p. 83). No triunfo dos dispositivos, na felicidade das máquinas, o Outro é apenas um meio,
objeto de gozo do sujeito espectral (ou maquinal). Qualquer relevância do Outro como uma
exterioridade absoluta é seguida de um esforço por seu apagamento. O amor, a compaixão, a
vontade de perdão, tudo o que dá ao Outro um lugar proeminente é visto com desconfiança
pelas personagens.
Os leitores do filósofo lituano Emmanuel Lévinas (1906/1995) não estranharão o
fato de o apagamento do sujeito ser concomitante ao aniquilamento do Outro. Isso porque
o maior esforço das teorias de Lévinas foi justamente revelar a participação do Outro no
processo de subjetivação. Para Lévinas, herdamos da filosofia ocidental e, sobretudo, das
meditações de Descartes (2010), o equívoco de pousar toda a subjetividade no campo do
ser. O Cogito cartesiano nos ensinou que, duvidando de tudo o mais, o pensamento garante
apenas a existência do Eu. Já que só posso pensar por mim e em mim, os outros sempre
poderiam ser apenas ilusões e sonhos. A filosofia cartesiana acaba nos conduzindo então
para uma prevalência da centralidade do Eu autônomo e racional. O esforço de Lévinas
foi corrigir esse aspecto, incluindo o Outro, a exterioridade mais absoluta, na constituição
subjetiva do ser. Conforme sublinham Rogério Jolins Martins e Hubert Lepargneur,

[...] toda a filosofia de Lévinas é construção da subjetividade como encontro com


o outro (ou encontro do outro, simplesmente), a tal ponto que ele se separou da
postura heideggeriana que vincula o Outro ao ser. Sonhador ou não, Lévinas
irá repetindo aonde ele vai, aonde pretende ir sua obra: além do ser, ou, no seu
jargão, “ao outro do ser” (2014, p. 35).

É verdade que desde o século XIX esse Eu autônomo vem sofrendo muitas críticas e
crises, empreendidas por Nietzsche, Freud, Foucault, entre outros. Mas talvez ninguém tenha
feito um ataque tão radical ao Eu autônomo e racional do Cogito cartesiano quanto Lévinas.
Em seu ensaio “O eu e a totalidade”, o filósofo chega mesmo a dizer que sem a exterioridade,
negada no Cogito, não há sequer pensamento. Lévinas faz então uma distinção que parece nos
ajudar a compreender a equação entre pensamento e felicidade aludida pelas personagens de
o apocalipse dos trabalhadores. Ele distingue o ser vivente que, por ignorar o mundo externo, não
pensa, do ser pensante, que acolhe a exterioridade que o convida ao trabalho e à apropriação.
O falso paraíso de maria da graça consiste exatamente em existir apenas como ser vivente,
não pensante. Para Lévinas, isso não exclui do ser uma consciência; o ser vivente tem
consciência, mas uma “consciência sem problemas, quer dizer, sem exterioridade, mundo
interior cujo centro ele ocupa, uma consciência que não se preocupa em situar-se em relação

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a uma exterioridade” (2004, p. 35). É o que almejam os três trabalhadores do romance: uma
“consciência sem problemas”, distante, como Esteves – em A máquina de fazer espanhóis -, de
qualquer metafísica. E, é justamente a metafísica que o ser pensante não pode ignorar:

O pensamento começa, precisamente, quando a consciência se torna consciência


de sua particularidade, ou seja, quando concebe a exterioridade para além de
sua natureza de vivente, que o mantém; quando ela se torna consciência de si
ao mesmo tempo que consciência da exterioridade que ultrapassa sua natureza,
quando ela se torna metafísica (LÉVINAS, 2004, p. 36).

Estamos novamente na metafísica, pois somente descartando-a é possível alcançar uma


consciência sem problemas. Mas para isso é preciso ignorar o mundo exterior, os problemas do
país, a arte, o amor, enfim, é preciso virar uma máquina; ainda que uma máquina racional,
já que a razão também pode reduzir o Outro ao Mesmo, tornando-o apenas um conceito
(ALVES, 2016). Por isso, o estado almejado pelas personagens (de não pensar, de ser feito
pedra ou de ser uma máquina) exclui não apenas o pensamento, mas também o Outro. A
busca por uma consciência sem problemas, leva ao apagamento do sujeito, mas, sobretudo,
ao aniquilamento do Outro. Isso porque para Lévinas, a subjetividade não está apartada
do Outro. Como alerta Miranda (2014), quando Lévinas, percebendo a crise em que se
encontrava o conceito moderno de sujeito, empreendeu um trabalho de reconstrução da
subjetividade, ele priorizou exatamente a alteridade.

Nesse processo de reconstrução, a subjetividade é discutida não por meio


da centralidade do sujeito autônomo, mas a partir da alteridade do Outro
– fato que permite a descrição da subjetividade nos termos de acolhimento e
responsabilidade pelo Outro (MIRANDA, 2014, p. 463).

É importante ressaltar que, embora Lévinas valorize a exterioridade como princípio


fundador da subjetividade ética, isso não implica uma obediência alienada ao mundo exterior
como planeja andriy. Longe disso, o que propõe Lévinas é uma subjetivação que se aproprie
da exterioridade absoluta, do estranho, da alteridade, do Outro. Apropriar-se, porém, sem
reduzi-lo, deixando que o Outro permaneça como Outro e não como um outro-eu: “Tudo
isso revela uma camada mais profunda do que a do ser e do saber e a possibilidade de uma
relação com o Outro em que o Outro não é reduzido ao Mesmo e anulado como Alteridade”
(ALVES, 2016, p. 61).
Também Valter Hugo Mãe nos dirige a uma reflexão dessa ordem quando propõe, na
segunda metade do seu romance, uma abertura das personagens ao exercício do acolhimento
do Outro; ao mesmo tempo em que o pensamento, a metafísica e a arte também passam a
ser mais valorizados. Após o suicídio excêntrico do senhor ferreira, maria da graça sofre de
tristeza e solidão. No entanto, é nesse estado de solidão que ela admite o amor que sentia pelo
patrão, que, embora a usasse, também a humanizava por meio da arte e do amor. Em seus
sonhos com a porta do céu, ela faz um protesto e insiste para que são pedro permita mais um
encontro entre ela e “o maldito”. Percebe, então, que o paraíso não pode ser um estado que
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exclua o pensamento e a metafísica: “até às almas tem de ser conferido o direito ao protesto,
que estar-se morto não pode ser sinal de imbecilidade, pensava ela” (MÃE, 2017, p. 126); a
personagem prossegue salientando a importância do pensamento mesmo depois da morte:
“é claro que estar morto é ainda pensar, pensar mais, porque tudo se decide para sempre, não
se pode brincar com uma coisa assim” (MÃE, 2017, p. 126). Algumas páginas mais e graça
reconhece o que andriy decididamente tentou negar: “a felicidade, pensava ela, não sei o que
é. Sei que não somos umas máquinas sem paragem” (MÃE, 2017, p. 161).
Se graça abre um espaço para acolher e apropriar-se do Outro, sonhando em encontrar
o senhor ferreira no céu e adotando um cão de rua que inicialmente tratou apenas como
um “rectângulo castanho”, andriy e quitéria não ficam para trás. Por mais que tentassem
não pensar, não falar e não incluir o outro em suas vidas, restringindo a relação apenas ao
sexo, eles acabam por romper essa soberania narcísica do eu e se abrem também para uma
exterioridade que os humaniza: “mas ao centro do peito algo se modificava, muito à revelia do
que imaginava. Como se a máquina ganhasse guelras, por exemplo, e ele pudesse, querendo,
respirar debaixo de água” (MÃE, 2017, p. 106). A máquina, como será denunciado adiante,
avaria-se gravemente: andriy chora diante de quitéria, declara-se a ela, segura sua mão, não a
quer longe. Ele volta à sua condição humana e fala com quitéria dos seus medos e saudades.
quitéria, que se julgava feita de pedra, também parece ganhar guelras e acaba por
incluir andriy em sua vida. A mulher-a-dias começa, então, a planejar juntar suas parcas
economias para levar o ucraniano a visitar os pais. Tal abertura faz com que a personagem,
assim como graça, reconsidere o lugar, senão do pensamento, da inteligência em sua vida.
Ela compreende, por fim, o próprio amor, que lhe conduz à abertura para o estrangeiro
andriy, como uma forma maior de inteligência, “a inteligência mais secreta de todas”
(MÃE, 2017, p. 198).
Aos poucos, as personagens vão se humanizando à revelia do sistema que
tenta desumanizá-las e, com isso, também se conscientizam mais do próprio sistema
desumanizante. graça ressalta a revolta de senhor ferreira com a “ideia tão capitalista da
felicidade” (MÃE, 2017, p. 160); e, ao sofrer com as atitudes machistas do marido, reconhece
que ele é apenas uma peça miúda na engrenagem que a desumaniza e que a levará à morte.
graça, na verdade, inicialmente descrita de maneira simplista, vai se revelando repleta de
metafísica e, em sua metafísica, percebe e denuncia toda a engrenagem de um mundo que
a violenta sistematicamente4.
Essa metamorfose das personagens chega até a produzir uma esperança de final feliz.
Quando os três trabalhadores se encontram para jantar na casa de Quitéria, ou para visitarem
etelvina na cidade de vila flor, a felicidade se apresenta em uma nova perspectiva. Não é
mais a felicidade das máquinas, da alienação, do eu autônomo que exclui o Outro, mas uma

4
Nesse sentido é interessante lembrar a distinção feita pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek entre violência
subjetiva e violência sistêmica. Para Žižek, a violência subjetiva, diretamente visível, é composta também pela
violência sistêmica, “que consiste nas consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de
nossos sistemas econômico e político” (ŽIŽEK, 2014, p. 17). augusto, o marido de graça, representa nesse sentido
a violência subjetiva, enquanto que todo o sistema que oprime os trabalhadores do livro poderia ser encarado
como uma forma de violência sistêmica.
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felicidade na contemplação da natureza e, principalmente, na partilha, muito semelhante ao
final feliz que irá se concretizar três anos mais tarde em O filho de mil homens. No entanto,
em o apocalipse dos trabalhadores prevalece uma atmosfera trágica exaltada sobretudo pelo
suicídio de maria da graça no último capítulo do livro.
Ainda no ensaio “O eu e a totalidade”, Lévinas faz uma observação que nos pode auxiliar
a explorar essa diferença entre o apocalipse dos trabalhadores e O filho de mil homens. Lévinas
afirma que o amor não garante uma verdadeira acolhida da alteridade, do estranho, do
Outro. O conceito de terceiro homem demonstra exatamente como o amor pode, na verdade,
servir como um empecilho ao acolhimento da extrema alteridade, do que é absolutamente
estranho e estrangeiro ao sistema interior do ser. Para Lévinas, “amar é existir, como se o
amante e o amado estivessem sós no mundo. A relação intersubjetiva do amor não é o início,
mas a negação da sociedade” (LÉVINAS, 2014, p. 43). O filósofo prossegue dizendo que a
sociedade do amor é uma sociedade refratária à universalidade, refratária ao que é estranho
ao par amoroso, àquilo que Lévinas chamou de terceiro homem - um elemento que perturba
a sociedade do amor.
Nesse sentido, a diferença entre quitéria e Crisóstomo, protagonista de O filho de
mil homens, é quase didática. quitéria, é verdade, abre-se ao estrangeiro andriy, e com isso
se humaniza um pouco mais, a ponto de impressionar maria da graça que lhe diz: “não te
entendo. julguei sempre que não tinhas coração” (MÃE, 2017, p. 131). No entanto, a mulher-
a-dias forma com o ucraniano uma sociedade de amor que é posta à prova quando, no auge
da felicidade do casal, glória, irmã mais nova que havia abandonado quitéria aos cuidados
e envelhecimento dos pais, retorna. glória é um terceiro elemento que ameaça a sociedade
amorosa de andriy e quitéria. De início, a irmã mais velha acolhe a caçula, não sem antes lhe
dar uma forte bofetada na cara. Contudo, diante da ameaça que glória representava à felicidade
do casal, quitéria acaba por expulsar a irmã de seu lar. glória é descrita como um cano de
água que rebentou na casa, ou ainda como uma peça de motor que não pertencesse àquela
máquina, tal como a alteridade, em última análise, deve mesmo soar: estranha, incômoda,
ameaçadora. A sociedade formada por andriy e quitéria é refratária à universalidade, porque
a universalidade inclui também o cano estourado, a peça que não se encaixa, a ameaça à
felicidade do casal.
Em O filho de mil homens, a universalidade e, portanto, a alteridade, parecem ter
um lugar muito mais radical na trama do que na história de quitéria. As personagens que
acompanham Crisóstomo inventam uma família – e não propriamente um casal. Uma família,
como percebe o filho de Crisóstomo, é “um organismo todo complexo e variado. Era feita
de tudo” (MÃE, 2016b, p. 188). Antonino, o homem maricas que foi o primeiro marido da
namorada de Crisóstomo, é apresentado também como uma peça que não se encaixava no
quebra-cabeça da família, quase como um cano rebentado à imagem da irmã de quitéria.
No entanto, diferentemente de glória, ele é acolhido e passa a fazer a parte do coletivo. A
própria reflexão de Crisóstomo que dá nome ao romance indica uma abertura mais radical
das personagens a essa dimensão da universalidade:

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todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães [...]. Como se os nossos mil pais e
mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos,
irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão
grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós
(MÃE, 2016b, p. 204–205).

Crisóstomo se sente ligado “a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como


se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si”
(MÃE, 2016b, p. 199). Isso o permite acolher o Outro, o estrangeiro, o diferente, tudo o
que Antonino, devido o preconceito da vila, representava. Algo dessa ordem, de tamanha
abertura e acolhimento ao Outro, talvez tenha colaborado para Valter Hugo Mãe permitir
que as personagens de O filho de mil homens caminhassem para uma felicidade maior. Em
o apocalipse dos trabalhadores essa abertura termina na sociedade amorosa que impede
as personagens de virarem máquinas, mas que não as colocam tão próximas do extremo
estrangeiro que representa o cano rebentado chamado glória.
A partir das teses de Lévinas, ficamos a perguntar se não faltou a quitéria o acolhimento
também da peça de motor que não pertencia à máquina. Evidentemente, não se trata de um
julgamento moral de quitéria, que passado tanto sofrimento e solidão, vê naquele momento
um breve sonho de felicidade sendo realizado. Tampouco trata-se, aqui, de retirar da obra
de Mãe um receituário para a felicidade. Ainda prevalece o alerta de Freud que, encarando
a felicidade como um problema singular de economia da libido, diz não haver nesse campo
uma regra de ouro que se aplique a todos: “Todo homem tem de descobrir por si mesmo de
que modo específico ele pode ser salvo. (FREUD, 1996a, p. 91).
No entanto, se como profetiza o senhor ferreira, “os artistas são o que mais de
perto existe da humanidade” (MÃE, 2017, p. 69) e se, como alerta Sponville, a filosofia
pode nos conduzir a uma felicidade mais genuína, é inegável que a literatura de Mãe e as
reflexões filosóficas de Agamben e Lévinas podem nos dar, senão uma receita, ao menos
alguma experiência sensível sobre uma felicidade humana; uma felicidade que não seja das
máquinas; uma felicidade que recomponha o sujeito ao mesmo tempo em que se apropria
do Outro. Não apenas do outro do amor, um outro eu, mas o Outro do infinito que me
escapa, da universalidade; que permanecerá sempre inalcançável e ininteligível já que não
será reduzido ao Mesmo.

Considerações finais

Atando alguns fios da proposta neste ensaio, talvez possamos afirmar que a obra de
Hugo Mãe, de maneira geral, não apenas revela, mas também estimula instigantes reflexões
sobre o valor e os significados da palavra felicidade – um conceito exaustivamente discutido
nas mais diversas perspectivas, independentemente das circunstâncias de espaço e tempo.
Os caminhos para se afastar ou atingir a felicidade, nos romances de Mãe, abrem-se
em alternativas plurais e atingem o leitor, enredando-o nos conflitos humanos que, pode-se
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dizer, transformam a fluidez do sentimento de felicidade em um conceito cuja abrangência
procura dar conta da multiplicidade de suas significações. As buscas e desencontros das
personagens criadas pelo autor trazem consigo a densidade da questão e a pergunta se coloca
e se repete reiteradamente: onde estaria a felicidade?
Agamben, tal como aqui retomado, desenha o conceito de dispositivos como possíveis
barreiras ou mesmo verdadeiros obstáculos criados pelas ciências, religiões, organismos
públicos ou privados para se atingir este estágio de satisfação e plenitude que seria a felicidade.
Lévinas, por sua vez, argumenta de forma contundente, apontando quase um caminho que
seria fundamental para o cultivo de um verdadeiro humanismo – o foco no Outro seria a
única direção para o resgate do sujeito em direção à felicidade.
Os suportes teóricos aqui abordados, seja via Agamben ou Lévinas, são na realidade
adendos à experiência lúdico-reflexiva proposta por Hugo Mãe, que coloca a consciência
como instrumento fundamental para se alcançar a felicidade.
Na abordagem dos dois filósofos, a verdadeira realização do ser humano só se daria
a partir de valores humanísticos colocados em contraponto à exploração que as sociedades
contemporâneas têm feito em relação às conquistas humanas nos planos materiais, sociais e
mesmo religiosos.
Hugo Mãe, por sua vez, em sua produção literária, entrelaça o imaginário ao seu
propósito criador, tal como deixa transparecer em uma de suas inúmeras entrevistas:

Utopicamente o que um escritor quer fazer, é talvez ser dotado da possibilidade


de entender o lado de lá, o outro. Eu não escrevo autobiografia, a ficção não
é minha vida, minha vida não é ficcional, é real, e por isso a ficção é sempre
uma proposta de entendimento do que o outro é. E na extremidade do outro,
ou seja, na extremidade de mim, está exatamente a mãe [...] mãe é o polo mais
extremo de mim. O ponto mais afastado de mim. E por isso é essa, exatamente, a
minha ansiedade, de poder, enquanto escritor, usar o texto para entender toda a
amplitude do que é o ser humano (MÃE, 2016d, 8m50s – grifo nosso).

Usar o texto, no depoimento de Hugo Mãe, não parece significar torná-lo um instrumento
de persuasão, de convencimento ao outro, mas, muito pelo contrário, o significado proposto
parece estar ligado ao propósito do ato da escrita criativa, ou seja, de usar o texto como uma
possibilidade real do imaginário vivenciar a experiência da sensibilidade e da consciência
para se atingir uma realização como sujeito – como aquele que pode conquistar seu bem-
estar, sua satisfação, seu prazer de maneira a torna-se o protagonista na construção da sua
própria felicidade.

BASTAZIN, V.; OLIVEIRA, H. M. The Happiness of Machines: The Triumph of the


Apparatus and the Annihilation of the Other in The Apocalypse of the Workers, by Valter
Hugo Mãe. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 27-43, 2020. ISSN 2177–3807.

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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ŽIŽEK, S. Violência. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.

Recebido em: 14 dez. 2020


Aceito em: 21 fev. 2020
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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A inatualidade de Caio Fernando Abreu

WANDERLAN ALVES*

RESUMO: Neste artigo, analisam-se a enunciação e as possibilidades do dizer, assim como


certo efeito de inatualidade ligado à obra literária de Caio Fernando Abreu. Esses elementos nos
permitem rastrear e resgatar a potência de sentidos (embate, enfrentamento, tensão) de sua obra
em relação com o tempo, para uma releitura neste início de século XXI.

PALAVRAS-CHAVE: Caio Fernando Abreu; Enunciação; Inatualidade; Sobrevivência.

ABSTRACT: In this article, I analyze the enunciation and the possibilities of the saying, as well as
a sort of currentless associated to Caio Fernando Abreu’s oeuvre. These elements allow us to track
and rescue a power of the meanings (shock, confrontation, tension) of his work in relation to time,
for a rereading of his literature in the early 21th Century.

KEYWORDS: Caio Fernando Abreu; Enunciation; Currentless; Survival.

* Departamento de Letras – Centro de Ciências Humanas e Exatas – Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
– 58500-000 – Monteiro – PB – Brasil. E-mail: alveswanderlan@yahoo.com.br
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
44
“Es una historia de objetos policrónicos, de objetos
heterocrónicos o anacrónicos”

Georges Didi-Huberman – Ante el tiempo: historia del


arte y anacronismo de las imágenes

“It can be a hard history to tell, hard for the survivors


who still choke up when they talk about the losses
though they cannot stop telling.”

Doris Sommer – The Work of Arte in the World: Civic


Agency and Public Humanities

Ao assinar a carta destinada a Maria Lídia Magliani e datada em 16 de agosto de 1994,


na qual conta sobre seu o diagnóstico de HIV positivo, Caio Fernando Abreu insere, entre
parênteses, uma observação irônica: “(finalmente, um escritor positivo!)” (MORICONI, 2002,
p. 313). O comentário é irônico em sua obviedade, ao referir-se à sua condição de portador
do vírus HIV. Por sua vez, reler a obra de Caio Fernando Abreu mais de 70 anos após seu
nascimento, em 12 de setembro de 1948, e mais de vinte anos após sua morte, ocorrida em
25 de fevereiro de 1996 por consequências da AIDS, implica uma relação com o tempo que
talvez nos possibilite movimentos à revelia do próprio autor, capazes de apontar para sua
inatualidade. Entram nesse jogo o tempo de sua vida, o tempo da obra e os intervalos e tempos
implicados na (re)leitura de sua vida/obra que perpassa uma produção vasta, que transitou
pelo conto, pelo teatro, pela crônica, pelo romance, além de uma quantidade significativa de
cartas. Trata-se de um exercício de recolocação de biografemas e de ideologemas que fizeram
de sua produção tanto um retrato de si quanto um retrato de sua época.
Num sentido eucrônico, a obra de CFA constitui-se num retrato não especular,
mas, ainda assim, imagem difusa de sua geração e de seus vários pertencimentos: CFA foi
escritor, jornalista, gay, teve experiências em comunidades alternativas, experimentou
drogas e morreu vitimado pelo que, então, tinha sido nomeado de “peste gay”. Mas esse
sentido de concordância de tempos (o escritor como homem de seu tempo, a obra como
espelho de sua trajetória individual) costuma ser excessivamente simples quando aplicado
à literatura. O mais habitual é a discordância de tempos, o autor não como expressão de
sua época, mas em combate com ela, ou incompreendido por ela. E é como uma estranha
discordância de tempos (porque parece repetir-se, arrastar-se até o presente deste início
de século XXI, anacronicamente), que gostaríamos de ler o signo “Caio F. (finalmente um
escritor positivo!)” (MORICONI, 2002, p. 313). Por esta perspectiva, sua escritura não cessa
de reconfigurar-se neste presente sombrio (o nosso), o que faz de sua obra um corpo, corpus
ou corpse “estranho” – no sentido freudiano (FREUD, 1980), justamente porque soa familiar
e não familiar ao nosso tempo. Tal possibilidade se deve a que, por mais que vejamos nela
muitas aproximações com o nosso presente (tanto em termos políticos e de gênero quanto
pelo niilismo), também notamos certa distância ou dessemelhança entre nosso tempo de
leitor (hoje) e o de sua produção, há algumas décadas atrás. Um olhar a contrapelo de suas
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circunstâncias históricas e biográficas é possível hoje porque, de certo modo, o passar do
tempo acarreta, para seus textos, certo efeito de esfumaçamento que torna mais espessa a sua
linguagem, à medida que a desreferencializa ou despersonaliza e a liberta das circunstâncias
da gênese da própria escritura1.
Nestes tempos que nos obrigam a trazer novamente para o debate, no Brasil, imagens
(visuais e conceituais) ligadas à tortura, à “higienização” social, à imposição de lugares pré-
definidos para os indivíduos a partir de categorias de gênero, todas aliadas a certa ideia de
Estado, o que cria uma incômoda sobreposição entre um passado e um presente violentos
e sem perspectivas humanizadoras, é importante (re)ler a alcunha autoimposta por CFA
de “escritor positivo” à revelia de si mesmo, provocando-lhe uma “rasura” (DERRIDA,
1973) e adotando, nisso, um olhar aparentemente ingênuo que é, no entanto, um olhar a
contrapelo, jogo livre dos significantes que nos lembra de que “não há origem absoluta no
sentido original” e que é a rasura (ruptura ou diferença, diferência) que “abre o aparecer e a
significação” (DERRIDA, 1973, p. 80). Então é possível um “Caio F. (finalmente um escritor
positivo!)” (MORICONI, 2002, p. 313), porque inatual. Mas de onde é possível extrair
alguma positividade da/na literatura de Caio Fernando Abreu? Ela consiste, justamente,
numa cesura, um suplemento à significação e um detonador de sentidos que torna afirmativa
a enunciação de CFA.
Em seu estudo sobre o tempo e as imagens, Georges Didi-Huberman trata da
inatualidade do alemão Carl Einstein, historiador da arte, nos seguintes termos:

Ora, a situação do presente […] torna a obra de Carl Einstein ainda mais ilegível
do que foi em sua época: voltou a ser o que ela fora no começo – uma obra
essencialmente inatual. Pois o que descortina é uma escrita e um pensamento
simultaneamente fulgurantes e sufocantes. Fulgurantes pelo surgimento
perpétuo de fórmulas paradoxais e violentas, nunca “introduzidas” ou
anunciadas, disparadas sempre como muitos outros ataques frontais. [...] Porém
os golpes chovem com tanta frequência, os raios fulgurantes se sucedem num
ritmo tal, que a escrita se torna sufocante, nos estrangula, nos esgota; [...] para
experimentar fisicamente o estranho cansaço dessa “intensa asfixia” [...] e um
movimento crítico que parece jamais poder sair de sua própria tensão, de sua
própria negatividade protestadora (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 342–343)2.

1
Tal questão coloca em debate o desafio às leituras de sua obra à luz dos conceitos de autobiografia e autoficção,
porque nos obriga a problematizar não só a concordância entre fatos narrados e eventos histórico-biográficos, mas
também as relações de homonimato e referencialidade nos escritos de CFA. Ao centrarem-se, fundamentalmente,
nos enunciados, as leituras da obra de CFA pelos vieses autobiográfico ou autoficcional tendem a assumir
como equivalentes ou idênticos o dizer e o dito, no texto literário, o que limita a apreensão e a distinção entre
aquilo que se representa (figura de escritor, alter ego, personagens plasmadas de elementos que se assemelham à
imagem do autor, etc.) e a fratura que marca o processo mesmo de representação (ou autorrepresentação) e suas
escolhas formais. Nesse sentido, seria importante lembrar que tais leituras são, em certo sentido, um exercício
de reficcionalização da obra à luz de elementos que lhe conferem um efeito de real (biográfico, histórico ou
circunstancial), mas que, no procedimento hermenêutico, pouco se distinguem, por exemplo, da alegorização.
Quanto às leituras de CFA à luz dos conceitos de autobiografia e autoficção, ver Barbosa (2009) e Gomes de Jesus
(2014).
2
No original: “Ahora bien, la situación del presente […] hace a la obra de Carl Einstein aún más ilegible de lo que
lo fue en su época: volvió a ser lo que ella había sido al comienzo – una obra esencialmente inactual. Pues lo que
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É, pois, no horizonte de uma obra “sufocante” e marcada por uma “negatividade
protestadora” que CFA figura, atualmente, como um escritor estranhamente positivo, porque
inatual, porque intervém sobre a língua e, por essa via, abre perspectivas de atuação no mundo a
partir de sua condição de escritor. No plano dos enunciados, há pouca positividade nos escritos
de CFA. Um conto como “Mel & Girassóis” (ABREU, 1988) ou certos trechos do romance
Onde andará Dulce Veiga?, por exemplo, portam estilemas que se aproximam da leveza do
cinemão hollywoodiano, e nisso apresentam, de fato, clichês que beiram o gênero autoajuda.
Em seu conjunto, contudo, a obra de CFA, especialmente a produção contística dos anos 1970
e 1980, flerta com a contracultura, opera uma crítica da ditadura cívico-militar de 1964-1985,
assim como ironiza a falência do sonho revolucionário à esquerda e a própria incapacidade de
autocrítica que tanto a esquerda quanto uma elite intelectual burguesa demonstraram, já nos
anos 1980, em relação ao país, a seus rumos políticos e à pouca mudança na ordem das coisas.
No plano dos enunciados, portanto, resta uma perspectiva desesperançada em seus
textos, que poderia ser sintetizada do seguinte modo: chegamos aos anos 1950 conscientes de
nosso subdesenvolvimento – para remeter ao famoso texto de Antonio Candido (1979) – e
chegávamos ao final do século subdesenvolvidos, apesar da aparência de “milagre econômico”
dos anos 1970, em situação talvez só um pouco melhor do que antes (ou nem isso), e só no
que se refere aos indicadores econômicos. A constatação viria, para a geração e CFA, na voz
de Elis Regina, no álbum Falso Brilhante, de 1976: “Minha dor é perceber/ Que apesar de
termos/ Feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E vivemos/ Ainda somos os
mesmos/ E vivemos/ Como os nossos pais”.
Deste modo, ao reler a obra de CFA nos colocamos ante uma espécie de semelhança
na diferença – o tempo que passa, o passado que sobrevive no presente. O mesmo que, ao
repetir-se, já é outro. Sua própria localização no sistema literário brasileiro e no discurso da
crítica já é outra, visto que, nas duas últimas décadas, seus textos foram objeto de inúmeros
estudos, livros e artigos, e o autor passou a integrar um circuito de temas (homossexualidade,
ditadura, contracultura, HIV) que, ainda que continuem sendo porosos ou, mesmo, tabus,
já estão amplamente incorporados às mais diversas esferas de discussão, seja nos espaços
acadêmicos, seja na televisão ou, ainda, no cenário político3. O próprio CFA ironizaria,
já ao final de sua vida e de sua carreira, a possibilidade de acolhida de sua obra por uma
cultura mainstream com a qual a condição de soropositivo lhe acenava: “É a minha cara! E
futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito
in...” (ABREU, 2002, p. 313 – grifo meu).

despliega es una escritura y un pensamiento fulgurantes y sofocantes a la vez. Fulgurantes, por el surgimiento
perpetuo de fórmulas paradojales y violentas, nunca “introducidas” o preparadas, siempre asestadas como otros
tantos golpes frontales. […] Pero los golpes llueven con tanta frecuencia, los rayos fulgurantes se suceden a un
tal ritmo que la escritura se vuelve sofocante, nos estrangula, nos agota; […] para experimentar físicamente la
extraña fatiga de esta “sofocación intensa” […] y un movimiento crítico que jamás parece poder salir de su propia
tensión, de su propia negatividad protestataria” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 342–343).
3
No banco de dissertações e teses da Capes, aparecem 209 trabalhos que tratam de Caio Fernando Abreu,
isoladamente ou em relação com outros autores, sendo 161 dissertações de mestrado e 46 teses de doutorado. No
Google Scholar, a busca pelo termo “Caio Fernando Abreu” leva-nos a mais de 4 mil resultados. Consulta realizada
em 20 de setembro de 2019.
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É preciso, portanto, encontrar caminhos para que sua obra, ao ser lida à luz dessa
conjuntura, potencialize o caráter provocador que tinha quando foi escrita ou publicada,
entre os anos 1970 e meados dos anos 1980, basicamente. Em suma, é preciso imaginar
modos de acesso à sua escritura que acionem perspectivas de leitura capazes de atravessar
temporalidades do seu tempo e do nosso. É nesse sentido que a possibilidade que nos
interessa sondar aqui implica ler literalmente o epíteto autoimposto pelo autor de “escritor
positivo”, alcunha posta aqui deliberadamente fora do lugar, inatual porque sintomática de
sua inscrição numa outra temporalidade (o presente deste início de século XXI).
Ler CFA hoje não é a mesma coisa que tê-lo lido no momento em que seus textos
foram publicados. Mais de 30 anos após o fim da ditadura cívico-militar (1964-1985) e
ante os avanços da ciência nos estudos sobre o HIV, os jovens que, neste início de século
XXI, leem sua obra se deparam com imagens, lamentos, críticas e, por vezes, certo niilismo
que podem soar fantasmagóricos e melancólicos. Sem negar os dramas de portadores de
HIV ou de homossexuais em suas experiências particulares envolvendo aceitação, políticas
públicas, homofobia, etc., é possível dizer que certa noção ligada à defesa dos discursos
politicamente corretos tornou tais temas não só mais amenos, mas até cool, em nossa época
– estão nas telenovelas, na literatura, no cinema, em seriados. Como temas e figurações,
pouco surpreendem (o que não significa que não incomodem setores cuja posição anacrônica
também é parte da temporalidade de nosso presente). Deste modo, ler literalmente a alcunha
de finalmente positivo em CFA constitui-se num modo de promover certo estranhamento
em seus textos e, então, recuperar neles a sua inatualidade e a sua tensão com o tempo e sua
situação de enunciação. É isso o que pode ser lido hoje como positivo em sua obra. Há que
compreender que, nesse movimento,
diante de uma imagem, temos de, humildemente, reconhecer o seguinte: que
ela provavelmente sobreviverá a nós, que diante dela somos o elemento frágil, o
elemento de passagem, e que diante de nós ela é o elemento do futuro, o elemento
da duração. A imagem tem, frequentemente, mais memória e mais porvir do que
o ser que a olha (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32)4.

Os motivos e temas frequentes nos escritos de CFA fazem de sua obra um estranho
sintoma de época. Como lembra Didi-Huberman (2011), o sintoma é algo que aparece sempre
fora de tempo, ou antes ou depois, como prenúncio de algo por vir ou como confirmação de algo
já evidente ou em curso. Por sua vez, os textos de CFA aparentam portar efeitos de “deciframento
profético” – a expressão é de Didi-Huberman (2011) – sobre nosso presente, razão pela qual seu
anacronismo é desestabilizador, como se, parafraseando Didi-Huberman, abrisse uma dobra
onde se conectam tempo e história. Lê-lo como um escritor “finalmente (e, literalmente,)
positivo” implicaria, deste modo, perscrutar alternativas, proposições construtivas, perspectivas
de futuro abertas em (ou por) sua obra, para além da crítica e da ruptura com seu próprio
tempo mais características de sua narrativa no momento de sua publicação.
4
No original: “ante una imagen, tenemos humildemente que reconocer lo siguiente: que probablemente ella nos
sobrevivirá, que ante ella somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es el elemento
del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más de memoria y más de porvenir que el ser
que la mira” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32).
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Poderíamos, então, ler sua obra a partir das fantasmagorias presentes em seus textos
e, também, da imaginação traduzida em linguagem e entendida como “uma capacidade que
define a consciência” e “um modo de relação com o mundo (coisas e fatos, mas também
com os outros” (LINK, 2009, p. 69)5. Para isso, há que entender a fantasmagoria não
necessariamente como imagem falsa, tal como se convencionou na esteira do marxismo.
Como sabemos, uma fantasmagoria é, sempre, produto de uma imagem, signo no lugar
de outra coisa, concepção reconhecida tanto no campo da história e da sociologia quanto
da psicanálise. O importante, contudo, é compreender a lógica por meio da qual uma
determinada fantasmagoria opera (por inversão, por alteração, a partir de uma pretensão
realista, por recalque, etc.): “Não é que o imaginário funcione como máscara (algo que já
se sabe, e é tão conhecido que não tem sentido deter-se nisso), mas que no imaginário se
observa a potência, a força do real” (LINK, 2009, p. 61)6.
É nesse sentido que, ao indagar os escritos de CFA a partir dos modos como operam
suas fantasmagorias e a imaginação, talvez nos encontremos não necessariamente com a arte
(ou com o artístico) própria ou exclusivamente, mas, sim, com “figuras, fantasmas, unidades
do imaginário como forças, potências ou movimentos que estão além do artístico” (LINK,
2009, p. 70-71)7. Em suma, trata-se de um campo de forças no qual atua, também, o não
administrável, o Real8. Quanto a isso, sendo “impossível, como é, de ser representado, ao
real, então, é preciso imaginá-lo” (LINK, 2009, p. 58)9.
Uma vez que nosso desafio é selecionar figuras, fantasmas e unidades de tensão que
forcem os próprios limites do literário na escritura de CFA, situando-a, por vezes, além do
artístico, torna-se fundamental considerar a enunciação como uma instância seminal para
reler sua obra. A enunciação é uma das poucas categorias da linguagem ainda não exploradas
pela crítica que tratou de CFA até o momento10. Concretamente, a enunciação está fora de
todas as categorias de análise da língua (fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica)

5
No original: “una capacidad que define la conciencia”; “un modo de relación con el mundo (cosas y hechos, pero
también con los otros” (LINK, 2009, p. 69).
6
No original: “No es que lo imaginario funcione como máscara (eso ya se sabe, y es tan sabido que no tiene
sentido detenerse en ello), sino que en lo imaginario se nota la potencia, la fuerza de lo real” (LINK, 2009, p. 61).
7
No original: “figuras, fantasmas, unidades de lo imaginario como fuerzas, potencias o movimientos que están
más allá de lo artístico” (LINK, 2009, p. 70-71).
8
Empregamos o termo, aqui, numa acepção lacaniana, tal como é utilizado por Slavoj Žižek, no âmbito do
chamado materialismo lacaniano. Conforme o sintetiza Marisa Corrêa Silva, nesse sentido o “Real é o que está
para além do que pode ser representado na rede do Simbolismo. Se o que chamamos realidade é um produto
distorcido de nossas percepções, o Real é um excesso (surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido
pelo seu brilho, para o qual não se pode olhar diretamente, como o brilho do sol. É indizível e, portanto, chocante,
traumático. Segundo Žižek, o Real pode irromper na vida do sujeito através de um evento traumático, seja
ele físico ou psicológico. No momento em que isso acontece, ‘a vida perde sentido’, por assim dizer, os laços
simbólicos desatam, deixando que mergulhemos no caos. O Real não pode ser dito, representado, mas pode ser
indicado e um dos termos que Lacan utilizou para essa coisa que o indica é, justamente, ‘a coisa’ (Das Ding). Ela
indica o Real indizível mas não é o Real, é externa a ele, da mesma maneira que a emissão de raios X em torno de
um buraco negro invisível não é o buraco, mas o indica” (SILVA, 2009, p. 213).
9
No original: “imposible como es de ser representado, a lo real, entonces, hay que imaginárselo” (LINK, 2009,
p. 58).
10
Esboçamos uma tentativa muito inicial dessa aproximação há alguns anos (cf. ALVES, 2009).
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e está associada àquilo que se perde no momento mesmo em que se enuncia. Dela resta
apenas uma espécie de rastro deixado na linguagem, marca de um sujeito e de subjetividades
que estiveram ali, na língua, em discurso e em ação, e que não estão mais.
Nesse sentido, a enunciação é, na arte ou na literatura, algo que está além do (ou
que não é o) artístico ou literário. Além disso, como assinala Émile Benveniste (1989), a
enunciação e o enunciado são dois mundos diferentes, ainda que relacionados, e olhar para
a enunciação implica modos diferentes de ver, descrever e interpretar as coisas e, neste
caso, a obra, a escritura e as posições de CFA (escritor, figura pública, alter ego de algumas
de suas personagens, etc.). Por sua vez, só é possível reconstruir a enunciação por um
exercício imaginativo e, de certo modo, também, fantasmagórico. Não se trata de apelar ao
subjetivismo ou de negá-lo (o que é, também, uma convenção), mas de ler vazios, lacunas,
aqueles não lugares da língua e do discurso nos quais a enunciação pode ser reconfigurada e
apontar para as inarticulações da língua e seus modos de dizer.
A partir dos rastros da enunciação no discurso literário, pode-se entrar em contato
com uma figura fundamental à escritura de CFA, que a conecta a certa ideia de margem,
de não pertencimento ou de condição periférica típica de suas personagens, especialmente
em relação ao gênero, à opressão política e à doença ou, mesmo, à morte: o não-sujeito. O
que faz do indivíduo um sujeito é não apenas o uso da língua, mas também a sua relação
com ela e com o dizer. Se, por um lado, a língua é um sistema de regras e, como tal, impõe
limites ao que se pode dizer – Barthes (1977) dirá em Aula que a língua é fascista, pois, em
vez de impedir de dizer, ela (nos) obriga a dizer, a partir de formas e percursos previamente
estabelecidos –, por outro lado, em decorrência dessa condição, o indivíduo pode ser, para
a (ou na) língua, um agente ou um sujeito11. A questão, então, não é o que dizer, mas como
dizer e, mesmo, o que e quando não dizer ou calar. Ao tratar da figura (ou des-figura) do
não-sujeito, Alberto Moreiras a considera como

uma figura que permanece não interpelada, de fato além da interpelação, não
porque a interpelação nunca a alcança, mas porque ela marca o próprio limite da
interpelação. [...] é a figura que deve viver, dentro do lugar, com medo e tremor –
com medo e tremor de interpelação, porque sabe que a interpelação pressagia sua
morte: o instante em que sua interpelação acontece é também o instante em que

11
Arthur Giannotti lembra-nos que, no âmbito de um determinado código de regras morais, se alguém “é
responsável pelo cumprimento da regra é porque, de um lado, não está agindo automaticamente, de outro,
preparou-se para tanto, aprendeu a comportar-se de modo a obedecer ao imperativo” (GIANNOTTI, 2007, p.
338), na medida em que, ao menos nas sociedades humanas, os costumes e as práticas sociais são aprendidos e
não simples reflexos dos instintos. Nesse sentido, a convivência social, seja no âmbito da nação, do matrimônio,
da família ou de uma sociedade qualquer na qual os membros se vinculam por um objetivo comum, supõe a
observância de certas regras (às vezes, não necessária ou explicitamente ditas, como o caso da proibição ao
incesto, tal como analisado pela psicanálise freudiana, por exemplo). No entanto, há sempre uma diversidade
de normas e códigos éticos em relação, simultaneamente. Além disso, uma determinada regra difundida como
natural e inquestionada em um terminado meio social não é, obrigatoriamente, benéfica para todos do grupo
ou moralmente boa. O atendimento ou não ao conjunto de regras que organizam as relações do grupo, por sua
vez, orienta-se pela condição de agente ou de sujeito assumida por seus membros. Em linhas gerais, age como
um agente aquele que segue os preceitos que orientam seu universo e age como um sujeito aquele que transgride
as regras ou adota uma posição de abandono ou negatividade em relação a determinado conjunto dessas regras.
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ela mesma deixa de existir. […] [Também] é a figura que chega absolutamente,
independentemente das expectativas, um visitante em vez de um convidado,
um evento que pode ou não produzir medo e tremor, pode ou não produzir
interpelação, mas cuja condição de possibilidade, cuja imanência é justamente
um deslocamento da interpelação, um excesso dela.// Essas duas imagens são os
dois lados, ou melhor, dois dos lados, de uma figura que são muitas figuras, uma
figura que, justamente, não será contada como uma: a figura que eu chamaria de
não–sujeito do político, já não o estrangeiro, nem inimigo nem amigo, mas um
não-amigo absoluto, uma forma estranha e perturbadora de presença política na
medida em que permanece, em e através de sua chegada, uma memória bruta,
uma lembrança bruta daquilo que sempre tinha estado lá, além da sujeição, além
do alcance, além do recuperável, nem mesmo obsceno, nem mesmo abjeto, mas
simplesmente lá, uma tênue facticidade além da facticidade, um punctum invisível
do inelutável, materialidade intratável, sempre do outro lado do pertencimento,
de qualquer pertencimento (MOREIRAS, 2004, p. 2)12.

Caberia entender a facticidade, aqui, não só como aquilo que é relativo aos fatos, mas
também como algo relacionado ao que é fático, por isso seu caráter simultaneamente “tênue”
e “além”, uma espécie de movimento. Na relação com a linguagem, o não-sujeito convocaria,
portanto, formas e movimentos da subjetividade, se não livres, mas alternativos aos regimes
da significação e da ordem (da língua, do tecido social, do dizível) já amplamente codificados
e normatizados, por sua própria impossibilidade de integrar-se a tais regimes. Nesse sentido,
o fático não é apenas uma função da linguagem, mas um modo de relação do não-sujeito com
a linguagem que, mais do que ancorar-se na língua como canal de comunicação, vincula o
não-sujeito a si mesmo, ao mesmo tempo em que cria uma relação deste com o outro (pois
o interlocutor é sempre necessário em qualquer operação de enunciação, mesmo que apenas
de modo imaginário). Trata-se de uma experiência de enfrentamento com a língua e com
as (im)possibilidades do dizer que é fundamentalmente dialógica, na medida em que põe
em relação um eu e um tu. Benveniste lembra que a enunciação constitui-se num “ato de
apropriação da língua que introduz aquele que fala em sua fala” (BENVENISTE, 1989,
p. 84 – grifo meu) e que, “antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua”
(BENVENISTE, 1989, p. 83).

12
No original: “a figure that remains uninterpellated, indeed beyond interpellation, not because interpellation
never reaches it, but rather because it marks the very limit of interpellation. […] it is the figure that must
live, within the place, in fear and trembling – in fear and trembling of interpellation, because it knows that
interpellation spells its death: the instant its interpellation happens is also the instant where it itself ceases to
exist. […] [Also] it is the figure that absolutely arrives, regardless of expectations, a visitor rather than a guest,
an event that may or may not produce fear and trembling, may or may not produce interpellation, but whose
condition of possibility, whose immanence, is precisely a displacement from interpellation, an excess of it.//
These two images are the two sides, or rather two of the sides, of a figure which is many figures, a figure that,
precisely, will not be counted as one: the figure that I would call the non-subject of the political, not yet the
stranger, neither an enemy nor a friend, rather an absolute non-friend, an uncanny and disturbing form of
political presence to the extent that it remains, in and through its arrival, a hard memory, a hard reminder of
that which has always already been there, beyond subjection, beyond grasp, beyond retrieval, not even obscene,
not even abjected, rather simply there, a tenuous facticity beyond facticity, an invisible punctum of ineluctable,
intractable materiality, always on the other side of belonging, of any belonging” (MOREIRAS, 2004, p. 2).
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Para além de aspectos formais da língua, o que está em questão na enunciação são
atos, o que significa que mesmo a ausência formal de discurso verbal está contemplada nesse
processo em que o não-sujeito é, ao menos enquanto considera as (im)possibilidades do (seu)
dizer ou de dizer-se. Na enunciação, aquele que enuncia diz a si mesmo, presentifica-se,
ocupa um lugar, inclusive quando se trata de expressões, categorias de indivíduos, grupos ou
situações para os quais não há lugar na língua, no discurso previamente estabelecido como
sendo o dizível. Tal característica torna a enunciação um dispositivo possível para que o
não-sujeito ocupe, também, um lugar no mundo, ainda que precária e provisoriamente.
De fato, a referência fundamental no processo de enunciação não se dá em relação à
materialidade da língua, mas ao enunciador, pois a “presença do locutor em sua enunciação
faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Essa
situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o
locutor em relação constante com sua enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 84). Como se
sabe, Benveniste inclui em tais formas pronomes, advérbios e demais elementos dêiticos
da língua, assim como verbos e tempos verbais, e poderíamos acrescentar, também, os
desvios da língua (para o enunciador), por meio de não ditos, de fraturas, de certa “gagueira”
através dos quais o que não se enuncia é, indiretamente, dito. E, na literatura, o indireto é
fundamental, como defende Barthes (1977), pois impede, justamente, “o recalque do sujeito
– quaisquer que sejam os riscos da subjetividade. [...] Mais valem os logros da subjetividade
do que as imposturas da objetividade. Mais vale o Imaginário do Sujeito do que sua censura”
(BARTHES, 2005a, p. 4).
Na obra de CFA, há cinco marcos fundamentais de enunciação, que correspondem a
certa performatividade13 do próprio Caio Fernando Abreu: o primeiro se liga a uma atitude
de jogo e experimentação; o segundo relaciona-se a uma atitude intimista ou existencial; o
terceiro se associa a uma atitude crítica da política, da militância, da vida burguesa; o quarto
vincula-se a uma atitude de denúncia ou dissidência; e, por fim, o quinto se conecta a uma
atitude de responsabilidade como intelectual público14. Tais atitudes expressam modos

13
Entendemos a performatividade, aqui, como um modo de agir na/pela linguagem. Ao colocar a linguagem
em movimento, isto é, ao enunciar, aquele que enuncia realiza ações. John Austin (1962) classificou tais atos
em três categorias fundamentais: locucionários, ilocucionários e perlocucionários, sugerindo ao final de seu
trabalho, no entanto, que todo ato de linguagem é perlocucionário em algum nível. Por sua vez, ao compreender
a performatividade à luz da filosofia da linguagem, Judith Butler (2015) concebe as relações de reconhecimento
(eu-tu, eu-outro), justamente, a partir de um processo em que, na linguagem, os indivíduos se colocam em
relação ao (com o) outro e ambos se colocam para o reconhecimento (pelo outro), à medida que reconhecem o
outro e, por essa via, obtêm, para si, também, algum reconhecimento na linguagem.
14
Em sua dissertação de mestrado, Ellen Dias (2006) estuda sistematicamente a recorrência de motivos e situações
dramáticas na obra de CFA, a partir da recorrência dos temas a) repressão às liberdades individuais; b) cisão
psicológica do indivíduo; c) solidão e anonimato nas grandes cidades; d) hedonismo; e e) experiência do corpo
nas drogas, no sexo e na loucura. A autora identifica quatro núcleos em torno dos quais se constrói a literatura
do autor, a saber: 1) núcleo intimista; 2) núcleo psicodélico-fantástico; 3) núcleo dramático; e 4) núcleo lúdico.
Já em sua tese de doutorado, Dias (2010) se debruça sobre as personae de escritor que CFA construiu de (para)
si em sua obra, associadas à projeção de uma imagem autoral que perpassa todo o seu projeto literário. Este
artigo se diferencia de ambos os trabalhos de Dias (2006; 2010) por centrar-se na perspectiva da enunciação e
dos enunciadores, enquanto a autora centra suas análises na recorrência formal, portanto, dos enunciados, seja
em relação aos temas e motivos dramáticos, no primeiro trabalho, seja em relação à autofiguração de escritor,
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de figuração de categorias individuais, em seus textos, e correspondem a “um mecanismo
total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira. A dificuldade é
apreender este grande fenômeno, tão banal que parece se confundir com a própria língua,
tão necessário que nos passa despercebido” (BENVENISTE, 1989, p. 82), pois se vincula ao
dizível e ao dizer, sem necessariamente subsumir-se ao dito, ao enunciado15.

***

No conto “O rapaz mais triste do mundo”, da coletânea Os dragões não conhecem o


paraíso, publicada em 1988, Caio Fernando Abreu coloca em questão o próprio ato de narrar
como elemento estruturador da narrativa, pondo em evidência o que chamamos de atitude
enunciativa ligada ao jogo e à experimentação16. Esse aspecto lúdico e crítico de seu fazer
literário se torna ainda mais facilmente perceptível à medida que amadurece como escritor,
e se faz mais intenso naquele que foi seu último livro publicado em vida, o romance Onde
andará Dulce Veiga?, em que o autor não só retoma temas e motivos recorrentes em toda sua
contística, mas assume, também, uma perspectiva lúdica que se abre à experimentação formal
com outras linguagens. Tal atitude já tinha aparecido, no entanto, em textos anteriores,
como no conto “A verdadeira estória/história de Sally Can Dance (and The Kids)”, de Pedras
de Calcutá, publicado em 1977.
A deflagração da dificuldade acerca de “como contar uma história” manifesta-se, em
“O rapaz mais triste do mundo”, especialmente na figura do narrador e nos procedimentos
associados à voz narrativa. Aqui, a enunciação convoca as instâncias internas ao próprio relato,
ainda que também se ligue ao próprio autor. O narrador se vê ante o desejo e a necessidade
de enfrentar e assumir a linguagem como única forma de expressão capaz de dar visibilidade
às personagens da história narrada e conferir um sentido à sua existência como enunciador:
“Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esse três
que espia e conta, esse quarto que escuta” (ABREU, 1988, p. 66). O jogo e a brincadeira
funcionam de modo a imprimir um ritmo (tanto ao narrador quanto às demais personagens
e ao leitor) e é exatamente por meio desse ritmo de jogo que o enunciador-narrador alcança
algum poder que lhe permite ser, também, ativo no universo de que faz parte.

no segundo. Em sua tese, a autora também lida com a noção de enunciador, entendendo-a, no entanto, como
projeção de uma persona inscrita no texto literário como representação (centrada, portanto, no enunciado), sem
ligá-la à instância da enunciação, propriamente: “É por meio das personae que se originam desse desdobramento,
sempre, pela via da representação, que o escritor criou, em seus textos/discursos, a possibilidade de,
simultaneamente, ver e experienciar a si mesmo no outro, ver e experienciar o outro em si mesmo” (DIAS, 2010,
p. 146 – grifo meu).
15
Dados os limites deste artigo, lidaremos apenas com alguns textos literários do autor, ainda que nossas hipóteses,
quanto à enunciação, se estendam ao conjunto da obra de CFA, respeitando-se, no entanto, sua diversidade e a
particularidade de cada texto.
16
Nos parágrafos seguintes, ao tratar do marco enunciativo pautado no jogo e na experimentação, retomamos
considerações anteriormente desenvolvidas em Alves (2009). Procuramos, no entanto, dar mais rigor ao
tratamento da enunciação, aqui.
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A fábula da narrativa em questão é trivial e se resume ao seguinte: numa noite de véspera
do dia dos pais, um homem de cerca de quarenta anos, num bar, em um ambiente aberto ao
álcool, às drogas e ao sexo fácil, encontra um jovem de aproximadamente vinte anos, e ficam,
ambos, numa situação em que tudo pode acontecer entre eles, mas nada acontece, restando
apenas expectativa. Quanto à perspectiva enunciativa, o fundamental nesse conto é que “o
jogo encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende
as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação” (HUIZINGA, 1971, p. 4).
Esse entre-lugar aberto pela enunciação é imaginário, e é nele que o enunciador se entrega
aos prazeres do jogo, “Se é que se trata de um jogo” (ABREU, 1988, p. 60). Trata-se, pois, da
aposta num tipo de experiência. No relato, enunciador-narrador e personagens travam uma
relação de permanente reconhecimento, isso “porque somos três e um. O que vê de fora, o
que vê de longe, o que vê muito cedo. Agora quatro?” (ABREU, 1988, p. 62), que traz à tona
os bloqueios e os impasses da linguagem e suas perturbações.
Mas o que o jogo significa para esses jogadores, no conto? Se, do ponto de vista utilitário,
o jogo é supérfluo, o espaço discursivo criado no conto se apresenta como fundamental para
uma posição que se opõe aos valores coercivos da linguagem e à automatização das relações
entre os indivíduos. O jogo funciona como uma forma significante, porque atua de modo
relativamente livre e confere mobilidade ao enunciador (aqui, identificado ao narrador e
ao autor). Tal posição frente aos condicionamentos da linguagem manifesta o desejo de
interrupção da vida cotidiana banalizada, de que as duas personagens do conto são exemplos.
O jogo se oferece como possibilidade de certa “experiência”, que, nesse caso, é também de
ordem estética e supõe os impasses do enunciador com a língua, no exercício de narrar. É
por isso que é fundamental o movimento enunciativo que se organiza nos limites do narrado
e do comentado, nesse conto.
A narrativa, enquanto atitude comunicativa, incide, principalmente, em formas verbais
perfectivas, cuja principal característica é referir-se a ações tidas como certas, passadas e
concluídas. Já o comentário, por sua vez, se estrutura no presente, não só por tomar o fato com
proximidade, mas por permitir a sua problematização. Porém, entre assumir uma posição
subjetiva, a partir de um eu-aqui-agora, ou colocar-se de longe, ele-lá-então, produz-se um
apagamento desses limites em “O rapaz mais triste do mundo”. Todas essas perturbações da
linguagem justificam a opção pela oscilação entre contar e comentar, praticamente ao mesmo
tempo. Ao fugir do perfectivo, a perspectiva enunciativa se posiciona contra a concepção
de um mundo ficcional fechado e acabado, hostil a experiências significativas, mesmo que
ameaçadoras. Problematiza-se, deste modo, a situação do enunciador em relação ao dizer, o
que o impele (e à instância autoral) à experiência com novas formas de exprimir-se – o jogo
é uma delas. Para o enunciador, “o que eu disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto,
sei que continuamos sendo três e quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles próprios, mais
você: nós quatro” (ABREU, 1988, p. 67).

***

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Diferente da anterior em sua configuração, a atitude enunciativa intimista ou
existencial pode ser sondada em “Linda, uma história horrível”, conto que abre a coletânea
Os dragões não conhecem o paraíso, publicada em 1988. Esse é um dos primeiros textos de CFA
em que certo campo semântico ligado à AIDS e à condição de soropositivo do protagonista
apresenta-se quase explicitamente. A personagem, que poderia ser lida como um alter ego de
CFA, viaja até o interior para visitar a mãe, e as cenas fundamentais do relato transcorrem
durante o encontro dos dois, à noite, logo após sua chegada. No âmbito da história narrada,
porém, (quase) nada se explicita. Os diálogos entre o filho e a mãe são evasivos – perguntam-
se pela vida um do outro, retomam lembranças entrecortadas. Fica a sugestão, porém, de
que o protagonista almejaria contar à mãe que é soropositivo, mas não o faz. Sua condição
é “denunciada”, no plano diegético, pelas associações entre a condição decrépita de Linda,
a velha cachorra de sua mãe, e as manchas na pele do protagonista – possíveis sarcomas de
Kaposi – que se deixam ver quando, pouco antes de ir dormir, ele se olha no espelho com o
corpo parcialmente despido. Não nos interessa, aqui, retomar a representação já amplamente
explorada das metáforas da AIDS, no relato, mas a opção escritural de calar, em vez de fazer
dizer a condição de soropositivo do protagonista. A perspectiva narrativa, cuja focalização
centra-se no narrador onisciente neutro, poderia dizer essa soropositividade, mas não o faz.
O protagonista, por sua vez, também não:

– Tu está mais magro – ela observou. Parecia preocupada. – Muito mais magro.
– É o cabelo – ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. – E a barba, três
dias.
– Perdeu cabelo, meu filho.
É a idade. Quase quarenta anos. – Apagou o cigarro. Tossiu.
– E essa tosse de cachorro?
– Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também
olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos,
subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. Quase falou.
Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com
cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo (ABREU, 1988, p. 18).

Como se nota, pouco se fala concretamente, no fragmento. Aquilo que cada um verbaliza
quase se limita a manter aberta uma via de comunicação. Mais do que a impossibilidade
de dizer-se soropositivo (interpretação quase transparente, para o relato em questão),
gostaríamos de ler, aqui, um calar deliberado. Se a língua obriga a dizer (BARTHES, 1977),
e, ao enunciar, o sujeito se apropria da língua, mas ela também se apropria dele (impondo-
lhe limites àquilo que ele pode dizer), o que se nota em “Linda, uma história horrível” é
a opção por calar-se, uma desapropriação da língua. Num contexto em que assumir-se
soropositivo também está atrelado a incorporar uma série de máculas sociais (“a peste
gay”, “gay degenerado”, “imoral”), calar-se, neste conto, supõe, por parte do protagonista,
mas também do narrador e da própria instância autoral, respeitar (ou conferir) o direito
de não inscrever-se em nenhum desses rótulos predeterminados que podem enclausurar
ou aprisionar o protagonista soropositivo. Trata-se, como se nota, de uma opção intimista
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situada, também, no plano da intimidade (o tema, o ambiente e o conflito dramático são
privados), que mitiga a negatividade associada, na imaginação pública, ao portador de HIV e
lhe permite enunciar-se a si em vez de anunciar sua doença.
Entre o filho e a mãe se estabelece uma relação de cumplicidade, nenhum dos dois
diz muito sobre si mesmos, e a troca de olhares, assim como as poucas palavras que falam,
projetam um contato, um campo de relações e de afeto. Se há uma fratura entre o dizer e
o dito, nesse conto, também há um exercício no qual, ao colocar-se diante um do outro, as
personagens oferecem-se para o reconhecimento mútuo (BUTLER, 2015) – dois corpos
postos numa relação de afecção na qual estão em jogo a vida, a idade e a doença. Porém os
rótulos são deixados de lado. A enunciação intimista confere ao relato certa potência de
afirmação da humanidade das personagens e instaura uma perspectiva ética para a narrativa.
Tais escolhas tanto podem ser associadas às personagens (que não se interpelam, que não
forçam um ao outro a dizer nada), quanto ao próprio escritor, que evita a asserção como
modo de dizer aparentemente neutro no qual, entretanto, se comunica uma certeza que
parece destituída de locutor e, deste modo, obtém imediatamente ares de verdade. Enquanto
ato de enunciação, ao calar-se, o enunciador (e aqui pensamos na instância autoral) desobriga
sua personagem-protagonista de assumir-se soropositivo, salvando-lhe o direito à intimidade
e a não converter-se em objeto de curiosidade ou de interpelação e rotulação pelos outros.

***

O terceiro marco de enunciação presente na obra de CFA é aquele que poderíamos


associar a uma atitude de crítica da política, da militância e da vida burguesa. Não estamos
nos referindo aqui a temas ou motivos dramáticos, por mais que tal perspectiva enunciativa
possa estar presente em relatos que tematizam essas questões, também. Um exemplo desse
movimento de interrogação pela enunciação está em “Os sobreviventes”, conto de Morangos
mofados, coletânea originalmente publicada em 1982. No relato, duas personagens (um
homem e uma mulher) fazem uma dura avaliação crítica de suas trajetórias como intelectuais
progressistas, que correspondem, também, à trajetória de uma geração que, segundo as
personagens, tentou tudo (filosofias, revolução socialista, experiências em comunidades
alternativas, homoerotismo, etc.), mas nunca abriu mão, de fato, dos valores burgueses. Diz
a mulher, no conto: “não tenho nada contra decadentes, não tenho nada contra qualquer
coisa que soe a: uma tentativa” (ABREU, 1995, p. 19). E logo em seguida:

ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu


nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que
coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda,
burra, alienada e completamente feliz (ABREU, 1995, p. 19).

A oralidade, que é um traço fundamental da linguagem nesse conto, constitui-se,


também, numa marca evidente da enunciação posta em primeiro plano. Obviamente, no
texto escrito enuncia o escritor, que escreve, assim como enunciam as personagens, que

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falam. O fundamental, porém, em “Os sobreviventes”, é o recurso a um agora que se constitui
em núcleo do ato de enunciação. O relato começa com uma ironia em relação à possibilidade
de uma das personagens viajar para a Ásia (Sri Lanka), o que também poderia ser lido como
uma fuga, uma nova “tentativa”, e isso instaura o conflito dramático fundamental que as leva
a situarem-se uma diante da outra, mas, principalmente, diante do tempo. Por um lado, seus
discursos constituem-se em uma espécie de verdade testemunhal muito problemática, que
procura inscrever seu passado como críticos, militantes de esquerda, indivíduos dissidentes
em seu presente. Por outro lado, seu discurso soa insossamente pedagógico – como todo
testemunho (LINK, 2009).
Mais do que fazerem uma autocrítica, no plano global do relato, como texto que é
destinado aos leitores, “Os sobreviventes” se constitui numa afronta a uma elite intelectual
(não necessariamente econômica, mas, em geral, de classe média) que precisa ser confrontada
consigo mesma para admitir que seus membros, apesar de conferirem-se ares muito
modernos, progressistas e críticos do sistema político-econômico e social, não passavam de
“bons-intelectuais-pequeno-burgueses” (ABREU, 2009, p. 18) e, se se quiser, membros de
uma parcela letrada17 da sociedade que nunca esteve, de fato, disposta a abrir mão de seus
privilégios para promover qualquer revolução capaz de alterar a rigidez e as hierarquias
constitutivas da sociedade brasileira. Nesse sentido, trata-se de uma atitude enunciativa
crítica da própria posição da “juventude pensante” à qual as personagens se ligam. O caráter
positivo (e meio extremo) de tal perspectiva está, justamente, na opção por uma espécie de
“invasão”, uma perspectiva enunciativa que não está preocupada em pertencer a um grupo ou
a uma classe. Parafraseando Moreiras (2004), trata-se de um fluxo que chega por invasão, não
por convite: o tom do relato é ácido. Aliás, as personagens vomitam juntas, “os dois abraçados,
fragmentos azedos sobre as línguas misturadas” (ABREU, 1995, p. 21). A atitude é positiva
justamente porque interrompe um fluxo e um estado de coisas ligado à intelectualidade
(burguesa ou não) e sua crítica pautada na imaginação da catástrofe, portadora de ares ennui
e splenn, melancólica e imobilizada, incapaz de encontrar perspectivas de futuro18.
Ao potencializar uma crítica da imaginação da catástrofe ligada às mazelas do período
histórico de sua juventude, a perspectiva enunciativa do relato abre uma possibilidade de

17
Pensamos, aqui, no conhecido sintagma “cidade letrada”, formulado por Ángel Rama (1984) para referir-
se à participação das elites intelectuais latino-americanas, historicamente vinculadas à política, às letras e ao
pensamento crítico, mas restritas, em sua constituição e em suas ações, ao universo das grandes cidades e a certa
homogeneidade ou continuidade (de classe, etnia e gênero, ainda que não seja o propósito de Rama estender-se
por estas duas últimas categorias em sua discussão).
18
Lendo os ensaios de Susan Sontag, Daniel Link chama de imaginação da catástrofe um conjunto de imagens,
fantasmas e fantasmagorias associadas à crise do humanismo e ao horror legado pelas experiências das guerras
mundiais, no século XX: “A imaginação humanista considera o tempo como uma continuidade entre passado,
presente e futuro. Talvez seja isso o que hoje se impõe a nós como algo impossível (queixas benjaminianas
e hosbsbawnianas diante da perda das tradições). Então, deparamo-nos com posições do tipo no future (não
há futuro). Niilismo, depressão, melancolia, unidades da imaginação da catástrofe” (LINK, 2009, p. 650). No
original: “La imaginación humanista considera al tiempo como una continuidad entre pasado, presente y futuro.
Tal vez sea eso lo que hoy se nos impone como imposible (quejas benjaminianas y hobsbawnianas ante la pérdida
de las tradiciones). Entonces, nos encontramos con posiciones del tipo no future (no hay futuro). Nihilismo,
depresión, melancolía, unidades de la imaginación de la catástrofe” (LINK, 2009, p. 650).
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recuperação da experiência que “supõe ao mesmo tempo um ato de despojamento (da vivência
como ato anterior ao discurso, dos pseudo-saberes que a cultura industrial impõe no lugar
da experiência e, também, um ato de encarnação” (LINK, 2009, p. 108-109 – grifos do
autor)19. A experiência deixa de vincular-se a um passado (melancólico) para (re)configurar-
se no presente, na enunciação das personagens. Deste modo, a “experiência não é anterior
ao ato de discurso em que se constitui (a narração), assim como o sujeito também não
pode ser anterior ao processo mesmo de subjetivação e dessubjetivação (ascese) do qual
paradoxalmente depende” (LINK, 2009, p. 109)20. O relato pode ser lido, portanto, como
um ponto de partida, não mais preso a um passado (catastrófico), e sim aberto à experiência
do presente, apontando para um futuro, pois está centrado na tensão entre as escolhas que
ambas as personagens fizeram e o que elas podem fazer a partir de agora. Tendo em vista
que “o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o ‘agora’ e de torná-lo atual senão
realizando-o pela inserção do discurso no mundo” (BENVENISTE, 1989, p. 85), cabe às
personagens imprimir à própria fala uma inflexão pessoal (enunciativa) que lhes proporcione
uma experiência com o tempo que é, também, uma experiência com a própria linguagem,
que resulta em subjetividade e desautomatização.

***

A atitude enunciativa dissidente, por sua vez, caracteriza-se por uma posição de
denúncia e diferencia-se da anterior porque nesta há uma relação de interrogação coletiva
ligada a ideais políticos e intelectuais e à falência de um sonho, como se nota na perspectiva
amarga das personagens de “Os sobreviventes”, ao passo que na enunciação dissidente o que
se coloca em questão são os limites do diálogo (possível) com o outro e suas consequências
(por vezes, violentas e brutais) para os indivíduos. Trata-se de uma relação fantasmática que
coloca em primeiro plano o fantasma como

o não-sujeito (e, por isso mesmo, o político), aquilo que fica de fora como resto
da classe (ou o que existia antes da classe). A classe é o dispositivo de interpelação,
o fantasma é seu resto (tênue facticidade, materialidade intratável além do
pertencimento). [...] o fantasma espera (LINK, 2009, p. 12)21.

Na obra de CFA, essa relação é fantasmática, também, porque pode relacionar-se,


em algum nível, à própria experiência física e aos fantasmas do autor. É o que se nota em
contos como “Garopaba mon amour”, do livro Pedras de Calcutá, e em “Terça-feira gorda”,
19
No original: “supone al mismo tiempo un acto de despojamiento (de la vivencia como acto previo al discurso, de
los seudosaberes que impone la cultura industrial en el lugar de la experiencia y, también, un acto de encarnación”
(LINK, 2009, p. 108-109).
20
No original: “experiencia no es previa al acto de discurso en el que se constituye (la narración), como tampoco
puede ser previo el sujeto al proceso mismo de subjetivación y de desubjetivación (ascesis) del que paradójicamente
depende” (LINK, 2009, p. 109).
21
No original: “el no-sujeto (y, por eso mismo, lo político), lo que queda fuera como resto de la clase (o lo
que estaba antes de la clase). La clase es el dispositivo de interpelación, el fantasma su resto (tenue facticidad,
materialidad intratable más allá de la pertenencia). […] el fantasma espera” (LINK, 2009, p. 12).
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de Morangos mofados. Ambos os relatos tematizam a violência brutal (tortura, no primeiro;
linchamento motivado por homofobia, no segundo) e instauram uma tensão ancorada no
limite do diálogo, ou melhor, no limite que torna impossível o diálogo. Em “Garopaba
mon amour”, a língua, como norma, está diretamente vinculada ao torturador, que ordena,
imperativo, e ameaça:

– Se eu seguir em frente, seu veado, você pode descansar. Se eu dobrar à direita,


seu filho da puta, você pode começar a rezar. Pra onde você acha que eu vou, seu
maconheiro de merda?
– Pra onde o senhor quiser. Eu não sei. Eu não me importo mais (ABREU, 1977,
p. 87).

A postura da vítima, no entanto, desorienta a trajetória da língua que ordena (fascista,


homofóbica e misógina). Não se trata de enaltecer a resistência à tortura nem de projetar
heroísmos idealizados – não há beleza alguma em nada que se relacione à tortura –, mas de
observar que da impossibilidade do diálogo (o torturador nega-se a reconhecer no outro um
igual, procurando convertê-lo em mero receptáculo da violência física e verbal) emerge uma
espécie de ação discursiva frágil, mas poderosa, porque obriga à aproximação entre torturado
e torturador e une-os por uma fratura moral. Enquanto, para o torturador, a personagem-
vítima é abjeta (é isso que diz a língua que a interpela), as negações da vítima fazem do
torturador um homem abjeto, o que aponta para sua dessubjetivação, seu esvaziamento
como sujeito, indivíduo reduzido a agente de um regime opressor (regime político, mas
também regime ético). Ainda que o torturado não consiga escapar fisicamente da tortura,
ao passar do monólogo interior à análise mental que, por vezes, beira o fluxo de consciência
(ligado à dor e ao delírio), cria-se, no relato, um fosso entre sua subjetividade e a banalização
da tortura na perspectiva do agressor:

– Repete comigo: eu sou um veado imundo.


– Não.
(Tapa no ouvido direito.)
– Repete comigo: eu sou um maconheiro sujo.
– Não.
(Tapa no ouvido esquerdo.)
– Repete comigo: eu sou um filho da puta.
– Não.
(Soco no estômago.) (ABREU, 1977, p. 88).

O confronto das duas perspectivas em relação ao código da tortura instaura a


enunciação do relato (do escritor, portanto) no âmbito do limite do diálogo, também.
“Garopaba mon amour” é um conto sobre o mal, sobre o flerte da literatura com o mal e
sobre até que ponto a imaginação criativa pode lidar com o mal no plano da representação.
Quanto a isso, poderíamos pensá-lo, também, no contexto de uma imaginação pop22, a qual

22
“Oposições do tipo: só há presente, e tanto o passado quanto o futuro são ilusões. É a imaginação pop” (LINK,
2009, p. 67). No original: “Oposiciones del tipo: solo hay presente y tanto pasado como futuro son ilusiones. Es
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explora o horror da tortura e de tantos outros crimes bárbaros (ligados a ditaduras ou não)
e que está relacionada tanto ao mercado quanto ao teor pedagógico inerente às narrativas
de caráter testemunhal que denunciam tais crimes. A dissidência, por sua vez, no que se
refere à enunciação, está associada a uma recusa inegociável à aceitação de quaisquer regimes
normatizadores (do Estado, da sociedade civil, da língua posta a serviço do fascismo). Em
geral, no entanto, os indivíduos envolvidos nas situações dramáticas pagam um alto preço
por essa recusa, como em “Terça-feira gorda”, no qual, durante o carnaval (e, portanto,
supostamente num contexto de liberação), dois homens são agredidos na praia (um deles é
linchado) em razão de sua aproximação erótica:

Nos empurravam em volta, tentei protegê-lo com meu corpo, mas ai-ai repetiam
empurrando, olha as loucas, vamos embora daqui, disse. E fomos saindo colados
pelo meio do salão, a purpurina no meio dos gritos./ Veados, a gente ainda
ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar (ABREU, 1995, p. 52).

Assim como em “Garopaba mon amour”, a língua é o que obriga a dizer, na cena em
questão. As personagens são interpeladas pela sua sexualidade. Os dois rapazes não têm outra
opção senão inscrever-se na categoria que os demais lhes impõem (veados, bichas, ai-ai). À
medida que a situação discursiva se torna maniqueísta, o lugar para os dois jovens vai ficando
mais restrito, até que não há mais lugar para eles:

Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha
mão agarrou o espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele
ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando
para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras
caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o
brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu
corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os
outros todos em volta, muito próximos (ABREU, 1995, p. 53).

O desfecho aberto (não fica claro se o rapaz que ficara caído morre, ainda que tal sugestão
precise ser considerada) associado à cena final do crime de ódio coloca em discussão, nesse
conto, uma estranha forma da presença política, parafraseando Moreiras (2004), aquele resto
fantasmático (LINK, 2009) que acusa que está ali, corpo ferido, ensanguentado, espécie de
discurso mudo, que se nega a desaparecer. Apesar da sugestão de que se trata de uma cena
ruidosa, o narrador-protagonista mantém seu discurso pautado no diálogo com o parceiro
ou no diálogo com o leitor (quando narra, numa perspectiva por detrás (POUILLON,
1974)), mas nunca com os agressores. A dissidência irrompe não só pela tensão e o choque
abruptos entre agressores e vítimas, mas também pela cesura que se imprime no discurso:
não há língua comum com os agressores, não há diálogo possível nesse horizonte, pois os
dois rapazes são, para os demais, “um não-amigo absoluto” (MOREIRAS, 2004, p. 2)23 e não
sujeitos da política e da língua.

la imaginación pop” (LINK, 2009, p. 67).


23
No original: “an absolute non-friend” (MOREIRAS, 2004, p. 2).
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Nos dois contos, instaura-se uma quebra entre o dever dizer e o poder dizer que não
oferece possibilidades de reconhecimento fora da dicotomia entre dominante/dominado
ou agressor/vítima. Trata-se de uma perspectiva enunciativa inatual, que transtorna, pois,
a linguagem das vítimas e dos narradores, em “Garopaba mon amour” e em “Terça-feira
gorda”, não funcionando como mero meio de expressão de um pensamento, e sim como
único reduto para o não-sujeito. Não por coincidência, naquele conto, o torturado insiste na
negação (e, indiretamente, na afirmação de si por meio da negação), enquanto neste, na cena
final os dois rapazes agredidos apenas se olham, mas já não (se) falam. A língua (que oprime,
agride e tortura) é obliquamente substituída pelo discurso mínimo dos corpos (na afirmação
de si ou em sua expressão de dor). A proposição é indireta, porém clara: não é possível
dialogar com fascistas. As opções são poucas, mas o diálogo não é uma delas24.

***

Nas perspectivas enunciativas anteriores, o caráter inatual da escritura de CFA por


vezes aparece alinhado à esfera propositiva, como abertura de uma reflexão que pode ser
observada a partir de um desvio da análise do enunciado para a enunciação. Decorre, também,
de um distanciamento do tempo da obra e de um exercício de escavação de sua policronia.
Há, porém, uma atitude enunciativa associada ao intelectual público que é inatual de outro
modo, por estar relacionada ao diagnóstico de CFA como portador de HIV. Ainda que não
haja uma relação determinista entre cada uma das posições enunciativas observadas na obra
do escritor e uma época em particular, esta se relaciona umbilicalmente à última época de
vida do autor. Talvez por isso ela seja mais visível em algumas cartas e crônicas.
Diagnosticado entre o final de julho e o início de agosto de 1994, CFA escreverá poucos
textos de ficção até sua morte, em 1996. Apesar disso, escreve várias cartas e publica algumas
crônicas em jornais. A já referida carta a Maria Lídia Magliani é muito representativa da
24
Tal sugestão presente no âmbito enunciativo se coaduna a posicionamentos do próprio CFA. Note-se, por
exemplo, sua última intervenção no programa Roda Viva de 1 de julho de 1991, transmitido pela TV Cultura,
no qual a entrevistada era a escritora Rachel de Queiroz, que CFA via como uma apoiadora do golpe militar de
1964 – a autora admite ter apoiado o governo militar de Castelo Branco, mas nega ter apoiado os rumos que a
ditadura toma a partir do AI-5:
Caio Fernando Abreu: Quero falar uma última coisa. Estou me sentindo muito constrangido de estar aqui.
Rachel de Queiroz: Por quê?
Caio Fernando Abreu: É a última coisa, não vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você falou, concluo
que você colaborou para coisas muito negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo que todos nós
somos humanos, erramos, nos equivocamos e tal, mas estou me sentindo extremamente constrangido de estar
na posição de render homenagem a um tipo de ideologia que profundamente desprezo.
Jorge Escosteguy: Caio, você tem que fazer perguntas, e não render homenagem, desculpe.
Caio Fernando Abreu: Está certo.
Jorge Escosteguy: A entrevistada é a escritora Rachel de Queiroz.
Caio Fernando Abreu: Só queria dizer isto: não tenho mais perguntas a fazer. Minha participação se encerra aqui.
Rachel de Queiroz: Gostaria de responder a você que nós estamos num país democrático, eu respeito as suas
posições e espero que você respeite as minhas.
Caio Fernando Abreu: Respeito, tanto que me calo. (Transcrição integral da transmissão disponível em: http://
www.rodaviva.fapesp.br/materia/407/entrevistados/rachel_de_queiroz_1991.htm. Acesso em 20 de setembro
de 2019 – grifo meu).
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atitude propositiva do autor, nos últimos anos de vida. Mas também é paradoxal, pois nela se
vislumbra uma enunciação que é mais positiva (sem qualquer trocadilho) na intimidade do
que na vida pública. Após relatar o diagnóstico e as oscilações emocionais iniciais a Magliani,
CFA não só passa a lidar tranquilamente como o tema da própria doença, na carta, mas também
começa, concretamente, a fazer planos: “Deus está me dando a oportunidade de determinar
prioridades. E eu só quero escrever. Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto
criativo tipo Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard” (MORICONI, 2002, p.
312). Na carta, cujo contexto discursivo deixa mais clara a relação entre um eu e um tu e,
portanto, aproxima o ato de enunciação da conversa, CFA mostra-se leve e, principalmente,
adota uma postura de intelectual público que se diferencia de seus escritos anteriores, em que
a crítica política está presente, porém a figura do autor, quando aparece, se vale de recursos
do literário para travestir-se de literariedade (alter egos, autoficção, alegorias). Já ao final da
referida carta, ele observa: “Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga.
Quero ajudar a tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino” (MORICONI, 2002,
p. 313). Apesar do tom levemente sentimental (“vírus assassino”) e, inclusive, melodramático
(“véu da hipocrisia”), o que se destaca no fragmento é um sentimento de responsabilidade e
altruísmo (“ajudar a tirar o véu da hipocrisia que encobre este vírus”).
Se compararmos sua atitude com aquela do narrador e do protagonista do conto
“Linda, uma história horrível”, veremos que elas parecem situar-se em polos opostos, ainda
que se relacionem a uma mesma problemática: dizer-se soropositivo. Enquanto a liberdade
de não dizer, no conto, constitui-se numa postura ética do narrador e do autor, que preserva
a intimidade da personagem, aqui tal condição figura como mais um atributo de CFA, como
outro qualquer (magro, calvo, etc.). Talvez porque, como CFA diz na carta, “nunca pensei ou
sempre pensei” (MORICONI, 2002, p. 311) na possibilidade de ser diagnosticado portador do
HIV e em tudo o que isso significa para sua geração, sua posição passa a ser a do indivíduo
que, ao menos nesta carta, assume a condição do moribundo sem rancor e, por isso, lê o tabu,
a mácula, não mais como algo a ser escondido. Inscreve-se deliberadamente no campo da
doença, reivindica-a, de certo modo (“quero ajudar a tirar o véu da hipocrisia”). Enquanto,
nos textos anteriores, o fantasma da doença atormenta um indivíduo (geralmente uma
personagem), aqui ele vincula um eu e um nós, integra uma coletividade que tem direito a
voz, e é essa voz que ele reivindica quando se propõe ajudar a desmitificar o HIV e a AIDS,
em meados dos anos 1990.
A atitude positiva demonstrada nessa carta, porém, é paradoxal. Nas três crônicas que
publicaria enquanto esteve internado no hospital Emílio Ribas, intituladas “Carta para além do
muro” (depois rebatizada de “Primeira carta para além do muro”), “Segunda carta para além dos
muros” e “Terceira Carta para além dos muros”, nas quais trata do tema da AIDS e desenvolve
temas e motivos que já apareciam na carta a Magliani, o processo de relacionar-se com a língua
e de apoderar-se dela para dizer-se publicamente portador do HIV é mais complexo do que
tinha sido na carta. Comparemos o início da carta com o início da primeira das crônicas:

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Magli querida:
Pois é, amiga. Aconteceu – estou com AIDS – ou pelo menos sou HIV+ (o que
parece + chique...)” (MORICONI, 2002, p. 311).

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não
aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que
foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo.
Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por
favor, tente entender o que tento dizer (ABREU, 2014, p. 74).

A objetividade da carta, cuja situação enunciativa é mais abertamente íntima, se vê


esfumaçada na crônica. A nomeação é substituída por uma indeterminação ou um dizer
indireto (“estou com AIDS”; “Alguma coisa aconteceu comigo”). É somente na terceira
crônica que CFA nomeia sua doença e se revela soropositivo: “Voltei da Europa em junho
me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à
revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV
positivo” (ABREU, 2014, p. 78). É como se fosse necessário, para o autor, um enfrentamento
com a língua (e a escrita) que o habilitasse a dizer publicamente algo que estabeleceria um
antes e um depois: “Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar
que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão
para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo” (ABREU, 2014, p. 78). Dizer-se HIV
positivo e, ao mesmo tempo, driblar as distorções ligadas à AIDS na imaginação pública
requeria novas vias de acesso à língua, saberes indiretos ou, inclusive, o recurso à anotação
(BARTHES, 2005a). Não por acaso, o relato do diagnóstico na terceira crônica é quase uma
cópia exata de trechos da carta a Magliani. Intervalo, anotação e circunstância que emergem
como princípios da escritura e de uma subjetividade.
Sua enunciação, nas crônicas, confunde-se um pouco com a voz entrecortada, está
pautada nos desvios (fala de escrita, de arte, de artistas, mas também fala da “coisa estranha”).
Deste modo, inscreve-se na “história dos homossexuais, simultaneamente, como vítimas
e como vanguarda da invenção” (SOMMER, 2014, p. 62)25 vinculada à doença e à escrita
literária, entre o final dos anos 1980 e o início da década de 1990. Para dizer-se pela via
indireta da escritura, procura no desvio, no indireto da escritura, um suplemento para
lidar com o Real irrepresentável. Seu dizer torna-se, ao mesmo tempo, vinculado a uma
circunstância e espécie de anotação que figura como “vontade de obra” (BARTHES, 2005b).
Tal desvio para a escritura é paradoxal, pois sugere que agora a relação com a doença não é
apenas de representação, mas de experiência e de experimento que requer a mobilização de
uma linguagem capaz de dizer a si e dizer de si. A enunciação se coloca, então, à disposição
da comunicação de um pensamento e de uma relação com o mundo: “A vida grita. E a luta
continua” (ABREU, 2014, p. 79), dirá ao final da última das três crônicas. O tom sensível,
porém, não abre mão da reivindicação de uma voz de artista. Sua posição em relação à AIDS
se aproxima, nesse contexto, dos movimentos que ocorreram nos EUA entre o final dos
anos 1980 e início dos anos 1990 contra o silêncio do Estado e a indiferença da sociedade em
25
No original: “history of homossexuals as both victims and the vanguard of invention” (SOMMER, 2014, p. 62).
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relação à comunidade de portadores de HIV, em sua maioria homossexuais. Doris Sommer
comenta, a respeito de tais movimentos, que

O protagonista do ACT UP é um coletivo livre, formado sobretudo por ativistas


das artes que lutaram contra a epidemia de Aids. Sabiamente anônimos, seus
ativistas teriam tido vida curta, se cada artista tivesse recebido crédito por um
trabalho brilhante no ambiente corporativo homofóbico e triunfante no final
dos anos 80 e início dos anos 90. [...] o ACT UP se protegeu da perseguição com
uma “primeira pessoa do plural” (SOMMER, 2014, p. 61)26.

Sommer observa que, mesmo quando se trata de trabalhos artísticos liderados por
um indivíduo, o que predomina nos atos do ACT UP27, nesse período, é certa noção de
coletividade que transita do eu ao nós, e vice-versa, que se configura como responsabilidade
e como uma espécie de coralidade. Nesse sentido, o CFA-enunciador se identifica às
minorias e às expressões queer que, na época, formam tanto as vítimas quanto a vanguarda
da “invenção” ou da escritura em relação à AIDS (SOMMER, 2014), no campo da arte.
No Brasil, CFA é um dos primeiros escritores a tematizar a questão em sua obra e
provavelmente o primeiro a declarar-se publicamente soropositivo. Essa conexão da arte
(e dos artistas) com os movimentos sociais corresponde às “intervenções de artes que não
desistem” (SOMMER, 2014, p. 64)28.
Nesse sentido, a opção por dizer-se homossexual e soropositivo passa por uma
múltipla inscrição na marginalidade (artista, gay, contaminado), ao mesmo tempo em que
aponta para a emergência de uma atitude não conformista com a tendência à condenação
dos homossexuais e portadores de HIV a guetos ou ao silenciamento social ou institucional
(pelo Estado, por exemplo). Sua condição de artista passa a alinhar-se, portanto, a certa
expectativa em relação à capacidade da escritura de atuar como alternativa de mudança no/
do tecido social – pode parecer estranho à trajetória de CFA, mas neste marco enunciativo é
possível admitir que a escritura aparece atrelada a uma função social. Como observa Sommer,
isso de deve a que uma “interpretação humanística expande o impacto da arte” (SOMMER,
2014, p. 64)29. E a condição de figura pública do autor é o que lhe permite tentar promover
tal expansão e colocar o tema da AIDS como pauta de debate público.
Haveria, nisso, inclusive, certa contradição em relação à desconfiança anterior de CFA
acerca das possibilidades de ação por meio da arte (“Os sobreviventes” é um conto sugestivo a
esse respeito). Entretanto, ante o diagnóstico emerge uma conduta que entende que é preciso
lutar contra a indiferença e, nesse contexto, dizer-se soropositivo pode ser algo necessário

26
No original: “The protagonist of ACT UP is a loose collective of mostly arts activists who fought the AIDS
epidemic. Wisely anonymous, their activists would have been short-lived if each artist had taken credit for
brilliant work in the homophobic and triumphant corporatist environment at the late 1980s and early 1990s. [...]
ACT UP protected itself from persecution with a “first person plural” (SOMMER, 2014, p. 61).
27
ACT UP, em inglês, é uma expressão que indica a adoção de um comportamento rebelde, avesso àquilo que
se espera.
28
No original: “arts interventions that don’t give up” (SOMMER, 2014, p. 64).
29
No original: “humanistic interpretarion expands art’s impact” (SOMMER, 2014, p. 64).
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para levar o tema a um debate ampliado, não mais restrito à comunidade gay ou às equipes
médicas. Apesar de sua postura distinguir-se das ações dos ACT UP estadunidenses, pois
CFA se limita à análise e à divulgação do debate sobre a AIDS, enquanto nos EUA surge
um movimento de ação civil associado à arte (performances, instalações, murais, etc.) que
visa a promover ações concretas, como a redução do preço de medicamentos e atendimento
aos portadores de HIV apoiado pelo Estado, a posição de CFA e o modo como opera a sua
“possibilidade de dizer” deixam claro que, mais do que escrever para afrontar reacionários
ou a classe média, sua atitude atende, agora, à necessidade de confrontar, também, os
progressistas e de provocá-los a agir (aproximando-se, quanto a isso, do marco enunciativo
pautado na crítica do tecido social, que vimos acima).
Nesse sentido, sua enunciação passa a compreender uma relação transitiva eu-nós que
se constitui, também, numa via para narrar e para imaginar novos modos de lidar com a
AIDS, assim como novas possibilidades de vida para indivíduos soropositivos. A experiência
retorna, então, “como o lugar de uma transformação do ‘eu’ [...], o testemunho como espaço
do não construído” (LINK, 2009, p. 110)30 e, portanto, como imaginação, como abertura para
um presente com expectativas de futuro.
***

Os cinco marcos enunciativos da obra de CFA constituem uma espécie de suplemento


da linguagem, uma espécie de desconfiança em relação às operações de nomeação e
categorização, por meio dos quais o enunciador (personagem, narrador ou autor, segundo
o caso) lida com os limites e as imposições da língua como sistema regulador do discurso e
da ordem que relaciona os indivíduos no mundo. A enunciação funciona, deste modo, como
alternativa ou possibilidade para neutralizar a língua que obriga a dizer. Trata-se, portanto,
daquilo que poderíamos chamar de um “dispositivo CFA” ou “gênero CFA”, que é construído
a partir do deslocamento e da suplementariedade para o ou do não-sujeito, que foge a situações
de exemplaridade e, nesse sentido, foge ao gênero e às suas leis, no sentido em que o conceito
é tratado por Jacques Derrida (1980).
Ao instalar a possibilidade do dizer, personagens, narrador e a própria instância
autoral colocam-se no “campo sem limite de uma escritura mais geral” (DERRIDA, 1980,
p. 9)31. O campo da subjetividade se abre, nesse sentido, porque já “não pertence a nenhum
gênero nem a nenhuma classe. A marca de pertencimento não pertence. Pertencer sem
pertencer, e o ‘sem’ que relaciona o pertencimento ao não pertencimento não aparece
senão no tempo sem tempo de um abrir e fechar de olhos (DERRIDA, 1980, p. 10)32 tão
efêmero quanto a própria enunciação, ato irrepetível que coloca o enunciador (sujeito ou
não-sujeito) em relação com o outro.
30
No original: “como el lugar de una transformación del ‘yo’ [...]; el testimonio como espacio de lo no construido”
(LINK, 2009, p. 110).
31
No original: “campo sin límite de una escritura más general” (DERRIDA, 1980, p. 9).
32
No original: “no pertenece a ningún género ni a ninguna clase. La marca de pertenencia no pertenece.
Pertenecer sin pertenecer y el ‘sin’ que relaciona la pertenencia a la no pertenencia no aparece sino en el tiempo
sin tiempo de un abrir y cerrar de ojos” (DERRIDA, 1980, p. 10).
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Nesse sentido, é possível identificar em CFA um desvio para o não-sujeito,
contaminados, gays, derrotados, torturados, enfim, categorias para as quais a língua (do
Estado, da medicina, da política, da opinião pública), como as instituições, não prevê espaços
de liberdade ou de subjetividade nem o direito de dizer-se. Frente aos limites da lei da língua,
o CFA–enunciador opta pela lei da desordem, da contaminação da língua com a fala e o
dizer. Ante as imposições da lei, a subjetividade daqueles cuja própria condição de sujeito
fora negada é resgata justamente ali onde a lei titubeia em sua relação com o mundo (a
partir do gênero, da escritura), ali onde a língua (e a lei) é apenas possibilidade dependente
da enunciação e de uma relação (real ou imaginária) com o parceiro individual ou coletivo.

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Recebido em: 18 dez. 2019


Aceito em: 25 fev. 2020

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Da memória à identidade em The Solid Mandala,
de Patrick White

TIAGO FERREIRA PEREIRA*


M O N I C A S T E F A N I **
R O S A N I K E T Z E R U M B A C H **

RESUMO: Em The Solid Mandala (1966), o escritor australiano Patrick White tece uma narrativa
que emprega uma configuração estética comum à representação da memória e da identidade
em textos literários. Tendo como expoente essas duas temáticas, este artigo oferece uma leitura
possível e breve do romance, explicitando a forma como as temáticas da memória e da identidade
se desenvolvem uma em relação à outra, retroalimentando-se. Para isso, este artigo focaliza a
figura dos protagonistas, os irmãos gêmeos Waldo e Arthur Brown. Conceitos-chave de autores
como Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), além
de outros, são utilizados como referencial teórico. O texto de White prova que a rememoração e a
configuração do “si” são duas peças do mesmo quebra-cabeça.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Literatura australiana; Memória; Patrick White.

ABSTRACT: In The Solid Mandala (1966), the Australian author Patrick White builds a narrative
using an aesthetic configuration which is common to the representation of memory and identity
in literary texts. Drawing on these two themes, this paper offers a possible and brief reading of
the novel, exploring how the themes of memory and identity develop one in relation to the other,
feeding each other. To perform the analysis, this paper focuses on the figure of the protagonists of
the novel, the twin brothers Arthur and Waldo Brown. Key concepts from authors such as Bauman
(2005), Erll & Nünning (2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), and others, are used
as our theoretical background. White’s text proves that rememoration and the configuration of
the self are two pieces of the same jigsaw.

KEYWORDS: Australian literature; Identity; Memory; Patrick White.

* Mestrando em Estudos Literários – Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Federal de Santa


Maria – UFSM – 97105–900 – Santa Maria – RS – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: tiagoberesford@hotmail.com
** Departamento de Letras Estrangeiras Modernas – Universidade Federal de Santa Maria – UFSM – 97105–900
– Santa Maria – RS – Brasil. E-mail: monicastefani@gmail.com
*** Departamento de Letras Estrangeiras Modernas – Universidade Federal de Santa Maria – UFSM – 97105–
900 – Santa Maria – RS – Brasil. E-mail: rosani.umbach@ufsm.br
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Introdução

Nas palavras de Iván Izquierdo (2011, p. 11): “Memória significa aquisição, formação,
conservação e evocação de informações”. Num sentido mais restrito, evocação é sinônimo de
lembrar ou recordar o passado (IZQUIERDO, 2011). A literatura, como não poderia deixar
de ser, presenteia seus estudiosos com modelos de recordação, ou seja, de representação do
passado (NEUMANN, 2008). Afinal de contas, lembrar não diz respeito a uma reprodução
fiel e exata de eventos e experiências ocorridos no passado, mas implica uma reconstrução,
muitas vezes, incompleta, nebulosa e ambígua. Essa representação do passado poderá ser
marcada também por falhas e deve trazer a perspectiva somente de uma testemunha ou
de um grupo delas, podendo, portanto, excluir outros vetores. A esse respeito, Walter
Benjamin (2014) escreveu que a História é contada sempre do ponto de vista dos vencedores,
e nunca dos vencidos. Assim, lembrar é ressignificar o passado no tempo presente. Ou seja,
passado é sempre presente (SARLO, 2017). Na literatura, estão representados também, ao
lado da memória, diferentes configurações do “si”. Os textos estão repletos de personagens
movidos por atribuir sentidos a sua identidade – ao mesmo tempo em que dialogam com
diferentes espaços socioculturais. Diferentes formatações na narração do “si” podem surgir
no encontro entre o entendimento do Outro e a administração da memória. Em The Solid
Mandala, publicado em 1966, Patrick White utiliza-se de uma configuração estética comum à
representação da memória e identidade em textos literários. Por exemplo, pode-se mencionar
a utilização de narradores-personagens que rememoram de uma perspectiva presente, no
tempo passado, em primeira pessoa ou o uso cronológico de analepses.
Nascido na Inglaterra, mas voltando à Austrália com seis meses de vida, Patrick Victor
Martindale White (1912-1990) é um dos maiores representantes da Literatura Australiana,
tendo sido agraciado, em 1973, com o mais importante prêmio literário que um escritor
possa vir a receber, o Nobel Prize in Literature. Autor de 12 romances, 3 coleções de contos e 8
peças teatrais, tornou-se mundialmente reconhecido (WILLIAMS, 1993) com seu primeiro
romance, publicado em 1929, sob o título de Happy Valley1. Alguns de seus trabalhos
mais famosos incluem The Tree of Man (1955)2, responsável por levar o nome de White
a um nível de reconhecimento internacional, e Voss (1957)3, seu romance mais analisado
(STEFANI, 2011). Barnes (2014, p. 219, tradução nossa), em relação a White, comenta: “Não
é surpreendente que um escritor novo e original deixe os críticos debatendo-se, confusos e
incertos, lutando para se orientarem”4. Ademais, Patrick White tinha formação acadêmica na
área de Letras (Francês e Alemão) pela Universidade de Cambridge, o que poderia justificar a
presença de modelos literários em seus textos que desafiam a percepção de leitores comuns.

1
Texto ainda sem tradução para a língua portuguesa.
2
Texto traduzido para o português sob o título de A Árvore do Homem por Cárdigos dos Reis e publicado em 1981.
3
Texto traduzido para o português brasileiro sob o título de Voss por Paulo Henriques Britto e publicado em
1985.
4
No original: “It is hardly surprising that a new and original writer leaves critics floundering, confused, and
uncertain, struggling to get their bearings.” (BARNES, 2014, p. 219).
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Em The Solid Mandala, o leitor conhece a história de dois irmãos gêmeos, Arthur e
Waldo Brown, que migraram com seus pais, Anne Quantrell e George Brown, da Metrópole
(isto é, da Inglaterra), passando a desbravar e a (con)viver no subúrbio ficcional de Sydney,
chamado Sarsaparilla, na primeira metade do século XX (STEFANI, 2011). Uma das
características marcantes do romance é justamente a forma como as dimensões ficcionais
dos personagens principais são construídas em um jogo de oposições, por exemplo, razão
versus emoção. De acordo com o próprio White (WHITE, 1981, p. 34), The Solid Mandala
representa, poeticamente falando, a dicotomia entre luz e escuridão em relação ao “si” do
próprio artista5. Embora traga a perspectiva dos dois irmãos, o foco narrativo permanece,
na maior parte do tempo, centrado em Waldo, caracterizado como o intelectual da família
Brown (BLISS, 1986). No ponto de vista de outro escritor australiano, Christos Tsiolkas
(2019), White contribuiu significativamente para a formação de uma literatura australiana
genuína ao escrever três dos romances mais representativos do século XX, dentre eles The
Solid Mandala. Já de acordo com Bliss (1986, p. 115), o romance, “[...] de forma penitencial,
expõe o artista a si mesmo e explora a relação intrínseca da arte com a vida”6. Nesse sentido,
percebe-se como os dramas familiares envolvendo os irmãos Brown são abordados,
sublinhando a falta de comunicação entre os integrantes da família – de forma que enfatiza
o casal e os gêmeos como dois polos de comunicação na narrativa – e a experiência da
melancolia. O texto já foi traduzido e publicado em diversos idiomas, como o espanhol (que
já conta com duas versões, a mais recente de 2016), o francês e o italiano (STEFANI, 2011).
Recentemente, foi traduzido também para o português brasileiro, por Stefani (2017), como
parte de sua pesquisa de pós-graduação intitulada ‘The Translation of Patrick White’s The Solid
Mandala into Brazilian Portuguese: An Analysis Based on Social, Historical and Cultural Aspects’.
Os irmãos Waldo e Arthur compartilharam de sua infância, juventude, vida adulta e
velhice, com exceção à forma como escolheram lidar com o mundo à sua volta (BARUA,
2006). Dividido em quatro capítulos, inicialmente, o romance de White introduz a família
Brown da perspectiva de um narrador extradiegético, que acompanha a Sra. Poulter –
vizinha da família Brown – e a Sra. Dun em uma viagem de ônibus; no segundo capítulo, as
memórias de Waldo são revisitadas pelo próprio protagonista (que dá nome ao capítulo),
enquanto, no terceiro capítulo, quem rememora é Arthur (que também dá nome ao
capítulo); já o último capítulo explora os eventos da perspectiva da Sra. Poulter no tempo
presente. Essa mudança de pontos de vista na narrativa, segundo Neumann (2008), é uma das
técnicas literárias comumente utilizadas nas ‘Memory Fictions’7. Para Neumann (2008, p. 335):
“Caracteristicamente, as ficções de memória são apresentadas por um narrador reminiscente

5
No original: “I did not question the darkness in my dichotomy, though already I had begun the inevitably
painful search for the twin who might bring a softer light to bear on my bleakly illuminated darkness.” (WHITE,
1981, p. 34).
6
No original: “[...] penitentially' exposes the artist to himself and explores the intricate relationship of art to life.”
(BLISS, 1986, p. 115).
7
A tradução deste termo para o português brasileiro poderia ser ‘Ficções de Memória’. Textos que podem ser
caracterizados como tais incluem relatos de viagem, autobiografias, biografias, diários de guerra, testemunhos,
dentre outros.
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ou figura que olha para trás em seu passado, tentando impor significado nas memórias que
emergem de um ponto de vista do presente”8. Inevitavelmente, falar de memória também
pressupõe falar sobre identidade. Sem memória, o indivíduo perde sua identidade (CANDAU,
2011). Logo, é na memória que a personalidade do sujeito pode encontrar sua origem e o
sentimento de continuidade temporal (CANDAU, 2011).
Como explicitado, os dois capítulos intermediários do romance são narrados do ponto
de vista de cada um dos irmãos. Dessa forma, ambos rememoram de maneiras diferentes um
ponto em comum: uma vida juntos. Afinal de contas, lembrar é sempre um processo que
implica não a reprodução de uma sucessão de fatos lineares, mas reconstrução. Lembrar é
representar. Tendo isso em vista, torna-se problemático para o leitor investir na construção
de uma gênese de sentido desse texto sem preocupar-se com esse aspecto da formatação da
memória dentro da narrativa. O mesmo deve ser considerado quanto à identidade – encenada
com base em referências construídas socioculturalmente e que estão presentes no texto.
São inúmeras as razões para analisar o tópico memória e identidade nesse romance de
Patrick White, mas três merecem destaque para justificar este empreendimento intelectual.
O primeiro deles diz respeito à significância atribuída a White quando se tem em mente um
cânone da literatura de expressão australiana. Ou seja, o autor é uma peça essencial para que
uma herança cultural – como a Literatura Australiana – não se perca no esquecimento. Embora
o autor tenha recebido prêmios e atenção por parte da crítica especializada, sua obra ainda
permanece no Arquivo – aquilo que não circula, mas que ainda não se perdeu inteiramente
– a exemplo disso, pode-se citar o Brasil –, quando comparado a outros escritores do século
passado que comumente são associados a uma ideia de um cânone literário universal, como
James Joyce (1882-1941) ou Virgínia Woolf (1882-1941). Assim, White está à espera de que
novos leitores o (re)descubram e consigam movimentar, de forma progressiva, o mercado
editorial em relação aos textos produzidos por ele (por meio de novas traduções ou de
análises de sua ficção no Brasil). Isso ajudaria a manter seus títulos na memória do presente
e contribuiria para a construção de uma identidade da Literatura Australiana. De fato, o
pico de maior interesse no trabalho de White deu-se nos anos 1970 quando o escritor teve
seu nome canonizado pelo recebimento do Nobel (SCHEIDT, 1997). Em ‘The Life of Patrick
White’, Stewart (2012) disse, no centenário do autor em 2012, que, no mundo acadêmico e
no mercado editorial australiano, Patrick White permanece “a lost memory”:

[...] ele tem um lugar absolutamente assegurado entre os grandes romancistas


da próxima divisão - Beckett, Nabokov e Waugh. O problema é que mil vezes
mais pessoas no mundo estão cientes de seu trabalho do que jamais leram Patrick
White. (STEWART, 2012, p. 2, tradução nossa)9.

8
No original: “Characteristically, fictions of memory are presented by a reminiscing narrator or figure who looks
back on his or her past, trying to impose meaning on the surfacing memories from a present point of view.”
(NEUMANN, 2008, p. 335).
9
No original: [...] he has an absolutely secure place among the great novelists in the next division – Beckett,
Nabokov and Waugh. The trouble is that a thousand times more people in the world are aware of their work
than have ever read Patrick White (STEWART, 2012, p. 2).
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Essa relação entre leitor e o Cânone/Arquivo abre discussão para uma dimensão de
grande importância no que se refere à produção da gênese de sentido dentro dos Estudos
Literários. O segundo motivo diz respeito à necessidade de uma revisão e atualização da
fortuna crítica em torno de White visando, dessa forma, a contribuir ainda mais para uma
tradição de pesquisa já estabelecida mundo afora. O terceiro ponto são os poucos estudos já
realizados sobre o autor, particularmente na América do Sul. Há trabalhos como o de Scheidt
(1997), Alexander (2006) e Stefani (2011) realizados em solo brasileiro, mas, até o presente
momento, poucas pesquisas enfocam a relação entre memória e identidade em The Solid
Mandala, ou em qualquer outro romance do escritor.
Cabe a este trabalho oferecer uma leitura breve do romance The Solid Mandala, de
Patrick White, buscando explicitar, na evolução da narrativa, a forma como as temáticas
da memória e da identidade desenvolvem-se uma em relação à outra, retroalimentando-
se. Para isso, este artigo focaliza a figura dos protagonistas do romance, os irmãos gêmeos
Waldo e Arthur Brown. Conceitos-chave de autores como Bauman (2005), Erll & Nünning
(2008), Candau (2011), Hall (2015), Neumann (2008), além de outros, são utilizados para
discutir a questão tanto da memória quanto da identidade no texto literário selecionado. O
artigo estrutura-se da seguinte forma: 1) apresentação da análise contendo alguns excertos
do romance de White e conceitos-chave do referencial teórico; 2) retomada dos objetivos
seguido de um esboço dos resultados e sua discussão; e 3) exposição da base teórica consultada
e citada no corpo do texto.

Waldo Brown

White tece a narrativa de The Solid Mandala construindo um jogo de oposições entre
os irmãos Brown. A condição de Waldo como intelectual e literato da família, ao lado de
seu pai, George, não aparece, em um primeiro momento, ameaçada por Arthur, que, ao
contrário do irmão (no capítulo narrado por Waldo) é lembrado como sendo melhor com
números do que com letras (STEFANI, 2011). No entanto, reconhecer a si próprio e ser
reconhecido como o leitor da família não é suficiente para o protagonista, que deseja mais
do que alcançar um status semelhante ao de seu pai (STEFANI, 2011). Waldo apresenta uma
personalidade gananciosa e egocêntrica: é como se ele apenas exigisse do mundo, sem estar
disposto a ceder algo em troca: “Ele odiava quase todos, mas acima de tudo, sua família”10.
A intenção de Waldo de tornar-se um escritor surge frequentemente na narrativa: “[...]
e isso pode ajudar [...] a entender melhor os sentimentos e as reações do personagem em
relação à própria família (principalmente ao irmão gêmeo) e aos seus conhecidos.” (STEFANI,
2011, p. 53 – tradução nossa)11. Sua visão sobre a escrita ficcional, no entanto, é idealizada, ao
ponto de acreditar que ter boas ideias é o suficiente. Com isso, o personagem nutre, em seu

10
No original: “He hated almost everyone, but above all, his family.” (WHITE, 1974, p. 80).
11
No original: “[...] and this might help [...] to better understand Waldo’s feelings and reactions towards his own
family (mainly to his twin brother) and his acquaintances.” (STEFANI, 2011, p. 53).
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íntimo, o desejo de tornar-se um escritor reconhecido, esquecendo-se, entretanto, do quanto
o processo exige dedicação e conhecimento técnico que não possui (STEFANI, 2011).
O retrato que Waldo pincela de si mesmo – como escritor – é uma das imagens que
compõem, dessa forma, os vários estratos de sua identidade multifacetada. Na visão de Hall
(2015), por exemplo, o sujeito não é dotado de uma identidade única e monolítica, pelo
contrário, ela é fragmentada e fluida. O mesmo pode ser dito em relação à identidade de Waldo
que adota o universo das Letras como um ponto de referência para tecer sua narrativa do “si”.
A partir disso, o protagonista tenta fabricar uma identidade que possa chamar somente de
sua, pois tamanho é o desejo de não ser mais definido em relação ao irmão. Isso fica evidente
quando Arthur, entusiasmado com a ideia de Waldo escrever uma tragédia, pede a Waldo
que o deixe fazer parte da encenação. Porém, Waldo não permite a aproximação do irmão:

Pois ele sabia ser algo que ele não poderia suportar compartilhar com seu irmão,
cuja respiração ele ouvia sempre que acordava à noite, o irmão que olhava
quase que diretamente dentro dele quando eles abriam os olhos nos travesseiros
gêmeos pela manhã (WHITE, 1974, p. 39)12.

Este excerto revela o incômodo de Waldo em relação ao irmão identificar-se com


signos culturais, como a tragédia grega, que ele tenta apropriar-se para si, para construir
sua identidade. Waldo sente-se constantemente atacado pela existência do irmão, por
ter sua existência lembrada sempre em relação ao “Outro”. Existe um apagamento de
sua individualidade como sujeito. A presença de Arthur, para Waldo, é um assalto à sua
identidade e à sua inteligência (BRUGMAN, 1988). Dessa forma, Waldo passaria a se definir
menos em relação à figura de Arthur, visto que, desde a infância, ele é lembrado em relação
ao “Outro”, pois é constantemente associado com a condição de “gêmeos”13.

Ao lado do promissor Waldo, Arthur tendia a apagar-se. Começou a trabalhar


para o Allwright, ambos atrás do balcão, e na entediante entrega dos pedidos
depois que o Allwright o ensinou a dirigir. Arthur era bom com os animais;
era talvez natural para eles aceitarem alguém que era apenas metade de um ser
humano. Era triste para os Brown, para não dizer um verdadeiro deficiente para
um menino excelente como Waldo, que, eles diziam, era o gêmeo do outro, não
daria para acreditar (WHITE, 1974, p. 75)14.

Salienta-se que o processo de construção da identidade concretiza-se a partir das


interações sociais nas quais o indivíduo participa ao longo de sua vida e por meio das quais é

12
No original: “Because he knew this was something he could not bear to share with his brother, whose breathing
he used to listen to whenever he woke in the night, the brother who looked almost right inside him when they
opened their eyes on twin pillows in the morning” (WHITE, 1974, p. 39).
13
No original: “Twins”.
14
No original: “Beside the promising Waldo, Arthur tended to fade out. Began to work for Allwright, both
behind the counter, and in the sulky delivering the orders after Allwright taught him to drive. Arthur was good
with animals; it was perhaps natural for them to accept someone who was only half a human being. It was sad
for Browns, not to say a real handicap to a fine boy like Waldo, who, they said, was the twin of the other, you
wouldn’t believe it” (WHITE, 1974, p. 75).
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capaz de construir redes de significado (BAUMAN, 2005; HALL, 2015; KEUPP et al., 2002;
MATHIAS, 2013). A partir disso, complexos temáticos são formados pelo sujeito - uma
identidade profissional, identidade privada, identidade artística, etc. - a partir da junção,
interpretação e integração das experiências em sociedade (BAUMAN, 2005; HALL, 2015;
KEUPP et al., 2002; MATHIAS, 2013). Dentro desses pressupostos, de fato, é possível
enxergar Waldo como uma figura preocupada em circular por complexos temáticos em
que o irmão Arthur não seja incluído. Assim, o protagonista insiste na ideia de tornar-se
escritor. Em outro momento da narrativa, Waldo como narrador-personagem relembra a
escrita e a leitura de um ensaio de sua autoria em sala de aula: “Chegando às partes que ele
sabia serem as melhores, Waldo sentia seu coração sufocar sua garganta, até ele quase não
conseguir pronunciar as palavras”15. Embora um entusiasta da literatura, no entanto, parece
mais preocupado em provar que sabe escrever em vez de viver a experiência de ler um ensaio
ou recitar um poema. O sentimento de inferioridade de Waldo em relação ao “Outro” é
marcado nesse evento. De acordo com Stefani (2011, p. 47), “Waldo talvez prove que a
suprema habilidade com as palavras, às vezes, não é muito eficaz, principalmente quando
faltam sentimentos verdadeiros”16. O protagonista precisa ser o melhor, o melhor irmão
ou até mesmo o melhor da turma ao comparar-se com outro colega, Johnny Haynes, por
quem constantemente sente-se ameaçado intelectualmente, em especial após a leitura de
seu ensaio em sala de aula: “Waldo estava nem tanto ouvindo mas observando as costas de
Johnny Haynes, se perguntando o quanto Johnny havia ouvido”17.
De acordo com Stefani (2011, p. 56), a vida de Waldo: “[...] só acontece em um plano
idealizado, e ele não faz quaisquer esforços para transformar essa idealização em realidade”18.
Assim, Waldo passa a escrever um grande número de rascunhos, mas nunca, de fato, termina
algum deles (STEFANI, 2011). O personagem até mesmo faz de tudo para esconder sua
atividade literária do irmão, tanto que, ao ser interrogado por Arthur sobre o que estaria
escrevendo, Waldo nem ao menos consegue resumir em uma única e simples frase do que
trata sua escrita. Ou seja, nem mesmo o próprio Waldo decide sobre o que pretende escrever:

Arthur sentiu a necessidade de perguntar: - O que você está fazendo, Waldo?


Quando ele havia considerado o suficiente, Waldo respondeu: - Estou escrevendo.
― Sobre o quê? – perguntou Arthur.
― Não sei – Waldo respondeu, sinceramente (WHITE, 1974, p. 81)19.

15
No original: “Coming to the bits he knew to be the best, Waldo could feel his heart choking up his throat, till
he almost couldn’t bring out the words.” (WHITE, 1974, p. 43).
16
No original: “Waldo perhaps proves that the supreme ability with words is sometimes not very effective,
mainly when they lack true feelings.” (STEFANI, 2011, p. 47).
17
No original: “Waldo was not so much listening as watching Johnny Haynes’s back, wondering how much
Johnny had heard.” (WHITE, 2007, p. 44).
18
No original: “[...] only happens in an idealized plan, and he does not make any efforts to transform that
idealization into reality.” (STEFANI, 2011, p. 56).
19
No original: “Arthur felt the need to ask: “What are you doing Waldo?” When he had considered long enough,
Waldo answered: “I am writing.” “What about?” Arthur asked. “I don’t know,” Waldo answered, truthfully”
(WHITE, 1974, p. 81).
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Como se não bastasse, Waldo é constantemente afetado com descobertas que só viemos
a saber, como leitores, por meio de inúmeros flashbacks na narrativa de White, o que parece
corroborar a ideia de memória, fragmentação e identidade. Pensando especificamente no
personagem Waldo, em uma das cenas mais representativas de The Solid Mandala (a saber,
quando Waldo, durante sua jornada de trabalho na biblioteca, descobre que Arthur, disfarçado,
frequenta o espaço há um certo tempo para ler – e principalmente, entender – nada menos
do que Os Irmão Karamazov, de Fiodor Dostoiévski), Brugman (1988, p. 205, tradução nossa)
menciona que “O ego machucado de Waldo é finalmente fragmentado quando ele descobre
seu irmão [...] ativamente ocupado lendo na biblioteca, seu próprio sanctum sanctorum”20.
Após juntar, interpretar e integrar diversos elementos em uma rede de significados,
é provável que a identidade tecida pelo indivíduo encontre não só a estabilidade, mas
também instabilidade (MATHIAS, 2013). Essa instabilidade pode ser causada por
contradições/incoerências na relação entre os signos culturais unificados em grupos
temáticos (MATHIAS, 2013). Quando descobre, por exemplo, que Arthur é também (ou
melhor, foi quem primeiro conseguiu se tornar) amigo da família Feinstein e ainda mais
próximo de Dulcie Feinstein, Waldo – que revela ter intenções de casar-se com ela - sente
outro domínio da sua existência sendo invadido pelo irmão. Assim, Waldo tem dificuldade
em alinhar alguns setores da sua identidade com outros, causando, consequentemente, um
conflito entre esferas distintas. Para Mathias (2013):

[...] em alguns estratos da identidade, o sujeito pode apresentar grande


estabilidade, ao passo que, em outros, contradições e incoerências podem
simultaneamente atormentá-lo, dificultando a fluidez da narração identitária
(MATHIAS, 2013, p. 164).

Waldo é um ser introvertido que tenta encontrar sua identidade por meio da memória,
no entanto, não obtém sucesso (BRUGMAN, 1989). Nas palavras de Brugman (1989, p.
202): “Waldo descobre apenas a escuridão quando examina o seu eu interior”21, e isso se
deve muito à sua visão de mundo, que oscila mais para a fantasia do que para o real, sem
encontrar um equilíbrio entre os dois mundos, como no poema “Birches”, de 1916, do poeta
norte-americano Robert Frost (1939).

Arthur Brown

Em relação ao outro irmão, Arthur, sua identidade intelectual é ofuscada pela tentativa
de Waldo em tornar-se escritor. No entanto, como lembrado por Stefani (2011, p. 62,
tradução nossa): “Ao contrário de Waldo, que parece usar a leitura como uma forma de se
exibir, Arthur revela seu desejo de realmente entender o que lê, apesar de Waldo achar isso

20
No original: “Waldo's bruised self is finally fragmented when he discovers his [...] brother actively busy reading
in the library, his own sanctum sanctorum.” (BRUGMAN, 1988, p. 205).
21
No original: “Waldo discovers only darkness when he examines his inner self.” (BRUGMAN, 1989, p. 202).
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uma tarefa impossível.22”. Dessa forma, Arthur passa a ser construído na narrativa como um
personagem mais próximo da natureza e com o trabalho braçal do que preocupado com seu
desenvolvimento intelectual. Neste trecho fica evidente como Arthur negligencia essa esfera
de sua identidade comparando-se a seu irmão: “Arthur nunca conseguia ter tempo livre
como seu irmão para ler livros.23”.
Além disso, Arthur ainda atribui-se a tarefa de tomar conta de Waldo, servindo de
protetor, como o próprio narrador-personagem relembra:

Era o tipo de momento em que Arthur percebia que teria de proteger seu irmão,
que era inteligente demais pela metade, que lia ensaios em voz alta na aula, que
gostava de livros, e que dizia ser o queridinho da mãe deles. Por causa de tudo
isso, Waldo precisava de defesa contra ele mesmo e os outros. Estava tudo muito
bem segurar a mão de seu irmão porque Waldo era aceito pelo mundo retesado,
de asseio e respostas rápidas, de pontualidade e regras infringíveis (WHITE,
1974, p. 229)24.

Como consequência, ele não se permite mergulhar nos livros tanto quanto seria possível
se Waldo não estivesse sempre por perto: “Ele nunca teria sido capaz de proteger Waldo se
ele, também, tivesse se exposto assim e se enfraquecido. Arthur somente conseguia ver um
livro secretamente.25”. De acordo com Stefani (2011), escrever, para Arthur, trata-se de:

[...] um ato de culpa, já que o único que supostamente faria isso é seu irmão.
Arthur tem qualidades para realmente se tornar poeta, mas sua atividade literária
é (pelo menos psicologicamente) frustrada, pois todos o consideravam incapaz
de desenvolver seu talento literário [...]. (STEFANI, 2011, p. 63).26

Ao contrário de Waldo, Arthur rememora o irmão com afeição, mas também com
piedade: “Mas o coitado do Waldo era tão diferente, e tão frágil”27. Arthur relembra que a visão
de Waldo sobre ele não é validada: “Ele não estava doente. Ele não tinha ficado doente. Waldo
era o doente, eles diziam, Arthur sempre havia sido forte. Assim ele deve continuar a ser28”.

22
No original: “Unlike Waldo, who seems to use reading as a way to show off, Arthur reveals his desire to really
understand what he reads, even though Waldo thinks that an impossible task.” (STEFANI, 2011, p. 62).
23
No original: “Arthur could never take time off like his brother reading books.” (WHITE, 1974, p. 229).
24
No original: “It was the kind of moment when Arthur sensed he would have to protect his brother, who was
too clever by half, who read essays aloud in class, who liked books, and who was said to be their mother’s darling.
Because of it all, Waldo needed defending from himself and others. It was all very well to hang on to your
brother’s hand because Waldo was accepted by the tight world, of tidiness and quick answers, of punctuality and
unbreakable rules.” (WHITE, 1974, p. 229).
25
No original: “He would never been able to protect Waldo if he, too, had so exposed and weakened himself.
Arthur could only afford to look up a book on the sly.” (WHITE, 1974, p. 229).
26
No original: “[...] is a guilty act, since the only one who is expected to do it is his brother. Arthur has the
qualities to actually become a poet, but his literary activity is (at least psychologically) thwarted, since everyone
considered him incapable of developing his literary talent [...]”. (STEFANI, 2011, p. 63).
27
No original: “But poor Waldo was so different, and so frail.” (WHITE, 1974, p. 229).
28
No original: “He wasn’t sick. He hadn’t been sick. Waldo was the sick one, they said, Arthur has always been
strong. So he must continue to be.” (WHITE, 1974, p. 215).
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Pelos olhos de Waldo, o leitor não consegue conectar-se ao personagem, mas no
capítulo narrado por Arthur, a conexão emocional com ele é instantânea por meio da forma
poética com que o personagem abre o capítulo, demonstrando, portanto, que sua inclinação
para a poesia é quase que natural: “No começo havia o mar de sono de um azul tal no qual eles
repousavam juntos com bolos gelados e os fragmentos de vidro aninhando nos braços um
do outro as ondas felpudas de sono roçando neles como animais.” (WHITE, 1974, p. 215)29.
Para qualquer indivíduo, ao afirmar sua identidade, é preciso recorrer à memória
(CANDAU, 2011). É justamente o que Arthur encena em seu capítulo como narrador-
personagem: ao reconstruir seu passado por meio das lembranças, ele atribui significados
e sentidos ao “si” no presente. A memória seria então a base sobre a qual cada indivíduo se
debruça e constrói sua identidade de forma contínua. Para Erll & Nünning (2008), memória e
identidade são duas instâncias intimamente conectadas. Não existe, portanto, uma identidade
monolítica como acreditava-se no passado, como no sujeito do iluminismo descrito por Hall
(2015). Caso contrário, Arthur teria permanecido como o irmão sem proximidade alguma
com a leitura. Dessa forma, identidades são construídas por atos de memória, relembrando
quem um sujeito foi e localizando esse “si” do passado em relação a seu “si” no presente
(ERLL & NÜNNING, 2008).

Considerações finais

Patrick White, em The Solid Mandala, prova ser uma figura significativa tanto para
a Literatura Universal quanto para a Literatura Australiana. Sua escrita traduz-se em
uma enorme sensibilidade artística: adentra e explora a mente e as emoções humanas em
profundidade, revelando um efeito catártico intenso. Não por acaso, este título é um dos
romances mais intrigantes, segundo a crítica especializada. White configura quadros da
memória individual ao dar vida à narrativa dos irmãos Brown na primeira metade do século
XX no continente australiano. É por meio dessa coleção de experiências e eventos em torno
da vida de Waldo e Arthur, que, em paralelo, um esboço sobre a identidade desses dois
personagens é traçado: trata-se de um estudo sobre como duas personalidades, ainda que
tão próximas e conectadas, sejam tão dicotômicas. White concentra-se mais em mapear
os confins da mente humana do que envolver seu leitor em uma sequência de grandes
eventos. Disso resulta a experiência da memória e da identidade, do retorno ao passado e da
configuração do “si”.
Tendo esses dois vetores em vista (memória e identidade), este trabalho procurou analisar
a representação desses horizontes na obra The Solid Mandala, de Patrick White, com base
em conceitos teóricos-chave levantados por Bauman (2005), Erll & Nünning (2008), Candau
(2011), Hall (2015), Neumann (2008), dentre outros. Verificou-se que Patrick White utiliza-

29
No original: “In the beginning was the sea of sleep of such blue in which they lay together with iced cakes
and the fragments of glass nesting in each other’s arms the furry waves of sleep nuzzling at them like animals.
Dreaming and dozing.” (WHITE, 1974, p. 215).
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se de uma configuração estética comum à representação da memória e da identidade em textos
literários, com narradores-personagens, no tempo passado, rememorando acontecimentos de
suas vidas em primeira pessoa, ou com o emprego cronológico de analepses. Waldo e Arthur
relembram, portanto, da infância até os últimos dias de sua existência.
É possível também afirmar que White prova que a rememoração e a configuração do
“si” são duas peças do mesmo quebra-cabeça. Ou seja, como defendido por Candau (2011, p.
10): “[...] admite-se geralmente que memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas”.
Quanto à configuração do “si”, fica claro que, na construção de uma identidade individual,
contradições e incoerências entre esferas distintas podem ocorrer. Nas palavras de Bauman
(2002, p. 36): “[...] ‘identificar-se com…’ significa dar abrigo a um destino desconhecido que
não se pode influenciar, muito menos controlar”. Fragmentada, a identidade pode entrar
em desacordo e até mesmo em crise. Waldo não consegue, por exemplo, alinhar sua pouca
disposição para com a escrita ficcional ao seu desejo incansável de tornar-se poeta. Já Arthur
parece reprimir sua disposição quase que natural para com a arte em função de não sufocar
ou machucar Waldo. As identidades de ambos os protagonistas são construídas em um jogo
de oposições. Tendo isso em vista, os irmãos aparecem em busca de signos culturais que
possam atribuir a si próprios com a finalidade de tecer uma rede de significados que possam
então chamar de identidade. O personagem de Waldo, para Brugman (1988, p. 199, tradução
nossa), “[...] não pode alcançar um equilíbrio entre o bem e o mal [...]. Como Arthur, a
dualidade em si mesmo não está resolvida no momento de sua morte”30.
Sempre que um indivíduo tenta responder à pergunta “quem eu sou?”, ele
inevitavelmente acaba tomando o percurso em direção ao passado por meio de um processo
mnemônico. A memória revela-se lábil, plástica e ambígua em The Solid Mandala. Nas
palavras de Erll & Nünning (2008, p. 6, tradução nossa): “[...] identidades são construídas
por atos de memória, relembrando quem um sujeito foi e localizando esse ‘eu’ do passado em
relação a seu ‘eu’ no presente”31. Já para Candau (2011, p. 15), a memória participa de uma
ilusão: “[...] o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver
graças à lembrança”.
A maior parte da narrativa é dedicada às memórias de Waldo. Ele reconstrói o passado
em tom pessimista, amargo e cruel, tendo como efeito um sentimento claustrofóbico para
o leitor. Waldo quase sempre culpa a existência do irmão pelos seus próprios fracassos.
Já Arthur rememora o irmão com apreço. É também uma surpresa descobrir que Arthur
não só se interessa por ficção, mas como também apresenta uma inclinação quase que
natural para a poesia. Ambos os irmãos encontram dificuldade em dividir uma esfera da
identidade, a de “irmãos gêmeos”: é algo que os sufoca. O título do romance faz alusão à
ideia de um todo composto por partes, a mandala, que, em um dos planos da narrativa, não
se concretiza. Esses dois personagens deveriam formar uma unidade, mas são construídos

30
No original: “[...] cannot achieve a balance between good and evil [...]. As with Arthur, the duality in his self is
unresolved at the time of his death.” (BRUGMAN, 1988, p. 199).
31
No original: “[...] identities have to be constructed and reconstructed by acts of memory, by remembering
who one was and by setting this past Self in relation to the present Self.” (ERLL & NÜNNING, 2008, p. 6).
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em um jogo de oposições que os repelem constantemente. White, em sua autobiografia
‘Flaws in the Glass’ (1981), relembra a construção de The Solid Mandala e associa a figura de
Waldo a si mesmo: “Vejo os irmãos Brown como minhas duas metades. [...] Waldo é eu
mesmo da forma mais fria e ruim”32.

PEREIRA, T. F.; STEFANI, M.; UMBACH, R. K. From Memory to Identity in Patrick


White’s The Solid Mandala. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 69-82, 2020.
ISSN 2177–3807.

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32
Tradução nossa. No original: “I see the Brown brothers as my two halves. […] Waldo is myself at my coldest
and worst.” (WHITE, 1981, p. 146-147).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Recebido em: 25 abr. 2020


Aceito em: 21 mai. 2020

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Personae em pentimento: considerações
sobre a figura de escritor na obra de Caio
Fernando Abreu

ELLEN MARIANY DA SILVA DIAS*

RESUMO: Considerando a produção escrita de Caio Fernando Abreu, estudaremos alguns de


seus textos representativos das figuras de escritor, das projeções e das expectativas acerca deste
ofício que ele construiu para si, para os familiares e amigos, para o público e para a crítica. Estas
representações, que se fazem por meio de uma poética auto e antropofágica, desvelam a mise-en-
abyme das várias personae de escritor nas cartas, contos, crônicas, romances etc., peculiaridade
que evidencia a potência dialógica da referida obra. Coloca-se, pois, uma importante questão
teórica, a saber, a inserção deste autor no sistema literário brasileiro, cuja poética problematiza
os conceitos e mitos de autor, autoria e genialidade vigentes, especialmente, no Romantismo e
nas Artes de Vanguarda.

PALAVRAS-CHAVE: Autoria; Caio Fernando Abreu; Pentimento; Poéticas contemporâneas.

ABSTRACT: Considering the written production of Caio Fernando Abreu, we will study some
of his representative texts about the writer figures, the projections and the expectations about this
profession that he constituted for himself, his family and friends, for the public and the critics.
These representations, which are made through a self and anthropophagic poetics, unveil the
mise-en-abyme of the various personae as a writer in letters, short-stories, chronicles, novels, and so
on, a peculiarity that evidences the dialogical potency of the said work. An important theoretical
question appears, namely, the insertion of this author in the Brazilian literary system, whose poetic
problematizes the concepts and myths of the author, current authorship and genius, especially in
Romanticism and the Avant-garde Arts.

KEYWORDS: Authorship; Caio Fernando Abreu; Pentimento; Contemporary Poetics.

* Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Centro de Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual
de Londrina – UEL – CEP 86057-960 – Londrina – Brasil. E-mail: ellenmariany@uel.br
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Introdução

Em Paixões concêntricas: motivação e situações dramáticas recorrentes na obra de


Caio Fernando Abreu, dissertação de mestrado defendida em 2006, estudamos a referida
obra com intuito de identificar as preferências temáticas e formais do escritor na tentativa
de esboçar a sua poética. Isto porque, na vasta produção que é composta de romances, de
contos, de peças de teatro, de crônicas, de cartas etc., o ficcionista faz a retomada e a (re)
criação de motivos e de situações dramáticas (TOMACHEVSKI, 1976), dando-lhes um
caráter recorrente. Compreendemos, nesta ocasião, que a relação entre estes motivos e estas
situações dramáticas vincula-se, em toda a obra de CFA, à experimentação com a palavra,
já que estes elementos, que são retomados e reelaborados de modo a compor outros textos,
produzem novos significados, sem, contudo, desconsiderar o seu estado/condição anterior.
A partir dessa compreensão, formulamos núcleos/eixos de produção no multifacetado
projeto literário de CFA. Isso significa dizer que, para cada um dos núcleos/eixos de sua
produção, existe uma faceta identitário-literária de CFA – facetas essas que mantêm um
constante diálogo entre si: ao apropriar-se das vozes de outros autores, a saber, alguns
procedimentos temático-formais próprios dos autores Clarice Lispector e Julio Cortázar,
o escritor imprime à sua obra um caráter antropofágico; ao lançar mão de recursos
poéticos e linguísticos que remetem à sua produção, destaca-se a autofagia. Neste sentido, a
experimentação com a palavra, via intertextualidade, a metalinguagem e a mistura de gêneros
que embasam sua poética auxiliaram no processo de escolha de sua(s) representação(ões)
como escritor, permitindo-lhe afirmar a sua marca autoral para si e para os seus leitores. Mas
esta experimentação não ocorreu de forma sucessiva, nem evolutiva.
Considerando a discussão que envolveu a natureza do trabalho acadêmico realizado
em 2006 bem como suas lacunas e limitações, este artigo pretende ser, por assim dizer,
um pentimento. De caráter constelar, ou seja, simultâneo, as multifaces experimentadas
pelo escritor, ao longo de sua produção, permitem que se estabeleça um constante diálogo
da obra com ela mesma e dela com a obra de outros escritores citados, imitados e (refe)
reverenciados. Destaca-se, pois, que o estudo aqui apresentado pretende se fazer como
apenas uma das inúmeras possibilidades de leitura da poética de CFA, já que seus vários
modos de arranjo, apropriações e reelaborações do outro e de si ainda estão por ser
explorados e estão abertos a tantos quantos forem seus leitores e críticos, haja vista a
potência dialógica que a obra encerra.
Para tanto, abordaremos, no espaço que este artigo permite, alguns aspectos que
singularizam CFA como escritor e o inscrevem no sistema literário brasileiro, tendo por
base textos que tratam dos mitos, das expectativas e das projeções sobre a função de escritor
cultivados por CFA tanto para si quanto para os seus familiares, para a crítica e para o público
em geral. Ao considerar, nesses textos/discursos, as tensões e os conflitos decorrentes do
processo de assunção, por parte de CFA, de sua(s) identidade(s) autoral(ais), percebemos que
estes mitos, projeções e expectativas perpassam diferentes modalidades textuais/discursivas.
Estas, por conseguinte, devido ao seu caráter simultâneo, já que foram produzidos, ao longo
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de 30 anos, cartas, contos, crônicas, prefácios, peças de teatro, romances etc. estão dispostas
na forma de uma constelação1.
Este modo de organização implica um jogo ininterrupto e os textos/discursos
produzidos remeteriam, numa teia auto-elucidativa, uns aos outros. É no diálogo entre estas
modalidades textuais/discursivas que podemos entrever as personae de escritor de CFA, ou
seja, as suas representações. Vale ressaltar que estudar estas construções identitárias implica
discutir, minimamente, algumas questões de cunho teórico suscitadas pelos modos de
composição de CFA, especialmente no que tange aos conceitos e, por que não dizer, mitos de
autor, autoria, genialidade e inspiração vigentes no Romantismo e nas Artes de Vanguarda.

Do Autor (Barthes), da função-autor (Foucault), do autor-criador (Bakhtin)

Não nos prestamos, aqui, a discutir o quanto de experiência de vida de CFA tornou-se
material de ficção e vice-versa. De acordo com BAKHTIN (2003, p. 09), não se deve confundir
o “autor-criador, elemento da obra, com o autor-pessoa, elemento do acontecimento ético
e social da vida”. Nesta perspectiva, ao utilizarmos a sigla CFA para designar Caio Fernando
Abreu, estamos efetuando, desse modo, uma distinção entre o “elemento da obra” e o
“elemento do acontecimento ético e social da vida”. Nesse sentido, a tarefa de relacionarmos
vida e obra mostra-se, de saída, inviável. Isso porque devemos considerar que os registros
dos conteúdos das cartas aos amigos e aos parentes, das crônicas, inicialmente publicadas
nos jornais O Estado de São Paulo e Zero Hora, de Porto Alegre, das entrevistas, divulgadas nos
jornais e revistas variados e dos prefácios às edições revisadas são feitos por meio da escrita
e são, em última análise, uma representação dos referenciais abordados. Se considerarmos
que essas representações – assim como os contos, os romances e as peças de teatro de CFA
– existem e podem ser lidas, também, como ficção, o caráter de “acontecimento estético”
(BAKHTIN, 2003, p. 09) atribuído a elas auxiliaria na exclusão, do horizonte de nossas
análises, do “elemento do acontecimento ético e social da vida”, i.e., Caio Fernando Abreu2.

1
Utilizamos esta palavra de acordo com a seguinte definição contida no dicionário Houaiss (2001): “2. conjunto
de elementos que formam um todo coerente, ligados por algo em comum”. Vale ressaltar que o estudo
aqui apresentado é uma releitura de algumas das análises presentes em nossa tese de doutorado, intitulada
Pentimento: um álbum de retratos das personae de escritor de Caio Fernando Abreu, defendida em 2010, que se
encontra no portal Domínio Público, no endereço eletrônico: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=172637.
2
Sobre os estudos acadêmicos que consideram as relações entre os aspectos biográficos de um autor e sua obra,
Bakhtin reforça: “[...] o que acabamos de dizer não visa, absolutamente, a negar a possibilidade de comparar de
modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões de mundo, comparação
eficiente tanto para a história da literatura quanto para a análise estética. Negamos apenas o enfoque sem
nenhum princípio, puramente factual desse tema, que atualmente domina sozinho e se funda na confusão do
autor-criador, elemento da obra, com o autor-pessoa, elemento do acontecimento ético e social da vida, e na
incompreensão do princípio criador da relação do autor com a personagem; daí resultam a incompreensão e a
deformação – no melhor dos casos a transmissão de fatos apenas – da personalidade ética, biográfica do autor,
por um lado, e a incompreensão do conjunto da obra e da personagem, por outro” (BAKHTIN, 2003, p. 09).
Um estudo que leva em consideração a confluência entre os fatos reais e ficcionais elaborados pela linguagem,
na obra de CFA, encontra-se em BARBOSA (2009). Em sua tese de doutorado, valendo-se das concepções dos
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No que se refere ao acontecimento estético de CFA, cada gênero discursivo praticado
(re)apresentaria as suas possíveis personae autorais. Haveria, pois, um CFA romancista, um
CFA contista, um CFA dramaturgo, um CFA missivista, um CFA cronista. Sobretudo, há,
também, um CFA que, ao escrever cartas aos amigos e parentes, ao escrever os prefácios
das edições revisadas de seus livros e ao fornecer entrevistas a veículos variados sobre sua
obra, coloca-se, de forma supra-autoral: esta persona de escritor apresenta-se/representa-se,
nessas ocasiões, como o autor responsável pelos demais gêneros de discursos praticados.
Personae auto-elucidativas, essas, ao se valerem de dramas semelhantes, representando-os
por meio da escrita, dão corpo à obra e corporificam-se nela, firmando, multifacetadamente,
a figura de Escritor de CFA.
A rigor, ao reconhecermos algumas de suas personae de escritor, podemos relacionar
sua obra às produções artísticas ocidentais realizadas a partir da segunda metade do século
XX, que se marcam pelo estabelecimento de uma crise nas noções burguesas de autor e de
autoria, vigentes na modernidade. Mais do que negar o mito do escritor como um demiurgo,
que, tomado de uma inspiração genial, é capaz de criar uma obra de arte nova e original, a
produção de CFA, a seu modo particular, ajuda pôr em evidência que este mito não passa
de uma construção, cujas ruínas sobrevivem não somente no que se refere à sua produção
escrita, mas, também, à inserção desta produção no sistema literário. Isto afirmaria a sua
participação na construção de uma espécie de poética do fragmento, o que, em linhas gerais,
consideramos como um traço recorrente nas produções artísticas contemporâneas.
No caso de CFA, muitas vezes, utilizamos, indiscriminadamente, o nome próprio
Caio Fernando Abreu para designarmos a obra, esquecendo-nos de que o autor se faz, nela,
presente como uma instância que só tem existência no plano linguístico/textual. A respeito
deste sujeito – constituído linguisticamente – que é capaz de articular textos/discursos pré-
existentes, deixando, desta maneira, a sua marca autoral, temos os conceitos de escritor, de R.
Barthes, de função autor, desenvolvido por M. Foucault e de autor-criador, proposto por M.
Bakhtin, que contribuem para a problematização da ideia moderna de autor/autoria3.
Considerando as concepções de Barthes e de Foucault, percebemos que cada um, com
suas particularidades, promove um desalojamento do autor burguês, tal como compreendido
na modernidade, de sua posição de fundamento/origem de uma obra. Se relacionarmos a
noção de escritor, de Barthes, segundo a qual quem fala, num texto, é aquele que diz “eu”, ou
seja, a própria linguagem que conhece não uma pessoa e, sim, um sujeito (BARTHES, 1984,
p. 51), com a função autor, de Foucault (2000), que designa uma posição enunciativa que pode
remeter a uma pluralidade de “eus”, aproximamo-nos do autor-criador, de Bakhtin. Vejamos.
Em “O autor e a personagem na atividade estética” (1920-1922), Bakhtin considera
que para cada gênero discursivo existe um enunciador que orienta seu discurso de acordo

teóricos franceses Serge Doubrovsky, Vincent Colonna e Philippe Lejeune, o autor discute as diferenças entre
os discursos biográfico e autobiográfico, utilizando-as para estabelecer relações entre a obra e a vida de Caio
Fernando Abreu.
3
Um estudo comparativo das noções de escritor, de R. Barthes, de função autor, de M. Foucault, e de autor-criador,
de M. Bakhtin, que considera o modo como estes conceitos auxiliam, por meio da negação de uma voz única e
soberana, na problematização da ideia de unicidade do sujeito, encontra-se em CAVALHEIRO (2008).
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com pontos de vista, circunstâncias espaçotemporais e particularidades histórico-sociais
específicos, tendo em mente o seu destinatário. Complementando esta ideia, em Problemas
da poética de Dostoiévski (1929), Bakhtin afirma: “todo enunciado [oral e/ou escrito] tem uma
espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o seu criador” (BAKHTIN,
2008, p. 210 – colchetes nossos). Isso vale, também, para a literatura em que o autor

é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem


e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta. Na
medida em que nos compenetramos da personagem, esse todo que a conclui não
pode ser dado de dentro dela em termos de princípio e ela não pode viver dele nem
por ele guiar-se em seus vivenciamentos e ações, esse todo lhe chega de cima para
baixo – como um dom – de outra consciência ativa: da consciência criadora do
autor. A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência
que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa
consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela
mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa (2003, p. 10-11).

Como se pode notar, o autor-criador, de Bakhtin, assim como o escritor, de Barthes, e


a função autor, de Foucault, só tem existência no plano linguístico/textual. Dessa maneira,
compreendendo CFA como um autor-criador que, ao articular textos/discursos anteriores,
é capaz de se desdobrar em diversos “eus” (FOUCAULT, 2002) sem, contudo, se fixar em
nenhum deles (BARTHES, 1984), interessa-nos estudar os processos de construção autoral
de CFA – e os possíveis mitos que se fizeram em torno dela. Tendo em vista os diversos papéis
desempenhados pelo enunciador/articulador CFA, vejamos de que maneira a associação
entre os conceitos de autor-criador, voz, dialogismo e polifonia, de Bakhtin, podem nos auxiliar
no desvendamento do processo de assunção, por CFA, de sua(s) máscara(s) de Escritor.
No que se refere às modalidades textuais praticadas pelo escritor e suas personae daí
decorrentes, em princípio, podemos dizer que, estritamente, não há polifonia em cada carta,
conto, crônica, peça de teatro, romance, entrevista e prefácio tomados isoladamente. O
que existe é a apropriação das vozes presentes nos próprios textos/discursos de CFA bem
como a apropriação das vozes de outros autores e de suas obras em favor da construção e
da configuração das vozes dos textos/discursos de CFA. Dessa maneira, a polifonia existe
na obra de CFA na medida em que nos valemos de uma leitura dialógica que considera
as diversas modalidades textuais/discursivas praticadas por ele de forma simultânea. É a
partir do contraste e da comparação dos gêneros literários em questão que as várias vozes/
consciências presentes nos textos de CFA, i. e., as personae de escritor de CFA, se manifestam,
constituindo, assim, o multiforme autor-criador CFA. Por isto, além de considerar as
apropriações, articuladas por este autor-criador, num nível intratextual/intradiscursivo,
levamos em conta tanto as relações intertextuais/ interdiscursivas internas a cada trecho
de texto selecionado, quanto ao dialogismo e à polifonia que emergem do cotejo destes no
conjunto da obra de CFA.
Se, de acordo com Bakhtin, “A consciência do autor é a consciência da consciência,
isto é, a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e
conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes
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a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa” (BAKHTIN, 2003), haveria – a
partir da comparação entre as modalidades textuais praticadas por CFA –, uma espécie de
desdobramento da sua voz autoral (lembrando, aqui, de um dos princípios fundadores da
função autor, de Foucault), cujas enunciações reverberariam – não em forma de eco, mas,
sim, paradoxalmente, diferindo entre si e complementando-se – num constante diálogo.
Além disso, devemos considerar que o movimento constante destas consciências autorais
que elucidam umas às outras é ininterrupto, o que (e, por agora, retomamos o escritor, de
Barthes) faz com que CFA nunca se fixe em nenhuma de suas representações. Nesse sentido,
semelhantemente à forma como Barthes, ao decretar a morte do autor moderno, equipara
a importância do escritor e do leitor na produção de um texto, poderíamos dizer que quem
realizaria a potência dialógica presente nos textos/discursos de CFA seríamos nós, os seus
leitores, já que somos “o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca,
todas as citações de que uma escrita é feita [...] esse alguém que tem reunidos num mesmo
campo todos os traços que constituem o escrito” (BARTHES, 1984, p. 53).
Por meio de uma breve explicação sobre os conceitos de escritor, função autor, autor-criador,
voz, dialogismo e polifonia, pudemos notar que a apropriação do discurso alheio e/ou do próprio
discurso para construir novos textos/discursos não é, necessariamente, algo inédito na história
da literatura, muito menos um procedimento exclusivo de CFA. A principal característica que
particulariza a obra deste escritor no contexto literário da segunda metade do século XX no Brasil
faz-se, então, por meio de uma associação entre três elementos presentes nos textos/discursos
do autor-criador CFA, a saber: a apropriação e a reelaboração da própria voz e da voz alheia,
que fundamentam a construção de outros textos/discursos; a mise-en-abyme4 das suas personae
de escritor, que se relacionam umas com as outras de maneira auto-elucidativa e ininterrupta;
o pentimento como um efeito produzido a partir dos processos auto e antropofágico de CFA,
que envolvem a apropriação das vozes das personae de escritor anteriormente constituídas nos
demais textos/discursos, bem como das vozes de outros autores-criadores. O pentimento se
faz presente na medida em que, por meio da utilização das próprias vozes e das vozes alheias,
as personae de escritor aí constituídas promovem, digamos, uma atualização deste passado no
momento em que este emerge de sua situação/condição anterior para se (re)combinar num
outro/novo contexto. É nessa atualização que os elementos anteriores e os posteriores se
concentram numa circunstância espaçotemporal equivalente. Dessa maneira, o pentimento
teria um duplo alcance: em se tratando da instância criadora, metaforicamente, este efeito
possibilita ao autor-criador CFA “uma forma de ver, e ver de novo mais tarde” (HELLMAN,
1980, p. vii) seus textos/discursos e, por extensão, suas personae; no que se refere ao plano da
recepção, conceitualmente, nós, leitores, além de termos a chance de ver, e ver de novo – mais
tarde – os textos/discursos e as personae de escritor de CFA que se fazem neste seu voltar-se
sobre si mesmo, podemos participar, ativamente, desse processo.

4
No capítulo “A máquina de tecer”, Lúcia Helena Carvalho (1983, p. 08) aponta que a mise-en-abyme, i.e., a
construção em abismo existe, na pintura e na literatura, desde o século XVI. Contudo, o uso deste termo foi feito,
pela primeira vez, por André Gide, em 1893, para designar a organização de sua própria obra. Esta organização
se caracteriza pela inclusão de um quadro narrativo dentro do outro, uma história dentro da outra, tal como uma
superposição de espelhos, de modo que cada imagem reflita, em menor escala, a imagem que lhe originou.
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Conforme a definição do dicionário Houaiss, pentimento é um termo utilizado na
pintura para designar um

[...] vestígio de uma composição anterior ou de alterações em um quadro,


tornadas visíveis (esp. em pinturas a óleo) com a passagem do tempo. Etimologia:
it. pentimento ‘arrependimento; mudança feita pelo pintor em seu quadro que se
traduz em um retoque, em uma modificação ou num refazimento (HOUAISS,
2001 – grifos do autor).

Tomada como um conceito-chave para compreendermos a poética de CFA, esta


palavra parece-nos adequada, já que, no processo de feitura da obra, a retomada de motivos e
de situações dramáticas recorrentes de um texto/discurso para outro não só traz à tona o que
já foi feito no conjunto desta obra como (re)toma e (re)significa este passado. Caracterizada
como uma metáfora, levando-se em conta a etimologia da palavra, podemos associá-la a uma
espécie de “arrependimento”, por parte de CFA, se lembrarmos que alguns de seus livros – a
saber, Inventário do irremediável (1970/1995), Limite branco (1971/1993), O ovo apunhalado
(1975/1984), Morangos mofados (1982/1995) e Triângulo das águas (1983/1991) – foram
revistos/reescritos por ele antes de sua morte, ato que, em última instância, implica uma
retomada autocrítica das representações de escritor ali contidas. Na confluência espaço-tempo
que o efeito do pentimento explicita, entre uma e outra edições, temos, simultaneamente, os
mesmos e outros textos/discursos, produzidos pelas mesmas e outras personae de escritor de
CFA. Em seguida, de maneira a compreendermos como a autofagia e a antropofagia, a mise-
en-abyme e o pentimento se constituem como instrumentos de construção poética, passaremos
à análise de trechos de textos que tratam, pontualmente, da escolha, por parte de CFA, das
representações de escritor por ele consideradas mais adequadas à função e às circunstâncias
históricas e estéticas em que estes textos se situam.

Pentimento: do ato de (in)escrever(se) no cenário da literatura brasileira da segunda


metade do século XX

A perspectiva que considera a obra de CFA como uma espécie de tela constantemente
reaproveitada em que o escritor lê a obra de outros autores, lê-se, (re)lê-se, faz-se, (re)
faz-se, faz a sua obra e é feito escritor por ela promove uma constante releitura dessas
personae que se constroem e são construídas, inexoravelmente, por meio da escrita. Nesse
sentido, observaremos, a partir de agora, o que há de mais representativo no que se refere
ao tratamento dado pelas personae CFA às máscaras e mitos de escritor, às ambições e
expectativas sobre o ato de escrever. Nestes trechos, também será possível vislumbrarmos
os principais procedimentos de composição poética do autor-criador, a saber, os processos de
autofagia e antropofagia, ou seja, a apropriação da própria voz e da voz alheia na composição,
por meio do pentimento, de seus textos/discursos.
Em novembro de 1969, Caio Fernando Abreu recebia o Prêmio Fernando Chinaglia, da
UBE – União Brasileira dos Escritores, pelo seu livro de contos Inventário do irremediável. No
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primeiro semestre do ano seguinte, o livro foi publicado pela Editora Movimento, em Porto
Alegre. Nesta época, o escritor tinha 21 anos de idade e fazia sua estreia no cenário literário
brasileiro. Tanto o prêmio quanto a publicação soam como uma espécie de realização do
desejo expresso numa carta sua dirigida a seus pais, datada de 13 de março de 1969. Dentre os
assuntos desta carta, à qual pertence o trecho a seguir, destacam-se a sua demissão da, então,
recém-criada revista Veja, o possível retorno à casa dos pais, em Porto Alegre, e a retomada
do Curso de Letras, interrompido por causa de sua mudança para São Paulo. Além disso,
CFA queixa-se do desamparo e da solidão por ele experimentados. Em contrapartida aos
aspectos negativos, ele tranquiliza os pais dizendo que foi acolhido por um casal de amigos –
a escritora Hilda Hilst e seu marido, o escultor Dante –, e que ainda possui dinheiro para se
manter por algum tempo. Seguem-se a isso algumas notícias promissoras sobre o andamento
de seus projetos literários:

Tenho escrito muito. Um conto meu vai sair numa das próximas Cláudia, talvez
a de abril – e o meu romance está nas mãos de duas pessoas influentes – Carmem
da Silva e Léo Gilson Ribeiro (crítico literário) – que estão procurando editores.
Também estou dando os últimos retoques num livro de contos chamado
Inventário do irremediável, que um amigo escritor – Ignácio Loyola – vai levar
para uma editora só de gente nova, a Senzala. É quase certo que sai. Deste, vou
mandar também uma cópia para uma amiga no Rio, Maria Helena Cardoso, irmã
do Lúcio Cardoso, aquele escritor que morreu há pouco. Se a editora Senzala por
uma infelicidade não der certo, ela me arrumará um editor no Rio. Há também
um outro livro de contos (A margarida enlatada, onde tem um conto dedicado a
vocês) e uma novela (Cavalo branco na escuridão). Estão no Rio, com Carmem da
Silva. Com todas essas coisas engatilhadas, é provável que muito em breve vocês
tenham um filho famoso, com fotografias e entrevistas em jornais, revistas,
noites de autógrafo, viagens à Europa, prêmios – todas essas coisas (ABREU,
2002, p. 358 – grifos nossos).

É interessante notar que, em se tratando do veículo escolhido por CFA para se expressar
– pois o gênero carta pressupõe a determinação do tom a ser utilizado em seu discurso,
tendo em vista o tipo de relações existentes entre o remetente e seu(s) destinatário(s) –,
mais do que um desejo de fama (entrevistas, revistas, fotografias, noites de autógrafo etc.)
há, no trecho aqui reproduzido, a enunciação do CFA-missivista que requer dos seus pais o
reconhecimento tanto de sua condição de filho do casal Nair e Zael Abreu – filho que, dentre
os demais, se destacaria como escritor –, quanto a validação do seu ofício de ficcionista no
sistema literário brasileiro. Melhor dizendo, por meio da carta, podemos perceber um desejo
de conciliação entre a sua condição ocupada na esfera íntima e familiar, em relação aos seus
pais e aos seus irmãos, e o ofício escolhido por ele, cuja afirmação se faz – e foi feita, ao longo
dos quase 30 anos de sua produção – pelo público e pela crítica.
Decorre disto um outro aspecto relevante: o fato de que, hoje, temos acesso a uma parte
da correspondência pessoal de Caio Fernando Abreu, publicada em livro. Não é de se descartar
a hipótese de que ele sabia – e até esperava – que suas cartas viessem a público, devido às
“entrevistas em jornais, revistas, noites de autógrafo, viagens à Europa, prêmios – todas essas
coisas” (p. 358). Suas cartas se constituiriam em canais que auxiliariam na exposição e no
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reconhecimento de sua posição como escritor. Daí trabalharmos com a hipótese de que CFA
se comportasse, nas cartas, de modo a construir uma imagem (e a alimentar o mito) de escritor
em torno de si mesmo, para si, para seus amigos e parentes, para o público e para a crítica.
Embora nosso objetivo neste artigo seja considerar apenas os textos/discursos
proferidos por CFA, sobre as suas personae de escritor, há um outro fator que reforça a
construção do mito de escritor que não podemos ignorar. Trata-se do olhar da crítica sobre
seus textos/discursos. Organizado por Italo Moriconi, Caio Fernando Abreu – Cartas (2002),
livro que reúne parte da correspondência pessoal de CFA, é dividido em duas partes: a
primeira delas, intitulada “Todas as horas do fim”, contém cartas de CFA enviadas a amigos
e a parentes entre os anos de 1980–1996, período que abrange os aspectos da vida e da obra
do escritor até pouco antes de sua morte, em fevereiro de 1996. A segunda parte, “Começo:
o escritor”, relaciona cartas produzidas entre os anos de 1965–1979, momento em que
CFA saiu da casa dos pais, iniciando-se na carreira de jornalista e literato. A nosso ver, esta
organização favorece uma narrativização dos fatos e sentimentos ali relatados, colocando a
vida do escritor como uma espécie de romance narrado em ultima-res. Num certo sentido, as
biografias sobre CFA Inventário de um escritor irremediável (2008), de Jeanne Callegari, e Para
Sempre Teu, Caio F. (2009), de Paula Dip, também constroem personae de escritor de Caio
Fernando Abreu, reforçando os mitos em torno de sua vida e de sua obra.
Como visto, as imagens/mitos de escritor cultivados tanto por CFA quanto pela crítica
especializada dialogam com o que afirma o poeta e crítico literário T. S. Eliot (1888-1965),
em seu ensaio “Tradição e talento individual” (1922):

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu
significado e a apreciação que dele fazemos constitui a apreciação de sua relação
com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo,
para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio
de estética, não apenas histórico, mas no sentido crítico (ELIOT, 1989, p. 39).

Assumimos, tanto no sentido estético e histórico quanto no sentido crítico, que


o conjunto dos textos/discursos de CFA não possui significação (ELIOT, 1989, p. 38) se
tomado isoladamente. Pensamos que, ao situarmos sua obra, por “contraste e comparação”
(p. 38), em relação à obra de Clarice Lispector, assunto de outra carta sua, cujo trecho
será estudado a seguir, compreenderemos o minucioso trabalho de apropriação, feito
por CFA, de procedimentos temático-formais da obra da escritora. Dessa maneira, nos
aproximaríamos do desvendamento de parte do processo crítico de CFA em relação às
suas construções autorais. Se, é verdade que, de acordo com Eliot (1989), “a maior parte
do trabalho de um autor na composição de sua obra é um trabalho crítico; o trabalho de
peneiramento, combinação, construção, expurgo, correção, ensaio – essa espantosa e árdua
labuta é tanto crítica quanto criadora” (ELIOT, 1989, p.57), CFA levaria esta sua faculdade
ao extremo, já que, ao apropriar-se de elementos da obra da referida escritora, ele estaria
fazendo desta apropriação um dos principais meios para firmar-se como autor no sistema
literário brasileiro. Vejamos o trecho da carta a Luciene Samôr, de 11 de fevereiro de 1995:

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Escrevo, escrevo, escrevo. Quando páro, ando de bicicleta, cuido do jardim
(explodiu em girassóis, alamandas, petúnias e gladíolos – está lindo), faço yoga
e leio a biografia de Clarice Lispector escrita por Nádia B. Gotlib, saindo pela
Ática (leio as provas). Que vida, minha irmã: dá vontade de reler toda a obra
dela. Mas não, porque então páro de escrever. Clarice disse tudo? Certa vez um
crítico do Le Magazine Littéraire disse que meu texto parecia “o de uma Clarice
Lispector que tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado algumas drogas”. Fiquei
lisonjeadérrimo (ABREU, 2002, p. 326).

Nesta carta, CFA descreve a sua rotina na época. Destaca-se, especialmente, a menção
à leitura, por CFA, de uma biografia sobre Clarice Lispector5 (doravante CL), assim como
o fato de ele ter ficado orgulhoso com a comparação de sua obra à obra de CL, feita pelo
crítico do Le Magazine Littéraire6. Comparativamente, mesclam-se, aqui, as representações
da obra e da vida de CFA com as da obra e da vida de CL, em que o saldo, de acordo com o
missivista, é positivo, já que ele ficou “lisonjeadérrimo” (p. 326). Comparemos este trecho
com outro trecho de uma outra carta sua escrita à amiga, e também escritora, Hilda Hilst,
22 anos antes, em 1973:

Meu trabalho está bem diferente do que você conhecia, para melhor, já liberto
de todas aquelas influências de Clarice Lispector. E bem mais objetivo, bem mais
maduro que o Inventário [...]. (ABREU, 2002, p. 431 – grifo nosso)

Nesta carta, de 11 de janeiro de 1973, CFA escreve a Hilda, dando-lhe notícias sobre
seu mais recente trabalho na época, o livro de contos O ovo apunhalado, que seria publicado
em 1975. Como visto, o escritor julga estar livre das “influências de Clarice Lispector” (p.
431). Considerando a distância temporal que separa as duas cartas, um período de 22 anos,
percebemos que a carta de 1995 apresenta o pentimento/”arrependimento” de CFA, no que
se refere a uma mudança na avaliação, feita por ele, sobre si próprio como escritor e sobre a
presença da voz-CL em sua vida e em sua obra representadas em ambas as cartas. Se na carta
de 1973 CFA nega a presença da voz-CL em seu livro O ovo apunhalado (1975), na carta de
1995, CFA revê tal posicionamento, admitindo que CL participa de sua formação, de acordo
com as representações sobre a vida e a obra de CL construídas por ele em 1995, de modo
indiscutível, tanto é que ele se sente elogiado pela fala do crítico do Le Magazine.
Esta “forma de ver, e ver de novo, mais tarde” (HELLMAN, 1980, p. vii) presente no
cotejo das duas cartas acima também pode ser bem observada na comparação de alguns aspectos
das duas edições do livro de contos Inventário do irremediável (1970), com uma diferença de 25
anos da 1ª edição para a edição revista pelo escritor, em 1995. Este livro sofreu uma rigorosa
revisão em que teve até o seu título alterado: de Inventário do irremediável para Inventário do
ir-remediável. Além disso, oito contos foram retirados e os demais reescritos. Vejamos o que
resultou do pentimento sobre a admissão – ou não – da presença de CL por CFA.

5
A biografia mencionada por CFA é Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Batella Gotlib, lançada em 1995.
6
O crítico referido por CFA é Jacobo Machover (1954), professor, escritor e jornalista cubano, radicado na
França desde 1963. A opinião emitida por ele vem impressa na capa da edição do livro Morangos Mofados, de
CFA, lançada pela Companhia das Letras em 1995.
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O trecho “Ver o ovo é impossível; o ovo é supervisível como há sons supersônicos.
Ninguém é capaz de ver o ovo” (LISPECTOR, 1999, p. 46) é parte do conto “O ovo e a galinha”,
de A legião estrangeira (1964), de CL. Ele serve de epígrafe ao conto “O ovo”, do Inventário
do ir-remediável, ed. rev., p. 36. Na narrativa de CFA, um homem é isolado num espaço
inóspito, cuja descrição se assemelha a um quarto de sanatório. A causa deste isolamento vai
ao encontro da referida caracterização espacial: desenvolvendo uma espécie de paranoia, a
personagem se julga perseguida por um ovo que aumenta de tamanho à medida que engloba
pessoas e objetos à sua volta. É, pois, numa espécie de quarto/cela, já que há grades nas
janelas, que, à luz do último toco de vela que lhe resta, o protagonista conta, brevemente,
a sua história de vida. É este relato, feito em 1ª pessoa, que constitui, via metalinguagem, o
conto em questão. Vale dizer que a epígrafe feita a partir do texto de Lispector não existe no
Inventário do irremediável (1ª ed.), sendo inserida por CFA apenas na edição revista.
Algo semelhante acontece nos seguintes trechos que, também, pertencem às duas
edições do Inventário:

[Trecho 1]

“Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E êsse jeito instável de pegar uma maçã
no escuro – sem que ela caia.”
― Que saco, hein? Estava demorando.
― O quê?
― A citação. Aaaarrrrghhhh.
Mas ela não sorri (ABREU, 1970, p. 97).

[Trecho 2]

― Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse jeito instável de pegar uma
maçã no escuro – sem que ela caia.
― Que saco, hein? Estava demorando.
― O quê?
― A citação. Quem é?
― Clarice Lispector.
Ela não sorri (ABREU, ed. rev., 1995b, p. 111).

No trecho 1, as orações que aparecem entre aspas constituem uma parte do discurso
do narrador de 3ª pessoa que encerra o romance A maçã no escuro, de 1961, de CL. O conto
de CFA, “Apenas uma maçã”, no qual esta citação é feita, narra uma conversa entre um casal
de ex-namorados que se encontram depois de muito tempo separados. Ela, enquanto ambos
conversam, manipula uma maçã. Ele, então, recorda e cita o trecho do romance de CL. Ela se
irrita e percebe que, mesmo depois de muito tempo distantes um do outro, ele mantivera os
mesmos hábitos. É importante destacar que a citação do livro de Lispector, na 1ª edição do
Inventário do irremediável, é feita entre aspas e sem mencionar o nome da escritora.
O trecho 2 demonstra que esta mesma citação, feita na 1ª ed. do livro de CFA, existe na
sua edição revista. Contudo, ela é nomeada e as aspas são retiradas. É interessante notar que,
na citação da 1ª ed., a personagem não pergunta ao homem a quem pertence a frase, o que
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pressupõe que ela também conhece o romance de CL. Na citação presente na edição revista,
a personagem também fica irritada, mas desconhece ou ignora que o trecho pertence ao livro
de Clarice Lispector.
Ao observarmos este pentimento/“arrependimento”, percebemos que ele tem por base
a 1ª edição do Inventário – primeira tela/livro de CFA pintada/publicado em 1970. Decorridos
25 anos, esta(e) mesma(o) tela(livro) é retomada(o) e refeita(o). Este refazimento conteria
os traços da 1ª edição que, misturados às “novidades” da edição revista, fariam do Inventário,
simultaneamente, o mesmo e um outro livro. Melhor dizendo, ao realizar a retomada e a
reelaboração do passado do escritor num intervalo de 25 anos, o pentimento concretizado
na edição revista evidencia, também, uma reavaliação da imagem de escritor que o próprio
CFA, em 1970, tinha de si.
Ainda sobre a admissão ou não, por parte de CFA, da presença da obra e da figura de
escritora de Lispector, temos alguns exemplos no livro Ovelhas negras (1995), que reúne contos
e fragmentos produzidos entre 1962 e 1995 que não foram incluídos nos livros anteriores.
No texto de capa da edição de 1995, na perspectiva de CFA, os contos e fragmentos presentes
no referido livro seriam os seus textos “de fundo-de-gaveta”. Tal adjetivo é emprestado/
apropriado da escritora CL, que, em seu mini-prefácio à segunda parte do livro A legião
estrangeira, primeira edição, também qualifica seus textos como fundos de gaveta. Vejamos
como cruzamento das vozes de CFA e de CL sobre seus modos de composição poética se
processam e revelam os desejos e projeções de CFA sobre si mesmo como escritor:

Nunca pertenci àquele tipo histérico de escritor que rasga e joga fora. Ao contrário,
guardo sempre as várias versões de um texto, da frase em guardanapo de bar, à impressão
no computador. Será falta de rigor? Pouco me importa. Graças a essa obsessão foi que
nasceu Ovelhas negras, livro que se fez por si durante 33 anos. De 1962 até 1995, dos
14 aos 46 anos, da fronteira com a Argentina à Europa. Não consigo senti-lo – embora
talvez venha a ser acusado disso, pois escritores brasileiros geralmente são acusados, não
criticados – como reles fundo-de-gaveta, mas sim como uma espécie de autobiografia
ficcional, uma seleta de textos que acabaram ficando fora de livros individuais. [...] Mas
jamais o assumiria se, como às minhas ovelhas brancas publicadas, não fosse eu capaz
de defendê-lo com unhas e dentes contra os lobos maus do bom-gostismo instituído e
estéril. Remexendo, e com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive
tão clara certeza de que criar é literalmente arrancar com esforço bruto algo informe do
Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita
Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas. (O Autor-
Pastor) (ABREU, 1995a – grifos do autor).

É interessante notar que, além da expressão “fundo de gaveta”, CFA se apropria do


posicionamento de CL em relação aos seus escritos, comportando-se de maneira semelhante
ao considerar seus textos, quando menciona: “Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in
ou dis-forme. Afinal, como Rita Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras
das ovelhas” (ABREU, 1995a – grifos do autor). Em seu mini-prefácio, CL aponta: “Além do
mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto do modo carinhoso
do inacabado, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão”
(LISPECTOR, 1964, p. 127 – grifos nossos). Destaca-se, aqui, que, como escritores, CFA e
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CL se interessam, justamente, pelos seus textos renegados, dando-lhes projeção e um lugar
no contexto de suas respectivas obras.
Além da apropriação do texto/discurso e do posicionamento como escritora de
CL, novamente, para firmar seu traço identitário de escritor/artista, CFA se vale de uma
comparação entre ele e uma outra artista reconhecida pelo público e pela crítica, no caso, a
cantora e compositora brasileira Rita Lee (1947) que, em meados dos anos de 1970, gravou
sua canção intitulada Ovelha negra. Ao fazer esta comparação, é como se CFA concretizasse a
metáfora criada por Jacobo Machover para caracterizar seus textos/discursos: “uma Clarice
Lispector que tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado algumas drogas” (ABREU, 2002, p.
326), carta estudada anteriormente. Ao modo CL de fazer e de lidar com a própria literatura,
CFA associa, com humor, o rótulo de marginalidade em relação ao senso-comum, iconizado
na canção de Rita Lee, de modo a singularizar a sua produção e a diferenciar-se de CL como
escritor. No entanto, a presença de Clarice Lispector é algo que, na comparação entre os
trechos de ambos os prefácios, feita acima, permanece visível.
Para utilizarmos os termos da fala de CL, o motivo de publicar, também o que “não
presta” – o que, nos termos de CFA, significa acolher as “mais negras das ovelhas” –, sugere
uma espécie de falsa-modéstia por parte de CFA. Explicando: ao publicar “o que não presta”
– o livro Ovelhas negras, já que “o que presta” – o restante da obra –, “também, não presta”,
CFA estaria expondo, digamos, suas falhas e fraquezas como escritor. Contudo, esta suposta
equivalência entre esta coletânea e o restante da obra se mostra uma inverdade: Ovelhas
negras consolida o papel, exercido por CFA, de revisor e crítico de si próprio como escritor
e de sua obra. Esta visão endógena, paradoxalmente, autentica tanto o valor dos textos ali
contidos como o valor do restante de sua obra, afirmando a posição de CFA como escritor e
reivindicando o seu reconhecimento como tal. Vejamos um outro exemplo de como a voz-
CL é, mais uma vez, apropriada por CFA para que este construa seu pentimento ao comentar
sobre si mesmo como escritor.
Em 1987, CFA estava com 39 anos e já possuía uma carreira consolidada. Após
retornar a São Paulo de uma visita à casa dos pais, em 12 de agosto de 1987, ele escreve aos
dois uma carta em que há uma espécie de explicação sobre a dificuldade de demonstrar o
seu afeto. Além disso, ele se queixa – ao mesmo tempo em que pede desculpas – por não
ter se adaptado à rotina da família:

Querida mãe, querido pai, não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo
de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas.
Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.
Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o
equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu
próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado (ABREU, 2002, p. 153).

Neste trecho, o missivista aponta a diferença entre a rotina da família, que envolve
um número grande de pessoas numa mesma casa, e a sua, uma vida marcada, como ele
mesmo diz, pelo isolamento e pela solidão. Daí, a sua inabilidade de integrar-se ao cotidiano
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e às teias afetivas familiares, o que lhe provoca uma sensação de inadequação. Dessa forma,
o carinho e o afeto que também poderiam encontrar representação por meio de abraços,
beijos, afagos, etc. são representados por meio da carta, como uma forma de justificar e
procurar suprir esta dificuldade:

Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão.
E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas
aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o
destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa,
sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma
janela – mas não consegue vivê-la. Amo vocês como quem escreve para uma
ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a
secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco [...] (p. 153 – grifos
nossos).

No trecho acima, CFA aponta que a sua dificuldade de se relacionar com os pais advém
do fato de ele ser um escritor, ou seja, alguém que só é capaz de lidar consigo, com os outros
e com o mundo que o cerca por meio da ficção, o que se revela como um mito moderno
sobre a figura do escritor considerado como sujeito incompreendido, deslocado socialmente
devido a esta inclinação/função. É dentro deste campo, amparado pela escrita, que o CFA-
missivista expressa seus medos e dificuldades em relação ao afeto familiar. Além disto, ao
assumir a qualidade de escritor, a carta, de certa forma, o liberaria de exercer outros modos
de expor o seu afeto aos pais, já que demonstrar seus sentimentos por meio de outro veículo
que não seja a escrita seria, para o missivista, uma grande barreira.
Justifica-se, pois, a sua opção pela carta: ao estruturar seu discurso em primeira pessoa,
CFA cria, por meio da escrita, uma representação de si e, consequentemente, do(s) seu(s)
destinatário(s), i.e., uma ficção. Semelhante a um pentimento, à ideia de fracasso em relação
ao enfrentamento das dificuldades da vida concreta, CFA sobrepõe, por meio da carta, uma
espécie de correção. O arrependimento nela elaborado possui uma dupla função: ele visa a
corrigir/remediar a falta de habilidade do missivista em integrar-se no cotidiano dos pais e
da vida em família e, ao mesmo tempo, faz existir algo que, no passado recente quando da
visita aos pais, não houve. Aos gestos de compreensão e de afeto em relação aos pais que ele
não foi capaz de realizar na época, soma-se o pedido de desculpas: “Perdoem o silêncio, o
sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É
muito difícil ficar adulto. Amo vocês, seu filho Caio” (ABREU, 2002, p. 153).
Ao vestir, digamos, a máscara involuntária de filho, aquela que Nair e Zaél Abreu lhe
atribuem, note-se que ele assina “seu filho Caio” (p.153), ao produzir a carta, CFA sobrepõe
uma outra máscara, desta vez, escolhida por ele: passando de filho do casal a filho-escritor,
o missivista requer, mais precisamente, ser reconhecido como um escritor, imagem/mito
que ele cultiva já na carta de 13 de março de 1969, estudada anteriormente. Se escrever em
primeira pessoa é uma maneira de representar-se – e de se fazer apresentar –, é interessante
notar que a estruturação dessa representação/apresentação passa, mais uma vez, pela
apropriação do discurso alheio. De modo a definir a si próprio e o modo como quer ser visto
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pelos pais, CFA reitera: “Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir
dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso,
há muito amor. Amor louco [...]” (ABREU, 2002, p. 153). Especialmente nas frases grifadas,
há a apropriação de um trecho de Água viva (1973), de CL. Vejamos:

Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez
os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada.
Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me
arranha como se fossem farpas. [...] (LISPECTOR, 1998b, p. 51 – grifos nossos).

Embora os trechos da carta de CFA e do livro de CL, aqui citados, tratem de circunstâncias
distintas – o missivista dirige-se aos pais, enquanto que a enunciadora-CL direciona o seu
discurso a um interlocutor desconhecido –, há, entre eles, algumas semelhanças; é por meio
da construção de uma representação de si que ambos se caracterizam e se dão a ver para e pelo
outro. Assim como a voz-CL se define como inquieta, áspera e desesperançada, o enunciador
CFA utiliza adjetivos semelhantes para caracterizar as suas ações: “O que sobra é o áspero
do gesto, a secura da palavra” (p. 153 – grifos nossos). Além disso, os dois enunciadores
apontam que, por mais que haja dificuldade de demonstrar afeto por algo ou alguém, já que
suas ações secas e ásperas realizariam, segundo eles, o contrário do que eles sentem, isso não
significa que eles não tenham “muito amor. Amor louco” (ABREU, 2002, p. 153) e “amor
dentro de mim” (LISPECTOR, 1998b, p. 51).
Na comparação entre estes dois trechos, percebemos que o autor-criador CFA – que
é, também o CFA-leitor da obra de CL —, ao escrever sua carta aos pais, um fato concreto,
vale-se de uma situação ficcional, a apropriação da voz-CL, agregando-se a ela para descrever
os seus sentimentos e construir a sua auto-representação. Nesse sentido, assim como visto
anteriormente em relação às citações literais e nomeadas de CL, bem como às menções às
representações de sua vida e de sua obra, é comum que os enunciadores CFA associem uma
ficção (o texto de CL) à representação, na carta, de uma realidade por eles vivida, neste caso,
a dificuldade de demonstrar afeto aos pais, e vice-versa. É por isto que, no momento em que o
missivista escreve “Amo vocês como quem escreve para uma ficção” (ABREU, 2002, p. 153),
ele não está sendo incoerente: no plano da ficção, é possível sanar seus bloqueios afetivos e
concretizar o que seria, no plano real, difícil. Num balanço entre a representação do passado
vivido por ele – em que há o bloqueio afetivo – e a carta como instrumento que possibilita
romper e remediar este bloqueio –, resta a escrita como saldo positivo, já que, além de fazer
a mediação entre a falta de habilidade em se relacionar e a reparação desta falta, o missivista
tem a vantagem de não precisar se despir da persona de escritor para si e para os outros.

Considerações finais

Como vimos ao longo deste trabalho, as expectativas, mitos e projeções de escritor


veiculados pelas personae de CFA, simultaneamente, se fazem e são feitas pela junção entre
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as representações da vida e da obra de CL e as representações da vida e da obra que o autor-
criador faz de si mesmo. Numa perspectiva microestrutural da obra de CFA, podemos dizer
que a retomada de motivos e de situações dramáticas de um texto/discurso para outro, que
auxilia na construção de suas possíveis personae de escritor, não ocorre linearmente, já que
a configuração destas representações esteve submetida aos seus humores, suas necessidades
circunstanciais, seus critérios de seleção e, até mesmo, ao acaso. Numa visão macroestrutural,
percebemos, por meio de sua produção escrita, uma espécie de tela cujas possibilidades de
composição são passíveis, sempre, de rearranjo. É este rearranjo que faz com que sua obra
– e, por consequência, as personae de escritor que nela são engendradas – seja, numa visada
ampla que a compreenda como um sistema, a mesma e outra. É por meio da representação/
apresentação de si e do outro, para si e para o outro, algo deixado como legado por meio
da escrita, que o autor-criador CFA pôde se experimentar atuar como contista, cronista,
missivista e dramaturgo, elucidando, em cada um destes gêneros, o ser contido em potência
nos demais. Nesse sentido, não haveria uma definição estanque de papéis e funções exercidos
por ele, a não ser a permanência de uma posição de base – a de escritor –, a partir da qual se
fazem as demais.
Mesmo devido à impossibilidade de que essas experimentações e (re)combinações
ocorram independentemente da passagem do tempo – afinal, no caso de CFA, foram três
décadas de literatura –, como uma espécie de pintura antiga ou esboço que vem à tona, em
tela reaproveitada, produzindo novos significados, o rearranjo, em nível micro-constelar,
dos motivos e das situações dramáticas que resulta, no nível macro-constelar, na construção
das várias personae de escritor de CFA, não deve ser considerado como algo estanque, pois
aquilo que é considerado como novo num determinado texto/discurso, contém, também, os
restos da formação anterior. Isso faz com que a palavra pentimento ganhe, aqui, o seu lugar de
destaque em nossa compreensão da obra de CFA: ela nos serve, ao mesmo tempo, como um
conceito-chave e como uma metáfora indissociáveis para a inscrição de CFA e da sua poética
do “rastro e do resto” como traço peculiar que lhe imprime uma identidade multifacetada no
sistema literário brasileiro. Portanto, ao contrário do que os conceitos de autor e de autoria
modernos colocam como premissa poética, cuja genialidade reside nos signos da novidade e
da originalidade que se assentam no indivíduo burguês, paradoxalmente, podemos dizer que
a figura do autor CFA se afirma na mistura dos restos de si e das ruínas alheias, retocando
e sendo retocado pela fantasmagoria moderna de autoria, que se vê, simultaneamente,
estilhaçada e projetada em seus fragmentos.

DIAS, E. M. S. Personae in pentimento: Considerations on the Writer Figure in Caio


Fernando Abreu’s oeuvre. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 83-100, 2020.
ISSN 2177–3807.

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Recebido em: 25 nov. 2019


Aceito em: 17 fev. 2020

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Comentário sobre
Poema(s) da Cabra e Comendadores jantando
de João Cabral de Melo Neto

TIEKO YAMAGUCHI MIYAZAKI*


R I C A R D O M A R Q U E S M A C E D O **

RESUMO: O artigo se inspira em dois conceitos de Algirdas Julien Greimas na análise de poemas
de João Cabral de Melo Neto (Poema(s) da cabra; Comendadores jantando). Primeiro no conceito de
“fratura” da obra L’ imperfection (1987), ao examinar como a captação do real pelo ver perfura na
busca do que estaria além da superfície do parecer. Segundo, no conceito de linguagem poética
entendida como aquela em que a redundância valoriza os conteúdos selecionados, em razão da
organização paradigmática da substância, tanto do conteúdo quanto da expressão.

PALAVRAS-CHAVE: Fratura; Guizzo; Imperfeição; Metalinguística; Organização paradigmática.

ABSTRACT: The article is inspired by two concepts by Algirdas Julien Greimas in the analysis
of poems by João Cabral de Melo Neto (Poema(s) da cabra; Comendadores jantando). First in the
concept of “fracture” of the work L ’imperfection (1987), when examining as the capture of the real
through the seeing in the search for what would be beyond the surface of the opinion. Second,
in the concept of poetic language understood as one in which redundancy enriches the selected
contents, due to the paradigmatic organization of the substance, both of content and expression.

KEYWORDS: Fracture; Guizzo; Imperfection; Metalinguistics; Paradigmatic organization.

* Livre-docente em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista ”Júlio de Mesquita Filho”– UNESP
– São José do Rio Preto – 15054–000 – SP – Brasil. E–mail: tymiyazaki@gmail.com
2
Doutor em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – Universidade do
Estado de Mato Grosso – UNEMAT/Tangará da Serra. Professor de Português e Inglês do Instituto Federal do
Mato Grosso – IFMT – Campo Novo do Parecis – MT – Brasil. E–mail: ricj.mt@gmail.com
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Há poucos anos, canais televisivos brasileiros veicularam varias matérias sobre João
Cabral de Melo Neto. Em um vídeo, uma cena: numa cidade europeia – Madri, Paris (?) –
numa sala um encontro de amigos brasileiros, entre eles Vinicius de Moraes que se dispõe a
cantar provavelmente uma nova composição. Ao fundo, Cabral reage amistosamente contra
seu lirismo. E Vinicius lhe dá o troco: falar de cabra? E todos riem. Tinha sentido a referencia
naquelas alturas à cabra. Não a ovelha das fábulas, nem o cordeiro de pratos apreciados de
nossa culinária, mas a cabra, esse animal rústico capaz de adaptar-se a ambientes inóspitos
como a região seca de nosso nordeste. É sobre ela que fala o poeta nordestino em ”Poema (s)
da cabra” (Quaderna - 1959).
A fidelidade de Cabral ao princípio básico de seu anti–lirismo faz com que em seus
poemas prevaleça o ver, sobre outros órgãos do sentido, na percepção e experiência do
mundo. Isso nos leva imediatamente a um livrinho de Algirdas Julien Greimas, muito bem
recebido pela crítica, De l´imperfection, de 1972. Na abertura diz ele:

Todo parecer é imperfeito: oculta o ser: é a partir dele que se constroem um


querer-ser e um dever-ser: o que já é um desvio do sentido. Só o parecer enquanto
o que pode-ser – ou talvez- é apenas suportável.
Dito isso, ele constitui apesar de tudo a condição do homem. Será ele manejável,
perfectível? E, no final das contas, essa cortina de fumaça pode se fender um
pouco e entreabrir-se sobre a vida ou sobre a morte, que importa? (GREIMAS,
1987, p. 9 – tradução nossa)1.

A partir dessas premissas, o semioticista expõe o que denomina ”fratura” e ”guizzo”. A


fratura é um deslumbramento. O guizzo é um tipo dela. Para explicar o ”guizzo” Greimas se vale
do exemplo da rabanada do peixe pulando d’ água, ”como uma vibração prateada e brilhante
que num instantâneo junta o jorro de luz com a umidade da água”. (GREIMAS, 1987, p. 29)
A ruptura, inesperada, entreabre essa ”cortina de neblina” da aparência para deixar a ver e
conhecer o que há atrás dela. A relevância do ver já se destaca no primeiro capítulo da obra –
”A fratura” – em seu subitem – ”O deslumbramento” – em que Greimas analisa a surpresa de
Robinson Crusoé ao ser despertado pelo silêncio de uma gota d´água caindo numa vasilha de
cobre, proporcionando-lhe ”um breve instante de alegria indescritível” (GREIMAS,1987, p.
14). Ou seja, é a visão, não o ouvido, que lhe possibilita essa experiência insólita. O subtítulo
seguinte – sobre o ”guizzo” – focaliza um homem surpreendido pela visão de uma jovem
estendida numa praia. Um seio nu, explica, é um objeto estético, agradável de se ver. Mas o
texto mais surpreendente é o que se denomina ”A cor da obscuridade”, em que aborda um
texto de Junitiro Tanizaki – ”Elogio da sombra”. Nele, ao visitar a Casa de Shimabara, diz
ter percebido ”Ele tinha visto, uma só vez, `uma certa obscuridade de que (ele não pode)

1
No original: «Tout paraître est imparfait: Il cachê l´être, c´est à partir de lui que se construisent un vouloir-être
et un devoit-être, ce que est déjá une déviation du sens. Seul le paraître en tant que peut être – ou peut-être – est
à peine vivable. // Ceci dit, Il constitue tout de même notre condiction d´homme. Est-il pour autant maniable,
perfectible? Et, pour solde de tout compte, ce voile de fumée peut-il se déchirer um peu et s´entr´ouvrir sur la
vie ou la mort, qu´import?» (GREIMAS, 1987, p. 9).
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102
esquecer a qualidade’.”2 (GREIMAS, 1987, p. 14 – grifo do autor). Em seu texto Tanizaki
pergunta: ”Já viu você que me lê, leitor, a cor das trevas à luz de uma chama?”(GREIMAS,
1987, p. 47 – tradução nossa)3. Mas a análise de Greimas não permanece só no olhar: faz
emergirem para a experiência estética – graças à fratura – todos os demais sentidos.
Além desse papel primordial atribuído ao ver na produção e leitura da fratura, há outra
observação que interessa muito. Sobre a reação de Robinson, observa Greimas:

A relação que a experiência ”vivida”, entretanto, como se ela não pudesse


ser dada diretamente, só é retomada mais tarde, quando ele se pôs a refletir
sobre ”o êxtase de que fora tomado” e a lhe dar um nome, chamando-o”um
momento de inocência”. É então após isso, dando-lhe a forma de uma lembrança
cognitivamente elaborada, que Robinson, delegado pelo autor, tentará lhe
elaborar a representação, evocando, como corolário do silêncio e obtida graças a
ele, a pausa da ”Ilha inteira” (GREIMAS, 1987, p. 14 – grifos do autor)4.

Apesar da diferença notável entre o texto de Greimas ao analisar os fragmentos


escolhidos e Cabral, as anotações transcritas lançam luz à leitura e vivência dos poemas
do segundo. A primeira contribuição se refere à prevalência do olhar na estruturação dos
poemas e do próprio desenvolvimento discursivo, para verificar-se como se dá a fratura na
”neblina do parecer”, desvelando o possível ser na experiência estética; a segunda, contida
na última citação, sobre o cuidado de sempre diferenciar o momento da experiência real do
de sua representação no ato da escritura. Pressuposta essa distinção em qualquer texto, ela
aparece marcada no presente conjunto de poemas de Cabral dedicados à cabra.
Composto de nove poemas (CABRAL, 1994, p. 254), ”Poema(s)da cabra” é aberto
por um poema em itálico e fechado da mesma forma, indicando uma função distinta deles,
conforme se comprova também pela ausência de enumeração que marca os demais. Na
verdade, posicionados assim na sequência das unidades, e distinguidos visualmente pela
fonte em itálico, eles compõem a moldura enunciativa ao corpo do conjunto. Moldura que
deve orientar a leitura do bloco. Este é o que o abre:

Nas margens do Mediterrâneo


não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo


não se vê um palmo de pedra

2
No original: «une seule fois, ‘certaine obscurité dont (il ne peut) oublir la qualité’.» (GREIMAS, 1987, p. 14 –
grifo do autor).
3
No original: «Avez-vous jamais, vous que me lisez, vu `la couleur des ténèbres à la lueur d’une flamme?»
(GREIMAS, 1987, p. 47).
4
No original: «La rélation de l’expérience”vécu”elle même, cependant, comme si ele ne pouvait être rendue
directement, n’est reprise que plus tard, alors qu’il s’est mis à réfléchir sur”l´extase qui l’avait saisi”et à lui chercher
um nom, en l’appelant”um moment d’innocence”. C’est donc apès coup, en lui donnant la forme d’um souvenir
nostalgique cognitivement elabore, que Robison, délégué par l`auteur, essaiera d’en élaborer la representation, en
évoquant, comme corolaire du silence et obtenue grâce à lui, la pause de ”Ilê tout entière”» (GREIMAS, 1987, p. 14).
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103
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha


pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra


por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra. (MELO NETO, 1994, p. 254).

Ainda que sem o acento lírico do maranhense, principalmente esses dois poemas de
abertura e fechamento fazem pensar em ”Canção do exílio” às avessas por um contraste
fundamental. No poema de Gonçalves Dias, o lá é marcado pelas coisas distinguidas
hiperbolicamente, em contraste com o cá, sempre minimizado. O que prevalece na composição
é a subjetividade do enunciador, dominada pela saudade do país, exatamente no estilo pouco
apreciado por Cabral. Mas é preciso entender que o cá é imprescindível para a expressão
do sentido do conteúdo manifestado. Não é possível no poema do poeta romântico o lá
sem o cá. Da mesma forma, a paisagem das margens do Mediterrâneo que abre o primeiro
poema de Cabral tem a mesma função: a paisagem do contexto presente não serve só como
contraste, é ela que sustenta todo o movimento subjetivo do enunciador, da mesma forma
ela não existiria plenamente para o sujeito sem a lembrança do lá. Não por acaso é referida no
primeiro verso da primeira estrofe e retomada no primeiro verso da segunda. Além de um
recurso estilístico muito praticado por Cabral, essa reiteração é aqui uma necessidade prática
discursiva do sujeito que lembra e se expressa. A paisagem do Mediterrâneo, presença física,
imediata, não é inspiração mas aquilo a que se agarra o sujeito para que possa assegurar a
lembrança do lá, que de outra forma se escaparia esfumando-se. Se em Gonçalves Dias o
resultado é a manifestação da saudade, sentimento que não precisa de muito para expressar-
se – daí as formas genéricas das coisas nomeadas – em Cabral há um sentimento difícil de
apreender-se pela expressão discreta. Há uma saudade pela distância do lá, mesclada de
uma boa dose de culpa, de estar aqui e não lá. Um lugar marcado não pela abundância que
Gonçalves quer fazer crer, mas exatamente pela carência.“É depois que, dando-lhe a forma
de uma lembrança nostálgica cognitivamente elaborada, Robinson, delegado pelo autor
[...”]5, diz Greimas (1987, p. 14) sobre a narrativa de Michel Tournier. Talvez também aqui
”uma lembrança nostálgica” mas acima de tudo ”cognitivamente elaborada” seja em Cabral a
característica predominante.
O primeiro verso localiza imediatamente o lugar de onde vê e ponto de partida para
a elocução; ao mesmo tempo indica a distancia em que o sujeito enunciador se coloca com
relação ao objeto focado: ”Nas margens do Mediterrâneo/ não se vê um palmo de terra”.

5
No original: «C’est donc apès coup, en lui donnant la forme d’un souvenir nostalgique cognitivement elaboré,
que Robison, délégué par l`auteur, [...]» (GREIMAS, 1987, p. 14). Obs.: Greimas se refere à personagem da obra
Vendredi ou Les limbes du Pacifique (1967), de Michel Tournier.
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Também estas são já quase ausências, ainda que mais recentes. Nessa reconstituição,
declaradamente a apreensão do contexto físico é feita pelo olhar que logo vai em busca
do detalhe que caracteriza a totalidade; detalhe apreendido por uma expressão usual para
marcar o excessivo, o que não deixa dúvida, nem exclusão, a medida exata:”um palmo”de
terra. O sujeito não é um sujeito contemplativo, postado às margens apreciando a paisagem
como turista. É um sujeito atento, acima de tudo um sujeito cognitivo que ativa o órgão mais
imediato nessa atividade. Ele olha.
A retomada da palavra ”terra” no verso seguinte, mas com sentido distinto, frisa pela
diferença o mesmo, a mesma coisa. Esse mesmo que se sublinha pela animização graças à
função atribuída a ela, terra, ator que assume a posição de sujeito, totalmente ativo, dotado
não só de querer mas também de poder e saber-fazer; a terra, aplicada sem desvio, tem um
programa: apodera-se do todo, sabe e pode converter tudo em pedra. Além da anadiplose
quase no início do verso seguinte, reforça-se a argumentação pela rima entre ”terra” e
”pedra” no segundo e quarto versos. A relação intrínseca dos conteúdos está dada nessa
correspondência aliterante: ”[...] palmo de terra / que a terra tivesse esquecido / de fazer
converter em pedra.” (MELO NETO, 1994, p. 254).
Retomados na segunda estrofe os dois primeiros versos da primeira, a percepção do
olhar do enunciador se dá conta de uma permuta que vai ser respeitada no desenvolvimento
da argumentação: a terra pode ser substituída por pedra, pois agora já se equivalem na função
de sujeito ativo. Cada qual em seu domínio faz a mesma coisa.
É pela comparação com algo ausente que segue a estrofe terceira: o contraste entre o
escarpado existente e a suavidade ausente (da serra), do que poderia ter sido. Ele prepara a
entrada da personagem animada que, assim já antecipada, recebe a sua caracterização mais
forte, metonimicamente: ela é ”fera”. Ou seja, ainda não ”cabra”. A intrincada relação entre
geografia e personagem se declara pela retomada da mesma estrutura expressiva de quando
o sujeito é ainda a terra: ”[....] um palmo de pedra / que a pedra tivesse esquecido / de ocupar
com sua fera.” (MELO NETO, 1994, p. 254).
Aí o enunciador precisa reiterar quase inteiro o segundo verso, aquele em que a
diferença é anotada, para, voltando ao início do raciocínio, poder conduzi-lo seguramente:
de forma certa, fazendo a ponte entre o já dito –”pedra” – e aquilo a que se vai dar entrada
– ”fera”. A amarração paradigmática é atribuída três vezes à rima – ”pedra” – “fera” – “seja”,
antecipando a do último verso: ”negra”. Isto é, é enlaçando o dito sobre a geografia escarpada,
toda terra/pedra, reiterando isso, é que o poema apresenta o elemento mais importante:
a verdadeira protagonista da história que ali se desenvolve cotidianamente, dedicando-se
também ela à mesma coisa: a cabra negra.

Não se vê um palmo
Por mais pedra ou fera que seja,
Que a cabra não tenha ocupado
Com sua planta fibrosa e negra (MELO NETO,1994, p. 254).

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Vejamos agora como se fecha a moldura enunciativa, com o último poema. Não mais
a terra empedrada é o que chama a atenção mas o mar:

O Mediterrâneo é mar clássico,


em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não de piçarra do Sertão (MELO NETO,1994, p. 255).

O sujeito consegue espraiar o seu olhar para além das margens, e procede da mesma
forma que na introdução. Primeiro o mar em sua amplidão, mas o seu efeito só pode ser
apreendido e manifesto recorrendo ao conhecimento da cultura da civilização ocidental.
Melhor ainda: é assim que ele logo se impõe. Ou seja, o mar é reconhecido localizado num
paradigma: é o ”mar clássico”, de material nobre, ”de mármore”, assim como a sua coloração
”azul”. E o ritmo dos dois primeiros versos parece conduzir à contemplação, não à exploração.
No entanto esse ritmo e expectativa são quebrados no terceiro verso, com uma afirmação
que chega sem avisar: ”em nada me lembra”. A partir daqui é a diferença que prevalece.
Seguindo a mesma estratégia, do geral vai-se ao pormenor: as ondas, que não desmentem
o traçado geral, acompanham o desenho do mar a que pertencem. E surpreendentemente não
remetem a mar do Nordeste, presente afinal pelo menos nos famosos poemas de A Educação
pela pedra :”O mar e o canavial” / ”O canavial e o mar”. Recuando, fiel o poeta à sua terra e si
mesmo, é no interior do estado que o outro termo da comparação é buscado. E nessa busca
não há o mais da Canção do Exílio, mas o menos, conforme expressão de Secchin: os rios
sem nobreza, sem classe, não educados do Sertão, mais especificamente o rio Pajeú, sempre
lembrado. Além desse ”despenteado” proletário das águas, da não vaidade, do estar à vontade,
o mais interessante é a observação feita como se quase esquecida, discreta, como se à margem:
”[água] se existe”. Ou seja, à perenidade do Mar Mediterrâneo se opõe a existência pobre,
quase negada dos rios intermitentes do Nordeste. Na penúltima estrofe, volta a geografia
deixada um pouco de lado, cedendo lugar ao mar: as margens do Mediterrâneo também são
desertas, mas nem então o Mediterrâneo se assemelha ao Sertão: a terra assegura nobreza ao
primeiro, a ela não se iguala a piçarra – selvagem, agreste, ferina - do segundo.
Esses dois poemas envolvem os nove que devem focar verdadeiramente o motivo
desse conjunto, a cabra. É a isso que se refere a última quadra do poema–fecho: das cabras do
Mediterrâneo só é possível falar ”em termos da do Moxotó”.
O primeiro poema se inicia reiterando a característica atribuída à cabra no último verso
do poema de introdução: a coloração negra. Mas no poema-introdução o negro aparece
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ocupando uma posição sintática secundária, uma sinédoque da cabra – ”planta fibrosa e
negra”. Agora ela tem posição de destaque, indicando o todo: ”A cabra é negra”. É, entretanto,
uma descrição de superfície, o parecer do animal. E todo o poema, então, se dedica a perfurá-
lo na apreensão do que está mais além, do que se esconde. Expresso pelo lexema ”negro”,
reiterado, salvo engano, onze vezes. O lexema é uma denominação cujo significado é o foco,
que se desdobra em definições que se encadeiam. Na primeira estrofe, o negro da cabra ≠ do
ébano / do jacarandá ≠ mais azul / mais roxo. // negro da cabra = do preto, do pobre, pouco,
poeira (= cinzenta), // pardo (= pardo), ferrugem (= fosco).
Segue-se uma sequência de termos que se encadeiam em aliterações, mas perdem em
concretude material, referencial. Na terceira estrofe, pula-se para a cor da pele e para o social
(negro do pardo, de segunda classe, do inferior, do gasto) até chegar a negro igual à sua
própria ausência: “negro do feio, às vezes branco [...] Disso que não pode ter cor/porque em
negro sai mais barato.” (MELO NETO, 1994, p. 255 – grifo do autor).
Mas o mais interessante por original e inesperado, após essa lista disfórica, é o terceiro
poema. Nele a figura central é o fogo/sul/sol, que toma como contrapartida negativa a
equação negro = noturno. O negro da cabra é: solar, luminar. De onde as derivações: negro
do carvão, hulha, coque, pólvora, para chegar à permuta: ”negro da vida” (“não de morte”).
Essa percepção positiva prossegue quando o negro passa a denominar a natureza
da cabra. É quando a cor se faz equivalente a dureza e do mais profundo (“alma-caroço”,
”alma córnea”). E sintomaticamente, por contraste, novamente aqui se evoca o inexistente,
a carência: o líquido (“sem orvalho”), o vegetal, o flexível. É a natureza não domesticável
da cabra o aspecto enfocado no quarto poema, o que faz vê-la como não amiga do homem,
”jamais contemplativa”, e de onde decorre a expressão ”tem parte com o Diabo”. Nesse percurso,
é só no último verso do oitavo poema que o homem nordestino aparece relacionado a ela:
”O nordestino, convivendo-a, / fez-se de sua mesma casta”. Expressões grifadas pelo próprio
poeta fecham cada unidade-poema.
E nessa trajetória especulativa chega-se ao nono poema, em que se desenvolve a
conclusão do poema anterior: ”O núcleo de cabra é visível/ debaixo do homem do Nordeste.”
// Se adivinha o núcleo de cabra / [...] que reponta sob o seu gesto. [...] debaixo do próprio
esqueleto, / no fundo [...]”. Até chegar à conclusão na última estrofe: ”A cabra deu ao
nordestino / Esse esqueleto mais de dentro: / O aço do osso, que resiste // Quando o osso
perde seu cimento.”(MELO NETO, 1994 , p. 255 – grifo do autor).
“Debaixo de” pode tomar-se como o signo que abriga vários sinônimos tais como
”estofo”, ”núcleo”, ”esqueleto”, ”fundo”. Mas é com a última expressão grifada ”o aço do
osso” que Cabral parece ter chegado à mais apropriada para a definição do Nordestino. Já
anunciada em:

A cabra é trancada por dentro.


Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita (MELO NETO, 1994, p. 255).

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Ou seja, todos os demais poemas, nessa caminhada, são fraturas no parecer que
permitiram chegar a ”esse osso aço”, tão persistente como as sibilantes. Não fraturas luminosas
como as do guizo, mas da verruma que perfura instigado pelo amor, não do lirismo subjetivo,
mas do conhecimento. Como que inserido entre os dois poemas em itálico, esse conjunto de
poemas enumerados perfaz, portanto, uma trajetória que vai do mais superficial, do visto até
o invisível, não da cabra, mas do homem, do homem nordestino pedra. Não tinham razão,
portanto, os amigos de Cabral.
Com toda certeza, essa temática pedra/nordestino remete imediatamente a A educação
pela pedra, de 1966, e dela a

O sertanejo falando

A fala a nível do sertanejo engana:


as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glacê
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

Daí porque o sertanejo fala pouco:


as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem que pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho (MELO NETO, 1997, p. 4).

Não mais as lições pedagógicas mas o próprio sujeito delas em desempenho prático
é que se focaliza agora. Em vários momentos ocorre a identificação entre o sertanejo e a
pedra. Não como simples metáfora expressiva; mas de tal maneira que a palavra supersigno
”pedra” ultrapassa o que se entende como seu referente para indicar uma essência também
aqui não facilmente identificável, como o negro nos Poema(s) da cabra. Daí essa sequência
de termos dele aparentedos ou combinados, tanto da norma popular como da culta: ”dura”,
”endurece”, ”caroço”, ”amêndoa”, ”pétrea”, ”pedrenta”, e ainda a palavra pedra em função
adjetiva: ”amêndoa pétrea”, ”caroço de pedra”, ”expressar em pedra”, ”idioma pedra”, ”palavras
de pedra”, de tal maneira que o referente empírico se dilui para prestar-se à variação desses
contextos; variação que no final obriga a retornar ao começo para reconsiderar o seu sentido.
Na imagem que se quer criar do sertanejo o mesmo denominador comum já visto se
apresenta: a oposição externo/interno ou fora/dentro, para significar a oposição entre o visível
do sertanejo e aquilo que ele traz invisível. Esse contraste fundamenta o discurso desse poema.
O poema intitular-se ”O sertanejo falando” chama a atenção porque, além de evidenciar
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a comunicação, relevante para a poética de Cabral, e a didática tematizada, de insistir na
questão do discurso – metaforizado em ”Rio sem discurso”, ”Tecendo a manha” – coloca
essa personagem em uma situação/ação não predominante em sua vida: o sertanejo é antes
um silencioso. E com razão. A fala do sertanejo só é possível após todo um trabalho de
competencialização, não só do próprio sujeito falante mas do instrumento com que o faz. É
preciso adequar, saber adequar esse instrumento como condição de sobrevivência do sertanejo
enquanto sujeito que fala. O instrumento qualificado como feito de arestas agressivas tem que
ser limado, harmonizando-se a todo o aparelho fonador: não ferir a língua essa é a questão.
A adequação tem que ser feita em ritmo certo, devagar. O custo do trabalho imposto resulta
em outro traço do sertanejo: a economia da fala, ele fala pouco.
A decantada fala demorada do sertanejo que se reflete no seu jeito de ser se explica
assim: ele não só doma o instrumento, como acaba domado por ele: daí a sua fala mansa,
seu andar devagar, traços com que normalmente o sertanejo é identificado, aqui expressos
por imagens apoiadas pela isotopia do maleável, do dócil, do liso e contínuo. O próprio
sistema lingüístico, o instrumento de expressão e manifestação, se torna da mesma natureza,
é ”idioma pedra”.
Essa essência que se tenta expor do sertanejo foge à nomeação, como o negro da cabra.
Também aqui as aproximações metafóricas acabam não especificando esse núcleo que se
identificaria como pedra, pelo contrário torna-o inominável.
Uma aproximação com ”The country of the houyhnhnms” seria iluminadora. Nele, a
pedra se alia a outra simbólica do nordeste:

“The country of the houyhnhnms”

Para falar dos Yahoos, se necessita

Que as palavras funcionem de pedra:


Se pronunciadas, que se prenunciem
Com a boca para pronunciar pedras.
E que a frase se arme do perfurante
Que tem no Pajeú as facas-de-ponta:
Faca sem dois gumes e contudo ambígua,
Por não se ver onde nela não é ponta.

2.

Ou para quando falarem dos Yahoos:


Furtar-se a ouvir falar, no mínimo;
Ou ouvir no silêncio todo em pontas
do cacto espinhento, bem agrestino;
aviar e ativar, debaixo do silencio,
o cacto que dorme em qualquer não;
avivar no silencio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não (MELO NETO, 1997, p. 26).

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Iluminadora porque o poema troca a posição dos interlocutores e do objeto em questão:
não se trata mais do sertanejo enunciador, mas do sertanejo objeto enunciado. Trabalho
análogo ao do sertanejo em adequar o aparelho fonador se exige daquele que dele fala. E as
expressões utilizadas para expressar essa adequação, apesar da aparência de propriedade, não
o são: as palavras devem ”funcionar de pedra”, ”boca para pronunciar pedras”. Ainda que o
resultado dessa combinatória de palavras seja uma frase (“E que a frase se arme do perfurante”)
ela tem que ser eficaz, como sujeito dotado da competência necessária: e a isotopia expressiva
é a da ponta, do agudo, do ferino. Clara na figura da faca, e mais que faca, faca-de-ponta, não
qualquer uma. Específica de Pajeú, é enganosa: não desfaz mas manifesta a sua ambiguidade.
Os dois últimos versos – ”Faca sem dois gumes e contudo ambígua, / Por não se ver onde
nela não é ponta.” – se embaralham: faca sem dois gumes / mas toda gume; toda ponta / toda
ponta invisível. Metáfora novamente do contraste entre o visível e o invisível do sertanejo,
e a má leitura que dele se faz.
Na segunda quadra a outra ponta da comunicação se avalia: o ouvir. E aí uma nova
figura vem ajudar; nela se reconhece aquele que fala no silêncio, pelo silêncio. Não se diz
”ouvir o silêncio”, mas ”ouvir no silêncio”. Da mesma forma que a ambigüidade da faca, nem
o cacto, material, presente, nem o seu silencio são metáforas de nordestino; o abaixo deles,
tão marcado em ”Poema(s) da cabra”, metaforizável, ele sim, pelo ferino, agreste, agressivo
do cacto: isso que o poema denomina o ”cacto não”.
Após esse percurso em que se define o sertanejo, passemos para o seu contexto social.
E a pergunta que se coloca é a seguinte: até agora o poeta viera falando de terceiros - da
cabra e do sertanejo – definidos como de pedra, neste novo poema no seu estilo poético se
flagram os ensinamentos apresentados? Se o seu estilo apresenta traços da dureza da terra, da
ausência da leveza do vegetal e do molhado, dessa dualidade visível/invisível. Para examinar
essa questão, uma boa escolha dentro do domínio d’ A educação pela pedra é o poema em que
o protagonista é o pólo da abundancia representado pela figura do Comendador, a quem
o sertanejo funciona como aquele que, por oposição, lhe confere sentido. Ou seja, não há
comendador sem sertanejo.

Comendadores jantando

Assentados, mais fundo que sentados,


eles sentam sobre a supercadeiras:
cadeiras com patas, mais que pernas,
e de pau-d’aço, um que não manqueja.
se assentam tão fundo e fundadamente
que mais do que sentados em cadeiras,
eles parecem assentados com cimento,
sobre as fundações das próprias igrejas.

Assentados fundo, ou fundassentados


à prova de qualquer abalo e falência,
se centram no problema circunscrito
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que o prato de cada um lhe apresenta;
se centram atentos na questão prato,
atenção ao mesmo tempo acesa e cega,
tão em ponta que o talher se contagia
e que a prata inemocional se retesa
Então, fazem lembrar os do anatomista
o método e os modos deles nessa mesa:
contudo, eles consomem o que dissecam
(daí se aguçarem e, ponta, em vespa);
o prato deu soluções, não problemas,
e tanta atenção só visa a evitar perdas:
no consumir das questões pré-cozidas
que demandam das cozinhas e igrejas. (MELO NETO, 1997, p. 38 – grifo do autor).

O poema focaliza à distância uma cena emblemática: o jantar de comendadores do


Nordeste, cuja definição é expressa nas imagens da cadeira, da sua postura e da figura
nuclear do prato. Primeiro uma descrição que funciona como uma definição: ”Assentados,
mais do que sentados / eles sentam sobre supercadeiras". A escolha ”assentados” já indicia
uma singularização – por que não ”sentados”? – que é seguida pela tradução, ”mais fundo do
que sentados”. Esta por sua vez é esclarecida por um sintagma em que se enfatiza o modo
do sentar pela recorrência do mesmo termo: ”sentam sobre supercadeiras”. Um motivo
que se retoma na segunda parte da estrofe, onde o sintagma ”mais fundo” é também ele
objeto de um esclarecimento metalingüístico, segundo o qual é equivalente a ”tão fundo e
fundadamente”; surpreende-se aí a necessidade de criar um novo léxico capaz de expressar
o realmente desejado: ”fundadamente”. Nele se reconhece uma nova significação que se
acrescenta a ”fundo”: a de ”fundar” que pavimenta o caminho para um novo termo e um
novo ramo isotópico: ”assentados com cimento”. Ou seja, a isotopia da amarração bem-feita,
da imobilidade, da imobilização, próprias da construção civil, permite a entrada da idéia de
grupo, ideológico, social e econômico: ”nos fundamentos das próprias igrejas”.
A segunda estrofe começa como se voltando para a abertura da anterior. No entanto,
as combinações de palavras-chave não são exatamente iguais; elas constituem uma releitura.
Dividem o verso em duas partes em uma relação metalingüística: ”Assentados fundo ou
fundassentados”. Nesta recuperação, o verso adquire a função de um resumo do que já estava
expresso em ”assentados”, de modo que a isotopia, não apenas denotativa mas conotativa,
surja agora enriquecendo a significação social, emblemática do cena: ”a prova de qualquer
abalo ou falência”.
Feito isso, a atenção se transfere para outro componente do jantar: a mesa, o prato,
os talheres. Seria conveniente lembrar que no lexema ”comendador” se reconhece – uma
permissão poética – a isotopia alimentar: ”come /ndador”. Ironiza-se, então, quando o objeto
da ação – o jantar – se denomina ”problema”, que ecoa no sintagma de um campo agora híbrido
– ”questão prato”, do alimentar e do social e econômica. Considerando o prato como o objeto
primeiro, concreto da discussão, o discurso se desenvolve amarrando-se foneticamente por
aliterações ao redor dos fonemas de ”centrar”. Estes remetem expressivamente a ”sentar-se”,
tornando-os equivalentes, e a espaço fechado, pequeno, que ”centrar” divide com ”prato”.
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Essa centralização dentro, portando, de um círculo restrito vai-se contaminando no
interior do universo semântico, encaminhando-se para a atitude e comportamento do sujeito
do jantar. A palavra ”centrar”, igual que a ”sentar/centrar”, torna-se paradigmaticamente
equivalente a ”atento”, ”atenção”. Assim, ao abrir o verso seguinte, ”atenção” recupera o
significado do verso anterior e, no mesmo passo, abre-se para sua própria qualificação,
aprofundando-se, especificando-a: ”ao mesmo tempo acesa e cega”. A rima que aproxima
as duas palavras torna a antítese semântica mais intrigante, implantando brecha em seu
sentido. Mas é o primeiro termo – ”acesa” – que prevalece aqui, razão da ironia das imagens
que o iluminam como efeito da contaminação, ao excessivo que atinge o menos humano,
o mineral (“tão em ponta que o talher se contagia / e que a prata inemocional se retesa.”).
Em imagens expressivamente motivadas pelo aspecto visual do grafema /t/, harmônico em
relação à sonoridade – dental, explosiva – do fonema, ”atenção” chama ”tempo” que se une a
”tão”, seguido de ”ponta”, ”talheres” e ”retesa”.
A segunda parte da estrofe, como em outros poemas de Cabral, é caracterizada pela
função de concluir o raciocínio (“Então”). Seguindo o princípio de construtor de poemas, o
discurso que veio amarrando-se é subdividido e obedece coerentemente à mesma construção
sintática. Primeira conclusão:

Então, fazem lembrar os do anatomista


o método e os modos deles nessa mesa:
contudo, eles consomem o que dissecam
(daí se aguçarem e, ponta, em vespa); (MELO NETO, 1997, p. 38).

E a contradição – entre o conhecimento perseguido pelo cientista, cujos modos os


comendadores parecem copiar, e o autocentramento egoísta, em que o produto é por eles
apropriado – ainda é acompanhada de uma explicativa na qual o agudo se enriquece com
uma figura inesperada ("vespa"), totalmente agressiva.
Para a conclusão final, o poeta reúne figuras centrais da primeira estrofe ― “o prato
deu soluções, não problemas, / e tanta atenção só visa a evitar perdas:” ― juntando as duas
linhas de sentido, embaralhadas ao longo do poema: “no consumir das questões pré-cozidas
/ que demandam das cozinhas e igrejas.” (MELO NETO, 1997, p. 38).
Esta segunda parte da segunda estrofe se inicia com o conectivo ”Então”, que indica a
relação lógica das duas seqüências, do que já foi exposto e do que o será. Estão sintaticamente
diferenciadas, embora não inteiramente, por ponto e vírgula. Quatro versos se reservam para
as duas, separados – por igual e por dois pontos – os dois primeiros dos seguintes: a relação
lógica da conclusão parcial se reitera na conclusão final, até que seja sinteticamente encerrada
por um sintagma (“que demandam de cozinhas e igrejas”). A primeira figura remete à isotopia
alimentar e a segunda, à econômica e social, aos comandantes glutões, que circunscrevem sua
preocupação e atividade a si mesmos e ao grupo. No poema a cena alimentar mantém a sua
autonomia de sentido mas ao mesmo tempo é alegoria da segunda significação.
Está aí uma estrutura sintática que exemplifica uma das estratégias da construção
racional do discurso poético, em que as retomadas, as novas remissões têm o sentido de
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equivalências, que reafirmam o mesmo. O desenvolvimento sintagmático do discurso na
realidade acolhe e abriga, confere expressão a correspondências paradigmáticas.
Como acontece com outros poemas, este recebe uma segunda versão:

Duas fases do jantar dos comendadores

Assentados, mais fundos que sentados,


eles sentam sobre as supercadeiras:
cadeiras com patas, mais que pernas,
e de pau-d´aço, um que não manqueja.
Fundassentados se abrem: todoabertos
ante a mesa, ainda uma mesa-de-espera.
e pré-abertos, para as ótimas opções
se mini-ultimando na cozinha e adega;
almiabertos para que nada lhes escape.

Assentados fundo, ou fundassentados,


à prova de qualquer abalo ou falência,
se centram no problema circunscrito
que o prato de cada um lhe apresenta.
Fundassentados se fecham: revestindo,
contra tudo em torno, bem carangueja,
a carapaça que usam, dentro do prato
e de outros círculos e áreas defesas:
se fecham: erguem fronteiras no prato,
se entrincheiram atrás das fronteiras:
se fecham até de poros, o que só fecham
quando ouvem sermão de outras igrejas. (CABRAL, 1997, p. 38).

Pelo título e inclusive pela disposição dos poemas no livro, este é uma nova versão
de ”Comendadores jantando”. E a relação entre eles está declarada na retomada, senão de
versos, de conjunto inteiro de deles, como os que constroem a cena propriamente do jantar,
como os que abrem tanto uma estrofe quanto a outra. O que diferencia é o aspecto dessa
cena em que se fixa a atenção. Agora, é a disposição anímica que se ironiza mais fundo,
por aguçada pela impaciência glutona, não justificada senão pela cegueira do egoísmo. A
expressão nova para essa espera – ”todoabertos” – um sintagma em que a fusão das duas
palavras justifica as retomadas metalingüísticas – é um expediente formal privilegiado na
segunda parte da estrofe: ”mesa-de-espera”, ”pré-abertos”, ”entreaberto”, ”almiabertos”. A
dosagem na coloração ideológica faz-se mais forte, não se disfarça na elegância do dizer: daí
a insistência numa figura presente no poema anterior – a borda circular do prato – cercada
de um conjunto maior de termos que, ao reiterá-la, parecem diluir a precisão e a contenção
da ironia fina da versão anterior. A circularidade da borda é assimilada num universo mais
violento como fronteira de área belicosa, cuja fortaleza interior, de resistência, encontra na
imagem do caranguejo e da carapaça a sua justeza. Com ela se sustenta o contraste isotópico
entre as duas estrofes, ou entre dois momentos da argumentação.
Pode-se aceitar a denominação da poética de Cabral como anti-lirismo. No entanto,
dificilmente se aceitaria classificar os seus poemas como não líricos. Sabe-se da recusa do
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poeta a falar de si próprio, de sua vida particular. O lirismo em sua obra pertence à dimensão
enunciativa. Ele nasce com a subjetividade que se vai conformando na medida em que se
desenrola o discurso poético. Um discurso que parece alimentar-se de um certo sentimento
de culpa, de filho distante de sua terra, de seu lugar. Tanto que em seus poemas – pelo menos
nos aqui analisados – o sujeito enunciador se posta à distancia, e daí desenvolve, como diz
Greimas, todo um trabalho cognitivo com que elabora a memória do vivido e conhecido.
Nessa atividade, o sujeito é antes de mais nada sujeito da visão: ele vê. É a partir de então
que se encontra e se confronta com o real. Na expressão desse real, o sujeito é antes de mais
nada aquele que cava. Jogando-se numa exploração exaustiva das possibilidades lingüísticas, de
figuras da velha retórica, o poeta parece desprender os pés do chão temático. É saindo do real,
captado em características materiais, que a abstração dele lhe possibilita alcançar significações
simbólicas, alegóricas que, no entanto, produzem a volta do texto ao ponto de partida.
Talvez não seja justo dizer que nos poemas analisados ocorram fraturas no sentido
greimasiano do tipo “guizzo”, luminoso como o salto do peixe na água. Mas provavelmente
seria correto que se identificam vários momentos – se não no poema todo – que lembram a
experiência de Tanizaki, o da “cor da obscuridade”. Para exemplo, a imagem do cacto: “avivar
no silencio os cem espinhos / com que pode despertar o cacto não” (MELO NETO, 1997, p. 26).
Evoquemos, para concluir, novamente Greimas que, no capítulo “La linguistique et la
structure poétique” de Du sens. Essais sémiotiques (1970), diferenciava:

A comunicação lingüística envolve, em geral, uma forte redundância que


pode ser considerada como uma ”necessidade a ganhar” do ponto de vista da
informação. A originalidade dos objetos ”literários” (o termo é completamente
inadequado) parece poder definir-se por outra particularidade de comunicação:
o esgotamento progressivo da informação correlativa ao desenvolvimento do
discurso. Este fenômeno geral se encontra sistematizado no fechamento do
discurso: este, impedindo o fluxo da informação, da uma nova significação
à redundância, que, em lugar de constituir uma perda da informação, vai ao
contrário valorizar os conteúdos selecionados e fechados. O bloqueio converte
aqui o discurso em objeto estrutural e a história em permanência. (GREIMAS,
1970, p. 272 – tradução nossa)6.

Ou seja, o princípio estruturador da poética de Cabral assim se explicaria: “[...] As


relações poéticas têm por função a organização paradigmática da substância investida, tanto
do conteúdo como da expressão (GREIMAS, 1970, p. 276 – tradução nossa)7.

6
No original: «La communication linguistique comporte, de façon générale, une très forte redondance que
l’on peut considérer comme un”manque à gagner”du point de vue de l ´information. L´originalité des
objets”littéraires”(le terme est absolumente imprope) semble pouvoir se definir para une autre particularité de
la communication: l´épuisement progresif de l ´information, corrélatif du déroulement du discours: celle-ci,
arrêtant le flot des informations, donne une nouvelle signification à la redondance, qui, au lieu de constituir une
perte d ´information, va au contraire valorizar les contenus sélectionnés et clôturés. La clôture transforme donc
ici le discours en objet structurel et l´histoire en permanence.»(GREIMAS, 1970, p. 272).
7
No original: «[…] Les relations poétiques ont donc pour fonction l´organization paradigmatique de la substance
investie, aussi bien celle du contenu que celle de l éxpression.» (GREIMAS, 1970, p. 276).
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MIYAZAKI, T. Y.; MACEDO, R. M. Commentary on Poema(s) da cabra and Comendadores
jantando by João Cabral de Melo Neto. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 101-
115, 2020. ISSN 2177–3807.

Referências

GREIMAS, A. J. Du sens. Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1970.

______. De l ímperfection. Périgueux: Pierre Fanlac, 1987.

MELO NETO, J. C. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997.

______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

TOURNIER, M. Vendredi ou Les limbes du Pacifique. Paris: Gallimard, Folio, 1967. p. 92–95.

Recebido em: 23 abr. 2020


Aceito em: 27 mai. 2020

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Dança da morte, escrita da vida: narrativas da
AIDS, espaço biográfico e escritas de si nas
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert

ANDRÉ LUÍS GOMES DE JESUS*

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos do romance À l’ami qui ne
m’a pas sauvé la vie (1990), de Hervé Guibert, e o conto “Depois de agosto” (1995), de Caio Fernando
Abreu. Na obra dos dois escritores há um entrecruzamento entre vivência factual e trabalho
ficcional que os insere no campo sempre problemático das chamadas escritas de si. A emergência
da concepção do espaço biográfico (ARFUCH, 2010) como um conjunto de procedimentos
descontínuos que se configuram na estratégia de narrar a si mesmo explica, em certa medida, tanto
o gesto de Guibert de narrar a si mesmo a partir de um discurso aparentemente referencial quanto o
apagamento das marcas da vivência factual, procedimento comum à obra de Abreu. Nesse sentido,
as obras de ambos os escritores parecem confluir para uma noção de resistência à morte e, ainda,
para a valorização da instância autoral enquanto portadora do gesto de narrar.

PALAVRAS-CHAVE: AIDS; Autoria; Caio Fernando Abreu; Hervé Guibert; Morte.

ABSTRACT: The present work aims to analyze some aspects of Hervé Guibert's novel À l'ami qui
ne m'a pas sauvé la vie (1990), and the tale "Depois de Agosto" (1995), by Caio Fernando Abreu. In
the work of the two writers there is a connection between factual experience and fictional work
that place them in the always problematic field of the so-called written self. The emergence of
the biographical space conception (ARFUCH, 2010) as a set of discontinuous procedures that
configure itself in the strategy of narrating oneself, explains to some extent both Guibert's gesture
of narrating himself from an apparently referential discourse and the erasure of the marks of
factual experience, a procedure common to Abreu's work. In this sense, the works of both writers
seem to converge to a notion of resistance to death and, still, to the valorization of the authorial
instance as bearer of the gesture of narrating.

KEYWORDS: AIDS; Authorship; Caio Fernando Abreu; Death; Hervé Guibert.

*
Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação de Literatura e Interculturalidades (PPGLI) – Universidade
Estadual da Paraíba – UEPB – 58429-500 – Campus I – Campina Grande – PB. Bolsista CAPES-PNPD. E-mail:
alsgomes70@gmail.com
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa
[...]
levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo.

Al Berto – Corpo

Introdução

O título do presente trabalho é tomado de uma tradição artística que remonta ao


fim da Idade Média. As chamadas “danças da morte” ou “danças macabras” consistiam,
preferencialmente, na alegoria pictórica da condição mortal dos homens. Os quadros
portavam, nesse sentido, representações de caveiras ou de cadáveres putrefatos – la charogne
(ou carniça) – que dançavam alegremente lembrando aos homens daquele contexto que, a
despeito dos prazeres vividos ou problemas por eles enfrentados, todos estavam fadados a se
encontrar no espaço equalizador da morte. Philippe Ariès nos lembra, todavia, no seu História
da morte no ocidente (2002) que, no contexto de produção das “danças macabras” – o período
medieval – a morte ainda não figurava como um interdito e a relação de homens, mulheres
e crianças com moribundos, cadáveres e até mesmo com corpos em estado avançado de
putrefação era muito mais comum do que em um contexto como o nosso, marcado pelos
ideais de felicidade, juventude e vigor eternos e a negação da finitude como um traço inerente
da condição humana.
Nesse sentido, a partir da ideia de dança da morte, analisamos o conto “Depois de
agosto” (1995), publicado por Caio Fernando Abreu, escritor brasileiro, e alguns traços
que consideramos importantes no romance À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990)1, de
Hervé Guibert, escritor francês que alcançou certo renome em seu país entre o fim da
década de 1980 e início da década de 19902. Ambos os escritores, com trajetórias pessoais
e profissionais relativamente semelhantes, caracterizaram-se também por um aspecto em
comum e que marcou a sua produção literária: a contaminação pelo vírus HIV e, a partir da

1
Os romances de Guibert ganharam traduções brasileiras editadas pela José Olympio Editora. No entanto para o
presente trabalho, assim como para a tese, utilizamos o texto em francês e o traduzimos livremente.
2
O presente texto é uma adaptação e síntese de algumas ideias presentes em nossa Tese de Doutoramento
intitulada Escrevendo o próprio corpo: a problemática da autobiografia e da (auto)ficção nas obras de Caio Fernando
Abreu e Hervé Guibert. Na ocasião, parecia-nos mais produtiva a análise das tipologias textuais de ambos os
escritores, buscando analisar suas obras a partir do estabelecimento de nexos comparativos de diferença. Algumas
dessas perspectivas se modificam no texto atual, especialmente, pela inserção da ideia de espaço biográfico estudada
por Leonor Arfuch (2010). Desse modo, a hipótese inicial da tese de que não há uma divisão dicotômica, mas um
continuum entre as múltiplas formas de escritas de si parece ganhar contornos mais definidos com base na leitura
de Arfuch.
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consciência desse fato, a publicação da condição de soropositivos, bem como a reflexão, por
meio da produção textual, acerca dessa condição, especialmente na relação entre doença,
sobrevida e finitude.
É preciso afastar, contudo, a ideia de que a produção literária de ambos os escritores, ao
proporem uma relação entre literatura e os temas da morte e da doença tenham como traço
a constituição de documentos em que a morbidez e a espetacularização da própria condição
sejam aspectos em destaque. Claro que temos um certo grau de espetáculo, mas nos parece
que essa produção literária joga com a concepção de escrita enquanto forma de resistência.
É importante destacar, desde agora, que há diferenças substanciais entre a produção
ficcional de Abreu e a de Guibert. Enquanto o escritor brasileiro, ainda que se valha da
própria vivência pessoal, produz textos em que não há uma relação direta3 de identificação
entre personagem, narrador e autor, o autor francês constrói um conjunto de textos em que
atribui ao narrador-personagem não apenas a sua vivência, mas também o seu nome e suas
características. Todavia, apesar de, num primeiro momento parecer fácil classificar como
autobiográfica a produção de Guibert, tudo se complica quando percebemos que o relato
porta traços de romance.
Abreu e Guibert produzem os seus textos numa relação ambígua entre realidade e
ficção, estabelecendo , neles, uma relação em que o espaço biográfico4 (ARFUCH, 2010)

3
Há três aspectos importantes que devemos destacar com relação ao corpus de Caio Fernando Abreu. O primeiro
deles diz respeito ao fato de que, para o presente artigo, trabalharemos apenas com um texto em que a relação entre o
tema da morte e os motivos da doença, da sobrevida se inter-relacionam com o procedimento testemunhal. Abreu
se vale, desse modo, do processo de ficcionalização da vivência pessoal, o que não exclui, do campo da recepção,
o reconhecimento de algumas marcas que permitem reconhecer a projeção do autor em suas personagens. Já
o segundo aspecto se refere ao fato de que a AIDS vinha sendo tematizada pelo escritor desde 1983, quando
começam a ocorrer os primeiros casos divulgados pela imprensa como de um “câncer gay”, o que levou a síndrome
a ser conhecida popularmente como “peste gay”. Finalmente, é preciso não perder de vista que o procedimento
de utilização da vivência pessoal para a composição do texto literário parece ser bastante comum na produção de
Abreu. É possível percebê-lo em textos como “Corujas” (1970), “Oásis” (1975), “Garopaba, mon amour” (1977),
“Terça-feira gorda” (1982), “Pela passagem de uma grande dor” (1982). Paula Dip, em sua biografia de Abreu,
com certos tons autobiográficos, intitulada Para sempre teu Caio F. (2009), menciona o fato de que o conto “Pela
passagem de uma grande dor”, publicado em Morangos mofados (1982) tem como origem a sua experiência com um
aborto, assim como “Garopaba, mon amour” diz respeito à prisão de Abreu durante a ditadura militar. É importante
notar o trabalho de desreferencialização efetuado pelo escritor para constituir um texto em que não figuram
quaisquer projeções evidentes de uma imagem de si, exceto quando o leitor tem a chave de leitura. Desse modo, o
texto, apagadas as marcas que o filiariam a um campo de produção autobiográfico, se filia a um espaço estritamente
ficcional, segundo a concepção do autor. Há um grande número de críticos e estudiosos que inserem a produção
de Caio Fernando Abreu no âmbito da autoficção, incluindo a tese Infinitivamente pessoal (2009), de Nelson Luís
Barbosa, que busca explicar as marcas da realidade projetada nos textos do escritor. A questão a se pensar é: em que
medida essa recuperação é imprescindível para a compreensão da obra do autor gaúcho?
4
Arfuch (2010) conceitua o espaço biográfico, não em termos de gênero, mas em termo de procedimento/
momento. Ela toma as proposições de Bakhtin sobre autoria e impossibilidade de, na esfera discursiva, haver
coincidência entre o autor e sua personagem (mesmo que este porte o nome do autor), construindo então a
ideia de que o espaço biográfico pode permear os mais diversos gêneros e discursos, constituindo-se, portanto,
num conjunto de estratégias que representam a projeção do escritor (assim como entrevistados, blogueiros,
youtubers, etc.). Essas estratégias podem apresentar caracteres de veracidade (como é o caso do texto abertamente
autobiográfico) quanto simular essa veracidade ou mesmo não desejá-la (autoficções, romances autobiográficos,
etc.). O espaço biográfico pode, nesse sentido, ser lido como os rastros da vivência empírica deixados pelos mais
diversos tipos de texto.
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emerge como elemento importante para se compreender os projetos de escrita de ambos
os escritores, suas escolhas procedimentais e as diferenças substanciais que suas produções
literárias apresentam. Fica claro, ainda, que outras questões emergem da leitura desses
textos, tais como a ideia de escrita de si como um procedimento de transposição em que
vivido e escrito portam diferenças essenciais (GUSDORF, 1990); a noção da narrativa como
organização temporal de uma vivência, além de uma forma de refletir a vida (RICOEUR,
2011); o cuidado de si como forma de construção de uma relação com a finitude a partir
da concepção do moribundo como portador da autoridade de dizer/narrar (FOUCAULT,
2011; GAGNEBIN, 1994). Desse modo, é a partir do entrecruzamento entre a consciência da
morte e o desejo de sobrevivência que as produções dos dois escritores se encontram.
Leonor Arfuch analisa, em O espaço biográfico (2010), os modos como o relato
autobiográfico se insere como um dado importante no contexto contemporâneo, sobretudo
numa sociedade marcada pela espetacularização das experiências íntimas. Sobre a produção
marcada pela relação com o que denomina espaço biográfico, pergunta a estudiosa: “não se
poderia pensar-se que o relato de si é um desses ardis, sempre renovados à maneira de
Scheherazade, que tentam, dia após dia, a ancoragem com o outro – e a outridade – , uma
‘saída’ do isolamento que é também uma briga com a morte?” (ARFUCH, 2010, p. 130).
Parece-nos que essa indagação pode ser perfeitamente utilizada para uma reflexão sobre as
obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, buscando analisar de que modos a escrita
de si presente na obra desses escritores estabelece, a partir dessa percepção aguda da finitude,
uma forma de resistência e um gesto político que tem na narrativa o estabelecimento de uma
temporalidade que, em última instância, é negação da morte e reivindicação por meio da vida.

O entrecruzamento entre ficção e realidade em À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie

Hervé Guibert se caracterizou, no âmbito da produção literária francesa, por um projeto


em que o procedimento de escrita de si assumiu um lugar central. Em suas obras é bastante
comum a utilização do nome próprio, de características físicas do autor, além de detalhes de
sua vivência pessoal, especialmente daquela ligada à sexualidade, ao desejo homoerótico e ao
detalhamento de algumas experiências íntimas que vão, desde a relação abertamente estável
que tinha com Jules e Berthe (casados, por sua vez) até descrições detalhadas de sexo casual e,
mesmo, do que se convencionou chamar de “sexo sujo”. Podemos, então, afirmar que a obra
de Guibert flerta, em termos de projeto literário, com, ao menos, dois traços fundamentais:
a) o desejo de fazer a palavra literária se desdobrar para além dos limites de decoro, de
moralidade e de bom gosto, impostos pelo establishment literário francês; b) o desejo de
tomada da vivência individual, marcadamente difusa, para transpô-la para a materialidade/
objetividade do registro escrito. Desse modo, a escrita do autor é uma materialização da
ideia de que escrever-se se caracteriza pela “passagem da inconsistência do vivido para a
consistência do escrito” (GUSDORF, 1991, p. 14)5.

5
No original: «passage de l’inconsistence du vécu pour la consistence de l’écrit» (GUSDORF, 1991, p. 14).
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Essa ideia de superação do decoro é reiterada por Bruno Blanckeman, um dos críticos
franceses da obra do escritor, cujas afirmações vêm ao encontro do que propomos. Bruno
Blanckeman em um pequeno ensaio intitulado L‘écriture du trahir-vrai (2003) defende a
ideia de que a escrita Guibert é toda construída a contrapelo do que se classificaria como
literário. Para o crítico, Guibert visa ir sempre mais longe na consignação de certas vivências
singulares. Ele deseja registrar os acontecimentos de sua própria vida, fazendo recuar os
interditos de formulação (BLANCKEMAN, 2003, s/p.), ou seja, o escritor força os limites da
palavra literária, fazendo-a dizer o que seria normalmente indizível, sobretudo, os interditos
sexuais, centrando o discurso de sua obra em acontecimentos de sua vida. Ainda assim, apesar
da busca pela representação de si, a produção literária de Guibert não pode simplesmente ser
classificada como autobiográfica.
É importante notar, desse modo, que desde o início de sua produção, Guibert, talvez
consciente dos limites impostos pelos gêneros autobiográficos e interessado em embaralhar
aspectos abertamente reais de sua vivência com elementos ficcionais, classificou a grande
maioria de seus textos como romances. Este é o caso de À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990),
romance escrito sob a forma de um diário em que o narrador-personagem, identificado como
Hervé Guibert, conta o seu cotidiano como soropositivo e a convivência com a realidade da
contaminação, a progressão da doença, os procedimentos de sobrevivência, os tratamentos
a partir da ingestão de drogas como AZT e, finalmente, a marginalização social a que estava
votado o doente de AIDS.
O romance, dividido em cem fragmentos, narra as memórias de Guibert–personagem
acerca dos possíveis passos que o levaram à contaminação. Escrito sob a forma de carta–libelo
contra Bill, o amigo americano, executivo da indústria farmacêutica a quem o protagonista
acusa de não lhe salvar a vida, a narrativa estabelece uma relação dialógica com a carta e o
diário.
Num primeiro momento, a preocupação da narrativa é colocar em primeiro plano
o reconhecimento do narrador–personagem de sua condição de soropositivo. Passado o
momento de impotência diante do reconhecimento da contaminação6, a narrativa se centra
por alguns momentos na promessa de Bill, o amigo americano, de inserir o narrador–
personagem e Jules no protocolo de vacinas anti–HIV. No entanto, Bill se vê impossibilitado
de cumprir a promessa, uma vez que a vacina se mostra ineficaz. Sentindo-se abandonado,
Guibert acaba por escrever o romance–libelo contra o amigo7.

6
É preciso não perder de vista que a escrita e posterior publicação do romance de Hervé Guibert se dá num
momento em que não há, por parte da ciência médica, solução para o controle da multiplicação do vírus HIV
no organismo infectado. Durante a década de 1980 e boa parte da década de 1990, o único tratamento possível
para os portadores do HIV era o uso do AZT (ou zidovudina), responsável pelo emagrecimento e coloração
amarelada da pele dos doentes de AIDS. Somente a partir de meados de 1995 obteve-se, a partir de um coquetel
de retrovirais e vitaminas, uma taxa de sobrevida, de controle da multiplicação do HIV no interior das células
e até a condição de indetecção de vírus, o que diminui consideravelmente a possibilidade de contaminação. Cf.
A política nacional de luta contra a Aids, tese de doutorado em saúde coletiva defendida na UFBA pela Dra Sandra
Garrido de Barros em 2013.
7
No romance Le protocole compassionel (1991), Guibert afirma ter participado do programa de vacinas, o que
constitui uma contradição entre os dois romances, desvelando, desse modo, o caráter de entrecruzamento entre
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Num primeiro olhar, a promessa de Bill e sua impossibilidade de cumpri-la parecem
ser tratados como tema principal do romance. Porém, se analisado mais detidamente,
percebemos que ela é apenas pretexto para a assunção do tema principal: a narração do
corpo doente e em franco processo de desagregação. Nesse sentido, a narrativa vai colocar
em primeiro plano a dissociação advinda da doença, descrevendo os efeitos dela sobre a
personagem, bem como as reações do corpo às drogas de combate ao vírus. Emerge assim a
imagem literária de uma dança da macabra.
O fio de narrativo, desse modo, é constituído a partir dessa ideia de narrar a experiência
desse corpo marcado por uma doença considerada mortal. A promessa de Bill ocupa, então,
o lugar de motivo para esta representação do corpo. Além disso, é preciso ainda destacar
que o romance apresenta uma série de outras histórias que, engastadas à narrativa principal,
mostram as relações sociais e interpessoais do narrador-personagem. Além de Jules e Berthe,
casados e respectivamente amantes de Guibert, outras personagens figuram no texto, a
exemplo de David, Eugénie, Gustave, Matou e, sobretudo, Muzil e Marine, respectivamente
ficcionalizações de Michel Foucault e de Isabelle Adjani. A narrativa se inicia com a afirmação de
que, reconhecendo-se portador do HIV, o narrador–personagem também se vê como alguém
que possivelmente, de modo milagroso e graças à generosidade de Bill, sairá a salvo da doença:

Eu tive Aids durante três meses. Mais exatamente, acreditei, durante três
meses, que estava condenado por esta doença mortal à qual chamamos Aids.
Porém, eu não imaginava. Eu realmente fora atingido. O teste que autenticou o
positivo, reiterando, assim, as análises anteriores que demonstravam o início do
processo de ruína em meu sangue. No entanto, no fim de três meses, um acaso
extraordinário me fez crer, quase me deu a certeza, de que eu poderia escapar
dessa doença mortal que todos acreditavam ser incurável (GUIBERT, 2006, p.
09)8.

É a partir dessa consciência da contaminação e da mortalidade em sua relação com o


“acaso extraordinário”, configurado na tentativa de inserção, por Bill, de Guibert no protocolo
de vacinas, que temos então o incipit de um texto que vai jogar o tempo todo com a ideia de
referencialização dos acontecimentos a partir da utilização de datas, de endereços da cidade de
Paris, estabelecendo, dessa maneira, uma relação com a memória e o diário. Vejamos:

Neste dia em que inicio este livro: 28 de dezembro de 1988 em Roma para onde
vim sozinho [...] me opondo a todos; fugindo desse conjunto de amigos que
tentou me deter, inquietando-se com minha saúde moral, nesse feriado em que
tudo está fechado e que todo pedestre é um estrangeiro em Roma, onde percebo
que definitivamente não gosto dos homens (GUIBERT, 2006, p. 10)9.

ficção e realidade.
8
No original: «J‘ai eu le sida pendant trois mois. Plus exactement, j‘ai cru pendant trois mois que j‘étais condamné
par cette maladie mortelle qu‘on appelle le sida. Or je ne faisais pas d‘idées, j‘étais réellement atteint, le test qui s‘était
avéré positif en témoignant, ainsi que des analyses qui avaient démontré que mon sang amorçait un processus
de faillite. Mais, au bout de trois mois, un hasard extraordinaire me fit croire, et me donna quasiment l‘assurence
que je pourrais échapper a cette maladie que tout le monde donnait encore pour incurable» (GUIBERT, 2006,
p. 09).
9
No original: «Ce jour où j‘entreprends ce livre, le 26 décembre 1988, à Rome, où je suis venu seul, envers et
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Consultando minha agenda de 1987, foi no dia 21 de dezembro que datarei a
descoberta, sob minha língua, no espelho de banheiro, de pequenos filamentos
esbranquiçados, papilomas sem espessura, estriados como aluviões no tecido da
língua (GUIBERT, 2006, 14310).

Além da tentativa de referencializar a narrativa com datas e indicações a espaços


geográficos, Guibert ainda se vale de outros procedimentos importantes que acabam
por construir esse cruzamento entre aspectos da realidade e discurso ficcional, tais como
o uso de um discurso marcado pela fragmentariedade, pela digressão/reflexão acerca dos
acontecimentos e da metalinguagem para, de certo modo, colocar em primeiro plano o
processo de construção de seu texto, além da incorporação do jargão médico. Em outros
termos, Guibert faz uso da reflexão acerca da linguagem e do próprio exercício da escrita:

Entrevejo a arquitetura desse novo livro que retive todas essas últimas semanas,
mas nele ignoro o final do final. Posso imaginar muitos que são nesse instante,
todos eles, do domínio da premonição e da confissão. Todavia, o conjunto de
sua verdade ainda está oculto para mim. Digo que este livro não tem sua razão
de ser senão neste fragmento de incerteza, comum a todos os doentes do mundo
(GUIBERT, 2006, p. 10)11.

A metalinguagem emerge, então, como dado elementar na composição do texto


literário, assumindo um caráter de desvelador da intencionalidade do narrador-personagem:
a narração da vida a partir da consciência aguda da certeza do adoecimento, da dissociação
física trazida pela doença e pela incerteza da sobrevivência. Guibert joga a partir desse lugar
discursivo com a ideia de narração como uma forma de resistir ao silenciamento trazido pela
doença e, por conseguinte, resistir à morte. Nesse sentido, Guibert constrói um eu literário
que, longe de estabelecer uma relação de mesmidade com o autor real, constrói-se como
um eu possível, portador de traços que são seus, mas que na prática se diferenciam de si pelo
caráter de construção discursiva que apresenta. Em outros termos, a utilização dos aspectos
biográficos do autor, longe de se apresentar como uma documentação de verdade, constrói-
se como relativização dessa verdade, exatamente por se constituir na transposição do vivido–
inconsistente para o escrito–material. Sobre isso discorre Arfuch:

contre tous, fuyant cette poignée d‘amis qui ont tenté de me retenir, s‘inquiétant de ma santé morale, en ce jour
férié où tout est fermé et où chaque passant est un étranger à Rome où je m‘aperçois définitivement que j‘ n‘aime
pas les hommes» (GUIBERT, 2006, p. 10).
10
No original: «En consultant mon agenda 1987, c‘est au 21 décembre que je daterai la découverte sous ma
langue, dans le miroir de la salle de bain de petits filaments blanchâtres, papillomes sans épaisseurs, striés comme
des alluvions sur le tégument de la langue» (GUIBERT, 2006, p. 143).
11
No original: «J‘entrevois l‘architecture de ce nouveau livre que j‘ai retenu en moi toutes ces dernières semaines
mais j‘en ignore le déroulement de bout en bout, je peux en imaginer plusieurs fins, qui sont toutes pour l‘instant
du ressort de la prémonition ou du voeu, mais l‘ensemble de sa vérité m‘est encore caché ; jé me dis que ce
livre n‘a sa raison d‘être que dans cette frange d‘incertitude, qui est commune à tous les malades du monde»
(GUIBERT, p.10 2006).
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O romance é o território privilegiado para experimentação, mesmo a mais
perturbadora, na medida em que pode operar no marco de múltiplos “contratos
de veracidade” [...] enquanto a margem se estreita no espaço biográfico, entre
o relato factual e ficcional, para além da declaração do autor ou dos signos
paratextuais: uma vida atestada com o “real” está submetida a uma maior
restrição narrativa. Mas, se os gêneros canônicos são obrigados a respeitar
certa verossimilhança da história contada – o que não supõe necessariamente
veracidade –, outras variantes do espaço biográfico podem produzir um efeito
altamente desestabilizador, talvez como “desforra” diante de um excesso de
referencialidade “testemunhal”: as que, sem renúncia à identificação do autor,
se propõem a jogar outro jogo, o de transtornar, dissolver a própria ideia de
autobiografia, diluir seus umbrais, apostar no equívoco, na confusão identitária
ou indicial (ARFUCH, 2010, p. 127 – grifos da autora).

É exatamente nesse jogo de dissolução do cânone autobiográfico e de diluição dos


limites entre uma escrita referencial de si – a autobiografia – e uma escrita ficcional que
Guibert acaba por forçar os limites do gênero romanesco, valendo-se dele para melhor
comunicar a sua reflexão sobre a mortalidade e o adoecimento. Desse modo, ao longo de sua
narrativa, as representações da morte se farão presentes, e é nessa representação que teremos
a consciência do corpo tocado pelo processo de dissociação como índice fundamental para a
leitura de uma narrativa que tem na gradação decrescente e na ironia mórbida voltada para
esse eu que se conta o seu maior trunfo: “A mîse-em-abîme de meu livro se fecha sobre mim.
Estou na merda. Até onde você deseja me ver afundar? Enforque-se, Bill! Meus músculos
se fundiram. Eu redescobri, enfim, minhas pernas e braços de criança (GUIBERT,
2006, p. 284 – grifos nossos)12. A “redescoberta” dos braços e pernas de criança, metáfora do
esgotamento físico do narrador e descrição da condição do corpo doente – que aponta para o
cadáver como emblema da morte – vem mobilizada com um questionamento que é dirigido
ao leitor – uma intervenção metalinguística–: “o espetáculo de minha morte é o suficiente
para você?”, parece perguntar o narrador.
Ao longo da narrativa, a construção imagética desse corpo tocado pela mortalidade
vem acompanhada, muitas vezes, por uma imagem que oscila entre o grotesco e belo, entre
o terrivelmente tocado pela destruição, mas que ainda porta uma potência erótica que, no
fim das contas, representa a resistência e o esforço de sobrevida especialmente quando conta
seus encontros com Jules, o parceiro de toda uma vida:

Escrever isso hoje tão distante do ocorrido, faz meu sexo desativado e inerte
ficar duro novamente. Este esboço de trepada me parecia naquele momento de
uma tristeza intolerável. Eu tinha a impressão de que Jules e eu nos perdêramos
entre nossa vida e nossa morte e que permanecíamos juntos nesse intervalo,
por uma necessidade opaca que agora se tornara nítida de um modo atroz.
Representávamos pela justaposição física, com num quadro macabro, dois
esqueletos sodomitas. Jules me fez gozar olhando nos meus olhos. Era um olhar

12
No original: «La mise en abîme de mon livre se referme sur moi. Je suis dans la merde. Jusqu‘où souhaites-tu
me voir sombrer? Pends-toi, Bill! Mes muscles ont fondu. J‘ai enfin retrouvé mes jambes et mes bras d‘enfant»
(GUIBERT, 2006, p. 284).
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insustentável, muito sublime e doloroso, eterno e ameaçado pela eternidade.
Eu sustive um soluço na garganta, fazendo-o passar por um suspiro de gozo
(GUIBERT, 2006, p. 165 – 166.)13.

A compreensão de uma morte que vai sendo afirmada na própria modificação do corpo,
que gradativamente se desagrega, é experimentação de uma morte antecipada. Essa morte
antecipada vem afirmada no esvaziamento da vontade de se relacionar e, por conseguinte,
no esfriamento dos afetos, daí a necessidade de escrever. Essa relação fica evidente, como
vimos na construção ambiguamente bela e grotesca da relação entre o narrador e Jules, que,
de certo modo, não aceitava a doença inscrita em seu corpo. O sentimento de horror em
relação ao ser amado fica evidente na descrição de um encontro entre os dois personagens e
na comparação de ambos com esqueletos, metáforas da morte ou, melhor dizendo, metáforas
de uma dança da morte.
O romance de Guibert coloca em questão a diferença essencial entre a vivência e a
tomada dela como matéria literária/autobiográfica, uma vez que, nessa tomada, há uma
série de operações importantes: o trabalho de rememoração do vivido, a escolha dos
acontecimentos mais pertinentes para o exercício de escrita, o recorte desse vivido e,
finalmente, o processo de reflexão inerente ao próprio gesto de narrar-se. Ao que parece,
o escritor francês, consciente de que a sinceridade absoluta é impossível no ato de escrita,
opta por embaralhar factual e ficcional de modo a construir um romance que, em última
instância, pode ser lido como um texto híbrido que apresenta traços evidentemente ligados à
autobiografia, mas se insere num campo de produção romanesca. É nessa intersecção ou lugar
intervalar que o escritor rompe com a tradição escritural/literária de seu país, incluindo aqui
autores cujos textos que flertam claramente com as escritas de si (Marguerite Duras, Sartre,
Marcel Proust), forçando o discurso literário a se espraiar por um território inexplorado – o
da espetacularização da intimidade, das relações concernentes à esfera pessoal –, o que, de
certo modo causa escândalo nos meios literários tradicionais da França.
Leonor Arfuch, em seu já citado trabalho, afirma que o espaço biográfico assume
importância na contemporaneidade. Para ela, tal conceito não se manifesta como um gênero
dado e independente que se constitui a partir de um pacto escritural (a coincidência entre
o nome do autor, do narrador e da personagem, bem como a ideia de uma “imagem do
real”) ou mesmo de um pacto autobiográfico que tem no campo da recepção (o leitor aceita
o desejo de sinceridade do autor), mas no processo de aceitação do jogo biográfico pelo
leitor/espectador. Esses conceitos, mobilizados por Philippe Lejeune no já clássico Le pacte
autobiographique (1975), mostraram-se incipientes para a compreensão do procedimento de
tomada de si como personagem. É nesse sentido que, para Arfuch (2010, p. 73), “mesmo

13
No original: «Écrire cela aujourd‘hui si loin de lui refait bander mon sexe, désactivé et inerte depuis des
semaines. Cette ébauche de baise me semblait sur l‘heure d‘une tristesse intolérable, j‘avais l‘impression que
Jules et moi nous étions égarés entre nos vie et notre mort, et que le point qui nous situait ensemble dans cet
intervalle, d‘ordinaire et par nécessité assez flou, était devenu atrocement net, que nous faisions le point, par
cet enchaînement, sur le tableau de deux squelettes sodomites. Jules me fit jouir en me regardant dans les yeux.
C‘était un regard insoutenable, trop sublime, trop déchirant, à la fois éternel et menacé par l‘éternité. Je bloquai
mon sanglot dans ma gorge en le faisant passer pour un soupir de détente» (GUIBERT, 2006, p. 165–166).
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quando estiver em jogo uma certa ‘referencialidade’, enquanto adequação dos acontecimentos
de uma vida, não é isso mais o que importa”, isto porque a tomada da própria vivência e posterior
transposição como material escrito, ainda que haja no horizonte intelectual do escritor um
desejo de sinceridade, é produto de uma série de operações que não permitem a coincidência
entre o sujeito da escritura e sua projeção textual. Desse modo, “não é tanto o ‘conteúdo’ do
relato por si mesmo [...], mas precisamente as estratégias – ficcionais – de autorrepresentação o
que importa (ARFUCH, 2010, p.73 –grifos da autora).
Podemos afirmar que Hervé Guibert, no processo de registro presentificado da
vivência do homem contaminado acaba por, em certa medida, antecipar o zeitgeist desse
início de século XXI: a invasão do que tradicionalmente víamos como estritamente do
campo da privacidade e da intimidade na esfera pública nos mais variados suportes. É
preciso, todavia, não esquecer de que, por trás da espetacularização há pelo menos dois
outros elementos: a luta contra o silenciamento e o esvaziamento de si e a resistência à
morte por meio da narrativa14.

Infitivamente (im)pessoal: Caio Fernando Abreu, (auto)ficção e as escritas de si

A produção literária de Caio Fernando Abreu, por sua vez, tem como marca fundamental
a diversidade de temas e motivos. Entretanto, os temas do amor, da morte, da doença, da
espera e da marginalidade são bastante recorrentes na obra do escritor. É importante ter em
vista, ainda, que a AIDS emerge como motivo narrativo importante no trabalho literário
de Abreu desde a publicação de “Pela noite”, conto inserido na coletânea de textos Triângulo
das águas (1983), escrito, segundo afirmação do próprio Caio em carta enviada a Jaqueline
Cantore em 05/06/1983 (MORICONI, 2002), sob impacto da morte de Markito, estilista
brasileiro considerado como a primeira vítima do HIV–AIDS no país.
A partir daí a síndrome será um tema ou motivo constante em sua obra, reaparecendo
em contos como “Linda, uma história horrível”, “Dama da noite”, “Depois de agosto”. No
romance Onde andará Dulce Veiga?, embora tratada de modo velado, quase interdito, a AIDS
aparece como uma espécie de impulsionador da busca do narrador-personagem inominado
por Dulce Veiga, uma cantora desaparecida e, no fim das contas, por uma imagem positiva
da sua própria trajetória. Esses textos são produzidos quando o escritor não se sabia portador
da síndrome, embora houvesse suspeitas de sua parte. Além disso, é preciso ainda mencionar

14
Em A aids e suas metáforas (1989), Susan Sontag afirma que a síndrome é, desde a sua origem, tratada como um
mal que afeta especificamente um grupo perigoso de pessoas “diferentes” que não aderem (e não desejam aderir)
à norma social imposta pelo status quo. É claro que isso tem consequências imediatas: a propagação da doença
como um “câncer gay” e a utilização dos discursos políticos, médicos, religiosos para demonizar e marginalizar
ainda mais os doentes. Além disso, Sontag chama a atenção para um dado importante no início da epidemia: o
fato de que os doentes de Aids, em sua grande maioria homossexuais, eram dupla ou triplamente vítimas: tinham
uma doença incurável, devastadora e mortal; sua intimidade e identidade sexuais eram violentamente retiradas
desse campo de privacidade e vinham a público; marginalizados pela família, pelos amigos, sem trabalho ou
quaisquer modos de sobrevivência, estes doentes passavam por uma morte metafórica, ou seja, morriam antes
da morte real.
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as peças teatrais O homem e mancha e Zona contaminada, ambas inseridas na coletânea Teatro
completo (1997) e escritas por Abreu depois do impacto de se descobrir portador do vírus
HIV e, mais do que isso, ter já desenvolvido os sintomas da síndrome.
É preciso notar um dado importante para a leitura da relação entre o discurso literário
de Abreu sobre a AIDS e a relação do autor com a própria doença. Enquanto era apenas uma
testemunha da morte de amigos tocados pela síndrome, o escritor manteve uma discussão aberta
acerca da doença, mas, quando se reconhece soropositivo, sua perspectiva de representação
literária da doença parece se modificar. Desse modo, se antes os índices da doença eram claros,
após a consciência de ter em si uma morte anunciada faz com que o escritor fale menos da
doença e fale mais da sobrevivência. É nessa virada de perspectiva que podemos observar
a emergência de uma escrita de resistência ou de sobrevivência. A escrita de Abreu, assim
como a de Hervé Guibert, torna-se a metaforização do gesto narrativo que impede, ainda que
apenas algum tempo, a presença da morte. Ambos performam literariamente, então, o gesto de
Sherazade: contar/escrever para não morrer, ao menos por um dia.
Deixemos, por um momento, a relação do texto de Abreu com o motivo da doença
na construção de narrativas tanatológicas, para analisarmos outro aspecto também
fundamental para nossa discussão: a relação da obra do escritor com o procedimento
das escritas de si. Como dissemos acima, em nota de rodapé, há em seu projeto literário
a utilização de elementos que podem ser relacionados com suas vivências particulares.
Nesse sentido, podemos pensar em uma série de textos de Abreu que guardam pontos
de ancoragem com episódios de sua vida. Mas a questão que emerge é: de que modo se
efetua essa projeção da vivência pessoal sobre o texto literário? Falaremos sobre isso de
forma ampla mais adiante. Antes, tomemos o conto “Depois de agosto” como exemplo
da confluência entre as narrativas que têm a AIDS por motivo importante e certo
procedimento de projeção da vivência pessoal do escritor em seus textos.
“Depois de agosto” foi publicado por Abreu na coletânea de “fundo de gaveta” intitulada
Ovelhas negras (1995). O conto traz como subtítulo “Uma história positiva, para ser lida ao
som de Contigo en la distancia”, aliás, procedimento narrativo muito comum ao longo da vida
literária do escritor. Ele é considerado o último texto ficcional publicado pelo escritor ainda
vivo e aparece no livro, assim como todos os outros contos, com uma espécie de explicação
do criador acerca do contexto de criação. Abreu se refere a ele desse modo: “Foi escrita em
fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre. Há pouco a dizer sobre ela,
ainda está muito próxima para eu tratá-la com frieza e distanciamento” (ABREU, 2018, p.
667). É interessante notar que maior parte dos textos inseridos em Ovelhas negras contam com
explicações mais claras do seu contexto de produção, enquanto que “Depois de agosto” tem
como dado constitutivo o ciframento desde a apresentação pelo autor, que remata em sua
explicação: “Talvez seja um tanto cifrada, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede
a compreensão” (ABREU, 2018, p. 667). Esse ciframento se espraia por todo o gesto narrativo.
O conto, relativamente curto, apresenta um narrador cujo ponto de vista em relação
ao narrado é onisciente, aderindo à perspectiva do protagonista inominado. Além disso, o
texto é constituído a partir de treze pequenos fragmentos narrativos, referência à ideia de
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morte, que se apresentam, por sua vez, intitulados. São eles: “Lázaro”, “Primavera”, “Jade”,
“Anunciação”, “Oriente”, “Soneto”, “Fuga”, “Sonho”, “Capitulação”, “Espelho”, “Valsa”, “Finais”
e, finalmente, “Bolero”.
É importante observar que o incipit do conto, que apresenta o título de “Lázaro”, joga
com a ideia de sobrevivência e marca pestilencial como dados importantes do texto. Essa
dupla concepção vem mobilizada na palavra “Lázaro”, constituindo-se como referência que
tanto pode ser lida como remissão à personagem da parábola “Lázaro e o rico”, contada
por Jesus no Evangelho segundo São Lucas 16: 19-31, quanto pode apontar para ideia de
sobrevivência mobilizada a partir do intertexto com o episódio da ressurreição por Jesus de
Lázaro de Betânia, quatro dias após seu sepultamento, e narrado no Evangelho de São João 11:
1-29. As duas referências convivem ao longo de todo conto na noção da personagem de que
era tarde para a experiência do desejo e do amor e na veiculação da ideia de sobrevivência.
Num primeiro momento, Lázaro é signo da peste que a personagem, segundo sua própria
perspectiva, porta em si:

Naquela manhã de agosto, era tarde demais. Foi a primeira coisa que ele pensou
ao cruzar os portões do hospital apoiado náufrago nos ombros dos dois amigos.
Anjos da guarda, um de cada lado. Enumerou: tarde demais para alegria, tarde
demais para o amor, para a saúde, para própria vida, repetia e repetia para dentro
sem dizer nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro
lado da avenida Dr. Arnaldo. Tentando não ver os túmulos, mas sim a vida louca
dos túneis e viadutos desaguando na Paulista (ABREU, 2018, p. 667).

É interessante notar que a remissão a Lazaro e a ideia de que “era tarde demais”,
mobilizadas pela personagem, vem somada à própria constituição de uma representação da
morte configurada na imagem de um “sol cinza nos túmulos” do cemitério do outro lado da
avenida. É nessa zona cinzenta de sobrevivência e consciência da finitude que a personagem
é devolvida para a vida, ou se quisermos ler com base na referência ao gesto revivificador
de Jesus no Evangelho de João, é ressuscitada, não de forma divina ou sobrenatural como
no relato bíblico, mas por meio da medicina. Essa noção do protagonista de se ver como
ressuscitado e marcado pela morte ao mesmo tempo se apresenta como um fio condutor
da narrativa, tornando-se baliza, para a personagem, do sentido de sobrevivência e de
consciência da morte. O signo da doença/peste emerge ainda na mobilização de Caim e sua
marca e no gesto de interdição do protagonista ao espelho: “Nem sempre ria. Pois havia
também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens, palavras fugindo, suspeitas no
céu da boca, terror suado e estrangulado as noites e olhos baixos no espelho a cada manhã
para não ver Caim estampado na própria cara” (ABREU, 2018, p. 668 – grifos nossos).
Apesar desse gesto inicial de interdição de olhar para si mesmo no espelho e, num
certo sentido, de olhar-se num sentido de cuidado de si, a personagem acaba por se alinhar,
também, à imagem do ressuscitado, obrigando-se a conviver com a nova condição. É a partir
dessa consciência de sobrevivência, então, que toma a decisão de viajar e, a partir dessa
decisão, o que era visto como irremediavelmente perdido emerge como possibilidade de
comemoração da vida. A viagem se transforma num ato de resistência à ideia de uma morte
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simbólica: “se era tarde demais, poderia também ser cedo demais, você não acha? Perguntava
sem fôlego para ninguém” (ABREU, 2018, p. 669).
Essa mudança de posicionamento do protagonista representa, no âmbito da narrativa,
uma abertura para vida que se configura no encontro com o “outro”, personagem também
inominada que se aproxima eroticamente da personagem principal. O prenúncio de encontro
entre ambas as personagens ocorre no fragmento sob o título de “Anunciação”, outra referência
bíblica que remonta ao próprio nascimento de Jesus, considerado como o portador da vida.
Nesse sentido, o outro representa, com seu telefonema ao protagonista, o anjo que anuncia
a vinda do portador da vida que é, num primeiro momento, repelido por este como parte
“Daquela falange de Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos
Preconceituosos, compreende?” (ABREU, 2018, p. 669). O fragmento seguinte, “Oriente”,
é assim intitulado por causa de características do outro, tais como a “pele morena, talvez os
olhos chineses? [...] certo ar de cigano, seria esse nariz persa?” (ABREU, 2018, p. 669).
O fato, contudo, é que, se num primeiro momento o protagonista coloca a outra
personagem num lugar de indesejado, quase de inconveniente pela intrusão em seu
momento de renascimento. Ao encontrar o outro, todavia, percebe-o como parte do
próprio renascimento, construindo um espaço de reconhecimento afetivo, marcado por
gostos musicais semelhantes, conversas e gestos indiciais do interesse mútuo de ambos. O
protagonista, a partir da noção Lázaro–doente, nega-se ao encontro amoroso, considerando
inapropriado tanto o seu desejo pelo outro quanto o reconhecimento do desejo do outro
por si. O amor proibido emerge como tema e aparece numa notação de interdição. O
encontro, entretanto, faz a personagem deixar o lugar de anunciador para tomar o lugar
de portador da vida e, por essa razão, da possibilidade de realização. O reconhecimento do
outro como objeto de desejo leva o protagonista a fugir dessa possibilidade: “Sim afligia
muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou
qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia
tanto” (ABREU, 2018, p. 671).
O retorno do protagonista à cidade da outra personagem e o seu encontro com ela
constrói a resolução do conto. No fragmento intitulado “Espelho”, ele descobre que a outra
personagem porta o mesmo problema e, diante dessa revelação ambos concretizam o
encontro erótico–afetivo:

― Amanhã é dia de Iemanjá – ele disse por fim exausto.


O outro convidou:
― Senta aqui do meu lado.
Ele sentou. O outro perguntou:
― Nosso amigo te contou?
― O quê?
O outro pegou na mão dele. A palma era lisa, fina, leve, fresca.
― Que eu também.
Ele não entendia.
― Que eu também – o outro repetiu.
O ruído dos carros nas curvas de Ipanema, a lua nova sobre a lagoa. E feito um
choque elétrico, raio de Iansã, de repente entendeu. Tudo.
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― Você também – disse, branco.
― Sim – o outro disse sim. (ABREU, 2018, p. 672).

O desnudamento do outro acaba por se configurar, no âmbito do texto, como


procedimento de reconhecimento de si para o protagonista, daí o fragmento portar o título
“Espelho”, uma vez que ambas as personagens, ao perceberem as marcas de experiência
com a doença no outro, acabam por se fundir numa espécie de zona experiencial que os
isola do restante do mundo e os protege: “não se importaram que os outros olhassem de
vários pontos de vista, de vários lados de lá – para as suas quatro mãos por vezes dadas [...].
Belos, inacessíveis como dois príncipes amaldiçoados e por isso mesmo ainda mais nobres”
(ABREU, 2018, p. 673).
“Depois de agosto” estabelece desde o texto de apresentação escrito por Abreu uma
relação enviesada tanto com o tema da doença quanto com a utilização da vivência pessoal
de Abreu com a consciência de ter AIDS. No entanto, é possível perceber o deslizamento
de uma imagem do autor que é projetada no protagonista. Essa é uma leitura possível,
pois um ano antes da escrita do texto, o autor escreve, ainda internado no Hospital Emílio
Ribas, uma série de três crônicas intituladas “Cartas para além dos muros” em que se afirma
soropositivo. As crônicas são publicadas no caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo
e, posteriormente inseridas na coletânea de crônicas organizada por Gil Veloso, secretario
e amigo do autor. O volume recebe o título de Pequenas epifanias (1996) e sai no mesmo
ano da morte do escritor. Nas crônicas, Abreu conta, de modo também cifrado o cotidiano
desde a sua internação e, somente no terceiro texto intitulado “Última carta crônica para
além dos muros” é que ele se abre com o leitor, afirmando-se contaminado pelo vírus HIV. É
interessante notar que o autor faz a seguinte afirmação nesta última crônica, a única em que
fala abertamente da condição de soropositivo: “Conto para você, porque não sei ser senão
pessoal, impudico” (ABREU, 2006, p. 112). Todavia, o processo de abordagem da doença
e da própria condição será realizado sempre a partir da noção de desvio autobiográfico
(AMORIM, 2010), configurada na tomada da vivência pessoal para a constituição do texto
literário e no procedimento de desreferencialização dessa vivência, apagando, desse modo,
todas as possíveis ancoragens entre a experiência narrada e a vivência pessoal.
Nesse sentido, podemos afirmar que diferentemente de Hervé Guibert, Caio Fernando
Abreu se vale da própria experiência de soropositivo para construir documentos literários
que, embora se mostrem como questionadores da marginalização do soropositivo, não
chegam a ter o aspecto contundente e, até mesmo, visceral que as narrativas do escritor
francês apresentam. Em outros termos: enquanto Guibert violenta a palavra literária,
levando-a a uma nova fronteira – a da espetacularização impudica e, por vezes questionável,
da própria condição –, Abreu, por sua vez, faz uma opção por uma escrita que, ainda que
traga uma marca da resistência, ocupa um espaço no espectro do lirismo impessoal e pudico
de quem se afirma sem se afirmar, o que insere sua produção tanatológica no seu projeto
literário mais amplo que, em última instância, sempre se configurou na ideia de ser um
grande escritor contemporâneo nos moldes de grande autor constituídos pelo Modernismo.

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Desse modo, a projeção do escritor para dentro de seus textos e a relação ambivalente
entre se valer da escrita de si, paradoxalmente negando-a por meio da desreferencialização
nos parece um procedimento que não emerge tão somente no período de consciência da
doença, mas em toda produção do autor, o que, certamente não invalida o seu gesto de
resistência. Nesse sentido, a afirmação de que Caio Fernando Abreu tenha se tornado
autobiográfico pós-HIV feita em Os perigosos (BESSA, 2002) nos parece improcedente e,
nesse ponto, concordamos com Nelson Barbosa.
É preciso, contudo, ter em mente que a afirmação de pessoalidade de Abreu não pode
ser lida de maneira ingênua e límpida, sobretudo, quando observamos que o autor, no
processo de constituição de sua obra, embora tenha se valido das vivências pessoais para a
escrita de suas histórias, se amparou no procedimento de apagamento de si para tornar o
escrito completamente ficcional, jogando inclusive com várias referências para a concepção
da obra15. Nesse sentido, qualquer leitura que estabeleça uma relação transparente em que
vida e obra se espelham nos parece, senão problemática, bastante inocente.
Ellen Mariany Dias (2010), a partir da ideia, presente em Bakhtin, da impossibilidade de
coincidência entre a instância autoral e sua personagem – mesmo num relato autobiográfico
–, cria a noção de máscara escritural para afirmar que a obra de Caio Fernando Abreu é
tão somente ficcional. É possível afirmar, todavia, que o texto do escritor gaúcho guarda
relações ambivalentes com as escritas de si. Podemos dizer, então, que embora estabeleça
nexos de ancoragem de sua obra ficcional com as escritas de si, o projeto literário de Abreu
não pode ser lido estritamente nem como autobiográfico nem como autoficcional, mas se
encontra na confluência enviesada com a escrita de si. É em suma uma obra ficcional que
mobiliza aspectos autobiográficos, filtrando-os por meio de um trabalho tradicional com o
discurso literário.
O diálogo que Abreu constituiu desde sempre com a questão da AIDS teve contornos
claramente políticos, dado que, para o escritor, era preciso que a doença não se tornasse
um interdito social, colocando seus portadores em zonas de marginalidade, de isolamento
e de invisibilidade ainda maiores do que as já existentes. Nesse sentido, falar da síndrome
tinha o objetivo de representar seus portadores que, violentados simbolicamente pela perda
de sua liberdade sexual e afetiva, viam-se colocados num plano secundário pela sociedade,
especialmente, pela saúde pública.
Além de questionar esses discursos, Abreu tratou de relativizá-los, sobretudo, os que
gravitavam em torno da moralidade e de uma concepção que inseria a doença num campo
problemático de punição moral/divina ao comportamento de homens gays e de toxicômanos,
primeiras vítimas da síndrome. Houve, certamente, uma mudança de perspectiva quando
crianças, mulheres e hemofílicos também apresentaram os sintomas. Depois da consciência
da contaminação, o olhar para doença se desloca da discussão sobre ela para tratar da

15
Em Onde andará Dulce Veiga? esse gesto de projeção do autor no narrador-personagem por meio da utilização
de dados da vivência pessoal é invalidado pelo procedimento de também conferir a outras personagens traços
biográficos seus. Nesse sentido, todas as personagens são projeção de Abreu e, se todas são, podemos dizer que
não são, ou seja, não há possibilidade de uma identificação autobiográfica/autoficcional estrita.
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sobrevivência, quando o autor escolhe focalizar tanto em suas crônicas quanto no conto
objeto de análise no presente trabalho a representação da resistência e de uma certa abertura
para a vida, negando-se a explorar a representação do corpo doente.

O espaço biográfico e narrativa nas danças da morte de Abreu e Guibert

Como pudemos observar ao longo de nosso percurso analítico, as obras de Caio


Fernando Abreu e de Hervé Guibert, apesar dos inúmeros pontos de contato no que diz
respeito à representação da pandemia de AIDS, diferenciam-se no que diz respeito aos
procedimentos literários e escolhas discursivas. Essas escolhas nos mostram, no fundo, a
constituição de projetos díspares quando o assunto é a relação com as escritas de si. Mas se
encontram tanto no gesto de resistência à marginalidade quanto na relação com o espaço
biográfico para resistir a essa marginalização.
Hervé Guibert, como pudemos observar, é um escritor que, de certo modo, aponta
para uma ordem discursiva e literária que, ao se valer da vivência pessoal, assume um
posicionamento abertamente espetacularizado: o corpo, colocado no primeiro plano da
representação, é exibido como índice da morte. Paradoxalmente, quando este corpo doente,
representado como uma caveira viva, assume este primeiro plano discursivo que violenta
o leitor, tornando-o testemunha de sua dissociação, de sua marginalização e de sua morte
gradual, o que temos afirmado é a vida. O gesto de narrar, então, assume aquela característica
de reflexão/salvação da vivência, tornando-a um registro transposto para o campo do narrado
e, por essa razão, do refletido. Todavia, é preciso, no gesto de ler a vivência de Guibert na
forma de relato/narrativa, não se esquecer que o que temos diante de nós não é um Guibert
real, mas sua projeção discursiva, produto de recortes e escolhas que nos indicam, em última
análise, que a mobilização do espaço biográfico, ainda que sob o gesto de tomar-se como
personagem, representa sempre a impossibilidade de uma identificação plena entre autor
e personagem e, por conseguinte, de uma ideia de sinceridade. Desse modo, embora possa
existir o desejo de sinceridade do escritor, é preciso ter em vista que a vivência e sua versão
escrita/narrada portam fronteiras delineadas e nunca transpostas, uma vez que se constituem
de matérias diferentes. Para Arfuch:

Efetivamente, se a história (de uma vida) não é senão a reconfiguração nunca


acabada de histórias divergentes, superpostas, das quais nenhuma poderá aspirar
a maior “representatividade” – nos mesmos termos nos quais, para a psicanálise
lacaniana, nenhum significante pode representar totalmente o sujeito –
nenhuma identificação, por mais intensa que seja, poderá operar como elo final
dessa cadeia. É precisamente sobre esse vazio constitutivo, e sobre esse (eterno)
deslizamento metonímico, que se tecem os fios do espaço biográfico (ARFUCH,
2010, p. 80 – grifos da autora).

Consciente dessa impossibilidade de identificação plena entre o si-mesmo-real


e a sua projeção escritural, o autor francês se vale da ambivalência da linguagem em sua
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impossibilidade da apreensão da realidade total para embaralhar as referências e, desse modo,
constituir inúmeras versões dessa história que, no fim das contas, só tem razão de existir porque
permite a sobrevida. Talvez por essa razão as referências à doença se modifiquem em livros
como Le protocole compassionel (1991), L’homme au chapeau rouge (1992) e Citamegalovírus (1992)
textos que vão estabelecendo novas relações com o corpo, com o outro e com o vírus– o outro
que habita em si. É também nesse lugar de ambivalência que temos o texto guibertiano tratado
como ficção pelo próprio autor e classificado pela Gallimard, a editora, como um romance.
Guibert, a partir de seu gesto despudorado e indecoroso para os modelos literários franceses,
antecipa um século XXI repleto de experiências espetacularizadas, a exemplo de romances
como Divórcio (2011) ou mesmo os chamados espetáculos da realidade (reality shows).
A natureza da relação que Caio Fernando Abreu estabelece com o seu vivido, como
pudemos notar, é impregnada da noção de espaço privado e é, a partir desse lugar discursivo
que o autor se relaciona com esse vivido e com a consciência da soropositidade. Nesse
sentido, Abreu, ao contrário da afirmação de que não sabe ser senão pessoal, presente na
crônica “Última carta para além dos muros”, estabelece um espaço de decoro e pudicícia
que o afasta da representação clara de seu corpo em estado de dissociação. Se em Guibert
a dança da morte é realizada por uma caveira nua, irreverente e, às vezes, debochada, em
Abreu essa dança se dá de forma um pouco mais velada, translúcida, decorosa, sob véus.
Nesse sentido, a ideia de não identificação entre a instância autoral e a instância representada
permanece intocada, assim como a própria palavra literária não é agredida nem levada a
um novo patamar representacional. A obra do autor está, então, inserida num campo
do autocontrole16 inerente à Modernidade. É necessário notar, contudo, que esse espaço
de decoro, que é sempre relativo, só se consolida quando autor passa a se projetar mais
fortemente como autorrepresentação do soropositivo, uma vez que o gesto de falar sobre
o HIV em contos como “Linda, uma história horrível” e “Dama da noite” ou no romance
Onde andará Dulce Veiga?, escritos quando o escritor ainda não havia realizado o teste, é
sempre marcado pela presença de um posicionamento político de defesa da subjetividade da
personagem soropositiva.
As obras de Caio Fernando Abreu e de Hervé Guibert apontam, então, para uma
revitalização do próprio conceito de autoria num momento em que as teorias que
preconizavam a morte do autor e a relativização do seu papel estavam notoriamente em
voga. Eles ainda estabelecem uma relação entre temporalidade e mortalidade, uma vez que,
enquanto ambos a seu modo falam de si, conseguem deter a morte e apreender o tempo,
num gesto que torna a relação entre narrativa e vida cruciais. De certo modo, tanto o gesto
despudorado e referencial de Guibert quanto o gesto contido e desreferencializado de Abreu
constroem um lugar de questionamento da morte, da doença e da própria ideia de autoria.
Nesse ponto, Abreu e Guibert convergem porque apontam para eternidade do campo
ficcional e para a sempre reconstruída ideia de instância autoral.

16
Para Arfuch (2010, p. 93), a ideia de autocontrole advinda da Modernidade é o resultado de uma série de
operações, regras e constrições que se iniciaram na Idade Média e ganham impulso sob a égide do capitalismo
que constitui a ideia de um espaço privado em contraposição à esfera pública.
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Recebido em: 18 abr. 2020


Aceito em: 25 mai. 2020

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Uma leitura multifacetada das múltiplas faces do
romance O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV,
de Lourenço Mutarelli

JOÃO LUÍS PEREIRA OURIQUE*


D O U G L A S E R A L D O D O S S A N T O S **

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise do romance O filho mais velho de Deus
e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli, obra publicada pela Companhia das Letras no contexto
da coleção Amores Expressos. Neste trabalho são observadas as discussões acerca dos gêneros
literários, debatendo a possível natureza satírica do romance e seu convívio com outros diferentes
gêneros, como a ficção científica. As reflexões são sustentadas nas diferentes possibilidades de
leituras da respectiva obra, assim como sua relação com uma longa tradição humana em encontrar
sentido para a existência por meio de narrativas ficcionais amparadas em teorias conspiratórias.

PALAVRAS-CHAVE: Ficção científica; Literatura brasileira; Lourenço Mutarelli; Sátira; Teorias


da conspiração.

ABSTRACT: The aims of this work is to present an analysis Lourenço Mutarelli’s novel O filho
Mais Velho de Deus e/ou Livro IV published by Companhia das Letras in the context Amores
Expressos Collection. In this article the discussions about literary genres are observed, debating
the possible satirical nature of the novel and its coexistence with other genres , such Science fiction.
The reflections are sustained is different reading and interpretative possibilities this novel, as well
your relationship with a long human tradition of finding meaning for existence through fictional
narratives, such as the conspiracy theories.

KEYWORDS: Brazilian Literature; Conspiracy Theories; Lourenço Mutarelli; Satire; Science


Fiction.

* Centro de Letras e Comunicação – CLC – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – 96010-610 – Pelotas – RS
– Brasil. E-mail: jlourique@yahoo.com.br
** Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC – 96815-900 – Santa Cruz do Sul – RS. Bolsista CAPES. E-mail: douglaseralldo@gmail.com
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Introdução

O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli publicado em 2018
pela Companhia das Letras foi lançado com uma década de atraso e não sem antes uma
versão inteira ser legada à lixeira após desacertos entre autor e editora quanto à primeira
versão da obra encomendada pela coleção Amores Expressos1. A palavra “encomendada”,
no caso, não pode ser analisada com pobreza, pois que a natureza distinta da coleção, não
apenas em Mutarelli, mas também em outros autores, acabou acarretando consequências
criativas2. Idealizado pela RT Features o projeto da coleção Amores Expressos consistiu em
levar diferentes autores nacionais a diferentes cidades do mundo pelo período de um mês
ao longo de 2007; posteriormente cada autor teve de escrever um romance ambientado nas
cidades visitadas. No caso de Mutarelli a escolha dos organizadores do projeto, não dele, foi
pela Maçãzona, Nova York. A relação inamistosa para com a cidade dá-se antes mesmo da
viagem, pois o autor chegou pedir a possibilidade de ir a Beja, pequena cidade portuguesa.
Não aconteceu, e ele teve de passar mesmo um mês em Nova York.
Assim como os demais autores participantes do projeto, Mutarelli no período de sua
estadia na metrópole abasteceu um blog3 relatando sua experiência na cidade. A leitura do
blog é bastante interessante ao leitor do livro, não apenas no que diz respeito aos cenários
– o espaço narrativo – e aos objetos que acabam sendo transpostos para a ficção, mas o
próprio ranço e ironia com que o autor vai descrevendo a experiência, sentimentos que serão
extravasados ao extremo na versão definitiva de seu romance. Embora bem saibamos da
independência que as obras finalizadas adquirem, o contexto de produção, especialmente no
caso da coleção Amores Expressos, é um fator a ser considerado, em seus diferentes elementos.
Levaremos tais questões em conta nesta análise, entretanto, procuraremos focar muito mais
nos elementos internos desta curiosa e febril narrativa.
A bem da verdade, em síntese, o romance narra as desventuras de um sujeito medíocre,
desprovido de qualquer identidade, que de maneira oportuna encontra uma forma de
abandonar tal passado mundano para viver uma nova aventura – que lhe soa mais como
um recomeço. Até aí são elementos presentes nas boas e nas terríveis narrativas literárias.
Isso, aliás, poderá levar-nos quem sabe a perdermos um ou outro tema relevante que acaba
surgindo na narrativa por causa de uma aparente pobreza ficcional já que o romance soa
muito como aqueles filmes que ficaram conhecidos como “filmes B”, de baixo orçamento e
execução tosca. Em princípio, leituras superficiais podem levar-nos a pensar isto do romance
de Mutarelli, afinal, grosso modo é a história de um americano de pensamento médio, que

1
Proposta lançada em 2007 pelo produtor cultural Ricardo Teixeira (RT Features) em parceria com a editora
Companhia das Letras. Até o momento foram publicados 11 títulos dos 17 previstos, sendo que um deles foi
publicado pela editora Rocco.
2
Conforme matéria da Folha de 2013, diferentes autores da série sofreram com bloqueios criativos ou
travamentos. À época Mutarelli reescrevia seu romance sobre Nova York e falava da dificuldade em escrever
o romance. (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-travou-escritores-da-
colecao-amores-expressos.shtml)
3
http://blogdolourencomutarelli.blogspot.com/
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sai de Minneapolis a Nova York para adentrar numa trama de elementos conspiratórios que
o levará a trepar com uma bela lagarto do espaço. Isso tudo narrado numa terceira pessoa
altamente informal, desbocada, cheia de exageros escatológicos e pela abundância do chulo,
reverberado na fixação do protagonista pelo ânus alheio. Fixação que vemos noutras obras
de Mutarelli como em O Grifo de Abdera, “tengo um coño apretado y mi culo es lindo como
el nido de um gorrión” (MUTARELLI, 2015, p. 61), ou na própria metáfora de seu romance
mais celebrado, O Cheiro do Ralo (2002). Tendo em mente estas e outras questões, a proposta
deste texto é fugir de uma leitura do senso comum e debater elementos que estejam abaixo
da camada superficial de sua narrativa cheia de delírios, sarcasmo e acidez existencial.

Um romance multigênero?

É bastante consensual a fluidez dos gêneros literários e como os bons autores são
capazes de trabalhar no limite de fronteiras que ora se esgarçam, ora se apertam, afinal, “o
século XX se encarregou de fracionar e desfigurar os gêneros literários e as ideias consagradas
a respeito da literatura" (CASTELO, 2007, p. 95). Em muitos casos os autores quando não
levam determinado gênero a estes limites, os ultrapassam. Além disso, muitas vezes dão vida
a novos gêneros, pois como uma mãe, a literatura é bastante fértil em termos de gênero. De
certo modo a literatura é um belo títere nas mãos de habilidosos titereiros que rompem,
afirmam, corrompem, misturam, enfim, “brincam” com o fazer literário usando de suas
habilidades, aproveitando de todas as ferramentas que a própria literatura lhes possibilita.
Uma “manipulação” mútua. Por isso, em alguns casos é bastante restritivo tentar definir uma
obra a este ou àquele gênero, pois poderá ela possuir um pouco de muitos deles. Além disso,

[...] é inútil, além de desastroso, que a crítica se preocupe em traçar classificações,


ditar cânones, ou balizar o que já não tem limites [...] a arte é, por definição, a
esfera do pessoal, do insubstituível e esta é, depois do turbilhão modernista, a
única certeza que fica. É o lugar do susto e do desregramento (CASTELO, 2007,
p. 100).

Seria este o caso de O filho mais velho de Deus? Numa olhada rápida talvez não seja tão
simples classificar (já que não é nossa intenção discutir nesse viés reducionista) a narrativa
de Lourenço Mutarelli, até porque,

A teoria dos gêneros é vista como meio auxiliar que entre outros, nos leva
ao conhecimento do literário, mas nunca deve ser usada para valorização e
julgamento da obra. Por outro lado, o fato de um texto apresentar características
dos gêneros, por si só, não nos leva a localizá-lo na literatura (SOARES, 2007,
p. 21).

Todavia, analisar como os diferentes gêneros se manifestam na pluralidade estética


do romance pode trazer elementos interessantes para esta análise. Em princípio a proposta
de Amores Expressos seria a de se produzirem narrativas sustentadas pela temática do amor e
tendo como espaço as respectivas cidades visitadas pelos autores. É bem verdade que Mutarelli
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a seu modo bastante peculiar consegue cumprir essa exigência, não sem ironia e provocação,
pois o romance se dá entre seu protagonista de muitas [e talvez nenhuma] identidades e
Sarah/Trudi, uma reptiliana do espaço que vive entre nós, e que acaba tendo de apresentar-
se a George em sua forma transcendental como modo de dobrar o ceticismo do homem,
“naquela noite Trudi se pôs de pé e começou a se despir. E à sua forma ia se sobrepondo
a forma ancestral. Então George vê Sarah/Trudi se transformar” (MUTARELLI, 2018, p.
289). Mais que um encontro amoroso, trata-se de uma revelação:
― Caralho, Sarah! O quê cê tá fazendo?
― Eu não quero que você vá embora sem me conhecer de verdade.
― Porra, Sarah! Santa Bosta!
George desvia o olhar.
― George, Dóobiu Q’né.
― Porra, Sarah... assim você me fode.
― Dóobiu Q’né.
― Que porra é essa?
― Eu te amo George. Eu te amo (MUTARELLI, 2018, p. 289).

A revelação acontece já no terço final da narrativa, quando, enquanto leitores, nós já


temos alguma posição a respeito do protagonista, que inicialmente nos surge como Albert
Arthur Jones, um personagem claramente transitório entre o passado d’Ele como Charles
Noel Brown, o Peanuts4, e seu respectivo presente/futuro como George Henry Lamsom, o
homem que perambulará por Nova York sob a proteção de uma instituição secreta no melhor
estilo da teoria da conspiração, a Cães Alados, que lhe dará não apenas uma nova identidade,
mas também, talvez uma nova visão “da verdade”, neste romance tão líquida quanto os livros
de Philip K. Dick. É nesse sentido que poderemos ver o encontro amoroso entre Sarah/
Trudi e George como um processo de revelação. Nas duas primeiras partes da narrativa
(vale destacar aqui que o livro enquanto estrutura reproduz características do autor em obras
como O grifo de Abdera, dividindo o romance em três partes denominadas Livro I, II e III. O
três, por sinal, número bastante místico e de fixação no autor) George vocifera seu ceticismo
e descrença não apenas na Cães Alados, mas em todo tipo de seitismo, “por que foi se meter
com essa gente que acredita em seres do espaço, em reptilianos, discos voadores e Deus?” diz
o narrador numa clara demonstração de onisciência intrusa perscrutando a mente de George
e suas dúvidas, “e se quiser continuar seguindo seus próprios pensamentos “e se não quiser
seguir esse culto? E se quiser continuar seguindo seus próprios pensamentos e acreditando
em sua descrença?”(MUTARELLI, 2018, p. 144). Seu ceticismo mantém-se mesmo após sua
participação em um ritual promovido pelo grupo: “Vocês podem até acreditar que são algo
mais que uma seita fajuta cheia de perdedores e idiotas que se julgam sábios” ele responde a
seu amigo na Cães, Bennet, para na sequência, sintetizar e reforçar sua descrença na situação,
“quanto mais tempo eu der, menos sentido fará” (MUTARELLI, 2018, p. 242). É nessa
iminência do abandono de George a toda a aparente pantomima em que se envolveu, que
Trudi, a alienígena, resolve revelar-se:

4
Referência ao personagem Charlie Brown dos desenhos animados.
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Sarah se aproxima ainda mais de George, até tocá-lo. E, ao ser tocado, suas
emoções se tornam plenas. Boas, intensas. Ao ser tocado, George transborda do
que entende como amor. Sofre uma ereção que chega a ser dolorosa e esporra em
quantidade descomunal. Após o êxtase, Ele relaxa. Sarah/Trudi o abraça. George
sente seu corpo se dissolver. Tudo se dá de forma, ao mesmo tempo, instantânea
e lenta. Um instante comporta o eterno. O corpo gelatinoso de Sarah cobre o
corpo de George. (MUTARELLI, 2018, p. 289).

Na perspectiva da discussão dos gêneros talvez pudéssemos conceber o evento como


ato central de um romance existencialista quando o sujeito cético é tocado pela experiência
espiritual. É como se a criatura reptiliana reproduzisse didaticamente a velha máxima
shakespeariana “há mais coisas no céu e na terra, Horácio, Do que pode sonhar a tua filosofia”
(SHAKESPEARE, 2015, p. 81). Aliás, a dualidade será signo relevante em O filho mais velho
de Deus, e, em grande parte, o romance parece trazer o embate constante entre o cético que
pretende manter-se lúcido num mundo paranoico e tomado por teorias conspiratórias e o
homem que deseja viver a experiência sobrenatural/fantástica/espiritual. No caso de George
isso se mostra especialmente na terceira parte do livro, momento que a própria linearidade
mantida até então, é quebrada, e a narrativa mostra-se ainda mais ébria e caótica. É quando a
educação pelo absurdo parece avançar ainda mais suas fronteiras. Mas deixemos, porquanto,
as discussões existencialistas e espirituais do romance. Elas estão, de fato, na obra, que em
muitos momentos procura debater a dualidade entre bem e o mal. Embora tais questões
estejam presentes na narrativa, seria provavelmente exagero concebermos a obra como um
romance existencialista, mesmo que seu protagonista tenha de lidar com dramas e recalques
de sua existência.
No campo dos gêneros literários a relação carnal/gelatinosa entre o humano George e
a alienígena Sarah/Trudi também poderia nos levar a uma ficção científica. Mas dificilmente
uma ficção científica que se leve a sério produziria a comicidade da situação de um George,
agora no Brasil, a narrar sua experiência com a Cães Alados e sua paixão pela reptiliana
em bares mato-grossenses, “muito animado e visivelmente alcoolizado, Julio traduz para
os amigos algo que George acabou de dizer: – E ele comeu o cu do ET” (MUTARELLI,
2018, p. 276). Embora os elementos da fantasia e do maravilhoso estejam presentes, como
é de costume na ficção científica, parece-nos que não está neles a centralidade e o efeito
estético do texto. Mais uma vez vemos sobressair a ironia, o deboche, o humor desbocado
e chulo. Tendo tais questões prementes, talvez possamos nos encaminhar para uma melhor
compreensão do gênero preponderante na inóspita narração. Antes disso, contudo,
se podemos dizer que o enredo traz algo da ficção científica, inclusive com o narrador
revelando uma onisciência temporal e preditiva a insinuar algo que ocorrerá na Nova York
de 2027, há também nele, algo dos thrillers contemporâneos ao abordar as mais loucas
teorias conspiratórias como O Código Da Vinci, de Dan Brown (2003), ou especialmente
o Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco (1988). As narrativas conspiratórias comporão a
espinha dorsal da obra de Mutarelli, não apenas no nível de sua tessitura, mas também
enquanto temática. Todavia, pensar o romance como um thriller também talvez não seja a
melhor escolha, ainda que possua elementos deste.
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Assim, a despeito da pergunta introdutória deste pequeno capítulo, não é nossa
intenção propor uma resposta, até porque o termo romance multigênero é bastante
impreciso, sendo utilizado apenas para demonstrar a diversidade de possibilidades estéticas
da trama, um amálgama de muitos recortes. Há um pouco de tudo nesta aparentemente
caótica narração [que em determinados momentos é tomada pela verborragia do narrador a
ponto de lançar dúvida momentânea acerca da coerência textual], entretanto, há no seu todo
algo que caracteriza a narrativa em termos de conjunto. O deboche, a ironia, o escracho,
enfim, diferentes elementos que ao longo da história da literatura vem delineando a sátira.
Bem verdade que conforme diz (SOETHE, 1998, p. 8) “é praticamente consenso entre os
teóricos recentes a dificuldade de uma definição única para o que seja sátira”, mas que, para
fins dessa análise, entre outras considerações do pesquisador sobre a sátira, observaremos
que “em literatura, o termo pode referir-se a qualquer obra que procure a punição
ou ridicularização de um objeto através da troça e da crítica direta; ou então, a meros
elementos de troça, crítica ou agressão, em obras de qualquer tipo” (SOETHE, 1998, p. 9).
Pensar na narrativa enquanto sátira, como já dito, uma educação não pela pedra, mas pelo
absurdo e pelo escracho, parece encontrar respaldo no próprio George quando este analisa
o envelhecimento e os inesperados da vida: “é tudo uma piada” (MUTARELLI, 2018, p.
281). Isso significa que se por um lado a narrativa ébria de Mutarelli flerta com diferentes
gêneros literários, parece-nos que é com a sátira que poderemos encontrar algo que a
unifique. Uma sátira ácida por momentos, marcada pelo ceticismo de seu protagonista,
por suas fixações e fracassos. Uma sátira de algo que ainda talvez não tenhamos aprendido
nomear, daquilo que veio depois do moderno e do pós-moderno. Um tempo, assim como
o romance de Mutarelli, de difícil classificação, que é satirizado com ironia, sarcasmo, mas
também com amargura. A seu modo, O filho mais velho de Deus é uma verborrágica sátira
dos tempos presentes construída com elementos de diferentes gêneros literários, fluídos
entre si, não sendo apenas um deles, mas um pouco de todos. Uma espécie de mosaico
Gestalt ou um neodadaísmo levado à literatura através de diferentes recortes a compor um
todo capaz de evocar o susto e o desregramento citados por Castelo.

Homônimos, onomatopeias e/ou viagens.

Ainda que, como argumentamos, seja o romance de Mutarelli, uma narrativa de difícil
classificação, pensaremos que a expressão sátira exerça papel preponderante na identidade
da obra. Tendo isso em mente, nos encaminhamos para a observação de determinados
elementos na estética do romance que talvez possam corroborar tal perspectiva. Não
desprezando discussões acerca da obra, que vimos em resenhas, destacando dentre outras
coisas a reflexão que Mutarelli faz sobre o bem e o mal e a forma binária de lidarmos enquanto
sociedade humana com tais questões, ou os demônios listados de forma enciclopédica no
romance, ou a superficialidade das teorias conspiratórias a que qualquer cidadão médio tem
acesso em canais de televisão a cabo e, não desprezando também os elementos teológicos
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presentes, em especial o conflito aparente entre deísmo e gnosticismo a permear todo o texto
[Curiosamente, a seu modo, e voltando rapidamente a questão de gênero, perceberemos que
a obra de Mutarelli traz questões que (Roberts, 2018) aborda sugerindo que “em termos
históricos, a FC expressa uma dialética particular determinada a princípio pela separação de
visões de mundo protestante e católica” e que para o autor “os textos de FC são mediadores
desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais materialistas, outras
mais místicas ou mágicas” (ROBERTS, 2018, p. 61)] neste trabalho, todavia, nos deteremos
em especial a dois elementos presentes na narrativa e que talvez carreguem mais signos do
que normalmente vem sendo observado por leitores e críticos da obra.
Um dos elementos mais comentados acerca do livro trata-se da escolha de homônimos
para nomear todos seus personagens. Mais do que homônimos, são em sua ampla maioria,
homônimos de serial killers selecionados a partir da murderpedia5. Em geral, das muitas análises
e reflexões que podemos encontrar sobre o livro, não raro, os homônimos na narrativa são
interpretados como crítica de Mutarelli ao “american way of life” fascinado por assassinos
e o armamentismo. Juntam homônimos a típicas frases americanas presentes no romance
como pedaço de bolo para embasar tais leituras. Entretanto, parece-nos especialmente na
questão dos homônimos, tratar-se de leitura mais rasa tais interpretações do fenômeno na
obra. Bem verdade que se tomarmos a explicação do autor sobre tal escolha, parece nos
levar a algo menos pretensioso e consequentemente raso, uma escolha achada ao acaso na
internet. Porém, não se pode desprezar o poder do inconsciente na produção literária, e
tenha sido pelo acaso ou necessidade de entregar uma encomenda, ou algo sendo trabalhado
no inconsciente de Lourenço Mutarelli, como veremos, a homonímia é essencial à gênese
deste romance. Mais do que isso, talvez a escolha seja fundamental para os elementos de
valor da narrativa. Para tanto, é preciso observar que um dos signos que os homônimos e
homógrafos remetem é o da ambiguidade. A natureza ambígua do livro, que como vimos
já se mostra na dificuldade de classificação da narrativa, está presente desde seu título O
filho mais velho de Deus e/ou Livro IV. Tal ambiguidade será reiterada na nomeação de todos
seus capítulos como De cada dez e/ou Na manteiga e Uma nota arbitrária e/ou O diabo entra em
cena. A ambiguidade está presente mesmo na situação que inicia a aventura de George, “não
precisava de proteção alguma. Para Ele, tudo aquilo era apenas uma aventura, uma nova vida”
(MUTARELLI, 2018, p. 74). Isso sem falar na ambiguidade de o cético George defrontar-
se com uma revelação alienígena. São muitos, portanto, os sinais ambíguos presentes na
narrativa, como o fascínio do protagonista por Richard Dean Anderson6, o McGyver, com

5
Em termos de análise e crítica literária não se pode trabalhar com aquilo que não foi efetivado, que não sobreviveu
aos diferentes filtros que envolvem a publicação de um livro. Bem verdade que há estudos da genealogia da
obra literária, entretanto, consciente ou inconscientemente, o literário é aquilo que acaba chegando aos olhos
dos leitores. Nesse sentido a homonímia é uma questão curiosa em O filho mais velho de Deus, pois conforme
o autor declarou ao site Vice, essa foi uma solução que não estava na primeira versão que foi rejeitada pela
editora. A alteração, como veremos, deu bastante consistência à narrativa e evoca signos bem mais relevantes se
comparados à ideia inicial.
6
O “McGyver” não é homônimo, mas sustenta outro símbolo reiterado e de certo fascínio sobre Mutarelli, o número
três. Perceberemos que o três será reiterado de diferentes modos no livro, dos quais se sobressaem os homônimos
geralmente compostos por três nomes. Entre outras evocações, poderíamos lembrar a santíssima trindade.
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o qual George mente ter estudado e que, ademais, provavelmente é mais famoso aqui no
Brasil que nos Estados Unidos. A ambiguidade extremada a desfilar por seus personagens
homônimos no romance vai ainda tocar a natureza ambígua da própria realidade. A reiterada
presença e anúncio de todos estes homônimos convocam para a natureza de simulacro
da trama. A mímesis, e nesse caso, uma cópia satírica, revela-se, por exemplo, quando se
compara pelo narrador a Astrum Argentum com o A. A. “Toda sociedade imita a sociedade”
(MUTARELLI, 2018, p. 86). Nesse mundo-cenário George hospeda-se no Chelsea Savoy,
cópia, imitação do Chelsea, hotel renomado e luxuoso. Aliás, toda essa ambiguidade, como
dissemos, impacta fortemente a realidade, que é uma dúvida constante aos que enredam-se na
paranóia e na conspiração. Isso é o que acaba dando ao romance notas da desconfiança de um
Philip K. Dick à própria realidade. Para o autor americano a realidade é geralmente ambígua
e frágil e Mutarelli parece reproduzir esta desconfiança em O filho mais velho de Deus. Tanto
que George viverá uma experiência epifânica muito semelhante a de personagens de Dick,
quando estes percebem uma realidade simulada da existência, quando “todos os sentidos
se aguçam e fazem com que George sinta o que ele definirá um dia como hiper-realidade”
(MUTARELLI, 2018, p. 208). O protagonista não apenas parece transcender para uma nova
realidade, mas afirmar todas as ambiguidades e reforçar todas as suas desconfianças “do
real”. Por isso, talvez seja bastante redutor observarmos os homônimos no romance apenas
como crítica ou retrato de neuroses americanas. Muito menos uma descoberta ao acaso.
Pelo exposto, parece-nos, que independentemente do processo de escolha de Mutarelli, os
símbolos evocados são bastante fortes. O mesmo ocorre quando o autor distingue o humano
e o não-humano pela onomatopeia.
A curiosa abordagem acaba encontrando uma nova forma de dizer uma das coisas que
nos faz/torna humanos e surge através de Keith Bryan, o Tripinha, amigo o qual George
admira por seus diferentes saberes enciclopédicos “Keith Bryan sabia o som que cada animal
emitia. Keith Bryan sabia que o beija-flor trissa, o besouro zune, o bode bale, o cabrito
barrega, o camelo blatera, a cigarra chichia7, o chacal uiva, a cegonha glotora, e o homem
prega” (MUTARELLI, 2018, p. 91) diz o narrador. Como já dissemos das reiterações, tal
estrutura desfilando onomatopeias será repetida contrastando com o fato de o homem ter
mais do que meros sons, meras onomatopeias. Ao homem cabe, Mutarelli lembra, não
apenas a linguagem, mas o próprio verbo. “O homem prega” dirá o narrador com certa
insistência. Junto disso constrói-se a inferência através do espelho, pois, se o homem prega,
subentende-se que do outro lado há o homem que ouve e também o homem que crê. Ainda
que tal reflexão nos chegue com o sarcasmo da sátira, Mutarelli aborda algo que pensadores
como Yuval Noah Harari têm chamado atenção na tentativa de compreensão dos tempos
presentes e futuros:

O Homo Sapiens é um animal contador de histórias, que pensa em narrativas


e não em número ou gráficos, e acredita que o próprio universo funciona
como uma narrativa, repleta de heróis e vilões, conflitos e soluções, clímaces
e finais felizes. Quando buscamos o sentido da vida, queremos uma narrativa

7
Como escrito no romance. A onomatopeia de cigarra seria ciciar. Talvez seja um engano do Tripinha.
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que explique o que quer dizer realidade e qual meu papel particular no drama
cósmico. (HARARI, 2018, p. 331).

Harari nos faz tal lembrança em 21 lições para o século 21 (2018) em um capítulo-ensaio
que discute justamente sobre a busca de um sentido para a vida, analisando a questão pelas
narrativas humanas. Parece-nos que a sátira de Mutarelli acaba adentrando a esta questão.
Procura o autor, talvez, condenar essa necessidade histórica humana de produzir sentido
através de narrativas, por mais absurdas que possam parecer, como uma teoria conspiratória
envolvendo lagartos espaciais. Tal relação parece-nos mais clara quando George ainda em
seu princípio de “proteção” começa a analisar as teorias que seu amigo Paul apresentou-lhe
sobre os reptilianos e sobre como eles estão inseridos na sociedade humana em suas mais
altas esferas do poder, “há uma série de vídeos no Youtube demonstrando e, mais do que
isso, desmascarando os reptilianos” (MUTARELLI, 2018, p. 940). É apenas o começo de um
processo de construção de hipertextos e hiperlinks nos quais o narrador parece ser tomado
por um fluxo de consciência:

Apesar de Paul ter trazido muita luz sobre os reptilianos, não podemos deixar
de citar o grande mestre e mentor que foi Bob Lazar [...] quem nos explicou
o ununpêntio [...] Quanto aos reptilianos devemos muito a David Icke [...]
Icke expôs a Fraternidade, os Illuminati ou Elite Global [...] Antes de Icke, veio
Erich von Däniken [...] antes dele, toda a turma da teosofia [...] a isso se soma
Aleister Crowley [...] E antes de Crowley, Jakob Böhme, e seguiremos quase
sem fim, passando por Amônio Sacas, até chegar a Platão [...] seguiremos para
Sócrates [...] E como não poderia deixar de ser, encontraremos o início de tudo
em Hamurabi [...] E antes de Hamurabi houve Elulu [...] Chegaremos aos Vedas
[...] E Undum já falava de fogo vindo do céu... (MUTARELLI, 2018, p. 95-97).

Aí estão evisceradas não apenas a lógica de funcionamento e assimilação das teorias


conspiratórias, pois a soma destes elementos para Mutarelli será igual “conspiração
reptiliana”, bem como, demonstrações do quanto o homem tem pregado em sua construção
social e histórica. Além disso, poderíamos também dialogar com a noção dos textos
enquanto palimpsestos “um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim
dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expõe e se expõe a ela. Quem ler por
último lerá melhor” (GENETTE, 2006, p. 5). Curioso também é observarmos que outras
narrativas poderiam adentrar ao romance, ou então, apenas embasar outras conspirações,
como é o caso dos livros cristãos que servem de base a tantas outras teorias da conspiração,
cátaros, templários, etc. Sendo uma sátira que embora com humor, não desprovida de certa
amargura, O filho mais velho de Deus se por um lado troça do absurdo, por outro, mostra
que absurdo ou não, tais narrativas produzem impactos e reverberam, já que, via de regra,
sempre encontram ouvintes ansiosos por encontrar algum sentido ao caos da existência e do
convívio em sociedade. Isso torna a ambiguidade de George/Peanuts ainda mais dramática,
pois não menos curioso que o protagonista ao fim acabe capitulando às narrativas, pois
não apenas defronta-se com “a revelação” como na parte final do livro passa ele próprio a
“pregar”, narrando sua experiência carnal/gelatinosa com a criatura espacial. Aliás, noutra
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frente de análise, poderíamos nos deter sobre as fixações e os fracassos de George, como
suas relações sexuais “amorosas”, como com Sarah Jane “que ia dar, mas só a bunda”. E
depois, quando abandonado por Sarah/Trudi, a reptiliana, esta se tornará sua nova fixação.
Curiosamente George segue caminho contrário do proposto por (HARARI, 2018, p. 377)
“assim, se você quer saber a verdade sobre o universo, sobre o significado da vida e sobre sua
própria identidade, o melhor modo de começar é observando o sofrimento e explorando o
que ele é. A resposta não é uma história”.

Conclusões breves e/ou não esqueçamos Nova York

No todo, O filho mais velho de Deus parece-nos mesmo uma grande sátira das improváveis
narrativas. Uma sátira de múltiplos pedaços. Não apenas dela, mas em consequência, da
sociedade que facilmente se enreda neste tipo de teia, senão escapista, como no caso
de George, tentativa última de dar cor ou sentido ao fracasso da existência. Aliás, talvez
tenhamos aí um elemento curioso de reflexão se levarmos em consideração o contraste entre
os distintos momentos do protagonista. O cético Peanuts carrega o amargor e a acidez da
compreensão de sua mediocridade. Não apegado a fantasias e delírios narrativos é capaz de
entender-se como o sujeito medíocre que é. A bem da verdade, sem as máscaras narrativas
que fantasiam a realidade, é provável que todos nós venhamos a compreender toda existência
como medíocre. Numa acepção mais radical desse pensamento, a frase dita pelo pai d’Ele/
Charles/Albert/George “às vezes a vida é tão desnecessária” (MUTARELLI, 2018, p. 57) e
que martela insistentemente o protagonista. Então, no caso de George, seu envolvimento
com os seres reptilianos acaba com o que inicialmente era uma fuga da sua vida pregressa
mundana, atirando-o a uma fuga pela imersão ébria na narrativa senil e improvável. Com
isso, entregando-lhe novas fixações e novos objetivos. Aliás, a embriaguez na parte final do
romance pode ser-nos mais uma mensagem deste quebra-cabeça.
Claro que haverá sempre o risco de estarmos superestimando alguns destes argumentos.
Podemos estar diante de escolhas ao acaso como entrevistas ou postagens podem levar a
supor, entretanto, mais arriscado em termos de literatura é imaginarmos soluções gratuitas.
Consciente ou inconscientemente as mensagens postas numa obra, lá estão por algum motivo.
Ademais, não fossem os tempos vividos neste exato momento, talvez pudéssemos observar
com menor atenção o que seria apenas uma trama tresloucada que não deu certo; porém,
quando os ponteiros do mundo parecem rodar ao contrário e quando líderes de potências
globais e regionais levam para a plataforma política teorias e pensamentos tão obscuros e
insanos quanto o enredo que gruda George numa psicótica teia, a sátira parece ganhar mais
força e relevância. Além disso, não podemos desprezar o papel desempenhado pela própria
internet na narrativa, a quê, referências iniciam desde os agradecimentos. Nesse aspecto é
como se Mutarelli produzisse uma narrativa dadaísta montando sua obra com pedaços de
todas as coisas e conceitos que vigoram nas camadas mais obscuras da internet – e da televisão
a cabo. Há algo proposital de control c + control v transposto para a narrativa, trazendo pedaços
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recolhidos de uma rede cada vez mais dominante e influente no comportamento off-line.
Assim a sátira recai não apenas sobre as narrativas, mas sobre as sociedades viciadas cada
vez mais em enganarem-se. Por isso não é a toa que pouco tenhamos falado neste trabalho
acerca de Nova York, razão de ser da escrita do romance. A cidade retratada com os ranços
de Mutarelli, vistos no material complementar à produção de sua escrita, desempenha o
papel de mero cenário “o lanche tem gosto de papelão na cidade-cenário” (MUTARELLI,
2018, p. 109) no que parece definir a visão da narrativa sobre cidade e reforçar a natureza
de simulacro da trama. Personagens homônimos habitando um cenário impessoal e capaz
de oprimir por meio de sua capacidade de isolar os indivíduos “George nunca se sentiu tão
só. Pensa que talvez seja pela falta de horizonte” (MUTARELLI, 2018, p. 76). Talvez por
isso a cidade a qual a primeira experiência de George tenha sido na infância (numa visita ao
Metropolitan, quando pela primeira vez tem consciência da morte vendo múmias egípcias),
afora a celeuma presente pós 11 de setembro, chegue aos leitores pela colagem de vozes
como Sinatra ou Enrique Discépolo que “caso George falasse espanhol” compreenderia o
caráter ilusório que permeia todo o enredo “verás que é tudo mentira. Verás que nada é
amor. Que ao mundo nada lhe importa. Ele apenas gira, gira...” (MUTARELLI, 2018, p. 51).
No fundo, O filho mais velho de Deus soa como uma sátira ocre de um mundo composto de
ilusões numa roda que gira, gira...

OURIQUE, J. L. P.; SANTOS, D. E. A Multifaceted Reading of the Multiple Faces of the


Novel O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, by Lourenço Mutarelli. Olho d’água, São José
do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 135-146, 2020. ISSN 2177–3807.

Referências

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2007. p. 95–101.

FOLHA. Jornal Folha de São Paulo. Encomenda travou escritores da coleção Amores Expressos.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-
travou-escritores-da-colecao-amores-expressos.shtml. Acesso em: 20 mar. 2020.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos traduzidos do francês


por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras, 2006. Disponível em: https://social.stoa.usp.br/articles/0037/3032/GENETTE-
Gerard-Palimpsestos.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.

HARARI, Y. N. 21 lições para o século 21. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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MUTARELLI, Lourenço. O grifo de Abdera. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

______. O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica. Trad. Mário Molina. São Paulo:
Seoman, 2018.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Ática, 2007.

SOETHE, P. A. Sobre a sátira: contribuições da teoria literária alemã na década de 60. Revista
Fragmentos, Florianópolis, v. 7, n. 2, p. 07–27, 1998. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/fragmentos/article/view/7685. Acesso em: 20 mar. 2020.

VICE. Website. Mutarelli põe bundas e reptilianos na frequência do mal em seu novo livro.
Disponível em: https://www.vice.com/pt_br/article/vbqq38/mutarelli-poe-bundas-e-
reptilianos-na-frequencia-do-mal-em-seu-novo-livro. Acesso em: 20 mar. 2020.

Recebido em: 21 abr. 2020


Aceito em: 25 mai. 2020

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“Nebulosa e retumbante”:
notas sobre as Badaladas do Dr. Semana

VICTOR DA ROSA*

RESUMO: O presente artigo se propõe a refazer a trajetória editorial das crônicas publicadas
originalmente na coluna “Badaladas” da revista Semana Ilustrada (1860-1876) sob o pseudônimo
Dr. Semana. Em ocasião do recente lançamento de Badaladas do Dr. Semana, volume organizado
por Sílvia Maria Azevedo no qual defende a atribuição de grande parte da série a Machado de
Assis, o artigo procura responder como a pesquisadora desafia, com tal atribuição, alguns dos
nomes consolidados da crítica machadiana, a exemplo de Lúcia Miguel Pereira, José Galante de
Sousa e Raimundo Magalhães Júnior. Mas também como a pesquisadora se vale de uma série de
pistas e de procedimentos de atribuição autoral que estes mesmos críticos deixaram como legado.
No caso dessas “Badaladas”, as duas principais complicações para uma atribuição segura da autoria
se referem, por um lado, à escassez, ou quase inexistência, de provas materiais que liguem Machado
de Assis a esse grande conjunto de textos, assim como pela natureza do pseudônimo Dr. Semana,
que era usado não só pelo autor de Dom Casmurro, mas por diferentes cronistas do periódico,
controvérsia que é tratada pelo artigo em segundo momento, com o auxílio de depoimentos de
outros pesquisadores machadianos, como John Gledson e Lúcia Granja.

PALAVRAS-CHAVE: Autoria; Crônica; Machado de Assis; Pseudônimo.

ABSTRACT: This article proposes an editorial rebuilding on the chronicles originally published in
the Semana Ilustrada (1860-1876) magazine's column "Badaladas" under the pseudonym Dr. Semana
(Dr. Week). By the recent launching of Badaladas do Dr. Semana (Dr. Semana's Badaladas), a volume
organized by Sílvia Maria Azevedo that defends a large part of the serie's autorship to be atributed
to Machado de Assis, the article seeks to respond how, by doing so, Azevedo challenges some of
the most consolidated scholars in Machado's studies, as Lúcia Miguel Pereira, José Galante de
Sousa and Raimundo Magalhães Júnior. At the same time however, Azevedo makes use of several
clues and procedures for autorship application that these very same researchers developed and left
by as a legacy. In this particular Badaladas' case, the two main intricacies for an ultimate autorship
attribution are the almost non existence of material evidence to link Machado de Assis to this large
set of texts, as well as the nature of the pseudonym Dr. Semana, which was used not only by Dom
Casmurro's author but also by other writers of the same magazine. The pseudonym controversy
is adressed in a second moment of this article with the aid of other Machado's researchers works,
such as John Gledson and Lúcia Granja.

KEYWORDS: Authorship; Chronicle; Machado de Assis; Pseudonym.

*
Departamento de Letras – Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP – 35420–000 – Ouro Preto – MG –
Brasil. E–mail: victordarosa@gmail.com
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Introdução

Dr. Semana foi um pseudônimo frequente da Semana Ilustrada, revista voltada a charges,
caricaturas e sátiras políticas de meados do século XIX, que no dia 20 de junho de 1869
anuncia a mudança do nome da sua coluna para “Badaladas”, em referência a uma campainha
até hoje usada na sede do Senado e que era, como diz o próprio colunista, “o símbolo do
parlamentarismo” e do “sistema representativo” (ASSIS, 2019, p. 56). Em justificativa logo
na estreia da nova coluna, Dr. Semana argumenta que “cada homem deve ser do seu tempo”,
e que “a [nossa] época é parlamentar” (ASSIS, 2019, p. 56). E por meio de um raciocínio
que soa familiar aos leitores mais habituais de Machado de Assis, lembrando por exemplo
o célebre conto “Uma visita de Alcibíades”, o colunista questiona e conclui: “Que diriam de
um homem que, no tempo de calção e meia, usasse calça moderna, ou fosse apertar a mão do
visconde de Jequitinhonha envergando a túnica de Catão? Era um disparate” (ASSIS, 2019,
p. 56).
A mesma coluna, que recebeu diversos títulos ao longo da história do periódico,
como “Contos do Rio de Janeiro”, “Cousas e lousas”, “Memórias da Semana”, “Crônicas da
Semana”, “O que há de novo?” e “Pontos e Vírgulas”, embora sempre assinada com o mesmo
pseudônimo, agora teria um nome mais bem-humorado e à moda do tempo – mais galante
e mais novo, diria Brás Cubas. “Se a época é de campainha, por que não darei eu badaladas
todas as semanas?”, pergunta o cronista em tom de galhofa (ASSIS, 2019, p. 56).
Para a pesquisadora Sílvia Maria Azevedo, a alteração do nome da coluna do Dr.
Semana vem acompanhada de outra mudança até então não enfrentada em toda a sua
complexidade e alcance por críticos e editores machadianos, e bem mais significativa para
a história da literatura nacional: com as “Badaladas”, a coluna passava a ser assumida pelo
próprio Machado. Foi esta percepção de Azevedo, nascida de uma longa controvérsia da
crítica machadiana em torno da autoria e da edição desses textos, que levou a pesquisadora
a se debruçar durante pelo menos três anos sobre o material, período durante o qual contou
com uma bolsa do CNPq, e analisar cada uma das crônicas, ao todo mais de trezentas – a
coluna “Badaladas” duraria sete anos, até o fim da Semana Ilustrada, que acabou em 18761.
O resultado da pesquisa são dois livros de aproximadamente 1600 páginas lançados em
2019, que contam com todas as crônicas atribuídas a Machado, além de uma longa introdução
de Azevedo, assim como notas de rodapé explicativas, detalhados índices onomásticos e
tabelas com marcas textuais (internas e externas ao texto) que apresentam uma série de
“provas” de autoria (AZEVEDO, 2019, p. 9). As aspas são da própria pesquisadora.

1
Após o fim da Semana Ilustrada, o editor da revista passa a publicar outro periódico ilustrado, a Ilustração Brasileira
(1876-1878), na qual Machado de Assis, como Manassés, assina a seção “História de Quinze Dias” e “História de
Trinta Dias”. Em relação à Ilustração Brasileira e às crônicas de Manassés, Silvia Maria Azevedo publicou dois
livros antes das Badaladas do Dr. Semana, que são os seguintes: Brasil em imagens: um estudo da revista Ilustração
Brasileira (1876-1878) e História de Quinze Dias, História de Trinta Dias: crônicas de Machado de Assis - Manassés.
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Breve história de uma controvérsia

A atribuição da autoria das “Badaladas” a Machado de Assis, na verdade, não chega


a ser uma descoberta totalmente nova de Silvia Maria Azevedo, pois algumas crônicas
inclusive já apareceram em edições em livro, como é o caso do problemático volume das
obras completas de 1937, da Jackson, onde foram publicados onze desses textos, além de
um conjunto ainda maior das “Crônicas da Semana” assinadas com o mesmo pseudônimo
(ASSIS, 1937)2. Mas foram publicados sem qualquer justificativa consistente, conforme
indicam os comentários de especialistas feitos ao longo do século XX, a exemplo de Lúcia
Miguel Pereira, José Galante de Sousa e Raimundo Magalhães Júnior, três figuras-chave da
crítica machadiana para entender a longa controvérsia em torno da autoria das “Badaladas”.
Em uma “Nota dos Editores” sumária, que se repete nos quatro volumes das edições Jackson,
os organizadores constatam que “nas ‘Badaladas’, da Semana Ilustrada, bem como nas ‘Balas
de Estalo’, da Gazeta de Notícias, colaboravam várias penas”, e se resumem a argumentar, em
uma construção sintática contraditória nela mesma, que reuniram as crônicas “que, pelo
estilo, nos pareceram, evidentemente, de Machado de Assis” (ASSIS, 1937, s/p). Se apenas
“pareceram” de Machado, como poderia ser tão evidente?
A inclusão das “Badaladas” nas obras completas inaugurou uma controvérsia que
duraria décadas, a começar pela decisão de José Galante de Sousa – que foi, como se sabe,
um reconhecido e criterioso pesquisador de Machado – de questionar tal atribuição em sua
Bibliografia de Machado de Assis, publicada em 1955 e que logo se tornou um dos guias mais
seguros ao nortear praticamente todas as edições seguintes das obras do autor. Sobre as
“Badaladas”, Galante chegou a argumentar que seria “imprudente” atribuí-las a Machado
– “sem um exame sério e meticuloso do estilo” (SOUSA, 1955, p. 434) – por conta de dois
motivos principais: 1) o pseudônimo Dr. Semana teria sido usado por diversos colaboradores
do periódico; e 2) não haveria prova material que ligasse diretamente o autor de Dom
Casmurro àqueles textos, com exceção de um caso ou outro – em três crônicas, por exemplo,
o próprio diretor do periódico, Henrique Fleiuss, chegou a identificar a autoria de Machado
escrevendo a lápis as iniciais do autor em uma das coleções da Semana Ilustrada conservada
então no Instituto Histórico (SOUSA, 1955, p. 434).
Em suas notas, Galante traz ainda outras informações importantes tanto sobre a Semana
Ilustrada quanto sobre as “Badaladas” e o pseudônimo Dr. Semana: 1) identifica a edição
exata em que a coluna “Badaladas” é anunciada; 2) reconhece no periódico outros textos
de autoria de Machado, alguns deles, mas não muitos, assinados com seu próprio nome ou
suas iniciais; 3) reconhece também que Machado colabora para a revista desde o primeiro
número, publicado em 16 de dezembro de 1860, com um poema intitulado “Perdição”; e 4)
encontra um importante artigo do escritor e jornalista Max Fleiuss, filho do diretor da revista,
publicado já em 1915, em que Fleiuss comenta: “Foi propriamente na Semana Ilustrada que

2
Os textos “Chronicas da Semana”, de 1861 a 1864, publicadas no v.1 da Jackson, constam das páginas 169 a 300;
enquanto As “Badaladas”, que aparecem no v.3, ocupam menos espaço, iniciando na página 9 até a 70, com textos
de 1871 a 1873.
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Machado de Assis conquistou, com a maior galhardia, os foros de chronista, escrevendo as
Badaladas da Semana, e assignando-as Dr. Semana” (FLEUISS apud SOUSA, 1955, p.24–25).
Se o comentário de Fleiuss dá a entender, como percebe Galante de Sousa, que a totalidade
dessas crônicas pertence a Machado, o próprio estudioso permanece reticente quanto a isso,
e termina por deixar esta série de fora do índice cronológico do autor fluminense, sugerindo
então que “os mais argutos” tenham “o prazer de resolver o problema” (SOUSA, 1955, p.
434). Foi o que Sílvia Maria Azevedo, sessenta anos depois, se propôs a fazer.
Antes de Galante de Sousa, em 1936, pouco antes das obras completas lançadas pelas
edições Jackson, Lucia Miguel Pereira já havia mencionado, em seu conhecido estudo
biográfico de Machado de Assis, as colaborações do autor na Semana Ilustrada assim como o
pseudônimo Dr. Semana, sendo uma destas menções de grande importância: de acordo com
a crítica, o pseudônimo escondia os nomes de escritores como Pedro Luís, Varejão, Felix
Martins, Quintino Bocaiúva e “vários outros” (PEREIRA, 1955, p. 94), o que se apresentou
como um dos principais complicadores para a atribuição da autoria. Em nota de rodapé, a
crítica esclarece que se baseia também em informação de Max Fleiuss, ao que parece privada.
Outro biógrafo de Machado de Assis, Raimundo Magalhães Júnior, que foi um
profícuo pesquisador das fontes do autor, tendo reunido dezenas de coletâneas a partir dos
anos 1950 com textos esparsos de Machado, contribuiria também, e em vários momentos
de seus estudos, para manter o interesse da crítica em torno deste material em específico.
No ano de 1958, o pesquisador reúne um conjunto de contos e crônicas com vinte e duas
“Badaladas”, publicadas entre 1869 e 1873, e dez “Pontos e vírgulas”, também retiradas da
Semana Ilustrada, de 1867 a 1869, além de folhetins originalmente publicados no mesmo
periódico, como “O Tobias e o Teles”, descrito por Magalhães Júnior como uma “novela
humorística” (MAGALHÃES, 1958, p. 8). Além da reunião das “Badaladas”, a mais volumosa
até então, a edição conta com um prefácio do crítico e com algumas notas em que estabelece
certos critérios para atribuição de autoria e tece críticas ao organizador das mencionadas
obras completas machadianas de 1937, na qual, segundo Magalhães Júnior, “há umas duas
ou três dezenas de páginas que, não resta dúvida, foram atribuídas a Machado, sem qualquer
fundamento idôneo”. Pelo contrário, argumenta ainda que “tudo nelas grita e indica a falsa
atribuição” (MAGALHÃES, 1958, p. 12).
A principal justificativa de Magalhães Júnior para atribuição autoral de um conjunto
de “Badaladas” a Machado de Assis, além de poucas delas serem assinadas com pseudônimos
reconhecidamente machadianos, liga-se a uma observação de fundo estilístico: a de que
Machado era um “repetidor”. Conforme argumenta o crítico sobre o estilo machadiano:
“Uma de suas características, como demonstramos exaustivamente em ‘Machado de Assis
Desconhecido’, era a repetição, de citações, imagens, conceitos e temas” (MAGALHÃES,
1958, p. 9). E ainda esclarece: “Recolhemos apenas as [crônicas] que eram assinadas com
pseudônimos notórios de Machado de Assis, ou que pelo assunto, estilo, ou certas citações,
de que usou e abusou, são visivelmente de sua autoria” (MAGALHÃES, 1958, p. 11). Em
suma, o procedimento de Magalhães Júnior foi o seguinte: no caso de aparecer citado, em
alguma das crônicas a princípio sem autoria das “Badaladas”, um trecho específico da Ilíada
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que seria também citado em outros textos comprovadamente machadianos, ou mesmo um
tema marcante, ou ainda um trocadilho, então teríamos uma prova de que a crônica foi
escrita por Machado. Em todas as “Badaladas” que são reunidas pelo crítico nesta edição
aparecem notas de rodapé dessa natureza, explicitando as repetições, que funcionariam
como provas. No mesmo prefácio, Magalhães Júnior termina por indicar que na
“Semana Ilustrada (...) haverá ainda dezenas de crônicas de Machado de Assis, à espera de
identificação” (MAGALHÃES, 1958, p. 12).
Finalmente, na edição mais recente das obras completas, os organizadores resolveram
ignorar tanto a edição da Jackson quanto também – o que talvez merecesse melhor
explicação – as edições organizadas por Raimundo Magalhães Júnior, assim como outras
informações coletadas em sua volumosa biografia3, fiando-se inteiramente às escolhas de
José Galante de Sousa, e sendo assim toda a seção das “Badaladas” ficou de fora da edição
mais recente, conforme se lê na nota de abertura: “A seção Badaladas, publicada entre
1869 e 1876 na Semana Ilustrada, não foi incluída, mais uma vez respeitando os critérios
de Galante, uma vez que sob o pseudônimo coletivo ‘Dr. Semana’ escondiam-se vários
autores” (ASSIS, 2008, p. IV).
De maneira que a presente edição das Badaladas organizada por Sílvia Maria Azevedo,
ao desafiar nomes consolidados da crítica machadiana, também deve sua existência à longa
história dessa controvérsia que deixou uma série de pistas e mesmo de procedimentos de
atribuição autoral. Afinal, além do próprio exame estilístico, proposto já por José Galante
de Sousa em 1955, a pesquisadora se vale também da técnica usada de modo recorrente por
Raimundo Magalhães Júnior para fixar parte das “Badaladas” em Contos e crônicas, de 1958,
assim como de outros indicadores autorais – que, no entanto, no presente caso, são aplicados
de modo mais coeso e exaustivo, conforme a própria Azevedo esclarece na apresentação:

A metodologia empregada no desenvolvimento do trabalho consistiu na leitura


sequencial das crônicas, a partir da qual foram identificados traços recorrentes
em relação a temas, referências históricas, culturais e literárias, citações, recursos
estilísticos. Por sua vez, o levantamento dessas constantes foi cruzado com a
leitura de outros textos machadianos (crítica literária, teatral, crônica, teatro,
tradução, contos, romances), publicados em período correspondente àquele das
Badaladas, como também em época anterior e posterior às mencionadas crônicas.
Por fim, dados referentes à vida de Machado foi outro recurso metodológico que
permitiu esclarecer certas alusões biográficas, por vezes obscuras, presentes nas
Badaladas (AZEVEDO, 2019, p. 8-9).

3
Nos dois primeiros volumes da biografia de Raimundo Magalhães Junior há dezenas de referências e comentários
tanto à publicação Semana Ilustrada quanto ao pseudônimo Dr. Semana, alguns dos quais inclusive corrigindo a
omissão de José Galante de Sousa, como neste caso: “Os primeiros desses artigos saíram na Semana Ilustrada, a
partir de 5 de setembro de 1869, sob o pseudônimo Gil, e se ocupavam do livro de versos Nuvens da América,
do autor paulista Martins Guimarães. Esses e os seguintes não foram assinalados na Bibliografia de Machado
de Assis, de José Galante de Sousa, nem recolhidos nos Dispersos por Jean-Michel Massa. Tampouco assinalou
José Galante de Sousa a publicação, na Semana Ilustrada, a 30 de janeiro de 1870, de uma pequena nota de crítica
sobre o livro de Moreira de Azevedo intitulado Mosaico brasileiro, coleção de pequenas biografias, casos curiosos
e anedotas” (MAGALHÃES, 2008, v. II, p. 106-107).
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Provas e contraprovas

No caso dessas “Badaladas”, como já foi mencionado, as duas principais complicações


para uma atribuição segura da autoria se referem, por um lado, à escassez, ou quase
inexistência, de provas materiais que liguem Machado de Assis a esse grande conjunto de
textos; e, por outro, à natureza do pseudônimo Dr. Semana, que era usado não só pelo autor
de Dom Casmurro, mas por diferentes cronistas da Semana Ilustrada, de 1860 a 1876. Daí
a organizadora do volume ter se valido de um conjunto de métodos alternativos, alguns
exaustivos, como cruzar citações, temas e personagens das “Badaladas” com outras crônicas
de Machado e textos de outros gêneros do autor, em diferentes momentos da sua trajetória.
Tais métodos aparecem descritos em grandes tabelas ao fim de cada edição, divididas em
marcas de autoria interna e externa.
Por exemplo, esta frase do visconde de Jequitinhonha, figura de destaque da política
brasileira do século XIX, que é citada em uma “Badalada” de 1869: “Recolha o seu riso, Sr.
Senador!”. A mesma imagem reaparece tanto no conto “Ernesto de Tal”, de 1873, quanto em
outra crônica de Machado, “O velho Senado”, publicada na Revista Brasileira em 1898 (ou
seja, quase trinta anos depois) e de autoria comprovada. Esta repetição seria uma “prova”
de que a tal crônica do Dr. Semana foi escrita por Machado de Assis. No caso do senador
Manuel Dantas, outra figura importante da política brasileira de então, ele é mencionado
em diversas “Badaladas” sempre por meio da mesma sentença, que aparece em pelo menos
três crônicas desse período, de 1869 a 1871: “As coisas da Igreja não devem sair à rua e
as coisas da rua não devem ir à Igreja”. Fora desse conjunto, a mesma frase se repete na
coluna “A Semana” da Gazeta de Notícias de 9 de fevereiro de 1896, também de autoria
comprovadamente machadiana. E há dezenas de exemplos como este, resultado de pesquisa
demorada e minuciosa, que exigiu anos de trabalho de Silvia Maria Azevedo, assim como
uma longa convivência com a obra e a dicção de Machado, já que a pesquisadora estuda a
obra do autor desde sua tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo em 1990.
O crítico John Gledson, um dos estudiosos machadianos responsáveis por redimensionar
a importância das crônicas do autor fluminense desde pelo menos meados dos anos 1980
quando publicou Machado de Assis: ficção e história, diz por meio de mensagem eletrônica
que a publicação destas crônicas

é uma façanha, e importantíssima para o estudo do autor, pois os textos são


cuidados, têm notas, que às vezes poderiam explicar mais, mas é pedir muito. Tem
também uma introdução útil que aborda algumas questões recorrentes da série,
como o anticlericalismo dos primeiros anos de Machado, as paródias da literatura
de péssima qualidade que se publicava, citações de Shakespeare e Molière, entre
outros temas. Se todos os textos forem realmente de Machado de Assis, ou mesmo
uma proporção grande, aumentaria aproximadamente de seiscentos a novecentos
o número de crônicas que temos do autor (GLEDSON, 2019)4.

4
Este depoimento e os depoimentos seguintes de John Gledson foram enviados por e-mail em 15 de outubro de
2019.
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No mesmo depoimento, Gledson diz acreditar que a edição também colabora para
o estudo da biografia, das opiniões políticas e até religiosas de Machado, assim como das
suas fontes e do seu desenvolvimento artístico. “A publicação faz parte de um movimento
crescente da pesquisa e das edições do seu jornalismo, e, sobretudo, da publicação de boas
edições dessa parte da sua obra, que ajudam a entender a carreira, a personagem e a obra do
autor” (GLEDSON, 2019), destaca o crítico, que no momento está editando as crônicas de “A
Semana”, de 1895, que serão publicadas em breve, com anotações, em uma revista acadêmica.
Mas o crítico chama a atenção também a outros aspectos controversos da edição: “Além
de o pseudônimo Dr. Semana ser coletivo, as Badaladas eram compostas de itens mais ou
menos independentes, e me parece que nada impede que vários autores contribuíssem para
a mesma crônica” (GLEDSON, 2019). O crítico questiona finalmente o critério estilístico
sugerido pelo próprio Galante – sendo um dos critérios usados na presente edição, entre
outros – quando insiste em um estudo sério e meticuloso do estilo. “Honestamente, não sei
como é possível satisfazer este critério. Creio que Galante, influenciado pelo momento na
crítica literária, a estilística, talvez achasse que houvesse um jeito ‘científico’ de atribuir autoria.
Duvido bastante” (GLEDSON, 2019). Ou seja, Gledson acredita que, por mais meticulosa que
seja a análise estilística, jamais será suficiente para provar a autoria desta ou daquela crônica,
e lembra ainda que a própria Silvia Maria Azevedo reconhece que algumas crônicas da série
“Badaladas” não são de Machado, o que aumentaria a incerteza. “Existem alguns textos da série
‘não atribuídos’... Isso não colocaria todos em dúvida?”, questiona (GLEDSON, 2019).
Lucia Granja, uma das principais especialistas das crônicas de Machado, lembra que
a tarefa da pesquisadora Silvia Maria Azevedo é “ambiciosa e arriscada” justamente porque
desafia grandes nomes da crítica machadiana assim como os seus projetos editoriais de maior
relevo, sendo os principais já comentados ao longo deste artigo, e comenta sobre as vantagens
e eventuais desvantagens da nova edição:

As vantagens da tarefa são evidentes: a metodologia pode ser estendida


indefinidamente pela organizadora do volume e por outros estudiosos da obra de
Machado de Assis, juntando-se “provas” e “contraprovas” da autoria aos textos,
o que ilumina tanto as crônicas quanto os outros textos machadianos em que o
escritor abordasse os mesmos trechos e assuntos. A desvantagem seria aumentar
a lista das obras completas de Machado com algum engano de atribuição de
autoria. Na falta de “provas materiais” da autoria machadiana, sem dúvida,
um passo importante para voltar a soar o sino do jornalismo machadiano é a
possibilidade de, no mínimo, recolocar no centro do debate esses textos5.

Seja como for, tanto Gledson quanto Granja concordam que o mais importante é que
o livro apresenta uma base muito bem estabelecida e critérios consistentes, embora nem
sempre definitivos, para auxiliar nesse julgamento.

5
Este depoimento de Lucia Granja foi enviado por e-mail em 13 de outubro de 2019. Sobre a história da edição
das crônicas de Machado, ver o seguinte artigo da pesquisa: “Das páginas dos jornais aos gabinetes de leitura:
rumos dos estudos sobre as crônicas de Machado de Assis”. Teresa, n. 6-7, 2005, p. 385-399. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116632. Acesso em: 3 mar. 2020.
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Outras provas (biográficas)

Aos 30 anos de idade, às vésperas do matrimônio com Carolina Augusta, com quem
se casaria em novembro daquele mesmo ano de 1869, e com alguns problemas financeiros,
como provam as cartas que chegou a enviar a amigos pedindo dinheiro emprestado, Machado
de Assis teria assumido o pseudônimo do Dr. Semana também com este intuito: para ter
uma fonte extra de renda. De acordo com os biógrafos, na ocasião o escritor contava com
um emprego modesto de ajudante do diretor no Diário Oficial e com colaborações esparsas
em outro periódico, o Jornal das Famílias. De acordo com Lúcia Miguel Pereira, o diretor da
Semana Ilustrada, Henrique Fleiuss, amigo de Machado, “homem generoso e serviçal”, foi
quem deu de presente ao escritor o seu enxoval (PEREIRA, 1955, p. 116).
O novo nome da coluna também delimitava um assunto caríssimo ao cronista Machado
de Assis: a política. De 1860 a 1861, aos vinte e poucos anos de idade, o escritor atuou como
uma espécie de repórter de política do Diário do Rio de Janeiro, quando assistia às sessões
tanto do Senado quanto da Câmara. A política era, portanto, um assunto que conhecia bem.
Mas uma das grandes novidades das “Badaladas”, de acordo com a organizadora do volume,
consiste na “perspectiva satírica que o escritor imprime àqueles temas, em consonância com
o perfil da Semana Ilustrada” (AZEVEDO, 2019, p. 20), mais livre e humorístico.
E Machado não tratou apenas de política durante os sete anos que teria permanecido
como colunista da Semana Ilustrada. Em busca de novos temas, o colunista trata também
das polêmicas em torno da maçonaria com a Igreja Católica, de espiritismo, da “epidemia
de poetas que assola o Brasil” (AZEVEDO, 2019, p. 48), do preço do caixão para defuntos,
faz charadas diversas, crítica aos curandeiros, trata dos loucos da cidade, dos “correios
amatórios” (como era chamada a moda de os namorados se corresponderem pelos jornais),
ironiza anúncios publicitários absurdos e chega até mesmo, em crônica de 9 de maio de 1875,
já quase no fim da história da revista, a escrever um poema sem nenhum sentido sobre uma
“mulher tricéfala” vista na rua do Ouvidor, conforme se lê nos primeiros versos:

Maravilha anda por cá!


Mulher tricéfala... Olá,
Falei grego! Ai, oxalá
Pudesse, como um Paxá,
Falar turco! Não, não há,
Não houve, nem haverá,
Coisa igual ao b-a-ba
Em grego: é um alvará
Da sabença, que nos dá
O néctar e o maná
Do pasmo público. Vá:
Mulher tricéfala está
Na cidade. Viu-a já?
Três cabeças! Arre lá
É decerto coisa má! (ASSIS, 2019, p. 516).

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Para complicar a história, o próprio Machado de Assis chegou a ser ironizado pelo
Dr. Semana, em seus exercícios hilários de “crítica literária às avessas”, quando se dedicava
a tecer intermináveis elogios a textos literários de péssima qualidade6. Na coluna de 29 de
setembro de 1872, ele lembra do tempo em que o “amigo íntimo, íntimo” – assim se refere a
Machado de Assis – cometia também uma “obra que [...] ressente-se do entusiasmo nebuloso
e palavroso”, e analisa verso por verso o poema “A Um Proscrito” que, segunda nota de Sílvia
Maria Azevedo, foi publicado originalmente em O Espelho na edição de 18 de setembro de
1859, ou seja, trata-se de um poema juvenil de Machado. Após Dr. Semana reconhecer que “lá
se vão uns bons quatorze anos, justamente o tempo necessário para ter nascido um menino,
mamado, mudado os dentes, jogado o pião, frequentado a escola e entrado no colégio de
Pedro II”, tempo durante o qual “fez-se a guerra da Itália, a do México, a da Dinamarca, a
da Abissínia e muitas outras” (ASSIS, 2019, p. 786), o colunista passa a ironizar os versos
de Machado. Diz que “há nos versos que desencavei agora [...] matéria para enforcar um
homem”, com eles “podia-se fazer um enterro de segunda classe”, que imaginava o poeta
“que a política é um conto de cavalaria”, e termina por pedir desculpas ao escritor: “espero
que meu amigo me perdoe a notícia que acabo de dar aos leitores” (ASSIS, 2019, p. 786–788).
Finalmente, termina por classificar a poesia como “nebulosa e retumbante”... epítetos que
nos serviriam para dar uma definição sumária dessas “Badaladas” de Machado de Assis.

ROSA, V. “Nebulous and Resounding”: Notes on the Badaladas do Dr. Semana. Olho d’água,
São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 147-156, 2020. ISSN 2177-3807.

Referências

AZEVEDO, Silvia Maria. “Machado de Assis e as Badaladas do Dr. Semana”. In: MACHADO
DE ASSIS, J. M. Badaladas do Dr. Semana. Organização, apresentação e notas de Maria Silvia
Azevedo. São Paulo: Nankin Editorial, 2019. v. 1.

GRANJA, Lúcia. Das páginas dos jornais aos gabinetes de leitura: rumos dos estudos sobre
as crônicas de Machado de Assis. Teresa, São Paulo, n. 6–7, 2005, p. 385–399. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116632. Acesso em: 18 mar. 2020.

6
Magalhães Júnior dedica um capítulo de sua biografia ao gênero de “crítica às avessas” que Machado desenvolveu,
e que teria desenvolvido justamente nas páginas da Semana Ilustrada: “Já investido no primado da crítica, Machado
de Assis escreveu uma série de artigos sobre alguns livros extremamente ruins, fazendo em tom chocarreiro os
mais desmedidos elogios a seus quatro autores. Coberto por três pseudônimos, nessas páginas jocosas fingia estar
encantado com a leitura de tais livros. A cada um desses autores dedicou vários artigos. Como essas gaiatices
literárias foram escritas num período de apenas seis meses, é lícito concluir que estava ensaiando maliciosamente
um gênero novo, humorístico, de crítica às avessas, que consistia em louvar exageradamente o que era ruim ou
péssimo. Mas sempre com a transcrição de excertos que permitissem ao leitor formar o seu próprio juízo e, portanto,
compreender que as tiradas elogiosas – primeiro de Gil e, mais tarde, do Dr. Semana e de Lara – não passavam de
enormes gozações nos infelizes escrevinhadores de tais monstruosidades literárias” (MAGALHÃES, 2008, p. 106).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
155
JUNIOR, Raimundo Magalhães. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981. 4 v.

______. Prefácio. In: MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos e crônicas. Prefácio, organização e


notas de Raimundo Magalhães Júnior. Rio de Janeiro; São Paulo; Bahia: Editora Civilização
Brasileira, 1958.

MACHADO DE ASSIS, J. M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. 4 v.

______. Chronicas (1859–1888). Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1937. 4 v.

______. Contos e crônicas. Prefácio, organização e notas de R. Magalhães Júnior. Rio de


Janeiro; São Paulo; Bahia: Editora Civilização Brasileira, 1958.

______. Badaladas do Dr. Semana. Organização, apresentação e notas de Maria Silvia Azevedo.
São Paulo: Nankin Editorial, 2019. 2 v.

PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Rio de Janeiro: José Olympio,
1955.

SOUSA, J. G. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Inst. Nacional do Livro, 1955.

Recebido em: 05 abr. 2020


Aceito em: 12 mai. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Suspensão do espaço-tempo no conto
“Morangos mofados”, de Caio Fernando Abreu

E L I O E N A I D O S S A N T O S P I O V E Z A N *1

RESUMO: A crise na literatura não é lugar de situação insolúvel. É, antes, um estado de desequilíbrio
necessário para que uma obra seja uma obra. Um terreno ou interregno onde os pés não pisam
o chão e o abismo convida a um mergulho que não precisa ter fim. Aliás, a queda parece ser o
mais interessante do que a chegada ao fundo. É nesse entremeio de espaço e tempo, abismo e
esquecimento, que “Morangos mofados”, do escritor Caio Fernando Abreu, se nos apresenta como
obra inacabada e lugar de passagem. Esperamos, portanto, neste artigo discutir aspectos do conto
homônimo à obra e de como Abreu desencadeia frenética e desmesuradamente um eu afetado,
e rege com maestria uma trama narrativo-musical, cujo andamento segue o ritmo de emoções
construídas às vezes com lucidez delirante; outras, com monólogos subliminares, que revela um
narrador que mescla simultaneamente protagonista, personagens e narratário. Assim, nosso olhar
recebe a luz de Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996), Agamben (2007), Bakhtin
(2011) e Reis (2018) e busca compreender a crise da narrativa como travessia que não se completa,
como leitura que expande sentidos, sem nunca se fechar.

PALAVRAS-CHAVE: Caio Fernando Abreu; Conto; Morangos mofados; Narrador; Narrativa em


crise.

ABSTRACT: The crisis in literature is not a place of insoluble situation. It is rather a state of
imbalance necessary for a work to be a work. A terrain or interregnum where the feet do not
tread the ground and the abyss invites a dive that does not have to end. In fact, the fall seems to
be more interesting than the arrival at the bottom. It is in this intersection of space and time,
abyss and oblivion, that “Morangos mofados”, by the writer Caio Fernando Abreu, presents us
as an unfinished work and place of passage. We hope, therefore, in this article to discuss aspects
of the homonym tale to the work and of how Abreu frantically and exaggeratedly triggers an
affected self, and rules masterfully a narrative-musical plot, whose progress follows the rhythm of
emotions sometimes constructed with delirious lucidity; others, with sublime monologues, which
reveals a narrator who mixes simultaneously protagonist, characters and narratary. Thus, our
view receives the light of Blanchot (2005), Benjamin (1994), Rosenfeld (1996), Agamben (2007),
Bakhtin (2011) and Reis (2018) and seeks to understand the crisis of the narrative as a crossing that
is not complete, as reading that expands without ever closing.

KEYWORDS: Caio Fernando Abreu; Morangos mofados, Narrative in crisis; Storyteller; Tale.

* Doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa – Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo – PUC-SP – 02011-300 – São Paulo – SP – Brasil. E–mail: elioenaisp@uol.com.br
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Introdução

O estilo ácido da linguagem direta e autoconfessional da narrativa de Caio Fernando


Abreu, num primeiro momento, se não choca, certamente incomoda o leitor. Mas, após a
acomodação, é possível depreender que o lugar de onde fala o autor-criador (na concepção
bakhtiniana), agora narrador, refrata discursos num contexto de ausência de liberdade, de
resquícios dos “anos de chumbo”, em que a democracia brasileira precisaria ser reconstruída,
tijolo a tijolo. A vanguarda cultural se desorganizara, e o que sobrara para sua geração era
o engajamento arriscado ou o “desbunde” (HOLANDA, 2015). Abreu optou pela segunda
“saída” e criou um universo habitado por personagens marginalizadas e em busca de
identidade, enredou-os numa linguagem assertiva e num estilo peculiar que mergulha e
arrasta junto o leitor incrédulo.
Esperamos, assim, a partir de um diálogo com o conto “Morangos mofados”, última
narrativa da obra homônima de 1982, refletir sobre a criação desse autor ensimesmado,
estranho ao seu tempo e deslocado de seu espaço, para constatar a existência de crise em sua
narrativa, conceito necessário e imprescindível para uma obra contemporânea. A isso soma-
se ainda a hipótese aperspectívica apontada por Rosenfeld (1996), que atribui ao romance
moderno uma transformação análoga a das artes visuais desde o Renascimento em que a
ilusão da perspectiva é sobrepujada por uma consciência que agora, valendo-se de conceitos
kantianos, prescreve as leis ao mundo e projeta a realidade sensível dos fenômenos.
A análise do conto possui como embasamento teórico os conceitos de narrativa,
narrador, abismo, espaço e tempo presentes nas contribuições de Benjamin (1994), Rosenfeld
(1996), Blanchot (2005) e Reis (2018), e busca também apoio em Agamben (2007), Bakhtin
(2011) e Possenti (1993) quanto a aspectos formais e discursivos que se situam nos limites
da prosa literária e não-literária. Para tanto, entendemos o ato criativo como um produto
da interação social, sem perder a instituição da literatura em seu plano de complexidade de
linguagem e contextos ilimitados dentro de seu próprio universo.

A narrativa na contemporaneidade

Partimos do conceito de narrativa que, para Reis (2018), no Dicionário de estudos


narrativos, pode ser compreendido por diferentes definições: é “um enunciado”; “um conjunto
de conteúdos representados por este enunciado”; ou “a arte de relatar estes enunciados”. Ou
ainda, “componente da tríade de categoria meta-histórica e universal, juntamente com a lírica
e o drama” (REIS, 2018, p. 302). Considerando este último sentido, tem a narrativa literária
“um vasto e pluricultural corpus de textos normalmente de índole ficcional, estruturados por
códigos e por signos relativamente sofisticados” (REIS, 2018, p. 303).
Na construção da narrativa entram em cena aspectos de seu processo, como a sua
fundação a partir de uma “atitude de variável distanciamento assumido por um narrador
em relação àquilo que narra”, ou seja, uma “situação de alteridade”; a revelação de uma
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“tendência para a exteriorização, viabilizando a caracterização e descrição de um universo
autônomo”; e a instauração de uma “dinâmica temporal decorrente do devir cronológico
inerente a toda história contada e às ações humanas que nela têm lugar, inscrito no tempo”
(REIS, 2018, p. 304). A “situação de alteridade” de que nos fala o autor explica conceitos já
assimilados pela crítica literária e por linguistas no século XX, como a “exotopia” bakhtiniana,
em que se permite que o olhar do outro passe a ser nosso próprio olhar e trabalhemos numa
espécie de “excedente de visão”. Assim, ao criar uma narrativa é como se o autor, impregnado
de personagens, inclusive o narrador, fosse também outra pessoa, pois “ele deve tornar-se outro
em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 13).
Já, a despeito do processo criativo e suas estratégias, a narrativa contemporânea
traz como legado uma narrativa tradicional em crise. Desde o surgimento do romance
moderno, cuja materialização se dá com o advento da imprensa, a arte de narrar, segundo
Benjamin (1994), entra em extinção, pois “as experiências deixaram de ser comunicáveis”.
Consequentemente, a sabedoria – como lado épico da verdade – também assiste à sua
extinção e o principal responsável por esse fenômeno do “declínio da arte de narrar” é a
difusão da informação (BENJAMIN, 1994). A prova disso está no cotidiano moderno em
que as pessoas apressadamente leem, ouvem ou assistem a noticiários, textos condensados e
úteis para o trabalho e para uma contida convivência social. Nesse sentido, Benjamin (1994)
explica que as pessoas perderam sua capacidade de contar histórias e muitas narrativas que
surgem apresentam fórmulas acabadas, afastando-se da sua própria verdade.
Se a narrativa era uma “forma artesanal de comunicação”, pois “mergulha a coisa na
vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BNEJAMIN, 1994), na contemporaneidade,
o declínio da narrativa tradicional abre espaço para o surgimento do romance moderno.
Rompe-se com a tradição da construção coletiva e da experiência compartilhada da narrativa,
comprometendo o fenômeno da transmissibilidade, pois a produção do romance nos moldes
burgueses é um ato individualista, solitário e focado na verossimilhança.
Nesse sentido, o romance moderno imita as relações sociais e tenciona sintetizar a vida
real como que buscasse uma certeza (BLANCHOT, 2005), contrapondo a narrativa tradicional
em que a narração é uma passagem do real para o irreal, do que existe ao desaparecimento
e isso estabelece uma diferença crucial para a arte da escrita: a literatura que representa, que
busca substituir o real por um simulacro; e a literatura que se apresenta, que simplesmente
se mostra, como a sua primeira vez, portanto, original.
Nesse aspecto, as reflexões sobre o romance apontadas por Rosenfeld (1996) revelam
a superação da visão renascentista e antropocêntrica do uso da perspectiva “ilusionista” bem
como “a realidade dos fenômenos projetados por ela” (ROSENFELD, 1996, p. 79). O autor,
amparado pela ideia de uma “unidade espiritual das fases históricas” da arte, inclui o romance
(portanto a literatura) como parte do fenômeno da “desrealização”. O romance, além de
abastecer um mercado “em escala muito maior por obras do tipo tradicional”, não possui
tanta visibilidade em seus elementos constituintes quanto às “modificações semelhantes
àquelas que na pintura provocaram verdadeiros escândalos” (ROSENFELD, 1996, p. 80).
Assim, ao criar seu próprio mundo, com suas próprias regras, a literatura assume o estatuto
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de um universo com linguagem e valores próprios. Não há o compromisso de retratar ou
representar o real, mar de apresentar, naturalmente, o real.
Segundo Rosenfeld (1996), o “romance moderno nasceu no momento em que Proust,
Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente
e futuro” (ROSENFELD, 1996, p. 80), abalando a continuidade temporal. Ora, espaço e
tempo são formas relativas da nossa consciência, apresentadas como se fossem absolutas,
e que na verdade são “relativas e subjetivas”. Coube aos modernistas mostrar a um público
pouco adaptável a essa proposta como a arte moderna nega “o compromisso com este mundo
empírico das ‘aparências’, isto é, com o mundo temporal e espacial posto como real e absoluto
pelo realismo tradicional e pelo senso comum” (ROSENFELD, 1996, p. 81).
Ao duvidar da posição totalizante da “consciência central”, a arte moderna se abre para
a reflexão crítica, como na ciência e na filosofia, sobre as posições assumidas pelo “sujeito
cognoscente”. Isso revela um posicionamento fundamentalmente novo, pois

a arte moderna não o reconhece [o sujeito cognoscente] apenas tematicamente,


através de uma alegoria pictórica ou a afirmação teórica de uma personagem
de romance, mas através da assimilação desta relatividade à própria estrutura
da obra-de-arte. A visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a
do senso comum é incorporada à forma total da obra. É só assim que essa visão
se torna realmente válida em termos estéticos (ROSENFELD, 1996, p. 81 –
colchetes nossos).

No romance moderno, os autores buscam ir além da tematização e utilizam na


própria estrutura do texto experiências que relativizam tempo e espaço. São irrupções,
no momento presente, do passado longínquo e das imagens que podem ser perturbadoras
ou muito agradáveis do futuro, que são processadas no próprio contexto da narração e
que confundem níveis temporais, levando o leitor a participar da própria experiência
da personagem. Em “Morangos mofados”, esse processo narrativo é levado ao extremo.
Não há flashbacks nem facilidades, o passado não é apenas lembrado, ele é vivenciado e
partilhado com o leitor em tempo real.
Trata-se, por fim, de um processo de “desmascaramento” do ser humano que,
eliminado ou deformado na arte visual, também se fragmenta e decompõe no romance.
Perde sua integridade, e aspectos bem particulares de sua vida são ampliados por uma
“visão microscópica e por isso não-perspectívica de mecanismos psíquicos fundamentais
ou de situações humanas arquetípicas” (ROSENFELD, 1996, p. 86). Desse modo, o fim da
perspectiva se dá quando se suprime um dos polos em que estão o homem e o mundo. Torna-
se abismo, simbolizando a distância e a cisão, como “a fragmentação da unidade paradisíaca
original” (ROSENFELD, 1996, p. 88).
Também na mesma linha da desconstrução da narrativa tradicional – e longe do
engessamento ou coisificação da narrativa como mais um produto do capitalismo moderno
–, Blanchot (1987) afirma que “o que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais.
Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que
ela nada exprime” (BLANCHOT, 1987, p. 12 apud PIMENTEL, 2012, p. 2). Bastante crítico
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em relação à tentativa de acabamento da obra literária, o autor assevera que entre a palavra
e o suposto sentido que ela carrega existe certamente um abismo que os repele, uma vez
que a palavra expressa o mundo ou as coisas ao mesmo tempo que também exprime a falta
que há no mundo ou nas coisas. Nesse sentido, “minha palavra é ao mesmo tempo uma
afirmação e uma negação do mundo inteligível, uma afirmação e um esquecimento do
princípio da contradição” (BLANCHOT, 1973, p. 108 apud PIMENTEL, 2012, p. 2). Tal é
o abismo anunciado por Blanchot (1987) que é o meio pelo qual “a palavra literária pode
ser interpretada, reinterpretada, desconstruída, reconstruída, aproximada ou deixada de
lado” (PIMENTEL, 2012, p. 2).
Nesse aspecto, a literatura é plural por abrir mão da verdade previamente estabelecida
na sociedade em favor da ambiguidade na construção de seu próprio espaço discursivo.
Enfim, “a literatura não serve para”, ela não está a serviço de uma finalidade (BLANCHOT,
2005), que nos leva a concluir que a narrativa existe e só segue as regras construídas em seu
próprio universo literário. Logo, não há um compromisso de superposição de realidades ou
verdades. Essa conclusão corrobora a ideia de “desrealização” mencionada anteriormente
por Rosenfeld (1996).
Dessa forma, a ambiguidade é a forma pela qual a narrativa se torna original e literária,
pois não busca um referente no mundo real, mas no espaço discursivo da própria literatura.
Tal concepção permite pensar em uma suspensão do espaço-tempo como um abismo, em
que existe a entrega ao devir. É o momento em que se ouve sem medo o canto das Sereias,
em que o narrar é um nada a dizer ou dizer o não-dizer, pois o foco está na desconstrução e
na performance da palavra, liberando o texto para uma pluralidade de sentidos. Basicamente
é isso que vemos na obra de Caio Fernando Abreu: espaço, tempo, personagens e enredo se
entremeiam e se confundem, causando uma experiência literária aperspectívica, deslocando
e desligando o homem e o mundo de sua linha de nexo referencial.

O narrador e o narratário

O narrador, segundo Reis (2018), “é, de fato, uma invenção do autor. Este pode, por
isso, projetar sobre o narrador [...] convicções e atitudes ideológicas, éticas ou culturais que
dá a conhecer em textos pragmáticos, em intervenções críticas, em polêmicas etc.” (REIS,
2018, p. 288). Trata-se ainda da “entidade central na análise da narrativa”, pois goza de uma
posição discursiva (sendo uma ou várias vozes) prevalecente (REIS, 2018, p. 290). Tendo
Genette (1972) por referência, Reis (2018) apresenta três tipos de narrador: autodiegético,
heterodiegético e homodiegético.
O narrador autodiegético é o protagonista, “entidade que relata as suas próprias
experiências como personagem central da história” (REIS, 2018, p. 294), sendo ainda um
“sujeito cindido” no centro da fratura que existe entre o eu da história (acontecimentos
como objetos da narração) e o eu da narração (mundo literário) o que acaba por apresentar
“ressonâncias autobiográficas” (REIS, 2018, p. 294). Ressalta-se que a relação do autor e sua
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obra, como interferente na atuação do narrador, não é consenso. Mesmo no interior da
crítica literária, verificamos, no tocante ao autor e seu estilo narrativo, a existência de diversas
correntes, que remontam a conceitos apresentados por Bakhtin, Foucault, Barthes, Blanchot
e Agamben. Aqui recorremos a três correntes apontadas por Possenti (1993): a corrente
“psicologizante”, que exigiria uma necessária “teoria da subjetividade”, buscada geralmente
na psicanálise; a corrente “sociologizante”, em que haveria a necessidade de conhecer as
“condições de produção” das obras literárias; e a corrente “formalista”, que operaria sobre
o “material especificamente linguístico”, mobilizando tais recursos expressivos tanto para a
“expressão do sujeito” quanto para a “compatibilização da produção com os tempos e seus
rigores de coerção” (POSSENTI, 1993, p. 153).
Já para Agamben (2007), que faz uma profunda análise sobre o artigo de Michel
Foucault (1967), “O que é um autor?” e discursos daí decorrentes, “a função-autor aparece
como processo de subjetivação mediante o qual um indivíduo é identificado e constituído
como autor de um certo corpus de textos” (AGAMBEN, 2007, p. 52). Há concordância sobre
a existência de um sujeito-autor, mas este só “se atesta unicamente por meio dos sinais da
sua ausência” (AGAMBEN, 2007, p. 52) e esta ausência faz com que o autor seja a simples
“testemunha, o fiador da própria falta na obra em que foi jogado” (AGAMBEN, 2007, p. 57).
E finaliza que, por isso,

o autor estabelece também o limite para além do qual nenhuma interpretação


pode ir. Onde a leitura do poeta encontra, de qualquer modo, o lugar vazio
do vivido, ele deve parar. Pois tão ilegítima quanto a tentativa de construir a
personalidade do autor através da obra é a de tornar seu gesto a chave secreta da
leitura (AGAMBEN, 2007, p. 57).

Para este artigo, consideraremos a ideia de que “uma subjetividade produz-se onde
o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um
gesto a própria irredutibilidade a ela” (AGAMBEN, 2007, p. 58). Mas não se reduzir a uma
subjetividade não significa a sua anulação completa no texto. Ficamos com o gesto do autor,
como um sujeito disperso, deslocado, fragmentado, estilhaçado, porém, que deixa pistas no
texto, verificado principalmente se considerarmos o estilo de um autor como individuação,
que revela sempre diferenças (GRANGER, 1960 apud POSSENTI, 1993, p. 179). Dessa
forma, o conto “Morangos mofados” possui as características de uma narrativa em crise,
com um sujeito que narra em diferentes planos narrativos, mas que deixa pistas da autoria,
como as preferências do autor-pessoa por músicas e leituras, sua orientação sexual e seu
estilo ácido e cinematográfico de linguagem.
Retomando os tipos de narrador, temos o heterodiegético que “relata uma história
à qual é estranho”, pois não integra a cena literária como personagem, atua antes numa
posição de alteridade e ao mesmo tempo como “um demiurgo em relação à história que
conta” (REIS, 2018, p. 296). Por isso, é comum encontrarmos esse tipo de narrador
assumindo um foco na terceira pessoa. O narrador onisciente parece ser o mais apreciado
pelo leitor comum, pois não lhe faz grandes exigências nem o convida a grandes mergulhos.

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Tudo fica num plano altamente esclarecido e confortavelmente antecipado, analisado,
descrito, resolvido.
Por fim, há o narrador homodiegético que “relata uma história em que ele mesmo
participou, como personagem” (GENETTE, 1972, p. 252 apud REIS, 2018, p. 297). Ele não
é o protagonista, mas “uma figura secundária, quer numa posição distanciada, quer muito
próxima e solidária com ele” (REIS, 2018, p. 297). Pode ocorrer ainda um nível hipodiegético
de narrador em que uma personagem se faz narratário de um relato. Em “Morangos mofados”,
há momentos em que o narrador funde todos os papéis. O narratário mescla-se à narrativa,
surge repentinamente num entreato, em meio ao fluxo de ações que desdobra na descrição
do narrador, no pensamento do protagonista, no comportamento de uma personagem e
nas considerações do narratário. Em sobreposições, recortes, intervenções, em cenários e
situações que exalam delírios surrealistas.
O narratário, dessa forma, pode ser compreendido como o “o destinatário do discurso
do narrador, constituindo, nesse sentido, uma entidade inerente à narrativa e, como tal,
assumindo uma dimensão puramente textual” (REIS, 2018, p. 298). Assim como se dá a
distinção entre autor/narrador, o narratário se diferencia também do leitor real da narrativa.
Daí decorre uma dificuldade de identificar sua presença ou participação no texto, pois nem
sempre é “explicitamente mencionado” pelo narrador (REIS, 2018, p. 299).
Retomando o conceito de narrador hipodiegético, temos, segundo Reis (2018),
“num caso extremo, narrador e narratário convergem numa única figura, episodicamente
desdobrada: no monólogo interior, o narrador assume-se como destinatário imediato de
reflexões anunciadas na privacidade de sua corrente de consciência” (REIS, 2018, p. 300).
Obviamente que “Morangos mofados” não é um monólogo interior, mas sua construção
altamente crítica utiliza esse recurso de modo amplo por se tratar de uma narrativa
predominantemente psicológica. Isso é perceptível pelas poucas descrições de cenários e
dos deslocamentos espaciais. A mente do protagonista transita do consultório médico ao
apartamento sem perder o enredo que aborda a condição humana. O corpo e a materialidade
parecem em segundo plano. As memórias do protagonista desfilam sempre com considerações
cruas, senão chulas, que apresentam uma personagem, tendo como cúmplice o narrador,
presa ao presente e ao passado concomitantemente.
Após essa breve abordagem teórica dos estudos literários, propomo-nos a verificar no
conto “Morangos mofados” como se constituem e se relacionam o narrador, o narratário
e as demais personagens, em uma narrativa em crise, uma vez que explora o tempo não-
cronológico e subverte noções de espaço. Assim, a partir dos conceitos ora revisados até aqui,
como o sujeito discursivo, a narrativa em crise (pela cisão e fragmentação das relações sujeito,
tempo e espaço) e de posições e níveis narrativos conflitantes e dispersos na construção do
conto, tencionamos constatar o valor literário da obra em que há um “estado de desequilíbrio
necessário” uma vez que escapa às convenções das formas narrativas tradicionais que buscam
soluções fáceis para um público pouco exigente e propenso a uma catarse esperada como
ocorre com muitos best-sellers.

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Diálogo entre expressão musical e arte literária

O conto “Morangos mofados” é o desfecho de uma sequência de contos que são


apresentados em duas partes distintas no plano geral da obra: “O mofo” e “Os morangos”.
Trata-se da descoberta de uma doença e o modo como o protagonista lida com ela. O ritmo
imprimido à narrativa revela uma intrincada forma de expressão musical uma vez que
o conto é organizado em cinco partes ou movimentos, cujos subtítulos e consistência se
referem a elementos musicais, a saber: [I] Prelúdio, [II] Allegro agitato, [III] Adagio sostenuto,
[IV] Andante ostinato e [V] Minueto e rondó.
Importante retomar aqui o conceito de expressão musical que é o conjunto de todas as
características de uma composição musical que podem variar de acordo com a interpretação.
Em geral, a expressão engloba variações de andamento (cinética musical) e de intensidade
(dinâmica musical), bem como a forma com que as notas são tocadas individualmente
(acentuação – staccatto, tenuto, legato) ou em conjunto (articulação ou fraseado) (WIKIPEDIA,
2019). Logo, os movimentos de “Morangos mofados” expressam estado de espírito do
narrador que ora ironiza com humor (allegro agitatto), ora dispara cenas e ações justapostas
com revolta e obstinação (adagio sostenuto), como veremos adiante.
Por ora, voltemos ao Prelúdio que, segundo Houaiss (2019), é um termo musical surgido
em 1789, em que “se canta ou se toca para experimentar a voz ou um instrumento”; ou
“composição que serve como introdução para outra mais consistente formalmente”; pode ser
também “peça musical escrita ou improvisada, tocada antes da execução de uma obra, antes
do início de uma cerimônia ou como introdução sinfônica de algumas óperas; preâmbulo”
(HOUAISS, 2019). Seja como for, em “Morangos mofados”, há uma epígrafe que apresenta
os primeiros versos de “Strawberry fields forever”, canção de Lennon e MacCartney (1967),
que dão o tom e antecipam a presença de morangos no conto, revelando também a influência
musical do autor-pessoa Abreu.
A imprecisão de um prelúdio, a experimentação de instrumentos sem se tratar ainda da
execução oficial, é observada logo no parágrafo de abertura do conto com o uso da expressão
“no entanto”, um articulador que geralmente contrapõe o dito anterior. Embora não haja
texto anterior, há óbvia intertextualidade com o desfecho de A hora da estrela, de Clarice
Lispector (1977), escritora de referência para Abreu, em que o narrador considera Macabéa
uma “caixinha de música meio desafinada” (p. 87) e depois faz uma provocação irônica:

Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre.


Mas – mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim (LISPECTOR, 1977, p. 87).

E o conto “Morangos mofados” dá continuidade narrativa a esse desfecho, ao retomar


o mote “morte” e “morangos”.

No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era
dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por
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exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-
se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas é-o-final-que-importa (ABREU,
2015, p. 201 – grifos nossos).

As sensações de dúvida, de desejo de continuidade – ou não – da vida, soam confusas,


tal qual instrumentos sendo experimentados por músicos no prelúdio da execução musical.
De fato, não há arranjos nem partituras. Arrisca-se uma frase interrompida, entregue ao
leitor ou narratário: “sob o risco de” ou a uma pergunta sem resposta “e queria?”. Em um
nível hipodiegético, o narratário é implicado – e não convidado – na trama e, desde o início,
experimenta o dilema existencial, um conformismo aparente, do protagonista anônimo.
Tanto a descontinuidade de “sob o risco de” quanto a dúvida “e queria?” colocam o narratário
no plano da narrativa e tal enredamento deverá ocorrer durante toda o conto.
Na segunda parte, Allegro agitato, andamento alegre, rápido e dramático, a cena toda se
passa no consultório do médico que examina o protagonista. O allegro se justifica pelo humor
irônico em que o médico cantarola sem voz Nostalgias, um tango de Carlos Gardel (s/d), e faz
referência direta ao poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira (1930), e o “tango argentino”.
O agitato, por sua vez, está no diálogo imprevisível entre o protagonista e o médico, em que
narrador, protagonista e narratário se expressam como que em uníssono, em: “Caro senhor.
[a] Acendeu outro cigarro, [b] desses que você fuma o dobro para evitar a metade
do veneno, [c] mas não é no cérebro que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não
aparece em check-up algum” (ABREU, 2015, p. 203 – grifos nossos).
Aqui se tem o narrador em [a] no espaço-tempo do plano narrativo, mas que está no
limiar, ou seja, fora e dentro das cenas simultaneamente (poderíamos afirmar que, talvez,
atuando entre os tipos heterodiegético e homodiegético de narrador, por atuar como uma
personagem-testemunha da cena); o narratário em [b] implicado pelo pronome de tratamento
“você” para concordar com o raciocínio de fumante expresso pelo narrador; e a personagem
protagonista em [c] que se dirige ao médico, para contestar a localização da doença.
Esse jogo é recorrente na narrativa, técnica que se evidencia pelo uso de vírgulas em
lugar de pontos, portanto, uma pontuação gramaticalmente irregular, mas necessária para
criar efeitos de sentido do vazio, do deslocamento, estabelecido entre os atores comunicantes.
Ora, o espaço-tempo da narrativa não obedece a um padrão linear, mas apresenta tempos
e espaços superpostos e cruzados de passado e presente. Há diversos momentos de
desequilíbrios, ambiguidades e abismos, como nas falas do narrador e do médico:

Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações
sociopolítico-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria
Motivada Pela Paranoia dos Grandes Centros Urbanos, cara bem-
barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa vez disse que os
médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade constante com a carne
humana, considerou), e este? (ABREU, 2015, 203 – grifos nossos).

Nesse trecho, quem diz “cara de próteses perfeitas”? Quem diz “uma puta certa vez
disse...”? Quem pergunta “e este?”? O narrador esteve com (ou ouviu de) uma prostituta sobre
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“médicos tarados”? O narrador é do tipo heterodiegético, homodiegético ou autodiegético;
ou participa da narrativa em nível homodiegético (REIS, 2018, p. 297)? A ambiguidade
parece ser a chave, mas não sem causar desequilíbrio e oferecer um abismo de possibilidades.
Temos ainda que “a tentativa de reproduzir este fluxo da consciência – com sua fusão dos
níveis temporais – leva à radicalização extrema do monólogo interior” (ROSENFELD, 1996,
p. 83). Tal efeito, como já dissemos, é recorrente em todo o conto de Abreu: parece um
monólogo em que as personagens se revezam para exprimirem pensamentos em tempos
desconhecidos ou dispersos, importando mais o impacto de suas revelações do que tentar
situá-las em algum lugar da cena montada.
Esse processo de desconstrução, concordando com Rosenfeld (1996),

não só modifica a estrutura do romance, mas até a da frase que, ao colher o denso
tecido das associações com sua carga de emoções, se estende, decompõe e amorfiza
ao extremo, confundindo e misturando, como no próprio fluxo da consciência,
fragmentos atuais de objetos ou pessoas presentes e agora percebidos com
desejos e angústias abarcando o futuro ou ainda experiências vividas há muito
tempo e se impondo talvez com forma e realidade maiores do que as percepções
‘reais’. A narração torna-se assim padrão plano em cujas linhas se funde, como
simultaneidade, a distensão temporal (ROSENFELD, 1996, p. 83).

O mesmo recurso estilístico da sobreposição ou ambiguidade das categorias espaço,


tempo, personagem, enredo, verificamos em:

Um [a] tranquilizante levinho levinho aí uns cinco miligramas, que o


senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, [a][b] ao deitar-se, [b]
olhos vidrados, mente quieta, coração tranquilo, [b][c] sístole, pausa,
diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico
nas emoções” (ABREU, 2015, p. 205 – grifos nossos).

Aqui, a fala do médico [a], expressada por um coloquialismo eufêmico, comum em um


diálogo geralmente assimétrico entre médico e paciente (“tranquilizante levinho, levinho
aí uns cinco miligramas”), confunde-se e se interpenetra na fala do narrador [a] em “ao
deitar-se, [b] olhos vidrados, mente quieta, coração tranquilo”, que, por sua vez, refere-se
ao fato e não ao som do instrumento [c] que descreve o batimento cardíaco do protagonista:
“sístole, pausa, diástole [...]”. Mais uma vez, a confluência de elementos narrativos mostra
um narrador ao mesmo tempo homodiegético e autodiegético, perceptíveis na transição da
fala da personagem para a fala do protagonista e depois, numa espécie de onomatopeia não
representativa dos sons mas das palavras utilizadas, do protagonista para o narrador.
Há nesse trecho ainda intertextualidade com a canção Coração tranquilo, de Walter
Franco1 (1978), e não sabemos se é o médico ou o próprio aparelho que diz: “sístole, pausa,
diástole...”2. Há ainda intertextualidade com Pneumotórax, de Bandeira, com o dizer “trinta

1
Canção que possui apenas quatro versos: “Tudo é uma questão de manter / A mente quieta / A espinha ereta /
E o coração tranquilo” (1978).
2
Os movimentos cardíacos, conhecido como ciclo cardíaco, são a sístole e a diástole. A contração ventricular é
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e três” e a sequência de pontos ou reticências múltiplas, conotando o tempo ou a própria
respiração solicitada pelo médico.
Na terceira parte do conto, o título Adagio sostenuto é a expressão musical de andamento
lento e persistente. O termo adagio deriva de "ad agio", que significa “comodamente”
(WIKIPEDIA, 2019), e sustenuto, que significa “executado lentamente”, “sustentado”
(HOUAISS, 2019). No plano narrativo, após o diálogo com o médico, o protagonista busca,
agora em seu apartamento, uma forma de passar o tempo que se arrasta, justificando-se
assim a lentidão teimosa de um adagio sostenuto. Nota-se que Abreu não explora o espaço
físico das cenas. O seu espaço é o da própria narrativa, o “espaço diegético” (REIS, 2018),
onde se apresentam particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor. O “tempo
diegético” (REIS, 2018) é tomado pela introspecção, busca de explicações com retornos
constantes a experiências passadas, como um ser totalizante, feito de todos os tempos pari
passu. As ações se dão em forma de desejos, insinuações e sexualidade.
Nesse sentido, as ações subsequentes sugerem que o protagonista começa a se masturbar:

[...] quis então como antigamente ouvir outra vez os Beatles, mas ainda na
cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos [...] Acariciou o pau
murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível
de apartamento de homem solteiro [...] precisava inventar um dia inteiro ou
dois [...] enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda
desgrenhada de violinos, Wagner, supôs [...], e com a outra acariciava o pau
começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis (ABREU,
2015, p. 205-207 – grifos nossos).

A escolha léxica do autor revela uma relação de intimidade com o narratário e do


protagonista com o próprio corpo, pois ao descrever uma cena de sexo, utiliza expressões
coloquiais senão chulas (“pau” em vez de “pênis”) e apresenta (sem representar) o ato
masturbatório como extensão de sensações musicais, da solidão e do enfrentamento da
morte prenunciada.
Em outro trecho, o narrador mesclado com o protagonista, que já havia se excitado
com o pensamento em Alice, agora diferenciando a personagem de Lewis Carroll (1865) de
uma ex-namorada também Alice:

[...] juntas nodosas [das mãos] [a] revelando angústia & sensibilidade, como
diria Alice, [a][b] mas Alice foi embora faz tempo, [b] a cadela que eu até
comia direitinho, estimulando o clitóris comme il faut, [c] não é assim que
se faz que se (ABREU, 2015, p. 206 – grifos nossos).

Aqui, ao mesmo tempo em que faz referência à astrologia [a] em “revelando angústia
& sensibilidade”, o narrador se interpenetra no protagonista em [a][b] “mas Alice foi embora
faz tempo” e, em seguida, o protagonista explícito [b] “...que eu...” e “estimulando o clitóris
comme il faut” (em francês “como deveria”) e na personagem Alice (interlocutora) distante

conhecida como sístole e nela ocorre o esvaziamento dos ventrículos. O relaxamento ventricular é conhecido
como diástole e é nessa fase que os ventrículos recebem sangue dos átrios (SOBIOLOGIA, 2019).
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no tempo e no espaço [c] em “não é assim que se faz que se”. A interrupção da oração é a
própria interrupção do pensamento, construído por sobreposições de frases com imagens
difusas. Assim, de acordo com Rosenfeld (1996), como efeito dessa forma de narração
temos “o intermediário que desaparece ou se omite”, uma vez que o narrador apresenta a
personagem no “distanciamento gramatical do pronome da terceira pessoa ‘ele’ ou ‘ela’ e da
voz do passado” (ROSENFELD, 1996, p. 83).
Vemos ainda que a consciência de Alice, uma personagem distante, apenas figurante da
memória do protagonista, “passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato
presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance” (ROSENFELD,
1996, p. 83-84 – grifo do autor): “não é assim que se faz que se”. Consequentemente, além
das formas de tempo e espaço, desaparecem também as categorias da causalidade e seu
encadeamento lógico de motivos e situações, com seu início, meio e fim, bem como o enredo
e a personagem convencionais.
Em meio ao ato sexual solitário, há pensamentos, devaneios, vertigens, e, em seguida,
o vômito. Novamente, ação e pensamento se mesclam:

Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até
o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho,
onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas
as caixas d’água de todas as cidades [...] (ABREU, 2015, p. 207 – grifo nosso).

O instinto do protagonista é cobrar de sua própria consciência valores, ideologias e


utopias (“comunidades rurais”, do movimento hippie; “nirvanas sem pedágio”, das culturas
hinduísta e budista; “ácido em todas as caixas d’água”, de teorias de conspiração) represadas,
talvez culpadas pelo estado de confusão e doença em que ele se encontra agora.
Em seguida, a epígrafe do conto, que consideramos como escolha explícita do autor-
pessoa que acompanha o mergulho ao mundo narrativo do autor-criador, é trazida de forma
contundente: “Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços
de morangos boiando, esverdeados pelo mofo” (ABREU, 2015, p. 207).
A quarta parte do conto, que se intitula Andante ostinato, é o movimento musical
persistente e repetido numa mesma altura (WIKIPEDIA, 2019). O primeiro parágrafo é
extenso com ações e descrições plenas, porém com descontinuidades que se alinham ao
que Reis (2018) define como “narração simultânea”, em que um ato narrativo “coincide
temporalmente com o desenrolar da história” e que “ocorre numa situação específica: a
enunciação do monólogo interior” (REIS, 2018, p. 284):

Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava
Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais
do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday3 em pé na escada entre
paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no
topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you´ve
changed, baby oh baby, you´ve changed so much”, estendeu a mão para socorrer
John Lennon [...] (ABREU, 2015, p. 208-209 – grifos nossos).

3
Billie Holiday (1915-1959): cantora e compositora norte-americana de jazz.
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A sequência é construída a partir de contradições semânticas (“cemitérios sem túmulos”,
“degraus subindo para o nada”), contraposições frasais (“com Billie no topo decepada, solta
no espaço de escombros”) e visões surreais (“estendeu a mão para socorrer John Lennon”).
Ambiguidades lançam o leitor ao abismo de sentidos em que não importa mais tentar
interpretar o texto, mas simplesmente deixá-lo fluir. Não há controle, nunca houve, é a
travessia de Ulisses da qual nos fala Blanchot (2005) em meio ao canto das Sereias. Não
se trata de querer chegar ao fim e declarar o desfecho heroico, mas de se deixar cair, de
experimentar o irreal, a combinação impossível, o não-dizer.
No plano da narrativa, parece ser uma descida a camadas do texto, como as águas do
mar que vão ficando frias à medida que se mergulha, em que o narrador revela o tratamento
psiquiátrico a que o protagonista vinha se submetendo. Repitamos: narrador, protagonista
e narratário são cúmplices na extensa descrição-ação-pensamento. De outro modo, como
explica Rosenfeld (1996), a “desrealização” pressupõe que a personalidade individual carecia
de “desfazer-se”, tornando-se abstrata no processo de “eterno retorno”, para revelar as
“configurações arquetípicas do ser humano”, que são “intemporais como é intemporal o
‘tempo mítico’ que, longe de ser linear e progressivo (como é o tempo judaico-cristão), é
circular, voltando sobre si mesmo” (ROSENFELD, 1996, P. 89). Esse efeito de circularidade,
portanto, é explorado ao extremo no conto de Abreu.
O parágrafo termina com uma referência a diversas escolas ou formas de tratamento
da psicologia em: “Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana jungiana reichiana rankiana
rogeriana gestáltica. E mofo de morangos” (ABREU, 2015, p. 209).
Da relação de escolas de psicologia, colhemos: Melanie Klein (1882-1960), psiquiatra
austríaca que se especializou na mente infantil; Carl Jung (1875-1961), psicanalista suíço,
fundador da psicologia analítica; Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista austríaco; Carl
Rogers (1902-1987), psicanalista estadunidense (Abordagem Centrada na Pessoa) e Gestalt
(doutrina) ou gestalt-terapia, modelo psicoterápico com ênfase na responsabilidade de
si mesmo. Apesar de toda intervenção científica, no final, repercute uma frase verbal
para mostrar a ineficácia dos anos de análises: “E mofo de morangos”, ou seja, o “mofo”
continuava presente.
A última parte do conto é Minueto e rondó, com dupla acepção, sendo o minueto “dança
de passos miúdos” (menus), caracterizada pela delicadeza dos movimentos (WIKIPEDIA,
2019); e rondó, termo surgido em 1858 que, na sonata e na sinfonia clássicas, é uma “peça
brilhante que serve de movimento final, caracterizada pela repetição de uma frase musical
(refrão) entre os couplets” (HOUAISS, 2019).
A delicadeza está presente no recurso da autocorreção, em que o narrador explicita
uma intervenção metanarrativa: “Amanhecia, não havia ninguém na rua. // Não, foi assim:
debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima [...]” (ABREU, 2015, p. 210 – grifos nossos).
Há uma certa leveza nos parágrafos seguintes que condiz com a delicadeza de um
minueto. Inclusive, o narrador começa a introduzir personagens imaginárias, cuja existência
tenta justificar: “Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente
e finalmente apertou o botão? [...] Sabia que não” (ABREU, 2015, p. 210 – grifos nossos).
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Já no movimento do rondó, há o clímax que parece ocorrer em duas frentes, ambíguas,
uma no plano concreto: a ejaculação como êxtase físico do protagonista; e outra no plano
abstrato: a sublimação como êxtase da alma do protagonista. Ele se vê barroco, com sua
“cornucópia4”, e depois bizantino, com “ouro sobre azul”, e, por fim, gótico, em sua “magreza
mística”. Geme e se torce e revela o inesperado: “Poderia talvez ser internado no próximo
minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração
da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido” (ABREU, 2015 p. 208-209).
Em meio ao êxtase, o protagonista parece atingir um outro nível de sensibilidade
humana, alinhando-se à obra que menciona: A sagração da primavera, de Igor Stravinski5
(1913). A música como meio de libertação associada ao sexo, como eros, princípio de vida.
O protagonista, teimosamente, não recorre ao tango argentino, mas à música orquestral
anticlássica e moderna, repleta de dissonâncias e assimetrias. A vida torta, imperfeita,
mofada, agora renovada, porém inacabada, potência do que está por vir, mesmo porque não
sabemos nem podemos afirmar ao certo se o desfecho ocorre no plano físico ou emocional.
E conclui o narrador:

Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só


enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível
plantar morangos aqui?
Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos
vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim (ABREU, 2015, p. 208-209 – grifos nossos).

Os morangos deixam de ser verdes e mofados e surgem vermelhos e vivos, como a


dupla face morte/vida. Talvez, ecoando o sim de A hora da estrela mas num outro tempo-
espaço, próximo e distante daquele. Em ambos, porém, um “sim” que não se opõe ao “não”,
mas são interfaces um do outro, abrindo-se para a potência do contingente, isto é, do que
pode ou não tornar-se ato. Dessa ambiguidade explícita constata-se a “fórmula” do romance
iniciado por Marcel Proust em que, segundo Rosenfeld (1996),

o mundo já não é um dado objetivo e sim vivência subjetiva; o romance se passa


no íntimo do narrador; as perspectivas se borram, as pessoas se fragmentam,
visto que a cronologia se confunde no tempo vivido; a reminiscência transforma
o passado em atualidade (ROSENFELD, 1996. p. 92).

O não-desfecho é gritante. O presente, repleto de reminiscências do passado dentro


e fora do plano narrativo, pois dialoga com os “morangos vermelhos” de outra narrativa, a
4
Cornucópia: vaso em forma de chifre, com frutas e flores que dele extravasam profusamente, antigo símbolo
da fertilidade, riqueza, abundância, e que, hoje, simboliza a agricultura e o comércio [Us. tb. em ornatos
arquitetônicos, floridos etc.] (HOUAISS, 2019).
5
Em 1973, o compositor e maestro Leonard Bernstein disse em uma passagem: "Esse papel tem sessenta anos
de idade... Também tem as melhores dissonâncias que alguém poderia ter imaginado e as melhores assimetrias e
politonalidades já feitas, seja qual for o nome que você lhe queira dar” (WIKIPEDIA, 2019).
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de Lispector, além de proporcionar vivência ao leitor, revela um narrador que desconhece
o futuro tanto quanto suas personagens. A dúvida é partilhada e, em vez de onisciência, há
conivência, um viver junto, um partilhar de sensações que mesclam narrador, personagens,
narratário, em um fim incerto, indesejado e impossível. Um “sim” dito por todos em um
único gesto.

Considerações finais

“Morangos mofados” apresenta, no plano discursivo, uma narrativa em crise, com


focalização que se torna difusa, mesclando narrador, personagens e narratário. Embora, o
narrador não explicite sua relação com o protagonista, é possível considerá-lo como narrador
homodiegético, pois a aproximação entre os dois é feita de tal forma em que os discursos de
ambos se misturam e assumem uma única visão ou percepção dos fatos narrados. Nesse
sentido, não descartamos um narrador de nível autodiegético, embora em menor grau, e de
nível hipodiegético, uma vez que o narratário se vê implicado na narrativa.
Desse modo, temos um narrador solidário, cúmplice do protagonista em suas
considerações sobre a vida e a própria situação narrada. Compartilha pensamentos e ações,
justificadas pelo delírio, resultado de medicamentos e surtos psicóticos que mesclam valores
e atitudes eruditos e eróticos. Mas, que também, revelam a “técnica” de “desrealização”
narrativa com o rompimento da perspectiva do romance tradicional e sua estrutura linear e
cronológica. Nesse conto, o narrador deixa de assumir a confortável posição de onisciência
e carrega tantas dúvidas quanto a das personagens que descreve e com quem convive e
compartilha seus dilemas.
No plano formal, da linguagem, a sintaxe é explorada com justaposições de orações,
com uma pontuação que privilegia o uso de vírgulas, que contribui para o efeito de abismo,
ambiguidades e desconstruções, que não nos permite dizer ao certo quem narra e o que
narra, ou seja, uma obra “não acabada” (BLANCHOT, 2005) tanto em seus meandros
(microestrutura textual) quanto no panorama de sua urdidura (macroestrutura textual). Tais
escolhas do autor-criador também colaboram para a inconclusividade da narrativa em crise,
pois escapa da fórmula da representação, da simples imitação da realidade, e se apresenta,
como aquilo que é, como aquilo que existe, próprio do universo literário.
Quanto à musicalidade, em diferentes andamentos musicais, os morangos estão
presentes e transmutam do verde mofo para o vermelho vida, num movimento que embora
pareça buscar libertação ou superação, simbolizado pelo sexo solitário e sem culpa, deixa
a narrativa em suspenso, em potência, que vislumbra o inacabamento, o não fechamento.
Parece tratar-se ainda de um vislumbre de autoconsciência, de uma tomada de consciência de
si, em que assumimos a condição humana de existência, com todos os percalços e realizações.
O conto de Caio Fernando de Abreu revela um autor contemporâneo, cujo estilo de
linguagem de sua criação verbal possuem as características de uma narrativa em crise, que
rompe totalmente com a estética do romance tradicional. Apresenta o rompimento com o
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tempo cronológico linear e aspectos da construção espacial e extrapola a relação distância-
aproximação entre narrador, personagens e narratário, criando efeitos de sentido que
contribuem para tornar a história uma curiosa experiência literária.
“Morangos mofados” permite, enfim, uma travessia no mar de incertezas, em que
narrador e protagonista ouvem a música sublime e abismal de Stravinski, que parece conduzir
a uma espécie de epifania invertida (como que o oposto de Clarice) e para além do canto das
Sereias. Mas a vida eros continua. Continua? Acho que sim. Que sim. Sim.

PIOVEZAN, E. S. Suspension of Space-time in the Short Story “Morangos mofados”, by


Caio Fernando Abreu. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 157-174, 2020.
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Recebido em: 16 dez. 2019


Aceito em: 23 fev. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Remodelações da poética romanesca em
Cachalote: um estudo de caso para apreensão do
romance gráfico

LUCAS ZAFALON GARCIA*

RESUMO: Este trabalho investiga possíveis remodelações do gênero romance no gênero romance
gráfico. Unindo a metodologia bibliográfica ao estudo de caso, relaciona-se, primeiro, uma forma
de conceber o romance, de linhagem marxista, dada por autores como Georg Lukács, Walter
Benjamin, Theodor Adorno e Lucien Goldmann, com o histórico de surgimento e de consolidação
do termo romance gráfico. Em seguida, analisa-se a obra Cachalote, de Daniel Galera e Rafael
Coutinho. Com esse trabalho, percebe-se a forma do romance gráfico como expressão, no interior
da arte sequencial, de um desalento típico do indivíduo moderno imerso no mundo capitalista.
Através de estratégias multimodais, Cachalote associa-se com a fragmentação e a individualização
comuns ao romance.

PALAVRAS-CHAVE: Arte sequencial; Cachalote; Daniel Galera; Poética; Rafael Coutinho;


Romance; Romance gráfico.

ABSTRACT: This paper studies how a graphic novel redesigns some aspects of the novel.
Combining a bibliographic research and a case of study, this paper, first, compares a specific view
of the novel, as developed by authors as Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno and
Lucien Goldmann, with the emergence and consolidation history of the graphic novel. After
that, the work Cachalote, by Daniel Galera and by Rafael Coutinho, is analyzed. The reflections
made in this research show how the graphic novel can be seen as a way of expression, inside
the sequential arts, for dealing with an emptiness that is typical of the modern capitalist world.
Through multimodal strategies, Cachalote recollects the fragmentation and the individualization
that are common to the novel.

KEYWORDS: Cachalote; Daniel Galera; Graphic novel; Novel; Poetics; Rafael Coutinho;
Sequential arts.

* Graduado em Letras Português-Inglês – Instituto de Letras e Artes – Universidade Federal do Rio Grande –
96203-900 – Rio Grande – RS – Brasil. E-mail: lucasgarci4@gmail.com
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Objetos relativamente estáveis

Um trabalho como este, que pretende observar e descrever aspectos relativos a gêneros
específicos da expressão pela linguagem, necessita ter como ponto de partida a consciência
da maleabilidade dessas formas composicionais. Afinal, não é por acaso que Mikhail Bakhtin
define os gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,
2011, p. 262) e não apenas como tipos estáveis de enunciação, visto que – apesar de ser
possível, sim, construir sistematizações para os diversos usos da língua – existe sempre algo
de imprevisível na expressão linguística humana, por ser essa produto de uma estrutura
viva, em transformação. Além disso, não apenas cada manifestação da língua constrói-
se em contextos histórico-sociais variados, que delimitam possibilidades situadas de uso,
como também os indivíduos se comunicam a partir de suas individualidades, que, mesmo
atravessadas pelo outro, sempre formam um ponto de vista singular sobre o mundo – o que
acarreta na preferência, pelo filósofo russo, do modificador que relativiza a questão.
No que tange à literatura, então, Bakhtin mostra-se ainda mais preocupado em enfatizar
o quão constante é o fluxo de transformações dessas formas de expressão. Comenta, por
exemplo, como os gêneros da ficção são aqueles mais propícios para a singularidade: nesse
grupo, “o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado, é um de seus
objetivos principais” (BAKHTIN, 2011, p. 265), o que acarreta em um sistema complexo
de estilos de linguagem, em que “o peso específico desses estilos e sua inter- relação no
sistema da linguagem literária estão em mudança permanente” (BAKHTIN, 2011, p. 267).
À luz disso, é possível enxergar mais claramente o porquê de um gênero como o romance,
mesmo sendo um objeto passível de ser mapeado em categorias recorrentes, é tão diverso em
suas manifestações, possibilitando escritas de vertentes das mais variadas e alcançando uma
massa bastante heterogênea de leitores.
Com as palavras de Bakhtin em mente, este trabalho, que se propõe a cotejar o gênero
romance e o gênero romance gráfico (graphic novel), encontra uma justificativa para suas
análises. Por entender a literatura a partir da perspectiva dada, ou seja, como um sistema
vivo (em modificação e em diálogo entre suas formas constituintes), por ser um sistema
produto da linguagem, esta pesquisa encontra validade no movimento de aproximar dois
gêneros de matriz semelhante (no que tange ao universo da narrativa) e, após uma análise
criteriosa e calcada em um estudo de caso, visa propor algumas possíveis considerações
sobre a natureza do gênero ao qual pertence a obra em foco. Essa explanação metodológica
é importante devido à necessidade, cada vez mais emergente, nas áreas relativas aos estudos
literários, de legitimar formas estéticas não privilegiadas pelo cânone; objetivo que se
pretende concretizar com a demonstração de como a narrativa em quadros é, sim, passível
de ser aproximada produtivamente de categorias literárias que já transitam há mais tempo
nos meios acadêmicos. Além disso, a partir das ideias de Bakhtin, leva-se em conta, também,
que todos esses propósitos não podem se desviar do fato de que os gêneros literários não
devem ser sufocados por sistematizações formais muito especificamente delimitadas, devido
à sua maleabilidade inerente.
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Em termos mais específicos, para o propósito geral de entender algumas remodelações
da poética romanesca no romance gráfico, limita-se o estudo aqui proposto a uma obra:
Cachalote, roteirizada por Daniel Galera e ilustrada por Rafael Coutinho. Para isso, inicia-se
com um breve histórico do termo graphic novel (seu surgimento e algumas de suas implicações),
para que então o associe com alguns estudos realizados sobre o romance, visando dar começo
ao aproximar dos dois gêneros, em um processo que culmina na análise da obra citada. Por
fim, na abordagem de Cachalote, apontam-se elementos do livro que possibilitam descrever
como se dá o diálogo entre essa narrativa em quadros contemporânea e a concepção dada
para o romance por alguns autores que seguem uma vertente teórica similar, com um olhar
marcadamente social e ligado com premissas marxistas, como os de Georg Lukács, Walter
Benjamin, Lucien Goldmann e Theodor Adorno – um recorte teórico direcionado que leva
em conta que não se pode acolher todas as discussões já feitas sobre o romance, um objeto
de tão múltipla definição.
É importante destacar, ainda, que a análise de Cachalote aqui proposta visa não se
desviar da especificidade estética da obra em questão. Afinal, sendo o objeto de estudo um
romance gráfico, não se pode, obviamente, relevar a parcela visual de sua natureza, que deve
ser pensada em consonância com a parte verbal da totalidade textual. Portanto, partindo de
categorias e contribuições teóricas que foram pensadas para outro gênero – o romance – que
não compartilha de tais particularidades, faz-se necessário reinterpretar os elementos dados
pela revisão teórica em prol de compreender como esses podem ser percebidos através da
particularidade multimodal do romance gráfico.

O romance gráfico

Para iniciar este trabalho, busca-se desenvolver um breve histórico do gênero romance
gráfico e refletir sobre algumas das implicações dessa terminologia. Para tal, leva-se em conta
o processo de desenvolvimento dos quadrinhos estadunidenses, por ser esse o responsável
pela criação e consolidação do termo graphic novel, que se difundiu para outros países, como
o Brasil, por exemplo. Esse processo foi descrito pelo pesquisador Chris Couch, em artigo
publicado no periódico Image & Narrative, em que o autor ressalta o papel primordial das
bancas de jornais no fomento de uma produção e de um público leitor relativo ao universo
das narrativas em quadros, que resultaria, no século XX, na concepção de romance gráfico:
“Nos Estados Unidos, o romance gráfico é visto como o descendente da revista-panfleto em
quadrinhos, publicada para ser vendida nas bancas de revistas” (COUCH, 2000, s/p.)1.
O autor explicita que com a Grande Depressão, a venda dos jornais diminuiu e, como
consequência disso, a ideia de produzir histórias em quadrinhos em forma de panfleto
(inicialmente apenas antologias, distribuídas como brinde, de tiras já publicadas em jornais)
serviu como medida para incentivar o consumo. No entanto, o que começou como uma

1
No original: “In the United States, the graphic novel is viewed as the descendant of the pamphlet- form comic
book, published for sale on newsstands” (COUCH, 2000, s/p.).
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simples medida para manter o número de vendas das bancas, tornou-se, aos poucos, um
grande sucesso, o que estimulou a produção de novas histórias gráficas para serem compiladas
e vendidas (COUCH, 2000, s/p.).
Nesse mesmo movimento comercial, logo os quadrinhos de super-herói, na década
de 1930, começaram a se desenvolver, constituindo um nicho editorial diretamente ligado
a um público leitor mais popular e, muitas das vezes, infanto-juvenil. Como explicita
a professora e pesquisadora Ermelinda Maria Araújo Ferreira, para que os quadrinhos
alcançassem “as prateleiras de livrarias especializadas, em publicações primorosas, bem
produzidas, com conteúdos críticos e inegável qualidade estética” (FERREIRA, 2012, p. 1),
essa arte precisou, primeiro, transitar entre os “redutos tradicionalmente ligados à cultura de
massa” (FERREIRA, 2012, p. 1), como o ambiente dos jornais, por exemplo – o que, dadas as
devidas proporções, não está tão distante do processo de consolidação do romance, que foi
um gênero que formou um público leitor através da imprensa, quando publicado em forma
de folhetim, até que se consolidasse um grupo de leitores economicamente relevante para
movimentar um mercado editorial e, também, suficiente para receber narrativas de maior
densidade estética.
Provavelmente como herança desses primórdios do percurso das histórias em
quadrinhos, dá-se o preconceito com este tipo de narrativa, responsável por enquadrá-
la como uma categoria menor no campo da literatura, ou, no mínimo, é devido a essa
identificação inicial das HQs com a cultura popular que muitos ignoram a diversidade, em
conteúdo e forma, das obras que fazem parte desse vasto grupo de obras estéticas. Sabe-
se que a arte, por muito tempo, foi um capital concedido a um grupo bastante seleto de
indivíduos e, de certa forma, como resultado disso, ainda se constata no presente a existência
de acadêmicos que confundem o estudo rigoroso do objeto estético (seja por qual viés for)
com um criticismo barato, cheio de julgamentos mais opinativos do que embasados em
análise conveniente a uma reflexão acadêmica. Dessa forma, perpetua-se, muitas vezes, o
repúdio àquelas produções que se vincularam a um público que extrapola as fronteiras que
tentam limitar a cultura e suas múltiplas manifestações – reflexão que cabe ao objeto de
estudo deste trabalho. Na verdade, é exatamente em razão do esforço de inserir as narrativas
gráficas dentro dos espaços de prestígio que o termo graphic novel surgiu: como uma forma
de demonstrar que não só os quadrinhos dialogavam com a cultura popular e de massa como,
também, poderiam transitar por lugares mais legitimados da cultura.
Esses discursos são vistos, por exemplo, no artigo de opinião de Richard Kyle,
intitulado “The future of ‘Comics’”, publicado em 1964 em uma revista direcionada ao mundo
dos quadrinhos, o qual foi provavelmente um dos primeiros textos a se utilizarem do termo
“graphic novel” para se referir às narrativas em quadrinhos. Apesar de o autor aparentar ser um
entusiasta dos chamados comic books, chama a atenção a forma pejorativa como ele enxerga
as histórias assim classificadas. Elas são sempre pensadas em contraste com as exceções
emergentes (do momento de escrita) que apontam, a seu ver, para uma nova forma, mais
madura, da narrativa em quadros – o que ele denomina romance gráfico:

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Hoje, há sinais de que as ‘histórias em quadrinhos’ estão, final e permanentemente,
prestes a romper com o seu isolamento solitário como uma forma trivial de sub-
literatura para crianças atrasadas como nós e a ocupar o seu lugar no espectro
literário […], quando você me ver usando os termos ‘história gráfica’ e ‘romance
gráfico’ para descrever as ‘tiras em quadrinhos’ artisticamente sérias, vocês
saberão, então, o que quero dizer (KYLE, 1964, p. 3-4 – tradução nossa)2.

Essa previsão mostrou-se certeira, como confirma a publicação da obra de Will Eisner,
em 1978, A contract with God, que foi uma das primeiras produções intencionalmente publicadas
sob a etiqueta de romance gráfico e que ajudou a impulsionar, devido à importância de seu
autor já na época de publicação da citada obra, o termo em foco. Como nos ressalta Couch,
Eisner, após um período de afastamento da indústria de quadrinhos, calcada principalmente
no leitor popular, retorna com o ímpeto de publicar algo diferente do que havia sido feito até
então no mundo das narrativas em quadros, algo com maior extensão e com uma estrutura
inovadora em sua forma de contar e em sua abertura para um temário mais denso:

Eisner havia dito que se cansara de trabalhar apenas no formato de histórias


curtas que havia dominado as revistas em quadrinhos dos EUA quase desde o
seu início. Quando ele voltou a produzir, ele queria fazer algo novo, um trabalho
com amplitude de um romance e publicado como livro. Ele investiu no termo
romance gráfico porque ele combinava duas palavras com significados positivos
(COUCH, 2000, s/p.)3.

Sem dúvida, as implicações da obra de Will Eisner, mesmo que essa não seja objeto
de descrição neste trabalho, merecem ser ressaltadas. Afinal, é a partir de suas produções
que os autores de quadrinhos depararam-se, definitivamente, com um espaço de expressão
mais legitimado para alcançar o percurso já consagrado da literatura, ascendendo às
grandes editoras e ganhando um tratamento editoral mais bem conceituado socialmente,
ao alcançarem o formato de livros. Dessa mudança de paradigma decorre uma liberdade
maior, que possibilitou ao romance gráfico tornar seus moldes maleáveis, como prevê
Bakhtin. Além das histórias curtas e direcionadas a um público popular, que não pararam
de ser produzidas, a narrativa em quadros, agora também como graphic novel, ganhou maior
extensão, direcionando-se para públicos mais adultos e dialogando mais veementemente
com as obras já canônicas da literatura, amadurecendo não apenas seu temário (cada vez
mais profundo e despreocupado com pudores que afetam produções para o público popular
ou infantil) como, também, em sua estruturação narrativa (alcançando níveis maiores de
complexidade, seja no andamento das ações, na constituição dos personagens ou em qualquer

2
No original: “Today, there are signs the ‘comic book’ is, finally and permanently, about to burst out of its lonely
isolation as a trivial form of sub-literature for retarded children like ourselves and take its place in the literary
spectrum [...] when you find me using the terms ‘graphic story’ and ‘graphic novel’ to describe the artistically
serious ‘comic book strip’ you’ll know what I mean” (KYLE, 1964, p. 3–4).
3
No original: “Eisner has said that he grew tired of working only in the short-story format that had dominated
U.S. comic books almost since the beginning. When he returned to the field, he wanted to do something new, a
novel-length work published as a book. He hit upon the term graphic novel because it combined two words with
positive meanings” (COUCH, 2000, s/p.).
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outra categoria constitutiva das obras). Em suma, como defende Ferreira: “hoje não é possível
negar uma existência diferenciada para o romance gráfico, que amadureceu e recompôs seu
discurso perante a sociedade e a crítica” (FERREIRA, 2012, p. 2).

O esvaziamento do mundo (e da forma narrativa)

Se continuarmos a conceber os gêneros do discurso como Bakhtin os propõe, não


se pode deixar de levantar a ideia de que “os enunciados e seus tipos [...] são correias
de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN,
2011, p. 268). Isso é importante, pois nos permite dar os primeiros passos em direção a
um mapeamento do gênero romance para o cumprimento dos objetivos deste trabalho
e, portanto, para compará-lo com o romance gráfico e seu surgimento. É preciso fazer
uma ressalva, aqui: ao utilizar de teóricos que abordaram a história da literatura a partir
de um viés marxista – ou seja, através de um olhar calcado nas relações sociais –, não
se ignora, aqui, algumas críticas já feitas a essa concepção em tempos que sucederam as
primeiras décadas do século XX. Hans Robert Jauss, pai da chamada Estética de Recepção,
por exemplo, em fala paradigmal de 1967, relembrava “os resultados ingênuos obtidos
pela historiografia literária praticada pelo marxismo vulgar” (JAUSS, 1994, p. 15), devido
à ação simplista de tornar a literatura um mero espelho do mundo social, que faz “derivar
diretamente de alguns fatores econômicos e constelações de classes da ‘infraestrutura’ a
multiplicidade dos fenômenos literários” (JAUSS, 1994, p. 15).
Na verdade, ao contrário do que um primeiro olhar possa fazer imaginar, este trabalho
se propõe, de certa forma, a dar continuidade às críticas postas à corrente marxista tradicional
dos estudos literários, que reduziu o objeto estético ao seu meio de produção. Este trabalho
se faz consciente de que a literatura não é simplesmente um reflexo do mundo social, mas, ao
mesmo tempo, não desconsidera o valor e a importância das reflexões dos teóricos resgatados
aqui, visto que também seria ingênuo desvincular, completamente, os objetos de estudo de
seus contextos de produção (como o próprio Jauss demonstrou saber, ao não rejeitar toda e
qualquer contribuição marxista ao desenvolver a sua teoria). Dessa forma, nesta parte, traça-
se um paralelo entre o histórico do romance gráfico e a perspectiva dada por Georg Lukács,
que focaliza, em seu livro A teoria do romance, as condições extralinguísticas que propiciaram
o surgimento e a consolidação do romance, para apreender até que ponto aquele compartilha
de um universo de produção análogo àquele descrito por Lukács, visto que o século XX é
um produto direto da era na qual o romance se coloca como epopeia: “uma era para a qual a
totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do
sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”
(LUKÁCS, 2009, p. 55) – era simbolizada de maneira absoluta através dos séculos XVIII e
XIX, produtos da consolidação do mundo burguês.
O pensador húngaro, propondo uma dialética dos gêneros, enxerga no romance uma
síntese da oposição traçada entre a epopeia (e sua perspectiva estética ainda infantil– a
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perfeita harmonia entre o interno e o externo) e a tragédia (e sua completa negação do
mundo em detrimento da expressão intensa do indivíduo). Como resultado, temos, segundo
o autor, “a forma da virilidade madura” (LUKÁCS, 2009, p. 71) – o romance -, um gênero
que representa a modernidade e o compromisso do indivíduo moderno em buscar
algum tipo de totalidade em um mundo já esvaziado de sentido. Diante desse paradigma
histórico-filosófico, dois principais aspectos necessitam ser ressaltados como implicações
formais dessa modernidade não homogeneizada pela ação simbólica de uma concepção
divina para o regimento do mundo (como funcionaria, segundo Lukács, a Antiguidade):
a fragmentação da estrutura narrativa e a tendência ao biográfico, no sentido de um
monopólio da perspectiva do herói romanesco.
Em relação ao primeiro aspecto, Lukács observa que “a composição do romance é
uma fusão paradoxal de componentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade
constantemente revogada” (LUKÁCS, 2009, p. 85). Como nos aponta a estudiosa Arlenice
Silva, na modernidade “não é mais possível um acordo perfeito entre o indivíduo e o mundo
[...] e a forma do romance anuncia justamente essa situação de completo desterro” (SILVA,
2006, p. 84); devido a isso, compreende-se a constituição fragmentada de tal gênero, pois essa
reflete a impossibilidade de expressar o mundo de uma maneira unívoca, diferentemente do
que se evidencia nas antigas epopeias. No entanto, o segundo aspecto que Lukács menciona
nos ajuda a compreender como essa heterogeneidade ainda funciona organicamente entre
seus elementos, constituindo um todo de sentido: a massa descontínua de acontecimentos
“recebe uma articulação unitária pela referência de cada elemento específico ao personagem
central e ao problema vital simbolizado por sua biografia” (LUKÁCS, 2009, p. 83). No
romance, a forma interna da narrativa é concebida como resultado da “peregrinação do
indivíduo problemático rumo a si mesmo” (LUKÁCS, 2009, p. 82); em uma modernidade
sem parâmetros absolutos de significação, cada sujeito se apresenta como matriz do universo
ao seu redor, constituindo-o pela sua perspectiva singular sobre as coisas, e surgem daí os
heróis romanescos, os responsáveis por interligarem tudo que faz parte da narrativa por
meio de seus trajetos particulares em busca do autoconhecimento.
Diante desse primeiro paradigma do gênero romance, já se pode fazer ligações com
que foi, aqui, visto sobre a configuração do romance gráfico. É claro que, ao analisar a obra
Cachalote, serão investigados, posteriormente, aspectos mais concretos da configuração
estética desses dois tipos de enunciação, mas esse breve histórico dos dois gêneros já nos
demonstra um ponto de encontro bastante claro no que tange ao desencantamento diante do
mundo. Ao que tudo indica, o amadurecimento da arte em quadrinhos, alcançado através do
gênero romance gráfico, perpetua o entendimento do romance como “‘expressão simbólica’
da impossibilidade da harmonia no mundo” (SILVA, 2006, p. 82). Há um grande passo
em direção à forma descompassada em busca de um sentido para a vida no advento das
narrativas gráficas mais longas, de temário mais condizente com o público adulto e de uma
complexidade estrutural menos linear em relação ao que se pode, genericamente, dizer que
era publicado antes da década de 70 do século XX como história em quadrinhos.
Há de se propor a hipótese de que o desconforto de Eisner (e de outros), em fazer das
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histórias em quadros algo que transcende as primeiras narrativas maniqueístas de heróis e
de vilões, demonstra um anseio de romper com a ilusão de totalidade inerente a essas por
meio de uma modalidade que melhor respondesse à modernidade, portanto, que rejeita bases
narrativas muito estáveis. Afinal, os quadrinhos, pelo menos em sua concepção moderna
(levando-se em conta que a arte sequencial pode ser pensada até mesmo em referência às
antigas pinturas rupestres), consolida-se – em sua forma mais prestigiada hoje – durante
o século XX, que é, inegavelmente, ainda assombrado por uma concepção de mundo com
bases muito parecidas às que se instauraram, aos poucos, no mundo ocidental desde o
advento do sistema capitalista (com as particularidades, claro, que também não podem ser
desconsideradas). Mesmo que as primeiras revistas em quadrinhos tenham surgido como
estratégia de mercado, é de se compreender que os artistas responsáveis por essas ainda eram
indivíduos fruto de uma modernidade esvaziada e, por consequência, também eram, de certa
forma, desamparados em relação a tal mundo. O já mencionado A contract with God, de Eisner,
por exemplo, parece ser bem representativo disso: a história que dá nome à publicação trata
exatamente de um judeu que se sente traído por Deus após a perda de sua filha.

O estudo de caso: Cachalote sob a luz da poética romanesca como gênero da


modernidade esvaziada

A partir desta parte, este trabalho se volta para a análise do romance gráfico Cachalote,
publicado pela primeira vez em 2010 pela dupla criadora Daniel Galera e Rafael Coutinho.
Como explicitado na introdução, ao efetuar tal estudo de caso, pretende-se identificar de
maneira mais objetiva como alguns aspectos do romance e de seus elementos narrativos
podem ressoar no tipo de produção em quadrinhos em questão, assim como esses adquirem
remodelações no contexto sócio-histórico contemporâneo. Como se pode perceber pelo
referencial teórico e pela proposta desenvolvida, enfoca-se, primordialmente, possíveis
aspectos dessa concepção moderna e desencantada de romance na obra em quadrinhos
estudada; ponto, esse, que precisa ser esclarecido, visto que reforça a multiplicidade de
análises e interpretações dadas ao gênero romanesco (que não poderiam ser, aqui, abordadas
em sua totalidade).
Até aqui, discutiu-se o surgimento da categoria de romance gráfico e interligou-se esse
histórico com a perspectiva filosófica de Lukács para o gênero romance, principalmente no
que tange ao fato de que ambos os gêneros representam a conquista de certa maturidade
no ímpeto de expressão do indivíduo moderno e de seu desamparo particular. No entanto,
debruçando-se sobre um material mais concreto – um exemplo de romance gráfico –, é
possível perceber que algumas outras formulações de Lukács relativas à essência expressiva
do romance ecoam em Cachalote. Para isso, a figura 1 serve à elucidação de alguns aspectos
globais do propósito comunicativo característico dessa obra que dialogam com análises
presentes em Teoria do romance.

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Figura 1 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

Destaca-se, primeiro, o fato de que a tentativa de uma descrição muito sucinta e


linear do enredo de Cachalote não condiz com a estrutura desse romance gráfico: entre algo
que se pode compreender como um prólogo e um epílogo (que apresentam ao leitor uma
narrativa em quadros sem apoio de linguagem verbal e protagonizada por uma senhora), há
cinco histórias que não convergem. Pelo menos, não no plano da ação de seus personagens
principais, que não interagem diretamente. Contudo, de maneira a ser associada com a
heterogeneidade da forma romanesca, comentada por Lukács, existe, nessa fragmentação
e nessa aparente descontinuidade narrativa, uma organicidade que mantém a harmonia
da obra no propósito de representar certos desconfortos dos indivíduos modernos. A
solidão e a decadência que emanam da figura 1, por meio das representações dos cigarros
amassados (ou seja, da necessidade do vício para controlar inquietações), do contraste
entre o homem de caracterização e postura fragilizadas e o hotel de luxo e da não-resposta
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dada ao anúncio de suicídio de um amigo próximo do personagem em cena demarcam uma
atmosfera para Cachalote que é basicamente transversal entre as tramas protagonizadas por
outros personagens.
No caso do exemplo citado, o homem sentado na cama de hotel é Xu, um astro
do cinema chinês que já foi muito prestigiado no passado e que, agora, passa por um
período de derrocada, além de ser acusado e investigado em relação ao suicídio misterioso
de um amigo (misterioso inclusive para Xu, pelo menos em princípio). Como dito, esse
personagem vai dividir o plano da narrativa com uma galeria de outros protagonistas de
tramas não interligadas, mas que se associam por seu caráter desarmonioso. Há também
um escultor que, inesperadamente, é convidado para ser o ator principal de um filme cujo
roteiro se associa com a sua própria vida; um jovem praticante de uma forma específica
de dominação sexual que conhece uma mulher encantadora na loja em que trabalha, mas
que lhe causa insegurança em praticar seus fetiches; um jovem mimado pela fortuna e
que é expulso de casa por aquele que o sustenta; e, por fim, um homem e uma mulher,
antes casados, agora divorciados, que se encontram em lugares públicos na tentativa de
manter algo do antigo vínculo afetivo entre si. Nenhum desses personagens se sobrepõe
em importância aos outros, e é exatamente por isso que se torna impossível eleger um
protagonista único para a produção. Se isso, por um lado, parece contrariar a forma
biográfica do romance identificada por Lukács, por outro lado, se coaduna, no tocante
à disposição estrutural dos diferentes núcleos narrativos, com as propostas do filósofo,
como se verá a seguir.
Como comentado, a individualização do ser humano moderno, para Lukács, acarreta
uma configuração nova da epopeia em que o “herói” não pode mais responder a um coletivo;
a tendência biográfica da forma romanesca demanda que todo movimento narrativo se dê
em resposta ao protagonista e em resposta à sua trajetória problemática. Cachalote, em um
primeiro olhar, não se coaduna com tal proposta (o que afastaria essa obra da concepção
de romance dada) pela falta de uma figura que centralize o seu desenvolvimento. Isso pode
ser entendido como uma possível consequência da distância existente entre o século XXI,
contexto de produção do romance gráfico, e o corpus de análise de Lukács, formado de
produções do século XIX e de séculos anteriores a esse. Nota-se, cada vez mais, a tendência
contemporânea para uma literatura que visa à heterogeneidade, ao instável, ao não-linear:
os múltiplos pontos de vista, as estratégias bastante variadas de uso do tempo narrativo,
o derrubar das fronteiras do discurso indireto concedido a um narrador e do discurso
direto concedido aos personagens, entre outros fatores – o que, como se pode imaginar,
diferencia essa nova produção do tipo de romance estudado pelo filósofo húngaro. No
entanto, mesmo sendo esse o caso de Cachalote – o que parece distorcer, em tal romance
gráfico, o caráter biográfico proposto por Lukács em sua acepção primeira –, é necessário
fazer a ressalva de que essa centralização do indivíduo não deixa de estar presente na obra
analisada, mas se dá de uma forma diferente: o compartilhamento do percurso narrativo
não desfaz o fato de que cada personagem (protagonista de sua trajetória individual)
funciona como uma ilha; o que se poderá perceber com as análises posteriores.
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A ligação entre a proposta de Cachalote e a compreensão de Lukács para a expressão
romanesca reconfigura-se a partir dessa multiplicidade de “heróis” fragilizados. Assim
como o romance surgiria a partir da cisão entre o mundo e o indivíduo (conflito que
leva a um vazio de sentido para a apreensão do mundo), essa miscelânea de personagens
“desencantados” apresenta a falta de possibilidade de uma representação unívoca para
o que significa existir a partir da modernidade – todos compartilham do vazio, mas
traçam suas trajetórias de autoconhecimento individuais e aparentam buscar algum tipo
de vínculo com o mundo até o final de suas narrativas, mesmo que não seja possível
determinar ao certo qual. Nessa heterogeneidade narrativa, os movimentos de cada um
dos protagonistas, mesmo que interfiram apenas em seus caminhos pessoais, dialogam
entre si e fornecem ao leitor uma totalidade simbólica que expressa esse descompasso: a
solidão, fruto da modernidade.
Para dar prosseguimento a esta reflexão, é necessário, agora, um olhar proporcionado
por outros autores que, de certa forma, dão continuidade ao pensamento lukácsiano de
linhagem marxista, e que comentam aspectos mais pontuais da constituição do gênero
romance. A partir de elementos mais específicos da narrativa romanesca, pode-se pensar
como tais aspectos se mostram e se reinventam no romance gráfico analisado. Para tal,
desenvolveremos a reflexão sobre tais categorias a partir de pressupostos de Walter
Benjamin, autor que propõe uma interpretação da forma específica de contar histórias do
romance, alinhada com o advento do mundo moderno.
Benjamin, em um estudo da obra de Nikolai Leskov, chamado “O narrador”, propõe
que a narrativa, em sua forma original está ligada com seu antepassado oral – a tradição
de contar histórias – caracterizando-se pelo esforço coletivo de perpetuar a memória com
o intuito de transmitir algum ensinamento. Contudo, seguindo a linha desencantada de
Lukács para descrever o mundo moderno e suas formas de expressão, o filósofo alemão
destaca a derrocada gradativa da tradição oral de contar histórias e enxerga no romance
um dos exemplos máximos disso: diferentemente do narrador “tradicional”, que acessa
a sua experiência ou a experiência alheia para incorporá-las aos seus ouvintes, a voz do
romance é uma voz segregada – “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode
mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe
conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 2012, p. 217).
Como consequência disso, “o romance não é significativo por descrever
pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o
consome, pode nos fornecer o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino”
(BENJAMIN, 2012, p. 231). Dessa forma, a concepção de narrativa na forma romanesca
recusa qualquer tipo de aconselhamento do interlocutor, como Benjamin diz ser comum
ao narrador em extinção, e os propósitos são muito mais individuais. Há uma fragilidade
maior na interlocução: a voz que conduz o romance expressa a sua visão isolada de mundo
e o leitor alimenta o seu próprio isolamento através dos descaminhos dos personagens
representados até a chegada irrevogável da morte – que é alcançada, independentemente
do que for, com o ponto final da história. E esse é o sujeito do discurso que conta a história
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no romance: um sujeito fragilizado, indiferente e incapaz de fazer de sua expressão uma
alegoria para o ensinamento do outro.
Aplicadas tais interpretações do sujeito narrativo do romance ao romance gráfico
Cachalote, alcança-se uma leitura do andamento dos quadros que reafirma essa configuração
segregada de narrador dada pelo filósofo alemão. Destaca-se, primeiro, a fragmentação
da forma – aspecto já apontado por Lukács em A teoria do romance – que se apresenta
no sentimento de que o próprio sujeito que conta a história é incapaz de compreender
plenamente os sentidos que dela emanam. Em Cachalote, percebe-se isso na dissolução
das concepções tradicionais de início, meio e fim: o leitor é guiado por narradores que
não se preocupam em inteirá-lo da contextualização ligada à trajetória do personagem, o
que demonstra uma certa segregação e indiferença da voz narrativa, e o que se consegue
captar deste romance gráfico são as impressões que sobram do ajuntamento de pedaços da
história dados. Um exemplo possível é o do já comentado “ex-casal” que protagoniza um dos
núcleos narrativos da história, que tem sua trama apresentada sem que se saiba exatamente
o que os levou ao divórcio e o que os faz persistirem em se ver constantemente mesmo
depois da ruptura. Isto se dá como se o próprio narrador também quisesse compreender
tais questões. Essa forma aponta para uma quebra com qualquer didatismo no narrar –
traço que seria comum, segundo Benjamin, ao narrador tradicional ligado à oralidade –, e
não visa despertar qualquer tipo de máxima moral ao término da leitura, pelo contrário:
propõe o vazio dos personagens e deixa que o leitor lide da maneira que lhe for mais
conveniente (dependendo de sua realidade individual) com esse vazio.
Quando analisamos quadros como os presentes na figura 2, abaixo, temos um senso
maior de como o próprio sujeito narrativo parece buscar uma apreensão de sentido
dos acontecimentos da história. Levando-se em conta: a) a forma como o personagem
Hermes, presente na cena, nos é introduzido (recluso e aparentemente atormentado por
um sentimento de remorso por bater em sua mulher, como visto na representação de
um sonho presente em páginas anteriores), b) a pergunta estranha sobre como Raissa,
a mulher, adquiriu a cicatriz no lábio (que até esse trecho se supôs que tenha sido pela
agressão do próprio homem que lhe faz essa pergunta), c) a resposta dela, que põe em
xeque as imagens oníricas anteriormente dadas e, por fim, d) a falta de sono do personagem
masculino visualmente mostrada no final, percebe-se que o leitor é colocado em uma
posição de completa dúvida sobre a matéria da narrativa. Afinal, o que aconteceu entre os
dois? Hermes agrediu mesmo Raíssa em algum tipo de surto e ela o protege dessa verdade?
A sensação que o homem tem de ter batido em sua mulher está relacionada com a forma
devotada que se dedica à sua produção artística em detrimento dela? São questões possíveis,
mas que não serão respondidas, o que dá a entender uma posição instável não só do leitor
como, também, do próprio narrador, assim se associando à perspectiva de Benjamin no
tocante à caracterização do sujeito narrativo no romance.

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Figura 2 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

A figura 3, abaixo, também nos permite uma análise que se coaduna com a interpretação
de Benjamin dessa voz narrativa moderna constatada no gênero romanesco. Aqui, tem-se
uma condução da história que se dá de maneira diferente das anteriormente observadas:
a história de Vitório e de sua relação com uma mulher insolitamente frágil poderia ser
aproximada, com ressalvas, do que conhecemos como a figura do narrador autodiegético, ou
daquele que conta a trama de sua vida. Vez ou outra, por entre as cenas e os diálogos, o próprio
personagem se intromete, por meio de caixas de textos de formato diferente dos balões, para
tentar, assim como leitor, interpretar os fatos dados. Sim, interpretar, pois, curiosamente, a
posição do personagem, como fica claro na figura através das perguntas e da incerteza diante
de suas próprias ações, não é a daquele que compartilha com objetividade uma experiência e
que possui propósitos comunicativos claros. Assim como descrito por Benjamin, Vitório é
um exemplo de narrador que não sabe narrar, visto que não pode expressar claramente uma
lição alcançada a partir de sua história para o aprendizado de um outro. Como é visível na
figura, se há uma tentativa de produzir sentido, essa tentativa é voltada para a própria voz
que narra, pois ela parece interrogar o andamento de sua própria vida.

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Figura 3 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

Ainda pensando nas remodelações do narrador romanesco em Cachalote, destaca-se


a forma brusca que tanto o “narrador heterodiegético” como o “narrador autodiegético”
deste romance gráfico, já exemplificados neste trabalho, terminam de contar as histórias
que constituem o todo da obra. De maneira não muito distante do que propõe Benjamin
sobre a morte do personagem – que pode ser literal ou simbolicamente dada através do
simples encerrar da história – como ponto em que o leitor se sacia com as migalhas dadas
pelo narrador moderno, em Cachalote não se pode determinar com exatidão quais seriam as
decorrências seguintes na vida dos cinco protagonistas e, na verdade, isso pouco importa.
É necessário se contentar com as situações em que contemplamos o agir dos personagens
pela última vez para que possamos tirar, a partir das nossas perspectivas individuais,
conclusões possíveis que servem, no fim, apenas para nós mesmos.
Seguindo com a linha de compreensão que entende a voz narrativa do romance como
uma voz segregada, há outro pensador que pode nos auxiliar com o prosseguimento das
análises. O filósofo alemão Theodor Adorno acrescenta, por meio de seu ensaio “Posição
do narrador no romance contemporâneo”, a ideia de que o sujeito narrativo no romance
também é, principalmente a partir do século XX, uma voz que perpetua um paradoxo,
visto que, como descreve Adorno, pensando em uma modernidade calejada por todas as
atrocidades que fazem parte de sua história, “não se pode mais narrar, embora a forma do
romance exija a narração” (ADORNO, 2003, p. 55). Contrastando com a lógica realista do
romance em sua gênese moderna na era burguesa, a narrativa romanesca, segundo Adorno,
finalmente conformada com a impossibilidade de expressar o desalento do ser humano
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isolado e, por consequência, as inquietações acessíveis apenas ao próprio indivíduo, funda,
por completo, “um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um
passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo
lhe fosse familiar” (ADORNO, 2003, p. 59).
Portanto, o filósofo defende que a dimensão metafísica alcançada pelo romance
no decorrer do século XX “amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade
em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos” (ADORNO, 2003, p.
58). A aceitação, então, do fazer estético como uma ilusão referencial abre portas para
uma violação da forma do romance que é, ao mesmo tempo, ilógica e coerente quanto
ao próprio sentido da expressão. Não estando mais os sujeitos narrativos presos a uma
pretensão de abarcar o real, as possibilidades criativas se expandem na tentativa de melhor
conduzir os ímpetos da interioridade na história. E é a partir dessa perspectiva teórica que
podemos entender como alguns movimentos narrativos presentes em Cachalote muito se
coadunam com essa inconformidade perpétua do romance.
No romance gráfico em questão, há constantemente uma interferência de cunho
fantasioso; por vezes, a impossibilidade de uma condução narrativa de lógica objetiva para
expressão dos conflitos internos dos personagens encontra socorro em um plano de certa
transcendência, como, por exemplo, no apelo ao onírico, à imaginação ou até mesmo
a uma saída racionalmente absurda (apesar de completamente coerente no interior do
fluxo narrativo). Para uma análise mais pontual, pode-se aprofundar o caso que decorre
do próprio título dado ao romance gráfico: as aparições –sequer minimamente explicadas
– de uma enorme baleia cachalote em interação com os personagens como saída para a
progressão da história. A figura 4, abaixo, localizada ao final da narrativa, mostra Rique,
um personagem mimado pelo dinheiro que precisará sair de sua zona de conforto, após
uma longa trajetória de desilusão com a importância de sua própria existência no mundo,
encontrando uma enorme baleia cachalote encalhada em uma praia. Após falhar em
empurrá-la de volta para a água, o homem, na página seguinte, aceitará a sua impotência
e se deitará, por fim, ao lado do animal (em uma cena dada a partir de uma visão aérea
que reforça a discrepância de tamanho entre ele e a baleia). Aqui, demonstra-se como
Cachalote porta uma remodelação da impossibilidade de narrar característica do romance
segundo Adorno: a partir de uma quebra com a lógica objetiva do narrar, desprovida da
preocupação de se autojustificar – agora por meio da linguagem visual (a aproximação
gráfica de seres tão contrários) –, a figura da Cachalote se faz presente para expressar a
sensação de pequenez e de incapacidade do ser humano diante da magnitude do existir e
de suas implicações, na maioria das vezes indomáveis, pelo indivíduo.

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Figura 4 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

Este é também um bom exemplo dos já comentados finais abruptos utilizados


nas histórias de Cachalote. Depois de acompanharmos um percurso narrativo em que o
personagem Rique parece caminhar em uma crescente desolação, o que leva ao anseio cada
vez maior, por parte do leitor, por um desfecho para os acontecimentos e pela formulação
de uma lição para o protagonista, que descobriu a fragilidade de seu mundo fútil e material,
o romance gráfico oferece apenas o absurdo e a impossibilidade de solução. Como dito, na
última página de sua história, Rique desistirá do esforço de empurrar a baleia cachalote de
volta para a água e se deitará, conformado, ao seu lado, e nada mais é dito verbalmente ou
dado visualmente. Ao leitor, resta também se conformar com o término, sem o amarrar de
pontas, dos acontecimentos e tirar dessas migalhas narrativas algum significado que ilumine
as suas próprias inquietações, como propõe Benjamin.
Passa-se, agora, à última categoria do romance que será retomada neste trabalho, para
ser percebida, em suas remodelações, em Cachalote: o personagem. Pode-se iniciar com
uma definição básica dada por Antonio Candido: o personagem “representa a possibilidade
de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção,
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transferência etc.” (CANDIDO, 2009, p. 54). Portanto, pensar a categoria de personagem é
pensar o quão “identificável” esse se faz para o público leitor da obra da qual faz parte. Em
outras palavras, destaca-se que por mais que o personagem seja sempre um “ser inventado”
dentro do romance, esta invenção “mantém vínculos necessários com uma realidade matriz,
seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca” (CANDIDO, 2009,
p. 69). Afinal, um personagem que não dialoga com o contexto de sua criação não pode
dialogar com o leitor do contexto de sua criação e, nesse caso, seria falho em sua própria
concepção. Resta-nos pensar, agora, um pouco mais sobre a memória histórico-social que o
romance carrega, para entender, pelo menos em termos gerais, quais são os personagens que
mais bem se coadunam com esse passado do gênero.
Lucien Goldmann, também um seguidor da linha marxista de compreensão do
romance, defenderá a seguinte perspectiva: “a forma romanesca parece-nos ser a transposição
para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção
para o mercado” (GOLDMANN, 1976, p. 16). Resgatando os pressupostos de Lukács e de
René Girard, Goldmann irá, em seu artigo “Introdução aos problemas de uma sociologia
do romance”, tentar compreender qual é, afinal, a gênese histórico-social desse gênero e
como isso se reflete na forma literária. A partir desse objetivo, chegará à seguinte conclusão:
“o romance é a história de uma investigação degradada (a que Lukács chama ‘demoníaca’)”
(GOLDMANN, 1976, p. 8). Dessa forma, identificará no cerne do romance, a figura de um
herói classificado como degradado e seu trajeto de autoconhecimento em mundo igualmente
apodrecido. Por consequência, pensar o personagem do romance é pensar em um personagem
problemático que busca algum tipo de valor legítimo dentro de uma sociedade artificial e de
convenção, visto que, nessa sociedade individualista advinda da lógica de mercado, “toda a
relação autêntica com o aspecto qualitativo dos objetos e dos seres tende a desaparecer [...]
para dar lugar a uma relação mediatizada e degradada: a relação com os valores de troca
puramente quantitativos” (GOLDMANN, 1976, p. 17).
Dessa forma estética que se desenvolve em ligação com a história e o desenvolvimento
da burguesia, espera-se, então, o protagonismo de personagens que se tornam cada vez mais
“médios”. “Médios” no sentindo de cada vez mais ligados com o ser humano proporcionalmente
comum, por oporem-se à lógica de mundo totalizante pré-individualista, em que o herói
da narrativa costumava ser um tipo de figura maior e representativa de algum coletivo. No
entanto, enfatiza-se que essa concepção de herói romanesco – de ser degradado que transita
por um mundo degradado –, mesmo fundada no mundo burguês, “não é a expressão da
consciência real ou possível dessa classe” (GOLDMANN, 1976, p. 25), pois, para Goldmann, “o
caráter essencial do pensamento burguês, o racionalismo, ignora em suas expressões extremas
a própria existência da arte” (GOLDMANN, 1976, p. 27). Dessa forma, a expressão romanesca
já é, devido à sua própria essência estética, uma forma de “resistência” a esse mundo esvaziado.
Como já explicitado antes em outras análises, logo se percebe que Cachalote, em seu
inventário de personagens, não parece destoar da ideia de que o herói romanesco é um herói
entre aspas, mundano. Dos cinco protagonistas que conduzem o desenrolar da trama nenhum
se destaca em superioridade ou por servir como possível modelo para outros indivíduos. Na
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verdade, a própria partilha do protagonismo já aponta para uma estratégia dos autores de
demonstrar a fragilidade dos indivíduos representados, que não são suficientes de per si.
Dos conflitos da solidão, do desejo, da carência, da necessidade de algum vínculo com a
vida, constrói-se a capacidade de identificação apontada por Candido: os personagens não se
propõem grandiosos porque a vida cotidiana dos leitores modernos não é grandiosa e, então,
é mesmo a banalidade (de um ator decadente, de um artista desesperadamente necessitado
de sua rotina de trabalho, de um jovem numa loja de ferragens, de um playboy que vive
uma vida de máscaras e de um homem e de uma mulher divorciados e melancólicos) que
possibilita a catarse dos leitores também imersos em um mundo decadente.
Para prosseguir, agora, com a análise de alguns exemplos retirados de Cachalote que nos
possibilitam melhor compreender a essência desses personagens é preciso, primeiro, resgatar
um comentário de Will Eisner sobre a arte sequencial: “a forma humana e a linguagem
dos seus movimentos corporais tornam-se os ingredientes essenciais dos quadrinhos”
(EISNER, 1999, p. 100), servindo como “uma medida da habilidade do autor para expressar
a sua ideia” (EISNER, 1999, p. 100). Isso se faz importante por nos ajudar a destacar a
especificidade do romance gráfico que precisa ser levada em conta quando analisamos os
indivíduos representados: os personagens, na arte sequencial, necessitam ser pensados em
sua caracterização multimodal em termos de linguagem. É por meio da caracterização visual,
seja nos detalhes da aparência ou na forma como são retratados os movimentos corporais,
somada ao texto dramático verbal (inserido nos balões) que podemos melhor compreender
os personagens presentes em uma narrativa gráfica.
Como este trabalho não se propõe a uma investigação aprofundada sobre um aspecto
específico da obra em análise, mas sim uma abordagem mais geral de seus diversos elementos,
opta-se por algumas considerações, a partir da figura 5, abaixo, mais focadas em apenas
um personagem – Hermes – que nos parece, no momento, representativo para a reflexão
realizada. Retornando, agora, à ideia de que o herói romanesco é um herói degradado, um
indivíduo problemático, pode-se analisar o caso em questão para compreender como também
Cachalote nos propõe personagens que são fragilizados, deslocados, de certa maneira, do
mundo e que mantêm uma trajetória de busca por algum valor autêntico para ser atribuído
à vida, como nos propõe Goldmann.
O próprio conceito da página reproduzida na figura 5 já nos aponta para essa definição
de herói romanesco. Sem justificativas antecipadamente dadas pela narrativa, chegamos a tal
página, com o personagem Hermes revoltando-se com uma mulher que interrompe o seu
trabalho. À primeira vista, supõe-se que se trata de momentos da vida pessoal do personagem,
até que o último quadro nos esclarece que, na verdade, tudo aquilo é uma cena sendo gravada
para o filme no qual o personagem foi convidado para ser o ator principal. Essa dubiedade
é proposital, pois paira sobre a história do personagem um certo tom fantástico por causa
da situação estranha de um diretor suspeito que convida o personagem a participar de um
filme que, bizarramente, se assemelha à sua própria vida; então, a cena em gravação, de certa
forma, quer nos mostrar algo do próprio personagem, visto que ele representa a si mesmo.
Essa situação estranha leva a uma crise de identidade: Hermes – um homem amargurado
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e tomado pelo seu trabalho de escultor para se distrair de sua condição – precisa encarar
a si mesmo, o que se torna desesperador, apontando para uma instabilidade do indivíduo
moderno que vive a insegurança de um mundo esvaziado em que a única perspectiva é
individual e, mesmo essa, se apresenta como um abismo, o que força o indivíduo a buscar em
si algum tipo de justificativa para manter um compromisso com o mundo e com a vida. Das
posturas dadas, dos movimentos com as mãos, das feições faciais fechadas, da agressividade e
da indiferença para com a mulher com quem interage, somadas às suas falas, que demonstram
a frustração por ser interrompido em seu trabalho artístico, constrói-se uma compreensão
do personagem, em um jogo de complementação, do qual se infere essa fragilidade por trás
da raiva e essa busca desesperada por encontrar algum sentido para a vida por meio de seu
ofício (afinal, a mania e a obsessão também são faces da melancolia).

Figura 5 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

Para concluir a investigação sobre a categoria dos personagens em Cachalote, pode-se


focalizar, neste momento, a proposta de Goldmann sobre como a expressão do romance,
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mesmo fruto da sociedade burguesa, serve como resistência a essa, inclusive por meio da
figura do herói degradado e já aqui analisado. Para tal, o personagem Rique, anteriormente
abordado, nos parece um bom exemplo. Na figura 6, abaixo, ele é apresentado na narrativa
por meio da intercalação de quadros que demonstram o seu pedantismo e o seu caráter
mimado pelo dinheiro: primeiro, através da situação em que ele se dirige grosseiramente a
um funcionário do restaurante em que come com seus amigos (visto tanto através de seus
olhares como de seus comentários) e, depois, pelas cenas em que se relaciona com uma
parceira de seu tio, em uma relação possivelmente mediada pelo dinheiro. No entanto, a
figura 7, apresentada a seguir, mostra um contraste com esse indivíduo que se coloca como
superior, ao apresentar ao leitor toda a fragilidade do personagem, que chora em seu quarto
em postura fetal, remetendo à infantilidade, após receber um ultimato de seu tio, que se
recusa a continuar a sustentá-lo. É interessante notar como a concepção desse personagem
se pauta exatamente pela crítica feita àqueles que se prendem ao mundo material. Rique,
depois de perder a mesada do tio, encara a solidão e o vazio de sua existência ao se perceber
isolado das antigas amizades pela falta de interesse delas em sua companhia, algo antes
proporcionado pelo dinheiro, e também ao perceber que a sua antiga vida boêmia não o
levou a construir nada de verdadeiro valor (nenhuma relação qualitativa com o mundo,
nos termos de Goldmann). Dessa forma, Cachalote demonstra um potencial crítico em
relação a esse mundo individualista e movido pelo capital no qual a própria obra foi gerada,
reafirmando as ideias do teórico francês por meio desse herói degradado que coloca em
destaque os jogos de interesse e as máscaras sociais que envolvem o mundo burguês.

Figura 6 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

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Figura 7 - (GALERA; COUTINHO, 2010).

Considerações finais

A partir da ótica teórica proposta, percebe-se que Cachalote é um romance gráfico que
reverbera muito do anseio de expressão romanesco. Aspecto, esse, que pode ser justificado
a partir da noção de que o século XXI, contexto de produção da obra de Galera e Coutinho,
ainda tem em sua estrutura de base muitas semelhanças com o contexto de consolidação
do gênero romance. É claro que não são poucos os teóricos que pensam e descrevem um
momento supostamente diferenciado da história humana chamado de pós-modernidade.
Contudo, é evidente que a lógica capitalista, mesmo com transformações, ainda fundamenta
nossas relações e, por consequência, não deixou de motivar muito da produção artística
(mesmo que seja uma motivação à crítica, à angustia, à resistência). O sujeito só e desnorteado
que se torna personagem central do romance, como observado por Lukács e outros, ainda
encontra, como se pode perceber, certo eco em um romance gráfico publicado em 2010.
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Além dessa constatação de cunho mais social, calcada na observação de como as
relações humanas possivelmente interferem na literatura, não se pode deixar de enfocar
as observações de interesse exclusivamente estético realizadas por este trabalho, visto
que, como dito em ressalva prévia, tratando-se de uma pesquisa na área de literatura, é
necessário que se tenha como propósito principal uma análise própria de tal perspectiva.
Com isso, destaca-se o potencial da literatura para se remodelar em prol de expressar
objetivos comunicativos semelhantes. Como descrito, a problemática da individualização
e suas nuances vistas no gênero romance pelos teóricos marxistas aqui revisitados ainda
se mostra presente no objeto aqui estudado. Devido, porém, à estruturação particular
de Cachalote, que é um romance gráfico, esta se realiza de maneira diferente. Devido à
natureza multimodal da obra, o sentimento de solidão, a caracterização problemática
dos personagens, a incapacidade de narrar e outros aspectos anteriormente descritos se
disseminam pela linguagem não verbal ou, ao menos, apelam para uma construção de
sentido que se apoia no jogo estabelecido entre o verbal e o não-verbal. O vazio da situação
dramática está representado pelo ambiente, do qual emana um silêncio muito significativo
por efeito de uma troca de quadros que rompe com a temporalidade cronológica, pelas
expressões ambíguas dos personagens em cena, pelo texto verbal dramático que confirma
ou questiona o que é dado visualmente e por outras estratégias estéticas que só são possíveis
por meio da singularidade linguística da arte sequencial.
Por fim, não se pode deixar de destacar a capacidade expressiva do gênero romance
gráfico, constatada por meio do estudo de caso aqui realizado. Como proposto, era nossa
intenção entender até que ponto alguns elementos atribuídos ao gênero romance poderiam
ressoar no gênero da obra aqui analisada. Sabendo, porém, que este trabalho é um estudo
pontual, não se pretende concluir esta reflexão com a pretensão de afirmar máximas sobre
o romance gráfico, até porque isso iria contra a própria compreensão de gênero de Bakhtin,
que serve de ponto de partida deste trabalho. Mas, mesmo assim, parece justo afirmar que
o estudo de caso aqui realizado confirma que o romance gráfico, como o romance, pode
servir ao propósito de responder aos anseios dos indivíduos modernos – conclusão que se
faz importante não só pelo indício de que talvez exista uma proximidade relevante entre
o propósito comunicativo e a formulação estética de produções contemporâneas e de
obras que datam até mesmo dos séculos XVIII e XIX, como também pela noção de que
seria uma ignorância, no sentido literal da palavra, rebaixar a arte sequencial e suas formas
composicionais à categoria de “subliteratura” quando há, evidentemente, nessas obras, um
histórico, rico e pouco explorado material literário que pode nos dizer muito sobre o fazer
narrativo e, por consequência, sobre nós mesmos.

GARCIA, L. Z. The Reshaping of the Novel Poetics in Cachalote: a case study for grasping
the Graphic Novel. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12 , n. 1, p. 175-197, 2020.

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Recebido em: 25 mar. 2020


Aceito em: 18 mai. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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dossiê
LITERATURA E GÊNERO II

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198
Dossiê Literatura & Gênero II

A mudança de paradigmas nos estudos da Literatura oferece um conjunto de abordagens


diversas e, muitas vezes, divergentes. A pesquisa, a análise e a interpretação propiciadas
pelos Estudos de Gênero aplicam-se aos textos literários, mantenedores de uma forte ligação
com as existências até então rechaçadas e recusadas no horizonte real de possibilidades.
Como afirmou a escritora Conceição Evaristo em live recente (julho de 2020), a Literatura
é a oportunidade da vida, de vivências inscritas com o corpo e com as memórias. Embora,
por vezes, individuais, as reminiscências sempre reverberam a comunidade, tornando-a
presente e significativa. Outras são coletivas, circunscritas no espaço da hegemonia e da
tradição, desenhadas em mosaicos coloridos, alterando, à vista disso, nossas concepções.
Deliberadamente articulada enquanto rede de colaboração, cujo objetivo é evidenciar
as múltiplas possibilidades dos Estudos de Gênero na Literatura, a segunda parte do nosso
dossiê traduz e comunica afetos, desencadeados pelos textos que o compõem.
O primeiro artigo, “Notas sobre o abolicionismo racista de O cortiço, de Aluísio Azevedo”,
trata-se de mais uma produção ensaística da escritora, doutora, travesti contemporânea
Amara Moira, autora de Se eu fosse puta (2016). Neste artigo, Moira não só apresenta e
discute uma estratégia de leitura, mas também se debruça em passagens do romance para
estabelecer uma crítica sobre o narrador e as contradições em torno da “denúncia do regime
escravocrata” supostamente enunciado pela obra a partir do que se poderia chamar de
“abolicionismo racista”.
“Redes de solidariedade e interseccionalidades na literatura e gênero” é um texto/
projeto em rede – portanto, criado conjuntamente –, fruto de estudos e experiências do
Grupo de Pesquisa Gênero e Raça. O texto, assinado por Davi Silistino de Souza, Cláudia
Maria Ceneviva Nigro, Fernando Luís de Morais, Flávia Andrea Rodrigues Benfatti,
Leandro Passos e Luiz Henrique Soares, tem como objetivo analisar a relevância/influência
das diferentes conformações de rede de solidariedade e de interseccionalidade para a
abordagem feminista nacional e para os Estudos de Gênero contemporâneos. Nossa ênfase
crítica firma-se na abertura para a união e o estabelecimento de ajuda mútua com outras
“minorias” (LGBTQI+, mulheres e homens de etnias diversas, entre outras) respaldadas
pelos Estudos de Gênero. Expande-se, assim, a concepção de redes de solidariedade, a fim de
rever as heterarquias coloniais, por meio das quais as ideologias racistas, machistas, trans/
homofóbicas, segregacionistas, por exemplo, são continuamente perpetuadas.
No artigo “Masculinidades fin de siècle: a patologia do homem e da nação em O barão de
Lavos, de Abel Botelho”, os pesquisadores Edson Salviano Nery Pereira e Mário César Lugarinho
realizam uma revisão da crítica e da recepção do romance naturalista português O barão de
Lavos, de Abel Botelho, observando sua repercussão tanto em Portugal quanto no Brasil, no
fim do século XIX, tendo em vista a regeneração da identidade nacional e das masculinidades.
Flávio Adriano Nantes, em “A fuga como resistência e busca por novos horizontes
em ‘Onde acaba o mapa’, de Carol Rodrigues”, faz uma leitura de um dos contos de Carol
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Rodrigues, presente no livro Sem vista para o mar, ganhador do Prêmio Jabuti em 2015. Em
“Onde acaba o mapa”, analisa a prática dos afetos homossexuais por parte da personagem
central, o “menino jurado”. Nantes propõe pensar o conto de Rodrigues por meio da metáfora
do armário e refletir sobre onde estão ancoradas as justificativas sociais que expliquem as
reações e a (não) existência de territórios específicos para a prática da LGBTfobia.
No artigo “Performativo e subversão em Acenos e afagos, de João Gilberto Noll” Maria
Cláudia Rodrigues Alves e Marcus Vinicius Camargo e Souza demonstram, na obra daquele
autor, as subversões provenientes dos atos do narrador quanto ao discurso hegemônico
sobre o gênero sexual. Para tanto, lançam mão da relação do performativo com a linguagem
literária enquanto um discurso parasitário, citacional e iterativo e, por consequência, capaz de
instalar a transgressão das ideias no centro da discursividade, subvertendo tanto a concepção
de gênero sexual quanto o próprio conceito de linguagem literária.
Em “Um teto todo nosso: visibilidade, resistência e subjetivação em clubes de leitura”,
Michelle Silva Borges percebe a Literatura e o livro como um legado consciente ou inconsciente
das palavras mudas, sobre o qual se expõe uma ordem do discurso. Fundamentada em Le Goff
(1990), propõe a necessidade de demolir a construção e analisar as condições sob as quais se
produzem os documentos-monumentos. Nesse intuito, focaliza o consenso, atravessado por
relações de poder, da predominância nos processos literários, que se estende desde a autoria
da escrita à escolha de quem lê nos clubes de leituras, criados com o propósito de privilegiar,
de forma exclusiva, a escrita de mulheres e suas práticas de protesto na Literatura.
Regiane Corrêa de Oliveira Ramos, em texto redigido originalmente em inglês,
publicado pela Bloomsbury, e traduzido por Davi Silistino de Souza, encerra o dossiê. Seu
texto “Tornando visíveis as experiências trans por meio de traduções”, traça um histórico
de como os estudos transgêneros, a partir da teoria e da prática da tradução, começaram a
ganhar visibilidade por meio de publicações literárias e acadêmicas no contexto indiano.
Enfoca-se, neste trabalho, o protagonismo empreendido por pessoas trans no exercício da
tradução de diversas obras – em especial, as autobiografias das hjiras – para o inglês e outros
idiomas indianos. Nessa lógica, a tradução opera como plataforma não só para a participação
fundamental de tradutoras trans, mas também para a amplificação de narrativas e histórias
protagonizadas por hjiras e indivíduos trans.
Esperamos que gostem! Desejamos a todxs uma boa leitura!

Cláudia Nigro
Davi Silistino de Souza
Fernando Luís de Morais

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Notas sobre o abolicionismo racista de O cortiço,
de Aluísio Azevedo

AMARA MOIRA*

RESUMO: O objetivo deste escrito é apresentar e discutir uma estratégia de leitura sobre o romance
O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. O ensaio debruça-se em passagens do romance para estabelecer
uma crítica sobre o narrador e as contradições em torno da “denúncia do regime escravocrata”
supostamente enunciado pela obra, a partir do que se poderia chamar de “abolicionismo racista”.

PALAVRAS-CHAVE: Abolicionionismo racista; Aluísio Azevedo; O cortiço; Racismo;


Supremacismo.

ABSTRACT: The purpose of this paper is to present and discuss a reading strategy on the novel
O Cortiço (1890), by Aluísio Azevedo. The essay focuses on passages in the novel to establish a
critique of the narrator and the contradictions surrounding the “denunciation of the slave regime”
supposedly enunciated by the book, based on what could be called “racist abolitionism”.

KEYWORDS: Aluísio Azevedo; O cortiço; Racism; Racist abolitionism; Supremacism.

* Travesti, escritora e doutora em Teoria e Crítica Literária – Programa de Pós-Graduação em Teoria e História
Literária – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – SP – Brasil. E-mail: amoiramara@gmail.com
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Dois momentos marcantes na minha trajetória como leitora: o primeiro quando, numa
mesa redonda que dividi com Conceição Evaristo, a escritora afirmou que a morte de Bertoleza
em O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, era uma das passagens mais abjetas da literatura
brasileira1 e o outro foi quando, numa conversa sobre “Negrinha” (1920), de Monteiro Lobato,
com o estudioso do racismo brasileiro Ale Santos, o pesquisador defendeu que “as pessoas que
enxergam [no conto] crítica à escravidão estão projetando suas próprias visões”2. A partir desses
posicionamentos, a minha maneira de encarar não apenas essas duas obras, como quaisquer
outras de autoria branca em que despontem personagens negros foi transformada. A ideia do
presente ensaio é pensar estratégias de leitura a partir dessas provocações.
Não é difícil identificar passagens racistas no narrador de O Cortiço, sobretudo
desse racismo que buscava “apoio numa pseudo-ciência antropológica que angustiava os
intelectuais brasileiros quando pensavam a mestiçagem local” (CANDIDO, 1993, p. 143).
Irrupções desse racismo em que se amalgamam “o instinto racial, a raça inferior, o desejo
de melhorá-la, o contacto redentor com a raça superior” (CANDIDO, 1993, p. 144 – itálicos
do autor) poderiam ser flagradas, por exemplo, no momento em que o narrador “explica”
a disposição de Bertoleza para ir morar com João Romão (“porque, como toda a cafuza,
Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça
superior à sua” (AZEVEDO, 2012, p. 66), ou, então, na passagem em que nos é apresentado
o “motivo” de Rita Baiana trocar Firmo, o capoeirista negro, pelo português cavouqueiro:
“desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de
animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou seus direitos de apuração, e Rita preferiu
no europeu o macho de raça superior” (AZEVEDO, 2012, p. 272). Observe-se, aí, a pretensa
objetividade e distanciamento do narrador a serviço da veiculação de ideais racistas, bem ao
gosto do nosso naturalismo.
Antes de avançarmos, porém, convém retomarmos alguns pontos da trama que
enreda Bertoleza para escurecer o argumento aqui proposto. O romance se passa no período
escravocrata, mas quando a luta abolicionista já estava se consolidando. Bem no início vemos
o vendeiro português João Romão, de posse das economias de Bertoleza, uma quitandeira
cafuza escravizada com quem se amasiara, dizendo-lhe que inteiraria o que faltava para
que ela obtivesse a liberdade. O que ele fará, no entanto, é falsificar uma carta de alforria,
simulando que ela está liberta, e usar o dinheiro para ir transformando a sua vendinha num
cortiço. Diante da prosperidade dos negócios, a mulher passa a ser vista como um fardo por
João Romão, que agora precisará se livrar dela para poder casar-se com a filha do vizinho
Miranda, um português que recentemente ganhara o título de Barão. A fraude da alforria
só será descoberta na página final do livro, quando Bertoleza descobre que o companheiro-
carrasco, não sendo capaz de matá-la, denunciou-a a seus antigos escravizadores. Estes

1
Trata-se da Mesa-Redonda: “Cotidiano e fronteiras da escritura”, ocorrida no dia 18/07/2019, no Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), na Universidade de Brasília (UNB).
2
A conversa se deu dia 01/05/2020, no grupo de WhatsApp dos apoiadores do seu podcast “Infiltrados No Cast”. O
podcast havia, então, lançado a série “Os maiores racistas da história brasileira”, com um episódio específico sobre
Monteiro Lobato. Os colchetes na fala citada são meus.
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vieram com a polícia buscá-la e ela, percebendo que não conseguiria fugir, rasga diante de
todos eles o próprio ventre com a faca de cozinha que tinha em suas mãos.
Feito esse breve resumo, retorno à minha surpresa diante do apontamento luminoso
de Conceição Evaristo, pois só ali me dei conta de que a morte de Bertoleza, que eu tinha
aprendido a ler como denúncia do estatuto precário da alforria e, ainda, como crítica ao
regime escravocrata, poderia ser entendida também como mais uma das instâncias racistas da
obra. Eu disse “também” porque criticar a escravidão (e, mesmo, defender o Abolicionismo)
não necessariamente implicava uma posição anti-racista, algo que intelectuais negros cansam
de repetir, mas que ainda hoje, para boa parte da sociedade brasileira, incluindo setores de
esquerda, parece um contrassenso flagrante. A seguinte passagem de Menino de engenho
(1932), do paraibano José Lins do Rego, talvez ajude a desfazer essa percepção:

Restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro. Uns vinte quartos com o
mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição,
ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala.
E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa,
Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a
trabalharem de graça, com a mesma alegria dos tempos da escravidão. As suas
filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande
e a mesma passividade de bons animais domésticos (REGO, 1973, p. 54–55).

Ou, então, essa memória do 13 de maio de 1888 em Minha vida de menina, diário que
a adolescente Helena Morley escreveu entre 1893 e 1895, em Diamantina (MG), e que seria
publicado pela primeira vez em 1942:

Eu ainda me lembro de quando chegou a notícia da Lei de Treze de Maio. Os


negros todos largaram o serviço e se ajuntaram no terreiro, dançando e cantando
que estavam livres e não queriam mais trabalhar. Vovó, com raiva da gritaria,
chegou à porta ameaçando com a bengala dizendo: “Pisem já de minha casa pra
fora, seus tratantes! A liberdade veio não foi pra vocês não, foi pra mim! Saiam
já!”. Os negros calaram o bico e foram para a senzala. Daí a pouco veio Joaquim
Angola em nome dos outros pedir perdão e dizer que todos queriam ficar.
Vovô deixou, e os que não morreram ou casaram estão até hoje na Chácara.
Também com a vida que eles levam... (MORLEY, 2016, p. 204).

Joel Rufino dos Santos aponta, em O que é racismo, que “nem mesmo a Campanha
Abolicionista (1879–1888) encarou o negro como gente” (SANTOS, 1984, p. 52), uma
vez que a defesa da Abolição baseava-se, em primeiro lugar, na modernização do país e,
em segundo, na compaixão ante o sofrimento dos pobres pretos. E compaixão, sabemos,
não é suficiente para fundar uma compreensão do Outro como igual. Ale Santos traz
ainda outro aspecto desse debate que não deveríamos esquecer: “A sociedade que aboliu a
escravidão iniciou um plano para embranquecer a população e nossa cultura”3. Nota-se esse
embranquecimento, por exemplo, na obsessão em emplacar heróis brancos como símbolos

3
Afirmação postada em seu perfil pessoal no Twitter (@savagefiction), no dia 15/11/2019. Disponível em:
https://twitter.com/Savagefiction/status/1195348450193412103. Acesso em: 27 jul. 2020.
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mesmo da causa abolicionista, visível na fantasia libertária que se criou em relação à Princesa
Isabel ou, mesmo, no fato de o “poeta dos escravizados” ser o abastado Castro Alves (1847–
1871) e não Luís Gama (1830–1882), autor da obra Primeiras Trovas Burlescas de Getulino
(publicada em 1859, quando Castro Alves contava 12 anos de idade), na qual se encontram
belíssimas provocações à cultura branca letrada de sua época:

Oh Musa de Guiné, cor de azeviche,


estátua de granito denegrido,
ante quem o Leão se põe rendido,
despido do furor de atroz braveza;
empresta-me o cabaço d'urucungo,
ensina-me a brandir tua marimba,
inspira-me a ciência da candimba,
às vias me conduz d'alta grandeza (GAMA, 1974, p. 23).

O poeta, mais à frente, intitula-se orgulhosamente “Orfeu de carapinha” (GAMA, 1974,


p. 24). Em outros poemas, ironiza as expectativas de embranquecimento de muitos mestiços
e, inclusive, o racismo que reproduzem como forma de se blindar socialmente. Veja-se:

se mulatos de cor esbranquiçada


já se julgam de origem refinada
e, curvos à mania que os domina,
desprezam a vovó que é preta-mina (GAMA, 1974, p. 30).

E também:

se eu que pretecio4,
d'Angola oriundo,
alegre, jucundo,
nos meus vou cortando;
é que não tolero
falsários parentes,
ferrarem-me os dentes,
por brancos passando (GAMA, 1974, p. 81).

Além disso, Luís Gama ataca os escravizadores – (“Aqui não se ergue altar ou trono
d'ouro / ao torpe mercador de carne humana” (GAMA, 1974, p. 143) –, propõe outro
padrão de beleza para suas musas – “Meus amores são lindos, cor da noite / recamada
de estrelas rutilantes; / são formosa crioula, ou Tétis negra, tem por olhos dous astros
cintilantes” (GAMA, 1974, p. 154) – e, por fim, numa bela composição dedicada à sua mãe,
a lendária Luísa Mahin, recupera a majestade ancestral da figura negra: “Era mui bela e
formosa, / era a mais linda pretinha, / da adusta Líbia rainha, / e no Brasil pobre escrava!”
(GAMA, 1974, p. 139).

4
Segundo a nota que acompanha a edição disponibilizada em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2113 (Acesso em: 27 jul. 2020), significa: “relativo a ficar preto
ou negro”.
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Quão mais simbólico não seria o título de “poeta dos escravizados” concedido a ele, ele
próprio “um dos raros intelectuais negros brasileiros do século XIX, o único autodidata e
o único, também, a ter vivido a experiência da escravidão” (FERREIRA, 2011, p. 17)? Para
além disso, ele teve papel central no abolicionismo paulista. É uma questão que me ocorre
quando, de volta a O cortiço, me deparo com expressões como “a hedionda carapinha da
crioula” (AZEVEDO, 2012, p. 251) no discurso indireto livre de João Romão ou referências
ainda mais ultrajantes à mesma:

Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada
de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele
voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra... (AZEVEDO, 2012, p.
199).

Discutindo essa passagem na “Apresentação” da obra, Paulo Franchetti observa que


“aqui, a descrição do estado e dos odores de Bertoleza são sentidos pelo narrador (e pelo leitor),
pois a única outra personagem ali presente não tinha consciência deles” (FRANCHETTI,
2012, p. 55). É o narrador quem sente a necessidade de sublinhar esse contraste, continua
o crítico, contraste que será feito reforçando “os traços repulsivos de Bertoleza, que são as
marcas do seu trabalho, explorado por Romão” (FRANCHETTI, 2012, p. 55). É como se o
narrador, escrupuloso na representação da sociedade tal qual a via, não quisesse se furtar a
mostrar o que era efetivamente dito e pensado à época, por mais aviltante que fosse, mas,
aqui e ali, deixasse escapar que, na verdade, ele concordava com o que expunha por meio de
alguns dos seus personagens. E isso sem que, em nenhum momento da narrativa, surja um
contraponto a esses discursos racistas capaz de subvertê-los ou, pelo menos, minimizá-los, o
que só reforça a hipótese de que o narrador os respalda.
Nesse sentido, é curioso perceber que o personagem mais destacado de O cortiço é,
em si mesmo, um belo exemplo dessa aparente contradição em torno do abolicionismo
racista, pois logo após a morte de Bertoleza chega ao cortiço de João Romão “uma comissão
de abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio
benemérito” (AZEVEDO, 2012, p. 357). A obra terminará com uma ordem para que o grupo
seja conduzido à sala de visitas e, ainda que nesse contexto o recebimento do diploma adquira
um verniz de ironia, a brutal animalização com que o narrador dá fim à vida de Bertoleza
(“rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue” [AZEVEDO, 2012, p. 357]),
animalização que não encontra paralelo na representação do companheiro-carrasco, faz com
que não seja possível darmos a esse desfecho um sentido de denúncia da opressão.
Sobretudo em função da forma como o narrador apresenta o último pensamento
da personagem a respeito de João Romão: “seu amante, não tendo coragem para matá-la,
restituía-a ao cativeiro” (AZEVEDO, 2012, p. 357). A escolha da palavra amante revela
aqui que, mesmo diante da situação mais perversa, é ainda ao lado do capitalista que o
narrador se coloca, como que operando uma tradução do texto para enquadrá-lo sempre
num melhor ângulo. Considerando o que acontecerá a seguir, esse posicionamento remete-

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nos diretamente a uma outra tradução empreendida pelo narrador, momento em que ele
nos concede acesso à interioridade de Bertoleza para “explicar”, por meio do determinismo
mais rasteiro e racista, os sentimentos que, apesar do desprezo recebido, ela nutria por João
Romão, sugerindo ainda que ela seria capaz de suicidar-se por amor a ele:

Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada


de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha
negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.
E, no entanto, adorava o amigo; tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas
do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de ciúmes,
mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a vergonha
do seu amor5 (AZEVEDO, 2012, p. 305).

O suicídio de Bertoleza era extremamente conveniente para o dono do cortiço, ainda


mais diante da polícia e dos antigos escravizadores, com o protagonista podendo posar de
inocente e até indignado. A animalização brutal de Bertoleza, somada aos pensamentos racistas
prodigalizados pelo texto (que, não obstante afirmar que as raças consideradas inferiores
“instintivamente” buscam “apuração” nas tidas por superiores, só revela desastre a partir
dessas uniões), sugere que também aos olhos do narrador esse era o melhor desfecho, como
se a personagem estivesse sendo punida por ter desejado escapar à condição de subalterna.
Ela, uma cafuza, mestiça de negro com indígena, torna-se um problema em si apenas
quando deixa de ser útil à ascensão socioeconômica do companheiro-carrasco: “João
Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não
precisamos para continuar a viagem” (AZEVEDO, 2012, p. 245). O precisamos não deixa de
ser sintomático da equiparação entre as perspectivas do narrador e do protagonista. O que
se observa, aí, é o estabelecimento de uma supremacia branca, simbolizada pelo casamento,
em vias de concretizar-se, entre João Romão, “ex-taverneiro e futuro visconde” (AZEVEDO,
2012, p. 352), e Zulmira, a filha do vizinho Miranda, Barão.
As trapaças e a exploração execrável empreendidas pelo capitalista, e mesmo as mortes
que ele causara, tudo parece aceitável, aos olhos do narrador, para que o branco pobre passe
a ocupar uma posição de poder. A própria trajetória inicial de Jerônimo, outro português,
reforça essa ideia, uma vez que ele começa a narrativa na miséria, conseguindo apenas o
suficiente para não morrer de fome, daí a partir do trabalho duro vai aos poucos ascendendo,
mas entra em declínio ao se apaixonar por Rita Baiana e abrasileirar-se:

O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das


extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito
da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo
inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais
ninguém (AZEVEDO, 2012, p. 308).

5
A frase seguinte, à mesma página, vai ainda mais fundo na desumanização, agora com pensamentos que o
narrador deseja atribuir à própria personagem: “O que custava àquele homem consentir que ela, uma vez por
outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão...”.
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A mensagem transmitida, bem ao gosto duma literatura que se pensava ciência, era
que a mestiçagem só seria razoável se, primeiro, se desse apenas entre as raças consideradas
inferiores e, segundo, servisse para produzir seres úteis à classe dominante branca – esta
precisando manter-se sempre pura. Não há propriamente denúncia da exploração e, sim,
defesa. O trabalho aparecerá no romance, aliás, como um elemento capaz de transformar
a vida do indivíduo branco, mas de manter em posição de eterna subserviência o negro
e/ou o indígena. À medida que João Romão ascende socialmente, ele passa, por um lado,
a rejeitar Bertoleza (de uma perspectiva, sublinhe-se, exclusivamente afetivo-sexual, posto
que seguirá explorando o seu trabalho de forma impiedosa) e, por outro, a almejar uma
posição similar à do Barão Miranda: esses dois movimentos originam a sua transformação
pessoal e a narrativa, a partir desse ponto, vai deixando de animalizá-lo.
Querer ver ironia nessa nova posição da narrativa para com o capitalista é não entender
a mensagem supremacista que ela encapsula. Não, não há ironia, sequer na entrega a João
Romão do diploma de sócio benemérito da comissão de abolicionistas. O abolicionismo não
só podia ser racista, como deveria sê-lo, eis o que o romance nos diz. E aqui me dou conta de
que as palavras de Ale Santos, necessárias para uma melhor compreensão de “Negrinha”, de
Monteiro Lobato, servem também à perfeição para O cortiço.

MOIRA, A. Notes on the Racist Abolitionism of O cortiço, by Aluísio Azevedo. Olho d’água,
São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 201-208, 2020. ISSN 2177–3807.

Referências

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FERREIRA, L. Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama: Poemas, artigos, cartas, máximas. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.

FRANCHETTI, P. "Apresentação". In: AZEVEDO, A. O cortiço. Apresentação de Paulo


Franchetti. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012. p. 09-60.

GAMA, L. Trovas burlescas. São Paulo: Editora Três, 1974.

MORLEY, H. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.

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207
REGO, J. L. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

SANTOS, J. R. O que é racismo. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984.

Recebido em: 23 abr. 2020


Aceito em: 25 mai. 2020

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Redes de solidariedade e interseccionalidades na
literatura e gênero
DAVI SILISTINO DE SOUZA*
C L Á U D I A M A R I A C E N E V I V A N I G R O **
F E R N A N D O L U Í S D E M O R A I S ***
F L Á V I A A N D R E A R O D R I G U E S B E N F A T T I ****
L E A N D R O P A S S O S *****
L U I Z H E N R I Q U E S O A R E S ******

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a importância das diferentes formas de rede de solidariedade
e de interseccionalidade para a abordagem feminista nacional e para os estudos de gênero contemporâneos.
Compreendemos que as críticas provenientes desses estudos buscam questionar o papel de personagens consideradas
subalternas pela tradição patriarcal ocidental, logrando voz e espaço na produção de escritores subalternos. Nossa
ênfase crítica, entretanto, firma-se principalmente nos estudos de gênero, por apresentarem mais abertura para a
união e o estabelecimento de ajuda mútua com outras “minorias” (LGBTQI+, mulheres e homens de etnias diversas,
entre outros). Expande-se, assim, neste trabalho, a concepção de redes de solidariedade dentro dos estudos de gênero,
a fim de rever as heterarquias coloniais, pelas quais as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, segregacionistas,
entre outras, são perpetuadas. Os esforços de pesquisadoras e escritoras contemporâneas fazendo uso de redes de
solidariedade e do conceito de interseccionalidade contribuem para a expansão do conhecimento e do respeito ao
outro, demostrada por ocasiões de enfrentamento e manifestações de subalternos.

PALAVRAS-CHAVE: Contemporaneidade; Estudos de gênero; Interseccionalidade; Judith Butler; Kimberlé


Crenshaw; Literatura; Rede de solidariedade.

ABSTRACT: This article aims to analyze the importance of the different forms of networks of solidarity and
intersectionality for the national feminist approach and for contemporary gender studies. We understand that the
criticisms from these studies seek to question the role of characters considered subaltern by the Western patriarchal
tradition, achieving voice and space in the production of subaltern writers. Our critical emphasis, however, rests
mainly on gender studies, as they present more openness to union and the establishment of mutual aid with other
“minorities” (LGBTQI+, women and men of different ethnicities, among others). Thus, in this work, the conception of
networks of solidarity within gender studies is discussed, in order to review the colonial heterarchies, through which
racist, sexist, homophobic, segregationist ideologies, among others, are perpetuated. The efforts of contemporary
researchers and writers presenting networks of solidarity and the concept of intersectionality contribute to the
expansion of knowledge and respect for others, demonstrated through moments of confrontation and manifestations
of subalterns.

KEYWORDS: Contemporaneity; Gender Studies; Intersectionality; Judith Butler; Kimberlé Crenshaw; Literature;
Network of Solidarity.

* Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dsilistino@gmail.com
** Departamento de Letras Modernas – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São
José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: cmc.nigro@unesp.br
*** Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dmorays_2@hotmail.com
**** Instituto de Letras e Linguística (ILEEL) – Universidade Federal de Uberlândia – 38408-100 – Uberlândia – MG
– Brasil. E-mail: flavia.benfatti@ufu.br
***** Pós-doutorando em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP –
15054-000 – São José do Rio Preto – SP. Professor EBTT do IFMS – Campus Três Lagoas – Três Lagoas – MS – Brasil.
E-mail: leandro.passos@ifms.edu.br
****** Mestrando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: luizhsoares83@gmail.com
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Este artigo, elaborado a partir dos conceitos de rede de solidariedade e de
interseccionalidade, é desenvolvido por integrantes do grupo de pesquisa Gênero e Raça
(CNPQ), liderado pela Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro. Dessa maneira, a presença
de participantes de grupos subalternos como mulheres, negr@s e LGBTQI+ anuncia-se de
modo a representar a ideia de redes. Escrevemos nosso artigo em rede.
É perceptível, na atualidade, o aumento da liberdade de expressão e a expansão dos
direitos das chamadas minorias em sociedades ocidentais. Há de se notar também a existência
de repressão intensa, injustiças e ódio aos grupos subalternos, antes ignorados. Embora de
trajetória árdua e antiga, o embate de mulheres, negr@s, LGBTQI+ e outros, ainda se faz
necessário, sobretudo no contexto nacional1.
Frente a essa contextualização, uma das possíveis estratégias de enfrentamento
ao cerceamento de direitos e liberdade d@s não hegemônic@s engendra-se por meio do
ajuntamento de iguais e de diversos. De fato, o processo de subalternização propicia a
agregação de pessoas vivenciando situações semelhantes e criando, consequentemente,
políticas em conjunto a favor da igualdade social. Em virtude da amplitude e complexidade
das novas manifestações da união de grupos subalternos, buscaremos explorar as distinções
e semelhanças entre a recente proposta de redes de solidariedade, provinda de pesquisadoras
como Butler (2015) e Davis (2017), e a propositura oferecida pelos movimentos subalternos,
como, por exemplo, o movimento feminista.
O conceito por detrás das redes de solidariedade está relacionado ao enfrentamento,
em conjunto, das forças opressoras e injustas que buscam eliminar o poder desses grupos.
Butler (2015), em seus escritos, coloca o ser humano em primeiro plano, independentemente
de qualquer rotulação a ele atribuída na sociedade em que está inserido. Para a filósofa e
professora de literatura da Universidade de Berkeley, é necessário o ativismo político a fim
de criarmos uma rede de solidariedade e, assim, eliminar diferenças que hierarquizem a
sociedade. Butler sabe empreender à literatura essa prática.
O argumento dessas redes de solidariedade está centrado em formas de colaboração, com
a oferta de novas possibilidades de vida àquel@s cujos direitos foram reduzidos ou, muitas
vezes, subtraídos. Na grande rede, esses indivíduos se encontram incluídos, contribuindo
de forma equitativa nas demandas pela inserção e igualdade de direitos. Partindo do
princípio de somatória das forças, Butler defende a discussão de questões contemporâneas
relacionadas a desigualdades sociais, à pobreza e à violência, perpassando necessariamente
por problemáticas de raça e gênero. Esses debates se manifestam em diversas plataformas,
dentre as quais se destacam a arte e a literatura.
No que tange à presença de redes na literatura, é possível notar prenúncios de seu
surgimento em romances como The Front Runner, de Patricia Nell Warren. A obra é o
primeiro livro de ficção gay, parte da lista de best-sellers americanos, no qual a autora trata

1
Não podemos nos esquecer do fato de que o Brasil é um dos países com uma das maiores Paradas do Orgulho
LGBT; no entanto, ao mesmo tempo, é campeão nas estatísticas de assassinato desse grupo. Cf: Brasil é o país
que mais mata LGBTs no mundo, confirma relatório. Disponível em: <https://observatoriog.bol.uol.com.br/
noticias/2018/03/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-lgbts-no-mundo-confirma-relatorio>. Acesso em: 11 abr. 2019.
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da questão da aceitação do casal homossexual na sociedade tradicional na década de 1970,
quando o assunto ainda era considerado tabu. Faz-se viável observar, por parte de Warren,
um movimento a favor da criação das redes, visto ser a solidariedade um conceito cultivado
pelas personagens de Prescott College, como pode ser observado em

Em função do intenso trabalho de Vince e Billy, o programa de estudos gays se


transformou em serviço de aconselhamento, o primeiro do tipo em um campus
americano. Em 1971 e 1972, alguns pequenos programas como esse surgiram em
grandes universidades bem como “bares gays”, tolerados pela administração, onde
jovens gays podiam se encontrar, conversar e ser eles mesmos. Nosso programa
em Prescott, contudo, era algo único, surgido do atletismo (WARREN, 1996, p.
194, tradução nossa)2.

Ao criar possibilidades, por meio dos grupos de estudos gays, para o fortalecimento
social da comunidade homossexual, Warren mostra a importância de apoiarmos a causa.
Com o intuito de ouvir o dizer desses indivíduos, podemos perceber muita coisa a ser
mudada, muitas vidas a serem salvas.
A união representada no romance é amplificada e aprofundada pela fala de Angela
Davis durante a conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra
o racismo”, realizada na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2017. No evento, a
pensadora menciona a Marcha das Mulheres em Washington como marco de união de
solidariedade:

A Marcha das Mulheres em Washington foi liderada por mulheres negras, latinas,
asiáticas, indígenas, muçulmanas, e também mulheres brancas. Encontramo-nos
em Washington, por todo o mundo e todos os países, para dizer que resistiremos.
Em todos os dias da presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos
ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero patriarcado. Nós resistiremos ao
preconceito contra o Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós
defenderemos o meio ambiente contra os insistentes ataques predatórios do
capital (DAVIS, 2017).

Semelhante à Marcha das Vadias (2011-2012) e à manifestação do #EleNão (2018), o


movimento referido serve para elucidar a força da união entre @s considerad@s dissidentes.
Mais do que isso, revela-nos ser possível a união e a resistência, em meio a diferenças
culturais, étnico-raciais, sexuais etc.
É viável compreender, no entanto, que a proposta de redes de solidariedade não se
encontra restrita ao mesmo modelo ambientado nos contextos dos movimentos feministas
em sua origem. Vemos, ao contrário, as redes como um desenvolvimento natural, isto é,
como um exemplar aperfeiçoado e ampliado desses movimentos.

2
No original: “With Vince and Billy working on it, the gay studies program grew into a counseling service
that was the first of its kind on an American campus. Back in 1971 and 1972, a few tiny programs like this
had sprung up at big universities, as well as administration-condoned "gay lounges" where the gay kids could
meet, talk and be themselves. But our program at Prescott was something unique, and it grew out of athletics”
(WARREN, 1996, p. 194).
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A perspectiva vigente trazida pela rede de solidariedade engloba a compreensão
contemporânea de gênero, pautada e construída sob as bases de reflexões, das pesquisas e da
escrita de cunho feminista. De acordo com Nigro (2017), antes mesmo dos famosos textos
de Beauvoir, o lugar e a luta por direitos da mulher já vinham sendo tratados por escritoras
como Virginia Woolf e Jane Austen. Com efeito, embora Mary-Catherine Harrison (2014),
professora da universidade de Detroit, EUA, aponte o fato de os romances ocidentais do
século XVIII e XIX serem moldados pelo marriage plot3, a representação da mulher na obra
de Jane Austen se mostra complexa e importante para o século XIX podendo ser, sem dúvida,
considerada como modelo, ainda que precursor, para o debate feminista e de gênero.
Além disso, Nigro sustenta que, mesmo contemporâneos a Beauvoir, “[...] Lacan,
Kristeva, entre outr@s, discorrem sobre o assunto, sempre se tomando em conta a
masculinidade e a feminilidade, mas não o gênero como culturalmente dado” (NIGRO, 2017,
p. 124). Assim, a discussão de gênero nos prelúdios do feminismo é ambientada em um
contexto ainda binário. Susana Funck nos auxilia a perceber que o movimento feminista
carrega tentativas de

[...] [denúncias ao] teor masculino da produção intelectual e [propostas de] um


revisionismo que propiciasse a visibilidade da mulher na cultura e na sociedade.
Bastante essencialista, uma vez que pensava em termos de uma categoria
uniforme de mulher em oposição a homem [...] (FUNCK, 2016, p. 323).

E, de fato, esse discurso se instituiu ímpar para que, por meio das lutas feministas,
muitos direitos fossem adquiridos. Hoje, o feminismo alcançou um lugar de destaque na
cultura contemporânea, já que a voz da mulher tem sido uma marca insistente em busca de
reconhecimento. A escrita deixa de ser falocêntrica e nomes importantes começam a “surgir”
na contemporaneidade: Conceição Evaristo, Luisa Geisler, Veronica Stigger, Jarid Arraes,
Miriam Alves, Maria Valéria Rezende entre outras.
Algumas ressalvas cabem aqui. Não se pode ignorar o baixo número de mulheres
ganhadoras do prêmio Jabuti – a mais famosa premiação literária nacional –, nem esquecer
a recente decisão de não considerar Conceição Evaristo integrante da Academia Brasileira
de Letras. Esses fatos servem para realçar a falta da equidade quando o assunto incorre na
interseccionalidade.
Para compreender o movimento feminista, devemos nos atentar ao fato de ser ele
regido em concepções de gênero ainda de teor dual:

Gênero surge com a crítica marxista-materialista. Conforme o feminismo


marxista, o gênero não existe fora de um contexto ideológico [...] [é] parte de um
processo de construção social e cultural. Além disso, o gênero trata não apenas
de uma questão de diferença, que pressupõe simetria, mas de uma questão de
poder, em que nos deparamos com a assimetria e desigualdade, com a dominação
do feminino pelo masculino (FUNCK, 2016, p. 150).

3
Histórias de amor e cortesia culminando em casamento.
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Percebe-se, nessa definição, uma ênfase nas diferenças entre mulher e homem.
Tratando desse pensamento binário, a autora e ativista Riki Wilchins, em seu livro Queer
Theory, Gender Theory (2004), afirma ser esse tipo de divisão uma tendência manifesta e
persistente no pensamento da civilização ocidental, privilegiando-se, assim, a polarização.
Nesse sentido, o descarte de tudo aquilo que não se enquadra em nenhuma das extremidades
é um efeito inevitável. Nas palavras da própria autora, temos:

O pensamento ocidental tende a dispor qualquer diferença em metades opostas


que, entre si, esgotam todos os significados. Os binarismos encaram o mundo
como uma pizza, na qual é permitido fazer um único corte. Qualquer coisa que
não se ajuste a uma das duas metades é perdida, espremida. Porém, quando a
questão é o gênero, é justamente esse espaço no entremeio – de binarismos
conhecidos como masculino/feminino, homem/mulher, ativo/passivo,
masculinizada/feminilizada e real/artificial – que queremos analisar, reivindicar
e defender (WILCHINS, 2004, p. 40 – tradução nossa).

Ainda que na contemporaneidade o rumo do feminismo esteja ligado a concepções


mais amplas e abertas, o movimento se caracteriza por um aspecto tradicional de união,
na qual há uma necessidade de combate à oposição. Baseado nesses ideais, concebe-se um
conceito de irmandade, por meio de um ponto de vista restrito de união:

Mas, as mulheres, onde estão? E, quando se fala em mulher, o foco é em mulheres


isso ou aquilo (negras, indígenas, de terceiro mundo, das diásporas...). [...]
sinto falta de uma visão de ‘mulheridade’ mais ampla, daquela ‘sisterhood’ [...]
(FUNCK, 2016, p. 332).

Para Funck, o rumo da mobilização feminista deveria ser o da proposta de irmandade,


na qual se enfrentaria, talvez mais diretamente, as questões feministas de modo geral.
Williams e Chau (2007), no entanto, problematizam essa ideia. Apesar de considerarem
essa concepção poderosa e importante, defendem a necessidade de se perguntar se os efeitos
dessa irmandade vão além da abrangência de mulheres brancas, euro-americanas e de classe
média ou superior. Será que as demandas das mulheres negras, por exemplo, têm espaço? Ou
será que essas questões são desprezadas no movimento?
De acordo com as referidas autoras, as mulheres discriminadas étnico-racialmente
não se sentem representadas pelo movimento feminista. Assim, “Desencantadas e frustradas
pelas tentativas repetidas e sem êxito de tornar nossa luta parte das lutas delas, algumas
defendem irmandades separadas, baseadas na união racial (por exemplo, o Feminismo
Negro)” (WILLIAMS; CHAU, 2007, p. 285)4. Acrescentaríamos a união baseada no
conceito de acolhimento, no qual os homens, por exemplo, são convidados a participar
do feminismo negro. Sem que eles estejam envolvidos, a sociedade não muda. Destarte,
a falta de representatividade nos grupos subalternos favorece a criação de rachaduras e
enfraquecimentos na resistência.

4
Tradução nossa do excerto: “Disenchanted and frustrated by repeated, unsuccessful attempts to make our struggles part
of their struggles, some advocate for separate sisterhoods, based on racial alliances (e.g., Black Feminism)” (WILLIAMS;
CHAU, 2007, p. 285).
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Na atualidade, tais questionamentos não se encerram no movimento feminista.
Pode-se notar a necessidade da união de pautas no contexto LGBTQI+. Não são raras as
críticas ao movimento quando estes relevam questões sociais ou relacionadas à raça/
etnia, como foi o caso em que RuPaul Andre Charles, ator, drag queen, modelo, autor e
cantor negro norte-americano, recebeu reprimendas de participantes do RuPaul's Drag Race
pela falta de posicionamento acerca do crescente movimento Black Lives Matter.5 São, de
fato, indissociáveis as categorias gênero e raça, na medida em que um discurso particular
preconceituoso perpassa ambas as heterarquias.
A indissociabilidade das categorias de subalternização traz à baila o aspecto interseccional
da concepção das redes. Embora as ideias que sustentam a noção de interseccionalidade já
tivessem tomado corpo muito antes da década de 90, o termo é cunhado pela advogada
e estudiosa Kimberlé Crenshaw apenas em 1991, em seu célebre artigo “Mapping the
Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color”. Ao
tratar especificamente da violência contra mulheres afro-americanas, admite que

[...] considero como as experiências das mulheres negras são frequentemente


o produto de padrões de racismo e sexismo que se cruzam, e como essas
experiências tendem a não ser representadas nos discursos do feminismo ou
do antirracismo. Devido à identidade intersecional que pesa sobre elas, por
serem mulheres e negras dentro de discursos moldados para responder a apenas
uma dessas identidades, essas mulheres são marginalizadas dentro de ambos os
discursos (CRENSHAW, 1995, p. 358 – tradução nossa).

Crenshaw evidencia, por meio da interseccionalidade, o modo como os indivíduos


são afetados mais intensamente na medida em que fenômenos de subalternização ocorrem
de forma conjunta, como no exemplo da mulher negra (gênero + raça/etnia). A seriedade
da questão se intensifica na medida em que analisamos a interseccionalidade no contexto
da mulher negra trans, a qual se vê perpassada por ainda mais linhas de interseccionalidade
(gênero + raça/etnia + identidade de gênero).
Além do aspecto da interseccionalidade, a concepção de rede se vê sustentada
também em uma definição de gênero mais plural. Butler (2015) revela essa noção de gênero
desconstruindo pensamentos tradicionais relacionados a sexo e gênero, isto é, revisando
categorias sexuais de identidade de gênero. A dualidade é rompida logo ao tratar das
diferenças de sexo, de acordo com Butler (2015), não vendo motivos “[...] para supor que os
gêneros também devam permanecer em número de dois. A hipótese de um sistema binário
dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na
qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (p. 26).
É inclusive interessante refletir, no contexto brasileiro, sobre a aversão à discussão de
gênero, ou, como algum@s preferem chamar, “ideologia de gênero”. Grupos minoritários
nacionais, apoiados e financiados por líderes/instituições religiosos, distorcem o papel
ideológico e crítico do feminismo, desconsiderando uma discussão analítica acerca dos
5
A esse respeito, consultar: https://draglicious.com.br/2018/06/23/carta-publica-de-tyra-sanchez-para-rupaul-
expondo-a-indiferenca-de-ru-e-o-racismo-em-drag-race-e-do-fandom/.
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problemas sociais. O posicionamento de contrariedade e recusa do debate pela bancada
político-religiosa no cenário atual expõe não somente um atraso em relação aos outros
países, mas também a possibilidade de um retardamento na informação e constituição da
sociedade brasileira, repleta de práticas opressoras (machismo, racismo, LGBTQI+fobia,
entre outr@s).
É possível notar como o pensamento da LGBTQI+fobia está intrincado nas relações
sociais, por meio de um excerto do poema “Kaleidoscope”, de Don Charles, presente na seção
“Rings on Gloved Fingers”, que compõe a coletânea Here to Dare: 10 Gay Black Poets, editada
por Assotto Saint:

Figura do desapontamento. Cor da rejeição.


Aos olhos do meu pai,
Sou o filho do qual ele não se orgulha.
Um santinho, educado demais para dizer palavrões.
Um garotinho agarrado à barra da saia da mãe.
Um impostor que se parece com um homem, mas não é.
Gire o caleidoscópio,
e a imagem muda.

II

Figura do nojo. Cor da repulsa.


Aos olhos da minha mãe,
Sou o filho do qual ela sente vergonha.
Um estranho que compra revistas gays.
Um pervertido que copula com seu próprio gênero.
Um risco para a saúde do qual ela receia contrair AIDS.
Gire o caleidoscópio,
E a imagem muda.
(CHARLES, 1992, p. 140 – tradução nossa).6

Nesse excerto do poema, a revelação do ponto de vista de Don Charles tem especial
significação à luz das discriminações enfrentadas por indivíduos cuja identidade de gênero é
dissidente. Vemos a forte presença da marginalização e da homofobia dentro do seio familiar.
Desse modo, o olhar dos pais é introjetado de preconceitos sociais, frutos de um discurso
moral sustentando em preceitos heteronormativos, como explicitado em “I’m the son he’s not
proud of” (Sou o filho do qual ele não se orgulha.) ou então “I’m the son she’s ashamed of” (Sou
o filho do qual ela sente vergonha.).

6
I / Shape of disappointment. Color of rejection. / In my father’s eyes, / I’m the son he’s not proud of. / A goody-two-shoes,
too nice to say curse words. / A mama’s boy, tied up tight in apron strings. / An impostor who looks like a man, but isn’t.
/ Turn the kaleidoscope, / and the image changes. // II / Shape of disgust. Color of revulsion. / In my mother’s eyes, / I’m
the son she’s ashamed of. / A stranger who buys gay magazines. / A pervert who couples with his own gender. / A health
risk she’s afraid of getting AIDS from. / Turn the kaleidoscope, / And the image changes.
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Notamos como os padrões heteronormativos determinam drasticamente a construção
das masculinidades e das feminilidades. Assim, “A goody-two-shoes, too nice to say curse words”
(Um santinho, educado demais para dizer palavrões) ou “A mama’s boy, tied up tight in apron
strings” (Um garotinho agarrado à barra da saia da mãe) têm a masculinidade comprometida
em razão das construções sociais que controlam e pesam sobre esses corpos e comportamentos.
Percebe-se, ademais, uma necessidade de combater preconceitos arraigados no
imaginário social. Grupos socialmente discriminados e marginalizados podem encontrar
na proposta de redes de solidariedade um refúgio, onde há a recepção e o acolhimento de
tod@s, algum@s inclusive temendo pela própria vida.
Dessa forma, as redes sustentam a percepção de que conceitos de feminilidades e
masculinidades não podem mais permanecer presos a dualidades, ainda mais levando em
consideração outras hierarquias de poder e outros contextos históricos e culturais presentes nas
sociedades: tudo se faz como uma questão de escolha e de reivindicação de posições. Embora
ainda existam o preconceito, a LGBTQI+fobia e a heteronormatividade sexista, a abertura
da conceituação de sexo e de gênero permite que relações desconsideradas anteriormente
aconteçam, desconstruindo a heterossexualidade compulsória. Como discute Butler:

A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva


em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a
“especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada,
analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros
eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam
equívoca a noção singular de identidade (BUTLER, 2015, p. 22).

Assim, há um movimento de desconstrução do binômio sexo/gênero e,


consequentemente, da biologia/cultura em prol desses conceitos de sexo e de gênero.
Conforme afirma Wittig:

[...] o feminismo no século passado nunca poderia resolver contradições sobre o


tema da natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres, em rede, começaram
a combater as contradições para benefício próprio e é seguro que compartilhavam
características comuns, como resultado de opressão (WITTIG, 1993, p. 105-106
– tradução nossa).

A união sustentada na proposta de rede de solidariedade se afasta de noções duais e


separatistas, de modo que a mulher se fortalece por meio de um agrupamento mais amplo.
Diferentemente do conceito de irmandade trazido no feminismo, percebe-se, nos
últimos anos, um avanço de ideias mais amplas e ideologicamente políticas de união, não
excludentes de outros grupos. Como já dito, uma das variadas demonstrações de relevância
do movimento feminista é o auxílio na sedimentação das bases para a consumação das redes
de solidariedade, construídas, no mínimo, sobre o gênero, a raça/etnia e a classe.
Os efeitos dessas redes, na contemporaneidade, são as produções literárias escritas em
conjunto, as quais estabelecem um projeto artístico de resistência e reivindicação do direito
à fala. Para citar um exemplo, é publicado em 2017, pela Invisíveis Produções, a Antologia
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Trans. Lançada durante o TRANSarau, realizado no mês de março de 2017, na cidade de
São Paulo, a obra contempla trinta poetas e poetisas travestis, transexuais e não-binári@s,
apresentando quarenta e quatro textos, produzidos durante as oficinas de poesia do Cursinho
Popular Transformação. Além disso, conta-se com outr@s 17 artistas convidad@s.
Com textos de Amara Moira, Linn da Quebrada, Luan Bressanini, Teodoro
Albuquerque, Dodi Leal e muit@s outr@s, a antologia versa sobre a possibilidade de
transformação das experiências de corpos atravessando as normas de gênero em matéria
poética. Nesse sentido, a construção desses textos, escritos de “mãos dadas”, revigora a
proposta de buscar um meio de existir pela linguagem, tomando a escrita como liberdade,
como produção de um espaço habitável.
Essas publicações se revelam enquanto ações efetivas de como sair dos binarismos e se
abrir para um sentido de união mais amplo, envolvendo considerar as interseccionalidades
entre as hierarquias, indissociadas umas das outras. É importante lembrar que, assim como
há um forte movimento feminista a partir da década de 1960, coexistiu um movimento de
igual proporção reivindicando os direitos sociais dos negros, dos grupos LGBTQI+ – sem
mencionar os indígenas, os asiáticos, entre outros –, além do fim da discriminação sexual e
étnico-racial. A inovação presente nas redes é justamente ter como princípio norteador o
lema “Ninguém solta a mão de ninguém”:

FIGURA 1 – Desenho representativo das Redes de Solidariedade.


Fonte: Thereza Nardelli – Arquivo pessoal (2018).

A ilustração/frase viralizou nas redes sociais brasileiras após as eleições de 2018,


momento em que surgem grandes incertezas sobre o futuro em termos de direitos dos grupos
minoritários (mulheres, LGBTQI+s, índios, negros). A partir da manifestação contundente e
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217
assunção do poder por indivíduos de extrema-direita, há também o início de um movimento
de rede de solidariedade nacional, no qual se propõe a união das minorias, a fim de almejar a
garantia do respeito, da dignidade, dos direitos sociais e, em alguns casos, da existência. Esse
movimento social respinga em outras áreas e floresce na literatura contemporânea.
Dessa maneira, para haver o enfrentamento das crescentes forças hegemônicas, pode-
se buscar construir um movimento mais amplo, fundamentado na união de indivíduos.
Retornando ao pensamento de Williams e Chau, as pesquisadoras compreendem que

A transformação social não pode ser construída por um grupo de pessoas que foram
agrupadas por acidente de nascimento e pela coincidência da marginalização.
Precisamos nos unir pelo propósito. Precisamos parar de procurar irmãs e
começar a procurar colaboradoras. Essas seriam pessoas que compartilham de
nossa visão política e estão dispostas a participarem em ações políticas coletivas.
Privilegiar o comprometimento político ao invés da equivalência identitária
abre novas possibilidades. Podemos ter colaboradoras em lugares que eram
anteriormente considerados fora dos limites por dicotomias que reforçavam
o status de membro/estrangeiro e hierarquias empoderadas/ desempoderadas
(WILLIAMS; CHAU, 2007, p. 293 – tradução nossa)7.

As ações políticas de um determinado grupo subalterno podem estar em conjunto com as


de outros, tendo em vista a indissociabilidade das heterarquias. Assim, como revela Grosfoguel,

[...] a acumulação incessante de capital esteve sempre enredada com ideologias


racistas, homofóbicas e sexistas. A expansão colonial foi conduzida por homens
europeus heterossexuais. Aonde quer que chegassem, traziam consigo os seus
preconceitos culturais e formavam estruturas heterárquicas de desigualdade
sexual, de gênero, de classe e raciais (GROSFOGUEL, 2008, p. 134).

Ao atentar-nos, então, ao contexto americano e nacional, as influências do colonizador


e as estruturas coloniais ainda estão presentes, seja por meio do racismo, do machismo, da
LGBTQI+fobia. Logo, pensar a questão de gênero e raça desvinculada de outras reivindicações
subalternas significa considerar os eixos hierárquicos divididos e setorizados, significa cair
em essencialismos. Portanto, na contemporaneidade, redes de solidariedade se fazem ímpar
para evitar dualismos e fortalecer grupos subalternizados.

SILISTINO DE SOUZA, D.; NIGRO, C. M. C.; DE MORAIS, F. L.; BENFATTI, F. A. R.;


PASSOS, L.; SOARES, L. H. Networks of Solidarity and Intersectionalities in Literature and
Gender. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 209-220, 2020. ISSN 2177–3807.

7
No original: “Social change cannot be engineered by a group of people who have been thrown together by
accidents of birth and the coincidence of marginalization. We must be united by purpose. We need to stop
looking for sisters and start looking for collaborators. These would be people who share our political vision and
are willing to participate in collective political action. Privileging political commitment over identity equivalence
opens up new possibilities. We could have collaborators in places that were previously placed off-limits by
dichotomies that reinforced insider/outsider status and empowered/disempowered hierarchies”.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Recebido em: 27 mar. 2020


Aceito em: 25 abr. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
220
Masculinidades fin de siècle: a patologia do
homem e da nação em O barão de Lavos,
de Abel Botelho

EDSON SALVIANO NERY PEREIRA*


M Á R I O C É S A R L U G A R I N H O **

RESUMO: revisão da crítica e da recepção do romance naturalista português O barão de Lavos, de


Abel Botelho, observando sua repercussão em Portugal e no Brasil, no fim do século XIX, tendo
em vista a regeneração da identidade nacional e das masculinidades.

PALAVRAS-CHAVE: Abel Botelho; Crítica; Fim de século; Masculinidades; Recepção; Romance


naturalista.

ABSTRACT: This work consists in a review of criticism and reception of the Portuguese naturalist
novel O barão de Lavos, by Abel Botelho. In order to do this, we observe the repercussion in Portugal
and Brazil at the end of the 19th century, with a view to national identity and masculinities
regeneration.

KEYWORDS: Abel Botelho; Criticism; Fin de siècle; Masculinities; Reception; Naturalist Novel.

* Doutorando no Programa de Pós-Graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa –


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – Universidade de São Paulo – USP - 05508-080
– São Paulo – SP – Brasil. Bolsista Capes. E–mail: salvinery@usp.br
** Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) – Umiversidade de São Paulo – USP - 05508-080 – São Paulo – SP – Brasil. Bolsista Pq/CNPq. E–mail:
mlugarinho@gmail.com
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221
El esteriótipo masculino se veía reforzado, sin
embargo, por la existencia de un estereotipo negativo
de hombres que no solo no estaban a la altura del
ideal, sino que eran en cuerpo y alma su contrário y
eran el fiel reflejo de todo lo opuesto a la verdadeira
masculinidad. Grupos marginados por la sociedad
como judíos o negros cumplían este papel, y sin duda el
racismo se basaba en los esteriotipos y en su formación.
Aquellos de quienes se decía que no encajaban en la
sociedad establecida y respetable eran transformados en
la antítesis de los ideales que la sociedade más apreciaba
y que la masculinidad tan bien representaba

George Mosse – La imagen del hombre

A “novidade litteraria”: primeiras percepções acerca d´O Barão de Lavos

Publicado em junho 1891, o primeiro romance do escritor português Abel Botelho,


O Barão de Lavos é anunciado com simpatia e entusiasmo pela crítica jornalística. Encontra-
se, por exemplo, na seção “Echos da Havaneza”, do Correio da manhã, de Lisboa, em 19 de
junho de 1891, a seguinte nota: “Outra novidade litteraria: o Barão de Lavos, romance que
appareceu á venda hontem nas livrarias. E seu autor, o sr. Abel Botelho” (CORREIO DA
MANHÃ, 1891a). Também, no Brasil, a mesma obra de Abel Botelho foi anunciada de modo
bastante elogioso, como se vê na nota “Novo livro”, em O Tempo, do Rio de Janeiro, em 15
de julho de 1891, O Barão de Lavos “é um trabalho importante e original” (O TEMPO, 1891a).
O entusiasmo é visível não apenas nestas notas elogiosas, mas na atenção que é dada ao
livro pelo Correio da Manhã em seus primeiros dois meses. Para além das propagandas feitas
pela Livraria Gomes, principal revendedor da obra, há também outra nota, na mesma seção
“Echos de Havaneza” que deu conta da imensa procura do romance nas livrarias (CORREIO
DA MANHÃ, 1891b). No mesmo jornal, em seu “Supplemento Litterario”, foi publicado,
em 29 de junho de 1981, um longo excerto da obra (CORREIO DA MANHÃ, 1891c). Antes
disso, porém, já em 16 de maio de 1891, a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, publicara um
pequeno fragmento de O Barão de Lavos, que chegaria às estantes das livrarias e ao noticiário
impresso português apenas no mês seguinte.
É muito provável que a simpatia e o entusiasmo desses primeiros anúncios de O
Barão de Lavos tenha se dado pela fama de Botelho. Autor de diversas peças teatrais, dentre
elas, Jucunda (1895), Vencidos na Vida (1892) e A imaculável (1897), Abel Botelho era figura
frequente nas seções do Correio da Manhã. Não apenas a sua capacidade literária era alvo de
notas, eram frequentes também, nas pautas do jornal, os relatos sobre as suas atividades em
prol do teatro e da classe artística portuguesa, suas atividades políticas ligadas à Liga Liberal,
da qual fez parte do conselho diretor, e notícias sobre o desenvolvimento de suas funções
como diplomata (desde 1911, desempenhava a função de embaixador português na capital
argentina); nem mesmo o imbróglio sobre o translado de seu corpo de Buenos Aires, onde
faleceu em 1917, foi deixado de lado pelo jornal.
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Reconhecido em Portugal, Abel Botelho e sua obra tiveram repercussão no Brasil. O
Barão de Lavos circulou entre nós na última década do século XIX. Além da publicação daquele
fragmento, há também registros de propaganda da Livraria Amaral, na Pacotilha, do Maranhão,
entre os dias 31 de junho e 10 de agosto de 1891. Outra nota, no informativo “O pão da Padaria
Espiritual”, de Fortaleza, com a indicação do ano de 1892, agradece a Abel Botelho pelo envio
de Lyra Insubmissa (poesia), Germano (drama em versos) e O Barão de Lavos”, apontado como “o
notável romance que tão grande sucesso obteve no mundo das letras” (O PÃO DA PADARIA
ESPIRITUAL, 1892). Deve se assinalar, ainda, que, em 1898, anúncios de venda do romance
eram publicados no Rio de Janeiro, pela Livraria A. Lavignasse, em A estação: Jornal ilustrado
para a família (1898), e pela Livraria Laemmert, em A notícia (1898).
Possivelmente, esses devam ter sido os primeiros registros da publicação do romance,
a “novidade litteraria”, tendo vindo a ser uma das pedras fundadoras de uma inédita série
literária, que, em língua portuguesa, tematizou explicitamente a experiência homossexual
masculina e cuja elaboração teve continuidade no Brasil daquele mesmo fim do século
(ALCOFORADO, 1988; LUGARINHO, 2001; MENDES, 2003). Apesar da boa recepção,
o romance apenas logrou uma edição brasileira mais de um século depois de sua primeira
edição portuguesa. Talvez esse longo tempo de espera se deva à tensa relação mantida entre
os mercados editoriais português e brasileiro, durante a segunda metade do século XIX,
na contramão da receptividade positiva do público brasileiro da Literatura Portuguesa
(MAGALHÃES JUNIOR, 1957)1.

Um registro de seu tempo: O Barão de Lavos e a crítica

O Barão de Lavos, primeiro romance publicado pelo português Abel Botelho, é também a
primeira obra de uma pentalogia de sua autoria, a que foi atribuído o título de “Patologia Social”.
A coleção, composta por outros quatro romances – O Livro de Alda (1898); Fatal Dilema (1907);
Amanhã (1901); Próspero Fortuna (1910), além do já referido Barão de Lavos – foi elaborada a
partir da observação e estudo da sociedade portuguesa, sobretudo, da burguesia lisboeta.
O Barão de Lavos examina a vida de Sebastião Pires de Castro e Noronha, o barão.
Sebastião é um homem já desgastado, apesar de contar apenas com 32 anos, “dir-se-ia ao
vê-lo que orçava já pelos quarenta”, sobretudo porque o narrador reflete, no aspecto físico
do personagem, suas qualidades morais. Herdeiro de expressiva fortuna, o barão é casado
com Elvira, com quem mantém uma relação de aparências. Ativo na sociedade lisboeta, seja
pelo título que representa, seja por seu trabalho no jornal, ou mesmo pelo círculo social que
frequenta, o barão representa a sociedade portuguesa, de forte pendor aristocrático, apesar
dos hábitos burgueses que se consolidavam.

1
Magalhães Junior chamou a atenção pelas disputas entre editores brasileiros e portugueses, naquela altura,
potencializada por edições de supostas continuações de romances europeus, notadamente portugueses, bem
como pelo não pagamento de direitos autorais às casas editoriais portuguesas pelas editoras brasileiras ao
publicarem obras de autores portugueses. Várias dessas disputas chegavam às barras dos tribunais e provocaram
um afastamento dos autores portugueses de seus potenciais leitores brasileiros.
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A narrativa se desenvolve entre dois polos ocupados pelos papéis sociais desempenhados
pelo protagonista. Por um lado, o homem público, que atende às demandas do círculo
social do qual participa, por outro, o homem privado, com ímpetos sexuais socialmente
impróprios e considerados pervertidos. Tensionado entre ambos os polos, o barão declina
social, econômica e moralmente.
Os desejos de Sebastião são, num primeiro momento, escamoteados pela admiração
que mantém por corpos perfeitos, mas, depois de serem revelados, passam a controlá-lo,
especialmente, após conhecer Eugênio, um efebo pobre, recém-chegado a Lisboa (BOTELHO,
1982, p.95-97). Instalado em uma casa, na Rua da Rosa, e patrocinado financeiramente pelo
barão, Eugênio percebe que tem poder sobre seu amante e, com isso, passa a extorqui-lo.
Enlouquecido pela paixão que o consome, o barão cede aos caprichos do amante e afasta-se
de seu casamento com Elvira e dos círculos sociais a que pertencia, prejudicando, inclusive,
a sua atividade jornalística.
As duas facetas do barão de Lavos se encontram quando o personagem é desafiado
por um rapaz interessado em Elvira. Tendo que defender a sua honra, Sebastião participa
do duelo e acaba ferido. O que, no entanto, poderia ser o fim do barão, dá início a uma nova
fase para Eugênio, que é admitido formalmente na casa de Sebastião e passa a se relacionar
amorosa e sexualmente com a baronesa. Consciente de sua influência sobre o casal, o efebo,
cada vez mais ardiloso, obtém vantagens tanto de Sebastião, quanto de Elvira. Apesar das
diversas advertências de seus amigos, Sebastião demora a perceber que, assim como sua
própria esposa, é ele enganado e usado por Eugênio. Descoberta a relação do efebo com a
baronesa, o barão entra em incontornável declínio.
Pobre, sem a esposa, mal afamado pela cidade, termina seus dias dependendo dos
poucos amigos que restaram. Não há mais virtude moral em Sebastião – é ele todo movido
pelo seu desejo descontrolado pelos corpos jovens e masculinos.
Registre-se, seguindo o desenvolvimento narrativo, que, concomitante ao declínio
social e moral do barão, também a aparência física do barão se deteriorará. Apesar de não ser
um indício novo no romance, o narrador introduzira Sebastião como um tipo fisicamente
mal constituído, nos momentos finais da narrativa, ao mesmo tempo em que a moral se
esfacela, seu corpo mais se deforma pela sífilis:

Encarquilhado e adusto, como um figo passado, apequenara-se e sumira-se. Tão


reduzido e tão vergado, que na rua a bengala a que se arrimava parecia, a par dele,
enorme, e a sua croça puída salvava-lhe muito acima da cabeça. E era como a
galopante desintegração material das suas células corria parelhas com a absoluta
solidão moral da sua vida (BOTELHO, 2020, p. 326).

Assim, o barão chega ao seu epílogo não apenas empobrecido e miserável, mas alguém
de quem apenas restou o corpo quebrado e o rosto imerso na lama (BOTELHO, 2020, p. 333).
Comum às características da estética literária do Realismo-Naturalismo com que Abel
Botelho se alinha, n’O barão de Lavos o epílogo é movido por suas tentativas de regeneração e,
consequentemente, pela tentativa moralizante da narrativa. Apesar dos sucessivos esforços,

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que incluem até mesmo uma paixão por Emazita, a jovem virgem que, acreditava Sebastião,
poderia salvá-lo dos sintomas de sua doença física, o barão não obtém sucesso. Seu fim é
a lama, o que confirma o rótulo que ele mesmo se atribui: “alma latrinária”. Em resumo, o
romance, sobretudo, examina a homossexualidade de Sebastião e, por conseguinte, a sua
falência frente a um projeto de masculinidade típico de seu tempo (MOSSE, 2000).
Não tardou para que o romance fosse atacado por críticos, ao mesmo tempo em que
era referência para as crônicas policiais de então ao tratarem de crimes passionais cometidos
por homossexuais2.
Das críticas que se preocuparam exclusivamente com o romance de Abel Botelho, duas
delas se destacam, curiosamente publicadas em jornais brasileiros. A primeira que se tem notícia
está na “Chronica litteraria”, assinada por Teophilo Braga, no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro,
do dia 24 de julho de 1891, bem próxima à publicação do romance. Para Braga, o romance de
Botelho será notícia, não mais como “novidade”, mas como “aberração literária”, sobretudo
pelos temas e representações lisboetas que apresenta. Theophilo Braga assumiu em sua leitura
uma ótica realista e mimética da obra e, por este motivo, não a via com bons olhos. Localizando
a obra de Botelho no rol de produções artísticas entendidas por ele como representantes do
“singular phenomeno do conflicto de absurdos, que a sociedade contemporanea soffre, e a que
a imprensa jornalistica chamou – fin de sciècle”, Braga apontava que

O Barão de Lavos é uma aberração litteraria, que caracteriza o estado das


concepções estheticas de uma sociedade sem concepções claras; e é preciso uma
grande coragem para tratar um assumpto tão antipathico, que acarreta sobre
as predilecções do autor uma parte da responsabilidade e da imputação em que
incorrem os seus heroes.
Não se pôde dizer que o livro esteja mal escripto, nem mal architectado. O que
se depreende pelo modo que se desenvolve a acção, e pela fôrma como actuão os
personagens, é que o romance, embora realista na these, é inventado, é producto
da imaginação, filho de uma representação subjectiva sustentada por um esforço
cerebral. Por outras palavras: em vez de ser uma novella com quadros idylicos
de fantasia, fôrma já condenada pela crítica, é uma novella com situações cruas e
obscenas, que não encantam.
A Pathologia social resumida a uma serie de monstruosidades moraes, a conflitos
de paixões bestiais, é um esforço malbaratado sem effeito de edificação. Pôr em
relevo as causas que produzem a doença das sociedades, e subsequentemente
a deformação dos indivíduos, só o pôde fazer um artista quando dotado de
uma forte organisação philosophica. N’uma tal alliança é a condição para se
reorganizar a arte moderna.
No romance O Barão de Lavos o autor revela um abundante vocabulario, uma
riqueza de linguagem, que se presta às descripções pitorescas; abusa, porém,
dessa qualidade exagerando as descripções com quadros que pela sua demora são
desvios que enfraquecem a acção (BRAGA, 1891).

2
Publicada no jornal Correio da Manhã, de Lisboa, no dia 07 de dezembro de 1894, encontram-se as informações
sobre o aparecimento do cadáver de Louis Wall, um jovem seminarista inglês. De acordo com o relato
jornalístico, o jovem deveria se encontrar com Wilfred Cabalan, que informara a polícia sobre a existência do
cadáver. A notícia assume um tom jocoso, ao destacar que os jovens eram amigos inseparáveis e que autopsia
poderia confirmar “o que se dizia hontem e que daria uma scena do Barão de Lavos, romance de um escriptor moderno”
(CORREIO DA MANHA, 1894d– grifos nossos).
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225
Optamos por apresentar este longo excerto de Braga para demonstrar que o crítico
procura, a qualquer preço, se posicionar de maneira isenta em relação ao romance de Botelho.
Isso se demonstra, por exemplo, na preocupação louvar o estilo “vibrante, luminoso e poetico”
da escrita, do mesmo modo a arquitetura do romance. No entanto, quando se volta para os
temas abordados em O barão de Lavos, e, sobretudo, no modo como Abel Botelho desenvolve
suas ideias, Theophilo Braga demonstra seu incomodo, que, visivelmente, é o motivo pelo
qual considera o romance como uma aberração. Apesar dessas tentativas de mascaramento,
a conclusão da crônica literária evidencia a principal preocupação de seu autor

Na sociedade portuguesa existem typos de fidalgos que parecem ter contribuido


para as figuras do romance; porém pela marcha vaga em que o romance se
esfuma, e apezar de todos os contornos de seu realismo crú, o Barão de Lavos é
um romance inventado, mas não vivido (BRAGA, 1891).

Entendemos que, ao ler o romance por meio de uma visão contemporânea a seu tempo,
Braga encontra, à revelia do que diz, referentes concretos do que descreve Botelho ao longo
de O Barão de Lavos. De certo modo, ao caracterizar o romance como “inventado”, “produto
da imaginação”, dentre outros adjetivos, o próprio Theofilo Braga parece esquecer-se da
ficcionalidade, elemento primordial da criação literária. Parece-nos que o crítico, que viria a
ser presidente de Portugal entre maio e outubro de 1915, adota uma posição de defensor da
nação moralizada e sem vícios. No entanto, sem argumentos que pudessem sustentar seus
ataques ao romance e também a seu autor, resta-lhe criticar o caráter ficcional da obra frente
à escola realista.
É, em contrapartida, exatamente neste ponto da ficcionalidade da obra que se ancora
a segunda crítica de O Barão de Lavos, publicada no jornal carioca O Tempo, em 1º de março
de 1892. De autoria desconhecida, estando assinada pelo codinome IGNOTUS, o texto
intitulado “Um escriptor novo” é não apenas uma resposta às críticas recebidas pela obra
e seu autor como também uma confessa defesa desses dois. Contra o rótulo de imoralidade
imposto pela crítica ao romance, Ignotus rebate

Lendo-se as criticas que esmagavam o romance do Sr. Abel Botelho, vinha


insensivelmente à memória a recordação das críticas que acolheram os primeiros
volumes dos Roygon-Macquart. É sempre a repetição enfadonha da mesma cousa,
como um piano que toca eternamente a mesma valsa. O critico se indigna contra
a immoralidade do livro, seu [ilegível] foi brutalmente ferido pelas audacias do
escriptor e, guarda vigilante da moralidade publica, elle solta o grito de alerta
contra este libertino perigoso, que incendeia os mais frios e deprava os mais
puros. Pais de familia, maridos zelosos, acautelai-vos, evitai que o livro maldito
entre no vosso lar, profanando a casta pureza das vossas filhas e das vossas
mulheres.
Eu confesso francamente que para mim uma obra de arte so é immoral quando
falta talento ao artista, quando elle não pôde traduzir o ideal que imaginara,
quando a producção lhe sabe do cérebro deffeituosa, pecca, falhada e murcha
(IGNOTUS, 1892)

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O texto segue num exercício que desmistifica o olhar do espectador, do leitor, no caso,
da obra artística. Ignotus parte da prática cirúrgica, passando pela contemplação das musas
em telas de museus, para demonstrar que o vício que determinada obra revela está em seu
leitor. Segundo Ignotus, é a posição que o leitor assume diante de uma leitura que faz com
que essa seja moral ou imoral. O texto não é apenas elogioso ao livro. Seu autor localiza e
aponta dois pontos que enfraquecem a narrativa, os quais não abordaremos aqui. Interessa-
nos, no entanto, que Ignotus levanta-se como uma voz defensora não apenas do romance e
de Botelho, mas também da necessidade de se trazer à tona temas cotidianos e que, segundo
a posição que assume o autor da crítica, “não podia semelhante assumpto ser exposto em
luvas de pelica, comprehende-se que por sua propria natureza teria de usar de escabrosidades
e asperezas que offendem ouvidos de uma susceptibilidade casta, almas de pudor virginal”
(IGNOTUS, 1892)3.

O barão de lavos e os estudos de gênero: caminhos da crítica literária contemporânea

Apesar de sua “novidade”, pouca atenção se deu ao seu autor e à sua obra, especialmente
ao Barão de Lavos. Por quase um século, sua fortuna crítica permaneceu rarefeita, especialmente
em Portugal, apesar de, no Brasil, ter encontrado críticos que sobre ele se debruçaram,
especialmente Massaud Moisés (1958) e Maria Leticia Guedes Alcoforado (1988). Moisés se
dedicou ao estudo do naturalismo botelhiano ao longo dos cinco romances que compõem a
pentalogia, ao passo que Alcoforado chegou a Botelho por seu contato com o autor brasileiro
Adolfo Caminha (1867-1897), cuja obra Bom-Crioulo (1896) aproxima-se flagrantemente da
temática da obra de Botelho. Para ambos, Moisés e Alcoforado, o interesse de crítica por
Botelho recaía na sua absorção das teses naturalistas e na constituição de uma obra modelar
submetida àquela estética francesa, como se verá posteriormente, na publicação, do sexto
volume, organizado pela brasileira Maria Aparecida Ribeiro, da História Crítica da Literatura
Portuguesa (1993), onde a mestria naturalista de Abel Botelho também é destacada.
É na década de 1990, entretanto, após o romance completar o seu centenário, sem
comemorações, que a crítica voltará a sua atenção mais fortemente para ele. Os estudos de
gênero que se consolidavam nas universidades (e todos os seus desdobramentos, como os
estudos gays e lésbicos e o estudos queer) encontraram na obra de Botelho terreno fértil para o
seu desenvolvimento, ainda que tímido. Botelho encontrava-se num limbo de esquecimento,
sua obra localizava-se cronologicamente entre Eça de Queirós e Fernando Pessoa, entre a
Geração de 1870 e a Geração de Orpheu. Eclipsado, de maneira que seu naturalismo evidente
pouco ganhava relevo para uma crítica iluminada pela interpretação de Portugal, como

3
Vale a pena apontar aqui, a título de nota informativa, para além das duas críticas anunciadas, a crítica de
Francisco Pacheco sobre o livro Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha. Publicada pela Folha do Norte, jornal do Pará,
em 03 de fevereiro de 1896. A crítica pode ser considerada como uma das primeiras aproximações entre os
autores brasileiro e português. Registramos que essa aproximação entre os romances Bom-Crioulo e O barão de
Lavos apenas voltou a ser realizada por Maria Leticia Guedes do Alcoforado (1988).
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227
propusera Eduardo Lourenço em seu O labirinto da saudade (1978), e que pouco dava atenção
aos temas e obras que não se conformassem aos grandes movimentos da História. Talvez,
no Brasil, o centenário de Bom-Crioulo (1896-1996) pudesse ter despertado a atenção para
Botelho, mas a investigação de Alcoforado (1988) não recebeu a atenção devida naquela
altura. Foram José Carlos Barcellos e Mário Lugarinho que, em 1998, despertaram O Barão
de Lavos, de seu esquecimento. Primeiramente, Lugarinho, em comunicação ao VI Congresso
da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Florianópolis/SC, 1998), reivindicou O
Barão de Lavos para os estudos gays e lésbicos de então. Na comunicação, apenas publicada
em 2001, Lugarinho observou que a obra, apesar de esquecida pela crítica, fazia parte da
memória oral da nascente comunidade gay portuguesa, tendo sido mantida, por gerações,
como leitura necessária e iniciática aos membros daquela comunidade. Barcellos, por sua
vez, em artigo, voltou a sua atenção à obra de Botelho, dentre outras, explorando-lhe as
várias possibilidades ético-morais, ao lado da verificação de um discurso que dava contornos
a uma identidade específica e inédita, pelo menos em Língua Portuguesa, até então. Barcellos
(1998) e Lugarinho (2001) observaram que a “novidade” de Botelho e seu Barão estava bem
além do naturalismo avant la lettre, mas na precisão com que delineou uma identidade
emergente, apesar de claudicante, que viria a fertilizar uma extensa série literária que pode
ser observada até a contemporaneidade4.
Consecutivamente, Robert Howes (2002) dará contas das “fontes” de Botelho ao
investigar as relações mantidas pela narrativa com eventos sociais e políticos portugueses
das décadas anteriores. De igual maneira, a experiência homossexual do barão também é
examinada em suas “fontes” na medida em que Howes se ampara no estado da psiquiatria
e da medicina legal no tempo de Botelho, tanto em Portugal, quanto na Europa. Destaca,
ainda, a conformação identitária do personagem-título cujo pendor estético parece apontar
para a permanência, ainda no fim do século, das teorias de Winckelmann5. Na mesma altura,
Leonardo Mendes (2003), dando continuidade à aproximação ao Bom-crioulo, inaugurada por
Alcoforado (1988) e Barcellos (1998), observou, concomitantemente a Howes, a excessiva
submissão do barão aos princípios que regiam a medicina de então, conformando-o numa
patologia identitária. A partir daí a obra de Botelho foi ganhando leitores e leituras diversas,
seja como referência histórica ou da história literária, seja como referência discursiva, na
medida em que conforma aspectos identitários e subjetivos relevantes para o século XX.

4
Pode-se requerer para essa série não apenas a produção do fim de século ou da belle époque. Ela se estende às
produções modernistas, como ser verá em António Botto, ou, mesmo, Álvaro de Campos/Fernando Pessoa,
chegando a alcançar a poesia de Al Berto e além. No Brasil, pode-se requerer para a série desde o já citado
Adolfo Caminha, passando por Nelson Rodrigues, Lucio Cardoso, Cassandra Rios, João Silvério Trevisan, Caio
Fernando Abreu, Silviano Santiago ou, mais recentemente, Victor Heringer (v. SANTOS, 1998; BARCELLOS,
1998; LUGARINHO, 2002, 2003; LOPES, 2002; INÁCIO, 2004; VALENTIM, 2016).
5
Johann Joachim Winckelmann (1717 – 1768) foi um historiador de arte e arqueólogo alemão. Sua teoria estética
aliava os ideais estéticos aos aspectos morais dos indivíduos, atualizando o princípio da estética de Platão de que
o Belo era a materialização Bem (CARRIER, 2001). Sua lição adentrou o século XIX e fertilizou, por exemplo, as
teorias do legista italiano Cesare Lombroso (1835-1909).
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Nação e masculinidade em O barão de Lavos

O romance de Abel Botelho, visto em contraposição a seus contemporâneos, é uma


“novidade litteraria” para além do fato de ser o primeiro de seu autor. É, primeiro, uma
novidade, conforme já apontado, ao trazer ao protagonismo narrativo um personagem
masculino homossexual ou, como no romance, um pederasta. Ao afirmar isso, não se quer
advogar em favor do romance, compreendendo-o como narrativa que antecede a revolução
sexual de quase um século mais tarde. Apesar de seu protagonista, o narrador de O Barão
de Lavos mantém uma dicção extremamente alinhada aos propósitos da escola naturalista,
moralizante, portanto.
É o foco narrativo e a voz do narrador onisciente que sustentam o viés moralizante,
confortando o leitor diante de cenas de excessos de paixão e desejo. A proposta da patologia
social de Botelho busca comprovar aquilo que o narrador entende como “desequilíbrios,
aberrações e anormalismos patológicos” (BOTELHO, 2020, p. 47) do protagonista,
metonímia da burguesia lisboeta. Para tanto, o narrador ao descrever a genealogia do barão,
constrói, ao mesmo tempo, a genealogia da nação, pautada por vícios e comportamentos
anômalos reprováveis frente a um necessário saneamento, físico e moral. A este recurso
voltaremos mais adiante.
Ainda nesta relação, a do protagonismo homossexual como novidade literária, vale
levantar outro aspecto em que o romance de Botelho se manifesta como novo. Ao trazer
a homossexualidade6 como tema, o escritor trilha um caminho diferente de certa tradição
de romances realistas e naturalistas em Portugal. Como se vê em estudos referentes a este
período (JESUS, 1997; MOISÉS, 2013), o divórcio foi tratado como um dos males principais
da burguesia portuguesa, e, por este motivo, tornou-se objeto central em romances
da segunda metade do século XIX. A maior parte da crítica literária a ele deu atenção
na medida em que verificava a proeminência da prática do adultério e da consequente
corrosão da instituição matrimonial. Não se pode esquecer que naquele século, os papéis
sociais desempenhados pelos indivíduos eram referentes às posições que ocupavam na
esfera familiar, sustentada fosse pelo casamento civil ou religioso, já que era a família
que ocupava o centro das atenções do Estado para a sociedade. A corrosão do casamento
provocada pelo adultério ou pela mutação de papéis reservados a homens e mulheres na
condução da vida familiar eram índice de ruína social contra qual o Estado deveria agir,
guardando a estabilidade social. A promulgação, em 1867, do Código Civil português
delimitou com exatidão esses papéis sociais e, por isso, a literatura parece ter voltado a sua
atenção às mulheres burguesas, incapacitadas de cumprirem os papéis a elas destinados,
já que, dedicadas a uma vida ociosa, cercada pelo conforto da modernidade, poderiam vir
a abrir mão do destino de esposas e mães, como se vê bem em O primo Basílio, de Eça de

6
É preciso anotar que a palavra “homossexualidade”, ao contrário de hoje, não era corrente na época de Botelho.
Em O Barão de Lavos, Botelho utiliza as denominações mais correntes ao seu tempo, como pederastia, sodomia
ou, como bem aponta Curopos (2018), a denominação de “inversão sexual”, seguindo a nomenclatura médica
daquele tempo.
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Queirós (1878), ou, antes, em A queda de um anjo (1866), de Camilo Castelo Branco7.
Em O Barão de Lavos, no entanto, apesar de o divórcio figurar em certo ponto da
narrativa, é consequência de um “mal maior”. Este mal, por sua vez, não se trata exatamente
da homossexualidade de Sebastião, mas do modo como o personagem lida com ela e,
sobretudo, como o personagem administra seus desejos sexuais. Ao escrutinar a vida de
Sebastião, o narrador já revelara também a sua vivência particular, composta de práticas
próprias, lugares e códigos pré-estabelecidos, próprios de uma comunidade que se reconhece
por suas práticas comuns. O narrador, apesar disso, parece voltar o seu olhar, ao contrário
dos pares de seu tempo, para o elemento masculino das relações matrimoniais. É Sebastião
como homem que parece interessá-lo, um homem ao negativo, um indivíduo incapacitado
de atender aos requisitos de masculinidade, projeto de seu tempo (CONNELL, 1987; Mosse,
2000). É aqui, portanto, neste caráter dialético de O Barão de Lavos, que reside mais uma de
suas novidades, talvez a mais importante.
Apesar deste segundo veio da narrativa vir a reboque do primeiro, tratar da
homossexualidade de Sebastião não parece ser a patologia a ser considerada na pentalogia
de Botelho. É a sua falência como homem que merece a atenção e que lhe dará o fim
melodramático das últimas páginas.
Não seria demais afirmar que O Barão de Lavos se constrói a partir da tensão entre a
vida privada, que engloba o desejo (homos)sexual de Sebastião, e a vida pública, dada pelo
projeto de masculinidade desenvolvido no século XIX e que teimava em não se constituir em
Portugal. Por este motivo, Sebastião é metonímico, ele é a parcela da sociedade, a aristocracia,
que resiste à emergência dos valores modernos e burgueses daquele século. Sebastião se perde
em um mundo onde valores e práticas estão se ressignificando pela emergência, notadamente,
da burguesia urbana. Esse embate entre classes, em que uma representa a tradição e outra
representa a modernidade, parece ainda se desdobrar numa busca clara de uma “essência”,
uma autenticidade adequada à cultura de um Ocidente que abandonava ranços de castas,
fidalguia e aristocracia. Um sujeito capaz de executar a transformação para dele emergir
efetivamente o “novo”, a “novidade”. Esse sujeito deveria refletir

a idéia de um “eu autêntico”, construído fundamentalmente em torno da


identidade de gênero (e, em muitos contextos, da identidade nacional), que passa
a ocupar o locus privilegiado de árbitro do que é verdadeiro, do que é real (e/
ou natural) e do que é moralmente legítimo, conforme nos lembra Jonathan
Dollimore (BARCELLOS, 2001, p. 132).

A identidade de gênero, aliada à identidade nacional, criavam efetivamente


uma subjetividade masculina autônoma e, portanto, capaz de executar o projeto da
modernidade. Há uma continuidade flagrante entre o projeto da modernidade e o projeto
de masculinidade vigentes naquele século. Não haveria modernidade sem o homem
7
Nessa altura, uma profusão de obras “científicas” ou “pedagógicas” tratavam de “educar” mulheres para a
vida social e familiar. Dentre obras dessa monta, destacou-se Lopes Praça, com a A mulher e a vida ou a mulher
considerada debaixo de seus próprios aspectos (1872), onde o autor, mesmo que defendendo a educação feminina e o
seu desenvolvimento intelectual, não deixava de observá-la “destinada” a ser mãe e esposa.
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moderno, não haveria homem moderno sem a masculinidade moderna. É nesse sentido
que George Mosse afirmou que:

O ideal de masculinidade foi invocado por todos os lados como símbolo de


regeneração pessoal e nacional, mas também como básico para a autodefinição
da sociedade moderna. Supunha-se que a masculinidade salvaguardava a ordem
existente contra os perigos da modernidade, mas também era considerada como
um atributo indispensável daqueles que queriam uma mudança8 (MOSSE, 2000,
p. 5 – tradução nossa).

Mais do que redefinir papéis sociais a serviço do Estado, a modernidade estabeleceu


um ideal de masculinidade necessário para a sua manutenção. A masculinidade requerida
pelos tempos modernos deveria suplantar os resquícios aristocráticos e se instituir num meio
social inédito porque urbano e burguês. Abriria mão de práticas seculares, e se constituiria
não apenas como um instrumento das razões de Estado, mas encarnaria a própria razão
do Estado, a sua face e o seu corpo. Havendo naquele século uma nítida apreensão de uma
coincidência entre corpo e moral, instaurando no corpo masculino os signos de força e
juventude, cantadas e decantadas pelo discurso clínico daquele século. Dessa maneira, saúde,
juventude, beleza e bem foram conjugados a fim de garantirem uma população renovada,
mesmo vivendo em acúmulo nas cidades daquele tempo (LUGARINHO, 2019). No caso
português, com meandros históricos a serem superados, a masculinidade requerida deveria,
ainda, redimir o passado falido, e colocar-se em vias de regenerar a nação e restaurar a glória
perdida, como se vê nas páginas finais de A ilustre casa de Ramires (1901), de Eça de Queirós.
O tema da masculinidade é assunto pautado, mesmo quando de maneira implícita,
no cotidiano português do final do século XIX. Rosemary da Silva Granja verificou que a
sociedade portuguesa também passava por um processo de ressignificação dos seus papéis
sociais, impulsionada pela modernidade que exigia da sociedade a docilização da figura do
guerreiro e a virilização do aristocrata, a fim de produzir um tipo de “homem urbano e,
portanto, burguês – em cujos ombros recaíra a responsabilidade de garantir a manutenção
da promessa de progresso da modernidade” (GRANJA, 2003, p. 5).
Há que se considerar, por sua vez, que o processo de desenvolvimento da modernidade
portuguesa esteve atrelado a uma ideia de regeneração que passava pelas esferas políticas,
sociais, econômicas e culturais do país. Tal propósito, encarado como “missão”, tornara-se
a preocupação principal dos intelectuais da Geração de 1870. Ao observar este cenário de
proposição de valores, normas e condutas, Granja, amparada no ensaio de Marshall Berman
(1987) sobre Fausto, de Goethe, percebe que se encontra no drama alemão a gestação e a
propagação do modelo de masculinidade moderna, o homem burguês. Para tanto, Granja
se apropria da figura do fomentador, proposta por Berman, como a metáfora do modelo de
masculinidade a ser alcançada. Esta figura, entendida como “o herói moderno e expressão

8
No original: “El ideal de masculinidad fue invocado por todos lados como símbolo de regeneración personal y
nacional, pero también como básico para la autodefinición de la sociedad moderna. Se suponía que la masculinidad
salvaguardaba el orden existente contra los peligros de la modernidad, pero también se consideraba como un
atributo indispensable de aquellos que querían un cambio” (MOSSE, 2000, p. 5).
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máxima do ideal iluminista de promover o bem-estar humano” (GRANJA, 2003, p. 40),
é o resultado de dois processos anteriores, o do “sonhador” e o do “amador”, que virão a
propiciar a emergência do “fomentador”.
Apesar de Abel Botelho ter sua estreia como romancista duas décadas depois das
célebres Conferências do Cassino (1870), e a sua narrativa se desenvolver nos anos finais da
década de 1860, pode-se verificar que não ficou alheio ao drama de Goethe – ele ecoa não
apenas em O Barão de Lavos, mas na produção botelhiana de um modo geral. Para isto, o
escritor elege uma tríade que lhe serve como horizonte desejável – a interação orgânica
entre o sentimento, o pensamento e a ação. É neste horizonte que se cruzam os ideais do
romancista português e o tripé proposto pela leitura do Fausto por Berman, já que se tornam
facilmente relacionáveis às equiparações: sonhador = pensamento, amador = sentimento,
fomentador = ação.
Sebastião, o barão, é projetado para ser o fomentador, um homem moderno na burguesia
portuguesa. Para tanto, não lhe faltam recursos: berço, formação, status econômico e social,
casamento e trabalho. O personagem, no entanto, está fadado ao fracasso, pois, apesar de
sua formação na faculdade politécnica, as posses herdadas de sua família e o prestígio social
de que goza na sociedade lisboeta, o barão não consegue articular as três premissas que
mobilizam o modelo de masculinidade de seu tempo.
Como exemplo consideramos a passagem em que Sebastião, já depois de sua derrocada
matrimonial, social e econômica, inaugura um ateliê fotográfico, com o apoio financeiro
de seu amigo Mendonça. Neste trecho é possível vislumbrar a possibilidade de regeneração
do personagem, que explicita, por meio do empreendimento que idealiza, a sua inserção na
modernidade pelo ingresso no mundo do trabalho por meio da prática dada pelos avanços
tecnológicos de seu tempo, a fotografia, e pela consequente promessa de enriquecimento.
Todavia, essa regeneração é posta em xeque exatamente no momento em que é requerida de
Sebastião a capacidade de ação, ou seja, agir como um fomentador. Apesar de apresentar as
competências de idealizar e projetar o empreendimento, que o apaixona, ao ter de comprovar
a competência para empreender, a mais importante porque inscreveria o projeto na vida
prática, ele falha. Sebastião não consegue administrar as suas vontades, especialmente as
sexuais, “porque não era o barão moralmente homem de meias-tintas: a paixão dominava-o
fácil; à menor pressão de contrariedade, o seu temperamento cálido e fraco saltava, como
uma rolha de champagne, como um estampido cavo” (BOTELHO, 2020, p. 170).
George Mosse, como já foi observado, ao tratar da construção da masculinidade
moderna, pontuou, dentre outros aspectos, a necessidade que teve o homem de domesticar
suas paixões, aplacar seu instinto violento e docilizar seu ímpeto, a fim de viver em uma
sociedade urbanizada. Ora, no romance de Botelho falta ao barão exatamente essa capacidade.
Seu descontrole, a submissão às suas paixões impede-o de ascender ao modelo masculino
moderno. N’O Barão de Lavos, a principal interdição, no que se refere à adequação do
personagem ao modelo de homem moderno, dá-se pela incapacidade de Sebastião de domar
o seu ímpeto sexual. Isto se revela já nas primeiras linhas do romance, quando o narrador
apresenta o personagem que, naquele momento, rodeia um circo à caça de algum efebo
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disposto a lhe satisfazer. Tanto nesse primeiro momento, quanto na adiantada passagem
do ateliê fotográfico, o personagem sucumbe ao ímpeto sexual. A diferença entre os dois
momentos narrativos é que, se na primeira cena parece haver no barão algum tipo de pudor
em relação ao que pratica, na segunda cena este pudor é tão irrelevante que Sebastião, tão
breve quanto consegue, reserva o ambiente do ateliê unicamente para a sua satisfação sexual,
negligenciando completamente quaisquer atividades laborais.
Se o que norteou, não apenas O Barão de Lavos, mas, também, o pensamento naturalista,
como um todo, foi o ideal de saúde, força, beleza e juventude, sintetizado na máxima olímpica
do barão de Coubertin, mens sana in corpore sano, a mesma lógica, como demonstraram
Eksteins (1991) e o mesmo Mosse (2000), produziu os corpos atléticos e viris que passaram a
representar a força e o poder das nações modernas. Se, à primeira vista, as ações de Sebastião,
descritas minuciosamente, fazem emergir um personagem contraditório: calculista, por um
lado, submetido aos seus instintos animalescos, por outro, a narrativa trata de levá-lo ao
fracasso frente ao modelo de masculinidade. O continuum descritivo encarrega-se apenas de
acentuar o declínio do personagem.
Mesmo antes de se ocupar em descrever pontualmente o tipo físico do barão, o narrador
dissemina a imagem de um corpo desde sempre doente. Quando descreve, por exemplo, o
jovem Sebastião ao concluir seus estudos, refere-se a ele como:

alto, esgalgado, seco – ardia-lhe na cintilação febril dos grandes olhos negros
o furor perpétuo e insaciável do Desconhecido; e a cada um desses incêndios
ferozes da pupila correspondia instintivamente um abrir das mãos descarnadas
e um trémulo agitar dos dedos, nervoso, inflamado, adunco, uma como ânsia
de apalpar a Vida. Conformação feminina: cabeça pequena, ombros estreitos
e ladeiros, bacia ampla, rins muito elásticos, os pés metendo para dentro. O
rosto, de um alvo lanugento e macio, tinha uma expressão menineira e ingénua,
um ar tocante de fragilidade e doçura. Mas não inspirava simpatia; traía-lhe a
inconsistência do carácter essa linha apagada, miúda das feições. O olhar era de
ordinário baixo; não cruzava com firmeza; e sempre que sentia um outro olhar
a interrogá-lo fito, as pálpebras desciam logo, a garantir-lhe a inviolabilidade do
abismo (BOTELHO, 2020, p. 66).

Nesta descrição, evidencia-se não apenas um homem desprovido de virilidade, o que


vem ser comprovado na sequência descritiva, mas, também, um ser ansioso, característica
que pode ser vista a partir da análise dos gestos repetitivos, os quais o narrador faz questão de
registrar ao longo do romance. Mesclam-se nesse processo de emasculação do personagem
elementos físicos e psíquicos. O corpo com traços femininos é acompanhado por sinais de
fragilidade e ansiedade, esta última pode ser lida como indício da histeria que o assolará e que
será agravada pela sífilis.
É oportuno trazer à tona que a histeria, ao longo da história, esteve associada às
mulheres como bem sublinha Maria Saraiva de Jesus (1997). Botelho, no entanto, escreveu
o seu romance em um momento no qual o estudo sobre a doença nervosa já havia evoluído
e a medicina já verificava casos de histeria masculina e é flagrante, como bem apontam
Howes (2003) e Curopos (2018), o seu conhecimento da medicina do seu tempo. Os casos
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masculinos, porém, eram estudados de forma diferente dos casos femininos, procurando
causas outras para os sintomas. Para os médicos do final do século XIX, enquanto a histeria
feminina ligava-se ao estado físico, a masculina relacionava-se ao emocional, acreditando que
a enfermidade, nos homens era fruto da vida moderna e do desregramento moral de alguns
indivíduos (GRANJA, 2003). A sífilis que acometerá Sebastião estará definida muito mais
em função de suas paixões, do que propriamente em função da sua homossexualidade, apesar
de aparentemente estarem relacionadas. Deve-se observar, todavia, que não são apenas as
conformações física e psicológica do personagem os únicos traços utilizados pelo narrador
para encaminhá-lo ao inevitável fracasso.
O processo de emasculação de Sebastião amplia-se em dois planos. O primeiro deles, já
apresentado, pauta-se no plano físico e no estado permanentemente doentio do personagem.
O outro plano refere-se à predisposição do personagem à imoralidade, por suas práticas
homossexuais. Ao descrever a genealogia do barão, o narrador traz à tona não apenas a
histórica familiar e particular do personagem, mas estabelece um claro paralelismo com a
História de Portugal, dando reforço à metonimização do personagem.
Ao caracterizar o personagem a partir da aproximação de duas características que, para
o narrador, são demeritórias, a origem fidalga e a pederastia, emerge o tipo a ser combatido.
Junto à riqueza e à posição social, Sebastião carrega também a semente do mal:

Eu havia de ser isto, por força! Trago a tatuagem da infâmia. Estava escrito…
A genealogia moral dos meus é edificante… Meu trisavô, inquisidor, era um
verdugo e um místico; meu bisavô, um sodomita incorrígivel, morreu aos
dezanove anos, esgotado, tísico; um irmão dele, que foi cardeal, organizou com
tiples castrados da sé e meninos de coro um harém para seu uso exclusivo; minha
avó paterna, espécie de Egéria debochada e histérica, essa pagava os madrigais e
os sonetos com dormidas, por escala, às noites, no seu leito, à choldra almiscarada
dos seus preciosos turiferários; e meu pai… meu pai foi mignon de D. João VI…
Tudo o mais assim… Ora com tais precedentes, que querias tu que eu viesse a ser,
senão isto que tenho sido - um escanzelo, um pulha? (BOTELHO, 2020, p. 277).

Além dos dados de seu condenável histórico familiar, de modo geral, a própria História
de Portugal condiciona-o à imoralidade e ao desenfreamento sexual. Isto fica em evidência
já no segundo capítulo do romance, quando o narrador, ao discorrer sobre o título de barão
atribuído a Sebastião, recupera a historiografia da nação, atribuindo à colonização grega e
romana a “inversão sexual do amor, o culto dos efebos, a preferência dada sobre a mulher
aos belos adolescentes”, ao mesmo tempo que associa aos “Bárbaros do Norte” a incapacidade
de controlar o ímpeto (BOTELHO, 2020, p. 63-64). Ao verificar a ascendência degenerada
de Sebastião, o narrador não apenas vincula o personagem à história de Portugal, mas
transforma-o em metonímia de uma sociedade toda fadada ao fracasso, incapaz de se domar
e, desta maneira, se modernizar.
Essa percepção distópica do narrador de O Barão de Lavos já se apresentara, como bem
aponta Granja (2003), em carta enviada, em 1890, por Antero de Quental a Alberto Osório
de Castro. Nela, Quental discorre sobre a impossibilidade de uma revolução moderna em
Portugal, já que para tal intento seria necessário “propósito, firmeza e força moral, o que aqui
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não há”. O poeta arremata afirmando: “Portugal é um país eunuco, que só vive duma vida
inferior, para a vileza dos interesses materiais e para a intriga cobarde, que é processo desses
interesses” (QUENTAL, 1980 apud GRANJA, 2003). Se for acrescentada a perspectiva de
Robert Howes (2003)9 a essas considerações, fica clara a crítica de Botelho não à pederastia
como sintoma que detonara a “patologia social”, mas a existência de uma classe dirigente
incapaz de se adequar ao século, ao tempo e ao projeto de modernidade, tão ansiado pelos
intelectuais portugueses do fim do século.
Ao se articular ambos os textos, a carta de Antero de Quental e o romance de Abel
Botelho, fica evidente que ambos tratam do mesmo problema: o caráter pouco viril da nação
e de seus componentes. George Mosse apontou que a associação entre masculinidade e
nacionalidade propiciou a constituição do nacionalismo e da nação modernas na medida em
que o nacionalismo exaltava a masculinidade como forma de auto-representação (Mosse,
2000, p. 65). A nação não deveria lançar mão apenas de símbolos nacionais vinculados
ao masculino, mas ela mesma deveria encarnar em si aspectos da masculinidade, como os
elencados por Quental, como “propósito, firmeza e força moral”. É estabelecida, assim, uma
relação circular, pois na medida em que a nação constrói indivíduos dotados de masculinidade,
também se projeta como uma nação dotada de virilidade (“propósito, firmeza e força moral”,
portanto). Nessa medida, o romance de Abel Botelho é a narrativa da falência de Portugal,
incapaz de se realizar como uma nação forte, pois, “país de eunucos”, como afirmou Antero
de Quental, não produzia filhos capazes de promoverem as revoluções necessárias em si
mesmos ou no contexto nacional.
É importante destacar ainda que, durante parte significativa da narrativa, as ações de
Sebastião são associadas à prática da pederastia grega, dando ensejo à repetida nomeação
dos jovens, buscados pelo barão, como efebos. O recurso é uma artimanha flagrante, porque
amparado em teorias como a do já referido Winckelmann constitui um protagonista cujo
olhar sobre o mundo seria constituído por uma percepção estética das coisas, entretanto,
na medida em que a narrativa avança, quaisquer arrebatamentos pela beleza são facilmente
abandonados em favor da sensualidade e da paixão. Nesse sentido, o discurso da descrição do
quadro do rapto de Ganimedes, caracterizado como a alegoria sublime do amor, é facilmente
substituído pela genealogia familiar do barão, servindo apenas para encobrir as paixões
que subjazem a essa percepção estética do mundo. Ao mesmo tempo, o corpo de Eugênio,
fetichizado, primeiramente, como um corpo esteticamente perfeito, digno de adoração,
provoca ânsia e desejo irrefreáveis:

a hiperestesia sensual, que cumulativamente com a obsessão artística trabalhava

9
Em seu artigo, Robert Howes (2003) observou a flagrante aproximação da narrativa de Botelho ao episódio
policial que envolvera, em 1881, em escândalo público o Marquês de Valada, D. José de Meneses da Silveira e
Castro (1826–1895). Deputado e figura muito próxima à Família Real, o marquês fora flagrado pela polícia,
na Travessa da Espera, no Bairro Alto, em Lisboa, na noite de 02 de agosto de 1881, com um jovem soldado
em circunstâncias comprometedoras. Segundo Howes, o episódio poderia ter sido facilmente esquecido, já que
a homossexualidade não era crime, não fosse a atuação do artista plástico e chargista Bordalo Pinheiro que,
durante muitos anos, não deixou a memória do episódio esmorecer, muito menos por escândalo moral, e muito
mais por oposição política e anti-monarquismo.
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o barão, começara a preponderar. O apetite carnal cresceu, irreprimível. Num
dado momento, parou a olhar o modelo com a pupila empanada, o lápis caiu-lhe
dos dedos trêmulos, as maxilas oscilaram-lhe num jeito de carnívoro, e então
foi tomar o efebo nos braços e refugiou-se com ele na penumbra da alcova...
(BOTELHO, 2020, p. 85).

Ao nomear Eugênio por efebo, o narrador não apenas apresenta um determinado


tipo físico — o do jovem rapaz com músculos torneados que, apesar de já demonstrar certas
características de virilidade, é ainda doce e lânguido, carregando em si traços afeminados
—, mas dá a ele a forma do mal e da torpeza, pois o corpo do efebo, ainda marcado por
traços andróginos, torna-se um corpo perigoso que, mesmo louvado nas artes por suas
beleza e juventude, é o corpo onde habita a perdição e é porta para a degeneração, como
se verá a seguir.
Em outra sequência, enquanto aguarda ansiosamente a chegada do amante, em seu
estúdio na Rua da Rosa, Sebastião alucina, em meio a uma crise nervosa, ao mesmo tempo em
que se vê em meio a quadros de pintores do Renascimento italiano — Giotto, Vinci, Fiezola,
Perugino, Sanzio, Buonarotti (Botelho, 2020, p. 126). Em seu delírio, surge uma procissão
formada por “bambinos angelicais”, seguidos por pelotões de mulheres soberbas, soldados e
bacantes anunciam a chegada de um andor, adornado de ouro, que, carregado por “oito neros
atarracados e oleosos”, trazia “um efebo nu, de forma impecável, de carne deslumbrante,
assombrosamente perfeito, sedutoramente belo”. Ao fim, o efebo é adorado por cardeais
e magistrados e elevado a um trono, enquanto o excitado barão assiste a cena, ansioso em
prestar suas homenagens à imagem que o domina. Podendo ser facilmente representada
numa pintura, a sequência é a versão carnavalizada da sagração de uma divindade, encarnada
no corpo perfeito do efebo, que, ao fim, se revelará como o próprio amante, Eugênio. A
cena, afinal, revela que o poder já não está mais nas mãos de quem de direito deveria detê-lo;
ao efebo, toda a sociedade se curva, não há quem dela escape, nem mesmo o poder religioso.
Há que se considerar, no entanto, que apesar de, ou, exatamente, por ser Eugênio,
o efebo, a metáfora do mal, é ele o único personagem que obtém uma ascensão. Eugênio
termina sua participação no romance ovacionado pela plateia. De algum modo, a visão de
Sebastião se confirma. Confirmam-se, ainda, as palavras de Quental ao dizer que Portugal
vive para as vilezas dos interesses materiais. Eugênio emerge como o self made man do mundo
do capital, o protótipo do homem do mundo moderno, a face negativa do fomentador:
auto-empreendedor, capitalista, um personagem que, focando a ascensão, não atenta para
nada além de seus desejos e se desvia do propósito maior do bem comum que engendrara a
emancipação do homem moderno e que animara o trabalho incessante de Fausto.
Se Sebastião pode ser lido como o fomentador falhado, Eugênio, por sua vez, logra
êxito, pois mobiliza as oportunidades de que dispõe, mas, ao mesmo tempo em que aprendeu
a domesticar seus desejos, atuou exclusivamente em função de si. Longe de poder ser lido
como um modelo, Eugênio é movido pela ambição e pelo lucro. Inicialmente, Eugênio era
um jovem pobre, rejeitado pela mãe e obrigado a trabalhos pesados; a sua trajetória o leva aos
aplausos nos teatros lisboetas. De mero objeto sexual, o efebo escala os degraus da sociedade
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lisboeta. Satisfazer os desejos do barão foi o meio para melhorar a sua vida cotidiana: obter
melhores refeições, melhores roupas e mais dinheiro para seus próprios prazeres. Depois,
quando já inserido no âmbito doméstico de Sebastião, aproveita-se da paixão de Elvira, a
baronesa, para, além do dinheiro, desenvolver modos que lhe garantisse desenvoltura nas
rodas e nos salões. Até mesmo as intrigas que o envolvem como o amante de marido e de
esposa parecem não escapar do oportunismo, já que fica evidente ser esse um dos motivos
para a lotação do Teatro da Trindade em sua estreia.
Ora, se por um lado as práticas homossexuais não são vistas com bons olhos pelo
narrador, por outro, elas não parecem se constituir como o elemento capaz de encaminhar os
personagens para o fracasso. Não se trata de compreender a narrativa como uma condenação
da prática homossexual, o mote do primeiro volume da “patologia social”. Trata-se de perceber
que, no desenrolar da narrativa, o peso maior se concentra na capacidade dos personagens
em domarem seus desejos e se submeterem ao modelo de masculinidade requerido por seu
tempo. Não há risco em afirmar, tendo em vista a trajetória de Eugênio, que há certo “perdão”
para a pederastia, desde que o indivíduo masculino seja capaz de dar sentido a elas para além
da satisfação sexual. Neste sentido, o mal de Sebastião é sua incapacidade de se domar, como
se observa no último capítulo do romance:

[...] a vida do barão arrasta-se, turporosa e lôbrega, pelas inconfessadas volutas


da chatinagem mais sórdida; e resvala às ínfimas degradações do pulhismo, da
miséria, da loucura e da infâmia… A loucura em que ele se afundara sem remédio,
no momento em que deixou por completo as suas paixões dominarem-no (BOTELHO,
2020, p. 310 – grifos nossos).

Deve-se compreender que O Barão de Lavos, apesar de ter sido reconhecido como
registro da vida social lisboeta do final do século XIX, operando a partir da tematização da
prática da homossexualidade e o seu juízo, o romance é, acima de tudo, uma narrativa sobre
homens dominados pelo desejo e subjugados pela paixão. Apesar de importarem, as práticas
sexuais dos indivíduos não são a única determinante para o seu fracasso ou o seu sucesso, mas
sim o que o indivíduo faz do seu desejo, se o submete ou se é por ele submetido. O domínio
das paixões era condição para a emergência da masculinidade moderna, o domínio sobre
os seus sentimentos, o domínio sobre si eram formas inequívocas para se reger a vida em
uma sociedade urbanizada, posto que o equilíbrio social era a única garantia de estabilidade
política e econômica e de manutenção, por conseguinte, do poder do Estado.

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Recebido em: 18 de abr. 2020


Aceito em: 23 mai. 2020

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A fuga como resistência e busca por novos
horizontes em Onde acaba o mapa,
de Carol Rodrigues

FLÁVIO ADRIANO NANTES*

RESUMO: O presente trabalho trata de uma leitura de um dos contos que compõe o livro Sem
vista para o mar, de Carol Rodrigues. Busco uma reflexão acerca do conto “Onde acaba o mapa”,
mais precisamente da prática dos afetos homossexuais por parte da personagem central, o “menino
jurado”. Este é nomeado desta forma (ou “menino de mentira”) por ser visto, numa espécie de
flagrante (por “meninos de verdade”), beijando outro “menino de mentira” no muro atrás da escola.
Prática que lhe ocasiona um juramento de morte e, por isso, precisa fugir numa longa viagem pelo
rio-mar. Proponho pensar o conto de Rodrigues por meio da metáfora do armário, i.e, quais as
reações sociais pelas quais passa um sujeito que sai involuntariamente ou opta (de forma deliberada)
pela saída do armário. Ademais, quero refletir onde estão ancoradas as justificativas sociais que
expliquem aquelas reações, se existem territórios específicos para a prática da LGBTfobia, ou se há
lugares mais progressistas e democráticos. Quero pensar essas questões sem deixar de ter em conta
o cuidadoso trabalho com as palavras empreendido por Carol Rodrigues neste livro que recebeu,
entre outros, o Prêmio Jabuti, na categoria contos e crônicas, na edição de 2015.

PALAVRAS-CHAVE: Armário; Carol Rodrigues; Contos; LGBTfobia; Literatura LGBT.

ABSTRACT: The present work deals with the reading of one of the short stories that make up the
book Sem vista para o mar, by Carol Rodrigues. I seek a reflection on the short story “Onde acaba
o mapa”, more precisely on the practice of homosexual affections by the main character, the “boy
wanted dead”. He is defined as such (or as a “non-real boy”) for being somewhat caught red handed
(by “real boys”) kissing another “non-real boy” behind the school wall. That practice causes his
life to be threatened and, therefore, he needs to flee on a long journey by the river-sea. I propose
to think Rodrigues' story through the closet metaphor, i.e., what are the social reactions that an
individual who came out involuntarily or chose (in deliberate way) to do so. Furthermore, I want
to ponder where the social justifications that explain those reactions are anchored, and if there are
specific territories for the practice of LGBTphobia or if there are more progressive and democratic
places. I want to think about these issues while taking into account the careful work with the
words undertaken by Carol Rodrigues in this book that received, among others, the Jabuti Award,
in the short stories and chronicles category, in the 2015 edition.

KEYWORDS: Carol Rodrigues; Closet; LGBT literature; LGBTphobia; Short stories.

* Curso de Letras – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação – FAALC – Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul – UFMS – 79070-900 – Campo Grande – MS – Brasil. E-mail: fa.nantes@gmail.com
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Esse amor é mal entendido nesse século, tão mal
entendido que pode ser descrito como o “amor que não
ousa dizer o nome”.

Oscar Wilde, por ocasião de seu julgamento em 1895.

Rompi tratados/ Traí os ritos/ Quebrei a lança/


Lancei no espaço/ Um grito, um desabafo/ E o que me
importa/ É não estar vencido.

Sangue latino – João Ricardo

Avistando um preâmbulo

“Mulher arrepia mais” alude uma das narradoras de Carol Rodrigues, aos leitores, em
um dos contos de Sem vista para o mar: contos de fuga (2014). Provavelmente (peço licença a
todas as mulheres) eu seja uma porque fui arrebatado e durante muito tempo fiquei extasiado
com a escritura desta autora que recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio Clarice Lispector, este
último promovido pela Fundação Biblioteca Nacional, ambos edição de 2015, na categoria
contos e crônicas. Corre à boca miúda que a escritora participou de uma oficina promovida
pelo escritor e produtor cultural Marcelino Freire, e, ao terminar a oficina, foi para casa
escrever e o resultado é uma obra potente, carregada de tensão e força literárias. O conto que
abre o livro, “Onde acaba o mapa”, é muito bonito, extremamente. Mexeu comigo. Adjetivo
difícil de ser retirado do âmbito da crítica literária, eu o sei, mas neste texto, quero, como
Carol Rodrigues, desviar das regras propostas seja pela Academia ou pelos manuais que
regem as normativas para um projeto escritural.
Queria que o mundo todo lesse e chorasse comigo; comigo e com a personagem central
do conto, ao se inteirar da vida precária da personagem nomeada no texto literário de “menino
jurado”; jurado de morte por não ser/se parecer com um “menino de verdade”, ou ainda, pelo
“delito” de relacionar-se afetivamente com alguém do mesmo sexo. A personagem central do
conto é um menino – optei pelo termo menino por repetir o modo descrito no texto literário
– homossexual, logo, de acordo com o pensamento conservador-heterossexista, não merece
circular/estar com os “meninos de verdade”, deve ser rechaçado, invisibilizado, eliminado
letalmente; e reagindo à violência, decide fugir para preservar a própria vida.
A fuga comumente compreendida a partir de um lugar-comum aloca o sujeito que a
empreende numa esfera de covardia, entendida como falta coragem para permanecer e fazer
um enfrentamento olhando no olho daquilo que o desestabiliza, o faz se sentir desconfortável.
A fuga, aqui, ou melhor, no verbo categórico da escritora Carol Rodrigues será pensada como
gesto de coragem e que nada tem a ver com covardia. Não é senão uma ação de sobrevivência
e, por conseguinte, de resistência.
Quero entender a prática da fuga por outra perspectiva semântica: a personagem de
que lanço mão para pensar a fuga é a que escapa à vida pré-estabelecida por outros, seja
a família ou o entorno social. Ela foge, então, por entender que sua vida deve ser livre,
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vivível, vivenciada a partir de outro status quo, i.e., para além das convenções sociais que
regidas pela compulsão heteronormativa que determina como o sujeito deve se mover no
interior da sociedade.
O “menino jurado” cuja prática homossexual é revelada passa a ser medido pelo olhar
social que perscruta a vida dos cidadãos e indica quais práticas são aceitáveis e quais não
são. O gesto – o beijo em outro “menino de mentira” praticado pela personagem central do
conto é entendido como inapropriado, inaceitável, abjeto, logo, o sujeito homossexual não
passa desapercebido. O elemento que desencadeia a violência contra a personagem tem a ver
com a revelação – ainda que involuntária – acerca dos desejos/afetos do “menino jurado”
por um corpo igual ao seu; em outras palavras, a homossexualidade propriamente dita. Por
intermédio da mirada social perscrutadora os sujeitos LGBTs são apontados, assediados,
injuriados, violentados. A saída do armário é uma espécie de revelação de um segredo que
imediatamente põe em marcha todo um movimento homofóbico no interior da sociedade
que visa à destruição da homossexualidade.
Para Eve Kosofsky Sedgwick (2007), a metáfora do armário utilizada para homossexuais
masculinos e femininos estende-se para uma série de outras questões no mundo ocidental.
Em outras palavras, sair ou não do armário não tem a ver apenas com a autodeclaração do
sujeito gay, mas implica questões de classe, etnia, religião, etc. No auge do nazismo, quando
milhares de judeus eram dizimados, era impensável que eles saíssem do armário, expressassem
a sua etnia e/ou a sua religião de forma aberta. Era uma questão de sobrevivência manter
no armário a etnia e a religião judaicas, o que não difere, em muitos casos, quando se trata
da homossexualidade. A metáfora do armário, pensada, quase sempre, para homossexuais se
desloca destes e implica outros grupos e categorias sociais.
Determinados grupos e categorias sociais estão, na atual gestão do presidente Jair
Bolsonaro, sendo severamente atacados, entre eles, mulheres, negros, indígenas, nordestinos,
comunidade LGBT. Um dado importante é a quantidade considerável de apoiadores do atual
governo do Estado-nação; pessoas que endossam um discurso de ódio, de abjeção, de exclusão,
de eliminação, em relação a determinados corpos, saem do armário. Talvez esta saída do
armário se dê pelo fato de que muitos se sentem legitimados pelo chefe de Estado a fazê-lo.

O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas,
para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há
poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais
afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário
não seja ainda uma presença formadora [...]. Numa escala muito mais ampla e
com uma inflexão menos honorífica, a epistemologia do armário também tem
sido produtora incansável da cultura e história do ocidente como um todo
(SEDGWICK, 2007, p. 22-23).

Recentemente chegou até as minhas mãos o livro da filósofa e ativista Djamila Ribeiro,
Quem tem medo do feminismo negro? (2018). Nele, a autora relata uma série de intempéries
que sofreu por sua condição de sujeito negro, entre elas, o fato de professar fé numa religião
de matriz africana, o candomblé. Djamila, ao ter seu turbante arrancado de forma agressiva
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e a exposição da cabeça raspada durante o intervalo na escola, teve sua religião posta para
fora do armário e passou a ser nomeada, de forma depreciativa, de “macumbeira”. Esse fato
a afastou, conforme ela mesma declara, de suas origens, fazendo com que ela se trancasse
no armário juntamente com sua religião. Além disso, a textura original de seus cabelos foi
modificada por alisamento para, num gesto de desespero, ser aceita no seu entorno social.
A personagem do conto de Carol Rodrigues, um adolescente de dezessete anos, em
“Onde acaba o mapa”, cuja proposta de leitura, aqui, está pautada pela metáfora do armário,
sai do seu lugar de clausura de maneira involuntária e passa a sofrer, pela exposição pública
do seu segredo, assédios, injúrias, arguições, questionamentos, ameaças. O armário pode,
então, ser entendido como espaço de refúgio, de proteção, mas caberia uma questão: ter
a vida, o desejo, as práticas afetivo-amorosas enclausuradas dentro de um espaço fechado,
logo, sombrio, seria democrático, justo, para aqueles que não querem estar encerrados nos
mais diferentes armários?
O conto de Carol Rodrigues propõe o fim do mapa, lugar onde o rio-mar acaba,
estabelecendo, assim, o território onde todas as trincheiras são levantadas, e, sem qualquer
opção que saia da manga ou gesto milagroso, a personagem precisa enfrentar seus algozes,
posicionar-se na linha frente. Este território estrategicamente desenvolvido pela escritora
indica as chances que o sujeito ficcionalizado tem para reivindicar a sua existência, posicionar
a sua narrativa ao lado de outras concebidas como melhores e adequadas (hegemônicas),
dessilenciar seu corpo, exigir o direito ao movimento corpóreo (circular nas instâncias
pública e privada. Posiciono-me, então, neste trabalho para pensar um corpo; o corpo de um
adolescente, o armário, a saída involuntária, a fuga como sobrevivência e resistência numa
sociedade cujo imaginário está pautado por uma hétero-ortodoxia, onde a mínima diferença
daquilo em relação àquilo que está validado socialmente como modos de ser e categorias
corretas causa uma onda de revolta contra os sujeitos subversivos.

Onde acaba o mapa e o enfrentamento como r(existência)

Carol Rodrigues abre o seu Sem vista para o mar com o conto “Onde acaba o mapa”, e de
imediato o leitor é arrojado para o interior da existência de um adolescente de dezessete anos
que, por subverter a conservadora categoria do desejo (orientação sexual) heterossexual, é
jurado de morte por outros garotos, os “de verdade”. Num primeiro momento o leitor mais
pessimista acreditaria estar diante de uma escrita sem paliativos, sem saída para qualquer parte,
conforme o próprio título do conto alude, mas à medida em que o leitor vai se relacionando
com a potência verbal da autora, percebe que o fim da linha, do mapa, do rio-mar, espaço
que não dá para lugar algum, é justamente o começo; o começo do enfrentamento com o
outro, aquele que se posiciona de forma violenta contra a homossexualidade.
“Onde acaba o mapa” me dá notícias de um menino que beija outro menino em um jogo
de futebol da escola, e os “meninos de verdade” que ali jogam flagram o gesto de afeto entre
os dois e juram o primeiro de morte. O beijo que é um gesto privado, por se tratar de uma
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relação corpórea consensual, torna-se público porque todos no entorno do “menino jurado”
ficam sabendo; a notícia espalha-se de maneira vertiginosa: “Ele não existe e de repente
existe. Faz cinco dias foi jurado” (RODRIGUES, 2014, p. 11). O sujeito até então anônimo aos
olhares sociais passa a existir, mas com um traço marcado no corpo: o da homossexualidade,
demonstrando o modo como são percebidos “os portadores de sexualidades policiadas”
(BHABHA, 1998, p. 24), aquelas que fogem aos padrões determinados/pautados por
determinadas instituições a saber: a escola, as religiões fundamentalistas e, em muitos casos,
o próprio Estado-nação.
É interessante notar o modo como a personagem central passa da não-existência à
existência, ou melhor à existência-gay. Ela passa, então, a existir para logo ser eliminada
pelos “meninos de verdade” que empreenderão o gesto letal contra o seu corpo subversor.
Caberiam aqui alguns questionamentos acerca desta questão no que diz respeito à justiça:
matar é um crime, não se pode matar, mas por quais razões e ancorados em que uns matam
a outros? Jaime Ginzburg (2019), num artigo escrito para o Suplemento Pernambuco –
“Formas de interpretar os desejos assassinos” – empreende alguns questionamentos sobre os
quais me parece interessante pensar:

Para a sociedade contemporânea o que o ato de matar significa? Ele resulta de uma
perda de consciência, ou faz parte do que socialmente é considerado normal? Na
opinião de pessoas à nossa volta, todas as vidas são resguardadas por um direito
sagrado, ou algumas vidas importam mais que outras? É legítimo que alguém
mate, descumprindo a lei, se tiver razão considerada aceitável? (GINZBURG,
2019, p. 13).

O próprio texto de Carol Rodrigues poderá dar respostas a esses questionamentos. É


possível, neste sentido, pensar em “Onde acaba o mapa”, bem como em outros contos que
compõem o Sem vista para o mar, como uma metáfora do próprio Estado-nação brasileiro e
essa inferência se explica por uma gestão política pautada na perpetuação da violência contra
determinados sujeitos que foram/são invisibilizados, silenciados, assassinados ao longo da
história da constituição da nação.
Essa metáfora, a do armário, se desborda do conto literário aqui analisado e pode ser
pensada em outros contos nos quais a escritora evidencia os constantes assédios, as injúrias,
as violências perpetrados contra determinadas minorias (compostas por muitas pessoas).
Em “Penélope e a roda”, por exemplo, a protagonista, por querer fugir da vida comumente
reservada às mulheres, dá um fora no futuro marido e foge do casamento com vestido de
noiva e tudo. A mãe da personagem, então, questiona:

[...] minha filha teu vestido, cabelo, sapatilha. Teu noivo ligando minha filha, tua
vó, teu pai a família. Não casou por quê minha filha, saiu assim, coitado, o João,
passou carão lá na igreja rapaz bom. Vai fazer o quê da vida minha filha vai fazer
o mais redondo quê (RODRIGUES, 2014, p. 58).

É clara a preocupação dessa mãe em relação aos rumos que a vida da moça tomará
após ela ter optado por desfazer o casamento. Para os membros da família (leia-se entorno
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social), o noivo, à revelia do desejo da protagonista, seguindo a tradição, ela deveria se casar.
Percebo, também aqui, a hierarquização corpórea, i. e., as relações dissimétricas de gênero,
segundo as quais os deveres que uma mulher tem (e o que se espera socialmente desse sujeito)
estão rigidamente pré-determinados: se casar, ter filhos, cuidar da família, caso contrário
“vai fazer o mais redondo quê”.
No conto “Das oito às oito” a personagem Michelina é uma mulher transexual que,
ao circular em espaços públicos, não passa incólume à perscrutadora mirada social sobre o
sujeito que ousou desafiar a rígida estrutura social que regula o gênero, subvertendo-o. Essa
mulher abdica do modus vivendi hegemônico da masculinidade – o homem cis – e passa a
viver com a constante presença do assédio em razão do deslizamento de um gênero a outro.

Às oito da manhã era o balcão da padaria. Pediu um pão na chapa e requeijão mas
com pouco requeijão tem light? Três homens olhavam, o olho não entende, duas
mulheres inteiras de frente e a cópia mal feita, ali, de peruca. Michelina puxou
a franja solta até o pico do arco desenhado a sobrancelha rala (RODRIGUES,
2014, p. 88).

E ainda:

Voltando pra janela estava lá o olho de mar aberto. Olhou de volta e se olharam
até [...]. Você vai no banheiro de homem ou de mulher. Aqui no ônibus tem um
só. Não, na sua vida normal, vai em qual? De mulher. Ainda bem cortou seu pau?
Cortei. Ainda bem e deitou de volta e bonito o garoto, virado pro oposto o seu
lado o boné enterrado na cara (RODRIGUES, 2014, p. 91).

Conforme se observa no primeiro excerto, já no início da narrativa, Michelina é vista


por pessoas cuja visão acerca da mulher trans diverge da imagem que a própria personagem
tem de si. O pensamento binarista (homem vs. mulher) que desconsidera a transição de
uma pessoa transexual é prática recorrente numa sociedade onde o imaginário está pautado
por uma narrativa cis-heterocêntrica. Neste sentido, Michelina é vista/entendida como
uma mulher que é uma “cópia mal feita”, uma cópia caricata, i.e., que não é uma “mulher de
verdade”, pois o pensamento cis-hétero considera apenas o reflexo sexo biológico>gênero
(pênis>homem / vagina>mulher), e não leva em consideração o gênero enquanto uma
construção histórico-cultural-social que não se reduz à relação órgão genital>gênero. É
evidente o lugar no qual Michelina é alocada pelos homens que a observam: um lugar de
inexistência, invisibilidade, abjeção; é sujeito que não existe e se existe deve ser exposto a
toda sorte de violência e, em muitos casos, deve ser letalmente eliminado.
O segundo fragmento do mesmo conto indica outra observação em relação à
protagonista, talvez mais amena que a anterior, mas ainda pautada por um posicionamento
cis-heteronormativo. Michelina empreende uma viagem e no trajeto é arguida por um rapaz
que se senta ao seu lado. Ele busca saber sobre o tipo de banheiro que a personagem utiliza, se
ela passou ou não pelo processo de redesignificação sexual. Conforme se nota na conversação
entre ambos, a mulher trans precisa de uma espécie de validação para se constituir de fato
como sujeito-mulher. Uma vez que a generificação corpórea – o gênero propriamente dito –
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é um dado cultural, social e histórico, uma mulher (o gênero feminino) não pode se constituir
em um corpo com pênis? Um dado interessante, ainda no segundo excerto citado, tem a ver
com o uso do banheiro. Sou partidário de que banheiros não deveriam ter gênero, mas, por
uma lógica sócio-cultural binária, homens e mulheres utilizam banheiros distintos, logo, se
Michelina é mulher por quais razões a personagem pergunta em qual banheiro ela vai?
Voltando ao conto objeto de estudo deste trabalho, além dos garotos da escola, o pai,
a mãe e a irmã que estava de casamento marcado souberam do menino, gerando um tipo
de status a que o sujeito gay está submetido: o da abjeção. A notícia do beijo entre os dois
meninos se alastra como fogo e incendeia o lugar, logo, este pode ser entendido como um
território da homofobia onde não há espaço para relações amorosas entre pessoas do mesmo
sexo. E os que ousarem desafiar os estritos padrões que regulam a sexualidade segundo a
heteronormatividade sofrerão consequências, como é, no conto, a promessa de morte feita
ao menino protagonista do beijo gay. Nessa perspectiva, Sedgwick afirma que

Para as antenas finas da atenção pública, o frescor de cada drama de revelação


gay (especialmente involuntária) parece ainda algo mais acentuado em surpresa
e prazer, ao invés de envelhecido, pela atmosfera cada vez mais intensa das
articulações públicas do (e sobre o) amor que é famoso por não ousar dizer seu
nome (SEDGWICK, 2007, p. 21).

O amor não nomeado, ou aquele que não ousa dizer o nome, por mais corriqueira que seja
sua performance no interior das sociedades ao redor do mundo, é algo que ainda constrange
os “cidadãos de bem” cujo imaginário está pautado pela perspectiva da heteronormatizante
e heteronormalizante. É o que acontece com o menino, o que foi jurado de morte, que saiu
do armário de maneira involuntária, pois não disse a ninguém que gostava de beijar outros
meninos, mas foi surpreendido numa espécie de flagrante, cometendo um “delito”, e em
consequência disto se viu obrigado a fugir, sair de casa à procura de um lugar seguro, viver
em outras paragens, lá onde o mar acaba...

Porque quando foi a outra vez foi no muro atrás da Escola Estadual Leônidas Ramos
Oliveira, de uniforme, os meninos de verdade jogavam futebol.
Foi com outro menino de mentira, era loiro, era de fora, era gostoso beijar e
sentir no beiço o buço ralo, moço novo, a mão na calça, ele tinha calça, no calor
suava todo, as costas as coxas o buço. Mas pegaram alguém viu contou pro pai
pra mãe pra irmã noiva, ia casar, e dali foi jurado por meninos de verdade que
jogavam futebol.
O outro menino que era de fora voltou para fora. Não fazia bem um moço culto
beijar inculto no cu do mundo o pai falou (RODRIGUES, 2014, p. 15).

O léxico utilizado por Carol Rodrigues é bastante interessante – “meninos de verdade”


e “meninos de mentira” – para uma reflexão acerca do traço distintivo do sujeito que sai do
armário. Os meninos que jogam futebol, supostamente heterossexuais, são os “de verdade”,
aqueles que podem circular livremente nos espaços público e privado, e se sentem legitimados,
pelo imaginário social heteronormativo, a ameaçar, assediar e eliminar o corpo do outro, o
do não-heterossexual. Já os “meninos de mentira” não têm direito ao espaço publico, é-lhes
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sonegado um lugar social. Assim, os “meninos de mentira” empreendem, no conto, uma
fuga: um volta para a casa e o outro foge.
Um dado interessante a ser pensado ainda em relação ao excerto acima citado tem a
ver com a condição de classe em relação aos meninos que se beijaram. Existe entre eles uma
diferença social – o “menino jurado” é o inculto da relação, não mora num grande centro e,
sem proteção familiar ou qualquer outra, foge para a manutenção de sua própria vida; já o
outro ocupa um lugar social privilegiado, ele volta para casa sob a proteção paterna. Há aqui
uma hierarquização corpórea entre os garotos gays, i.e., um é mais dissidente, periférico,
abjeto que outro. Aqui caberia outro apontamento que considero de suma importância para
pensar a questão da saída do armário. Que categoria de gay é legitimada socialmente? Há
homossexuais mais e menos aceitáveis? Os que “não dão pinta”, os que não demonstram
afetos públicos, os que não desmunhecam, os palatáveis, são os “adequados” em relação aos
que exercem práticas distintas? Os intelectualizados, brancos, de classe média/alta são mais
aceitos do que os cabeleireiros que habitam as periferias das cidades ou os gays que trabalham
com prostituição?
O “menino jurado”, por uma série de experiências que o constituem, foge numa longa
viagem e chega a um lugar onde o mapa – o seu mapa particular – acaba e, sem outra opção,
ali se ancora. No mapa do jurado de morte figura, no entanto, um ponto de fuga para a
solidão e os abandonos. Na cidade interiorana onde aporta encontra-se com seu Nestor e
outro “menino de mentira”.

A manhã passa na cadência o menino fugiu de casa pelo rio quer dormir. Fala
isso pro chapeiro que é o padeiro que é o dono que é bacana e ofereci um sofá ali
atrás [...] O padeiro é atento e nota, pega uma camisa nova, uma bermuda sem
listra, só sapato que não tem para emprestar (RODRIGUES, 2014, p.14).

Voltou o menino ao padeiro e ofereceu um dinheiro pelo sofá uma semana.


Tomou banho, arrumou cabelo, e abrindo a porta do banheiro o Nestor já soltou
quer me ajudar no balcão?
O menino sorriu muito obrigado e do olho do Nestor um brilho do filho que
nunca teve se esvaía como ideia (RODRIGUES, 2014, p. 19).

Nos textos de Carol Rodrigues nem tudo é dor e sofrimento. No caso específico de
“Onde acaba o mapa” a personagem central encontra abrigo em braços desconhecidos. Talvez
a personagem Huma, do filme Todo sobre mi madre, de Pedro Almodóvar, tenha razão quando
afirma: “Simpre he confiado en la bondad de los desconocidos”, excerto extraído pelo diretor
de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. Um destes bondosos desconhecidos que
povoam anonimamente o mundo encontra-se com o “menino de mentira” que vê no senhor
Nestor a possibilidade de proteção. O padeiro engendra uma espécie de cuidados paternos
em relação ao menino que passa a trabalhar na padaria e se sente protegido, acolhido e,
sobretudo, sem necessidade de dar explicações sobre a fuga empreendida.
Longe das ameaças do juramento de morte, o suposto ex-jurado passa a se integrar
ao lugar, experienciar um espaço salubre para viver a sua vida para além do armário e sem
intervenções sociais sobre aquilo que é de mais privado que existe para o sujeito: o seu
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próprio corpo. Na nova cidade – interiorana, turística e com balneário –, não tardou muito
até o que o menino se encontrasse com outro menino.

Veio um garoto, quer cerveja, levou a cerveja e a mesma troça do moço que
vendia e tinha o mesmo pé cascudo pé de gente que fugia. Era ruivo meu deus
era de longe. Era pelo menos de fora. De onde você é de Londrina visitar família
antiga daqui. Família daqui é ruiva assim? Não, é bem mais escura foi toda
uma mistura mas eu nasci assim, vó da Irlanda por acaso de Deus. Preocupou o
menino era cristão, desistiu de conversar, sorriu, saiu, mas a mão de vermelho
pingado puxou a manga da camisa emprestada do padeiro. E você é de onde? Não
sabia responder.
De bem lá de cima do rio.
Pra gente daqui o rio é mar.
De bem lá de cima do mar.
Quer dançar?
Não sei dançar eu ensino. Foi prum meio de cadeiras o menino e o ruivo colocou
a mão direita bem firme em ficar longe da pele das costas. Era só um calor que
vinha da camisa. A mão esquerda pegou a direita do menino e ergueu noventa
graus quase cem. A cabeça assentiu aguardando a deixa da batida o sertanejo o
primeiro passo. Empurrou de leve o pé que era pra passar pra trás, do menino, e
o dois pra cá um pra lá da região ou do gosto do ruivo se fez.
Olhou em volta ninguém me olha fechou o olho e fez calor pelo queixo no ombro
ruivo do ruivo. Foram assim doze músicas iguais.
Os dois pra cá um pra lá deslocou o conjunto formado em movimento pra fora
do centro. Era um canto a entrada do banheiro e pra dentro do banheiro a boca
ruiva, o lábio mole, quis beijar. Beijaram um beijo ruivo, o lábio fino o lábio mole
[...].
Beijaram mais beijaram muito esqueceram do mundo o sertanejo aquele
bar. E como em filme censurado acordaram abraçados na areia agora quente
(RODRIGUES, 2014, p. 17-19).

Este longo excerto me dá a impressão de que o menino, ao se sentir minimamente


protegido, sobretudo pela presença da personagem Nestor, o padeiro com quem a personagem
central passa a morar na nova cidade, empreende outra saída do armário, desta vez de forma
voluntária, pois se aproxima de outro menino, aceita a interlocução, a dança, a troca pública
de afetos, endossando a minha interpretação sobre o abandono do armário. Seria esse espaço
turístico um lugar mais progressista, menos homofóbico para a concretização de afetos entre
dois homens? Os “meninos de mentira” tornam-se “meninos de verdade” pelo fato de não
serem hostilizados pelos que presenciam a relação amorosa homossexual? A saída do armário
é possível sem que o sujeito seja desqualificado, assediado, injuriado, violentado, ameaçado?
Para além da bonita narrativa que toca o afeto entre dois rapazes gays, há dois
apontamentos que gostaria de fazer: a introdução do elemento religioso, mais precisamente
o cristianismo: “Preocupou o menino era cristão, desistiu de conversar sorriu, saiu [...]”
(RODRIGUES, 2014, p. 17). Por quais razões o menino desistiria da aproximação com o ruivo?
Por supor que o deus dos cristãos (leia-se fiéis) reprovaria qualquer atitude homossexual, o que
é explicado pelo fato de que, numa sociedade como a brasileira, o imaginário, a cosmogonia,
a cultura, estão pautados/construídos por elementos judaico-cristãos e, com eles, todos
os efeitos que isso implica. O constante assédio, as narrativas que alocam a comunidade
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LGBT num espaço de abjeção, a ideia de “cura gay”, empreendidos, sobretudo, por religiões
cristãs, colocam em alerta os que pertencem a uma orientação sexual estigmatizada ou os
que empreenderam uma transformação de gênero. Para religiosos fundamentalistas, os
gays, embora a homossexualidade tenha sido excluída das patologias de transtorno mental
pela Associação Americana de Psiquiatria da listagem de doenças em 1973, são “doentes”,
precisam de “cura”. Saberiam alguns líderes religiosos conservadores e fundamentalistas que
narrativas estigmatizadoras vociferadas nos púlpitos de suas igrejas são geradoras de um
ódio estrutural em relação à comunidade LGBT? Outro dado importante é o modo como a
deidade está grafada. A palavra “deus” figura no conto de duas formas diferentes, uma com
“d” minúscula e outra com “D” maiúscula. O menino que foge, o ameaçado de morte, grafa
com minúscula: “Era ruivo meu deus era de longe. Era pelo menos de fora” (RODRIGUES,
2014, p. 17 – grifo meu). Já o ruivo: “[...] vó da Irlanda por acaso de Deus” (RODRIGUES,
2014, p. 17 – grifo meu), evidenciando, desta forma, o posicionamento das duas personagens
em relação à deidade e o modo como se relacionam com ela.
O segundo elemento a ser apontado diz respeito à constante vigilância social em relação
aos corpos dissidentes da heteronormatividade: os que de uma forma ou outra são impelidos
a um silenciamento de suas práticas sejam elas amorosas e/ou o modo como estetizam o
corpo, ou, ainda, pelos gestos corpóreos, falas, etc.: “Olhou em volta ninguém me olha [...]”
(RODRIGUES, 2014, p. 18). Por mais que o lugar não indicasse perigos para os homossexuais,
há uma reserva, uma preocupação em relação à concretização pública do desejo/afeto.
O menino que chegou fugido do assédio, da violência, de uma ameaça de morte, quer se
certificar de que o olhar social, sempre pronto a exigir punição e um mundo moralizado, não
os vigia. Na esteira destas proposições, é possível intuir que pessoas LGBTs estão sempre
em estado de alerta por uma possível violência de ódio a qual estão potencialmente sujeitas.
Isto pode ser explicado pelo fato de que, de acordo com a TGEU1, em 2019 o Brasil seguiu
ocupando o primeiro lugar no ranking mundial em assassinatos de indivíduos transexuais. É
importante apontar para o fato de que o Brasil mata mais esses indivíduos do que países onde
a homossexualidade é considerada crime de desobediência judicial.
Escrevi acima que nem tudo é dor e sofrimento nas narrativas de Carol Rodrigues, no
entanto, um leitor mais desavisado sofrerá alguns solavancos que somente os bons textos
literários produzem. O leitor de “Onde acaba o mapa”, que acompanha os sucessivos eventos
do “menino jurado”, entra com ele numa espécie de carrinho de montanha russa. Os altos
e baixos com os quais o protagonista precisa lidar de um instante a outro causam um efeito
desnorteador não apenas nas personagens, mas também nos leitores. Depois do encontro do
protagonista com o ruivo e do suposto desaparecimento deste, há um reencontro entre eles:

Você tá bem? Cadê você sumiu na areia. Minha tia. Que tem a tia? A minha tia
morreu. Foi de quê, foi de velha, sinto muito, quem fala assim, não sei o que falar,
fala nada, falo o quê, me beija, beijo nada você sumiu, tia morreu, e daí avisava,

1
TGEU – ONG Trangender Europe. De acordo com o dossiê elaborado por este organismo, desde 2008 o Brasil
lidera o ranking mundial em assassinatos contra travestis e transexuais. Disponível em: https://tgeu.org/tmm-
update-trans-day-of-remembrance 2019/. Acesso em: 28 abr. 2020.
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como? Se tudo que eu sabia de você era que veio de cima do mar? Beijaram agora
um beijo índio, a boca aberta, deixando o todo da língua pra agora.
Nisso, três quatro rapazes, um grupo sai de um carro sai gritando sai correndo
dizem corre seus viados se não querem morrer e morrer hoje. Menino índio
se comprime todo, tava jurado, tava mesmo, importa não o estado, o vilarejo,
jurado assim pra sempre, é, fazer o quê. Já rezava uma ave nossa enquanto o
ruivo disfarçava (RODRIGUES, 2014, p. 21–22).

O reencontro entre as duas personagens se dá em via pública, não apenas o encontro,


mas também o beijo intenso (beijo índio) empreendido. A troca de afetos, por ser na
rua, publicizando a homossexualidade, pode ser entendida, aqui, como a saída voluntária
do armário pela segunda vez entre eles. Este gesto declaratório em relação ao desejo
“inapropriado” desperta o ódio de alguns rapazes, que os ameaçam de morte. O menino
que veio fugido de cima do mar novamente é assediado, injuriado, violentado, ameaçado
de morte. É importante pensar na questão do ódio e na violência que ele gera em relação
aos corpos gays. Esse imaginário, com raízes muito profundas sustentadas pelo patriarcado
e pela estrutura social cis-heterossexual-branca-média, confere privilégios a determinados
sujeitos sociais em detrimento de outros.
O menino que foge vem de uma cidade pequena – “Não fazia bem um moço culto beijar
inculto no cu no mundo” (RODRIGUES, 2014, p. 15) –, e depois se aloca em outra, numa
cidade turística, com pessoas de vários lugares, o que a torna mais cosmopolita, porém, tanto
em uma como em outra cidade o menino não passa incólume à homofobia. Não há um lugar
específico para a lgbtfobia. O que existem são territórios fóbicos. De acordo com o dossiê
desenvolvido pela Associação de Travestis e Transexuais – ANTRA, São Paulo, a maior
capital do Brasil, apresentou em 2019, um aumento de 50% em assassinatos de pessoas trans
em relação a 2018.
É urgente a construção de espaços mais progressistas, onde todos os indivíduos, sem
exceção, possam se movimentar de forma democrática nos espaços sociais. O que seria a
construção de espaços mais democráticos? Uma mudança de paradigma no pensamento
em relação à comunidade LGBT. É urgente uma mudança cultural que, segundo penso,
começaria a partir de uma educação que elucidasse essa comunidade, a tirasse das sombras,
do silenciamento. Conhecer esses sujeitos, saber quem são, o que fazem, o que sentem, o que
pensam, o que desejam, como se movimentam, talvez seja o primeiro passo para uma atitude
mais democrática e justa com quem historicamente foi/é marginalizado.
No conto de Carol Rodrigues a personagem Nestor pode ser entendido metaforicamente
como esse espaço democrático e progressista, onde todas as pessoas têm direito ao livre
trânsito nos espaços sociais, sem passar por injúrias, assédios, violência. O padeiro que, após
tomar conhecimento sobre a condição homossexual do “menino jurado”, o ampara e impede
que ele seja violentado.

O seu Nestor que olhava tudo entrou na van, que trazia o pão, e buzinou, muitas
vezes, atropelando quase o grupo ameaçante. Com filho meu ninguém põe banca
teus pilantras, e gritava a mão buzina um cortador de queijo na outra, corto
tudo teus miolos. O grupo corre entra no carro e sai canta pneu. O menino
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olha espantado envergonhado seu Nestor diz fica calmo eu tô aqui pra tu
(RODRIGUES, 2014, p. 21–22).

Para além da ação de proteção e justiça de Nestor, é interessante notar que a sexualidade
do “menino jurado”, ou “filho novo”, em nada interfere nos afetos do padeiro. Ele não faz
qualquer tipo de arguição ou comentário em relação à orientação sexual do menino, senão
manter um posicionamento de ajuda e amparo. Para o pai-padeiro, os usos que a personagem
faz do próprio corpo diz respeito à ordem do privado: “E nisso tudo seu Nestor não queria
saber, nenhum detalhe nem sinal, só queria saber do filho novo viver muito viver bem
quanto puder” (RODRIGUES, 2014, p. 22).

Outros horizontes, outras paragens

Marisa Lajolo, crítica literária e júri do Premio Jabuti, afirma, na contracapa de Sem
vista para o mar, que o livro de Carol Rodrigues está construído a partir de um cuidadoso
trabalho de joalheria em relação à linguagem; que nele os sentidos são imprevistos, como
as personagens também o são. E, o que considero mais importante, Lajolo é categórica ao
anunciar que estes contos tratam de personagens com as quais a sociedade em geral cruza
todos os dias. Rodrigues ficcionaliza, então, as pessoas que povoam o mundo empírico, elas
saltam do mundo factual e se alocam no ficcional. É uma literatura com um posicionamento
claramente político, e mais, voltada para sujeitos específicos: aqueles que historicamente
estiveram/estão alijados – e o que é pior, com o aval do Estado-nação – das práticas e projetos
democráticos propostos para os cidadãos.
Carol Rodrigues, em seu Sem vista para o mar, afirma, num gesto ardente por democracia,
que há outros modos, outras possibilidades, outras formas de convivência, aceitação e
respeito em relação ao outro marginalizado. Indica, ademais, que é possível a construção de
territórios democráticos, onde o preconceito, o preconceito de classe social, o racismo, etc.
podem ser destronados e, desta forma, a sociedade pode começar a construir outros saberes,
outras perspectivas democráticas, outros desejos ou, conforme escreve a própria autora, é
possível outro “mapa, agora um mapa grande, um mapa mundi” (RODRIGUES, 2014, p. 23)
onde caibam todos os sujeitos e seus diferentes afetos.

Agradecimentos

Este texto está dedicado para meus/minhas alunxs da disciplina “Literatura e Estudos de
Gênero” (2019), até então inédita na UFMS, por encontrarmos, em conluio, um lugar para
nossas inquietações e caminharmos intelectual e afetivamente.

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NANTES, F. A. The escape as resistance and search for new horizons in Onde acaba o mapa,
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20 abr. 2007.

Recebido em: 28 abr. 2020


Aceito em: 23 mai. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Performativo e subversão em Acenos e afagos,
de João Gilberto Noll

MARIA CLÁUDIA RODRIGUES ALVES*


M A R C U S V I N I C I U S C A M A R G O E S O U Z A **

RESUMO: A partir da análise de Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll, procurou-se
demonstrar as subversões provenientes dos atos do narrador quanto ao discurso hegemônico
sobre o gênero sexual. As críticas sobre as considerações de Austin sobre os atos de fala, por meio
da leitura de Derrida (1991) e Butler (2016), sob a interpretação de Culler (2000), Nascimento
(2001) e Rodrigues (2012), mostram a relação do performativo com a linguagem literária como
um discurso parasitário, citacional e iterativo e, por consequência, capaz de instalar a transgressão
das ideias no centro da discursividade, subvertendo tanto a ideia de gênero sexual quanto a própria
ideia de linguagem literária. Busca-se enumerar as subversões do narrador quanto à questão de
gênero e discursividade.

PALAVRAS-CHAVE: Acenos e afagos; João Gilberto Noll; Performatividade; Subversão.

ABSTRACT: In our reading of Noll’s Acenos e afagos (2008), we sought to highlight the
subversions arising from the narrator's actions in relation to the hegemonic speech about gender.
The criticism of Austin's ideas on speech acts, through the readings of Derrida (1991) and Butler
(2016), as interpreted by Culler (2000), Nascimento (2001) and Rodrigues (2012), shows that the
relationship between the performative and the literary language is that of a parasitic, citational
and iterative discourse. Consequently, it is able to install the transgression of ideas at the core of
discourse, therefore subverting both the idea of sexual gender and that of literary language. Our
considerations will point out the subversions of the narrator when dealing with gender and his
discourse.

KEYWORDS: Acenos e afagos; João Gilberto Noll; Performativity; Subversion.

* Departamento de Letras Modernas –Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP –
15054-000 – São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. E–mail: rodrigues.alves@unesp.br
** Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP – 15054-000 – São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. E-mail: profmarcuss@gmail.com
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Performativo: problematização geral

A conceituação da subversão para a leitura de Acenos e afagos (2008), de João Gilberto


Noll, será baseada nos problemas em torno do performativo tratados por Jacques Derrida
(1991) e Judith Butler (2016) sobre as teorias de John Langshaw Austin. As explicações da
teoria de Austin dos atos de fala neste artigo desenvolvem-se com a leitura de Jonathan
Culler, em seu artigo “Philosophy and Literature: the fortunes of the performative” (2000),
e de Evandro Nascimento, no livro Derrida e literatura: “notas” de literatura e filosofia nos
textos da desconstrução (2001).
Segundo Culler (2010), Austin dividiu os enunciados em dois tipos: constativos
e performativos para demonstrar na filosofia da linguagem que as declarações estão para
além de uma verificação entre serem verdadeiras ou falsas. Os enunciados constativos
realizam uma declaração, descrevem algum estado de coisas e são verdadeiros ou falsos. E os
enunciados performativos, como outro tipo de enunciado, não têm como base a dicotomia
verdadeiro/falso, pois realizam a ação à qual se referem. Essa diferenciação é problemática,
pois cria uma outra dicotomia: “esses enunciados performativos não são nem verdadeiros
nem falsos; eles serão, dependendo da circunstância, apropriados ou inapropriados, ‘felizes’
ou ‘infelizes’, na terminologia de Austin”1 (CULLER, 2000, p. 504 – tradução nossa). Com a
possibilidade dos enunciados performativos poderem se realizar ou não, verifica-se na teoria
de Austin uma contradição referente à questão de os enunciados constativos poderem ser
performativos: “em resumo, Austin começa de uma situação em que os performativos são
vistos como um caso especial de constativos – pseudo-declarações – e chega à perspectiva
de que os constativos são um tipo particular de performativo”2 (CULLER, 2000, p. 505 –
tradução nossa).
O problema geral sobre estes enunciados seria que para o sucesso do performativo é
necessário um “contexto total” para a sua realização: a intenção de quem fala e as circunstâncias
apropriadas: “a argumentação se desenvolve em torno do desacordo entre a convenção que
cerca o enunciado e a intenção real do interlocutor, baseada em sua sinceridade efetiva”
(NASCIMENTO, 2001, p. 150 – grifo do autor). A necessidade de tratar da intenção do
enunciador para criar as condições necessárias para o sucesso da ação discursiva leva Austin
à análise mais específica, dividindo o enunciado em três tipos de aspectos ou dimensões:
locutórios, ilocutórios e perlocutórios: Assim, proferindo a frase ‘eu prometo’ é um ato
locutório. Ao realizar o ato de proferir essa sentença sob certas circunstâncias, realizarei o
ato ilocutório de prometer e, finalmente, prometendo posso realizar o ato perlocutório de
dar garantias de realizá-lo, por exemplo3 (CULLER, 2000, p. 506 – tradução nossa).

1
No original: “These performative utterances are neither true or false; they will be, depending on the
circumstances, appropriate or inappropriate, “felicitous” or “infelicitous,” in Austin’s terminology” (CULLER,
2000, p. 504).
2
No original: “In brief, Austin starts from a situation where performatives are seen as a special case of constatives
- pseudo-statements - and arrives at a perspective from which constatives are a particular type of performative”
(CULLER, 2000, p. 505).
3
No original: “Thus uttering the sentence ‘I promise’ is a locutionary act. By performing the act of uttering this
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Um enunciado sob três dimensões aparentemente deixa claro para Austin a intenção
do enunciador, entretanto o problema continua o mesmo: ainda existe a possibilidade de
falha dos atos ilocutórios.
Além da diferença entre o constativo e o performativo e das três dimensões dos
atos, existem outras considerações de Austin, exploradas pelos seus críticos, para poder
ampliar o horizonte de uma teoria geral da linguagem. Culler (2000), ao tratar da relação
da literatura com o performativo mostra que Austin excluiu os enunciados literários de suas
considerações, “o relato sobre os performativos de Austin, longe de ter a literatura em vista, a
exclui explicitamente. Sua análise, ele explica, aplica-se somente a palavras ditas seriamente”4
(CULLER, 2000, p. 507 – grifo do autor; tradução nossa). A literatura e qualquer discurso
dito não seriamente para Austin deveriam ser excluídos da teoria geral para a sustentação
da ideia de sinceridade e criar as condições necessárias para o sucesso do performativo. A
literatura ao não ser um enunciado sincero por não possuir o contexto total requerido, acaba
transformada numa citação de um discurso sério ou como Austin definiu: um parasita da
linguagem (DERRIDA, 1991, p. 367).
Em relação às três dimensões dos atos de fala, Nascimento (2001) mostra que a teoria
de Austin sai do campo puramente linguístico, não dependendo assim do puramente verbal,
“pois um ato de fala é o resultado de uma convenção bem mais ampla do que o componente
linguístico acaso identificado pelos gramáticos” (NASCIMENTO, 2001, p. 158). A tripartição
dos atos seria uma abstração, uma vez que todos os atos são locutórios e ilocutórios ao mesmo
tempo e “a preocupação recai finalmente na força ilocutória, objeto da última conferência
[de Austin], que deve estar presente em qualquer tipo de discurso, donde a necessidade de
estabelecer a tipologia dessa força ou desse valor gerais” (NASCIMENTO, 2001, p. 158). A
força ilocutória dos enunciados, que está para além do puramente linguístico, buscou no
estabelecimento de um valor para os atos ilocutórios as condições para a sua realização. E é a
partir dos problemas sobre a literatura ser um parasita da linguagem e da força ilocutória que
Jacques Derrida (1991) e Judith Butler (2016) iniciam as suas reflexões sobre o performativo.

Derrida: o parasita da linguagem

O problema do performativo foi explorado por Derrida em “Assinatura acontecimento


contexto” (1991), palestra proferida no ano de 1972, a partir das considerações de Austin
sobre o performativo, o ato ilocutório e a possibilidade de falha dos performativos que, em
sua opinião, não deveriam ser tratados como exceção ou excluídos dessa teoria como fez
Austin, pois a possibilidade de falha dos atos é a própria possibilidade para uma teoria geral
da língua. Nos enunciados vazios ou não sérios, para Austin, “o critério de verificação seria

sentence under certain circumstances I will perform the illocutionary act of promising, and finally, by promising
I may perform the perlocutionary act of reassuring you, for example” (CULLER, 2000, p. 506).
4
No original: “Austin’s account of performatives, far from having literature in view, explicitly excludes literature.
His analysis, he explains, applies only to words spoken seriously” (CULLER, 2000, p. 507).
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substituído pelo de performatividade” (NASCIMENTO, 2001, p. 150), ou seja, não se trata de
ser verdadeiro ou falso, mas sim feliz ou infeliz, apropriado ou inapropriado, bem-sucedido
ou fracassado. A crítica de Derrida concentra-se na possibilidade de falha de um performativo,
“está implicada na lei mesma que torna um performativo realizável” (NASCIMENTO, 2001,
p. 151) porque é preciso levar em consideração não somente o contexto, mas a própria
enunciação. A partir dessas premissas, Derrida vai trabalhar a questão do parasitismo, da
iterabilidade, da citacionalidade e da intenção dos atos de fala.
O ato de Austin ao excluir os enunciados não sérios de sua teoria ao chamá-los de
parasitas dos enunciados, para Derrida, não é acidental:

Austin exclui, portanto, como tudo o que ele chama sea-change, o “não-sério”, a
“parasitagem”, o “estiolamento”, o “não-vulgar” (e com toda a teoria geral que,
ao dar conta disso, não seria já comandada por estas oposições), aquilo acerca do
qual ele reconhece todavia como a possibilidade aberta a qualquer enunciação.
É também como um “parasita” que a escrita foi sempre tratada pela tradição
filosófica, e a aproximação não tem aqui nada de ocasional (DERRIDA, 1991,
p. 367).

Entender isto é duvidar de uma crença na pureza da linguagem e do querer-dizer,


ou seja, na intenção do enunciador, já que os enunciados parasitários seriam os que foram
citados, perdendo sua seriedade por não estarem num contexto total esperado por Austin.
Entretanto, para Derrida, essa capacidade do discurso de ser retirado de algum contexto é
própria da linguagem, uma vez que ele significa algo mesmo sem esse contexto, mesmo sem
essa sinceridade do enunciador ou mesmo sem a presença do próprio enunciador. É, por
exemplo, o que faz a literatura ao criar um mundo ficcional e legível: mesmo que o escritor
tenha morrido, seu livro continua produzindo sentido. Nascimento (2001) diz que a força
ilocutória não é controlada de maneira absoluta, é no máximo um dos efeitos desse possível
sistema de intencionalidade:

É a iterabilidade que permite entender a intencionalidade, e não o contrário, ou


seja, não é esta que enquadra legitimamente aquela como índice do “estiolamento”
da linguagem. Refletir, citar, recitar, em suma, são funções parciais de uma
iterabilidade geral através da qual a força atua transmitindo a marca, o signo,
a frase, o enunciado etc. Um enunciado jamais poderia obter sucesso em sua
formulação se não repetisse um enunciado codificado, fazendo-se segundo um
modelo iterável e sendo identificado como citação” (NASCIMENTO, 2001, p.
159-160 – grifo do autor).

Assim, o performativo entendido como passível de falha e sucesso ao mesmo


tempo faz com que o enunciado ganhe uma profundidade mais ampla, pois os enunciados
acontecem diante de uma eventualidade. Portanto, um ato não é performativo por realizar
uma ação, mas pela iterabilidade dessa ação em diversos eventos. A eventualidade só realiza
a virtualidade de uma promessa renovada a cada ato de fala. Para que a possibilidade de
uma marca exista é preciso pensar na possibilidade da condição de sua impossibilidade: “a
partir da lógica (gráfica) própria à iterabilidade, nenhum ato de fala pode ser performado
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sem que logo seja pressentido ao mesmo tempo como falho e bem-sucedido, não havendo
decisão simples entre os opostos” (NASCIMENTO, 2001, p. 162 – grifo do autor). Desse
modo, Nascimento consegue reconhecer a virtude do debate de Austin para a compreensão
da linguagem: “sem dúvida, uma das contribuições mais decisivas de Austin foi a de ter
deslocado a teoria da linguagem do horizonte judicativo (falso/verdadeiro), desconsiderando
até mesmo o problema do erro gramatical stricto sensu, em proveito da força (ilocutória)”
(NASCIMENTO, 2001, p. 162). Derrida vai mais longe, chega a determinar a leitura dos
problemas do performativo como uma possibilidade aberta à desconstrução:

Não assistimos a um fim da escrita que restauraria [...] uma transparência ou


uma imediatez das relações sociais; mas antes ao desdobramento histórico cada
vez mais poderoso de uma escrita geral de que o sistema da fala, da consciência,
do sentido, da presença, da verdade etc., constituiria apenas um efeito e como tal
deve ser analisado (DERRIDA, 1991, p. 371-372).

Se o sistema validador da verdade dos enunciados, ou seja, do seu poder judicativo, é


apenas um efeito de um sistema mais geral, é compreensível que a linguagem, antes de ser
um efeito social pelo fato de um falante transportar o significado de sua fala a seu ouvinte
intencionalmente, é somente um enunciado e, sendo assim, torna possível a análise de cada
efeito possível dessa enunciação, seja ele verdadeiro ou falso, sério ou não sério, bem-sucedido
ou falho. Como Derrida (1991) mesmo explica ao final de sua palestra, essa análise é a própria
desconstrução agindo no logocentrismo ou, como se deseja aqui, nos discursos hegemônicos.

Butler: citação e violência

Judith Butler é outra teórica que utilizou as considerações de Austin e também de Derrida
para teorizar o conceito de gênero performativo. Esta análise, a partir dos comentários de
Culler (2000) sobre a necessidade de Butler em tratar da noção da identidade feminina e da
leitura do gênero como uma produção cultural e social, sem negar as questões biológicas,
propõe entender o gênero como performativo, no sentido de que não é o que alguém é,
mas o que alguém faz. O gênero, então, seria o ato de alguém, “você torna-se um homem ou
uma mulher por atos repetidos, os quais, como nos performativos de Austin, dependem de
convenções sociais, caminhos habituais de fazer alguma coisa na cultura”5 (CULLER, 2001,
p. 513 – tradução nossa).
Culler (2001) mostra que, nas primeiras considerações teóricas de Butler nas quais ela
trata das questões de gênero, a ideia do performativo confunde-se com a de performance
teatral. Ser homem ou ser mulher é interpretar um papel, o que dá uma ideia de que é possível
escolher o gênero. Já em um outro desenvolvimento das mesmas questões, Butler mostra
que não há um sujeito já constituído devido ao gênero que escolhe, ele é sobredeterminado

5
No original: “you become a man or a woman by repeated acts, which, like Austin’s performatives, depend on
social conventions, habitual ways of doing something in a culture” (CULLER, 2000 p. 513).
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como homem ou mulher: um médico dizer “é um menino” ou “uma menina” no momento do
nascimento não é um enunciado constativo, mas o início de uma série de citações de gênero.
Butler também demonstra que a performatividade do gênero não é uma escolha, mas uma
questão de repetição/iterabilidade da norma da qual o gênero é constituído. A norma seria
uma prática obrigatória relacionada a um gênero e, mesmo assim, pode não funcionar como
esperado. E a possibilidade dessa prática não ser apropriada faz surgir, na proposição de
Culler, uma capacidade de resistência e mudança, mostrando a diferença entre performar as
normas de gênero e seu uso performativo, uma vez que é a citação das normas que liga a ideia
de enunciados performativos e a performatividade de gênero. Para tanto, Butler vai pensar
na violência da repetição obrigatória das normas na produção de efeitos performativos. Os
atos performativos seriam uma forma de discurso autoritário, pois ao realizarem certa ação
exercem um poder vinculante. É a questão da força ilocutória, vista mais acima. Assim, um
performativo cria a situação sob a autoridade do contexto total do falante.
Para finalizar, Culler (2001) demonstra a diferença do que está em jogo [at stake] entre
Austin e Butler na concepção do performativo em si mesmo. É clara na teoria de Butler
que a felicidade de um performativo não era um de seus objetivos, ela não quer mostrar
como performatizar apropriadamente a feminilidade, ou seja, que para ser uma mulher é
necessário preencher todas as condições dessa ideia social, pois “se é uma teoria que aloca
o sucesso na perturbação das normas de gênero, então parece uma diferente concepção do
performativo”6 (CULLER, 2000, p. 516). Assim, entre os teóricos parece haver dois tipos
diferentes de atos. Para Austin, os atos parecem ser singulares, já que podem ser cumpridos
de uma vez por todas ao encontrarem as condições para serem realizados. Já na teoria de
Butler, em contraste, “nenhum ato em si é ocasional. Eu me torno um homem, se é que é,
apenas através da repetição massiva e diária de procedimentos convencionais”7 (CULLER,
2000, p. 516 – tradução nossa).

A subversão dos enunciados

Em “Performance, gênero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de J. Derrida”,


Rodrigues (2012) recupera o pensamento de Butler sobre a questão do performativo a partir
do debate com a desconstrução de Derrida:

Butler vai tentar demonstrar que a oposição sexo/gênero estaria inscrita na longa
tradição de oposições metafísicas que orientaram o pensamento ocidental. Para
Butler, a desconstrução da concepção de gênero seria a desconstrução de uma
equação na qual o gênero funcionaria como o sentido, a essência, a substância,
categorias que estão dentro da longa tradição metafísica de hierarquias
(RODRIGUES, 2012, p. 149).

6
No original: “if her is a theory that locates success in the perturbation of gender norms, that seems a different
conception of the performative” (CULLER, 2000, p. 516).
7
No original: “no act in itself brings something about. I become a man, if at all, only through massive, daily
repetition of conventional procedures” (CULLER, 2000, p. 516).
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Para Rodrigues (2012), o sexo é natural e o gênero é socialmente construído e reproduz
um modelo, o binômio sexo/gênero é tão arbitrário como o significante/significado, tantas
vezes pensado pela desconstrução. A partir disso, Rodrigues (2012) entende que “não
existe uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, e que a identidade é
performativamente constituída” (p. 150 – grifos da autora). Ao explorar a ideia de performance,
Rodrigues (2012) analisa:

Butler quer discutir o corpo não como “natural”, mas como tão cultural quanto o
gênero, de tal forma que problematize os limites de gênero e tome como cultural
a vinculação entre sexo e gênero. Com a proposição de gênero como performance,
Butler também vai solapar o peso metafísico da identidade (de gênero). Para ela,
não há identidades que precedam o exercício das normas de gênero, é o exercício
mesmo que termina por criar as normas. É a repetição das normas de gênero que
promove isto, que no pensamento da desconstrução chamamos de “duplo gesto”.
A repetição das normas como performances se dá sempre ao mesmo tempo em
que se dá a possibilidade de burlá-las, de fazê-las nem verdadeiras, nem falsas (p.
150-151 – grifos da autora).

Apesar de Rodrigues confundir performance e performativo, interessa o fato do


“burlar” pela iteratividade, essa ideia do nem/nem é frequente nas formulações de Derrida, é
o jogo da diferença nas palavras. Nem verdadeiro, nem falso, nem masculino, nem feminino,
nem apropriado, nem inapropriado, a ideia é o deslocamento das formulações binárias,
colocando-as num entre-lugar:

Ao pensar o gênero como performativo, Butler indica que não há essência


ou identidades nos signos corporais, e propõe pensar sobre três dimensões
contingentes da corporeidade: sexo anatômico, aquele dado pela biologia;
identidade de gênero, aquela que Beauvoir tratou como uma construção social;
e performance de gênero, sendo o elemento do performativo, aqui, aquilo
que perturba as associações binárias sexo/gênero, sexo/performance, gênero/
performance, e aponta para o caráter imitativo de todo gênero. (RODRIGUES,
2012, p. 151 – grifo nosso).

O performativo que desejava pacificar os problemas da linguagem, da filosofia e


dos enunciados “perturba as associações binárias”. Austin, como visto, tentou purificar a
possibilidade da linguagem sem considerar as suas impossibilidades, sem considerar o grande
problema do parasita da linguagem, a citação e a iteração.

Como os atos de fala, os atos de gênero - ou o que Butler chama de “estilos de


carne” - seriam performativos que estariam fora do regime falso/verdadeiro e
apontariam para a fragilidade da normatividade de gênero ao explicitarem que
a norma só pode funcionar como uma estrutura de citação e repetição contínua.
Corpos performam gêneros, e o fazem pela repetição, sem nunca serem idênticos
a si mesmos (RODRIGUES, 2012, p. 152 – grifo da autora).

O ressaltado aqui é a ideia da repetição em diferença. E ela conclui: gênero passa a ser,
assim, uma repetição de normas que já não retornam mais a um gênero original [...] mas se
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dá pela repetição de normas que podem ser transgredidas, imitadas, parodiadas, explicitando
a arbitrariedade do par sexo/gênero (RODRIGUES, 2012, p. 153 – grifo da autora).
Essa ideia da existência de um modelo de gênero “original” imitado é explicada por
Butler (2016) por meio da paródia:
A noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um
original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da
própria ideia de um original; assim como a noção psicanalítica da identificação
com o gênero é constituída pela fantasia de uma fantasia, pela transfiguração de
um Outro que é desde sempre uma “imagem” nesse duplo sentido, a paródia do
gênero revela que a identidade original sobre a qual se molda o gênero é uma
imitação sem origem (BUTLER, 2016, p. 238 – grifo da autora).

Entendemos que a imitação sem origem equivale à noção de repetição em diferença.


A iterabilidade como um fundamento geral da língua é a contribuição de Derrida para a
questão do performativo enquanto possibilidade que inclui nos atos de fala até mesmo o
seu parasita. A questão de o performativo ser repetido/iterado em diferença é crucial para
o entendimento do gênero; se ele é constituído culturalmente, uma repetição infeliz não
exatamente idêntica cria a paródia. A repetição infeliz não analisa sua intenção própria,
avalia somente se a repetição funciona ou não: é o performativo infeliz, o performativo
sem contexto, o performativo reiterado, citado sem aspas. A paródia não busca felicidade
ou infelicidade em sua performatividade, entende simplesmente ser preciso subverter a
força ilocutória dos discursos sobre o gênero. Assim, em paralelo, o mesmo acontece com
a literatura, que não busca a felicidade ou a infelicidade do discurso narrativo, mas entende
ser preciso subverter a força ilocutória do discurso enquanto representação. Por exemplo:
mesmo que um autor afirme em um discurso autobiográfico contar a verdade, ele está
construindo uma paródia dessa verdade.
Assim, a transgressão dos enunciados manifesta-se de forma variada na literatura. A
imensa possibilidade de significação das figuras de linguagem como um todo demonstra
essa subversão, pois ao invés de determinar claramente, num jogo de pureza do discurso, a
intenção do autor, as figuras criam mais possibilidades de interpretação. A performatividade
dos discursos literários joga entre a felicidade e a infelicidade da criação de uma cosmovisão
da obra literária, moldando uma relação dupla com a representação ao mostrar o quanto os
discursos literários acabam tornando cada vez mais profundo o abismo que é pensar sobre a
própria linguagem.
A noção de atos de fala de Judith Butler, segundo Culler (2000), levanta questionamentos
sobre uma disfunção entre atos singulares e a iteração para a construção da ideia de literatura
como performativo:
A iterabilidade que é a condição da possibilidade dos performativos introduz
uma lacuna que põe em questão uma rigorosa distinção entre eventos singulares
e repetidos. Mas essa diferença aparente entre dois tipos de atos nos traz de
volta para o problema da natureza da literatura enquanto evento, acentuando a
distinção que estava oculta na apropriação da noção de performativo para pensar
a literatura8 (CULLER, 2000, p. 516 – tradução nossa).

8
No original: “the iterability that is the condition of possibility of performatives introduces a gap that puts in
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Ao trocar a definição de contexto total de Austin pela noção de eventualidade, Derrida
abre a possibilidade de ler a literatura sob um aspecto singular e iterado, não se esquecendo
de que essa leitura é simultânea. Por um lado, o discurso literário cumpre um ato singular e
específico criando a sua própria “realidade”. Por outro lado, já levando em consideração as
considerações de Rodrigues (2012), o discurso literário é uma repetição em diferença, torna-
se um evento, por uma massiva repetição das normas dos gêneros literários que acaba por
assumir a norma, e possivelmente, desafiando suas estruturas.

Se um romance acontece, é só porque, em sua singularidade, ele inspira a


paixão que dá vida para a forma, em atos de leituras e lembranças, repetindo
sua inflexão das convenções do romance e, talvez, afetando uma alteração nas
normas ou nas formas através das quais os leitores prosseguem para o confronto
com o mundo. Um poema pode muito bem desaparecer sem deixar rastro, mas
ele pode também traçar a si mesmo na memória e dar origem ao ato de repetição.
Sua performatividade, então, é menos um ato singular realizado de uma vez por
todas do que uma repetição que dá vida a formas que se repetem”9 (CULLER,
2000, p. 517 – tradução nossa).

Para Culler, a questão está ligada à relação entre forma e conteúdo. O conteúdo em
si é a singularidade do evento do discurso literário, aquele mundo representado é criado
como um ato ilocutório, e na sua força está a sua singularidade, mesmo que representando
certa quantidade de linguagem de uso ordinário ou social nessas considerações, isso é a força
parasitária da literatura. Quanto à forma, a iterabilidade do performativo constitui-se por
meio dos gêneros literários e suas normas e aplicabilidades. Veja-se o caso do romance, por
exemplo, que é discutido desde o Romantismo enquanto forma literária, só para citar um
momento dessa discussão. O problema, que não deixa esse debate fechar-se em si, é o fato
de o romance ser um gênero tão anamórfico e plural, por não seguir as óbvias regras de
construção dos outros grandes gêneros, só para citar à guisa de exemplo, como a epopeia.
Culler (2001), como visto acima, entende também que a literatura tem dentre as suas funções
um efeito social em relação ao leitor por trazer a literatura para o confronto com o mundo.
O gesto da leitura não deixa de afetar o leitor, entenda ele da performatividade ou não do
romance. Isso seria o mesmo que perguntar: que usos o leitor fará da leitura? A maneira
como o leitor recebe a obra é algo que o autor, o crítico ou a literatura de um modo geral
não podem e nem devem controlar. Assim, o que aqui se propõe é entender as subversões
dos discursos como uma proposta de leitura de Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll,

question a rigorous distinction between singular events and repetitions. But this apparent difference between
two sorts of acts brings us back to the problem of the nature of the literary event, accentuating a distinction
that was concealed in the appropriation of the notion of performative for thinking about literature” (CULLER,
2000, p. 516).
9
No original: “If a novel happens, it does so because, in its singularity, it inspires a passion that gives life to
these forms, in acts of reading and recollection, repeating its inflection of the conventions of the novel and,
perhaps, effecting an alteration in the norms or the forms through which readers go on to confront the world.
A poem may very well disappear without a trace, but it may also trace itself in memories and give rise to acts of
repetition. Its performativity, then, is less a singular act accomplished once and for all than a repetition that gives
life to forms that it repeats” (CULLLER, 2000, p. 517).
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demonstrando o quanto as diversas relações entre os performativos servem como uma
maneira de criticar a obra, principalmente a partir da proposta de pensar os enunciados
como efeitos passíveis de análise, ou seja, o gesto usual da desconstrução dos discursos
hegemônicos ou do logocentrismo.

As subversões de Acenos e afagos

A análise de Acenos e afagos (2008) tem como objetivo ressaltar da narração as sequências
narrativas em que o narrador defronta-se com a questão entre ser homem e ser mulher
para exaltar as diversas subversões no percurso narrativo. Antes de começar a análise desses
excertos específicos é preciso evidenciar a fábula da narrativa de um modo amplo para
demonstrar como o narrador concebe a diferença entre ser homem e ser mulher.
O romance constitui-se de um único grande parágrafo e a diegese pode ser dividia
em duas sequências narrativas a partir do conflito dramático (FRANCO Jr., 2003, p. 34) da
obra: o amor platônico do narrador pelo personagem denominado engenheiro. A divisão
em duas partes da narrativa leva em consideração os motivos geradores da diegese, a saber:
a relação do narrador com o engenheiro; e a transformação do narrador de um homem
em uma mulher por meio do desejo do engenheiro. A partir desses motivos, a fábula dá-
se, num primeiro momento, com o narrador construindo esse amor platonicamente pelo
personagem engenheiro, e, num segundo, concretizando esse amor possível por meio da
transformação. Por fim, o ponto considerado como divisor dessas duas sequências narrativas
é a morte e o renascimento do narrador.
Na relação do narrador com o engenheiro, na primeira sequência é construída a
ideia platônica de amor: o narrador conhece esse personagem desde a infância em Porto
Alegre; eles tornam-se amigos e o desejo do narrador é amplamente revelado durante todo o
percurso e sofrido de uma forma significativa quando ele é abandonado pelo engenheiro, o
que inclusive é a causa da morte do narrador. Após a morte do narrador, a segunda sequência
inicia-se, uma vez que o engenheiro retorna e ressuscita o narrador chamando-o a viver com
ele no Mato Grosso, formando assim a concretização desse amor.
Já com relação à transformação, na primeira parte, o narrador é um homem casado e
com um filho e, apesar de suas experiências sexuais com outros homens, esse fato só afirma
a fluidez da orientação sexual dos narradores criados por Noll, não somente nesta obra, mas
em quase todos os seus romances, tornando uma classificação quanto à orientação sexual
desnecessária. A partir da morte e ressurreição, o narrador sente-se obrigado, sem ser de fato
obrigado, a tornar-se uma mulher para poder concretizar o amor pelo engenheiro.
A partir desses motivos geradores da diegese é possível pensar o quanto o conflito
dramático é, de fato, o amor pelo engenheiro. É esse personagem quem leva o narrador
para a morte, é ele quem ressuscita o narrador, é ele quem obriga o narrador a tornar-
se uma mulher. Entretanto, é preciso pensar na questão do foco narrativo do romance,
principalmente pelo fato de esse romance, em específico, tratar a narrativa não como uma
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representação da realidade, mas que leva às últimas consequências a própria narrativa.
O narrador é autodiegético/protagonista (FRANCO Jr., 2003, p. 41-42) e possui uma
consciência de que seu ato de narrar trata-se somente de narrativa, ou seja, não é um escritor
que deseja criar um efeito de realidade ou verossimilhança do narrado para o leitor. Dessa
forma, ao determinar que o engenheiro é o causador de todos os fatos enumerados acima, há
uma performatividade do narrador diante da sua consciência do narrado. A ideia de obrigação
é debatida de forma irônica em todo o romance ao referir-se ao casamento, à relação sexual,
ao desejo e aos papéis sociais e sexuais preexistentes, ou sem origem, questionados durante
todo o percurso pelo narrador.
Podem-se dividir as cenas selecionadas para a análise em três grandes conjuntos
temáticos: 1) das subversões do narrador diante dos papeis masculinos e femininos por meio
de ironias e alegorias; 2) da obrigatoriedade de sua transformação ou uma força ilocutória
agindo sobre a sua corporalidade; e 3) do corpo em transformação.
O primeiro conjunto trata das transgressões promovidas pelo narrador na discursividade
usual sobre os gêneros sexuais. Pode-se observar isso já no sumário inicial do romance, em
que o narrador rememora uma luta contra uma criança no corredor de um consultório de
um dentista na cidade de Porto Alegre. Provavelmente essa criança é o futuro personagem
engenheiro, ambos ficam excitados e descobrem o corpo um do outro. O narrador expressa
essa descoberta corporal já duvidando dos papéis usuais de gênero: “Sabíamos que o sexo
deveria ser feito entre um homem e uma mulher e que dessa luta em meio aos lençóis
se gestaria a criança, essas crianças correndo por tudo como nós.” (NOLL, 2008, p. 9). A
expressão “sabíamos” não quer dizer, no caso, “deveríamos”; além disso, a expressão utilizada
para descrever o sexo é a luta em meio aos lençóis, o que o narrador e o outro personagem
estavam performando. Esse fato fica ambíguo na última parte da citação: “essas crianças”, no
caso os dois, “correndo por tudo”. A ambiguidade desse “tudo” por meio do ato de correr,
o que se associa à ideia de percorrer tudo, pode estar vinculado à traquinagem usual das
crianças correndo por todos os lugares, mas, também, percorrendo todas as possibilidades
de vida, sejam elas sexuais ou de outras naturezas
Quando o engenheiro desaparece da vida do narrador, ao seguir viagem com um submarino
alemão na primeira sequência do romance, o narrador demonstra mais claramente o quanto
o amor que nutre pelo engenheiro é platônico, pois fica imaginando uma possibilidade de ele
reaparecer e procurando notícias sobre o paradeiro do submarino depois de seu abandono. O
desejo do narrador é tão grande e, por não saber com certeza por qual sexo o engenheiro possui
desejo, chega a cogitar a seguinte possibilidade: “Ele poderia me querer como homem, como
mulher, os dois ao mesmo tempo.” (NOLL, 2008, p. 56). Os jogos não param na segunda parte
da narrativa, em que sua transformação já está em processo – “Ali, às vezes era mais mulher
que muitas outras.” (NOLL, 2008, p. 100) –, ao deixar claro que o engenheiro seria um marido
ausente, pois sairia para trabalhar, provavelmente no tráfico de drogas, e ele performaria a
esposa que espera o marido ao portão desde que lhe trouxesse uma quantidade de dinheiro
suficiente para bancar suas vaidades, no caso, cosméticas. A performatividade de ser mais
mulher que muitas outras é a demonstração da falha das concepções de gênero.
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A força ilocutória desse enunciado falha por completo: como poderia ser mais mulher,
só por performar uma atitude feminina em debate há tanto tempo, sendo um homem
que depende desses efeitos cosméticos para ser uma mulher? Essas questões ficarão mais
claras com a relação da falsa obrigatoriedade da sua transformação, mesmo assim, temos
novamente a ironia: “Grato também pela autêntica mulherzinha que haverei de ser, seguindo
o marido com devoção e obediência. A única coisa que ultrapassava o meu tartamudear
diário e de algum modo se refinava era o sexo da noite. Isso sim servia ao coração de minhas
necessidades.” (NOLL, 2008, p. 103). A ideia de autenticidade de seu futuro enquanto
mulher, ou o modo como ele usa pejorativamente o diminutivo por causa da devoção e da
obediência, justificam-se pela relação sexual com o engenheiro. A questão gira em torno de
um fato duplamente subversivo: é um homem que se transforma aos poucos numa mulher
e, ao exercer esse entre-papel, nem homem nem mulher completos, opta ser uma mulher
construída dentro de um “padrão tradicional”. O significado de padrão tradicional torna-se
relevante nesse caso, uma vez que o narrador, na primeira parte da narrativa, constrói essa
norma possível ao descrever a personagem Clara, sua esposa. “E eu deveria naquela situação
responder pelo meu nexo feminino, afinal eu era a dona que esperava o marido vindo de
não-sei-onde.” (NOLL, 2008, p. 113). E isso era exatamente o que sua esposa fazia por ele
enquanto ele estava com outros homens, explorando as diversas possibilidades sexuais. Mais
adiante, o narrador prossegue:

Uma parte de mim gostava de ser vista como mulher, de ganhar olhares de
desejo que só um homem pode empreender diante de uma fêmea. Mas muito do
meu desejo gostava mesmo era de ser cobiçado por outro macho. Nesses casos
eu pedia para meu pau crescer, eu pedia e ele atendia, ele, o meu pau, e o cara
– mesmo que com todos os disfarces –, dava uma olhada furtiva para a minha
virilha esquerda, onde o fulano costumava ficar de prontidão para se defender de
alguma brochada traiçoeira (NOLL, 2008, p. 105).

Veja-se a construção duvidosa do fato de gostar de ser mulher. Não é uma satisfação
corporal ter um corpo feminino com todos os seus atributos, mas relaciona-se com a
função de ser desejado por outro homem. A referência ao próprio órgão genital como
“fulano” demonstra um falso desapego, pois a esperança de que o outro “broche” é a
oportunidade de o narrador exercer um papel masculino ativo nessa possível relação
sexual. Esse jogo de entender o ativo como masculino e o passivo como feminino é parte
das ironias construídas. É por isso que o narrador chega a dizer: “Eu era uma senhora quase
sem atributos para o papel.” (p. 105). O principal questionamento realizado é a utilização
do termo “papel”, trata-se de um jogo dramático. O narrador interpreta/performa esse
papel feminino sem os atributos necessários: “Eu já era mulher? Não sei, simplesmente me
adiantava para decifrar o que por natureza se encolhia nas tramas grosseiras de um tecido
barato.” (p. 107). A dúvida dessa construção de uma mulher dá-se pelo fato de ser desejada
por um homem: “Hoje eu era um homem melhor. Mesmo confuso entre o macho e a
fêmea, saciava o desejo do engenheiro todas as noites, com direito, em dias de folga dele,
a bagunças orgiásticas também pelas manhãs e tardes ensolaradas.” (NOLL, 2008, p. 110).
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A confusão torna-se o motivo do ir adiante do narrador em função do engenheiro, “E eu
sigo encarnando sua dama. Ou sua alma.” (NOLL, 2008, p. 115).
Já em transformação, o narrador perde as referências corporais e deixa-se levar pelo
tempo, sem forçá-lo para que algo aconteça. Assume uma passividade diante da transformação,
mesmo ironizando-a: “Sei que verá ser eu uma mulher com pau e que nada farei para que
se transforme em vulva. Vejo que agora o garanhão chupa o meu cacete, fazendo o papel
de uma mulher famélica. É que sou bom de piça, eu mesmo acho.” (NOLL, 2008, p. 117). A
construção com o verbo no futuro deixa clara a consciência dos procedimentos do narrador
em não forçar o processo ao não fazer nada por essa transformação. O paradoxo criado entre
“garanhão” e “mulher famélica” reforça ainda mais a questão dos papéis que o narrador vinha
construindo. Qual é o papel da mulher, qual é o papel do homem nessa dramática luta dos
gêneros e suas determinações sexuais? Ressalta-se que o “garanhão” não é o engenheiro,
mas outro personagem, o açougueiro que acompanhou o narrador até sua casa. Mesmo o
narrador performando a mulher padrão do discurso hegemônico, o desejo sexual insaciável
não cessa, o que ele fazia com a esposa na primeira parte é o que ele continua fazendo com o
engenheiro na segunda, não interessa qual papel ele assuma, finge seguir o padrão criado por
ele mesmo: “Entre ser homem ou mulher fico com os dois. E que ninguém me siga.” (NOLL,
2008, p. 122). Permanecer nesse entre-lugar, o lugar vazio de sentido ou determinações é o
desejo do narrador durante a construção da narrativa: “E eu odiaria passar pelos infernos de
uma mulher ciumenta.” (NOLL, 2008, p. 123). É como se a sua transformação o levasse para
esse lugar da necessidade de ter ciúmes, entretanto, por “odiar” passar por essa situação, não
quer vivê-la.
A ideia de construir essa mulher por meio dos padrões tradicionais toca até no papel
da maternidade: “[...] o engenheiro permanecia quieto, mamando nos meus peitinhos
descobrindo só agora a suculenta dádiva das fêmeas. Eu tratava o engenheiro como um
verdadeiro bebê.” (NOLL, 2008, p. 124). E ainda:

Eu vivia o momento com uma espécie de enlevo, por estar doando pela primeira
vez uma produção alimentícia de minha matéria carnal. Eu era uma espécie de
condutora de sua escalada na minha nova morfologia. Eu era um homem expondo
a mãe na própria pele. Sentia-me toda úbere. Meu peito alimentava o viajante.
De certa forma ele precisava mais de mim do que eu dele. De qualquer modo, se
o engenheiro me faltasse agora, a quem eu iria amamentar? Se não surgisse um
nome, que fim eu daria a essa provisão excedente? (NOLL, 2008, p. 125).

A construção da mulher-mãe dá-se pelo desenvolvimento dos seus seios e da crença de


que poderia amamentar caso tivesse um filho. O sentimento da maternidade é reforçado pelo
tratamento dado ao engenheiro como um bebê. Observe-se o campo semântico do trecho:
“dádiva”, “doando”, “condutora”, “úbere”, palavras maternais, entretanto, a construção
é interrompida de duas formas bruscas: a) o homem que expõe a mãe na pele, que faz o
narrador não esquecer ser ele a subversão dos papéis femininos; e b) ao despersonalizar
o engenheiro na figura do viajante, não há um apego maternal do narrador para com o
engenheiro; caso faltasse, ele seria substituído, afinal, é o engenheiro quem precisa mais do
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narrador, o qual necessita somente de um nome para entregar a sua “provisão excedente”.
O fato de a palavra “nome” aparecer nesse trecho da narrativa demonstra a consciência do
narrador. Além de uma provisão excedente de leite materno, outro ato criador do narrador
está afirmado: a provisão excedente de linguagem. Basta um nome, um signo, uma marca e
a narrativa da sua narrativa pela maternidade pode prosseguir.
A aproximação da morte do engenheiro faz com que o narrador comece a mudar
as suas considerações sobre o gênero: “Acudiu-me a idéia de que essa privação serviria
de merecimento para a minha alforria da condição feminina, ou mesmo masculina. Não
haveria uma terceira condição?” (NOLL, 2008, p. 155). A privação referida pelo narrador
é a fome, o cerco contra o engenheiro fechou-se, eles sabem que a polícia pode aparecer a
qualquer momento. A cozinha sem nenhum alimento seria, assim, a “alforria”, a libertação
das determinações dos papéis. Entretanto, nem para o masculino, nem para o feminino
o narrador deseja ir. A dúvida levantada sobre existir uma terceira condição, um terceiro
papel no jogo que o narrador está construindo com o sexo é uma das conduções do
narrador para a mudança dessa mentalidade dual de sua sexualidade. Assim, com a morte
do engenheiro, o narrador passa a duvidar de sua condição feminina ou masculina e a
aproveitar-se da sua condição intervalar entre papéis: “Teria que me insinuar que eu era um
homem ou uma mulher, tanto fazia. [...] Foi a primeira providência que pensei ao me ver
viúva. [...] Afinal, eu já tinha uma inteligência feminina de atravessar o coração inimigo”
(NOLL, 2008, p. 166). O inimigo é visto, aqui, não como o homem, mas como qualquer
um que dele se aproximasse, uma vez que “Eu era um outro homem hoje. Oferecendo um
corpo bem próximo da mulher.” (NOLL, 2008, p. 168). Os papéis sexuais já não estão mais
em debate na narrativa, o narrador não se sente nem homem nem mulher: “As mulheres
às vezes desertam do ato [sexual] buscando mais forças para o recomeço. Não fazia mal,
porém, que meu corpo, já dentro da condição feminina, fosse às vezes arrebatado de si
mesmo para viver a ficção de outra mulher que eu não conseguia comportar.” (NOLL,
2008, p. 176 – colchetes nossos). O narrador refere-se às mulheres como se ele já possuísse
uma outra identidade, uma terceira condição. Trata-se da questão sexual, pois o provável
assassino do engenheiro acabou de realizar o ato sexual com o narrador. A dúvida entre
o recomeço e uma nova vida ou uma nova forma de sentir prazer existe, porém ele não
consegue mais comportar essa “ficção de outra mulher” que havia criado para si para poder
atender ao engenheiro.
A mudança das atitudes do narrador diante dos papéis sexuais que performa fica mais
clara quando o centro do conflito dramático, o engenheiro, deixa de existir. As dúvidas não
cessam: “[...] não estava em condições de chegar à resposta, principalmente hoje, sozinha.
Sozinha ou sozinho? Ou voltaria à condição masculina? Apalpei-me entre as pernas, parei.
E para quem eu tinha me transformado em organismo feminino? E os outros como me
veriam?” (NOLL, 2008, p. 183). Entre o referente masculino ou feminino, qual seria o melhor
para aquela situação sem o engenheiro, o problema do falso controle sobre a transformação
de seu corpo expressa-se pela necessidade de “apalpar” entre as pernas, será que já estaria
começando uma nova transformação? E acima de qualquer coisa: sem o engenheiro, para
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quem a transformação e a preocupação concentram-se então na visão do outro sobre si, o
que os outros pensariam do narrador, o que os outros veriam no narrador?
A transformação do narrador em mulher ou sua ocupação de um entre-lugar entre
o masculino e o feminino dá-se sob a forma de uma obrigação, entretanto essa obrigação
é construída de forma discursiva pelo narrador. Quando o engenheiro o ressuscita,
as expressões da autoridade começam a aparecer: “Ele me extraiu da morte com certa
autoridade no que diz respeito às residências cadavéricas.” (NOLL, 2008, p. 84). A
autoridade do engenheiro, nesse caso, parte do domínio de uma técnica de ressurreição,
pois há um momento na narrativa em que o narrador entrega a fala ao engenheiro, e essa
autoridade ganha outros significados:

Te arranquei da morte, embora todos em volta estivessem a te ver como defunto.


O segredo de espantar as trevas de um corpo aparentemente inerte, mas que
ainda tem sua circulação sanguínea, esse segredo quem me passou foi o pai de
Tina. Pediu-se que não revelasse a ninguém. Agora você é grato a mim e continuará
sendo pelo período que resta (NOLL, 2008, p. 88 – grifo nosso).

Ao entregar a primeira pessoa ao engenheiro, a gratidão transforma-se em obrigação:


“será grato a mim e continuará sendo”. Esse procedimento vira o mote do pós-vida do narrador:

Eu lhe devo tanto assim?, pensei. Ainda tentava, sempre lerdo, a travessia
entre meu falecimento e ali onde eu estava agora, nas vizinhanças de Cuiabá.
Por coincidência, essa travessia, essa verdadeira ponte era trabalho para ser
supervisionado por um engenheiro. Eis o homem, meditei (NOLL, 2008, p. 88).

A lógica metonímica desse personagem aparece no trecho citado, vinculando a ideia


de travessia, por meio de uma ponte ou qualquer outro aparato da engenharia, à profissão
do personagem. O engenheiro, entretanto, não constrói somente a travessia entre a morte
e a nova vida do narrador, é ele também o responsável pela construção desse novo sexo. Na
maioria das vezes em que o narrador refere-se à mudança de seu corpo, ele está dentro do
campo semântico da construção civil ou, por analogia, refere-se a essa mudança como uma
obra de engenharia, no caso, narrativa.
A ideia de que a transformação dá-se em função do engenheiro espalha-se por toda a
narrativa: “Mas eu estava ali, pronto para servir de mulher para o engenheiro, se o destino
assim me ordenasse.” (NOLL, 2008, p. 90); mais a frente: “Eu ficaria dedicado à preparação
das refeições, a passar e a lavar a roupa dele. Se era assim que tinha que ser, então seria,
pronto.” (NOLL, 2008, p. 93); ou ainda em:

Enquanto entrava, me olhei todo, inspecionando a quantas andava minha


feminilidade. Não via mesmo uma mulher em mim. Talvez com o tempo.
Tudo dependia mesmo do engenheiro. Afinal, eu avançava pelo meu feminino só
para ele. Sem ele, voltaria ao homem que fui. Tudo dependia então de como
se desenvolvesse o nosso plano em comum. Plano que nenhum dos dois
mencionava. E que latejava em segredo (NOLL, 2008, p. 96 – grifo nosso).

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Toda a transformação processada está entre essa gratidão que o narrador deve ao
engenheiro pelo feito autoritário da ressurreição e pelo que esta leitura está determinando
como o conflito dramático centrado na realização do seu amor pelo engenheiro: “Naqueles
dias levava um leve casaco feminino nos ombros, sem vesti-lo, e esse parco figurino também
me ajudava a compor a mulher que nem o próprio engenheiro me pedira para ser.” (NOLL,
2008, p. 107). É importante ressaltar que essa obrigatoriedade da transformação é ambígua: o
destino pode querer isso, se tinha que ser seria, um plano que latejava em segredo, entretanto:
“Eu deveria continuar a obedecer cegamente os preceitos do meu homem, pois só poderiam
emanar de sua pessoa os cânones difusos do meu cotidiano. Era ele quem ditava, sem saber,
as normas. Voltei da minha morte pelas mãos desse ex-engenheiro.” (NOLL, 2008, p. 113).
A ambiguidade dessa autoridade é percebida na maneira como o narrador somente cita as
normas impostas. Quem diz que um homem ou uma mulher precisa tomar determinadas
atitudes ou não? É o que se vem tentando desconstruir nos meandros sociais ou filosóficos
sobre o pensamento do gênero. Entretanto, na narrativa, essa desconstrução do gênero já
procede a partir da subversão que vem se apresentando e que fica clara no seguinte trecho:

Estendido sobre a cama, havia um roupão gritantemente feminino, com motivos


japoneses –, gueixas servindo chá. Ao lado havia um bilhete. Comprei esse roupão
em Tóquio, quando em viagens com o submarino. Trouxe-o para quem viesse a ser
minha namorada. Como assim, namorada? Namorada seria essa senhora aqui que
o comeria até o fim dos tempos? Perguntei-me se esse homem não estaria mentindo
ao afirmar ser meu ressuscitador. Para que eu lhe fosse grato para todo o sempre. Eu
deveria ser a mulher dele com absoluta abnegação. Era de seu desejo, eu sabia.
A minha vida passava a ter um dono: ele. Pois a própria vida eu lhe devia. O cara
parecia contumaz em sua impotência. Essa disfunção talvez não fosse verdadeira,
mas parte de um plano onde eu entraria para administrar a sua retaguarda –, a
tal de economia doméstica. Aliás, eu gerenciaria outras retaguardas dele, claro.
O engenheiro tinha uma mulher que à noite lhe introduziria um cacete doído
de bom. Pois essa mulher era eu. Precisava me acostumar à nova situação. Eu,
que havia pouco acreditava ter morrido, estava agora ali naquela casa vivendo
para o marido, como ainda tantas outras mulheres. E isso que eu me considerava
um homem razoavelmente viril. Meu registro de baixo. Alguma malhação.
Músculos para o gasto, pêlo na perna. Quem mandara eu me apaixonar por esse
homem desde sempre? Vesti o roupão japonês e fui para a frente do espelho do
banheiro. Eu já era outro. Abri o armarinho e vi os artigos de maquiagem. Pus-
me a trabalhar para fazer de mim uma mulher próxima ao ideal. Parecia ter uma
prática enorme com os cosméticos. Em dez, quinze minutos possuiria um rosto
para pretendente nenhum botar defeito. Não me via então como mulher acabada.
Embora não apresentasse aquelas impurezas grosseiras de pele que uma parcela
expressiva dos homens ostenta (NOLL, 2008, p. 95-96 – grifos nossos).

O trecho é longo, mas resume de uma forma eficaz o que se vem afirmando sobre
a obrigatoriedade despersonalizada de sua transformação e a sua transgressão. O roupão
japonês em si, além de ser gritantemente feminino, traz estampas de gueixas servindo chá,
alegoria da função do narrador enquanto mulher. Entretanto, o roupão vem acompanhado
de um recado claro: era para quem viesse a ser namorada do engenheiro. O narrador até se
questiona sobre o gênero feminino da palavra. É a primeira vez na narrativa que tem certeza
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de qual é a preferência sexual do engenheiro, mesmo assim, a subversão vem em seguida: na
cama durante a noite quem exerce a função que o narrador vem construindo como masculina
é ele mesmo: “o engenheiro tinha uma mulher que à noite lhe introduziria um cacete doído de
bom. Pois essa mulher era eu. Precisava me acostumar à nova situação”. Essa nova situação,
além de ser um performativo singular para a construção promovida pelo narrador, exatamente
como Austin desejou ao teorizar a questão, é também um performativo inapropriado para o
que se estabeleceu para cada um dos papéis sexuais esperados tradicionalmente. A dúvida que
o narrador suscita sobre ser o engenheiro, de fato, aquele que o ressuscitou mostra de forma
mais clara a obrigatoriedade despersonalizada que está se construindo: “para que eu lhe fosse
grato para todo sempre” é uma oração subordinada adverbial final. O objetivo do engenheiro
era criar essa obrigação travestida de agradecimento? É onde começam as dúvidas. A palavra
vida é acompanhada das expressões “passava a ter um dono” e “eu lhe devia”, da mesma forma
que ser mulher está acompanhada da expressão de “absoluta abnegação”. A compreensão
da situação à qual o narrador se submeteu se expressa pela palavra ainda em “viver para
o marido, como ainda tantas outras mulheres”. Ele sabe que está construindo um padrão
de mulher que não representa um padrão de fato, mas é o conflito narrativo, o leitmotiv
dessa obra como um todo, que vem como justificativa da transformação: “quem mandara
eu me apaixonar por esse homem desde sempre?”. E é isso que o faz seguir, não no gênero
performativo, mas na performance de gênero por meio de um trabalho: “trabalhar para fazer
de mim uma mulher próxima ao ideal”, pois ainda não era uma mulher acabada.
O não reconhecimento de ser uma mulher acabada leva à última análise: a transformação
do narrador por meio da palavra. Desde a sua ressurreição, o narrador veio assumindo a
forma feminina por meio de roupas e cosméticos; é uma mulher com uma genitália masculina
e tudo isso porque é ele quem assume um papel masculino na cama com o engenheiro.
Porém, quando o engenheiro recupera a sua “potencialidade masculina”, a transformação do
narrador ganha novos rumos:

Toquei novamente no meu púbis e constatei o pior: parecia que eu perdera os


pontos cardeais da genitália. Em lugar deles verificava que onde eu costumava
encontrar o meu pau e saco, percebia agora um terreno pantanoso aqui, alagado
ali, um campo sem terra firme ou saliências, sem vestígios do que outrora
compunha a minha zona mais erógena (NOLL, 2008, p. 143).

Como já dito, a questão do campo semântico da construção está explícita: o “terreno


pantanoso”, “campo sem terra firme ou saliências” estão sendo preparados para uma
edificação. E cada passo dessa construção é encarado como uma novidade para o narrador,
um ato inaugural:

Pensei, sim, a respeito do momento, pensei que o engenheiro estaria com o


órgão genital agora em condições, enquanto eu, eu ficara sem cacete. Não que já
tivesse uma vagina, mas na região pélvica um certo rumor côncavo se fazia ouvir,
lembrava uma caldeira preparando a solução para meu novo foco de deleite,
alguma coisa como um chamamento noturno, subterrâneo, embora ainda até
certo ponto indeciso. Me sentia em transição. Não era mais homem sem me
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encarnar no papel de mulher. Eu flutuava, sem o peso das determinações. Foi
daí que comecei a refletir sobre como me desvencilhar daquele animal em cima
de mim. Por enquanto tentava fazer tudo para gozar com o meu gozo inédito,
mesmo que atrasada (NOLL, 2008, p. 145).

Com seu corpo em preparação, em transição, sem o peso das determinações, até mesmo
a construção anterior do narrador diante das atribuições de cada papel perde seu valor diante
da maior subversão da narrativa: tudo era novo, até mesmo o prazer (“tentava fazer tudo para
gozar com o meu gozo inédito”). O corpo do narrador tem dimensões impensáveis e somente
realizáveis por meio de palavras: “Olhei o seu pau e me admirei que aqueles centímetros quando
dilatados tivessem se aninhado no meu sexo ainda em custosa mutação. Entre as minhas pernas
já havia certamente uma profundidade que eu ainda não sabia avaliar. Dava-me aflição mirar
até o fundo de minha vagina em formação”. A palavra profundidade possui então dois sentidos:
a profundidade de sua genitália em transformação e a profundidade de si mesmo enquanto
indivíduo: “Era como se eu não pudesse mais voltar se chegasse ao fundo de mim.” (NOLL,
2008, p. 148). Entretanto, a mutação é custosa e, ainda, um entre-lugar: “Ao passar a mão
entre minhas pernas para lavar, veio entre os dedos uma meleca endiabrada, que me dava
cócegas, me dava cócegas até eu começar a sentir o miserável cheiro dessa substância disforme,
mesclando os miasmas do homem e da mulher.” (NOLL, 2008, p. 169). O cheiro de sua genitália
em formação não determinava nenhum dos papéis:

E corri para o banheiro louco para verificar. Entre as minhas pernas toquei,
toquei, tateei, tateei… E acabei me entusiasmando. Pela ordem gradativa das
coisas, tinha me vindo enfim um grelo um pouco acima da zona alagada, por
onde eles todos me comeriam. E comecei a alisar o grelo para cima e para baixo,
para o leste e para o oeste. Chamava o prazer em surdina, mas cada vez mais
rápido. [...] Nesse ponto gozei com um toque enfático e vibrante no tal do grelo
(NOLL, 2008, p. 172-173).

A cada mudança, o narrador verifica as novas possibilidades de aprofundar ainda mais


as possibilidades de prazer: antes uma “meleca endiabrada”, agora um “grelo” que logo se
transforma numa vulva com função perfurante:

Ao lado da fome, vinha-me definitivamente um prazer inenarrável com aquilo


que se poderia chamar de nova versão de vagina. O que se formava entre minhas
pernas constituía-se numa genitália inédita quem sabe, alguma coisa próxima a
uma vulva, sem dúvida, mas guardando talvez algo masculino, ao se lançar para
dentro, mas desejosa de possuir a função perfurante. Certo, eu estava afastada
do corpo com a qual nascera. Para gozar agora, eu precisaria esquecer meu
desempenho anterior de macho (NOLL, 2008, p. 177).

O narrador diante do fato começa pela primeira vez a afirmar-se mulher: “Não sabia
ainda controlar aquele sexo inabordável que, por sinal, já era meu. Comecei a gargalhar
saudando os meus umbrais no prazer feminino. Aliás, já sou uma mulher, eu repetia e
repetia, atuando como uma desatinada perante a suntuosa novidade.” (NOLL, 2008, p. 179).
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A gargalhada possui sentido irônico, o narrador utiliza a palavra atuando ao repetir que era
uma mulher. Dizer é fazer? É um performativo ou uma performance? O narrador não se
deixa determinar. A transformação não cessa: há muitas outras etapas físicas na construção
de uma mulher: “Senti no meu pântano genital um calor de adeus. Ou talvez já era a tal
quentura da menopausa chegando com bastante antecedência.” (NOLL, 2008, p.184). Se há
a menopausa, também há a menstruação:

Passei as unhas, olhei. Era uma DST? Não, um sangue escorria pelas pernas.
Eu estava menstruada, era isso? Comecei a me perceber aliviada, livre de um
peso. E com o meu novo papel. Parece que agora eu já posso gerar como mulher.
O segurança não notou a hemorragia. Talvez meu organismo estivesse apenas
revelando plasticamente a sua oposição à morte. Enquanto o engenheiro se
ressecava, eu sangrava com abundância. Agora que, como mulher completa, eu
até menstruada e tudo, agora então que eu podia dar um filho ao engenheiro,
agora ele morria e seria devorado pela terra (NOLL, 2008, p. 184-185).

Se há menstruação, há a possibilidade de ser mãe, um novo papel para o narrador,


um papel que ele já exerceu amamentando o engenheiro e que não cumprira mais sua
função reprodutiva, uma vez que o engenheiro já havia morrido e ele não poderia ser pai.
Entretanto, como toda essa transformação é somente discurso, as noções dramáticas estão
espalhadas por toda a análise: papel, atuar e assim por diante. O narrador chega ao ponto de
ainda perceber em si, mesmo após ter atuado como mulher, a presença de sua masculinidade,
antes de encerrar sua narrativa e sua vida: “Fugia, fugia de qualquer história que quisesse
me escravizar a meu passado remoto ou recente. Queria ter de fato a chance de renascer na
figura de uma fêmea cabal. Não sei, os meus novos traços femininos ainda se misturavam
a vários resíduos do macho que eu tinha sido.” (NOLL, 2008, p. 196). O narrador não quer
se submeter a qualquer história, sua ação dá-se somente pela própria subversão do que ele
mesmo criou enquanto narrativa para o que cada papel desse drama dos gêneros sexuais
representa, afinal: “O meu corpo como um todo era um órgão genital.” (NOLL, 2008, p. 195).
Nem masculino, nem feminino, só um órgão em busca de prazer.

Considerações finais

Em Acenos e afagos (2008) tem-se um narrador consciente de seu papel enquanto


manipulador do discurso narrativo, o qual ocorre por meio de diversos jogos com a linguagem.
Há um narrador que trata da singularidade do ato criar uma mulher por meio de palavras e
a iteratividade, por meio da força ilocutória da construção da mulher, ao questionar o que
vem a ser o discurso hegemônico sobre os papéis sexuais de cada um. Temos também um
jogo com as questões amorosas: até onde o narrador foi levado por amar o engenheiro? Ele
precisou morrer para poder, enfim, concretizar seu amor pelo engenheiro e como a narrativa
não se limita à imitação da vida: morrer, na verdade narrativa, não é um impedimento para
as palavras, somente uma travessia como qualquer outra. E, finalmente, temos o jogo com a

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própria literatura, tratada de uma forma tão irônica, característica própria do romance em
nosso tempo: jogos reflexivos que são levados até o leitor para o confronto com o mundo.
São jogos que iniciam outros jogos.
O problema do performativo e de sua força ilocutória ao invés de criar uma teoria
geral da linguagem aprofundou mais ainda o abismo existente na compreensão do que é a
linguagem e como ela existe dentro do discurso narrativo. Em Acenos e afagos (2008), entre
performar e performatizar, ou seja, entre interpretar e transgredir, os gêneros, o narrador
aprofundou ainda mais a questão da estabilidade do que vêm a ser os gêneros ou do que
os gêneros podem vir a ser. De uma forma geral, parece ser um homem tentando ser uma
mulher mudando seu corpo por meio das palavras, mas é necessário perceber que há questões
outras, principalmente das que tratam de como alguns discursos hegemônicos, não somente
sobre o corpo, estão a todo momento interferindo na existência do narrador. E a subversão
do que poderia ser alguma definição de gênero, criada pela falsa estabilidade na primeira
sequência narrativa, é totalmente desestabilizada em diversos níveis na segunda, como visto
com relação à falsa obrigatoriedade de sua transformação ou, mesmo, a sua função sexual
durante a noite com o engenheiro.
Entretanto, entre essas considerações finais, outras subversões são claras na narrativa
e ainda precisam de análises mais aprofundadas, assim como a percepção da noção da
literatura enquanto performativo. As dúvidas que permanecem giram em torno dos
seguintes fatos: o discurso hegemônico emana somente do engenheiro ou existe de outras
formas dentro da narrativa? A transformação do narrador tem outras consequências além
de atender ao desejo do engenheiro para poder concretizar o amor ou ela estaria ligada ao
fato da consciência do narrador ensejar a dramatização de seu discurso? E com relação ao
performativo: é tão óbvia assim a ligação entre o discurso literário e a performatividade?
Todas as formas de literatura são enunciados performativos? Alguma literatura é mais
performativa do que outra? Tais interrogações nos conduzem a outras que, de alguma
forma, tentam unir a análise da obra ao problema do performativo: o narrador de Noll é
consciente de sua performatividade? Quais as consequências disso para a construção de
sua narrativa? O acúmulo dessas questões ressalta a profundidade do projeto estético de
João Gilberto Noll e o quanto ainda é necessário investigar e decifrar a pluralidade de um
romance cuja compreensão não se limita a uma única leitura.

ALVES, M. C. R.; SOUZA, M. V. C. The Performative and The Subversion in Acenos e


afagos, by João Gilberto Noll. Olho d’água. v. 12, n. 1, p. 255-275, 2020. ISSN 2177–3807.

Referências

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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CULLER, J. Philosophy and literature: the fortunes of the performative. Poetics Today,
Tel Aviv, v. 21, n. 3, fall 2000. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/
Jonathan_Culler/publication/240740399_Philosophy_and_Literature_The_Fortunes_of_
the_Performative/links/5bdad9d092851c6b279e3e75/Philosophy-and-Literature-The-
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Acesso em: 23 jun. 2020.

Recebido em: 27 abr. 2020


Aceito em: 18 mai. 2020

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Um teto todo nosso: visibilidade, resistência e
subjetivação em clubes de leitura

MICHELLE SILVA BORGES*

RESUMO: Que é o ato da leitura, senão a incorporação da subjetividade de protagonistas e a indivisível produção
dos sentidos. Pensado como monumento, seria o livro e, consequentemente, a literatura, um legado consciente ou
inconsciente das palavras mudas, sobre o qual se expõe uma ordem do discurso. Assim, a partir de Le Goff (1990),
ao propor a necessidade de demolir a construção e analisar as condições sob as quais se produzem os documentos-
monumentos, esse trabalho focaliza sua atenção no consenso, atravessado por relações de poder, da predominância
masculina nos processos literários, desde quem escreve e estendendo-se na escolha de quem o lê. Isso posto,
norteando-se pela asserção de Virgínia Woolf (2014), ao exteriorizar a escassez de espaços às mulheres para a
produção literária, que deram conta também da ausência de reflexões femininas sob um determinado sentido, isto é,
o das mulheres, procura-se, então, destacar o surgimento de clubes de leituras criados sob o propósito de privilegiar,
com exclusividade, a escrita das mulheres. Percebidos como uma das marcas da sociedade contemporânea, bem como
herança das conquistas feministas, tais grupos, constituídos majoritariamente por mulheres, miram, na linha de seus
efeitos, a subversão da velha ordem do discurso de produção literária masculina. Essa é uma posição, obviamente,
promotora da construção de um pensamento crítico e, de forma indissociável, dos processos de subjetivação de suas
integrantes balizados pelas interpretações de si mesmas. Além disso, sob o respaldo do exercício foucaultiano (2014),
no que diz respeito às relações de poder, entende-se que tais espaços, ao se reinventarem sob a idiossincrasia literária
instituída, figuram como um local de protesto, onde, através de suas práticas, sujeitos e impulsos, ousam as mulheres
a se posicionarem do outro lado das relações de forças que atravessam e compõem, também, o universo da literatura,
apregoando-se, assim, como interlocutoras irredutíveis.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo; Leia Mulheres; Literatura; Ordem do discurso; Subjetivação.

ABSTRACT: What is the act of reading, if not the incorporation of the protagonists´ subjectivity and the indivisible
production of the senses? Thought as a monument, it would be the book, and therefore literature, a conscious or
unconscious legacy of mute words upon which an order of discourse is exposed. Thus, based on Le Goff (1990), in
proposing the need to demolish the construction and analyze the conditions in which monuments/ documents are
produced, this paper focuses on the consensus, crossed by power relations, of the male predominance in literary
processes, from the one who writes to the one who reads. So, guided by Virginia Woolf's (2014) statement, in
externalizing the scarcity of adaptations to women for literary production, which also revealed the absence of feminine
reflections in a sense, of the women, it is necessary to emphasize the emergence of reading clubs created to privilege,
exclusively, the writing of women. Perceived as one of the marks of contemporary society, as well as an inheritance
of feminist achievements, such groups, composed mainly of women, have as purpose the subversion of the old order
of the discourse of masculine literary production. This positioning, of course, promotes the construction of critical
thinking and, inseparably, the subjectivation processes of their members marked by the interpretations of themselves.
Moreover, under the support of Foucault (2014), in regard to power relations, it is understood that such spaces, when
reinventing themselves under the established literary idiosyncrasy, mean a place of protest, where, through their
practices, people and impulses, women are challenged to be on the other side of the relations of forces that cross and
also form the universe of literature, proclaiming themselves as irreducible interlocutors.

KEYWORDS: Feminism; Leia Mulheres; Literature; Order of speech; Subjectivation.

* Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Uberlândia –


UFU – 38400-902 – Uberlândia – MG - Brasil. E-mail: michellekadam@yahoo.com.br
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Historicamente, longe de assinalar um fenômeno singular, o ato da leitura converge
com inúmeros processos da organização da sociedade, de modo que “[...] ler é peregrinar
por um sistema imposto [...]” (CERTEAU, 1998, p. 264). Dessa forma, contexto, motivação
e sentido interferem no ato da leitura. Pensando nisso, faz-se importante considerar os
domínios e as composições históricas sobre o ato da leitura, em especial, no que diz respeito
às mulheres, como sujeitos e objetos das análises a serem realizadas no decorrer dessa
discussão, voltada para a formação e articulações trazidas pelos clubes de leituras, sobretudo
o clube literário “Leia Mulheres”1.
A partir da perspectiva foucaultiana (2014), argumenta-se que a relação entre os
sujeitos do ordenamento social constitui-se sob e atravessada por relações de poder; logo,
considerando que leitura e escrita sempre estiveram associados ao poder e, portanto,
utilizadas como forma de dominação, fica mais fluido, embora nada cômodo, o entendimento
acerca das relações e ditames estabelecidos, no que diz respeito ao ato da leitura, dentro de
um cenário histórico dos homens e das mulheres, cujas correlações e encadeamentos, para
além de uma simples narrativa de suas histórias e imbricações, são tomadas pelo conceito de
gênero, como categoria que“[...] se constrói/constrói juntamente com uma nova maneira de
articular relações de poder” (SAFFIOTI, 2008, p. 161).
Distante, portanto, de ser uma propriedade do corpo, mas entendido como elemento
que evoca e organiza, simbolicamente, toda a vida social, servindo-se não só de intervenções
cotidianas, mas também de codificações institucionalizadas, o gênero nada mais é do que
uma instância privilegiada de relações de poder voltada à e objeto da disciplina dos sujeitos,
suas práticas e posturas, bem como o tipo de modelo a ser constituído dentro das relações
sociais entre as partes que compõem esse sistema de significações. Assim, longe da pretensão
de neutralidade, a categoria analítica gênero é, com efeito,

[...] um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre diferenças


percebidas entre os sexos, o gênero é um primeiro modo de dar significado
às relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais
correspondem sempre a mudanças nas representações do poder, mas a mudança
não é unidirecional. (SCOTT, 1995, p. 86).

Seguindo essa linha de raciocínio, é sempre bom lembrar que gênero advém de regimes
culturais que “ditam”, para mais ou para menos, as ordenações do corpo, da conduta e, por
fim, determinam os valores dos sujeitos, em uma disposição quase que hierárquica na qual
sucumbem as mulheres, relegadas às bases dessa pirâmide, quantificada pelo cumprimento de
“padrões de conduta”. A isso, Teresa de Lauretis (1994) denominou “tecnologias de gênero”,
ou seja, institutos sociopolíticos e culturais instrumentalizadores dos sujeitos e das funções
sociais que por eles devem ser exercidas em um verdadeiro sistema do “sexo-gênero”.
Entretanto, ainda que gênero seja entendido como um produto de diferentes dispositivos
sociais, atravessado por uma complexa operação de forças, esse trabalho sustenta sua

1
Iniciativa criada em 2014, na Europa, cujo propósito é a valorização do trabalho intelectual e leitura de mulheres,
chegando ao Brasil, particularmente em São Paulo, em 2015.
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inquietação, para o desenvolvimento das proposituras, sobre a questão do gênero enquanto
propriedade da esfera literária, determinada a garantir, como espelho, a manutenção das
relações hierárquicas e hegemônicas sobre os sujeitos, os espaços e os processos. Assim,
entende-se que a (re) produção dos marcos que limitam e permeiam o gênero na literatura
exercem a função de instrumento da tarefa da biopolítica, definida por Foucault (2014, p.
152) como técnica que opera, também, como fator “[...] de segregação e hierarquização
social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações
de dominação e efeitos de hegemonia [...]”.
A partir dessas considerações, cabe a lembrança de que os homens, patrocinados e
resguardados por códigos e discursos, os quais, para eles confiscaram o direito legítimo
de autoridade, impuseram-se no espaço social. Reservados, consequentemente, com
exclusividade ao domínio da norma, ditavam, sob tal disfarce, competências, condutas e a
hierarquia (in) visível dos sujeitos que com eles partilhavam funções e posições em sociedade,
em especial, as mulheres, metamorfoseadas em silêncio e obrigações, senão reprimidas a
injunções intolerantes, as quais requeriam delas o desaparecimento de qualquer aspiração
à igualdade. Acerca disso, vale a ressalva proposta pela escritora Virginia Woolf (2014, p.
54) ao afirmar: “As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e
deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural”.
Admite-se, portanto, que a delimitação dos espaços e funções sociais, destinando as
mulheres a uma situação de suspensão sobre sua própria subjetividade e busca de si mesmas,
mantém relações íntimas com as configurações de todo um regime social concebido para e
em nome do privilégio do masculino em detrimento do feminino e, cujos efeitos, entre tantos
outros, são as sentenças feitas ao rito da leitura. Observa-se que, a partir do século XIX,
como período de grande preocupação para com a leitura das mulheres, de modo a direcioná-
la e corrigi-la a fim de que convergisse com os interesses e afinidades buscadas pelos homens,
foram as mulheres contaminadas pelas disciplinas do masculino e suas mais variadas formas
de obter êxito sobre as disposições hierárquicas vinculadas, especialmente, a elas, como
sujeitos a serem operados/organizados por eles. Assim, “[...] a literatura contribuiu também
para endossar e difundir o discurso sobre atributos considerados naturalmente femininos,
que excluíam, inclusive, a criação literária, um dom tido como essencialmente masculino”
(MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, p. 30).
A obediência, então, a um sistema social de forças estruturado em prol do masculino, aqui,
com especial atenção aos domínios da leitura, faz um convite às discussões propostas por Michel
Foucault (1979, p. 12) ao abordar as questões do regime de verdade, que, segundo ele, é produtora
da “[...] maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que são valorizados
da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. Em
cima disso, entende-se que, com relação à leitura, permeada por efeitos específicos dos discursos
“verdadeiros”, o século XIX inaugurou não só disciplinas sobre as mulheres, ao dizer o que
elas deveriam ler, mas, também, determinou a importância e, paralelamente, a exclusão de sua
existência tanto no fazer/escrever, como no ler, como ato provido de autonomia e condições de
subjetivações, a partir de outros, que não os espirais do masculino.
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Dessa articulação histórica derivaram, obviamente, constructos singulares sobre
as versões e perspectivas para homens e mulheres, de modo que elas foram relegadas ao
obscuro, haja vista que, no interior do regime de verdade, cuja posição específica de poder e
de voz foi ocupada pelos homens, positivou-se um conjunto de argumentos e de regras que
alimentaram o funcionamento de processos de exclusão, criador do que Foucault (1979, p.
13) chamou de intelectual universal, ou seja, “[...] alguém que ocupa uma posição específica,
mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas
sociedades”. Dessa forma,

[...] melhor instruídas que suas antecessoras, as mulheres do século XIX, tinham
acesso à leitura mais fácil sendo que a maior diferença entre a leitura masculina
e a feminina ficava a cargo do conteúdo. A elas eram dedicados os romances da
vida interior, uma leitura que objetivava o divertimento; aos homens as notícias
sobre eventos públicos, uma leitura que objetivava a informação e o estudo
(MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, 32-33).

Consequentemente, ante as rarefações das condições existenciais ofertadas socialmente,


culturalmente e politicamente às mulheres, de modo que o ato da leitura e o da escritura
haviam sido moldados pelos homens, a expressão feminina tornou-se objeto da conservação
e manutenção do que lhes fora instituído, com poucas condições de questionamento ao
regime de verdade daquela época. Dissonância que, por outro lado, abriu espaço para a
promoção de processos de subjetivação silenciosos às produções constantes de arquétipos
coletivos dos sujeitos/leitores e, em especial, do sujeito-mulher, criando, assim, sem contar
com referências anteriores, novas dimensões e proposituras de subjetividade a partir de suas
experiências e possibilidades estratégicas, afinal,

Para cada uma das comunidades de interpretação assim identificadas, a relação


com o escrito efetua-se com técnicas, gestos e maneiras de ser. A leitura não é
apenas uma operação intelectual abstrata: ela é uso do corpo, inscrição dentro de
um espaço, relação consigo mesma ou com os outros (CAVALLO; CHARTIER,
1998, p. 8).

As condições instrumentárias da invenção e de novas configurações sobre os espaços


pessoais e subjetivos das mulheres dialogam com as circunstâncias que, por muito tempo,
lhes foram oferecidas para a prática da leitura. Logo, enquanto aos homens reservava-se
o cenário público, das mulheres, esperavam-se a obrigação e os limites do privado, razão
pela qual sua existência e, por extensão, sua leitura, fizeram-se atravessadas do silêncio e
do lar. Essa condição, pensada exclusivamente no que tange à leitura, acabou por modificar
e desenvolver um enorme potencial transformador capaz de produzir novas proposituras
existenciais femininas.
Mas, antes de avançar nessa questão, dando espaço, com a atenção indispensável e a
relevância necessária para os movimentos feministas, como recursos sociais articuladores
para a construção de novas conjunturas e a transposição de inúmeros obstáculos às mulheres,
é importante, neste momento, a observação da questão das disposições sobre os conceitos e
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práticas relacionados aos ditames do público e do privado. Sobre isso, a pesquisadora Sofia
Aboim (2012) aponta que a construção dicotômica das esferas público/privado não é, de
modo algum, neutra. Segundo ela, tais instâncias, embora atreladas a uma multiplicidade
de concepções e sentidos, são, a partir de críticas elaboradas pelo movimento feminista,
entendidas como resultados, artificialmente criados, de processos de codificações da ordem
de gênero formuladas sob a emergência da modernidade, que:

[...] serviu, de facto, para afastar homens e mulheres, delimitando-lhes espaços e


funções sociais. Enquanto as qualidades ontologicamente atribuídas ao privado
permaneceram associadas ao feminino e às suas propriedades maternais e
afetivas, a esfera pública – da produção industrial e da cidadania política – ficou
ligada ao masculino, reproduzindo-lhe a supremacia e o lugar de chefe de família
(ABOIM, 2012, p. 99).

Nesse sentido, a autora destaca ainda a existência de um regime de desvalorização da


esfera privada na construção política das sociedades, de modo que o privado seja o local
privilegiado para o exercício da dominação masculina. Além disso, aponta que a distinção
historicamente situada acerca desses dois termos, conectando-os ao feminino e ao masculino
de forma ímpar, seja uma evidente fonte de desigualdades e injustiças produzidas aos gêneros.
De modo complementar, a pesquisadora Maria Ângela D´Incão (2007), em um texto que
traz justamente uma abordagem sobre a ascensão da burguesia brasileira no século XIX e
a reorganização das vivências familiares e domésticas, bem como o surgimento/disciplina
para o nascimento de uma “nova mulher”, afirmou:

[...] a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância


do amor familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel
feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e absorventes
atividades no interior do espaço doméstico. Percebe-se o endosso desse papel
por parte dos meios médicos, educativos e da imprensa na formulação de uma
série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do
lar e da família [...] (D´INCÃO, 2007, p. 230).

Logo, uma vez demarcada a constituição histórica das fronteiras imprecisas público/
privado, como fonte e objeto de hierarquias e propriedades/impropriedades ao feminino
e ao masculino, configuram-se também as codificações sobre e para o sujeito-mulher e
para o sujeito-homem. Entretanto, é justamente dentro dos limites da supressão feminina,
relegadas, então, ao silêncio e ao privado, que ousaram as mulheres a novas conjunturas
produtoras, talvez, de uma “estética da existência”. Segundo as noções de Foucault (2006, p.
290), essa concepção se desenvolve como consequência de “[...] um esforço para afirmar a sua
liberdade e para dar à sua própria vida uma certa forma na qual era possível se reconhecer,
ser reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um exemplo”.
Essas são, obviamente, atreladas a outras coisas; em particular, aos movimentos
feministas, que, impulsionados no decorrer da década de 1970, se impuseram na tentativa de
promover um recuo sobre as intenções e ditames agenciados pela velha ordem e pelas velhas
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funções que se estabeleciam ao feminino e, portanto, às mulheres2. Credita-se, então, aos
movimentos feministas, a constituição dialógica/subsidiária dos processos de subjetivação
das mulheres, haja vista que tais movimentos se determinam e se autoconstroem em um
longo processo de vai e vem entre elas e o exercício interlocutório com o ordenamento
social, desmistificando sua aparelhagem e reconstruindo novos padrões de subjetividade
para e a partir dos quais elas podem retornar em um movimento de reciprocidade.
Assim, no que diz respeito à correspondência feminismo e leitura, ocorre o
entendimento de que “A autonomia do leitor depende de uma transformação das relações
sociais que sobredeterminam sua relação com o texto” (CERTEAU, 1998, p. 268). Dessa
forma, faz-se importante a reivindicação das balizas do movimento feminista como o espaço
simbólico de “emancipação”. Por reflexo, tem-se nos questionamentos das experiências do
passado, do presente e do futuro, o compromisso, ainda que árduo e gradativo, com as novas
disposições do sujeito feminino.
Logo, entende-se que as transformações sobre os objetivos na escolha dos conteúdos
voltados/selecionados às mulheres, a forma como se davam as práticas de leitura e, até mesmo,
o deslocamento do privilégio do masculino em ditar o que e para que funcionava a leitura, são
decorrentes/efeitos de toda uma arquitetura macrossocial de luta e engajamentos políticos, de
feministas visionárias e ambiciosas pela desconstrução de modelos tradicionais colapsados em
nome da hierarquia que se impõe aos gêneros e, portanto, às mulheres e aos homens.
Dessa forma, norteadas por pensamentos que mantém relações íntimas à “[...] recusa da
construção hierárquica da relação entre masculino e feminino, em seus contextos específicos,
e uma tentativa de reverter ou descolocar seus funcionamentos” (SCOTT, 1995, p. 19), é que
o feminismo se dispôs e se dispõe a empreender lutas emancipatórias, cuja finalidade é a
obtenção de êxitos na promoção de uma transformação sobre a situação das mulheres, bem
como sobre sua percepção e posição em sociedade. E, ao trazer isso para o âmbito da leitura,
o que se tem é que “A criatividade do leitor vai crescendo à medida que vai decrescendo a
instituição que a controlava” (CERTEAU, 1998, p. 268).
Essa situação abriu espaço para novas dinâmicas espaço-temporais envolvendo as
mulheres e a leitura, cuja escalada vai desde a “transgressão” ao conteúdo selecionado pelos
homens, passando pela posse da escrita, ainda que atravessada pela repetição das funções
instituídas socialmente e, o mais importante, pelo protagonismo do masculino, conforme
aponta Scholze (2002), até a perversão da ordem no que diz respeito aos espaços selecionados
e tidos como genuínos da/para as mulheres e/ou do/para os homens. A exemplo tem-se os
clubes de leituras, cujos encontros ocorrem justamente em locais anteriormente percebidos
como espaços de privilégio dos homens, isto é, nos espaços públicos. Desse modo, assume-se
o entendimento de que, atualmente, sobretudo nos clubes de leituras, o ato da leitura, bem
como os participantes, majoritariamente mulheres, distingue-se do passado, pois

2
Tendo em vista as heterogeneidades e receptividades do feminismo pelo mundo, cabe a contextualização de que
o feminismo apresentado faz referência àquele que, na década de 1970 e fins da anterior, chamou a atenção para
o combate à dominação masculina, bem como para a necessidade de uma produção historiográfica acerca de seus
efeitos nas relações entre mulheres e homens.
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[...] não é mais acompanhada, como antigamente, pelo ruído de uma articulação
vocal nem pelo movimento de uma mastigação muscular. Ler sem pronunciar
em voz alta é uma experiência ‘moderna’, desconhecida durante milênios.
Antigamente o leitor interiorizava o texto: fazia da própria voz o corpo do
outro, era o seu ator. Hoje o texto não impõe mais o seu ritmo ao assunto,
não se manifesta mais pela voz do leitor. Esse recuo do corpo, condição de sua
autonomia, é um distanciar-se do texto (CERTEAU, 1998, p. 271–272).

Essa afirmação é importante porque, embora traga à tona a contemporaneidade da


leitura como ato silencioso, afasta-se das percepções, sutilezas e singularidades mais profundas
acerca desse exercício em se tratando das mulheres e dos homens. Evidentemente, não se
discorda dos avanços elementares produzidos pelo deslocamento de uma leitura pública de
um texto para uma que invoca o silêncio da própria existência. Por outro lado, não é possível
abrir mão da problemática que se impõe, sob a ótica do gênero, às dissonâncias do ato de ler
e da prerrogativa do espaço aos seus leitores, sejam eles mulheres, sejam eles homens.
Observado isso, entende-se que os clubes de leituras, os quais despontaram em larga
escala no século XXI, desempenha um recurso promotor da leitura periódica e do debate,
inscrevem-se como ato violador do silêncio e da solidão, apontado por Certeau (1998) como
condição revolucionária do exercício para com a leitura. Trata-se de um retorno no tempo,
compreendido como “Uma forma de interação social por meio da qual as práticas de leitura
ganham a especificidade e concreticidade dos gestos, espaços e hábitos” (COSSON, 2014, p.
138). Entretanto, diferentemente do que se propunha no passado, a participação dos sujeitos
nesses debates foge aos domínios do masculino, recodificando, assim, os limites do público
como local dos homens, até mesmo porque, distante dos argumentos e funções sociais que
acarretavam legitimidade e exclusões,

Uma comunidade de leitores é definida pelos leitores enquanto indivíduos que,


reunidos em um conjunto, interagem entre si e se identificam em seus interesses
e objetivos em torno da leitura, assim como, por um repertório que permite a
esses indivíduos compartilharem objetos, tradições culturais, regras e modos de
ler. Desse modo, embora o processamento físico do texto seja essencialmente
individual, a leitura como um tudo é sempre social, porque não há leitor que não
faça parte de uma comunidade de leitura, ainda que nem sempre seja reconhecida
como tal (COSSON, 2014, p. 139).

Parece justo o reconhecimento preliminar de que as leituras ocorridas dentro dos


clubes de leitura proporcionam novas formas de associações, conexões e de reivindicações
aos espaços – em especial no que concerne às mulheres e suas trajetórias de exclusão, seja no
campo da leitura, seja na ocupação das dimensões públicas do espaço social. Contudo, embora
beneméritos os rearranjos articulatórios trazidos pelos clubes de leituras, algo sempre se
mostrou obediente aos regimes da relação com a literatura, isto é, a opção por escritores
homens. Essa situação, obviamente, segue na contramão do conjunto representativo que
compõe o grupo de leitores brasileiros, uma vez que, segundo pesquisa disponível em
Retratos da Leitura no Brasil 4, organizado por Failla (2016), 59% dos leitores são mulheres.
Limitando essa porcentagem à participação dos grupos de leitura, nota-se que, a partir de
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dados publicados em 21 de maio de 2016, no jornal ESTADÃO, obtidos através de uma
pesquisa interna da editora Companhia das Letras, 76,7% dos frequentadores dos clubes de
leitores são mulheres (VEIGA, 2016).
A partir do exposto é possível a compreensão de que, apesar do passar dos anos, os
leitores figuram como prisioneiros de regimes universais, cujas expressões, nesse caso,
estão focalizadas na opção constante da intelectualidade masculina em detrimento da
feminina. As mulheres, ainda que maioria, são descontextualizadas até mesmo quando
em uma situação de privilégio e mediações, não encontrando em tais clubes de leitura
qualquer sinal de seu próprio retrato.
Acerca disso, entende-se que há uma relação reflexiva e de legado no que diz respeito à
expropriação das mulheres nas sequências de linhas que compõe um livro, de modo que sua
inexistência ou, ainda, sua existência adulterada segundo a utilidade do masculino, solapou
drasticamente a condição feminina dentro do corpo social e no interior do universo literário,
modificando as eminências de seu desejo na eleição de determinada leitura.
Desse modo, ainda que tenham as mulheres dissolvido o consenso dos sistemas de
leituras, ocupando os espaços e transpondo os limites dos discursos estabelecidos dentro
de uma roda, é evidente o obstáculo que se impôs ante a existência do masculino, ainda que
minoria entre os frequentadores de clubes de leitura, pois, mesmo assim, eles avocam para
si, ainda que em silêncio, a prerrogativa do ato de falar, como legado, através das narrativas
de intelectualidade masculina. Nelas, os jogos enunciativos não vão além de si mesmos, e
funcionam como instâncias/recursos sancionadores daquilo que deve ser produzido e
admitido como verdade, pois,

[...] o poder usa o termo ‘verdade’ para exercer controle; daí o regime de verdade.
A verdade evita a desordem, e é esse medo da desordem (dos desordeiros), ou,
para nos expressarmos de maneira positiva, é esse medo da liberdade (o medo
de dar liberdade a quem não tem), o que vincula funcionalmente a verdade aos
interesses materiais (JENKINS, 2007, p. 59).

Logo, entende-se que as mulheres, enquanto integrantes dos clubes de leitura


convencionais, não eram capazes de descobrir o seu passado e com ele se relacionar, de
modo a construir sua subjetividade a partir de e em parceria com movimentos que lhes são
próprios e de direito, além de, entre outras coisas, não colaborarem para a transmissão de
um legado. Ficavam, portanto, subjugadas a um sistema de poder que sobrevivia e sobrevive,
ainda que inconscientemente, como herança da salvaguarda dos interesses e vantagens do
masculino. Dessa forma, é impossível discordar da afirmação compulsória/necessária de que

Uma pessoa não pode apontar para o mapa e dizer que Colombo descobriu a
América e Colombo era uma mulher, ou apanhar uma maçã e observar que
Newton descobriu as leis da gravidade e Newton era mulher, ou olhar o céu
e dizer que há aviões voando sobre nossa cabeça e os aviões foram inventados
por mulheres. Não há marcas na parede para determinar a altura precisa das
mulheres (WOOLF, 2014, p. 123).

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O reconhecimento de tais situações pelas mulheres e, privilegiadamente, do quanto
foram e são os homens grandes curiosos, atravessadores e sedentos pelo poder – pleno,
unilateral e (in) discreto – carregando consigo todas as balizadas de um sistema ruído pela
parcialidade e fundado em hierarquias, é capaz de conduzir a processos de dobraduras em si
mesmas, ou seja, de subjetivações ou de consciência das contradições inerentes às relações
de gênero de modo a interpretá-las e modificá-las a partir delas e por elas mesmas, em um
importante movimento questionador da agenda masculina voltado às mulheres, que, como
bem observou Ivone Gebara (2005), é criadora da convicção inquestionável de onipotência
dos homens, cedendo às mulheres a sensação eterna de serem elas estrangeiras, ainda que em
suas próprias vocação.
Esse equacionamento traz à tona toda uma história de ambivalências e hiatos
relacionados às mulheres, cujas identificações e processos de subjetivações se faziam existir a
partir e em decorrência de um determinador universal, ou seja, o masculino. Contudo, embora
atravessadas e confinadas a tais regimes de forças e poder, o surgimento de reivindicações no
campo social, político e cultural também se estenderam aos espaços de leituras e à própria
leitura, de modo que o vínculo e as associações estabelecidas sobre as narrativas passaram,
também, a preceituar novos parâmetros, em cujo centro estariam as mulheres e não mais os
homens, agora, “extraditados” aos domínios da própria voz. Era o levante das mulheres, uma
nova era às composições e espaços da prática literária. Era, enfim, o “Leia Mulheres”.
Planejado, então, como consequência e resposta à invisibilidade das mulheres no
mercado editorial, o projeto “Leia Mulheres” surgiu no Brasil no ano de 2015, após, em
2014, a escritora Joanna Walsh ter proposto o projeto #readwomen2014, cuja finalidade
era a leitura de escritoras mulheres. Assim, em 2015, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e
Michelle Henrique trouxeram para São Paulo/SP as contestações fomentadas por Joanna
Walsh3. Afinal, como alegou Regina Dalcastagné (2012, p. 13): “ Muito além de estilos ou
escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo,
de se fazer visível dentro dele”. Daí, então, a necessidade, uma vez não sendo possível espaço
no seio das tradições literárias, de avançar sobre e para campos alheios, rompendo com as
amarras da homogeneidade.
A partir disso, o surgimento do projeto “Leia Mulheres”, é compreendido como
manifestação reivindicatória dos espaços públicos e, paralelamente, um facilitador do embate
político, cuja crítica está voltada para o desmonte dos modelos de valoração e permanências
intelectuais apreciadas no campo literário, isto é, o masculino, o qual segue como retrato
do campo social e de suas mais específicas formas de promoção hierárquica dos gêneros e,
portanto, de mulheres e homens. E “Ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura
como mecanismo de distinção e da hierarquia social, deixando de lado suas potencialidades
como discurso desestabilizador e contraditório” (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 13).
Ocupado majoritariamente por mulheres, o projeto se mantém aberto aos homens.
Entretanto, como agente transformador das antigas tendências, segue na direção de que
as leituras realizadas terão como propósito a garantia da visibilidade das mulheres; logo,
3
Informações retiradas do site:< https://leiamulheres.com.br/sobre-nos/>. Acesso em 12 ago. 2017.
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mensalmente, um livro escrito por uma mulher é selecionado pelas integrantes e pelos
integrantes, a fim de compor a leitura do mês/meses seguinte(s). Tais processos, obviamente,
solidificam as experiências das/ entre as mulheres que se mantêm presentes nesses espaços
de discussões, de maneira que a simples decisão de estar ali é entendida como ato de
sublevação aos regimes históricos e posicionais, que por tanto tempo foram complacentes e
se movimentaram em prol da manutenção do masculino e de seus interesses.
Por fim, sob o respaldo do exercício foucaultiano (2014), no que concerne às relações de
poder, entende-se que tais espaços, ao se reinventarem sob a idiossincrasia literária instituída,
figuram como um local de protesto, onde, através de suas práticas, sujeitos e impulsos,
ousam as mulheres a se posicionarem do outro lado das relações de forças que atravessam e
compõem o universo da literatura, apregoando-se, assim, como interlocutoras irredutíveis.
Ao fazerem isso, acabam por seguir na contramão do imaginário social, segundo o qual
“[...] não cabe à mulher mudar o curso de sua própria história. Essa já estaria determinada
socialmente” (MOREIRA DUMONT; SANTO, 2007, p. 34).

BORGES, M. S. A Room of our Own: Visibility, Resistance and Subjectivation in Reading


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Recebido em: 13 abr. 2020


Aceito em: 17 mai. 2020

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Tornando visíveis as experiências trans
por meio de traduções*

R E G I A N E C O R R Ê A D E O L I V E I R A R A M O S **
T R A D U Ç Ã O D E D A V I S I L I S T I N O D E S O U Z A ***

Por trás de meu exterior colorido encontra-se uma


pessoa retraída e machucada que anseia por liberdade–
liberdade para viver por si mesma e liberdade para se
parecer com quem ela é. Aceitação é o que procuro. Meu
exterior rígido e a indiferença são uma armadura que
aprendi a vestir para proteger minha vulnerabilidade1.

Manobi Bandyopadhyay

*
Tradução de “Making Trans Experiences Visible through Translations”, capítulo do livro India in translation,
Translation in India, organizado pelo Prof. Dr. G.J.V. Prasad, da Jawaharlal Nehru University (JNU) de Nova Déli
– Índia. Por sua importância, providenciamos, com autorização da autora, uma tradução do texto para integrar
este Dossiê (Profa. Dra. Cláudia Nigro, organizadora do Dossiê).

**
É professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) da Unidade Jardim. Tem
experiência na área de Língua e Literatura, com ênfase em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua e Literaturas
de Língua Inglesa. Atualmente é pós-doutoranda em Letras no Programa de Pós-graduação em Letras na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/SJRP. Atua nos seguintes temas: gênero, raça
e sexualidade. E- mail: regiane.ramos@uems.br

Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de


***

Mesquita Filho” – UNESP/SJRP – 15054-000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-mail: dsilistino@gmail.com

1
Todos os textos neste artigo, cujos originais são escritos em inglês, têm tradução nossa. Quando não houver
menção ao número de página, é porque se trata de artigo publicado em site, sem paginação. No original, "Beneath
my colourful exterior lies a curled up, bruised individual that yearns for freedom—freedom to live life on her own
and freedom to come across as the person she is. Acceptance is what I seek. My tough exterior and nonchalance
is an armour that I have learned to wear to protect my vulnerability".
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288
A revista acadêmica TSQ: Transgender Studies Quarterly é a primeira revista fora
da medicina dedicada a estudos transgêneros2. Foi fundada por Paisley Currah e Susan
Stryker, cujo objetivo era criar uma plataforma para bolsas e pesquisas inovadoras, que
desafiassem a objetificação, patologização e exotização das vidas de transgêneros. É um
espaço onde a comunidade trans possa fazer suas críticas. A missão, assim como Currah e
Stryker apontam, é:

Incentivar uma conversa vigorosa entre os estudiosos, artistas, ativistas e


outros que examinam como a ‘transexual’ se caracteriza como uma categoria,
um processo, uma assembleia social, uma identidade de gênero cada vez mais
inteligível, uma ameaça identificável à normatividade de gênero e uma rubrica
para entender a variabilidade e a contingência de gênero através do tempo,
espaço e culturas. (TSQ: Transgender Studies Quarterly, s/d., s/p.)3.

A primeira edição, organizada por Paisley Currah e Susan Stryker, foi lançada em maio
de 2014 com Chelsea Elizabeth Manning na capa e com o título “Postposttranssexual: Key
Concepts for a Twenty-First-Century Transgender Studies (TSQ: Transgender Studies
Quarterly)”4. Existem oitenta e seis entradas principais para esta edição inaugural, que se

2
Para uma leitura detalhada acerca da história dessa área acadêmica, consultar Stryker e Whittle (2006).
Consideramos a palavra "transgênero" como um conceito do qual se ramificam diversas outras identidades,
seguindo o posicionamento de Paisley Currah e Susan Stryker. Na introdução à primeira edição da revista TSQ:
Transgender Studies Quarterly, as autoras explicam que, desde o começo, a categoria transgênero representa “uma
resistência à medicalização, à patologização e aos vários mecanismos, pelos quais o estado administrativo e suas
instituições médico-legais-psiquiátricas associadas procuraram conter e delimitar os potenciais socialmente
perturbadores da atipicidade, incongruência e não-normatividade do sexo/gênero” (STRYKER; CURRAH, 2014,
p. 5). No original: "a resistance to medicalization, to pathologization, and to the many mechanisms whereby the
administrative state and its associated medico-legal-psychiatric institutions sought to contain and delimit the
socially disruptive potentials of sex/gender atypicality, incongruence, and nonnormativity".
No artigo "(De)Subjugated Knowledges: An Introduction to Transgender Studies", Susan Stryker define
transgênero como ‘alguém que mudou permanentemente o gênero social por meio da apresentação pública de
si mesmo, sem recorrer à transformação genital’ e transexual como “alguém que mudou permanentemente os
genitais, a fim de reivindicar a participação em um gênero diferente daquele atribuído ao nascimento” (STRYKER,
2015, p. 4). No original: "someone who permanently changed social gender through the public presentation of
self, without recourse to genital transformation" e "somebody who permanently changed genitals in order to
claim membership in a gender other than the one assigned at birth".
3
No original: "to foster a vigorous conversation among scholars, artists, activists, and others that examines
how ‘transgender’ comes into play as a category, a process, a social assemblage, an increasingly intelligible
gender identity, an identifiable threat to gender normativity, and a rubric for understanding the variability
and contingency of gender across time, space, and cultures". Essa informação está disponível gratuitamente na
webpage da revista: https://read.dukeupress.edu/tsq/pages/About
4
Chelsea Elizabeth Manning é uma ativista trans, política e ex-soldado do Exército dos Estados Unidos. Manning
ficou famosa por divulgar ao WikiLeaks quase 750.000 documentos militares e diplomáticos confidenciais
ou não. Allucquére Rosanne Sandy Stone é uma transgênero considerada uma das fundadoras da disciplina
acadêmica dos estudos sobre transgêneros nos Estados Unidos. Em 1987, Stone escreveu o ensaio “O império
contra-ataca: um manifesto pós-transsexual”, considerado, nas palavras de Susan Stryker, "o texto multifacetado
do qual emergiram os estudos contemporâneos sobre transgêneros. Desenvolveu uma análise pós-estruturalista
da identidade de gênero, que abriu novas possibilidades para as transexuais – e, por extensão, para outros
tipos de pessoas que se sentem ‘de gênero diferente’ – escaparem dos poderosos efeitos dos discursos médicos
e feministas que objetivaram apagar e invalidar suas experiências de vida." (STRYKER; WHITTLE, 2006, p.
221). No original: " the protean text from which contemporary transgender studies emerged. It developed a
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289
tornou um livro, o qual traz um enfoque em um vocabulário conceitual para os estudos de
transgêneros. Entre eles, encontramos a entrada “tradução” (transportar ou trazer ao outro
lado), de A. Finn Enke. A aplicabilidade da tradução nos estudos de transgêneros é, para Enke,

um ato necessário e profundamente esperançoso para quem cruza os limites


estabelecidos para os gêneros, pois fomos ensinados que transgênero é marcada
por disforia, uma palavra do grego que significa difícil de suportar, difícil de
transportar. Para transportar ou trazer ao outro lado, nós [transgêneros] nos
tornamos poetas, contadoras de histórias e artistas (ENKE, 2014, p. 241)5.

As edições de TSQ incluem um breve prefácio dos organizadores gerais; a introdução


à edição, feita pela equipe editorial convidada; diversos artigos de destaque; e algumas das
várias seções recorrentes: livros, artes e cultura, e resenhas de novas mídias; documentos e
imagens; artigos de opinião; entrevistas; bibliografias anotadas; traduções; moda.
A seção “Tradução”, que nos interessa aqui, visa expandir o escopo dos estudos sobre
transgêneros para “além de suas raízes anglófonas, destacando textos originários de outros
idiomas que não o inglês e tornando visível o trabalho de tradução necessário para levar ao
público leitor de inglês o trabalho de pesquisadores, escritores, pensadores e ativistas de todo
o mundo” (STRYKER, 2015, p. 525)6. Recebe-se não apenas “documentos históricos e vozes
contemporâneas que desafiam simultaneamente o viés anglocêntrico da área de estudos de
transgêneros, enquanto a amplitude e o alcance do campo são expandidos”, mas também
“textos de ficção, não-ficção, poesia e textos de pesquisa” (STRYKER, 2015, p. 525)7.
A primeira seção sobre “Tradução” saiu no volume 2, número 3 (01 de agosto de 2015)
como “Trans*formational Pedagogies”. Incluiu o trabalho de S. P. F. Dale, que traduziu o
artigo de Ray Tanaka, ” Queers and the Issue of Priority”, e o trabalho de Fabian Alfie, que
traduziu uma passagem descrevendo o transformismo (cross-dressing) em um texto italiano
do século XIV de Giovanni Sercambi. A segunda seção sobre “Tradução” se tornou o tema
principal do volume 3, número 3–4 (01 de novembro de 2016), “Translating Transgender”.
Esta edição especial, inteiramente sobre tradução, faz com que os estudos de transgêneros,
como uma área da teoria crítica, investiguem pontos interessantes, como: estudos
etnográficos de espaços e comunidades transgêneros multilíngues; estudos etnográficos de
contextos médicos, legais, penais ou educacionais, nos quais a posicionalidade ou existência de

poststructuralist analysis of gender identity that opened up new possibilities for transsexuals—and, by extension,
for other types of people who feel themselves to be ‘differently gendered’—to escape the powerful effects of both
medical and feminist discourses that have worked to efface and invalidate their life experiences".
5
No original: "a necessary and profoundly hopeful act for those who trans gender, for we have been taught that
transgender is marked by dysphoria, a word from Greek that means difficult to bear, difficult to carry. In order
to carry or bring across, we [transgenders] become poets, storytellers, and artists".
6
No original: "beyond its Anglophone roots, by highlighting texts originating in languages other than English
and by making visible the work of translation necessary to bring to English- reading audiences the work of
researchers, writers, thinkers, and activists from around the world".
7
No original: "historical documents and contemporary voices that simultaneously challenge the Anglocentric bias
of the transgender studies field while expanding the field’s breadth and reach [...] translated fiction, nonfiction,
poetry, and research texts".
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
290
transgêneros é negociada translingualmente; reflexões sobre o ofício e a prática da tradução,
amplamente concebidos; estudos que modelam um “estudo multilíngue de trangêneros”
ou uma futuridade trans multilíngue de maneira mais ampla; reflexões sobre o processo
de tradução de textos que lidam com transgêneros e variações de gênero; ensaios sobre
como pode se parecer a metodologia transgênero na teoria ou prática da tradução; ensaios
explorando o que as práticas de intérpretes e tradutores profissionais (literários, poéticos,
técnicos, diplomáticos) podem revelar sobre a epistemologia transgênero; estudos históricos
vinculando a prática multilíngue, de troca de código e translingual com a concretização
transgênero; estudos históricos ligando a genealogia do monolingualismo a várias linhagens
de normatividade de gênero; e um metacriticismo da área emergente dos estudos sobre
transgêneros, seus termos e metodologias do ponto de vista multilíngue, apenas para
mencionar alguns, pois a lista é longa (GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 345–346)8. Os artigos
compilados nessa edição “procedem como uma residência crítica informal por meio de uma
série de problemáticas que, juntas, testam as capacidades heurísticas e políticas das palavras
tradução e transgênero em vários contextos” (GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 346)9. Esses
artigos induzem perguntas instigantes, que variam de como as pessoas trans participaram
da vocação da tradução e de como elas são consideradas ou desconsideradas da história
geral da tradução, até o que os campos dos estudos de tradução e dos transgêneros têm a
dizer um ao outro – em termos de restrições metodológicas e políticas, suas reivindicações
de relevância interdisciplinar e relacionamento com estruturas e discursos universitários
(GRAMLING; DUTTA, 2016, p. 347)10. A terceira seção sobre “Tradução” está no volume
4, número 2 (01 de maio de 2017), “The Issue of Blackness”. A “Translation Section: The Issue of
8
Para acessar a listagem levantada por eles, acesse os artigos incluídos na primeira edição, “Untranslatable Subjects:
Travesti Access to Public Health Care in Brazil”, de Alvaro Jarrín; “Language Purism and Gender: Icelandic Trans*
Activists and the Icelandic Linguistic Gender Binary”, de Jyl Josephson; “Þorgerður Einarsdóttir; From Representation
to Corposubjectivation: The Configuration of Transgender in Mexico City”, de Alba Pons Rabasa; “Translating Hijra
into Transgender: Performance and Pehchān in India’s Trans-Hijra Communities”, de Jeff Roy; “Always in Translation:
Trans Cinema across Languages”, de Helen Hok-Sze Leung; “Conceptualizing Sex, Gender, and Trans: An Anglo-
Finnish Perspective”, de Unni Leino; “Pedro Lemebel and the Translatxrsation: On a Genderqueer Translation Praxis”, de
Arielle A. Concilio; “Keeping the Trans in Translation: Queering Early Modern Transgender Memoirs”, de Emily Rose;
“Translation, Transition, Transgender: Framing the Life of Charlotte von Mahlsdorf”, de Brian James Baer; “Untranslating
Gender in Trish Salah’s Lyric Sexology Vol. 1”, de Kay Gabriel; “Plus the Swinging of the Door”, de Nathanaël; “Flows of
Trans-Language: Translating Transgender in the Paraguayan Sea”, de Christopher Larkosh; “In Memoriam to Identity:
Transgender as Strategy in Qiu Miaojin’s Last Words from Montmartre”, de Ari Larissa Heinrich e Eloise Dowd;
“You Have Made Her a Man among Men’: Translating the Khuntha’s Anatomy in Fatimid Jurisprudence”, de Saqer A.
Almarri; e “Translating the Human: The Androginos in Tosefta Bikurim”, de Max Strassfeld.
9
No original: "proceed as a loose critical sojourn through a range of problematics that, together, test the heuristic
and political capacities of the words translation and transgender in various contexts".
10
As outras questões levantadas pelos ensaios são: como a pressão para “ser traduzível” afetou as vidas, as histórias
e as experiências de pessoas transgêneros e qual é a consequência política dessa pressão? Como a tradução rápida
e monetizada de certos discursos na era da transnacionalização institucional – incluindo discursos médicos,
jurídicos, de direitos humanos, de saúde sexual, feministas, cirúrgicos, psicológicos, legislativos e ativistas –
impactou a capacidade de prosperar de pessoas ou comunidades identificadas como trans? Que contingências
específicas acompanham a tarefa de traduzir textos que narram subjetividades de transgêneros? Como a vida
transgênero em contextos históricos segregativos de gênero levou a novas práticas de textualização translacional
– isto é, a maneiras de tornar o corpo significativo como persona humana ou sujeito cívico? (GRAMLING;
DUTTA, 2016, p. 347).
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Blackness”, organizada por David Gramling, Patrick Ploschnitzki e Tara Taylor, contém três
artigos curtos, traduzidos do alemão, que refletem sobre a pessoa negra queer na comunidade
negra na Alemanha. A quarta sessão sobre “Tradução” aparece no volume 5, número 1 (01
de fevereiro de 2018), com Emrah Karakus traduzindo vozes trans da Turquia. Assim, a
revista TSQ: Transgender Studies Quarterly destaca que a tradução não apenas faz a narrativa
trans circular globalmente, como também enfatiza a importância de construir uma ponte de
solidariedade para as pessoas trans em todo o mundo. Fornece dados e análises comparativos
sobre aspectos significativos da situação de direitos humanos de pessoas trans e de gênero
variantes e advoga por sua proteção.
Nos últimos dois anos na Índia, houve um grande interesse em traduzir as autobiografias
das hijras para o inglês e para outros idiomas indianos. A relação entre tradução e minorias não
pode, a princípio, ser facilmente vista. No entanto, é um dos temas mais importantes nesse
campo de pesquisa nos últimos anos, como destaca o TSQ. Pessoas que pertencem a grupos
minoritários em uma determinada sociedade, como falantes de um determinado idioma
não oficial ou regional, pessoas com necessidades especiais e comunidades trans, podem
compartilhar suas experiências e tentar se conectar um com o outro por meio de tradutores
e intérpretes. Eles ajudam pessoas trans a espalhar seus pontos de vista e reivindicações
para lugares legítimos em seus países ou sociedade. Isso vale especialmente na Índia, onde
coexistem 22 línguas principais e 22.000 dialetos distintos. Essa diversidade linguística
e cultural significa que enormes barreiras precisam ser ultrapassadas em todo o país, e o
idioma desempenha um papel significativo na vida cotidiana das pessoas. No entanto, mais
do que idiomas diferentes, o subcontinente apresenta uma variedade de culturas locais que,
exceto pela tradução, permaneceriam desconhecidas fora do seu espaço original – e, às vezes,
limitado. A literatura indiana, em línguas vernaculares ou em inglês, foi espalhada por todo
o mundo; escritores indianos contemporâneos, cujos trabalhos são originalmente publicados
em um dos idiomas locais, como sânscrito, bengali, hindi, urdu e outros, são traduzidos para
o inglês, encontrando assim um público mais amplo no país e no exterior. E, acima de tudo,
as minorias indianas podem expressar suas necessidades e esperanças em textos que serão
traduzidos e conhecidos em países distantes como o Brasil.
A voz da comunidade hijra11 está sendo ouvida no Brasil graças às traduções inglesas
de suas (auto)biografias, uma linguagem que proporciona maior visibilidade e alcance
internacional. Entre as comunidades trans locais, as seguintes obras têm boa recepção: I am
Vidya: A Transgender’s Journey (2013) de Living Smile Vidya, The Truth about Me: A Hijra Life
Story (2010) de A. Revathi, Me Hijra, Me Laxmi (2015) de Laxmi Narayan Tripathi e A Gift
of Goddess Lakshmi (2017) de Manobi Bandyopadhyay. Quando apresentadas em congressos,
em inglês ou em tradução de trechos para o português, suas narrativas de intenso estigma,
discriminação e violação dos direitos humanos criam uma sensação de, usando as palavras

11
A comunidade trans na Índia, como aponta Gee Imaan Semmalar, é diversa e inclui várias identidades tais
como: hijra, thirunangai, kinnar, mangalamukhi, aravani, kothi, jogappas, shiv shaktis, thirunambis, bhaiyya e paiyyan
(SEMMALAR, 2014, p. 286). A identidade hijra, como explica Laxmi Narayan Tripathi, pertence a “mais antiga
comunidade étnica de transgêneros” (TRIPATHI apud CROCKER, 2014, s/p). No original: "the oldest ethnic
transgender community".
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de Benedict Anderson, “comunidade imaginada” entre as/os brasileiras/os trans que também
experimentam múltiplas formas de opressão e violação dos direitos.
Como apontei em “The Voice of an Indian Trans Woman: A Hijra Autobiography” (2018), a
literatura hijra, um gênero literário novo e em evolução na Índia, está tentando conscientizar
o/a leitor/a e a sociedade de que “as hijras são capazes de mais do que apenas mendicância
e trabalho sexual” (REVATHI; 2010, p. v)12. É uma compilação das experiências trans e da
cultura das hijras e de sua resistência à heteronormatividade13, que cria processos insidiosos
de estigmatização, discriminação, marginalização, patologização e confinamento, operando
no nível da percepção social, no espaço social, nas instituições sociais, no senso comum, no
sistema judicial, na família, no Estado e no sistema médico (FOUCAULT; 1988, p. 80–81).
Essas autobiografias discutem questões de direitos humanos, democracia, sistema de castas,
leis e igualdade de gênero na Índia. Descrevem também o ativismo trans indiano, que busca
respeitabilidade e representatividade para a identidade trans. Suas preocupações sociais estão
sendo divulgadas na Índia por meio de traduções.
Em 2007, a primeira autobiografia escrita por uma hijra foi a de Living Smile Vidya.
Originalmente escrito em tâmil, o livro foi traduzido para assamês, inglês, canarês, malaiala,
marata e outras línguas. Em 2011, o Sahitya Akademi Award concedeu a Tamil Selvi um
prêmio pela melhor tradução do livro de Vidya. Selvi traduziu Naan Sharavanan lllai. Vidya
(2007), de Tamil para Naanu Avanalla ... Avalu ...! (2015), em canarês. A partir da tradução em
canarês, B. S. Lingadevaru produziu o filme Naanu Avanalla ... Avalu ...! (2015), retratando a
vida de Vidya na tela e tornando visível a comunidade hijra. Na passagem da palavra (texto
literário) para o audiovisual (cinema e teatro)14, a primeira autobiografia de uma hijra ganha
novos registros, novos espaços e novo público. Através dessas diferentes expressões artísticas
(literatura, cinema, traduções e teatro), Vidya faz a sua história circular, rebelando-se contra
o “cis-tema”. O corpo abjeto, portanto, está presente e resistente na (re)escrita.
Em 2010, A. Revathi publica The Truth about Me: A Hijra Life Story. Embora tenha sido
originalmente escrito em tâmil, foi publicado pela primeira vez em inglês com a tradução
de V. Geetha. Foi traduzido depois para as línguas canarês, malaiala, tâmil e telugo. Como
explica Revathi,
esses livros foram armazenados em bibliotecas de mais de 300 faculdades e
universidades do país. Juntos, os livros criam conscientização entre os alunos
sobre gênero e sexualidade. Até onde sei, os livros fazem parte do programa de
20 universidades e faculdades (REVATHI, 2016, p. xiii)15.

12
No original: "hijras are capable of more than just begging and sex work".
13
É a ordem sexual do presente, baseada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. É imposta por meio de
violência simbólica e física, principalmente em relação àqueles que violam as normas de gênero.
14
Em agosto de 2014, Living Smile Vidya, Gee Imman Semmalar e Angel Glady fundaram o Teatro Panmmai.
É a primeira companhia de teatro administrada por pessoas trans, cujo objetivo é usar o teatro como meio para,
conforme Vidya explica, “Panmai começou como uma plataforma para contarmos nossas histórias. Mas, a longo
prazo, esperamos transformá-lo em espaço para outras pessoas marginalizadas contarem as suas” (VIDYA apud
RAJENDRA, 2015, s/p). Segundo Semmalar, na peça Cor de trans, “nosso foco tem sido apresentar a história de
nossas vidas, a percepção das pessoas sobre nós e os problemas que enfrentamos [...] Cor de trans é uma tentativa de
agitar as pessoas e fazê-las perceber que também somos indivíduos” (SEMMALAR apud RAJENDRA, 2015, s/p).
15
No original: "these books have been stocked in libraries of more than 300 colleges and universities in the
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Ela também enfatiza a importância das autobiografias de pessoas trans e argumenta
que dez anos atrás não havia muita discussão entre os estudantes sobre a comunidade
de transgêneros. Essas autobiografias foram, em suas próprias palavras, “reveladoras”
para as pessoas conhecerem a comunidade hijra (REVATHI, 2016, p. xiii). A escrita,
ela afirma, “era poderosa para anunciar mudanças sociais. No entanto, me perguntava
quantos Revathis mais, se tivessem tais oportunidades, teriam surgido? Certamente, não
teriam sido forçadas ao trabalho sexual. Talvez elas também possam ter tido sucesso como
escritoras, artistas e outras profissionais” (REVATHI, 2016, p. 87)16. Também poderíamos
questionar: por que não tradutoras?
The Truth about Me: A Hijra Life Story (2010) forjou “uma nova gramática da escrita”, e
Revathi, como outras hijras, quebrou os cânones literários estabelecidos, introduzindo uma
linguagem intensamente pessoal e direta para falar sobre a transexualidade. Para ela, escrever
é um processo “profundamente catártico e de cura”, onde sua “dor havia sido transformada
em arte” (REVATHI, 2010, p. 87)17. Revathi inscreve não apenas a si mesma no mundo, mas
também a sua comunidade. Escrever (autobiografia) sobre trauma é um dispositivo poderoso
para transformar dor e perda em ação política.
Em 2015, Me Hijra, Me Laxmi foi lançado. O texto original foi escrito em marata pela
jornalista Vaishali Rode, que deu forma à vida de Laxmi. A versão em inglês foi traduzida
por R. Raj Rao e P.G. Joshi e tem, considero, um processo peculiar de tradução ou “criação
literária”18. No prefácio do livro, Rao explica o processo linguístico envolvido na tradução
da história de Laxmi:

É uma tradução colaborativa, com um de nós (P. G. Joshi) trabalhando com o


original marata (o idioma de origem) e o outro (eu) “traduzindo para o inglês”
a narrativa (colocando-o no idioma de destino). No entanto, nem Joshi nem eu
somos completamente alheios à língua do outro: Joshi era, até recentemente,
professor de inglês em uma faculdade afiliada à Universidade de Pune, e eu sou
residente de Maharashtra. O que complica a obra é que ela não foi de autoria da

country. Together the books create awareness among students about gender and sexuality. As far as I know, the
books form part of the prescribed syllabus in 20 universities and colleges".
16
No original: "was powerful to herald social change. Yet I wondered how many more Revathis, if they had such
opportunities, would have emerged? Certainly, they would not have been forced into sex work. Perhaps they too
could have blossomed as writers, artists and other professionals".
17
No original: "pain had been transformed into art".
18
R. Raj Rao é a primeira pessoa a reconhecer a literatura hijra. Como Rao afirma no posfácio de Eu Hijra, eu
Laxmi (2015), "a autobiografia de Laxmi é uma das primeiras obras que pertencem ao gênero de literatura hijra.
Ela procura conscientizar os leitores sobre quem realmente são as hijras e o que é necessário para moldar suas
personalidades – sim, elas têm personalidades. Procura dissipar os mitos sobre as hijras e nos ajuda a eliminar
nossos preconceitos." (RAO, 2015, p. 183). No original: "Laxmi’s autobiography is one of the earliest works that
belong to the genre of hijra literature. It seeks to make readers aware of who the hijras really are, and what goes
into the shaping their personalities—yes, they do have personalities. It seeks to dispel myths about the hijras and
help us shed our prejudices".
O aspecto mais relevante dessa narrativa é que ela gera um contra-discurso e as hijras ocupam um lugar, tomando
emprestada a palavra de Sandy Stone, “como sujeito falante dentro da estrutura tradicional de gênero para se
tornar cúmplice no discurso que se deseja desconstruir” (STONE, 2006, p. 12). No original: "as speaking subject
within the traditional gender frame to become complicit in the discourse which one wishes to deconstruct".
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própria Laxmi, que não é falante de marata, embora tenha morado em Mumbai
por muito tempo; foi escrita por Vaishali Rode, jornalista marata, para quem
Laxmi contou sua história (RAO, 2015, p. 212)19.

A descrição de Rao acima citada apresenta a diversidade linguística indiana e o papel


da tradução para fazer circularem as histórias trans. É interessante notar que a história de
Laxmi é legitimada primeiramente pela curiosidade de Rode em saber mais sobre as hijras.
Mais tarde, ela recebeu outro impulso, além de ter ganhado maior repercussão, quando a
tradução de trechos do livro feita por Rao e Joshi apareceu na revista Words without Borders,
The Queer Issue IV 2013. Esses trechos, como Rao aponta, tiveram uma boa recepção e isso os
incentivou a traduzir o livro inteiro.
A (auto)biografia de Laxmi, como afirma Vaishali Rode, “pode chocar a sociedade
conservadora, que tem noções preconcebidas sobre hijras, sobre seu modo de andar, conversar,
vestir e bater palmas. Mas a própria linguagem e comportamento de Laxmi contestam esse
pensamento. Ela é culta até os fios do cabelo” (RODE, 2015, p. 235–236)20. Empoderada, ela
se tornou crítica não apenas da sociedade, mas também de sua própria comunidade:

Eu observei todas as regras porque a decisão de se tornar uma hijra era, afinal,
minha. Mas logo chegou um momento em que me rebelei. Eu não aguentava as
restrições à minha liberdade. [...] É cansativo nadar contra a corrente. Eu tenho
nadado contra duas correntes – uma é a sociedade e a outra, a comunidade.
Ambas precisam mudar de atitude. Enquanto a sociedade precisa enfrentar
seus preconceitos em relação às hijras, as próprias hijras devem ser francas
(TRIPATHI, 2015, p. 160)21.

Seu ativismo surge quando observa a vida precária das prostitutas de Kamatipura,
área de prostituição de Mumbai. Enquanto trabalhava para a DWS e Astitva, organizações
não-governamentais, Laxmi busca melhorar as condições de vida de hijras e prostitutas. Seu
trabalho social ganhou repercussões nacionais e internacionais e, em 2017, recebeu o prêmio
de Indiano do Ano da Brands Academy. Ela lutou fortemente contra a Seção 377 do Código
Penal Indiano. Depois da Autoridade Nacional de Serviços Jurídicos e da Poojya Mata Nasib
Kaur Ji (sociedade de bem-estar das mulheres), Laxmi também apresentou uma petição

19
No original: " It is a collaborative translation, with one of us (P.G. Joshi) working with the Marathi original
(the source language) and the other (me) ‘Englishing’ the narrative (putting it into the target language). However,
neither Joshi nor I are completely oblivious of the other’s language: Joshi was, till recently, professor of English
at a college affiliated to the University of Pune, and I am a domiciled Maharashtrian. What complicates the work
is that it was not authored by Laxmi herself, who is not a Marathi speaker, though she has lived in Mumbai for
long, but was written by Vaishali Rode, a Marathi journalist to whom Laxmi spoke".
20
No original: "may shock the conservative society, which has preconceived notions about hijras, about their
way of walking, talking, dressing, and clapping. But Laxmi’s own language and demeanour contest it. She is
cultured to her fingertips".
21
No original: "I observed all the rules because the decision to become a hijra was, after all, mine. But soon
there came a time when I rebelled. I could not stand the restrictions on my freedom. [...] It is tiresome to
swim against the current. I have been swimming against two currents—one society and the other community.
Both need to change their attitude. Whereas society needs to confront its biases towards the hijras, the hijras
themselves must be forthright".
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por escrito. Os esforços dela e também da comunidade LGBTQIA+ foram recompensados
quando a Suprema Corte descriminalizou a homossexualidade em 06 de setembro de 2018.
Essa lei colonial criminalizava as relações homossexuais na Índia por mais de um século.
Foi usada contra comunidades vulneráveis, principalmente hijras e profissionais do sexo. A
Seção 377 negava a dignidade e o respeito próprio que a Constituição da Índia lhes garante.
Em A Gift of Goddess (2017), Jhimli Mukherjee Pandey traduz a história de Manobi
Bandyopadhyay e espera que “como a ‘alma’ de Manobi Di, que fala ao leitor através do
livro, eu possa fazer justiça a ela” (PANDEY, 2017, p. 186)22. Bandyopadhyay, o indivíduo
machucado que anseia por liberdade, tem que se (auto)traduzir, explicando o corpo
trans porque, desta forma, “ajudaria a sociedade a entender melhor as pessoas como eu.
Somos um pouco diferentes externamente, mas somos seres humanos exatamente como
você e temos as mesmas necessidades – físicas e emocionais – da mesma forma que você”
(BANDYOPADHYAY, 2017, p. ix)23. Manobi, como ela gosta de ser chamada, nunca deixou
o bullying afetar seus estudos, sempre tirando boas notas na escola. Ela acreditava que essa
seria a única maneira de superar o preconceito. Como em outras autobiografias trans, Manobi
apresenta os anos escolares como marcados por infinitos abusos e discriminações, uma vez
que seus traços femininos podiam ser identificados em sua infância. O mecanismo que as
escolas desenvolvem para excluir aqueles que vivem feminilidades e/ou masculinidades
diferentes das normas também atinge o nível de graduação:

A faculdade geralmente vem como um alívio na vida da maioria dos estudantes.


Eles finalmente encontram liberdade depois de quatorze anos de vida escolar
regular. Mas isso não aconteceu comigo. A faculdade era um outro lugar onde
teria que lutar por minha identidade e respeito” (BANDYOPADHYAY, 2017, p.
39–40)24.

A discriminação contra ela (piadas, risadinhas, xingamentos e outras violências) ocorre


em todos os níveis da escola. Sua vida profissional como professora de literatura bengalesa
também é marcada por discriminação e violência. Em 1995, começou a lecionar na Faculdade
de Vivekananada Satavarshiki, em Jhargram, e relembra seu primeiro dia na instituição,
sendo ridicularizada por professores, alunos e funcionários:

Ninguém tão baixo como uma hijra deveria poder ensinar em uma faculdade,
compartilhar a mesma sala de funcionários, banheiro e instalações. Inicialmente,
eles pensaram que, se me fizessem sentir infeliz, iria embora por minha própria
vontade. Mas quando perceberam que não desistiria tão facilmente, juntaram-se
para me agredir de vez em quando (BANDYOPADHYAY, 2017, p. 93)25.

22
No original: "as Manobi Di’s “soul”, who speaks to the reader through the book, I have been able to do justice
to her".
23
No original: "it would help society understand people like me better. We are slightly different outwardly, but
we are humans just as you are and have the same needs—physical and emotional—just as you have".
24
No original: "College usually comes as a relief in the lives of most students. They finally find freedom after
fourteen years of regimented school life. But this didn’t happen for me. I found college to be yet another place
where I would have to fight for my identity and respect".
25
No original: "No one as lowly as a hijra should be allowed to teach in a college, share the same staffroom, toilet
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Embora a violência física e verbal tenha sido uma constante em sua vida acadêmica,
a educação para Manobi sempre foi sinônimo de resistência. Em suas aulas de literatura,
ensina os alunos a ler criticamente textos literários bengalis, expondo-os a todas as formas
de diversidade e injustiça social. Ela criou a primeira revista transexual na Índia. O nome
da revista, Abomanob/Subhuman, refere-se ao status dado às pessoas transgênero pela
sociedade. De acordo com Manobi, “foi meu protesto contra a nossa sociedade que finge
ser magnânima e inclusiva, ao mesmo tempo em que é cruamente brutal sob sua máscara”
(BANDYOPADHYAY, 2017, p. 112)26. Em 2005, ela defendeu sua tese de doutorado sobre
transexualidade na Universidade de Kalyani. O diploma não facilitou a vida dela; pelo contrário,
tornou-se um pesadelo. Os certificados acadêmicos carregam o nome masculino Somnath
Bandyopadhyay e o diploma de doutorado leva o nome feminino Manabi Bandyopadhyay.
Como resultado, ela perdeu o direito de uma promoção à posição de leitor. No entanto, isso
não a impede de se candidatar à posição de diretora. Com um bom currículo acadêmico
(boas notas, experiência de graduação, palestras, conferências, publicações e livros), ela
é selecionada para ser a diretora do Krishnagar Women's College em 2015, tornando-se a
primeira diretora transexual da Índia.
Os livros de Revathi e Manobi são publicados pela Penguin Books India e os de Laxmi
pela Oxford University Press, Penguin Random House India e Viking, consideradas algumas das
editoras internacionais mais prestigiadas. Em uma entrevista, o editor executivo da Penguin
Random House India, Vaishali Mathur, argumenta que “a exploração e o ostracismo que elas
enfrentam as tornam quem são – inspiradoras e exemplos do que a determinação pode fazer
diante das probabilidades. É isso que torna suas histórias tão especiais” (MATHUR apud
GUPTA, 2017, s/p)27.
Vidya, Revathi, Laxmi e Manobi apresentam em seus livros a importância de considerar
questões de representação na obra literária. A literatura hijra vai além do guarda-chuva queer.
É a visão de mundo de uma transexual. Essas escritoras são exemplos de vozes de minorias
sexuais que os estudos literários não devem mais ignorar. Durante anos, seu direito de falar
ou escrever foi negado. Não apenas Vidya, mas também Revathi, Laxmi e Manobi tiveram
que, primeiramente, se traduzir (explicar quem são) a fim de fazer a sociedade percebê-las
como seres humanos. Agora elas abriram espaço para se comporem em inteligibilidade e
reexistência, contra a violência social, o apagamento institucional, o encarceramento e o
homicídio. Assim, a literatura para elas se torna um dispositivo de transformação social. A
mudança legal, como Revathi nos lembra,

sem liberdade social não tem sentido” e “a verdadeira igualdade surge apenas
quando as mulheres são tratadas com respeito; como iguais no verdadeiro

and facilities. Initially they thought that if they made me feel miserable, I would leave of my own volition. But
when they realized that I won’t give in so easily, they got together to assault me every now and then".
26
No original: "it was my protest against our society which pretends to be magnanimous and inclusive while
being nakedly brutal beneath its mask".
27
No original: "exploitation and ostracism they face makes them who they are— inspirational and examples of
what determination can do in the face of odds. That’s what makes their stories so special".
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297
sentido do termo. Somente quando isso acontecer, as pessoas trans também serão
verdadeiramente respeitadas como seres humanos (REVATHI, 2016, p. 237)28.

Os estudos de tradução estariam prontos para tratar a narrativa trans ou a narrativa


hijra como um objeto de análise? E os estudos literários? Estariam prontos para se unirem
aos estudos de transgêneros a fim de tornar a narrativa trans ou a narrativa hijra pesquisável?
Isso só acontecerá quando a literatura não for vista como um objeto estético separado de
qualquer contexto, mas vista através da interseccionalidade, conceito segundo o qual várias
formas de estratificação social – como classe, casta, religião, raça, orientação sexual, idade,
deficiência e gênero – não existem separadamente uma da outra, mas estão entrelaçadas
(CRENSHAW, 1989, p. 150). Isso também ocorrerá quando personagens trans, conforme
Casey Plett afirma, não forem escritas como “heroínas torturadas”. Em sua crítica ao romance
de gênero em ascensão, Plett afirma que

historicamente, as pessoas trans sempre foram escritas de certas maneiras para


servir a certos interesses por pessoas cis. E eu acho isso entediante e estúpido.
Basicamente, meu argumento é que muitos desses romances com histórias
escritas por pessoas cis tendem a colocar pessoas trans em pedestais e torná-
las heroínas unidimensionais da Disney. Quando colocam uma personagem
trans, estão sempre sozinhas, há apenas uma. É claro que as pessoas trans
ficam sozinhas a maior parte do tempo e isso é péssimo, mas estou realmente
interessada no que acontece quando você tem muitas pessoas trans juntas ...
O que acontece quando as pessoas trans conversam entre si? Quando existe
apenas uma de nós, somos somente apresentadas como uma anomalia (PLETT
apud ROLLMANN, 2015, s/p)29.

Só então, eu afirmaria, a literatura pode realmente se tornar humanizadora. Não devemos


ignorar a complexidade da literatura hijra/literatura trans, seja através de autobiografias
e romances ou poesia. Essa literatura busca não apenas a visibilidade, mas também a
representatividade. Retrata vidas trans e personagens situadas histórica e culturalmente.
Concluo minhas reflexões sobre a literatura hijra, que ainda está em estágio inicial, com
minha tradução para o português do poema de Revathi30. Suas palavras reverberam a luta
trans por direitos e respeito. O poema, para mim, é uma ponte de solidariedade entre pessoas
trans em todo o mundo.
28
No original: "without social freedom is meaningless’ and ‘true equality emerges only when women are treated
with respect; as equals in the true sense of the term. Only when this happens, will trans people also be truly
respected as humans".
29
No original: "trans people have historically always been written in certain ways to serve certain interests by
cis people. And I think that’s boring and dumb. Basically my argument is that a lot of these novels which have
storylines written by cis people tend to put trans people on pedestals and make them like one-dimensional
Disney heroes. When they put a trans character in, they’re always alone, there’s only one of them. Sure, trans
people are alone a lot of the time and it sucks, but I’m really interested in what happens when you have lots of
transpeople together... what happens when trans people talk to each other? When there’s only one of us we can
only be presented as an anomaly".
30
Traduzi este poema para o livro Corpos Transgressores: Políticas de Resistências (2018), organizado por Dánie
Marcelo de Jesus, Glenda Cristina Valim de Melo, Vicente Tchalian e Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior.
O poema original pode ser encontrado no livro de A. Revathi, A Life in Trans Activism (2016, p. 67–68).
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
298
My Rights as a Trans Woman Meus direitos de Mulher Trans

A. Revathi A. Revathi

Rejected by parents Rejeitada pelos pais


Rejected by society Rejeitada pela sociedade
Rejected by the world Rejeitada pelo mundo
I sing today. Eu me manifesto hoje.

I am left with neither property Fui deixada sem herança


nor pleasure sem prazer
I am left with neither home sem lar
nor a job. sem emprego.

I was born a man Nasci homem


I have struggled to be as any luto para ser como qualquer
woman mulher
to be a daughter, a sister ser filha, irmã
a mother, a grandmother mãe, avó
a granddaughter. neta.

Ours is an excluded Nossa comunidade é excluída


and exiled community exilada
we are the aravanis somos hijras/aravanis
the transgender people. somos pessoas trans.

Violated by goondas and the Violentadas pelos goondas e pela


police polícia
criminalized by the law criminalizadas pela lei
that fails to understand que não consegue compreender
our desperation nosso desespero
to live, to exist. para viver, para existir.

We are called Xingadas de


beggars and sex workers prostitutas e mendigas
has this world left us any choice? o mundo nos dá alguma escolha?

We crave for love Ansiamos por amor


we need to love too precisamos amar também
as do all human beings. como todos os seres humanos.

We will continue to struggle Continuaremos a lutar


we ask not for your pity não pedimos sua piedade
only your understanding. somente sua compreensão.

Exigimos aceitação
We demand acceptance dos pais
from parents da sociedade
from society do mundo
from the world para sermos vistas como seres
to be human humanos
to live as we have chosen. para viver como escolhemos.

RAMOS, R. C. O. Making Trans Experiences Visible through Translations. Olho d’água,


São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 288-301, 2020. [Trad. Davi Silistino de Souza]. ISSN
2177–3807.

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
299
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Recebido em: 25 abr. 2020


Aceito em: 5 mai. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
301
TRADUÇÃO COMENTADA

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
302
Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay
Disponível em: https://pixabay.com/pt/vectors/botas-p%C3%A9-couro-
sapatos-1293810/

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Tradução comentada do conto “Costantino
Fortunato”, de Giovan Francesco Straparola

MARIA CELESTE TOMMASELLO RAMOS*


E U C I M A R A R E G I N A S A N T A N A S E G U N D O **

RESUMO: Apresentamos a tradução para o português do conto maravilhoso “Costantino


Fortunato”, ou seja, “Constantino Afortunado”, do escritor italiano Giovan Francesco Straparola
(1480–1557). Trata-se da primeira versão literária conhecida do “Gato de Botas”, tornada
famosa, séculos depois, pela versão publicada pelo escritor francês Charles Perrault. A tradução é
introduzida por explicações, comentada em notas e está acompanhada de duas partes às quais está
ligada na obra original: a introdução da décima primeira noite e o enigma final.

PALAVRAS-CHAVE: Conto; Giovan Francesco Straparola; Literatura Italiana; Tradução


Comentada.

ABSTRACT: We present the translation in Portuguese of the tale “Costantino Fortunato”, or


also, “Constantino Afortunado”, by the Italian writer Giovan Francesco Straparola (1480-1557).
This is the first known literary version of “Puss on Boots”, made famous, centuries later, by the
version published by the French writer Charles Perrault. This annotated translation is introduced
by explanations, commented on notes and is accompanied by two parts that are linked to this tale
in the original work: the introduction of the eleventh night and the final riddle.

KEYWORDS: Annotated Translation; Giovan Francesco Straparola; Italian Literature; Tale.

* Departamento de Letras Modernas – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – São
José do Rio Preto – 15054-000 – SP – Brasil. Bolsista PQ do CNPq. E–mail: mct.ramos@unesp.br
** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP – São José do Rio Preto – 15054-000 – SP – Brasil. E–mail: eucimara@terra.com.br
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Apresentamos a tradução do conto maravilhoso “Costantino Fortunato”, de Giovan
Francesco Straparola que serviu de texto-fonte ou de inspiração, como afirmam vários
estudiosos, entre eles Ítalo Calvino (1996), para a escritura do conto “O gato de botas”, pelo
francês Charles Perrault. O conto que aqui traduzimos com comentários foi originalmente
publicado no livro Le piacevoli notti.
De seu autor se sabe pouco, somente que Giovan Francesco Straparola nasceu em
Caravaggio, na região italiana da Lombardia, por volta de 1480, e faleceu em Veneza, na
região vizinha chamada Vêneto, por volta de 1557. Com certeza seu sobrenome era artístico,
derivado do verbo straparlare, ou seja, falar além da conta, e disso ele realmente entendia,
pois ficou famoso por seus contos reunidos em sua obra-prima Le piacevoli notti, cuja tradução
literal é As noites agradáveis1.
A obra foi publicada pela primeira vez em Veneza, em duas partes. A primeira parte
surgiu em 1550, composta das cinco primeiras noites, e a segunda, composta de oito noites,
em 1553, sendo que última teria sido escrita em virtude do grande êxito da sua precedente.
Há uma homologia estrutural entre ela e a obra Decamerão, de Giovanni Boccaccio, escrita
duzentos anos antes, na qual dez jovens contam dez histórias cada um, por dia, durante dez
dias, reunindo assim cem contos. Na obra de Straparola, damas e cavalheiros narram, uns
para os outros, certas histórias em forma de pequenos contos, em número variável cada
noite, durante treze noites, até reunirem o total de setenta e quatro contos.
Seus temas são muito diversos, várias histórias de origem popular, outras já contadas
antes em obras consagradas como na de Boccaccio, por exemplo. Outras, no entanto, são
exemplares e tocam o maravilhoso, constituindo-se, provavelmente, num dos primeiros
registros do conto desse gênero na Literatura Mundial. Dentre seus contos estão as primeiras
versões que se conhece não somente de “O gato de botas”, mas também de “A bela e a fera”
e outros contos famosos. Sua obra foi texto-fonte para vários escritores posteriores como
Charles Perrault, os Irmãos Grimm e Giambattista Basile, despertando, até hoje, o interesse
dos folcloristas e etnografistas como o brasileiro Luís da Câmara Cascudo, que o cita diversas
vezes, em notas que comentam os contos orais coletados em Contos tradicionais do Brasil.
Em relação à fonte literária da narrativa francesa que tornou famoso o felino com
poderes maravilhosos, popularmente conhecida como “O Gato de botas”, o ensaísta Italo
Calvino (1996) afirma que:

Outros argumentos de discussão entre os estudiosos é aquele sobre as fontes de


várias fábulas. Muitas delas (Pele de Asno, Cinderela, A bela adormecida no bosque, O
Gato de botas, O pequeno polegar, As fadas) se encontram, em variantes semelhantes
a essas, em um livro em dialeto napolitano publicado sessenta anos antes (1634-
36): o Pentamerão ou O Conto dos Contos de Giambattista Basile. Mas podia Perrault
ler o obscuro napolitano de Basile? Não é excludente, mas não é comprovado.
Mais provável é que conhecesse As noites agradáveis de Francesco Straparola que

1
Ou somente Noites agradáveis, como consta na obra que contém a tradução de apenas quatro contos de Straparola para
o português: “Cassandrino e o Juiz de Perússia”, “O Abade Scarpacífico”, “Doralice” e “Biancabella” realizada por Renata
Cordeiro, e presentes na edição que a Editora Princípio publicou em 2007 (STRAPAROLA, 2007), que contém um
estudo introdutório bastante detalhado, realizado pela Tradutora (CORDEIRO, 2007, p. 11–57) na “Apresentação”.
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no século XVI já havia sido traduzido para o francês; também nesta coletânea de
novelas do século XVI, na verdade, não faltavam análogos a alguns dos Contes,
mesmo que não tão semelhantes como os de Basile2 (CALVINO, 1996, p. 152 –
grifos do autor e tradução nossa).

Embora sejam divergentes as informações a respeito dos textos-fontes, é fato que


esse resgate literário é importante para os estudos de Literatura Infantil no Brasil não
só por promover o conhecimento das fontes italianas, mas também por registrar contos
maravilhosos em que a astúcia pertence à personagem feminina: na de Straparola, uma
gata maravilhosa, com dons especiais, que favorece, por sua atuação inteligente, seu dono,
de origem pobre. Essa engenhosidade do animal felino, a qual pertence ao animal de sexo
masculino na famosa versão francesa, é tão relevante para os Estudos Literários que, a partir
dela, o teórico André Jolles (1976, p. 186-204, principalmente p. 189) cunhou, em seu livro
Formas Simples, o conceito de moral ingênua como um elemento do conto maravilhoso.
Além disso, é importante ressaltar que, como apontado por Renata Cordeiro (2007, p.
29), nos contos presentes na obra de Straparola, além de mulheres e homens, comparecem
muitos “animais importantes porque é em geral pelo seu intermédio que o maravilhoso
irrompe no relato” exatamente como no conto aqui traduzido com comentários, por meio
da gata de Constantino, assim como acontece por meio da serpente, no conto “Biancabella”,
e em diversos outros. Também no conto traduzido, assim como em tantos outros, “o bem só
vence graças à intervenção do maravilhoso” (CORDEIRO, 2007, p. 33).
Dada a importância dos contos de Straparola como precursor do conto maravilhoso,
acreditamos ser relevante propor para o público brasileiro a leitura do conto “Constantino
Afortunado” (versão traduzida do nome do protagonista e título do conto), originalmente em
italiano, agora traduzido para o português brasileiro com a finalidade de divulgar a primeira
versão do famoso conto maravilhoso “Gato de Botas” em nosso país e reforçar a divulgação
do escritor italiano Giovan Francesco Straparola em nosso país.
Com a tradução, esperamos atingir uma gama maior de leitores, pensando em tornar
acessível o texto literário do autor aos falantes da Língua Portuguesa. Em virtude da diferença
de uso de pronomes de tratamento entre o italiano e o português, decidimos alterar a pessoa
do discurso da narrativa enfocada, isto é, alteramos a segunda pessoa do singular (tu),
presente no texto em italiano, e do plural (vós), para a terceira pessoa do singular ou do
plural (ele ou eles) na língua portuguesa, baseadas no uso atual que se faz dessas pessoas para
se referir à pessoa com a qual se está conversando.
Além disso, optamos por trazer notas de rodapé como “Notas do Tradutor” com a
finalidade de explanar não só expressões idiomáticas, mas também trechos em que a tradução

2
No original: “Altri argomenti di discussione tra gli studiosi è quello delle fonti delle varie fiabe. Molti di esse
(Pelle d’Asino, Cenerentola, La Bella addormentata nel bosco, Il Gatto con gli stivali, Pollicino, Le fatte) si ritrovano,
in variante assai simili, in un libro in dialetto napolitano pubblicato una sessantina d’anni prima (1634-36): il
Pentamerone o Lo Cunto de li cunti di Giambattista Basile. Ma poteva Perrault leggere l’oscuro napolitano di Basile?
Non è escluso, ma non è provato. Più probabile è che conoscesse Le piacevoli notti di Francesco Straparola che già
nel secolo XVI avevano traduzioni in francese; anche in questo novelliere cinquecentesco infatti non mancano
intrecci analoghi ad alcuni dei Contes, anche se non così somiglianti come in Basile (CALVINO, 1996, p. 152).
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exigiu que fôssemos comparar o texto na língua original, que adotamos como fonte, com
uma adaptação em italiano padrão que, de certa forma, inclui uma pequena adaptação para
a uma linguagem própria do conto de fadas mais moderno (STRAPAROLA, 1927b), e que
traz, vez ou outra, certos floreios, que preferimos não adotar integralmente, uma vez que tais
floreios afastariam nossa tradução da linha norteadora do texto fonte presente na edição da
Liber Liber (STRAPAROLA, 1927a).
A estrutura de Le piacevoli notti é bastante peculiar, pois, a cada noite ficcional de
contação de histórias, há uma pequena introdução colocada antes do primeiro conto da
noite “agradável”, cuja função é narrar como os contadores se reuniram para contar e ouvir.
Desse modo, como a história de “Costantino Fortunato”, ou “Constantino Afortunado” na
versão para o português, é a primeira da décima primeira noite, aproveitamos para traduzir
não só o conto, mas também a pequena introdução de tal noite, no início, e a apresentação
de um enigma3 por parte de Fiordiana, que narra a história da gata maravilhosa, no final,
com a finalidade de dar uma amostra de como as narrativas curtas são interligadas numa só
narrativa longa, por meio de introduções pequenas como essa e finalizações, em forma de
apresentação de enigmas, que vão amarrando os diversos quadros narrativos dos pequenos
núcleos ao grande núcleo entrelaçado pela narrativa moldura – senhores e senhoras reunidos
na ilha de Murano, em Veneza, para se divertir, contam histórias variadas, para um público
privilegiado, em cada noite de reunião.
A maioria dos nomes, presentes na narrativa original, foram mantidos na tradução
como são grafados em italiano: Soriana, Dusolino, Tesífone, Molino, etc. Somente foram
traduzidos o nome do protagonista, pois há uma variante em português bastante conhecida
– Constantino, que no conto é acompanhada por um segundo nome bastante sugestivo,
Fortunato, que provoca uma relação entre os nomes comentada por nós em nota de rodapé
e o de Lionora, que possui a versão para o português – Leonora.
No texto original, os parágrafos são bastante longos, trata-se de uma característica da
escrita da época de Straparola. No entanto, atualmente, sobretudo por se tratar de texto cujo
público-alvo é o infantil, a narrativa fica de leitura mais leve se os parágrafos forem menores.
Assim, ao traduzi-lo, optamos por realizar mais quebras de parágrafos, com o objetivo único
de tornar sua leitura mais leve e mais agradável.
Enfim, ao apresentarmos a leitura desse conto ao público brasileiro, acompanhada
de notas que detalham mais aspectos interpretativos ou tradutórios ligados ao processo da
tradução, esperamos proporcionar uma leitura prazerosa que contribua para que parte da
obra de Straparola e o próprio escritor italiano sejam mais conhecidos no Brasil.

3
A versão que utilizamos como texto original em italiano do conto (STRAPAROLA, 1927a) não traz os enigmas
finais de cada conto. Por sabermos da existência deles, fomos pesquisar e encontramos o trecho do enigma final
do conto em questão na versão do texto em formato de áudio livro (STRAPAROLA, 2019) assim o transcrevemos
e traduzimos tal finalização para que nossa tradução pudesse conter ainda mais este detalhe da obra original do
escritor italiano.
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“Constantino Afortunado”4

Giovan Francesco Straparola

Décima primeira noite

Tinha já descido a noite escura, mãe das fadigas mundanas, e os animais cansados
descansavam, quando o grupo amoroso e doce, deixado todos os pensamentos tristes de
lado, dirigiu-se ao lugar de costume; dançaram as nobres moças, de acordo com o costume
habitual foi trazido o vaso: dele foi tirado, por sorte, primeiro o nome de Fiordiana5, depois
de Leonora6, o terceiro foi o de Diana, o quarto de Isabella, e por último o da senhora Vicenza.
Fizeram trazer as liras que foram afinadas, a Senhora ordenou que Molino e Trivigiano7
cantassem uma canção. Eles, sem demora, assim fizeram:

Seu vago semblante


No qual eu vejo minha morte e vida
a lhe seguir, minha amada, me impulsiona e convida.
O que é que na senhora se espelha e fixo olha,
que da cabeça aos pés
de um desejo não se inflame e doce geada?
e bem mil suspiros
não mande fora, para fazer todo animador
a piedade mover com ardente zelo,
e por favor e por graça do céu,
apenas por ela único dom
encontrar não por mercê, mas por perdão?

Foi muito grande a alegria de todos pela cantiga leve e doce por Molino e Trivigiano
cantada; e foi de tanta virtude que fez até chorar por doçura àquela que cabia contar a primeira
história. E para que se desse início ao contar histórias, a Senhora ordenou a Fiordiana que
começasse; e ela, feita a primeira reverência, assim narrou:

4
A tradução para o português de Costantino Fortunato, que é não somente o título mais conhecido do conto, mas
também o nome da personagem principal, é bastante significativa para o contexto interpretativo da narrativa,
pois, no decorrer do percurso do protagonista, ser bem-aventurado ou “afortunado” pode significar uma
“constância”. Além disso, a palavra fortuna é traduzida no português por “sorte”, outro indicativo já presente
no nome do protagonista que intitula o conto da possibilidade interpretativa de um desfecho positivo para a
situação inicial do conto.
5
Nome próprio que faz referência ao substantivo fiore, que em italiano é masculino e em português é feminino,
significa “flor” e está unido ao nome próprio Diana, em referência ao nome romano da deusa – Ártemis para
os gregos. Assim, Diana era a deusa romana da vida selvagem, das florestas virgens e da caça, filha de Júpiter e
Latona.
6
Lionora em italiano possui variante em português – Leonora.
7
Trivegiano é, provavelmente, variante de trevigiano, que significa “aquele originário de Treviso”, cidade italiana
da região do Vêneto, da qual Veneza é a capital.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
308
Conto I

Soriana8 morre e deixa três filhos: Dusolino, Tesífone9 e Constantino Afortunado;


o qual pela virtude de uma gata conquista um reino potente.

― Muitas vezes, amigas amorosas, se vê um rico poderoso em pobreza cair e aquele


que está em miséria extrema ao alto subir. Foi o que aconteceu a um pobre, que, sendo
mendigo, chegou a ser rei.
Era uma vez10 na Boemia uma senhora chamada Soriana, que era muito pobre e
tinha três filhos, um dos quais era conhecido por Dusolino, o outro Tesífone, e o terceiro
Costantino Afortunado. Eles todos não tinham uma migalhinha material que fosse, se não
três coisas: um aparador para massa de pão, uma tábua de madeira para desenrolá-la11 e,
finalmente, uma gata. Soriana, já bem velhinha, prestes a morrer, fez seu último testamento
e a Dusolino, seu filho mais velho, deixou o aparador para massa de pão, a Tesífone a tábua
de madeira para desenrolar a massa e a Costantino a gata.
Tendo morrido a mãe, eles a sepultaram. Os vizinhos, pela necessidade deles, pediam
emprestados tanto o aparador quanto a tábua para massas, e porque sabiam que eles eram
muito pobres, e para eles faziam pão12, que Dusolino e Tesífone comiam, deixando de lado o
irmão menor Costantino. E se ele lhes perguntasse o porquê de ser excluído, eles respondiam
que ele se virasse com a gata que lhe pertencia, ela é que deveria lhe providenciar alguma
coisa. Assim, Costantino e sua gata sofriam demais.
Então a gata, que era encantada, movida pela compaixão por Constantino e nervosa
com os dois irmãos que tratavam seu dono tão cruelmente, disse: ― Constantino, não fique
triste, eu providenciarei alimento para você e para mim. Assim, saiu de casa e foi para o
campo. Lá, fingiu dormir e quando dela se aproximou uma lebre, a gata a matou. Foi então
ao palácio real e tendo visto alguns cortesãos, disse-lhes que gostaria de falar com o Rei. Esse,

8
Nome em italiano que remete a um tipo de gato de pelagem grossa, cinza, com faixas ou mechas negras no pelo.
9
Nome em italiano que remete a uma figura mitológica conhecida como uma das três erínias (para os gregos)
ou fúrias (para os romanos): monstros que puniam os mortais, personificações da vingança. Seus nomes eram:
Tesífone, Megera e Alecto. Em português, a palavra é acentuada por ser proparoxítona.
10
Utilizamos a expressão “Era uma vez”, por considerar que é comumente utilizada como introdução em contos
infantis, contos maravilhosos, contos populares e fábulas, e também por compararmos com a versão em italiano
padrão, que troca “Trovavasi in Boemia” do texto original por “C’era una volta in Boemia”, ou seja, “Era uma vez
na Boêmia”. A Boêmia é uma região geográfica da Europa Central que já fez parte do Sacro Império Romano-
Germânico, do Império Austríaco e do Império Austro-húngaro. Depois da II Guerra Mundial, passou a fazer
parte da atual República Tcheca.
11
No texto original: “uno albuolo, nel quale le donne impastano il pane, una panára, sopra la quale fanno il pane”.
Foi necessário que recorrêssemos à versão em padrão, uma vez que essas palavras são arcaicas e não têm mais
fácil acesso via dicionários. Em padrão o trecho é o seguinte: “una madia per l'impasto del pane, un'asse di legno
dove stenderlo”.
12
No original comparece a palavra focaccia, que é um tipo de pão achatado (com cerca de 2 cm de altura, é bem
macio, em geral é e feito com sal, azeite e alecrim, algumas vezes colocam outros elementos na cobertura ou
dentro da massa. Provavelmente, originou-se na região italiana chamada Ligúria, especificamente da cidade de
Gênova. É consumido no café da manhã, como aperitivo, ou como entrada para as outras refeições.
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ao saber que uma gata queria falar com ele, a fez vir à sua presença e lhe perguntou o que
desejava, ela respondeu que Constantino, seu senhor, a mandava ali para presenteá-lo com
uma lebre que ele havia caçado, e a deu então ao Rei.
O rei, tendo aceitado o presente, lhe perguntou quem era esse tal Constantino. A gata
respondeu que era um homem que de bondade, de beleza e de poder não havia ninguém
superior. Assim o rei lhe acolheu muito bem, dando-lhe comidas e bebidas boas. A gata,
quanto estava bem satisfeita, com sua patinha e belos modos, não sendo vista por ninguém,
encheu a bolsa13 que trazia pendurada de um lado, com boas comidas, pediu licença ao rei e
foi levar o alimento a Constantino.
Os irmãos, vendo a boa comida da qual se gabava Constantino, lhe pediram que a
partilhasse com eles; mas ele, dando-lhes o troco, negou-se. Por isso nasceu entre eles uma
inveja ardente, que lhes roía o coração.
Constantino, embora fosse belo de rosto, pelo sofrimento e carência que passava,
estava cheio de sarna e a micose lhe atacava. Foi então ao rio com sua gata e por ela foi, da
cabeça aos pés, minuciosamente lambido e penteado, e em poucos dias tornou-se liberado
dos males. A gata, como dissemos acima, continuava a levar presentes ao palácio real e, desse
modo, sustentava o seu mestre. E porque já estava aborrecida daquele ir e vir14 E temendo
cansar os cortesãos15 do rei, disse ao mestre: ― senhor, se fizer tudo o que eu mandar, em
pouco tempo, tornarei você rico. ― E de que modo? disse o mestre. A gata respondeu: ―
Venha comigo, e não questione nada, que estou disposta a tudo para lhe deixar rico.
E foram juntos ao rio, num lugar próximo ao palácio real, a gata despiu o mestre e em
comum acordou o jogou no rio: depois começou a gritar bem alto: ― Socorro! Socorro!
Corram que o senhor Constantino está se afogando! O rei ouvindo aquilo e considerando as
muitas vezes em que fora presenteado por aquele homem, rapidamente mandou pessoas para
ajudá-lo. Saído da água o senhor Constantino, e vestido com roupas novas, foi conduzido
à presença do rei, o qual o recebeu com grande aprovação; e questionado sobre a causa de
ter sido jogado no rio, não podia responder por aflição: mas a gata, que sempre estava junto
dele, disse:
― Saiba, Majestade, que alguns ladrões tinham ficado à espreita de meu patrão e viram
que ele levava joias destinadas a presentear seu rei, então eles o roubaram e lhe tiraram tudo.
Acreditaram que o tivessem matado, assim o jogaram no rio, e por conta destes homens ele
quase morreu, não fosse ter sido socorrido por seus homens.
Ouvindo isso, o rei acreditou e ordenou que fosse bem tratado e ficasse sob sua
proteção16. E vendo-o belo, acreditando ser rico, decidiu dar-lhe a mão de sua filha Elisetta em

13
No texto original bisciaccia, no texto em padrão bisaccia, ou seja, sacola grande de tecido ou de pano, que
normalmente é levada a tiracolo.
14
No texto original a expressão é a seguinte: rincresceva alla gatta andar tanto su e giú, na versão em italiano padrão:
e siccome tutto quell'andirivieni era per lei una gran fática, de forma que optamos por traduzir como segue acima.
15
No original o trecho é o seguinte: e dubitava di venire in fastidio alli corteggiani del re, já na versão em italiano
padrão: e, temendo di dare fastidio ai cortigiani. Assim optamos por traduzir, interpretando o trecho da mesma
maneira que foi interpretado na versão em padrão, como fizemos acima.
16
No texto original: il re ordinò che fusse ben governato ed atteso, ou seja, “o rei ordenou que fosse bem governado
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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casamento, dando a ela um dote em ouro, pedras preciosas e belíssimas vestimentas. Feitas as
núpcias e cumpridos os ritos, o rei fez carregar dez mulas com ouro e cinco com vestimenta
muito honrável; à casa do marido mandou sua filha, acompanhada de muita gente.
Constantino, vendo o quão rico e honrado tornou-se, não sabia para onde conduziria
a esposa, e pediu conselho à sua gata; a qual lhe disse: ― Não duvide, meu mestre, que para
cada coisa tomaremos as devidas providências. ― Cavalgando cada um deles alegremente, a
gata com muita pressa tomou a frente; e depois de distanciada de todos, encontrou-se com
alguns cavalheiros, aos quais ela disse:
― O que fazem aqui, pobre homens? Partam rapidamente, pois uma grande comitiva
se aproxima, e criará problemas para vocês17; eis que se aproximam: escutem o barulho dos
cavalos relinchando! ― Os cavalheiros apavorados disseram: ― E o que nós devemos fazer?
― Ao que a gata respondeu: ― Façam deste modo. Se perguntarem a vocês de quem são
cavalheiros, responderão animadamente: do senhor Constantino, e não serão incomodados.
E foi-se a gata mais à frente, até encontrar um grande rebanho de ovelhas, e com o
seu pastor fez algo semelhante; e a todos, que encontrava pela estrada, dizia o mesmo. O
cortejo de Elisetta questionava: ― De quem vocês são cavalheiros, e de quem são tão belos
rebanhos? E todos em bom som respondiam: ― Do senhor Constantino. ― Aqueles que
acompanhavam a esposa diziam: ― Então, senhor Constantino, nós começamos a entrar
em suas posses? ― E ele com a cabeça confirmava que sim; e também a cada coisa que lhe
perguntavam, respondia que sim. E por isso o cortejo o julgava muito rico.
Chegando a gata em um belíssimo castelo, encontrou-o com poucas pessoas reunidas;
e disse: ― O que fazem aqui, homens de bem? Não perceberam a ruína que vem sobre vocês?
― O que? – disseram os castelões. ― A menos de uma hora, virão aqui muitos soldados e os
cortarão em pedaços. Não escutam os cavalos que relincham? Não estão vendo a poeira no
ar? E se não quiserem perecer, aceitem o meu conselho18, que todos estarão salvos. Se alguém
lhes perguntar: de quem é este castelo? Digam: do senhor Constantino Afortunado.
Chegando a nobre comitiva ao belo castelo, questionou os guardiões sobre de quem ele
era; e todos animadamente responderam: ― Do senhor Constantino Afortunado.
E adentraram, acomodaram-se honrosamente. Aquele castelo era do senhor Valentino,
valoroso soldado, o qual um dia19 tinha saído do castelo para ir à casa a mulher com quem se
casaria; e por sua desgraça, antes que chegasse a encontrar a amada esposa, aconteceu com

e esperado”, mas a tradução do trecho não traz um significado apropriado, então, comparando-o com a versão
em italiano padrão, encontramos o seguinte: il re ordinò che Constantino fosse messo sotto la sua protezione. Assim
optamos por realizar uma tradução que considerasse as duas versões.
17
No original aparece o trecho: E faranno ripresaglia di voi. Já a tradução em italiano padrão apresenta a seguinte
versão do mesmo trecho: per voi saranno guai, de forma que optamos por traduzir dessa maneira, visto que em
português, represália inclui um ato anterior do qual aquele que a pratica procura vingar-se, ou buscar indenização,
desforrando-se, e não é o caso.
18
No texto original, o trecho é o seguinte: togliete il mio consiglio, e togliere significa arrancar, tirar. Na versão em
italiano padrão aparece: ascoltate il mio consiglio. Assim, preferimos traduzir com por “aceitem o meu conselho”,
por ser uma expressão muito utilizada em português.
19
No original o trecho é o seguinte: valoroso soldato, il quale poco avanti era uscito. Já na versão em o italiano
padrão aparece assim: un valoroso soldato che un giorno era uscito. Optamos pela escolha realizada nesta última.
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ele um acidente súbito e miserável, no qual ele morreu instantaneamente. E Constantino
Afortunado do castelo se tornou senhor.
Não muito tempo depois, Morando, rei da Boemia, morreu; e o povo aclamou como
seu rei Constantino Afortunado, por ser marido de Elisetta, filha do falecido rei, a quem o
reino por sucessão esperava.
E foi deste modo que Constantino, de pobre e mendigo, senhor e rei se tornou, e com
sua Elisetta viveu por muito tempo, tendo com ela filhos, que foram sucessores no reinado.

Enigma20

Foi agradável para os ouvintes a narrativa contada por Fiordiana; mas para que o
tempo não passasse em vão, a Senhora lhe ordenou que propusesse seu enigma. E ela, alegre
e contente, deste modo disse:

Dentro de jardim de vagas flores adornado


corre uma flor vermelha e uma rosa branca,
nunca se cansam, nem de noite nem de dia
esplendor e luz enviam sobre todas as coisas.
Doze ramos circundam o contorno de
um grande carvalho, que no meio se encontra;
e cada ramo grande e largo tem
quatro somente, e não mais, sementes nas cascas

Não houve ninguém que soubesse interpretar o enigma misterioso, e mesmo que um
dissesse uma coisa, outro dizia outra, mas nenhuma de suas declarações estava próxima da
resolução do enigma.
Fiordiana, vendo que seu enigma permanecera não resolvido, disse:
― Senhores, meu enigma descreve a máquina do mundo, que é como um jardim de
flores, ou seja, de estrelas, no interior do qual corre uma flor vermelha, que é o sol, e uma
rosa branca, que é a lua, as duas, dia e noite, giram e iluminam o universo. Nessa máquina
está plantado um carvalho, que é o ano, e tem doze galhos, que são os doze meses, cada um
tem quatro sementes, ou seja, as quatro semanas do mês.
Entendida a verdadeira interpretação do enigma misterioso, todos a cumprimentaram.

RAMOS, M. C. T.; SEGUNDO, E. R. S. Tradução comentada do conto “Costantino


Fortunato”, de Giovan Francesco Straparola. Olho d’água, v. 12, n. 1, p. 304-313, 2020.

20
Com já apontado na introdução à presente tradução comentada, a estrutura narrativa da obra Le piacevoli
notti, de Straparola, é composta por alguns parágrafos que narram como estava o grupo e quem irá contar a
história que compõem o conto, a narrativa equivalente ao conto, e, por fim, a apresentação de um enigma ao
grupo de ouvintes, por parte da narradora do conto, para finalizar cada um dos cento e setenta e quatro contos
presente na obra.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Referências:

CALVINO, I. Sulla fiaba. Presentazione dell’autore. Introduzione di Mario Lavagetto.


Milano: Arnoldo Mondadori, 1996.

CORDEIRO, R. Apresentação. In: STRAPAROLA, G. F. Noites agradáveis: contos


renascentistas italianos. Trad. Renata Cordeiro. São Paulo: Princípio, 2007. p. 11 - 57.

JOLLES, A. O conto. In: Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. p.
186–204.

STRAPAROLA, G. F. Le piacevoli notti. A cura di Giuseppe Rua. Bari: Laterza/Liber Liber –


Progetto Manuzio, 1927a.

______. Le piacevoli notti. 1550. Conto: “Costantino Fortunato” (Notte XI, Favola I). Tradução
em italiano padrão de Valentina Vetere. Bari: Laterza, 1927b. Disponível em: http://www.
paroledautore.net/fiabe/classiche/straparola/costantino_fortunato.htm. Acesso em: 03 jun.
2019.

______. Noites agradáveis: contos renascentistas italianos. Seleção, tradução, apresentação e


notas de Renata Cordeiro. São Paulo: Princípio, 2007.

______. Le piacevoli notti. Áudio leituras em arquivos divididos por conto. 2019. Disponível
em: https://archive.org/details/piacevolinotti2_1906_librivox/piacevolinotti2_34_
straparola_128kb.mp3. Acesso em: 02 abr. 2020.

Recebido em: 25 abr. 2020


Aceito em: 29 mai. 2020

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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ÍNDICE DE ASSUNTOS

Abel Botelho (ESNP; MCL, p. 221); Literatura brasileira (JLPO; DES, p. 135);
Abolicionionismo racista (AM, p. 201); Literatura indiana (RCOR, p. 288);
Acenos e afagos (MCRA; MVCS, p. 255); Literatura Italiana (MCTR; ERSS, p. 304);
AIDS (ALGJ, p. 116); Literatura LGBT (FAN, p. 242);
Alteridade (VB; HMO, p. 27); Literatura moçambicana (RRM; AS, p. 14);
Aluísio Azevedo (AM, p. 201); Lourenço Mutarelli (JLPO; DES, p. 135);
Armário (FAN, p. 242); Machado de Assis (VR, p. 147);
Arte sequencial (LZG, p. 175); Masculinidades (ESNP; MCL, p. 221);
Autobiografia (RCOR, p. 288); Memória (TFP;MS;RKU, p. 69);
Autoria (EMSD, p. 83; ALGJ, p. 116; VR, p. 147); Metalinguística (TYM; RMM, p. 101);
Cachalote (LZG, p. 175); Mia Couto (RRM; AS, p. 14);
Caio Fernando Abreu (WA, p. 44; EMSD, p. 83; ALGJ, p. 116; ESP, Morangos mofados (ESP, p. 157);
p. 157); Morte (ALGJ, p. 116);
Carol Rodrigues (FAN, p. 242); Narrador (ESP, p. 157);
Contemporaneidade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Narrativa em crise (ESP, p. 157);
Conto (ESP, p. 157; MCTR; ERSS, p. 304); o apocalipse dos trabalhadores (VB; HMO, p. 27);
Contos (FAN, p. 242); O cortiço (AM, p. 201);
Crítica (ESNP; MCL, p. 221); Ordem do discurso (MSB, p. 276);
Crônica (VR, p. 147); Organização paradigmática (TYM; RMM, p. 101);
Daniel Galera (LZG, p. 175); Patrick White (TFP;MS;RKU, p. 69);
Dispositivos (VB; HMO, p. 27); Pentimento (EMSD, p. 83);
Distopia (RRM; AS, p. 14); Performatividade (MCRA; MVCS, p. 255);
Enunciação (WA, p. 44); Poética (LZG, p. 175);
Estudos de gênero (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Poéticas contemporâneas (EMSD, p. 83);
Experiência trans (RCOR, p. 288); Pós-colonial (RRM; AS, p. 14);
Felicidade na Literatura (VB; HMO, p. 27); Pseudônimo (VR, p. 147);
Feminismo (MSB, p. 276); Racismo (AM, p. 201);
Ficção científica (JLPO; DES, p. 135); Rafael Coutinho (LZG, p. 175);
Fim de século (ESNP; MCL, p. 221); Recepção (ESNP; MCL, p. 221);
Fratura (TYM; RMM, p. 101); Rede de solidariedade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209);
Giovan Francesco Straparola (MCTR; ERSS, p. 304);; Romance (LZG, p. 175);
Guizzo (TYM; RMM, p. 101); Romance gráfico (LZG, p. 175);
Hervé Guibert (ALGJ, p. 116); Romance naturalista (ESNP; MCL, p. 221);
Identidade (TFP;MS;RKU, p. 69); Sátira (JLPO; DES, p. 135);
Imperfeição (TYM; RMM, p. 101); Sobrevivência (WA, p. 44);
Inatualidade (WA, p. 44); Subjetivação (MSB, p. 276);
Interseccionalidade (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Subversão (MCRA; MVCS, p. 255);
João Gilberto Noll (MCRA; MVCS, p. 255); Supremacismo (AM, p. 201);
Judith Butler (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Teorias da conspiração (JLPO; DES, p. 135);
Kimberlé Crenshaw (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Tradução (RCOR, p. 288);
Leia Mulheres (MSB, p. 276); Tradução Comentada (MCTR; ERSS, p. 304);
LGBTfobia (FAN, p. 242); Transexualidade (RCOR, p. 288);
Literatura (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); MSB, p. Utopia (RRM; AS, p. 14);
276); Valter Hugo Mãe (VB; HMO, p. 27);
Literatura australiana (TFP;MS;RKU, p. 69);

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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SUBJECT INDEX

Abel Botelho (ESNP; MCL, p. 221); LGBTphobia (FAN, p. 242);


Acenos e afagos (MCRA; MVCS, p. 255); Literature (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); MSB,
AIDS (ALGJ, p. 116); p. 276);
Alterity (VB; HMO, p. 27); Lourenço Mutarelli (JLPO; DES, p. 135);
Aluísio Azevedo (AM, p. 201); Machado de Assis (VR, p. 147);
Annotated Translation (MCTR; ERSS, p. 304); Masculinities (ESNP; MCL, p. 221);
Apparatus (VB; HMO, p. 27); Memory (TFP; MS; RKU, p. 69);
Australian literature (TFP; MS; RKU, p. 69); Metalinguistics (TYM; RMM, p. 101);
Authorship (EMSD, p. 83);ALGJ, p. 116);VR, p. 147); Mia Couto (RRM; AS, p. 14);
Autobiography (RCOR, p. 288); Morangos mofados (ESP, p. 157);
Brazilian Literature (JLPO; DES, p. 135); Mozambican Literature (RRM; AS, p. 14);
Cachalote (LZG, p. 175); Narrative in crisis (ESP, p. 157);
Caio Fernando Abreu (WA, p. 44); EMSD, p. 83);ALGJ, p. 116); Naturalist Novel (ESNP; MCL, p. 221);
ESP, p. 157); Network of Solidarity (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p.
Carol Rodrigues (FAN, p. 242); 209); MSB, p. 276);
Chronicle (VR, p. 147); Novel (LZG, p. 175);
Closet (FAN, p. 242); O cortiço (AM, p. 201);
Conspiracy Theories (JLPO; DES, p. 135); Order of speech (MSB, p. 276);
Contemporaneity (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Paradigmatic organization (TYM; RMM, p. 101);
Contemporary Poetics (EMSD, p. 83); Patrick White (TFP; MS; RKU, p. 69);
Criticism (ESNP; MCL, p. 221); Pentimento (EMSD, p. 83);
Currentless (WA, p. 44); Performativity (MCRA; MVCS, p. 255);
Daniel Galera (LZG, p. 175); Poetics (LZG, p. 175);
Death (ALGJ, p. 116); Postcolonialism (RRM; AS, p. 14);
Dystopia (RRM; AS, p. 14); Pseudonym (VR, p. 147);
Enunciation (WA, p. 44); Racism (AM, p. 201);
Feminism (MSB, p. 276); Racist abolitionism (AM, p. 201);
Fin de siècle (ESNP; MCL, p. 221); Rafael Coutinho (LZG, p. 175);
Fracture (TYM; RMM, p. 101); Reception (ESNP; MCL, p. 221);
Gender Studies (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Satire (JLPO; DES, p. 135);
Giovan Francesco Straparola (MCTR; ERSS, p. 304); Science Fiction (JLPO; DES, p. 135);
Graphic novel (LZG, p. 175); Sequential arts (LZG, p. 175);
Guizzo (TYM; RMM, p. 101); Short stories (FAN, p. 242);
Happiness in Literature (VB; HMO, p. 27); Storyteller (ESP, p. 157);
Hervé Guibert (ALGJ, p. 116); Subjectivation (MSB, p. 276);
Identity (TFP; MS; RKU, p. 69); Subversion (MCRA; MVCS, p. 255);
Imperfection (TYM; RMM, p. 101); Supremacism (AM, p. 201);
Indian literature (RCOR, p. 288); Survival (WA, p. 44);
Intersectionality (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Tale (ESP, p. 157); MCTR; ERSS, p. 304);
Italian Literature (MCTR; ERSS, p. 304); the apocalypse of the workers (VB; HMO, p. 27);
João Gilberto Noll (MCRA; MVCS, p. 255); Transexual experience (RCOR, p. 288);
Judith Butler (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. 209); Translation (RCOR, p. 288);
Kimberlé Crenshaw (DSS; CMCN; FLM; FARB; LP; LHS, p. Transsexuality (RCOR, p. 288);
209); Utopia (RRM; AS, p. 14);
Leia Mulheres (MSB, p. 276); Valter Hugo Mãe (VB; HMO, p. 27);
LGBT Literature (FAN, p. 242);

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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ÍNDICE DE AUTORES / AUTHORS INDEX

ALVES, M. C. R.; CAMARGO E SOUZA, NANTES, F. A., p. 242;


M. V., p. 255;
OURIQUE, J. L. P.; SANTOS, D. E., p. 135;
ALVES, W., p. 44;
PEREIRA, E. S. N.; LUGARINHO, M., p. 221;
BASTAZIN, V.; OLIVEIRA, H. M., p. 27;
PEREIRA, T. F.; STEFANI, M.; UMBACH, R.
BORGES, M. S., p. 276; K., p. 69;

DIAS, E. M. S., p. 83; PIOVEZAN, E. S., p. 157;

GARCIA, L. Z., p. 175; RAMOS, M. C. T.; SEGUNDO, E. R. S., p. 304;

JESUS, A. L. G., p. 116; RAMOS, R. C. O., p. 288;

MIYAZAKI, T. Y. MACEDO, R. M., p. 101; ROSA, V., p. 147;

MOIRA, A., p. 201; SOUZA, D. S.; NIGRO, C. M. C.; MORAIS, F.


L.; BENFATTI, F. A. R.; PASSOS, L.; SOARES,
MUNHOZ, R. R.; SPAREMBERGER, A., p. 14; L. H., p. 209;

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TÍTULO (centralizado, em caixa alta);
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ABSTRACT e KEYWORDS (versão para o inglês do Resumo e das Palavras-chave);
TEXTO;
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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AGRADECIMENTOS;
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS do próprio artigo com título em inglês:
REFERÊNCIAS (apenas trabalhos citados no texto).
Resumos e Palavras-chave, em português e inglês, devem ser digitados em fonte Times
New Roman, corpo 11.
NOTAS DE RODAPÉ (As notas devem ser reduzidas ao mínimo e apresentadas no
pé de página, utilizando-se os recursos do Word, em fonte tamanho 8, com a numeração
acompanhando a ordem de aparecimento).

REFERÊNCIAS
As referências bibliográficas e outras devem atender às normas da ABNT (NBR 6023,
de agosto de 2002).

CITAÇÕES DENTRO DO TEXTO

Nas citações feitas dentro do texto, de até três linhas, o autor deve ser citado entre
parênteses pelo sobrenome, em maiúsculas, separado por vírgula da data de publicação:
(SILVA, 2000).
Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data, entre parênteses:
“Silva (2000) assinala...”.
Quando for necessário, a especificação da(s) página(s) deverá seguir a data, separada
por vírgula e precedida de “p.”: (SILVA, 2000, p. 100).
As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem
ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento: (SILVA, 2000a).
Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser indicados, separados por
ponto e vírgula (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); quando houver mais de 3 autores, indica-
se o primeiro seguido de et al.: (SILVA et al., 2000).

CITAÇÕES DESTACADAS DO TEXTO

As citações diretas, com mais de três linhas, deverão ser destacadas com recuo de 4 cm
da margem esquerda do texto, em fonte Times New Roman tamanho 9 e sem aspas.

REFERÊNCIAS

As Referências, dispostas no final do texto, devem ser organizadas em ordem alfabética


pelo sobrenome do primeiro autor. Exemplos:

Livros e outras monografias


AUTOR, A. Título do livro. número da edição ed., nome do(s) tradutor(es). Cidade:
Editora, Ano. p. X-Y.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Capítulos de livros
AUTOR, A. Título do capítulo. In: AUTOR, A. Título do livro. Nome do(s) tradutor(es).
Cidade: Editora, Ano. p. X-Y.

Dissertações e teses
AUTOR, A. Título da dissertação/tese: subtítulo sem itálicos. número de folhas f. Ano.
Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em Área de Concentração) – Instituto/Faculdade,
Universidade, Cidade, Ano. Disponível em <http://www.______________>. Acesso em: dia
mês ano.

Artigos em periódicos
AUTOR, A. Título do artigo. Nome do periódico, Cidade, v. (volume), n. (número), p.
X-Y, Ano. Disponível em <http://www.______________>. Acesso em: dia mês ano.

Trabalho publicado em Anais


AUTOR, A. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número da edição ed., ano.
Anais... Cidade: Instituição. p. X-Y. Disponível em <http://www.______________>. Acesso
em: dia mês ano.

ANÁLISE E JULGAMENTO

A Revista Olho d’água emprega um sistema de avaliação duplo cego (peerreview).


A Comissão Editorial encaminhará os trabalhos para, pelo menos, dois membros do
Conselho Consultivo. No caso de avaliações discordantes, será solicitada uma nova avaliação
a um terceiro membro do Comitê Assessor. Depois da análise, os autores serão informados
do resultado da avaliação. No caso dos trabalhos aceitos para publicação, os autores poderão,
eventualmente, introduzir modificações a partir das observações contidas nos pareceres.
Serão escolhidos os artigos mais bem qualificados pelo Conselho Consultivo, de acordo com
o interesse, a originalidade e a contribuição do artigo para a discussão da temática proposta.

ENDEREÇO

Revista Olho d’água – PPGLetras – IBILCE - UNESP/ São José do Rio Preto
DELL – Ala 3 – Sala 17
Rua Cristóvão Colombo, 2265
15054–000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil

E-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br

Site: <http://www.olhodagua.ibilce.unesp.br/index.php/Olhodagua>
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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POLICY FOR SUBMITTING PAPERS

GENERAL INFORMATION

Revista Olho d’água publishes previously unpublished articles by Brazilian or foreign


authors.
Papers may be written in any of the following languages: Portuguese, English,
French, Italian, German or Spanish. The Editorial Board may decide to publish an article
in the original language or to translate it into Portuguese. Should the work be accepted for
publication, its copyright will automatically be transferred to Revista Olho d’água.
Revista Olho d’água will automatically refuse papers that: a) do not meet publication
standards of the journal; b) do not fit in the genre of journal article; c) had serious problems
with writing. It is recommended that authors revise their texts before sending them for
review by the editorial board.

SUBMISSION OF PAPERS

The author should send 02 files to the e-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br:


a) Article (full text with no identification of the author);
b) Identification (Title of the paper; Author(s) (in full, with just the surname in
capital letters); the Author’s institutional status (Department – Institution or Faculty –
University – University acronym – postal code – City or Town – State – Country – postal
and e-mail addresses).

FORMAT

Papers should be typed in Word for Windows (or compatible), Times New Roman 11
(except for quotations or footnotes), single line spacing and paragraphs, double line spacing
between parts of the text. Pages should be formatted in A4, unnumbered, with 3 cm upper
and left margins and 2 cm lower and right margins.

LENGTH. After being formatted according to the instructions above, the paper should
be a maximum of 25 pages long.
ORGANISATION. Papers should be organized as follows:
TITLE (centralized upper case);
ABSTRACT (should not exceed 780 characters with spaces);
KEYWORDS (4 to 6 words organized in alphabetical order), written in the language
of the paper;
TEXT;
ACKNOWLEDGEMENTS;
ABSTRACT and KEYWORDS in English;
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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REFERENCES (only those works cited in the paper);
Abstract and Keywords should be typed in Verdana 11.
FOOTNOTES (Footnotes should be kept to a minimum and placed at the bottom of
the page, according to Word for Windows resources, typed in Times New Roman font 8,
numbered according to order of appearance).

REFERENCES

Bibliographical and other references should follow the guidelines of the Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT, NBR 6023, August 2002).

QUOTATIONS WITHIN THE BODY OF THE TEXT

The author’s surname should be quoted in brackets, upper case, separated by a comma
from the publication year: (SILVA, 2000).
If the author’s name has been previously quoted in the text, only the date should be
cited in brackets: “Silva (2000) points out that…”.
When necessary, the page number should follow the year, separated by a comma and
preceded by “p.”: (SILVA, 2000, p. 100).
A lower case letter placed after the date without spacing should be utilized to identify
quotations from different works by the same author published in the same year: (SILVA,
2000a).
If a work has two or three authors, all of them should be cited, separated by a semicolon:
(SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000).
If a work has more than three authors, only the first is cited, followed by et al.: (SILVA
et al., 1960).

SEPARATE QUOTATIONS

First-hand quotations of three or more lines should be separated from the body of the
text, with a 2 cm indentation in the left margin, no inverted commas and typed in Times
New Roman font 9.

REFERENCES

Bibliographical references should be placed at the end of the text and organized in
alphabetical order according to the first author’s surname. Examples:

Books and other kinds of monographs


AUTHOR, A. Title of book. Name (s) of the translator (s). Number of edition ed.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Place of Publication: Publisher, Year. Number of pages p. X-Y.

Book chapters
AUTHOR, A. Title of chapter. In: AUTHOR, A. Title of book. Name (s) of the
translator (s). Number of edition ed. Place of Publication: Publisher, Year. p. X-Y.

Dissertations and theses


AUTHOR, A. Title of dissertation/thesis: nonitalicised subtitle. Number of pages p.
Year. Dissertation/thesis (MA/BA/MSc/PhD) Institute/Faculty, University, City, Year).
Available at <http: //www.______________>. Access in: day month year.

Articles in journals
AUTHOR, A. Title of article. Journal name, Place of publication, v. volume, n. number,
p. X-Y, Year. Available at <http: //www.______________>. Access in: day month year.

Works published in annals of scientific meetings or equivalent


AUTHOR, A. Title of work. In: TITLE OF MEETING, Ordinal number of
meeting, Year. Annals of... Place of publication: Institution. p. X-Y. Available at <http: //
www.______________>. Access in: day month year.

ANALYSIS AND APPROVAL

Revista Olho d’água employs a double blind review policy (peer-review). The Editorial
Board will send submitted papers to at least two members of the Consultative Committee. In
case of conflicting reviews, a third member of the Consultative Committee shall issue a new
opinion. After the analysis, the authors will be informed of the review’s decision. In the case
of works accepted for publication, the authors will occasionally be allowed to incorporate
modifications in accordance with suggestions made by referees. The best-qualified papers
will be selected, according to their relevance, originality and contribution to the discussion
of the proposed theme, at the Consultative Board’s discretion.

ADDRESS

Revista Olho d’água - PPGLetras – IBILCE-UNESP/São José do Rio Preto


DELL – Ala 3 – Sala 17
Rua Cristóvão Colombo, 2265
15054–000 – São José do Rio Preto – SP – Brazil

E-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br
Site: <http://www.olhodagua.ibilce.unesp.br/index.php/Olhodagua>
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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NORMAS PARA LOS AUTORES

INFORMACIONES GENERALES

La Revista Olho d’água publica artículos inéditos de autores brasileños o extranjeros.


Se aceptan artículos redactados en portugués, español, francés, italiano, inglés o
alemán, aunque el Comité Editorial se reserva el derecho de decidir si el texto se publicará
en el idioma original o en versión traducida. Al enviar un artículo a la Revista Olho d’água el
autor, automáticamente, cederá los derechos de autor(es) para la publicación.
Se rechazarán los artículos que: a) no respeten a las normas de publicación de la revista;
b) no atiendan al género artículo de periódico académico; c) presenten serios problemas de
redacción. Se ruega a los autores que revisen sus artículos antes del envío a la revista para
evaluación por el Comité Asesor.

FORMATO DE LOS ARTÍCULOS Y NORMAS DE ENVÍO

Los autores deberán enviar dos archivos al correo electrónico revistaolhodagua@


yahoo.com.br:
a) Un archivo para el artículo (texto completo sin identificación de autor);
b) Un archivo que contenga la identificación de autor (título del artículo;
Nombre(s) del (de los) autor(es) sin abreviación, sólo el apellido en mayúsculas); Institución
de origen del (de los) autor(es) (Departamento – Instituto o Facultad – Universidad – Sigla –
Código postal – Ciudad – Provincia – País), dirección postal y de correo electrónico).

FORMATO

Los textos deben estar en formato Word for Windows u otro programa compatible,
estilo Times New Roman, tamaño 11 (salvo la citas y notas de pie de página), interlineado
simple para líneas y párrafos, e interlineado doble entre las secciones del texto. Las páginas,
que no serán numeradas, deben estar en el formato A4, los márgenes superior e izquierdo
tendrán 3 cm y el inferior y el derecho tendrán 2 cm.

LÍMITE (EXTENSIÓN). Los artículos, además de atender a las normas de


formato, no superarán las 25 páginas.
ORGANIZACIÓN. El orden de las secciones del artículo deberá ser el siguiente:
TÍTULO (en el centro de la página y todo en mayúsculas);
RESUMEN (de no más de 780 caracteres con espacios);
PALABRAS-CLAVE (4 a 6, dispuestas en orden alfabético);
ABSTRACT y KEYWORDS (versión en inglés del resumen y de las palabrasclave)
TEXTO
AGRADECIMIENTOS
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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REFERENCIA DEL PROPIO ARTÍCULO (con el título en inglés);
REFERENCIAS (sólo de los textos que se citan en el artículo);
Los resúmenes y las palabras-clave tanto en el idioma original como en inglés deben
presentar el estilo Times New Roman, tamaño 11.
NOTAS DE PIE DE PÁGINA (Deberán reducirse a lo indispensable, seguirán
los recursos Word para su inserción, en estilo Times New Roman, tamaño 8, y la
secuencia debe seguir el orden en que aparecen en el texto.

REFERENCIAS

Las referencias deben sujetarse a las normas de la ABNT (Asociación Brasileña de


Normas Técnicas), NBR 6023 de agosto de 2002.

CITAS EN EL TEXTO

En cuanto las citas en el texto no superen tres líneas, el apellido del autor va entre
paréntesis en mayúsculas, separándose por coma la fecha de publicación del texto citado:
(SILVA, 2000).
Si el apellido del autor ya está citado en el texto, se indica entre paréntesis sólo la fecha
de publicación del texto citado: “Silva (2000) señala…”.
La indicación del número de página en que se encuentra la cita en el texto original,
debe hacerse luego de la fecha, separada por coma y antecedida de una “p.”: (SILVA, 2000,
p. 100).
En el caso de que se citen diversas obras del mismo autor publicadas en el mismo
año, se debe diferenciarlas con letras minúsculas (en orden alfabético) luego de la fecha, sin
ningún espacio entre la fecha y la letra: (SILVA, 2000a; SILVA, 2000b).
Cuando se cite alguna obra que presente dos o tres autores, van los apellidos de todos
ellos en mayúscula, separados por punto y coma (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); sin
embargo, si hay más de tres autores, se indica sólo el primero seguido de et al.: (SILVA et al.,
2000).

CITAS TEXTUALES LARGAS

Las citas textuales que superan tres líneas deben colocarse en párrafo aparte, con
sangrado de 4 cm y sin comillas, estilo Times New Roman, tamaño 9. La cita deberá separarse
del texto por un espacio (enter) antes y otro después.

REFERENCIAS

Las referencias se incluyen al fin del artículo en orden alfabético del apellido del primer
autor. Ejemplos:
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Libros y otros estudios monográficos
AUTOR, A. Título del libro. Número de la edición. ed., nombre del (de los) traductor(es).
Ciudad: Editorial, año.

Capítulos de libros
AUTOR, A. Título del capítulo. In: AUTOR, A. Título del libro. Número de la edición.
ed., nombre del (de los) traductor(es). Ciudad: Editorial, año. p. X-Y.

Tesis
AUTOR, A. Título de la tesis: subtítulos sin cursiva. Número de hojas h. Año. Tesis
(Maestría o Doctorado en [se indica el área] – Instituto o Facultad, Universidad, Ciudad,
año. Disponible en: <http://www.______________>. Consultado en: día mes año.

Artículos de periódicos
AUTOR, A. Título del artículo. Título del periódico, Ciudad, v. (volumen), n. (número),
p. X-Y, año. Disponible en: <http://www.______________>. Consultado en: día mes año.

Publicación en actas de eventos


AUTOR, A. Título de la ponencia. In: Nombre del evento, número de la edición ed.,
año. Actas… Ciudad: Institución. p. X-Y. Disponible en: <http://www.______________>.
Consultado en: día mes año.

ANÁLISIS Y EVALUACIÓN

La Revista Olho d’água emplea una política de evaluación doble ciega (peerreview).
El Comité Editorial solicita la lectura de dos miembros del Comité Asesor, quienes
emiten un informe con su evaluación. En caso de dos informes con evaluaciones discordantes
se solicita la lectura de un tercer miembro del Comité Asesor. Luego de los análisis, el Comité
Editorial informa a los autores la decisión de la revista (si se publicará o no el artículo). En
cuanto se acepten los artículos para la publicación, los autores podrán hacer modificaciones
en su texto, si así las exigieron los informes de la evaluación. Se elegirán los artículos que
obtengan mejores calificaciones del Comité Asesor, según el interés, la originalidad y la
contribución del artículo para la temática propuesta.

DIRECCIÓN

Revista Olho d’água – PPGLetras – IBILCE – UNESP/São José do Rio Preto


DELL – Ala 3 – Sala 17.
Rua Cristóvão Colombo, 2265.
Código postal 15054-000 – São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil
Correo electrónico: revistaolhodagua@yahoo.com.br
Enlace: <http://www.olhodagua.ibilce.unesp.br/index.php/Olhodagua>
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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NORME PER CONSEGNA DI ARTICOLI

INFORMAZIONI GENERALI

La rivista Olho d’água pubblica articoli inediti di autori brasiliani o stranieri.


Gli articoli possono essere scritti in portoghese, spagnolo, francese, italiano, inglese
o tedesco. La rivista si permette il diritto di pubblicare l’articolo nella lingua originale o
in traduzione, seguendo le decisioni della Commissione Editoriale. Sottomettendo lavori
alla rivista Olho d’água, gli autori cedono automaticamente i diritti d’autore per eventuale
pubblicazione dell’articolo.
Verranno automaticamente rifiutati gli articoli in cui: a) non corrispondano alle norme
di pubblicazione della rivista; b) non ci sia la formattazione del genere articolo di rivista; c) ci
siano gravi problemi di redazione. Si consiglia agli autori che rivedano i suoi testi prima di
sottometterli alla valutazione del consiglio editoriale.

PRESENTAZIONE DEGLI ARTICOLI

SOTTOMISSIONE
L’autore deve inviare 02 archivi all’email: revistaolhodagua@yahoo.com.br
a) Articolo (testo completo senza l’identificazione dell’autore);
b) Identificazione dell’autore (Titolo del lavoro; Autore (nome completo e
solamente il cognome in maiuscola); filiazione scientifica dell’autore (Facoltà –
Istituto o università – abbreviazione – indirizzo – città – Stato – paese), indirizzo
postale o elettronico).

FORMATAZIONE
Gli articoli devono essere scritti in Word for Windows, o programma compatibile,
in Times New Roman, carattere 12 (tranne le citazioni e le note), spazio semplice tra le
righe e paragrafi, spazio doppio tra le parti del testo. Le pagine devono essere configurate
nel formato A4, senza numerazione, con 3 cm nelle margini superiore e della sinistra e 2 cm
nelle margini inferiore e della destra.

ESTENSIONE. L’articolo, configurato come summenzionati, deve avere al


massimo 25 pagine.
ORGANIZZAZIONE. L’organizzazione degli articoli deve obbedire alla seguente
sequenza:
TITOLO (centralizzato, in lettere maiuscole);
RIASSUNTO (massimo di 780 caratteri con spazio)
PAROLE-CHIAVE (4 a 6 parole organizzate in ordine);
ABSTRACT e KEYWORDS (traduzione per l’inglese del riassunto e delle
parole-chiave));
Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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TESTO;
RINGRAZIAMENTI;
REFERENZE BIBLIOGRAFICHE del proprio articolo con titolo in inglese:
REFERENZE (solo articoli menzionati nel). Riassumi e parole-chiavi, in
portoghese e inglese, devono essere scritti in Times New Roman, carattere
12.
PIÈ DI PAGINA (Le note devono essere ridotte al minimo e trovarsi nella parte
inferiore della pagina a partire dei ricorsi del Word, carattere 8, con la
numerazione insieme all’ordine di apparizione).
REFERENZE Le referenze bibliografiche e altre devono corrispondere alle
norme ABNT (NBR 6023, agosto 2002)
CITAZIONI DENTRO DEL TESTO Nelle citazioni fatte dentro del testo, fino
a tre righe, l’autore deve essere citato tra parentesi con il cognome, in lettere
maiuscole, separato da virgole dalla data di pubblicazione: (SILVA, 2000).
Se il nome dell’autore viene citato nel testo, si deve indicare solo la data tra
parentesi: “Silva (2000) disse...”.
Quando necessario, la specificazione delle pagine dovrà seguir la data, separata
da virgole e preceduta da “p”: (SILVA, 2000, p. 100).
Le citazioni di diverse opere di uno stesso autore, pubblicate nello stesso anno,
devono essere evidenziate da lettere minuscole dopo la data, senza spazio:
(SILVA, 2000a).
Quando l’opera ha due o ter autori, tutti potranno essere indicati, separati da
punto e virgola (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); quando c’è più di 3 autori,
si deve indicare il primo seguito da et al.: (SILVA et al., 2000).

CITAZIONI EVIDENZIATE DEL TESTO



Le citazioni dirette, con più di tre righe, dovranno essere evidenziate con uno spazio
di 4 cm dalla margine sinistra del testo, in Times New Roman carattere 9 e senza virgolette.

REFERENZE
Le referenze, alla fine del testo, devono essere organizzate in ordine alfabetica a
partire dal cognome del primo autore. Esempi:

Libri e altre monografie


AUTORE, A. Titolo del libro. numero dell’edizione ed., nome dei traduttori. Città:
Casa editrice, Anno. p. X-Y.
Capitoli di libri
AUTORE, A. Titolo del capitolo. In: AUTORE, A. Titolo del libro. Nome dei
traduttori. Città: Cada editrice, Anno. p. X-Y.

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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Dissertazioni e tesi
AUTORE, A. Titolo della dissertazione/tese: sottotitolo senza italico. numero di
foglie f. Anno. Dissertazione/Tese (Magistrale/Dottorato in Area di Studio) – Istituto,
Università, Città, Anno. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.
Articoli in riviste
AUTORE, A. Titolo del articolo. Nome della rivista, Città, v. (volume), n. (numero),
p. X-Y, Anno. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.
Articoli pubblicati negli Annali
AUTORE, A. Titolo del lavoro. In: NOME DEL EVENTO, numero dell’edizione ed.,
anno. Annali... Città: Istituzione. p. X-Y. Disponibile su . Accesso nel: dia mese anno.

ANALISE E GIUDIZIO
La rivista Olho d’água utilizza un sistema di valutazione doppio cieco (peereview). La
Commissione Editoriale condurrà gli articoli a, almeno, due membri del Consiglio Consultivo.
Nel caso di valutazioni contrarie, verrà richiesta una nuova valutazione di un terzo membro
della Commissione Assessora. Dopo dell’analisi, gli autori saranno informati del risultato
della valutazione. Nel caso di articoli accettati per pubblicazione, gli autori potranno,
eventualmente, introdurre modifiche a partire delle osservazioni fatte alla Commissione.
Verranno scelti i migliori articoli dal Consiglio Consultivo, secondo l’interesse, l’originalità
e la contribuzione dell’articolo per la discussione tematica proposta.

INDIRIZZO

Rivista Olho d’água – PPGLetras – IBILCE - UNESP/ São José do Rio Preto DELL
– Ala 3 – Sala 17
Rua Cristóvão Colombo, 2265 15054–000 – São José do Rio Preto – SP – Brasil

E-mail: revistaolhodagua@yahoo.com.br Site:

Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(1): p. 1–328, Jan.–Jun./2020. ISSN: 2177-3807.
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