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Débora Karpowicz

Mônica Karawejczyk
Muriel Rodrigues de Freitas
ORGANIZADORAS

MULHERES
FAZENDO
HISTÓRIA:
DA INVISIBILIDADE AO PROTAGONISMO
MULHERES
FAZENDO
HISTÓRIA:
DA INVISIBILIDADE AO
PROTAGONISMO
PEMBROKE COLLINS
CONSELHO EDITORIAL

PRESIDÊNCIA Felipe Dutra Asensi

CONSELHEIROS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, São Paulo)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Rio de Janeiro)
Adriano Rosa (USU, Rio de Janeiro)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Rio de Janeiro)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, São Paulo)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colômbia)
Carlos Mourão (PGM, São Paulo)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, São Paulo)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Juiz de Fora)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Porto Seguro)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Niterói)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Juiz de Fora)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, Estados Unidos)
Elaine Teixeira Rabello (UERJ, Rio de Janeiro)
Glaucia Ribeiro (UEA, Manaus)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Campo Grande)
Jonathan Regis (UNIVALI, Itajaí)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura. Espanha)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, São Paulo)
Luciano Nascimento (UEPB, João Pessoa)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Três Lagoas)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Niterói)
Marcia Cavalcanti (USU, Rio de Janeiro)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Porto Alegre)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Rio de Janeiro)
Rogério Borba (UVA, Rio de Janeiro)
Rosangela Tremel (UNISUL, Florianópolis)
Roseni Pinheiro (UERJ, Rio de Janeiro)
Sergio de Souza Salles (UCP, Petrópolis)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brasil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Rio de Janeiro)
Débora Karpowicz
Mônica Karawejczyk
Muriel Rodrigues de Freitas
ORGANIZADORAS

MULHERES
FAZENDO
HISTÓRIA:
DA INVISIBILIDADE AO
PROTAGONISMO

PEMBROKE COLLINS
Rio de Janeiro, 2022
Copyright © 2022 | Débora Karpowicz, Mônica Karawejczyk, Muriel Rodrigues de Freitas (orgs.)

DIREÇÃO EDITORIALFelipe Asensi


EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Felipe Asensi
REVISÃO Coordenação Editorial Pembroke Collins

PROJETO GRÁFICO E CAPA Diniz Gomes

DIAGRAMAÇÃO Diniz Gomes

DIREITOS RESERVADOS A

PEMBROKE COLLINS
Rua Pedro Primeiro, 07/606
20060-050 / Rio de Janeiro, RJ
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

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sem autorização por escrito da Editora.

FINANCIAMENTO

Este livro foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pelo Conselho
Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), pelo Conselho Internacional de Altos Estudos em
Educação (CAEduca) e pela Pembroke Collins.

Todas as obras são submetidas ao processo de peer view em formato double blind pela Editora e, no caso de
Coletânea, também pelos Organizadores.

M956

Mulheres fazendo história: da invisibilidade ao protagonismo /


Débora Soares Karpowicz, Mônica Karawejczyk e Muriel Rodrigues
de Freitas (organizadoras). – Rio de Janeiro: Pembroke Collins,
2022.

400 p.

ISBN 978-65-89891-38-3

1. Mulher. 2. Feminismo. 3. Invisibilidade. 4. Protagonismo. I.


Karpowicz, Débora Soares (org.). II Karawejczyk, Mônica (org.). III.
Freitas, Muriel Rodrigues de (org.).

CDD 305.42

Bibliotecária: Aneli Beloni CRB7 075/19.


Encontrar a voz é um ato de resistência. Falar se torna tanto uma
forma de se engajar em uma autotransformação ativa quando um
rito de passagem quando alguém deixa de ser objeto e se trans-
forma em sujeito. Apenas como sujeitos é que nós podemos falar.
Como objetos, permanecemos sem voz – e nossos seres, definidos
e interpretados pelos outros.

(hooks, bell. Erguer a voz. Pensar como feminista, pensar como


negra. SP: Elefante, 2019, p. 45)

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 11

EIXO I - DA INVISIBILIDADE AO PROTAGONISMO 21

AS MARCAS DO PATRIARCADO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E NA


VIDA DAS MULHERES 22
Ana Maria Colling

AS MULHERES E O TRABALHO INTELECTUAL: UMA LONGA HISTÓRIA DE


INTERDIÇÕES 42
Natalia Pietra Méndez

FEMINISMO E EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO DE RECONHECIMENTO DO


PENSAMENTO DAS MULHERES 67
Íris de Carvalho

CONHECIMENTO SITUADO, LUGAR DE FALA E INTERSECCIONALIDADE:


CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO FEMINISTA NEGRO NO ENSINO DE
HISTÓRIA 89
Carla de Moura

LITERATURA, GÊNERO E HISTÓRIA: REFLEXÕES A PARTIR DA OBRA


LITERÁRIA A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER 115
Fabiane Maria Rizzardo
Nielly da Silva Pastelletto

DONA GUIDINHA DO POÇO – UMA VISÃO ALÉM DO CÂNONE SOBRE


PAPÉIS DE GÊNERO E RELAÇÕES CONJUGAIS NO BRASIL DO SÉCULO XIX 130
Marcia Kern

OS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO NAS PINTURAS MURALISTAS MEXICANAS  148


Michele T. Philomena Bohnenberger

7
GIRLS JUST WANNA HEAVY METAL: MULHERES, HEAVY METAL E
EXCRIÇÃO NA CENA METAL 171
Cristiane Bahy

OS DESAFIOS DA SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA 190


Débora do Carmo Vicente

REVISITANDO A HISTÓRIA DAS MULHERES NUM ESPAÇO DE


COLONIZAÇÃO ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL: VINTE ANOS DEPOIS 214
Marlise Regina Meyrer

EIXO II - PROTAGONISMOS E (RE)EXISTÊNCIAS 245

IGUALDADE DE GÊNERO PARA CRIANÇAS ATRAVÉS DA LITERATURA  246


Ana Prestes

ENTRE FEMOCRACIA E FEMINISMO: TRANSFORMAÇÕES E ATUAÇÃO


DOS MOVIMENTOS/ORGANIZAÇÕES DE MULHERES AFRICANAS DO
PERÍODO DE TRANSIÇÃO DE PODERES AO FIM DOS PRINCIPAIS
CONFLITOS CIVIS (ANOS 1970-2000) 261
Thuila Farias Ferreira

PESQUISA CIENTÍFICA E FEMINISMO NA EDUCAÇÃO BÁSICA 290


Caroline Pereira Leal

EXPERIÊNCIAS E ESTRATÉGIAS SOBRE O ENSINO DE GÊNERO E


SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA EM RONDÔNIA 305
Lauri Miranda Silva

INTELECTUALIDADE FEMININA E IDEOLOGIA ESTADONOVISTA: A


REVISTA CULTURA POLÍTICA (1941-1945) 325
Eliane Goulart MacGinity

ESTUDOS FEMINISTAS, DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO: RELATO DE


EXPERIÊNCIA DE/EM CURSO NA PANDEMIA DE COVID-19 (2020) 347
Katharine Trajano
Emanuelle Ferreira
Janaína Guimarães

8
UM MANIFESTO 361

CHORUME 363
Leila Negalaize Lopes

ENTREVISTA COM LOLA ARONOVICH (DOLORES ARONOVICH AGUERO) 375

ENTREVISTA COM LOLA ARONOVICH 377


Mônica Karawejczyk
Débora Karpowicz
Muriel Rodrigues de Freitas

SOBRE AS ORGANIZADORAS 389

SOBRE AS AUTORAS 393

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APRESENTAÇÃO

DÉBORA KARPOWICZ

M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K

M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

A história das mulheres foi por muito tempo cercada pelo silêncio.
Silêncio das fontes. Silêncio das próprias mulheres, relegadas a um lugar
feito de fronteiras. Fronteiras imaginárias e simbólicas. Fronteiras que as
cerceavam em seus atos, tão reais quanto um muro. Fronteiras concretas
que aniquilaram as forças, sugaram iniciativas, impediram a fala, restrin-
giram o andar. Limites inscritos nas leis e nos costumes. Limites descritos
em tratados e proferidos sem medo por vozes masculinas.
Duas grandes historiadoras, Michele Perrot e Joan Scott, já escre-
veram sobre essa temática. Michele chega a traçar um breve histórico da
invisibilidade e silenciamento das mulheres pelos homens, a partir dos
relatos de figuras importantes na construção dos discursos históricos. Do
pensamento de Aristóteles, que afirmava a superioridade masculina e a
selvageria feminina, passando pelo apóstolo Paulo, que pregava o silên-
cio das mulheres, até Bossuet, Rosseau, Comte e Proudhon, nos quais
encontramos a construção da imagem feminina a partir de um sistema
hierárquico que as colocava em um plano secundário e em lugar de sub-
missão. Michele Perrot, através da análise literária e das artes visuais, de-
monstra como, também neste campo, houve a perpetuação da imagem
feminina como um ser limitado, passional, equivocado e submisso. Joan
Scott partilha de muitas colocações de Perrot, tanto no que diz respeito
ao esquecimento das mulheres na escrita da História, quanto ao lugar
imposto para elas na sociedade. Não podemos negar que o “mundo femi-
nino” foi, por muito tempo, restrito ao mundo doméstico, cerceado por
seu corpo e definido pela maternidade.
Muitas das demandas femininas foram conquistadas ao longo do
último século, tais como o direito à educação mais inclusiva e trabalho
digno, legislações protetivas e o conhecimento do seu corpo. Contudo,
outras demandas ainda são apenas desejos e promessas, mas elas deixa-
ram uma lição importante: as mulheres podem e devem ser protagonistas
de sua história. Estudos localizados principalmente a partir da década de
1970 mudaram a tônica dos escritos e da dialética que se mantinha sobre
o binômio opressão-dominação e trouxeram um necessário aprofunda-
mento das questões teóricas e metodológicas no que se refere à história
das mulheres e dos estudos de gênero. Desde os anos 1980, tais estudos

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têm cada vez mais despertado interesse de pesquisadores e pesquisadoras


e, a partir da década de 2010, obtiveram mais visibilidade, tornando-se
mais desafiantes, principalmente depois dos ataques proferidos por vários
setores ao que tem se convencionado chamar de “ideologia de gênero”.
Neste sentido, queremos aqui lembrar do perigo do neutralismo e da
falsa equivalência advinda da teoria da complementaridade, ou seja, de
que a história das mulheres seria apenas o resgate da parte faltante da his-
tória geral da humanidade. Entendemos ser necessário fugir do binômio
dominação-opressão para afinal não cairmos no perigoso jogo da conci-
liação, pois justapomos “culturas ao mesmo tempo plurais e complemen-
tares, esquecendo que a relação entre os sexos é muito marcada pela vio-
lência e pela desigualdade”.1 A teoria da complementaridade trouxe uma
imagem de equilíbrio às discussões, como se as dinâmicas entre os sexos
não fossem construídas em cima de alicerces antagônicos e concorren-
tes, mas sim, como polos equivalentes, o que não se sustenta. Tomando
como exemplo o trabalho doméstico, ficam evidentes os polos positivos
e negativos que criam hierarquias e não igualdade, gerando no máximo
uma “complementaridade de subordinação”. Acreditamos que tal ideia
da complementaridade serviria apenas para afastar o teor de contestação,
militância e luta do movimento feminino e feminista.
A relação entre os sexos e sua expressão, a dominação masculina,
não são dissociáveis de outros tipos de desigualdade, e se exerce por me-
diações concretas e simbólicas. Definir a submissão imposta às mulhe-
res como uma violência simbólica ajuda a compreender como a relação
de dominação – que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente
construída – é afirmada como uma diferença de ordem natural, radical,
irredutível e universal. A submissão se faz em lugares e pelos mecanismos
mais diversos, passando pelo modo de produção dos bens, de cujos bene-
fícios as mulheres são, muitas vezes, excluídas. No trabalho doméstico,
elas são exploradas duplamente como produtoras de bens e reprodutoras
de mão de obra. Esse sistema exploratório, nem sempre mascarado, é
próprio das sociedades capitalistas, porém nas formas familiares de pro-
dução se repetem através do monopólio profissional do ofício.

1 Soihet, Soares e Costa (2001, p. 11).

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Este é o ponto fundamental da proposta de Joan Scott: as relações


entre os sexos são relações sociais (ou seja, construções sociais) e a domi-
nação masculina é a expressão da desigualdade nessas relações, sendo este
o cerne das hierarquias de gênero. O ideal a ser alcançado é compreender
que as relações entre os sexos são relações sociais, e que isso leva à dis-
tinção entre o social e o político, refinando o conceito de dominação. E
esta é uma discussão fundamental, porque a dualidade público-privada é
uma das discussões primordiais e primeiras da teoria política feminista.
Seguindo este raciocínio, se o político vem do social, não adianta apenas
definirmos que o espaço público é o espaço masculino e o privado é o
espaço feminino.
Gerda Lerner, assim como Scott e Perrot, também é de suma impor-
tância para esta discussão. Para a autora, o sistema patriarcal só funciona
com a cooperação das mulheres, segundo ela, adquirida por diversos sis-
temas simbólicos de poder, por intermédio da doutrinação, privação da
educação, do apagamento de sua história, da divisão das mulheres entre
respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da discriminação no acesso a
recursos econômicos e poder político e da recompensa de privilégios de
classe dada àquelas que se conformam. Aprender como se constitui esse
sistema, entender modos de acessá-lo teoricamente e compartilhar meto-
dologias de análise é importante para compreendermos as diversas formas
de exclusão a que as mulheres foram submetidas ao longo da história. Se
levarmos em conta que o político é o que determina as regras comuns que
devem reger a vida coletiva, então o privado faz parte do jogo político, e
é definido pelo masculino. O silêncio sobre isso pode ser bastante produ-
tivo para a manutenção de hierarquias e privilégios.
A proposta deste livro partiu de um desejo das organizadoras de
questionar e refletir acerca da invisibilidade das mulheres na história, bus-
cando assim abordar representações sociais e culturais que as relegaram a
um lugar secundário. Buscamos os protagonismos daquelas que reafir-
maram a importância política dos movimentos feministas, e para tanto
nossas autoras escreveram textos sensíveis que contribuem para levantar
um importante debate sobre a necessidade de manutenção das pesquisas
deste campo historiográfico, além de trazerem críticas e fundamentais

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perspectivas teóricas e metodológicas para apreciação do público leitor.


Privilegiamos a escrita feminina, concedemos espaço para mulheres que
procuraram destacar as ações femininas, a forma como elas atuaram e es-
tão atuando em seus campos de pesquisa, no mundo do trabalho, na edu-
cação. Mulheres protagonistas de suas próprias histórias. Nossas autoras
procuraram lacunas historiográficas, fizeram novos questionamentos para
as mesmas fontes, buscaram e encontraram as mulheres na história, seu
espaço, sua fala, sua ação, seu lugar.
Esta coletânea reúne 16 capítulos, um manifesto e uma entrevista.
Todos os textos abordam de alguma forma o fazer histórico das mulheres,
trazendo reflexões e apontamentos que vão da invisibilidade ao protago-
nismo. Trata-se de um conjunto de textos escritos por pesquisadoras, ati-
vistas e professoras que, através de suas pesquisas, relatos de experiências
e estudo aprofundado sobre a temática, desvelam contextos, histórias e
experiências.
O livro foi dividido em dois eixos. No primeiro, intitulado “Da in-
visibilidade ao protagonismo”, estão reunidos dez textos que fazem re-
flexões e análises de contextos históricos diversos nos quais as mulheres
passaram de invisibilizadas a protagonistas. Abrindo nossa coletânea, está
o texto de Ana Maria Colling, “As marcas do patriarcado nas Constitui-
ções brasileiras e na vida das mulheres”, no qual a autora aborda a história
das mulheres, das relações de gênero e dos movimentos feministas como
formas de resistência à cultura patriarcal instaurada em todo o Ocidente e
materializada nas Constituições e Códigos. Na sequência, Natalia Pietra
Méndez analisa as formas de interdição impostas às mulheres dentro do
trabalho intelectual, partindo de uma perspectiva teórico-metodológica
ancorada nos estudos feministas, brindando-nos com uma reflexão ne-
cessária e instigante intitulada “As mulheres e o trabalho intelectual: uma
longa história de interdições”. O terceiro capítulo foi escrito por Iris de
Carvalho e nele a autora procura explorar a relação entre o feminismo e
a educação, tema tão caro aos estudos feministas. Neste belo arrazoado,
intitulado “Feminismo e educação: um diálogo de reconhecimento do
pensamento das mulheres”, Iris, a partir do pensamento das mulheres
brasileiras, busca reconhecer as pioneiras e os contextos de formação de

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seus ideários. Já Carla Moura, em “Conhecimento situado, lugar de fala


e interseccionalidade: contribuições do pensamento feminista negro no
ensino de história”, nos faz refletir sobre as sofisticadas ferramentas teóri-
cas do Pensamento Feminista Negro ao Ensino de História.
Fabiane Rizzardo e Nielly Pastelletto contemplam, no capítulo cin-
co, uma discussão baseada na literatura, nos estudos de gênero e na sua
contribuição para a história. Partindo da emblemática obra literária “A
guerra não tem rosto de mulher", as autoras nos brindam com uma insti-
gante reflexão. O capítulo seis também aborda uma obra literária pouco
conhecida do público atual, “Dona Guidinha do Poço”, escrita pelo abo-
licionista Manuel de Oliveira Paiva entre 1891 e 1892 e publicada pela
primeira vez em 1952. A proposta de Márcia Kern é tratar das infinitas
possibilidades de representação literária a respeito de papéis de gênero e
relações conjugais no Brasil do final do século XIX e, como ela mesma
destaca, que “a literatura seja o palco onde se encontram as represen-
tações”. No mesmo viés, explorando o rico manancial proporcionado
pelas artes, apresentamos o capítulo sete, “Os estereótipos de gênero nas
pinturas muralistas mexicanas”, no qual Michele Bohnenberger agrega
mais um pilar de qualidade na nossa coletânea, ao discutir como a re-
presentação da figura feminina foi estereotipada nos murais mexicanos e
relacionada a funções que mantiveram um pensamento patriarcal domi-
nante, contribuindo para os números atuais de violência. Cristiane Bahy,
por sua vez, em “’Girls just wanna heavy metal’: mulheres, heavy metal e
excrição na cena metal”, resgata a participação das mulheres na cena hea-
vy metal, bem como os motivos pelos quais foram invisibilizadas, em uma
abordagem pouca trabalhada nos estudos de gênero até o momento no
Brasil.
Débora do Carmo Vicente é a autora do nosso nono capítulo, no
qual ela destaca um tema superatual, a sub-representação feminina na
política brasileira. Débora procura refletir sobre as barreiras que têm se
apresentado, insistentemente, no caminho das mulheres e as têm afas-
tado da política e dos cargos de poder, tema candente e cada vez mais
necessário – afinal, almejamos mais mulheres na política. E finalizamos
o primeiro eixo desta coletânea com o texto de Marlise Regina Meyrer,

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que o escreveu com o objetivo de refletir sobre as mudanças na produção


historiográfica sobre a História das Mulheres, revisitando um acervo de
entrevistas, produzido na década de 1990. Através de tal releitura, a au-
tora analisou as narrativas das mulheres, tendo como elemento comum
a descendência germânica e o ofício nas fábricas da região de imigração
alemã do Rio Grande do Sul.
No segundo eixo, intitulado “Protagonismos e (re)existências”, reu-
nimos seis textos, um manifesto e uma entrevista, todos destacando o
protagonismo feminino em atos concretos e atuais, em ações em prol da
divulgação da história das mulheres e dos estudos de gênero. Ana Prestes
abre a seção com o capítulo intitulado “Igualdade de gênero para crianças
através da literatura”, trazendo ao mesmo tempo um relato e uma proble-
matização sobre o ato de escrever sobre temas de gênero para o público
infanto-juvenil. A autora reflete sobre as pesquisas necessárias para sua
consecução, os dilemas encontrados na escrita, a importância da ilustra-
ção, a linguagem mais adequada ao público, a busca da verdade factual,
as dificuldades para distribuição, o papel da instituição escola no trabalho
com as obras e outras temáticas subjacentes. Thuila Ferreira, por sua vez,
no texto “Entre femocracia e feminismo: transformações e atuação dos
movimentos/organizações de mulheres africanas do período de transi-
ção de poderes ao fim dos principais conflitos civis (anos 1970-2000)”,
aborda a atuação de movimentos e organizações de mulheres africanas na
África subsaariana, versando sobre sua atuação de 1970 a 2000 e analisan-
do a base estratégica de desenvolvimento do feminismo africano. Caroli-
ne Leal discorre, no capítulo “Pesquisa científica e feminismo na educa-
ção básica”, sobre a importância da pesquisa científica na educação básica
como forma de estímulo ao protagonismo das mulheres e à libertação dos
padrões patriarcais das normativas de gênero. Caroline fala em primeira
pessoa e nos traz o relato de sua experiência como professora na cidade
de Porto Alegre, instigando-nos a repensar nosso papel em uma educa-
ção feminista e libertária. Nessa mesma linha, oferecemos aos leitores e
leitoras a experiência de Lauri Miranda Silva, autora do nosso décimo
quarto capítulo. Lauri relata suas experiências e estratégias no ensino de
História em Rondônia, com as temáticas de gênero e sexualidade viven-

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ciadas durante a execução do trabalho intitulado “Projeto de Gênero e


Sexualidade na Escola (PGSE)”, cujo objetivo foi ensinar, conscientizar,
sensibilizar e discutir, com as/os alunas/os e a comunidade escolar, as di-
versas formas de discriminações e violências a partir do bullying praticado
no ambiente escolar.
Eliane Mac Ginity, em “Intelectualidade feminina e ideologia esta-
donovista: a revista Cultura Política (1941-1945)”, por sua vez, narra outro
tipo de protagonismo feminino. Ela analisou a produção intelectual de
mulheres que tiveram seus artigos publicados, de 1941 a 1945, em Cultura
Política, periódico oficial do Estado Novo que veiculava a ideologia do
regime através da intelectualidade da época. Eliane identificou os prin-
cipais assuntos abordados pelas autoras e a articulação com a ditadura de
Getúlio Vargas. O foco foi a produção de conhecimento de mulheres em
uma revista eminentemente masculina.
Fechamos os capítulos da nossa coletânea com uma reflexão sobre
como a pandemia de Covid-19 afetou e alterou a forma de nos relacionar-
mos e o protagonismo feminino na luta pela divulgação de nossas pautas.
Katharine Trajano, Emanuelle Ferreira e Janaína Guimarães nos trazem
os altos e baixos que o momento pandêmico acabou nos proporcionan-
do, ao focarem seu texto no relato de um curso de extensão promovido
pelo Grupo História e Gênero da Universidade de Pernambuco, intitu-
lado “Estudos Feministas, Direitos Humanos e Educação”, promovido
de forma remota exatamente devido à pandemia. Adaptar nossas lutas,
nossas expectativas, nossas certezas, nossos medos, esse foi o teor que a
pandemia tem nos ensinado. Mas continuamos na luta, sempre.
Além dos belíssimos textos escritos por nossas autoras, que trazem
luz a tantos pontos obscurecidos da nossa história, presenteamos nossos
leitores e nossas leitoras com dois textos diversos. Um manifesto que cor-
ta a carne e expõe a alma de Leila Negalaize Lopes, ao abordar seu lugar de
fala no movimento feminista atual. E, encerrando nosso livro, trazemos as
palavras de Lola, simplesmente Lola, inspiração de tantas mulheres neste
Brasil atual, militante Lola, escritora Lola, feminista Lola, a quem agra-
decemos pela generosidade e disponibilidade de nos conceder a entrevis-

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ta, e a saudamos com amor e sororidade. Boa leitura e que venham mais
escritos, mais parcerias, mais amizades e mais protagonismo.

Por tempos menos sombrios.


Débora, Mônica, Muriel.

REFERÊNCIAS

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das


mulheres pelos homens. Tradução: Luiza Sellera. São Paulo: Cul-
trix, 2019.

PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Con-


texto, 2019.

_________. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP:


EDUSC, 2005.

SCOTT, Joan W. A invisibilidade da experiência. Projeto História.


São Paulo, n. 16, fev. 1998, p. 297-325.

_________. Género e historia. México: FCE, Universidad Autónoma


de la Ciudad de México, 2008.

SOIHET, Rachel; SOARES, Rosana M. A.; COSTA, Suely G. A his-


tória das mulheres. Cultura e poder das mulheres. Ensaio de histo-
riografia. Gênero, Niterói, v. 2, n. 1, 2 sem. 2001.

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EIXO I

DA INVISIBILIDADE AO
P R O TA G O N I S M O
AS MARCAS DO PATRIARCADO NAS
CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E NA
VIDA DAS MULHERES
Ana Maria Colling

INTRODUÇÃO

Falar em mulheres, em relações de gênero, é falar em violências e


transgressões. As mulheres carregam no seu corpo as marcas da violência,
seja ela física, psicológica, de exclusão em variados domínios, nos salários
menores, discursiva em pequenas injúrias. Uma violência que extermi-
na o corpo feminino, em outras que maltrata, castiga, violenta, abusa e,
muitas vezes, uma violência invisível aos olhos dos demais, e que fere tão
profundamente. A naturalização da violência feminina, a cultura do estu-
pro, parece fazer parte da paisagem natural em nossos tempos.
A exteriorização do desprezo ao corpo feminino aparece cotidiana-
mente. Quando achávamos, nós, feministas, que a desqualificação das
mulheres fazia parte do passado, morto, enterrado, ela surge mais viva do
que nunca. Pergunto então, apesar da Carta igualitária de 1988, das leis
que tentam coibir a violência e os assassinatos de mulheres, qual o lastro
cultural que permanece tão vivo?
Este texto trata não somente das mulheres, mas de todos os sujeitos
que escapam ao normativo do sujeito masculino, heterossexual, branco,
defensor do patriarcado e da moral marcada por ele. E, numa tentativa de
entender a longevidade e a permanência dessa desqualificação, que trata
as mulheres como um quase nada, com seus corpos disponíveis a todos

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os tipos de abusos e assédios, voltamos ao passado, às normas legais que


instituíram os modelos de homens e de mulheres e a relação entre eles.
Privilegiamos, nesta análise, as três primeiras Constituições brasileiras:
1824, 1891 e 1934. As duas últimas convivem, parece que sem causar
espanto algum, com o Código Civil Brasileiro que determinou a incapa-
cidade civil das mulheres casadas, instituindo o pátrio poder.
Falar em gênero, em história das mulheres, nunca se mostrou tão
urgente e atual nos tempos de Escola sem Partido, que tenta colocar no
índex das maldades a palavra “gênero”, responsável por desmantelar a fa-
mília; tempos de ideologia de gênero, movimento internacional nascido
na Igreja, que acusa gênero de tentar transformar todas as crianças em
homossexuais, e novamente, desmantelar a família e a moral.
Gênero é um lugar de debate intenso na atualidade e se transformou
em algo presente em um campo de luta. Segundo Joan Scott, “é esta po-
lítica que eu penso que deve comandar nossa atenção, porque gênero é a
lente de percepção através do qual ensinamos os significados de macho/
fêmea, masculino/feminino”. Lembra-nos sempre que “não há uma re-
presentação inequívoca das mulheres, que isto é sempre uma questão de
política”.2

HISTÓRIA DAS MULHERES

Historicamente, o corpo feminino foi desqualificado. Desde o dis-


curso médico-filosófico dos antigos gregos, passando pela narrativa ju-
daico-cristã, pelo discurso médico-psiquiátrico até chegar ao discurso
psicanalítico, o corpo feminino sempre foi alvo de suspeitas e surpresas.
O que quer dizer este corpo, enigmático, que os homens, portadores da
racionalidade e donos do pensamento ocidental não conseguiam expli-
car? Quem não se lembra de Freud, o pai da psicanálise, atônito sobre o
“continente negro”, indecifrável?
Como traduzir que a única e radical diferença entre homens e mu-
lheres, que é a capacidade de gerar filhos, que o útero, esta antiga matriz,
a grande positividade das mulheres, se transformou historicamente em

2 Scott (2012, p. 337).

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signo da desigualdade? Porque elas possuem um útero, porque elas geram


homens e mulheres, porque elas amamentam, transformaram-se em um
corpo doente. Muitos tratados científicos e muitas obras de literatura bra-
sileira e mundial dedicaram espaços a este corpo frágil e sujeito a doen-
ças3. Esta natureza, menstruação, gravidez, parto, menopausa, destinou
historicamente as mulheres ao silêncio e à obscuridade, como se sua única
capacidade de criação fosse essa, de seres humanos.
Os variados discursos elaborados historicamente e que definiram o
que é ser mulher, sua essência, sua “natureza”, ditaram comportamentos,
lugares, papéis sociais ao feminino, e essas práticas discursivas e não discur-
sivas, como nos ensina Foucault, são reelaboradas continuamente, acom-
panhando o desenvolvimento da sociedade. São transculturais e produzem
muitas vezes o consentimento feminino. A representação da inferioridade
feminina, incansavelmente repetida, inscreveu-se nos pensamentos dos ho-
mens e das mulheres. Michelle Perrot já nos alertava em um texto seu: tão
longe quanto nosso olhar alcança, só avistamos a dominação masculina. E
esta dominação estabeleceu verdades, difíceis de serem desconstruídas.
Afinal, que natureza é essa? Que trabalho eficiente foi esse, de constru-
ção da natureza feminina, que não deixou rastros para sua destruição? Porque
é natural, sempre dada, é impossível de ser modificada. Gosto do texto de
Pierre Bourdieu, ao ser convidado para avaliar um dos tomos da História das
Mulheres no Ocidente, obra coordenada por Michelle Perrot e Georges Duby,
quando ele diz que não basta ser do sexo feminino para ter uma visão da
história das mulheres, porque a visão feminina é uma visão colonizada, do-
minada, que não vê a si própria. Recomenda, então, que um objeto maior da
história das mulheres deva ser o estudo dos discursos e práticas que garantem
que as mulheres consintam nas representações dominantes da diferença entre
os sexos. Conclui seu pequeno texto afirmando que é preciso reconstruir o
olhar das mulheres, que é preciso descolonizar o feminino.
A história das mulheres nada mais faz do que tentar construir uma
história igualitária na qual homens e mulheres, homens e homens, mu-

3 Para saber mais sobre a construção do corpo feminino ver COLLING, Ana Maria. Tempos
diferentes, discursos iguais. A construção histórica do corpo feminino. Dourados, MS: Ed.
UFGD, 2019.

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lheres e mulheres, independentemente de seus corpos, possam ter opor-


tunidades iguais, democracia, liberdade e uma vida com dignidade.

RELAÇÕES DE GÊNERO E IDEOLOGIA DE GÊNERO

Quando o debate nacional se pauta na ideologia de gênero, pergun-


to: o que é gênero, afinal? Será que essas pessoas que falam tão alto, em
tom acusatório, em ideologia de gênero, sabem de seu significado? Gêne-
ro nada mais é do que a construção histórica, social e cultural dos sexos.
O que os estudos de gênero tentam demonstrar é que os corpos pou-
co têm a ver com a biologia, e muito com a cultura. O conceito de gênero
surgiu nos anos 80, com as teóricas do feminismo. Em 1986, a norte-a-
mericana Joan Scott publicou seu renomado texto Gênero como categoria
útil de análise histórica. Pela primeira vez, intelectuais debruçaram-se sobre
esse novo conceito, numa tentativa de introduzir na narrativa histórica
a relação entre os sexos, demonstrando que esta relação não é um fato
natural, mas uma relação socialmente construída, incessantemente remo-
delada, efeito e motor da dinâmica social.

Em um recente texto, Scott confessa que havia começado a perder in-


teresse no Gênero, porque imaginava que os debates sobre as mulhe-
res estavam resolvidos. Mas, rapidamente deu-se conta, de que este
conceito era alvo de uma acirrada disputa política, “agora é um termo
de referência que atravessa o espectro político, com efeitos muito di-
ferentes daqueles que as feministas originalmente intencionaram”.4

Longe de estar resolvido, gênero é uma questão perpetuamente aber-


ta. Segundo ela, o conceito se mantém útil para a análise histórica:

Se pegarmos gênero como um guia não simplesmente como ho-


mens e mulheres têm sido definidos em relação ao outro, mas
também que visões de ordem social estão sendo contestadas, so-
brepostas, resistidas e defendidas nos termos de definições mas-

4 Scott (2012, p. 331).

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culino/feminino, chegaremos a uma nova visão sobre as diversas


sociedades, culturas, histórias e políticas que queremos investi-
gar. Gênero se torna não um guia para categorias estatísticas de
identidade sexuada, mas para a interação dinâmica da imaginação,
regulação e transgressão nas sociedades e culturas que estudamos.5

A história das mulheres e a história de gênero estão interligadas. Este


se situa no campo relacional, porque só se concebem mulheres se elas
forem definidas em relação aos homens. Para as teóricas de gênero, são
as civilizações que conferem sentido à diferença entre os sexos. Uma das
melhores definições do que é gênero nos é apresentada por Scott no pre-
fácio à edição francesa de La citoyenne paradoxale, em 1997. Segundo ela:

Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não


se relaciona simplesmente às ideias, mas também às instituições,
às estruturas, as práticas cotidianas, como aos rituais, e tudo o que
constitui as relações sociais. O discurso é o instrumento de en-
trada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organi-
zação social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a
organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade
biológica primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A
diferença sexual não é causa originária da qual a organização social
poderia derivar: ela é antes, uma estrutura social móvel que deve
ser analisada nos seus diferentes contextos históricos.6

Os trabalhos sobre masculinidades e as novas sexualidades ampliaram


o conceito de gênero, distanciando-o do feminismo. Para eles, não somen-
te as mulheres contestam a construção do sujeito homem heterossexual,
mas todos aqueles e aquelas recalcados por este sujeito universal. Com a
teoria queer, gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros se utilizam
deste conceito, demonstrando o quanto ele não é fixo, mas sim, político.

5 Scott (2012, p. 347).


6 Scott (1997, p. 15. Tradução livre).

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FEMINISMOS

A violência contra as mulheres e os homossexuais é uma chaga mun-


dial, caso de saúde pública, e deve ser combatida em todos os espaços pos-
síveis. Não há dia que os jornais não estampem assassinatos de mulheres,
muitas vezes junto com seus filhos, por maridos e pais, que na maioria das
vezes se matam logo após.
Quem não acompanhou o caso acontecido no primeiro dia do ano
de 2017 em Campinas-SP, quando um homem invadiu uma festa para
matar a ex-mulher, o filho e mais nove pessoas da família dela? Em se-
guida se suicidou. Deixou uma carta de ódio às mulheres justificando
a chacina, que vitimou nove delas: “Quero pegar o máximo de vadias
juntas”. O dramático disso tudo é que este pensamento não é isolado na
sociedade brasileira.
O que faz um homem dar fim à sua vida logo após acabar com a vida
de sua família? Que engrenagem subjetiva é essa que permite tais vio-
lências? No caso brasileiro, o combate à violência doméstica é exemplar,
demonstrando que não há falta de leis. A Constituição de 1988 proíbe
qualquer tipo de discriminação; a lei Maria da Penha, internacionalmen-
te reconhecida como uma das mais avançadas, e a lei antifeminicídio, são
típicos exemplos desse combate. Se os números não param de crescer,
transformando as leis em letras mortas, o combate deve ser especialmente
no campo da cultura. O patriarcado permanece. E permanece demons-
trando que uns são donos e senhores dos corpos de outras. Porque o cor-
po é sempre alvo do poder.
Se as mulheres permanecem nos lugares que lhes foram destinados
historicamente, esposa e mãe, como um corpo anistórico destinado es-
sencialmente à reprodução e à maternidade compulsória, não há proble-
ma. Mas, se ousam romper com esta determinação que atravessa todo o
corpo social, exibindo sua liberdade, são um desvio do feminino, e seu
corpo dessacralizado merece e deve ser violado.
A história do feminismo é uma história da transgressão e, em todos
os movimentos de resistência feminina, o corpo é sempre protagonista.
Mudam os tempos, mas permanece a reivindicação do corpo como seu.

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Tanto no Movimento Feminista, que balançou o mundo no final da década


de 60, como na atualidade, as mulheres bradam que seu corpo lhes per-
tence, um corpo político, enfim.
Os novos movimentos feministas escancaram as permanências, as
continuidades do discurso patriarcal e da desigualdade entre os sexos. Se
nas décadas de 60 e 70 saíamos às ruas pedindo igualdade, dizendo que
o privado era político e “nosso corpo nos pertence”, após a invenção da
pílula anticoncepcional, para poder fazer sexo sem o perigo da gravidez, o
movimento hoje continua com o mesmo slogan: “meu corpo me perten-
ce”. Apesar de ter passado meio século, temos ainda que reivindicar o fim
da violência, o fim dos estupros. As críticas ao patriarcado e ao machismo
continuam como palavras de ordem.
Em todos os movimentos feministas, os conservadores buscam res-
paldo no discurso “família” para combatê-los. No primeiro, porque com
a invenção da pílula anticoncepcional, o sexo poderia ser por prazer, e
não mais somente para procriar. Na Marcha das Vadias, a família fica
comprometida com suas jovens nas ruas, reivindicando a legalização do
aborto, por exemplo. Apresentam uma ameaça à família, instituição que
não pode ser atacada ou dissolvida. Em todo discurso conservador, moral
e família são as palavras mais repetidas.
Michele Perrot nos lembra que se o corpo está no centro de toda
relação de poder, o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata
e específica. Sua aparência, suas formas, seus gestos etc., tudo são obje-
tos de suspeita. Suspeita, segundo ela, que visa ao sexo, vulcão da terra:
“Toda mulher em liberdade é um perigo e, ao mesmo tempo, está em
perigo, um legitimando o outro. Se algo de mau lhe acontece, ela está
recebendo apenas aquilo que merece, porque o corpo das mulheres não
lhes pertence”.7

AS LEIS BRASILEIRAS E O FALSO UNIVERSALISMO

O falso universalismo “todos são iguais perante a lei” continua im-


pregnado em nosso imaginário histórico, nas relações sociais e culturais e

7 Perrot (2005, p. 447).

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até nas políticas públicas. A maioria das leis, dos discursos e obras cientí-
ficas sempre remeteram a um sujeito que se supõe universal. Às mulheres
sempre um dilema, como contar sua história nesse universalismo, que
negava a diferença entre os sexos; como contar suas experiências se en-
globadas num pretenso sujeito único universal?
Mas desde os movimentos políticos e sociais de mulheres no final
do século XVIII, críticas são feitas a esta linguagem de poder, que nada
mais é do que um reflexo da estrutura patriarcal, presente especialmente,
no caso brasileiro, nas Constituições e nos Códigos. As mulheres não
cansam de denunciar a contradição entre a proclamação da universalidade
dos direitos e sua exclusão.
A história do discurso e da prática jurídica sempre foi um tema pri-
vilegiado na denúncia do silenciamento feminino. Como afirma Pomata,
“em nenhum domínio a distinção entre os sexos é tão forte, e as fontes
não escasseiam”.8 O estudo das leis e de sua materialização é imprescin-
dível para conhecer qualquer sociedade. No que se refere às relações de
gênero, ou à diferença entre eles, é um elemento fundamental para iden-
tificar como a normativa legal afetou a vida das mulheres.
Neste texto, privilegio as Constituições brasileiras de 1824 (primeira
Constituição brasileira), a de 1891 (primeira Constituição republicana) e
a de 1934 (que institui o voto feminino e o silenciamento sobre as mu-
lheres). Elas, as mulheres, não existem para os juristas e políticos que
redigiram estas Cartas, sobre um país descrito somente por homens, ou
melhor, de alguns homens.
Em 1822, quando foi convocada a Assembleia Constituinte brasilei-
ra, aqui predominava uma sociedade agrícola, concentrada especialmente
nas áreas litorâneas. Os “homens bons” que constituíam as câmaras mu-
nicipais vinham da elite agrária ou eram seus porta-vozes. A Assembleia
Constituinte foi convocada por D. Pedro enquanto regente do reino do
Brasil, dois meses antes da Independência. É um fato sui generis a Consti-
tuinte ser convocada anteriormente ao simbólico grito do Ipiranga, que
nos libertou oficialmente de Portugal.

8 Pomata (1995).

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Na elaboração imediata de uma lei básica para o Brasil, tentava-se


igualar o país às nações civilizadas, que já possuíam ou estavam elaboran-
do a sua. Os deputados eram representantes dos vários segmentos sociais
que representavam a sociedade da época: grandes proprietários de terra,
altos funcionários, comerciantes, clero, pequenos proprietários, funcio-
nários públicos, trabalhadores livres, artesãos, arrendatários, profissionais
liberais, entre outros.
Após vários incidentes entre a Assembleia e o Imperador, este a dis-
solveu em 12 de novembro do mesmo ano. No dia seguinte, através de
um decreto real, foi nomeado o Conselho de Estado para elaborar a nova
Constituição, composto de seis ministros e personalidades políticas. Por
este motivo, nossa primeira Carta foi denominada de “Constituição Ou-
torgada”, e estabeleceu um quarto poder, o Poder Moderador.
Nossa primeira Constituição designa-se como liberal e exclui uma
grande parcela da população brasileira, como mulheres, escravos, índios,
pobres, assalariados e negros libertos. Para votar e ser votado, o cidadão
deveria ter um mínimo de renda, o poder da elite. Proclamava a liberda-
de, mas dizia que a religião católica era a oficial. Proibia as corporações de
ofício e mantinha o trabalho escravo.
Segundo a Constituição, em seu artigo 91, tinham voto nas eleições
primárias os cidadãos brasileiros que estivessem no gozo de seus direitos
políticos e os estrangeiros naturalizados. O artigo seguinte nomeava os
excluídos de votar nas Assembléas Parochiaes: os menores de 25 anos, ex-
cluindo-se desta faixa etária os casados e militares maiores de 21 anos, os
bacharéis formados e os religiosos; os criados, excluindo-se os da Casa
Imperial de galão branco. Não entraram neste item os guarda-livros, os
caixeiros das casas de comércio e os administradores das fazendas e das
fábricas. Excluíram-se igualmente os que não tivessem renda líquida de
cem mil réis “por bens de raiz, indústria, commercio ou Empregos”.9
Em um Adendo, no Capítulo I, Das Eleições, foi excluído do voto
qualquer assalariado. Não constavam desta categoria, para exclusão, os
guarda-livros, os caixeiros de casas de comércio, os criados da Casa Real
e os administradores de fazendas rurais e fábricas. Proibidos de se candi-

9 Campanhole & Campanhole (1992, p. 758).

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datar estavam também os religiosos, os estrangeiros não naturalizados e


os criminosos. Mas, afinal, quem eram os cidadãos brasileiros na época da
promulgação da Constituição de 1824?10
As mulheres não eram nominadas, a regra mais geral que os juristas
evocam quanto ao uso do gênero das palavras é a de que o masculino in-
clui geralmente o feminino, de acordo com a representação simbólica de
que a cabeça evoca naturalmente todo o corpo. Já o feminino não com-
preende o masculino, pela mesma razão que não se designa o todo pela
parte mais fraca. No caso da Constituição de 1824, o genérico cidadão não
se aplicava às mulheres.
Como não são sequer citadas como impedidas de votar, presume-
-se que era “natural”, para os políticos que elaboraram a Carta, o afas-
tamento das mulheres do mundo público. O feminino é considerado,
historicamente, como irrelevante (muitas vezes inexistente), incapaz para
as funções de mando. Segundo Dominique Godineau, em parte alguma
são legalmente atribuídos às mulheres os direitos políticos do cidadão:
“A nova ordem política, resultante do Iluminismo, parecia reservada aos
homens”.11
O pensamento iluminista, que reformulou o vínculo político e o con-
trato social, estendendo os direitos de cidadania a uma grande parcela da
população até então excluída, ignorava as mulheres. A Revolução Francesa
(1789), que criou um espaço político onde cada cidadão desfruta de seus
direitos conquistados, negou às mulheres os direitos políticos. Diderot, na
Enciclopédia, conceitua a palavra “cidadão” como detentor de direitos numa
sociedade livre, um substantivo masculino: “este título é concedido às mu-
lheres, às crianças, aos criados, apenas na qualidade de membros da família

10 Em 1838, 14 anos após a promulgação da Constituição, a capital da monarquia brasileira


possuía cerca de 37 mil escravos, numa população total de 97 mil habitantes. Em 1849,
em uma população de 206 mil pessoas, 79 mil são escravos. O Rio de Janeiro poderia ser
tomado tranqüilamente como uma capital africana. Os viajantes, através de seus relatos,
estranhavam o caráter mestiço da população. Entre os anos de 1841 e 1850, 83% do total
dos africanos transportados para a América viriam para o Brasil, 12% iriam para Cuba e o
restante se dividiria entre Porto Rico e os Estados Unidos. Cf. SCHWARCZ. As Barbas do
Imperador. D. Pedro II um monarca nos trópicos. Op. cit., p. 101.
11 Godineau (s/d, p. 329).

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de um cidadão propriamente dito: mas não são verdadeiros cidadãos”.12 O


lugar das mulheres, portanto, continua sendo em casa.
Os constituintes brasileiros que elaboraram a primeira Carta nacio-
nal, embebidos nas lições europeias sobre as noções de nação, de cidada-
nia e de direitos naturais, fizeram coro ao pensamento hegemônico do
início do século XIX, e dele as mulheres não faziam parte. A “natural”
exclusão das mulheres do direito de cidadania política, tão natural que
não era necessária sua inclusão nominativa entre os impedidos de votar,
demonstra o quanto a história é hierarquizada, e os dois sexos assumem
valores diferentes, com o masculino aparecendo sempre como superior
ao feminino. Foram os homens os autores das grandes construções con-
ceituais e das normatizações jurídicas e, através de um universalismo que
negou a diferença dos sexos, mascarou-se o privilégio masculino sob a
pretensa neutralidade sexual dos sujeitos.
Para muitos historiadores, foi sob a Constituição Outorgada de 1824
que o país manteve a integridade nacional, decorrendo dela os primeiros
passos para a democracia. Foi o texto de maior longevidade no nosso
Direito constitucional, sob o qual vigorou um regime que praticamente
governou o país no século XIX. Durante a vigência da primeira Consti-
tuição brasileira, que dura até 1891, muita coisa mudou no país, inclusive
a situação da mulher.
É mais fácil libertar os negros escravos que as mulheres; era voz cor-
rente entre muitos que teimavam considerar as mulheres cidadãs. Sob a
Constituição de 1824, assistimos ao fim da escravidão africana no Brasil.
Com a Proclamação da República em 1889, a forma de governo foi enca-
rada como sinal de modernização e de progresso, sendo o trabalho livre,
a igualdade perante a lei e a cidadania as novas palavras de ordem. Sem
escravos e sem Império, era necessária outra ordem jurídica para regula-
mentar a vida dos cidadãos.
Como as primeiras Constituições brasileiras silenciavam quanto à
questão do acesso da mulher ao voto, à cidadania política, silenciando
inclusive nos impedimentos, muitas mulheres pressupunham-se incluí-
das nesse direito. Somente quando solicitaram o acesso, baseando-se na

12 Godineau (s/d, p. 329).

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omissão da lei, argumentando que não estão proibidas de votar, é que se


anexou formalmente sua proibição.
Em 24 de fevereiro de 1891, foi promulgada a Constituição da Repúbli-
ca dos Estados Unidos do Brazil, que estabelecia no título Dos Cidadãos Bra-
zileiros, Secção I, artigo 70, que “são eleitores os cidadãos maiores de 21
annos, que se alistarem na fórma da lei”. Este mesmo artigo proibia de se
alistar os mendigos, os analfabetos, as praças, com exceção dos alunos das
escolas militares de ensino superior, e os religiosos. Aos últimos, era in-
terditado o voto porque sujeitos à obediência, que os privava da liberdade
individual. Abandonou-se o voto censitário, num avanço democrático.
O artigo 72, da Declaração de Direitos, assegurava que “todos são iguais
perante a lei”, e que a República não admitia privilégios de nascimento e
foros de nobreza; ao mesmo tempo, extinguiu as ordens honoríficas exis-
tentes, assim como os títulos nobiliárquicos. A partir de então, segundo
a lei, os cargos públicos civis ou militares estariam acessíveis a todos os
brasileiros que possuíssem capacidade especial.
O desejo das mulheres, especialmente as mais cultas, de conquista-
rem seus direitos políticos, foi estimulado pela decretação da República
e pelas discussões da Assembleia Constituinte, quando estabeleceu que
“são eleitores os cidadãos maiores de 21 annos...”. As mulheres estavam
acostumadas a ser englobadas no termo “cidadão” e, portanto, conside-
ravam-se incluídas como portadoras dos direitos políticos na nova ordem
brasileira. Para muitas defensoras do sufrágio universal, a Constituição de
1891 outorgou à mulher o direito de ser eleitora, pois, além de serem in-
cluídas entre os cidadãos, conforme o artigo 69 números 1 a 6, não faziam
parte da lista dos que estavam proibidos de se alistar e votar.
Mas os opositores do voto feminino, assim como no debate consti-
tuinte anterior, novamente consideraram que o termo “cidadão”, sendo
palavra masculina, referia-se tão-somente aos homens. Para esses oposi-
tores, o sufrágio não combinava com a natureza sentimental da mulher,
e os cuidados que deveria dedicar ao lar. Temiam eles que, se este ser des-
protegido e marcado pela afetividade, coroado como “rainha” nas quatro
paredes do lar, descesse desse pedestal, escapando assim da prisão domés-
tica, o lar seria maculado ou corrompido e toda a sociedade se arruinaria.

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Desta vez, no entanto, as mulheres, que desde a segunda metade do


século XIX reivindicavam o sufrágio universal, viam agora sendo refor-
çadas suas fileiras, com brasileiros e brasileiras que, em debates públicos,
pleiteavam o sufrágio universal.

Na sessão da Assembleia Constituinte em 29 de janeiro de 1891, o


deputado César Zama, defendendo a extensão do sufrágio às mu-
lheres, dizia que este era uma “questão de Direito”. Criticava seus
colegas, que não aceitavam o voto feminino, sob a justificativa
do possível enfraquecimento do lar, deduzindo que “bastará que
qualquer paiz importante da Europa confie-lhes (às mulheres) di-
reitos políticos, e nós o imitaremos”, sem enfraquecer a família.13

Fracassou, entretanto, na Assembleia Constituinte, uma proposta de


sufrágio limitado à mulher, como fizeram depois vários países europeus:
mulheres altamente qualificadas, com títulos universitários ou que tives-
sem propriedade, sem estarem sob a autoridade do pai ou do marido.
A Assembleia Constituinte de 1891, ao debater a extensão do voto
à mulher, trazia ao campo da discussão política autores que teorizavam
sobre a “essência” feminina e as diferenças entre homens e mulheres. Al-
guns para defender a tese da inferioridade intelectual feminina; outros,
para reconhecer a competência intelectual da mulher, mas a maioria se
opunha ao voto pelo temor de que a saída da mulher do lar desagregasse
a família. Este discurso de que a família só estaria preservada se a mulher
não colocasse os pés fora do lar, vivendo como uma menor sob a tutela
do marido, era recorrente em vários países do Ocidente, que debatiam o
sufrágio feminino.
Apesar dos avanços legais, a família ainda é a referência obrigatória
como principal campo de atuação do sexo feminino. Por isso, era ne-
cessário manter intacta a ligação mulher-maternidade-vida doméstica. A
literatura do período é rica em divulgar as representações de virtudes “ti-
picamente femininas”: bondade, ternura, paciência, docilidade e altruís-
mo. Transparece permanentemente a confusão entre o que é “cultural” e

13 Hahner (1981, p. 87).

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o que é “natural”, comum aos temas controvertidos que se fundamentam


em representações, estereótipos e ideias preconcebidas.
A partir da segunda metade do século XIX, despontam feministas
que, embaladas pelos exemplos de outras mulheres militantes, especial-
mente francesas e norte-americanas, tentam convencer as demais da
discriminação e da importância em lutar pela igualdade entre os sexos.
Tentam aproveitar-se do silêncio da Constituição de 1891 para se inscre-
verem como eleitoras. Entendem elas que o direito ao voto está assegu-
rado, faltando somente usufruí-lo. Algumas mais audaciosas concorrem
a cargos eletivos baseando-se nos mesmos pressupostos: as mulheres es-
tavam incorporadas na categoria de cidadãos brasileiros e não são citadas
como impedidas de votar e serem votadas.
O governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, parti-
dário há tempos do sufrágio feminino, obteve em 1928 uma alteração da
legislação eleitoral para conferir o direito de voto às mulheres no seu esta-
do. Elas foram às urnas, mas seus votos foram anulados pela Comissão de
Poderes do Senado. Neste interregno democrático, elegeu-se a primeira
prefeita brasileira, Alzira Soriano de Souza, na pequena Lages, encravada
no sertão do Rio Grande do Norte. Ousada, revidava com bofetadas as
ofensas dos adversários, que, para agredi-la e desmerecê-la chamavam-na
de prostituta. Através da decisão da Comissão de Poderes do Senado, a
prefeita eleita não tomou posse e os votos de todas as mulheres da cidade
também foram anulados. O Rio Grande do Norte foi o único estado que
permitiu que as mulheres fossem às urnas naquele ano.
Se os termos são os mesmos, ou melhor, os silêncios são os mesmos
nas Constituições de 1824 e 1891, diferente é a posição das mulheres.
Pouco a pouco os olhares vão se reconstruindo e, apesar de a Constitui-
ção de 1891 repetir a generalidade da anterior, desta vez as mulheres não
repetem o mesmo comportamento, alistando-se e exigindo o cumpri-
mento da lei.
A decisão de algumas mulheres, em fazer cumprir o que entendiam
que a Constituição determinava, obrigou muitos juristas a refletirem so-
bre a universalidade do sufrágio. O debate é intenso na sociedade brasi-
leira, assim como no restante do mundo ocidental, no tocante à incor-

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poração ou não da mulher na categoria de cidadãos e sua competência


intelectual para o exercício do voto, até então privilégio masculino.
A luta das mulheres pela cidadania civil e política esbarra na con-
cepção de igualdade. Se, de um lado, a Constituição republicana estabe-
lecia que “todos são iguais perante a lei”, esta igualdade era endereçada
à exclusão dos privilégios de nascimento, de nobreza, ordens honoríficas
entre os homens, e não entre os sexos. Ao lado desta concepção de igual-
dade interpretada pelos juristas e literatos, temos como agravante a inca-
pacidade relativa da mulher, presente no Código Civil Brasileiro.
Com novas regras ditando a política brasileira após 1930, mostrou-se
urgente e necessária a edição de um Código Eleitoral que normatizasse
as modificações propostas pelos revolucionários, como a incorporação de
novas camadas sociais ao voto. Quando Getúlio Vargas promulgou, por
decreto-lei, o direito de sufrágio às mulheres (tomando para si a luta delas),
este já era exercido em dez estados do país. A partir de 1928, as mulheres
passaram a ter, oficialmente, o direito de votar em mais nove estados.
Segundo o Código Eleitoral de 1932, as duas questões que exigiam
solução imediata dos Conselhos do Governo, nesta reordenação republi-
cana, eram as que diziam respeito à mais ampla admissão da mulher e de
certas pessoas excluídas dos direitos eleitorais por motivo de ordem pú-
blica: “Resolvidas estas duas questões, entrará a República Brasileira no
rol das nações mais bem organizadas como democracias representativas”.
O progresso social se relacionava agora com a incorporação da mu-
lher. Ao discutir a nova ordem política e social após 30, manifestava-se
o desejo de equiparar o Brasil às sociedades avançadas, e, para isso, era
necessário adotar medidas tomadas por estes países modelos, como o voto
feminino. A concessão da cidadania política à mulher, com a instituição
do voto universal sem distinção de sexo, argumentada no Código Eleito-
ral, não privilegiava a igualdade de capacidades entre homens e mulheres,
mas era encarada como necessária ao país em seu desejo de modernização.
O voto feminino pôde equiparar-se, desta maneira, à construção de
obras como pontes e estradas, condições indispensáveis ao desenvolvi-
mento. Para o relator do anteprojeto do Código Eleitoral brasileiro, faria
bem à nova lei brasileira não se colocar muito atrás dessa teoria de Es-

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tados “moderníssimos”, em que se admitiam as mulheres emancipadas


nos comícios e parlamentos. Uma admissão lenta e criteriosa da mulher
ao mundo político é o que defendia o anteprojeto do Código Eleitoral,
por tratar-se de uma experiência nova no Brasil. Como justificativa à sua
parcial introdução, o espelho eram os países latinos vizinhos, que manti-
nham uma composição masculina do Congresso, onde as mulheres não
tinham representação e não podiam advogar direitos específicos. Assim
também condicionava, “suavemente”, o alistamento da mulher do Brasil
moderno, urbano e industrial.
A Comissão revisora tornou mais extensivo o direito eleitoral, sem
distinção de sexo, aos cidadãos maiores de 21 anos. A mulher casada exer-
cia como direito próprio o de qualificar-se e inscrever-se eleitora, inde-
pendentemente de autorização marital. As disposições do Código Civil
fartamente usadas como obstáculos ao voto feminino ficavam restritas às
relações jurídicas de ordem privada. A questão do voto feminino suscitou
discussões muito além do que pretendia o Código Eleitoral, descortinan-
do a misoginia do Código Civil, descompassado com a realidade social
brasileira.
A Constituição de 1934, além de espelhar-se na anterior, que sai-
ria de cena como a primeira Carta republicana, recebeu influências do
corporativismo fascista, das Constituições da Espanha (1931), da Áustria
(1920) e da Constituição de Weimar, de 1919. Os mendigos continuaram
impedidos de se alistar, mas aboliu-se a proibição da Constituição ante-
rior, que vetava o voto dos religiosos.
Promulgada em 16 de julho de 1934, seu artigo 24 rezava que eram
elegíveis para a Câmara dos deputados os brasileiros natos, alistados elei-
tores e maiores de 25 anos. Instituiu-se o voto secreto, como tentativa de
reduzir o poder dos coronéis, mas os analfabetos, dois terços da população
nacional, continuavam impedidos de votar. O artigo 121 proibia as dife-
renças salariais com base em discriminação de sexo, idade, nacionalidade
ou estado civil. Foram estabelecidos os salários-mínimos regionais; jornada
de trabalho de oito horas; descanso semanal; férias anuais remuneradas e
indenização do trabalhador demitido sem justa causa. Os trabalhos nocivos
à saúde eram interditados aos menores de 18 anos e às mulheres.

37
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Como as Constituições anteriores, esta também propalava a igual-


dade de todos perante a lei, com a diferença fundamental de que, desta
vez, o “todos” referia-se a homens e mulheres. O artigo 113, que deter-
minava a igualdade, foi complementado pela explicação detalhada de que
não poderia haver privilégios nem distinções “por motivo de nascimento,
sexo, raça, profissões proprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças
religiosas ou idéas políticas”.14
As questões relativas à mulher foram claramente designadas no artigo
121, § 1º: “A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além
de outros que collimem melhorar as condições do trabalhador: a) prohibi-
ção de differença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade,
sexo, nacionalidade ou estado civil”; e no § 3º: “Os serviços de amparo á
maternidade e á infancia, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim
como a fiscalização e a orientação respectivos, serão incumbidos de prefe-
rencia a mulheres habilitadas”. O artigo 168, que trata dos cargos públicos,
estabelece que estes “são acessiveis a todos os brasileiros, sem distincção de
sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir”.15
Entre as inovações da Constituição de 1934, aparecem a introdução
do nome de Deus no preâmbulo; o sufrágio feminino e o voto secreto;
normas reguladoras da ordem econômica e social, da família, da educação
e cultura e dos funcionários públicos.
A igualdade jurídica entre o homem e a mulher, expressa pela pri-
meira vez na Carta de 1934, transformou em inconstitucional o Código
Civil, que atribuía ao marido direitos maiores do que à mulher. Nunca é
demais lembrar que o Código Civil de 1917 somente foi reformulado nas
questões referentes à menoridade da mulher casada em 1962, com o Esta-
tuto da Mulher Casada, transformando a cidadania política e civil feminina
num caso paradoxal e contraditório. A partir da nova Constituição, as
mulheres podiam exercer os direitos políticos da mesma maneira que os
homens, mas permaneciam na vida privada subordinadas ao poder mari-
tal, ao qual ainda deviam obediência.

14 Campanhole & Campanhole (1992, p. 652).


15 Campanhole & Campanhole (1992, p. 663).

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CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 é tida como Carta Cidadã por não permitir


nenhum tipo de discriminação: todos são iguais perante a lei. O novo
Código Civil implementado em 2012, após quase 100 anos do anterior,
dedica à família um grande espaço. Apesar de manter a sacralização e o
viés patriarcal, exclui a terminologia discriminatória em relação à mulher.
A nova entidade familiar pressupõe plena igualdade entre homens
e mulheres. A Lei Maria da Penha, de 2006, cria mecanismos para coi-
bir a violência doméstica e familiar contra a mulher, de acordo com a
Constituição federal, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas
de discriminação contra as mulheres e a Convenção interamericana para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Apesar desses aparatos, a radical desigualdade entre os sexos e a violên-
cia contra a mulher teimam em permanecer, demonstrando a permanência
cultural da desqualificação e do desprezo ao feminino e ao seu corpo.
As Constituições, ao silenciarem sobre as mulheres; o Código Civil,
ao estabelecer a incapacidade da mulher casada e instaurar os crimes em
defesa da honra, apesar do Estatuto da Mulher Casada de 1962 e do novo
Código de 2012, foram responsáveis pela ordem patriarcal e pela perma-
nência, até os dias de hoje, das relações desiguais entre homens e mulheres.
Silenciar, não contar as histórias das mulheres, não é apenas produzir
um silêncio; é uma atitude política que necessita ser criticada, colocada
sob suspeita em todos os campos – jurídico, religioso, pedagógico, acadê-
mico etc. O universalismo, na linguagem do poder que produziu verda-
des, excluiu muitas pessoas, além das mulheres.
O debate feminista sobre cidadania tem destacado o falso universa-
lismo, não somente como conceito teórico, mas atravessado por um con-
junto de práticas cotidianas. A cada dia nos perguntamos: cidadania para
quem, cidadania onde? A face excludente da cidadania, suas fronteiras e
limites nos fazem perguntar: estamos assistindo ao fim do modelo unitá-
rio de cidadania? É sobre essas questões, e esses problemas que enfrentam
as mulheres brasileiras, que o conceito de cidadania é colocado sob sus-
peita. Como afirma Maria Xosé Agra, a cidadania tem sexo-gênero e é
ali onde a exclusão das mulheres está mais firmemente impressa.

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Passadas quase duas décadas do século XIX, agora com uma Consti-
tuição Cidadã, um novo Código Civil, Lei Maria da Penha, Lei Antifemi-
nicídio, as mulheres ainda se perguntam: como ser cidadã autônoma se a
violência contra a mulher segue seu trajeto histórico? Como ser cidadã se
o estupro continua instalado na cultura brasileira? Como ser cidadã se os
salários são menores para trabalho igual? Como ser cidadã se uma mulher
não pode vestir a roupa que quiser, suspeitar de quase todos os homens nas
ruas, nos ônibus, nos metrôs? Como ser cidadã se a gravidez e a maternida-
de ainda são utilizadas como signo de inferioridade? Como ser cidadã se o
desrespeito das mulheres na política continua sendo uma prática cotidiana?

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41
AS MULHERES E O TRABALHO
INTELECTUAL: UMA LONGA
HISTÓRIA DE INTERDIÇÕES
Natalia Pietra Méndez

A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de


agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, to-
mou dele, comeu e o apresentou também ao seu marido, que co-
meu igualmente.

Bíblia Sagrada, Gênesis 2.3

E SOFRERÁS AS DORES DO PARTO! BREVE APANHADO


SOBRE A INTERDIÇÃO IMPOSTA ÀS MULHERES PARA
O EXERCÍCIO DE TRABALHOS INTELECTUAIS

Em um dos excertos mais conhecidos do Antigo Testamento, en-


contramos o relato mítico da queda do paraíso. Eva e Adão viviam em
total inocência. O pecado original, atribuído a Eva, foi provar do fruto
proibido da inteligência. O ato de conhecer – interditado a todos os seres
– abriu caminho para as maldades mundanas. Esse mito, tão repetido e
presente na cultura ocidental, é um bom ponto de partida para a reflexão
proposta neste texto: de que forma a noção de diferença sexual se consti-
tuiu como elemento de segregação das mulheres das atividades científicas
e intelectuais?

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O atrevimento de Eva custou a todas as mulheres a imposição do


parto com sofrimento e a submissão e obediência aos homens. Esse mito
fundador foi ressignificado nos primórdios da ciência moderna, utili-
zando-o, de certo modo, para delimitar um mundo feminino, oposto e
complementar ao masculino. O papel de mãe, de reprodutora da pro-
le masculina, é exaltado em manuais de medicina do século XVII, que
buscavam, de certo modo, confortar a parturiente. De um discurso que
condenava às mulheres às dores do parto, passou-se a outro que transfor-
mou a gestação em doença, como nos mostra Évelyne Berriot-Salvadore:

Não podemos deixar de nos impressionar ao lermos as obras que


tiveram mais influência na história da obstetrícia – as do alemão
Rösslin, do francês Paré, do português Castro – com a obsessiva
imagem do sofrimento, como se o próprio clínico se assustasse
com os males, com a angústia terrível que ele não consegue ainda
dominar, como se finalmente, o homem, de repente, se sentis-
se responsável por essa ‘paixão’. [...] A gravidez, mesmo quando
decorre sem complicações de maior, é, aos olhos do médico, um
estado patogénico que perturba violentamente o sistema humoral
e desregula o equilíbrio psicológico.16

Nas décadas finais do século XVIII, os discursos médico e filosófico


estavam alinhados na definição de uma natureza feminina que era defini-
da por características físicas. Para os estudiosos da época:

O físico da mulher marca a sua predestinação por sinais particu-


lares: a fragilidade dos ossos, a forma alargada da bacia, a moleza
dos tecidos, a estreiteza do cérebro e a superabundância das fibras
nervosas deixam perceber que a mulher tem como vocação na-
tural a maternidade, numa existência ordenada e sedentária. [...]
Em nome de um determinismo natural, o pensamento médico
confina então a feminilidade ideal na esfera estreita que a ordem

16 Berriot-Salvatore (1991, p. 444-445).

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social lhe destina: a mulher, sã e feliz, é a mãe de família, guardiã


das virtudes e dos valores eternos.17

Todavia, os discursos que restringiam o papel das mulheres à ma-


ternidade e ao lar, ancorados em uma suposta natureza feminina, não
foram aceitos passivamente. Uma das vozes mais ativas a questionar tais
preceitos médicos e filosóficos foi a de Mary Wollstonecraft, autora do
livro Reivindicação dos direitos da mulher. Nesse tratado filosófico, publica-
do em 1792, a autora tece uma crítica à Constituição Francesa de 1791,
que havia excluído a população feminina do exercício pleno da cidada-
nia. Igualmente, debate as ideias do filósofo Jean Jacques Rousseau, para
quem as mulheres deveriam ser educadas a fim de servir aos homens e
formar moralmente os futuros cidadãos. Enquanto Rousseau estava con-
vencido de que a natureza feminina determinava um destino diferente
às mulheres, Wollstonecraft argumentava que a educação deveria ser a
mesma para ambos os sexos, uma vez que as mulheres também eram seres
racionais, desde que lhes fossem dados os mesmos meios que a sociedade
oferecia aos homens “[...] em vez de serem educadas como uma espécie
de criatura imaginária pela metade – uma das extravagantes quimeras de
Rousseau”.18
A busca pela superação das interdições sociais impostas pelo gênero
é muito anterior ao século XVIII. Desde a Antiguidade, temos registros
de mulheres que se interessaram por problemas que podemos chamar
“científicos”. Elas representaram uma minoria em sociedades altamente
patriarcais, nas quais o acesso ao conhecimento e a posições de poder
lhes eram negados. Para trazer alguns exemplos, Hipatia de Alexandria,
que estudava e ensinava filosofia, matemática e astronomia, foi acusada de
bruxaria e morta por cristãos, por volta do ano 415 EC. Os estudos sobre
sua vida e obra apontam que ela foi morta por ser mulher e se atrever a
dar aulas públicas. Em 1405, Christine de Pizan, em sua obra A cidade das
mulheres, indagava se as mulheres haviam feito contribuições à ciência e
atribuía às mesmas invenções fundamentais para a humanidade, como a

17 Berriot-Salvatore (1991, p. 454).


18 Wollstonecraft (2016, p. 62).

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fabricação do pão, o tingimento de lã e a elaboração de tapeçarias, cultivo


de grãos.
Margareth Alic (1991) apresenta uma relação de dezenas de pensa-
doras e cientistas que foram relevantes. Na maioria dos casos, elas tiveram
seus nomes esquecidos. Ela cita o exemplo de Anne Conwey, dama in-
glesa que viveu no século XVII e que escreveu um tratado sobre filosofia
que teria influenciado a obra de Gottfried Leibniz, um dos fundadores da
chamada ciência moderna. O caso de Anne Conwey é emblemático. Seu
nome foi suprimido de sua obra, intitulada Tratado sobre a antiga e a moderna
filosofia por uma questão de decoro, afinal, não ficaria bem que o nome
de uma dama estivesse registrado em um livro sobre filosofia. O prefácio
informava apenas que aquela obra havia sido escrita por uma condessa
inglesa cujos conhecimentos ultrapassavam de longe o comum para as
pessoas de seu sexo.19
Algumas mulheres de camadas sociais intermediárias ou altas, com
acesso à instrução, à cultura, conseguiram contornar as fronteiras do
mundo científico, dominado por homens brancos, ainda que dificilmen-
te obtivessem reconhecimento de seus pares. A vida das que se dedicaram
à ciência não foi fácil (e não o é até nossos dias). Quanto mais a ciência
passou a ser valorizada socialmente, com o desenvolvimento de métodos
e instituições profissionais, mais se salientou a incapacidade das mulheres
para tais atividades.
À medida que a ciência se profissionalizou, diminuiu o protagonis-
mo feminino. Elas passaram a ser, no máximo, colaboradoras ocultas. A
esse respeito, um caso exemplar foi o de Athénaïs Mialaret, esposa do
historiador francês Jules Michelet. De acordo com a historiadora Bonnie
Smith, ela fez pesquisas e as relatou, escreveu capítulos dos livros de Mi-
chelet, discutiu projetos, registrou detalhes de suas obras, atuou como
revisora dos textos e continuou publicando a obra do marido, após a sua
morte. Porém, nos livros do ilustre historiador, não há nenhuma menção
ao trabalho de Athénaïs como coautora, sequer como colaboradora.20

19 Alic (1991, p. 17).


20 Smith (2003, p. 189).

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Este caso remete, também, à história da filósofa e escritora Simo-


ne de Beauvoir, que, de acordo com pesquisa realizada por uma de suas
biógrafas, Kate Kirkpatrick, foi retratada com um status secundário em
relação ao seu companheiro, Jean Paul Sartre:

Ainda hoje, sabemos que as mulheres são mais frequentemente


descritas em termos relacionais (pessoais ou familiares) que pro-
fissionais; que é mais provável que sejam descritas com verbos
passivos que com ativos; que estão sujeitas a distinções negativas
de gênero (por exemplo, ‘apesar de ser mulher, Simone pensa-
va como homem’), e são parafraseadas, em vez de citadas em sua
própria voz.21

O acesso restrito das mulheres ao trabalho intelectual é um dos efeitos


de uma ordem social patriarcal, estrutura derivada de relações de gênero
que conserva uma divisão sexual baseada na ideia de que a sociedade se
divide em duas esferas. A esfera pública pertence aos sujeitos masculinos
e a privada é o espaço por excelência feminino. Outro aspecto do patriar-
cado moderno é a dissociação entre o saber científico (racional, objetivo,
masculino) e o saber popular (intuitivo, subjetivo, feminino). Vale dizer
que, além da separação entre essas duas formas de conhecimento, consi-
dera-se que primeiro é superior ao segundo.
Mitos fundamentados em crenças religiosas, perspectivas filosóficas
e no desenvolvimento do pensamento científico contribuíram, ao longo
dos séculos, para definir a diferença sexual como uma norma que estru-
tura as relações de poder: “Os fundadores dos vários discursos – religioso,
médico, filosófico, psicanalítico e outros – são geralmente homens, que
representam, numa relação de poder, o feminino”.22
Em consonância com o gênero, relações de classe e raça produzem
desigualdades que dificultam ainda mais o acesso a profissões científicas e
intelectuais por mulheres pobres e não brancas. Patrícia Hill Collins, so-
cióloga afro-americana, tem importantes estudos sobre o tema, analisan-

21 Kirkpatrick (2020, p. 24).


22 Colling (2021, p. 32).

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do o que ela denomina de “imagens de controles”, que funcionam como


espécie de estereótipos sociais. Elas operam para manter mulheres negras
em lugares de subalternidade. A autora analisa também o quanto a atua-
ção intelectual das mulheres negras foi e é potente no sentido de produzir
pontos de vista sobre a sociedade a partir da circulação que essas mulhe-
res, historicamente, tiveram entre a sociedade das famílias brancas, bem
como sua experiência enquanto parte fundamental da população negra.
As tentativas de suprimir o conhecimento produzido por intelectuais ne-
gras são, segundo Collins, parte de um projeto dos grupos dominantes:

A sombra que obscurece essa complexa tradição intelectual das


mulheres negras não é nem acidental nem benigna. Suprimir os
conhecimentos produzidos por qualquer grupo oprimido facili-
ta o exercício do poder por parte dos grupos dominantes, pois
a aparente falta de dissenso sugere que os grupos subordinados
colaboram voluntariamente para sua própria vitimização. A invi-
sibilização das mulheres negras e de nossas ideias – não apenas nos
Estados Unidos, mas na África, no Caribe, na América do Sul, na
Europa e em outros lugares onde vivem mulheres negras – têm
sido decisiva para a manutenção de desigualdades sociais.23

Essas mulheres, muitas vezes anônimas, elaboraram importantes


formulações para contestar os lugares sociais que lhes eram legados. Em
meados do século XIX, um importante discurso, intitulado Eu não sou
uma mulher?, de Sojourner Truth, mulher negra que se somou aos movi-
mentos sufragistas e abolicionistas nos Estados Unidos, já levantava im-
portantes questionamentos sobre os limites da categoria “mulher”, im-
posta pelos desígnios do poder masculino:

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para


subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas,
e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém
jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças

23 Collins (2019, p. 32).

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de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou


uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei
e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia
estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia traba-
lhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu
tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E
não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser
vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de
mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?24

Sojourner Truth salientou que sua experiência como mulher negra


– que boa parte da vida realizou trabalhos braçais considerados pesados –
não cabia no conceito de mulher frágil e incapaz dos antissufragistas do
século XIX. As questões evocadas na fala de Sojourner dialogam direta-
mente com perguntas filosóficas que, um século depois, Simone de Beau-
voir enfrentou ao indagar o que era uma mulher. Beauvoir respondeu que
a mulher é o Outro, produzido através da alteridade masculina. É muito
provável que Simone não conhecesse Sojourner, a mulher afro-americana
que, um século antes, também colocou em xeque as representações do fe-
minino produzidas pelos homens do seu tempo. As palavras de Sojourner
permaneceram, por muito tempo, no esquecimento. Do mesmo modo,
Simone foi considerada por muitos de seus pares (homens) como uma
escritora sem um pensamento original, incapaz de ingressar no cânone
da filosofia. Os dois processos, esquecimento e crítica ad feminem – são
duas faces do modo como o patriarcado racista atua no sentido de negar
às mulheres e a outros sujeitos subalternizados a possibilidade de reco-
nhecimento como grandes pensadoras, intelectuais, artistas ou cientistas.
Assim, o trabalho intelectual naturalizou o sujeito masculino ocidental
como representante universal da cultura e do conhecimento. Como afir-
ma Bonnie Smith:

Embora os gênios musicais, científicos e filosóficos, por exemplo,


sejam quase sempre homens, sua genialidade paira acima dessas

24 Truth (1851, s/p).

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questões contingentes ou insignificantes como o gênero, para al-


cançar o auge da percepção filosófica ou melhor exemplo musical.
Grandes artistas e filósofos são gênios acima de tudo; homens ape-
nas por acaso.25

Foi a partir do século XX, quando as mulheres passaram a ocupar


com maior presença os espaços de produção do conhecimento, que essa
fronteira de gênero, tão naturalizada e invisível para boa parte da intelec-
tualidade, começou a ser objeto de confrontos e debates.

AS MULHERES OCUPAM AS UNIVERSIDADES:


OLHARES A PARTIR DE UMA UNIVERSIDADE AO SUL
DO SUL

Em abril de 1980, a Casa do Estudante da Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (CEU/UFRGS) foi aberta para a residência de estu-
dantes mulheres. A Casa do Estudante havia sido um espaço público que
abrigara, até então, somente homens, com exceção de funcionárias que
trabalhavam prestando serviços na casa. O acesso das estudantes mulheres
foi resultado das lutas do movimento estudantil da época, destacando a
participação de feministas. O grupo Liberta, coletivo feminista que atua-
va na UFRGS, teve como uma de suas principais bandeiras a abertura
da CEU para as mulheres. Utilizava, como uma de suas estratégias de
comunicação, um pequeno jornal, feito de modo artesanal, distribuído
na Universidade. Na edição de agosto de 1982, há uma entrevista com as
primeiras moradoras da casa. Elas contaram como era a vida na moradia
estudantil:

Eu acho uma barra, porque todas as pessoas para quem se fala que
se mora na casa, encaram-nos como prostitutas. Isso sem falar na
discriminação dos moradores que têm atitudes machistas ao ex-
tremo, como, por exemplo, vir até a porta do meu quarto, no
meio da madrugada, e pichar nela – Putas! Também sem falar nas

25 Smith (2003, p. 18-19).

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piadinhas e nos falsos ímpetos de orgasmo que eles têm quando


nós passamos.26

Trinta anos depois, em 2016, durante a passagem da Tocha Olímpica


pela cidade de Porto Alegre, moradoras da CEU realizaram um protesto.
Estenderam uma faixa no prédio que fica na Av. João Pessoa, onde era
possível ler “Mulheres da Casa pedem socorro”. Uma das moradoras,
entrevistada pelo jornal Sul 21, deu o seguinte depoimento:

Resumidamente, moramos com assediadores, perseguidores,


agressores e estupradores. Existem muitos casos de violência con-
tra a mulher aqui. Acontece que, como as vítimas sentem medo de
denunciar para a direção, ir à delegacia ou até mesmo falar sobre o
assunto, a direção e a UFRGS tomam como problema inexisten-
te”, afirmam as integrantes do Coletivo.27

Os dois documentos (excerto do Jornal Liberta e trecho da reporta-


gem do Jornal Sul 21) apontam para situações de violência contra estu-
dantes que habitaram, em diferentes tempos, a CEU/UFRGS. No co-
meço da década de 1980, a Casa, que havia sido inaugurada nos anos
1950, ainda não aceitava moradoras mulheres. Segundo Fabiana Pinheiro
da Costa, a CEU foi criada para atender jovens estudantes sem condições
financeiras de arcar com os custos de um aluguel em Porto Alegre:

[...] a Casa do Estudante Universitário era para muitos a única


possibilidade de morar. Era aquilo a que Virgínia Woolf se referia:
um teto, um lugar que garantiria, ainda que minimamente, a pos-
sibilidade desses jovens se instruírem intelectualmente. Mas esse
local repleto de pessoas e, portanto, de afetos e desafetos, cheiros
e cores contrariava o que a escritora inglesa preconizava em seu

26 Jornal Liberta, agosto de 1982 (apud MÉNDEZ, 2005, p. 31).


27 Jornal Sul 21, 8 jul. 2016.

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ensaio, pois era um teto sob o qual as mulheres estavam proibidas


de habitar.28

Os dois acontecimentos, ocorridos na mesma instituição brasileira


de ensino superior, transcorreram em um período de três décadas, em
que as universidades, especialmente as brasileiras e latino-americanas,
atravessaram mudanças significativas em sua composição, considerando
o gênero. Todavia, o pedido de socorro manifestado pelas moradoras da
CEU em 2016 evidencia que as universidades, ou ao menos alguns espa-
ços nelas, ainda são ambientes hostis para corpos femininos.
Se a segunda metade do século XX foi um momento fundamen-
tal para um ingresso crescente das mulheres na universidade, vale trazer
aqui algumas perguntas: em quais condições as mulheres ingressam nas
universidades? Quem são essas mulheres que, ao longo do século XX,
passaram a ocupar as universidades? Onde estão essas mulheres, em quais
áreas?
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, atualmente as mulheres são
73% da comunidade universitária brasileira, somando corpo docente,
discente e técnico. As estudantes de graduação representam 55,6% das
matrículas. Entretanto, ao examinar onde estão essas mulheres, as assi-
metrias de gênero se tornam visíveis. De acordo com os dados levantados,
em 2016, apenas em um terço das universidades brasileiras mulheres esta-
vam à frente das reitorias. Outro fato que chama a atenção é que estudan-
tes negras e negros são minoria entre o total de alunas e alunos: “numa
escala de cor/sexo, em primeiro lugar estão as mulheres brancas, seguidas
por homens brancos, vindo então as mulheres negras e, por último, ho-
mens negros”.29
De acordo com pesquisa realizada por Andréa de Assumpção, a pre-
sença majoritária de mulheres nas universidades brasileiras é um fenôme-
no recente, considerando que, em 1956, elas representavam 26% do total
de matriculados/as e, em 1971, não passavam de 40%.30 Ao contrário da

28 Da Costa (2020, p. 13).


29 Hollanda (2018, p. 209).
30 Assumpção (2014, p. 14).

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hegemonia feminina em praticamente todos os números relativos ao aces-


so ao ensino superior e à sua conclusão, o número de docentes do sexo
masculino ainda é, em média, 10 pontos percentuais mais elevado do que
o feminino. Quando a análise tem como foco a rede de ensino onde o/a
docente está inserido/a, se pública ou privada, a prevalência masculina
chama a atenção nas instituições públicas. E isso é ainda mais notável
levando-se em consideração que o processo seletivo nessas instituições
é realizado prioritariamente através de concurso público, o que suposta-
mente, levaria a uma maior igualdade de oportunidades. Em 2006, mu-
lheres eram 43% das docentes na rede pública e 45% na rede privada.
Em 2012, as mulheres passaram a ser 45% na rede pública e 46% na rede
privada.31
Outro ponto da pesquisa que chama a atenção diz respeito ao cresci-
mento da participação feminina nas universidades quando se comparam o
quadro técnico administrativo e o quadro docente. O estudo de Assump-
ção indica que o crescimento da participação das mulheres docentes foi
de 36,1%, enquanto o dos homens ficou em 31%; já entre os/as funcio-
nários/as técnico-administrativos, o aumento do contingente masculino
se manteve em 31% e as mulheres registraram um incremento na parti-
cipação de 42,1%, seis pontos percentuais a mais do que as docentes.32
Tanto no que se refere ao ingresso na graduação quanto na carreira
docente, mulheres ainda são maioria em áreas consideradas femininas,
devido ao tipo de atividades relacionadas ao cuidado e à delicadeza: hu-
manidades, educação, saúde, serviços, e algumas das artes. Novamente,
percebe-se que a associação de uma natureza feminina ao cuidado, à ma-
ternidade e à fragilidade corporal colabora para afastar jovens de profis-
sões que não são vistas como adequadas para as mulheres e, ao mesmo
tempo, pode tornar o ambiente em determinados cursos mais hostil, de-
sencorajando aquelas que tentam ingressar em certas carreiras.
Para contribuir com a reversão desse quadro, a UFRGS lançou, em
2021, um novo edital de bolsas de Iniciação Científica chamado “Meni-
nas na Ciência”, que visa estimular o envolvimento de graduandas com a

31 Assumpção (2014, p. 21).


32 Assumpção (2014, p. 24-25).

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iniciação à pesquisa em cursos com percentual feminino igual ou abaixo


de 40%. Entre eles, encontramos a permanência de percentuais baixíssi-
mos em cursos das chamadas áreas “duras”, como é o caso de algumas
engenharias onde a participação de alunas não chega a 10% (Mecânica
e de Controle e Automação). Igualmente, observa-se a permanência de
alguns nichos masculinos dentro de cursos que, historicamente, se des-
tacaram como áreas onde há uma valoração do que socialmente se com-
preende como talento, vocação prévia e genialidade. É o caso do curso
de Música e também o de Filosofia, com uma participação feminina em
torno de 30%.33
Os dados atuais sobre a UFRGS dialogam com investigação que es-
tudiosas vêm realizando, pelo menos, desde os anos 1950. Elas buscam
compreender como as hierarquias de gênero influenciam as escolhas pro-
fissionais. Londa Schiebinger relata um estudo conduzido, em 1957, pelas
antropólogas Margaret Mead e Iega Métroux. Através de testes e entre-
vistas, descobriram que o estudante médio norte-americano imaginava o
cientista como: um homem branco, idoso, de avental branco, que usava
barba, óculos, era desleixado e apresentava cansaço. A aparência descui-
dada contrastava com um intelecto privilegiado. Para os estudantes que
participaram da pesquisa, cientistas são gênios, que trabalham horas a fio,
sem comer e sem dormir, que não têm vida social e, de preferência, não
devem se casar.34
Tal imagem do cientista como um homem branco, cis, que dedica toda
sua vida ao trabalho persiste na atualidade? Em que medida ela influencia as
expectativas profissionais a partir de estereótipos baseados no gênero e na
raça? Conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 2018, apenas 10,4% das mulheres negras com idade entre 25 e

33 O edital na íntegra está disponível na página da Pró-Reitoria de Pesquisa: https://www.


ufrgs.br/propesq1/iniciacaocientifica/wp-content/uploads/2021/05/Edital-IC-Menina-na-
-Ciencia.pdf Vale salientar que a oferta deste edital resulta do trabalho que o Grupo Me-
ninas na Ciência, coordenado por colegas da área da Física, vem promovendo há alguns
anos na UFRGS, fomentando ações educativas e de pesquisas sobre relações de gênero nas
chamadas áreas “exatas”.
34 Schiebinger (2001, p. 146).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

44 anos chegavam a concluir o ensino superior. Os dados do Instituto Nacio-


nal de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) indicam que
o percentual de mulheres negras doutoras e professoras de programa de pós-
-graduação é inferior a 3%. Informações do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) indicam que, em 2015, apenas
7% das bolsas de produtividade foram destinadas a pesquisadoras negras.35
No Brasil, as políticas de ações afirmativas, implementadas principalmen-
te a partir da década passada, foram relevantes para iniciar uma mudança deste
quadro. O número de estudantes que se identificaram como negros/as e par-
dos/as cresceu nove pontos percentuais desde 2004 e é perceptível aos olhos
que a universidade é hoje, um espaço mais diverso e plural do que no século
passado. No entanto, isso não representa, ainda, uma democratização das ins-
tituições universitárias. Relações de classe, raça e gênero produzem diferentes
condições de acesso e de trajetórias na universidade, algo que se expressa nos
dados disponíveis por diferentes instituições. Porém, essas informações não são
capazes de traduzir as formas de preconceito de classe, racial, sexista e lgbtfó-
bica que se manifestam cotidianamente dentro das instituições universitárias.
Os dados aqui apresentados evidenciam que, apesar das importantes mudanças
que permitiram o aumento do acesso feminino à universidade ao longo do sé-
culo XX, há ainda um predomínio de fatores associados a classe e raça que ope-
ram como filtros de acesso à graduação, pós-graduação e à carreira acadêmica.
É necessário examinar as relações de gênero em interseção com as de
raça e classe, a fim de obter um quadro mais fidedigno do perfil socioeconô-
mico e racial da população feminina que, de fato, foi beneficiada, ao longo
do século XX, pelo acesso ao ensino superior. Como alerta Angela Davis:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça,


também informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a
maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é
a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante
para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de for-

35 Os dados foram extraídos de reportagem da revista Gênero e Número, edição de junho


de 2018. Disponível em: http://www.generonumero.media/menos-de-3-entre-docentes-
-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/

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ma a perceber que entre essas categorias existem relações que


são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir
a primazia de uma categoria sobre as outras.36

O racismo, o machismo, a lgbtfobia coexistem para gerar diferentes


possibilidades de acesso e permanência nas universidades brasileiras. Para
além das estatísticas obtidas em órgãos oficiais, professores e professoras
acumulam, ao longo das diversas atividades docentes, relatos de como
esse conjunto de desigualdades se expressa na vida universitária, inclusive
em nossas salas de aula.
No curso de História da UFRGS, desde o ano de 2012, é ministrada
uma disciplina eletiva, criada pela professora Céli Pinto, intitulada História
do Feminismo. Tenho sido responsável nos últimos semestres por oferecer
essa e outras disciplinas voltadas aos estudos feministas. A partir de 2019,
após um longo debate que resultou uma reforma curricular, criamos uma
disciplina com caráter obrigatório denominada História e Relações de Gênero,
que vem sendo ministrada por mim e pelo professor Benito Schmidt. Tra-
ta-se de uma novidade em termos de currículo já que, ao menos no Brasil,
não temos notícia de outra graduação em História com disciplina seme-
lhante em caráter obrigatório. Certamente, essas mudanças foram forjadas
pelas transformações que as universidades viveram nas últimas décadas:

As cotas sociais e raciais vieram modificar nossas salas de aula.


Antes, espaços quase monótonos em termos de composição so-
cial e étnico-racial, a sala de aula de hoje representa uma co-
munidade bem mais diversificada em termos de classe, raça,
orientação sexual e identidade de gênero. Como resultado, te-
mos turmas polifônicas, com um potencial enorme para pensar
coletivamente as relações entre conhecimento e poder, tema
que circunda todas as disciplinas do curso de História e, princi-
palmente, aquelas que têm nos debates teórico-metodológicos
seu eixo principal.37

36 DAVIS (2011, s/p)


37 Schmidt, Rodrigues e Méndez (2020, p. 214).

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As disciplinas têm sido um local privilegiado para debates teóricos


que, há poucos anos, tinham pouco ou nenhum espaço na universidade.
Em relação às da área de estudos de gênero, há uma parte do currícu-
lo que se expressa diretamente no plano de ensino, que envolve debates
teórico-metodológicos e historiográficos, produção de reflexões sobre
como o gênero (em consonância com outras relações sociais) incide no
modo como pensamos o conhecimento histórico, a pesquisa e o ensino
de História. Na disciplina obrigatória, um dos objetivos é analisar como
o conhecimento histórico é produzido e transmitido, como se organizam
os currículos e como as relações de gênero legitimam determinados co-
nhecimentos e silenciam outros.
Há um outro aspecto mais “informal” das disciplinas, que passa por
criar nesses espaços um ambiente de educação para as relações de gênero.
É algo que deveria estar presente em todos os currículos universitários se
quisermos, de fato, colocar em xeque determinadas hierarquias ainda exis-
tentes nas universidades. A partir da escuta às e aos estudantes, trabalhamos
para aproximar a prática docente ao que bell hooks denomina “uma sala de
aula feminista”, um espaço de aprendizagem onde há uma orientação teó-
rica afinada aos debates feministas que influencia não apenas os conteúdos,
mas o modo como construímos as relações. A sala de aula passa a ser um
espaço horizontal, no qual professora e estudantes devem estar implicados,
coletivamente, na construção do conhecimento. Em consequência, há um
esforço por desnaturalizar o lugar da docente como aquela que detém o
conhecimento em oposição a um aluno/a passivo/a.
Para que essa relação seja possível, é necessário observar como as hie-
rarquias de classe, raça, gênero, orientação sexual, entre outras, se mate-
rializam no espaço da sala de aula, considerando as relações entre todos
os sujeitos e sujeitas. Os debates, em diversos momentos, se concentram
em refletir sobre diversos meios de interdição à participação das mulheres
na produção do conhecimento, inclusive no espaço da sala de aula. Uma
das formas mais comuns desse veto é difícil de combater pois se expressa,
justamente, no silenciamento feminino.
Nas aulas que venho ministrado, são muitas as estudantes que co-
mentam o quanto não se sentem à vontade para falar na maioria das dis-

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ciplinas que cursam. Essa é uma questão trazida por muitas estudantes,
mas principalmente por mulheres negras. As estudantes comentam que,
mesmo em aulas de estudos feministas, os homens se sentem mais livres
para expor suas reflexões, mesmo que elas sejam pouco significativas para
o debate, ou se limitem a reproduzir aquilo que a professora havia falado
ou o que o autor/a “x” escreveu.38
Essas falas representam, com uma sensibilidade que não pode ser cap-
tada por pesquisas quantitativas e nem mesmo por este texto, as inúmeras
dificuldades que ainda persistem para grupos sociais que, historicamente, vi-
veram à margem das universidades e das profissões ditas intelectuais. Quan-
do as estudantes colocam estes pontos, costumam deflagrar debates intensos.
Não raro, estudantes homens manifestam seu desconforto com a discussão.
Mas esse incômodo inicial, na maioria das vezes, se desdobra em um maior
exercício de escuta por parte dos estudantes em relação às colegas mulheres.
É possível dizer que ocorre alguma reflexão quanto ao fato de que ser homem
(principalmente, branco/cis) confere posições de prestígio em uma sociedade
altamente hierarquizada. Isso se manifesta de diversas formas, sendo a legiti-
midade da fala nos espaços públicos talvez uma das principais.
Trago aqui dois exemplos destas discussões. O primeiro foi em 2015,
em meio a uma aula sobre o texto Pode um subalterno falar?, de Gayatri Spiva-
ck. Um estudante homem, branco/cis, pediu a palavra e se alongou em sua
exposição, realizando algumas análises sobre a autora. Toda a classe o ouviu
atentamente. Foi possível perceber que aquela fala, alongada, quase professo-
ral, causava um mal-estar em boa parte da turma. Era uma aula com várias
mulheres que já haviam cursado outras disciplinas ligadas a estudos feminis-
tas, participavam de coletivos e possuíam inserção no tema. Quando chegou
a vez de uma estudante falar (neste caso, uma mulher, branca, que nos espa-
ços universitários se identificava como lésbica) foi interrompida pelo colega

38 Todas as falas aqui apresentadas foram escritas tendo como base as observações e ano-
tações realizadas por mim durante as aulas. Tenho essa prática de tomar nota (durante a
aula ou logo depois) de situações que considerei relevantes. Por essa razão, não se trata de
uma transcrição fiel ao que as estudantes disseram. Para usar este material sem incorrer
em questões metodológicas mais complexas, optei por preservar o nome de todos/as os/
as envolvidos/as nas experiências relatadas.

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mais de uma vez. As interrupções eram feitas no sentido de complementar


ou explicar a fala da colega, ou fazer perguntas para ver até que ponto ela ha-
via se aprofundado na leitura da semana. Em um determinado momento, ela
se dirigiu a ele e perguntou: “Pode a subalterna falar?”.39
A pergunta teve o poder de desconcertar o colega e toda a classe,
inclusive a professora (eu), que, até aquele momento, não estava sabendo
mediar aquelas interdições constantes do estudante homem em relação
à colega. A pergunta da estudante foi uma indagação que partia de uma
situação concreta da sala de aula e dialogava diretamente com o título do
texto que estava em debate, o que causou reações diversas entre a turma.
O aluno que fez as interrupções sentiu-se desconcertado, a maioria das
colegas assentiu positivamente. Algumas verbalizaram que se sentiam re-
presentadas pela forma inteligente encontrada pela colega autora da frase
para mostrar que, ao não deixar desenvolver seu raciocínio, o rapaz estava
vetando seu discurso. A prática do colega foi entendida como um modo
de (não)dizer que sua colega: não tinha a capacidade de elaboração e re-
flexão necessária; precisava das constantes interrupções do colega homem
para “organizar” sua fala dentro de um discurso acadêmico. Já a pergunta
“pode a subalterna falar?” foi uma resposta desconcertante, uma vez que,
diferentemente do colega que apenas teorizava sobre o texto, a estudante
soube se apropriar do debate conceitual em questão e incorporá-lo à sua
fala, a partir de um problema concreto.
Em outra situação, no ano de 2018, na disciplina eletiva História das
Mulheres, discutíamos o texto Carolina Maria de Jesus: como gritar no Quarto
de Despejo que ‘black is beautiful’, de Conceição Evaristo. Falávamos sobre
o modo como a obra de Carolina de Jesus foi considerada “testemunho”
– e não literatura – por parte do cânone literário. A partir do debate, vá-
rias estudantes que, até então, pouco haviam se pronunciado ao longo do
semestre, tomaram a palavra e foram protagonistas da aula, tecendo vários
paralelos sobre suas trajetórias e a história da personagem que estávamos
estudando. Uma das falas que mais tocou foi a de uma estudante, mulher,
negra, que estava em seu primeiro semestre do curso. Ela disse:

39 Fala da estudante (2015).

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Eu sempre penso muito antes de falar. E chego à conclusão de que


o que eu tenho a dizer não vai ser tão importante. Então, prefiro
ficar em silêncio. Mas tenho notado que meus colegas não fazem
o mesmo, em especial os homens brancos, são sempre os primei-
ros a falar, com segurança, mesmo que suas falam não acrescentem
algo diferente à perspectiva do que vem sendo debatido.40

Sobre este tema, Rebeca Solnit, em seu livro Os homens explicam tudo
para mim, comenta os fatores que levam a esse silêncio feminino:

[...] são ideias preconcebidas que tantas vezes dificultam as coisas


para qualquer mulher em qualquer área, que impedem as mulheres
de falar, e de serem ouvidas quando ousam falar; que esmagam as
mulheres jovens e as reduzem ao silêncio, indicando, tal como ocorre
com o assédio nas ruas, que esse mundo não pertence a elas. É algo
que nos deixa bem treinadas em duvidar de nós mesmas e a limitar
nossas próprias possibilidades – assim como treina os homens a ter
essa atitude de autoconfiança total sem nenhuma base na realidade.41

Os relatos apresentados desafiam professoras e professores universi-


tários a repensar não apenas conteúdos e currículos, mas a refletir sobre
as posições ocupadas dentro das instituições universitárias e como elas
podem contribuir tanto para a manutenção de determinadas hierarquias
quanto para tensioná-las. Ainda em diálogo com bell hooks, a professo-
ra e teórica feminista afro-americana enfatiza que estudiosas feministas
precisam mudar muito a forma de ver, falar e pensar para que se torne
possível uma comunicação com diferentes sujeitos que estão em sala de
aula. Ela questiona:

Quantas estudiosas feministas são capazes de reagir de modo efi-


caz quando estão diante de um público racial e etnicamente diver-
sificado que talvez não partilhe a mesma origem de classe, a mes-

40 Fala da estudante (2018).


41 Solnit (2017, p. 15).

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ma língua, o mesmo nível de compreensão, a mesma habilidade


de comunicação e as mesmas preocupações?42

Tais questões se colocam cotidianamente como um problema a ser enfren-


tado, reconhecendo que, em muitas situações, falhamos por não intervir ou
mediar determinados conflitos, por contribuir para a invisibilidade e o silencia-
mento de estudantes, por corroborar práticas (meritocráticas, racistas, sexistas,
lgbtfóbicas) que cristalizam as exclusões. Temos ainda um corpo docente nas
universidades formado majoritariamente de pessoas brancas, adequadas à hete-
ronormatividade, oriundas das classes média e alta e com baixa participação de
outros grupos sociais. Como ouvi certa vez de uma estudante negra, “olhamos
para quem são os e as docentes dos departamentos, dos programas de pós-gra-
duação, e sentimos que a universidade não é o nosso lugar”.43
Abrir a sala de aula para outras presenças que não apenas a da professo-
ra ou professor regente pode ser, também, uma forma de mediar essa falta
de polifonia no corpo docente. Uma das experiências mais bem avaliadas
por minhas turmas se refere à participação de convidadas e convidados que
atuam em outros espaços educacionais: cursinhos populares ligados a movi-
mentos negros, movimentos LGBTQIA+, professoras/es de escolas públicas
e privadas, pesquisadores e pesquisadoras convidados/as.44 Essas participa-
ções, realizadas ao longo do semestre, proporcionam pequenas experiências
de ensino-aprendizagem que desfocalizam do protagonismo do/a docente
regente. São ações ainda tímidas, considerando as estruturas que, há séculos,
procuram verticalizar o conhecimento. Mas é um esforço para desestabilizar
a reprodução dos cânones masculinos, brancos e heteronormativos.
Na mesma direção, no ano de 2019 supervisionei o estágio do-
cente da doutoranda do PPGH/UFRGS Lauri Miranda, que acom-

42 hooks (2017, p. 153).


43 Fala da estudante (2019).
44 Meu agradecimento às e aos colegas e estudantes que têm se disposto a participar,
muitas vezes, de atividades em minhas turmas de estudos de gênero: Alessandra Santos,
Caio Tedesco, Izadora Librenza, Greice Adriana Macedo, Gabriela Schneider, Jonas Camar-
go, Laura Gallo, Lauri Miranda, Muriel Freitas, Paula Tatiane Azevedo, Renata Coutinho e
Vanessa Rodrigues Silva.

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panhou uma das turmas de História e Relações de Gênero. Mais do


que uma supervisão, foi uma experiência de docência compartilhada.
Todas e todos nós aprendemos com as aulas da professora Lauri, uma
mulher trans, afromerindígena, como ela se apresenta, que trouxe
toda a potência de seus conhecimentos teóricos, práticos e da sua exis-
tência para a sala de aula. Essa presença ao longo de todo o semestre foi
uma possibilidade ímpar de educação para as relações de gênero para
os quase 50 estudantes daquela turma. Finalizo este subcapítulo com
a imagem abaixo, uma foto que traduz nosso desejo de que cada vez
mais mulheres de todas as cores, identidades de gênero, sexualidades,
origens, possam – de fato e de direito – trabalhar e ver seu labor reco-
nhecido como intelectuais. Parafraseando Linn da Quebrada, nossos
corpos são uma ocupação!45

Imagem 1

Da esquerda para a direita: Natalia e Lauri em uma das aulas da disciplina História e Rela-
ções de Gênero, Campus do Vale, UFRGS, Porto Alegre, 201946

45 O trecho da música Mulher, da artista brasileira Linn da Quebrada, diz “(...) Ela é diva da
sarjeta, o seu corpo é uma ocupação. É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto. Está
sempre em desconstrução”
46 Na parte de cima da mesa, tal como uma toalha, encontram-se duas bandeiras lado a
lado, à esquerda a bandeira com as cores do arco-íris (simbolizando o movimento LGBTQI+)
e ao lado a bandeira com listras azul, rosa e branco (simbolizando o orgulho de travestis,

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tentativa de interdição das mulheres às profissões intelectuais faz


parte de uma longa história. Através de vários séculos, discursos fo-
ram elaborados para definir uma natureza feminina, sempre a partir do
olhar masculino. A profissionalização do trabalho intelectual, ao longo
do século XIX, ocorreu ao mesmo tempo em que se solidificou uma
concepção binária de gênero, relegando o feminino ao âmbito do pri-
vado. Portanto, estudar, frequentar universidades, laboratórios, traba-
lhos que envolvessem reflexão, escrita, criação e todas as atividades que
podem ser definidas como intelectuais não foram vistas como próprios
para mulheres.
Assim, a presença feminina nos espaços da universidade não foi fruto
de um progresso natural das sociedades. Ao contrário, foi uma conquista
com participação ativa dos movimentos feministas, que passaram a reivin-
dicar o acesso à educação e à profissionalização já no século XIX. A partir
da segunda metade do século XX, essa presença se tornou mais significa-
tiva, embora persistam espaços segregados, resultado da combinação das
desigualdades sociais e de um sistema patriarcal e racista.
As entrevistas sobre os casos de violência na CEU, realizadas
com 30 anos de diferença, dimensionam o quanto (con)viver em es-
paços universitários pode ser um desafio para as mulheres. Apesar das
continuidades dos processos de exclusão e tentativas de silenciamen-
to, muitas portas foram abertas nas últimas décadas. Tal abertura está
relacionada aos movimentos feministas, de mulheres, aos movimen-
tos negros, LGBTQIA+ e mudanças decorrentes de políticas públicas,
como as ações afirmativas adotadas durante os governos democráticos
nas últimas décadas.
A adoção de ações afirmativas na graduação e, mais recentemente,
em cursos de pós-graduação, foram fundamentais para corrigir mini-
mante desigualdades históricas. Neste ano, o Conselho Universitário da
UFRGS aprovou uma nova resolução para os concursos docentes que
prevê a adoção de pontuações diferenciadas para docentes que gozaram

transexuais e transgêneras/os.

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de licença gestante ou licença adoção nos seis anos anteriores ao concur-


so47. Igualmente, prevê pontuação diferenciada para autodeclarados ne-
gros, sendo possível às candidatas que forem negras e mães em período
recente receber a pontuação nos dois casos.
Apesar desses avanços, os dados apresentados na segunda parte deste
texto mostram o quanto as universidades brasileiras refletem uma lógica
meritocrática que funciona para operar exclusões e segregações sociais.
As relações de gênero ainda são um elemento que limita a construção
das profissões científicas e intelectuais, bem como os critérios através dos
quais homens e mulheres têm seu trabalho julgado pelos pares. A prática
de silenciar as mulheres permanece como um dos efeitos dessa história
de longa duração. Para Solnit, são atos que manifestam relações de poder
que “no discurso não educado e nos atos físicos de intimidação e violên-
cia [...] consegue silenciar, apagar e aniquilar as mulheres, como pares,
como participantes e como seres humanos com direitos – e tantas vezes,
como seres vivos”.48 A esse respeito, vale observar como as possibilidades
de exercer um trabalho intelectual estão relacionadas a quem escreve, ao
que se escreve e à forma. Conceição Evaristo salienta esses aspectos ao
examinar os motivos para que a obra de Carolina de Jesus tenha sido jul-
gada pelos seus pares como uma literatura menor: “Há uma tendência em
considerar o livro como mero testemunho, ignorando assim o processo
de criação literária existente no texto. Soma-se a esse fato o desconhe-
cimento da obra completa da escritora [...]”.49 Carolina, mulher pobre,
negra, sem uma formação reconhecida, enfrentou e ainda enfrenta inú-
meras dificuldades para ter seu trabalho reconhecido por intelectuais. Po-
rém, há mudanças em curso, como o fato de que a escritora, falecida em
1977, aos 62 anos, recebeu em março de 2021 o título de Doutora Honoris
Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

47 Esta foi uma proposição que teve como principais articuladoras professoras da UFRGS
vinculadas ao movimento Parent in Science, grupo que atua na pesquisa e discussão das
relações entre ciência, maternidade (e paternidade) nas universidades brasileiras.
48 Solnit (2017, p. 27).
49 Evaristo (2016, p. 303).

63
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

A interdição das mulheres em carreiras intelectuais, como já foi dito,


ocorre por diversos meios. Os depoimentos que apresentei no início do
segmento anterior retratam situações de violência na casa do estudante
na década de 1980 e nos dias atuais. Casos que não são isolados. Con-
vivemos com denúncias de diversas formas de violência de gênero. As
práticas de assédio estão entre nós, sendo, por vezes, usadas como moeda
de troca para oportunidades na vida acadêmica. Há discriminação contra
estudantes que são mães, fato que se evidencia materialmente pela falta de
espaços que acolham as crianças na maioria dos espaços acadêmicos (uni-
versidades, eventos, processos de seleção, concursos etc.). Observamos a
manutenção de uma burocracia e organização dos espaços que seguem
a lógica binária de gênero, ocasionando maior vulnerabilidade à violên-
cia, especialmente para mulheres e homens trans que, fruto de suas lutas,
começaram a se tornar cada vez mais visíveis dentro das instituições de
ensino superior.
Por fim, vale ressaltar que essas situações de hierarquias e discrimina-
ções só se tornaram mais visíveis porque, de fato, a Universidade mudou
nas últimas décadas. E certamente o movimento feminista e a presença
de estudiosas feministas dentro das instituições, especialmente a partir
dos anos 1970, tiveram uma participação importante nessas mudanças.
No entanto, há, como mostra Londa Schiebinger, uma cultura institu-
cional que tende a perpetuar modelos masculinos e cisheteronomativos
de organização. Além disso, a ampliação de espaços conquistados vem
despertando reações conservadoras, contrárias à presença de mulheres,
da população negra, indígenas e de pessoas LGBTQIA+ nas universida-
des. Esses movimentos se manifestam por diversos meios e gradações de
violência. Todavia, temos assistido no período recente um crescimento
de formas de manifestação bastante agressivas, especialmente contra do-
centes e discentes. Este é um momento fundamental para que as uni-
versidades brasileiras respondam aos ataques, se posicionem a favor da
democracia, dos direitos humanos, da liberdade de cátedra e da autono-
mia universitária. As reações conservadoras, ao contrário de gerar medo,
podem ser utilizadas para aprofundar mudanças na cultura institucional
que sejam capazes de combater as diferentes hierarquias que ainda se re-
produzem. Além disso, é importante que a Universidade seja um lugar de

64
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produção de conhecimento científico em diálogo com a sociedade. Um


conhecimento crítico, ético, inclusivo, comprometido com a defesa dos
direitos humanos, portanto, orientado para o combate a todas as formas
de desigualdades sociais e discriminações.

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66
FEMINISMO E EDUCAÇÃO: UM
DIÁLOGO DE RECONHECIMENTO
DO PENSAMENTO DAS MULHERES
Íris de Carvalho

INTRODUÇÃO

Os estudos feministas e de gênero trazem em suas perspectivas o cru-


zamento entre prática militante e empenho teórico. Pensar, estudar e es-
crever sobre as mulheres é sempre manifestar um pouco de si mesma, afi-
nal, não estamos isoladas de como percebemos, atuamos e interpretamos
o mundo. Mesmo em tempos de amplo protagonismo social das mu-
lheres, é possível encontrarmos muitas resistências em torno da palavra
feminismo e uma forte hostilidade em relação ao conceito. Tal realidade,
além de promover um desgaste semântico e político, também pode ser
sinônimo de desqualificação e de transformação da imagem das mulheres
feministas em mal-humoradas, feias, raivosas e intolerantes, em oposição
à ideia do feminino como “belo, recatado e do lar”.50

50 A revista Veja publicou o perfil da esposa do vice-presidente, Michel Temer. Com o título “Mar-
cela Temer: bela, recatada e do lar”, o texto apresentou o estilo de vida e as características da
vice-primeira-dama do país, em 18 de abril de 2016. As definições sobre Marcela Temer mostram
o quanto os valores patriarcais estão ativos em nossa sociedade. Na matéria jornalística, a mulher
é retratada como um indivíduo em segundo plano, que deve permanecer no lar, no privado, en-
quanto o homem ocupa o espaço público, que seria seu lugar de direito. À mulher resta os filhos,
não aparecer muito, não querer estar no espaço público, ser limitada e enclausurada. O feminis-
mo existe para dizer basta e reafirmar que não aceitaremos estereótipos de gênero, subjugação e
opressão. Ver link:https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/ .

67
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Se ainda hoje encontramos mulheres com dificuldades no uso do ter-


mo feminista para falarem de si mesmas, até quando são bem engajadas,
podemos compreender que ainda temos uma história a ser contada e uma
consciência coletiva a ser construída. Essa conexão é necessária para que
os nomes das pioneiras, suas conquistas e a luta das mulheres do passa-
do, que denunciaram discriminações e desigualdades, sejam legitimadas.
Sem esta memória histórica, a reivindicação das feministas no presente
corre o risco de reiterar esse apagamento histórico.
No que se refere à educação, mais do que uma instrução, nós mu-
lheres temos perseguido, ao longo da história, o direito de acessar o que a
humanidade tem acumulado social e culturalmente. E temos reivindica-
do, mais recentemente, o reconhecimento em fazer parte do pensamento
produzido. A invisibilidade das mulheres na história é responsável por
um processo de apagamento intelectual, que além de prejudicar o acesso à
produção feminina, contribuiu para a falta de compreensão da sociedade
sobre as experiências vividas e percebidas pelas mulheres.
A partir da realidade feminina, é possível identificar uma plurali-
dade do ser mulher, sempre construído socialmente: mãe, freira, lou-
ca, solteira, camponesa, esposa, operária, doméstica etc. Essas cons-
truções são realizadas por meio da socialização e ocorrem em diversos
espaços, nos quais as pessoas vão aprendendo e construindo suas vi-
vências. Contudo, encontramos nuances no ser mulher, as quais Mar-
cela Lagarde y de los Ríos denomina como cativeiros, uma expressão
político-cultural que busca definir os espaços de opressão das mulhe-
res no mundo patriarcal. A autora, ao investigar sobre os cativeiros das
mulheres, desenvolveu o conceito da madresposa51. Este estereótipo é o
mais aceito socialmente, pois envolve, simultaneamente, os papéis de
mãe e esposa, na função de cuidadora, considerado essencial na mu-
lher para que ela viva em sociedade. Ou seja, ser madresposa consiste
em viver de acordo com as normas que expressam o ser para os outros,

51 O conceito madresposa, cunhado pela autora Marcela Lagarde y de los Ríos em seu livro
“Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas”, foi mantido
em espanhol pois compreendo que na forma original marca melhor a simultaneidade que
o conceito da autora propõe.

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realizar atividades de reprodução e cuidados, que impõem às mulheres


uma “servidão voluntária”.52 53
Cativeiros que precisam ser rompidos, histórias que precisam ser
contadas, discursos que ainda precisam ser narrados e imagens que preci-
sam ser feitas com e pelas mulheres. Afinal, demorou muito tempo para
que as mulheres conquistassem o seu lugar de fala54, o seu direito de dizer
o que aconteceu, o seu direito de pesquisa e memória. O feminismo se
construiu a partir dessas conquistas, e especialmente, pelo desejo de liber-
dade de expressão.
Neste trabalho, o feminismo é compreendido como um movimento
social, político e intelectual que busca a igualdade entre os sexos e uma
vivência humana mediada pela autodeterminação feminina. Além da liber-
tação dos poderes opressores, estruturados em normatizações de gênero, o
feminismo se apresenta, aqui, pelo seu caráter dialógico55. Um instrumento
para pronunciar-se sobre a grandeza histórica da luta contra o mundo pa-
triarcal protagonizada pelas mulheres. E, também, inspiração para a ação
política, que nem sempre é organizada por grandes coletividades, mas por
mulheres isoladas em seus contextos específicos, mas que ousaram liderar

52 Segundo Lagarde (2015), servidão voluntária é a doação das mulheres, em forma de


trabalho e energia vital, a favor de outras pessoas (familiares, filhos, maridos, irmãos). Tam-
bém acontece em formato de suporte emocional à sociedade. A servidão da madresposa
revela-se por entregar sua liberdade ao cuidado dos outros, mas, nessa relação, não se per-
cebe perdendo a si mesma. Desde muito jovens, as mulheres são socializadas e ensinadas a
amar aos outros, deixando de refletir sobre a razão de suas ações, naturalizando o cuidado
como ensinamento central.
53 Ríos (2015).
54 Por lugar de fala, entende-se o conceito segundo o qual se defende que a pessoa que
sofre preconceitos fale por si, como protagonista da própria luta e movimento, requerendo
o fim da mediação e por consequência, o fim da representação. Essa categoria foi formu-
lada, inicialmente, nos anos 1980, pela filósofa panamenha Linda Acolff. Atualmente, os
estudos feministas interseccionais e decoloniais, no Brasil, tem resgatado a elaboração des-
ta categoria no pensamento das filósofas Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro.
55 A partir do diálogo entre feminismo e educação é possível compor um pensamento pe-
dagógico feminista, que surge no Brasil já no século XIX com as lutas pelo acesso à instrução
feminina e por reconhecimento das mulheres como cidadãs.

69
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a ação política em nome de uma diversidade. Neste sentido, se assume um


feminismo que é instrumento de fala, mas também, de escuta.
Desde os primórdios dos tempos, esse movimento de inquietude das
mulheres tem contribuído para a garantia de grandes conquistas e mobili-
zado novas lutas em direção a uma vida digna. Por isso, os gestos ou ações
que resultam em protestos contra a dominação masculina ou que exigem
ampliação dos seus direitos civis e políticos, através de iniciativa indivi-
dual ou coletiva, são reconhecidos. Esse alargamento na compreensão do
feminismo pode nos ajudar no reconhecimento do empenho de muitas
mulheres, especialmente na história da educação brasileira, que lutaram
para conquistar o direito de acessar o saber, de exercitar sua racionalidade
e a livre criação. Sabemos que chegamos até aqui com o trabalho árduo
dessas mulheres.56

1. PENSAMENTO FEMINISTA BRASILEIRO: FORMAÇÃO


E CONTEXTO

Pensar sobre o feminismo brasileiro ainda se apresenta como uma ta-


refa peculiar,57 e como uma história que ainda está por ser contada às novas
gerações.58 Como bem revela Heloisa de Hollanda (2019, p. 9), “mesmo
hoje, em plena explosão feminista, ainda não é de praxe que nossas pesquisas
e estudos incluam como eixo teórico o pensamento feminista brasileiro”.
Trata-se, portanto, de um fenômeno que vivemos intensamente, a cha-
mada primavera feminista59, mas que ainda carece de um maior empenho
entre as sistematizações, os estudos e as pesquisas com a prática militante.

56 Saffioti (2015.
57 Pinto (2003).
58 Duarte (2019).
59 Em outro de 2015, um levante de mulheres brasileiras tomou as ruas para barrar o
projeto de Lei 5069/2013, que buscava restringir o direito ao aborto previsto em lei. A
mobilização ficou conhecida como Primavera Feminista e seguiu as tendências mundiais.
Desde então, o movimento feminista se ampliou para além das universidades e organiza-
ções formais, ganhando adeptas ainda mais jovens.

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A começar pelas suas primeiras manifestações, ainda no século XIX,


a constituição do feminismo brasileiro foi bem peculiar, pois desafiou,
ao mesmo tempo, uma ordem católica, conservadora e escravagista, que
excluía as mulheres do mundo público, portanto, dos direitos de cidadã,
e também das propostas revolucionárias, que viam na luta das mulheres
um desvio do embate do proletariado por sua libertação. Outro aspecto
desafiante, foi a forma de organização do movimento, por natureza frag-
mentado, com múltiplas manifestações, objetivos e pretensões diversas.
Segundo Constância Duarte, é possível identificar pelo menos quatro
momentos significativos na história do feminismo brasileiro. Para a autora,
“esses momentos teriam obtido maior visibilidade, ou seja, em que estive-
ram mais próximos da concretização de suas bandeiras, seriam em torno
de 1830, 1870, 1920 e 1970”.60 Logo, podemos inferir, pela estruturação
da autora, que foi preciso um intervalo de cinquenta anos entre as movi-
mentações das mulheres e a conquista de novos espaços na sociedade. Cer-
tamente, um conjunto de pequenas manifestações ocorreram entre uma
conquista e outra, criando as condições favoráveis e necessárias às vitórias
do movimento. Duarte considera, respectivamente, os seguintes momen-
tos: acesso as letras iniciais; ampliação do acesso à educação e a luta pelo
voto feminino; o direito ao sufrágio, o acesso ao ensino superior e amplia-
ção do campo de trabalho; e, por último, a revolução sexual e literária.61
Outra forma de nomear os grandes momentos da mobilização femi-
nina é a metáfora das ondas. Com períodos que se avolumam, em direção
ao clímax, e que depois refluem, numa fase de aparente calmaria, para
novamente recomeçar. Essa é uma periodização muito contestada, pois
se articula com as narrativas mais eurocêntricas da luta feminista, ocul-
tando a atuação das mulheres trabalhadoras e negras.62 A primeira dessas
ondas se formou na segunda metade do século XIX e início do século
XX, e é identificada pelo movimento massivo de mulheres que irrompe-
ram na cena nacional pelo direito ao sufrágio. Já a segunda onda começa
na década de 1960 e traz a crítica feminista sobre a sociedade, a ideia de

60 Duarte (2019, p. 27).


61 Duarte (2019).
62 Zirbel (2021).

71
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origem da opressão, a noção de patriarcado e da diferença. O slogan “o


pessoal é político”, cunhado por Carol Hanisch em 1969, exemplificava a
consciência desse período. A terceira onda feminista, que corresponderia
aos anos 1990-2000, foi marcada pela grande diversidade do feminismo
e pelo avanço das novas tecnologias de comunicação. Ela trouxe à tona
a crítica racial e sexual, destacando as variadas e simultâneas formas de
opressão vivenciadas por uma mesma mulher. Contemporaneamente,
está sendo apresentada uma quarta onda, caracterizada pela mobilização
via comunicação digital e diversidade de feminismos.63 A quarta onda vê
na organização em forma de coletivos, grupos fluídos e discursivamente
distantes das organizações tradicionais, uma oportunidade de manifestar
sua indignação diante das desigualdades.
Indubitavelmente, a escolha de organizar uma periodização envolve
uma gama de problemas, mas nos possibilita criar uma força imagética64
capaz de criar conexões entre o passado e o futuro em meio à luta de di-
ferentes gerações de feministas, em sua grande diversidade, criatividade e
força. Registrar este empenho em uma longa e contínua história de lutas
contra a discriminação, opressão e exploração, assim como pela melhoria
das condições de vida, conquista da cidadania e de participação política,
nos permite pensar que o feminismo não desaparece nos momentos em
que não há grande movimentação na cena pública, mas segue em ativida-
de, possivelmente se reorganizando, ganhando força suficiente para um
novo e significativo avanço.
Neste sentido, a periodização indicada por Duarte,65 associada às
ondas feministas, nos permite posicionar como uma primeira tendência
do pensamento feminista brasileiro a luta pelo acesso à educação e pelo
direto à cidadania, já perceptíveis no século XIX e que se estenderiam
às três primeiras décadas do século XX. Até então, as mulheres estavam
submetidas à indigência cultural66 e ao não reconhecimento do seu lugar

63 Rocha (2017).
64 Zirbel (2021).
65 Duarte (2019).
66 Saffioti (2013).

72
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como cidadãs.67 A conquista da legislação68 que autorizou a abertura das


escolas públicas femininas, em 1827, não resolveu todas as questões que
envolviam a instrução das mulheres, mas pode ser vista como uma vitória
das brasileiras, levando em consideração que as opções para a educação
eram muito restritas e condicionadas às famílias mais ricas. Alguns pou-
cos conventos acolhiam as meninas até o momento do casamento e pou-
cas escolas femininas particulares eram encontradas, direcionando seu
ensino às atividades domésticas e ao estudo das primeiras letras.
Por volta de 1870, começam a surgir os primeiros jornais dirigidos
às mulheres. Alvo de críticas perversas e preconceituosas, foram conside-
rados supérfluos, de imprensa secundária e destinados ao segundo sexo.
Entretanto, a persistência e a esperança de muitas mulheres contribuíram
para a formação de uma imprensa alternativa, que serviu como canal de
expressão e conscientização de muitas mulheres, bem como vazão das
reivindicações de uma segunda tendência feminista, mais associada à luta
pelo sufrágio feminino.
A transição do século XIX para o XX foi marcada pela instituciona-
lização da República brasileira em 1891. Muito longe de ter semelhanças,
na prática, com os princípios liberais estabelecidos pela Constituição69,

67 Saffioti (2013).
68 Autorizada em 1827, a Lei Geral do Ensino de 15 de outubro, restringia a instrução das
mulheres ao ensino da escrita, leitura e das quatro operações, bem como das prendas e
economia doméstica. A educação das mulheres só conseguiu romper as últimas barreiras
legais, em 1971, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que atribuiu equivalência entre os
cursos secundários. A partir desta diretriz, o curso normal secundário, amplamente fre-
quentado pelas mulheres desde o final do século XIX, não foi mais discriminado por ser
um curso profissionalizante, e passou, também a possibilitar o acesso ao ensino superior.
Assim, inúmeras normalistas puderam ingressar na academia.
69 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891 não proibiu, explicitamente, o voto
feminino, mas revelou quem eram os cidadãos brasileiros dotados de direitos eleitorais:
nascidos no Brasil, maiores de 21 anos e alfabetizados. Neste caso, o substantivo “cida-
dãos” não estava universalizando, homens e mulheres. Pelo contrário, reafirmou exclusi-
vamente os homens. O ato de não nominar as mulheres deriva do pensamento comum da
época em naturalizar a exclusão feminina. Mesmo quando a Constituição explicita quem
não está apto para votar, as mulheres não são mencionadas. Com base nesse “esquecimen-
to”, muitas mulheres realizaram alistamentos eleitorais por mais de 40 anos, período que

73
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

nascia uma república decorrente das disputas entre as oligarquias rurais e


o centralismo monárquico. Recém-saída da escravatura, com uma imen-
sa população pobre, sem uma tradição de valorização do trabalho e sem
princípios igualitários.70
A partir de 1910, as contradições começam a provocar brechas
no pacto oligárquico republicano, possibilitando uma eflorescência de
manifestações populares de grupos excluídos da política e do mundo
público. De um lado, as tensões derivadas do interior dos núcleos fa-
miliares abastados e com filhas eruditas, detentoras de títulos universi-
tários que foram se insurgindo contra a opressão das mulheres. Nessas
famílias não havia condutas éticas diversas ou formas alternativas de
pensar o papel das mulheres na sociedade, mas um ambiente distinto
que possibilitou que suas filhas acessassem o mundo da leitura e da
valorização da educação. Por outro lado, havia o surgimento de uma
cultura urbana calcada em uma incipiente classe média, e também na
classe operária, que começava a se inspirar nos debates anarquistas e
comunistas no Brasil.
Uma expressão significativa das brechas políticas desse período foi a
fundação do Partido Republicano Feminino71, uma estratégia das mulhe-
res não detentoras de direitos políticos para tornar explícito o objetivo da
sua luta, ou seja, tornarem-se representantes dos interesses das mulheres
na esfera pública. Para Céli Pinto:

[...] esse pequeno partido merece atenção especial pela ruptura


que representou. Se não por outra característica, simplesmente
pelo fato de ser um partido político composto por pessoas que não

vigorou a Constituição de 1891.


70 Pinto (2003).
71 O movimento de organização do Partido Republicano Feminista (PRF) foi protagonizado
por Leolinda Daltro. Professora, mãe de cinco filhos e divorciada. Desde o final do século
XIX, percorria o interior do Brasil na defesa dos indígenas e contra o autoritarismo da cate-
quese. Dedicou grande parte da sua vida à causa da educação indígena, criadora de escolas
profissionais e fundadora da primeira escola de enfermeiras do Brasil.

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tinham direitos políticos, cuja atuação, portanto, teria de ocorrer


fora da ordem estabelecida.72

Muitos nomes se destacam nessa segunda vertente do pensamento


feminista brasileiro, entre eles: Leolinda Daltro (1859-1935), professora e
sufragista, pioneira em sua forma de atuação, e Bertha Lutz (1894-1976),
bióloga formada pela Universidade Sorbonne, em Paris. Certamente,
Bertha foi uma das mais conhecidas lideranças na campanha pelo voto
feminino e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no Brasil.
Para Mônica Karawejczyk:

Lutz, aos poucos, passou a ter sua imagem associada ao ‘bom femi-
nismo’, em contrapartida com o outro feminismo, o ‘mau’, vin-
culado ao lado mais militante do movimento e à figura de Daltro,
que estava sofrendo uma campanha de ridicularização na época.73

Esta associação a um feminismo “bem-comportado”, cauteloso e


vinculado aos “atributos femininos” de Lutz revela sua preocupação em
legitimar-se aos olhos do público, buscando se desvincular das “sufrage-
tes”, assim chamadas as militantes que utilizavam táticas de confrontação.
Assumindo-se como feminista através de artigos que escrevia na Revista
da Semana, Bertha criou, em 1919, a Liga pela Emancipação Intelectual
da Mulher (LEIM), que, reunindo esforços, pretendia apresentar e apro-
var uma emenda que reconhecesse o alistamento eleitoral das mulheres
maiores de 21 anos.
Através do envio de uma carta aos membros da Comissão de Consti-
tuição e Justiça, Lutz argumentou que o avanço das mulheres em todos os
setores da vida social, incluindo países em que a mulher tinha direito ao
voto, se caracterizava por uma ação construtiva e pelo interesse em se de-
dicar aos problemas práticos, principalmente os de ordem moral e social.
A sufragista reiterava o pacto das mulheres com os deveres da família e

72 Pinto (2003, p. 18).


73 Karawejczyk (2020, p. 182).

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os benefícios da atividade junto à maternidade, refutando os argumentos


jurídicos contrários.
Esse feminismo bem-comportado representado por Lutz não rom-
peu com os poderes de opressão, mas buscava apoio neles. Da mesma
forma, retratava a maneira como as mulheres da elite nacional viviam suas
posições econômicas, sociais e intelectuais. O movimento liderado por
Lutz teria alcance nacional, conquistando uma institucionalização sur-
preendente. Com outras mulheres, fundou a Federação Brasileira pelos
Progresso Feminino (FBPF), a qual esteve difundida em quase todos os
estados do país e que funcionou por quase cinquenta anos. Em 1932,
o voto feminino foi conquistado e constitucional (Decreto nº 21.076),
embora não fosse obrigatório. Mesmo considerando essa fragilidade, as
mobilizações que envolveram as mulheres são reveladoras de uma inquie-
tação na sociedade brasileira que se expressava fragmentada entre elites e
classe operária, mas dava os primeiros sinais de organização social. Com
o golpe de 1937, o incipiente contexto de organização política do país foi
interrompido, dando lugar a uma autoritária, inibindo o avanço de várias
reivindicações políticas e organizativas no país.
Já nas décadas de 1960 e 1970, enquanto o feminismo estava vivendo
sua exuberância nos Estados Unidos e na Europa, e as mulheres estavam
unidas contra a discriminação sexual e a igualdade de direitos, alimentan-
do-se das utopias, sonhos de liberdade e transformação, no Brasil vivía-
mos um cenário completamente diferente. O movimento feminista, no
país, lutava contra a ditadura civil militar e a censura, pela democratização
do país, pela anistia e por melhores condições de vida, deixando marcas
distintas e definitivas na história do país e na formação do seu pensamen-
to feminista. Ainda assim, debateu-se sobre sexualidade, direito ao prazer
e ao aborto, através do mote “Nosso corpo nos pertence”, recuperando
as discussões promovidas pelas anarquistas e socialistas do início do século
XX, dando os contornos da chamada segunda onda feminista.
Outras pautas reivindicatórias, como o planejamento familiar e o con-
trole da natalidade, também foram pensadas como integrantes das polí-
ticas públicas, e o uso do anticoncepcional tornou-se o grande aliado do
feminismo ao possibilitar a desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e

76
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amor, sexo e compromisso. Esses debates eram feitos através dos chamados
“grupos de reflexão”, que funcionavam como grupos de conscientização.
Nos encontros, eram discutidas questões relativas à condição das mulheres,
questões profissionais, domésticas, políticas e lidos textos trazidos por femi-
nistas que voltavam do exílio. Os livros mais recorrentes eram: O segundo
sexo, de Simone de Beauvoir; A mística feminina, de Betty Friedan; Política
Sexual, de Kate Millet; e A origem da família, da propriedade privada e do estado,
de Friedrich Engels. Esses textos, de grande referência do feminismo inter-
nacional, trouxeram provocações como o “não se nasce mulher, torna-se
mulher”, de Simone de Beauvoir, a polêmica em torno da heroína domés-
tica, de Betty Friedan, e o sexo como categoria política legítima, de Kate
Millet, que geraram a bandeira feminista da época: “o pessoal é político”.
Essas provocações contribuíram para a emergência do pensamento
feminista brasileiro, bem como sua organização como movimento social,
que se nutriu em pleno regime de exceção política e colocou-se como
oposição a ele. Com a criação de núcleos de estudos e pesquisas sobre as
mulheres nas universidades brasileiras, nos anos 1970, e a entrada de no-
vos aspectos epistemológicos na produção do conhecimento, afinou-se o
cruzamento entre prática militante e empenho teórico – era o tempo da
ciência engajada. Segundo Fúlvia Rosemberg,

[...] no Brasil, diferentemente de outros países, a universidade foi


apenas um dos contextos em que se deram a produção e a divul-
gação de conhecimentos sobre a mulher (e/ou sobre as relações de
gênero). Outros cenários foram usados por acadêmicas (no sen-
tido restrito) e por mulheres educadas (no sentido amplo) para
produzir ensaios, reflexões pesquisas sobre a condição feminina,
incluindo a temática da educação: partidos políticos, Igreja Cató-
lica, grupos e organizações feministas e de mulheres e instituições
governamentais. Os registros se confundiram e os discursos se
interpenetraram: se nos EUA o Women’s Studies foi o ‘braço aca-
dêmico do feminismo, no Brasil, de início, os estudos e pesquisas
sobre mulher ‘foram o braço feminista de mulheres educadas’.74

74 ROSEMBERG (2018, p. 341).

77
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Neste sentido, tematizar a condição feminina em meio a um regime


autoritário significou construir alianças e exercitar um delicado equilí-
brio entre situar-se nos grupos de oposição e organizar um discurso fe-
minista. Assim, o feminismo brasileiro optou em conciliar sua luta com
as esquerdas e a Igreja Católica progressista, elegendo como uma preocu-
pação central, na década de 1970, a mulher trabalhadora. Esta escolha fez
com as ativistas pudessem questionar a ortodoxia das esquerdas em evitar
discutir a condição das mulheres, bem como dialogar com vertentes do
feminismo que viam no acesso ao trabalho profissional a possibilidade de
libertação do trabalho doméstico. Heleieth Saffioti, personagem pioneira
e emblemática nesse período, defendeu sua tese, em 1967, intitulada A
mulher na sociedade de classes: mito e realidade, sob orientação do professor
Florestan Fernandes. Publicada em formato de livro, em 1976, se cons-
tituiu em uma referência nos estudos de gênero até hoje. A autora reali-
zou um estudo marxista sobre o capitalismo subdesenvolvido, em que a
opressão feminina estava determinada pela condição de classe e intersec-
cionada pelo elemento de raça.
Outro destaque do período, pelos diversos livros publicados, inclusive
em pleno regime militar, é Rose Marie Muraro75. Ligada ao pensamento
católico de esquerda, e assumidamente feminista por toda a vida, Muraro de-
senvolveu um interessante trabalho sobre ideologia e feminismo, propondo o
que chamou de “feminismo da fome”, o qual incluía as mulheres das cama-
das mais pobres e se associava ao ideário de esquerda relativo à necessidade
de transformação social. Rose não se integrou ao campo dos estudos sobre a
mulher, de caráter acadêmico, embora tenha realizado importantes pesquisas
sobre a sexualidade feminina, que influenciaram muito os debates nas uni-
versidades por considerarem a diversidade das regiões do país e a experiência
diferenciada das camadas sociais no que diz respeito ao corpo e ao prazer.
Em seu livro Sexualidade da Mulher Brasileira, publicado em 1983, a
autora trouxe o resultado da sua extensa pesquisa a partir do método, não
ortodoxo, “estatístico descritivo”. A publicação teve grande impacto na
mídia e esteve no topo dos livros mais vendidos. Contudo, um dos aspec-

75 Em 1975, com outras mulheres funda o Centro da Mulher Brasileira, entidade pioneira
do novo feminismo nacional que tinha no seu foco tratar das questões femininas.

78
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tos mais importantes deste livro diz respeito à produção do conhecimen-


to no campo científico, visto que

Rose comanda uma pesquisa-participante, focada na amostragem


de entrevista com mulheres, mostrando a realidade social brasilei-
ra fortemente dividia em classes sociais. Essa pesquisa foi baseada
em questionários fechados, o que permitia a comparação entre os
grupos estudados.76

Uma das grandes contribuições do campo dos estudos feministas foi


a problematização do conhecimento produzido para subordinação das
mulheres e o questionamento da parcialidade da razão instrumental que
desconsidera a imaginação, a subjetividade e a experiência humana. Se-
gundo Guacira Louro,77 a entrada de temas na academia que mostram
as implicações entre o público e o privado, fazendo isso por métodos
pouco ortodoxos, foi recebida pelo saber constituído com desconfiança
e menosprezo, deixando explícito que a sociedade moderna construiu
um ideal de esfera pública e instituições políticas fundadas numa moral
racional, na qual estão excluídos o desejo, a empatia, a afetividade e os
sentimentos, elementos fundantes da teoria feminista.

1.1. PENSADORAS FEMINISTAS DA EDUCAÇÃO

Nísia Floresta se destaca, nas décadas iniciais do século XIX, como


sendo uma pioneira na defesa do direito de as mulheres acessarem a edu-
cação e o trabalho; exigia que elas fossem respeitadas, consideradas inteli-
gentes e seres pensantes. Em 1832, escreveu seu primeiro livro, intitulado
Direito das mulheres e injustiça dos homens, inspirado nos escritos de Mary
Wollstonecraft e Olympe de Gouges. Com posicionamentos feministas,
no capítulo V, intitulado “Se as mulheres são naturalmente capazes de
ensinar as Ciências ou não”, Nísia vai denunciar a exclusão feminina na
produção dos conhecimentos, a necessidade de se reconhecer as mulhe-

76 Hollanda (2019, p. 15).


77 Louro (2002).

79
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

res como seres tão capazes quanto os homens, e a ausência feminina nas
cadeiras universitárias como um efeito da violência com que os homens
se sustentam nos lugares de poder. Em concordância com Constância
Duarte, os escritos de Nísia Floresta se constituíram no

[...] texto fundante do feminismo brasileiro, pois se trata de uma


nova escritura, apesar de inspirado na leitura de outros. Pode tam-
bém ser lido como uma resposta brasileira ao texto inglês: nossa
autora se colocando em pé de igualdade com o pensamento euro-
peu, e cumprindo o importante papel de elo entre as ideias estran-
geiras e a realidade nacional.78

Este elo entre as ideias estrangeiras e a realidade nacional provocado


por Nísia Floresta, também será importante para o reconhecimento da
constituição de uma história da educação a partir das vivências das mu-
lheres brasileiras, uma vez que, no Brasil, a história da educação ainda é
composta por uma longa tradição, que pouco identifica na produção dos
escritos femininos um recurso anunciante de outras formas de interpretar
textos clássicos da educação.79 Vale destacar que o diálogo entre o pen-
samento estrangeiro e o nacional simboliza o quanto “o feminismo no
Brasil não foi uma importação que pairou acima das contradições e lutas
que constituem as terras brasileiras, foi um movimento que desde suas
primeiras manifestações encontrou um campo de luta particular”.80
Nísia Floresta81, como tantas outras escritoras do século XIX, usou
pseudônimos para que pudesse ser lida, pensada e respeitada na produ-
ção escrita do seu conhecimento. Sua inquietude e insistência foram in-
fluenciadas pelas ideias positivistas, o que era comum no Brasil daquele

78 Duarte (2019, p. 28).


79 Eggert (2012).
80 Pinto (2003, p. 10).
81 Seu nome verdadeiro era Dionísia Gonçalves Pinto. Segundo Duarte (1995), Nísia vem
do nome de batismo Dionísia; e Floresta para lembrar do sítio aonde passou sua infância.
Nísia nasceu na localidade de Papari, no interior do Rio Grande do Norte. Hoje, em sua
homenagem, a localidade virou uma bela cidade que leva o seu nome.

80
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período. Assim como outras precursoras do feminismo, no século XIX,


as mulheres

[...] aproveitaram a ‘janela’ do discurso positivista para, na so-


ciedade da época, utilizarem-se da ‘necessidade de educação das
mulheres’ e irem muito além disso. No argumento positivista, a
valorização da mulher dava-se pelo redimensionamento da ma-
ternidade. Uma mãe culta tinha um papel social determinante ao
legar aos filhos e filhas um preparo e uma moral vigorosa.82

O longo e acidentado percurso dessas mulheres brasileiras ao aces-


so geral da educação escolar foi um exercício doloroso e de rupturas. A
segregação sexual das escolas, interditando a educação mista; a ideia de
que a educação de meninas e moças deveria ser mais restrita do que a
dos meninos e rapazes, em decorrência da sua saúde frágil, sua inteligên-
cia limitada e voltada para a “missão” de ser mãe; e o impedimento da
continuidade dos estudos secundários e superior para jovens brasileiras,
que constituiu uma barreira para a formação de mestras profissionalizadas
revelam um percurso cheio de obstáculos que nos permitem entender a
razão de a primeira83 mulher concluir o ensino superior no Brasil somen-
te em 1887.84
Ao observarmos essa trajetória feminina no sistema educacional bra-
sileiro, é possível perceber que nem sempre a defesa do acesso e progres-
são das mulheres à educação formal foi sustentada por razões emancipa-
tórias para além da função doméstico maternal.85 Durante os séculos XIX
e XX, e mesmo nos dias atuais, é possível encontrar a justificativa de que
se deve investir na educação da mulher porque “mulheres educadas são
melhores mães”.

82 Eggert (2012, p. 438).


83 A primeira mulher negra brasileira, Maria Rita de Andrade, a obter o título de bacharel
pela Faculdade de Direito da Bahia foi em 1926. Em 2006, Maria das Dores de Oliveira, foi
a primeira mulher indígena a conquistar o título de doutora no Brasil.
84 Rosemberg (2018).
85 Rosemberg (2018).

81
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Essa concepção foi bastante contestada por Maria Lacerda de Mou-


ra86, professora e jornalista, pioneira na área de estudos sobre a condi-
ção feminina, pensamento social e ideias anticlericais. Ademais, foi uma
conferencista muito ativa, tratando de temas como educação, direitos da
mulher, amor livre, combate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-se
conhecida não somente no Brasil, mas também no Uruguai a na Argen-
tina, onde realizou discussões a convite de anarquistas e sindicalistas.
Maria Lacerda de Moura pode ser considerada uma das precursoras
do pensamento feminista no Brasil e uma das poucas mulheres envolvidas
com o movimento sindical e operário. Segundo Míriam Leite:

O pioneirismo de Maria Lacerda foi na área de estudos sobre a


condição feminina. A tônica de seus escritos iniciais era a existên-
cia de padrões ideais e reais contraditórios na vida das mulheres,
levando a uma hipocrisia social constante em suas relações inter-
pessoais. Divulgou luta empreendida pelo direito à cidadania e à
educação, a necessidade de resistência ao papel exclusivo para a
mulher de procriadora e o esclarecimento de seu direito ao amor
e ao casamento de escolha, a necessidade de uma maternidade
consciente e aos problemas da solteirona e da prostituta, provoca-
dos pela família burguesa.87

Suas ideias sobre a educação eram consideradas revolucionárias, mas


sobre a educação feminina eram vistas como imorais. Defendeu o con-
trole de natalidade através da maternidade consciente e da independência
financeira das mulheres; era contrária ao amor único, pois entendia que

86 Nasceu, em 1887, no interior de Minas Gerais, e logo mudou-se para a cidade de Bar-
bacena aonde realizou seus estudos primários e a Escola Normal, diplomando-se em 1904.
Em 1908, iniciou sua vida profissional como professora e, em 1912, como jornalista. Atuou
nas campanhas e alfabetização e nas obras de benemerência. Foi influenciada pelas ideias
anarquistas e pelo pai, um livre pensador, espírita e membro da maçonaria. Em 1921, mu-
dou-se para São Paulo aonde permaneceu até 1928, quando foi viver na comunica de anar-
quista de Guararema (interior de São Paulo) até 1937.
87 Leite (2015, p. 17).

82
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este era um fator de dependência feminina, gerando submissão aos ho-


mens e desigualdade de direito e oportunidades.
Em 1918, publicou o livro Em torno da educação, influenciada pelas
ideias anarquistas e libertárias, sobre sua preocupação com a educação
infantil. Já em 1925, publicou a obra Lições de Pedagogia, dirigida à
formação de professoras. Nesse livro, a autora escreve às jovens sobre
a seriedade e importância de seu trabalho para a construção de uma
sociedade justa na qual seria bom de se viver. Para Lacerda, as jovens
mulheres estavam destinadas a obter uma formação, em cursos de ma-
gistério, com disciplinas protocolares, distantes da realidade social e
política vigente, dificultando a compreensão da grandeza moral que
era necessária à Pedagogia.
Lacerda compreendia que a educação era fundamental para as mu-
lheres, e que estas deveriam ser educadas tendo em vista o bem-estar in-
dividual e coletivo. As desigualdades sociais entre os gêneros e a condição
em que se encontravam as mulheres eram decorrentes da educação rece-
bida na escola e fora dela. Para Moura, "a mulher é um atraso pedagógico.
Não é mentalmente anormal: seu cérebro não foi desenvolvido, não teve
exercício".88
Nesta perspectiva, a autora busca chamar a atenção para o fato de as
mulheres estarem atrasadas na aprendizagem pedagógica, pois ficavam re-
legadas ao ostracismo doméstico e ao não acesso ao amplo conhecimento.
Por isso, Moura defendia a coeducação e denunciava que a ignorância e
infantilidade da mulher eram cultivadas pela sociedade, e a docência a ser
exercida por essa mulher não resultaria em uma educação transformadora
da realidade social. Para Maria Lacerda de Moura,

[...] a mulher, ignorante, contribui para perpetuar a mentira no


lar, na escola, como mãe, educadora, como mundana. Não tem
espírito combativo, não discute conscientemente, não se revolta,
é pouco mais que uma escrava antiga, dócil, meiga, submissa.89

88 Moura (apud LEITE, 2005, p. 61).


89 Moura (apud LEITE, 2005, p. 76).

83
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Maria Lacerda de Moura acreditava em uma educação que pudesse


alargar as concepções acerca da vida e fazer com que os horizontes da in-
teligência humana fossem vistos e valorizados. Seus textos revelam uma
educadora com profunda clareza a respeito da sociedade em que vivia,
não somente sobre as questões educacionais, mas também em relação a
sociedade patriarcal.

Sempre escrava, o cérebro abandonado nela como inútil, objeto


de serviço ou de gozo, procurou armas como a astucia e a mentira,
fazendo das lágrimas, dos sentimentos, motivo de sedução; e, por
esse meio conservou predomínio medular e não soube regular as
emoções.90

Essa visão crítica e libertária fez com que Maria Lacerda de Moura
compreendesse a educação como uma força revolucionária e, no seu en-
tender, homens e mulheres deveriam receber uma educação científica,
racional para ambos os sexos, constituindo o perfeito instrumento de li-
berdade. A denúncia de uma educação medíocre para as mulheres segue
atual; Moura acreditava que as mulheres ao exercitarem o pensamento
a partir dos seus argumentos e dos seus corpos produziriam uma outra
forma de se relacionar com o mundo. Ou seja, é possível

[...] dizer que ela percebia que, muito embora as mulheres já hou-
vessem iniciado a conquista do acesso à educação, elas eram captu-
radas por uma lógica sexista que as transformava em um paradoxal
reforço a uma educação aprisionadora.91

Para Maria Lacerda de Moura, a educação era uma força revolucio-


nária e no seu entender, homens e mulheres deveriam receber uma edu-
cação científica, racional para ambos os sexos constituindo-se no perfeito
instrumento de liberdade. Sua denúncia de uma educação medíocre para
as mulheres segue atual. Moura acreditava que as mulheres ao exercita-

90 Moura (apud LEITE, 2005, p. 62).


91 Eggert & Pacheco (2010, p. 202).

84
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rem o pensamento a partir dos seus argumentos e dos seus corpos produ-
ziriam uma outra forma de se relacionar com o mundo.
Esse pensamento de Maria Lacerda de Moura me parece um dese-
jo comum às feministas do presente. O desejo segue vivo e latente em
permitir que as mulheres possam exercitar livremente seu pensamento a
partir das suas vivências e corporalidades, gerando novas relações media-
das pela autodeterminação criativa. Esse encontro de gerações não para,
assim como as ondas do mar, às vezes, alcança o clímax, às vezes tornam-
-se quase calmaria, mas persiste. Este também pode ser visto como parte
do movimento da história. É preciso estar atenta e forte, ter cuidado e
tempo, persistência quando se tem desejo de mudança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na consideração da existência de uma pluralidade de vertentes femi-


nistas, vale destacar três aspectos que me parecem consensuais diante da
produção de uma epistemologia feminista: o primeiro aponta para a par-
ticipação do feminismo na ampla crítica ao racionalismo moderno, repro-
vando seus aspectos particularistas, racistas e sexistas da ciência ocidental,
onde a produção do conhecimento ocorre, tradicionalmente, a partir de
um conceito universal de homem que se remete ao branco, heterossexual
e europeu. Emprega, ainda, as noções de objetividade e neutralidade por
valores masculinos sem considerar os efeitos socioculturais, étnico-raciais
e sexuais na constituição dos sujeitos.
Já o segundo aspecto se refere ao modo feminista de pensar, que as-
sume novas formas de conceber a produção do conhecimento e a ciência,
questionando a pretensão da verdade pura, neutra e universal, herdadas
do positivismo como sendo a única forma de validar a racionalidade hu-
mana. Dessa maneira, o feminismo incorpora as dimensões subjetivas,
emotivas e intuitivas do conhecimento, questionando a divisão corpo/
mente, sentimento/razão, produzindo novos significados para a com-
preensão do mundo. E por último, o consenso de que a teoria feminista
vai apontar para a estreita relação entre ciência e poder, e ainda para o fato
de as mulheres não terem sido mencionadas em grande parte da história
do conhecimento. Esse “breve esquecimento” das contribuições das mu-

85
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

lheres é parte constituinte da estratégia que serve para assegurar as bases


patriarcais dos saberes.
Desse modo, parte-se do pressuposto de que os movimentos feministas
surgem e se desenvolvem ao longo dos tempos, nas suas manifestações mais
variadas e heterogêneas, tendo lugar de destaque na construção de novos as-
pectos epistemológicos na produção do conhecimento. E, também, dizem
respeito a uma consciência política sobre o entendimento do que deve e pode
ser feito para alterar a realidade de dominação e opressão das mulheres: a luta
pelo reconhecimento de sua cidadania e pelo acesso à educação são expres-
sões dessas ações, colocando sob suspeita os critérios de objetividade e impar-
cialidade, de leituras e olhares do mundo que, historicamente, escamotearam
o lugar do sujeito mulher que pensa, questiona e age.
O feminismo se expressa por meio dos movimentos de luta das mu-
lheres pelo reconhecimento dos seus direitos, e é a partir de suas ações
e das teorias que as subsidiam que se buscam inspirações para a funda-
mentação de análises críticas ao pensamento pedagógico. Desse modo,
o discurso feminista questiona o valor do próprio conhecimento, da sua
definição e obtenção social, pontuando o papel ativo do sujeito na busca
pelo saber, cujas crenças e conhecimentos são gerados pela sua experiên-
cia interpessoal, sempre vinculada a outros saberes e compromissos situa-
dos no mundo.

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mulheresnafilosofia/ondas-do-feminismo/. Acessado em: 10 maio
2021.

88
CONHECIMENTO SITUADO, LUGAR
DE FALA E INTERSECCIONALIDADE:
CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO
FEMINISTA NEGRO NO ENSINO DE
HISTÓRIA
Carla de Moura

INTRODUÇÃO

Antes de tudo um alerta: não sou uma mulher negra. Em um artigo


que carrega o Pensamento Feminista Negro no título, este anúncio de
início é uma responsabilidade ética fundamental. Refiro-me a não sa-
quear a autoria de contribuições teóricas absolutamente relevantes. Ao
mesmo tempo, a não esvaziar de conteúdo político ferramentas de análise
críticas que foram construídas para evidenciar e transformar relações de-
siguais de poder na direção da redistribuição e equidade. Portanto, enfa-
tizo que escrevo do meu lugar de fala como mulher, cis, branca, de classe
média, mãe, lésbica, professora da rede pública de ensino e pesquisadora
em Ensino de História. Trato, portanto, do compromisso que nós, pro-
fessores de História, temos com a aplicação da Lei nº 10.639/200392.
Na primeira parte do texto, teço reflexões que articulam as sofistica-
das ferramentas teóricas do Pensamento Feminista Negro ao Ensino de

92 Que torna obrigatório o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Alterada


pela Lei 11.645/2008 que inclui a obrigatoriedade do ensino da História e cultura Indígena.

89
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

História. Na segunda, apresento parte do processo pedagógico que eu,


minhas alunas, alunos e comunidade escolar desenvolvemos na E.E.E.F
Santa Luzia, localizada na Vila Maria da Conceição, em Porto Alegre:
um exercício de análise interseccional de fontes históricas e a constru-
ção de narrativas históricas situadas. Por fim, apresento o conceito de
Ensino de História Situado93 94 e faço alguns apontamentos sobre como
as contribuições das intelectuais negras, mais especificamente, a Intersec-
cionalidade como instrumento analítico, e as noções de Lugar de Fala e
Conhecimento Situado, podem impactar e complexificar a produção de
conhecimento histórico escolar.

1. PENSAMENTO FEMINISTA NEGRO E ENSINO DE


HISTÓRIA

Com o processo de abertura política e democratização do país nas


décadas de 80 e 90, e a obrigatoriedade da escolaridade pública promul-
gada na Constituição de 1988, a inclusão se tornou um tema central,
visto que a “diferença” se fará presente em todas as suas formas nas esco-
las. Esse movimento ocorre em consonância com a reconfiguração dos
movimentos sociais do presente, que partem de especificidades e reivin-
dicações das minorias, ou seja, acesso a amplos direitos por negras/os,
mulheres, população LGBT*QIA, pessoas com deficiência etc.
Entram em cena as teorias pós-críticas do currículo que, em diálo-
go com as teorias críticas em curso, lançam as bases da discussão sobre
currículo e diversidade. Trata-se de um momento sem precedentes de
articulação entre a academia, as escolas e os movimentos sociais. Na for-
mação de professoras/es, isso se reflete na obrigatoriedade de disciplinas
sobre História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena, Libras e

93 Conceito desenvolvido na dissertação de Mestrado Profissional em Ensino de História


(PROFHISTÓRIA/UFRGS), “As Marias da Conceição – Por um Ensino de História Situado, De-
colonial e Interseccional”. A parte propositiva da dissertação é o documentário “As Marias
da Conceição – Por um Ensino de História Situado”, disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=HB1V7F2B8Do&t=5s
94 Moura (2018).

90
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Educação Inclusiva. Mesmo que como eletivas, as disciplinas com temá-


tica de gênero e sexualidade se multiplicaram rapidamente nos currículos
de formação de professoras/es nas principais universidades do país. Essas
discussões produzem e são produzidas por políticas públicas educacionais
expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas diversas publica-
ções sobre educação endereçadas a professoras/es, nos livros didáticos, na
Lei nº 10.639/03 alterada pela Lei nº 11.645/08 – que torna obrigatório o
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena – e outras políticas
públicas voltadas à implementação da lei.
A memória evocada pelos grupos marcados pela diferença é intima-
mente ligada à luta por direitos, entre os quais, o de conquistar espaço no
discurso histórico a partir de uma revisão das interpretações sobre o pas-
sado, que tem por objetivo reparar o silêncio e a invisibilidade que, muitas
vezes, marcaram a vida dessas coletividades.95 Em Mulheres, Raça e Classe,
a ativista e filósofa Angela Davis, logo no primeiro capítulo, afirma que o
teor do discurso histórico interfere nas ações do presente e que, portanto,
as ausências e equívocos de interpretação têm consequências para os su-
jeitos e grupos sociais. Neste sentido, revisita de forma crítica os discursos
históricos produzidos acerca das mulheres escravizadas, a partir dos quais
propõe e destaca a importância de um reexame da História das mulheres
negras durante o período da escravidão:

Se, e quando, alguém conseguir acabar, do ponto de vista histó-


rico, com os mal-entendidos sobre as experiências das mulheres
negras escravizadas, ela (ou ele) terá prestado um serviço inesti-
mável. Não é apenas pela precisão histórica que um estudo desses
deve ser realizado; as lições que ele pode reunir sobre a era escra-
vista trarão esclarecimentos sobre a luta atual das mulheres negras
e de todas as mulheres em busca de emancipação.96

Davis, ao localizar mal-entendidos do ponto de vista histórico sobre as


experiências das mulheres negras escravizadas e sugerir que um reexame

95 Heymann (2006).
96 Davis (2016, p. 17).

91
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da História possa reorientar a luta por emancipação das mulheres, especial-


mente das negras, leva a uma reflexão “pesada”: a invisibilidade histórica,
assim como os discursos históricos que produzem estereotipias e reforçam
a inferioridade de grupos e culturas são diretamente responsáveis por mas-
sacres e genocídios. A História é, portanto, desta perspectiva, um campo
de guerra. Trata-se de luta pelo poder, de como acontece a distribuição de
poder, de quem pode ou não falar, de quem pode ou não representar:

E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as


implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantili-
zados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que
se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste
trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar,
e numa boa.97

A tradição intelectual de mulheres negras da Diáspora, ligadas às


mais diversas áreas do conhecimento, produziu de forma colaborativa ao
longo da História, a partir de suas experiências individuais e coletivas,
ferramentas de falar, entre as quais as categorias articuladas: Intersec-
cionalidade, Lugar de Fala e Conhecimento Situado. Essas ferramentas
possibilitam que uma multiplicidade de vozes dos grupos historicamente
invisibilizados sejam ouvidas e desvelam o discurso único e autorizado
que se pretende imparcial e universal. Collins aborda as dificuldades de
empreender esta disputa:

Quando os homens brancos controlam o processo de validação


do conhecimento, ambos critérios políticos podem trabalhar para
suprimir o pensamento feminista negro. A partir de que a forma
da cultura geral é permeada e disseminada por noções de inferio-
ridade negra e feminina, os novos conhecimentos reivindicados
que parecem violar estas presunções fundamentais são considera-
dos anomalias.98

97 Gonzales (1984, p. 225).


98 Collins (1989, p. 752).

92
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Em palestra intitulada A Urgência da Interseccionalidade, Kimberlé


Crenshaw explica que a experiência que deu início à ideia de Interseccionali-
dade foi seu encontro com uma mulher afro-americana, trabalhadora, esposa
e mãe chamada Emma DeGraffenreid.99 Leu sua história em um parecer le-
gal, em que um juiz recusara a alegação de Emma de que não conseguiu uma
vaga de emprego em uma fábrica automobilística por discriminação de raça e
gênero. O juiz recusou a petição com o argumento de que a empresa de fato
contratava afro-americanos e, também, contratava mulheres.
Mas o que o juiz não estava disposto a reconhecer, e que Emma ten-
tava explicar, é que os afro-americanos contratados para trabalho indus-
trial e de manutenção eram todos homens e que as mulheres contrata-
das para trabalhar como secretárias e recepcionistas eram todas brancas.
Assim, o cargo era de fato ocupado por pessoas mulheres e negras, mas
não por mulheres negras. O caso foi simplesmente desconsiderado, o que
fez com que Crenshaw, como estudiosa das leis antidiscriminação, femi-
nista e antirracista, buscasse formas de enfrentar o que lhe pareceu uma
injustiça organizada. Mulheres negras não podiam trabalhar na fábrica,
o tribunal duplicou a exclusão e o problema sequer tinha um nome. A
advogada enfatiza que quando os problemas não têm nome não conse-
guimos enxergá-los e, assim, não os resolvemos.
Crenshaw faz analogia com uma intersecção do trânsito urbano, a
partir do cruzamento de duas ruas.100 Uma delas representaria o modo
como as forças de trabalho são estruturadas em raça e, a outra, em gêne-
ro. Quando essas ruas se encontram, apresentam uma terceira estrutura
que carrega as características de ambas, mas que não se configura apenas
como a soma das partes, mas como uma terceira estrutura. O tráfego
nessas ruas seriam as políticas de contratação. Emma, como mulher e
negra, ficaria situada no ponto de intersecção entre essas ruas, sofrendo
o impacto simultâneo do tráfego de gênero e raça da empresa. A justiça
seria como a ambulância que só prestaria socorro a Emma se ficasse evi-
dente que foi atropelada ou na rua da raça ou na rua do gênero, mas não
no local onde as ruas se cruzam.

99 Crenshaw (2016).
100 Crenshaw (2016).

93
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Diante da analogia, Interseccionalidade lhe pareceu um nome apropriado


para indicar aquelas/es que são atingidas/os por múltiplas forças e abando-
nadas/os à própria sorte. Crenshaw foi adiante e refletiu como as mulheres
negras, assim como outros povos marginalizados, enfrentavam todo tipo de
dilemas como consequência da Interseccionalidade.101 Racismo, machis-
mo, heterossexismo, transfobia, xenofobia, discriminação pela condição
física: todas essas dinâmicas sociais se unem e criam desafios bastante sin-
gulares. A interseccionalidade como instrumento de análise destaca o im-
pacto simultâneo dos marcadores sociais sobre indivíduos e coletividades e
permite analisar questões de justiça distributiva, de ação política, poder e
governo:

[...] ser mulher, não ser branca, habitar países do sul, ser pobre etc.,
são fatores que, num contexto marcado por ideologias produtoras
de iniquidade como racismo, sexismo e outras, produzem as vul-
nerabilidades a que milhões de pessoas estão expostas. A ocorrência
destes fatores e suas intensidades sobre pessoas e grupos populacio-
nais vai impactar de forma simultânea, sincrônica, não sendo pos-
sível separá-los ao longo da experiência concreta de cada indivíduo
ou povo. É a isto que chamamos de interseccionalidade.102

Uma intersecção é uma encruzilhada. A encruzilhada, domínio das


entidades das ruas, dos caminhos e da comunicação, como Exus e Pom-
bagiras, são espaços especiais de culto que possuem significados especí-
ficos para as pessoas que fazem parte das religiões afro-brasileiras.103 Ao
evocar a imagem da encruzilhada, as intelectuais negras abrem caminho
para que as falas subalternas sejam escutadas, provocando o descentra-
mento do discurso colonial.
Na medida em que vincula os discursos a quem os profere, a análise
interseccional evidencia o funcionamento do que Foucault define como

101 Crenshaw (2016).


102 Werneck (2015, p. 3).
103 Bulhões (2017).

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regimes de verdade,104 ou seja, discursos que elaborados por quem detém o


poder tem “efeito de verdade”, funcionam socialmente como verdadeiros.
Desta forma, a interseccionalidade articula-se ao Lugar de Fala, categoria
elaborada para garantir que vozes dissonantes sejam escutadas em meio à
existência de um regime discursivo dominante. A filósofa Djamila Ribeiro
ressalta: “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder
existir. Pensamos lugar de fala como refutar da historiografia tradicional e a
hierarquização de saberes consequente da hierarquia social”.105
Lugar de Fala tem sido amplamente utilizado e também criticado no
debate público. Quem reivindica o Lugar de Fala são as chamadas mino-
rias. As críticas, por sua vez, vêm tanto da direita quanto da esquerda políti-
ca, assim como dos meios acadêmicos. O aspecto central da crítica dirigida
ao uso desse conceito é de que se liga aos movimentos identitários e assim,
do ponto de vista de quem dirige a crítica, é considerado essencialista, sem
refinamento teórico, anistórico, além de retrógrado politicamente.
A questão é que as identidades foram criadas dentro da lógica colo-
nial, e o colonialismo articula essas identidades de modo a privilegiar cer-
tos grupos em detrimento de outros. Segundo Alcoff, “O colonialismo
cria e reifica as identidades como meio de administrar povos e estabelecer
hierarquias entre eles”.106 Isso define quem é escutado quando fala e quais
conhecimentos são considerados legítimos. Mais do que isto, estes, cuja
fala tem legitimidade, têm poder para falar pelos outros e falar sobre os
outros usando a si próprios como parâmetro, julgando-se, assim, univer-
sal.107 Ainda, segundo Djamila Ribeiro:

Há pessoas que dizem que o importante é a causa, ou uma possível


voz de ninguém como se não fôssemos corporificados, marcados
e deslegitimados pela norma colonizadora. Mas, comumente, só

104 Foucault (1986, p. 12).


105 Ribeiro (2017, p. 64).
106 Alcoff (2016, p. 137).
107 Alcoff (2016).

95
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

fala na voz de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou


reivindicar sua humanidade.108

Neste sentido, um projeto de descolonização epistemológica denuncia


toda e qualquer pretensão de objetividade científica pautada na neutralida-
de, imparcialidade e universalidade. Desta forma, passa pela importância
epistêmica das identidades, pois apontam para o fato de que as localiza-
ções sociais proporcionam experiências sociais diferentes e desiguais. Esta
operação dialoga com a noção de identidade narrativa. Sobre esta, Anhorn
explica que não se trata mais de apenas se perguntar o que essa história nos
conta, mas também quem conta essa história. Segundo a autora,

[...] esta forma de conceber a questão das identidades nos autoriza


reconhecer que os fios das tramas traçadas são seletivos e que, ao se-
rem tecidos, eles se posicionam em relação a outras tramas, a outras
identidades narrativas já existentes e muitas vezes concorrenciais.109

Partindo desse pressuposto, poderíamos pensar que a acusação de


“identitário” que se faz aos movimentos que questionam a suposta uni-
versalidade recai sobre os acusadores, na medida em que foram eles que
racializaram os sujeitos e estabeleceram as regras das relações de gênero
em benefício simbólico e material próprio. Ao contrário, os Movimentos
Identitários buscam justamente denunciar as desigualdades na distribuição
das violências e dos acessos provocadas por esta diferenciação. Nesse senti-
do, poderíamos afirmar que “identitários” são os “movimentos universalis-
tas”, aqueles que falam a partir da noção de neutralidade, ao mesmo passo
que também poderíamos dizer que estes, sim, são “minoritários”, pois os
homens brancos cis heterossexuais, de classe-média/ricos ocupam uma pe-
quena parcela da população brasileira no sentido demográfico110.

108 Ribeiro (2017, p. 90).


109 Anhorn (2011, p. 136).
110 Reflexão elaborada em conversa informal com a minha namorada Francisca Maga-
lhães de Souza, mestra em Psicologia Social, a cerca das críticas que tanto a direita como a
esquerda política dirigem aos Movimentos Identitários.

96
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O pensamento intelectual das mulheres negras se caracteriza por


ser transitório e diaspórico, portanto internacionalista. Ao mesmo tem-
po, opera de forma dinâmica, ou seja, em permanente transformação, e
complementar, rechaçando as oposições binárias características do racio-
nalismo ocidental. No entanto, o comprometimento ético da produção
intelectual das mulheres negras lhes rende acusações de militância po-
lítica, assim como tentativas constantes de desqualificar suas produções
científicas, o que lhes exige um rigor redobrado na elaboração dos seus
conceitos e categorias de análise.

É comum ouvirmos o quão interessante nosso trabalho é, mas


também ouvimos o quão específico ele é: “Isso não é nada ob-
jetivo!”, “Você tem que ser neutra”, “Se você quiser se tornar
uma acadêmica não pode ser pessoal”, A ciência é universal,
não subjetiva”, “Seu problema é que você superinterpreta a
realidade, você deve se achar a rainha da interpretação!” Tais
comentários ilustram uma hierarquia colonial, pela qual pessoas
Negras e racializadas são demarcadas. Assim que começamos
a falar e a proferir conhecimento, nossas vozes são silenciadas
por tais comentários, que, na verdade, funcionam como más-
caras metafóricas. Tais observações posicionam nossos discur-
sos de volta para as margens como conhecimento ‘des-viado’ e
desviante enquanto discursos brancos permanecem no centro,
como norma. Quando eles falam é científico, quando nós fala-
mos não é científico. Universal/específico; Objetivo/subjetivo;
Neutro/pessoal; Racional/emocional; Imparcial/parcial; Eles
tem os fatos, nós temos opiniões, eles tem conhecimento, nós
experiências. Nós não estamos lidando aqui com a coexistência
pacífica de palavras, mas sim com uma hierarquia violenta que
determina quem pode falar.111

Suas ferramentas de falar não foram construídas para conferir ao co-


nhecimento o estatuto de neutro e universal. Ao contrário, ao ressaltar a

111 Grada Kilomba (2016, p. 5).

97
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

perspectiva parcial como objetividade possível, as intelectuais negras co-


locam em xeque a ciência moderna como padrão exclusivo para a pro-
dução de conhecimento e denunciam a hierarquização de saberes como
produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo va-
lorizado é o branco.112 Somamos, desta forma, à Interseccionalidade e ao
Lugar de Fala, a noção de Conhecimento Situado, no qual:

Cada grupo habla desde su proprio punto de vista y comparte su próprio cono-
cimento parcial, situado. Pero dado que cada grupo percibe por su propia ver-
dad como parcial, su conocimento es inconcluso. Cada grupo se transforma en
el más capacitado para considerar los puntos de vista de otros grupos sin renun-
ciar a la singularidad de su punto de vista o a las perspectivas parciales de otros
grupos. Parcialidad, y no universalidad, es la condición para ser escuchado.113

Jenkins nos alerta que a tradição empirista da história pela história,


que acredita que os documentos falam por si e que têm pretensões de
chegar à verdade dos fatos através de uma postura neutra, é uma tradição
ligada historicamente ao liberalismo e, portanto, trata-se de uma prática
situada e dominante.114 Entendo a História como o modo com o qual a
cultura ocidental se relaciona com o passado, que por ser a forma hege-
mônica de se estabelecer esta relação, é legitimada. Essa maneira de se re-
lacionar com o passado tem características específicas, como a utilização
de conceitos e procedimentos utilizados pelos historiadores, que têm a
obrigação de autenticar suas narrativas. Mesmo que se reconheçam os li-
mites desse empreendimento e o uso da imaginação, a História é um dis-
curso validado. O historiador indiano Sanjay Seth convida a uma profun-
da reflexão sobre a conexão entre o privilégio epistêmico da História em
relação a outras formas de se relacionar com o passado e o Imperialismo:

As suas próprias formas de registrar e de se relacionar com o pas-


sado – seja por meio de mitos, lendas, épicos religiosos, ou outros

112 Cardoso (2014).


113 Collins (apud JABARDO, 2012, p. 16).
114 Jenkins (2007).

98
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– podiam servir, na melhor das hipóteses, como matérias-primas


(pouco confiáveis) na reconstrução desse passado. Isso não che-
gou a provocar qualquer desconforto, pois considerava-se que es-
sas tradições intelectuais originárias tinham demonstrado mito e
realidade, desejos e fatos, deuses e homens. E os compromissos
epistêmicos que sugeriram que essas eram pessoas incapazes de
representar o seu próprio passado foram os mesmos compromissos
epistêmicos que sugeriram, mais adiante, que essas pessoas eram
atrasadas. Ou vice-versa: que essas pessoas ainda pertencessem ao
passado era algo indicado, entre outras coisas, pela sua incapacida-
de de representar o seu passado apropriadamente.115

Sendo assim, é possível imaginar o Ensino de Histórias, no plural, que


reconhece nossa condição de ser afetado pelo passado, e que o que está em
jogo é poder, é construção de realidade, que interfere diretamente em vidas?

1.1. ANÁLISE INTERSECCIONAL DE FONTES PRIMÁRIAS


E A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS HISTÓRICAS
SITUADAS

O compartilhamento das ferramentas de falar Interseccionalidade, Lugar


de Fala e Conhecimento Situado com as alunas e alunos produzem impactos
para o Ensino de História cuja relevância deve ser destacada. Tais catego-
rias permitiram análises complexas das relações sociais nos seus atravessa-
mentos de Raça, Classe e Gênero, no passado e no presente, mas, sobretu-
do, fizeram emergir narrativas históricas situadas.
Narro aqui parte do nosso processo de trabalho que consiste na in-
vestigação histórica sobre a presença negra no bairro Partenon, expressa
por meio das Casas de Religião de Matriz Africana e da Academia Samba
Puro, escola de samba da comunidade. Esses bens culturais foram sim-
bolicamente tombados como Patrimônio da Comunidade pelas/os estu-
dantes e tomados como ponto de partida para a pesquisa. Alunas e alunos
receberam uma caixa contendo réplicas de fontes históricas primárias,

115 Seth (2013, p. 174).

99
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

lupas, material de apoio para a interpretação dessas fontes e diários de


campo para registrar suas descobertas.
Os documentos analisados foram localizados no Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Onze cartas de liberdade de mulheres, ho-
mens e crianças escravizadas e, portanto, propriedade de Nicolau Rainie-
ri e sua esposa, Constança de Mello Rainieri, cujo inventário também foi
encontrado. O casal possuía seis terrenos no Arraial do Partenon116, hoje
bairro Partenon, em que ficam situadas a escola e a Vila Maria da Con-
ceição, onde mora a maior parte dos estudantes.
Constança, filha de Manoel de Mello e Josefa Rangel, era viúva de
Manoel de Castro. Nicolau, por sua vez, também já havia sido casado
com Ana com quem teve um filho, Jorge Rainieri, e uma filha, Ernesta
Rainieri, para quem Constança deixou um conto de reis em testamento.
Nicolau e Contança não tiveram filhos. A relação de Constança com as
pessoas por ela escravizadas, sobretudo as mulheres, é que se mostrou
surpreendente. No seu testamento, registra: “Depois do meu falecimento
ficarão libertas a minha escrava crioula117 Rita, mais de 40 anos, e Julieta,

116 No livro Arraial do Parthenon (1999), Cyro Martini identifica diversos proprietários de
terras no Partenon do século XIX utilizando como fontes, escrituras de terras do segundo
tabelionato de notas de Porto Alegre e anúncios de venda de chácaras do jornal A Reforma.
Através destes nomes de proprietários de terras, fiz a busca primeiramente por cartas de
liberdade, localizando quatro proprietários escravistas: José Fernandes dos Santos Pereira
Junior, Manoel Lopes Bittencourt, Antônio Gonçalves Padilha e Nicolau Rainieri. A escolha
por aprofundar a pesquisa sobre Nicolau Rainieri, cujo filho, Jorge Rainieri, tornou-se um
grande negociador de terras na região, se deu pelo grande número de cartas de liberdade
encontradas e pela riqueza das informações nelas contidas. Posteriormente localizei o in-
ventário de Constança Rainieri, esposa de Nicolau Rainieri cujas informações possibilitam
um interessante exercício de análise interseccional.
117 As expressões “crioula”, “preta”, “parda”, “pardinho” e “mulata” são transcritas lite-
ralmente das fontes pesquisadas, assim como todas as outras informações sobre os sujei-
tos citados no texto. As denominações e classificações dos sujeitos negros pelos brancos
escravizadores poderão ser apresentadas às alunas e alunos da perspectiva de como o
Movimento Negro - a partir da noção de que os sujeitos só se descobriram negros no con-
tato com os brancos - se apropria e ressignifica expressões pejorativas por estes cunhadas,
como “negro”, “preta”, “crioula” em atitude de empoderamento. As expressões “parda”,
“pardinho” e “mulata” seguem sendo problematizadas porque são inseparáveis dos estu-

100
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crioula, preta, 20 anos. Meu marido passará a carta de liberdade.” Vontade


que se fez no ano do seu falecimento, 1882.
Além disso, Constança era madrinha de crisma da parda Malvina,
liberta pelo casal “em atenção e remuneração pelos bons serviços que tem
prestado” em 1874, com vinte anos de idade. Malvina, por sua vez, era
filha da crioula Henriqueta, que comprou sua liberdade por seiscentos mil
reis em 1868 e em 1882 já era falecida. Malvina recebeu quinhentos mil
reis deixados em testamento por Constança, mais do que recebeu sua afi-
lhada Silvia Rainieri Lopes, filha do compadre José de Lima Lopes, mas
menos do que custou a liberdade de sua mãe.
Eram também afilhadas de crisma de Constança, as filhas da parda
Virgilina que aos 22 anos, em 1868, comprou sua alforria por um conto
seiscentos mil reis. América e Olímpia, filhas de Virgilina, tiveram suas
cartas de liberdade compradas pelo movimento abolicionista. A liberdade
de América foi comprada quando ainda tinha cinco meses, por duzentos
contos de reis pela “Comissão encarregada de promover a liberdade desta
e de outras pessoas escravas em comemoração ao aniversário da Indepen-
dência do Brasil”, em 9 de setembro de 1863.
Olímpia, de cor mulata, teve sua carta de liberdade comprada quando
tinha oito anos de idade, por trezentos mil reis pagos pela Associação
Parthenon Literário em 1870. Constança deixou em testamento trezen-
tos mil reis para cada uma das irmãs, e duzentos mil reis para o pardinho
Raul, o irmão mais novo. América já não era viva em 1882, e o dinheiro
que Constança pretendia deixar para ela foi usado nas custas do enterro.
Tanto Malvina, como Olímpia, assinaram o recebimento da herança e
usavam o sobrenome da antiga senhora e madrinha de crisma, “Mello”.
Em 1882 o casal possuía três escravos. Rita, com 50 anos e Julieta
com 25 anos, ambas pretas e domésticas, receberam a liberdade com o fa-
lecimento de Constança. Manuel, cor preta, 44 anos, de profissão padeiro,
foi o único que foi mantido cativo. Três das cartas de liberdade de escra-
vos não citados no inventário, mas que pertenceram ao casal, foram ainda
localizadas. Pedro, de Nação Nagô, comprou sua liberdade por um conto
de reis em 1863. Joaquina, de nação Angola, comprou sua liberdade por

pros nas senzalas e denunciam o branqueamento da população cativa.

101
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

um conto e trezentos reis aos 40 anos de idade em 1871. Manoel Alexan-


dre, com 31 anos, recebeu sua liberdade em atenção e remuneração pelos
serviços prestados no ano de 1880.
A maior parte da herança, fora a parte do marido, foi destinada à
Jorgina Rainieri, filha natural do seu enteado Jorge Rainieri, para quem
deixou 3:000.000 contos de reis e todos os seus brilhantes. Para o marido,
além do escravo, joias e mobília, ficaram os seis terrenos no Arraial do
Partenon com frente para a Rua Caldre Fião, no valor de 1:000.000; seis
terrenos na Tristeza, 90.000; e um sobrado na rua Riachuelo, números
214 a 218, avaliado em 35:000.000.
O uso pedagógico da análise interseccional partiu dos seguintes
questionamentos: qual o lugar de fala de quem profere os discursos
nos documentos históricos? Como as diferentes posições de sujeito
operam nos processos de seleção e silenciamento na construção de
narrativas históricas? Quais as contradições e disputas que podemos
perceber ao confrontar diferentes perspectivas acerca de um mesmo
acontecimento histórico?
O exercício de análise interseccional das fontes do período escravista
se deu principalmente a partir da relação da proprietária de terras com as
mulheres por ela escravizadas. Em diversos trechos de seus registros, as
alunas demonstraram desconfiança da bondade da sinhá. Nesses regis-
tros, percebemos que as alunas explicam o motivo pelo qual o documento
precisa ser questionado e justificam sua descrença:

F.: “O documento tenta informar que a sinhá era boa, que dava
carta de liberdade, que batizava as filhas das escravas... mas não
podemos esquecer que era um movimento escravista.”
K.: “É realçado que a Constança Rainieri deixou em seu testa-
mento dinheiro para suas afilhadas e cartas de liberdade para elas.
A minha crítica ao documento é que ela fala que deu a carta de
liberdade para a Rita e a Julieta sendo que elas lutaram 40 anos
para poder conquistar.”
AC.: “O documento informa que a sinhá aparenta ser uma boa
pessoa pois ela dá carta de liberdade para as suas escravas e é ma-
drinha de crisma da Malvina da Olímpia e da América e elas sa-

102
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biam ler e escrever, mas na verdade elas trabalharam a vida toda


para ela, mais que justo serem solta.”118

A historiadora, filósofa e antropóloga Lélia Gonzales, no perturbador


ensaio Racismo e Sexismo na Cultura brasileira (1983), utiliza como suporte
epistemológico a Psicanálise, saber eurocêntrico e legitimado, e patolo-
giza a branquitude119 ao afirmar que o racismo se constitui como sinto-
mática que caracteriza a neurose cultural brasileira. O neurótico constrói
modos de ocultamento (democracia racial) do sintoma (racismo), porque
isso o liberta da angústia de se defrontar com o que está recalcado (o
desejo). No momento em que fala de alguma coisa, negando-a, se revela
como desconhecimento de si mesmo.
As alunas, ao suspeitarem das intenções da sinhá, demonstram ma-
nejar com destreza as dissimulações da democracia racial brasileira. A
imagem da benevolente senhora cristã apresentada pelas fontes históricas
cai por terra diante do adjetivo “escravista”. Ao enfatizar que Rita e Julie-
ta “lutaram 40 anos para conquistar a liberdade” ou que Malvina Olímpia

118 Moura (2018, p. 79).


119 Segundo Edith Piza (2005): Ainda que necessite amadurecer em muito esta proposta,
sugere-se aqui que branquitude seja pensada como uma identidade branca negativa, ou
seja, um movimento de negação da supremacia branca enquanto expressão de humani-
dade. Em oposição à branquidade (termo que está ligado também a negridade, no que se
refere aos negros), branquitude é um movimento de reflexão a partir e para fora de nossa
própria experiência enquanto brancos. É o questionamento consciente do preconceito e
da discriminação que pode levar a uma ação política anti-racista. Branquitude não diz res-
peito aos discursos ingênuos que afirmam: "somos todos iguais perante Deus, ou perante
as leis"; ao contrário, reconhece que "alguns são mais iguais do que os outros" e reverte
o processo de se situar no espaço dos mais iguais para reivindicar a igualdade plena e de
fato, para todos. É primeiramente o esforço de compreender os processos de constituição
da branquidade para estabelecer uma ação consciente para fora do comportamento hege-
mônico e para o interior de uma postura política antirracista e, a partir daí, uma ação que
se expressa em discursos sobre as desigualdades e sobre os privilégios de ser branco, em
espaços brancos e para brancos; e em ações de apoio à plena igualdade. Cf. BENTO, Maria
Aparecida. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: Psicologia social do racismo – es-
tudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone, Maria Aparecida, Silva
Bento (Organizadoras) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58)

103
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

e América “trabalharam a vida toda para ela (Constança), mais que justo
serem soltas”, as alunas destacam a agência das mulheres negras escraviza-
das. Luiza Bairros (1995), no mesmo sentido, enfatiza tal agência a partir
da singularidade da perspectiva das mulheres negras sobre a elite branca
compreendida através do lugar ocupado pelas empregadas domésticas:

O que se espera das domésticas é que cuidem do bem-estar dos ou-


tros, que até desenvolvam laços afetivos com os que dela precisam
sem, no entanto, deixarem de ser trabalhadoras economicamente ex-
ploradas e, como tal, estranhas ao ambiente do qual participam (outsi-
der within). Contudo, isto não deve ser interpretado como subordina-
ção. No limite, essa marginalidade peculiar é que estimula um ponto
de vista especial da mulher negra (permitindo) uma visão distinta das
contradições nas ações e ideologias do grupo dominante.120

Na análise das alunas fica ainda explícito que, nos documentos in-
vestigados, eram os donos de escravos que, através do discurso expresso
nas fontes históricas, tinham poder de representar as pessoas escravizadas.
Uma das alunas destaca que nessas representações as pessoas escravizadas
eram reduzidas à condição de escravos definida pela cor da pele. Nova-
mente o documento é por elas colocado em xeque:

N.: “Trabalhei com as cartas de liberdade vejo que os donos dos


escravos definiam eles só pela raça preto, parda, era assim que ele
definia o escravo [...] ele (o documento) descreve um pouco o que
aconteceu, porém não podemos acreditar no que foi escrito.”121

As definições denunciadas pela aluna relacionam-se com os estereó-


tipos ou imagens de controle, um dos pontos centrais de enfrentamen-
to do Pensamento Feminista Negro.122 Eles são expostos por Gonzales
através da investigação das noções da doméstica, da mulata e da mãe preta,

120 Bairros (1995, p. 6).


121 Moura (2018, p. 80).
122 Collins (1989).

104
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produzidas pelos brancos.123 Em seu estudo, o centro da análise não serão


essas noções, mas sim, aqueles que as produziram. A partir do momento
em que uma mulher negra cria representações para os brancos a partir de
suas análises, invertem-se os lugares de quem representa e quem é repre-
sentado. Este é o giro de Lélia Gonzales, que transforma a mulher branca
em a Outra e o homem branco em o Tio ou o Corno.124 As alunas se aproxi-
mam deste movimento de Lélia ao deslocar a representação de Constança
Rainieri de “bondosa” e “caridosa” para “escravizadora” e “hipócrita”.
Diante das informações dos documentos, um dos alunos arriscou uma
hipótese: “Tinha possibilidade de as afilhadas serem filhas de algum homem
da família, por serem pagas e receberem o sobrenome da sua sinhá. E tam-
bém quando receberam sua carta de alforria muito cedo e suas afilhadas sa-
biam ler e escrever”.125 De fato, as meninas batizadas por Constança Rainieri
são descritas na documentação como pardas, ao passo que suas mães são des-
critas como crioulas. Este é um tema caro, pois remete à violência dos estupros
praticados pelos senhores de escravos às mulheres nas senzalas:

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos se-


nhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação
daí resultante está na origem de todas as construções de nossa iden-
tidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial
latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências.
Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hie-
rarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades.126

Jorge Rainieri, filho de Nicolau Rainieri, era fundador do Parthenon


Literário, sociedade literária liberal e abolicionista que se inspirava nos ideais
gregos de conhecimento. Os nomes das meninas libertas, Olímpia e América,
parecem ter relação com os preceitos dessa associação. Além disso, as questões

123 Gonzales (1983).


124 Gonzales (1983).
125 Moura (2018, p. 81).
126 Carneiro (2011, p. 1).

105
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

levantadas pelas alunas e alunos me fizeram refletir sobre essa sociedade aboli-
cionista formada pela intelectualidade branca da cidade de Porto Alegre.
A menina América, de apenas cinco meses de idade, que pertencia à
família de um dos fundadores da associação, teve sua carta de liberdade com-
prada pelo Parthenon Literário por 200 contos de réis. O fato levanta dúvida:
a intenção da associação era a compra da liberdade de pessoas escravizadas
ou garantir a indenização das famílias proprietárias de escravos? Essas tensões
no seio da família escravista, em que alguns de seus membros tinham ideais
abolicionistas, ficaram em aberto e merecem ser mais bem investigadas.
Enquanto professora de História e pessoa preocupada com a construção
de relações étnico-raciais mais justas e igualitárias, me questionei algumas
vezes sobre realizar um trabalho utilizando fontes históricas do período es-
cravista. Abordar a História afro-brasileira a partir da escravização dos corpos
negros pode ser um desserviço, dependendo da maneira com que é feita. É
preciso estar em alerta para manejar estas informações, pois se trata de um
tema sensível para alunas e alunos negros. Por outro lado, não posso, nem
tenho o direito, de ocultar, minimizar ou “varrer para baixo do tapete” que a
História do Brasil é marcada a ferro no que tange à escravização de africanas/
os e suas(eus) descendentes. Entendo que as narrativas históricas situadas po-
dem contribuir na elaboração coletiva destes traumas históricos:

Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas


negras vão experenciar racismo do lugar de quem é objeto desta
opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sis-
tema de opressão. Pessoas brancas vão experenciar do lugar de quem
se beneficia dessa mesma opressão. Logo ambos os grupos podem e
devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos. Es-
tamos dizendo principalmente, que queremos e reivindicamos que
a História sobre escravidão no Brasil seja contada por nossas pers-
pectivas também e não somente pela perspectiva de quem venceu,
para parafrasear Walter Benjamim, em Teses sobre o conceito de
História. Estamos apontando para a importância da quebra de um
sistema vigente que inviabiliza estas narrativas.127

127 Ribeiro (2017, p. 89).


106
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As/os estudantes, ao explicarem a documentação explorada, enfatizam


que nada que Constança Rainieri tenha feito – deixar em testamento cartas
de Liberdade e herança, ou batizar as meninas, filhas das mulheres por ela
escravizadas na crisma – a tornou uma boa pessoa. Não foram suas ações
que chamaram sua atenção. Ela era uma proprietária de escravos a quem as
alunas se referem como “a branca”. Aqui a branquitude é situada historica-
mente. Por outro lado, a agência das “mães” escravizadas é ressaltada: fo-
ram elas que lutaram para que suas filhas tivessem melhores oportunidades:

Ke.: Nós estudamos sobre o inventário da Constança Rainieri,


que era casada com Nicolau Rainieri. Eles juntos tinham 6 terre-
nos no Partenon. Temos aqui 12 cartas de liberdade dos escraviza-
dos que durou de 1863 até 1882.

K.: Virgilina, Enriqueta, Pedro da Nação Nagô e Joaquina da Na-


ção Angola compraram suas próprias liberdade.

L.: América e Olímpia, filha de Virgilina e Raul tiveram suas car-


tas de Liberdade compradas pelo Movimento Abolicionista.

AC.:Malvina, Rita, Julieta e Manuel Alexandre foram libertos em


atenção e remuneração pelos bons serviços que têm prestado.

R.: Manoel continuou escravizado e sua profissão era padeiro,

L.: Enriqueta, mãe de Malvina, e Virgilina, mãe da América e


Olímpia, que só tinha 5 meses, e teve sua carta de liberdade com-
prada pelo Parthenon Literário.

AC.: O que nos chamou atenção nesse documento não é que a


branca era boa e deixou herança em dinheiro para América para
Olímpia e para Malvina.

K.: Outra coisa que chamou atenção nossa foi: as mães batalharam
para dar melhores condições de vida para suas filhas.

L.: E que as mães conseguiram deixar pras filhas a sua carta de


liberdade e uma herança.

R.: E que elas aprendessem a ler e escrever e assinassem o docu-

107
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

mento com os seus próprios punhos, coisa que muitos brancos


não faziam na época.128

Interrogar, interpretar e explicar as fontes primárias com o uso das


lentes da Interseccionalidade possibilitou a construção de narrativas his-
tóricas situadas. Em tais narrativas, o passado, seja pela noção de História,
seja pela noção de Ancestralidade, é convocado pelas alunas e alunos para
se autonarrar, autodenominar ou autorrepresentar. Tratando-se de uma
comunidade negra de periferia narrada, denominada e representada sem-
pre de forma depreciativa por quem detém poder para falar, as narrativas
históricas situadas confrontam esse poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

POR UM ENSINO DE HISTÓRIA SITUADO

O Ensino de História Situado se insere no campo das Pedago-


gias Decoloniais, inspira-se na Pedagogia das Encruzilhadas,129 tem
como aporte principal o Pensamento Feminista Negro, e articula a
Interseccionalidade 130 como estratégia analítica à investigação histó-
rica dos bens culturais aos quais a comunidade escolar atribui senti-
do de Patrimônio.131

128 Moura (2018, p. 108).


129 Rufino (2015).
130 Crenshaw (2002).
131 Não referencio aqui Pedagogias Decoloniais e Pensamento Feminista Negro, pois se tra-
tam de movimentos mais amplos construídos no diálogo entre diversas autoras e autores. So-
bre as Pedagogias Decoloniais ver mais em WALSH, Catherine (org.). PEDAGOGÍAS DECOLO-
NIALES Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir TOMO I. Quito-Ecuador. Ediciones
Abya-Yala, 2013. Sobre Pensamento Feminista Negro nesta pesquisa trabalhamos com pen-
sadoras brasileiras, entre as quais: Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Claudia Pons
Cardoso, Djamila Ribeiro; e também não brasileiras como: Patricia Hill Collins, bell hooks, An-
gela Davis, Ama Mazama, Grada Kilomba entre outras, todas referenciadas no corpo do texto.

108
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A proposta não é um método, mas uma ética ao ensinar História.


Aponta para o cruzamento entre métodos, técnicas e procedimentos
do conhecimento histórico – legitimado e legitimador – e as epis-
temologias afro-brasileiras presentes no território escolar. A música
intitulada Orgulho de ser preta é um rap e foi criada pelas estudantes nas
aulas de História em que foram operadas as ferramentas teóricas do
Feminismo Negro. Aqui as alunas situam a experiência social coletiva
de ser negra no tempo, e, portanto, cantam dos seus lugares de fala:132

(F.:) (N.:)
Eu sinto orgulho de ser preta A triste realidade
E ninguém tira isso É que o mundo perdido tá
Da minha cabeça Facção com facção
Meu cabelo Black Seria melhor se juntar
Só reforça minha natureza Ao invés de brigar, claro
Sim já fui zoada Por boca de fumo
De cabelo duro e tal Vamos lutar pra conquistar
Mas Deus não dorme O nosso lugar no mundo!
Vão pagar por tudo em real
Por todo sofrimento (A.C.:)
Que nós pretos passamos juntos Novelas e minisséries
Nós vamos superar juntos Dão mal exemplo
Vão aplaudir todos nós juntos Só tem negro em senzala
Na cozinha
(K.:) E limpando a sala
Nas favelas Racismo tá em toda parte
Negros morrem Onde quer que cê vá
Por desacato à autoridade, Comércio, supermercado
Mas se é branco Transporte coletivo e pá
Com dinheiro
Responde (Todas:)
Em liberdade Basta! Chega!
Tô pouco me lixando Preconceito sai pra lá!
Para o que esses brancos falam É os preto no topo
Eles querem o nosso mal E do topo
E o fim da nossa raça! Ninguém vai nos tira
Pode até tentar
Mas no topo
Vamos continuar
É os preto no topo!

132 Moura (2018, p. 101).

109
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

A produção intelectual das mulheres negras faz emergir novas propostas


epistemológicas que têm como base a descolonização do saber, apresentando
categorias que dão conta de pensar o conhecimento a partir de concepções
filosóficas de matriz africana. Neste sentido, a historiadora Beatriz Nasci-
mento133 se afirma Atlântica. E em documentário realizado em parceria entre
a socióloga e cineasta Raquel Gerber134, em que narra a História dos Movi-
mentos Negros brasileiros buscando relações entre Brasil e África, realiza a
ousada operação de renomear a História do Brasil, quiçá renomear o Brasil:

E ORI é a palavra mais oculta porque é o homem, sou EU. Por-


que é o indivíduo, a identidade. A identidade individual, coleti-
va, política, histórica. ORI é o novo nome da História do Brasil.
ORI talvez seja o novo nome do Brasil. Este nome criado por
nós, a grande massa de oprimidos, reprimidos. Reprimidos antes,
depois oprimidos, torturados. Transgressores.135

Aqui podemos observar o grande drible das intelectuais negras à trá-


gica resposta da pergunta de Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar?136
A tríade Interseccionalidade, Lugar de Fala e Conhecimento Situado, como fer-
ramentas de falar, permitem se esquivar da conclusão de que se pode,
contanto que fale a língua do colonizador. Ao encontrar meios de se fazer
escutar, podem falar em bom pretoguês, e como coloca Lélia Gonzales:
“vencem a batalha discursiva em termos de cultura brasileira”.137
Foi a busca por desenvolver uma proposta de ensino de História an-
tirracista, antissexista, anticolonialista e, sobretudo, com sentido e empo-
deradora138 para estudantes de uma comunidade afrodescendente, onde a

133 Apud Ratts (2007).


134 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=mSikTwQ779 > Acesso em:
09/10/2018.
135 Nascimento (1989, p. 6 apud RATTS, 2007, p. 65).
136 Spivak (2010).
137 Gonzales (1983, p. 241).
138 Segundo Ama Mazama (2009, p. 127) “Empoderamento” derivado do inglês empower-
ment, é termo que surgiu na sociologia, na psicologia e no serviço social com referência a

110
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escola que atuo como professora fica localizada, que me levou à produção
das intelectuais feministas negras. Essa aproximação me exigiu o reco-
nhecimento dos meus privilégios e honestidade intelectual. Denunciou
a insuficiência das categorias de análise fundamentadas em um modelo
eurocêntrico, masculino e branco, assim como a categoria “mulheres”
no Feminismo. Apresentei neste artigo parte desta caminhada que é, ao
mesmo tempo, política, pedagógica e teórico-metodológica.

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pessoas e populações discriminadas (mulheres, indígenas, afrodescendentes, pessoas por-


tadoras de necessidades especiais) ou pertencentes a grupos tradicionalmente excluídos do
padrão ocidental do chamado normal. “Empoderamento” se refere ao processo de perce-
ber criticamente o discurso da discriminação sofrida; reconhecer-se e assumir sua própria
identidade como pertencente ao grupo discriminado; embasar e consolidar a autoestima
necessária para tornar-se protagonista da própria vida, apesar da discriminação sofrida. Esse
processo significa construir e exercer uma forma de poder em relação a si mesmo e à vida.

111
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114
LITERATURA, GÊNERO E HISTÓRIA:
REFLEXÕES A PARTIR DA OBRA
LITERÁRIA A GUERRA NÃO TEM
ROSTO DE MULHER139
Fabiane Maria Rizzardo
Nielly da Silva Pastelletto

INTRODUÇÃO

Svetlana Aleksiévitch nasceu em 1948, no oeste da Ucrânia, e cres-


ceu na Bielorrúsia; filha de professores, formou-se em jornalismo pela
Universidade de Minsk. A partir da década de 1970, atuou como editora
de cartas no jornal das fazendas coletivas soviéticas, como repórter em
jornais diversos e ainda como correspondente de revista literária. Tal tra-
jetória viabilizou que ela se dedicasse, no futuro, à coleta de testemunhos
de mulheres soviéticas que serviram na Segunda Guerra Mundial. O ma-
terial reunido deu origem à sua primeira e mais conhecida obra, intitula-
da A guerra não tem rosto de mulher, que será analisada ao longo deste texto.
A autora bielorrussa também se dedicou à coleta de testemunhos de
indivíduos que presenciaram outros episódios importantes, relacionados
ao contexto histórico da região em que está inserida, tais como a queda
da União Soviética e o desastre de Chernobyl. Entre as publicações resul-

139 Texto originalmente escrito como parte da avaliação da disciplina História e Gênero,
ministrada pelas professoras doutoras Marlise Regina Meyer e Mônica Karawejcyk (PPGH
PUCRS), em 2020/01

115
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tantes da coleta de relatos, podem-se destacar Vozes de Tchérnobil. História


oral do desastre e O fim do homem soviético. Na medida em que acumula pre-
miações diversas140 por suas publicações de caráter documental, consoli-
da-se como uma das mais importantes escritoras da atualidade.
Alguns dos testemunhos coletados e reunidos em obras pela jornalis-
ta têm o mérito de preencher lacunas que a própria historiografia ainda
não deu conta de abarcar. Este é o caso de A guerra não tem rosto de mulher.
Focado na perspectiva das mulheres soviéticas que assumiram diferentes
funções ao longo da guerra, o livro matiza as narrativas tradicionais sobre
o episódio, as quais privilegiam as versões contadas pelos homens, ao pas-
so que invisibilizam e silenciam a atuação e contribuição das mulheres.
Por se tratar de texto literário de caráter documental focado na pers-
pectiva das mulheres, A guerra não tem rosto de mulher permite que parte
importante do nosso trabalho tenha como objetivo articular reflexão so-
bre gênero. Nesse sentido, a primeira seção do presente ensaio se atém
às assimetrias entre homens e mulheres que atuaram na Segunda Guerra
Mundial. Antes de realizar essa reflexão, porém, procuraremos situar o
leitor, apresentando e caracterizando a obra escolhida para o estudo.
O presente texto contempla, ainda, seção interessada em cumprir
um segundo objetivo: tecer aproximações entre a obra literária e textos
teóricos vinculados à História. Nesse exercício, dois importantes traba-
lhos historiográficos são cotejados com A guerra não tem rosto de mulher,
permitindo discutir sobre o apagamento das mulheres, bem como sobre o
contexto em que as personagens contempladas por Svetlana Aleksiévitch
foram socializadas. As obras teóricas privilegiadas são, respectivamente,
Minha História das Mulheres, de Perrot,141 e Mulher, Estado e Revolução, de
Wendy Goldmann,142 ambas reconhecidas e bastante referenciadas pelos
historiadores.

140 Entre os diversos prêmios que a autora conquistou destaca-se: Témoin du Monde
(Paris) de 1999; Melhor Livro sobre Política do Ano de 1998, da Fundação Friedrich Ebert
(Bremen); Andrei Sinyavsky de 1997 (Moscou), além do Nobel de Literatura em 2015.
141 Perrot (2017).
142 Goldmann (2014).

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Nas considerações finais, os objetivos e reflexões desenvolvidas ao


longo deste trabalho são retomados e seus limites são identificados. Cabe
destacar que se trata de um trabalho de caráter ensaístico, cuja pertinência
reside no intuito de contemplar literatura, gênero e História a partir de
uma obra emblemática, cujo caráter documental, que extrapola a lite-
ratura, é comumente confundido com pesquisa vinculada ao campo da
História oral.

1. A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER:


CARACTERIZAÇÃO E DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO

O livro A guerra não tem rosto de mulher, originalmente escrito em 1985,


é composto por uma série de relatos de mulheres que vivenciaram a linha
de frente da Segunda Guerra Mundial. O trabalho de coleta dos relatos se
estendeu ao longo de sete anos, nos quais a maioria dos encontros se dava
através de visitas às casas dessas mulheres, na época já em idade avançada.
Tais relatos foram transcritos, recortados e inseridos em capítulos para
compor um texto literário que, à primeira vista, não apresenta grandes
interferências por parte da autora.
Ainda que alguns homens tenham contribuído com significativos
pontos de vista, a densa maioria das perspectivas sobre a guerra corres-
ponde à experiência das próprias mulheres combatentes. O roteiro utili-
zado por Svetlana Aleksiévitch no momento da coleta de dados orais não
nos é apresentado. Contudo, uma leitura atenta da obra permite perceber
que as entrevistadas foram instigadas a falar sobre os horrores da guerra,
sobre as singularidades de suas vivências em relação aos homens, bem
como sobre a presença de amor romântico ao longo dos anos em que
combateram. Esses são os assuntos que compõem boa parte das falas se-
lecionadas pela autora.
Como resultado, o trabalho documenta a guerra sob pontos de vista
até então inexplorados, evidenciando o protagonismo das soviéticas. Em-
bora preencha lacunas que a própria historiografia ainda não deu conta,
matizando a história tradicional, é importante destacar que o trabalho
está mais próximo do jornalismo, área de formação da autora, do que de
uma produção vinculada ao campo da História. Nesse sentido, é interes-

117
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

sante notar que o texto tem sido analisado por autores como Gonçalves
e Loureiro,143 os quais procuram identificar os limites entre literatura e
jornalismo, destacando a importância do jornalismo literário enquanto
uma proposta contra-hegemônica.
Sobre a voz da autora, pode ser notada em momentos pontuais, na
parte introdutória: “A história relatada por uma testemunha ou por um
participante que ninguém notou. Sim, é isso que me interessa, é isso que
eu gostaria de transformar em literatura [...]”.144 O trecho destacado fun-
ciona como um indício de que a autora manipulou o material reunido
para provocar tensionamentos que não são neutros, já que pensados para
atender a determinado objetivo.
Conforme destacado pelos pesquisadores Emerson Gonçalves e Ro-
bson Loureiro,145 o livro contempla assuntos que são ignorados pelo Oci-
dente, bem como aspectos da história que eram (e ainda são) sensíveis aos
soviéticos. Ao optar por incluir tais relatos, Aleksiévitch nos fornece pis-
tas sobre seus posicionamentos políticos no momento em que elaborou
a obra literária. Nesse sentido, é pertinente que os leitores se perguntem
em que medida a voz da autora se confunde e/ou se sobressai em relação
às vozes das personagens através desse exercício de privilegiar alguns as-
pectos polêmicos e de, possivelmente, suprimir outros.
Entre as entrevistadas contempladas, destacam-se as senhoras que
atuaram na guerra na faixa dos 18 anos. Muitas delas se alistaram ain-
da mais jovens, antes mesmo de terem completado os estudos básicos
e terem a oportunidade de acumular vivências fora do contexto fami-
liar. O recorte selecionado também permite perceber que as mulheres
assumiram diversas funções e cargos, desempenhando desde atividades
tradicionalmente associadas ao universo feminino, tais como lavadeiras,
cozinheiras e enfermeiras, quanto atividades que seriam do universo mas-
culino – atuando, por exemplo, como tanquistas, atiradoras, pilotos de
avião, motoristas, mecânicas e como responsáveis por minas. Todas, con-
forme consta no texto, se alistaram com a intenção de defender a pátria.

143 Gonçalves e Loureiro (2018).


144 Aleksiévitch (2016, p. 18).
145 Gonçalves e Loureiro (2018).

118
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Parte substancial dos seus relatos demonstra os sucessivos esforços


por parte dos homens para impedir a atuação das mulheres na linha de
frente. Nesse sentido, é pertinente destacar que a obra contempla trechos,
de homens e de mulheres, que documentam tentativas de enviar as jovens
de volta para o contexto doméstico dos seus lares ou para cargos alheios
ao front de batalha:

Uma vez duas meninas, comandantes de um pelotão de sapado-


res, se apresentaram; algum idiota do departamento pessoal as en-
viou e eu as mandei de volta na hora. Ficaram muito chateadas,
queriam ir para a linha de frente e fazer as passagens de mina.

Por que o senhor as mandou de volta?

Por uma série de motivos. Primeiro, eu já tinha um número su-


ficiente bons sargentos que podiam cumprir a função para a qual
elas tinham sido enviadas; segundo, eu achava inútil ter mulheres
na linha de frente. No inferno. Bastávamos nós, homens.146

Também há menções sobre represálias por parte dos homens: vaias,


deboches, bem como o não reconhecimento da autoridade daquelas que
atuaram em cargos de alta patente. Nesse sentido, o conteúdo da obra
evidencia algumas das assimetrias, em vigência no período, entre os gê-
neros feminino e masculino. Na medida em que as mulheres entrevista-
das relataram ter recebido menor reconhecimento pelos trabalhos desem-
penhados, pode-se afirmar que tais assimetrias também se perpetuaram
no pós-guerra. Entre outros aspectos, denunciam ter recebido menores
quantidades de medalhas (especialmente as que desempenharam ativi-
dades femininas), dificuldades para casar, dificuldades para constituir fa-
mília e se inserir na sociedade, uma vez que não eram mais vistas como
mulheres, já que haviam desempenhado atividades que as teriam mascu-
linizado perante os olhos da sociedade. Assim, não é incorreto afirmar
que foram marginalizadas e estigmatizadas enquanto os homens, ao con-
trário, puderam se beneficiar do status de ex-combatente.

146 Aleksiévitch (2016, p. 116).

119
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

O conteúdo da obra, contudo, é complexificado e matizado por re-


latos pontuais de homens e de familiares das moças que souberam valo-
rizar a contribuição das mesmas e por relatos de mulheres conseguiram
constituir família:

Que mulher é essa que não só salvava, fazia curativos, mas ela pró-
pria atirava e bombardeava? Matava homens... Estavam interessados
em saber se eu tinha me casado. Tinham certeza que não. De que
era solteira. E eu ria: “Todos trouxeram troféus da guerra, eu trou-
xe um marido. ‘Tenho uma filha. Agora já estou com netos” [...].
Nosso comandante de batalhão se apaixonou por mim no front.147

Ao reunir relatos verídicos, A guerra não tem rosto de mulher pode ser
entendida – após essa discussão prévia – como um documento com po-
tencial para elucidar lacunas historiográficas, bem como para ser com-
plexificado pelas produções historiográficas. Esses são movimentos que
tentaremos realizar na próxima seção. Antes, contudo, cabe ressaltar que,
por tratar de questões ainda vigentes nas sociedades patriarcais, a produ-
ção literária permite que mulheres de diferentes culturas da atualidade se
identifiquem com ele.

2. DIÁLOGO ENTRE A OBRA LITERÁRIA E PRODUÇÕES


HISTORIOGRÁFICAS VINCULADAS À HISTÓRIA DAS
MULHERES

A inserção das mulheres na História, enquanto disciplina acadêmica,


só foi possível após movimento historiográfico iniciado pelos Annales em
1929. Conforme apontado por Soheit, Soares e Costa, ainda que não te-
nha destinado grande espaço aos estudos de gênero, a revista dos Annales
colocou

[...] abertamente questões concernentes aos modos de análise dos


papéis sexuais - matéria da qual a revista tem frequentemente se

147 Aleksiévitch (2016, p. 158).

120
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ocupado -, e de suscitar indagações quanto às formas pelas quais


uma certa historiografia recente pode apropriar-se do campo de
estudo do masculino e do feminino.148

A propulsão da História das Mulheres ocorreu mais tarde, na década


de 1970, a partir da eclosão do movimento feminista. De lá para cá, di-
versas produções historiográficas interessadas na perspectiva das mulheres
(ou na falta delas), nos papéis de gênero e nas desigualdades entre homens
e mulheres dentro das sociedades patriarcais foram elaboradas, consoli-
dando um novo campo de estudos.
Embora não possa ser entendido como trabalho historiográfico, a
obra literária A guerra não tem rosto de mulher converge com discussões feitas
pelas historiadoras vinculadas à História das Mulheres e, de modo geral,
aos estudos de gênero. Nesse sentido, consideramos pertinente elencar
duas importantes produções historiográficas que ajudam a pensar sobre as
motivações de Aleksiévitch ao escrever e sobre o conteúdo do seu texto.
Entre os motivos que explicam a preocupação da bielorrussa em ou-
vir combatentes de guerra para, assim, construir uma narrativa sob um
ponto de vista inexplorado, destaca-se sua relação com as histórias que
escutou na infância. O contato com o choro e cantos das mulheres da sua
vida na guerra alimentaram a sua imaginação.149 Ao perceber que a versão
da história contada nos livros não contemplava a perspectiva por ela co-
nhecida, Aleksiévitch assumiu o compromisso de matizar a história, ex-
plorando as experiências daquelas que foram silenciadas e invisibilizadas.
Nesse sentido, as motivações da jornalista e escritora vão ao encontro
do que Michele Perrot discute amplamente em Minha História das Mu-
lheres. Segundo a historiadora, a falta de perspectiva feminina ao longo
dos tempos é uma constante. Parte desse fenômeno, que ela denomina
de “apagamento das fontes”,150 está relacionado com o fato de as mulhe-
res historicamente terem sido privadas dos espaços públicos, bem como
tido pouco acesso e incentivo à educação. Socializadas em uma estrutura

148 Soihet, Soares & Costa (2001, p. 8).


149 Aleksiévitch (2016, p. 12).
150 Perrot (2017, p. 16-18).

121
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

patriarcal, foram condicionadas ao contexto doméstico, sem os recursos


necessários para elaborar e perpetuar seus pensamentos e perspectivas.
As tentativas de apagar da História as soviéticas que atuaram na guer-
ra são evidenciadas em diferentes momentos de A guerra não tem rosto de
mulher. Estão presentes, por exemplo, nas passagens que versam sobre as
medalhas, as quais não podem estar em destaque nas suas casas e nas suas
roupas, devendo, antes disso, ser guardadas e esquecidas:

Depois da guerra, a vontade era de esquecer o mais rápido possí-


vel. Eu e minha irmã tivemos ajuda do nosso pai. Meu pai era um
homem sábio. Pegou nossas medalhas, ordens, agradecimentos do
comandante, escondeu e disse: ‘A guerra aconteceu, vocês com-
bateram. Agora esqueçam. A guerra já foi, agora começa outra
vida. Calcem sapatos. Vocês são moças bonitas. Precisam estudar,
precisam se casar (Zinaída Vassílievna).151

Complementa e complexifica a citação acima destacada o trecho re-


ferente à fala de outra ex-combatente:

Depois da guerra eu trabalhava como diretora de uma fábrica de


pão. Fui a uma reunião, e a diretora de um conglomerado, tam-
bém mulher, viu minhas medalhas e falou na frente de todos: ‘Por
que está usando isso, como se fosse um homem?’. Ela mesma usa-
va uma medalha de trabalho, trazia sempre na jaqueta, mas mi-
nhas condecorações de guerra não a agradavam por algum moti-
vo. Quando ficamos a sós na sala, contei tudo sobre a Marinha,
ela ficou incomodada; mas aí perdi a vontade de usar as medalhas.
E agora não as uso mais. Mas tenho orgulho (Podvichenskaia).152

Para além da preocupação com o apagamento das mulheres nas fon-


tes, é interessante destacar que tanto Aleksiévitch quanto Perrot se co-
locam ao mesmo tempo como escritoras e personagens da história. En-

151 Aleksiévitch (2016, p. 153).


152 Aleksiévitch (2016, p. 102).

122
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quanto Aleksiévitch mistura a sua voz com as das combatentes – através


da seleção, recorte e organização dos relatos na obra, atingindo objetivos
específicos – Perrot afirma que escrever a história das mulheres em um
momento de grandes rupturas torna-a ao mesmo tempo “testemunha e
atriz”.153
Uma segunda obra historiográfica que dialoga com A guerra não tem
rosto de mulher é o trabalho desenvolvido pela historiadora Wendy Gold-
man, intitulado Mulher, Estado e revolução.154 Trata-se de uma pesquisa in-
teressada na União Soviética no período logo após a Revolução de 1917,
importante para nosso estudo por elucidar aspectos que atravessam o
conteúdo dos relatos das protagonistas do texto literário. O enfoque da
pesquisa de Goldman tem potencial para evidenciar os possíveis motivos
pelos quais os bolcheviques não conseguiram romper com as desigualda-
des entre homens e mulheres, ainda que elas tenham sido tema de suas
teorias e estratégias rumo a uma nova sociedade. Entre os aspectos con-
templados em Mulher, Estado e revolução que podem ser cruzados com o
conteúdo da obra literária em discussão, destacamos a desvalorização do
trabalho doméstico.
Conforme apontam os relatos coletados e destacados por Aleksiévi-
tch, moças que atuaram como lavadeiras passaram fome, estiveram pri-
vadas de dormir e receberam poucos recursos para a realização de suas
atividades, o que acarretou mais sobrecarga. Não raro, perdiam as unhas
das mãos lavando as roupas sujas de sangue dos combatentes. Ao findar a
guerra, contudo, nem parte delas teria sido condecorada se não fossem os
esforços de quem as acompanhou de perto durante o episódio. O mesmo
aconteceu com as padeiras.
Nos moldes do que ocorre nas mais diferentes sociedades patriarcais,
em guerra ou não, as atividades domésticas desenvolvidas pelas soviéticas
durante o episódio foram invisibilizadas, assim como quem as realizou.

Terminei o magistério… Quando recebi o diploma, a guerra já


tinha começado. Por causa da guerra, não nos encaminharam para

153 Perrot (2017, p. 13).


154 Goldman (2014).

123
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

um trabalho, nos mandaram para casa. Cheguei em casa, e alguns


dias depois me chamaram do centro de alistamento. Minha mãe
não me deixou ir, claro, eu ainda era jovem, tinha só dezoito anos:
‘Vou mandar você para a casa do meu irmão, digo que não está
aqui’. Eu disse: ‘Mas eu sou do Komsomol’. Nos reuniram no
centro de alistamento, isso e aquilo, disseram que precisavam de
mulheres para as padarias do front (Kulakova).155

Era um trabalho muito duro. Tínhamos oito fornos de ferro. Che-


gávamos em um povoado ou cidade destruída e os montávamos.
Fornos prontos, precisávamos de lenha, uns vinte ou trinta baldes
de água, cinco sacos de farinha. Éramos meninas de dezoito anos
e carregávamos sacos de farinha de setenta quilos. Agarrávamos
os sacos em duas e levávamos. Ou colocávamos quarenta bisnagas
de pão na bandeja. Eu, por exemplo, não conseguia levantar. Dia
e noite nos fornos, dia e noite. Amassava uma bacia de massa e já
precisavam de outras. No meio do bombardeio, continuávamos
assando pão… (Kulakova)156

Conforme explica Wendy Goldman,157 os bolcheviques do pós-revo-


lução demonstravam preocupação com a questão do trabalho doméstico,
considerado grande atraso na vida das mulheres. Por esse motivo, ousa-
ram propor a criação de creches, lavanderias e restaurantes comunitários,
inteiramente de responsabilidade do Estado. Tais propostas permitiriam
que as mulheres se profissionalizassem, garantindo sua emancipação em
relação aos seus familiares e maridos. É interessante notar, contudo, que
a redistribuição do trabalho doméstico no núcleo familiar não chegou a
ser cogitada:

Os bolcheviques não desafiaram os homens a compartilharem o


“trabalho feminino”, mas buscaram simplesmente transferir as
tarefas para o domínio público. Apesar de frequentemente afir-

155 Aleksiévitch (2016, p. 217).


156 Aleksiévitch (2016, p. 217).
157 Goldman (2014).

1 24
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marem que os homens deviam “ajudar” as mulheres em casa, não


estavam profundamente preocupados com redefinir os papeis de
gênero dentro da família.158

Uma vez que o trabalho doméstico nunca foi efetivamente transfe-


rido para o Estado – por uma série de questões discutidas pela historia-
dora ao longo do texto – e nem redistribuída dentro do núcleo familiar,
a opressão feminina se reinventou, constituindo-se em uma permanên-
cia histórica que atravessa os relatos das combatentes da Segunda Guerra
Mundial. Parte do fracasso da libertação feminina reside, justamente, na
superficialidade com que a questão foi tratada no pós-revolução de 1917,
sem a intenção de promover a divisão igualitária do trabalho doméstico
entre mulheres e homens.
De modo geral, Mulher, Estado e revolução aponta que a desvalorização
do trabalho doméstico também é a desvalorização das próprias mulhe-
res. Nesse sentido, é sintomático que muitas das senhoras que prestaram
depoimentos para Aleksiévitch tenham recusado cargos alheios ao front
de batalha. Ao assumirem funções tradicionalmente exercidas pelos ho-
mens, reivindicavam o mesmo reconhecimento e prestígio que eles. Na
prática, porém, essas combatentes também foram invisibilizadas, desmo-
ralizadas e/ou estigmatizadas.
O depoimento de um dos homens entrevistados pela autora de-
monstra que, após a guerra, alguns deles até reconheceram a contribui-
ção feminina, mas preferiram escolher mulheres que não combateram
para constituir matrimônio: “[...] eu iria com uma mulher dessas numa
missão de batedor, mas não me casaria com ela. Pois é... Estamos acostu-
mados a pensar nas mulheres como mãe e noiva. A bela dama, enfim”.159
Cabe destacar, ainda, que enquanto a obra literária estudada funciona
como uma reunião de documentos coletados oralmente sobre o prota-
gonismo feminino, a produção historiográfica de Goldman analisa do-
cumentos tradicionais sob a ótica feminina. Desse modo, os trabalhos de
ambas as autoras também estabelecem diálogos referentes aos esforços e

158 Goldman (2014).


159 Aleksiévitch (2016, p. 117).

125
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

estratégias para ouvir as vozes dissonantes, as quais foram sucessivamen-


te silenciadas e apagadas da História. É nesse sentido que o trabalho de
Goldman também vai ao encontro das reflexões feitas por Perrot.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de discorrer sobre a emblemática obra literária A guer-


ra não tem rosto de mulher, aproximando seu conteúdo do campo da Histó-
ria das Mulheres e dos estudos de gênero em geral, separamos o corpo do
texto em duas partes. A primeira teve como objetivo caracterizar a obra
literária para, em seguida, apresentar seu potencial para as discussões sobre
gênero na sociedade soviética. Entre outros aspectos, procuramos destacar
que o texto literário não é neutro, já que foi elaborado a partir de objetivos
específicos e através das lentes da escritora. Nesse sentido, a própria voz de
Alekiévitch parece estar imbricada nas vozes das suas protagonistas.
Ainda que os relatos que compõem o livro em discussão tenham sido
coletados vários anos após a guerra, o que pode alterar a percepção das
combatentes sobre as experiências vividas, destacamos que vários deles
convergem e apontam para assimetrias de gênero entre homens e mulhe-
res. Nesse sentido, os relatos privilegiados por Aleksiévicth apresentam
potencial para serem analisados enquanto documentos, podendo ser pen-
sados à luz da História das Mulheres e dos estudos de gênero em geral.
Na medida em que apresentam perspectivas únicas e inexploradas, tais
relatos também têm o potencial de matizar a História tradicional sobre a
Segunda Guerra Mundial.
Cabe destacar, contudo, que o presente texto não teve como intuito
esgotar o potencial de A guerra não tem rosto de mulher, tecendo densas crí-
ticas prévias ao livro para, em seguida, analisá-lo e compará-lo com outras
documentações sobre o mesmo contexto. Nesse sentido, diversos são os
caminhos que essa reflexão inicial pode tomar no futuro, complexifican-
do as discussões apresentadas.
Embora na última seção tenhamos privilegiado o diálogo da obra
literária com Perrot e Goldman,160 A guerra não tem rosto de mulher também

160 Perrot (2017) e Goldman (2014).

126
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pode ser pensada à luz de outras discussões vinculadas ao campo da His-


tória das Mulheres e aos estudos de gênero em geral. Entre esses estudos,
podem-se destacar aqueles que versam sobre papéis de gênero nas socie-
dades patriarcais.
Nesse sentido, é interessante destacar que estereótipos de gênero fo-
ram reproduzidos e, talvez, até mesmo reforçados pelas mulheres sovié-
ticas que atuaram na Segunda Guerra Mundial, conforme evidenciado
por seus relatos. É o caso das enfermeiras que assumiram uma postura
extremamente carinhosa com os homens feridos, uma vez que – mais do
que cuidar da saúde – oferecer um “consolo feminino” era valorizado e
esperado delas.
Do mesmo modo, o desejo por permanecerem femininas e bonitas
para os homens, apesar dos esforços para isso, também aparece nos relatos,
indicando que os padrões estéticos, comuns nas sociedades patriarcais,
não foram nem rompidos e nem amenizados durante a guerra. Um dos
depoimentos mais marcantes, no que se refere à pressão estética, é o re-
lato da senhora que lembra ter recusado comida para permanecer magra:
“E eu, bem quietinha para ela não me visse, quebrei os dois ovos – eram
pequenos – e limpei minha bota. Claro, queria comer, mas meu lado fe-
minino falou mais alto: queria ficar bonita”. (Vólkova).161
Por outro lado, há trechos que demonstram que os papéis de gênero
também puderam ser desafiados por algumas das mulheres, não só por
aquelas que desempenharam atividades do “universo masculino”, mas
também pelas que ousaram sentir prazer em matar os inimigos: “Quero
me vingar. Quero acertar as contas pela morte do meu pai”. “Queria
atirar... Queria matar... Queria atirar...”.162
A obra abarca, ainda, episódios em que as mulheres agiram de manei-
ra arbitrária para a “natureza” da mulher-mãe, privilegiando a pátria em
detrimento da segurança dos seus próprios filhos. Conforme destacado no
texto, algumas usaram as crianças para acessar locais com barreiras feitas
pelos alemães, viabilizando a aquisição de medicamentos para os soldados:

161 Aleksiévitch (2016, p. 241).


162 Aleksiévitch (2016, p. 151).

127
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Dizem que o instinto materno é mais forte do que tudo. Não, uma
ideia é mais forte! E a fé também é mais forte! Eu acho... Até estou
convencida de que, se não existisse essa mãe, essa menina, e se elas
não tivessem levado essa mina, não teríamos vencido. Sim, a vida é
uma coisa boa. Maravilhosa! Mas há coisas mais preciosas...163

Também há relatos de mulheres que deixaram os filhos aos cuidados


de familiares e/ ou vizinhos para poderem combater, apesar da conotação
negativa desse ato perante a sociedade.
Como o livro em discussão é atravessado por aspectos que eviden-
ciam assimetrias entre homens e mulheres na sociedade soviética do con-
texto da Segunda Guerra Mundial, ele também se beneficiaria dos textos
teóricos interessados nas desigualdades de gênero, na neutralidade do gê-
nero,164 bem como nas masculinidades,165 podendo servir, inclusive, para
complexificar tais estudos.
Embora tímidas, as reflexões privilegiadas nesse ensaio evidenciam a
pertinência de se pensar a produção literária A guerra não tem rosto de mulher
a partir de trabalhos acadêmicos diversos sobre gênero e História das Mu-
lheres. Nesse sentido, é tanto viável quanto pertinente que os relatos orais
recolhidos, transcritos e reunidos na obra sejam pensados sob à luz das aná-
lises desenvolvidas nos últimos anos, bem como cruzados com outras fontes
documentais, respondendo a questionamentos que ainda não foram feitos.

REFERÊNCIAS

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São


Paulo: Companhia das Letras, 2016.

CONNEL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: Versus,


2016.

163 Aleksiévitch (2016, p. 313).


164 Ver Soihet, Soares & Costa (2001).
165 Ver Connel (2016).

128
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GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução: política familiar e


vida social soviética, 1917-1936. São Paulo: Boitempo: Iska Edições,
2014.

GONÇALVES, Emerson Campos; LOURERO, Robson. Limites en-


tre jornalismo e literatura em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de
Svetlana Aleksiévitch: uma análise do narrador a partir do conceito
benjaminiano de erfahrung. Revista Via Atlântica, São Paulo, n.
34, 193-2010, dez. 2018.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Con-


texto, 2017.

SOIHET, Rachel; SOARES, Rosana; COSTA, Suely Gomes. A Histó-


ria das Mulheres. Cultura e Poder das Mulheres: Ensaio de Histo-
riografia. Revista Gênero, Niterói, v. 2, n. 1, 2001.

129
DONA GUIDINHA DO POÇO – UMA
VISÃO ALÉM DO CÂNONE SOBRE
PAPÉIS DE GÊNERO E RELAÇÕES
CONJUGAIS NO BRASIL DO
SÉCULO XIX
Marcia Kern

“Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho” já anunciava Machado de Assis,166 dando voz a Brás Cubas.
Quase um século e meio depois, essa continua sendo, cada vez mais, re-
gra e tormenta que assola qualquer abordagem acadêmica que se pretenda
séria. Essa sensação perturbadora e incômoda de manutenção do foco e
estreitamento do olhar, numa careta míope, que mais uma vez remete ao
Bruxo do Cosme Velho, é e sempre será familiar ao ambiente da pesqui-
sa. A inesgotável gama de acesso à informação, marca deste nosso tempo,
impõe a fixação de parâmetros definidos nas mais diversas áreas de estu-
do. Assim, o foco deste artigo situa-se na análise dos papéis de gênero no
contexto das relações conjugais no momento histórico conhecido como
século do romance.
Para a abordagem que aqui se pretende fazer, vale lembrar que esse
período foi marcado pela edição do Decreto Legislativo nº 181/1990, pri-
meira legislação civil a respeito do casamento, que passou a ser visto sob
uma perspectiva privada e considerado “não só uma instituição moral e

166 Machado de Assis (1994, p. 516).

130
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social, mas também um contrato que deve cercar-se das maiores garantias
para a sua eficácia”.167 Esse momento, em que as mulheres passam a ter
mais acesso à leitura e, timidamente, passam também a produzir escritos,
é marcado pela produção de inúmeros clássicos da literatura nacional. Há,
nesse ambiente, um leque de infinitas possibilidades de estudo e obser-
vação relativamente à construção da literatura nacional, representações
sociais e culturais. E, nesse sentido, o distanciamento cronológico pro-
porciona uma visão inigualável a respeito das representações de gênero,
claramente presentes nos romances da época. A escolha por obras aptas a
expressar o pensamento em um dado momento histórico, ou sobre algum
tema o qual se pretenda estudar, passa, inevitavelmente, pelos clássicos, na
medida em que estes

[...] são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os tra-
ços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou
mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).168

Ajusta-se, naturalmente, a lente para Machado de Assis, maior escri-


tor brasileiro de todos os tempos e, mais uma vez se reduz a abordagem
para Dom Casmurro, sua obra memorável. Em seguida, num movimento
quase natural, o estudo seguiria ao encontro da figura de Capitu, perso-
nagem objeto de inúmeros estudos, principalmente no que diz respeito a
questões de gênero.
Justo no ponto relativo à escolha do escritor, obra e personagem para
o presente estudo, é que me permito a ressalva: a notoriedade de Dom
Casmurro, resultado de seu inegável valor artístico, torna o romance re-
presentativo de uma determinada época. A escolha pelo cânone, contu-
do, é apenas uma das possíveis formas de olhar a história da literatura e
a História presente na literatura. Nessa perspectiva, o importante é que
a literatura seja o palco onde se encontram as representações que serão
objeto do estudo acadêmico. Seguindo além do clássico, ou do cânone,

167 Soares (1895, p. 19).


168 Calvino (2007, p. 11).

131
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

existem outros palcos quiçá até mais interessantes e absolutamente neces-


sários para uma abordagem que se pretenda histórica e sistemática. Nesse
sentido, Franco Moretti propõe que a História da literatura mundial não
deve se limitar ao mero estudo dos clássicos. Segundo o autor, é preciso
que se tenha olhar além do cânone, ou distant reading, em oposição ao close
reading, ou leitura cerrada. Segundo Moretti, a distant reading “nos permite
focalizar unidades muito menores ou muito maiores que o texto: expe-
dientes, temas, tropos – ou gêneros e sistemas”.169
Só assim, considerando um tema específico ou tropo, é possível
compreender o sistema em seu conjunto. Portanto, uma abordagem que
se queira histórica, partindo do tema dos papéis de gênero e relações con-
jugais no final do século XIX, pode e deve ter em conta a existência, em
dado momento, de todo um universo literário, produzido não só no cen-
tro urbano. Há que considerar para tanto, no caso do Brasil do final do
século XIX, a hipótese de existir algo a dizer sobre as relações conjugais
também na literatura dita miúda do mundo rural. Nesse raciocínio, Dona
Guidinha do Poço se encaixa como uma luva.
A narrativa, tida como um dos romances rurais representativos do
período da Primeira República, foi escrita pelo abolicionista Manuel de
Oliveira Paiva entre 1891 e 1892, e só foi publicada em 1952, por ini-
ciativa de Lúcia Miguel Pereira. A reconhecida biógrafa de Machado de
Assis, justamente por seu envolvimento com a historiografia da literatu-
ra nacional, descobriu a existência de fragmentos do romance durante
a leitura da Revista Brasileira por dever de ofício, já que era material de
pesquisa para a construção de História da Literatura Brasileira – prosa de ficção:
de 1870 a 1920. Os primeiros capítulos de Dona Guidinha do Poço haviam
sido publicados em forma de novela nesse periódico, restando a história
interrompida pelo fim da revista.
Traçado esse panorama, imagine-se o seguinte: se Machado de Assis,
já reconhecido pelo público leitor ao tempo em que produziu sua litera-
tura, evidenciou reiteradas vezes ter consciência de que escrevia para um
pequeno universo de brasileiros alfabetizados, o que se poderia esperar

169 Moretti (2000, p. 176).

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sobre a recepção de Guidinha do Poço170 que, além de escrito no sertão, se


limitou a uma publicação folhetinesca inacabada? Lucia Miguel Pereira,
no célebre prefácio à primeira edição, sustenta a importância que deveria
ser atribuída ao romance, que ocupa lugar destacado no panorama forma-
tivo da literatura nacional:

Lembrarei apenas ainda um conceito de T. S. Elliot: “Os monu-


mentos existentes dispõem-se segundo uma ordem ideal que se
modifica pela introdução da nova (realmente nova) obra de arte.
Completa antes da vinda da novidade, essa ordem só se manterá
em seguida se se alterar toda, ainda que ligeiramente; assim se rea-
justam as relações, proporções e valores de cada obra em função
do todo”. Não virá D. Guidinha do Poço alterar a hierarquia da
nossa literatura? Quanto a mim, não duvido de que isso se dê,
de que abram alas para deixar passar essa novela muitos romances
anteriores, e dos mais famosos. Já tive a fortuna de descobrir um
livro a bem dizer desconhecido de Machado de Assis, Casa Velha;
descoberta de machadeana pesquisadora que nada acrescentava à
glória do nosso maior escritor. Ter contribuído para a publicação
deste é satisfação muito mais profunda: tornar conhecido um fic-
cionista como Manoel de Oliveira Paiva será o melhor serviço que
poderei prestar às letras no Brasil.171

Passados quase setenta anos da primeira edição, são raros os aponta-


mentos teóricos a respeito do romance. Àqueles tecidos por Lúcia Miguel
Pereira, não só no prefácio citado, como em capítulo específico a respeito
do autor em História da Literatura Brasileira, somam-se alguns poucos en-
saios e estudos acadêmicos. Neles se observam abordagens ora sob o pris-
ma da representação do sertão, ora analisando a personagem Guidinha e
sua significação enquanto figura feminina, ora tendo em conta a narrativa
de uma história de amor e traição.

170 Proença Filho (1997).


171 Pereira (1952, p. 14).

133
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Dona Guidinha do Poço, se verá a seguir, é a mais nítida amostra de


que, mesmo na literatura miúda, produzida fora do centro e praticamente
esquecida, é possível encontrar a todo momento a representação dos pa-
péis de gênero e das relações conjugais no Brasil do final do século XIX.
A partir da sua leitura, é possível observar a maneira como Igreja e socie-
dade se faziam presentes na vida privada, como reguladores das relações
conjugais, assim como dos papéis de gênero atribuídos às mulheres. O
romance foi escrito enquanto o autor se recolheu em Quixeramobim,
interior do Ceará, em busca de ares terapêuticos para a cura da tubercu-
lose. Lá, conheceu a história da rica fazendeira conhecida como Maria
Reginaldo de Oliveira Barros, que por volta de 1856 havia sido condena-
da como mandante da morte do marido, o coronel Domingos Victor de
Abreu e Vasconcelos.
A narrativa de Dona Guidinha do Poço seria então baseada nesses fatos
reais, como se vê em detido confronto relativamente aos registros docu-
mentais da época, presentes no estudo À margem de Dona Guidinha do Poço,
do historiador cearense Ismael Pordeus.172 Documentos oficiais, depoi-
mentos e pequenos apanhados como cartas e bilhetes compõem, junto
com uma fala em discurso indireto livre, ora letrada, ora marcadamente
local, uma grande colcha de retalhos arrematada por causos e cantigas
do sertão. A chamada intertextualidade, estudada por Mikhail Baktin,
está presente a cada página do romance, numa construção tipicamen-
te dialógica, ou seja, “como um tipo de texto em que as diversas vozes
da sociedade estão presentes e se entrecruzam, relativizando o poder de
um discurso monológico, construído por uma única voz condutora”.173
Esse contexto é o espaço ideal para quem pretende conhecer a socieda-
de através da sua história e através da literatura. Além disso, para quem
apresenta familiaridade com a leitura de processos judiciais, o andamento
do romance deixa a nítida impressão de que o feito criminal instaurado
por ocasião do homicídio do coronel Domingos foi relevante fonte de
inspiração para o autor que, casualmente, não era bacharel em Direito,
destino tão comum para os filhos das “boas famílias” da época. Tam-

172 Pordeus (2004).


173 Kallarrari (2018, p. 176).

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bém seria possível afirmar que o estranhamento causado pelas citações


de documentos oficiais e pela flutuação da linguagem entre o letrado e o
absolutamente coloquial, que a crítica literária aponta como um defeito
da narrativa, pouco ou nada incomodam o leitor acostumado à inóspita
consulta diária das páginas de um processo criminal. Seja no século XIX,
seja em pleno século XXI, é possível encontrar nas peças de uma ação pe-
nal ou de um pedido de divórcio depoimentos ricos em detalhes, colhidos
com precisão coloquial convivendo lado a lado com certidões, escrituras
e a fala letrada dos bacharéis que ali atuam. E só quem já tentou, sem o
êxito pretendido, escrever literatura a partir das informações e depoimen-
tos de um processo é capaz de medir a dificuldade dessa tarefa e atribuir
a verdadeira distinção ao resultado artístico logrado por Oliveira Paiva.
Os poucos escritos sobre Dona Guidinha do Poço não raras vezes tecem
comparação entre o romance de Oliveira Paiva e Dom Casmurro, numa
leitura que, como em regra acontece, acaba tendo apenas o cânone como
parâmetro. Um dos paralelos traçados diz com as personagens femininas
das duas narrativas. Tanto Guidinha quanto Capitu são consideradas per-
sonagens que ocupam uma posição ativa dentro das relações representa-
das, nas quais são protagonistas, mesmo que só a segunda tenha merecido
figurar como título da obra. Tanto em Dom Casmurro quanto no romance
de Oliveira Paiva se tem uma história em que a grande tensão está justa-
mente colocada na hipótese de adultério cuja prática é atribuída à mulher.
Em ambos os casos, não há espaço para a fala feminina. Dom Casmurro é
escrito em primeira pessoa, e sabidamente, constitui um libelo acusató-
rio contra Capitu. Na obra contemporânea, produzida no sertão, não há
espaço para a defesa de Guidinha. Ao longo de toda a narrativa também
não há, à semelhança do cânone machadiano, qualquer momento em que
o adultério feminino seja representado de forma explícita. Por fim, e não
por isso merecendo menos destaque, surge em ambos os romances a co-
gitação do divórcio, em perspectivas distintas e muitíssimo interessantes.
Em Dom Casmurro, o diálogo em que se apresenta a cogitação do divórcio
por Capitu surge já no encaminhamento final do romance, num mo-
vimento apto a demonstrar, quase que à revelia do próprio narrador, a
chamada insuportabilidade da vida em comum, que só muito tempo mais

135
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tarde veio a ser reconhecida como causa ensejadora da chamada separa-


ção judicial. Cansada do ciúme injustificado de Bento Santiago, é Capitu
quem pede a separação: “[…] Não, Bentinho, ou conte o resto, para que
eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a
nossa separação: não posso mais”.174
Num arranjo, descrito como a ida de Capitu para a Suíça, a separa-
ção, em segredo, é levada a efeito. Em Dona Guidinha do Poço, o divórcio
teria sido cogitado pelo marido ante a hipótese de adultério feminino, e
justamente tal cogitação é que teria dado motivo ao homicídio atribuído
à protagonista, destacando, a todo momento, os papéis de gênero repre-
sentados no romance.
Mas voltemos ao sertão. A leitura de Dona Guidinha do Poço eviden-
cia, desde o princípio, a posição social da protagonista cujo patrimônio
se encontra arrolado em documentos trazidos para a construção do texto
literário, característica da forma pouco usual como o autor constrói o
romance. Além disso, a narrativa deixa clara a representação da realidade
histórica do sertão brasileiro, onde as mulheres “muito ricas, ou da elite
intelectual estão nas páginas dos inventários, nos livros, com suas joias,
posses e terras”.175 Lembremos que ser chamada de “senhora, dama, dona
fulana ou apenas dona, eram categorias primeiras”.176 Num contexto em
que o estado de casada permitia à mulher desfrutar de uma condição so-
cial e culturalmente esperada, com imposição natural da ordem masculi-
na, Guidinha teria gozado a sua “vidoca” enquanto solteira. Em antago-
nismo ao ideal de recato feminino, os rapazes que frequentavam sua casa
o faziam

[...] sem dúvida por causa da moça, por via de ser ela de muitas
liberdades, muito amiga de agradar, não poupando nem mesmo as
pequenas carícias que uma donzela, senhora de si, pode conceder
sem prejuízo da sua física inteireza. Aconteceu a uns dois se lhe
apegarem de rijo, porém as respectivas famílias, com a imposição

174 Machado de Assis (2001, p. 193).


175 Falci (2007, p. 241).
176 Falci (2007, p. 241).

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que então os pais ainda abocanhavam, os desviaram: um deles, até


a força bruta, quase amarrado, foi recambiado para Olinda, onde
se ordenou.177

Assim, desde as primeiras páginas, o romance dá conta de que


Guidinha está longe da expectativa de gênero feminino tradicional-
mente imposta e pautada entre outras coisas, pela pureza, delicade-
za e castidade. O contexto reinante, marcado pela imposição do po-
der masculino, aliado à necessidade de controle da linhagem, criava
a crença de que apenas os homens podiam desfrutar livremente dos
prazeres sexuais. Aos homens, não só a liberdade, mas também a va-
riedade sexual era aconselhada, sendo que até mesmo necessitariam de
variedade sexual para a sua saúde.
Não é mera coincidência que essa mulher, destoante do ideal de reca-
to feminino, também fosse descrita na sua aparência de forma muito dis-
tante do ideal da beleza e fragilidade feminina, no qual “o homem tenta
fazer da mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, sexo
forte, ela, o fraco: ele, o sexo nobre, ela, o belo”.178 Guidinha era

[...] feiosa, baixa, entroncada, carrancuda ao menor enfado. […].


Aos catorze anos, quando nossas meninas são feitas de amor e
susto, Guidinha atravessou o impetuoso Curimataú, de margem
à margem, só porque uma outra duvidou. […] Nadava de braça
como os homens, e não como as mulheres que trabalham com as
mãos por debaixo d'água, pelo instinto do peko, e vão assim ba-
tendo com os pés à tona.179

E mesmo num contexto de início de relacionamento, em que o re-


cato e pudor tornavam os encontros insípidos, Guidinha já mostrava ao
que vinha:

177 Paiva (1997, p. 30).


178 Del Priore (2014, p. 72).
179 Paiva (1997, p. 30).

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[...] é certo que o começo do tirano amor é sempre de umas exte-


rioridadezinhas, pontinhas de dotes profundos, que, em faltando,
a mulher parece antes um homem, ou antes um animal sem sexo.
Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das poucas que são
pouco femininas, pouco mulheres, pouco damas, e muito fêmeas.
Mas aquilo tinha artes do Capiroto. Transfigurava-se ao vibrar de
não sei que diacho de molas.180

Guidinha, segundo o narrador, tinha artes do Capiroto, e não é pre-


ciso muito esforço para arriscar que nossa personagem fosse a versão bra-
sileira de Lilith do Midrash, como aliás sempre foram muitas mulheres
pelo simples fato de exercerem seus desejos.
No entanto, dentre todas as características pouco femininas que são
atribuídas à Guidinha, talvez a maior seja a que figura nas entrelinhas e,
portanto, vai além dos modos e da aparência. Mesmo para os padrões da
época, em que abastança era comum entre poucos, a protagonista dispu-
nha de riqueza, poder e vigor, em contraposição ao marido, que

[...] quando a desposara possuía apenas alguns vinténs de seu. Re-


conhecia que para viver com a mulher precisava ter uma certa ha-
bilidade, faculdade essa que lhe era, porém, inacessível. Amara à
Margarida em demasia, creio, e o vigor nervudo e musculento da
herdeira do marinheiro Reginaldo Venceslau era como um moi-
rão a que o Sr. Quinquim se deixava gostosamente sojigar.181

Guidinha dispunha de patrimônio e poder, portando-se diante da


vida de forma livre, numa ousadia que não era permitida às mulheres
daquela época. Aliás, não só daquela época. Mulher, poder e ambição
resultam numa equação cujo resultado não interessava e ainda hoje não
interessa à manutenção de uma perspectiva social e cultural conservadora.
O casamento de Guidinha e Quinquim, ou Margarida e Major Joa-
quim, surge já na abertura, quando se anuncia que a moça se casara pouco

180 Paiva (1997, p. 31).


181 Paiva (1997, p. 33).

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jovem, aos 22 anos, quando já morto o pai Venceslau. A notícia sobre


a união é parcimoniosa, como de regra eram as celebrações na época,
mormente a se considerar o cenário do sertão cearense. Nesse cenário,
chama a atenção que ao mesmo tempo em que dá conta do casamento, o
narrador já cogita o adultério:

Esposando ao Major Joaquim Damião de Barros, uns dezesseis


anos mais avançado que ela na idade, passou a chamar-se Mar-
garida Reginaldo de Oliveira Barros. Se, recebendo o nome do
marido, ela fez tudo o mais que ordena a Santa Madre Igreja, a
Deus pertence.182

A evolução do relacionamento entre os protagonistas é colocada de


forma quase linear e sem maiores sobressaltos a partir do casamento. À
primeira leitura, é possível verificar que não se está tratando aqui de uma
história de amor. As poucas alusões ao sentimento, na fala do narrador,
prestam-se muito mais demonstrar a sua própria inclinação no sentido
de, em defesa do protagonista, deixar claro que Joaquim não se casara
por interesse. É fato que, para além da ficção, as uniões baseadas no afeto
eram raras na época, sendo o casamento uma fórmula cultural e social-
mente aceita como meio de legitimar a procriação e somar ou angariar
patrimônio.
Aliás, ao longo do romance, não se vê qualquer alusão ao amor como
elo entre os protagonistas. O sentimento não está em cogitação nem mes-
mo quando se dá o encontro entre Guidinha e o sobrinho do marido. O
rapaz, suspeito de ter participação na morte do padrasto, encontra nas
terras do tio um lugar seguro para fugir da justiça e recomeçar a vida.
Guidinha o acolhe e dele se aproxima cada vez mais, num movimento
que, em apertada síntese, é o que vai resultar na cogitação de divórcio por
parte de Major Joaquim. Não há, como já se disse, cenas de adultério ex-
plícito. Porém, os encontros entre os possíveis adúlteros e os devaneios de
Guidinha são permeados de sensualidade. A relação entre a personagem
e Secundino surge, nesse contexto, como mera contingência do enfado

182 Paiva (1997, p. 31).

139
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conjugal somado à volúpia natural da personagem que, em nenhum mo-


mento, é mostrada como vítima das circunstâncias ou de arroubos do
coração. A traição acontece num cenário em que a protagonista, apesar
de gozar da aceitação social fruto da riqueza e do estado de casada, não
se comportava de acordo com as expectativas relativamente à condição
feminina. Aliás, no caso da personagem, o instinto materno, cuja ordem
natural relaciona diretamente à condição de casada, era francamente so-
terrado pelo instinto sexual.
A prática do adultério, prevista como crime na legislação brasilei-
ra até 2005, sempre teve tratamento diferenciado quando praticada pelo
marido ou pela mulher. Segundo as Ordenações Filipinas, vigentes no
Brasil até o século XIX, o homem casado dispunha de plena licença para
matar:

Do que matou sua mulher, pô-la achar em adultério: achando o


homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá ma-
tar assi a ella, como o adultero, salvo se o marido for peão, e o
adultero fidalgo, ou nosso desembargador, ou pessoa de maior
qualidade.183

Essa liberdade para que os maridos executassem a pena capital


às mulheres adúlteras foi tecnicamente afastada a partir do Código
Criminal de 1830. À mulher casada que cometesse adultério, seria
imposta pena de prisão com trabalho por um a três anos. Ao homem,
somente seria imposta a pena caso tivesse concubina, teúda e man-
teúda. Ao homem, portanto, era permitida toda espécie de relações
extraconjugais desde que não comprometesse o sustento da família
oficialmente formada.
No clássico L’Amour, Jules Michelet, refletindo o pensamento da
época, assim trata da questão do adultério e das razões pelas quais homens
e mulheres deveriam ser tratados de forma diferente quando da quebra
desse parâmetro de fidelidade conjugal:

183 Brasil (1451).

140
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O adultério da mulher e o adultério do marido são igualmente


culpáveis? Sim, como deslealdade, violação da obrigação. Não em
mil outros aspectos. A traição da mulher tem consequências enor-
mes que a todo homem absolutamente não tem. A mulher não
apenas trai, ela entrega a honra e a vida do marido. […] Ele será
moralmente assassinado todo resto da sua vida, nunca sabendo se
o filho é realmente seu filho, forçado a nutrir e a dotar uma des-
cendência duvidosa […]. É absurdo dizer que a mulher não tem
mais responsabilidade do que o homem […]. É só ela que conser-
va o segredo da religião doméstica, a garantia de todo o futuro. Só
ela é capaz de afirmar a sucessão legítima. Uma mentira por parte
da esposa pode deformar a história durante mil anos […]. Nenhu-
ma punição pode ser suficientemente grave se ela sabe o que faz.184

O destino das adúlteras, quer na história, quer na literatura, passa


pela culpa. Essas mulheres, que ousaram sonhar, desejar ou viver relacio-
namentos fora do casamento são inevitavelmente abatidas pela loucura,
pelo suicídio, pela morte. Culpadas por adultério, caberia a elas sofrer as
penas impostas pelo crime praticado ou, no mínimo, arcar com as conse-
quências do divórcio.
Estranha e coincidentemente, Capitu e Guidinha são mulheres pro-
tagonistas de obras escritas na última década do século XIX que, acusadas
de adultério, reagem à impossibilidade de defesa. Capitu, textualmente,
pede o divórcio, quando já não suporta mais ser acusada de infidelidade
por Bento Santiago. Capitu embarca para a Suíça, e assim a questão é so-
cialmente enfrentada pelo marido/narrador/acusador. Guidinha, por seu
turno, é protagonista de uma história que trata claramente da questão do
divórcio e suas implicações, sobretudo as de cunho moral. O desenrolar
da narrativa evidencia a presença da Igreja e da tradição no cotidiano das
famílias, presença essa que se dá com muito mais força do que eventual
influência da lei, tão incipiente naquele momento histórico.
Quinquim, à primeira suspeita de adultério cogita o divórcio, então
aceito ordinariamente nesses casos pelo Direito Canônico, sem prejuízo

184 Michelet (1859, p. 318-319).

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da pena criminal imposta à mulher, segundo os termos do Código Cri-


minal. Ele vai à cidade a pretexto de uma consulta médica e busca acon-
selhamento junto à autoridade religiosa do local:

Ai chegando, porém, em vez de consultar ao facultativo, foi pedir


garantias para a sua vida ao Chefe de Polícia, e aconselhar-se com
o Padre Brasil a respeito do desquite. O amigo respondeu-lhe às
diversas impertinências: que só aprovava o divórcio não sendo pos-
sível nenhuma conciliação, que neste caso seria mais conveniente
para a tranqüilidade do seu espírito que antes de sentença do juiz
eclesiástico a mulher não podia dispor livremente dos bens, mas
ele sim; que ela tinha direito de pedir em juízo que ele desse ali-
mentos, e o Juiz poderia marcar-lhe uma diária razoável [...].185

Na sequência, a reação de Guida presta-se a evidenciar que os re-


flexos sociais do divórcio sob a alegação de adultério a ela preocupavam
muito mais do que a repercussão financeira do ato, capaz de reduzi-la de
mulher rica e poderosa à mera dependente do marido enquanto tramitas-
se o processo:

Então falava em divórcio? Estava doido, coitado! Divórcio quem


podia requerer seria ela pelos maus-tratos que ele lhe dava. […].
Intentar divórcio contra ela? Por adultério? [...] Que estava sendo
ela então para todo o Ceará, para todo o mundo, que a ruim fama
corre mais que o pensamento, senão uma morixaba? Era mister
uma desafronta capital de semelhante injúria. Questão de ponto
de honra.186

A questão relativa à repercussão socialmente negativa do divórcio


com base no adultério também é evidenciada na fala do marido, ao pon-
derar sobre meios outros de obter a separação de bens e corpos:

185 Paiva (1997, p. 174).


186 Paiva (1997, p. 175).

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– Sim, porém adultério... titubeou o marido injuriado, sempre é


vergonhoso... Não digo para ela, mas para mim e para vocês. Eu
posso provar insídia por parte dela contra a minha vida. As insídias
contra a vida, as sevícias graves, as sugestões criminosas de um
cônjuge contra o outro são causas do divórcio temporário, como
lá dizem.

– Temporário?

–A minha questão é a divisão de bens...187

A narrativa segue como raro registro da literatura brasileira do


século XIX, em que se cogita o divórcio com todas as suas implica-
ções, inclusive patrimoniais, como solução para o adultério. O des-
fecho nesse sentido, porém, não se concretiza. Mantendo uma certa
coerência quanto ao padrão de comportamento colocado ao longo
da narrativa, muito pouco condizente com os parâmetros de gênero
socialmente impostos, nossa adúltera não se entrega à culpa, ao so-
frimento, à doença ou ao suicídio. Num contexto histórico e narra-
tivo em que mulheres são mortas por seus maridos e companheiros
sem que essa conduta gere maior estranhamento social e repercussão
legal, é Guidinha que reage mortalmente àquilo que considera uma
afronta a sua honra. Ao mandar matar o marido, a personagem sub-
verte a expectativa relativa ao desempenho do papel que o gênero
feminino lhe impunha. Se realmente mandou matar o marido, é dú-
vida que sempre irá pairar, mas o fato é que, mesmo ao ser presa, se
manteve altiva, desafiando a tudo e a todos:

Guida entrou sobranceira pela rua Grande, o cavalo numa estrada


alta. A chapelinha um tanto para trás, deixando a testa quase no
sol. A saia de montaria, de bretanha, arfava ao vento, produzin-
do uma irritação estranha aquele pano branco na alma enlutada
da população. Guida olhava a turba com admiração, que ao povo

187 Paiva (1997, p. 182).

143
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parecia petulância, e por vê-la açoitar o cavalo, diziam que ela ace-
nava com o chicote para eles...188

Segundo relatos históricos, Maria Lessa, a mulher que inspirou Oli-


veira Paiva a escrever Dona Guidinha do Poço, foi condenada por ser man-
dante da morte do marido a uma pena de 20 anos de prisão, cumprida
integralmente. Ao executor, coube uma pena de quatro anos de prisão.

REFERÊNCIAS

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Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006. Disponível em: http://www.
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147
OS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO NAS
PINTURAS MURALISTAS MEXICANAS
Michele T. Philomena Bohnenberger

INTRODUÇÃO

A deficiência bibliográfica acerca da inserção de mulheres artistas


na História da Arte não é nenhuma novidade. No texto do primeiro
historiador da arte ocidental no Cincocento, Giorgio Vasari (1511-1574),
escritor de Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori, livro em que
registrou a biografia dos principais artistas do Renascimento, já é diag-
nosticável a supressão histórica das artistas mulheres. O autor dedicou
umas poucas páginas à escultora bolonhesa Properzia de’ Rossi (1490-
1530) em sua primeira edição (1958) e na seguinte anexou dentro do pró-
prio capítulo outras mulheres artistas. O autor a apresentou como: “uma
jovem virtuosa, não só nas coisas da casa, como em outras, nas ciências
infinitas em que não há mulheres, mas todos os homens a invejavam”.189
Vasari utilizou a exaltação de outras mulheres na cultura helenística para
enaltecer a escolha pela inserção do trabalho de Prorperzia em seu com-
pêndio, além de sublinhar sua graciosidade, beleza, virtuosidade, consi-
derando sua vida como um “milagre da natureza em nosso tempo”.190 Na
história de Properzia, citou outras artistas: Palutilla Nelli (1524-1588) e
Sofonisba Anguissola (1535-1625), mas sem dedicar-lhes espaço biográ-
fico próprio dentro do compêndio.

189 Vasari (2009, p. 722) - Original de 1550.


190 Vasari (2009, p. 273).

148
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Embora o contexto de Vasari estivesse dominado por produtores


homens, deve-se considerar que ele a achou digna de inclusão em sua
obra, sob perspectivas mais bem discutidas por Annateresa Fabris191, que
apontou que a escolha pode ter se dado devido às reais potencialidades
artísticas de Properzia e em especial pelo caráter excêntrico da existência
de uma mulher com habilidades de escultora, ou pelo simples incômodo
que isso causava na época.
Vicente assinalou algumas das formas de supressão das artistas na his-
tória da arte: “Foi no século XIX que se consolidou a história da arte
enquanto área do saber que estuda as manifestações artísticas do passado,
definindo aquilo que se considera digno de ser valorizado”.192 Nesse caso,
decidiu-se que a produção feminina não tinha valor dentro da organi-
zação das disciplinas, cabendo-lhes espaços secundários, tal como o da
musa, ou da modelo.

Uma vasta bibliografia tem explorado como a mulher se cons-


titui num signo do poder criativo e sexual do artista masculi-
no, contribuindo para a reificação de uma série de categorias:
a mulher objeto, modelo, imagem, musa, observada; e o ho-
mem, sujeito ativo que a vê e que a cria enquanto represen-
tação. Têm sido estudados, igualmente, os discursos sexuais
implícitos no espaço legitimador e estetizado do museu ou
da galeria. Aquilo que já é visível nas explorações artísticas da
modernidade da segunda metade do Oitocentos persistirá nos
cânones do século XX.193

Nessa organização das disciplinas as mulheres permaneceriam de-


legadas ao espaço circunscrito e, segundo a autora, estariam divididas
grosseiramente na imagem da artista “amadora”, dedicada à prática artís-

191 Fabris, Annateresa. O estranho caso de Propérzia de Rossi. Disponível em: http://abca.
art.br/httpdocs/o-estranho-caso-de-properzia-de-rossi-annateresa-fabris/ Acesso em 12
de novembro de 2020.
192 Vicente (2012).
193 Vicente (2012, p. 187).

149
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

tica num espaço doméstico e familiar; a artista-operária, indissociável da


crescente industrialização; e a “artista-masculina”, valorizada por possuir
destrezas e habilidades que se projetam ideias de gênero contemporâneas,
suas persistências e contradições.194
Na tese de doutorado que desenvolvo, tenho notado de que maneira
essa supressão histórica, bem como a delegação de mulheres aos papéis de
musas inspiradoras e a forma que são estereotipadas quando representadas
por artistas homens, tem contribuído para a perpetuação da sociedade
patriarcal. Por minha atuação pessoal como artista e por trabalhar dire-
tamente com a pintura muralista, tenho me detido a representação da
figura feminina no Muralismo mexicano, bem como a caricatura cons-
truída em torno das mulheres no instrumento simbólico utilizado para a
modelagem de uma nação que, ainda hoje, é considerada uma das mais
machistas do mundo, tendo uma altíssima taxa de feminicídio: 983 a cada
100 mil mulheres no último ano disponível, ficando somente atrás do
Brasil, conforme o Observatorio de Igualdad de Género de América La-
tina y el Caribe.195
A construção de um imaginário através da arte sob uma ótica uni-
lateral reforça os pressupostos de dominação masculina dentro de uma
sociedade.

1. A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA FEMININA NO


MURALISMO MEXICANO E A PERPETUAÇÃO DO
PATRIARCADO

O México passou, no início do século passado, por um processo de


derrubada da ditadura de Porfirio Díaz (1876-1911) e teve em persona-
gens como a de Emiliano Zapata (1879-1919) a força necessária contra
ricos latifundiários que haviam se apossado de terras dos camponeses. A
revolução contou com uma fase armada até 1917, quando foi promulgada
a nova Constituição, tendo a paz se consolidado somente em torno de
1929, com a criação do Partido Nacional Revolucionário.

194 Vicente (2012).


195 https://oig.cepal.org/es

150
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A população mexicana do início do século XX não possuía uni-


formidade cultural e intelectual – o país estava composto por vários
grupos, como os nativos indígenas, os mestiços e os brancos, em sua
maioria de origem espanhola. Por essa diversidade, tornava-se com-
plexo o desenvolvimento de um sentimento nacionalista. As estraté-
gias empreendidas pelos intelectuais procuravam, portanto, uma for-
ma de unificar culturalmente a população, de maneira que deveriam
ser utilizadas formas artísticas adequadas a todos, formando assim um
novo sistema de gostos, o que não seria possível a partir da literatura,
já que muitos dos integrantes da população mexicana eram analfabe-
tos; também não seria possível pela música, pois a diversidade cultural
era muito grande; e estaria mais distante a possibilidade de unificação
pelas artes vigentes que eram compostas basicamente de arte acadê-
mica e da pintura de cavalete restrita àqueles que detinham o capital
econômico: a burguesia latifundiária.
Como Secretário da Educação, José Vasconcelos (1882-1959)
criou um empreendimento educacional convocando artistas mexica-
nos que faziam parte dos movimentos de vanguarda europeus e que
tinham alcançado certa notoriedade: Diego Rivera fazia parte da ver-
tente cubista, José Clemente Orozco (1883-1949) desenvolvia a lin-
guagem quadrinista e David Alfaro Siqueiros (1896-1974) se encon-
trava envolvido com as ideias futuristas. Na visão dos articuladores do
projeto de futuro esses seriam – referindo-se ao que Bourdieu men-
ciona acerca das estruturas de produção – os “produtores mais bem
preparados para produzir as necessidades correspondentes às novas
disposições”.196 O empreendimento pretendia criar pinturas de gran-
des dimensões que fossem acessíveis com uma linguagem inteligível
à população, de maneira a unificá-la. A forma utilizada foi a pintura
mural, exaltando o resgate folclórico, a história e a identidade pré-his-
pânica. Baseava-se no pensamento antropológico de Manuel Gamio
(1883-1960), que versava sobre a recuperação de fontes pré-hispâni-
cas para ser reinterpretada pela população mestiça, integrando cultu-

196 Bourdieu (2015, p. 216).

151
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

ralmente os indígenas mexicanos. Nessa perspectiva, a ideia de rea-


lizar uma ação (murais) associada a um propósito ideológico (ismo),
conforma-se como um movimento artístico que alcançou proporções
continentais: o Muralismo.
Nesse primeiro momento, nenhuma mulher participou na con-
dição de agente, sendo incorporadas como musas e, somente nos
anos seguintes, como auxiliares dos muralistas, tendo finalmente lu-
gar para construir murais em espaços de menor destaque. Os homens
recebiam os prédios públicos oficiais para a realização dos murais, e
às artistas restavam os lugares de importância secundária, como igre-
jas, mercados, hospitais. As irmãs Greenwood (Grace, 1905-1979 e
Marion, 1909-1970), por exemplo, pintaram murais no interior da
República, em Taxco, Guerrero, Morélia, Michocán, lugares que,
segundo Mirkin,197 haviam sido subestimados por artistas mais re-
conhecidos. A autora também aponta que entre 1920 e 1970, apenas
13% dos muralistas documentados no México eram mulheres, e que
em comparação ao número de murais realizados por homens, que
circula em torno de vinte, quando se trata da produção feminina,
o número cai para três. Mas isso de fato se deve ao acesso limitado
que lhes era concedido – as mulheres que atuaram na primeira fase,
por exemplo, só tiveram essa possibilidade por serem artistas que
provinham do exterior e possuírem certo status. Atribuem-se a essa
concepção questões relativas à própria construção física da obra mu-
ral: a pintura muralista é feita em grandes proporções, requer o uso
da força, da “virilidade” (traço ligado à masculinidade), é integrada
a arquitetura monumental, além de ser feita em grande parte nas ruas
que, historicamente, não é um espaço feminino, já que as mulheres
estavam restritas ao ambiente privado, doméstico e íntimo.
A dominação dos artistas homens era reforçada pelo programa de
Vasconcelos, que contava com outro fator que ia além da tentativa
de criar um sentimento de pertencimento: havia o direcionamento
para que assuntos comportamentais do novo cidadão fossem plasma-

197 Mirkin (2017).

152
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dos na parede, designando, entre outras coisas, os papéis pertinentes às


funções destinadas a cada sexo, sendo que o das mulheres, conforme
aponta Naranjo,198 estava sendo discutido desde a metade do século
anterior e projetado como um dos motores do desenvolvimento so-
cial. O autor menciona a existência de diversas publicações do século
XIX que versavam sobre as funções, e dentre os temas abordados,
encontrava-se a responsabilidade de desenvolvimento da educação pa-
triótica dentro dos lares, lugar considerado da alçada feminina, uma
tarefa da figura materna. Desde a Lei do Casamento Civil, de 1859,
havia um conjunto de padrões e comportamentos aceitáveis dentro
de um núcleo familiar e os papéis de atuação de cada indivíduo den-
tro desse sistema. Havia também a tendência à melhoria da educação
feminina, pois seriam elas as responsáveis pela construção de valores
das novas gerações. No Congresso Nacional de Instrucción Primaria, cele-
brado em 1889, implantou-se um programa que durou até o final do
porfiriato, no qual existiam três importantes matérias que versavam
sobre as designações dos papéis de cada sexo: "moral prática", "leitura"
e "economia doméstica". Dentre alguns livros aplicados no currículo,
estava o de María Rosales, Rafaelita199, que versava sobre o compor-
tamento no lar, sobre como servir ao homem, a preparação para o
matrimônio e os cuidados com a casa e com a maternidade.

A base dessa educação consistia no aprofundamento em higiene,


moralidade, medicina, economia doméstica, trabalho, artes plás-
ticas, pedagogia; e foi complementada com cursos de geografia,
história, ciências naturais, língua espanhola e literatura.200

As jovens aprendiam a servir e obedecer ao pai, o chefe da família.


Aqui me refiro em particular à classe que possuía promoção ao sistema

198 Naranjo (2011).


199 ROSALES, M.M. Rafaelita: libro segundo de lectura: para uso de las alumnas del tercer
año elemental. México D. F: Herrero Hnos. Sucs., 1914
200 Barceló (1997, p. 89). Tradução da autora.

153
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

educativo, lembrando que nesse momento boa parte da população me-


xicana era composta por indígenas e mestiços que não participavam do
sistema escolar, ainda que também fossem dominados por um aparelho
patriarcal próprio. Embora nos anos posteriores à educação tenha se
ampliado com as maestras rurales e a educação dos camponeses, a dis-
tribuição de papéis se perpetuava, reforçando a posição da mulher de
educar e servir.
Se por um lado a educação feminina contribuía para a forma-
ção da mulher mãe, por outro lhes dava material suficiente para que
aprendessem profissões como a de professora, dentista, enfermeira e
outras em que lhes cabia a condição de “cuidado” ou “assessoramen-
to”. A abertura ao capital estrangeiro durante o porfiriato também
proporcionou a inserção no mercado de operárias que possuíam me-
nores salários que os homens e que deveriam ainda dar conta dos afa-
zeres domésticos: “Esta nova situação não se deve tanto a um projeto
nacional, mas às conveniências do novo sistema econômico, mas o
fato é que permitiu às mulheres tomarem consciência de seu papel em
termos de gênero e classe social”.201
Com o acesso ao estudo e às posições no mercado de trabalho, as
mulheres começaram a ser organizar em busca de seus direitos. Ressalto
que, associando à modernização, novos comportamentos tornaram-se
aceitáveis e aquilo que alguns anos antes era considerado indecoroso,
como a vaidade, a audácia, os questionamentos às estruturas preestabe-
lecidas, transformou-se em características das mulheres modernas. No
entanto, o programa nacional mantinha a agenda no que diz respeito às
incumbências da maternidade e educação para o lar. Se os comporta-
mentos dissidentes eram admissíveis, certamente não o seriam para toda
a população, mas sim para aquelas que estavam envolvidas na vertente
cultural dominante, enquanto as demais ainda permaneciam mais pró-
ximas à relação patriarcal.

201 Barceló (1997, p. 100). Tradução da autora.

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Isso transpareceu no próprio discurso visual dos muralistas que, em


oposição aos distintos ísmos202 do início do século passado, que prima-
vam pela fragmentação da forma e pelas pesquisas de linguagem visual
inovadora, optou por utilizar a linguagem figurativa atualizando temas
oriundos do passado pré-hispânico. Entre o passado e o presente, surgem
as figuras femininas que são retratadas conforme as pretensões do mo-
mento: por um lado, povoam-se as paredes de representações de mães,
educadoras, virgens, e por outro, aparecem as mulheres modernas, as
musas e a mulher erotizada. Os aspectos transitórios característicos desse
período se apresentam em alguns casos de maneira conflituosa, dificul-
tando o entendimento do público aos quais a produção estava destinada
e gerando interpretações mais diretas devido à bagagem cultural estreita
que a população possuía.
A “mulher mãe” estava sendo desenhada desde os anos iniciais do
porfiriato, quando existia rivalidade entre Estado e Igreja no âmbito
educacional, tornando esse espaço de doutrinação do estado liberal e
oligárquico:

A família e a escola foram os principais transmissores de valores e


símbolos selecionados pelo Estado para homogeneizar a socieda-
de[...] no nível familiar, a mãe foi reconhecida como a primeira
educadora das crianças e, portanto, pensava-se que por meio de
sua educação o Estado poderia nortear o futuro da sociedade. Na-
quela época, entraram em voga os ditados: “Se você quer ter bons
cidadãos, forme boas mães de família”; “Educar um homem é
treinar um indivíduo que não pode deixar nada para trás; educar
uma mulher é treinar as gerações vindouras”; "Entre uma mulher
sem educação e uma mulher mal educada, a primeira não pode
fazer o bem; a última inevitavelmente fará o mal"; "A mulher edu-
cada constrói sua casa; a mulher ignorante a destruirá com suas
próprias mãos".203

202 Movimentos de vanguarda como Futurismo, Dadaísmo, Cubismo etc.


203 Barceló (1997, p. 83). Tradução da autora.

155
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Esse pensamento persistiu durante a Revolução e mesmo após a exis-


tência de manifestações feministas em torno de 1916, quando ocorreu o
Segundo Congresso Feminista de Yucátan, com as mulheres reforçando
a importância do direito ao voto.
Naranjo assinala que surgiram publicações como as do Jornal
Excelsiór 204, valorizando a maternidade e comemorando o Dia das
Mães. 205 O jornal recebia apoio de Vasconcelos, transparecendo seu
interesse que só flexionou nos anos posteriores, com a consolidação
do sistema educativo escolar, desviando o foco da mãe educadora
para a professora.
As obras que analisarei em seguida fazem parte da primeira fase do
Muralismo e têm por objetivo demonstrar como esses interesses foram
expostos na conformação do produto simbólico do período. Começarei
pela obra de José Clemente Orozco no programa decorativo da Escola
Nacional Preparatória.
Na imagem que segue (figura 1), o artista representou figuras antro-
pomórficas: uma feminina sustenta uma criança, remetendo às feições
das madonas renascentistas com o Menino Jesus, geralmente pintadas
rodeadas de seres alados, que aqui foram substituídos por quatro figu-
ras antropomórficas andrógenas com vestes esvoaçantes que circundam
a personagem central. Como se sabe da posição sincrética dos muralistas
e em várias situações, anticatólica – já que consideravam o catolicismo
associado aos interesses do regime anterior – transparece a intenção de
atrair aqueles que ainda estavam fortemente vinculados às imagens sacras,
contribuindo assim para a identificação desses aos princípios do programa
de Vasconcelos. Ao lado esquerdo da figura central, repousa uma curiosa
figura antropomórfica feminina que, de costas para o espectador, porta
um cacho de uvas.

204 Excélsior foi um jornal de publicação diária mexicana fundado em 1917, sendo o se-
gundo mais antigo, depois de El Universal, e um dos mais importantes na Cidade do Méxi-
co. Foi fundado por Rafael Alducin e relançado em 2006. Atualmente pertence ao empre-
sário Olegario Vázquez Raña e ao diretor editorial Pascal Beltrán del Río.
205 Naranjo (2011).

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Figura 1. José Clemente Orozco, Maternidad (1923 - 1924). Afresco. Antigo


Colégio San Idelfonso. Cidade do México

Fonte: https://media.timeout.com/images/

Orozco realizou no Pátio Grande quatro painéis contínuos: Cristo des-


truyendo su cruz, Los elementos, La lucha del hombre con la naturaleza e Materni-
dad. As obras faziam parte do projeto de um primeiro conjunto de murais
Los dones que recibe el hombre de la naturaleza, que o próprio artista destruiu
colocando em seu lugar os murais atuais. O artista ficou insatisfeito com o
que chamou de “ensaios e experimentos” e acabou preservando somente
Maternidad, mural que disse ter retratado sua própria mãe e pelo qual fora
criticado por fazer uma alusão à Virgem que estaria nua, acompanhada
de uma segunda figura que supostamente ofereceria uvas aos serafins, um
ato libidinoso, sendo assim o mural censurado. De fato, a movimentação
das vestes remete às composições renascentistas que prezam pelo esvoaçar
das roupas, em especial pela forte influência da pintura de Sandro Bo-
tticelli, mas nenhuma das figuras é angelical, não possuindo asas, nem

157
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

halo glorioso. A associação se daria pela recorrência ao pathosformel206 das


madonas. Dentre os elementos que compõem a figura central, o mais
plausível de associação à identidade cristã seria o uso do suposto véu.
Gostaria de ressaltar a construção dessa figura velada de maneira pro-
posital, pois apresenta uma questão de qualificação feminina simbólica
histórica, explicada em detalhes pela pesquisa de Gerda Lerner ao assi-
nalar que o uso do véu foi uma das formas de classificação das mulheres
em respeitáveis e não respeitáveis surgida na Mesopotâmia, um símbolo
consolidado com o passar dos anos na civilização ocidental:

Qualquer homem identificava pelo véu que a esposa, a concubina ou


a filha virgem tinha a proteção de outro homem. Como tal, ela era
marcada como intacta e inviolável. De modo oposto, a mulher sem
véu era evidentemente marcada como desprotegida, portanto, alvo de
qualquer homem. Esse padrão de discriminação visível imposto é re-
corrente ao longo do período histórico na miríade de regulamentações
que colocam “mulheres indecentes” em certos distritos ou certas casas
marcadas com sinais claros e identificáveis, ou que as forçam a fazer um
registro junto às autoridades e carregar cartões de identificação.207

O velamento feminino que surge na Mesopotâmia como uma forma


de diferenciação entre as mulheres que exerciam funções de “servidão se-
xual religiosa”, ligada aos rituais de adoração aos deuses, e “prostituição”,
no caso da prostituição com finalidades comerciais, conforme nomen-
clatura da autora, se estendeu em outras culturas religiosas, aparecendo
frequentemente na iconografia cristã, que fora o grande mote da arte de-
senvolvida nas academias do México até o passado imediato ao Muralis-

206 Pathosformel é um conceito cunhado por Aby Warburg que “[...] permite explicar a
adoção de formas artísticas a partir da afinidade de necessidade expressiva. Assim, todos
os detalhes da figuração de um quadro, que até então o haviam sido vistos sob termos
formais, se apresentam em ensaios e acréscimos posteriores como figurações repletas de
conteúdo que devem sua sobrevivência ao conjunto do legado cultural nelas preservados”.
(BING, p. XLV in WARBURG, 2013)
207 Lerner (2019, p. 46).

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mo. Destaco, portanto, uma intenção consciente do artista em trabalhar


com esse duplo jogo, associando a figura feminina maternal de seu mural
à Virgem, mãe respeitável, mas retirando-lhe os atributos religiosos.
Existe mais uma questão em torno do manto que cobre a cabeça da
figura central: no México existe o rebozo, um pedaço longo e reto de tecido
que transita entre um lenço e um xale. São roupas mexicanas clássicas feitas,
principalmente sem cortes, sendo vistas como vestuário das mulheres, dis-
tinguidas por franjas tecidas com os dedos, chamadas rapacejos. Na ancestra-
lidade mexicana, as mulheres utilizavam o rebozo como instrumento auxiliar
para massagear as costas durante o parto e para reposicionar o bebê dentro da
barriga, deixando-o na posição ideal para nascer. Atualmente, movimentos
de parto naturalizado têm retomado esse artifício. Ao apresentá-lo na figu-
ra central, reforçam-se os propósitos reprodutivos, intensificados ainda mais
pela presença da figura complementar que porta um cacho de uvas, sendo a
uva um símbolo frequentemente associado à fertilidade.
A figura acessória também torna evidente uma forma que por vezes
aparece nos murais mexicanos: no cabelo, as ondas formam um caracol (o
caracol e a concha também estão no mural Los elementos (1922) de Siquei-
ros. Essa é uma forma pouco comentada nas bibliografias acerca do Mu-
ralismo, porém é interessante observar que o deus mexicano Tecciztecatl
é representado fechado numa concha de caracol. Esse deus na mitologia
asteca seria o segundo sol de brilho menor, que teria perdido seu brilho
por ter hesitado em sacrificar-se em uma reunião de deuses para discutir
a quem caberia a missão de criar o mundo. Na mitologia Tecciztecatl, ele
titubeou mas acabou cedendo em lançar-se na fogueira posteriormente,
por inveja a Nanahuatzin, que ao contrário do primeiro, teria humilde-
mente se jogado nas chamas de Teotihuacán. Por esse motivo, seu brilho
teria sido enfraquecido, tornando-se assim esse sol de menor brilho: a lua.

O caracol é um símbolo lunar privilegiado: não só é concha, ou


seja, apresenta o aspecto aquático da feminilidade e, talvez, possui
o aspecto feminino da sexualidade, como também concha espira-
lada, quase esférica. (DURAND, 2012, p. 313).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

A intenção de Orozco ao construir o cabelo formando um ca-


racol seria, portanto, a de reforçar o aspecto reprodutivo da figura
com a combinação de dois elementos, um sexual (o caracol) o ou-
tro ligado à fertilidade (as uvas), enfatizando assim o papel da mu-
lher provedora de filhos. Em outra seção de murais, o artista pintou
figuras antropomórficas masculinas, os revolucionários, recebendo
a benção de figuras antropomórficas femininas, suas mães, antes de
partirem para a revolução, assinalando o papel de educar os filhos
para servir a nova pátria. Na pintura, as mães são apresentadas sen-
tadas ao chão cobertas novamente por rebozos, dessa vez, brancos.
Atento especialmente ao fato dessas mulheres estarem sentadas ou
ajoelhadas: isso as coloca em condição passiva dentro desse pro-
cesso, alguém que finda uma tarefa e descansa (cria os filhos e os
deixa seguir para revolução). Em pinturas posteriores, de 1923, a
obra do artista adquiriu um tom mais crítico da população burgue-
sa, intensificando as formas das linhas caricaturescas e distorcidas,
utilizando um colorido mais vívido.
Nas pinturas de cavalete produzidas por Siqueiros de 1930 a
1936, as madonas reaparecem em tom crítico: Madre proletária (1931),
Madre Campesina (1931) e Nina Madre (1936). Madre proletária (figura
2) apresenta uma mulher em um ambiente reduzido, rodeada de seus
filhos, em aparente estado de impotência, mantendo-se estática e
carregando o peso das crianças nas costas enquanto um dos meninos
que lhe estende os braços se movimenta ao chão. Madre campesina re-
trata uma mãe no ambiente rural, rodeada por uma paisagem árida,
de pés descalços, fundida com seu filho em um rebozo. Niña ma-
dre retrata uma jovem com olhar distante que carrega nas costas um
bebê. A pintura foi inspirada na fotografia de Hugo Brehme (1882-
1954) intitulada Inditos, o que torna evidente que, devido à pouca
idade, a menina não poderia ser mãe da criança, relatando que para
as mais pobres seu papel maternal se inicia muito cedo, ajudando nos
cuidados com os mais novos.

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Figura 2. David Alfaro Siqueiros, Madre Proletária (1931). Óleo sobre yute ixtle. Museu
Nacional de Arte, INBA Cidade do México

Fonte: http://munal.emuseum.com/
As referidas obras apresentam também o rebozo mexicano e o aspec-
to da mulher sofredora, carregando o peso dos filhos e, na leitura feita
por Naranjo,208 trata-se de uma crítica maniqueísta ao capitalismo e não
ao sistema patriarcal. Ao criar Madonas proletárias, Siqueiros denunciou
por obras móveis algo que já fazia também em murais. Mostrou como
vivia boa parte da população: com baixas condições financeiras corro-
boradas pelos ambientes áridos e opressores, ainda que representando
as figuras com aspecto monumental; o artista retrata o aspecto daquelas
mulheres que estavam fora da modernização e que foram vitimadas por
ela. Nas obras as mulheres aparecem como incapazes de sair do ambien-
te que as oprime.
O estereótipo de mulher mãe e, consequentemente, educadora, era
reforçado pelas profissões pelas quais a população feminina tinha maior
aceitação na formação da nação mexicana pós-revolucionária e entre
elas estava a de professora. Frequentemente, são encontradas essas re-
presentações nos murais de Diego Rivera, construído pelas instâncias

208 Naranjo (2011).

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de legitimação como o exponente máximo do Muralismo Mexicano.


Nos murais de Rivera no Ministério de Educación Pública, as edu-
cadoras aparecem em diversos setores, normalmente inexpressivas e
envolvidas em aparente tranquilidade, como é o caso da representação
La maestra rural (figura 3). Rivera optou por narrar o processo de trans-
formação do país e ao mesmo tempo elementos constituintes do povo
mexicano. Na seção que segue, atribuiu às figuras pintadas faixas etárias
distintas (crianças, adultos e idosos camponeses, de ambos os sexos),
demostrando nos mestiços a fusão étnica defendida pelo programa e a
incorporação desses aos projetos educativos.

Figura 3. Diego Rivera, Educação na Aldeia ou La Maestra Rural (1923). Ministério da


Educação Pública, Cidade do México

Fonte: https://chilangomex.wordpress.com/

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A maestra é identificada pelo acento pictórico obtido pelo uso da


cor branca no livro e nas vestes da criança ao seu lado, que destacam à
ação explicativa da mão da personagem. A imagem representa Las Mis-
siones Culturales, projeto educativo de Vasconcelos que levava a educação
aos lugares mais distantes e que buscava “incorporar os indígenas e os
camponeses em uma nação “civilizada” e espalhar neles um pensamento
racional e prático para acabar com o fanatismo religioso, hábitos "viciosos"
e obtenção de higiene corporal e doméstica”.209
Nos planos posteriores, aparece um segundo grupo arando a terra
e, mais acima, outra equipe empenhada em uma construção. O afresco
emana as condições em que se davam as aulas nesse período: ao ar livre,
sem instituições escolares, para diferentes faixas etárias. No entanto, Ri-
vera apresenta a figura da professora trabalhando com suposta naturali-
dade no ambiente aberto. Ao lado do grupo está um revolucionário a
cavalo, que também é representado de branco, se relacionando ao livro e
à criança, sugerido o vínculo com o sistema educativo e provavelmente
uma espécie de protecionismo ao grupo.
Esse tipo de representação da professora em situação pacífica fren-
te às aldeias camponesas com público receptivo e interessado não era o
que acontecia na prática no ambiente educacional. Rivera romantizou a
função da educadora: mesmo sob as poucas condições de trabalho, as mes-
tras aparentam conquistar o envolvimento e o interesse dos camponeses
e revolucionários. O que ocorreu na prática foi bem diferente: os valores
empregados no sistema educativo iam contra uma série de crenças e cos-
tumes dos grupos e a relação era frequentemente conturbada, incluindo
episódios violentos.
Quando surgem as primeiras possibilidades de artistas mexicanas
realizarem murais, o que ocorre é uma visão totalmente distinta da re-
presentação da figura humana feminina, sendo apresentadas denúncias
e revisões históricas relevantes. A primeira pintura mural de uma artista
nascida no México foi realizada por Aurora Reyes, que de 1921 a 1923,
foi aluna da Escuela Nacional de Bellas Artes, dando aulas de desenho e
pintura em 1927 na Secretaria de Educación Pública, até 1964. Ela foi

209 Vaughan (1982, p. 51). Tradução da autora.

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responsável pela criação de sete murais. O primeiro faz referência ao cres-


cente avanço capitalista na sociedade mexicana, chamado El ataque a la
maestra rural (figura 4).

Figura 4. Aurora Reyes, El ataque a la maestra rural (1936), 1.90 x 2.80 m 2, Centro Esco-
lar Revolución. Cidade do México

Fonte: https://mujermexico.com/heroinas/quien-es-aurora-reyes-pionera-feminista-del-
-muralismo-mexicano/

O programa educativo que já havia pintado Rivera, do governo de


Álvaro Obregón, se ergueu sobre uma plataforma planejada para o de-
senvolvimento do sentimento nacional, reabrindo em 1920 as Escuelas de
Pintura al Aire Libre, em Coyacán, que além de focar nos alunos regulares,
recebeu crianças de regiões próximas e, em 1924, após a renúncia de Vas-
concelos as EPAL ampliaram suas ações admitindo “crianças indígenas e
mulheres, além de incluir em uma segunda etapa, a participação de ope-
rários e seus filhos”.210 Nos anos de 1920 a 1930, o governo considerou a
educação uma forma de conformação social chave para a legitimação da
política, enviando professores para a região rural para ensinar disciplinas
básicas aos camponeses e indígenas, o que também tinha como aspecto
ser contra as conformações clericais. Um dos poucos papéis destinados às

210 Acevedo e Garcia (2011, p. 72). Tradução da autora.

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mulheres nesse momento como forma de auxiliar na composição nacio-


nal era através da educação:

Isso se espelhava nos murais do período, com a imagem de uma


professora de escola frequentemente simbolizando a estabilidade
da nação. [...] Estes murais contornaram as implicações sombrias
das políticas educacionais, uma vez que muitos beneficiários ru-
rais dos programas se opunham firmemente ao anticatolicismo do
currículo. Frequentemente, a violência era o resultado. A polí-
cia anticatólica e o governo mexicano ente 1920 e 1930 estavam
distantes. A iconoclastia revolucionária levou professor e policiais
a invadir igrejas rurais, queimar estátuas de santos e crucifixos e
destruir sinos de igrejas em praças públicas. Os edifícios da igreja
foram convertidos em salas de aula rurais, nas quais as crianças ou-
viam rimas como 'uno, dos, há no Dios’ e recitavam uma promessa
ao México que incluía: eu vou lutar contra os três inimigos da
pátria que são: o clero, a ignorância e o capital. De acordo com al-
guns estudos, em 1935 havia apenas 305 registros legais de padres
em todo o México. A violência sancionada pelo Estado contra
padres e católicos praticantes às vezes resultava em assassinato e,
inversamente, professores de escolas eram frequentemente sujeitos
a violência extrema, tortura e execução por católicos furiosos.211

O mural faz parte de uma série produzida por artistas que pertenciam
à Liga de Escritores y Artistas Revolucionários (1933-1938), sob orientação de
Diego Rivera, na época que que se reforma o artigo 3º da Constituição
Mexicana, acerca do sistema público de educação, que deveria promover,
além de todas as faculdades do ser humano, "a consciência da solidarie-
dade internacional”. A artista foi líder do grupo feminista Las Pavorosas,
militante do Partido Comunista de México, foi amiga da pintora Frida Kahlo
(1907-1954), do compositor Silvestre Revueltas (1899-1940), e do poeta
e jornalista Renato Leduc (1897-1986), entre outros. Portanto, sendo
ativa nos círculos intelectuais, elimina-se qualquer suposta ingenuidade

211 Geis (2008, p. 161). Tradução da autora.

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nas intenções pictóricas de Reyes. Deve-se observar que nem sempre


questões feministas aparecem na temática das muralistas, mas estar em
um ambiente dominado por produtores homens já as traz para o interior
das obras novas perspectivas.
É perceptível que a artista optou pelo anonimato dos personagens,
pois não pintou os rostos dos homens, ao mesmo tempo que, não lhes
atribuindo identidade, os tornou representativos da universalidade mas-
culina. Existe brutalidade na ação, ressaltando a violência contra a maestra,
que é puxada pelos cabelos em um ato que remete às atitudes relacionadas
ao comportamento do homem das cavernas. O homem de sombreiro
bate com um rifle sobre a cabeça da professora e as crianças em segundo
plano, assustadas, assistem a violência. Ao mesmo tempo, o ato de cobrir
os olhos das figuras masculinas aponta para o caráter covarde dos que se
fazem notáveis pelo exercício da força. Quanto ao aspecto monumental,
todos os personagens envolvidos na trama principal são apresentados com
formas sólidas, não havendo a suposta diferenciação entre o “corpo viril
masculino” e o corpo “curvo e dócil feminino”. A força das figuras é a
mesma, e a submissão feminina não se dá pela ausência da luta, mas pela
sugestão do desmaio conferido por uma coronhada de rifle. Esse mural,
assim como outros feitos por mulheres, comprova e existência de uma se-
gunda versão da história não presente nos “discursos oficiais” dos murais
dos “Três Grandes” e seus pares.
No caso supracitado, percebe-se um ambiente hostil divergente
da simbologia utópica de uma implementação pacata do sistema edu-
cativo, além de expor a condição à qual as mulheres estavam sujeitas.
A artista rejeita a iconografia da professora matriarcal e serena, rodea-
da de crianças felizes, e a substitui por uma figura de mulher que sofre
a violência e brutalidade masculina num dos poucos ofícios em que
era possível atuar pela mudança nacional. A cena se completa subs-
tituindo o envolvimento infantil na educação pela reação apavorada
frente aos frequentes conflitos.
Artistas mulheres necessitavam passar pela aprovação dos produto-
res masculinos e frequentemente, tinham suas habilidades questionadas
pelos dominantes: quando Javier Rojo Gómez (1896-1970), chefe do

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Departamento do Distrito Federal, ofereceu a pintora María Izquierdo


(1902-1955) mais de 150 metros quadrados nas escadas do prédio e a
artista decidiu fazer esboços em escala, com temas ligados à história da
arte, música e tragédia, progresso e tecnologia, Diego Rivera e David Al-
faro Siqueiros contestaram os projetos, dizendo a Javier que ela não seria
capaz de pintar murais e que suas soluções eram muito elementares. Mas
no primeiro contato que Rivera teve com as obras da artista, julgou-as
de qualidade: “quando revisou uma exposição dos estudantes, declarou
que os três quadros assinados por M. Izquierdo eram as únicas obras es-
tudantis interessantes na academia.212 Rivera acreditava que se tratava de
um artista homem.
No projeto executado para o mural, a responsabilidade do progresso
mexicano aparece nas mãos de uma representação feminina. À esquerda
está concebido o mundo pré-hispânico e à direita está o mundo moder-
no; no centro, uma ampulheta apresenta o equilíbrio entre o passado e
presente, a simultaneidade que vivia o país na tentativa de modernizar
resgatando os valores históricos; no lado moderno está a figura feminina
intercambiando o mapa com a figura do passado, masculina. O projeto
ressalta o protagonismo feminino que, sob o disfarce da modernidade
inclusiva, não poderia ser aceito, sendo para isso utilizado o argumento
da baixa qualidade técnica.
Em murais das artistas que seguiram produzindo mesmo abaixo das
limitações impostas pela sociedade e pelo seu apagamento, podem-se
observar outros aspectos relevantes, como a colocação das figuras fe-
mininas como protagonistas do desenvolvimento da pátria, do sistema
educativo, da história do México asteca, da realização de funções para-
lelas aos homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um revisionismo, conforme tem ocorrido com os estudos de


gênero, se faz necessário para tornar evidente o trabalho dessas e
outras mulheres que ficaram com sua produção esquecida em detri-

212 Deffebach & Grazian (2018, p. 15). Tradução nossa.

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mento dos artistas homens, que ao terem criado o imaginário visual


de uma sociedade, passaram a condicionar e perpetuar determinados
valores e padronizações que precisam ser rompidos para estabelecer
condições de equidade no convívio social. Além desses estereótipos,
havia outros como a associação da figura feminina à condição de
musa, como ocorre no mural La Creación (1923), de Diego Rivera,
à condição de prostituta da burguesia, como no mural de Orozco
denominado El Banqueto de los ricos (1923), ou mesmo em seu mural
posterior, Catharsis (1935), em que há uma figura antropomórfica
feminina nua, com sorriso perturbador, com as pernas afastadas em
uma mistura pornográfica e ameaçadora, questionando os valores
morais, rodeada de engrenagens, fuzis, cabeças, cadáveres, caixas,
outros corpos, cofres, mangueiras, em um ambiente caótico que tem
como plano de fundo uma manifestação e labaredas. Apresenta-se
todo seu pessimismo social frente ao progresso, associando o ma-
quinário à figura da mulher objeto, acumulando-a com máquinas e
outros aparatos mecânicos pertencentes à revolução moderna. Esses
são alguns poucos exemplos de um programa identitário construído
por objetivos de governo perceptível devido ao desvelamento através
das pesquisas em cultura visual.
Se o Muralismo tivesse sua história contada por ambas as parcelas de
gênero na mesma proporção, provavelmente a nação teria incutido outros
valores sociais e os números relativos ao feminicídio poderiam ser menores.
Não existe neste texto a intenção de achar culpados, mas apresentar como
a consolidação de formas repetidas de representação tem contribuído para
a aceitação da imposição de papéis designados a cada sexo e, a partir desse
ponto, abrir caminhos para novas percepções, alertando que as artistas e as
mulheres em geral precisam cada vez mais galgar posições e consolidar sua
verdadeira história nos livros, por trás das telas e dos muros.

REFERÊNCIAS

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visual. Vol. 5, in La búsqueda perpetua : lo propio y lo univer-

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170
GIRLS JUST WANNA HEAVY METAL:
MULHERES, HEAVY METAL E
EXCRIÇÃO NA CENA METAL
Cristiane Bahy

INTRODUÇÃO

Things don't seem the same/ Given time to change/ Sometimes I'm so
strange/ And now they're left behind/ Because I need some time/ I'm
back to start.213

(Girlschool, 1981).

O ano é 1915. Muito antes do heavy metal, e até mesmo do rock and roll
existir, nasceu uma mulher chamada Rosetta Tharpe.214 Negra, do estado
de Arkansas nos Estados Unidos da América, Tharpe – que posterior-
mente acrescentou “Sister” ao seu nome – é conhecida como a madrinha
do rock and roll. O motivo de ser a madrinha do rock é que, antes de Elvis
Presley ser conhecido como “Elvis, the Pelvis”, Sister Rosetta Tharpe
combinava blues e jazz na sua guitarra elétrica, invadindo espaços tidos
como masculinos e influenciando aqueles e aquelas que se aventuraram a
cantar e compor o rock and roll.

213 "As coisas não parecem as mesmas/Me dê tempo para mudar/Às vezes sou tão estranha,/E
agora eles são deixados para trás/Porque preciso de algum tempo/Estou de volta ao começo".
214 Wald (2008, p. 19).

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É por seu talento e por ter influenciado os músicos do incipiente rock


and roll na década de 1950, que Sister Rosetta Tharpe é conhecida. Ou
que deveria ser conhecida. A Tharpe, coube ser a madrinha, mas não a
mãe de um estilo de música que marcou gerações e influenciou vários
estilos de música, inclusive o heavy metal, ao longo de décadas. Por ter so-
frido o apagamento na História da Música, a madrinha do rock and roll não
é reverenciada como Elvis Presley ou The Beatles quando falamos deste
estilo que tanto influenciou a música e que se tornou um fenômeno e um
estilo de vida para mulheres e homens de todo o mundo.
Mudaremos o período e o lugar: final da década de 1970. O local é o
sul de Londres, Inglaterra, onde se formou a banda de mulheres conheci-
da como Girlschool. Com composições que estão entre os estilos punk e
heavy metal, Girlschool é uma das bandas mais longevas: estão há mais de
quarenta anos na cena musical.215 No entanto, apesar do longo percurso,
são mais conhecidas por muitos fãs de Heavy Metal como “aquela banda
composta apenas de mulheres" do que por suas músicas.
Passamos então ao ano de 2004. Em uma lista de “Cem Maiores Guitar-
ristas de heavy metal de Todos os Tempos”, da revista especializada em heavy me-
tal “Guitar World”, apenas homens foram citados como melhores guitarristas.
Nenhuma mulher entrou para este ranking. Mas focaremos no presente. No
ano de 2019, a Revista Metal Hammer listou os “Vinte Melhores Guitarristas de
Heavy Metal do Mundo” e mais uma vez não havia mulheres listadas.
A partir destas informações, podemos inferir que as mulheres, ao
longo da História da Música, e na cena da música heavy metal, não es-
tariam recebendo destaque equivalente ao dos homens ao desempenhar
o mesmo papel. Mais ainda: as mulheres estariam sendo invisibilizadas
devido ao fato de a cena heavy metal ser construída dentro de uma pers-
pectiva hipermasculina.
É partindo desta premissa e utilizando o conceito de excrição que
este capítulo irá discutir a participação das mulheres no mundo da música
heavy metal, assim como a consequente invisibilidade e a postura frente a
uma cena musical estereotipadamente hipermasculina, na qual as con-
cepções genderizadas ainda permanecem existindo.

215 Prato (2021).

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1. HEAVY METAL: DO NASCIMENTO AO CAMPO DE


PESQUISA

Waking up the neighbours waking up the dogs/ Walking down the


streets singing Motörhead songs/We're feeling pretty good, feeling pretty
fine/ You can live your life and I'll live mine/ We love to/ We all love
to Rock 'n' Roll.216

(Girlschool, 2004).

É dito que o heavy metal e a música erudita são os únicos estilos de música
que fazem o diafragma humano vibrar na mesma frequência que a música que
está sendo tocada. Se for verdade, ele reforça para as e os fãs de heavy metal, co-
nhecidas e conhecidos como “headbangers”217 o poder deste estilo. Visto como
um tipo de música distorcida e gritada para aquelas e aqueles que não o conhe-
cem, o heavy metal tem milhões de fãs devotas e devotos ao redor do mundo.
Sendo um dos vários estilos nascidos após o rock and roll, o heavy me-
tal nasceu por acaso no Reino Unido. Em 1965, Tony Iommi, o futuro
guitarrista da banda Black Sabbath, em seu último dia de trabalho em
uma fábrica em Birmingham, Inglaterra, teve que substituir seu colega
ausente. Obrigado a trabalhar em um maquinário desconhecido por ele,
Iommi fez o movimento errado e teve as pontas dos dedos médio e anular
arrancadas. Já guitarrista, e encorajado a seguir tocando por um amigo,
ele encontrou dificuldades no manejo da guitarra devido à lesão por sentir
ainda muita dor.218 Devido a esta condição, Iommi passou a tocar a gui-
tarra dois tons mais baixos, uma vez que seus dedos doíam muito com a
afinação normal, o que a tornou mais grave. Esta forma de tocar deu à sua

216 "Acordando os vizinhos acordando os cachorros/Andando pelas ruas cantando músicas


do Motörhead/ Estamos nos sentindo muito bem, nos sentindo ótimas/Você pode viver
sua vida e eu viverei a minha/Nós amamos/Todos nós amamos Rock 'n' Roll".
217 Opto por utilizar a expressão em inglês “headbanger” para os fãs do gênero Heavy Metal,
ao invés da expressão “metaleiro” utilizada na língua portuguesa, pelo fato de que as próprias
e os próprios fãs do estilo preferem ser reconhecidas e reconhecidos como headbangers.
218 Iommi (2012, p. 17).

173
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música um efeito grave e distorcido que se tornou a característica mais


conhecida do heavy metal.219 Antes de o heavy metal se formar como estilo,
The Beatles e Jimi Hendrix tocaram algumas canções ditas “pesadas”,
mas que não foram consideradas distorcidas o suficiente para criar um
novo gênero de música. Foi com o Black Sabbath, a partir deste infeliz
acidente, que nasceu o heavy metal.
Após seu nascimento, na década de 1960, o heavy metal passou por
várias fases, ao mesmo tempo que foram surgindo diferentes subestilos. Se-
gundo Deena Weinstein,220 de 1969 a 1972, o gênero tornou-se conhecido
do público. De 1973 a 1975, teve sua fase de cristalização, quando o heavy
metal se tornou dominante. Ao mesmo tempo, no Reino Unido, outra re-
volução estava em andamento: a música punk nasceu. O punk contrapôs o
glamour de bandas como Kiss e Led Zeppelin com uma violência visual
simples.221 Com riffs rápidos, a música punk renovou o heavy metal.
A Idade de Ouro do heavy metal começou em 1979, com a “New Wave
of British Heavy Metal”222 (conhecida pela sigla NWOBHM). Foi nessa época
que nasceram as lendárias bandas Iron Maiden e Motörhead. Ambas são re-
conhecidas como referências para headbangers em todo o mundo. A década de
1980 também testemunhou o crescimento de diferentes subestilos de heavy
metal.223 Nessa década surgiram mais bandas em todo o mundo e o heavy
metal deixou de ser exclusividade do Reino Unido. Nos Estados Unidos,
nasceu um novo estilo: o thrash metal. Com letras politizadas e uma atitude
mais contestatória, essas bandas transferiram o eixo do heavy metal do Reino
Unido para os Estados Unidos, mudando a forma como o heavy metal era
tocado. No entanto, a década de 1990 trouxe um declínio na popularidade,
devido ao surgimento de diferentes estilos de música, como o grunge.
Mesmo fora da grande mídia, o heavy metal segue arregimentando fãs e
se tornou, inclusive, tema de estudos acadêmicos. Desde a última década, as
pesquisas sobre o estilo têm aumentado consideravelmente. De 1978 a 2000,

219 Iommi (2012, p. 94).


220 Weinstein (2000, p. 21).
221 Christe (2004, p 10).
222 Nova Onda de Heavy Metal Britânico
223 Weinstein (2000, p. 20).

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foram publicados 414 trabalhos de pesquisa acadêmica, entre monografias, ar-


tigos, periódicos acadêmicos, dissertações e teses.224 De 2000 a 2010, o número
de trabalhos de investigação acadêmica aumentou 56,7%225 e passou a abran-
ger mais disciplinas, como Sociologia, Antropologia, Musicologia e Moda
em abordagens interdisciplinares. De acordo com Weinstein, os estudos sobre
heavy metal são “multidisciplinary, composed of disparate approaches based in different
disciplines, and includes interdisciplinarity and attempts at transdisciplinarity”.226 Acadê-
micos que estudam o estilo se concentram em dois tipos diferentes de análise:
reações sociais à música heavy metal e/ou a criação e reprodução da cena metal.
Um trabalho fundamental da pesquisa em heavy metal é o livro “Heavy
Metal: A Cultural Sociology” de Deena Weinstein, sendo uma das primeiras
obras a serem publicadas com uma abordagem sociológica sobre a temáti-
ca. Weinstein – acadêmica e fã do estilo – explora a cena metal através da
História, da Sociologia e da Antropologia. Este trabalho é importante não
apenas porque foi uma das primeiras pesquisas acadêmicas a estudar o estilo
do ponto de vista das Humanidades, mas também porque discute o motivo
pelo qual este tipo de música deve ser entendido como um objeto de estudos
acadêmicos. Outro trabalho influente nos estudos do heavy metal é “Running
with the Devil: Power, Gender, and Madness in Heavy Metal Music”, escrito pelo
musicólogo Robert Walser.227 Assim como Weinstein, Walser pesquisou o
heavy metal para entendê-lo em termos de musicologia e estudos culturais.
Os estudos sobre Heavy Metal têm abordado gênero e sexualidade nos
últimos anos. O trabalho “Heavy Metal: Gender and Sexuality”, editado por
Florian Heesch e Niall Scott, é um dos mais novos e importantes traba-
lhos sobre heavy metal e gênero.228 É uma coleção de artigos, resultado da
Conferência de Heavy Metal e Gênero, em Colônia, Alemanha, em 2009,
e traz diferentes percepções sobre cultura, sexualidade e gênero. Em um

224 Brown (2011, p. 239).


225 Bilimava (2019, p. 13).
226 "Multidisciplinares, compostos por abordagens diversas, baseadas em diferentes dis-
ciplinas e incluem interdisciplinaridade e tentativas de transdisciplinaridade" (Weinstein,
2016, p. 23 - tradução nossa).
227 Walser (1993).
228 Heesch & Scott (2016).

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dos artigos encontrados na obra, discute-se a atual base de fãs do metal que
costumava ser composta predominantemente por homens brancos da clas-
se trabalhadora, tendo mudado e hoje atraindo pessoas de origens diversas.
Apesar do grande número de pesquisas sobre o tema, ainda não há
consenso de como o nome “heavy metal” surgiu. Alguns historiadores da
Música atribuem o nome ao crítico musical Lester Bangs que, após ler
o livro Nova Express, de William S. Burroughs, decidiu dar o nome de
heavy metal ao estilo, devido ao personagem “Uranium William, the Hea-
vy Metal Kid”.229 230 Também é dito que a música "Born to Be Wild", de
Steppenwolf, e sua letra "I like smoke and lightning / heavy metal thunder"231
influenciaram o nome. O fato é que ao ser questionado sobre o heavy
metal em uma entrevista, Jimi Hendrix proclamou que era “a música do
futuro”.232 Para seus fiéis fãs, é a música do presente, sendo mantida viva
pelas e pelos headbangers e por músicos dedicados.

2. MULHERES NA CENA HEAVY METAL

Breaking all the rules/ Who's to say what's wrong or right/ To say we never
care/ Who's to say what's black or white233

(Girlschool, 1983).

Joan Scott escreveu que historiadoras e historiadores que buscassem


fazer a História das Mulheres seriam sempre confrontadas e confrontados
com o fenômeno da invisibilidade feminina.234 Muitos anos se passaram
desde esta afirmação e sabemos que atualmente os Estudos da História das
Mulheres e os Estudos Feministas estão mais ativos do que nunca, buscan-
do resgatar a história das mulheres apagadas e silenciadas pela História.

229 “William Urano, a criança metal pesado” (tradução nossa)


230 Weinstein (2000, p. 19).
231 “Eu gosto de fumaça e luz/trovão de metal pesado” (tradução nossa)
232 Christe (2004, p. 10).
233 “Quebrando todas as regras/Quem pode dizer o que é certo ou errado/Para dizer que
nunca nos importamos/ Quem pode dizer o que é preto ou branco” (tradução nossa).
234 Scott (1988, p. 5).

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No entanto, Catherine Strong, em seu artigo sobre mulheres na mú-


sica popular, nos alerta que ainda que as vozes das mulheres estejam sendo
ouvidas na História, na Sociologia, na Antropologia e em áreas afins, suas
vozes ainda são muitas vezes omitidas da História dos Movimentos Musi-
cais, tais como o grunge e o punk e também podemos dizer no heavy metal.235
Um exemplo: se quisermos saber hoje em dia, quem são os melhores
guitarristas de heavy metal, segundo determinadas revistas especializadas em
música, precisamos apenas digitar as palavras “melhores”, ”guitarrista” e
“heavy metal” em qualquer plataforma de busca. Lá, encontraremos listas com
os cem melhores, vinte melhores e até mesmo os dez melhores. As discussões
entre fãs serão intermináveis sobre quem deveria ou não estar nestas listas e
geralmente haverá quem não sairá satisfeito porque o nome de seu guitarrista
preferido não comparece em determinado rol. No entanto, na maioria dessas
listas, como dito anteriormente, prevalecem guitarristas homens. Para saber
quem são ou quem foram as melhores guitarristas mulheres, por exemplo,
temos que recorrer à pesquisa de melhores mulheres guitarristas.
Se há listas de mulheres guitarristas, logo podemos concluir que as
mulheres fazem parte da cena heavy metal não só como fãs, mas também
como musicistas. No entanto, não recebem o mesmo tratamento pela
mídia especializada que os homens. Não são colocadas no mesmo pata-
mar, são a exceção à regra. E a regra é clara: bandas são formadas por ho-
mens. Às mulheres cabe a invisibilidade não apenas das listas de melhores
guitarristas, mas também da história da música.
A História das Mulheres na Música é feita de invisibilidade e de di-
ficuldades. As dificuldades que as mulheres enfrentam cotidianamente,
como sexismo, machismo e misoginia, também existem nas cenas musi-
cais. Segundo Kruse, “[...] music does not exist outside of the social”.236 Logo,
não podemos isolar o mundo da música das sociedades na qual está inse-
rido. Se ainda há dificuldades para as mulheres devido ao patriarcado no
mundo atual, consequentemente haverá também dificuldades devido ao
mesmo motivo dentro da cena heavy metal.

235 Strong (2011, p. 401).


236 “(a) música não existe fora do contexto social” (Kruse, 2002 apud HILL, 2016, p. 1).

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Esta dificuldade das mulheres no mundo do metal começa quando


decidem tocar um instrumento. Os instrumentos comumente ligados às
mulheres não são a bateria, a guitarra elétrica ou o baixo, por existir ainda
uma certa resistência com relação a mulheres instrumentistas. Há ainda
também o desafio de ser vista como uma musicista capaz de tocar estes
instrumentos quando fazem parte de uma banda de heavy metal. Ainda
hoje, as mulheres são mais aceitas quando ocupam o lugar de vocalistas de
uma banda. Um exemplo de aceitação, e de lugar reservado às mulheres,
são as bandas do subestilo melodic metal, as quais são conhecidas por terem,
em sua maioria, mulheres nos vocais.
Se o cantar é mais associado às mulheres, o tocar um instrumento está
mais ligado aos homens, uma vez que o “poder” e a "força" na cena heavy
metal são atributos que estão culturalmente conectados à masculinidade.237
Desta forma, às mulheres imersas na cena heavy metal, cabe provar sua cre-
dibilidade como musicistas dentro de um mundo que reproduz códigos
hipermasculinos ainda presentes na cultura ocidental. Não basta apenas
demonstrar saber tocar um instrumento, é necessário também provar nos
shows que o toca de forma virtuosa. Não basta apenas cantar e tocar, é
necessário também provar que sabe compor as músicas que canta e toca.
E é dentro deste ambiente – em que precisam provar sua capacidade
de pertencimento à cena – que as mulheres headbangers se veem força-
das a reorganizar sua feminilidade, pois muitas acabam sendo cobradas
a performar masculinidade na forma de agir. Esta masculinidade seria
performada pelas mulheres na forma de tocar seus instrumentos de modo
a demonstrar força, característica ligada à hipermasculinidade. Como nos
coloca Janotti Junior:

(o) feminino negocia e emerge em meio a um espaço sonoro de


intensidade extrema, de alto volume e marcações graves reitera-
tivas, características que não são usualmente associadas às perfor-
mances femininas no mundo da música, o que não significa que
elas não podem ser feminilizadas.238

237 Weinstein (1991, p. 67).


238 Janotti Junior (2013, p. 7).

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Considerando-se que gênero pode ser compreendido como uma


performance, nos moldes do conceito de performatividade da filósofa Ju-
dith Butler, em que atos são repetidos, podemos concluir que a repetição
de atos percebidos como femininos ou masculinos dentro de um mundo
hipermasculino, como a cena heavy metal, devem ser vistos como uma
resposta à realidade da cena metal.239
Dentro do mundo do heavy metal, há aquelas mulheres que performam
estereótipos de masculinidade na forma de se vestir. Optam por roupas con-
sideradas mais masculinas, como calças jeans, camisetas com logotipos das
bandas que gostam e camisas com estampa xadrez. Desta forma, sentem-se
mais seguras para frequentar os espaços da cena metal do que se estivessem se
vestindo de uma forma que pode ser interpretada como “sexy”.240
Esta performance estereotipadamente mais masculinizada é uma
forma de se colocar frente a um mundo hipermasculino e nele se senti-
rem mais à vontade. A performance da masculinidade garante às mulhe-
res musicistas e às headbangers serem reconhecidas como iguais frente aos
homens headbangers e músicos homens apenas pela vestimenta.
Nesta cena, a performance de feminilidade também se reorgani-
za e pode ser demonstrada na forma de vestir e na maquiagem. Muitas
integrantes e fãs de bandas de heavy metal adotam a vestimenta corsé e a
maquiagem carregada como performance de feminilidade para contraba-
lancear com o mundo hipermasculino. Ser uma mulher dentro da cena
musical do heavy metal pode implicar ter ações percebidas como “mas-
culinas” enquanto possui uma aparência entendida como “feminina”.241
Da dicotomia feminino/masculino surge uma cena na qual as per-
formances genderizadas ainda estão muito presentes. E é a partir dessas
performances que os atos de resistência das mulheres se fazem presentes.
Estes atos de resistência se colocam em diferentes formas dentro da cena
metal: seja nos papéis de fã, de musicista e de produtora musical, por
exemplo. E é performando feminilidades e masculinidades que as mulhe-

239 Butler (2011, p. 452).


240 Kaiser (2016, p. 47).
241 Nordström & Herz (2013, p. 462).

179
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res reconfiguram a cena metal enquanto se fazem presentes sendo parte


integrante deste mundo ainda hipermasculino.

3. HEAVY METAL E EXCRIÇÃO

A lot of people telling you what to do/ Kick down the door still I
gotta prove to you/ I got the safe on my own, but I must get off my
pride/ You must keep on going to reach the other side/ Tell you what
I'm going to 242

(Girlschool, 1981)

Na sua fase inicial nas décadas de 1960 a 1980, dominada por


homens heteronormativos, o heavy metal permitia à masculinidade
uma espécie de ambiente seguro para sua existência. Segundo Wal-
ser, esse ambiente seguro se formou através da excrição do mundo
feminino. 243 Ainda segundo o autor, excrição é o conceito de “total
denial of gender anxieties through the articulation of fantastic world without
women”. 244 Ou seja, a cena heavy metal era um mundo idílico no qual
as mulheres não colocavam a masculinidade em xeque. Às mulheres
cabia o papel de sedução destes homens heteronormativos e da con-
sequente submissão a eles.
As cenas musicais reproduzem os princípios da sociedade em que se
inserem, e com o heavy metal não é diferente. A cena metal é o produto
que também produz uma ordem patriarcal e, por esse motivo, reproduzia
e ainda reproduz códigos machistas. Segundo Martins, “se tivermos em

242 "Muita gente me dizendo o que fazer / Derrubar a porta ainda tenho que provar / Eu
tenho a segurança comigo, mas preciso me livrar do meu orgulho / Você deve seguir para
chegar ao outro lado / Vou contar a você o que vou fazer".
243 “Excrição” em seu original em inglês “exscription”. Optou-se por utilizar a tradução
“excrição” ao exemplo de Inês Rôlo Martins em sua dissertação de mestrado “Entre o Som
e o Silêncio: Imagens e Representações das Artistas de Metal na Loud!”, para aproximar o
conceito à língua portuguesa.
244 “Negação das ansiedades através da articulação de um mundo fantástico sem mulhe-
res.” (WALSER, 1993, p. 114 - tradução nossa).

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conta que o contexto social em que o metal circula é o da sociedade oci-


dental patriarcal, não será surpreendente verificar a sua articulação com
a representação do poder masculino”.245 Esse desejo dos homens pelo
“poder masculino”, ainda característico da cena metal, foi exercido, es-
pecialmente na década de 1980, através da objetificação das mulheres nas
capas, revistas e videoclipes de heavy metal.
Nesta época, coube ao canal a cabo MTV (Music Television) populari-
zar as bandas de heavy metal através de seus videoclipes que deixavam clara
esta objetificação. A maioria dos videoclipes de heavy metal possuía, como
característica principal, os componentes das bandas – geralmente forma-
das por homens – rodeados de mulheres fazendo uso de roupas provoca-
tivas. Como nos explica Whiteley, “[t]he vast majority of bands are male and
many actively exclude women. A major preoccupation of young men is establishing
their ‘masculinity’. Thus, so-called masculine traits are exaggerated”.246
O exagero das características estereotipadamente masculinas é uma
particularidade da cena metal. O comportamento exigido dos homens é
moldado pela hipermasculinidade, que é definida por Schaffer como

The prototype of an exaggerated masculine performance, such that the “ste-


reotypical man” often performs his gender through hostility, domination of
women, and calloused sexual behavior. Hypermasculinity emphasizes the he-
terosexual conquest of women as an important aspect of performing traditional
masculinity [...] Hypermasculinity can extend beyond the sexual realm, such
that hypermasculinity endorses traditional ideas about the need for men to be
highly respected and to gain that respect by being aggressive and unfeminine.247

245 Martins (2011, p. 7).


246 “A grande maioria das bandas é masculina e muitas excluem as mulheres. Uma das prin-
cipais preocupações dos homens jovens é estabelecer a sua "masculinidade". Assim, as cha-
madas características masculinas são exageradas.” (WHITELEY, 1997, p. 159 - tradução nossa).
247 “O protótipo de uma performance masculina exagerada, é de tal forma que o “homem
estereotipado” muitas vezes performa o gênero por meio de hostilidade, dominação de
mulheres e comportamento sexual exagerado. A hipermasculinidade enfatiza a conquista
heterossexual das mulheres como um aspecto importante do desempenho da masculini-
dade tradicional [...] A hipermasculinidade pode se estender além do contexto sexual, de
modo que a hipermasculinidade endossa as ideias tradicionais sobre a necessidade de os

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A hipermasculinidade na cena heavy metal, especialmente nas décadas


de 1980, se dava através da representação da mulher como objeto a ser
conquistado. Segundo Aubrey & Frisby, no início das transmissões tele-
visivas da MTV, de 40% a 75% dos videoclipes transmitidos continham
imagens sexuais que objetificavam as mulheres.248 Logo, àqueles homens
que assistiam aos videoclipes, a representação era de um mundo hiper-
masculino no qual as mulheres eram objetificadas, onde as personalidades
femininas não existiam e que, depois de conquistadas, as mulheres deve-
riam servir aos homens que performavam hipermasculinidade.
O processo de objetificação e de excrição das mulheres se deu
porque os homens headbangers buscavam mecanismos para afirmar sua
masculinidade e sua heterossexualidade.249 Mas isto não significa que as
mulheres aceitaram passivamente esta exclusão. Não é, portanto, corre-
to afirmar que a cena heavy metal era, e segue sendo, frequentada apenas
por homens heteronormativos, uma vez que as mulheres sempre esti-
veram presentes. Ainda que em menor número quando comparadas aos
homens, as mulheres estiveram e seguem envolvidas como fãs, líderes
de fãs clubes, produtoras de fanzines e cada vez mais como musicistas e
produtoras de conteúdo.
Desde o início da NWOBHM, havia bandas que possuíam mulhe-
res na sua composição ou que eram totalmente formadas por mulheres,
como Girlschool e Vixen. No entanto, a elas não era dado o mesmo es-
paço na imprensa que era dado às bandas formadas por homens.250 Esta
ausência de ênfase na cobertura de bandas formadas por mulheres pode
ser atribuída ao sexismo vigente. Se atualmente os meios de comunicação
midiáticos ainda respondem à ordem patriarcal, nos anos 1980 esse pro-
cesso era mais latente, especialmente no mundo musical e mais ainda no
meio da música heavy metal. Resultado do patriarcado, a mídia musical

homens serem altamente respeitados e ganharem esse respeito sendo agressivos e pouco
femininos.” (SHAFER et al., 2018, p. 45).
248 Aubrey & Frisby (2011, p. 478).
249 Riches (2015, p. 268).
250 Strong (2011, p. 402).

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reservava às bandas formadas por mulheres o lugar de coadjuvantes na


cena da música heavy metal.
Atualmente, este enfoque vem sendo mudado pelas próprias
mulheres da cena heavy metal. Seja como jornalistas, produtoras de
conteúdo e musicistas, as mulheres headbangers vêm produzindo seu
próprio conteúdo e se colocando cada vez mais no centro da cena,
trazendo questionamentos acerca da hipermasculinidade e do sexismo
presentes neste ambiente.

4. FEMINISMO E EMPODERAMENTO NA CENA HEAVY


METAL

Who cares what anyone says?/ I will do it anyway/ Nothing to lose, every-
thing to gain251

(Girlschool, 1980)

Apenas o fato de ser mulher e fã de heavy metal pode ser entendido


como um ato subversivo. A maioria das mulheres inseridas na cena metal
são testadas constantemente: seja na cobrança para demonstrar que real-
mente entendem dos diversos estilos de heavy metal, seja para validar que
sabem tocar os instrumentos. Das mulheres headbangers é mais cobrada
uma certa autenticidade do que dos homens, sejam elas fãs ou musicistas.
A autenticidade é entendida pelos headbangers como a pureza nas músi-
cas e nas atitudes252 ser um "autêntico headbanger” inclui conhecer os subes-
tilos de Metal, a história do heavy metal e de seus subgêneros, as principais
músicas e bandas, os produtores dos álbuns preferidos (HJELM; KAHN-
-HARRIS; LEVINE, 2013, p. 172) e possuir uma atitude autêntica que
envolve ter uma identidade que remete ao seu gosto por Heavy Metal.
Kahn-Harris (HJELM; KAHN-HARRIS; LEVINE, 2013, p. 172)
usa o conceito de “capital subcultural” para explicar como a autenticida-

251 “Quem se importa com o que todos dizem/Eu vou fazer de qualquer forma/Nada a
perder, tudo a ganhar.” (tradução nossa).
252 Roccor (2000, p. 84, apud BARNARD, 2020).

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de é entendida no mundo do heavy metal. Capital subcultural é percebido


como o reconhecimento entre seus pares na cena Metal de que a ou o
headbanger é autêntica ou autêntico. O reconhecimento da autenticidade
contribui para que a pessoa se sinta incluída dentro da comunidade Metal.
Esta autenticidade é cobrada instantaneamente quando uma mulher
demonstra ser fã do estilo. Delas é exigido que listem as bandas que gos-
tam e que provem que realmente as conhecem. Por este motivo, as mu-
lheres estão a todo o momento negociando a sua existência na cena metal
ao demonstrar seu conhecimento.
Como resultado é possível dizer que não há uma forma simples das
mulheres participarem do mundo do heavy metal. Ao mesmo tempo em
que performam feminilidade também são cobradas a performar masculi-
nidade. Ao mesmo tempo em que frequentam um espaço hipermasculino,
também se sentem empoderadas. São feministas, porém são fãs de um gê-
nero musical que ainda hoje se constrói em uma cena marcada pela hiper-
masculinidade. Hutcherson & Haenfler nos informam que “[m]usicians and
fans alike construct, maintain, and redefine gendered identities and meanings via con-
suming and producing music, as well as participating in music-based subculture”.253
O interesse surge primeiramente pela música heavy metal, mas consequen-
temente as headbangers passam a se identificar com o estilo e a vivê-lo. E é
vivendo dentro desta cena musical que as mulheres, em sua grande maioria
feministas, a ressignificam a partir dos ideais feministas.
Presentes desde a criação do heavy metal, os ideais feministas sempre
fizeram parte da cena metal entre as mulheres. Ainda que não se colocas-
sem diretamente como ativistas do feminismo, as musicistas faziam uso
do discurso de autonomia das mulheres e de seus corpos em suas compo-
sições. Exemplo de independência feminina, a banda britânica formada
somente por mulheres chamada Girlschool já remetia na década de 1980,
através de sua postura no palco e de suas letras, à liberdade conquistada
através da luta feminista.

253 “(m)usicistas e fãs constroem, mantêm e redefinem identidades e significados de gê-


nero por meio do consumo e da produção musical, bem como participando de subculturas
baseadas na música.” (Hutcherson & Haenfler, 2010, p. 102 - tradução nossa).

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Atualmente, bandas de heavy metal como a brasileira Nervosa, do su-


bestilo thrash metal, têm em suas integrantes mulheres que se apresentam
como feministas e que fazem do Feminismo pauta de entrevistas e de
seus discursos. A existência das mulheres, seja como empresárias, musi-
cistas ou headbangers, por exemplo, na cena metal só é possível graças ao
Movimento Feminista. É na luta pelos direitos das mulheres e no desejo
de fazer parte e de permanecer no mundo do heavy metal que as mulheres
constroem o empoderamento dentro da cena.
Pode parecer contraditório, mas é possível dizer que este empode-
ramento vem justamente do fato de negociarem seu pertencimento. Ser
mulher feminista em um ambiente que exalta traços de hipermasculi-
nidade é mais que um desafio, é também uma demonstração de força.
Às mulheres headbangers cabe desafiar a ordem heteronormativa vigente,
negociando, mudando e se apropriando de um mundo hipermasculino.
Ressignificar este espaço considerado masculino é também um meio
de tomá-lo para si e é subvertendo as normas da cena metal que as mu-
lheres o transformam. É desta forma que as headbangers constroem e se in-
tegram à comunidade heavy metal e que a fazem também pertencer a elas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

It's not easy when you're breaking the rules/The children always cry hard/
You know I'm nobody's fool254

(Girlschool, 1986)

Como vimos, as mulheres na música, mais especificamente no heavy


metal, sofreram ao longo da História um processo de excrição que as colo-
cou como coadjuvantes na cena metal. No entanto, as mulheres headbangers
buscaram seu lugar e hoje são parte integrante do mundo do heavy metal.
Há no Brasil, cada vez mais, um maior número de bandas de heavy
metal formadas por mulheres ou com mulheres na formação, demons-
trando que as mulheres estão se colocando dentro da cena metal.255 O

254 “Não é fácil quando você está quebrando as regras / As crianças sempre choram muito
/ Você sabe que não sou tola.” (tradução nossa).
255 Para prestigiar bandas de Heavy Metal com mulheres na formação procure conhecer:

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mundo do heavy metal segue ainda reproduzindo o machismo da socie-


dade em determinados casos, mas já mudou muito ao longo do tempo.
Essa mudança vem de dentro da cena: vem de mulheres que questionam,
reescrevem e reconfiguram o mundo do heavy metal.
Sejam elas empresárias, fãs, musicistas, produtoras, engenheiras de
som ou pesquisadoras do tema, as mulheres seguem ganhando espaço e
cada vez mais demonstrando a sua importância. Não estão ali por acaso,
estão porque desejam estar e porque amam a música. São feministas e
questionam a denominação “heavy metal feminino”, pois querem ser in-
cluídas na cena pelo seu talento e pela sua música, e não permanecerem
como um subgrupo à parte na cena metal. Sabem que seu papel ainda é o
de abrir caminhos para novas bandas formadas por mulheres e pretendem
ainda figurar em listas de guitarristas de forma igualitária e com a mesma
cobertura midiática que possuem os homens guitarristas. Afinal, em um
mundo ainda marcado pelo machismo, e em uma cena hipermasculina
como a do metal, tocar e cantar é antes de tudo um ato de resistência.

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189
OS DESAFIOS DA
SUB-REPRESENTAÇÃO
FEMININA NA POLÍTICA
Débora do Carmo Vicente

INTRODUÇÃO

O tema da desigualdade de gênero e, mais especificamente da


sub-representação feminina, na política não é algo a ser superado ape-
nas no Brasil. Em 2015, por ocasião do aniversário de vinte anos da
Declaração e Plataforma de Ação de Pequim256, adotadas na IV Con-
ferência Mundial sobre a Mulher, a Organização das Nações Unidas
(ONU) reconheceu e declarou que a desigualdade de gênero é um
desafio mundial. Segundo o Relatório do Conselho Econômico e So-
cial: “Apesar da expansão dos compromissos normativos e de direitos
humanos nos últimos 20 anos, a desigualdade de gênero continua a
ser um desafio universal. Não há um único país no mundo que tenha
alcançado a igualdade de gênero”.257
Durante a Conferência de Pequim, realizada em setembro de 1995,
os 189 países reunidos comprometeram-se a garantir ao menos 30% de
representação feminina em seus parlamentos nacionais. O tema foi am-
plamente discutido, concluindo-se que o percentual, chamado de “massa

256 A Declaração e Plataforma de Ação de Pequim é considerada o documento internacio-


nal mais abrangente sobre os direitos das mulheres.
257 ONU (2015, par. 372, p. 100).

190
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crítica”, era o mínimo necessário para que as mulheres pudessem impac-


tar em um campo tradicionalmente dominado por homens.
Até mesmo países mais desenvolvidos apresentam preocupação em
relação ao tema, sendo tal debate um dos mais importantes da contempo-
raneidade. A título comparativo, a maior economia do mundo, os Estados
Unidos, ainda não atingiu a almejada massa crítica em seus parlamentos,
pois conta, atualmente, com 27% de mulheres no legislativo nacional, a
maior proporção já alcançada na história política do país. Ocupa a posição
de número 66 no ranking organizado pela União Interparlamentar, que
mede a presença de mulheres nos parlamentos dos 193 países que fazem
parte da ONU.258 259
O Japão, a terceira maior economia do mundo, classifica-se na po-
sição 165 do ranking, com menos de 10% de mulheres eleitas, atrás até
mesmo do Brasil, que por sua vez, ocupa a posição 142, com uma média
de 15,2% de mulheres em seus parlamentos. Vale destacar que o Brasil
perde em representatividade feminina para o Afeganistão e Arábia Sau-
dita, último país do mundo a conceder o direito de voto às mulheres, em
2011, mas que já alcançou 19,9% de mulheres eleitas em seu parlamento,
ocupando a posição de número 119 do ranking.
Como destacou a Revisão de 20 anos da Plataforma de Pequim, a
participação das mulheres na política é fundamental não só por razões
de justiça e igualdade, mas porque a presença ativa das mulheres pode
promover maior inclusão das questões de gênero nos espaços de delibera-
ção e decisão, além de incentivar o acompanhamento da implementação
de políticas e programas favoráveis aos direitos das mulheres.260 Trata-se,
em realidade, de uma questão de representação democrática, pluralismo
político, valores e princípios previstos na Constituição da República Fe-
derativa do Brasil.

258 INTERPARLIAMENTARY UNION – IPU. Dados atualizados em Abril de 2021. Disponi-


vel em: <https://data.ipu.org/women-ranking?month=4&year=2021>. Acesso em: 6 maio
2021.
259 IPU (2021).
260 ONU (2015, p. 103).

191
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Apesar de as mulheres comporem a maior parte do eleitorado bra-


sileiro, até as eleições de 2018, as mulheres nunca haviam ultrapassado a
marca de 10% de ocupação das cadeiras disponíveis na Câmara de Depu-
tados e 16% do Senado brasileiro. Em 2018, foram eleitas 77 parlamen-
tares, um aumento de 51% em relação ao pleito anterior, quando foram
eleitas 51 mulheres. Já nas Assembleias Legislativas, foram eleitas 159 re-
presentantes, um crescimento em relação a 2014, quando 114 mulheres
foram eleitas para o cargo de deputada estadual.
Em 2018, foram eleitas nove mulheres para atuarem como deputadas
estaduais, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, dos
55 cargos em disputa, um percentual de 16,36%. Dos 31 deputados fede-
rais que representam o estado do Rio Grande do Sul no Congresso Nacio-
nal, apenas três mulheres foram eleitas – 9,09%. Há, entretanto, estados
em pior situação, como Amazonas, Maranhão e Sergipe, que não elegeram
deputadas federais. Além disso, apenas uma mulher foi eleita governadora,
nas Eleições de 2014 e 2018. Vale destacar que a representatividade femini-
na no comando dos estados vem decaindo, pois em 2002 foram eleitas duas
mulheres, em 2006, três, e em 2010, duas governadoras.
Com efeito, as eleições municipais de 2020 bateram recordes de mu-
lheres candidatas e eleitas, mas ainda assim o avanço foi bem tímido. Ob-
servando-se a classificação mundial, o Brasil possui menor participação
proporcional de mulheres no Poder Legislativo do que nações de menor
abertura política e cultural, e até mesmo de menor condição socioeco-
nômica, como Uganda, 42º do ranking, Afeganistão, 69º, e Iraque, 73º
do ranking da União Interparlamentar. Ademais, o Brasil é o mais mal
colocado entre os países da América do Sul e Central.
Mas o que impede a maior eleição de mulheres no Brasil? Esta é a
indagação que orienta o presente artigo. Como ensina Flávia Biróli, são
diversos os fatores:

É possível sustentar, partir do conjunto amplo e heterogêneo de


estudos que temos hoje à disposição, que obstáculos materiais,
simbólicos e institucionais erigem barreiras que dificultam a atua-
ção das mulheres e alimentam os circuitos da exclusão.261

261 Biróli (2018, p. 172).

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Adotando-se o plano francês, o texto é dividido em duas partes para,


inicialmente, apresentar e desconstituir os mitos que insistem em atribuir
a culpa às próprias mulheres, revelando os obstáculos sociais, culturais e
econômicos para a eleição de mulheres para cargos eletivos.
Na segunda parte, são analisados os fatores jurídico-normativos que
contribuem para o fenômeno de sub-representação feminina na política
brasileira. Expõem-se as indefinições e vácuos jurídico-normativos que
prejudicam e/ou desencorajam a participação de mulheres na política,
abordando-se na sequência a política de cotas de candidaturas femininas
instituída no Brasil, que não tem sido cumprida plenamente, e não tem
surtido o efeito desejado. Para tanto, utiliza-se a investigação bibliográfica
e documental, por meio de consulta doutrinária, jurisprudencial e legal.

1. MITOS, DESAFIOS SOCIAIS, CULTURAIS E


ECONÔMICOS

É frequente atribuir a culpa da baixa representação feminina na po-


lítica às próprias mulheres. Sabendo-se que a maioria do eleitorado bra-
sileiro é feminino, costuma-se propagar que são as mulheres as culpadas,
pois não votam em mulheres. Todavia, este argumento é inadequado e
reforça estereótipos culturais.
Historicamente, a política é um campo dominado pelos homens e
estruturado de forma tradicional, o que dificulta novas configurações.
A campanha eleitoral é marcada desde o princípio pelo baixo número
de mulheres que se candidatam a um cargo político. E isso ocorre, den-
tre outros motivos, porque a cultura política privilegia valores e crenças
associadas à masculinidade. O ideal de líder no imaginário social é um
homem branco.
Essa cultura prejudica as mulheres ainda na etapa do desenvolvimento da
chamada “ambição política”, isto é, na decisão de se candidatar. Pesquisa rea-
lizada pelo DataSenado, em parceria com a Procuradoria Especial da Mulher
no Senado, revelou que 87% das mulheres nunca haviam pensado seriamen-
te em se candidatar a um cargo político. O estudo demonstrou ainda que, na
visão das entrevistadas, o motivo mais frequente (apontado por 41% delas)

193
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

é a “falta de apoio dos partidos políticos”. E o mais revelador: para 83% dos
entrevistados, o sexo do candidato não importa na hora de votar.262
Vinte e seis anos após a estipulação de uma meta de atingir no mí-
nimo 30% de mulheres nos parlamentos ao redor do mundo, apenas 50
dos 193 países que fazem parte da ONU atingiram esse percentual, isto
é, apenas um quarto das nações. A verdade é que, mundialmente, o com-
portamento masculino é tido como uma “normalidade” política, e os
comportamentos femininos, como um desvio desta normalidade. Então
as mulheres não participam da política, porque de uma maneira ou de
outra a política não está aberta para elas.
Quando as mulheres realizam tarefas consideradas masculinas, exi-
ge-se delas extremar características associadas ao seu gênero feminino,
como uma forma de compensação dessa atividade considerada masculina
ou as mulheres que ascendem para as elites políticas acabam tendo que se
aproximar mais do perfil associado aos homens.263
O fato é que as mulheres são discriminadas no campo político,
tanto pela mídia, como pelos partidos e pela própria sociedade. Em
regra, são julgadas com mais rigor do que seus companheiros, e isso
também acaba por dificultar sua carreira política. Surge ainda a ques-
tão do tempo que as mulheres se dedicam à política e o estereótipo de
mulher que consegue fazer parte dela. A questão do tempo é eviden-
te, porque das mulheres são exigidos outros deveres como o cuidado
com a família e maiores responsabilidades domésticas. Isto reduz con-
sideravelmente o tempo disponível para dedicar-se exclusivamente à
política, prejudicando-as em momentos-chave como na indicação de
cargos e candidaturas. Sabe-se que, em regra, essas reuniões são reali-
zadas em locais e horários mais propícios ao público masculino, como
bares e horários noturnos.
Michelle Bachelet, quando presidente do Chile, como medida de
governo e cumprindo um compromisso com a igualdade de gênero, no-
meou 10 ministras mulheres e proibiu reuniões de trabalho após as 18h,

262 Senado Federal (2014, p. 2).


263 Astelarra (1990, p. 13).

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sabendo que para a maioria das funcionárias seria muito mais difícil par-
ticipar (informação verbal264).
Arranjos sociais conservadores exigem uma abordagem transversal,
de cunho cultural e educacional, para garantir a eliminação de estereóti-
pos associados aos papéis tradicionais das mulheres e meninas na família,
no trabalho e na sociedade em geral. A Plataforma de Ação de Pequim265
prevê a educação, a família e os meios de comunicação como agentes in-
dispensáveis para incidir no imaginário coletivo, nas representações e nas
identidades culturais, para estabelecer sistemas não discriminatórios no
país, em busca da igualdade de gênero e eliminação da violência contra
as mulheres.
A representação recorrente de imagens negativas ou degradantes de
mulheres na mídia, seja ela eletrônica, impressa, visual ou auditiva, tem
contribuído para reforçar os papéis tradicionalmente desempenhados pe-
las mulheres de forma inferior ou pejorativa. Cabe ao Estado promover
o desenvolvimento de padrões culturais democráticos, por meio de po-
líticas sociais públicas de ação conjunta com os meios de comunicação,
visando construir novos papéis e valores sociais que promovam uma cul-
tura não discriminatória, estimulando a desnaturalização das desigualda-
des fundadas em gênero.
Nesse contexto, torna-se comum ouvir que “mulheres não votam
em mulheres”. Mas os fatos comprovam o oposto. Além da pesquisa rea-
lizada pelo DataSenado, já referida, basta relembrar que o Brasil já teve
uma mulher eleita presidente, e no primeiro turno da eleição presidencial
de 2010, as candidatas Dilma Rousseff e Marina Silva angariaram juntas
62,91% dos votos válidos daquela eleição, somando quase 66 milhões de
votos. Ou seja, quase 63% da população do Brasil votou em uma mu-
lher para ser presidente do Brasil, evidenciando que o problema não é o
preconceito contra as candidatas mulheres, mas sim a baixa visibilidade
destinada, em regra, pelos partidos políticos às candidatas.

264 Fala da Profa. Flávia Biroli no debate promovido pela Escola Judiciária do TSE, em
30 de Março de 2017, sobre: A participação das Mulheres na Política. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=g_liXp4mP5w>. Acesso em: 17 maio 2021.
265 ONU (1995).

195
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Ademais, basta citar que, em 2020, mulheres estão entre as mais vo-
tadas em 13 capitais – Porto Alegre foi uma delas. O mesmo ocorreu em
2016, quando mulheres foram as mais bem votadas em quatro capitais:
Porto Alegre, Belém, Recife e Belo Horizonte. Em todos os casos, as
mulheres eleitas tiveram votação tão expressiva que atuaram como “pu-
xadora de votos” em seus partidos e coligações.
Vale pontuar que Porto Alegre superou a marca de 30% de mulhe-
res eleitas para o Legislativo municipal pela primeira vez em 2020. Os
resultados podem ter estreita relação com a decisão do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), de maio de 2018, entendendo que os partidos devem
repassar 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Cam-
panha (FEFC) para candidaturas femininas. Além disso, o TSE também
considerou que o patamar de 30% valia para a propaganda eleitoral no
rádio e na televisão. Os patamares de 30% de eleitas na capital gaúcha não
parecem ser mera coincidência, mas efeito da força econômica e midiática
para uma candidatura eleitoral.
Outro mito a ser combatido é o de que as mulheres não se interes-
sam ou não querem participar da política, e por isso não se candidatam e,
portanto, não são eleitas. O fato é que as mulheres já representam mais
de 44% das filiações nos partidos políticos brasileiros conforme dados do
sistema do TSE, chamado filiaweb. Ora, ninguém se filia a um partido
político por falta de interesse ou de vontade de participar da política.
O que se percebe é que as mulheres não chegam aos cargos eletivos
por diversos obstáculos que se apresentam em sua trajetória política. São
obstáculos sociais, culturais e econômicos. No ranking mundial sobre de-
sigualdade de gênero266, publicado anualmente pelo Fórum Econômico
Mundial, em que são avaliados 156 países, em quatro dimensões – Saú-
de, Educação, Empoderamento Político e Oportunidades Econômicas
–, o Brasil ocupa a posição geral de número 93; no entanto, ao se avaliar
unicamente a participação de mulheres no parlamento, o Brasil cai para
a 122a posição.
A pior classificação brasileira está relacionada ao quesito igualdade
salarial: dentre os 156 países avaliados, o Brasil classificou-se na posição

266 Global Gender Gap Report 2021.

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126. Isto é, analisada a dimensão econômica, a situação das mulheres no


país é agravada. Segundo o relatório, o mundo levará em média 135,6
anos para atingir a paridade de gênero.
Como referido acima, o baixo desempenho eleitoral das mulheres
pode ser atribuído à própria cultura patriarcal, isto é, a aspectos sociocul-
turais; deve-se ressaltar, entretanto, que a questão financeira faz a diferen-
ça e aumenta as chances de uma mulher se eleger.
Pesquisa da União Interparlamentar realizada em 2009 constatou
que um dos impedimentos mais fortes para as mulheres ingressarem na
política foi a falta de recursos financeiros.267 Esse aspecto é crucial e foi
confirmado em pesquisa realizada pela ONU Mulheres em 2013, em
que mais de 80% dos entrevistados identificaram a falta de acesso ao
financiamento como um dos maiores desafios para a entrada das mu-
lheres na política.
Segundo especialistas, a dificuldade para levantamento de fundos por
parte das candidatas deve-se à menor probabilidade de estarem conecta-
das a redes que podem não só fornecer recursos financeiros, como tam-
bém experiência e apoio. Esse argumento de rede compreende também
os "clubes do Bolinha" que se formam dentro dos partidos, já que a maio-
ria das lideranças partidárias atuais são dominadas pelos homens.268
Para uma eleição, são necessários recursos para a compra de mate-
riais, propaganda, contratação de cabos eleitorais, entre diversos gastos, o
que torna a política dependente do poder econômico.269 Sem recursos fi-
nanceiros, torna-se impossível à candidata deslocar-se até os eleitores para
discutir e apresentar sua candidatura, suas propostas, reunir uma equipe
qualificada e organizar a campanha eleitoral, elaborar projetos de governo
com assessoria adequada, produzir peças publicitárias ou fazer pesquisa
eleitoral.
Em regra, constata-se menor financiamento para as campanhas das
mulheres independentemente de sua experiência política. Uma amostra
disso são os números da Eleição Geral de 2014. Na época, foram divulga-

267 Ballington (2008).


268 Ballington & Kahane (2015, p.408).
269 Medeiros &Chíxaro (2020, p. 80).

197
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dos os 15 principais e maiores doadores de campanha, demonstrando que


90% dos recursos doados pelas grandes empresas (R$ 325.447.961) foram
destinados para os homens e apenas 10% para as mulheres.270 Coincidên-
cia ou não, essa foi a exata proporção dos eleitos em 2014 na Câmara de
Deputados Federais, em que 51 deputadas foram eleitas, representando
apenas 9,9% dos deputados federais.
Em resposta a este manifesto desequilíbrio no sistema de financia-
mento de campanhas brasileiro, em 2015, uma minirreforma eleitoral
introduzida pela Lei nº 13.165 previu a obrigatoriedade de se direcionar
um mínimo de 5% do fundo partidário para as candidaturas femininas.
Todavia, o dispositivo que se propunha a um avanço, ainda que tímido,
trouxe também um flagrante retrocesso, impondo um teto máximo de
15% para os gastos com as campanhas femininas, invertendo a lógica da
norma.
Como são inúmeros os artifícios normativos deste tipo, parte-se
para a análise do cenário normativo e jurídico brasileiro, que se apresenta
como mais um obstáculo às mulheres em busca de um cargo político.

2. CENÁRIO NORMATIVO E JURÍDICO

São diversos os fatores que afetam o cenário político para as mulheres


e muitos deles estão relacionados com as normas que moldam a dispu-
ta eleitoral. Nesta parte, além das normas sobre financiamento eleitoral,
serão analisadas: a política de cotas de gênero implantada no Brasil, que
não tem atingido seus objetivos, tampouco é plenamente cumprida; e as
indefinições jurídicas, que ao gerar decisões judiciais divergentes, criam
insegurança jurídica e dificultam o acesso das mulheres a cargos eletivos.
Um exemplo dessas manobras legislativas é o dispositivo da Lei nº
13.165/2015, que se propunha a favorecer a participação de mulheres na
política. No entanto, ao mesmo tempo que incluiu uma obrigação de
destinar 5% do fundo partidário às campanhas femininas, incluiu tam-
bém uma grande incongruência, pois estabeleceu um teto máximo de
15% do fundo para financiar o mínimo legal obrigatório de 30% de can-

270 Cf. site Às Claras (2014).

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didatas mulheres de cada partido. Na prática, os partidos ficariam obri-


gados a gastar com suas candidatas no máximo 15% do fundo, enquanto
estariam autorizados a gastar com os candidatos homens 85% do fundo
partidário.
Perante esta flagrante discrepância legislativa, o dispositivo foi obje-
to da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI nº 5617, proposta pela
Procuradoria-Geral da República. Em março de 2018, o Supremo Tri-
bunal Federal decidiu por maioria de votos, que a distribuição de recursos
do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleito-
rais deveria ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os se-
xos, respeitado o patamar mínimo legal de 30% de candidatas mulheres,
previsto no artigo 10, parágrafo 3º, da Lei nº 9.504/1997.
Mesmo diante de medidas legislativas e judiciais que buscam evitar as
práticas abusivas e desiguais na política, convém notar que são os partidos
políticos que decidem livremente como dividir recursos dentro do parti-
do. As cúpulas partidárias são dominadas por homens, notando-se uma
tendência a se desconsiderar as candidatas do sexo feminino quando elas
não estão no alto da estrutura partidária.
É também por esse motivo que diversos especialistas defendem a im-
posição de reserva de gênero para os órgãos de direção partidária, como
ocorre no Peru, por exemplo. Para Julie Ballington e Muriel Kahane,
"as mulheres devem ser parte de órgãos decisórios, a fim de garantir que
os fundos sejam desembolsados de uma forma que beneficie igualmente
todos os candidatos".271
Vale referir que o acesso gratuito ou subsidiado à mídia é uma forma
indireta de financiamento político. Não se pode esperar que o eleitor vote
em uma candidata que ele não conhece. Via de regra, as mulheres pouco
aparecem na propaganda eleitoral, até por não haver disposição normativa
expressa que alinhe a distribuição de tempo no rádio e na televisão em
termos de percentual de gênero.
A despeito de falta de previsão legal e a fim de combater esta prática
atentatória aos princípios da igualdade, oito senadoras e seis deputadas fe-

271 Ballington & Kahane (2015, p. 423).

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derais formularam consulta sobre o tema ao Tribunal Superior Eleitoral,


que decidiu, em maio de 2018, nos seguintes termos:

[...] a carência de regramento normativo que imponha a obser-


vância dos patamares mínimos previstos no art. 10, § 3º, da Lei nº
9.504/97 à distribuição do tempo de propaganda eleitoral no rádio
e na televisão não obstaculiza interpretação extraída a partir de
preceitos constitucionais que viabilizem a sua implementação.272

A decisão foi um avanço para a campanha das mulheres, sabendo-se


que a exposição na mídia é vital para uma campanha e pode contribuir
para desafiar estereótipos difundidos que impedem as mulheres de serem
vistas como capazes e legítimas para os espaços de poder.273
Na mesma oportunidade, o Plenário do TSE, em decisão unânime,
confirmou que os partidos políticos deveriam, já para as Eleições 2018,
reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financia-
mento de Campanha, para financiar as campanhas de candidatas. Em
consonância com a decisão do STF sobre destinação de pelo menos 30%
dos recursos do Fundo Partidário às candidatas mulheres.
A título comparativo, vale indicar que o fornecimento de financia-
mento público, como é o caso do Brasil, é por diversos países vinculado à
aplicação de cotas eleitorais e à nomeação de mulheres como candidatas.
A França, por exemplo, possui uma sistemática muito interessante desde
2000, em que não mais do que 51% dos candidatos podem ser de um gê-
nero, e se a diferença de gênero entre os candidatos é maior do que 2%, o
financiamento público é reduzido em três quartos. Portugal adotou uma
reforma semelhante em 2006.274
No Quênia, os partidos não podem receber financiamento caso uma
determinada porcentagem de mulheres não seja eleita. Essa disposição,
junto com a reserva de cadeiras para mulheres no Parlamento, resultou

272 Brasil, TSE (2018). Consulta 11551.


273 Krook (2013).
274 Ballington & Kahane (2015, p. 422 e 424).

200
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numa duplicação no número de eleitas.275 No Brasil, há disposição ainda


inócua prevendo que 5% do Fundo Partidário seja destinado a criar e
manter programas de incentivo às mulheres na política. Há uma tendên-
cia mundial de estímulo aos partidos políticos, a fim de que destinem
fundos a atividades e programas de educação, treinamento, colaboração e
incentivo às mulheres na política.
É sabido que a menor experiência política das mulheres tem sido usada
para justificar a não indicação de mulheres e relegá-las a postos inelegíveis.
No Brasil, é comum a alegação de que as mulheres não querem partici-
par da política por falta de experiência ou conhecimento. Assim, deve-se
enfatizar a importância de os partidos promoverem treinamentos efetivos
de capacitação de mulheres, não apenas em termos de habilidades para o
engajamento político, mas também acerca do funcionamento do processo
eleitoral, financiamento de campanhas e arrecadação de recursos, além de
propiciar ambientes mais favoráveis à integração das mulheres.
Nesse sentido, importa destacar os resultados obtidos pela pesquisa
“Democracia e Representação nas eleições de 2018: campanhas eleito-
rais, financiamento e diversidade de gênero”, desenvolvida pela Escola de
Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no período de
agosto de 2018 a agosto de 2020.276
Com relação ao financiamento eleitoral, o estudo analisou três cená-
rios distintos: primeiro considerando candidaturas femininas apenas em
cargos proporcionais; segundo, incluídas as candidaturas majoritárias en-
cabeçadas por mulheres; e no terceiro, incluídas as candidaturas majori-
tárias que tinham pelo menos uma mulher como vice ou suplente. Com
relação ao Fundo Eleitoral de Financiamento de Campanha (FEFC), três
partidos não cumpriram o percentual mínimo sob nenhum dos três ce-
nários analisados. Já com relação ao Fundo Partidário, oito partidos não
cumpriram com o percentual mínimo de recursos para candidatas. Se-
gundo as pesquisadoras:

275 Ballington & Kahane (2015, p. 422 e 424).


276 Ramos et al. (2020).

201
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Essa proporção alta de descumprimento em alguns cenários pode


ser resultado da imprecisão sobre quais tipos de candidaturas de
mulheres os partidos devem levar em consideração na distribuição
dos recursos. Isto é, se a distribuição engloba candidaturas pro-
porcionais e majoritárias, incluindo vices e suplentes, ou apenas
proporcionais. Para evitar esse alto grau de descumprimento, é
importante que haja critérios mais precisos sobre a distribuição
dos recursos públicos. Isso poderia facilitar a fiscalização e fortale-
cer o cumprimento das regras pelos partidos políticos.277

O papel dos Partidos Políticos é vital no incremento da representação


das mulheres na política. Eles são o elo essencial para alcançar a igualdade
e a participação inclusiva das mulheres.
Dois outros achados da pesquisa da FGV merecem destaque. São
os que dizem respeito às cotas de candidaturas, que não são plenamente
cumpridas, reduzindo significativamente o número de mulheres candi-
datas e potencialmente o número de eleitas. E a ausência de um conceito
jurídico uniforme de candidaturas laranja, o que prejudica a participação
das mulheres na política.278 Convém aqui rememorar como foi implanta-
da a reserva de cotas de gênero no Brasil, concretizada logo após a maior
e mais importante conferência mundial organizada pela ONU sobre os
direitos das mulheres, a Quarta Conferência Mundial de Mulheres, rea-
lizada em Pequim, em setembro de 1995.
Em 1995, durante a Conferência de Pequim, os países, inclusive o
Brasil, comprometeram-se a garantir ao menos 30% de representação
feminina nos seus parlamentos nacionais. O estabelecimento do percen-
tual de 30% foi amplamente discutido nas reuniões da conferência e se
concluiu que era um percentual mínimo, chamado de “massa crítica”,
necessário para que as mulheres contribuíssem de maneira significativa
num campo dominado pelos homens.
Em uma tentativa de expandir a representação feminina na políti-
ca brasileira, as mulheres imediatamente de volta da Conferência, que

277 Ramos et al. (2020, p. 10-11).


278 Ramos et al. (2020, p. 10-11).

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ocorreu de 9 a 15 de setembro de 1995, engajadas a colocar em prática


as discussões lá travadas, pressionaram a edição da Lei nº 9.100, de 29 de
setembro de 1995 – uma lei temporária que estabeleceu normas para a
realização das eleições municipais de 1996, e previu, em seu art. 11, §3º,
uma cota de, no mínimo, 20%, a ser preenchida com mulheres candi-
datas. Dois anos depois, foi promulgada a Lei nº 9.504/1997, a chamada
Lei das Eleições, ainda vigente, em que pese bastante retalhada, que deter-
minou a reserva de um percentual mínimo de 25% para cada sexo, no
pleito geral de 1998, e para as eleições posteriores, a lei fixou em 30%, o
mínimo, de candidaturas de cada sexo.
Não obstante o aumento para 30%, não se verificou incremento efe-
tivo das candidaturas femininas, uma vez ter restado assentado o enten-
dimento de que a norma não obrigava o “preenchimento”, mas apenas a
“reserva” de vagas. Diante desta brecha legislativa, os Partidos alegavam
que haviam reservado as vagas, mas não haviam encontrado mulheres
interessadas ou aptas a se candidatar.
Por via de consequência, em 2009, a reforma eleitoral introduzida
pela Lei nº 12.034 deu nova redação ao §3º do art. 10, da Lei nº 9.504,
determinando que cada partido ou coligação “preencherá o mínimo de
30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para can-
didaturas de cada sexo”. Substituiu-se a expressão “deverá reservar” para
“preencherá” o mínimo de 30% (trinta por cento), com o objetivo de
realmente aumentar o número de candidaturas de mulheres. Essa mu-
dança na norma motivou a alteração na jurisprudência sobre o tema279 e o
TSE passou a exigir a observância do número de candidatos efetivamente
apresentados para fins de cálculo do percentual mínimo por gênero.
Afora isso, a Lei nº 12.034 instituiu novas disposições na Lei dos
Partidos Políticos, de forma a privilegiar a promoção e difusão da parti-
cipação feminina na política. Dentre elas, obrigou os partidos a investir
5% do fundo partidário na “criação e manutenção de programas de pro-
moção e difusão da participação política das mulheres”. Todavia, além de
o percentual ser muito pequeno para possibilitar qualquer alteração con-

279 Santos & Barcellos (2015, p. 10).

203
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

siderável no quadro de sub-representação feminina, inexistindo previsão


de sanções, mais uma vez a lei não alcançou os resultados esperados.
O passo seguinte veio em 2013, com a Lei nº 12.891, que introduziu
o artigo 93-A na Lei das Eleições, o qual passou a prever que o Tribunal
Superior Eleitoral, no período compreendido entre 1º de março e 30 de
junho dos anos eleitorais, poderia promover propaganda institucional, em
rádio e televisão, destinada a incentivar a igualdade de gênero e a parti-
cipação feminina na política. Novamente sob a tutela da possibilidade,
nenhuma medida foi tomada.
Assim, em 2015, foi lançada nova reforma legislativa eleitoral desti-
nada, dentre outros objetivos, a incentivar a participação feminina na po-
lítica brasileira. Esta lei alterou a redação do artigo 93-A da Lei nº 9.504,
substituindo a locução “poderá promover” por “promoverá”, no tocante
à publicidade institucional realizada pelo TSE em prol do incremento da
participação feminina na política.
É preciso salientar, no entanto, que a previsão de cotas de candidatas
não tem se mostrado suficiente para a eleição de mais mulheres ou maior
participação delas na política brasileira. Para esse mister, especialistas de-
fendem, dentre outras medidas, a implementação de cotas para a efetiva
ocupação dos cargos eletivos pelas mulheres, numa verdadeira reserva de
cadeiras.280
Nota-se, contudo, forte resistência da classe política dominante com
propostas nesse sentido. Corolário do raciocínio de que não existe espaço
livre de poder, para mais mulheres entrarem, homens terão que sair. Razão
pela qual o plenário da Câmara rejeitou proposta de emenda constitucional
tendente a garantir temporariamente, por três legislaturas, um percentual
mínimo de vagas no Legislativo para as mulheres.281 Inobstante essa relu-
tância, tramitam atualmente no Congresso Nacional ao menos cinco pro-
jetos com o objetivo de ampliar a participação feminina na política.
Ademais, cumpre destacar que a ONU tem recomendado a utilização
de cotas eleitorais adequadas aos sistemas eleitorais nacionais como uma
ferramenta fundamental para a promoção de uma participação política mais

280 Salgado et al. (2015, p. 171).


281 Câmara de Deputados (2015).

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plural e democrática. O estudo revelou que as cotas eleitorais, tanto as de


candidatas como as de assentos reservados, têm particularmente impulsio-
nado a representação das mulheres na política em todo o mundo.282
Todavia, como se viu com os dados apontados, no Brasil, o sistema
de cotas a candidatas não tem surtido efeitos práticos capazes de ampliar
a participação feminina na política brasileira. O sistema eleitoral pátrio,
baseado em listas abertas, está focado nos candidatos, o que torna a cam-
panha mais cara e tem um efeito negativo para as mulheres que, em geral,
conseguem menos recursos.
Afora isso, por ser mais fácil apenas incluir mulheres como candida-
tas, para cumprir o que a lei estabelece, do que de fato tentar promover
lideranças femininas, os partidos tendem simplesmente a recrutar mu-
lheres sem capital político, não se preocupando em investir nelas, o que
acabou por gerar no Brasil o fenômeno conhecido por “candidaturas la-
ranja” ou de fachada ou fraude à cota de gênero.
A título ilustrativo, 14.473 candidatas a vereadoras nas eleições de
2016 não receberam nenhum voto sequer, nem o seu próprio voto, em
contrapartida a 1.704 candidatos homens sem votos computados283.
Convém admitir que este número vem mudando, pois, em 2020, 3.454
candidatas mulheres receberam zero voto, enquanto 1.843 homens não
tiveram votos. Em realidade, constata-se que diversas mulheres filiadas a
partidos acabam sendo apresentadas como candidatas sem o seu consen-
timento.284 Nesse cenário, os partidos políticos têm se apresentado como
os maiores adversários das mulheres, “os partidos políticos são as institui-
ções mais resistentes a abrir-se à participação política das mulheres”.285
A pesquisa da FGV, já referida, aponta que o fenômeno das candida-
turas fictícias é agravado pela inexistência de um enquadramento jurídico

282 ONU (2015, p. 57).


283 BRASIL. TSE. Mais de 16 mil candidatos tiveram votação zerada nas Eleições 2016.
Brasília: TSE, 2016. Disponível em: < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/
Novembro/mais-de-16-mil-candidatos-tiveram-votacao-zerada-nas-eleicoes-2016 >. Aces-
so em: 11 Abr. 2021.
284 Santos & Barcellos (2015, p. 10).
285 Feitosa (2012, p. 164).

205
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claro. A lei eleitoral não define o que são candidaturas fictícias, tampouco
quais são as sanções aplicáveis. Ademais, não existe uma definição juris-
prudencial clara e uniforme para o conceito de candidaturas fraudulentas,
nem dos elementos que a compõem. Não havendo consenso jurispru-
dencial, cria-se um cenário de imprevisibilidade judicial, isto é, a depen-
der de quem julga, os critérios e as consequências podem ser diversas.286
Este cenário de indefinição prejudica as candidatas e beneficia os partidos
que arriscam apostando na impunidade e na falta de clareza normativa.
Para evitar este alto grau de descumprimento normativo, é impor-
tante o estabelecimento de critérios mais precisos sobre a política de cotas
e sobre as regras de financiamento dos partidos políticos e campanhas
eleitorais. Deve-se exigir dos partidos e dos parlamentares brasileiros
comprometimento com o melhor funcionamento da dinâmica demo-
crática brasileira, baseados nos fundamentos da República Federativa do
Brasil de cidadania e pluralismo político, dentre outros.
Em análise sobre o efeito das cotas de gênero na América Latina,
Susan Franceschet demonstra que, embora as cotas de gênero não sig-
nifiquem, por si só, uma maior defesa das pautas políticas relacionadas à
igualdade de gênero pelas parlamentares eleitas, o aumento da participa-
ção feminina provoca efeitos positivos na representação descritiva, subs-
tantiva e simbólica das mulheres.287
Uma sociedade que tenta funcionar com apenas metade de sua po-
pulação e capacidade, sem conceder participação e liderança econômica e
política às mulheres, resta estagnada.288

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, a representação feminina no parlamento nacional atingiu


sua melhor marca em 2018, com apenas 15,2% de mulheres eleitas para a

286 Ramos et al. (2020, p. 11-12).


287 Franceschet (2008, p. 66).
288 Sachs (2017, p. 141).

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Câmara de deputados, e 12% para o Senado, muito aquém da proporção


de quase 53% do eleitorado feminino brasileiro.
Em relatório acerca das oportunidades para o desenvolvimento de
meninas, elaborado pela organização internacional não governamental
Save The Children, publicado em 2015, o Brasil aparece na posição 102
dentre as 144 nações avaliadas. Considerando dados sobre casamento in-
fantil, gravidez na adolescência, mortalidade materna, conclusão de estu-
dos secundários e representação das mulheres no Parlamento, o país foi
apontado como o pior país da América do Sul para crescer como menina.
Como o próprio relatório destaca, apesar de figurar entre as maiores eco-
nomias do mundo, com renda média superior, o Brasil aparece apenas
três posições acima do Haiti.289
O documento demonstra que a falta de oportunidades das meni-
nas é exacerbada pela falta de representação indireta por meio de lí-
deres e representantes políticas femininas. Pesquisas comprovam uma
relação entre maior proporção de líderes mulheres em cargos públicos
e a realização de políticas que melhor atendem às necessidades das
meninas e mulheres.
Como revelado neste capítulo, são inúmeros os fatores que impedem
ou dificultam a eleição de mais mulheres no Brasil. O presente estudo
concentrou-se em duas perspectivas: a primeira abrangendo aspectos so-
ciais, culturais e econômicos, e a segunda, uma perspectiva jurídico-nor-
mativa, mais institucional.
Dos cenários analisados, percebe-se que o aumento significativo de mu-
lheres na política exige uma reforma muito mais ampla do que o sistema
de cotas atual, é preciso incluir dentre outras modificações legislativas, um
financiamento adequado de campanhas femininas, assim como uma cota de
visibilidade para as mulheres na mídia, além de uma reforma nas estruturas
partidárias, com eliminação da discriminação e estereótipos de gênero.
É preciso que o Brasil tome medidas efetivas para assegurar a parti-
cipação de mais mulheres na política, encorajando os partidos políticos a
promoverem ambientes mais receptivos e propícios às mulheres. É im-
prescindível o apoio dos partidos e dos atuais detentores de cargos eletivos

289 Save the Children (2016, p. 25).

207
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

à participação de mais mulheres no processo eleitoral, além de assegurar


que eventuais alegações de violência contra as mulheres candidatas ou
eleitas sejam investigadas e punidas.
Para uma implementação bem-sucedida de cotas eleitorais para mu-
lheres, é essencial que existam regras claras para sua aplicação, vontade
política por parte dos líderes para implementá-las, apoio dos partidos po-
líticos, constante monitoramento e fiscalização por parte das organiza-
ções de mulheres e sociedade.
Convém mencionar que a experiência das mulheres eleitas também
contribui para os baixos níveis de participação política das mulheres. His-
toricamente, as mulheres têm sido vistas como inadequadas para cargos
políticos e suas vozes julgadas menos legítimas, como resultado de discri-
minação e estereótipos de caráter social e cultural. A ameaça de violência
e intimidação têm sido uma barreira sistêmica à participação das mulhe-
res nos espaços políticos de poder.
São necessários esforços para apoiar a participação política de mu-
lheres por meio de cursos, capacitações, treinamentos e estruturas de-
dicadas à igualdade gênero. Com efeito, convenções interpartidárias,
bancadas femininas, procuradorias das mulheres, entre outras, possibi-
litam que mulheres políticas apoiem umas às outras, trabalhem juntas,
para o desenvolvimento de estratégias comuns. A união de mulheres em
torno de cursos, mentorias, associações e organizações que permitam
e incentivem a troca de experiências contribui para o fortalecimento
das habilidades necessárias para as mulheres atuarem em seus papéis de
forma mais segura.
Como visto no presente capítulo, as indefinições jurídico-norma-
tivas são outro obstáculo a ser superado. É importante salientar que o
sistema jurídico tem capacidade de enviar uma mensagem de quais são
as regras que todos devem observar e respeitar. Assim, o Direito tem um
papel fundamental na construção de realidades e possibilidades sociais,
inclusive as de gênero.
Democracia de gênero é parte essencial da democracia. Sem a
participação das mulheres nenhuma democracia é real. Nas palavras
de Mary Wollstonecraft, escritas em 1792, em um manifesto em de-

208
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213
REVISITANDO A HISTÓRIA DAS
MULHERES NUM ESPAÇO DE
COLONIZAÇÃO ALEMÃ DO RIO
GRANDE DO SUL: VINTE ANOS
DEPOIS
Marlise Regina Meyrer

INTRODUÇÃO

Ao olhar retrospectivamente para meu passado acadêmico, que se


iniciou na década de 1980, no curso de graduação, a primeira lembrança
que me vem à mente é a realidade social em que, para maioria alunas
mulheres, como eu, a graduação em História foi uma opção, dentre tan-
tas outras no rol das licenciaturas, criadas nos tempos da ditadura, e que
mudaram radicalmente o perfil dos professores no país. Nesse contex-
to, grande parte das alunas foi construindo sua formação lentamente, ao
mesmo tempo que tinha filhos e atendia aos desígnios de mãe e esposa,
cobrados pela sociedade, bem diferente do alunato jovem de hoje, que
termina a graduação com a idade que eu iniciei e se encaminha direto
para o mestrado e doutorado.
Parto deste relato pessoal “fundador” do meu “eu”, estudiosa dos
temas sobre gênero, para chamar atenção de como o impulso que tiveram
os estudos sobre a História das Mulheres, desde os anos 1980 e poste-
riormente de gênero, relacionam-se com a experiência/vivência feminina
de exclusão e exploração, possibilitando um olhar crítico sobre a socie-

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dade patriarcal do mundo ocidental. É consenso que grande parte das


historiadoras consolidaram seus estudos a partir de uma prática militante
feminista. No caso brasileiro, o maior acesso feminino ao ensino supe-
rior contribuiu para a expansão desses estudos, como foi o meu caso. Já
na graduação, no meu TCC, acabei por pesquisar parte da minha vida e
do meu lugar, quando abordei o protagonismo das mulheres no mundo
do trabalho na região do Vale dos Sinos. Minha intenção foi, a partir das
histórias oficiais que tinham protagonistas masculinos, identificar o papel
das mulheres naqueles contextos, ou as histórias que não foram contadas.
Dei o título a esse trabalho: “Apesar de ser mulher” (1992), citando a fala
de uma de minhas entrevistadas. Foi meu primeiro contato com uma
bibliografia, à época, ainda incipiente sobre a História das Mulheres, cito
Michelle Perrot, Margareth Rago, Heleith Saffiotti, Maria Valéria Junho
Penna e Mirian Moreira Leite.
Posteriormente, em minha dissertação intitulada “Evangeliches Stift:
uma escola para moças das melhores famílias” (2007) – estudei uma escola
evangélica alemã para moças fundada em 1886. Foi o momento de um
aprimoramento intelectual, quando a relação entre minhas experiências e
a teoria passaram a construir novos significados sobre minhas pesquisas.
Às leituras específicas sobre História das Mulheres, que foram aprofun-
dadas, somaram-se textos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Nata-
lie Davis. Também sobre a educação feminina: Eni Mesquita Samara,
Guacira Louro, Elza Nadai. Neste trabalho, me preocupei com o que
hoje identificamos como a interseccionalidade, discutindo gênero, etnia
e classe social no espaço social da instituição escolar estudada. Parte dele
foi publicado, em formato e-book e impresso, em parceria com Daniel
Luciano Gevehr.291
Meu projeto do doutorado foi fruto de minha experiência docente
no curso de Comunicação da UNISINOS, quando, estudando para a
disciplina de História da Comunicação e pesquisando a história da im-
prensa, deparei-me com a riqueza das revistas ilustradas, em especial a
revista O Cruzeiro. Na tese, intitulada “Representações do desenvolvimento
nas fotorreportagens da revista O Cruzeiro [1955-1957]”, analisei as represen-

291 Meyrer & Gevehr (2014).

215
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

tações sociais veiculadas nas fotorreportagens da revista como parte de


um projeto pedagógico que visava, em última análise, inserir o Brasil no
mundo dito “civilizado”. Embora nessa pesquisa não tenha me dedicado
especificamente à história das mulheres, um dos capítulos discute o papel
pedagógico da revista na construção de estereótipos sobre a mulher bra-
sileira, como nas reportagens sobre os concursos de Miss Brasil. A tese
foi publicada também em e-book. A partir de 2012, tornei-me professo-
ra universitária atuando nos Programas de Pós-graduação em História,
onde passei a pesquisar e orientar trabalhos sobre História das mulheres e
gênero e coordenando grupos de estudos de gênero.
Os relatos das minhas experiências acadêmicas servem para eviden-
ciar, a partir de percursos pessoais, a trajetória dos estudos das mulheres
e de gênero na historiografia, bem como no ensino sobre essas temáticas
nos cursos de graduação. Observa-se que as pesquisas vêm se diversi-
ficando tanto no que se refere a temáticas, quanto aos aportes teóricos,
sendo um dos marcos o uso do conceito de gênero na maioria dos traba-
lhos acadêmicos. Em consequência, abriu-se um leque de possibilidades,
a principal delas a desestabilização do gênero biológico e do binarismo.
A fim de exemplificar a relação dessa trajetória pessoal e acadêmica
com as mudanças na produção historiográfica sobre a História das Mu-
lheres, revisitei as fontes coletadas em minha primeira pesquisa sobre o
tema, dialogando com elas à luz de novas teorias e epistemologias, per-
mitindo observar se os estudos sobre o passado servem para mobilizar
questões do presente, ainda bastante enraizado na família patriarcal e no
sistema heteronormativo. A renovação constante e a circulação desse sa-
ber podem interferir nas questões sensíveis e contribuir para uma socie-
dade mais justa, mais humana, mais democrática.

MULHERES E TRABALHO NO VALE DOS SINOS-RS

O estudo trata das memórias sobre a agência feminina nos diferentes


espaços da sociedade teuto-brasileira na região de imigração alemã do
Vale dos Sinos (localizado na Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio
Grande do Sul) entre o final do século XIX às primeiras décadas do século
XX. Essa escrita tem dois pontos de partida. O primeiro é um acervo de

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entrevistas coletadas no início dos anos 1990, na região do Vale dos Sinos,
sobre as atividades econômicas desenvolvidas pelas mulheres na região.
O segundo trata da vivência nesse espaço, que possibilitou uma troca de
conhecimentos, seja através das histórias me foram contadas, quanto pela
observação empírica e sua relação com o processo de formação acadêmica
no campo da História.
As narrativas que servem de fonte para pensar as relações de gênero
foram coletadas antes mesmo de esse conceito ser amplamente conhecido
e difundido na academia. Somente em 1990, foi traduzido no Brasil o
texto seminal de Joan Scott, Gênero: uma categoria útil para análise histórica,
a partir do qual muitas historiadoras brasileiras se basearam para desen-
volvimento posterior de suas pesquisas.292 A história das mulheres estava
começando a entrar na academia decorrente, em parte, do aumento dos
cursos de pós-graduação no país.
O avanço da história social das mulheres e estudos de gênero, sobre-
tudo partir da década de 1980, consolidou-se como um novo campo de
estudos.293 Além disso, esses estudos se tornaram fundamentais para pen-
sar também o campo da política, sendo impossível hoje discutir a teoria
política ignorando ou relegando às margens a teoria feminista, que, nesse
sentido, é um pensamento que parte das questões de gênero, mais vai
além delas, reorientando todos os nossos valores e critérios de análise.294
Assim, ao retomar esses relatos, o desenvolvimento tanto da História
das mulheres, como dos estudos de gênero, está presente na percepção
e problematização do tema, enquanto sujeito historiadora, cuja relação
com as fontes sempre é entrecruzada com o contexto histórico, sua pró-
pria experiência e as discussões teóricas do seu tempo. Segundo Scott,
“experiência é uma história do sujeito. A linguagem é o local onde a
história é encenada. A explicação histórica não pode, portanto, separar
as duas”.295 Nesse sentido, a autora discute o significado de determinadas
categorias para estudar o passado pelos historiadores, chamando atenção

292 Pedro (2005, p. 88).


293 Oliveira (2018, p. 115).
294 Miguel (2014, p. 17).
295 Scott (1999, p. 16).

217
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

de que não há uma relação essencialista entre as palavras e as coisas, cate-


gorias como classe, raça, gênero, entre outras, são sempre contextuais.296
A pesquisa tem como fonte principal depoimentos orais de descen-
dentes de imigrantes morador@s das zonas de imigração alemã do Vale
do rio dos Sinos, que tratassem do universo feminino e do cotidiano
dessas mulheres, que poderiam informar sobre a atuação deste grupo na
sociedade teuto sul-rio-grandense no seu processo de desenvolvimento.
Trata-se de relatos das “mulheres comuns”, aquelas cujas vivências não
entraram no rol da excepcionalidade e por isso não tiveram lugar na nar-
rativa histórica oficial.
Embora não compactue com a ideia generalizada de que a história
oral sirva especificamente para contar a história dos menos favorecidos,
atribuindo a este grupo uma teórica incapacidade de produzir sua pró-
pria história, esta metodologia de fato significou maior possibilidade de
escrever a história dos excluídos, na medida em que as fontes escritas
sobre estes grupos, especialmente em períodos mais distantes no tempo,
são escassas. No caso das mulheres, Perrot utiliza a expressão “revanche
das mulheres” ao se referir aos usos da história oral, afirmando que ela
se tornou a fonte mais utilizada para esse tipo de estudo, devido à quase
ausência de material sobre o tema.297
Ao retomar esses relatos, entendo-os na perspectiva de Meihy como
"história oral de vida”, compreendendo as narrativas de experiências in-
dividuais que permitem mostrar vivências e visões de mundo.298 O relato
das lembranças de um indivíduo, a partir de um ato de comunicação do
entrevistado com um interlocutor, constitui um processo de organização
significativa de suas memórias, na medida em que o narrador ressignifi-
ca o vivido, atribuindo-lhe sentido e inteligibilidade. Esse entendimento
privilegia a ideia de trajetória de vida que, na concepção de Bourdieu, se
refere a uma série de posições ocupadas pelo indivíduo ao longo de sua
existência.299 Nessa perspectiva, “[n]ão há a busca por uma verdade abso-

296 Scott (1999, p. 19).


297 Perrot (1992).
298 Meihy (2006).
299 Bourdieu (2000).

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luta, por um itinerário coeso, mas sim o registro de uma versão particular
de sentimentos e acontecimentos históricos narrados por uma determi-
nada pessoa”.300 Também seguimos Meihy na sua definição de História
Oral.301 Para o autor, ela não é só uma metodologia, mas um recurso de
conhecimento e de transformação, não apenas como fonte ou acesso ao
conteúdo. Segundo o mesmo autor, a História Oral tem como objetivo
compreender para explicar e explicar para transformar – “compreender
é transformar”.302 Dessa forma, defende o “compromisso com o social
como princípio, meio e fim da História Oral”.303
Desataca-se, nessa perspectiva, o fato de que a história oral se liga
diretamente à questão da memória. Interessa, aqui, a elaboração da me-
mória coletiva do grupo, que fundamenta sua identidade. Nesse sentido,
o conjunto de depoimentos e seu significado são entendidos na medida
em que se referem à mesma realidade, ou seja, uma realidade comungada
por todo o grupo social, adquirindo dessa forma um significado coletivo.
Assim, a articulação entre as narrativas individuais permite vislumbrar
a perspectiva histórica do grupo, ou seja, um mesmo olhar do presente
sobre o passado, revelando reflexões sobre si e a história do grupo, enfa-
tizando o caráter reflexivo dos processos de memória, que nos remete à
ideia de identidade.
As histórias de vida, assim, acabam por criar uma identidade entre as
pessoas, na medida em que partilham diferentes estratégias e saberes dian-
te de uma mesma realidade. Nesse sentido, recorro ao conceito de me-
mória coletiva de Halbwachs, que se refere ao caráter social da memória
partilhada entre os indivíduos do grupo.304 A partir desses pressupostos
teórico-metodológicos, busco caracterizar as realidades do cotidiano do
trabalho do grupo formado pelas mulheres na zona de imigração alemã
no início do século XX.

300 Silva & Barros (2010, p. 70).


301 Meihy (2006).
302 Meihy (2006, p. 195).
303 Meihy (2006, p. 195).
304 Halbwachs (2004).

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Tendo a história oral como metodologia, parte-se do princípio de que


as experiências pessoais e as trajetórias de vida das mulheres entrevistadas,
que constituem o corpus documental da pesquisa, devem ser interpretados
como um importante registro das práticas culturais do cotidiano, permi-
tindo melhor compreender frações das relações sociais no lugar, revelan-
do parte da “realidade social construída, possibilitando compreender a
constituição do cotidiano e as significações relacionadas ao exercício da
conformação do local”.305
Outro aporte metodológico que permitiu um novo diálogo com as
fontes, é a micro-história, que de acordo com Vendrame e Karsburg,
preocupa-se com “aspectos da espacialidade, da relação das pessoas com
os lugares e os processos de constituição deles, das descontinuidades do
espaço e do tempo, da interdependência entre os fenômenos sociais, eco-
nômicos e culturais”.306 A metodologia da micro-história não está asso-
ciada ao tamanho do objeto de análise, mas sim às perguntas e questiona-
mentos que se fazem em relação a esse objeto, contribuindo para a revisão
de elementos presentes na historiografia e muitas vezes legitimado pelas
generalizações simplificadoras.
O método aplicado neste estudo permite, assim, identificar e analisar
“aspectos que não seriam visíveis em outro nível que não o micro”.307
A singularidade do percurso histórico das mulheres na esfera produtiva
na região de imigração alemã no Rio Grande do Sul permite melhor
conhecer as diferentes realidades do mundo do trabalho, que apresenta
características próprias excepcionais, considerando-se os diferentes espa-
ços e tempos, que constituem as narrativas sobre os ofícios das mulheres
na história do Brasil.

A COLÔNIA ALEMÃ DE SÃO LEOPOLDO

Os primeiros imigrantes alemães chegam a recém-fundada Colô-


nia Alemã de São Leopoldo em 1824, e após superadas as dificuldades

305 Dadalto & Pavesi (2020, p. 147).


306 Vendrame & Karsburg (2020, p. 14).
307 Vendrame & Karsburg (2020, p. 14).

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iniciais de instalação, já em meados do século XIX observava-se um


rápido processo de desenvolvimento econômico, com significativa pro-
dução em diferentes ramos de atividades Além da atividade agrícola,
desenvolveu-se um próspero comércio atrelado a um eficiente sistema
de transporte, inicialmente fluvial e posteriormente ferroviário. Além
desses setores, o artesanato e a indústria prosperaram rapidamente, fa-
vorecidos pela demanda.
A historiografia sobre imigração alemã, seguindo os estudos de Ro-
che, enfatiza a importância e o poder dos comerciantes na colônia alemã.308
Eram eles que controlavam a compra e venda dos produtos da região e a
venda dos artigos não coloniais de forma exclusiva o que, seguindo a lógi-
ca marxista de análise de parte dos autores, lhes possibilitou um acúmulo
de capital considerado fundamental para o desenvolvimento industrial.
Para Sandra Pesavento, paralelamente ao processo de industrialização, o
esgotamento do solo e a perda de produtividade das terras dos colonos,
muitas vezes subdivididas por heranças das famílias numerosas, faziam o
colono abandonar suas terras e buscar emprego nas nascentes indústrias
dos núcleos coloniais ou nos centros urbanos.309
Para os empresários, essa mão de obra era extremamente vantajosa,
porque portadora de uma qualificação artesanal, apropriada, portanto ao
estágio fabril-manufatureiro das empresas, no qual se combina o uso in-
cipiente de máquinas com o trabalho manual do artesão”.310 Segundo a
mesma autora, “[...] o próprio processo de imigração-colonização conti-
nuou dando entrada e elementos estrangeiros que eram operários em sua
terra de origem e que não necessariamente se dirigiam para lavoura co-
lonial”.311 Pudemos observar este fato no depoimento de uma imigrante
que chegou em 1924 com sua família. Todos os membros masculinos da
família eram mecânicos de profissão na Alemanha. A tecnologia (maqui-
nário) para essa incipiente indústria foi, em parte, importada da Europa,
mas também houve adaptações e fabricação local.

308 Roche (1969).


309 Pesavento (1985).
310 Pesavento (1985, p. 34).
311 Pesavento (1985, p. 34).

221
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Em Novo Hamburgo, núcleo imigrante que mais progrediu, ainda


em fins do século XIX, foi a industrialização do couro que protagoni-
zou o crescimento, estando o desenvolvimento econômico da cidade
vinculado a essa indústria. Nos primórdios dessa indústria na região,
o couro era curtido de forma rudimentar dentro de barris de madeira.
Eram fabricados arreios, bainhas de faca, serigotes, lambris e selas. Dos
retalhos que sobravam, faziam-se chinelos, numa produção caseira (os
chinelos eram mais propícios para o trabalho do colono). Logo em se-
guida, iniciou-se a fabricação de botas, que foi o primeiro produto de
grande aceitação na região.
No início do século XX, a forma artesanal de produção foi substituí-
da pela indústria propriamente dita, com uso de máquinas. O crescente
desenvolvimento das pequenas fábricas favoreceu o surgimento cada vez
mais intenso de unidades fabris, fazendo com que Novo Hamburgo se
transformasse num polo urbano regional, atraindo colonos da zona rural
que vinham em busca de melhores condições de vida.
Tendo esse cenário como pano de fundo, nos propomos a estudar
a participação feminina no processo de desenvolvimento econômico, a
partir da colonização alemã no Rio Grande do Sul e especialmente na
região do Vale dos Sinos, até meados da década de 1930. O período que
se estrutura a partir do Estado Novo constitui uma conjuntura específica
e é o limite de abrangência do trabalho.

A CASA, A ROÇA E A FÁBRICA: A MULHER NA TRIPLA


JORNADA DE TRABALHO

À época da coleta dos relatos orais aqui apresentados, nosso enfoque


foi a discussão sobre os papéis desempenhados pelas mulheres na traje-
tória de desenvolvimento da Antiga Colônia Alemã de São Leopoldo.
Nesse sentido, poderíamos avançar na problemática estudando os proces-
sos discursivos e disciplinares que constroem e naturalizam esses papéis.
Pedro, ao estudar as publicações dos jornais sulistas do final do século
XIX e do início do século XX, afirma que esses veículos de informação
não devem ser responsabilizados por criarem – sozinhos – os modelos
ideais de mulher como boas mães, virtuosas esposas e dedicadas filhas.

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Ao contrário, esses modelos, em sua visão, já faziam parte do imaginário


ocidental, podendo ser encontrados na literatura, no sermão das missas,
nos textos escolares, bem como nas tradições locais.312
No caso específico do Rio Grande do Sul, observa-se a prevalência
de narrativas historiográficas – em especial até a década de 1980 – que co-
locaram os feitos masculinos em posição de destaque, reafirmando uma
história marcada apenas pelos vultos do gênero masculino. Na maioria
das interpretações realizadas pelos estudiosos da imigração alemã, as mu-
lheres eram protagonistas do espaço doméstico, ficando sua atuação re-
servada ao espaço privado da casa, da família e dos afazeres considerados
como “próprio de mulheres”. É somente a partir da década de 1990, com
a difusão dos programas de pós-graduação em História, que essas narrati-
vas sofreram significativas mudanças, na medida em que novas pesquisas
no campo da História surgiram e colocaram as mulheres como objeto de
suas produções.
Ainda com relação aos estudos da imigração, no Rio Grande do Sul
predominou até pouco tempo a imagem do “homem imigrante”, res-
ponsável pela “epopeia” da imigração. Esse também é o caso dos estudos
sobre imigração alemã realizados até a década de 1980 e que reafirmaram
a visão “civilizadora” do imigrante no sul do Brasil. No entanto, são es-
cassos os trabalhos que problematizam a presença feminina nos proces-
sos de imigração e colonização. Essa invisibilidade é mais significativa na
medida em que o gênero biográfico é bastante comum nas histórias de
imigrantes narradas por memorialista.
Exemplo recente de pesquisas, que procuram dar visibilidade ao pa-
pel da mulher em contextos marcados pela imigração alemã no extremo
sul do Brasil, é o trabalho recentemente publicado por Lorena Almeida
Gill, que problematiza um processo judicial de 1945, na cidade de Pe-
lotas, extremo sul do estado.313 À luz da micro-história e da história das
mulheres e de gênero, ele acompanha percurso de Olga Tochttenhagen,
então com vinte anos de idade, que lutou pelo reconhecimento de seus
direitos trabalhistas na Justiça, em razão de sua demissão de uma alfaia-

312 Pedro (2004, p. 281).


313 Gill (2019).

223
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taria por ter faltado ao trabalho. A trajetória de Olga ilustra, de forma


exemplar, as dificuldades das mulheres imigrantes e de suas descendentes,
pelo seu reconhecimento fora do espaço da vida privada.
A pesquisa traz importantes elementos que permitem pensar o papel
da imigração alemã na cidade, bem como traz o contexto de luta contra
a pandemia de tuberculose e o movimento de luta das mulheres, em bus-
ca de postos de trabalho nos empreendimentos industriais na primeira
metade do século XX e as dificuldades encontradas, em razão de serem
mulheres.
Experiências de pesquisa, como essa que traz o caso da jovem descen-
dente de imigrantes alemães, em sua busca de reconhecimento no mundo
do trabalho, mostram como as mulheres nem sempre se silenciaram e se
adequaram às condições impostas pelo universo masculino, que tradicio-
nalmente impunha sérias e diversas limitações à visibilidade do trabalho
das mulheres, em espacial nos contextos associados ao desenvolvimento
industrial, cujo percurso histórico é, na maioria das vezes, caracterizado
pelo protagonismo masculino.
Já quando pensamos nas imagens produzidas sobre as mulheres tra-
balhadoras, no contexto da imigração alemã no Rio Grande do Sul, de-
vemos considerar especialmente os elementos simbólicos, que muitas
vezes invisibilizam seu trabalho, desconsiderando a atividade domésti-
ca como uma forma de trabalho, desqualificando os afazeres domésticos
como um “não trabalho”, como uma atividade naturalmente atrelada ao
sexo biológico feminino.
No entanto, há consenso entre os estudiosos mais recentes da imi-
gração alemã, de que a mulher nessa região ocupava, especialmente nos
primeiros tempos, posição de destaque, mesmo que oficialmente o papel
principal coubesse aos homens. Janaína Amado diz, a esse respeito, que
“a opinião delas era levada em conta na compra de um lote de terra, de
uma vaca, ou mesmo de algumas sementes”.314 A autora atribui esta rela-
tiva importância a sua contribuição econômica, necessária neste período
de instalação. Ela cita um trecho da carta do argentino Gutierez, em visita
a São Leopoldo em 1844, e a comenta:

314 Amado (1987, p. 41).

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[...] as mulheres lavram a terra juntamente com seus maridos e


pais e governam um arado tão bem quanto elas montam a cavalo
como homens [...]”. Além dos serviços domésticos, elas também
plantavam, colhiam, cuidavam dos animais, costuravam, fabrica-
vam pão, manteiga, cerveja, charutos, tecidos. E tinham filhos!
[...] da capacidade de trabalho e organização feminina dependia
grande parte do progresso econômico da família.315

Embora Jean Roche316 diga que esta abrangência do trabalho femini-


no foi mais importante na primeira geração de imigrantes, os relatos orais
apontam para a permanência desta situação no século XX, como pode-
mos extrair do testemunho da Sra. Luiza, moradora de Rolante, municí-
pio localizado no Vale dos Sinos, na década de 1920:

[...] na colônia eu trabalhava de tudo, cortava lenha, limpava o


mato, e depois pegava o cavalo botava no arado lavrava e se o ca-
valo não andava direito, pegava os boi [...]. Na roça as mulhé tra-
balhava igual os home [...]. Em casa os home não ajudava nada
[...]317.

A “roça” era considerada um espaço doméstico e, portanto, parte da


área de atuação feminina tradicionalmente aceita. Assim, a maioria das
entrevistadas incluem, ao relacionar suas tarefas ou as de sua mãe, a roça
como continuidade do trabalho doméstico, como podemos observar nos
depoimentos a seguir:

A mãe trabalhava na roça, o pai vendia verdura, ele era verdu-


reiro [...] sim o pai também ajudava na roça [...] nós também
ajudava [...]318.

315 Amado (1987, p. 41).


316 Roche (1969).
317 Entrevista com a Sra. Luiza, concedida em 20 de março de 1992. O sobrenome foi
preservado a pedido da entrevistada.
318 Entrevista com a Sra. Erica, realizada em 10 de março de 1992, então com 74 anos. O
sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.

225
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Eu cuidava dos meus irmão pequeno porque a mãe tinha que tra-
balha na roça319.

A roça, por sua vez, estabelecia uma relação direta com o espaço ur-
bano, que se desenvolvia com os primeiros estabelecimentos industriais
do setor coureiro-calçadista, na medida em que a produção da roça era
responsável pelo abastecimento de alimentos da cidade. Matos e Borelli
descrevem essa dinâmica, que ligava o rural e o urbano, mostrando que a
atividade da roça era desenvolvida, na maioria das vezes, pelos imigrantes
e seus descendentes – como é o caso da área de imigração alemã – que
produziam e vendiam seus produtos na cidade.320 Assim, a cidade era
abastecida cotidianamente de produtos como o leite, que era entregue, na
maioria das vezes, pelas mulheres, que guiavam suas carroças e charretes.
Também fazia parte desse comércio, um vasto cardápio produzido arte-
sanalmente pelas mulheres da roca, como compotas de frutas, de geleias,
de pães e a tradicional cuca.321
Na medida em que as cidades se desenvolveram com a indústria, ob-
servou-se também a diversificação das atividades econômicas da região,
o que levou as mulheres a ocuparem outros espaços, sendo um deles a
fábrica, que seguiu a lógica da expansão industrial do Brasil como um
todo, que ao incorporar mulheres e crianças no setor industrial leva a
contradições ao nível do capital que

[...] de um lado necessitava dessas mulheres para a reprodução de


força de trabalho e dessas crianças como força de trabalho futura
– quanto para família operária – que para reproduzir-se precisava
engajar todos os seus membros no âmbito do trabalho assalariado,

319 Entrevista com a Sra. Gabriela, realizada em 04 de abril de 1992, então com 82 anos.
O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
320 Matos e Borelli (2012).
321 Celemento da gastronomia teuto-brasileira, que consiste em uma espécie de massa de
pão, recheada com frutas e coberta com uma mistura de açúcar e banha de porco, assada
em forno à lenha.

226
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mas ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, necessitava do tra-


balho doméstico das mulheres.322

Entretanto, mesmo fazendo parte da realidade da maioria delas, a


fábrica situava-se fora do espaço doméstico, sendo que esse tipo de tra-
balho era considerado como “extra”, passível de ser dispensado quando a
situação momentânea de “aperto” passasse.
Tal concepção encontra respaldo no ideário positivista difundido no
Brasil no início do século, que defendia que a mulher deveria ficar isenta
de todo trabalho exterior ao lar. A ela caberia o papel de mãe, guardiã
da família, bondosa e pacífica, encarregada de preservar a ordem moral
da sociedade e manter o equilíbrio social. Defensor da ordem burguesa
da sociedade, o positivismo comtiano difundiu estes valores para toda a
sociedade, inclusive no meio operário, porém para a grande maioria este
ideal estava bastante distante da prática.
Entre o discurso e a prática, estavam as dificuldades econômicas da
maioria das famílias, que tinham necessidade do trabalho feminino fora
do lar. No entanto, este seu trabalho ficava à margem do mundo mas-
culino da produção, sendo que às mulheres eram destinadas as funções
menos qualificadas e pouco remuneradas, como podemos extrair dos
depoimentos abaixo, referentes à atividade coureiro-calçadista em Novo
Hamburgo.

Tinha aquela sessão enorme das mulheres, né [...] tinha o con-


tramestre e depois nas outras repartições eram os homens né [...].
Costura, prepara, não é, era isto o serviço [...] perfura o calçado,
limpá. [...] Ganhavam menos [...] aquilo ajudava [...] eu era quase
criança, uns treze, quatorze anos.323

Eu trabalhava quando eu era solteira [...] depois de casada eu não


trabalhava sempre, só quando era preciso né [...]. Eu botava sola,
colava, passava cola [...]. Montar e cortar era serviço do home. As

322 Pena (1981, p. 193).


323 Entrevista com a Sra. Maria, realizada em 18 de abril de 1992, então com 82 anos. O
sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.

227
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

mulher não podiam fazer esse serviço [...]. Sim, os home sempre
ganhava mais [...].324

Em outro depoimento, podemos observar que a visão masculina da


realidade em questão, não diferia daquela das mulheres, conforme pode-
mos extrair da fala do Sr. Germano:

Quando eu vim para Novo Hamburgo, né, em 1913, e depois


adiante, né, as mulheres trabalhavam em casa, as moças trabalha-
vam na fábrica, não é, assim foi [...]. O Adams já tinha bastan-
te moças lá trabalhando, mulheres casadas também, quem podia
né, trabalhava lá [...]. Às vez o marido, o homem trabalhava no
Adams, né, e levava serviço para casa, então a mulher ajudava a
costurar, cortar, estas coisas.325

Este último depoimento ilustra uma prática muito comum, consoli-


dada na região com o desenvolvimento da indústria calçadista: a de levar
o serviço da fábrica para casa, onde a mulher pudesse realizá-lo sem sair
de seu espaço doméstico e sem que precisasse abandonar as tarefas da casa
e o cuidado dos filhos. Elas faziam de tudo. Aceitavam qualquer traba-
lho que lhes permitisse obter algum rendimento, considerado por elas
próprias como “extras”, caracterizando o seu “trabalho de resto”, como
podemos observar no depoimento a seguir:

A minha vida foi assim: desde o começo sempre trabalhei bastante


[...] com dezesseis anos aprendi a fazer chinelo [...] e depois quan-
do chinelo não dava mais muito, eu fazia sapatinho de criança [...].
Aí eu já era casada, tinha 21 anos [...] meu marido trabalhava no
curtume [...]. Fazia de tudo em casa porque eu tinha 4 filhos, né?
A minha irmã fazia a mesma coisa, fazia chinelo, encapava salto,

324 Entrevista com a Sra. Erica, realizada em 10 de março de 1992, então com 74 anos. O
sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
325 Entrevista com a Sr. Germano, realizada em 28 de abril de 1992, então com 97 anos.
“ Adams” refere-se a fábrica de calçados pioneira na região, pertencente a Pedro Adams
Filho, fundada em 1898. O sobrenome foi preservado a pedido do entrevistado.

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montava sapato de homem [...]. A minha irmã mais velha não tra-
balhava nisto, ela muito tempo lavava roupa pros padre. A minha
mãe já fazia isto. Sabe, naquele tempo a gente pegava o que dava
pra ganhá um pouco de dinheiro[...] a gente tinha muito serviço,
eu fazia roupinha pras vizinha [...]. Ainda tinha dois terreno, eu
cuidava, plantava aipim, tudo quanto era verdura, batata doce, um
pouco de amendoim. Em sábado o marido ajudava, dia de semana
eu fazia mesmo [...].326

Esta condição foi oficializada pelo Decreto nº 181, de 24 de janeiro


de 1890, que definiu a condição da mulher como mera auxiliar do ho-
mem na gestão familiar, sendo base do artigo 240 do Código Civil de
1916, que confirma a incapacidade da mulher casada, sendo que com o
casamento, ela assumia a condição de consorte, companheira e auxiliar
nos encargos da família. O artigo 251 do mesmo Código ainda ressalta
que, na falta do marido, essa mesma mulher assumia o lugar de chefe da
família, cessando sua incapacidade.
As trabalhadoras eram ainda tratadas como “frágeis e indefesas”,
“passivas” e carentes de “consciência política”,327 numa tentativa de desa-
creditar e desqualificar os movimentos de luta, já organizados nas primei-
ras décadas do século XX. As mulheres atuavam das lutas operárias, das
mobilizações, e até mesmo de paralizações de fabricas, onde lutavam pela
implementação de melhores condições de trabalho – como a redução da
jornada. Matos e Borelli afirmam que, nesse contexto de luta em defesa
de uma pauta feminista, eram também chamadas de “indesejáveis”, dado
seu grau de engajamento e movimentação na causa trabalhista.328 Como
aponta Marques em seu estudo sobre a luta pela regulação e reconheci-
mento do trabalho feminino no Brasil da década de 1930:

326 Entrevista com a Sra. Elza, realizada em 12 de maio de 1992, então com 91 anos. O
sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
327 Matos & Borelli (2012, p. 128).
328 Matos e Borelli (2012).

229
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Durante o intenso debate público que se deu naqueles anos, grupos


feministas se apresentaram à cena pública para reivindicar inicialmen-
te o direito de votar e, uma vez conquistado esse direito em 1932,
pressionar os homens públicos para avançar na agenda da igualdade
jurídica com os homens. Nesse esforço, reivindicaram ter voz tam-
bém na regulamentação dos ofícios exercidos por mulheres.329

Soma-se a esse contexto histórico, a falta de oportunidades profis-


sionais era, de fato, um grande obstáculo para as mulheres conquistarem
maior autonomia financeira. De forma mais visível, as mulheres casadas
e que, portanto, estavam vinculadas ao marido, não conseguiam fazer
parte da luta, pois nem mesmo poderiam representar qualquer queixa
trabalhista sem a anuência de seus cônjuges. Esse elemento, que insere a
mulher numa condição de inferioridade de gênero, impediu, em grande
parte, os avanços e a visibilidade do trabalho das mulheres na esfera pú-
blica e o próprio reconhecimento dos direitos sociais das mulheres, que
eram impedidas de desempenhar cargos de chefia ou espaços de maior
prestígio social no mundo do trabalho.
Como mostra Marques, essa situação sofreria algumas mudanças so-
mente com a ascensão de Getúlio Vargas, em 1930, e a incorporação de
um conjunto de leis trabalhistas em 1943, trazendo grande comoção na-
cional em torno do debate sobre os direitos das mulheres, como o fato de
“proteger a maternidade e a forma de fazê-lo, a condução política do ser-
viço de assistência social à maternidade e à infância, além da conveniência
de se restringir o acesso de mulheres a ofícios considerados perigosos ou
contrários à natureza feminina”.330
Com isso, somente em 1943 a mulher adquiriu o direito de trabalhar
livremente sem autorização do marido. No entanto, ele poderia impedi-la de
continuar no emprego se considerasse que estivesse prejudicando a família.
Destaca-se, ainda, que as leis trabalhistas do pós-1930 desenvolveram uma
série de mecanismos de proteção com base na sua capacidade reprodutiva,

329 Marques (2016, p. 669).


330 Marques (2016, p. 683).

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em sintonia com o capital industrial, que corroboraram a marginalização do


trabalho feminino, acentuando o caráter temporário do trabalho feminino.
Os depoimentos citados podem ser considerados como recortes do
cotidiano de grande parte das mulheres descendentes de imigrantes, mo-
radoras na região de colonização alemã do Rio Grande do Sul. Muitos
dos relatos podem ser caracterizados pelo que Weimer chama de “passa-
gem inter-geracional da memória”,331 na medida em que os depoentes
falam das experiências que lhe foram relatadas por suas mães e/ou avós
e, mesmo constituindo em histórias pessoais, possuem certa unidade de
significação, na medida em que essas pessoas partilharam de uma mes-
ma realidade social e cultural. Suas estratégias de sobrevivência eram, em
parte, fruto das próprias condições do meio, e acabavam por ser seme-
lhantes, dando a este segmento social – uma certa identidade.
As/os entrevistados moravam nas zonas rurais próximas a Novo
Hamburgo, como Rolante, Dois Irmãos etc. Grande parte dos habitantes
dessas áreas tenderam a se deslocar para Novo Hamburgo, atraídos pelo
crescimento econômico. Jean Roche ressalta o fato de as mulheres dessas
áreas buscarem casamentos em outras etnias e questiona se este fato não
seria uma fuga à condição de agricultor.332
Na cidade de Novo Hamburgo, a agricultura não possuía muito
destaque. Para Leopoldo Petry, este fato se deve ao solo pouco fértil e
às inúmeras subdivisões das propriedades distribuídas aos primeiros po-
voadores.333 A roça na cidade vai ser substituída pelas hortas no fundo
do quintal, geralmente mantidas pelas mulheres, auxiliadas pelos maridos
nos finais de semana. Em depoimentos já citados, podemos observar essa
prática, quando D. Elza relata que, além de suas atividades domésticas e
fabris, possuía dois terrenos nos quais plantava produtos para uso de sua
família. A horta no fundo do quintal pode ser vista ainda hoje na região.
Todas/os os entrevistadas/os eram descendentes de famílias alemãs,
moradores na região de colonização alemã e se autodefiniam como ale-
mães. A maioria ainda possuía forte sotaque alemão, falado ainda no in-

331 Weimer (2010).


332 Roche (1969).
333 Petry (1959).

231
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

terior dessas regiões. Algumas delas frequentaram os primeiros anos es-


colares, sendo minimamente alfabetizadas. Nenhuma das entrevistadas
frequentou a escola além do nível básico. Ao relatar suas experiências de
vida, essas mulheres nos falam do mundo do trabalho, da sua luta diária
pela sobrevivência, sua e de sua família. Enfim, as narrativas referem-se
à realidade social em que viveram e, nesta, o significado de suas vidas
esteve associado, sobretudo, ao mundo do trabalho, seja ele na roça, em
casa ou na fábrica.

OUTROS RAMOS DE OCUPAÇÃO FEMININA:


COMÉRCIO E INDÚSTRIA

As primeiras referências à atividade comercial na região de coloni-


zação alemã remetem à “venda”. A pesquisadora Angela Sperb assinala
que, na colônia, venda era o lugar de maior movimento. “Era o lugar
onde se realizavam as transações comerciais, onde o produto dos colonos
era cotado e onde estes podiam adquirir gêneros que não produziam”.334
Em seu estudo, Sperb analisou o inventário de João Pedro Schmitt,
de 1868.335 Schmitt era um próspero vendeiro do Hamburgerberg (loca-
lidade onde iniciou o povoamento de Novo Hamburgo). Segundo ela, a
venda do Sr. Schmitt “[...] era armazém de secos e molhados, armarinho,
drogaria, casa de ferragens, papelaria, bar e, provavelmente nos finais de
semana, salão de baile”.336
A venda foi restaurada, num trabalho conjunto da comunidade e
equipe técnica ligada ao município. Esse espaço comercial foi retratado
em um quadro pintado por Pedro Weingertner em 1982. O artista ficou
conhecido por pintar cenas cotidianas e paisagísticas do Rio Grande do
sul do século XIX. Nessa pintura aparece, em destaque, Catarina Sch-
mitt, viúva de Pedro Schmitt. Ela está colocada atrás do balcão, indican-
do sua atividade de comerciante e então proprietária do estabelecimento.

334 Sperb (1987, p. 40).


335 Sperb (1987).
336 Sperb (1987, p. 41).

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Sua função de mãe também está representada pela presença de seu filho
menor, Adão Adolfo, brincando no chão do estabelecimento.

Imagem 1. Fios Emaranhados, de Pedro Weingärtner, 1892.

Fonte: Wikimedia Commons, the free media repository.


Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pedro_Weing%C3%A4rtner_-_
Fios_emaranhados.jpg.
Acesso em: 11 ago. 2020.
No inventário estudado, consta que a viúva ficou com a casa de co-
mércio, além das dívidas ativas, por serem de difícil cobrança. Provavel-
mente, Catarina já trabalhava na venda antes da morte do marido, estan-
do familiarizada com as negociações. Esta afirmativa é reforçada por ser
Pedro Schmitt, além de vendeiro, transportador estabelecido desde 1830,
o que o obrigava a frequentes ausências.
Entrevistei a neta de Schmitt, que então contava 83 anos, em 1991.
Ela contou um pouco sobre o comércio de seus avós. Mesmo com um
poder aquisitivo considerado elevado para a época e local, ela conta que
sua mãe trabalhava tanto na venda quanto na preparação dos bailes, que
ocorriam no salão de sua propriedade, ao lado da venda.
Conta ainda que os bailes naquela época eram sempre acompanhados
de janta, o que exigia o trabalho de uma semana inteira com a preparação
das comidas, tarefas acompanhadas de perto por sua mãe com auxílio de
moças contratadas especialmente para esse período. Isso indica um corte
de classe, ao caracterizar as mulheres da colônia alemã, mas que não tra-

233
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

taremos aqui. Além disso, quando ocorriam os Kerbs337, vinham os paren-


tes de outras localidades, sendo que a família que sediava o evento tinha
obrigação de dar hospedagem aos visitantes, o que aumentava o trabalho
doméstico, em geral realizado por mulheres.
É também dos estudos de Ângela Sperb que trago outro exemplo da
presença feminina na atividade comercial, enquanto empreendedora.338
Nas primeiras décadas do século XX, instalou-se no Hamburgerberg a
Padaria Reiss, de propriedade de Heinrich Reiss. Em 1905, quando se
casou com Karolina Kraemer, Reiss já estava instalado como padeiro. O
casal deu novo impulso à padaria e coube a Karolina (chamada de Kali-
ne) a administração dos negócios, enquanto Reiss fazia os pães. Ângela
Sperb, em reportagem ao jornal Hamburgerberg, escreve:

Foi Kaline, quem durante os primeiros anos, distribuiu o pão, le-


vando-o em carroças até Campo Bom, Dois Irmãos e Sapiranga,
enquanto Reiss trabalhava fazendo o pão. [...] as tarefas do casal
continuaram divididas: Reiss, cuidando da produção e trabalhan-
do com os outros padeiros e sua esposa responsável pela comercia-
lização, cuidando do negócio, dos empregados e da aquisição de
matéria prima. [...] Frau Reiss era mulher do dinheiro. O caixa
ficava com ela e o próprio Reiss lhe pedia o seu “Taschengeld”.339

A Padaria Reiss prosperou, sendo uma das primeiras a adquirir um


forno a vapor, além de toda maquinaria – massadeira, divisora de pão,
peneira de farinhas e máquinas de limpar sacos. O casal Reiss enrique-
ceu, muito por conta da habilidade de Kaline para fazer negócios. Ao
que consta, Kaline sempre foi independente, cuidando de seu próprio
sustento, mesmo morando com os pais. Quando solteira, trabalhava “em

337 Kerb é uma festa difundida no contexto da Colônia Alemā e que comemora a data de
fundação da primeira igreja da comunidade, ou seja, cada localidade tem sua própria data
festiva, apresentando características bastante próprias em cada lugar no qual é celebrada,
ainda hoje.
338 Sperb (1983).
339 Sperb (1983, p. 26).

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casas de família, inclusive em Porto Alegre, como costureira no preparo e


feitura de enxovais para noivas e demais costuras”.340
Esses dois exemplos – Catarina Schmitt e Karoline Reiss – foram ci-
tados por havder dados mais completos sobre eles através das pesquisas de
Sperb. No entanto, a atividade comercial exercida por mulheres abran-
gia um universo bem maior, lembrando que, além dos estabelecimentos
comerciais, sempre existiu um comércio paralelo, como hoje, que era de
domínio das mulheres, como o pão e os doces que a já citada D. Elza fazia
para vender ou os crochês de D. Maria. Esse pequeno comércio de mer-
cadorias produzidas pelas mulheres era o ideal, pois podia ser realizado
em conjunto com o trabalho doméstico, não interferindo na ordem fami-
liar. A mulher cumpria assim seu papel de “auxiliar do marido”, através
de uma renda extra.
Entre o final do século XIX e início do século XX, surgiram as pri-
meiras fábricas de calçados no Vale dos Sinos. Entrevistei um descendente
da pioneira fábrica de calçados de Pedro Adams Filho, referida na entre-
vista do Sr. Germano. Habituado com as entrevistas relativas à indústria
da família por seu significado para o desenvolvimento econômico da re-
gião341, surpreendeu-se quando anunciei que o enfoque não era propria-
mente o empreendimento industrial, mas queria saber sobre as mulheres
da família e se elas exerceram alguma atividade na indústria. A partir des-
sa provocação, o entrevistado deu o seguinte depoimento:

340 Sperb (1983, p. 25).


341 Pedro Adamas Filho é um personagem destacado nos textos produzidos sobre a re-
gião do Vale do Rio dos Sinos, como exemplo da potencialidade dos imigrantes alemães
para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Além de constar em publicações locais, do
município de Novo Hamburgo, ele consta também em publicações oficiais do Estado na
época, como em MONTE DOMECQ. O Rio Grande do Sul Colonial: Estabelecimento Gráfico
Thomas, Paris/Barcelona,1918. Também é tema da tese de doutorado: SCHEMES, CLÁU-
DIA. Pedro Adams Filho: empreendedorismo, indústria calçadista e emancipação de Novo
Hamburgo (1901­1935). Porto Alegre, PUCRS em 2005. A autora entrevistou o neto de Pe-
dro Adams Filho. Enfatiza-se que na tese, Rosa Saenger Adams, aparece somente no papel
de esposa do empresário e mãe de seus filhos.

235
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Minha avó, D. Rosa Saenger Adams, ela ajudou muito meu avô
na fundação da fábrica [...] que foi uma das pioneiras de calçados
de Novo Hamburgo. Ela ajudava na fábrica, costurava os sapatos.
[...] além de ter que manter as pessoas que trabalhavam em casa,
porque todo mundo morava longe, não tinha condução, ela tinha
que cozinhar para toda aquela gente e, além disso trabalhava na
fábrica. Minha avó era muito dinâmica, autoritária. Tinha mais
uma mulher que a auxiliava na costura. A fábrica e a casa eram
quase a mesma coisa, era ao lado.342

Com o avanço da indústria calçadista, desenvolveram-se outras pa-


ralelas, muitas relacionadas ao calçado. Uma delas é a indústria mecâni-
ca industrial. De início, as máquinas eram importadas e posteriormente,
sobretudo no período da guerra, passaram a ser produzidas localmente.
Nesse setor, uma mulher tornou-se destaque: Ella Einsfieldt.
Ella Einsfield era de uma família de mecânicos; seu pai e seus irmãos
foram destacados na historiografia de Novo Hamburgo devido a sua im-
portância no desenvolvimento dos transportes. Eles adaptaram um motor
de automóvel em um bonde, criando o primeiro bonde motorizado da
cidade. Posteriormente, possuíam uma linha de ônibus que ia até o lito-
ral. A irmã, Ella, não consta em nenhum livro sobre a história da cidade,
embora tenha sido matéria em algumas edições do jornal da cidade em
tempos mais recentes, e é com base nessas matérias que narramos breve-
mente sua trajetória.
Ella cresceu dentro da oficina de seu pai, João H. Einsfield, e desde
os sete anos de idade já trabalhava na oficina. Em 1922, seu pai faleceu e
Ella, então com 14 anos, assumiu a oficina e uma representação de auto-
móveis Chevrolet. Em 1924, na primeira exposição industrial de Novo
Hamburgo, foi premiada com a medalha de ouro, com gravuras em aço.
Mas tarde, dedicou-se exclusivamente às máquinas de costura de couro.
Inicialmente, importava as máquinas Pfaff (alemã), as quais comercializa-
va e fornecia manutenção. Mas Ella logo começou a adaptar as máquinas

342 Entrevista com a Sr. Pedro, realizada em 10 de junho de 1992. O sobrenome foi preser-
vado a pedido do entrevistado.

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alemãs, o que lhe rendeu grande prestígio na empresa alemã, sendo con-
vidada para as convenções internacionais da empresa.
Ella Einsfield foi casada com Germann Gerstdl, e embora tenha
adotado o sobrenome do marido, ninguém a conhecia por esse sobre-
nome, mas pelo de solteira. Essa atuação de Ella a tornou uma figura
folclórica e muito conhecida na cidade. Ao perguntar sobre ela para al-
gumas pessoas, as lembranças vinham associadas a exemplos de alguma
atividade considerada masculina e a excepcionalidade dessas práticas:
“[...] ela tinha auto, né, eu diversas vezes passei lá, ela deitada debaixo
do auto trabalhando”. “[...] ela trabalhava que nem um homem [...] ela
mexia na graxa [...]”. “[...] a D. Ella foi uma das mulheres que se desta-
caram como trabalhando para fora”.
Em 1984, o Jornal Exclusivo, de Novo Hamburgo, publicou uma ma-
téria relatando a referência a Ella Einsfield feita pela revista da Pfaff alemã
em 1958:

Durante o Congresso de Representantes Industriais deste ano, ce-


lebrado em Kaiserslautern, a Sra. Gerstl, do Brasil (onde se dedica
com muito êxito a venda de máquinas de costura Pfaff), informou
sobre interessantes novas técnicas de costura inventadas por ela
mesma. Seus colegas do sexo oposto estavam surpreendidos com
seus excelentes conhecimentos técnicos.343

Ela própria pensava-se como uma mulher que fazia trabalho de ho-
mem, conforme relato do Sr. Pedro sobre uma conversa que teve com ela:

A última vez que eu falei com ela [...] encontrei a Dna. Ella numa
FENAC e conversando [...] tirei um cigarro do bolso e disse:
Fuma? Ela disse: não eu não posso fumar. Ué, não pode por quê?
Porque eu sou uma mulher, eu dirijo, eu sou mecânica e agora
ainda fumar, aí eu vou ficar muito masculina344.

343 Rihl (1984, p. 20).


344 Entrevista com a Sr. Pedro, realizada em 10 de junho de 1992. O sobrenome foi preser-
vado a pedido do entrevistado.

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As diferenças biológicas aqui atuam como marcas culturais na tenta-


tiva de justificar as diferenças, sendo o corpo feminino visto como atre-
lado ao universo reprodutivo limitador das ações e os espaços que ela
ocupa. Se entendermos como Bourdieu, a declaração de Ella demonstra
a incorporação dos estereótipos ligados ao corpo feminino, o que o au-
tor chama de dominação simbólica como base da dominação masculina
que estaria inscrita na ordem das coisas em que a dominação masculina
parece como natural.345 No entanto, o sistema de dominação é bem mais
complexo. A própria trajetória de Ella Einsfield aponta para formas de
resistência, mesmo aceitando certos cânones. É através dessas fissuras na
dominação que a resistência se torna possível.346
Até mesmo para homenageá-la, em artigo publicitário do Jornal Exclu-
sivo de 1990, ela é masculinizada para adquirir maior importância. O anún-
cio diz: “Ella Einsfield Gerstl, “o pai da Mecânica Industrial no Vale”, evi-
denciando a construção hierárquica das relações de gênero na linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por ocasião da coleta dos relatos aqui apresentados, o intento era res-
gatar a presença feminina nos acontecimentos históricos – neste caso, da
região de imigração alemã do Rio Grande do Sul. Esse intento vinha no
rastro das primeiras produções acadêmicas das mulheres a partir do final
dos anos 1970. O alargamento das fontes, metodologias e temas da histo-
riografia levou ao questionamento do sujeito universal masculino em que
as mulheres apareciam somente nas margens ou como excepcionalidade.
Todo discurso sobre temas clássicos como a abolição da escravatura,
a imigração europeia para o Brasil, a industrialização ou o movimento
operário, evocava imagens da participação de homens robustos, brancos
ou negros, e jamais de mulheres capazes de merecer maior atenção. Mes-
mo ainda distante dos estudos feministas que passaram a problematizar as
relações hierárquicas e de poder entre os gêneros, já estava presente “uma

345 Bourdieu (1998).


346 Soieht (1998).

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vontade feminina de emancipação”.347 Nesse sentido, são inegáveis as


mudanças nos papéis e relações de gênero dos últimos anos. O binarismo
feminino e masculino essencializado foi exposto aos debates de ativistas
e acadêmicos que têm contribuído para a transformação da produção de
conhecimento e da vivência das pessoas.348
No entanto, essa condição não reflete o estatuto desses estudos na aca-
demia. A incorporação dos estudos de gênero nas ciências humanas ainda
apresenta uma resistência silenciosa e difícil de ser identificada. Segundo
Maria da Glória Oliveira, há uma “guetização” desses estudos na academia,
tal como nos cursos de História, em que quase sempre são oferecidos como
disciplinas eletivas, o que demonstra certa “particularidade” desse conteú-
do “tido como específico”, ou seja, o “outro” da história. Revela-se, por-
tanto, um longo processo de mudanças, mas também de permanências.349
A identificação dessas permanências, potencializadas pelo momen-
to atual de um reacionarismo, que parece reavivar uma cultura histórica
de exclusão e violência, entrecruzada pelo discurso da moralidade, foi
um dos fatores que nos fez retomar essas fontes e, em parte, esse discur-
so dos anos 1980/90. Ao olhar novamente para esse material, emergem
questionamentos para além dos papéis exercidos pelas mulheres naquela
sociedade, na perspectiva da História Social. Um deles, a necessidade de
percebermos a não universalidade do sujeito mulher, observando as espe-
cificidades oriundas de cortes de raça, classe e etnia. Outro diz respeito à
historicidade das relações de gênero.
Sob influência dos estudos foucaultianos, podemos desconstruir os
discursos, por muito tempo naturalizados sobre essas mulheres, obser-
vando o caráter cultural e histórico dessas construções, entendendo sujei-
tos e objetos como produtos de práticas culturais, para pensar as diferenças
entre os sexos enquanto construções culturais historicamente situadas.

REFERÊNCIAS

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1 Ed. São Paulo: Símbolo, 1978.

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ENTREVISTAS

LUIZA, entrevista em 20 de março de 1992. Sobrenome preservado a


pedido da entrevistada.

ERICA, entrevista em 10 de março de 1992, então com 74 anos. Sobre-


nome preservado a pedido da entrevistada.

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GABRIELA, entrevista em 4 de abril de 1992, então com 82 anos. So-


brenome preservado a pedido da entrevistada.

MARIA, entrevista em 18 de abril de 1992, então com 82 anos. Sobre-


nome preservado a pedido da entrevistada.

GERMANO, entrevista em 28 de abril de 1992, então com 97 anos.


Sobrenome preservado a pedido do entrevistado.

ELZA, entrevista em 12 de maio de 1992, então com 91 anos. Sobreno-


me preservado a pedido da entrevistada.

24 3
EIXO II

P R O TA G O N I S M O S E
(RE)EXISTÊNCIAS
IGUALDADE DE GÊNERO PARA
CRIANÇAS ATRAVÉS DA LITERATURA
Ana Prestes

INTRODUÇÃO

Falar sobre temas complexos da sociedade com o público infanto-ju-


venil é um grande desafio. A literatura tem sido um suporte e um veículo
importante para esse fim, como se vê com a multiplicação de edições e
coleções literárias voltadas para as crianças e que abordam economia, pre-
conceitos, sexualidade, política, meio ambiente e vários outros. Os temas
ligados aos debates de gênero também começam a ganhar mais espaço na
base das prateleiras, ao alcance das mãos das pequenas e pequenos cida-
dãos. Ao longo deste texto, partilho a experiência de escrever duas obras
para esse público que trazem para o universo infantil um olhar sobre o
papel da mulher na sociedade em diferentes períodos históricos.

1. MIRELA E O DIA INTERNACIONAL DA MULHER

A ideia de escrever um livro sobre o 8 de Março, Dia Internacional


da Mulher, surgiu de uma experiência doméstica com minha filha, Hele-
na, que à época cursava o terceiro ano do Fundamental I em uma escola
pública em Brasília, no Distrito Federal. A professora pediu à turma que
cada aluna/o fizesse uma pesquisa sobre a origem da data e explicasse o
porquê de existir um dia internacional dedicado às mulheres. Helena se
esforçou muito para realizar a pesquisa e observei sua angústia por não
encontrar material para crianças que tratasse do tema. Todos os materiais

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disponíveis tinham um vocabulário adulto, variando entre o acadêmico e


o político, próprio do ambiente da política partidária e dos movimentos
ou organizações da sociedade civil. Descobri junto com ela que também
havia uma narrativa predominante sobre o incêndio de uma fábrica em
Nova Iorque para explicar a origem da data, enquanto outros fatos, como
o da greve das mulheres russas em Petrogrado em 1917, eram omitidos.
Outra abordagem era a da sacralização da mulher como a mulher do lar e
que nessa data deveria receber flores, perfumes ou utensílios domésticos.
A necessidade de um livro para o público infanto-juvenil foi algo que me
pareceu bastante urgente. Pensei especialmente em outras crianças que,
ao pesquisarem o tema, pudessem aprender sobre ele de forma lúdica,
com vocabulário adequado, imagens ilustrativas e uma abordagem que
trouxesse as diversas narrativas de origem da data e das lutas realizadas
pelas mulheres ao longo da história.
Nossa personagem, Mirela, expressa assim essa sensação de desconhe-
cimento geral que paira na sociedade sobre a origem do dia 8 de Março:

Ainda ontem, na escola


Me pediram uma lição:
“Qual o dia da mulher
Em cada país e nação?”

Fiquei surpresa e assustada


Pois não sabia responder
Prometi que no outro dia
Uma resposta eu ia ter!
Ao procurar, percebi
Que pouca criança sabia...
Só em conversa de adulto
Falava-se sobre esse dia

Um segundo desafio foi enfrentar o senso comum sobre a data,


que a vincula a um sistema de mercado e abstrai seu conteúdo político.
Isso ocorre porque o comércio quer lucrar também com esta data es-
pecífica em que todos os holofotes se voltam para um produto bastante

24 7
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

“vendável”, que é a mulher e todas as associações que se podem fazer


ao imaginário coletivo da feminilidade. Também porque há uma forte
pressão dos setores mais conservadores da sociedade para desvincular
o significado da data de tudo aquilo que signifique mais liberdade,
autonomia, independência, desenvolvimento e emancipação para as
mulheres. Por outro lado, no Brasil dos últimos anos, com a ascensão
de uma mulher à Presidência da República e o fortalecimento de mo-
vimentos sociais e organizações da sociedade civil que tratam de te-
mas sensíveis à condição feminina e dos direitos à igualdade, houve o
fortalecimento de uma agenda feminista mais significativa e vinculada
às verdadeiras aspirações da data. Neste sentido, nossa personagem se
posiciona assim no livro:

O 8 de março nasceu
também para ser bonito
Mas não vamos deixar as flores
esconderem o conflito
[...]
Metade do mundo são homens
A outra metade, mulheres
Dividimos tudo no globo
Menos os afazeres

À mulher se dá menos valor


E muito mais obrigação
O 8 de março, portanto,
Seria a data do Não!

Não aos menores salários!


Não à exploração!
Não à violência!
Não à submissão!

Outro desafio grande para escrever o livro foi montá-lo para que
servisse de fonte de informação fidedigna e não caísse em uma réplica

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automática do senso comum sobre as origens do 8 de março como Dia


Internacional da Mulher. Nessa trajetória, encontrei os estudos da pes-
quisadora canadense Renée Côté, com a colaboração de Sylvie Dupont,
sobre essas origens. Em 1984, ela publicou um livro que acabou se per-
dendo, por seu formato pouco convencional, chamado O Dia Internacio-
nal da Mulher – os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março,
até hoje confusas, maquiadas e esquecidas. Ela queria entender se era realmen-
te verdade a história sobre as 129 mulheres tecelãs queimadas dentro de
uma fábrica em Nova Iorque, em um 8 de março, durante uma greve no
ano de 1857. Até hoje, essa história é contada em diversos materiais didá-
ticos e paradidáticos como sendo o ponto de origem do 8 de março. Não
raro, a informação vem sem nenhuma contextualização ou explicação de
como o evento do incêndio ensejou mulheres organizadas a estabelece-
rem uma data de luta.
Após uma pesquisa de dez anos em arquivos da Europa, EUA e Ca-
nadá, Côté descobriu que não havia nenhuma comprovação, seja em jor-
nais da época, registros em hospitais, sindicatos ou na polícia, quaisquer
documentos, sobre a greve de uma fábrica têxtil em Nova Iorque, em
março de 1857. Ela chegou à conclusão de que se confundiu com a gre-
ve de 1910, nos EUA, a de 1917, na Rússia e o incêndio de uma fábrica
em Nova Iorque em 1911. Até uma cor para o movimento foi fabricada
como um mito, o lilás, pois supostamente as mulheres queimadas esta-
vam trabalhando com um tecido nessa cor. Seu livro é extenso, possui
240 páginas, mas o que foi importante extrair dele para a confecção do
livro infantil Mirela foi a informação de que junto ao estabelecimento de
um mito sobre a greve de Nova Iorque em 1857, foi construído também
o “esquecimento” de uma outra greve geral, de 1917, na Rússia, também
em um 8 de março (no calendário gregoriano) ou 23 de fevereiro (no ca-
lendário juliano) como um dos estopins para a Revolução Russa de 17 e
cuja cor predominante era o vermelho. E junto com a greve de Petrogra-
do, ficou invisibilizada também a Segunda Conferência Internacional de
Mulheres Socialistas, realizada em Copenhagen, na Dinamarca, no ano
de 1910, e que decidiu pela realização de um dia internacional dedicado
à luta das mulheres.

24 9
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Outro trabalho fundamental sobre esse debate, produzido aqui no Brasil


mesmo, foi o de Vito Giannotti, do NPC (Núcleo Piratininga de Comu-
nicação), com ilustrações de Carlos Latuff, e que produziu O Dia da Mulher
Nasceu das Mulheres Socialistas, publicado em 2004. Hoje o livro se encontra
em sua 8ª edição, com texto de Giannotti e Claudia Santiago, com novas
ilustrações do Latuff e com o nome A origem socialista do Dia da Mulher (2016).
Ao ser perguntado, em uma entrevista no ano de 2004, se sua cartilha pode-
ria esfriar o ânimo de quem acreditava na história das 129 mulheres queima-
das vivas em uma fábrica novaiorquina, Vito Giannotti respondeu:

Ao contrário. Ao invés de pensar que o 8 de Março nasceu de uma


luta derrotada, de morte, com as mulheres vítimas dos patrões,
a história mostra uma greve vitoriosa. Foi a greve das tecelãs de
São Petersburgo, que entraram em greve de forma espontânea e
autônoma. Até contra os planos do partido e do comitê sindical.
Entram em greve e desencadeiam a primeira etapa da Revolução
Russa. Na cartilha tem uma página inteira sobre este fato – Esta
é a única origem do 8 de Março – um dia de luta, de vitória e de
muitas bandeiras vermelhas.350

Outra estudiosa que trouxe contribuições para esse debate foi a histo-
riadora espanhola Ana Isabel Álvarez Gonzáles, com o livro As origens e a
comemoração do Dia Internacional das Mulheres, publicado no Brasil pela SOF
(Sempre Viva Organização Feminista) e a Editora Expressão Popular no
ano de 2010. Isabel recupera toda a história de um incêndio que realmente
ocorreu na fábrica Triangle Shirtwaist Company, em Nova Iorque, mas
não em 1857 e sim em 1911, sem nenhuma relação com o Dia das Mulhe-
res ou Women’s Day, como se convencionou chamar nos EUA. Infelizmen-
te, segundo a autora, os incêndios desse tipo eram muito comuns no país
no início do século XX. Naquele dia 25 de março de 1911 morreram 146
trabalhadores, sendo 123 mulheres e 13 homens; a maioria dessas mulheres
eram jovens entre 16 e 25 anos, e migrantes. Ainda assim, não há relação
entre esse fato e o surgimento do 8 de Março, como mostra Isabel em seu

350 Entrevista disponível em: http://piratininga.org.br/entrevistas/giannotti-marco2004.html

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livro. Surgiu, sim, em decorrência dos debates que se faziam do outro lado
do mundo, especialmente por Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, no âm-
bito do movimento socialista internacional. Mas, curiosamente, e aqui está
o nó que bagunça a cabeça de qualquer historiadora, Zetkin usa em seu
discurso de 1910 no Congresso da Segunda Internacional Socialista, a me-
mória da suposta greve de 8 de março de 1857 em Nova Iorque para que se
aceitasse e proclamasse a data como o Dia Internacional das Mulheres. Na
verdade, Zetkin estava inspirada no Women’s Day que as socialistas ameri-
canas já comemoravam desde 1908, com foco na reivindicação pelo direito
ao voto. Por um capricho da história, o 8 de Março russo, com a greve
puxada especialmente por mulheres em Petrogrado, é que de fato vai levar
à escolha da data para comemorar o Dia Internacional da Mulher, como a
autora prova em seu livro.
Em nosso livro, todo esse emaranhado histórico foi tratado assim por
nossa personagem Mirela:

Mulheres trancadas em fábricas


Proibidas de votar
Mulheres agredidas
Sem poder se levantar
Libertárias e socialistas
Que fizeram revolução
Já tinham o 8 de março
Pulsando no coração

O 8 de março nasceu
De uma luta desigual
Há muitos anos travada
Entre o trabalho e o capital

Terminada a parte do poema, o livro possui uma segunda parte em


que a personagem Mirela faz anotações como se fosse um diário ou ca-
derno. Nessa seção, são tratadas as questões da desigualdade social e do
trabalho entre homens e mulheres desde as primeiras comunidades hu-
manas e a edificação do patriarcado. Isso resultou em um mundo no qual,

251
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

desde a revolução agrícola, a mulher passou a ser considerada a mais frágil


e sem capacidade para dirigir a família e os homens estão destinados a
assumir o poder e serem os chefes das famílias. As anotações dela então
prosseguem para a Revolução Industrial e as novas tarefas assumidas por
homens, mulheres e crianças na produção fabril, sem que as mulheres
trabalhadoras tivessem acesso a creches ou qualquer apoio e eram subme-
tidas a jornadas extenuantes e inimagináveis de trabalho.
Por fim, o livro faz ainda uma homenagem, sempre com as anotações
da Mirela, a mulheres que se destacaram ao longo do tempo, como Cla-
ra Zetkin, Alexandra Kollontai, Bertha Lutz e as portuguesas sufragistas
Ana Osório e Carolina Ângelo. Certamente faltaram inúmeras mulheres
a serem ilustradas e mencionadas, especialmente brasileiras que há déca-
das constroem o Dia Internacional da Mulher. E faltou uma problema-
tização, que pode ser objeto de um segundo livro sobre a amplitude das
demandas das mulheres brasileiras, especialmente em uma sociedade tão
profundamente marcada pelo fenômeno da escravidão e que fez com que
por muito tempo fossem invisibilizadas as lutas de lideranças quilombo-
las, indígenas, sufragistas negras, como Almerinda Gama, intelectuais e
militantes do movimento negro, como Lélia Gonzáles.
Algo fundamental em qualquer livro infantojuvenil é a ilustração.
Especialmente quando se quer cativar os menores. A ilustradora do Mi-
rela é a artista Vanja Freitas e fizemos um trabalho conjunto interessante
em que intercalamos suas ilustrações com imagens de peças publicitárias,
cartazes, fotos e charges antigas, que mostravam por exemplo a resistência
masculina ao acesso das mulheres ao voto, homens descansando enquanto
as mulheres realizam tarefas doméstica, as mulheres que lotavam as fábri-
cas no início da revolução industrial, como em um fábrica de corpetes em
Praga, cartazes soviéticos conclamando a glória a mulher soviética, sufra-
gistas norte-americanas marchando de branco em Nova Iorque, além de
fotos das homenageadas como Clara Zetkin e Bertha Lutz. Pode parecer
pesado para uma criança, mas quem tem acesso ao livro pode verificar
como é possível brincar com essas imagens e harmonizá-las com cores e
ilustrações que as transformam em uma verdadeira viagem no tempo que
encanta o público infantil.

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2. MINHA VALENTE AVÓ

Quatro anos após a empreitada de escrever o livro Mirela e o Dia Inter-


nacional da Mulher, surgiu um convite para colaborar na escrita de um li-
vro também infantojuvenil, mas sobre mulheres brasileiras que foram ví-
timas da repressão no período da ditadura militar brasileira (1964-1985).
A ideia foi de uma prima, a historiadora Andreia Prestes, e veio também
de uma experiência doméstica. Desta feita, experimentada no interior
da família Prestes. Refiro-me à família formada por Luiz Carlos Pres-
tes, histórico dirigente comunista brasileiro, e Maria do Carmo Ribeiro,
também conhecida como Maria Prestes e companheira de Prestes por 40
anos, até o falecimento dele em 1990. Maria hoje reside no Rio de Janei-
ro, no mesmo apartamento em que viveu com Prestes desde que voltaram
da União Soviética ao final de 1979, e hoje conta com 91 anos de idade.
O livro traz episódios sobre a história do Brasil contados por uma
avó que vai buscar sua neta na saída da escola. No caminho, a criança
desfruta com alegria a companhia e descobre, por meio dos relatos, uma
avó valente e corajosa, muito dedicada à família e aos cuidados com as
plantas e os animais ao longo dos seus 90 anos de vida. O livro acaba
revelando também momentos íntimos da relação entre os netos e a avó,
como as canções que cantavam juntas ou o feijão especial que a avó prepa-
ra. Trata-se do resgate da luta de Altamira Rodrigues Sobral, mais tarde
registrada como Maria do Carmo Ribeiro, por conta da clandestinidade,
e posteriormente conhecida como Maria Prestes, uma mulher que dedi-
cou sua vida a defender o Brasil em nome da liberdade, da democracia e
da justiça social.
O livro, escrito, editado e lançado no ano pandêmico de 2020, leva o
título de Minha Valente Avó e foi escrito a partir de um empreendimento
familiar, coletivo e afetivo, com a coautoria de Andreia Prestes, Eduardo
Prestes e Ana Prestes, com ilustrações de Marília Pirilo. Lembrar a his-
tória de luta de nossa avó foi também uma oportunidade de homenagear
todas as mulheres que lutaram e resistiram aos tempos de ditadura militar
nos anos 60 e 70 do século passado. Inclusive, ao final do livro fazemos
uma homenagem a 25 dessas mulheres que sobreviveram e se tornaram

253
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

avós e bisavós. Mulheres que viveram a repressão, as torturas, mortes,


desaparecimentos e todas as atrocidades do período, hoje conhecidas e
documentadas, mas não reparadas e não contadas para a sociedade. O
livro serviu também como um tributo à memória daquelas que são sis-
tematicamente invisibilizadas pela sociedade patriarcal brasileira, seja no
espaço doméstico ou no público.
Não é simples tratar desse tema com o universo infantil e se tor-
nou possível ao se contar a história de uma avó que narra para uma
neta, em um trajeto de retorno da escola para casa, passagens do que
ela viveu no período ditatorial. Em um trecho do livro, a personagem
infantil (neta) diz:

De mãos dadas caminhamos enquanto ela me conta histórias in-


críveis. Imagina minha cara ao descobrir que seu nome verdadeiro
não é Maria? Eu ainda não sabia que minha avó e tantas outras
mulheres e homens um dia precisaram mudar seus nomes para
fugir e se esconder, num tempo em que o Brasil era governado
pelos “mandões”.

Como inspiração, tomamos como exemplo algumas experiências da


literatura infantojuvenil argentina sobre o tema. Ao contrário do Brasil,
no país vizinho há uma abundância no tratamento do resgate e cuida-
do da memória coletiva do país, que fez parte do processo de transição
democrática e ainda segue de modo imponente, sem deixar a chama se
apagar. Um exemplo de livro do gênero lançado por lá são Antiprincesas de
Plaza de Mayo, de Nadia Fink e ilustrações de Pitu Saá (2018), que conta
os diálogos entre bisnetos com sua bisavó logo após a identidade de sua
mãe ter sido restituída. O livro traz para as crianças como nasceram as
rodas de mulheres das Mães da Praça de Maio, o direito à identidade e a
luta das avós para descobrir o paradeiro dos netos desaparecidos durante a
ditadura. Outro livro precioso é o El pueblo que no quería ser gris, de Beatriz
Doumerc e Ayax Barnes (2015), cuja edição original é de 1975, quan-
do foi censurado, e que explora com a simplicidade de suas ilustrações a
questão da liberdade e o papel do povo na transformação de um país. O
livro traz para as ciranças a figura de um rei autoritário que dá ordens sem

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se importar com o que pensa o povo, ao ponto de querer eliminar todas


as cores. O livro trata, sem precisar dizer os nomes, de repressão, demo-
cracia, direitos e liberdade. Como estes, existem diversos outros livros
argentinos e latinoamericanos que aceitam o desafio de tornar acessível,
lúdico, colorido e verdadeiro o tratamento de temas importantes como a
ditadura e direitos das mulheres para crianças.
Como vimos, o uso das palavras adequadas é muito importante ao
se escrever literatura infantojuvenil. Um dilema interessante encontrado
logo no início da nossa escrita foi quanto à denominação dos algozes des-
sas mulheres, em nossa cabeça vinham as palavras generais, comandantes,
militares, até que se chegou à solução de chamá-los de “mandões”. Toda
criança entende bem como se comporta e o que faz um “mandão”. O
recurso da expressão “avó valente” também foi para dialogar com o uni-
verso infantil de heróis e heroínas corajosas. Usamos “esconde-esconde”
para transmitir a atmosfera da época em que sucessivas mudanças de casa
eram necessárias para escapar da perseguição da polícia política.
Os tempos sombrios, de ataques à democracia, vividos atualmente
no Brasil, com o retorno da ameaça autoritária, foram um pano de fundo
importante para a confecção da obra. E há no livro um diálogo entre avó
e neta que expressa bem isso:

- Vó, o que você faria se a gente voltasse a viver nesse Brasil gover-
nado por mandões? Ela olha pra mim com a doçura e serenidade
de sempre e, sorrindo me responde:

- Faria o que fiz tantas vezes ao logo da vida: começaria a luta toda
de novo.

Como pano de fundo desta elaboração, esteve uma busca por um


livro que incentivasse o interesse das crianças e adolescentes pela his-
tória política do Brasil. A busca pelo entendimento de um país de 50
anos atrás, que vivia no período autoritário da ditadura militar. De
lá pra cá, muitas histórias de mulheres perseguidas por defenderem a
liberdade de expressão se perderam. Embora as famílias de desapare-
cidos políticos e perseguidos pela ditadura cultivem essas memórias

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

dentro de seus lares, as narrativas continuam distantes do público ge-


ral. Uma história feita de forma oficial pelos órgãos de Estado não raro
omite o papel das mulheres. Por isso foi importante falar em mulheres
determinadas e que faziam uma militância em sua juventude e pri-
meira fase adulta, que muitas vezes foram invisibilizadas por serem
também as responsáveis pela casa e criação dos filhos – este um papel
também fulcral, inclusive para que seus companheiros estivessem na
luta do lado de fora de casa.
A personagem da avó – apesar de não estar tão explícito no livro –
encarna a vida de Maria Prestes. Uma mulher pernambucana, filha de
camponeses, com formação escolar até a primeira fase do ensino funda-
mental, Maria trabalhou desde pequena na agricultura, antes de se tornar
uma das mais importantes militantes do Partido Comunista. Aos 20 anos
foi destacada pelo partido para fazer a segurança daquele que mais tarde
seria também seu companheiro de vida, Luiz Carlos Prestes, líder da len-
dária Coluna Prestes dos anos 20 do século passado e um dos parlamen-
tares comunistas mais votados em 1945. Com Prestes, Maria conviveu
durante quatro décadas. Juntos tiveram nove filhos, sendo dois de uma
união anterior de Maria e que foram assumidos por Prestes. Maria tam-
bém escreveu um livro de memórias, intitulado “Meu companheiro – 40
anos ao lado de Luiz Carlos Prestes” (lançado em 1992 e reeditado em
2012), em que conta sobre o relacionamento dos dois e a vida marcada
por perseguições, clandestinidade e exílio.
Hoje, em um período dramático da história do Brasil, quando no-
vamente surgem episódios de repressão ao livre pensamento, com a as-
censão de forças políticas autoritárias e saudosas dos porões da ditadura,
nada mais importante do que trazer à tona as histórias de mulheres como
Maria Prestes para o conhecimento das novas gerações. Uma história que
se conecta com a de muitas outras mulheres que lutaram pela democracia
e tiveram suas trajetórias de vida invisibilizadas, quando não literalmente
apagadas. O livro é uma homenagem a todas elas que são uma inspira-
ção para as novas gerações. Ao final do livro, faz-se uma homenagem a
25 mulheres com histórias semelhantes à de Maria e que hoje são avós e
bisavós: Amelinha Teles; Ana de Miranda Batista; Cecília Coimbra; Ce-

256
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leste Estrela; Dilma Rousseff; Ecila Massena; Eglê Malheiros; Eleonora


Menicucci; Gilse Cosenza (in memoriam); Guiomar Silva Lopes; Heloísa
Vieira; Iara Prado; Ilda Martins; Jô Moraes; Liège Rocha; Mara Curtis;
Marinete Silva; Mirta Ramirez; Rita Sipahi; Robêni Baptista da Cos-
ta; Rosália Lopes Corrêa; Suzy Batista; Tânia Roque; Vanda Ferreira;
e Vitória Grabois. O grupo de mulheres destacadas é bastante diverso,
representando a luta feminista, socialista, antirracista e em prol de uma
sociedade mais justa e igualitária.
Assim como no Mirela, no livro da Valente Avó a ilustração também
foi fundamental. Feito pela artista Marília Pirilo, o trabalho de ilustração
produziu um diálogo entre texto escrito e imagem muito interessante.
Em função da pandemia, Marília não pode conhecer a vó Maria presen-
cialmente, mas ainda assim ela incorporou nas ilustrações traços muito
marcantes da Maria a partir dos relatos dos autores e fotos, como a for-
ma de vestir, o jeito de caminhar e uma famosa estante que compõe sua
sala de estar com símbolos de uma vida voltada à militância política. As
pinturas com tinta acrílica sobre papel cartão de Marília revelam ainda
aos pequenos leitores um país governado pelos tais "mandões". Mas, ao
mesmo tempo que mostra momentos difíceis daquele período, Marília
revela nos desenhos o profundo afeto que existe entre a neta e a avó, e o
valor da liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como diz a historiadora e autora de literatura infantil Andreia


Prestes, a literatura infantil é tão importante quanto a literatura adulta.
Ela é a porta de entrada para o universo – nem sempre tão encantado –
da literatura. Nesse sentido, precisa incorporar de algum modo temas
sensíveis, que dialogam com a complexidade e as contradições do mun-
do em que vivemos. Por isso, a defesa de que é necessário tratar desses
temas na infância. E quando se trata da desigualdade entre homens e
mulheres ou da preservação da memória histórica do país, as motiva-
ções são ainda maiores.
Apesar de estarmos no século XXI, meninos e meninas ainda são
tratados de forma desigual. Os homens são educados para a indepen-

257
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

dência, a força e o êxito profissional; as mulheres são educadas para


buscarem bons casamentos, a maternidade e trabalhos estáveis. O Bra-
sil é um país campeão em feminicídios, violência doméstica, estupro
e violência sexual na infância. A cada hora, o país tem 2,2 casos de
violência sexual contra crianças e adolescentes com registros no Dis-
que 100 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência
da República. Esses dados são do período de janeiro a maio de 2021,
em que foram registradas 6.091 denúncias, sendo 17,5% do total de
35 mil registros de todos os tipos de violência contra crianças e adoles-
centes no período. Segundo essas mesmas fontes do governo, 96% das
violências ocorrem em casa e com a pandemia do novo coronavírus a
situação se agravou. O que especialistas e conselheiros tutelares dizem
é que essas questões precisam ser tratadas na escola e, nesse sentido, o
suporte literário pode ajudar muito.
Para isso, ainda é preciso quebrar as barreiras impostas por movi-
mentos que pregam haver uma “ideologia de gênero”, em que o mo-
vimento Escola Sem Partido é um dos exemplos. São movimentos que
buscam quebrar a legitimidade do debate sobre igualdade de gênero.
Hoje em dia, no Brasil e outros países da América Latina, infelizmente
estamos vivendo uma verdadeira demonização dos debates de gênero
com nossas crianças e jovens. Com a tese de que tratar o tema nas
escolas interfere nos preceitos religiosos familiares ou gera hiperse-
xualização da infância. Nesse sentido, os livros aqui problematizados
e apresentados são justamente um antídoto contra esse tipo de pensa-
mento, pois trazem pela voz das crianças suas próprias descobertas ao
pesquisarem sobre a história de luta das mulheres por seus direitos.
São personagens que descobrem, ao se contar a história mundial e
de nossos países, como as mulheres são invisibilizadas, que foram as
mais exploradas no início da revolução industrial e até hoje recebem
salários menores que dos homens, que as mulheres foram impedidas
de votar por muito tempo e que são alvo constante de violência, tanto
doméstica, quanto política e no espaço público em geral.
Existem diversas formas de trabalhar com as crianças através desses
livros, com atividades lúdicas, brincadeiras, jograis, encenações teatrais,

258
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jogos, canções, saraus, feiras literárias, pintura, modelagem em massinha,


literatura de cordel – são mil opções. Algo interessante para se fazer é
a teatralização, com a montagem e uso dos figurinos das personagens
para maior interação com as crianças. Tudo é válido para desafiar uma
sociedade fundada nos pilares da grande concentração de terra e rique-
za, do patriarcado e da escravidão, mantido com base na violência. Essa
nossa herança foi e ainda é reproduzida através da opressão e o silencia-
mento das mulheres. Nossa sociedade ainda não trata temas tão impor-
tantes como os direitos das mulheres e isto se nota porque ainda temos
uma educação escolar e doméstica que não está orientada pela busca da
igualdade de gênero. É preciso perseguir uma formação com potencial de
gerar uma sociedade saudável, com respeito mútuo entre todos, indepen-
dentemente do gênero.

REFERÊNCIAS

ÁLVAREZ GONZÁLEZ, Ana Isabel. As origens e a comemoração


do Dia Internacional das Mulheres. 1.ed. São Paulo: SOF; Ex-
pressão Popular, 2010.

CÔTÉ, Renée. La Journée internationale des femmes ou le vrais


faits et les vraies dates des mystérieuses origines du 8 mars
jusqu’ici embrouillées, truquées, oubliées: la clef des enig-
mes la verité historique. 1.ed. Montreal: Remue-Ménage, 1984.

DOUMERC, Beatriz; BARNES, Ayax. El pueblo que no quería ser


gris. Buenos Aires: Colihue, 2015.

FINK, Nadia; SAÁ, Pitu. Antiprincesas de Plaza de Mayo. Buenos


Aires: Chirimbote, 2018.

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gem socialista do dia da mulher. 8.ed. Rio de Janeiro: Núcleo
Piratininga de Comunicação – NPC, 2016.

KAPLAN, Temma. On the socialist origins of International Women’s


Day. Feminist Studies, v. 11, n. 1, p. 163-171, 1985.

259
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

PRESTES RABELO, Ana Maria. Mirela e o Dia Internacional da


Mulher. 2. ed. Rio de Janeiro: Lacre; Anita Garibaldi, 2018.

PRESTES RABELO, Ana Maria; PRESTES, Andreia; PRESTES,


Eduardo. Minha Valente Avó. Rio de Janeiro: Quase Oito, 2020.

260
ENTRE FEMOCRACIA E
FEMINISMO: TRANSFORMAÇÕES
E ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS/
ORGANIZAÇÕES DE MULHERES
AFRICANAS DO PERÍODO DE
TRANSIÇÃO DE PODERES AO FIM
DOS PRINCIPAIS CONFLITOS CIVIS
(ANOS 1970-2000)
Thuila Farias Ferreira

INTRODUÇÃO

A história dos movimentos de mulheres em África remonta à épo-


ca pré-colonial, quando mulheres em posição de liderança e chefia era
algo relativamente comum às sociedades africanas. Antes da colonização
europeia, observavam-se sistemas matriarcais, governança dual sex351 etc.
– mulheres ocupando espaço à frente de reinos e impérios, e lideranças
comunitárias. Com o advento da colonização europeia, a imposição do
Estado e do modelo eurocêntrico de governança, as mulheres foram as
primeiras a serem afetadas. A perda de poder político, de autonomia e a

351 Formato de governo onde, estando homem e mulher na mesma posição hierárquica,
cada um se encarregava de questões específicas. Ver mais em AMADIUME, Ifi. Reinventing
Africa: Matriarchy, religion and culture. London; New York: Zed Books, 1997 (p. 110).

261
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

imposição de tributação colonial levaram mulheres africanas às trinchei-


ras na África Ocidental, como a Rebelião das Mulheres Kom nos Cama-
rões britânicos ou a Guerra das Mulheres Igbo na Nigéria, e em outras
insurgências que obtiveram diferentes níveis de êxito.
A mulher africana foi parte integrante e ativa dos movimentos por
independência, atuando desde a construção das pautas até as trincheiras.
Neste texto, abordaremos sua atuação enquanto movimento coletivo e
organizações, quando cabível, no sentido de terem estado organizadas
para defender a implementação dos direitos exigidos ao tempo das lutas
por independência já que, quando alcançadas, suas questões foram postas
de lado ou ignoradas pelos novos regimes monopartidários, militarizados
e autoritários.
Uma crise econômica abateu o continente nos anos 1980, tornan-
do-o mais receptivo à atuação de ONGs e de investimentos estran-
geiros, que por sua vez pressionaram pela democratização dos países
africanos. Esse contexto foi a brecha para que as organizações de mu-
lheres africanas pudessem se reorganizar em torno da independência
dos recursos do governo – contando, além das contribuições de seus
membros, com apoio financeiro internacional. Abordaremos ainda a
importância de eventos como as Conferências Mundiais sobre a Mu-
lher da ONU, ocorridas em Nairóbi (Quênia) em 1985 e em Pequim
(China) em 1995, e ainda encontros regionais, nos quais mulheres
de diferentes regiões da África e do mundo puderam trocar ideias e
pensar novas estratégias para seus contextos. É mais ou menos nesse
contexto que o feminismo se populariza e que “surge” o feminismo
africano, brevemente abordado aqui.
Todo esse processo crítico de crise econômica e pressões aos gover-
nos gerou disputas violentas ao longo do continente. Dessa vez, as mulhe-
res não estiveram nas trincheiras, mas reivindicando o fim dos conflitos.
Apesar de toda a violência sofrida, incluso números expressivos de abuso
sexual, elas atuaram na construção da paz, promovendo negociações no
nível informal, como ocorreu na Guiné e na República Democrática do
Congo, ou forçando sua participação nas negociações, como na Somália.
Ao final de tudo, angariaram uma expressão política importante, ainda

262
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via organizações, mas também via cotas no legislativo e, no caso da Libé-


ria, via presidência da República.
De forma geral, procuraremos abordar de forma mais ou menos li-
near as nuances históricas do movimento de mulheres africanas, conside-
rando o surgimento e manutenção do feminismo africano, que embora
venha se popularizando recentemente, é com frequência relacionado a
movimentos de mulheres mais antigos.

1. FIM DO COLONIALISMO, INÍCIO DO


AUTORITARISMO: FEMOCRACIA NAS ORGANIZAÇÕES
DE MULHERES AFRICANAS NO PERÍODO DE
TRANSIÇÃO DO PODER COLONIAL AO PODER LOCAL
(ANOS 1970-1980)

Conforme já tivemos a oportunidade de apontar em outro momen-


to, ao passo que findava o colonialismo, governos monopartidários e
352

autoritários pipocaram por todo o continente africano. Nesse contexto,


muitas organizações de mulheres, assim como cooperativas, sindicatos,
uniões de comerciantes, movimentos estudantis etc., vistos como pos-
síveis ameaças ao poder estatal, desapareceram ou foram trazidos para
dentro de estruturas governamentais controladas. Entre as estratégias de
controle estatal, estavam o desmantelamento das organizações a partir da
criação ou acentuação de tensões internas às organizações existentes, a
criação de alas de mulheres dentro do próprio partido/regime vigente, su-
pressão, cooptação ou proibição de associações independentes e a criação
de “organizações guarda-chuva”, na qual todas as associações deveriam
estar registradas.353 Muito embora essas alas femininas do regime e/ou
organizações criadas afirmassem uma autonomia, eram patrocinadas e
geridas pelo regime, frequentemente lideradas por mulheres urbanas e/
ou com vínculos de parentesco com líderes do regime (o que constitui o
fenômeno da femocracia, abordado mais adiante). As mulheres da base,
como camponesas e pequenas comerciantes, acabaram engolidas por essa

352 Ferreira (2021, p. 189-193).


353 Tripp et al. (2009, p. 45).

263
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

estrutura, que passou a servir como importante reduto de votos para


aqueles que a financiavam.
Segundo Aili Mari Tripp et al.,354 nos Camarões dos anos 1960, sob
o pretexto de “construir a unidade nacional e abolir o tribalismo”, como
parte do processo de eliminação da oposição, o governo do Presidente
Ahmadu Ahidjo, do Cameroon National Union Party (Partido da União
Nacional dos Camarões), proibiu todas as associações independentes de
mulheres. Foi criada, de forma anexa ao partido regente, a Women’s Ca-
meroon National Union (União Nacional das Mulheres dos Camarões –
WCNU), e

[...] os órgãos da WCNU foram colocados sob a tutela dos res-


pectivos órgãos do partido em cada nível. [...] Ele [o presidente]
procurou trazer todas as organizações de mulheres sob a rubrica
da WCNU. Grupos culturais e religiosos - como o Clube Mamfe
Glee, a Associação Católica de Mulheres e a Associação Cultural
das Mulheres de Bamenda - que permaneceram fora da WCNU,
foram pressionados a aderir à União. Ao permanecerem fora do
guarda-chuva da WCNU, correram o risco de serem ligadas a
antigos partidos da oposição e, como tal, serem consideradas ini-
migas políticas do Estado.355

Em Quênia, com um fundo motivacional de cunho econômico, a


estratégia implementada, bem como nos Camarões, foi a de cooptação
das organizações existentes.

O partido governante, Kenya African National Union (União


Nacional Africana do Quênia - KANU), gradualmente cooptou
a grande organização feminina Maendeleo ya Wanawake [De-
senvolvimento das Mulheres] MYW) para que em 1987 estives-
se totalmente sob o controle do KANU. Este foi um período
de declínio econômico e perda de legitimidade política para o

354 Tripp et al. (2009, p. 47).


355 Tripp et al. (2009, p. 47). Tradução nossa.

264
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partido governista. Ao expandir seu controle sobre os vinte mil


grupos membros da MYW, o KANU esperava espalhar sua in-
fluência e dar-lhe os laços necessários às organizações de base
para sustentar seu apoio popular em queda. O acesso aos fundos
da MYW e ao dinheiro dos doadores que haviam sido desviados
das iniciativas governamentais tornou a aquisição da MYW ain-
da mais atraente.356

Foi nesse contexto que surgiu o fenômeno que mais tarde foi alcu-
nhado por Amina Mama (1995) de femocracia (femocracy), também como
parte das estratégias governamentais de controle dos movimentos e or-
ganizações de mulheres. Femocracia diz respeito à prática de alguns go-
vernos de empossar primeiras-damas e/ou familiares de chefes de Estado
como presidentes das principais organizações de mulheres e/ou a organi-
zação guarda-chuva do país. Alguns exemplos vêm do Mali, onde Ma-
riam Traoré, primeira-dama entre 1968 e 1991, foi presidente da Union
Nationale des Femmes du Mali (União Nacional das Mulheres do Mali), e
de Zâmbia, onde a também primeira-dama – entre 1964 e 1991 – Betty
Kaunda, foi membro da Women’s League (Liga das Mulheres).357
Em Gana, o Provisional National Defence Council (Conselho de Defesa
Nacional Provisório – PNCDC), surgido a partir do golpe de estado de
1979 e liderado pelo então militar Jerry John Rawlings (presidente de
Gana entre 1981 e 2001, tendo sido democraticamente eleito para seus
dois últimos mandatos, em 1992 e 1996) fundou, em 1981, o 31st Decem-
ber Women’s Movement (Movimento das Mulheres de 31 de dezembro –
31DWM), presidenciado pela primeira-dama, Nana Konadu Agyeman
Rawlings. De acordo com Aili Tripp et al.,358 com o patrocínio do Na-
tional Democratic Congress (Congresso Nacional Democrático – NDC), o
31DWM espalhou-se pelo país expandindo seu eleitorado feminino, ao
passo em que absorvia organizações de mulheres de base, impedidas de
desafiar a liderança de Gana em seu desempenho nas áreas de bem-estar e

356 Tripp et al. (2009, p. 46). Tradução nossa.


357 Tripp et al. (2009, p. 47).
358 Tripp et al. (2009, p. 46).

265
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direitos da mulher. Em entrevista cedida a Amina Mama em 2005, jun-


tamente com Rose Mensah-Kutin e Hamida Harrison, Dzodzi Tsikata
afirmou que:

Dependendo das circunstâncias, ele [31DWM] se apresentaria


como um órgão revolucionário, ou como uma ONG, ou qualquer
sorte de coisas. Mas ocupou todo o espaço e asfixiou e restringiu
as organizações independentes de mulheres. Também controlava
o maquinário nacional para mulheres e o Conselho Nacional para
Mulheres e Desenvolvimento, de modo que muito poucas orga-
nizações foram capazes de funcionar.359

No texto Feminism or Femocracy? State Feminism and Democratisation in


Nigeria (Feminismo ou Femocracia? Feminismo de Estado e Democra-
tização na Nigéria), de 1995, Amina Mama analisou o caso de Maryam
Babangida, primeira-dama da Nigéria entre 1985 e 1993, que embora ca-
recesse de um currículo ou histórico dentro das organizações de mulheres
ou na política, encabeçou o Better Life for Rural Women Programme (Pro-
grama Vida Melhor para a Mulher Rural - BLP), inicialmente submisso
à Directorate of Food, Roads and Rural Infrastructure (Diretoria de Alimentos,
Estradas e Infraestrutura Rural – DFRRI). O programa acabou servindo
como meio publicitário para as esposas dos chefes de distritos (militares)
que foram empossadas nas alas regionais da BLP, sem promover o que
era naturalmente esperado para as mulheres rurais. Em 1989, durante um
encontro nacional do BLP, uma cerimônia premiou Maryam Babangida
como “a mulher do ano”, eleita pelos jornais nigerianos.360 Esses encon-
tros, onde ocorriam feiras, foram bastante criticados.

Ainda na frente financeira, houve acusações (e há testemunhas


do fato) de que fundos públicos tinham sido utilizados para com-
prar itens para exibição na feira, onde nenhum desses itens tinha
sido produzido por mulheres rurais. Em algumas áreas, mulheres

359 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005). Tradução nossa.


360 Mama (1995, p. 50).

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rurais reclamaram que os comitês do BLP tinham pegado suas


mercadorias sem pagar por elas, e não as devolveram após a feira.
Outras protestaram que as "facilidades de crédito" que lhes foram
concedidas pelo BLP consistiam em empréstimos que cobravam
taxas de juros exploratoriamente altas (Tongo 1990). Outras mu-
lheres rurais reclamaram que o maquinário havia quebrado e não
estava recebendo manutenção, ou que tenham sido operados por
homens e não pelas próprias mulheres.361

Amina Mama (1995) afirma que, embora Maryam Babangida tenha


alegado o autofinanciamento e sucesso do BLP – em 1992, falava-se da
criação de 10.000 cooperativas, 1.793 indústrias caseiras, 2.397 fazendas,
470 centros polivalentes de mulheres e 233 centros de saúde – o mes-
mo não realizava relatórios financeiros. Por exemplo, em 1992, o Banco
Central da Nigéria declarou que o programa havia custado cerca de 400
milhões de nairas (US$ 18 milhões segundo Tripp et al.)362 a seus cofres,
sem incluir gastos com salários e veículos de funcionários. A autora alega
ainda não haver provas empíricas para tais feitos.

As mulheres rurais parecem estar tão industrializadas quanto


sempre foram, enquanto a pobreza continua endêmica. O declí-
nio dramático dos padrões de vida urbanos e rurais e o agrava-
mento da situação de segurança nacionalmente resultou em maior
dependência das áreas rurais, e há evidências que sugerem que o
agravamento das condições tenha encorajado as pessoas a voltar
para suas aldeias de origem.363

Assim, no início do período pós-independência, as organizações


de mulheres estavam voltadas para questões assistenciais e domésticas.
Como consequência desse processo de cooptação partidária, as organi-
zações de mulheres africanas, sob um discurso de “desenvolvimento para

361 Mama (1995, p. 50). Tradução nossa.


362 Tripp et al. (2009, p. 50).
363 Mama (1995, p. 51). Tradução nossa.

267
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as mulheres”, acabaram marginalizadas, restringidas a um grupo de ques-


tões “não-políticas” – artesanato, agricultura, cooperativas para geração
de renda, questões religiosas e culturais – especialmente em nível local,
incapazes de promover mudanças substanciais.364 Regidas “de cima para
baixo”, tais organizações acabavam beneficiando uma elite de mulheres
urbanas às custas de mulheres rurais e urbanas pobres, que aos poucos
foram se desiludindo dessas organizações.

2. NOVAS ESTRATÉGIAS: EVENTOS INTERNACIONAIS


E APROXIMAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DE MULHERES
AFRICANAS COM O FEMINISMO (ANOS 1980-1990)

Ao discorrer sobre o aumento do ativismo feminino na África nos


anos 1990, Aili Tripp et al.365 o atribuem a três fatores: 1) influências in-
ternacionais (Conferência da Mulher em Nairóbi, em 1985 e em Pequim,
em 1995, entre outras) e a difusão de ideias e táticas sobre os direitos das
mulheres em toda a África; 2) mudança na base de recursos, permitindo
que as associações de mulheres tivessem maior acesso a fontes alternativas
de financiamento; e 3) a abertura (em alguns países) de espaço político
para as organizações de mulheres como resultado da democratização e da
liberalização política.
Conforme a crise econômica se alastrava pelo continente africano nos
anos 1980, abatia também as estruturas político-partidárias – e as instituições
femocráticas que as compunham –, e os governos começaram a se abrir ao
capital estrangeiro, às associações empresariais, geradoras de renda e ONGs,
conforme os jovens países sofriam pressões externas pela democratização.
Nesse período transicional, em alguns países o modelo antigo de organi-
zações de mulheres persistiu; em outros foi desmantelado; em outros ainda
conviveu com modelos novos ou passou por algumas mudanças estruturais.
Nesse contexto, os movimentos de mulheres africanas viram a pos-
sibilidade de se desvincular dos governos e criar ou retomar organizações

364 Tripp et al. (2009).


365 Tripp et al. (2009, p. 62).

268
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autônomas, e muitas organizações independentes começaram a surgir,


enquanto as organizações guarda-chuva e alas de mulheres ligadas aos
regimes perdiam força junto com os sistemas monopartidários, ganhando
impulso em torno da III Conferência Mundial sobre a Mulher da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU), sediada em Nairóbi (Quênia) em
1985, e sua edição subsequente, ocorrida em Pequim, no ano de 1995.
Na Tanzânia, por exemplo, associações nacionais de mulheres de vá-
rias áreas como mídia, medicina, justiça e artes também surgiram a partir
da segunda metade dos anos 1980. Em Moçambique, foi em meio à guer-
ra que civil que sucedeu a independência, iniciada em 1977, entre a Re-
sistência Nacional Moçambicana (RENAMO) e a Frente de Libertação
de Moçambique (FRELIMO), que um novo movimento de mulheres
surgiu, “levando a uma proliferação de organizações humanitárias e uma
maior influência dos doadores na mobilização das mulheres”.366
Nos Camarões, o Estado resistiu à formação de associações indepen-
dentes. O Collectif des Femmes pour le Renouveau (Coletivo de Mulheres
pela Renovação – CFR), surgido em 1982, composto por feministas ca-
maronesas e francesas e que brigava pelo aumento da representação po-
lítica feminina, foi banido junto com outras organizações em 1991, pois
“segundo o Ministério de Administração Territorial dos Camarões, ele
ameaçava a segurança, a integridade territorial e a unidade nacional”.367
Em junho de 1982, em Dakar (Senegal), ocorreu o encontro da
Association of African Women for Research and Development (Associação de
Mulheres Africanas para Pesquisa e Desenvolvimento - AAWORD). No
seminário, a partir da preocupação com questões de desenvolvimento re-
lacionado à mulher, as participantes analisaram se seria melhor para elas
se organizarem de forma independente ou inseridas nas estruturas gover-
namentais/partidárias. A preocupação àquela época estava em

[...] como garantir o acesso das mulheres à terra; como responder


às políticas de precificação estatais [...] que mantinham os preços
dos alimentos artificialmente baixos para os habitantes das cida-

366 Tripp et al. (2009, p. 57). Tradução nossa.


367 Tripp et al. (2009, p. 57-58). Tradução nossa.

269
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des, enquanto prejudicavam as mulheres agricultoras que obtive-


ram preços baixos na venda de suas colheitas; e a falta de acesso das
mulheres a insumos tecnológicos, assistência técnica e serviços de
extensão agrícola.368

Na ocasião, o feminismo passou a ser considerado uma base estraté-


gica política interessante para se pensar uma forma alternativa de desen-
volvimento e, embora as participantes defendessem o respeito às tradições
africanas (sob a ótica de que o feminismo não é africano), consensuou-se
que era necessária uma mobilização mais política das mulheres. Aili Tri-
pp et al. apontam que essa “virada” em direção ao pensamento feminis-
ta, ainda num momento em que as mulheres africanas estavam muito
mais voltadas para questões de cunho desenvolvimentista, fica evidente
na reunião da AAWORD.369 Segundo as autoras, um novo rumo estava
ali sendo traçado, apesar de as estratégias políticas assinaladas ainda serem
um pouco vagas:

Nesta reunião, o feminismo foi visto como uma base para um


modelo alternativo de desenvolvimento, e embora as participantes
tenham defendido o respeito às tradições nacionais e étnicas, elas
sentiram que “as mulheres devem ser mobilizadas politicamente
para a ação” para desafiar “aspectos de nossas culturas que dis-
criminam, restringem e desvalorizam o desenvolvimento físico,
psicológico e político das mulheres” (Declaração de 1982). Em
outras palavras, a conferência lançou as bases para a mudança que
viria nos anos 90 de uma abordagem estritamente desenvolvimen-
tista para uma abordagem política que reconhecesse as dimensões
de poder e gênero do que as mulheres enfrentavam.370

368 Tripp et al. (2009, p. 55). Tradução nossa.


369 Tripp et al. (2009).
370 Tripp et al. (2009, p. 55). Tradução nossa.

270
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Dessa forma, ainda que minimamente, a Conferência marcou o iní-


cio de um pensamento mais político em torno de gênero, e um pouco
menos restrito a questões desenvolvimentistas.
A Conferência sobre a Mulher da ONU sediada em Nairóbi, em
1985, foi um marco para o movimento de mulheres africanas. Na oca-
sião, os debates com as mais de mais de 13.500 congressistas, vindas ma-
joritariamente do Sul global371, oportunizaram a apreciação mútua de
estratégias, e as mulheres africanas iniciaram um debate maior em torno
da importância da autonomia de seus movimentos, ao mesmo tempo que
se percebiam como parte de um movimento global de reivindicações em
torno da igualdade de gênero. Importantes redes de apoio nacionais, re-
gionais e continentais surgiram a partir daí.

Houve três mecanismos organizacionais principais através dos


quais normas, práticas e ideias transnacionais relacionadas ao
gênero influenciaram os movimentos de mulheres africanas: (1)
através de coalizões e redes de defesa, que influenciaram as polí-
ticas em nível internacional, nacional, sub-regional e continental;
(2) através da difusão de organizações regionais e sub-regionais
dentro da África; e (3) através das Nações Unidas e outras institui-
ções multilaterais, bem como de doadores estrangeiros.372

Antes da Conferência de Nairóbi, no entanto, outras conferências


internacionais, como a Convention on the Elimination of All Forms of Discri-
mination Against Women (Convenção sobre a Eliminação de Todas as For-
mas de Discriminação Contra Mulheres – CEDAW), ocorrida em Nova
Iorque no ano de 1979, e ainda organizações feministas do Sul global,
como a Development Alternatives with Women for a New Era (Alternativas
de Desenvolvimento com as Mulheres para uma Nova Era – DAWN),
criada em 1984 com vistas à Conferência de Nairóbi, protagonizaram

371 O termo, bastante utilizado em estudos pós-coloniais e decoloniais, refere-se aos paí-
ses em desenvolvimento, ou às regiões mais pobres do mundo (que em geral se situam
ao sul, enquanto os países ricos e desenvolvidos se situam, em geral, ao norte do globo).
372 Tripp et al. (2009, p. 64). Tradução nossa.

271
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

debates e ações importantes. A DAWN, que continua ativa, levou à


Conferência de Nairóbi questões macroeconômicas a serem inseridas na
agenda feminista, oferecendo análises holísticas baseadas nas experiências
e realidades das mulheres do então chamado Terceiro Mundo373; a rede
preparou “uma crítica feminista do desenvolvimento, enfocando o im-
pacto da fome, da dívida, do militarismo e do fundamentalismo religioso
nas mulheres pobres [...]”.374
Os próprios movimentos de mulheres africanas exerceram influência
mútua, como se pode observar no caso da Carta da Mulher Sul-africa-
na (South African Women’s Charter), desenvolvida em 1994 pela Coalizão
Nacional das Mulheres (Women's National Coalition). A carta, que contém
12 temas (igualdade; lei e administração da justiça; economia; educação;
desenvolvimento, infraestrutura e meio ambiente; serviços sociais; vida
política e cívica; família e parentalidade; tradição, cultura e religião; vio-
lência contra a mulher; saúde; mídia), foi replicada

[...] pelos manifestos femininos de Emang Basadi, de Botsua-


na, em 1994, pela Rede de Mulheres de Uganda, em 1996, pelo
Grupo Nacional de Lóbi de Mulheres de Zâmbia, em 2001, pela
Conferência Nacional de Mulheres da Libéria, em 2004, e por
organizações de mulheres ganesas, em 2004.375

Em entrevista concedida a Amina Mama, Dzodzi Tsikata, Rose


Mensah-Kutin e Hamida Harrison (2005), principais articuladoras do
Ghanian Women's Manifesto (Manifesto das Mulheres de Gana), falaram
sobre o processo que culminou na redação do documento. Tsikata con-

373 “Terceiro Mundo” tem a ver com a separação dos países segundo critérios de eco-
nomia e desenvolvimento, surgido durante a Guerra Fria (1947-1991) e atualmente em
desuso. O Primeiro Mundo diz respeito aos países desenvolvidos (em geral europeus); o
Segundo Mundo àqueles em desenvolvimento (como o Brasil), mas já designou países
ex-socialistas como os que formavam a União Soviética; o Terceiro Mundo designaria os
países subdesenvolvidos. Ver mais em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/
primeiro-segundo-terceiro-mundo>. Acesso em: 13 set 2020.
374 Tripp et al. (2009, p. 64). Tradução nossa.
375 Tripp et al. (2009, p. 65). Tradução nossa.

272
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textualiza o cenário de Gana em 1999, ano eleitoral, onde uma série de


assassinatos de mulheres ativistas ocorreram de forma misteriosa e, ao se-
rem cobrados por uma resposta, os partidos em disputa, inclusive o que
concorria à reeleição, passaram a trocar acusações mais do que procurar
soluções.376 As mulheres então se organizaram em protestos, conduzi-
dos principalmente pela Network for Women's Rights in Ghana (Rede pelos
Direitos da Mulher em Gana – NETRIGHT) e pela Sisters Keeper, que
tomaram proporções “inimagináveis”, expondo a falta de vontade do go-
verno em solucionar essa questão, o que se estendeu para a “impressão
geral de que o governo não estava preocupado com os muitos problemas
enfrentados pelos ganeses”, como declarou Tsikata: “As pessoas diziam
que as mulheres tinham derrubado o governo - que não havia como eles
vencerem as eleições!”,377 o que de fato aconteceu em 2000.
O ocorrido fez com que o novo governo expressasse interesse nas
questões de gênero, criando até mesmo um ministério para a mulher, mas
sem dialogar com as organizações de mulheres do país, levando as entre-
vistadas a iniciarem, através da NETRIGHT e suas diversas associações
afiliadas, o processo de elaboração do Manifesto.378 Questionada sobre
apoio financeiro externo, Rose Mensah-Kutin disse que, em conversa
com doadores para o primeiro grande evento, eles se mostraram interes-
sados em apoiar, porém queriam “algo muito rápido e superficial”; então,
elas decidiram recusar o dinheiro deles: “[...] e tivemos a reunião de qual-
quer maneira. Foi depois disso que eles perceberam: essas pessoas, elas
estão falando sério!”.379 Com a ajuda da Action Aid, como relata Hamida
Harrison, o Manifesto foi lançado numa conferência em Acra em 2004,
da qual mais de mil mulheres e homens de todo o espectro social, cultural
e político ganês participaram.
O Manifesto foi escrito e debatido previamente com contribuições
de centenas de mulheres, incluindo representantes de organizações de
base comunitária e representantes eleitos de todos os então 110 distritos

376 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005, p. 2).


377 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005, p. 2).
378 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005, p. 3-4).
379 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005, p. 6).

273
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

ganeses, diversas associações profissionais, um grupo de mulheres com


deficiências, vários sindicatos, muitas ONGs de mulheres, representan-
tes de vários departamentos governamentais, indivíduos da Women and
Juvenile Unit of the Ghana Police Service (Unidade de Mulheres e Jovens
do Serviço de Polícia de Gana), uma coalizão para a Lei de Violência
Doméstica, e a grande coalizão de organizações de mulheres que é a pró-
pria NETRIGHT – exceto o Ministério de Assuntos da Mulher e da
Criança que, segundo as entrevistadas, viu o Manifesto como uma ten-
tativa de invadir seu território.380 O Manifesto, que foi influenciado por
documentos da mesma natureza redigidos na Nigéria e no Burundi, por
exemplo, influenciou outros manifestos África afora, e certamente veio a
influenciar a redação de outros, como a Carta de Princípios Feministas
para Feministas Africanas do African Feminist Forum (Fórum Feminista
Africano, AFF), redigido em 2006.
A IV Conferência Mundial Sobre a Mulher da ONU, sediada em
Pequim no ano de 1995, foi um estímulo importante para os movimen-
tos de mulheres africanas. Importantes avanços, como maior incentivo à
participação política e adoção de cotas eleitorais para as mulheres, passa-
ram a ser observados em muitos países a partir de 1995. Pode-se dizer,
no entanto, que tal qual antes da Conferência de Nairóbi, mais ou tão
importante quanto o evento em si foram os processos que antecederam a
Conferência, como os encontros nacionais e sub-regionais de organiza-
ções de mulheres que debateram a importância da participação feminina
nas tomadas de decisões políticas.

Na África Oriental, por exemplo, uma reunião preparatória em


Kampala, em 1993, reuniu 120 líderes de organizações de mu-
lheres de Quênia, Tanzânia e Uganda para planejar a Conferência
das Mulheres das Nações Unidas em toda a África, realizada em
Dakar em 1994 e a conferência internacional subsequente em Pe-
quim em 1995. As delegadas colocaram o acesso ao poder como
sua principal prioridade na agenda dos três países quando solici-

380 Tsikata, Mensah-Kutin & Harrison (2005, p. 9).

2 74
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tadas a classificar suas preferências para determinar os objetivos


estratégicos gerais na região.381

A Conferência de Pequim deu início a uma nova era de pensamento


estratégico sobre o uso da mídia para influenciar a opinião pública. Muito
embora meios como a internet ainda sejam restritos no continente africa-
no, centros de capacitação em informática foram criados, inclusive para
que as próprias organizações aprendessem a utilizar esse meio, por exem-
plo, e organizações de mídia de mulheres passaram a oferecer treinamen-
to a jornalistas sobre questões de gênero, procurando sensibilizá-los para
as formas como retratam as mulheres em suas histórias.
Nos anos 1990, as organizações de mulheres assistiram ainda ao au-
mento do interesse de doadores externos em sua causa, o que advém de
diversos fatores. Esses recursos, embora limitados, causaram impacto im-
portante nessas organizações. Segundo Aili Tripp et al., apesar de poucos
países terem se democratizado de fato nos anos 1990 (África do Sul, Be-
nim, Mali e Moçambique, por exemplo), a pressão pela liberalização dos
países africanos findou algumas ditaduras e criou novos espaços políticos
para a mídia independente, sistemas multipartidários e uma sociedade
civil expandida.382
Segundo Clark, Sprenger e VeneKasen,383 em pesquisa conduzida
para a Association for Women’s Rights in Development (Associação para
os Direitos das Mulheres em Desenvolvimento – AWID), 39% das or-
ganizações sobre gênero existentes em 2006 na África Subsaariana foram
formadas entre 1990 e 1999 e outras 32% entre 2000 e 2005.
De forma geral, a dependência das ONGs e organizações de mulhe-
res africanas do financiamento internacional, embora tenha possibilitado
um recurso que não estava disponível em outras fontes, ajudando-as a
pressionar governos para aprovar legislações importantes sobre os direi-
tos da mulher, causou críticas no sentido de que agendas ocidentais, em
vez de locais, estavam impulsionando essas. Apesar disso, Aili Tripp et al.

381 Tripp et al. (2009, p. 67). Tradução nossa.


382 Tripp et al. (2009, p. 73).
383 Clark, Sprenger e VeneKasen (2006, p. 79).

275
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

argumentam que “as organizações de defesa das mulheres africanas não


são diferentes de tais organizações em outras partes do mundo em sua de-
pendência do apoio de doadores”384 e que as agendas dessas organizações
foram estabelecidas dentro da África, a partir da experiência dos movi-
mentos de mulheres nos países africanos, com poucas exceções.

2.1. FEMINISMO AFRICANO

A gênese do feminismo africano, considerando o uso da nomencla-


tura “feminismo”, embora esteja fortemente atrelada às Conferências
Mundiais Sobre a Mulher da ONU de 1975, no México, e 1985, no
Quênia, e à ampliação da produção acadêmica acerca do tema nos anos
1990 – tendo ocorrido, em 1995, a Conferência de Pequim – é discutida
no sentido de que as feministas africanas reivindicam a atitude feminista
de suas antepassadas. Na verdade, autoras como Minna Salami385 apon-
tam para a década para as mulheres da ONU (1975-1985) como um mo-
mento de solidificação do feminismo africano contemporâneo, quando
aos poucos ele toma um caráter mais político. Segundo Aldenir Dias dos
Santos, a formação histórica do feminismo no continente africano se dá a
partir de quatro frentes:

[...] do movimento endógeno de mulheres; da resistência antico-


lonial; como produto direto do movimento de libertação nacional
e como resultado do grupo de mulheres profissionais, que estuda-
ram nas Universidades tanto no continente, quanto no exterior,
notadamente na Europa.386

A Carta dos Princípios Feministas para as Feministas Africanas, re-


digida durante o primeiro African Feminist Forum (Fórum Feminista Afri-
cano – AFF), realizado em 2006 em Acra, capital de Gana, envolveu a

384 Tripp et al. (2009, p. 76). Tradução nossa.


385 Salami (2017).
386 Santos (2016, p. 93).

276
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participação – segundo Adeyele-Fayemi,387 que esteve envolvida na con-


vocação do Fórum – de 120 ativistas feministas, estudiosas e pensadoras
africanas e da diáspora, e se tornou uma plataforma independente, or-
ganizada pelo African Women’s Development Fund (Fundo de Desenvolvi-
mento para as Mulheres Africanas – AWDF).
Na seção “A nossa identidade como feministas africanas”, a Carta da
AFF celebra a diversidade e o compromisso com uma agenda transfor-
madora para as sociedades africanas de suas membras, sendo este com-
promisso o que configura sua identidade feminista comum, cujas lutas
“estão intrinsecamente ligadas ao passado do nosso continente – con-
textos pré-coloniais diversos, escravidão, colonização, lutas de libertação,
neocolonialismo, globalização etc.388 Neste sentido, a carta afirma que
“Os Estados Africanos modernos foram construídos nas costas das fe-
ministas africanas que lutaram ao lado dos homens para a libertação do
continente”.389 Esta seção da Carta destaca também a reivindicação de
que o feminismo não foi importado do Ocidente e que existe uma longa
história de resistência ao patriarcado na África.

Ao invocarmos a memória destas mulheres cujos nomes raramen-


te são registrados nos livros de história, insistimos que a alegação
de que o feminismo foi importado do Ocidente para a África é
um profundo insulto. Nós reivindicamos e afirmamos a longa e
rica tradição de resistência das mulheres africanas ao patriarcado
em África. Doravante reivindicamos o direito a teorizar, por nós
mesmas, escrever para nós mesmas, formular estratégias para nós
mesmas e falar por nós mesmas como feministas africanas.390

Assim, elas reivindicam os ganhos do movimento de mulheres afri-


canas e suas conquistas como ganhos das feministas africanas, que abri-
ram caminho para as de hoje nos diversos níveis.

387 Adeyele-Fayemi (2010).


388 AFF (2017, p. 5).
389 AFF (2017, p. 5).
390 AFF (2017, p. 5).

277
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

O fato, no entanto, é que uso do termo feminismo por organizações


e em produções teóricas de mulheres africanas subsaarianas, assim como
mulheres africanas subsaarianas declarando-se feministas, é um fenôme-
no muito atual, observado principalmente a partir dos anos 1990 e com
mais força no pós-Conferência de Pequim (1995), quando o intercâmbio
entre mulheres africanas e outras do Sul global (especialmente latino-a-
mericanas e caribenhas) foi impulsionado, e bastante permeado por deba-
tes acadêmicos realizados por mulheres africanas estudando, trabalhando
e/ou em contato com a diáspora. Há de se considerar que, mesmo aquelas
ancestrais em posição de liderança, não necessariamente partilhavam de
valores éticos semelhantes aos que são defendidos pelas feministas afri-
canas contemporâneas, ou que em outros contextos históricos poderia
haver figuras femininas comparáveis às femocratas de Amina Mama,391 e
que as definir como feministas sem as devidas ressalvas talvez seja desres-
peitar o próprio princípio feminista de autodefinição.
Para resumir, ou abordar brevemente as principais características do
feminismo africano na atualidade, trago algumas das sete questões-chave
que baseiam as pautas, segundo Minna Salami.392
a) Patriarcado: central para o desenrolar das questões feministas
africanas, Salami resume a questão como atenção especial às formas como
este sistema psicológico e político, que valoriza o homem mais do que a
mulher, usa “a lei, a tradição, a força, o ritual, os costumes, a educação e a
linguagem para manter as mulheres sob a tutela dos homens”.393
Na seção “A nossa compreensão do feminismo e do patriarcado”,
da Carta de Princípios Feministas para Feministas Africanas, explica-se
o entendimento de feminismo e de patriarcado, em contexto africano,
compartilhado por elas enquanto feministas africanas:

Enquanto feministas africanas, a nossa compreensão do femi-


nismo coloca as estruturas e sistemas patriarcais de relação so-
cial, que estão incorporados em outras estruturas opressivas e

391 Mama (1995).


392 Salami (2017).
393 Salami (2017). Tradução nossa.

278
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exploradoras, no centro da nossa análise. O patriarcado é um


sistema de autoridade masculina que legitima a opressão das
mulheres através de instituições políticas, legais, económicas,
culturais, religiosas e militares. [...] O patriarcado varia no tem-
po e no espaço, o que significa que ele também muda ao longo
do tempo, e varia de acordo com a classe, raça, bem como com
as relações e estruturas étnicas, religiosas e globais. [...] Assim,
para desafiar o patriarcado de forma eficaz, é também neces-
sário desafiar os outros sistemas de opressão e exploração, que
frequentemente se apoiam mutuamente.394

b) Tradição: abrange a busca das feministas africanas pela adequa-


ção daquelas tradições que depreciam a mulher aos novos tempos, trazen-
do progresso a todos. O feminismo africano rejeita as instituições africa-
nas que são prejudiciais para a sociedade, como coloca Adeyele-Fayemi,
e “[t]ambém questiona a história e os valores africanos que não incluem
as narrativas das experiências das mulheres em sua totalidade, ou seja, a
romantização das experiências das mulheres africanas”.395
Um dos pontos importantes que feministas africanas levantam
é a necessidade de desmantelar a conveniência da separação entre o
público e o privado, que coloca a preservação das tradições “genui-
namente” africanas como argumento para os Estados não tomarem
medidas acerca de situações que mulheres particulares enfrentam,
mas que têm caráter social, como a excisão genital, o direito ao
aborto seguro, ao prazer sexual, à propriedade do próprio corpo
e o fim de práticas tradicionais que violentam as mulheres física,
psicológica e espiritualmente. No entanto, bem como demonstra
Telo, 396 percebe-se uma dificuldade do feminismo de mobilizar
mulheres rurais ou aquelas que vivem em áreas de difícil acesso ou
mais pobres, bem como aquelas que não são alfabetizadas nos idio-
mas oficiais/coloniais de alguns países africanos.

394 AFF (2017, p. 4).


395 Adeyele-Fayemi (2010). Tradução nossa.
396 Telo (2017, p. 11).

279
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

c) Sexualidade: as feministas africanas buscam promover o direito


de propriedade sobre o próprio corpo quando, hoje, entre outros, mulhe-
res lésbicas e queer são perseguidas por Estados africanos.
d) Desenvolvimento: sendo África o continente estatisticamente
mais pobre, e estando esta pobreza diretamente ligada ao enriquecimento
do Ocidente, o feminismo africano acredita que, para que os países afri-
canos possam enfim se desenvolver, faz-se necessária a criação de “ins-
tituições sociais que irão resistir à hegemonia estrangeira sobre os povos
africanos, incentivar o pensamento engajado e uma força de trabalho in-
clusiva, com toda a população em pé de igualdade”.397
De volta à Carta de Princípios Feministas para Feministas Africa-
nas, Josephine Ahikire398 destaca que esse documento, construído de
forma coletiva, constitui uma importante ferramenta para o fortale-
cimento do movimento feminista africano, especialmente no sentido
de autoafirmação e autodefinição. Desta forma, o Fórum Feminista
Africano

[...] assume uma postura concreta, como a de se assumirem fe-


ministas, o apoio ao direito ao corpo de todas as mulheres, o re-
conhecimento das minorias sexuais, o apelo à solidariedade entre
elas e a necessidade de dialogar com outros movimentos feminis-
tas e de mulheres, ao mesmo tempo reconhecendo as suas ances-
tralidades africanas.399

De fato, a Carta constitui uma importante ferramenta para a


difusão do entendimento do que é e o que pretende o feminismo
africano, a partir daquelas que se consideram feministas africanas,
colaborando para o desmantelamento de noções estereotipadas, bem
como para a angariação de mais adeptas, pegando sem receios o ad-
jetivo “feminista” para si.

397 Salami (2017). Tradução nossa.


398 Ahikire (2014, p. 21).
399 Telo (2017, p. 11).

280
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3. ORGANIZAÇÕES DE MULHERES NA LUTA POR


DEMOCRATIZAÇÃO E ATUAÇÃO NA CONSTRUÇÃO
DA PAZ NO CONTEXTO DAS GUERRAS CIVIS (ANOS
1990-2000)

Ao longo dos anos 1980 e 1990, muitos países africanos se viram em


conflitos civis em torno da disputa do poder. Em razão dos conflitos por
libertação e do contexto da Guerra Fria, em meados dos anos 1970, mais
da metade da África estava sob domínio militar e, “entre 1990 e 2005,
nada menos que 23 nações estavam envolvidas em conflitos, com um
custo médio por ano de US$ 18 bilhões para as economias africanas”.400
Embora alguns conflitos estejam em curso em alguns países magrebinos
e em locais como a República Centro-Africana, o nordeste da Repú-
blica Democrática do Congo, o norte da Somália ou o norte da Nigé-
ria, alguns perderam força e muitos deles findaram entre o fim do século
XX e o início do século XXI, como os de Moçambique (1992), Ruan-
da (1994), Angola (2002), Serra Leoa (2002), Burundi (2003), Libéria
(2003) e norte de Uganda (2007).
As mulheres e suas organizações participaram ativamente dos mo-
vimentos de reforma política dos anos 1990, construindo, junto às so-
ciedades, as aberturas políticas que por vezes se seguiram, esperando
também que um dos resultados da implementação do multipartidarismo,
que diminuiu o número de organizações ligadas ao partido governante
e aumentou o número de organizações independentes, fosse o ganho de
espaço político pelas mulheres. Nesse ínterim, as mulheres africanas fo-
ram resistência aos regimes repressivos, promovendo ações militantes, tais
como grandes manifestações públicas.
Para Aili Tripp et al.,401 as novas redes e organizações se concentraram,
sem abandonar o tema do desenvolvimento, em questões como educação
da mulher, mídia, participação política, liderança, direitos reprodutivos
e saúde da mulher e paz. São notáveis os esforços de construção da paz
das mulheres em toda a África desde os anos 1990, mas especialmente

400 Mama & Okazawa-Rey (2008, p. 2). Tradução nossa.


401 Tripp et al. (2009, p. 67).

281
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

em países como Libéria, Serra Leoa, República Democrática do Congo,


Congo-Brazzaville, Mali, Senegal, Somália, Uganda, Sudão e outros paí-
ses que foram ou têm sido devastados pela guerra civil ou conflito.
Ao longo do continente africano, os movimentos de mulheres fo-
ram responsáveis por empregar variadas táticas de pacificação, envolven-
do greves, boicotes, comícios, e até mesmo a promoção do confisco de
armas leves e negociação com os rebeldes para libertar as crianças-solda-
dos raptadas, tendo tido, segundo Aili Tripp et al., “bons motivos para
intervir”:402 estima-se que 5,5 milhões de pessoas morreram na Repú-
blica Democrática do Congo entre 1996 e 2008 por causas relacionadas
às guerras (não só baixas em batalha, mas por exemplo a fome e a doença
recorrentes); os conflitos entre tutsis e hutus deixaram cerca de 300 mil
mortos no Burundi entre 1993 e 2005 e mais de 800 mil no genocídio de
Ruanda em 1994 – onde cerca de 10 mil pessoas já haviam morrido na
guerra civil que precedeu o genocídio dos tutsi (maioria assassinada em
Ruanda) entre 1990 e 1993; em média três mil mortos em Guiné-Bissau
entre 1998 e 1999; cerca de 2,5 milhões morreram em combate e em
razão da fome no então sul do Sudão entre 1983 e 2005; no atual Sudão
do Sul, a guerra civil ocorrida entre dezembro de 2013 e março de 2020
matou cerca de 383 mil pessoas, entre combatentes e civis; na Costa do
Marfim, pelo menos três mil morreram entre 2010 e 2011; na Somália,
a guerra civil em curso desde 1991 já matou em torno de um milhão de
pessoas – números que muitas vezes são contestados pelas populações afe-
tadas, que estimam números múltiplas vezes maiores.
Apesar de as mulheres terem constituído parte importante dos pro-
cessos de tomada da paz, e mesmo com a Resolução nº 1.325 da ONU
que, basicamente, previa que as mulheres deveriam desempenhar um pa-
pel maior na prevenção e resolução de conflitos, elas foram mantidas em
geral fora dos processos formais de pacificação. Após longas pressões de
lóbi, as mulheres acabaram entrando nas negociações em países como
Burundi, República Democrática do Congo, Libéria e Somália.403

402 Tripp et al. (2009, p. 199).


403 Tripp et al. (2009, p. 206).

282
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Neste sentido, cabe também destacar a importância da criação da


União Africana em 2001, que adotou o Protocolo da Carta Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África,
que reconhece o direito das mulheres de participar na promoção e manu-
tenção da paz, tendo como um dos princípios fundadores a igualdade de
gênero, bem como a própria Resolução nº 1.325 do Conselho de Seguran-
ça da ONU, embora tenha demorado a surtir efeito, e ainda organizações
regionais como a Mano River Union Women Peace Network (Rede de Mulhe-
res pela Paz União do Rio Mano – MARWOPNET). O grupo criado em
2000 reúne desde mulheres de alto nível de redes políticas estabelecidas até
mulheres de base, todas objetivando acabar com os combates que debilita-
ram seus três países, e manter a paz depois; são mulheres ativistas da Guiné,
Serra Leoa e Libéria que mediaram, através dessa rede, um intenso conflito
entre Guiné e Libéria em 2001, conseguindo levar os chefes dos Estado
rivais a uma cúpula regional de paz, mesmo dispondo de poucos recursos e
de terem sido excluídas do processo formal de negociações.404
Na Libéria, a Liberian Women’s Initiative (Iniciativa das Mulheres Li-
berianas – LWI), também composta por mulheres das mais diferentes
origens étnicas, sociais, religiosas e políticas, foi criada em 1994 para pres-
sionar pela paz, trabalhando com todas as partes envolvidas para levá-las
às negociações, além de monitorar o cumprimento de acordos feitos neste
sentido. Um de seus principais objetivos era o desarmamento das partes.
“Em certo momento, elas se opuseram aos acordos de paz patrocinados
pela ONU que basicamente recompensavam os líderes das facções ar-
madas com posições no governo de transição, fazendo pouco para desar-
má-las”.405 Mulheres como a então futura presidente da Libéria e ganha-
dora do prêmio Nobel da paz, Ellen Johnson-Sirleaf, e a antiga chefe do
Conselho Presidencial Interino da Libéria em 1996, Ruth Perry – que
representou a MARWOPNET – foram importantes negociadoras con-
versações pela paz, tanto que a MARWOPNET foi uma das signatárias
do acordo de paz assinado em agosto de 2003.406

404 Tripp et al. (2009, p. 204); Rehn & Sirleaf (2002, p. 77-78).
405 Tripp et al. (2009, p. 206). Tradução nossa.
406 Tripp et al. (2009, p. 208).

283
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

No Burundi, abatido por uma severa guerra civil entre tutsis e hutus
de 1993 a 2005, o Collectif des Associations et ONGs Féminines du Burundi
(Coletivo das Associações e ONGs Femininas do Burundi – CAFOB)
foi formado como uma organização guarda-chuva para as sete, que ra-
pidamente se tornaram 15, organizações de mulheres burundianas em
1996.407 Essas organizações treinaram mulheres para liderar, atuar na
construção da paz (peace-building) e ocupar posições de tomada de decisão.
Embora nem mesmo as mulheres filiadas aos partidos das partes envolvi-
das tenham sido consultadas sobre as negociações ocorridas em Arusha
(Tanzânia) em 1998, as organizações de mulheres estavam determinadas
a serem incluídas no processo, e o fizeram apelando para o lóbi junto a
doadores internacionais, lideranças regionais e organizações de mulheres
africanas, entre outras táticas como promover grupos de orações junto a
outras lideranças.408
Em 2000, ocorreu a All-Party Burundi Women’s Conference (Con-
ferência de Mulheres de Todos os Partidos do Burundi), que resultou
na Women’s Proposals to Engender the Draft Arusha Peace and Reconciliation
(Propostas de Mulheres para Elaborar o Projeto de Acordo de Paz e Re-
conciliação de Arusha), um documento que inspirou a redação de ainda
outros, forneceu um roteiro de como as preocupações das mulheres pre-
cisavam ser tratadas no processo de construção da paz, destacando

[...] a necessidade de igualdade de acesso à educação para meninas


e de um fim à impunidade quando se trata de estupro, violên-
cia sexual, prostituição e violência doméstica. Ele [o documento]
falou sobre a importância de prestar atenção às necessidades das
mulheres refugiadas e, em particular, das famílias chefiadas por
mulheres e crianças e muitas outras preocupações cruciais. Vinte
e três dessas recomendações foram finalmente incluídas no acordo
de paz final, como resultado dos esforços de lóbi do grupo.409

407 Tripp et al. (2009, p. 210).


408 Tripp et al. (2009, p. 210).
409 Tripp et al. (2009, p. 211). Tradução nossa.

284
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O uso de cotas se mostrou bastante importante para o ativis-


mo de mulheres em África. Elisabeth Rehn e Ellen Johnson-Sirleaf
puderam verificar algum avanço nos países onde elas foram usadas
como ferramenta de inclusão das mulheres nos processos políticos.
Constataram, por exemplo, que no Moçambique, as mulheres pas-
saram a representar 30% dos órgãos legislativos, e que na África do
Sul, 29% do corpo parlamentar eleito nas primeiras eleições parla-
mentares do país, em 1994, era de mulheres.410 As autoras ressaltam
que as cotas, exigidas pela Plataforma de Ação de Pequim e pela
Resolução nº 1.325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas
numa representação mínima de 30% de mulheres nos órgãos de to-
mada de decisão, são um primeiro passo no caminho da igualdade
de gênero, mas “não podem substituir projetos de longo prazo que
abordam as restrições socioeconômicas que impedem a participação
das mulheres no processo político”. 411
Ao comparar países que passaram por conflitos e aqueles que não
passaram, Aili Tripp et al. perceberam que naqueles países onde houve
conflito, as mulheres alcançaram mais representação política do que
naqueles que não passaram, detendo em média 24% dos assentos le-
gislativos contra apenas 13%.412 Em Ruanda, que passou por intensa
guerra civil que incluiu um grande genocídio em 1994, atualmente
67% dos cargos legislativos são ocupados por mulheres, a maior nú-
mero do mundo. Isso se deve muito à implementação de cotas para
mulheres nos legislativos nos países que passaram por conflitos civis,
que viram inclusive mulheres disputando a presidência – caso de Re-
pública Democrática do Congo (2006), Ruanda (2003), Serra Leoa
(2002) e Libéria, que em 2005 elegeu pela primeira vez em África
uma mulher para liderar o país: Ellen Johnson-Sirleaf, que liderou o
país por dois mandatos.

410 Rehn & Sirleaf (2002, p. 81).


411 Rehn & Sirleaf (2002, p. 82).
412 Tripp et al. (2009, p. 195).

285
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora as mulheres tenham travado as lutas por independência em


conjunto com os homens africanos, quando as independências vieram,
boa parte a partir dos anos 1970, suas questões foram postas de lado ou
ignoradas pelos novos regimes monopartidários, militarizados e auto-
ritários. Estes, embora permitissem o funcionamento de organizações
femininas, operavam sob um regime femocrático e/ou de submissão ao
regime, empurrando as africanas a um novo processo de luta, que ganhou
outro ânimo com a atuação de ONGs e a abertura dos novos países a
recepção de investimentos estrangeiros, que vinham junto à pressão por
internacional pela democratização dos países africanos, nos anos 1980.
Eventos como as Conferências Mundiais sobre a Mulher da ONU,
ocorridas em Nairóbi (Quênia) em 1985 e em Pequim (China) em 1995
e ainda encontros regionais, foram importantes no sentido de as mulheres
de diferentes regiões da África e do mundo poderem pensar novas estra-
tégias para os seus contextos. As mulheres africanas passaram a reivindicar
espaço político em seus países, obtendo êxito em alguns casos. É nesse
contexto também que surge e ganha força o feminismo africano.
Todo esse processo crítico de crise econômica e pressões aos gover-
nos gerou disputas violentas ao longo do continente a partir do final dos
anos 1980. Dessa vez, as mulheres não estiveram nas trincheiras, mas
atuando na construção e manutenção da paz, promovendo negociações
no nível informal, como ocorreu na Guiné, ou forçando sua participação
nas negociações como no Burundi. Ao final de tudo, angariaram uma
expressão política importante, ainda via organizações, mas também via
cotas no Legislativo e, no caso da Libéria, via presidência da República.
Marnia Lazreg413 acredita que o movimento de mulheres, de uma
forma global, perdeu um pouco a força no início do século XXI, fato que
reflete, por exemplo, o adiamento da Conferência Mundial da Mulher da
ONU, cuja última edição foi em 1995, em Pequim. Para ela, a liberaliza-
ção dos países africanos, imposta de fora, “resultou na representação sim-
bólica das mulheres, e/ou mulheres fazendo alianças com partidos políti-

413 Lazreg (2004).

286
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cos contrárias aos direitos de cidadania das mulheres”. Esse movimento


se deve à perpetuação, em maior ou menor grau, do modelo femocrático
anteriormente citado, como no Quênia, onde a Maendeleo ya Wanawake
(MYW) com suas milhares de filiadas, embora tenha assumido um cará-
ter independente, continua de fato ligada ao KANU (partido governante)
e, em países onde houve a queda do governo, as alas femininas caíram
com ele – caso do Mali de Traoré.414
Em suma, os movimentos e organizações de mulheres na África ex-
perimentaram êxitos importantes ao longo dos anos, realizando mudan-
ças sensíveis nas políticas que as afetam. Sua atuação, hoje, é permeada
tanto pelas formas tradicionais de luta e resistência quanto por estratégias
aos moldes do fazer político contemporâneo em África, com caracterís-
ticas que remontam à ação coletiva pré-colonial, aos movimentos nacio-
nalistas e às organizações de mulheres de massa pós-coloniais (como as
“organizações guarda-chuva”). Articulação do feminismo africano (prin-
cipalmente na Academia), autonomia das associações, heterogeneidade
delas (mulheres de diferentes classes sociais, base política, pertencimento
étnico etc.), ênfase em estratégias políticas, alianças e coalizões, apoio e
financiamento internacional, e até mesmo o apoio masculino caracteri-
zam a atualidade dos movimentos de mulheres africanas, que vêm cada
vez mais transformando a paisagem política africana.

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289
PESQUISA CIENTÍFICA E FEMINISMO
NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Caroline Pereira Leal

INTRODUÇÃO

Uma sociedade pautada por justiça, direitos e oportunidades iguais


para todos e todas deve promover a emancipação das mulheres enquan-
to um propósito de cidadania. Direito fundamental de natureza social, a
educação tem grande papel nesse compromisso e precisa fomentar estra-
tégias e ações em prol da promoção da igualdade de gênero. A partir dessa
perspectiva, a pesquisa científica, como prática pedagógica na educação
básica, pode servir como estímulo ao protagonismo feminino e à liberta-
ção dos padrões patriarcais das normativas de gênero.
Historicamente reservado ao domínio dos homens, a produção do
conhecimento científico contribuiu para o silenciamento das mulheres
na História e reforçou uma visão hegemônica do masculino. Negando
às mulheres a autoridade do saber, produziu conhecimentos que não
atendiam aos interesses emancipatórios femininos. É nesse sentido que
Sardenberg destaca que o maior projeto feminista nas ciências é de jus-
tamente produzir e disseminar saberes de relevância para suas lutas. Pau-
tada “por um olhar desconstrucionista de gênero, a crítica feminista tem
avançado da mera denúncia da exclusão e invisibilidade das mulheres no
mundo da ciência para o questionamento dos próprios pressupostos bási-
cos da Ciência Moderna”.415

415 Sardenberg (2002, p. 1).

290
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De acordo com Keller,416 a crítica feminista à Ciência Moderna é


de que ela incorporou uma estruturação conceitual do mundo marca-
da por ideologias de gênero historicamente específicas e ainda hoje evi-
dentes. Permeada por dicotomias de uma lógica binária (sujeito/objeto,
mente/corpo, razão/emoção, objetividade/subjetividade, transcendente/
imanente, cultura/natureza, ativo/passivo), os princípios que estrutura-
ram a Ciência Moderna foram identificados ao masculino, enquanto seus
opostos representariam o feminino. Construídos com base nas diferenças
percebidas entre os sexos, esses princípios legitimaram a hierarquização
dos gêneros e sua desigualdade.417 Desta forma, a crítica feminista seria
uma forma de historicizar a ciência, “voltando-se para a análise de como
as categorias de gênero têm historicamente influenciado os conceitos de
conhecimento, sujeito cognoscente, justificativas e práticas de investiga-
ção ditas científicas”.418
Embora acredite que sejam necessárias reflexões em torno das dife-
rentes implicações da crítica à ciência para a prática científica, neste tra-
balho não pretendo fazê-lo, nem descartar seus métodos e procedimen-
tos tradicionais, ou tampouco discorrer a respeito do status de um saber
feminista em relação a ela. É claro que isso não significa neutralidade,
pois também defendo a proposta de uma “ciência feminista – isto é, de
um saber alavancado em uma perspectiva crítica feminista de gênero”.419
Contudo, meu objetivo aqui é evidenciar a importância da pesquisa cien-
tífica na educação básica, sobretudo para o empoderamento das meninas,
tornando-se uma grande aliada na inclusão da discussão da igualdade de
gênero no ambiente escolar. A fim de corroborar as ideias apresentadas,
trago como exemplo o “Muitas Marias: Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre História das Mulheres, Feminismos & Afins”, fruto de uma expe-
riência pedagógica de iniciação científica, orientada por uma perspectiva
dos estudos de gênero.

416 Keller (1996).


417 Sardenberg (2002).
418 Sardenberg (2007, p. 10).
419 Sardenberg (2002, p. 2).

291
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Desta forma, divido o texto em dois momentos: primeiro trago a


discussão a respeito da importância da pesquisa científica na educação
básica e seus efeitos para uma educação pautada por ideais de igualdade
de gênero; e num segundo, apresento o Muitas Marias, descrevendo as
circunstâncias de criação do grupo, seus objetivos e as atividades desen-
volvidas, bem como destaco as visões das integrantes do grupo sobre esta
experiência. Vamos lá?!

1. A PESQUISA CIENTÍFICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que


normatiza as aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas por todos
os alunos e alunas ao longo das etapas e modalidades da educação básica,
estipula dez competências gerais que consolidam os direitos de aprendi-
zagem e desenvolvimento. Entre elas, encontra-se:

Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria


das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a
imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar
hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive
tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.420

Essa associação entre ciência e escola é, contudo, relativamente nova.


De acordo com Lescak et al., “estudos mostram que os alunos - e o públi-
co em geral como um todo - têm uma visão estreita do que um cientista
é, faz e se parece”.421 Aproximar os métodos e os saberes – praticados e
produzidos quase que exclusivamente na academia – do universo escolar
“dá aos alunos a oportunidade de testemunhar as aplicações práticas dos
conceitos que lhes foram ensinados na escola e de observar como o traba-
lho experimental e analítico realizado em ambientes de pesquisa se baseia
no que aprenderam em sala de aula”.422

420 Brasil (2018, p. 9).


421 Lescak et al. (2019, p. 1).
422 Lescak et al. (2019, p. 2).

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Propondo uma educação reconstrutiva, Pedro Demo423 defende a in-


clusão da teoria e prática da pesquisa nos processos educativos dos indiví-
duos, com o objetivo de ampliar o exercício da cidadania. Uma educação
que forme sujeitos capazes não apenas de absorver conhecimentos, mas
de questionar, trilhar caminhos em busca de respostas, buscar fundamen-
tação para suas observações, argumentar e propor novos conhecimentos
que contribuam para o entendimento de nossas vivências e experiências
enquanto sociedade. Deste modo, além de contribuir para os processos
de ensino-aprendizagem, permitindo aos estudantes se tornarem produ-
tores do conhecimento, a pesquisa científica na escola promove “a cida-
dania, a formação do sujeito crítico, a emancipação, a autoria, a autono-
mia e uma formação humana [e também] propicia a formação de futuros
pesquisadores, possibilitando, assim, a esses alunos, ocupações associadas
à pesquisa”.424
Se fizermos um recorte de gênero a essa discussão, podemos dizer
que introduzir a pesquisa científica na educação básica também pode ser
uma estratégia de combate às assimetrias que ainda caracterizam essas
relações. Como docente da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre
(RME/POA), uma de minhas inquietações sempre foi a de conseguir
incluir essa discussão no currículo da disciplina de História. A fim de
atender essa demanda, em 2018, propus para turmas de 8º ano do ensino
fundamental, como atividade complementar, a elaboração de um projeto
de iniciação científica, a ser desenvolvido ao longo do ano. Do convite,
dois grupos de alunas, de diferentes turmas, aceitaram o desafio e desen-
volveram suas pesquisas.
O primeiro grupo, composto por quatro alunas, através de entre-
vistas com moradores do bairro onde está localizada a escola, buscou
discutir as relações de gênero e poder em nossa sociedade, analisando o
machismo e as desigualdades entre homens e mulheres.425 O segundo,
com três alunas, tinha como objetivo fazer uma análise da representação
das mulheres a partir da ótica cinematográfica, examinando o filme Eli-

423 Demo (2011).


424 Vasques & Oliveira (2020, s/p).
425 Garcia et al. (2018).

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zabeth, de Shekhar Kapur.426 Ambos os trabalhos foram apresentados no


XIII Salão UFRGS Jovem, ocorrido naquele ano. Além disso, as alunas
foram convidadas pela Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do
Sul (PGE-RS) para participar da Feira de Direitos Humanos, promovida
pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) dessa instituição, a fim de
apresentar no evento os trabalhos que haviam desenvolvido.
Tal experiência evidenciou que incentivar as meninas a fazer ciência,
aproximando-as do método científico, estimulando-as a desenvolverem
suas próprias pesquisas, além de ligar a teoria à prática e transformar a rea-
lidade vivenciada em conhecimento, fomenta nelas, enquanto indivíduos,
uma apropriação de suas experiências, promovendo o protagonismo des-
sas jovens mulheres. Ao ser questionada a respeito de sua participação no
projeto e nas atividades de iniciação científica acima mencionadas, uma
das alunas pesquisadoras forneceu o seguinte relato:

Essas atividades representaram muita coisa pra mim! Eu sempre


fui interessada por pesquisa, mas não confiava muito no meu po-
tencial e nas oportunidades que nosso país oferece, mas depois
de ir ao Salão Jovem UFRGS eu me encantei com tanta gente
(da minha idade principalmente!) e tantas pesquisas diferentes
que tinham sido feitas com muito carinho e estudo. E na Mostra
de Direitos Humanos meu encanto foi o mesmo. Além disso, eu
aprendi a lidar mais com minha insegurança de me apresentar e ir
a lugares diferentes pra mostrar meu trabalho, foi muito bom sair
da zona de conforto de só me apresentar no colégio. Eu adorei o
fato de ter ganhado certificado também! Eu busco sempre usar
eles em alguma entrevista de bolsa no IFRS.427

O relato nos permite verificar a relevância dessa experiência no de-


sempenho estudantil da aluna. Sair do espaço escolar e vivenciar expe-
riências voltadas para o mundo acadêmico, ainda na educação básica, fo-
ram elementos que trouxeram desafios e estimularam a confiança no seu

426 Pires, Rego & Santos (2018).


427 Pires (2021).

294
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potencial intelectivo. Lescak et al. destacam os benefícios da inserção dos


estudantes da educação básica no meio acadêmico científico, pois “ficar
confortável em seus campi universitários locais pode ter um impacto sig-
nificativo em seus objetivos educacionais”.428 Na mesma direção, outra
aluna pesquisadora relatou que considerava essas atividades um dos pon-
tos mais fortes do seu currículo estudantil e que a experiência foi muito
importante para ela.429
Suprimidas durante séculos das comunidades científicas, “dos espa-
ços acadêmicos e institucionais produtores de ciência e de conhecimento
quando de sua fundação”,430 ainda hoje mulheres pesquisadoras são pre-
senças escassas, sobretudo nas áreas de Ciências Exatas, como indicam
dados relativos ao Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. De acor-
do com Bandeira, isso denota “como as atividades da pesquisa científi-
ca, ainda, estão configuradas primordialmente por relações sociais e por
marcas culturais sexistas”.431 Embora as mulheres tenham cada vez mais
acesso às diferentes áreas do saber, discriminações em relação às mulhe-
res cientistas permanecem configurando e sendo configuradas por nossa
estrutura social. Essas assimetrias podem ser explicadas, em parte, pelos

[...] processos de socialização diferenciados, não menos precoce


para meninas e meninos, em relação aos processos de aprendiza-
gem e aos comportamentos próprios, tolerados e interditos que
podem orientar, na sequência, a vida profissional. Em outras pa-
lavras, inicia-se na socialização o processo de distanciamento das
mulheres para com a ciência, na medida em que essas são direcio-
nadas às atividades ditas “femininas”, prorrogadas na sequência da
vida pelas dificuldades e pelos constrangimentos que se colocam
nas escolhas entre família, maternidade e carreira profissional.432

428 Lescak et al. (2019, p. 1).


429 Rego (2021).
430 Bandeira (2008, p. 214).
431 Bandeira (2008, p. 208).
432 Bandeira (2008, p. 219-220).

295
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Deste modo, promover a confiança das meninas em si mesmas, esti-


mular a participação delas em ambientes para além da sala de aula, contri-
bui para a emancipação das mulheres e para a superação dessas barreiras
sexistas que ainda caracterizam o fazer científico. Ao alavancar o fortale-
cimento dessas jovens mulheres, a inserção de meninas na pesquisa cien-
tífica na educação básica se torna uma ação em prol de um caminho para
o desenvolvimento da igualdade de gênero.
É neste mesmo sentido que trago como exemplo a fala de outra alu-
na pesquisadora a respeito das atividades por ela vivenciada: “pensar que
entre tantas pesquisas a nossa foi uma das escolhidas para a apresentação,
para mim foi uma experiência única, junto com pessoas maravilhosas e
que vou lembrar sempre”.433 O empoderamento dessas jovens mulheres,
ao se reconhecerem enquanto sujeitos capazes de produzir conhecimen-
to, gerou um engajamento e companheirismo entre as alunas que moti-
vou a criação do Muitas Marias, como veremos a seguir.

2. APRESENTANDO O MUITAS MARIAS

A partir dos resultados obtidos com a experiência de iniciação cien-


tífica, no ano de 2019, foi criado o “Muitas Marias: Grupo de Estudos
e Pesquisas sobre História das Mulheres, Feminismos & Afins”. Inicial-
mente formado por alunas do ensino fundamental da EMEF Moradas da
Hípica, o grupo tinha como foco o questionamento do androcentrismo
do conhecimento histórico e a visibilidade de experiências de mulhe-
res ao longo do tempo, em distintos lugares e posições no espaço social.
Através de estudos e pesquisas, nosso objetivo era perceber como o mas-
culino e o feminino têm sido e ainda são representados e como as socie-
dades se organizam com base nessas representações, compreendendo a
historicidade de concepções, mentalidades, práticas e formas de relações
sociais que constroem a desigualdade de gênero.434
Desta forma, ao longo do ano de 2019, realizamos encontros sema-
nais, com uma hora de duração, estruturados da seguinte forma: leitura

433 Santos (2021).


434 Pinsky (2010).

296
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e discussão do livro Feminismo: que história é essa?, de Daniela Auad; ela-


boração e desenvolvimento de projetos de pesquisas do grupo. Entre eles:
a) O feminismo sob a visão da comunidade escolar da EMEF Moradas da Hí-
pica (2019): tinha como objetivo verificar de que maneira o feminismo era
percebido pela comunidade escolar da EMEF Moradas da Hípica. Bus-
cando saber como as pessoas, na comunidade que frequentavam como
alunas, se posicionavam em relação à luta feminista e qual era seu enten-
dimento a respeito dessa questão, foi aplicado um questionário (composto
de três perguntas – uma fechada e duas de múltipla escolha com uso de
imagens) aos alunos e alunas dos anos finais do ensino fundamental, aos
professores e professoras e aos funcionários e funcionárias da escola. Por
meio dessa pesquisa, as alunas pesquisadoras não somente investigaram a
questão em pauta, como levaram a discussão a respeito da igualdade de
gênero para o ambiente escolar, promovendo uma intervenção na reali-
dade por elas vivenciada. Afinal, como destaca Pedro Demo, pesquisador
não é somente o indivíduo que pesquisa, descobre, sistematiza e conhece
o objeto de estudo. É também aquele que, a partir desses conhecimentos,
intervém na realidade.435
b) Dançar é para todos? Investigando a presença do machismo na dança: pre-
tendia verificar se o machismo afeta igualmente homens e mulheres na
dança e se há um papel social do gênero em estilos de danças. Usando
a coleta de dados através de questionários (com cinco perguntas – três
perguntas fechadas e duas de múltipla escolha), aplicados a pessoas per-
tencentes ao mundo da dança (professores e diretoria do grupo de dança
Dance2star) e ao público externo (comunidade dos bairros Moradas da
Hípica e Restinga, na cidade de Porto Alegre), a pesquisa buscou contri-
buir para a discussão de que a libertação de padrões patriarcais, baseados
em normas de gênero, não é somente uma luta das mulheres. É interes-
sante destacar que, mesmo estando em um ambiente escolar, como esta-
mos pesquisando seres humanos, é preciso reforçar junto às pesquisadoras
a importância da ética em pesquisa e ensinar os procedimentos necessá-
rios para a coleta dos referidos dados.

435 Demo (2011).

297
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Questionadas a respeito de suas motivações para integrar o Muitas


Marias, as alunas destacaram, além da experiência de iniciação científica
vivenciada no ano anterior, o fato de o grupo ser um espaço de compar-
tilhamento, de troca de ideias, de anseios, de motivações:

[...] nos meus 11, 12 eu já tinha uma noção do que era o feminis-
mo, mas não tinha com quem compartilhar porque a maioria da
minha sala nem sabia o que era ainda, então quando eu encon-
trei as meninas pra montar o grupo eu fiquei muito feliz porque
finalmente ia ter com quem compartilhar meus pensamentos e
também aprenderia mais (GARCIA, 2021).

Em formato de uma roda de conversas, baseados em diálogos e na


horizontalização das relações de poder, os encontros se caracterizavam
por momentos de partilha e confraternização entre suas integrantes.
Partindo da perspectiva de uma educação libertadora, na qual homens
e mulheres devam ser sujeitos-cidadãos, críticos e autônomos de seu
pensar e estar no mundo, as rodas de conversa possibilitam a produção
e ressignificação de sentidos e saberes sobre as experiências dos partí-
cipes.436 Ao propiciar a troca de experiências, de desabafos, os encon-
tros das Marias promoviam momentos de escutas e acolhimentos, que
permeados por muita afetividade e pelas leituras e estudos, permitiam
reflexões, discussões e maior compreensão da realidade vivenciada por
todas e todos nós.
Gostaria ainda destacar que a formação de grupo de mulheres, de
confrarias para a troca de conhecimentos, experiências e lutas, é uma
prática de longa data. Seja na Europa da Idade Média, onde esses grupos
“participaram das revoltas camponesas, que deram origem à centraliza-
ção dos feudos e, posteriormente, às nações”,437 ou no Brasil da década
de 1920, como a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundada
por Bertha Lutz, para a luta pelo direito ao voto e em defesa do trabalho

436 Sampaio et al. (2014).


437 Auad (2003, p. 36).

298
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feminino,438 esses espaços associativos permitiram a participação ativa das


mulheres, protagonistas de suas histórias.
Além das atividades de estudo e pesquisa, o Muitas Marias promo-
veu visitas a museus e instituições culturais. Em janeiro de 2020, fomos
ao Museu de Artes do Rio Grande do Sul e à exposição “Gostem ou não”
— Artistas mulheres no acervo do MARGS. A mostra apresentou uma in-
vestigação sobre a presença e a representatividade das artistas mulheres
no acervo do MARGS, expondo “artistas e obras, de valor artístico e
histórico, que consolidaram suas carreiras através de instâncias de legiti-
mação ou autolegitimação em diferentes períodos da história da arte”.439
Visitamos também o Farol Santander, para apreciar a exposição Estratégias
do feminino, que reuniu 95 obras de 53 artistas brasileiras, que atuaram
com o tema “feminino”, entre o início do século XX até os dias atuais.
É interessante destacar que, ao ser questionado a respeito do interesse em
dar continuidade ao grupo, um dos alunos que passou a participar das
atividades do grupo afirmou que:

Sim, gostaria muito, logo após a pandemia, podíamos visitar lu-


gares e tentar chamar mais pessoas, homens e mulheres, juntos
aprendendo juntos, como eu, que talvez fosse um caso perdido,
mas consegui. Creio que podemos estudar a história, vivendo ela,
indo a museu, lugares históricos etc. Ajuda no entusiasmo para as
pessoas...440

Ao mencionar a importância de outros espaços de ensino-aprendi-


zagem, para além da sala de aula, o aluno destacou as diferentes possibi-
lidades didáticas do ensino de História. Lugares de memórias coletivas,
através da materialidade esses espaços produzem uma simbologia sobre
a dimensão temporal, seja o tempo físico, seja o tempo histórico, que
oferece a seus visitantes uma experiência sensível, aliando aprendizagens

438 Karawejczyk (2018).


439 MARGS (2020).
440 Machado (2021).

299
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

ao lazer.441 É neste sentido que promover visitas a museus, por exemplo,


contribuiria para o encantamento – tão necessário para o desenvolvimen-
to pleno da função de educar – pela História.
Há de se ressaltar ainda que o Muitas Marias começou como uma
iniciativa de mulheres. Nosso primeiro encontro contou com a presença
de 12 meninas e, ao longo do ano, alguns meninos também começaram
a participar das atividades. A inclusão de sujeitos homens ao movimento
feminista leva em consideração que os efeitos negativos do machismo se
fazem sentir sobre toda a sociedade, sejamos homens ou mulheres. Des-
ta forma, uma educação feminista, que contribua para a transformação
das estruturas sociais androcêntricas, marcadas por relações de poder na
concepção do masculino e do feminino, é assim imprescindível para a
superação das assimetrias de gênero. Embora caiba às mulheres, em suas
diversas e múltiplas identidades, o protagonismo na luta e na conquista
de direitos, o engajamento de homens a favor da igualdade de gênero e
do empoderamento de meninas e mulheres é de grande importância para
que as mudanças de fato se concretizem.
À vista disso, destaco o depoimento do aluno que ressaltou a vonta-
de em congregar homens e mulheres para as atividades promovidas pelo
Muitas Marias, para que juntos pudéssemos aprender, refletir e assumir
um compromisso contra a desigualdade de gênero. A identidade feminis-
ta, deste modo, assim como qualquer outra identidade, partiria “da cons-
ciência de pertencer e sentir-se parte de um coletivo que compartilha,
entre seus membros, ideais, valores, comportamentos, reconhecimento
e solidariedade”.442
Corroborando esse ponto de vista, uma das alunas relatou que fazer
parte do Muitas Marias representava seu interesse em estudar e compar-
tilhar seus sentimentos e ideias sobre o movimento feminista: “conviver
com gente com o mesmo interesse que o meu, fez eu me sentir acolhi-
da!”.443 Já entre os meninos, a avaliação foi de que melhoraram enquanto
pessoa: “[...] por falar de assuntos que antes eu não fazia ideia, aprendi a

441 Pacheco (2012).


442 Freitas, Felix & Carvalho (2018, p. 865).
443 Pires (2021).

300
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respeitar mais, e que nem tudo é certo e nem errado, assim consigo aju-
dar”.444 Uma identidade feminista precisa, portanto, ser compartilhada
por homens e mulheres, a fim de que se promova uma consciência coleti-
va de que os direitos de meninas e mulheres não são apenas um problema
para que as mulheres resolvam, mas uma questão moral, social e econô-
mica imperativa para toda a humanidade.445

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste texto, busquei demonstrar o quanto a inserção das


meninas na pesquisa científica, mesmo na educação básica, pode ser uma
alavanca pedagógica para a paridade de gênero. Forma de estímulo ao
protagonismo, promove o empoderamento dessas jovens mulheres, en-
corajando-as a acreditar em seu potencial, podendo ser utilizada como
uma ferramenta em prol da libertação dos padrões patriarcais das norma-
tivas de gênero.
Através do exemplo do Muitas Marias, busquei demonstrar a impor-
tância da criação de pequenos grupos escolares, que por outros meios,
para além da sala de aula – como rodas de conversa, pesquisa científica,
visitação a museus e espaços culturais –, criem um terreno fértil para a
ativa participação das meninas e para a inserção da discussão da igualdade
entre homens e mulheres na escola, contribuindo para a desconstrução de
uma sociedade ainda pautada pela hierarquização dos gêneros.

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304
EXPERIÊNCIAS E ESTRATÉGIAS
SOBRE O ENSINO DE GÊNERO
E SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO
BÁSICA EM RONDÔNIA
Lauri Miranda Silva

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo relatar as experiências e estra-


tégias no ensino de História com as temáticas de gênero e sexualidade
vivenciadas durante a execução do trabalho intitulado “Projeto de Gê-
nero e Sexualidade na Escola (PGSE)”, desenvolvido com as/os alunas/
os do 9º ano do Ensino Fundamental e 3º ano da EJA (Educação de Jo-
vens e Adultos) no período de 2016 a 2018. O projeto ocorreu na Esco-
la Estadual de Ensino Fundamental e Médio Albino Buttner, localizada
numa zona considerada de difícil provimento na Região Norte do Brasil, no
Distrito de Triunfo/Candeias do Jamari, em Rondônia. Este trabalho se
desdobra em quatro partes: na primeira, teço alguns apontamentos acerca
da escola como um multiespaço de sociabilidade para o enfrentamento
de diversas formas de opressões interseccionadas; na segunda, faço alguns
apontamentos sobre o papel das/dos professoras/es no ensino de Histó-
ria e a necessidade de autoatualização para as discussões dos temas de
diversidade sexual e relações de gênero numa perspectiva humanística e
não-cis-heteronormativa; na terceira parte, relato minhas experiências e
estratégias no ensino de História para corroborar a luta contra a LGBT-

305
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

fobia e a violência de gênero a partir dos direitos humanos; e por último,


faço as considerações do trabalho desenvolvido em Rondônia.

1. A ESCOLA E O ENFRENTAMENTO CONTRA AS


OPRESSÕES

Compreendo que a escola é um multiespaço democrático, cultural e


social. É para ser um lugar de trocas de conhecimentos e experiências, mas
também de sociabilidades e de (in)formações contra as diversas formas de
opressões e intolerâncias, garantindo o pleno exercício da cidadania de
todas/os alunas/os, independentemente de gênero, raça, classe, orientação
sexual, etnia ou religião numa perspectiva dos direitos humanos.
Nesse sentido, a escola é um lugar de construção, desconstrução e re-
construção dos saberes,446 onde as/os alunas/os possam apreender não somen-
te os conteúdos pragmáticos das disciplinas em sala de aula, mas também re-
ceber formações para aprender a lidar com as diferenças no ambiente escolar
e na sociedade. A escola não deve ser um espaço predominantemente da cis-
-heteronormatividade e, muito menos, púlpito para que pessoas propaguem
seus preconceitos através de princípios religiosos fundamentalistas. A escola é
laica e precisa ser o lugar da pluralidade de pensamentos e ideias.
Nesse sentido, ressalto a importância da luta dos movimentos sociais
de mulheres e/ou feministas, LGBT+ e negras/os que, historicamente,
contribuem para essas discussões numa perspectiva dos direitos huma-
nos e sociais, os quais, em muitos casos, colaboram para a inclusão de
estudos específicos nos currículos. De acordo com Paiva, mesmo com
as discussões do Plano Nacional de Educação e os debates regionais com
suas especificidades locais:

Lamentavelmente, vivemos em uma época marcada pela constru-


ção social dos papéis pautados nas relações de poder estabelecidas
de maneira dicotômica: homem/mulher, brancos/negros, hetero/
homo, ciência/ideologia.447

446 Rios & Mendes (2018).


447 Paiva (2018, p. 13).

306
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Estamos vivendo retrocessos nas políticas sociais no campo educa-


cional no país. Políticos conservadores e fundamentalistas inventaram
um mecanismo denominado de “Ideologia de Gênero”, cujo objetivo é
atacar e perseguir principalmente professoras/es, discriminando mulheres
e LGBT+, ferindo os princípios do Estado de Direito e a liberdade de
cátedra. O ambiente escolar também é um local onde a reprodução do
machismo, sexismo, misoginia, racismo e LGBTfobia são existentes en-
tre as/os alunas/os, professoras/es e demais funcionários, que perpetuam
essas opressões e violências de maneira física, verbal e simbólica, causando
transtornos psicológicos para mulheres e LGBT+. Dessa forma, contri-
buem para a evasão e exclusão de estudantes vítimas de bullying, princi-
palmente alunas/os trans.
Na escola, infelizmente é comum ouvir de certas/os alunas/os frases
como: “aquele é um viadinho e tem que apanhar”, “olha a piriguete”,
“pode bater, é puta”, “mariquinha”, “vira homem”, “é viado”, “vixe,
é sapatão” e outras diversas formas discriminatórias e vexatórias que co-
laboram para a estigmatização e violência448. A escola peca quando, em
seu projeto político pedagógico e/ou currículo, não há estratégias para
combater essas discriminações, marginalizando alunas/os que estão fora
do padrão hegemônico.
Diante disso, é importante ressaltar que temos mecanismos legais
(Constituição Federal, PCN’S, BNCC, LDB/9394, Declaração dos Di-
reitos Humanos, Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
e a Lei Maria da Penha) que concedem suporte para a implementação
de novas práticas pedagógicas no que tange às questões de equidade de
gênero, educação sexual, pluralidade cultural, identidade de gênero, gra-
videz na adolescência e infecções sexualmente transmissíveis. Sobre essas
questões, cito apenas os itens 1 e 9 das competências gerais da educação
básica da BNCC:

Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos


sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e ex-

448 Já presenciei e fui alvo enquanto aluna trans de alguns desses termos preconceituo-
sos, e também os ouvi nas escolas onde trabalhei.

307
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plicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a cons-


trução de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a coope-


ração, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos
direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade
de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, cul-
turas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.
(BRASIL, 2019, p. 9).

Nessa concepção, a escola precisa se resguardar com esses aparatos


para fazer desse espaço pedagógico não só um local de conhecimento,
mas de respeito, acolhimento, solidariedade e inclusão das diferenças,
criando um ambiente democrático e livre de opressões.

2. O PAPEL DA/DO DOCENTE DE HISTÓRIA NO


TOCANTE ÀS RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE
SEXUAL NO AMBIENTE ESCOLAR

Concordo com Batista quando ele fala que tratar sobre gênero e se-
xualidade numa perspectiva dos direitos humanos e políticas públicas nos
cursos de graduação (em especial nos de licenciatura) e nas escolas de
ensino básico se tornou uma missão necessária de professoras/es devido
ao aumento da LGBTfobia e da violência contra mulheres no Brasil.449
O Brasil está entre os cincos piores países para as mulheres viverem.
O debate em torno das diversas formas de opressões consolidadas contra
as mulheres é recente e as políticas públicas que existem ainda são ine-
ficazes. Mesmo com a Lei Maria da Penha (2006), a mudança na lei de
estupro (2009), a lei do feminicídio (2015) e a mais atual lei de importu-
nação sexual (2018), a onda de violência contra as mulheres só aumenta.
Diariamente, vemos relatos de agressões e feminicídios nas redes sociais e
na mídia.450 O Brasil é o país que mais mata LGBT+ no mundo. Em mar-

449 Batista (2018).


450 Cf. Violência contra as Mulheres em Dados. Disponível em: <https://dossies.agenciapa-
triciagalvao.org.br/violencia-em-dados/sobre-esta-plataforma/>. Acesso em: 12 set. 2019.

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ço deste ano, foi lançada a plataforma "Violência contra pessoas LGBT+


nos contextos eleitoral e pós-eleitoral". Os números são alarmantes e não
deixam dúvidas sobre o aumento da violência durante e após as eleições
de 2018.451
Nesse sentido, qual o papel dos/das professoras/es de História na
abordagem de gênero e sexualidade em sala no ambiente escolar? O que
elas/eles têm feito no tocante à LGBTfobia, machismo e sexismo em suas
aulas? Para Batista, paralelamente às políticas da educação que definem o
currículo:

[...] está a ação docente, que executa um currículo real ou inte-


rativo, correspondente ao que é efetivamente realizado na sala. O
modo como esse currículo é colocado em prática depende das ex-
periências acumuladas pelo/a professor/a ao longo da sua trajetória
formativa.452

Há muitos problemas na formação e falta de experiências de profes-


soras/es de História que começam na graduação. Sabemos que, na histó-
ria, emergiram novos objetos e novas abordagens como, por exemplo: a
história de mulheres e a história da sexualidade. Foi a partir, sobretudo,
da Nova História na década de 70, beneficiada da ampliação da Antro-
pologia Histórica, que entrou em pauta o debate do papel da família e da
sexualidade e também a história das mulheres.
Assim, iniciou-se um novo fazer historiográfico subversivo que sur-
giu para se contrapor ao paradigma tradicional que se pensava e escrevia
sobre a política ligada especificamente ao Estado (uma história vista de
cima, cujas prioridades em seus estudos eram as realizações dos heróis e
estadistas) deixando à margem a história de mulheres, da sexualidade e

451 Na plataforma estão os principais dados, relatório completo, reportagens, entrevis-


tas e a base de dados aberta. Foram aplicados 400 questionários em São Paulo, Rio de
Janeiro e Salvador em janeiro de 2019. Para mais detalhes, ver: Violência contra LGBTs+
nos contextos eleitoral e pós-eleitoral. Disponível em: <http://violencialgbt.com.br/da-
dos/190321_relatorio_LGBT_V1.pdf> ou <http://violencialgbt.com.br/?fbclid=IwAR0MK-
lIskIB1Zdpcjs6vG1O5pp-7g7ZusBXYl5ptydlyPfAnUfOy-q_sK60> Acesso em 15 de mai. 2019.
452 Batista (2018, p. 118).

309
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outros temas considerados marginais na história por parte de historiado-


res tradicionais.453
Esse novo campo de estudo passou a se preocupar com toda atividade
humana (limpeza, sexualidade, leitura, cotidiano, gestos etc.), reconfigu-
rando e impactando a escrita da História. Objetos que pareciam naturais,
como corpo e sexualidade, também passaram a ser historicizados, ou seja,
vistos em suas permanências e transformações. Saliento que historiado-
ras/es em nossa contemporaneidade têm se preocupadas/os com esses te-
mas considerados ainda tabus no Brasil. O crescimento de eventos, semi-
nários e congressos sobre mulheres e LGBT+ na história nos mostra essa
visibilidade.
Contudo, parece que grande parcela de professoras/es no Brasil não
receberam uma boa formação para lidar com as questões de gênero e se-
xualidade na disciplina de História, o que ocasiona problemas na prática
pedagógica em sala de aula. Até mesmo os cursos de formações continua-
das, quando são oferecidas para as/os professoras/es que estão nas escolas,
não concedem visibilidades para esses temas tão importantes e cruciais
para atualização dessas/es profissionais.
Sei de todo o descaso com a educação pública, dos problemas que
as/os profissionais dessa área passam, mas temos também que nos ater
ao nosso ofício no ambiente escolar, então, o que ensinar? Como li-
dar com temas de gênero e sexualidade em sala de aula? Como traba-
lhar com pluralidade de alunas/os? Nosso papel é contribuir substan-
tivamente para a constituição dos vínculos de identidades e promover
o desenvolvimento reflexivo da cidadania de nossas/os alunas/os com
escolhas pedagógicas inclusivas. Quando se trata, principalmente, de
atitudes preconceituosas e discriminatórias em sala de aula, nosso papel
é lecionar e educar para que estudantes possam aprender os conteúdos
programáticos da disciplina e também o respeito às diversidades sexuais,
religiosas, étnicas etc., através de uma pedagogia revolucionária de re-
sistência, uma pedagogia engajada.454

453 Burke (1992).


454 hooks (2017).

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Muitas/os professoras/es despreparadas/os, machistas e LGBTfó-


bicos/as, têm contribuído para as lógicas perversas de diversas formas
de opressão no ambiente escolar; eu mesma já presenciei colegas de
profissão fazendo chacotas e discriminando estudantes considera-
das/os fora do padrão cis-heteronormativo. É claro que não me ca-
lei diante dos fatos, porque calar-se diante de situações como essas
é ser conivente com tais atos. Nas redes sociais, já vi comentários de
professores de História com preconceitos contra estudantes trans no
uso do banheiro feminino – ou seja, há sim a presença de professoras/
es de História conservadores nas escolas, deturpando nosso ofício de
ensinar para a cidadania e sensibilizar para a boa convivência das/dos
estudantes na sociedade.
Portanto, é necessário repensar o papel das/dos professoras/es no
ensino de História, promover ações pedagógicas e mecanismos vol-
tados às temáticas de gênero e sexualidade. Nosso trabalho se rela-
ciona com os direitos humanos e não podemos de forma alguma cor-
roborar o sexismo, homotransfobia, machismo e racismo na escola.
Assim, é importante destacar que a/o docente de História precisa
sair do marasmo, precisa modificar seu pensamento e sua prática,
como nos diz Freire:

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida


a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa
de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser
humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela
nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam
meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam
por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que infe-
riorizam as mulheres.455

Junqueira analisou a pesquisa “Perfil dos Professores Brasileiros”


realizada pela Unesco, em 2002. Nela foram entrevistadas/os cinco mil
docentes da rede pública e privada. O estudo revelou, entre outros assun-

455 Freire (1998, p. 39-40).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

tos, que, para 59,7% delas/es, é inadmissível que uma pessoa tenha rela-
ções homoafetivas e que 21,2% deles tampouco gostariam de ter vizinhos
LGBT+. O autor ainda cita outra pesquisa pela mesma instituição, em
13 capitais brasileiras e no Distrito Federal, que forneceram certa com-
preensão do alcance da LGBTfobia no ambiente escolar. Detectou-se que
o percentual de professores/as que declaram não saber como abordar os
temas relativos à homossexualidade em sala de aula vai de 30,5% em Be-
lém a 47,9% em Vitória. Os que acreditam ser a homossexualidade uma
doença são cerca de 12% de professoras/es em Belém, Recife e Salvador;
entre 14 e 17% em Brasília, Maceió, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Goiâ-
nia; e mais de 20% em Manaus e Fortaleza.456
Seguindo os ensinamentos de bell hooks, quando encontramos sa-
las de aulas com estudantes diversos em termos étnicos, religiosos e/ou
sexuais, a/o docente precisa se preparar ou estar preparada/o, buscar (in)
formações e se capacitar para trabalhar com esses sujeitos de forma in-
clusiva, (re)pensando estratégias alternativas para sua prática pedagógica
no ensino. Conforme a autora, “os professores devem ter o compromis-
so ativo com um processo de autoatualização que promova seu próprio
bem-estar. Só assim poderão ensinar de modo a fortalecer e capacitar”.457
Ainda de acordo com ela:

Os professores que abraçam o desafio de autoatualização serão


mais capazes de criar práticas pedagógicas que envolvam os alu-
nos, proporcionando-lhes maneiras de saber que aumentem sua
capacidade de viver profunda e plenamente.458

Os temas sobre gênero e diversidade sexual ainda são invisibilizados


no ensino de História, e sua presença nos livros didáticos é vaga e su-
perficial, incumbindo as/os docentes a buscarem outros mecanismos ou
ferramentas didáticas para dar suporte ao aprendizado das/dos estudan-
tes e sanar dúvidas e/ou curiosidades que irão aparecer em sala de aula.

456 Junqueira (2009, p. 17).


457 hooks (2017, p. 28).
458 hooks (2017, p. 36).

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O papel da/do docente no ensino de História está no enfrentamento


em sala de aula à violência de gênero, à LGBTfobia e a outras diversas
formas de opressões; está no respeito a cada voz individual das/dos es-
tudantes independentemente de identidade de gênero, raça, orientação
sexual, classe ou religiosidade. Nesse sentido, no tópico abaixo mostro,
a partir da minha experiência enquanto professora na educação eásica,
algumas estratégias interdisciplinares que deram suporte para a minha
prática pedagógica.

3. EDUCANDO PARA O RESPEITO À DIVERSIDADE


SEXUAL E A VALORIZAÇÃO DE MULHERES E LGBT+

3.1. O local e a criação do projeto

O Distrito de Triunfo se localiza na Região Norte do Brasil,


no município de Candeias do Jamari, Estado de Rondônia. O po-
voamento se iniciou na década de 1990, com a abertura da linha
631, iniciada por uma construtora de nome Triunfo. O distrito tem
aproximadamente quatro mil habitantes. Nessa região, considera-
da como de difícil acesso, há três escolas: Albino Buttner, Jonatas
Coelho Neiva e Leonora Atanásio. Ganham destaque manifestações
culturais como: comemoração do 7 de Setembro, Rodeio, Festa de
São João, Corrida da Argolinha e a Cavalgada. A presença da prática
religiosa é visível em Triunfo, com igrejas de várias denominações
como católica, protestante, pentecostal e neopentecostal (há mais de
26 igrejas). A economia da localidade é baseada na agropecuária,
serrarias, carvoarias e comércio.
O PGSE foi desenvolvido na Escola Estadual de Ensino Fundamen-
tal e Médio Albino Buttner, onde ministrei as disciplinas de História
Geral e História de Rondônia durante quase seis anos. A execução do
projeto se deu nos anos de 2016 a 2018, no segundo semestre de cada ano,
com as turmas de 9º ano do Ensino Fundamental (matutino e vesperti-
no) e 3º Ano da Educação de Jovens e Adultos (noturno). Os objetivos
eram: ensinar, conscientizar, sensibilizar e discutir com as/os alunas/os e
a comunidade escolar as questões de discriminação e violência a partir

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

do bullying na escola, homotransfobia, machismo, sexismo e feminicídio,


respeitando a pluralidade de pensamento de cada sujeito.
Toda a efetivação do projeto esteve sob o respaldo do meu plano de
curso da disciplina História Geral459, através do eixo temático “Cidadania
e cultura no mundo contemporâneo: relações de poder, nações e cotidia-
no”, sob a perspectiva de alguns dos descritores de habilidades e compe-
tências:

• Analisar historicamente os processos de exclusão/inclusão social


promovidos pelas sociedades, considerando o respeito aos direi-
tos humanos e à diversidade;
• Utilizar procedimentos históricos e de outras ciências auxiliares
na construção do conhecimento histórico escolar;
• Participar de tarefas grupais que convidem ao intercâmbio de
opiniões, à consideração de diferentes pontos de vista;
• Conhecer e compreender os diversos aspectos das transforma-
ções ocorridas na sociedade;
• Compreender que somos agentes do processo histórico, capazes
de intervir e modificar o meio.

A construção do projeto se deu a partir de três temas: a era da con-


testação, ditadura militar no Brasil e democratização do Brasil, conteúdos
pragmáticos do livro didático História.doc. 9º Ano.460 Os mesmos conteú-
dos coincidiram com os assuntos trabalhados no 3º Ano da EJA (ressalto
que essa modalidade de ensino é carente de livros didáticos específicos
para as/os docentes trabalharem suas disciplinas nas escolas de Rondônia,
dessa forma, criamos estratégias de conteúdos, usando livros antigos e
novos de turmas do Ensino Fundamental e Médio).
Então criei o projeto, anexando-o ao plano de aula e ao plano de cur-
so para trabalhar com as/os estudantes no 3º bimestre dos anos 2016, 2017

459 Os Planos de Cursos das escolas estaduais em Rondônia são feitos no início do ano
letivo.
460 VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; CALAINHO, Daniela Buo-
no (orgs.). Historia doc. 9º ano. São Paulo: Saraiva, 2015.

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e 2018. Tais documentos foram entregues à equipe pedagógica da escola


que ficou sensibilizada com o tema proposto e que também prestigiou o
resultado final, juntamente com a comunidade escolar.
Mesmo se tratando de um tema considerado ainda tabu na sociedade
brasileira, e apesar de a localidade ter um número elevado de estudantes
católicas/os e protestantes, essas características não foram obstáculo para
que o projeto fosse um sucesso e não teve retaliação por parte da comu-
nidade escolar.

3.2. Metodologia/estratégia didática

Duas semanas depois de eu ter trabalhado os temas das aulas sobre a


era da contestação, ditadura militar no Brasil e democratização do Brasil,
e também seguindo o cronograma de aula, para não acontecer cobran-
ças da equipe pedagógica, iniciei o projeto com uma dinâmica sobre as
questões das diferenças. Distribuí para as/os estudantes folhas de papel
sulfite ou A4 em branco. Na dinâmica, eles/elas teriam que desenhar um
sujeito como quisessem. Mencionei algumas coordenadas, pedindo que
o fizessem em sequência: cabeça, cabelo, olhos, boca, nariz, até formar o
desenho por completo ou incompleto, deixando-as/os à vontade caso de-
sejassem colocar adereços (chapéu, laços, brincos, bolsas etc.). No final,
teriam que fazer a troca dos desenhos com as/os colegas de sala. Escolhi
alguns/mas alguns estudantes para que explanassem sobre os desenhos em
mãos, comentando as características em comum e/ou diferentes de seus
desenhos para os das/dos colegas. O resultado dessa dinâmica mostra a
diversidade de sujeitos construídos por elas/eles. Nessa dinâmica, temos
que deixar os/as estudantes se expressarem e, no final, a/o docente faz
considerações sobre a atividade.
Foi a partir dessa dinâmica que iniciei o debate sobre gênero e sexua-
lidade, incluindo aulas teóricas com uma linguagem de fácil compreen-
são; textos sobre cidadania e o respeito às diferenças; movimento LGBT+
e suas conquistas; orientação sexual, identidade de gênero, práticas se-
xuais, homotransfobia, violência contra mulheres, mercado de trabalho,
educação e saúde; e atividade de pesquisa sobre gênero e sexualidade.

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Em outro momento, trabalhei com músicas brasileiras que reprodu-


zem machismo, violência contra mulher e homofobia, tais como: “Baile
de Favela” – MC João, “Loira burra” – Gabriel, O Pensador, “Amiga da
minha mulher” – Seu Jorge, “Um tapinha não dói” – Bonde do Tigrão,
“Mulher não manda em homem” – Grupo Vou pro Sereno, “Maria sa-
patão” e “Cabeleira do Zezé” – Chacrinha, “Vale Tudo” – Tim Maia, e
“Rock das aranhas” – Raul Seixas.
Nessa etapa do projeto, as/os alunas/os se divertiram, rindo das le-
tras e até mesmo dançando. Eu as/os deixei se manifestarem duran-
te a amostra das músicas. Em seguida, fizemos diversas reflexões sobre
as letras de forma crítica, pois as/os mesmas/os não tinham a visão de
que músicas machistas e homofóbicas contribuem para a discrimina-
ção e violência contra LGBT+ e mulheres. Realizei um cine-debate,
passando alguns filmes para as/os estudantes os relacionarem com os
conteúdos ministrado no projeto, como: “Milk, a voz da igualdade”,
“Orações para Bobby” e “O casamento de Gorete”. Além disso, exibi
alguns documentários sobre identidade de gênero, famílias x LGBT+ e
depoimentos de mulheres e LGBT+ vítimas de violências. Esse traba-
lho audiovisual foi comovente. Em sala de aula, muitas/os estudantes
ficaram pensativas/os e outras/os emocionadas/os com o que assistiram,
sensibilizadas/os com os temas abordados.
A penúltima etapa das atividades ocorreu com a produção de textos
a partir do que foi trabalhado no projeto. Solicitei que as/os estudantes
fizessem uma redação sobre Violência e crimes contra mulheres, LGBT+ e
outras “minorias”, com base em algumas perguntas semiabertas para con-
duzi-las/os na criação textual. Selecionei alguns trechos da redação res-
guardando e respeitando o anonimato de cada estudante e mantendo a
escrita delas/es.461 As perguntas foram: você conhece alguém que já so-
freu algum tipo de violência devido à orientação sexual ou identidade de
gênero? Qual sua opinião sobre a diversidade sexual? Qual sua opinião
sobre o Projeto de Gênero e Sexualidade na Escola? Foi possível perceber
a sensibilização e a aceitação do tema por parte de uma aluna quando
ela mencionou: “É importante falar sobre isso no ambiente escolar para

461 São textos das/dos estudantes do 9º ano na faixa etária de 14 a 17 anos.

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mostrar para os alunos, que os gays, transexuais, bissexuais e outros tipos


de pessoas devem ser aceitas do jeito que elas são e gostam, é o que faz ela
se sentir bem.” (Estudante 1).
Sobre o entendimento através do debate da diversidade de identida-
des em sala de aula, temos análises como:

Cada um de nós temos sua própria identidade, somos diferentes


um do outro, não devemos julgar ninguém porque não sabemos o
que nos espera, esse projeto retrata muito de cada um de nós, en-
tão a gente tem que parar e pensar em tudo que falamos, pensamos
ou fazemos. (Estudante 2).

Então temos que deixar as pessoas ser o que quiserem e respeitá-


-las pelo caráter e pelas qualidades que cada um tem. Existe pes-
soas de todo jeito, branco, preto, pardo, homem, mulher, gay, lés-
bica, entre outras personalidades, isso não importa e sim a pessoas
ser feliz e saber respeitar as pessoas. (Estudante 4).

É importante decidirmos sobre esses assuntos para também en-


tendermos que as pessoas que sofrem preconceitos por essas coisas
passam na escola, em casa e em todos os lugares, temos que enten-
der que cada um de nós temos uma identidade, e temos que nós
aceitar do jeito que somos, sem se importar para que os outros vão
dizer. (Estudante 5).

As/os estudantes, portanto, conseguiram compreender que somos


diferentes no tocante a identidade de gênero, étnica e racial, e que o
respeito é crucial para convivermos com essas diferenças no ambiente
escolar e na comunidade. Tal entendimento por parte das/dos estu-
dantes do “diferente” e das diversidades é de extrema importância no
processo de formação educacional. Promovendo o respeito às pessoas
que estão fora do padrão heteronormativo e aos direitos humanos, va-
lorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem pre-
conceitos ou discriminação de qualquer natureza, essas/es estudantes
estão contribuindo para um aprendizado transformador, libertário e
emancipatório em sala de aula.

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Durante a explanação sobre as políticas públicas para LGBT+ e mu-


lheres, levei para sala de aula alguns textos sobre o assunto, para que as/
os estudantes tivessem conhecimento das conquistas e dos desafios dos
movimentos sociais na luta contra o machismo e a homotransfobia. Ao
mostrar os dados de violências que ocorrem no Brasil, uma aluna me
questionou se já havia uma lei específica que criminaliza a violência con-
tra homossexuais. Então expliquei que existiam alguns projetos na Câ-
mara dos Deputados, mas que, devido aos políticos conservadores e tra-
dicionalistas, tinham sidos engavetados. Porém, o Movimento LGBT+
continuava na luta contra a LGBTfobia. Em seus textos, as/os estudantes
reconheceram as diversas formas de opressão e de violência. Além disso,
perceberam a importância de se conscientizar e discutir esses temas no
ambiente escolar:

Eu sei que agressão não se resolve com violência, não deveria exis-
tir em nosso mundo, todos nós somos iguais, o que muda é a nossa
sexualidade, não devemos se importar se é homem ou mulher,
não importa, nós devemos respeitar, todos reagem de uma forma
quando vê um homem beijando outro homem, ou uma mulher
beijando outra mulher, nós devemos mostrar para o mundo inteiro
uma coisa que eles não vê direito o amor ao próximo... devemos
falar para toda a escola, que a violência, preconceito e agressão não
chega a lugar nenhum, devemos mostrar que a violência da cadeia,
que o preconceito é a pior coisa...(Estudante 3).

No Brasil muitas pessoas não aceitam homossexuais, e por isso


xingam e batem até mesmo com palavras. Na realidade as pessoas
que são violentadas têm mesmo que denunciar. (Estudante 11).

A importância disso ser discutido no ambiente escolar é que ajuda


acabar com os preconceitos, ajuda que os transexuais e os outros
sejam aceitos no mundo todo e que possam ter uma vida normal,
possam se casar com quem eles querer. (Estudante 7).

Um dos objetivos do meu trabalho foi justamente tornar o tema de-


mocrático e sensibilizar as/os estudantes através de suas falas e de suas

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escritas, conduzindo-as/os a um projeto socioeducacional para um país


livre de opressões e violências e uma escola mais solidária e inclusiva.
A maioria das/dos estudantes não conhecia pessoas que foram vítimas
de homotransfobia, mas, durante as aulas e pesquisas realizadas por elas/
eles, ficaram cientes do que ocorre no país. Abaixo está relatado um caso de
violência que foi citado em um dos textos elaborados pelas/os estudantes:

Conheço, tenho um amigo que mora em Machadinho, um dia ele


se reuniu com uns colegas dele, nem todos que estavam no grupo
sabiam que ele era guey, descobriram na hora, teve dois rapazes
que não gostaram de saber que tinha um guey no grupo, beberam
tanto, brigaram com esse meu colega e acabaram esfaqueando ele,
ele ficou internado, mas não morreu. (Estudante 10).

A homotransfobia acontece no grupo familiar e de amigos, no tra-


balho e em outros lugares públicos, onde os LGBT+, em sua maioria,
acabam sem acolhimento. O Brasil está no topo do ranking de países que
registram mais agressões contra essa população. É preciso que as esco-
las e outras instituições promovam os mais diversos tipos de atividades e
projetos socioeducacionais, discutindo a inclusão social, o preconceito,
o reconhecimento desse segmento historicamente invisibilizado e estig-
matizado no país, bem como a luta contra a violência de gênero para que
as/os estudantes possam colaborar na luta contra as injustiças sociais. Esse
é o caso da estudante que desconhece alguém que tenha sofrido algum
tipo de violência desse tipo, mas que, em seu texto, explana de maneira
solidária que apoia e lutará pela causa:

Eu não conheço ninguém que sofreu algum tipo de violência, mas


sei a fama do bullying no Brasil e sei que pessoas sofrem muito
com isso e a minha opinião eu não acho nem uma graça esse jeito
de preconceito com quem só quer ser feliz e eu apoio e se eu puder
ajudar eu ajudarei com maior prazer. (Estudante 8).

Desde quando nascemos, somos ensinadas/os a agir de acordo com


o nosso sexo biológico e/ou de acordo com a prática religiosa de cada

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sujeito. O sexo dos indivíduos é, assim, culturalmente determinado antes


de nascerem. Crescemos ouvindo que “menino tem que usar roupas na
cor azul, para a menina rosa é a cor destinada”, “menino não chora”,
“menina brinca de boneca” e outras expressões que continuam sendo en-
sinadas. Essas questões foram trabalhadas em sala de aula sobre as relações
de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, mas reconhecendo e
valorizando as expressões e vozes de cada estudante, independentemente
de religião. Encontrei em alguns textos entregues por elas/eles as seguin-
tes opiniões no que tange à homossexualidade:

É normal, pela minha forma de criação da educação dos meus pais e


pela minha religião que eu acredito eu acho errado, mas não tenho
nada contra, posso ter amigos ou até meus futuros filhos gays ou lés-
bicas que eu não vou ter nenhum tipo de preconceito. (Estudante 9).

Eu estudante 11 sou cristão, para mim isto é pecado, Deus não


aceita, mas cada um pode ser da maneira que quiser com Deus
ou sem Deus, mas se uma pessoa homossexual chega para mim,
querendo ser meu amigo, eu não vou desprezar. (Estudante 11).

As pessoas religiosas não aceitam os gays porque não estão na Bí-


blia, outros diz que é pecado, enfim são humanos também e tem
direito igual ao do homem e da mulher... por isso na nossa escola
estamos desenvolvendo esse projeto. (Estudante 14).

Percebe-se claramente nesses trechos a questão que envolve a religião


e a homossexualidade. As/os estudantes, através de seus princípios religio-
sos, expõem suas opiniões baseadas na Bíblia e nos ensinamentos tradi-
cionais no seio familiar. O mais importante, em suas falas, é o respeito e
a inclusão de homossexuais em seus vínculos sociais.
Como produto final do projeto, depois de todas as aulas teóricas,
dinâmica, trabalhos com músicas e filmes e a produção de textos, escolhi
uma das turmas e sugeri que as/os estudantes compartilhassem e trocas-
sem os conhecimentos adquiridos no desenvolvimento do projeto com
as/os demais colegas, professoras/es, equipe gestora e toda a comunidade
escolar.

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As/os estudantes do 9º do período vespertino realizaram uma mini-


feira cultural e se dividiram em grupos, pesquisaram dados sobre a ho-
motransfobia e violência contra mulheres, fizeram cartazes explicando
os conceito de gênero, identidade de gênero, orientação sexual, e pes-
quisaram imagens de pessoas famosas internacionais e nacionais que as-
sumiram publicamente suas orientações sexuais. Cada turma se dirigiu
ao pátio da escola acompanhada da/do docente para prestigiar o trabalho
das/dos estudantes. Eu mediei as dúvidas e algumas curiosidades das/dos
estudantes e até mesmo das/dos docentes, sobretudo sobre identidade de
gênero. Algumas turmas me questionaram do porquê eu não ter traba-
lhado o projeto com elas/eles também, eu expliquei que fazia parte dos
contéudos específicos das turmas do 9º ano e 3º ano, mas que oportuni-
dades não iriam faltar para abordar o tema em sala de aula.
A minifeira cultural de gênero e sexualidade ficou exposta à comu-
nidade escolar durante dois dias, até mesmo para que as/os estudantes
do período noturno, em especial os 3º anos do Ensino Médio e 3º EJA,
para que pudessem contemplar a “finalização” do trabalho desenvolvido.
Ressalto que a maioria das/dos docentes que realizou o evento são das
chamadas linhas, que moram em sítios ou fazendas. Cinco estudantes
se comprometeram de estar à noite para explanar o resultado do projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde 2004, vivenciamos um processo de desqualificação da escola


pública no Brasil, com políticos fundamentalistas e conservadores, através
do Projeto Escola Sem Partido, perseguindo docentes de diversas manei-
ras, censurando e autocensurando o trabalho de educadoras/es que es-
tão realizando debates no ambiente escolar sobre as questões de gênero
e sexualidade, ferindo a liberdade de cátedra. De acordo com os adeptos
do Projeto, a escola estaria ensinando, entre outros temas “perigosos”, a
Ideologia de Gênero. De maneira mais direta, estaríamos ensinando as/
os estudantes a serem LGBT+. Sabemos que isso é uma inverdade pro-
pagada por parte desses políticos visando manter as aparências e o status
quo: um sistema de dominação masculino hegemônico, classista, sexista,
racista e homotransfóbico.

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Nossa liberdade de cátedra é garantida por lei; nós, docentes, temos


direitos e deveres de ensinar, aprender e compartilhar saberes com a co-
munidade escolar, através do pluralismo de ideias e de concepções peda-
gógicas, trabalhando numa perspectiva humanística de solidariedade hu-
mana, sempre pensando na formação de cada estudante, preparando para
exercer sua cidadania, qualificando para a vida, com respeito à liberdade
e tolerância à singularidade, independentemente de gênero, identidade
de gênero, orientação sexual, classe, raça, religião e etnia. As/os docentes
precisam ter a compreensão de seus direitos e deveres, fazer uma autoa-
tualização em sua formação – afinal, somos intelectuais, produtores do
conhecimento, principalmente quando se trata de trabalhar temas como
diversidade sexual e relações de gênero com crianças e jovens na escola,
possibilitando a construção de uma boa conduta profissional e consciente
no trato dessas temáticas. Precisamos também estabelecer uma relação de
confiança com a comunidade escolar, sobretudo com as/os estudantes.
Nesse sentido, o PGSE criou perspectivas de resistências, de cons-
trução coletiva e democrática a partir do ensino de História na educa-
ção básica, contribuindo para a formação da cidadania das/dos estudantes
em Rondônia, incorporando novos instrumentos para uma boa prática
pedagógica, como dinâmicas, músicas, filmes e a feira cultural da diver-
sidade sexual e de gênero. Busquei incluir as/os estudantes no processo
de aprender-saber, conscientizando e sensibilizando para as questões dos
direitos humanos, numa perspectiva da educação engajada e transforma-
dora. Assim, foi possível visibilizar também as lutas dos movimentos de
mulheres e de LGBT+ na história contra as opressões do sistema cis-he-
teropatriarcal.

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

PAIVA, Carla Conceição da Silva. Prefácio. In: RIOS, Paulo Souza;


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VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge;


CALAINHO, Daniela Buono (Orgs.). Historia doc. 9º ano. São
Paulo: Saraiva, 2015.

3 24
INTELECTUALIDADE FEMININA
E IDEOLOGIA ESTADONOVISTA:
A REVISTA CULTURA POLÍTICA
(1941-1945)
Eliane Goulart MacGinity

INTRODUÇÃO

Ao final do século XIX, a educação feminina, no sentido de escola-


rização, encontrou mais espaço na sociedade, mas não se tratava de uma
preparação intelectual, emancipadora. O objetivo era prepará-las para sua
função primordial: mães e esposas. Consideravam-nas mentalmente in-
feriores aos homens, daí limitar e determinar o que deveriam estudar.
Desta forma, ensino superior e carreira não lhes competia, mas o magis-
tério primário lhes facultado. Décadas depois, algumas mulheres tiveram
acesso aos bancos universitários e puderam desenvolver suas profissões,
mas em número pouco significativo e pertenciam à elite brasileira.462
Essa concepção de inferioridade intelectual afetou sobretudo aquelas que
trilharam carreiras nos lugares de produção de conhecimento, tanto nas
“ciências duras” como nas humanas; todavia, nessa área encontraram
mais aceitação.
As 14 mulheres deste estudo compõem o grupo das que conseguiram
acessar níveis educacionais mais elevados, ou mesmo que não o tives-
sem, obtiveram reconhecimento e espaço para expor o que pensavam,

462 Soihet (2012).

325
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

pesquisavam – enfim, seu potencial intelectual. A maioria é professora e


algumas escrevem sobre educação e temas circunscritos à órbita feminina
da época, demonstrando como sua produção de conhecimento também
é marcada pela condição de serem mulheres. Entretanto, a maior parte
dos textos foge a essa regra, inserindo-as em um campo mais amplo de
saberes e em um ambiente que não lhes pertencia, mas que foi autoriza-
do em razão da capacidade intelectual e, provavelmente, de suas relações
pessoais e familiares.
O texto foi estruturado de forma a apresentar quem são as autoras
e o seu pensar; assim, tem-se uma breve biografia e a exposição geral de
seus textos. Por fim, fez-se a análise em conjunto dos artigos, apontando
os aspectos que dialogam com a ideologia do Estado Novo (EN), visando
perceber sua produção intelectual como constituinte de um projeto de
nação.

CULTURA POLÍTICA E O ESTADO NOVO

Cultura Política (CP), editada entre os anos de 1941 e 1945, com 51


edições, foi uma publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), por conseguinte, uma ferramenta oficial de divulgação do ideário
do regime, assim como dos próprios atos do governo. Procurava-se “[...]
manter como uma revista [...] de cultura e política, de maneira a refletir
algo de caro ao Estado Novo: a construção de uma nação calcada em sua
própria cultura e um regime político que por ela se estruturasse”.463
Dirigida por Almir de Andrade, um dos principais ideólogos do regi-
me, em suas páginas encontram-se os maiores intelectuais do país, como
Hélio Viana, Azevedo Amaral, Basílio Magalhães, Graciliano Ramos,
entre outros, que abordavam temas relativos a política, economia, cul-
tura e arte. Enaltecia-se a produção artística nacional, valorizavam-se os
costumes, a história e a tradição do país; tratavam ainda sobre educação
e saúde, visando a uma nação reunida em torno de uma identidade co-
mum. Dessa necessidade de coesão nacional, a CP contou com a presen-

463 Câmara (2010, p. 59).

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ça de uma pluralidade de pensadores, que mostravam a complexidade da


realidade brasileira e identificavam-na como parte de um só corpo.

Reunir os intelectuais brasileiros em torno dos problemas nacio-


nais, segundo o autor (Almir de Andrade), implicava não esco-
lher apenas aqueles próximos ao centro, mas de todos os Estados,
profissões e categorias sociais e não ter distinções de doutrinas e
tendências, pois se pretendia formar um sentido de unidade au-
têntica. Afirmava que pela primeira vez conseguia-se reunir nas
páginas de uma revista de cultura um número tão expressivo e
variado de intelectuais que na sua visão era o de “descrever e com-
preender o Brasil, numa demonstração sincera e esclarecida soli-
dariedade com a ação do governo”.464

A CP reuniu mais de 250 escritores e colaboradores e mais de 1.500


textos, dos quais apenas 14 autoras e 33 artigos escritos por elas. Mesmo
em cifras reduzidas, essas mulheres constituíram esse núcleo intelectual
responsável por teorizar e divulgar o EN de Vargas.
Este assumiu o poder através da Revolução de 30, quando com um
golpe de Estado derrubou a Primeira República. Iniciava-se, assim, a Era
Vargas; período compreendido entre 1930 e 1945, dividido em três mo-
mentos: 1930 e 1934, governo provisório, 1934 e 1937, governo constitu-
cional e o Estado Novo de 1937 a 1945. Há dois elementos fundamentais
e progressivos a se destacar nessa caminhada entre 30 e 37: a centralização
política e o autoritarismo. A ditadura estadonovista instalou-se com a
Constituição de 1937, de inspiração fascista e, assim como em 30, foi pelo
meio de um golpe que Getúlio instaurou o EN.
A modernização do Brasil foi um dos objetivos de Vargas, tanto do
ponto de vista econômico como social e cultural, quanto da administra-
ção pública. O país entrou em definitivo no caminho da urbanização e
da industrialização. Porém, as mudanças não envolveram a participação
popular, foram transformações conservadoras, feitas a partir de cima, via
decisões do Executivo.

464 Rodrigues (2010, p. 53-54).

327
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Importante pilar da Era Vargas, a política trabalhista deu os primeiros


passos logo no início dos anos 30, com a concessão de direitos aos traba-
lhadores, como a regulação das horas de trabalho, férias, previdência etc.,
culminando com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943.
O governo exercia domínio sobre os sindicatos e em virtude das leis de
amparo, desmobilizava os movimentos dos trabalhadores; desta forma, as
alterações socioeconômicas necessárias eram controladas e afastava-se o
“perigo vermelho”, um dos principais inimigos do regime.
A industrialização, outra grande bandeira de Getúlio, teve como
preocupação inicial o incentivo à produção nacional e a partir de 37 vol-
tou-se para a substituição de importações e para a formação de uma in-
dústria de base, pesada. O Estado passava a ser o principal promotor do
processo industrial e contava com o apoio dos empresários e dos mili-
tares, os últimos viam na expansão desse setor uma questão de defesa
nacional e soberania.465
A centralização administrativa refletiu-se na criação do Departamen-
to Administrativo do Serviço Público (DASP). Palavras como eficiên-
cia, racionalidade, economia, aplicação correta dos recursos entraram em
pauta. A escolha dos servidores públicos deveria ser feita com base em
critérios técnicos e não mais pessoais, pois se os cargos passassem a ser
ocupados através de concurso, teoricamente, os funcionários estariam
isentos de compromissos com grupos específicos.466
O autoritarismo manifestava-se na censura e na repressão violenta,
como perseguições, prisões arbitrárias, tortura etc., a qualquer forma de
oposição ao regime. O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)
era encarregado das investigações e das punições. As táticas repressivas e
o uso massivo da propaganda exemplificam a proximidade aos regimes
nazifascistas europeus.467 A censura e a publicidade eram funções do DIP,
encarregado de divulgar os atos do governo e consolidar a figura de Var-
gas como um líder carismático e paternalista. O órgão era ainda respon-
sável por forjar uma cultura brasileira, isto é, uma identidade nacional,

465 Fausto (2006, p. 371).


466 Fausto (2006, p. 378-379).
467 Capelato (2003, p. 131).

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ideia cara ao ditador. Para isso, utilizava-se dos meios de comunicação de


massa para difundir informações relativas ao país sobre geografia, história,
arte e folclore, fauna e flora, transmitindo, assim, a noção de brasilidade.
Alia-se ao processo de valorização do que é brasileiro, a “ideologia
da mestiçagem”. Por um lado, visava à inclusão da população negra à
sociedade, marginalizada por quase 400 anos de escravidão, através da
incorporação de elementos da cultura afro-brasileira, como o Carnaval,
ao imaginário nacional, isto é, como pertencente ao conjunto da nação
e, assim, minimizar e alterar a percepção sobre o cotidiano de pobre-
za, preconceito e exclusão que os descendentes dos africanos viviam. Por
outro lado, a mestiçagem objetivava o branqueamento da população por
meio da imigração. A ideia de uma cultura brasileira rica e diversa, mas
comum, contribuiria para a visão de uma sociedade harmônica, onde não
há embates de raça e classe. No entanto, apenas procura encobrir os con-
flitos sociais existentes.468
Por fim, há dois elementos inter-relacionados e fundamentais para a mo-
dernização e a industrialização do Brasil: a educação e a saúde. Acreditava-se
que, por meio da ação educacional e da saúde pública, seria possível construir
o “homem novo” e forjar uma identidade nacional comum, via concepções
sanitarista, higienista e eugenista, e a ideologia do branqueamento.
Na área educacional, destacam-se a elaboração do Plano Nacional
de Educação, visando unificar o ensino em função dos regionalismos e
das zonas de imigração, tendo em mente a formação de uma identidade
nacional; a reforma do ensino secundário e a reestruturação do ensino
superior, com a criação das universidades.469 Em termos de saúde, havia
uma preocupação constante com a higiene e com os princípios eugênicos
(melhoria das raças), pois, para o progresso da nação era necessária uma
sociedade branca e instruída, daí o estímulo à imigração. Vargas pretendia
construir o “homem novo”: branco, sadio físico e mentalmente, imbuído
dos valores do trabalho e do aperfeiçoamento da sociedade.470

468 Ortiz (1986, p. 36-44).


469 Bomeny (1999).
470 Silva (2018, p. 203-207).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

POUCAS, MAS ESPECIALISTAS

Em razão do tamanho que aqui se dispõe, não foi possível aprofun-


dar as análises dos artigos das autoras. Desta forma, optei por torná-las
conhecidas e não apenas dedicar este texto a uma ou outra471. Com essa
lógica, viabilizam-se estudos futuros sobre seu pensamento e sobre suas
vidas472. Elas merecem destaque, pois a CP contava com a elite intelectual
brasileira da época, predominantemente masculina, e tinha objetivos de
suma importância para o governo, ou seja, divulgar a ideologia de uma
concepção de nação. Registre-se aqui, que, das pesquisas realizadas sobre
a publicação e seus colaboradores, não há investigações acerca da produ-
ção intelectual feminina, reforçando-se ainda mais necessidade estudá-
-las.
A expressão “intelectualidade feminina”, no período estudado, re-
fere-se a um número reduzido de mulheres, pertencentes à elite e fre-
quentadoras de ambientes ditos intelectuais. Antes de analisar a produção
de conhecimento das autoras objeto deste trabalho, é necessário definir
o conceito de “intelectual” adotado, no caso, a dupla noção apresentada
por Jean-François Sirinelli, sendo “uma ampla e sociocultural, engloban-
do os criadores e os ‘mediadores’ culturais, a outra mais estreita, baseada
na noção de engajamento”.473 O autor engloba na primeira categoria o
jornalista e o escritor, o professor secundário e o erudito; na segunda, o
intelectual é a pessoa que atua na vida da cidade, “mas segundo moda-
lidades específicas, como por exemplo a assinatura de manifestos, teste-
munha ou consciência”.474 O uso dessa acepção composta adapta-se à
realidade das autoras, pois além de produtoras de conhecimentos, elas são

471 As pesquisas referentes à biografia e à carreira das intelectuais realizaram-se via in-
ternet e não in loco. Portanto, isso pode responder ao porquê de tão poucas informações
encontradas a seu respeito.
472 Por exemplo, a partir dos estudos foucaultianos das relações de poder ou do feminis-
mo decolonial.
473 Sirinelli (2003, p. 242).
474 Sirinelli (2003, p. 243).

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atrizes na vida da cidade, como diz Sirinelli, pois teorizam a respeito da


própria intervenção na sociedade.

AS INTELECTUAIS DA CULTURA POLÍTICA

Beatriz Marques de Souza (Wahrlich) (1915-1994), uma das


fundadoras da EBAP (Escola Brasileira de Administração Pública) da
Fundação Getúlio Vargas, é considerada patrona da Administração Pú-
blica no Brasil e a principal teórica da Reforma Desenvolvimentista dos
anos 60 e 70.475 A introdução de seu artigo é uma extensa lista de cursos
realizados no exterior sobre administração pública. Em “Razões de ser do
D.A.S.P.”,476 assume que seu texto é uma propaganda do Departamento
Administrativo do Serviço Público, visando melhorar a imagem desse
órgão perante a sociedade. Utiliza de explicações técnicas e palavras-cha-
ve, como racionalização administrativa, eficiência, econômico, critérios,
normas etc., para convencer da utilidade e necessidade do departamento.
A escritora paraense477 Dilke de Barbosa Rodrigues Salgado es-
creveu dois artigos sobre seu avô – “A obra de Barbosa Rodrigues”478 e
“Participação dos crichanás”.479 O primeiro fala sobre os estudos de seu
avô acerca do povoamento da América, o qual afirma que a origem da
humanidade se deu na Ásia (sic). Para provar isso, relaciona palavras e
objetos dos povos americanos com os de civilizações europeias e asiáti-
cas. O outro versa sobre como Rodrigues pacificou uma tribo do Ama-
zonas que estava em constante conflito com o branco. Já em “Senten-
ça sobre os Braganças”,480 fala a respeito dos problemas das sucessões ao
trono português, desde 1640 até 1889. Cabe registrar, que na CP, Dilke

475 Bresser-Pereira (2001, p. 11).


476 CP (1941, n. 3, p. 148-153).
477 Dilke publicou duas obras: A vida singular de Angelim: a Cabanagem. Rio de Janeiro:
Irmãos Pongetti, 1936 e Barbosa Rodrigues, uma glória do Brasil. Rio de Janeiro: A Noite,
1945.
478 CP (1942, n. 17, p. 378-386).
479 CP (1944, n. 74, p. 97-107).
480 CP (1944, n. 42, p. 84-88).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

é apontada como Redatora do Serviço Nacional de Radiodifusão Edu-


cativa (SNRE), órgão com a importante função de fazer chegar a lugares
longínquos a cultura brasileira. A função que ocupa no SNRE mostra sua
relevância como produtora de conhecimento.
Yolanda de Araújo Nobre foi a primeira mulher a escrever na CP.
Na apresentação do seu texto, é tida como alguém que está se especiali-
zando na temática da aviação brasileira, fato importante, visto tratar-se de
um assunto tipicamente masculino. Yolanda é identificada apenas como
professora de Belo Horizonte sem afiliação institucional481. No artigo in-
titulado “A aviação civil brasileira no período 1930/1940”,482 a autora faz
um levantamento do estado da aeronáutica no Brasil desde 1927 até 1941.
Aponta o ano de 1938 como um marco e apresenta os planos de Vargas
para a aviação (fábrica de motores e de aviões, cursos de formação de pro-
fissionais da área, leis, construção de aeroportos etc.), elenca as compa-
nhias e as rotas aéreas, traz dados meticulosos de números de passageiros
e de cargas transportados.
O artigo “As fronteiras do Brasil e os novos territórios”,483 escrito
por Júlia C. L. de Vasconcellos, tem na integração nacional proporcio-
nada pela União, por meio da “marcha para o oeste”, o centro do texto.
Para isso desenvolve o tema em torno da criação dos novos territórios fe-
derais, desmembrados de outros estados da federação, Guaporé, (Rondô-
nia), Rio Branco (Roraima), Amapá, Ponta-Porã (parte do Mato Grosso)
e Iguaçu (partes de SC e PR). Júlia era professora de geografia da Escola
Normal do Ceará e associada do Instituto (Histórico e Geográfico) do
Ceará. Especialista em História e Geografia, poliglota, mulher de grande
cultura, vinda de família tradicional de intelectuais, foi eleita para o Ins-
tituo em 1930, ocupando a cadeira que era do pai, o professor de Direito
Antônio Augusto de Vasconcellos. Estudou em uma escola tradicional e
conceituada do Ceará, o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, fundado
por uma importante educadora da época, Ana Bilhar.484

481 Segundo o DOU de 22 de julho de 1941, a autora é assistente social (p. 73).
482 CP (1941, n. 2, p. 91-101).
483 CP (1944, n. 44, p. 59-70).
484 Bomilcar (1931).

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A única estrangeira a escrever na revista foi a jornalista francesa Lu-


cie Marion. Segundo a CP, ela colaborou com grandes jornais norte-a-
mericanos e ingleses, e naquele momento estava viajando pelo Brasil in-
teirando-se da indústria nacional. No entanto, não localizei os periódicos
nem tampouco mais informações a seu respeito. Os três textos da autora
são sequenciais e abordam a valorização e consumo dos produtos da in-
dústria brasileira: “Por que não comprar o nacional - I?”,485 “Por que não
comprar o nacional - II?”486 e “Por que não comprar o nacional - III?”.487
Os textos ressaltam a qualidade dos produtos nacionais e a competência
das indústrias nacionais de fabricar mercadorias melhores ainda. Termos
como “esnobismo” e “tabu” refletem a preferência pelo que é vindo de
fora. Lucie faz um pelo emocional ao próprio povo, numa ideia de que
as indústrias pertencem ao Brasil e são capazes de promover o desenvol-
vimento nacional, sendo preciso, para isso, o engajamento da sociedade.
A professora e fundadora da Academia Feminina Espírito-Santanen-
se de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito
Santo, Maria Estela de Novais (1894-1981), teve uma educação esme-
rada, estudou pintura, música, idiomas, Pedagogia e Filosofia. Foi docen-
te de ciências naturais e história natural. Profunda estudiosa da botânica
e do folclore, escreveu vários livros, dentre outros, sobre essa temática.488
Conforme Fernando Achiamé, Maria Estela “foi pioneira na luta pela
emancipação feminina, pela valorização da mulher que, a seu sentir, devia
se ombrear com os homens em todos os campos da sociedade".489 “Botâ-
nica e folclore na terra capixaba”490 não recebeu introdução nem a autora
foi apresentada ao leitor. Em um tom bucólico e romântico, Maria Estela
desenvolve a relação entre a botânica e o folclore, a flora e a vida cotidiana

485 CP (1941, n. 8, p. 185-187).


486 CP (1941, n. 9, p. 305-308).
487 CP (1942, n. 14, p. 135-138).
488 Arquivo Histórico do Espírito Santo (on-line).
489 Achiamé (2016, on-line).
490 CP (1944, n. 37, p. 254-256).

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das pessoas, principalmente em relação aos sentimentos, exemplifica isso


com a cantiga de roda “O cravo e a rosa”.491
A escritora e crítica de arte Maria Portugal (Milward)492 teve forte
atuação política, tendo sido uma das fundadoras e presidente do dire-
tório regional do Partido Republicano Mineiro, funcionária da Câmara
de Vereadores de Rio Preto-MG e participou ativamente da campanha
do monopólio do petróleo.493 Seus artigos são uma valorização da arte
brasileira através das cerâmicas típicas da Ilha de Marajó. Os três textos
“Artes Decorativas Brasileiras I (Arte Marajoara)”,494 “Artes Decorativas
Brasileiras (Através da arte indígena)”495 e “Artes Decorativas Brasileiras
III (Através da Arte Indígena)”496 referem-se ao povo que as faz e às carac-
terísticas estéticas e técnicas empregadas na confecção. A autora afirma
que a marajoara é o berço da arte decorativa nacional.
A carioca Mariana Agostini de Vilalba Alvim (1909-2001), filha
do conhecido médico Álvaro Alvim, foi para Paris aos 19 anos e lá se
graduou em Psicologia na Sorbonne; foi aluna de Wallon, um dos teóri-
cos do ensino-aprendizagem, com quem teve contato com o marxismo.
Depois, formou-se em Pedagogia pelo College Sevighé-Paris e em 1941,
concluiu o curso de assistente social na Faculdade de Serviço Social do
Rio de Janeiro. Todavia, seu currículo é mais extenso, atuou junto a ins-
tituições psiquiátricas, órgãos da Justiça, fundou a Escola Feminina de
Artes e Ofícios, entre outros lugares e posições.497 Mariana retornou ao
Brasil em meio ao EN e foi perseguida por sua atuação junto ao Partido
Comunista.498 Quando escreveu seus artigos, era inspetora do Serviço de
Assistência a Menores e trabalhava no Departamento de Saúde Escolar da

491 CP (1944, n. 37, p. 254).


492 Maria Portugal publicou duas obras: Pão alheio. Rio de Janeiro: A Noite, 1946 e Lendas
do Brasil Maravilhoso. Rio de Janeiro: Laemert, 1946.
493 Guerghe (s.d., on-line).
494 CP (1941, n. 9, p. 446-450).
495 CP (1941, n. 10, p. 333-337).
496 CP (1942, n. 11, p. 286-291).
497 Marwell (1999, on-line).
498 Holanda (2002, on-line).

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Prefeitura do DF499. A produção intelectual de Mariana na CP é centrada


no que foi denominado de parques infantis ou jardins de infância, os quais
são centros que abarcariam diferentes necessidades das crianças pobres
em idade pré-escolar, de dois aos seis anos, seguindo os passos da assis-
tência social no âmbito da saúde, higiene e alimentação, mas incluindo
aspectos pedagógicos e afetivos. “Parques infantis como centros de assis-
tência social ao pré-escolar”,500 “A missão social dos parques infantis”501
e “Parques infantis como centros de assistência social ao pré-escolar (lo-
calização, organização, administração e funcionamento)”502 são comple-
mentares e explicam o processo completo desde o porquê da existência
dos centros até seu funcionamento.
A baiana Mercedes Dantas (Itapicurú Coelho) (1900-1982) foi
a mulher que teve mais artigos publicados na CP, nomeadamente: “Os
regimes políticos e a realidade social do Brasil”,503 “Os fundamentos eco-
nômicos do período colonial I”,504 “Os fundamentos econômicos do pe-
ríodo colonial II”,505 “Aspectos da economia colonial”,506 “Aspectos da
economia colonial”,507 “As ideias democráticas e o artificialismo consti-
tucional no Império”508 e “Processos de propaganda política no século
passado”.509 Seus sete artigos são aulas de história. Com uma crítica vee-
mente ao liberalismo tanto dos tempos da monarquia como da Repúbli-
ca, utiliza as Constituições de 1824, 1891 e 1934 como explicação para
o fracasso do sistema liberal. Contesta as análises históricas centradas nas

499 Rio de Janeiro à época.


500 CP (1942, n. 15, p. 32-49).
501 CP (1942, n. 20, p. 144-149).
502 CP (1944, n. 36, p. 173-186).
503 CP (1941, n. 5, p. 36-43).
504 CP (1942, n. 11, p. 171-182).
505 CP (1942, n. 16, p. 171-181).
506 CP (1943, n. 24, p. 46-56).
507 CP (1943, n. 30, p. 121-136).
508 CP (1944, n. 36, p. 59-68).
509 CP (1944, n. 38, p. 20-29).

335
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

grandes nações europeias e baseadas em paradigmas político e militar.


Para a autora, deve-se estudar a história a partir do viés econômico. Por
esta lógica, discorre em textos sequenciais, a história do período colo-
nial pormenorizadamente. Em meio a esse panorama, elenca e explica
os elementos do EN ligados ao nacionalismo, cultura nacional, defesa
de um Estado forte etc. Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Gilber-
to Freyre, Oliveira Viana, Roberto Simonsen e outros clássicos da his-
toriografia brasileira compõem seu repertório bibliográfico. Professora,
escritora, jornalista, editora, entre muitos outros epítetos, Mercedes foi
membro da Academia de Letras Baiana, do Instituto Histórico e Geo-
gráfico de Alagoas e primeira mulher a assumir um cargo diretivo na
Associação Brasileira de Imprensa. Extremamente culta e respeitada nos
meios jornalístico e literário, tinha na educação uma das suas maiores
preocupações, esteve ligada à criação de instituições de apoio a menores
carentes e fundou sua própria escola. Defensora do voto feminino, além
de participante da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, criou o
grupo político feminista “Diretório das Professoras Primárias”. Abraçou
ideias nacionalistas, aproximou-se do fascismo e defendeu ardorosamente
o EN, ao final da ditadura elegeu-se vereadora pelo Rio de Janeiro.510
“Panamericanismo”,511 primeiro texto de Nair Fortes Abu-Mehry
(1909-2000) na CP, diz respeito à aproximação do Brasil com os EUA,
cuja aliança deve ser reforçada diariamente, pois a América é o novo, é o
futuro após a guerra. “A economia doméstica e a reforma Capanema”512
considera a disciplina como fundamental na formação da mulher visando
a sua função primordial, que é o cuidado do lar, e por sua vez do bem-es-
tar da sociedade, da pátria, da humanidade. Essa visão de mundo também
é encontrada em “A importância da ‘simpatia’ na educação física”513 e em
“A ‘imitação’ na educação física”,514 mas a partir de uma ótica diferente.
Primeiro, tendo nos esportes coletivos uma forma de desenvolver prin-

510 Amaral (2019, p. 46; 60-107).


511 CP (1942, n. 19, p. 112-113).
512 CP (1943, n. 23, p. 71-75).
513 CP (1944, n. 39, p. 145-150).
514 CP (1944, n. 41, p. 114-118).

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cípios de solidariedade, isto é, de as pessoas se compreenderem enquanto


grupo, sendo este mais importante que o indivíduo; e por último, após
uma longa discussão teórica sobre imitação e interação social, a educação
física é tida como capaz de contribuir para que se atinjam determinados
comportamentos e resultados e que estes devem ser obtidos através da
consciência do próprio resultado. Nair foi a primeira mulher a ocupar
uma posição na Divisão de Ensino Superior do Ministério da Educação,
possui um vasto currículo, sendo a maior parte voltado para o ensino
superior. Formou-se em Pedagogia pela Universidade do Brasil, dou-
torou-se em Administração Escolar pela Universidade do Paraná e foi
professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro
do Conselho Nacional de Educação, esteve envolvida nos processos de
federalização das universidades e do reconhecimento e validação de ins-
tituições de ensino superior. Possui dezenas de publicações e livros.515
A Fundação Educacional Além Paraíba, em sua cidade natal, nomeou o
Instituto Superior de Educação de Professora Nair Fortes Abu-Mehry
em homenagem à educadora.
“Educação nacionalista no Distrito Federal”,516 escrito pela professo-
ra do Departamento de Educação Nacionalista da Prefeitura do Distrito
Federal (DEN), Neusa Feital (Wöhrle)517, é o tipo de produção intelec-
tual que expressa claramente a ideologia estadonovista. Segundo Neusa,
a educação não é mais função apenas da escola e da família; agora a igreja
e os meios de comunicação igualmente exercem influência sobre o de-
senvolvimento dos jovens – logo, há que se ter cuidado para que seja uma
educação voltada ao amor à pátria. Diante disso foi criado o DEN, cujos
objetivos consistiam em criar serviços (educação cívica, física, artística e

515 Senra (2019, on-line).


516 CP (1941, n. 3, p. 141-146).
517 Foram encontradas poucas informações a respeito da autora. Na Biblioteca Nacional
do Chile constam duas cartas endereçadas à Gabriela Mistral, Cônsul do Chile no Rio de
Janeiro, convidando-a e agradecendo por ter aceitado participar do programa no Paname-
ricanismo, datadas de abril de 1944. Neusa assina como Diretora de Programa da Associa-
ção Cristã Feminina (YWCA). Disponível em: <http://www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/
visor/BND:142336>. Acesso em: 31 mar 2021.

337
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

musical) e centros que desenvolveriam atividades culturais e desportivas


visando o engrandecimento da nação.
Os textos de Noemí Alcântara Bonfim de Andrade são também
reflexos explícitos do que pensam os ideólogos do EN. Inseridos na pers-
pectiva da educação e da saúde higienista, “Pesquisas sobre o índice de
nutrição dos escolares do 3º distrito médico-pedagógico do DF”,518 em
coautoria com Miguel Elias Abu-Merhy, e “A higiene alimentar do ser-
viço social das escolas”519 têm nas crianças o foco central de seus traba-
lhos. Especificamente, a pobreza de suas famílias, a desnutrição, os altos
índices de doenças, falta de higiene e moradias insalubres; a tônica dos
seus artigos é a eugenia. As informações sobre a vida e carreira de Noemí
são em função de outras pessoas, ora do marido, o fundador da Cultura
Política, ora do filho, o ator Roberto Bonfim.520 No perfil deste no site da
emissora Globo, consta que Noemí era professora, enfermeira e atriz.521
Em seus textos não foi apresentada e nem houve indicação de sua afiliação
institucional. Contudo, a respeito do conteúdo dos seus trabalhos, supõe-
-se que tenha desenvolvido atividades nas áreas da educação e saúde.
Não foram achadas referências em relação a Ruth Costa Rodri-
gues. Segundo a CP, a autora pertencia à Divisão de Ensino Primário
do Ministério da Educação; pelo cargo, teor do texto e dos autores por
ela citados, pressupõe-se que era professora. “Um – com o esforço edu-
cacional”522 aborda basicamente metodologia de ensino com ênfase em
Pestalozzi. Ruth desenvolve a necessidade de união entre dedicação, me-
todologia de ensino e sensibilidade do professor. A ação pedagógica, isto
é, a docência, deve ser encarada como uma atividade de “amor à huma-
nidade, para melhorá-la e salvá-la da ruína moral”.523 Para tanto, o pro-

518 CP (1942, n. 11, p. 65-80).


519 CP (1942, n. 13, p. 23-29).
520 Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (on-line).
521 Memória Globo (on-line).
522 CP (1944, n. 36, p. 187-189).
523 CP (1944, n. 36, p. 188).

338
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

fessor deve estar munido de instrumental teórico-metodológico e estar


ciente do tipo de cidadão e de que nação se quer criar.
Os textos da professora, crítica literária e pedagoga Virgínia Côr-
tes de Lacerda (1903-1959) possuem caráter distintos. Enquanto “O
conceito de unidade didática e o ensino das línguas: contribuição para o
estudo da reforma Capanema”524 é uma discussão técnica de como deve
ser a organização dos conteúdos em tornos de unidades didáticas maiores
e menores, “O humanismo e o sentido unitário da vida: contribuição
para o estudo da reforma Capanema"525 possui teor filosófico. A escrita
desenvolve-se em relação ao conceito de humanismo e sua relação com
a educação, que deve ser integral e unitária: “pátria, família e humani-
dade”. Foi professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal, fundou a cadei-
ra de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), escreveu livros em coautoria sobre Rui Barbosa e foi umas das
organizadoras da exposição sobre Rui Barbosa em Haia, 1957. Em 1993,
foi fundado o Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda no Instituto
de Letras da UERJ.526

ANALISANDO, MAS NÃO FINALIZANDO

Conforme constatado ao longo deste trabalho, sabe-se que nos 33


textos encontram-se elementos que compõem a estrutura do Estado
Novo. Ressalto que, das 14 autoras, nove são professoras, podendo che-
gar a 11, visto que não encontrei dados que confirmassem que Dilke e
Ruth tenham sido docentes; contudo, as duas exerceram atividades no
Ministério da Educação e o tema do artigo de Ruth pressupõe que o
seja. Beatriz, Lucien e Maria Portugal possuem assuntos distintos, mas os
escritos da última são relativos à cultura brasileira.
Beatriz, ao explicar e defender as funções do DASP perante a popu-
lação, esclarece o que é a administração pública, ou seja, a atuação do go-

524 CP (1943, n. 29, p. 41-49).


525 CP (1944, n. 38, p. 148-152).
526 Instituto de Letras da UERJ (on-line).

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

verno na vida nacional, saúde, infraestrutura, educação etc. Simultanea-


mente, valoriza e legitima o próprio Estado, pois é quem executa as ações
necessárias para o bem-estar da população. Por consequência, expõe o
caráter centralizador e paternalista do regime.
Os dois textos de Dilke sobre seu avô relacionam-se com os três de
Maria Portugal, porque abordam os povos originários e falam de uma
origem privilegiada de algumas etnias. Além disso, aproximam os povos
amazônicos do restante do Brasil ao trazer o princípio da “incorpora-
ção”, ou seja, a pacificação dos crichanás, do avô de Dilke, retrata a inte-
gração de fato, e Maria Portugal, ao considerar a arte marajoara como
a primeira expressão da arte decorativa do país, inclui os indígenas na
comunidade nacional, pois a cerâmica pertence à nação, e não apenas à
região. É também uma valorização do que é brasileiro. Esse destaque do
que é nacional é uma característica do romântico texto de Maria Estela,
que engrandece natureza, o folclore e a cultura das gentes do interior
com seu ritmo próprio.
Yolanda e Júlia são professoras, mas seus textos nacionalistas versam
sobre integração nacional e potencial de desenvolvimento econômico das
diferentes regiões do país. Enquanto a primeira evidencia a ideia de mo-
dernização e industrialização, a outra acentua o potencial da exploração
territorial, reflexo de sua formação em geografia. Para ambas, o Estado é
o promotor do progresso; as ações governamentais no incentivo, ora da
aviação brasileira, ora na marcha para oeste e na colonização, são enalte-
cidas, e Getúlio é apontado como a figura central nesse processo.
Assim como as autoras acima, porém, detalhados e explícitos, a jor-
nalista francesa traz nacionalismo, modernização e industrialização. A
valorização do que é nacional é apresentada no potencial da indústria,
tanto na estrutura física, como na qualidade da matéria-prima, da quali-
ficação da mão de obra e da persistência do empresariado. Lucie recorre
ao sentido de um todo nacional ao mencionar que as indústrias perten-
cem ao país e que todos contribuem para o desenvolvimento do Brasil ao
comprarem os produtos nacionais.
Como já mencionado, educação e saúde são conjuntamente proble-
ma e solução para o EN, e os textos de Mariana e Noemí mostram isso de

340
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

forma categórica. A criança é objeto de interesse do Executivo, pois será


o “homem novo”: branco, sadio, portador de sentimentos nobres como a
estima pela família, pelo labor e o senso de que o bem-estar da nação deve
sobrepor-se ao interesse pessoal. Após constatar as péssimas condições de
vida das crianças, as autoras apontam como resposta a interferência direta
do governo na vida dos infantes e a assistência social como um dos cami-
nhos para assegurar o desenvolvimento físico, mental e intelectual apro-
priados para seu crescimento. Surgem aqui as questões da centralização,
da educação eugênica e até mesmo do autoritarismo, pois é o controle do
Estado sobre o modo de como os pais têm que cuidar dos próprios filhos.
O artigo de Neusa é outro que contribui com a regulação direta do
governo na vida da sociedade, sendo o objeto de controle o tempo livre
do cidadão, principalmente, da camada trabalhadora. Desse modo, a re-
creação, a fruição artística, os jogos e exercícios físicos estão sob comando
do Estado, que escolhe o que o cidadão deve desfrutar – no caso, a valo-
rização das tradições nacionais, dos grandes vultos, da música folclórica
e do cuidado com o corpo. Ao operar nesse sistema através de um órgão
público (DEN) criado especialmente para tal fim, a folga e os momentos
de lazer são cooptados pelo Estado e usados como instrumentos de cons-
trução do projeto estadonovista.
Virgínia e Ruth discutem metodologia de ensino exaltando a educa-
ção e a ação do professor, tanto sob perspectiva técnica quanto filosófica.
Sob o olhar do EN, o humanismo é a concepção do bem comum acima
do individual e a escola o lugar ideal para cultivá-lo. Nessa direção, in-
serem-se também os textos de Nair, que exemplifica isso ao utilizar as
disciplinas de economia doméstica e educação física, e os termos empatia
e solidariedade como modelo prático de como desenvolver o sentimento
de coletividade.
Mercedes era defensora do EN e usa todo o seu intelecto para aclamar
o regime através da crítica ao modelo liberal, tanto dos tempos do Impé-
rio como da República até o golpe de 37. Ao falar da história colonial do
Brasil, valoriza a história nacional; ao mostrar o empenho e esforço do co-
lonizador, ressalta algumas personagens e o potencial de exploração do ter-
ritório. Elementos como o culto ao presidente, nacionalismo, centralização

341
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

e autoritarismo são visíveis ao elogiar Vargas, figura corajosa que assumiu a


tarefa de colocar o país no rumo certo, e só ele e um regime forte como EN
são capazes de fazê-lo. As ideologias da mestiçagem, integração e identida-
de nacional aparecem quando aborda a escravização no período colonial.
Segundo Mercedes, o regime servil foi algo abominável, mas imprescindí-
vel, pois sem ele a colonização não se teria efetivado, nem haveria a genética
africana no povo brasileiro. É possível localizar nos artigos de Mercedes
muitas outras características do EN, porém, essas são mais recorrentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de intelectualidade feminina supõe que a escrita e a pro-


dução de conhecimento são intrínsecas à condição de mulher, ao seu pa-
pel na sociedade, que ocupa ou quer ocupar. Sabendo que o esperado e
reservado a elas era o privado ou o magistério, este realmente serviu de
caminho para que muitas das autoras se tornassem conhecidas e respeita-
das nos meios intelectuais da época. Reflexo disso é terem sido escolhidas
para colaborar na CP e contribuir na construção do ideal de nação dos
teóricos do EN.
Doze textos, abordaram, em geral, temas relativos ao mundo femini-
no da época, como o cuidado com as crianças e o lar, envolvendo aspectos
da educação formal, higiene e saúde. Sete relacionaram-se diretamen-
te às ações do governo do ponto de vista da administração e do desen-
volvimento econômico do país e sete aproximaram-se das temáticas da
identidade brasileira. Os sete restantes trataram da história do Brasil, e os
períodos colonial e republicano servem como base para criticar o libera-
lismo e enaltecer o EN.
Dos 33 artigos, apenas um considerou exclusivamente a mulher
como tema de estudo: aquele que mostrava a importância da inclusão da
disciplina de economia doméstica no currículo nacional. Chama atenção
a proposta de Nair, a qual os rapazes também deveriam assistir às aulas,
visto que a casa é responsabilidade do casal, não em termos de divisão de
tarefas, mas para ajudar a esposa a administrá-la, a fim de compreender
o funcionamento e as necessidades de manutenção do lar. Sublinha-se a

342
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função confiada à mulher de fiadora do bem-estar e progresso do país e


da humanidade ao cuidar adequadamente da família.
Evitou-se julgar o teor dos textos, e mesmo sendo difícil não tecer
críticas, é fundamental considerar que os conteúdos refletem um momento
histórico específico. Além disso, não era o objetivo deste trabalho. O que
se pretendeu foi pensar as mulheres como produtoras de conhecimento,
partícipes de um movimento amplo, de criação de um projeto de país, em
uma época em que esse tipo de atuação lhes era praticamente negado.
Por fim, vários elementos passíveis de análise, assim como o aprofun-
damento de outros ficaram de fora. Apesar disso, assumi o risco de poder
simplificar a produção intelectual das autoras, mas, conforme mencionei,
foi uma escolha deliberada, visando dar continuidade à pesquisa, tanto
por mim como por outros interessados, que agora possuem referências
para estudos futuros.

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346
ESTUDOS FEMINISTAS, DIREITOS
HUMANOS E EDUCAÇÃO: RELATO
DE EXPERIÊNCIA DE/EM CURSO NA
PANDEMIA DE COVID-19 (2020)
Katharine Trajano
Emanuelle Ferreira
Janaína Guimarães

INTRODUÇÃO

Há um ano, em maio de 2020, ainda não conseguíamos compreen-


der a dimensão da pandemia do coronavírus (COVID-19) que crescia
no país. Já sentíamos, entrentato, falta de um dos nossos espaços de rei-
vindicação, lutas e aconchego: as ruas. Para nós, oriundas dos campos
da História e da Educação, a sala de aula era mais um desses lugares
onde podíamos pautar questões caras à nossa formação enquanto Bra-
sil, ou melhor, as ambivalências desse processo. Essa sala, sempre um
território de disputa(s), era também onde denunciávamos as cotidianas
violações aos Direitos Humanos contra a normatização e a justificativa
de genocídios, etnocídios, epistemicídios e demais violências de nossa
“herança” colonial.
Educar era e é, sobretudo, rasgar o manto de romantização que ainda
persiste. O olho no olho para esse debate e a construção compartilhada de
saberes foram impactados – mas aqui, falaremos sobre uma das maneiras
que encontramos de resistir e continuar em curso.

347
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

A angústia de estarmos trancadas unia-se à sensação de não estarmos


fazendo o suficiente pelas pautas que defendemos e pela educação libertá-
ria que almejamos. Por essa razão, no período comentado, começamos a
estruturar e selecionar os textos para um curso extensionista que versaria
sobre Estudos Feministas, Direitos Humanos e Educação – este, inclusi-
ve, foi o título escolhido para nossa atividade.
Enquanto terceira pessoa, cabe apresentar-nos: desde e em Pernam-
buco, nosso trio é formado por Janaina Guimarães (professora do curso
de História da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte),
Katharine Trajano (egressa da mesma instituição e mestranda em His-
tória pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, bolsista Capes)
e Emanuelle Ferreira (graduanda em História pela Universidade de Per-
nambuco e vinculado ao PIBID desta).
A proposta inicial era simples: um curso de extensão com encontros
semanais de duas horas de duração com textos pré-selecionados para de-
bate. Uma oportunidade de continuar no remoto o que fazíamos quando
o calor das pessoas era sentido fora de nossas telas de vidro. Os desdobra-
mentos a partir dessa ideia inicial serão comentados nos pontos a seguir,
onde expomos um pouco do que foi trabalhado e os retornos que tivemos
das pessoas cursistas. Os dados e informações aqui elencados dizem res-
peito às nossas primeiras observações.

1. LOCALIZANDO O CURSO ESTUDOS FEMINISTAS,


DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO

Para a realização desse curso, contamos com os apoios da Pró-Rei-


toria de Extensão da Universidade de Pernambuco (UPE) e do Núcleo
de Diversidade e Identidade Social (NDIS/UPE), integrado por Janaína e
através do qual se deram as certificações A atividade foi totalmente volun-
tária, não recebemos nenhum pagamento ou mesmo subsídio da Univer-
sidade ou de qualquer organização para internet, material de iluminação
e áudio. Fizemos esse corre sozinhas: o curso foi carregado a seis mãos, por
cada internet que caía, presenças adiadas ou que perderam conexão no
meio da fala; dividimo-nos entre quem comandaria o chat, acompanhava

348
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os grupos no WhatsApp, auxiliaria no streaming e disponibilizaria a fami-


gerada ata de presença ao final.
As trocas foram intensas, assim como a procura. Propomo-nos a fa-
zer algo para um público em torno de 70 pessoas utilizando a ferramenta
Google Meet, disponibilizado pelo G Suite for Education, programa do
Google. Contudo, na primeira turma, tivemos mais de 79 inscrições e
vários pedidos para mais vagas, o que nos fez abrir uma segunda turma
que seria adicionada à primeira. Não esperávamos que mais 265 pessoas
se inscrevessem, somando um total de 344 inscritas.527

Figura 1. Autodeclaração de cor/raça

Amarela
3.2%
Prefiro não responder
3.2% Branco
29.7%

Preto
25.8%

Pardo
36.8%

Fonte: Dados da pesquisa elaborada pelas autoras.

Ao final, enviamos às participantes um formulário de avaliação do


curso, e contabilizamos 155 respostas. Tivemos um panorama de como
se autodeclararam em termos de cor/raça (utilizando categorias do IBGE)
e a faixa etária. As idades destas variam entre 20-49 anos, e nas identi-
ficações étnico-raciais encontram-se amarelas (3,2%), pardas (36,8%),

527 Adotamos uma linguagem neutra de gênero para a escrita deste trabalho, evitando
artigos ou pronomes que determinem gêneros binários. Nesta e nas generalizações que se
prosseguirão, estamos nos referindo às pessoas inscritas, nossas colaboradoras.

349
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pretas (25,8%) ou brancas (29,7%). Outras (3,2%) preferiram não res-


ponder. Observamos esses dados na figura 1.
Além disso, um ponto importante a ser ressaltado é quanto aos ende-
reços diversos dentro e fora do Brasil: tivemos participantes de São Paulo,
Minas Gerais, Piauí, Ceará, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Rio Grande
do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Nor-
te, Distrito Federal, Paraná, Goiás, Seattle (Estados Unidos da América),
Lisboa e Coimbra (Portugal).
Em função do grande número de inscritas, repensamos como se da-
ria nossa exposição e resolvemos utilizar a plataforma do YouTube, no
canal do História e Gênero, grupo que organizamos/participamos. Pro-
pomos listas de discussões àquelas que se interessassem em participar do
streaming e debater em live (ao vivo) conosco. Além disso, a cada semana
convidamos uma pessoa externa (formações diversas) para se somar à dis-
cussão, propondo novos olhares para os textos e um compromisso para
com o grupo.
A cada segunda-feira, durante quase quatro meses, nosso curso
funcionou porque encontramos outras 300 pessoas que não queriam
calar durante a pandemia e que também nos encontraram. Uma pan-
demia que, naquele momento, já estava mal-conduzida pelo presiden-
te Bolsonaro – na tentativa de desviar o foco das questões sanitárias
urgentes, dizia que retomaria projetos contra a “ideologia de gênero”
nas escolas, mesmo que estes tenham sido considerados inconstitu-
cionais pelo Supremo Tribunal Federal em agosto de 2020. O único
projeto de interesse ali era o seu e o de seu clã, visando a desmontes e
atendendo à agenda neoliberal.
O primeiro encontro, ainda na plataforma Google Meet, já nos
deixou cientes de que o desejo de sair da inércia, de voltar a debater
e a construir coletivamente era enorme. Fizemos o primeiro grupo
de WhatsApp, no qual iniciativas feministas e campanhas do mundo
todo se misturavam a textos feministas, e vivenciávamos trocas co-
tidianas, ainda que os encontros fossem apenas semanais. Ao longo
das semanas, algumas alunas participaram mais, alguns sotaques se
destacaram e tivemos, enfim, a dimensão do curso. As temáticas não

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precisavam de consenso – como por exemplo, no encontro em que


discutimos epistemologia feminista e o papel da universidade na luta
feminista. Nesse encontro, as debatedoras discordaram argumentati-
vamente, gerando ainda mais interesse de cursistas, como observado
na participação intensa via chat.
Algumas reuniões de fato nos rasgavam. Era duro ler, em meio a pande-
mia de Covid-19 – um vírus imigrante e naquele momento ainda sem vacina
– sobre como se constituía uma política de morte, tal qual Mbembe e Bento
nos orientam.528 Todavia, era uma forma de tornar conhecido um conceito,
nomeando uma violência que é parte fundante de nossa sociedade. Nesse
dia, a sensação de impotência tomou a todas nós e, sim, saímos pesadas da-
quele encontro. Mas, como não falar também de todos os outros dias em que
saímos fortalecidas? Cada dia do curso também era um estímulo para isso.

2. ACOLHENDO E DEBATENDO FEEDBACKS

Comentamos, ainda, sobre alguns dos feedbacks que recebemos so-


bre o curso. Dentre as respostas ao formulário de avaliação, alguns
tópicos se repetiram. A pergunta avaliada aqui, brevemente, é a que
diz respeito às três coisas do curso que mais tinham sido benéficas às
participantes.
Grosso modo, podemos destacar as referências como um dos pontos
mais elencados pelas entrevistadas. Entre as obras presentes no pro-
grama do curso, per si, obtiveram destaque entre as respondentes: a)
Maria Lugones, “Rumo a um feminismo descolonial”;529 b) Jaqueline
Gomes de Jesus, “Transfeminismo: teorias e práticas”;530 c) Bereni-
ce Bento, “Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação? um
comentário genealógico”;531 d) Achille Mbembe, “Necropolítica”;532

528 Mbembe (2016) e Bento (2018).


529 Lugones (2014).
530 Jesus (2014).
531 Bento (2018).
532 Mbembe (2016).

351
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

e e) Evelyn Fox Keller, “Qual foi o impacto do feminismo na ciên-


cia?”.533
A emergência desses textos e temas condiz com o destaque que es-
tes têm recebido nos últimos anos – sendo por meio dos corpos que ha-
ckeiam e desestabilizam a invenção moderna de escolarização que mol-
da nossas instituições de ensino e o próprio processo educativo, já há
muito saturado534; aos trabalhos e esforços realizados por tais corpos na
Academia, pelos movimentos sociais, pela mobilização em compreen-
der as ligações socioculturais e históricas implicadas nessas temáticas e
seus desdobramentos em nosso cotidiano em prol de justiça social. Sa-
lientamos que, enquanto referencial, estavam não apenas a bibliografia
utilizada e debatida entre os quase quatro meses de duração do curso,
mas sua junção com outros materiais – para além do textual-teórico –
que surgiam durante as sessões.
Optamos – dado o inesperado número de inscritas –, por utilizar a
plataforma do Youtube para as atividades e realizá-las de forma síncro-
na. Sob mediação, os comentários no chat eram exibidos na tela prin-
cipal, onde as professoras, convidadas e debatedoras da própria turma,
dialogavam semanalmente sobre uma temática diferente. As inscrições
para participação nas aulas ao vivo estavam abertas àquelas que quisessem
se voluntariar por interesse, domínio e proximidade ao tema e/ou obra/
autoria. A partir daí, graças à pluralidade da turma, tínhamos entre as
recomendações obras literárias, audiovisuais, também podcasts, músicas,
organizações sociais, ONGs, e até mesmo oportunidades de trabalho e
convites para eventos.
Essa interação é o segundo item de maior relevância apresentado e se
dá pelo fato de o curso ser on-line, oportunizando trocas em e a partir das
redes. Além das aulas exibidas no YouTube do Grupo História e Gênero

533 Keller (2006).


534 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. Por um ensino que deforme: o docente na pós -mo-
dernidade. In: PINHEIRO, Á. ; PELEGRINI, S. (Orgs.). Tempo, Memória e Patrimônio Cultural.
Teresina: EDUFPI, 2010. Disponível em: http://www.cnslpb.com.br/arquivosdoc/MATPROF.
pdf. Acesso em: 15 maio. 2021.

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(UPE), tínhamos grupos noutra rede social, o WhatsApp, fundamental


para dar suporte às cursistas, oferecendo, assim, um espaço onde as par-
tilhas e discussões continuavam ao longo das semanas. Observamos ali
um espaço de aprendizagem e sociabilidade, comunicação mais próxima,
afetuosa e de mobilização.
Tal observação estava presente também nos relatos recebidos, des-
tacando a possibilidade de trocar com pessoas fora dos círculos sociais
de cada uma, estabelecer uma rotina durante a pandemia (já que as aulas
tinham dia e horário fixos), retornar aos estudos para algumas e potencia-
lizar trabalhos em curso tanto no âmbito acadêmico, como profissional
e pessoal.
Dentre os desdobramentos indicados, estão a motivação à reflexão
sobre práticas educativas e o uso político do conhecimento, o impacto
em monografias, dissertações e aulas (no caso de docentes), mas so-
bretudo sua função como complementaridade e/ou apresentação desses
temas aos que tiveram pouco ou nenhum acesso a esse tipo de discussão
em suas formações.
Reiteramos que, enquanto formação pensada na tríade pesquisa-
-ensino-extensão, foi de suma importância para nós democratizar algu-
mas discussões fundamentais ao campo feminista dos Direitos Humanos
e da Educação, ainda que de forma mais introdutória. Essa empreitada
só foi possível com o fôlego da organização, das inscritas e das figuras
especialistas convidadas – integrantes do Movimento Negro, do Mo-
vimento por Direitos LGBTI+, da União de Mulheres do Brasil, do
Sindicato das Empregadas Domésticas, assim como professoras univer-
sitárias e pesquisadoras dos estados de Pernambuco, Piauí e São Pau-
lo535. Indagamos, no formulário avaliativo, o nível de satisfação quanto
às vivências durante o curso.

535 Sendo estas, respectivamente, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFR-


PE), Universidade de Pernambuco (UPE) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da
Universidade Federal do Piauí (UFPI) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

353
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Figura 2. Nível de satisfação com a metodologia/exposição das temáticas


Neutro
3.9%
Insatisfeito
2.6%

Satisfeito
93.5%

Fonte: Dados da pesquisa elaborada pelas autoras.

No levantamento, 96,1% das participantes se sentiram satisfeitas de-


pois de completar o curso e 2,6% preferiram não responder. Sobre a sa-
tisfação quanto à metodologia e exposição dos conteúdos, 93,5% se mos-
traram satisfeitas, 2,6% se mostraram insatisfeitos e 3,9% se mantiveram
neutros, como mostra a figura 2.
Importante frisar a efetividade do curso, pois em meio a tantos ou-
tros, a busca e permanência demonstram o quão necessárias são as te-
máticas levantadas, pois tocam o cotidiano de cada participante, ou seja,
diversas violências que impactam na materialidade da vida dessas pessoas.
Como previsto no programa do curso, comentários desrespeitosos e de
ódio a categorias protegidas (envolvendo identidade, raça, etnia, religião,
gênero, orientação sexual, deficiência e demais marcadores) seriam penali-
zados com o desligamento das atividades e possível denúncia às autoridades.
No espaço da rede social de mensagens instantâneas, na segunda semana
do curso, um aluno foi desligado depois de fazer comentários misóginos
para outra aluna. Na plataforma do Youtube, ao menos duas sessões foram
tomadas com comentários de teor misógino feitos por pessoas externas e
que, rapidamente, por conta da mediação, foram bloqueadas e não causa-
ram maiores infortúnios ao desenvolvimento das atividades.
A oportunidade de participar de um curso inteiramente remoto, gra-
tuito e com certificação foi o terceiro ponto de destaque entre a comu-

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nidade do curso. Nas respostas colhidas, além do que já elencamos, estão


também a disponibilidade de docentes/debatedoras para a resolução de
dúvidas, a pluralidade de autorias brasileiras e latino-americanas, o diálo-
go com outros campos de saber, o material proposto e a linguagem aces-
sível, assim como o horário fixo. Em contrapartida, foram sugeridas mais
atividades assíncronas, uma carga horária maior para o aprofundamento
de algumas temáticas, o uso de outras plataformas mais interativas e a
disponibilidade de gravação das aulas. Ressaltamos que, após os ataques,
resolvemos limitar a visualização do conteúdo no YouTube.
Destacamos que esses ataques também aconteceram em outros espa-
ços de discussão que centralizaram as temáticas sociopolíticas, desde pers-
pectivas raciais, étnicas, ademais de gênero, sexualidades, políticas públi-
cas, educação, meio ambiente e outros temas relacionados à luta social.
Tais cerceamentos foram operados por grupos que se ligam, na maioria
dos casos, às pautas Bolsonaristas e da extrema-direita, recebendo o título
de “zoombombing”.536

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inevitável pensarmos que o uso da tecnologia atravessa há bastante


o debate de ensino-aprendizagem, podendo esta ser incluída nos pro-
cessos de softwarização de nossa existência e interligando-se à produção-
-difusão de conhecimento e da colonialidade, como nos adverte Achille
Mbembe.537 Por essa razão, segundo o autor, deve ser pensada e utilizada
de forma estratégica no terreno de disputas implicadas na descolonização
e na melhoria da vida de todas entidades vivas na Terra – sendo, assim,
uma crítica às visões antropocenas que inclusive estão em debate na área
de estudo das propositoras deste curso – o campo da História538.

536 Ver: GODOY, M. Lives de Acadêmicos viram alvo de hackers. O estado de São Paulo -
Estadão, São Paulo, 13 de Setembro de 2020. Seção Política. Disponível em: https://politica.
estadao.com.br/noticias/geral,lives-de-academicos-viram-alvo-de-hackers,70003435480.
Acesso em: 15 maio 2021.
537 Mbembe (2019).
538 A esse respeito, ver: FERREIRA, N. Os desafios do tempo presente e a colonialidade da

355
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Mesmo que as contribuições do curso tenham tocado em alguns des-


ses vieses, é bastante caro pensar que seu desenvolvimento foi bastante
prejudicado pelo mesmo fator que o tornou possível: o uso da internet.
As dificuldades de acesso à rede perpassaram inúmeros comentários das
cursistas, sendo inclusive um problema que nos aplacou enquanto pro-
positoras.
Em trabalhos recentemente publicados sobre a questão do ensino
em meio à pandemia de Covid-19 em nosso estado, Pernambuco, o
lastro das desigualdades sociais escancara-se também pela falta de in-
fraestrutura dos espaços de ensino, o despreparo/indisponibilidade de
docentes-discentes à integração das tecnologias digitais de informação
e comunicação (TDIC) nas práticas pedagógicas – ainda maiores se
considerarmos as diferenças em instituições públicas e privadas.539 A
inclusão e a segurança digital são o cerne do debate, juntamente com
a mediação cultural que as redes promovem, considerando os inúme-
ros desdobramentos e desafios impostos no contexto da pandemia em
território nacional.
A junção dos temas Estudos Feministas, Direitos Humanos e
Educação advém de nossas experiências, pesquisas e de nossas lutas,
enquanto e em prol de pessoas racializadas, generificadas, historica-
mente violentadas por uma colonialidade que se quer ocultar por trás
da ideia do universal. Os Direitos Humanos não são naturais, mas
construídos historicamente,540 assim como a condição de humano é
mutável e obedece a hierarquias de poder da mesma maneira. Uma
abordagem decolonial, como a que buscamos ao longo da atividade,
defende que os caminhos para o reconhecimento dos direitos são dia-
lógicos, construídos ativamente, livres das noções de tradição colonial
de humanidade, oriundas do norte global.
Como propõe Herrera Flores,541 os Direitos Humanos precisam ser
pensados de acordo com as práticas sociais existentes, por meio de ações

natureza. Fronteiras: Revista Catarinense de História, n. 36, p. 69-90, 2020.


539 Leite, Lima & Carvalho (2020).
540 Bobbio (2004).
541 Herrera Flores (2005).

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para contribuir com a mobilização dos povos em situação de subalter-


nidade. E entre essas ações destaca-se a Educação – sobretudo sem viés
hierárquico e excludente. Posicionamo-nos por uma relação de ensino
que não se cale diante dos retrocessos nas diversas áreas e não corrobore
qualquer política que leve sujeitos à morte pela diferença, mas compreen-
dendo como esta se constrói e se perpetua há séculos.
O curso, então, buscou funcionar como uma ponte – entre alguns
conceitos, pessoas, organizações e instituições sociais. Mobilizando-nos
em rede, mobilizamos também a discussão de temáticas caras e urgentes,
ainda que sob as inúmeras limitações já expostas aqui e sobre as quais não
queremos e não iremos romantizar – acesso a um computador/aparelho
celular, à internet, aos conhecimentos básicos para educação remota e a
infraestrutura, incluindo o nosso trabalho não remunerado etc. Enten-
demos as iniciativas e os desdobramentos feministas e pela descoloniza-
ção como ferramentas potentes contra a agenda neoliberal observada na
América Latina, abertamente antidemocrática e neocolonial (mercanti-
lizada por diversos empresários) que reverbera nas políticas públicas, nas
campanhas eleitorais e na constante responsabilização de sujeitos “pelos
sucessos e fracassos da Educação”.542
E é por este mesmo motivo que tais discussões não devem ser cons-
truídas de forma precária, tampouco atingir um restrito número de
pessoas. É necessário que essas redes se multipliquem, pois há, como
apresentamos brevemente, bastante interesse nos debates sociopolíticos
e culturais a partir do nosso contexto, dos saberes aqui construídos. As
atividades de ensino-pesquisa-extensão das Universidades, sobretudo
públicas, não foram apenas impactadas pela pandemia de Covid-19 –
somam-se aos desmontes ao campo da Educação observados com bas-
tante preocupação e mobilização social nos últimos anos.543 O capital
está em crise, assim como nossos próprios processos de escolarização. E
é sobre essas fissuras/ruínas que devemos construir e, principalmente,
nos fortalecer para alçar justiça social.

542 Klaus & Leandro (2020, p. 254).


543 Saviani (2020).

357
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

REFERÊNCIAS

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358
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SAVIANI, D. Crise estrutural, conjuntura nacional, coronavírus e edu-


cação – o desmonte da educação nacional. Santarém: Revista Exi-
tus, v. 10, n.1, 2020.

359
UM MANIFESTO
CHORUME
Leila Negalaize Lopes

“Ah, as mulheres brancas, falam em feminismos,


mas nem se dão conta como gostam de atropelar
o processo proposto pelas pretas”.

Audrey Lorde e Lélia Gonzalez, dissertaram bem esta minha frase desabafo.
Tenho pensado que nosso discurso de mulheres negras no movimento feminista parece
ser sempre o mesmo, porque os comportamentos das feministas brancas, por mais que algumas
tentem se solidarizar, entender, continuam sendo os mesmos, ou seja, atropelar as negras com
suas falas e, na maioria das vezes, taxando nossas pautas como “mimizentas” ou dizendo que
somos treteiras e sempre tentando nos colocar em nossos lugares, a senzala do movimento.

“Na medida em que nós negras e negros estamos na lata do lixo da sociedade brasileira,
pois assim determina a lógica da dominação…
o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações.
Exatamente porque temos sido faladas, infantilizadas…
que neste trabalho assumimos nossa própria fala.
Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.” (GONZALEZ, 1980)

Sim, porque é na senzala do movimento, onde temos que ficar concordando com
absurdos estudados nas academias em sua maioria teóricas seculares também brancas, algumas
distorcidas nas suas leituras, outras em suas escritas, mas não tão mais verdadeiras no que eram
suas realidades, assim, como é a realidade destas que aí estão agora.
O dito feminismo não nos pertence enquanto mulheres negras,
nossa forma de coletividade é diferente do que as feministas chamam de sororidade,
pois para nós negras que sobrevivemos e acreditamos na filosofia da e de vida chamada
Ubuntu, que também de alguma forma está transformada hoje no seio do movimento de
mulheres negras em uma palavra solta, distorcida pela colonização no nosso processo de agir e

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

pensar como mulheres negras construindo e disputando narrativas dentro do movimento


feminista,
é uma complexidade que nos afeta enquanto coletivas e indivíduos.

“É uma arrogância acadêmica particular supor qualquer discussão


sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas diferenças,
e sem uma contribuição significante das mulheres pobres,
negras e do terceiro mundo, e lésbicas.
E, ainda assim, estou aqui como uma feminista negra e lésbica,
tendo sido convidada a comentar no único painel nesta conferência
no qual dados sobre feministas negras e lésbicas são representados.
O que isto diz sobre a visão desta conferência é triste,
num país onde racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis.
Ler esta programação é presumir que
mulheres lésbicas e negras não têm nada a dizer
sobre existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio das mulheres,
o desenvolvimento da teoria feminista, ou heterossexualidade e poder.
E o que significa em termos do pessoal e do político
quando mesmo as duas mulheres negras que estão aqui presentes
foram literalmente encontradas na última hora?
O que significa
quando as ferramentas de um patriarcado racista
são usadas para examinar os frutos do mesmo patriarcado?
Significa que apenas
os perímetros mais estreitos de mudança são possíveis e admissíveis.”
(LORDE, 1979)

Geralmente, quando uma mulher negra contesta demais


um grupo misto esta é chamada de treteira e muitas negras se calam
para não perderem o “respeito”
se sujeitando a aceitar aquilo que ela propôs anteriormente
ou uma irmã propôs, ser absorvido por uma mulher branca
que sempre tem que ser a líder, apresentar com palavras

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diferenciadas e ações voltadas mais para a exploração científica na nossa comunidade,


do que foi realmente proposto pela mulher negra, que nada mais é:
Olhem continuamos na senzala inclusive no movimento feminista,
seja ele de qual vertente for,
vamos juntas buscar compreender melhor que nós
ulheres negras temos diferenças de Cultura, Classe e que
o racismo todos os dias nos mata,
vamos juntas tentar nos despir destas peles
e nos ver como mulheres que necessitam estar juntas e fortes
contra o racismo e rompermos com a ideologia do branqueamento que:

“reproduz e perpetua a crença de


que as classificações e os valores da cultura ocidental branca
são os únicos verdadeiros e universais.
Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca
comprova sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento,
de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos;
o desejo de embranquecer
(de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil)
é internalizado com a negação
da própria raça e cultura”
(GONZALEZ, 1988, p. 7)

Nos dias de hoje o próprio movimento negro, para alguns, está despedaçado e as mulheres
negras ativistas fragmentadas; mas enganam-se, ou tentam nesta narrativa da tal fragmetação,
omitir para não admitir que somos um povo e, portanto, diverso em pensamento e na busca de
ações que unifiquem nossa agenda comum, que é o combate ao RACISMO ESTRUTURAL.
Porém, nesta diversidade e humanidade, os egos estabelecidos de empoderamento estão muitas
que seguem o modelo feminista euro centrado, onde muitas ativistas negras sentem-se banidas
de qualquer aconchego para expressarem suas lutas e formas de lutar e de sobreviver, seja na
academia, seja nas favelas. E este é um debate interno do movimento de mulheres negras que
está sendo restabelecido, repactuado e principalmente,sendo reestruturado, vide a Marcha
Nacional das Mulheres Negras e o seu silenciamento pelo movimento Feminista.

365
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Por isto que:

“Promover a mera tolerância de diferença entre mulheres


é o reformismo mais nojento.
É uma total negação
da função criativa da diferença em nossas vidas.
A diferença não deve ser meramente tolerada,
mas vista como um fundo de polaridades necessárias
entre as quais nossa criatividade pode faiscar como uma dialética.
Apenas então a necessidade de interdependência se torna não ameaçadora.
Apenas dentro dessa interdependência de forças diferentes,
reconhecidas e iguais,
o poder de procurar novos meios de ser no mundo pode gerar,
assim como a coragem e o sustento
para agir onde não existem alvarás”
(LORDE, 1979)

Assim, parafraseando Fernanda Carneiro


“Nossos passos vêm de longe…”.
Muito já se falou, muito se fala, há muito se tenta dialogar
sobre estas diferenças
entre mulheres negras e mulheres brancas
deverem ter seus espaços de luta,
mas também que este espaço possa ser convergido numa luta só,
mas não avançamos,
pois, a solidariedade no movimento
para quando as mulheres negras tomam a frente do debate.
Faz-se o silêncio,
buscam-se acordos nos olhares para calá-las,
transformam suas falas em meras palavras rasas
e desconstituem toda sua dialética,
colocando-as no seu lugar,
aixando sua estima e dando o famoso
“tapinha nas costas”

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(hoje, em sua maioria, um financiamento para sua ONG ou coletivo)


e assim, seguimos,
vivendo das esmolas das grandes financiadoras,
geridas ou por machos brancos ou mulheres brancas.
Donativos aceitos,
porque senão,

não se faz o contraponto,


não se come, não se compram os livros
para contextualizar o próprio livro
destas mesmas mulheres brancas
que doam suas migalhas: o ciclo perpetua.
Há muito tenho buscado,
enquanto mulher, negra e lésbica,
romper com esta lógica,
já que como “louca”
nunca tive muita voz nestes espaços, a não ser quando a mesma fosse elevada,
o que me feria muito,
pois cada vez mais
me perpetuava no imaginário coletivo
como louca e quase acreditando nisto.
Romper com esta lógica dói,
porque faz a gente se desprender de nossos egos,
de nossa vontade de atuar por um mundo sem racismo,
machismo, homolesbitransfobia,
mas também,
nos traz suavidade e maturidade
para reaprender que podemos viver sem tudo isto,
que o mais importante é mantermos nossa ética e nosso processo de libertação,
sem estarmos subjugadas a ninguém,
a não ser a nós mesmas
e que nosso pão vem sempre com a força de nossa criatividade
e da herança que nossas ancestrais nos deixaram.

367
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Este legado é nosso,


ninguém nos tira
e podemos passá-los adiante
a quem quiser escutar, dialogar,
sem nos submeter a sermos pisoteadas em nosso âmago
em movimentos feministas que nos matam diariamente
por sufocar nossa voz, por terem em seu DNA, a colonização.

“Aquelas de nós
que estão fora do círculo da definição
desta sociedade de mulheres aceitáveis,
aquelas de nós
que foram forjadas no calvário da diferença
— aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas —
sabem que sobrevivência não é uma habilidade acadêmica.
É aprender como estar sozinha, impopular e às vezes injuriada,
e como criar causa comum com aquelas outras que se identificam
como fora das estruturas a fim de definir e buscar
um mundo no qual todas nós possamos florescer.
É aprender como pegar nossas diferenças e transformá-las em forças.
Pois as ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre.
Elas podem nos permitir temporariamente a ganhar dele em seu jogo,
mas elas nunca vão nos possibilitar a causar mudança genuína.
E este fato é somente
ameaçador
àquelas mulheres
que ainda definem a casa do mestre
como a única fonte de apoio delas”.
(LORDE, 1979)

368
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

Romper não é estar desatenta,


não é que perdemos a esperança,
não é não tentarmos diariamente um diálogo
e principalmente
não sermos solidárias em nossas diferenças.
Romper
é estar presente em todas as lutas contra a opressão,
é buscar nos respeitar diuturnamente,
é provocar a dialética mas
sem aceitar gritos ou argumentos
que ficam dizendo que sempre fazemos discursos vitimistas.
Não, não são discursos vitimistas,
são sim,
discursos seculares desde a colonização,
pois para nós, foram poucos os avanços, algumas tiveram avanços sociais,
porém não deixam de ser negras na hora do parto, no emprego, nas universidades,
na blitz, no restaurante, nas mesas acadêmicas, no metrô, no avião.
Continuamos mulheres negras,
sofrendo triplamente,
por sermos mulheres, negras, pobres e quando nos assumimos lésbicas,
temos que nos defrontar com uma luta árdua
para que nossa voz seja respeitada também pelas brancas lésbicas feministas
que, na realidade, estão a procura mesmo que inconsciente de uma negrinha boa de
cama. Não.
Não defendo o amor afrocentrado,
até porque acredito que o mesmo seja livre destas segmentações todas,
mas é importante se conseguirmos afrocentrar nossos sentimentos,
se não,
paciência,
lá vamos nós em nossas vidas particulares trocar nossas culturas,
porque até nas relações amorosas inter-raciais temos que dizer,
escuta amor, somos diferentes…
Não tô gritando em nossa DR,
é que falo auto, gesticulo muito, somos assim.

369
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Gostamos de estudar com o som alto, tomamos uma caipirinha no meio da dissertação e
sim, meu cabelo vai ficar crespo, trançado ou de dred
e vou usar esta calcinha furada porque é confortável.
Beijos.
Trocaremos, ok!
Mas não peça para que meu debate feminista seja igual ao teu em alguma reunião;
peraí, meu amor!

“Esta é uma ferramenta antiga e primária


de todos os opressores para manter pessoas oprimidas ocupadas
com as preocupações do mestre.
Agora nós ouvimos que é tarefa de mulheres negras educarem mulheres brancas
— em face de tremenda resistência —
sobre nossa existência, nossas diferenças,
nossos papéis relativos em nossa sobrevivência conjunta.
Isto é um desvio de energias
e uma repetição trágica de pensamento racista e patriarcal.”
(LORDE, 1979)

Portanto, feministas brancas e negras jabuticabas,


é preciso nos respeitar nas diferenças,
é preciso repensar nas mulheres que não se calam
por que vocês acreditam em deusas policêntricas feministas,
é preciso respeitar
e principalmente olhar as companheiras de gênero
com um olhar de mulher,
sim,
porque só porque sou feminista
ou lésbica feminista,
não poderei olhar uma mulher com o olhar de mulher?
Porque acredito que somos diferentes em nossa forma de aconchego,
porém, muitas perderam este jeito de acolher
e se deixar ser acolhida sem medo

370
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

do tapete lhe ser puxado


e esta prática masculinizada de fazer movimento
também nos fragmentou, nos endureceu
e sei que muitas vão fazer ativismo preocupadas
como irão retornar para suas casas,
sem dinheiro do passe, sem grana pro gás, sem grana pro caderno dos filhos e do aluguel,
algumas mais abastadas,
mas preocupadas com outras contas e de manter o padrão de vida até ali conquistados,
mas é

“na cotidianidade de nossos falares, gestos,


movimentos e modos de ser
que atuam de tal maneira
que deles nem temos consciência.”
(LORDE, 1979)

Finalizando este meu pensamento.


Temos ainda muito que avançar nesta pauta do respeito
às diferenças na luta por um mundo justo e igualitário.
Sofremos da síndrome da fragmentação
imposta pelo capitalismo e o neocapitalismo.
Vamos seguindo lutando pela mesma causa,
mas com discursos diferenciados e atitudes desconexas
com nós mesmas,
tornando esta luta contra
o machismo, o sexismo, o racismo, a LGBTTQIA+Fobias
e todas as violências correlatas mais doloridas ainda,
não conseguimos cicatrizar nossas feridas,
a batalha é longa e sofrida,
mas não está vencida, não podemos nos deixar vencer,
assim como não podemos aceitar enquanto mulheres negras que nos calem.
Que as feministas brancas não se culpem,
mas repensem como nos tratam no movimento.

371
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

Cabe a cada uma de nós transformar o caminho,


cabe a cada uma de nós, manter o respeito,
cabe no movimento feminista
o chorume
soltar a voz, pensar, organizar
e mostrar que cabe a todas nós restabelecermos
o lugar de fala da mulher negra no movimento feminista,
mesmo que esta palavra não nos pertença,
mas a luta sim!
Literalmente
vamos dar um gás e explodir em cada uma de nós
as amarras construídas em nosso eu,
para podermos de fato construirmos uma sociedade igualitária em direitos.
Hoje
mais do que nunca
é preciso que nos escutem
que apoiem nossas pautas
e elas serão as mesmas
até acabarmos com o racismo estrutural
que mata em todos os sentidos a população negra,
agora mais agravada com a necro política
adotada como plano de governo deste presidente corrupto e genocida,
que rifou a vida de toda a população brasileira,
mas que já sabíamos que a população negra seria o escudo
e as mulheres negras as primeiras a serem infectadas,
pois são a base da pirâmide que movimenta este país.
Pena que não nos ouviram em décadas,
mas agora, no meio deste caos,
queremos com a esperança
vencer o medo deste tempo obscuro que o país tem vivido
e esperamos estar sentadas nas mesas de negociação
para a reconstrução da democracia,
não mais como meras espectadoras,

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D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

mas com a real possibilidade de termos


algumas representações no alto escalão político e governamental
e isto só se dará se a luta antirracista tenha sido absorvida
pelos indivíduos e pelo movimento feminista
em um todo apoiando mulheres negras nos espaços de poder.

RESPEITEM AS MULHERES NEGRAS,


SEJAM DE ONDE E ONDE ELAS ESTIVEREM!

REFERÊNCIAS

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Mi-


meo, 1980.

___________. Por um feminismo afroatinoamericano. Mi-


meo,1988.

___________. Entrevista MNU Jornal, n. 19, maio-jul. 1991.

LORDE, Audre. Conferência realizada em 1979. Acesso em: (http://


arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/
180-artigos-de-genero/19778-mulheres-negras-as-ferramentas-
-do-mestre-nunca-irao-desmantelar-a-casa-do-mestre?fb_com-
ment_id=fbc_144656479070889_118922_144665202403350)

373
ENTREVISTA COM
LOLA ARONOVICH

( D O LO R E S A R O N O V I C H
AGUERO)
ENTREVISTA COM LOLA
ARONOVICH
Mônica Karawejczyk
Débora Karpowicz
Muriel Rodrigues de Freitas

Lola é professora universitária, blogueira, pedagoga e ativista feminista ar-


gentina, naturalizada brasileira. Desde 2008, publica o blog intitulado Escreva,
Lola, Escreva, no qual trata de temas como machismo, misoginia, homofobia e
racismo, com a média de 200 mil visualizações mensais. Desde 2010 é docente
da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde integra os quadros do Depar-
tamento de Estudos da Língua Inglesa, Suas Literaturas e Tradução. Pesquisa
sobre gênero, feminismo, cinema, literatura, ironia, crítica da mídia.
Palestra em universidades por todo o Brasil sobre temas como femi-
nismo, ativismo, direitos humanos, humor e censura, misoginia na inter-
net, violência doméstica, educação, literatura e gênero, assédio, cultura
do estupro etc. No início de outubro de 2015, foi alvo de uma campanha
de difamação digital, sofrendo constantes ataques desde então. Em 2021,
recebeu o título de cidadã cearense do governador do Ceará.
A entrevista foi enviada por e-mail pelas organizadoras em maio de
2021 e somente acrescentamos as notas explicativas ao texto.

1 - COMO VOCÊ SE “DESCOBRIU” FEMINISTA? E


AFINAL O QUE É SER FEMINISTA PARA VOCÊ HOJE?

Eu me considero feminista desde os oito anos de idade. Não sei


exatamente como foi essa descoberta. Tive o privilégio de ter pais

377
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

progressistas, que se incomodavam com as injustiças, e isso sempre me


influenciou. Na minha infância e juventude, escrevia uma espécie de
diário, e lá desenhava, fazia colagens, e expunha minhas ideias de que
as mulheres não são inferiores aos homens, que podemos fazer tudo
que quisermos, que merecemos ter direitos iguais. Me assumir femi-
nista tão cedo foi ótimo pra mim, porque quando cheguei à puberda-
de e passei a ouvir o que os inimigos do feminismo diziam sobre as
feministas, eu já sabia que era mentira. Afinal, eu era feminista e não
era nada daquilo! Hoje gosto muito da definição de bell hooks, que
diz que feminismo não é apenas uma luta contra a opressão de gênero,
mas contra todas as opressões.

2. VOCÊ CONSIDERA QUE SUA TRAJETÓRIA


COMO ACADÊMICA FOI IMPACTADA PELA SUA
MILITÂNCIA NO MOVIMENTO FEMINISTA OU SERIA
O CONTRÁRIO, A SUA MILITÂNCIA NO MOVIMENTO
É QUE IMPACTOU (E IMPACTA AINDA) NA SUA
TRAJETÓRIA COMO ACADÊMICA? COMO ESSE
ENVOLVIMENTO SE DEU?

Embora eu seja feminista desde criança, desde que me conheço


por gente, eu só me tornei uma feminista mais séria e dedicada quan-
do comecei o meu blog, em janeiro de 2008. Tanto que, na época que
iniciei o blog, eu estava em Detroit fazendo doutorado-sanduíche, e o
tema da minha tese – violência e a noção do uncanny (estranho e estra-
nhamente familiar) em cinco produções de Macbeth, de Shakespeare –
não tinha nada a ver com feminismo ou gênero. O tema da minha dis-
sertação de mestrado – a transposição de ironia do romance Lolita para
suas duas versões fílmicas –, também não. Em 2005, quando conversei
com meu orientador José Roberto O'Shea544 sobre o que gostaria de

544 Mestrado (2003-2005) em Inglês - Estudos Linguísticos e Literários (Conceito CAPES


5). Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil. Título: What Have They Done to
Lolita? The Transposition of Irony from Nabokov's Novel to Stanley Kubrick's and Adrian
Lyne's Film Versions. Ano de Obtenção: 2005. Doutorado (2005-2009) em Programa de
Pós-Graduação em Inglês e Literatura Correspondente. Universidade Federal de Santa Ca-

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pesquisar, ele propôs falar sobre as bruxas de Macbeth, mas eu não quis
(não tenho nenhum lado místico). Durante o doutorado, publiquei
um artigo feminista que analisava como grande parte do público culpa
Lady Macbeth pelos atos hediondos cometidos pelo marido, e tam-
bém apresentei trabalhos com temas feministas em congressos. Mas só
passei a efetivamente trabalhar com gênero quando comecei a dar aula
na UFC, em março de 2010. Nessa época, dois anos depois de ter ini-
ciado o blog, eu já me sentia mais preparada para lidar com feminismo
mais academicamente.

3. PODES EXPLANAR DE ONDE VEIO A INSPIRAÇÃO


PARA ESCREVER O BLOG “ESCREVA, LOLA, ESCREVA”
(UM DOS MAIORES BLOGS FEMINISTAS DO BRASIL,
NO AR DESDE 2008)? SUA LONGEVIDADE E SUA
PERSISTÊNCIA EM ESCREVER E SE POSICIONAR NAS
REDES SOCIAIS EM TEMAS DOS MAIS DIVERSOS E
MUITAS VEZES POLÊMICOS? O QUE TE MOBILIZA,
AFINAL, A ESCREVER SOBRE FEMINISMO?

Quando comecei o blog, em janeiro de 2008, não pensei nele como


algo necessariamente feminista545. Eu o imaginei como um blog pessoal,
tanto que tem o meu nome no título, uma referência ao filme cult Corra,
Lola, Corra546. Só que, como eu sempre fui feminista, imagino que quase
tudo que escrevo tenha um viés feminista. Eu escrevi crônicas de cinema
para o jornal catarinense A Notícia entre 1998 e 2011. E queria um espaço
na internet onde eu tivesse total liberdade editorial e pudesse publicar o
que eu quisesse. Treze anos on-line, que é o tempo do meu blog, é uma
eternidade em termos de internet. E acho que já tem alguns anos que
minha conta no Twitter, por exemplo, tornou-se mais popular que meu

tarina, UFSC, Brasil, com período sanduíche em Wayne State University (Orientador: Arthur
Marotti). Título: "Strange Images of death": Violence and the Uncanny in Five Productions
of Macbeth. Ano de obtenção: 2009.
545 Endereço do Blog: https://escrevalolaescreva.blogspot.com/
546 Filme alemão do ano de 1998, cujo título original é “Lola Rennt”. Direção e roteiro de
Tom Tykwer, elenco Franka Potente, Moritz Bleibtreu, Herbert Knaup.

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

blog. Meu perfil no Twitter tem mais de 160 mil seguidores. No blog, eu
parei de adotar um contador de visualizações há muitos anos. Mas supo-
nho que o auge do meu blog tenha sido em 2013. Os blogs infelizmente
foram perdendo sua importância, os comentários migraram para o Face-
book, o termo “textão” virou algo pejorativo. Mas eu persisto porque o
blog é um lugar pra eu me expressar, denunciar injustiças, e também me
defender de ataques. É também uma forma de eu registrar um pouco
da minha vida. Tem coisas que eu publico, como fotos de viagens – na
época pré-pandemia em que a gente viajava –, que funcionam mais como
registro pessoal. Ao mesmo tempo, é um canal. Muita gente me pede pra
publicar um determinado alerta ou denúncia, e desde o início do blog eu
publico muitos guest posts, textos de pessoas convidadas, o que permite
que meu blog trate de temas que são bastante desconhecidos pra mim, no
sentido de eu não ter experiência pessoal com eles, como poliamorismo,
veganismo, feminismo cristão, violência obstétrica, e até mesmo mater-
nidade, já que não sou mãe. Nos últimos anos, desde o golpe de 2016,
o blog também tem falado muito de política partidária. Nós, feministas,
estamos na linha de frente contra os reacionários, e eles sabem disso.

4. PODERIA FALAR UM POUCO DAS TUAS ESCOLHAS


TEÓRICAS, AS CORRENTES FEMINISTAS COM QUE TU
TE IDENTIFICAS, EXEMPLIFICANDO COM O NOME DE
ALGUMAS AUTORAS E MILITANTES?

Eu não me identifico com nenhuma corrente feminista em parti-


cular. Concordo e discordo com pontos de praticamente todas as cor-
rentes. Pra mim, ser feminista já é suficiente. E eu sempre disse: pra
quem odeia o feminismo, todo feminismo é radical. Portanto, meus
inimiguinhos sempre me descrevem como uma feminista ultrarradical,
o que faz as feministas radicais darem risada, já que eu apoio que até
homens cis podem e devem ser feministas. No começo do blog, eu tinha
acabado de ler O Mito da Beleza, de Naomi Wolf, e escrevi um pouco
sobre aceitação do corpo e mitos da beleza547. Era 2008, muito antes de

547 O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres foi o
primeiro livro da estadunidense Naomi Wolf, publicado em 1991 e relançado no Brasil em

380
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

tantos canais no YouTube tratarem desse tema tão importante. Hoje eu


me decepciono com a Naomi ao ver que ela é antivacina, mas seus livros
continuam sendo muito relevantes. Bell hooks é sempre um aprendiza-
do, Angela Davis também. O Backlash de Susan Faludi548 é um exemplo
de como o feminismo pode (e deve) ser didático e acessível. Gerda Ler-
ner549 ajuda a entender como o patriarcado surgiu, e quando aprende-
mos isso, é meio caminho andado. Berenice Bento, Julia Serrano e Paul
B. Preciado foram minhas portas de entrada para o transfeminismo.
Guacira Lopes Louro e Sueli Carneiro são inspirações. Jovens feminis-
tas negras como Roxane Gay, Djamila Ribeiro e Chimamanda Ngozi
Adichie também me ensinam muito, assim como feministas marxistas
como Heleieth Saffioti e Alexandra Kollontai. Nos últimos três anos,
passei a pesquisar também utopias e distopias feministas, e tive a honra
de ter como supervisora de pós-doutorado uma referência internacional
no assunto, a pesquisadora Ildney Cavalcanti, da Universidade Federal
de Alagoas.

5. CONTA UM POUCO SOBRE A TUA EXPERIÊNCIA


DA FEITURA DO CANAL NO YOUTUBE “FALA
LOLA FALA” – PORQUE QUIS MIGRAR PARA ESTA
NOVA PLATAFORMA, PERCEBES ALGUMA GRANDE
DIFERENÇA ENTRE O ESCREVER NO BLOG E O
CANAL?

Como as pessoas leem cada vez menos blogs, e assistem mais vídeos,
quis tentar fazer um canal. Mas me falta a disciplina que tenho no blog.
Não consigo ter vontade de gravar vídeos toda semana. É melhor nem

2018 pela editora Rosa dos Tempos.


548 Livro publicado no Brasil pela editora Rocco, em 2001, tem como subtítulo “O contra-a-
taque na guerra não declarada contra as mulheres” e é o retrato polêmico e bem definido
de como a mulher pode ser manipulada pelos formadores de opinião. Nesse livro, a autora,
investigando os motivos que levam os detratores do feminismo a reforçarem a guerra dos
sexos, aponta obstáculos e orienta a luta pela igualdade de direitos.
549 O livro de Gerda Lerner, A Criação do Patriarcado: História da opressão das mulheres
pelos homens, publicado em 2019 pela editora paulista Cultrix, foi prefaciado por Lola.

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

mencionar como não entendo nada de edição de imagens... Mas tenho


que persistir e voltar a gravar. Até porque uma das coisas que previa
quando comecei o canal, em meados de 2019 – que era que os comen-
tários seriam tão tóxicos que eu teria que fechá-los –, esteve longe de
se concretizar. Os comentários são amáveis. Larguei um pouquinho o
“Fala Lola Fala” quando o YouTube removeu um vídeo meu por violar
as regras. Era um vídeo em que eu falava do processo que ganhei contra
um neonazi misógino que me difamou durante anos, aliás, me difama
ainda. Quer dizer, o cara pode usar o YouTube para me caluniar, mas
eu não posso falar no meu canal sobre como ele me deve R$ 25 mil de
indenização. Não faz sentido. Mas eu não sou uma grande oradora, não
tenho muito jeito pra isso. Gosto mais de palestrar que gravar vídeos. E
prefiro escrever.

6. OS ATAQUES (CRIMES) DE ÓDIO QUE TENS


SOFRIDO HÁ MUITOS ANOS ACABARAM SURTINDO
UM EFEITO INTERESSANTE, COM A PRISÃO DE UM
DOS QUE TE ATACAVAM INCESSANTEMENTE, BEM
COMO COM A “LEI LOLA” – SANCIONADA EM 3 DE
ABRIL DE 2018 (LEI Nº 13.642/2018) – QUE TRATA
DOS CRIMES CONTRA AS MULHERES NA INTERNET.
APESAR DO POUCO TEMPO DA APROVAÇÃO,
PERCEBES ALGUMA MUDANÇA POSITIVA?

Acho que a minha resiliência tem um caráter mais simbólico do


que prático. Vejo muitas mulheres dizendo como sou forte, como
não me deixo afetar pelos ataques incessantes, como não desisto, e
como isso acaba sendo um modelo pra elas. Fico muito feliz com
tudo isso, lógico. E muito honrada em ter uma lei com meu nome,
mas obviamente gostaria que a lei saísse do papel e fosse posta em
prática. A Lei Lola atribui à Polícia Federal a investigação de crimes
misóginos na internet. É importante, e ela foi pensada e redigida
pela deputada federal Luizianne Lins (PT-CE), justamente porque
ela acompanhou, de longe, minha dificuldade em denunciar os ata-
ques que sofri – e sofro ainda – por mais de dez anos. Onde fazer

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boletim de ocorrência, por exemplo? Assim que a lei foi aprovada,


realizamos algumas audiências sobre a aplicabilidade da lei, e a depu-
tada criou e distribuiu alguns folhetos. Mas falta vontade política: a
lei foi aprovada com um golpista no poder e, com a eleição de 2018,
o cenário ficou muito pior. Não há clima na Polícia Federal para
auxiliar feministas (que somos opositoras do governo fascista) e pu-
nir misóginos, muitos dos quais são apoiadores fiéis do presidente,
e talvez alguns dos ataques que sofremos até venham do Gabinete
do Ódio. Leis essenciais para as mulheres na internet, como a Lei
Rose Leonel (que tipifica a pornografia da vingança), e mais recen-
temente a criminalização do stalking e a Lei Mari Ferrer, que obriga
o juiz a proteger vítimas de estupro de ataques a sua integridade em
audiências, continuam sendo criadas e aprovadas. Mas precisam ser
efetivamente implantadas.

7. ESTAMOS VIVENDO UM MOMENTO CRÍTICO DE


NEGACIONISMO HISTÓRICO E ASCENSÃO DE UMA
VISÃO AUTORITÁRIA NO NOSSO PAÍS. COMO VOCÊ
CONSIDERA QUE ISSO IRÁ AFETAR OS ESTUDOS
DE GÊNERO, DOS FEMINISMOS E A MILITÂNCIA
FEMINISTA?

Meu humor sobre o Brasil flutua bastante. Agora, no momento


em que estou respondendo esta entrevista, estou otimista. Creio que o
pior já passou, talvez não em relação à pandemia, que ainda vai matar
muito mais gente, lamentavelmente, mas em relação à política. Temos
um presidente que, ao vencer o primeiro turno, durante uma campanha
sangrenta, prometeu acabar com o ativismo no Brasil. Ele não especifi-
cou como planejava fazer isso, mas eu, como ativista, fiquei bem preo-
cupada. Agora a desaprovação ao seu governo bate recordes, Lula tor-
nou-se elegível, enfim, existem chances de o Brasil voltar a ser um país e
tentar se reconstruir (o que vai levar um tempão). Mesmo se Bolsonaro
tentar dar um golpe de Estado, que é sem dúvida o que ele pretende, há
chances de que o golpe falhe, como falhou nos EUA. A própria saída
de Trump nos EUA já foi motivo de alívio para o mundo inteiro. Nós,

383
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feministas e demais ativistas, fomos, somos e vamos continuar sendo a


resistência. Só o fato de sobrevivermos ao que talvez tenham sido/este-
jam sendo alguns dos piores anos da história do Brasil (e do planeta nos
últimos cem anos) já me enche de esperança. Claro que os retrocessos
para as mulheres causados pela pandemia são gigantescos e assustadores.
Enfrentaremos períodos horríveis pela frente. Mas temos fôlego para
continuar lutando, para reconstruir. E de repente para repensar a volta à
qual “normalidade” queremos.

8. SUA VIDA ACADÊMICA E PROFISSIONAL INICIOU-


SE EM SANTA CATARINA (COMO DISCENTE) E
DEPOIS NO CEARÁ (COMO PROFESSORA). VOCÊ
CONSIDERA QUE AS QUESTÕES DE GÊNERO, CLASSE
E RAÇA AFETARAM A SUA ESCOLHA PELA CARREIRA
PROFISSIONAL E O LOCAL ONDE ESTAVAS INSERIDA
TEVE ALGUMA INFLUÊNCIA NESSAS ESCOLHAS? E,
SE SIM, DE QUE FORMA? A TUA TRAJETÓRIA COMO
PROFESSORA UNIVERSITÁRIA DE LITERATURA
INFLUENCIOU OU INFLUENCIA SUA TRAJETÓRIA
COMO MILITANTE?

Na realidade, minha vida acadêmica e profissional iniciou-se em


São Paulo no final dos anos 80. Foi lá que cursei metade de um curso
de Publicidade e Propaganda, que abandonei, e que tive meus primei-
ros empregos, como atendente numa locadora de vídeo, revisora de
textos, redatora publicitária, assessora de imprensa. Minha vida mais
independente realmente começou com a morte do meu amado pai,
em 1993. Foi nessa época que eu saí de casa e até mudei de cidade e de
estado. Pensei: se eu tenho que recomeçar minha vida, por que tem
que ser aqui, numa cidade que não gosto? Eu não sei por que escolhi
morar em Joinville. Sei que estava exausta de São Paulo, da poluição,
da criminalidade, do trânsito, da falta de qualidade de vida. Eu sequer
conhecia Santa Catarina. Naquela época se falava mais em Joinville e
Blumenau que em Floripa. Eu tinha um único amigo que morava em
Joinville, um jogador de xadrez. Eu também jogava xadrez; foi num

384
D É B O R A K A R P O W I C Z , M Ô N I C A K A R AW E J C Z Y K , M U R I E L R O D R I G U E S D E F R E I TA S ( O R G S. )

torneio que conheci meu marido Silvio, enxadrista profissional, que


em 1993 ainda era meu namorado e não sabíamos se iríamos con-
tinuar juntos. Fui pra Joinville, fiquei uma semana na quitinete do
meu amigo, gostei da cidade, procurei imobiliárias para alugar uma
casa, e descobri que com o dinheiro que eu tinha – dez mil dólares
que tinha juntado em cinco anos de trabalho, e que o Plano Collor
não conseguiu roubar de mim porque eu não tinha conta bancária –
dava pra comprar uma casa. Comprei minha casinha por US$ 7,300 e
me mudei. Silvio, meu então namorado, me ajudou com a mudança.
Fomos no seu carro, mas ele voltou para Osasco, onde morava. Um
semestre depois, em 1994, ele se mudou pra Joinville, mas não foi algo
pensado. A gente só se casou mesmo em 2007, quando eu ia viajar
pro meu doutorado-sanduíche, e ele só poderia ir junto casando, ou
provando que morávamos juntos. Era mais fácil e rápido casar. Antes
disso, em 2005, quando eu estava pra terminar o mestrado, sentei com
ele e expliquei que, se eu iria encarar quatro anos de doutorado, depois
teria que procurar um trabalho como professora universitária, e em
Joinville, uma cidade industrial, isso não seria possível na minha área.
Floripa tampouco era uma opção: tinha/tem muito mais doutores que
vagas. E estávamos um pouco cansados de Santa Catarina. Notamos
que sempre falávamos que, quando a gente se aposentasse, moraria no
Nordeste, e aí me dei conta: por que só quando nos aposentássemos?
Por que não quando eu terminasse o doutorado? Silvio adorou a ideia.
E deu tudo certo. Tive a sorte de passar na UFC no meu primeiro e
único concurso na vida. Há questões de gênero envolvidas em todas
essas escolhas. Minha independência sempre falou alto. Até hoje me
lembro de quando uma entrevistadora bateu na minha porta, em Join-
ville, para fazer perguntas para o Censo. Emperramos quando ela quis
saber quem era o chefe da família. “Não tem um chefe da família”, eu
disse pra ela. “Aqui somos uma família igualitária”. Ela afirmou: “Ge-
ralmente é o homem o chefe da família”. Eu respondi: “Se o chefe é
quem ganha mais, então sou eu. Se é quem tem a maior escolaridade,
sou eu. Se é quem toma a maior parte das decisões, sou eu. Mas não
sou chefe, não me sinto chefe. Somos parceiros”.

385
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

9. A HISTORIOGRAFIA ATUAL SOBRE OS FEMINISMOS


TEM CRITICADO MUITO A NOÇÃO DE “ONDAS”
PARA SE EXPLICAR O MOVIMENTO FEMINISTA, VOCÊ
CONCORDA COM TAIS CRÍTICAS? E, NESSE SENTIDO,
CONSIDERAS O MOVIMENTO DAS MULHERES HOJE UM
MOVIMENTO DE VANGUARDA OU NÃO? E POR QUÊ?

Não concordo. A divisão em ondas é importante como um meio de


organização. É uma divisão que visa à didática, ao ensino. É muito pro-
vável que essas ondas sejam repensadas ou até eliminadas daqui a alguns
anos, mas, no momento, é uma classificação útil. Considero o feminismo
um movimento de vanguarda. Considero que não pode haver revolução
se ela não for feminista. Que todas as mudanças e a busca por justiça e
direitos passam por questões de gênero, raça e classe.

10. PARA ENCERRAR, COM TODA A TUA TRAJETÓRIA


DE ESCRITA, PESQUISA E MILITÂNCIA FEMINISTA,
PODES INDICAR TRÊS AUTOR@S E/OU FILMES QUE
TE INSPIRARAM? DEIXANDO DE REFERÊNCIA PARA
@S JOVENS QUE COMEÇAM A SE INTERESSAR PELA
TEMÁTICA?

Uma autora que eu e todo mundo adoramos é a nigeriana Chima-


manda Ngozi Adichie. Uso algumas de suas obras nas minhas aulas. Seus
romances Hibisco Roxo, Meio Sol Amarelo e Americanah são todos formidá-
veis, melhores que seus contos550. Beyoncé ajudou a popularizá-la ao uti-
lizar um de seus discursos numa música, e essa popularização do feminis-
mo é muito importante551. É isso também o que faz uma jovem feminista

550 Considerada uma das vozes mais importantes do feminismo negro contemporâneo.
Hibisco roxo foi indicado para o Orange Prize (2004) e conquistou o Prêmio Commonweal-
th Writers (2005), na categoria Melhor Primeiro Livro. Sua segunda publicação, Meio sol
amarelo, venceu o Orange Prize, em 2007 e Americanah foi publicado em 2014 no Brasil
e eleito um dos 10 melhores livros do ano pela NYT Book Review. Todos os livros citados
foram publicados pela editora Companhia das Letras.
551 Um trecho do texto de “Todos nós deveríamos ser feministas” foi incorporado à canção
***Flawless, da cantora norte-americana.

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negra, a escritora cearense Jarid Arraes, ao contar a história de heroínas


negras brasileiras usando cordel552. Vou citar também duas obras com que
tive contato mais recentemente. Um livro que me impressionou muito
foi Girl, Woman, Other, vencedor do Booker Prize de 2019, da inglesa
Bernardine Evaristo553. Traz uma diversidade de personagens femininas
muito interessante. E, pra completar, tem uma das mais marcantes re-
presentações de um relacionamento abusivo, e de como ele é construído,
baseado na anulação de uma das partes. E é entre duas mulheres lésbicas e
negras. No cinema, pra mim o melhor filme do ano passado – e fico feliz
que o Oscar se lembrou dele – foi Bela Vingança (Promising Young Woman),
de Emerald Fennell. Ele é muito original e tem um ótimo ritmo. E sabe
como sempre falamos que nós, mulheres, não buscamos vingança pelos
milênios de tratamento a que fomos submetidas, e sim igualdade? Então:
tem quem pense diferente, pelo menos de uma forma sarcástica e diverti-
da. E não precisa ter final feliz pra ser um filme incrivelmente feminista.

552 Escritora, cordelista e poeta, é autora de Redemoinho em dia quente (Alfaguara, 2019),
vencedor do prêmio APCA na categoria contos/ crônicas; Um buraco com meu nome (Fe-
rina, 2018) e As lendas de Dandara (Editora de Cultura, 2016). Tem mais de 70 títulos pu-
blicados em literatura de cordel, incluindo a coleção Heroínas Negras na História do Brasil.
553 Publicado no Brasil com o título: Garota, mulher, em 2020, pela editora Companhia
das Letras.

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SOBRE AS
ORGANIZADORAS
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

DÉBORA SOARES KARPOWICZ

é escritora, pesquisadora e educadora. Doutora, mestre e licencia-


da em História pela PUCRS. Pedagoga e especialista em Educação à
Distância. Graduanda em Sociologia. Pesquisadora com experiência em
acervos internacionais (Portugal e França), realizou estágio doutoral na
Universidade de Coimbra. Autora do livro CIGANOS: História, Iden-
tidade e Cultura, ganhador do prêmio FUMPROARTE (2016) e Edital
FAC (2020). E da trilogia DO CONVENTO AO CÁRCERE (2021).
Docente do Centro Universitário Uniasselvi e da Rede Jesuíta de Edu-
cação (Colégio Anchieta). Coordena o grupo de estudos e pesquisa em
Educação Hands4Education (H4E).

MÔNICA KARAWEJCZYK

Pós-doutoranda e colaboradora do PPG História (PUCRS). Dou-


tora, Bacharel e Licenciada em História pela UFRGS e Mestre pela PU-
CRS. Bolsista do Programa de Pesquisadores Residentes na Fundação
Biblioteca Nacional (2014 e 2015). Professora, escritora, pesquisadora e
feminista. É uma das organizadoras do grupo de estudo e pesquisa Liliths:
Gênero e História das Mulheres (PUCRS), e do grupo de estudos Histó-
ria e Mídias (PUCRS). Desde 2019 é editora assistente da Revista Oficina
do Historiador. Vice-coordenadora do GT História e Mídias - ANPUH-
-RS na gestão (2020-2022). Publicou As filhas de Eva querem votar (2020/
EdiPUCRS); Mulher deve votar? (2019/Paco editorial), Coorganizadora
da coletânea Narrativas de Genêro: as várias faces dos estudos de gênero (2021/
EdiPUCRS).

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MURIEL RODRIGUES DE FREITAS

Professora de história na educação básica, feminista, graduada em


História/Unisinos, mestra em Ensino de História ProfHistória/UFRGS
e doutoranda em história/PUCRS. Pesquisa a história das mulheres, da
loucura e dos discursos no cinema. Realizadora do documentário Con-
denadas pela razão, disponível no youtube. Coordenadora adjunta do GT
Estudos de Gênero da ANPUH/RS. Pesquisadora do Grupo de Estudo e
Pesquisa Gênero e História das mulheres Liliths PUCRS/CNPQ, Gru-
po de Estudos de Gênero e Sexualidade Genhi UFRGS/CNPQ, Grupo
de Pesquisa em História da Loucura PUC Goiás, do Laboratório Uni-
ficado de História e Audiovisual UFRGS e do Grupo Close: Centro de
Referência da História LGBTQIA+ do RS.

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SOBRE AS AUTORAS
M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

ANA MARIA COLLING

Professora no PPG de História na Universidade Federal de Doura-


dos (UFGD). Pesquisadora da UNESCO na Cátedra Diversidade Cul-
tural, Gênero e Fronteiras.

ANA PRESTES

Graduada em Ciências Sociais. Mestre e Doutora em Ciência Polí-


tica (UFMG). Doutoranda em História na UNB e pós-doutoranda no
IEB/USP, com pesquisas sobre a história da participação política das mu-
lheres no Brasil. É autora do livro infanto-juvenil Mirela e o Dia Internacio-
nal da Mulher (2016/Ed. Lacre e Anita Garibaldi), coautora do livro infan-
to-juvenil Minha Valente Avó (2020/Ed. Quase Oito) e co-organizadora
do livro Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxista (2021/ eEd.
Contraponto e Anita Garibaldi).

CARLA DE MOURA

Professora de História da rede estadual de ensino do Rio Grande do


Sul, mestra em Ensino de História pelo ProfHistória na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e doutoranda no Programa de Pós- gra-
duação em História da UFRGS.

CAROLINE LEAL

Doutora em História (PUCRS). Atua como professora de História


na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA).

CRISTIANE BAHY

Doutoranda no Programa de Estudos de Gênero pelo consórcio das


universidades ISCSP - ULISBOA, Universidade NOVA de Lisboa -
FCSH e NOVA School of Law. Mestra em Estudos de Gênero, Sexuali-
dade e Sociedade por Birkbeck - University of London e licenciada em

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História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Áreas de interesse de pesquisa: estudos de masculinidades e o estilo de
música heavy metal.

DÉBORA DO CARMO VICENTE

Mestre em Direito pela UFRGS, Pós-graduada em Direito Civil,


Processo Civil e Direito Público. Graduada em Direito pela PUCRS.
Servidora do TRE-RS. Participou do Programa Acadêmico na Mis-
são Permanente do Brasil na ONU/NY/EUA, durante a 60a. Sessão da
CSW (Commission on The Status of Women - Comissão sobre a Condição
Jurídica e Social da Mulher).

DOLORES ARONOVICH AGUERO (LOLA ARONOVICH)

Professora Universitária, blogueira, pedagoga e ativista feminista.

ELIANE GOULART MAC GINITY

Doutoranda em História Contemporânea pela Universidade de


Coimbra. Mestre em Ensino de História pelo ProfHistória/UFRGS. Li-
cenciada em História/FAPA.

EMANUELLE LUIZA DE OLIVEIRA FERREIRA

Graduanda em História pela Universidade de Pernambuco.

FABIANE MARIA RIZZARDO

Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul.

ÍRIS DE CARVALHO

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul. Professora de história e militante da Marcha Mundial

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M U L H E R E S FA Z E N D O H I S TÓ R I A

das Mulheres. Realiza pesquisas sobre mulheres, educação popular e os


saberes do trabalho.

JANAÍNA GUIMARÃES DA FONSECA E SILVA

Doutora em História. Professora adjunta de História do campus Mata


Norte e do Programa de Pós-graduação em Formação de Professores e
Práticas Interdisciplinares - PPGFPPI/Petrolina) - Universidade de Per-
nambuco, Coordenadora do GT Estudos de Gênero ANPUH Pernam-
buco.

KATHARINE TRAJANO

Pesquisadora e Mestra em História na Universidade Federal Rural


de Pernambuco. Vice-coordenadora GT Estudos de Gênero ANPUH
Pernambuco.

LAURI MIRANDA SILVA

Mullher trans afro-ameríndigena. Licenciada e bacharela em Histó-


ria pela Universidade Federal de Rondônia. Psicopedagoga. Mestra em
História e Estudos Culturais pela Universidade Federal de Rondônia.
Doutoranda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Membra da rede LGBT de Memória e Museologia Social. Colaboradora
do coletivo LGBTI+ Somar/Rondônia. Colaboradora da Associação Fi-
lhas do Boto Nunca Mais/Rondônia.

LEILA NEGALAIZE LOPES

Webdesigner, produtora cultural, artista visual cozinheira especia-


lista em etnogastronomia. Foi eleita em 2015 como uma das dez me-
lhores blogueiras negras no Brasil, é ativista do movimento de lésbi-
cas negras, premiada pela Assembleia do RS com o Prêmio Mulher
Negra Latino Americana e Caribenha (2005), Prêmio Mulher em
Ações/Política pela Câmara dos Vereadores de Porto Alegre (2006);

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Menção honrosa no prêmio Mulheres Negras Contam sua Histó-


ria SEPPIR/BR (2013), Prêmio Gênero e Cultura SECULT-DF
(2016). Tem publicações nas coleções: Eróticas Femininas - coletivo
Louva Deusas (2016 e 2020).

MARCIA KERN

Juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do


Sul, Mestra em Literatura Brasileira pela UFRGS, doutoranda em His-
tória PUCRS e escritora.

MARLISE REGINA MEYRER

Doutora em História. Professora do Programa de Graduação e Pós-


-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Coordena o grupo Liliths - Estudos de Gêne-
ro e História das Mulheres (PUCRS) e o grupo de pesquisas “História
- cultura e gênero nas revistas impressas na América Latina no século
XX”. Editora da revista discente Oficina do Historiador. Co-organizadora
da coletânea Narrativas de Gênero: as várias faces dos estudos de gênero (2021/
ediPUCRS).

MICHELE T. PHILOMENA BOHNENBERGER

Doutoranda em História (Pontifícia Universidade Católica - RS),


Mestra em História, Teoria e Crítica da Arte, Bacharela em Artes Plásti-
cas (2002) e Licenciada em Ed. Artística (2006) pela Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. Pintora, muralista e professora de Arte.

NATALIA PIETRA MÉNDEZ

Doutora em História. Professora do Departamento de História, do


PPG e do ProfHistória na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

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NIELLY DA SILVA PASTELLETTO

Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul, professora no Projeto Educacional Alternativa Cidadã
(PEAC) - UFRGS.

THUILA FARIAS FERREIRA

Cria da Restinga (Porto Alegre), doutoranda em Estudos Étnicos e


Africanos pela Universidade Federal da Bahia, mestra em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2020) e bacharela em Re-
lações Internacionais pela Universidade La Salle (2016). Pesquisa pensa-
mento de mulheres africanas, relações de gênero no continente africano,
mulherismo africano e feminismos negros.

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MULHERES FAZENDO HISTÓRIA:
DA INVISIBILIDADE AO PROTAGONISMO

Débora Karpowicz
Mônica Karawejczyk
Muriel Rodrigues de Freitas
ORGANIZADORAS

Tipografias utilizadas:
Família Museo Sans (títulos e subtítulos)
Adobe Garamond Pro (corpo de texto)
Papel: Offset 75 g/m2
Impresso na gráfica Trio Studio
Janeiro de 2022
A história das mulheres foi por muito tempo cercada pelo silêncio. Silêncio
das fontes. Silêncio das próprias mulheres, relegadas a um lugar feito de
fronteiras. Fronteiras imaginárias e simbólicas. Fronteiras que as cerceavam
em seus atos, tão reais quanto um muro. Fronteiras concretas que aniqui-
laram as forças, sugaram iniciativas, impediram a fala, restringiram o andar.
Limites inscritos nas leis e nos costumes. Limites descritos em tratados e
proferidos sem medo por vozes masculinas.
Esta coletânea reúne 16 artigos, um manifesto e uma entrevista. Todos os
textos abordam de alguma forma o fazer histórico das mulheres, trazendo re-
flexões e apontamentos que vão da invisibilidade ao protagonismo. Trata-se
de um conjunto de textos escritos por pesquisadoras, ativistas e professoras
que, através de suas pesquisas, relatos de experiências e estudo aprofunda-
do sobre a temática, desvelam contextos, histórias e experiências.
O livro foi dividido em dois eixos. No primeiro, intitulado “Da invisibilidade
ao protagonismo”, estão reunidos dez textos que fazem reflexões e análises
de contextos históricos diversos nos quais as mulheres passaram de invi-
sibilizadas a protagonistas. No segundo eixo, intitulado “Protagonismos e
(re)existências”, reunimos seis textos, um manifesto e uma entrevista, todos
destacando o protagonismo feminino em atos concretos e atuais, em ações
em prol da divulgação da história das mulheres e dos estudos de gênero.
Além dos belíssimos textos escritos por nossas autoras, que trazem luz a
tantos pontos obscurecidos da nossa história, presenteamos nossos leito-
res e nossas leitoras com dois textos diversos. Um manifesto que corta a
carne e expõe a alma de Leila Negalaize Lopes, ao abordar seu lugar de
fala no movimento feminista atual. E, encerrando nosso livro, trazemos as
palavras de Lola, simplesmente Lola, inspiração de tantas mulheres neste
Brasil atual, militante Lola, escritora Lola, feminista Lola, a quem agrade-
cemos pela generosidade e disponibilidade de nos conceder a entrevista,
e a saudamos com amor e sororidade. Boa leitura e que venham mais
escritos, mais parcerias, mais amizades e mais protagonismo.

Por tempos menos sombrios.


Débora, Mônica, Muriel.

ISBN 978-65-89891-38-3

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