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INTERSECCIONALIDADES,

GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
TODAPALAVRA EDITORA

Editor-chefe
Hein Leonard Bowles

Coeditor
José Aparicio da Silva

Conselho editorial
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MARIA DAS GRAÇAS SILVA NASCIMENTO SILVA
JOSELI MARIA SILVA (ORGS.)

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
© 2014 Todapalavra Editora

Revisão e supervisão editorial


Hein Leonard Bowles

Capa, projeto gráfico e diagramação


Dyego Marçal

Depósito Legal na Biblioteca Nacional


Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação BICEN/UEPG
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação BICEN/UEPG

I61 Interseccionalidades, gênero e sexualidades na análise espacial /


organização Maria das Graças Silva Nascimento Silva, Joseli
Maria Silva. Ponta Grossa, Toda palavra, 2011.
30 p.

1. Geografia – gênero e sexualidade. I. Silva, Maria das Graças


Silva Nascimento. 2. Silva, Joseli Maria. III. T.

CDD: 910.086

ISBN: 978-85-62450-37-2

Todapalavra Editora
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Ponta Grossa – Paraná – 84030–090
Fone/fax: (42) 3226–2569 / (42) 8424–3225
E–mail: todapalavraeditora@todapalavraeditora.com.br
Site: www.todapalavraeditora.com.br
Para Miguel Ângelo Ribeiro,
por ter tido a coragem
de abrir os caminhos
que hoje trilhamos juntos.
SUMÁRIO

Prefácio 11
Lynda Johnston

Apresentação 15
Maria das Graças Silva Nascimento Silva e
Joseli Maria Silva

Introduzindo as interseccionalidades como um


desafio para a análise espacial no Brasil:
em direção às pluriversalidades do saber geográfico 17
Joseli Maria Silva e
Maria das Graças Silva Nascimento Silva

PARTE I
ESPAÇO, SEXUALIDADES
E INTERSECCIONALIDADES

Interseccionalidad y malestares
por opresión a través de los Mapas
de Relieves de la Experiencia 39
Maria Rodó-de-Zárate

Por uma análise interseccional (e materialista)


da migração queer: levando em consideração
o papel dos regimes de bem-estar social 57
Cesare Di Feliciantonio

Intersecções de poder e cidadania queer


na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro 79
Jan Simon Hutta
Oposições e complementaridades nas práticas
homoafetivas de microterritorialização:
interações entre ‘bichas’ e ‘bofes’
na Praia do Osso em Santarém - PA 101
Benhur Pinós da Costa, Jasson Iran Monteiro da Cruz e
Josevaldo Sousa de França

As relações homocomerciais
em um microterritório: o exemplo
de um clube de boys na cidade do Rio de Janeiro 117
Miguel Ângelo Ribeiro e
Rafael da Silva Oliveira

PARTE II
CONHECIMENTO, CORPO, ESPAÇO E
INTERSECCIONALIDADES

Contestando o privilégio anglo-americano


na produção do conhecimento em
geografias das sexualidades e de gêneros 135
Katherine Browne

Uma abordagem de gênero a partir


do microcosmo indígena Paiter Suruí 157
Almir Narayamoga Suruí, Gasodá Suruí e
Adnilson de Almeida Silva

A saúde da mulher negra sob a perspectiva


de um novo modelo de compreensão 179
Sônia Beatriz dos Santos

A geografia do gênero e das sexualidades


na produção científica de revistas espanholas 209
Xosé Manuel Santos-Solla
Mulheres indígenas e suas demandas de gênero 229
Ângela Célia Sacchi

PARTE III
GÊNEROS EM MOVIMENTO:
ESPAÇO, RAÇA, IDADE E CLASSE

Narrativas de viagem, encontro colonial


e alteridade: um olhar a partir da
Geografia Feminista 245
María Dolors García-Ramón

Del circuito espacial de la


violencia feminicida a la red de
prevención y erradicación de ésta 267
María Verónica Ibarra-García

Homens jovens em conflito


com a lei e seus territórios urbanos 283
Rodrigo Rossi

Topografias da violência e as performances


de masculinidade de jovens do sexo masculino com
envolvimento com as drogas em Ponta Grossa - PR 307
Fernando Bertani Gomes

Gênero, raça e espaço:


uma abordagem da trajetória
de mulheres negras 333
Alex Ratts

Sobre as autorias 355


PREFÁCIO
***

O ‘lugar’ importa para a produção de conhecimento geográfico.


Lugar é uma categoria fundamental de análise para geógrafos e ali existe
uma crescente literatura sobre perspectivas internacionais comparativas no
que diz respeito à produção de geografias queer, feminista, social e cultu-
ral. Dirigindo-se ao desenvolvimento da geografia feminista, Janice Monk
(1994, p. 277) afirma:

Apesar dos pontos em comum... Diferenças nacionais existem na


medida em que a geografia feminista se desenvolveu, e em suas
abordagens e ênfases. Até o momento, pouca atenção sistemática
tem sido dada a essas diferenças ou para conexões específicas entre
os lugares, mesmo que lugar seja uma categoria fundamental de aná-
lise para geógrafos.

O livro Interseccionalidades, gênero e sexualidades na análise es-


pacial é prova da diferença que lugar faz para a construção de saberes geográ-
ficos queer e feministas. Este livro reúne pesquisas que vão além de discur-
sos geográficos anglo-americanos, e localiza – ao centro do palco – saberes
queer ‘em’ e ‘sobre’ Brasil, Espanha, Catalunha e México.
Conforme Berg e Kearns (1998, p. 129) observam, geografias do
“Reino Unido e Estados Unidos não são marcadas por limites – elas cons-
tituem o campo da geografia... Por outro lado, geografias de outras pessoas
e lugares [como geografias brasileiras] tornam-se marcadas como Outro –
exótico, transgressivo, extraordinário”. Esta questão foi retomada por geó-
grafos preocupados com países não anglófonos (ver também, por exemplo,
DESBIENS e RUDDICK, 2006; GARCÍA-RAMÓN et al., 2006; GREGSON
et al., 2003.). Enquanto tendências internacionais são importantes, elas
também podem mascarar o desenrolar dos acontecimentos de diferentes
maneiras em “outros” lugares. Muitas vezes, o que os cronistas descrevem
como internacional são tendências de fato associadas com a América do
Norte e o Reino Unido. Os autores deste livro registram suas distâncias de
outros lugares, e é a partir deste lugar que eles são capazes de problematizar
as tendências de homogeneização de grandes narrativas.
PREFÁCIO

Estou animada com este livro e sua atenção à produção de geografias


generificadas e sexualizadas para além de lugares e espaços anglo-americanos.
Alguns anos atrás, Robyn Longhurst e eu escrevemos sobre sexualidade e
espaço de investigação e de ensino estabelecidos na Nova Zelândia e Aus-
trália (JOHNSTON e LONGHURST, 2008; ver também LONGHURST e
JOHNSTON, 2005). Notamos que a Australásia está posicionada simul-
taneamente como local e global. Nossos anglófonos países da Australásia
estão intimamente ligados às mais amplas ideias (predominantemente) oci-
dentais e nossa pesquisa muitas vezes sai em publicações anglo-america-
nas. Contudo, é claro que nosso ensino e nossa pesquisa sobre sexualidade
e espaço são incorporados em, e respondem a, questões da Austrália e Nova
Zelândia. Estes conhecimentos únicos localizados são tanto informados
pelas tendências internacionais quanto apoiadores delas.
Uma das dificuldades enfrentadas pelos geógrafos que trabalham
com gênero e sexualidade na América Latina é que o número de estudiosos
ainda é muito pequeno. Recentemente, no entanto, a Comissão da União
Geográfica Internacional sobre Gênero e Geografia sediou a bem-sucedi-
da conferência latino-americana inaugural “Espaço, Gênero e Poder” na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no Brasil, de 8 a 11 de
novembro de 2011. Foi organizada pela Dra. Joseli Maria Silva e pelo Dr.
Augusto Cesar Pinheiro da Silva, e a conferência atraiu cerca de 50 repre-
sentantes locais, bem como representantes de uma série de países, incluin-
do Argentina, Israel, Nova Zelândia, Portugal, Espanha, Uruguai, Reino
Unido, Suíça e Estados Unidos. Estes tipos de reuniões são cruciais para
networkings formais, contribuindo para debates internacionais, e esten-
dendo-os.
Interseccionalidades, gênero e sexualidades na análise espacial é
outra incursão no pensar sobre como o lugar importa na produção do co-
nhecimento geográfico de gênero e sexualidade. Tenho esperança de que
a pesquisa nestas páginas venha contribuir para debates não só sobre as
particularidades de espaço, lugar, gêneros e sexualidades, mas de forma
mais ampla sobre a direção futura de conhecimentos geográficos queer e
feminista.

Lynda Johnston
Professor of Geography
University of Waikato

INTERSECCIONALIDADES,
12 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
LYNDA JOHNSTON

REFERÊNCIAS

BERG, L; KEARNS, R. America unlimited. Environment and Planning D: Society


and Space, v. 16, n. 2, p. 128-32, 1998.
DESBIENS, C.; RUDDICK, S. Speaking of geography: language, power and the
spaces of Anglo-Saxon hegemony. Environment and Planning D: Society and Space,
v. 24, n. 1, p. 1-8, 2006.
GARCÍA-RAMÓN, María-Dolors; SIMONSEN, Kirsten; VAIOU, Dina. Guest
editorial: Does anglophone hegemony permeate Gender, Place and Culture?
Gender, Place & Culture, v. 13, n. 1, p. 1-5, 2006.
GREGSON, Nicky; SIMONSEN, Kirsten; VAIOU, Dina. Writing (across) Europe:
on writing spaces and writing practices. European Urban and Regional Studies, v.
10, n. 1, p. 5-22, 2003.
JOHNSTON, Lynda; LONGHURST, Robyn. Queer(ing) geographies ‘down under’:
some notes on sexuality and space in Australasia. Australian Geographer, v. 39, n.
3, p. 247-257, 2008.
LONGHURST, Robyn; JOHNSTON, Lynda. Changing bodies, spaces, places and
politics: feminist geography at the University of Waikato. New Zealand Geographer,
v. 61, n. 2, p. 94-101, 2005.
MONK, Janice. Place matters: comparative international perspectives on feminist
geography. The Professional Geographer, v. 46, n. 3, p. 277-288, 1994.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 13
APRESENTAÇÃO
***

Em 2011 realizamos o I Seminário Latino-Americano de Geo-


grafia e Gênero, no Rio de Janeiro, com o tema Espaço, Gênero e Poder:
Conectando Fronteiras. Naquela época, estávamos lutando pela conquis-
ta e legitimação das análises de gênero no campo científico da geografia
brasileira. Nesse sentido, o desenvolvimento da temática do poder e da
superação de limites para o estabelecimento de conexões conceituais era
bastante pertinente. Por ocasião da plenária final deste evento, duas impor-
tantes críticas foram realizadas pelos pesquisadores. A primeira era de que
as sexualidades deveriam aparecer no título do evento, já que o gênero não
determina o desejo e as suas formas de expressão corporal. A segunda críti-
ca foi o pequeno protagonismo da raça enquanto componente das relações
de gênero, notadamente na sociedade brasileira, profundamente marcada
pela diversidade e desigualdade racial.
Certamente as críticas eram pertinentes, e os desafios colocados
serviram de base para mudar os rumos até então seguidos e construir uma
abordagem de gênero mais complexa, envolvendo as sexualidades e tam-
bém as racialidades. O Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mu-
lher e Relações Sociais de Gênero da Universidade Federal de Rondônia,
durante a plenária final, colocou-se como interessado em sediar o seminá-
rio seguinte. Assim, este lugar, Porto Velho, localizado na região norte do
Brasil, foi perfeito para inspirar o tema do II Seminário Latino-Americano
de Geografia, Gênero e Sexualidades. Escolhemos o tema Intersecciona-
lidades, Gênero e Sexualidades na Análise Espacial para poder incluir as
questões raciais, a diversidade e a desigualdade como elementos funda-
mentais na construção de caminhos analíticos capazes de compreender a
realidade socioespacial brasileira.
A geografia que envolve interseccionalidades, gênero e sexualida-
des nos desafia ao dialogo, à reflexão e à troca de saberes e conhecimentos
sobre as configurações espaciais e as complexidades do viver em tempos
atuais. A realização do I Seminário apresentou a necessidade de ampliar-
mos o diálogo, de nos conectarmos aos saberes dos mais diversos lugares,
das mais diversas culturas, das mais diferentes formas de se organizar, sentir e
viver que o ser humano desenvolve. Assim, atendendo ao chamado da dinami-
cidade do viver de nosso tempo, chegamos ao II Seminário Latino-Americano
APRESENTAÇÃO

de Geografia, Gênero e Sexualidades: Interseccionalidades, Gênero e Sexua-


lidades na Análise Espacial.
O livro é o resultado de uma trajetória de busca de formulação de
respostas concretas às críticas estabelecidas pelos pesquisadores presentes
na plenária final da primeira edição do Seminário, que reivindicavam uma
ampliação da complexidade da abordagem da relação entre espaço e gêne-
ro na geografia brasileira. Logicamente, não se encontram aqui soluções
definitivas, já que nós mesmas compartilhamos da ideia de que as respos-
tas capazes de serem produzidas em um determinado campo científico são
sempre provisórias, circunstanciais e posicionadas.
Organizamos três caminhos de discussão neste Seminário, que
acabaram compondo as partes internas do livro. Na primeira parte do livro,
Espaço, Sexualidades e Interseccionalidades, é evidenciada a relevância das va-
riadas formas de sexualidades em sua intersecção com gênero, raça, classe e
nacionalidade, instituindo espacialidades plurais desta relação. A sexualidade
é vivenciada corporalmente, e esta perspectiva estabelece campos de po-
der em que corpos são significados, classificados, hierarquizados e tam-
bém resistentes à ordem social e espacial estabelecida. A segunda parte do
livro, Conhecimento, Corpo, Espaço e Interseccionalidades, é composta
por textos que questionam a produção do conhecimento e as suas manifes-
tações hegemônicas, que tornam invisíveis determinadas visões de mun-
do, notadamente aquelas produzidas por grupos ou sujeitos cujo poder de
enunciação é negado nas estruturas de organização do saber científico. A
terceira parte, Gêneros em Movimento: Espaço, Raça, Idade e Classe, reúne
algumas perspectivas que complexificam as vivências dos sujeitos generifi-
cados, a partir de suas interrelações com outras categorias identitárias, com
o objetivo de evidenciar que para dar visibilidade às diferenças é necessário
compreender que as feminilidades e as masculinidades não são categorias
universais, mas em pleno movimento espaço-temporal.
Este livro, mais do que o registro histórico do encontro científico,
é um convite ao desafio de ir além da construção da visibilidade de sujeitos
cujas existências espaciais são interceptadas por vários eixos de opressão,
mas também de construir caminhos analíticos que provoquem, renovem e
instiguem a criação de categorias analíticas da análise espacial.

Maria das Graças Silva Nascimento Silva


Joseli Maria Silva

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
INTRODUZINDO AS
INTERSECCIONALIDADES
COMO UM DESAFIO PARA A ANÁLISE
ESPACIAL NO BRASIL: EM DIREÇÃO
ÀS PLURIVERSALIDADES DO
SABER GEOGRÁFICO
Joseli Maria Silva
Maria das Graças Silva Nascimento Silva

***

Há muito tempo as geografias feministas denunciaram que a


Geografia é hegemonicamente masculina, branca, ocidental, heterossexual
e elitizada (SILVA, 2009a; SILVA, ORNAT e CHIMIN, 2013). Vários críticos
da ciência moderna, como Mignolo (2004) e Santos (2004), reconhecem a
grande contribuição das correntes feministas e etnorraciais para as transfor-
mações do pensar e fazer científico, no sentido de aliá-los à prática social.
Os traços característicos da ciência moderna, como a objetivi-
dade, a racionalidade e a distância do pesquisador do objeto de estudo,
permanecem como componentes habituais na geografia brasileira hege-
mônica. Com frequência, seja em textos de pesquisadores principiantes ou
experientes, esses traços são expressivos na forma como o espaço é repre-
sentado na produção geográfica brasileira. Em geral, há consenso de que
o espaço é uma instância da sociedade. Entretanto, os sujeitos sociais ca-
pazes de produzir o espaço geográfico são agentes econômicos, institucio-
nais, movimentos sociais que produzem uma análise espacial a partir de
estruturas que diluem as diferenças dos sujeitos e sua realidade cotidiana.
A expansão da Geografia Cultural no Brasil nas últimas duas dé-
cadas, notadamente aquela que considera os diferentes significados pro-
duzidos pelos sujeitos sociais, suas tensões e as relações de poder, trouxe a
identidade como um importante foco de debate contemporâneo. A influên-
cia pós-moderna sobre as identidades e subjetividades multidimensionais
INTRODUZINDO AS INTERSECCIONALIDADES COMO UM DESAFIO PARA A ANÁLISE ESPACIAL NO
BRASIL: EM DIREÇÃO ÀS PLURIVERSALIDADES DO SABER GEOGRÁFICO

superou a ideia da noção da identidade como algo fixo, estático e unitário


(BHABHA, 1990; HALL, 2006; CENTER FOR CONTEMPORARY CUL-
TURAL STUDIES, 1982; GILROY, 1993). Esta abordagem considera as
identidades plurais, dinâmicas e relacionais, sendo instituídas em proces-
sos de negociação permanente mediados pelo espaço-tempo.
Esta perspectiva identitária busca superar o princípio dualista bi-
nário que impossibilita a análise da diversidade e da complexidade. A sim-
ples oposição feminino/masculino, branco/negro, ricos/pobres, homos-
sexual/heterossexual, direita/esquerda obscurece e oculta as experiências
concretas das pessoas, já que suas identidades se compõem de uma imensa
possibilidade de combinações de facetas identitárias em tempo e espaço. É
preciso superar o essencialismo das identidades e criar uma análise política
de suas articulações e negociações.
É nesta perspectiva que a ideia de interseccionalidade pode ser
articulada à imaginação geográfica. Se a experiência das pessoas é concreta,
ela é também espacial. Uma pessoa vivencia de forma simultânea várias
facetas identitárias, como gênero, raça, sexualidade, classe, nacionalidade,
religião, deficiência1 funcional etc.2, mediadas pelo espaço e pelo tempo,
que são fundamentais na consideração do movimento destas intersecções.
Assim, as pessoas e também suas espacialidades se realizam em um cons-
tante processo de fazer e desfazer de interseccionalidades identitárias. Esta
perspectiva de articulação identitária, embora tenha sido disseminada
como criação recente, possui uma longa trajetória intelectual e de resistên-
cia que foi encoberta pela adoção de perspectivas hegemônicas do saber. A
produção intelectual dos feminismos negros traz grande contribuição para
as ideias de articulação, relativismo e pluralidade.

1
Escolhemos utilizar a denominação ‘portadores de deficiência’. Esta expressão foi alvo de
debate pelos grupos sociais e, durante a Convenção Internacional para Proteção e Promoção
dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, ficou decidido que a denominação
correta seria ‘pessoas com deficiência’. Informação disponível em: http://www.senado.gov.
br/senado/portaldoservidor/jornal/jornal70/utilidade_publica_pessoas_deficiencia.aspx.
Acesso em: 4 jun. 2014.
2
O uso do ‘etc.’ reflete uma multiplicidade de situações interseccionais que são impossíveis
de nomear, como argumenta Platero (2012).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JOSELI MARIA SILVA E MARIA DAS GRAÇAS SILVA NASCIMENTO SILVA

AS ARTICULAÇÕES IDENTITÁRIAS:
PIONEIRAS VOZES FEMININAS NEGRAS

O legado das feministas negras dentro dos movimentos políticos


norte-americanos, ainda no século XIX, é um importante elemento a ser
considerado no avanço em direção a uma análise complexa de gênero e se-
xualidades, incorporando outros importantes elementos identitários, como
é o caso da raça e da classe.
Uma das pioneiras do feminismo negro, Sojourner Truth, atuou
nos movimentos abolicionista e sufragista nos EUA, sendo uma das mais
notáveis mulheres feministas. Ex-escrava e iletrada, destacou-se pela capa-
cidade analítica das relações de poder de seu tempo. Naquele momento as
feministas negras lutavam por sua visibilidade e conquista de direitos civis,
denunciando o racismo dentro do movimento feminista e o sexismo dentro
do movimento antirracista, evidenciando a constante marginalização que
pautava a luta política das mulheres negras. Sojourner Truth proferiu um
dos mais importantes discursos feministas em 29 de maio de 1851, durante
a Convenção dos Direitos da Mulher3 em Akron, EUA. O questionamento
repetitivo em seu discurso político, mediante a frase “não sou eu uma mu-
lher?”, já apontava os limites em se discutir os direitos da mulher, sem levar
em consideração a raça e a classe, colocando em xeque a universalização
da condição feminina, tendo como referentes mulheres brancas de média e
alta classes. Assim, afirma ela:

Aquele homem ali diz que as mulheres precisam de ajuda para su-
bir às carruagens, para passar as sarjetas e para ter sempre, em
qualquer lado, os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a
subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar, e não sou eu uma
mulher? Olhem para mim, olhem para os meus braços. Eu lavrei,
eu plantei, eu armazenei, e nenhum homem me passava à frente.
E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um
homem, e comer tanto – sempre que eu arranjasse comida – como
um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu uma
mulher? Eu dei à luz treze filhos e vi a maioria deles ser vendida
como escravos, e quando eu gritei de tristeza com a dor de uma mãe,

3
Women’s Rights Convention, Akron, Ohio, USA.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 19
INTRODUZINDO AS INTERSECCIONALIDADES COMO UM DESAFIO PARA A ANÁLISE ESPACIAL NO
BRASIL: EM DIREÇÃO ÀS PLURIVERSALIDADES DO SABER GEOGRÁFICO

ninguém me ouviu, mas Jesus ouviu. E não sou eu uma mulher?4


(Sojourner Truth, 1851, citado por Murphy, 2011, p. 64-65).

A capacidade reflexiva de Sojourner Truth sobre a existência das


mulheres negras e as implicações da raça e da classe desconstruía ideias
já fundamentadas na existência branca, como a maternidade, o trabalho
doméstico e a fragilidade, ao mesmo tempo em que reivindicava a consi-
deração de uma diversidade de formas da existência feminina. Interessante
observar nas palavras de Sojourner Truth que as experiências das mulheres
negras traziam diferenças de vivências espaciais em relação às experiên-
cias das mulheres brancas. As negras circulavam pela cidade, desempenha-
vam tarefas fora do ambiente doméstico e vivenciavam a maternidade de
forma específica.5 Assim, as negras eram consideradas socialmente como
‘não-mulheres’ e justamente pela negação de sua feminilidade é que suas
experiências espaciais também eram distintas daquelas das brancas.
Fabardo (2012) considera Ida B. Wells uma das pioneiras femi-
nistas negras. Ela era jornalista e escreveu uma importante matéria sobre
linchamentos de homens negros acusados por estupro de mulheres bran-
cas6, além de assassinatos. Ida B. Wells (2012 [1982]), em um editorial do

4
[…] That man over dar say that women needs to be helped into carriages, and lifted ober
ditches, and to have the best place every whar. Nobody ever helped me into carriages, or
ober mud puddles, or gives me any best place [and raising herself to her full height and her
voice to a pitch like rolling thunder, she asked], and ar’n’t I a woman? Look at me at me!
Look at my arm! [And she bared her right arm to the shoulder, showing her tremendous
muscular power.] I have plowed and planted, gathered into barns, and no man could head
me – and ar’n’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man (when I could
get it), and bear the lash as well – and ar’n’t I woman? I have born thirteen children an seen
them most all sold off into slavery, and when I cried out with a mother’s grief none but
Jesus heard – and ar’n’t I a woman? (Trecho do discurso proferido por Sojourner Truth na
Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, em 29 de maio de 1851 e citado por Murphy
(2011, p. 64-65).
5
Criavam crianças de famílias brancas e muitas vezes eram afastadas de seus próprios
filhos. As mesmas configurações são evidenciadas no filme The Help (2011, Diretor: Tate
Taylor), baseado no romance de nome homônimo, de Kathryn Stockett. Este retrata as
relações racistas que mulheres negras vivenciavam como empregadas nas casas de mulheres
brancas nos idos de 1960, nos Estados Unidos, estando dentre estas a vivência específica da
maternidade.
6
Trata-se de: “A Red Record: Tabulated Statistics and Alleged Causes of Lynchings in the
United States 1892, 1893, 1894”. Disponível em: http://www. gutenberg.net. Acessado em:
10 jan. 2014. Para mais detalhes da vida de Ida Wells, ver: http://womenshistory.about.com/
od/wellsbarnett/a/ida _b_wells.htm.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JOSELI MARIA SILVA E MARIA DAS GRAÇAS SILVA NASCIMENTO SILVA

jornal Free Speech, trazia argumentos sobre o racismo e as práticas de lin-


chamento de negros. Afirmava que a prática dos linchamentos era uma
estratégia para diminuir a ascensão social de pessoas negras na região sul
dos EUA. Além disso, evidenciava posturas racistas na articulação entre
gênero e raça que envolvia uma construção diversa das sexualidades bran-
ca e negra. Qualquer aproximação entre um homem negro e uma mulher
branca era considerada uma violação sexual, enquanto a violência sexual
de um homem branco contra uma mulher negra era compreendida como
algo natural.7
Pode-se dizer que os feminismos negros tiveram traços próprios,
pois as mulheres que faziam parte deste movimento possuíam poucas
chances de desenvolver estratégias para lutar contra o racismo e ao mesmo
tempo contra o sexismo, assim como argumenta bell hooks (1982). Uni-
ram-se com os homens negros para denunciar violências cometidas con-
tra as comunidades negras, lutaram contra as organizações racistas que se
desenvolveram dentro do próprio movimento feminista branco que lutava
pelo direito ao voto das mulheres e ainda lutavam contra os poderes pa-
triarcais, característicos da masculinidade branca.
Em “Todas as mulheres são brancas, todos os negros são homens,
mas algumas de nós são valentes”8, ficam evidentes as dificuldades que as
mulheres negras tiveram em conquistar espaços de poder, tanto dentro dos
coletivos feministas (dominados por mulheres brancas) como nos movi-
mentos que lutavam contra o racismo (dominados por homens negros).
Assim, as mulheres negras vivenciavam múltiplas marginalizações, dificul-
tando a expressão de suas reivindicações, como denuncia Gayatri Chakra-
vorty Spivak em seu clássico texto “Pode um subalterno falar?”9 (1988).
Contudo, foi justamente a posição periférica, marginal e subal-
terna das mulheres negras que fez com que elas desenvolvessem profunda

7
Angela Davis (2004 [1981]), feminista norte-americana, escreveu um capítulo intitulado
“Violación, racismo y el mito del violador negro”, no livro Mujeres, Raza y Clase, no qual,
a partir dos escritos de Ida Wells, argumenta que as leis contra o estupro foram produzidas
para proteger as esposas e filhas de brancos de classe média e alta e que, na maioria das vezes
em que negros foram acusados e condenados por estuprar uma mulher branca, as provas
eram insuficientes para condenação, havendo inclusive confissões de inocência de homens
negros pelas próprias mulheres brancas, supostas vítimas.
8
Título original: All the women are white, all the blacks are men, but some of us are brave:
Black women’s studies (HULL, SCOTT e SMITH, 1982).
9
Título original: Can the subaltern speak?

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 21
INTRODUZINDO AS INTERSECCIONALIDADES COMO UM DESAFIO PARA A ANÁLISE ESPACIAL NO
BRASIL: EM DIREÇÃO ÀS PLURIVERSALIDADES DO SABER GEOGRÁFICO

capacidade crítica e abrissem várias frentes simultâneas de luta, como argu-


menta o Combahee River Collective (1982, p. 214)10:

A principal fonte de dificuldade em nossos trabalhos políticos é


que não estamos apenas tentando lutar contra uma ou duas frentes
de opressão; ao invés disso, temos que enfrentar toda uma série de
opressões. Não temos privilégio racial, sexual, heterossexual ou de
classe para nos apoiar, nem temos ainda o mínimo acesso aos recur-
sos de poder que os grupos que possuem qualquer um desses tipos
de privilégio têm.11

O feminismo negro foi sendo paulatinamente construído em


meio a uma pluralidade de estruturas de dominação, o que fez com que as
mulheres negras desenvolvessem um posicionamento político e intelectual
potente, contestador e comprometido com a emancipação social. Fabardo
(2012), ao discutir as bases conceituais do feminismo negro, evidencia a
necessidade deste movimento em se distanciar dos pressupostos do femi-
nismo branco. As mulheres negras, alvo de racismos de feministas brancas,
tiveram que tomar para si a palavra e basear-se em suas próprias experiên-
cias a fim de reivindicar seus direitos. Argumenta Fabardo (2012, p. 32):

Mientras el feminismo moderno/ilustrado se desarrolló a partir de


Simone de Beauvoir y su afirmación ‘No se nace mujer. Se llega a
serlo’, los discursos de género en el feminismo negro parten de una
negación, de una exclusión, de un interrogante, el que retoma bell
hooks de Sojourner Truth en un de los primeros textos del pensa-
miento feminista negro: ‘Acaso no soy una mujer?’

As feministas negras partiram para a análise de desconstrução do


modelo de mulher instituído pelo movimento feminista branco, que invisi-
bilizava e negava a existência da realidade das mulheres negras (e também

10
Para mais informações sobre esse coletivo feminista de mulheres negras lésbicas que foi
criado em 1974, acessar: http://circuitous.org/scraps/combahee. html.
11
No original: “The major source of difficulty in our political works is that we are not just
trying to fight oppression on one front or even two, but instead to address a whole range of
oppressions. We do not have racial, sexual, heterosexual, or class privilege to rely upon, nor
do we have even the minimal access to resources and power that groups who possess any
one of these types of privilege have.” (Combahee River Collective, 1982, p. 214).

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de muitas mulheres brancas pobres e lésbicas). Era necessário que o femi-


nismo negro construísse um caminho próprio. Segundo as palavras de bell
hooks (1989, p. 150):

Nós aprendemos que não temos poder para definir nossa própria
realidade ou transformar as estruturas de opressão. Nós aprendemos
a procurar naquelas pessoas empoderadas pelos sistemas de domi-
nação, que nos magoam e ferem, por alguma compreensão de quem
nós somos, que será libertador, e nós nunca encontramos isso. É ne-
cessário para nós que façamos o trabalho por nós mesmas se quiser-
mos saber mais sobre nossa experiência, se nós queremos ver essa
experiência a partir de perspectivas não moldadas pela dominação.12

Na década de 80 do século XX, o feminismo negro13 mostra-se


efervescente, fortemente ativo politicamente e com uma rica produção teórica
que interferirá na base do movimento como um todo, provocando reflexões
sobre os privilégios de raça e classe e, assim, tornando o feminismo cada
vez mais inclusivo socialmente. Acima de tudo, o feminismo negro cons-
truiu um caminho fértil no sentido de questionar as bases epistemológicas
por meio das quais as teorias feministas brancas haviam sido estabelecidas.
A recusa à invisibilidade do espaço social é uma importante mar-
ca das bases conceituais do feminismo negro. O texto “Mulheres brancas,
escutem! Feminismo negro e as fronteiras da fraternidade”14, de Hazel Car-
by (1982), é uma evidência das pressões que este movimento queria pro-
mover nas políticas e ações do feminismo, ainda bastante fundamentado no
poder das mulheres brancas, em geral de classe média e alta. A autora, além
de denunciar o racismo dentro do próprio feminismo, formulou importantes
críticas à teoria feminista, bem como realizou uma série de considerações

12
We learn that we do not have the power to define our own reality or to transform oppressed
structures. We learn to look to those empowered by the very systems of domination that
wound and hurt us for some understanding of who we are that will be liberating and we
never find that. It is necessary for us to do the work ourselves if we want to know more
about our experience, if we want to see that experience from perspectives not shaped by
domination. (hooks, 1989, p. 150).
13
Interessante deixar claro que nem todas as intelectuais do feminismo negro eram mulheres
negras, embora a grande maioria fosse. Havia mulheres brancas com forte vínculo intelectual
e identitário com o feminismo negro, a exemplo de Carol Stack e Mercedes Fabardo.
14
Título original: “White women, listen! Black feminism and the boundaries of sisterhood”.

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BRASIL: EM DIREÇÃO ÀS PLURIVERSALIDADES DO SABER GEOGRÁFICO

a respeito de categorias analíticas sobre as quais o feminismo branco ha-


via se desenvolvido. Segundo ela, a ‘família’, o ‘patriarcado’ e a ‘reprodução’
deveriam ser compreendidos a partir da existência das mulheres negras e,
portanto, com significados próprios. Argumenta a autora que os homens
negros não tiveram o mesmo poder patriarcal dos homens brancos e que as
mulheres negras sofrem pela dominação de homens de ‘diferentes cores’. As
famílias negras em uma sociedade racista têm funcionado como mecanis-
mo de resistência à exclusão, diferentemente da família nuclear branca, em
geral considerada pelo feminismo hegemônico como elemento de opres-
são. Além disso, argumenta que:

Ao fazer o questionamento dos conceitos de ‘família’ e de ‘patriar-


cado’, é necessário também problematizar o uso do conceito de ‘re-
produção’. [...] O que significa o conceito de reprodução em uma
situação em que as mulheres negras realizavam o trabalho domés-
tico fora de suas próprias casas a serviço de famílias brancas? Neste
exemplo, as mulheres negras se situam fora da relação industrial,
mas, ao mesmo tempo, elas asseguram a reprodução de mão-de-obra
em sua própria esfera doméstica e, simultaneamente, a reprodução
da mão-de-obra branca na casa dos brancos. O conceito, de fato, é
incapaz de explicar exatamente quais são as relações que necessi-
tam ser reveladas. O que precisamos compreender é, antes de tudo,
como o papel das mulheres negras nos trabalhos rural, industrial ou
doméstico afeta a construção das ideologias da sexualidade femini-
na negra, que se diferenciam das sexualidades femininas brancas e
habitualmente estão construídas em oposição a estas. E, por outro
lado, como se relaciona o papel com a luta das mulheres negras pelo
controle de sua própria sexualidade.15 (CARBY, 1982, p. 217).

15
In questioning the application of the concepts of ‘the family’ and ‘patriarchy’ we also need
to problematize the use of the concept of ‘reproduction’. […] What does the concept of
reproduction mean in a situation where black women have done domestic labour outside of
their own homes in the servicing of white families? In this example they lie outside of the
industrial wage relation but in a situation where they are providing for the reproduction
of black labour in their own domestic sphere, simultaneously ensuring the reproduction
of white labour power in the ‘white’ household. The concept, in fact, is unable to explain
exactly what the relations are that need to be revealed. What needs to be understood is, first,
precisely how the black woman’s role in a rural, industrial or domestic labour force affects
the construction of ideologies of black female sexuality which are different from, and often
constructed in opposition to white female sexuality; and second, how this role relates to the
black woman’s struggle for control over her own sexuality. (CARBY, 1982, p. 217).

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Hazel Carby (1986) e, posteriormente, Angela Davis (1998), res-


gatam o discurso oculto das letras cantadas pelas ‘divas do blues’. Segundo
as autoras, as letras das músicas cantadas pelas mulheres negras nas casas
noturnas de comunidades negras norte-americanas no primeiro quartel do
século XX eram resistências contra as construções ideológicas que a socie-
dade branca fazia delas. As mulheres negras negavam a imagem construída
de uma sexualidade exótica e primitiva. Reivindicavam para si o direito à
sua sexualidade, desafiavam o patriarcado e ao mesmo tempo reclamavam
o direito sobre seus corpos e de serem também mulheres sensuais. As letras
das músicas do blues, conforme Carby (1986) e Angela Davis (1998), eram
uma negação da passividade e da resignação das mulheres negras, e as can-
ções expressavam a reivindicação da autoridade e do controle de seus de-
sejos e da escolha de suas experiências sexuais. As letras do blues aparecem
como discursos negados e obscurecidos, produzidos por mulheres negras
que possuíam poucos espaços de voz e visibilidade.
Um dos trabalhos teóricos mais reconhecidos do feminismo ne-
gro é o de Patricia Hill Collins (2000 [1990]), que analisa as mulheres ne-
gras nos Estados Unidos e evidencia que a opressão contra as mulheres
afro-americanas se dava por várias dimensões, a econômica, a política e a
ideológica. Para ela, lutar contra esta hegemonia só era possível mediante
a criação de um espaço alternativo de produção de conhecimento. Propõe,
assim, uma forma alternativa para a epistemologia, argumentando sobre
a necessária inter-relação de conhecimento, consciência e empoderamen-
to. Segundo ela, não há como separar epistemologia e conhecimento dos
valores políticos e também das crenças individuais, pois a forma como as
pessoas se aproximam do conhecimento e a própria produção do conheci-
mento estão estreitamente relacionadas com o empoderamento e as dife-
rentes formas de resistência.
Collins (2000 [1990]) propõe o conceito de “matriz de domina-
ção”, por meio do qual ela inter-relaciona diversas opressões a que uma
pessoa pode estar sujeita. Além disso, ela adota a ideia de posicionalidade,
colocando as mulheres negras em determinada posição de concepção do
conhecimento sobre suas próprias experiências opressivas. Esta ideia então
entrelaça o individual ao coletivo, ao mesmo tempo em que nega o conhe-
cimento como algo produzido de forma hegemônica.
O trabalho realizado por Carol Stack (1974) também desafia os
conceitos que sustentavam as ideias feministas de caráter branco e conserva-
dor. Ela realizou importante trabalho etnográfico em uma comunidade negra

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e detectou diferentes formas de organizações familiares, centradas em re-


des femininas que eram importantes bases da capacidade reprodutiva fami-
liar nos bairros negros. Sustenta a ideia de que o modelo familiar branco,
burguês e patriarcal não permitia a compreensão das famílias negras, a não
ser pelo viés da patologia.16 Em sua investigação, Stack (1974) evidencia as
redes matrifocais e as estratégias das mulheres negras, geralmente chefes
de família, para cuidar de seus filhos, envolvendo parentes que extrapo-
lam o núcleo familiar tradicional. A pesquisa também evidencia o poder
reduzido dos homens na estruturação familiar, na medida em que eles são
altamente afetados pelo desemprego e acabam obrigados a migrar em bus-
ca de trabalho, deixando a família sob responsabilidade feminina. Assim,
o direito de trabalhar, acessar o espaço público e ampliar os direitos dentro
do espaço privado (comum ao feminismo branco) definitivamente não era
foco do feminismo negro, devido à realidade vivenciada pelas mulheres
negras, em geral moradoras de bairros pobres de classes operárias.
O feminismo negro, inicialmente fundamentado no passado es-
cravista nos Estados Unidos, expandiu-se pelo Reino Unido e tomou novos
contornos pela presença de movimentos migratórios, frutos do processo
colonial em um período pós-colonialista. Passaram a fazer parte do grupo
de mulheres não brancas aquelas vindas das ex-colônias asiáticas, africanas
e também da América Latina (PARMAR, 1982). Assim, o chamado femi-
nismo negro teve que ampliar seus conceitos para abarcar a existência de
mulheres não brancas que não tinham o mesmo passado escravista. Entre-
tanto, as mulheres imigrantes não brancas, sujeitos das diásporas, sofriam
do mesmo racismo, exclusão e marginalidade. Esse sentimento comum
entre as mulheres negras e as mulheres não brancas (imigrantes de ex-co-
lônias para as antigas metrópoles) possibilitou alianças entre elas. Todavia,
mesmo fazendo alianças, as mulheres não brancas viviam um vazio, já que
não estavam identificadas totalmente como mulheres negras e tampouco
como brancas. As experiências migratórias, muitas vezes ilegais, constituí-
am diferentes experiências entre elas. Nesse sentido, houve várias críticas a
respeito da invisibilidade de grupos de mulheres não brancas e a necessida-
de de ampliação da ideia de mulher negra.

16
As famílias negras chefiadas por mulheres moradoras de periferias precárias e violentas
foram consideradas como famílias anormais. A causa da violência e da pobreza de algumas
áreas urbanas era consequência da família negra chefiada por mulheres. Elas eram
culpabilizadas pela própria vulnerabilidade social e econômica a que estavam submetidas.

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A emergência dos estudos culturais possibilitou o reforço das


identidades diaspóricas, e as questões de raça e política estiveram no centro
da produção feminista negra, que passou a ser composta por grupos va-
riados de mulheres não brancas, tornando-se ao mesmo tempo mais rica e
complexa. Segundo Alexander e Mohanty (2004 [1997], p. 139):

Efectivamente, el racismo contra las personas africanas estadou-


nidenses era distinto, pero estaba conectado al racismo contra las
personas chicanas, nativas o asiáticas. El desafío de negociar esta po-
lítica de fragmentación racial es el que nos ha traído hasta este mo-
mento. A través de una política de descolonización, hemos aprendi-
do que la solidariedad racial es necesaria, incluso aunque signifique
enfrentarse con nuevas diferencias en lo que se refiere a la concien-
cia opositiva y relacional.

O feminismo negro, apesar de ter o racismo como importante eixo


de discussão, também incorporou a ideia de que há uma pluralidade de ex-
periências de opressão racista e que isso deveria estar na base da compreen-
são da vida das “mulheres de cor”17. Avtar Brah (2004 [1992]) elabora uma
análise do uso do conceito de diferença para construir a ideia da pluralidade
do feminismo negro. Ela analisa a “diferença como experiência”, que é es-
pecífica e ocorre na cotidianidade, a “diferença como relação social”, que é
um produto de narrativas coletivas que se tornam sólidas através do tempo,
e a “diferença de subjetividades”, em que evidencia as diferentes posições
dos sujeitos no processo de experiência. A autora nega a condição universal
e/ou unitária de mulher e de mulher negra, afirmando a perspectiva rela-
cional e posicionada das pessoas. Por fim, traz a ideia da “diferença como
identidade”, considerando-a como um processo sempre inacabado. Assim,
a identidade deve recorrer às formas variáveis dos níveis de diferenças para
sua mobilização e deve ser atravessada pelo micro e pelo macro, social e sub-
jetivo, em um processo contínuo e contingente que define centros, margens,
inclusões e exclusões por práticas de poder e resistências. Para ela, é necessá-
rio nunca compartimentar as opressões, mas construir formas de analisá-las
conjuntamente, determinando como elas se conectam e se articulam.

17
A denominação “mulheres de cor” passou a ser utilizada no movimento de feministas
negras a fim de constituir uma diferença entre mulheres negras, brancas e as não brancas
que ainda não estavam contempladas nas discussões do movimento, em geral imigrantes de
ex-colônias asiáticas, latinas e africanas.

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Os argumentos de Pratibha Parmar (1990) também se estrutu-


ram em torno da diversidade das “mulheres negras”, propondo desafios ao
feminismo negro no sentido de considerar a multiplicidade das formas de
experiências de opressão dos diversos grupos de mulheres negras e na ne-
cessidade de superar as ideias de fixidez dos eixos de opressão. Da mesma
forma, Magdalene Ang-Lygate (1997) questiona a categoria de “mulher ne-
gra”, do modo como foi construída pelo feminismo negro, fortalecendo a
ideia da necessidade de incluir novas experiências de diásporas, para que
outros grupos de mulheres e suas experiências espaçotemporais possam ser
compreendidas.
A importância que o feminismo negro e a sua produção teórica
tiveram para a teoria feminista em geral, para os estudos culturais e para
a luta político-científica do movimento pós-colonialista, é inestimável18,
construindo um sólido caminho argumentativo que baseou a concepção do
conceito de interseccionalidade.

A INTERSECCIONALIDADE COMO
POSSIBILIDADE DE ANÁLISE DA
COMPLEXIDADE DO ESPAÇO GEOGRÁFICO

Como pode ser visto, aquilo que as feministas pós-modernas cha-


mam de teoria da interseccionalidade já era reivindicado de alguma maneira
pelas feministas negras e também pelas mulheres lésbicas, como argumenta
Fabardo (2012). A vertente negra do feminismo criticou a simplificação das
vivências femininas no movimento feminista, que coloca todas as mulheres
– brancas, negras, ricas, pobres, heterossexuais, lésbicas, e assim por diante
– em igual patamar de opressão (hooks et al., 2004). A unicidade de gênero
deveria ser superada pela ideia das múltiplas dimensões identitárias que se

18
Várias produções do feminismo negro fizeram parte do Center for Contemporary Studies,
na Universidade de Birmingham, do qual Stuart Hall, um dos mais divulgados teóricos sobre
identidades pós-modernas no Brasil, era líder. Desse grupo também participou o estudante
de doutorado Paul Gilroy, autor da obra The Black Atlantic (1993) e coeditor de The Empire
Strikes Back - Race and Racism in ‘70s Britain, que trouxeram importantes contribuições
para os estudos das identidades, notadamente seu movimento relacional.

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JOSELI MARIA SILVA E MARIA DAS GRAÇAS SILVA NASCIMENTO SILVA

cruzam, cujos eixos de identidade podem ter maior ou menor relevância,


dependendo de contextos espaçotemporais em que as pessoas vivenciam as
alteridades. Nesse jogo entre identidade e alteridade em variados espaços e
tempos é que se podem evidenciar diferenças, conflitos e hierarquias, num
eterno processo de movimento ininterrupto (hooks, 2004 [1984]).
O trabalho de Kimberlé Williams Crenshaw (1991, 1994) foi fun-
damental para a realização de uma sistematização teórica sobre as múlti-
plas e simultâneas pertenças identitárias. Esta autora alerta para o fato de
que a interseccionalidade é um conceito que permite articular os vários ei-
xos identitários que estruturam as desigualdades sociais e geram a posição
relativa das mulheres em determinado espaço-tempo.
A metáfora da intersecção criada por Crenshaw (1991, 1994) per-
mite imaginar vários eixos de poder, como gênero, raça/etnia, geração/ida-
de, classe, sexualidade, religiosidade, deficiência funcional, etc., como gran-
des avenidas que estruturam áreas sociais, econômicas e políticas. Cada eixo
de poder é distinto; por exemplo, a opressão por classe é diferente da opressão
por orientação sexual. Contudo, estes eixos se encontram, se cruzam e criam
intersecções complexas e simultâneas. Uma mulher negra, lésbica e de baixa
renda, por consequência, está sujeita a ser atingida por um intenso fluxo dos
eixos de poder, sendo sujeitada de forma simultânea a múltiplas opressões. O
desafio dos grupos que sofrem múltiplas e simultâneas opressões é negociar
os variados fluxos que se encontram nas intersecções.
A noção de interseccionalidade não representa a soma simples dos
eixos de opressão considerados, mas a configuração estabelecida na inter-
secção ocorrida entre eles a partir das experiências vividas (NASH, 2008).
Kathy Davis (2009) enfoca principalmente a análise de como vários estudio-
sos consideraram o conceito de interseccionalidade, argumentando sobre a
potencialidade do conceito na análise da complexidade. Segundo ela, este
conceito não é simples de ser utilizado, porque não oferece um caminho line-
ar, e a consideração dos eixos de opressão deve levar em conta a forma como
a intensidade de cada um deles é definida no processo de pesquisa. Nesse
sentido, a vantagem deste conceito é que ele permite o uso da criatividade,
não restringindo o pesquisador a uma única linha de abordagem de eixos de
opressão, o que instiga a uma pesquisa reflexiva, crítica e responsável.
Do ponto de vista de McCall (2005), que se deteve na discussão
metodológica do conceito de interseccionalidade na análise da complexida-
de, é preciso considerar os diferentes contextos constituidores das configu-
rações interseccionais distintas. Nesse sentido, não se pode assumir a priori

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BRASIL: EM DIREÇÃO ÀS PLURIVERSALIDADES DO SABER GEOGRÁFICO

as categorias identitárias a serem elencadas na análise, mas explorar a na-


tureza das relações que colocam em evidência as respostas ao fenômeno
estudado. A autora argumenta que, por mais que um pesquisador possa
elencar categorias identitárias tradicionais, é preciso que elas sejam consi-
deradas apenas como ponto de partida, e devem ser considerados os pró-
prios indicadores e sua natureza relacional. Assim, a interseccionalidade de
categorias identitárias nem sempre remete à ideia de relações de desigual-
dade e subordinação, mas pode também, de forma combinada, evidenciar
resistências e conflitos.
Os trabalhos de Silva (2009b), Lewis (2012) e Guzmán e Platero
(2012) focam justamente grupos que, ao mesmo tempo em que vivenciam a
intersecção de vários eixos de opressão, também desenvolvem estratégias de
resistência, subvertendo muitas situações de poder a que estão submetidos.
As táticas de resistência de mulheres brasileiras imigrantes ilegais vivendo
na Espanha contra sua situação de opressão, em que se cruzam o gênero, a
classe e a nacionalidade, foram atenção de Silva (2009b). A autora destaca
a estratégia de mulheres brasileiras que subvertem as representações hege-
mônicas exotizadas das brasileiras para conquistar vantagens financeiras
nas espacialidades do mercado sexual, enquanto escondem sua identidade
brasileira em espaços onde tal nacionalidade é desvalorizada socialmente.
Lewis (2012) analisa as migrações internas de pessoas trans no México,
evidenciando a intersecção dos eixos de opressão a que estão sujeitas e suas
migrações como forma de resistência. Guzmán e Platero (2012) exploram
as intersecções entre sexualidades não normativas, gênero e deficiência,
considerando o cotidiano de pessoas que vivem esta interseccionalidade e
a diversidade das consequências e estratégias que o grupo enfrenta.
Gill Valentine (2007) argumenta que, apesar de este conceito ter
tido forte aceitação em várias ciências sociais, no campo da Geografia sua
utilização foi tímida. Segundo ela, mesmo com a expansão da ideia da plu-
ralidade das performances de gênero, pelas críticas sobre a impossibilidade
de compreender o gênero a partir das experiências de pessoas em múlti-
plas situações políticas, econômicas, temporais e espaciais. O periódico The
Professional Geographer publicou uma coletânea dedicada a refletir sobre os
desafios contemporâneos das geografias feministas e futuras agendas de pes-
quisa. O artigo “Theorizing and researching intersectionality: a challenge
for feminist geography”, de Gill Valentine, discute o conceito de interseccio-
nalidade como central na análise geográfica contemporânea. Nesse artigo,

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a geógrafa faz um esforço de evidenciar empiricamente as relações entre a


interseccionalidade e a dimensão espacial e temporal, valendo-se da aná-
lise da história de vida de uma pessoa que vive num processo contínuo
de construção/desconstrução de sua condição de mulher, lésbica, surda,
esposa, mãe e trabalhadora. Nessa análise, a autora evidencia a composição
múltipla do ser humano e como o exercício das diferentes identidades que
o compõem são redefinidas, tornando-se mais ou menos relevantes em sua
existência espacial e temporal. Em seu estudo de caso, ela mostra que as
diversas espacialidades vivenciadas pela pessoa considerada em seu artigo
rearranjavam o jogo identitário. Por exemplo, quando a pessoa frequentava
uma associação de pessoas com problemas de audição, ela exacerbava sua
identificação como pessoa que compartilhava deste mesmo limite funcio-
nal. Enfim, Valentine (2007) constrói a ideia de que o espaço é elemento
fundamental nos jogos interseccionais e que a Geografia não tem prestado
atenção à potencialidade deste conceito, assim como as demais ciências so-
ciais, como a Antropologia e a Sociologia, não têm considerado adequada-
mente a dimensão espacial da interseccionalidade.
Qualquer pessoa vivencia simultaneamente múltiplas categorias
sociais, como gênero, raça, religião, classe, idade, orientação sexual, etc.
Essa concepção envolve considerar as identidades como fluidas, instáveis,
complexas e em estado permanente de construção/desconstrução. As pes-
soas vivenciam os processos identitários ao longo da vida concreta, e essa
experiência contempla tempo e espaço. McDowell (2008) levanta uma série
de desafios no uso da interseccionalidade em torno da complexidade da
análise das diferenças, trazendo estudos sobre imigrantes recentes e suas
relações com o mercado de trabalho na Inglaterra, cruzando etnia, gênero
e classe na constituição das identidades desses grupos.
Brown (2012) evidencia o quanto os estudos sobre as sexualida-
des têm contribuído para a análise interseccional, realizando vários cru-
zamentos de eixos de opressão. Entretanto, ele chama a atenção para um
privilégio da análise interseccional das sexualidades considerando gênero
e raça em detrimento de outros eixos possíveis de serem investigados, os
quais poderiam receber mais atenção do campo das geografias das sexuali-
dades, como a idade, a religião, a classe e as deficiências funcionais. Chama
a atenção para o fato de que são os pesquisadores que elegem os eixos in-
terseccionais que desejam construir visibilidades em torno de determina-
dos fenômenos e que é importante considerar que tais escolhas produzem
outras invisibilidades científicas, o que tem consequências.

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Uma interessante análise geográfica interseccional é desenvolvida


por Rodó-de-Zárate (2013). Esta autora criou a metodologia denomina-
da Mapas de Relevo, cuja vantagem é a operacionalização do conceito de
interseccionalidade, tomando de forma simultânea várias categorias iden-
titárias, mediadas por estruturas de poder e pelas experiências espaciais
das pessoas. Sua investigação dedicou atenção especial a jovens lésbicas e
suas relações com o espaço cotidiano. A corporalidade das jovens apresenta
marcas que são socialmente reconhecidas, significadas, valoradas e hierar-
quizadas. Por meio de sua análise interseccional, criando o Mapa de Rele-
vo Rodó-de-Zárate (2013) evidencia que os corpos marcados pelo gênero,
pela sexualidade, pela raça e por muitos outros elementos podem estar em
posição de privilégio e/ou opressão quando se consideram diferentes es-
paços vivenciados em forma de alívio, opressão ou até mesmo de forma
controversa.
Estas análises interseccionais, nas quais o espaço é um foco de
atenção, possibilitam a criação de uma perspectiva analítica complexa das
vivências humanas, e também permitem escapar da armadilha do espaço
fixo, dado e constituído por dinâmicas sociais pouco palpáveis no cotidiano
das pessoas.
Este texto certamente não esgota a produção científica em torno
da expansão do uso do conceito de interseccionalidade, suas potencialida-
des e limites, já que utilizamos apenas as fontes que estão a nosso alcance.
Temos a consciência de que nossa posição enquanto pesquisadoras latinas
impossibilita uma abordagem completa, já que boa parte da literatura sobre
o tema é anglo-americana, pouco acessível para nós. Contudo, ele cumpre
a função de localizar minimamente a discussão que embasa o II Seminário
Latino-Americano de Geografia e Gênero, bem como a de instigar pes-
quisadores(as) a sair de sua zona de conforto intelectual e metodológico e
ousar na construção de uma geografia plural, desafiadora e solidária.

REFERÊNCIAS

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INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
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INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 35
PARTE I
ESPAÇO, SEXUALIDADES
E INTERSECCIONALIDADES
INTERSECCIONALIDAD Y
MALESTARES POR OPRESIÓN
A TRAVÉS DE LOS MAPAS DE
RELIEVES DE LA EXPERIENCIA
Maria Rodó-de-Zárate

***

INTRODUCCIÓN

El concepto de interseccionalidad fue introducido a finales de los


años 80 por Kimberlé Crenshaw (1989) como una forma de describir las
interconexiones existentes entre raza y género. La autora mostraba como
ni los estudios sobre género ni los referentes a la raza podían dar cuenta de
la opresión de las mujeres negras en Estados Unidos, ya que su experien-
cia no era la suma de esas opresiones sino una intersección concreta que
conllevaba discriminaciones y violencias específicas. Sus contribuciones,
enmarcadas en el Feminismo Negro norte-americano, seguían el intento
de cuestionar el sujeto del feminismo, que se había construido sobre la idea
de una mujer blanca, heterosexual y de clase media. La idea de que la expe-
riencia de opresión de las mujeres no podía ser explicada por un sólo mar-
co explicativo como el género ya había sido desarrollada por movimientos
sociales en diferentes lugares antes de la introducción del término (véase
PLATERO, 2012), pero el desarrollo teórico del concepto de intersecciona-
lidad a nivel internacional permitió la profundización teórica en relación a
las interconexiones de las estructuras de poder como el género, la raza, la
sexualidad, la clase social, la edad o la discapacidad.
A pesar de que el concepto de interseccionalidad se desarrolló
para poder explicar las experiencias específicas de opresión de las mujeres
negras, también encajó con el deseo de las feministas postcoloniales y
postestructralistas de romper con las categorías homogéneas como ‘mujer’.
Así, algunas autoras han mostrado la capital importancia del concepto,
como McCall, que asegura que “la interseccionalidad es la contribución
INTERSECCIONALIDAD Y MALESTARES POR OPRESIÓN A TRAVÉS DE LOS MAPAS DE
RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

teórica más importante que los estudios de mujeres, en relación con otros
campos, han hecho” (McCALL, 2005, p. 1771). Y Davis: “La interseccio-
nalidad pone sobre la mesa la preocupación teórica y normativa más im-
portante de la producción académica feminista: el reconocimiento de las
diferencias entre mujeres. [...] Esto se debe al hecho de que toca unos de
los problemas más urgentes para el feminismo contemporáneo – el largo y
doloroso legado de sus exclusiones” (DAVIS, 2009, p. 70).
Pero también se han apuntado limitaciones conceptuales a la in-
terseccionalidad, especialmente a causa de su ambigüedad y vaguedad. Si
se entienden las categorías como opresiones separadas que se juntan, su
esencialización no se destruye por completo (BROWN, 2012; YUVAL-DA-
VIS, 2006; GARRY, 2011) y puede tener implicaciones políticas negativas.
Además, también se ha apuntado que la investigación sobre intersecciona-
lidad no tiene ninguna dirección metodológica, que no aporta parámetros
definidos sobre los que trabajar y que no deja claro cuántas categorías de-
berían tenerse en cuenta ni de qué forma (McCALL, 2005; DAVIS, 2009;
STOLCKE, 2010; McDOWELL, 2008; GARRY, 2011; VALENTINE, 2007).
¿Son estas limitaciones inherentes a la aproximación interseccional o res-
ponden a determinados tipos de investigaciones que se han llevado a cabo?
¿Podrían crearse nuevas herramientas metodológicas y propuestas concep-
tuales que minimizaran los riesgos y amplificaran sus virtudes? ¿Qué puede
aportar la geografía feminista a estos debates?
A pesar de que en otros campos de las ciencias sociales es un
concepto muy estudiado, la interseccionalidad se ha introducido solo muy
recientemente en la geografía feminista (véase VALENTINE, 2007; Mc-
DOWELL, 2008; BROWN, 2012). Como apunta Valentine, el hecho de que
la interseccionalidad pueda dar cuenta de la experiencia vivida tiene impli-
caciones muy importantes para los análisis de la producción del espacio y el
poder: “[la interseccionalidad] ofrece una herramienta potencialmente muy
importante para la geografía feminista para contribuir a la conceptualización
de las íntimas conexiones entre la producción del espacio y las producciones
sistemáticas de poder” (VALENTINE, 2007, p. 19). De hecho, el mismo nom-
bre de interseccionalidad se remite a una metáfora espacial y las autoras se
han referido a rotondas, cruces y otros elementos con una gran connotación
geográfica para referirse al hecho de que diferentes estructuras de poder nos
atraviesan al mismo tiempo y en direcciones diferentes, causando opresiones
específicas. Pero, a pesar de las importantes connotaciones espaciales que im-
plica la inteseccionalidad y el amplio debate que se ha dado a nivel feminista,
se le ha prestado poca atención en la geografía.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

Así, ¿qué papel juega el espacio en la comprensión de la intersec-


cionalidad? ¿Cómo puede el análisis a través del espacio ayudar a compren-
der las dinámicas de poder interseccionales?
Con el siguiente texto pretendo dar paso adelante en la investiga-
ción sobre la interseccionalidad a través de una propuesta metodológica y
conceptual que sistematiza la investigación sobre la interseccionalidad: los
Mapas de Relieves de la Experiencia. Esta herramienta es una nueva forma
de recoger, analizar y mostrar datos empíricos sobre la interseccionalidad
desde una perspectiva geográfica y de una forma visual. Con ellos se mues-
tra la relación entre tres dimensiones fundamentales para el estudio de las
relaciones sociales y los espacios: la dimensión social (las estructuras de
poder como el género, la clase social, etc.), la dimensión psicológica (las
experiencias vividas) y la dimensión geográfica (los lugares). Con esta me-
todología analítica y empírica pretendo mostrar la importancia que el es-
pacio tiene para el estudio de las relaciones de poder y a la vez la relevancia
del concepto de interseccionalidad para la comprensión de las experiencias
en los espacios. Tomando como ejemplo los Mapas de Relieve de la Expe-
riencia de jóvenes lesbianas de Ponta Grossa (Brasil) y Manresa (Cataluña),
mostraré cómo los Mapas son una herramienta útil para dar luz a males-
tares sistemáticos y sistémicos que apuntan a desigualdades que sin una
aproximación interseccional y desde la experiencia quedan invisibilizadas.
En el siguiente apartado voy a mostrar la forma cómo se desar-
rollan los Mapas de Relieves de la Experiencia, desde su construcción hasta
la conceptualización de las herramientas teóricas que propone, sus posibles
variaciones y sus implicaciones para la concepción del espacio. A continua-
ción voy a centrarme en el concepto de malestar, parte fundamental de esta
herramienta, a través de los ejemplos de chicas jóvenes lesbianas. Termina-
ré con las conclusiones.

DESARROLLANDO LOS MAPAS


DE RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

Con los Mapas de Relieves de la Experiencia pretendo desarrollar


una metodología para llevar a cabo investigaciones empíricas desde una
perspectiva interseccional, analizando y mostrando visualmente los datos

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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INTERSECCIONALIDAD Y MALESTARES POR OPRESIÓN A TRAVÉS DE LOS MAPAS DE
RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

desde este punto de vista. Las categorías no se representan directamente,


sino que son consideradas de una forma fluida, no rígida y no impuesta,
siempre teniendo en mente las posiciones de privilegio y de opresión que
se ocupan en diferentes estructuras de poder, dando cuenta de la expe-
riencia vivida y aportando herramientas que sirvan para el análisis de las
relaciones constitutivas entre categorías. Se toma el lugar como factor fun-
damental para el análisis de las relaciones de poder y de las formas cómo
(y dónde) se sufren y transgreden las opresiones. Los Mapas de Relieves
de la Experiencia son una forma de entender las relaciones de poder como
experienciadas y espaciales, dando al lugar una posición fundamental en el
análisis de la experiencia interseccional de la opresión y el privilegio.
El nombre de Mapas de Relieves de la Experiencia viene de las
acepciones que la palabra relief tiene en inglés: como acentuación por un
lado y como alivio por el otro (véase RODÓ-DE-ZÁRATE, 2013a). En ca-
talán, la palabra relleu también responde con la acepción de aquello acen-
tuado o de importancia y a la vez con lo que en castellano se traduce como
‘relevo’, el hecho de liberar de una obligación. Así, tomando la definición
de la Real Academia Española de relieve como aquello que resalta más o
menos del plano, los Mapas de Relieves de la Experiencia o Relief Maps son
una forma visual de mostrar las experiencias interseccionales en los espa-
cios, yendo desde los espacios de opresión, que serían las colinas, las curvas
que se acentúan (las opresiones que se ponen de relieve), hasta los lugares
de alivio o relief, que serían los valles, los lugares dónde no se experiencian
discriminaciones o malestares. Así, el concepto relief muestra el dinamismo
y la mobilidad entre lugares y experiencias en relación a diferentes estruc-
turas de poder interseccionadas.
En la siguiente imagen (Figura 1) se puede ver un ejemplo de
ellos, aunque para que tengan sentido y valor analítico y científico siempre
deben ir acompañados de una narrativa que explique con más detalle y
precisión la situación de cada punto. Además, al ser básicamente una herra-
mienta para facilitar el análisis de datos, no son un fin en si mismos sino un
instrumento que ayuda a pensar geográficamente y de forma interseccional
sobre la experiencia en relación a las estructuras de poder.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
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MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

Figura 1: Mapa de Relieves de la Experiencia.1

Como se puede ver en esta figura, los Mapas son una imagen vi-
sual que muestra datos empíricos de una forma clara. Aunque a primera
vista puedan parecer un gráfico, los datos de las narrativas no se cuantifi-
can sino que simplemente se representan de forma visual y simbólica sobre
una distribución espacial. En este caso, pues, se mapifican las experiencias
interseccionales de las personas entrevistadas en base a cinco estructuras
de poder: el género, la sexualidad, la raza, la clase y la edad. La dimensión
geográfica responde a les los lugares que aparecen en la línea horizontal,
agrupados en cuatro grupos. La experiencia en base a las cinco estructuras
de poder (en diferentes colores) corresponde al nivel de bienestar o males-
tar que se tiene en cada lugar determinado (a mayor malestar, más hacia
arriba). Más adelante explicaré más detalladamente cada dimensión y el
significado de los puntos, las líneas y las flechas.

1
Se han mantenido las figuras del texto en el formato original ya que son ilustraciones
hechas por las personas entrevistadas durante el proceso de recogida de datos. Así, el idioma
que aparece es el original y las referencias a los colores (que no aparecen visibles en esta
edición) se han mantenido. Para hacer la figura comprensible, se ha añadido la información
necesaria o bien sobre la misma figura o bien el cuerpo del texto.

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INTERSECCIONALIDAD Y MALESTARES POR OPRESIÓN A TRAVÉS DE LOS MAPAS DE
RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

CONSTRUYENDO LOS MAPAS


DE RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

El proceso de construcción de los Mapas de Relieves de la Expe-


riencia puede variar según las posibilidades de recogida de datos. La re-
presentación en la Figura 1 corresponde al dibujo hecho por mi misma en
base a los datos empíricos pertenecientes a una entrevista realizada a una
chica de 17 años, lesbiana y de origen colombiano que vive en Manresa, una
ciudad mediana en la provincia de Barcelona.
Si bien este Mapa ha sido realizado por mi para poder ser utilizado
como metodología analítica, los Mapas también pueden ser realizados por
las mismas personas entrevistadas, constituyendo así una metodología en sí
mismos. Cuando es la propia persona entrevistada quien dibuja su Mapa de
Relieves de la Experiencia, el proceso que se sigue consta de las siguientes
partes. En primer lugar, siempre hay una entrevista dónde se pregunta sobre
los lugares que se usan y las experiencias que se tienen en ellos. Preguntas
como ¿Por qué no te gusta ese lugar? ¿Qué tendría que cambiar para que te
gustara? ¿Te sentirías igual si fueras mayor? ¿Y si fueras una mujer/hom-
bre? ayudan a reflexionar sobre las causas de las experiencias en diferentes
lugares. A continuación, se pide que se rellene la tabla que se muestra en la
Figura 2. En esta tabla aparece una primera columna que debe ser rellenada
con los lugares relevantes para la persona entrevistada y a continuación ésta
debe pensar y escribir las experiencias que cada lugar le genera según cada
estructura de poder. La Figura 2 es la tabla que rellenó Helena, una chica
manresana de 22 años de edad, blanca, heterosexual y de clase media que
estudia en la universidad. Como se puede observar, la columna correspon-
diente al género está llena de información referente a diversos malestares
que sufre en distintos lugares. En las otras, en cambio, aparece mucha me-
nos información. Con esta tabla, a simple vista, se pueden ver cuales son
las identidades que se viven de forma más acentuada y las que menos. Es
relevante destacar que, por ejemplo, en algunas de las entrevistas realizadas
a chicas y chicos blancos, en el momento de rellenar la columna referente a
la etnicidad afirmaban ‘yo no tengo etnicidad’, como también algunos chi-
cos pasaban directamente a las siguientes columnas sin prestar atención al
género por considerar que no tenía que ver con su experiencia. Es en este
tipo de respuestas dónde se empiezan a poner de manifiesto los relieves, en
este caso del privilegio respecto a la etnia y al género.

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MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

Figura 2: Tabla realizada por Helena sobre sus


experiencias en los lugares.

El siguiente paso consiste en clasificar los lugares en cuatro tipos


diferentes: lugares de opresión, lugares de intersecciones controvertidas, lu-
gares neutros y lugares de alivio. Los primeros son lugares dónde se tiene
una fuerte experiencia de malestar causada por una o más estructuras de
poder. Los lugares controvertidos son aquellos que provocan un alivio de
alguna opresión pero que en cambio provocan otro malestar. Los neutros
son aquellos en los que ninguna identidad está de relieve y los de alivio
son aquellos en los que se siente un gran bienestar y ninguna identidad
está de relieve. En la Figura 3 se puede ver la clasificación de Helena. En
su tabla no aparece ningún lugar de malestar, aunque hay cuatro lugares
controvertidos. Por ejemplo, y con la ayuda de los comentarios que Helena
hizo durante la clasificación, el Parc de la Seu (un parque en lo alto de una
pequeña colina) representa un lugar controvertido porque mientras fun-
ciona como un lugar de liberación en relación a la edad (no hay control ni
paterno ni policial) a la vez es un sitio que le da miedo, como mujer, si no
va acompañada. Así, un lugar que podría funcionar como espacio de libe-
ración para la gente joven, para las chicas cambia su rol y se convierte en un
lugar con un significado controvertido.

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INTERSECCIONALIDAD Y MALESTARES POR OPRESIÓN A TRAVÉS DE LOS MAPAS DE
RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

Figura 3: Tabla sobre la clasificación de los lugares.

Por último se procede a la realización del Mapa de los Relieves


de la Experiencia. En la Figura 4 se puede ver como el dibujo de Helena
muestra sus experiencias en los diferentes lugares relevantes para ella. Los
puntos se sitúan más arriba o más abajo según el nivel de malestar (más
arriba) o de bienestar (más abajo) que tiene en cada lugar. Estos puntos
responden a la lógica interna de su experiencia a nivel integral. Es decir,
tienen relación entre ellos y no responden a una posición absoluta deter-
minada a priori. Siente más malestar por las calles del Barri Antic (Barrio
Antiguo) que en la tienda dónde trabaja, aunque los motivos del malestar
son diferentes. En este punto es dónde la entrevista previa y la conversación
que se tiene durante la elaboración de los mapas (que también se graba y
es material relevante para el análisis) tiene una especial relevancia. Por las
calles del centro de Manresa siente miedo y temor a una posible agresión.
En cambio, en la tienda dónde trabaja se siente discriminada no sólo por
su género (por comentarios que le hacen) sino también por su edad, ya que
percibe que no tiene ninguna autoridad. En este caso también está marcada
la etnicidad, pero como comentó no es por su color de piel ni por comen-
tarios hacia ella sino porque hay un ambiente racista que la incomoda. Así,
en este caso, aunque la cuestión tiene que ver con la etnicidad, no es con su
identidad sino con su posición política respecto a este tema. La narrativa,
pues, es imprescindible para comprender los mapas y poder analizar con
precisión el significado de cada punto.

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MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

Figura 4: Mapa de Relieves de la Experiencia de Helena.

En el mismo sentido, un ejemplo que demuestra como la nar-


rativa y la información previa sobre la persona entrevistada son absoluta-
mente necesarias para el análisis surge del Mapa mostrado en la Figura 1.
Si bien la entrevistada, Adriana, es de origen colombiano, el hecho de tener
la piel blanca y hablar perfectamente catalán (llegó a Manresa siendo muy
pequeña) hace que su origen pase desapercibido en el espacio público. De
esta forma, la información que subyace a las representaciones visuales debe
tenerse en cuenta como datos necesarios para su completa comprensión.
Por otro lado, las citas también ayudan enormemente a dar sentido a cada
punto. Siguiendo con la Figura 1, el punto referente a la línea de sexualidad
situado en la parte superior correspondiente a su casa y a la calle se vendría
determinado por la siguiente situación:

Adriana: ‘No puedo mostrar mi sexualidad en el espacio público. Mis


padres no lo saben y me tienen muy reprimida. Se enteraron hace un
año y medio o así, pero yo les dije que no, que no y ahora ellos no lo
saben. Bueno, ahora estoy con ella. Y si se enteraran me moriría, por-
que me lo hicieron pasar muy mal. Porque tienen esta mentalidad de
Colombia y es horrible. [...] No me dejaron salir de casa... Me quedé en
casa, perdí unos tres quilos en una semana y poco a poco...

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RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

Esta cita da evidencia de la situación de los puntos referentes a la


línea de sexualidad situados en el extremo superior. La posibilidad de ser
vista por sus padres (o por algún conocido de ellos) en el espacio público la
hace ser muy cautelosa, ya que si se enteraran que está con una mujer volve-
ría la situación de violencia y represión que ya sufrió anteriormente en casa.
Así, en este caso es el control lo que determina un alto grado de malestar.
Sin embargo no es solamente su sexualidad lo que lo determina. Su posi-
ción en otras estructuras de poder intensifica la represión y juega un papel
constitutivo en esta situación. El hecho de ser joven y de no tener autono-
mía a nivel económico imposibilita que pueda emanciparse y dejar la casa
de sus padres. Su estatuto de inmigrante también juega un papel relevante,
ya que ella asocia la ‘mentalidad colombiana’ de sus padres a la represión.
Entiende que es parte de su cultura (el heterosexismo) y esto le hace sentir
compasión hacia ellos, hecho que dificulta su capacidad de negociación y
aumenta su sentimiento de culpa. En su Mapa de Relieves de la Experiencia
estos factores intensificadores de su malestar en relación con la sexualidad
vendrían representados con las flechas referentes a la clase, la etnicidad y
la edad. Su represión como lesbiana en el espacio público está constituida
también por sus otras posiciones en estructuras de poder, y aunque sea en
un su casa dónde sufre la represión, el miedo de ser vista en el espacio pú-
blico por sus padres (o alguien que pudiera informarles) convierte la calle
en una extensión de su casa.
En un caso como el de Adriana, en que no es la misma persona
entrevistada la que dibuja su propio Mapa, la entrevista debe pues estar es-
tructurada de forma que la información necesaria para su elaboración esté
presente y permita situar los puntos según su narrativa. Preguntar sobre
cómo se vive cada identidad en cada lugar y los motivos ayuda a obtener
esta información, pero también el hecho de comparar los lugares sistemáti-
camente o pensar en situaciones ficticias para poner de relieve los factores
que más determinan las experiencias.
Una vez dibujados los puntos, estos se unen con una línea del
mismo color, el correspondiente a la estructura de poder (aunque no se
aprecia en esta imagen, es importante que la línea sea del mismo color para
ayudar al posterior análisis). Si fueran gráficos, no tendría ningún sentido
el hecho de juntar valores discretos. En este caso, las líneas representan la
movilidad. Son verbos que muestran la acción de ir de unos lugar (los de
opresión) a otros (los de alivio). Así, dibujan algo parecido a lo que Cindi
Katz (2001) llama contour lines, líneas que conectan diferentes lugares a

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

procesos determinados. Y finalmente otro elemento son las flechas. Éstas


marcan las relaciones entre diferentes estructuras de poder y ayudan a pen-
sar sobre las causas concretas de las opresiones. Serían la forma de repre-
sentación de la tesis de la intensificación, que defiende que algunas posicio-
nes en estructuras de poder intensifican otras opresiones. Pero estas flechas
no sólo muestran la intensificación en esta dirección (la de acentuación de
la opresión) sino que también permiten mostrar como algunas posiciones
(de opresión o de privilegio) mitigan otras opresiones.

IMPLICACIONES PARA LA
CONCEPTUALIZACIÓN DEL ESPACIO

Las implicaciones conceptuales que los Mapas de Relieves de la


Experiencia tienen para el estudio y la comprensión de la interseccionalidad
son diversas (véase RODÓ-DE-ZÁRATE, 2013a). Por un lado están las
implicaciones teóricas del hecho de no usar categorías en la representación
sino estructuras de poder, como también el hecho que se visualicen las
opresiones como constituyentes de la experiencia y no como añadidas la
unas de las otras. En relación a las geografías feministas son destacables las
implicaciones que tienen para la comprensión del rol del espacio. Por otro
lado, a nivel metodológico, cabe destacar la importancia de proponer una
metodología para el estudio de los datos interseccionales que responde a las
preocupaciones tanto teóricas como políticas del desarrollo de esta teoría y
que da a la vez herramientas prácticas para la investigación sobre ella.
Respeto al espacio, un aspecto primordial que se desprende de
los Mapas de Relieves de la Experiencia es que la opresión y el privilegio
que causan las diferentes posiciones en determinadas estructuras de poder
dependen de los espacios y de las relaciones de poder en ellos. La comple-
xidad de la interseccionalidad se sistematiza y simplifica a través de la dife-
renciación de las experiencias vividas en los espacios y el rol de los espacios
queda representado visualmente. Pero, volviendo a las contour lines de Katz
(2001) los lugares no se consideran de forma aislada sino conectados entre
ellos a través de líneas que siguen la experiencia vivida y dibujan procesos.
Conectan los lugares analíticamente y permiten que diferentes procesos
que pueden ser interseccionales puedan ser analizados.

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Además, la comprensión del lugar que se propone se aleja de la


concepción de márgenes y centros. En los Mapas de Relieves de la Expe-
riencia no hay un centro y un margen sino una mezcla de márgenes y cen-
tros compleja y dinámica que no depende solamente de las estructuras de
poder sino de como las diferentes posiciones constituyen la experiencia en
diferentes lugares. Siguiendo la definición de Rose (1993) sobre el espacio
paradoxal como multidimensional, cambiante y contingente, los Mapas di-
bujan un espacio que puede ser entendido como paradoxal pero que intenta
alejarse de concepciones dicotómicas del espacio y el poder. La gradación
de las experiencias de opresión huye de las dicotomías del dentro-fuera o
centro-margen y ofrece una concepción más compleja de las dinámicas de
poder y la producción del espacio.
En resumen, el hecho de entender la interseccionalidad como es-
pacialmente constituida y experienciada hace que los Mapas de Relieves
de la Experiencia aparezcan como una metodología, como una forma de
análisis y representación de los datos interseccionales y como una herra-
mienta para la conceptualización de la interseccionalidad en si misma que
muestra las conexiones entre las producciones sistemáticas del poder y del
espacio. En el siguiente apartado desarrollaré la conceptualización de ma-
lestar en relación a los Mapas y sus implicaciones para la comprensión de
la desigualdad.

EL MALESTAR COMO SÍNTOMA


DE DESIGUALDAD

Como se ha mostrado en una gran variedad de investigaciones, el


espacio público se construye como heterosexual y se (re)produce como si
la heterosexualidad fuera preexistente (BELL & VALENTINE, 1995; BELLl
et al., 1994; BINNIE, 1997; VALENTINE, 1993). Esta heteronormatividad
se sustenta en base a la violencia y las agresiones homofóbicas, pero tam-
bién a través de juicios que “extienden malestar y hacen que las lesbianas
se sientan ‘fuera de lugar’ en sus espacios cotidianos” (VALENTINE 1996,
p. 148). A continuación voy a centrarme en como este ‘malestar’ es repre-
sentado también en los Mapas de Relieves de la Experiencia de jóvenes les-
bianas en Cataluña y Brasil de forma interseccional y cómo el desarrollo de

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MARIA RODÓ-DE-ZÁRATE

este concepto puede dar visibilidad a determinadas desigualdades. En estos


contextos, se ha apuntado recientemente a la necesidad de analizar cómo
otras identidades condicionan las experiencias de las/los disidentes sexu-
ales (PLATERO, 2012; SILVA et al., 2013; RODÓ-DE-ZÁRATE, 2013b).
Sobre el malestar, se ha argumentado que para los disidentes se-
xuales, se produce cuando hay una separación entre el adentro y el afue-
ra del cuerpo. Así, el bienestar aparece cuando “no hay la necesidad de
preocuparse por el mundo o la posición que se ocupa en él” (HOLLIDAY,
1999, p. 489). Por otro lado, también se ha dicho que mientras las personas
heterosexuales toman por dada la calle como heterosexual, “las lesbianas
están constantemente ejerciendo autovigilancia, controlando sus ropas,
comportamientos y deseos para evitar la confrontación” (VALENTINE,
1996, p. 148). Las jóvenes lesbianas tanto de Manresa como de Ponta Gros-
sa explicaron y dibujaron en sus Mapas de Relieves de la Experiencia que
el malestar que sentían como lesbianas estaba producido básicamente por
el miedo a las agresiones, miradas y juicios por el hecho de ser lesbianas.2
Podríamos argumentar que el hecho de sentir malestar en un lugar debido
a una identidad (o varias) es un síntoma de desigualdad. Es decir, que los
puntos acentuados en los Mapas de Relieves de la Experiencia son muestras
de opresiones y desigualdades. Pero, todos los malestares son signos de una
posición de opresión? Todos apuntan hacia desigualdades?
En este punto es importante distinguir entre malestares sistemáti-
cos/sistémicos y malestares contextuales. Algunas identidades pueden estar
en relieve, pueden estar acentuadas en algunas circunstancias pero eso no
significa que siempre deban ser malestares sistemáticos/sistémicos. Por sis-
témico me refiero a los que se experiencian por causa de una posición de
opresión en alguna estructura de poder (como ser mujer en relaciones de
género patriarcales). Desde una perspectiva geográfica y a través del análi-
sis de los Mapas, por sistemático me refiero a que una identidad es fuente
de malestar en varios lugares de la vida cotidiana y con frecuencia. Y esto
puede verse claramente en la clasificación de los lugares, ya que la situación
de cada uno de ellos – de más opresivo al menos – se determina a través

2
El trabajo de campo de esta investigación fue llevado a cabo durante la recogida de datos
de mi tesis doctoral “Geografías de la Interseccionalidad: el acceso al espacio público de
la juventud en Manresa” (2011-12) y durante una estancia pre-doctoral en Ponta Grossa,
Brasil (2013). Los datos que aquí se muestran como ejemplo para el desarrollo del concepto
de malestar se refieren a las entrevistas de lesbianas de entre 16 y 25 años, 7 de Manresa y 9
de Ponta Grossa.

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RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

de las curvas que dibujan determinadas identidades. En este caso, las líneas
de la sexualidad dibujan una curva, es decir, determinan la clasificación de
los lugares. Así, los puntos acentuados que o bien son sistemáticos o son
sistémicos (o ambos) son los que apuntan hacia desigualdades y que son
evidencia de las restricciones al derecho al espacio.
Por otro lado, los malestares contextuales serían los esporádicos
que no están relacionados con posiciones de opresión. Un ejemplo sería el
caso de Clara. Clara es una chica blanca de 21 años de Manresa que dijo
sentir malestar (y lo dibujó en su Mapa) por causa de su color de piel en el
Barrio Antiguo de su ciudad, habitado mayoritariamente por personas pro-
cedentes de Marruecos. Expresó un fuerte malestar que atribuía a que por
el hecho de ser (una mujer joven) blanca los hombres les hacían comenta-
rios y se sentía agredida y con miedo. Algunos estudios han mostrado que
las mujeres blancas tienden a tener miedo en términos racializados (DAY,
1999; PAIN, 2001). Pero a pesar del imaginario cultural y racista que se
mezcla aquí en relación con los hombres no-blancos y la violencia sexual,
ella se siente de esa forma y así lo dibujó en su Mapa. Difícilmente podemos
afirmar que ella se sintió malestar por su color de piel y que esto apunta a
una situación de desigualdad. En el contexto Catalán, ser blanca es una
fuente de privilegios en general, como lo es el ser heterosexual, pero eso no
excluye que un hombre heterosexual pueda sentir malestar en un bar gay.
Estos malestares serían pues los contextuales, los que aparecen
por el hecho de sentirse diferente a causa de una identidad en un contexto
determinado. Aunque el sentimiento pueda ser parecido, estos últimos so-
lamente se viven en situaciones y lugares particulares (no son sistemáticos)
y no se relacionan con una posición de opresión en una estructura de poder
(no son sistémicos). Así que estos no apuntan hacia desigualdades u opre-
siones, sino solamente a malestares.
El hecho de definir el bienestar según la relación entre posiciones
en estructuras de poder, creo que puede ayudar a entenderlos como algo
sistemáticamente (re)producido, pero también como una experiencia inte-
gral, dependiente de los lugares y que solo es posible si ninguna identidad
produce malestar. Esta característica del bienestar como algo integral es
básica desde una perspectiva interseccional porque pone de relieve la com-
plejidad de las experiencias de opresión y privilegio.
Por ejemplo, en la Figura 5, aparece un lugar que parece que re-
duce de forma drástica el malestar por razón de sexualidad: Deck. Este es
un bar LGBT de la ciudad de Ponta Grossa y se ve claramente como la

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línea de sexualidad desciende en este punto, siendo el primer lugar dónde


Denise no siente malestar por el hecho de ser lesbiana. Pero también es el
lugar dónde las líneas de clase y edad se acentúan intensamente. Según su
narrativa, la posibilidad de frecuentar ese bar le permite un gran alivio por
ser lesbiana pero al haber personas mayores que ella y con un mayor poder
adquisitivo siente malestar por sus otras identidades.

Figura 5: Mapa de Relieves de la Experiencia dibujado por


Denise, de 18 años, Ponta Grossa.

De esta forma, el bienestar aparece como una experiencia inte-


gral, no reducible a una sola identidad y dependiente de los espacios y las
diferentes configuraciones espaciales. Tomando la metáfora de los Mapas
de Relieves de la Experiencia, sentirse bien significaría no tener ninguna
línea acentuada, que todas estuvieran planas. Así, el bienestar se da cuando
ninguna identidad es fuente de opresión o posible fuente de discriminación.

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RELIEVES DE LA EXPERIENCIA

CONCLUSIONES

Como se ha visto, los Mapas de Relieves de la Experiencia repre-


sentan de una forma visual y simplificada la complejidad de la interseccio-
nalidad mostrando tanto el privilegio como la opresión. Situando el lugar
en el centro, el análisis es siempre situado y se evita la universalización,
permitiendo al mismo tiempo ver la relación entre diferentes contextos y
pudiéndose aplicar a diferentes campos de estudio.
Muestran como la interseccionalidad puede ofrecer importan-
tes claves para comprensión de la producción del espacio pero al mismo
tiempo sitúa el espacio como una dimensión fundamental para ser con-
siderada en los trabajos sobre interseccionalidad. La profundización en el
concepto de malestar como signo de desigualdad también permite dar luz
a desigualdades y discriminaciones que pueden pasar invisibilizadas por
no disponer de indicadores que las hagan más presentes. En este sentido,
los Mapas permiten analizar las narrativas sobre la experiencia vivida en
base a las experiencias de malestar interseccionales y situadas, poniendo el
énfasis en las (im)mobilidades cotidianas y las estrategias usadas en el día
a día para gestionar las identidades relacionadas tanto con las opresiones
como con los privilegios.
En resumen, los Mapas de Relieves de la Experiencia dan un paso
adelante en la conceptualización y investigación empírica sobre la intersec-
cionalidad, entendiendo las dinámicas de poder y de desigualdades como
algo experienciado y espacial.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
POR UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL
(E MATERIALISTA) DA MIGRAÇÃO
QUEER: LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO
O PAPEL DOS REGIMES DE
BEM-ESTAR SOCIAL
Cesare Di Feliciantonio

***

INTRODUÇÃO

Mobilidades e movimentos surgiram como características fun-


damentais da atual razão globalizada, liberal (pós) moderna (por exemplo,
CRESSWELL, 2006; GIOBBI, 2010; SMITH e FAVELL, 2006), opondo su-
jeitos sedentários e atrasados a tipos móveis, (pós) modernos. Sujeitos queer
parecem se encaixar neste quadro, já que movimento e migração têm sido
tradicionalmente associados ao processo de ‘sair do armário’ tanto pelas auto-
narrativas de pessoas queer quanto por análises de estudiosos (por exemplo,
BINNIE, 2004; CASTELLS, 1983; WESTON, 1995). Nesse respeito, trajetó-
rias específicas foram superestimadas, notavelmente a rural-urbana – como
favorecendo o sair do armário e a abertura à possibilidade de viver dentro de
sua própria comunidade (por exemplo, GORMAN-MURRAY, 2007) – e a
Hemisfério Sul-Norte (por exemplo, MANALANSAN IV, 2006). No entan-
to, os esforços recentes na bibliografia (em inglês) sobre a migração queer
foram abordados em direção aos mais diversificados e variados relatos de
experiências e trajetórias. De fato, os trabalhos de Andrew Gorman-Murray
(por exemplo, 2007, 2009; NASH e GORMAN-MURRAY, 2014) e Nathaniel
Lewis (por exemplo, 2012, 2013) questionaram a uniformidade e o reducio-
nismo dentro das narrativas hegemônicas da jornada rural/urbana de sair
do armário, de um lado a outro do Hemisfério Norte, enquanto subestimam
a diversidade de caminhos que podemos encontrar entre as experiências de
vida de pessoas queer, sob a influência de uma multiplicidade de fatores.
POR UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL (E MATERIALISTA) DA MIGRAÇÃO QUEER: LEVANDO EM
CONSIDERAÇÃO O PAPEL DOS REGIMES DE BEM-ESTAR SOCIAL

O presente capítulo tem por base essas críticas, explorando traje-


tórias não convencionais dentro da migração queer: de uma região metro-
politana do Hemisfério Norte para uma região metropolitana do Hemis-
fério Norte e de uma região metropolitana do Hemisfério Norte para uma
cidade comum do Hemisfério Norte. Na verdade, este capítulo analisa dois
padrões de migração muito diferentes: o movimento de italianos jovens,
queer e criativos, provenientes de diferentes regiões metropolitanas (Roma,
Pádua, Bolonha) em direção a Berlim (Alemanha) e a realocação de jovens
queer das principais cidades italianas (Roma e Milão) em cidades de pe-
queno porte. O primeiro padrão foi analisado no projeto de investigação
The Queer Sound of Berlin [O Som Queer de Berlim], que eu conduzi jun-
tamente com Cassiano Barbosa Gadelha, da Universidade Livre de Berlim,
entre o outono de 2012 e a primavera de 2013. Para este projeto, foi utilizada
uma metodologia de métodos mistos (por exemplo, DELYSER e SUI, 2013;
GREENE et al., 1989), feita da observação participante/participação obser-
vante nos principais locais frequentados por imigrantes queer italianos na
capital alemã e por meio de entrevistas em profundidade com 15 sujeitos
queer autodeclarados. O segundo padrão foi explorado mediante seis en-
trevistas em profundidade que realizei, nos primeiros meses de 2014, com
sujeitos queer autodeclarados que recentemente se realocaram em diferen-
tes cidades pequenas da (central/sulista) Itália, de Roma e Milão – as duas
principais áreas metropolitanas italianas, geralmente classificadas como a
Mecca gay italiana –, juntamente com Bologna e Torre del Lago Puccini
(um destino para as férias de verão, perto de Pisa). Ao analisar esses mo-
vimentos, o escopo era compreender e destacar a complexidade de fatores
materiais e imateriais que levam à decisão de migrar em tempos de crise,
austeridade e aumento do desemprego. Quanto a este aspecto, o presente
capítulo tem como objetivo analisar o papel dos regimes de bem-estar social
dentro de processos de migração, como, por exemplo, condições materiais
e oportunidades – oferecidas pelos regimes de bem-estar social – que têm
sido subestimadas em bibliografias sobre as migrações queer. De que ma-
neira a busca pela identidade queer é incorporada dentro de possibilidades
materiais específicas e regimes de bem-estar social? Por que tantos sujeitos
queer decidem deixar áreas metropolitanas da Itália e se mudam para uma
das mais pobres regiões metropolitanas da Alemanha (isto é, Berlim)? O
que leva sujeitos queer a deixarem para trás o presumido anonimato e a
possibilidade de exteriorização da sexualidade oferecida por uma área me-
tropolitana em favor de uma cidade pequena que seria pretensamente um
local de opressão e de uma sexualidade enrustida?

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CESARE DI FELICIANTONIO

Tentamos responder a estas questões enfatizando o papel das con-


dições materiais e dos regimes de bem-estar social na definição das opções
de migração. Esta não é uma forma de reducionismo econômico; pelo con-
trário, uma multiplicidade de fatores (por exemplo, de imagens, desejos,
afetos, a busca de identidade) é reconhecida por deslocar migrantes queer.
Enquanto a bibliografia sobre migração queer dentro do Hemisfério Norte
tem normalmente ignorado o papel de regimes de bem-estar social, este
capítulo situa materialmente esses migrantes e seu status socioeconômico
e as possibilidades dentro de regimes nacionais/locais de bem-estar social.
Na verdade, a configuração desses regimes pode explicar parcialmente os
movimentos tratados aqui, tanto como repulsores quanto atratores. Além
disso, o fixo, teológico binarismo da jornada de sair do armário, sempre
presumindo um movimento rural-urbano, é desafiado: a cidade pequena
pode então se tornar um lugar para assumir-se sexualmente e para a au-
todescoberta dos migrantes queer que criam pontes e conexões com áreas
metropolitanas, tornando queer as situações provincianas. Antes de apre-
sentar a estrutura do capítulo, uma premissa é adequada: ao me referir à
migração queer dentro deste capítulo, eu a utilizo como um termo genérico
para incluir todos os comportamentos sexuais desviantes que excedem as
formas hegemônicas de identidade de gênero e comportamento sexual. As-
sim, uma linha aberta é traçada, visto que acho que nenhuma divisão rígida
pode ser estabelecida nas vidas e nas experiências das pessoas em torno de
gênero e sexualidade.
O restante do capítulo tem cinco seções. Na seção 2, discuto a
bibliografia geográfica sobre migração queer, destacando como ela supe-
restima certos movimentos incluídos nas narrativas e análises da jornada
de sair do armário e da busca de identidade queer. Pelo contrário, sublinho
a necessidade de seguir as críticas recentes levantadas por Gorman-Murray
e Lewis reconhecendo o caráter complexo e corporificado dos processos de
migração queer através de fluxos migratórios em queda (GORMAN-MUR-
RAY, 2007, 2009). A seção 3 situa materialmente as trajetórias considera-
das neste artigo, analisando, porém, as características básicas do sistema
italiano de bem-estar social, destacando o papel essencial atribuído às re-
lações familiares. Isto é particularmente relevante para pessoas queer, já
que, sendo o sistema italiano de bem-estar social dirigido principalmente
às famílias, indivíduos permanecem excluídos (casamento heterossexual é
a única forma de união reconhecida pela lei). Continuo, então, a investigar
o papel do regime de bem-estar social dentro das trajetórias não conven-
cionais de migração queer. Na seção 4, concentro-me em queer italianos

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POR UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL (E MATERIALISTA) DA MIGRAÇÃO QUEER: LEVANDO EM
CONSIDERAÇÃO O PAPEL DOS REGIMES DE BEM-ESTAR SOCIAL

(que viviam nas principais cidades italianas) realocando-se em Berlim, visto


que os dados coletados revelaram a importância primordial do sistema de
bem-estar social mais amplo de Berlim (em comparação com o italiano) no
meio de uma multiplicidade de fatores impulsionadores de migração. Uma
trajetória completamente diferente é analisada na seção 5 através do caso de
G., que saiu de uma das principais cidades italianas para viver em uma cida-
de pequena. Seu relato revela não somente como um sistema de bem-estar
social voltado às famílias pode ser decisivo no momento de se mudar, mas
também a maneira como este processo é experimentado como abrindo no-
vas possibilidades que desafiem a dicotomia do rural como enrustido, do
urbano como exteriorização de sexualidades dissidentes. Finalmente, nas
conclusões, resumo os principais argumentos do capítulo antes de relembrar
mais complexos e materialistas relatos de migração queer para que enten-
damos a inter-relação dos diversos fatores socioeconômicos, emocionais e
relacionais que guiam os migrantes queer em tempos de crise e austeridade.

COMPLICANDO A MIGRAÇÃO QUEER


ATRAVÉS DA REDUÇÃO DE ESCALA

Ao considerar os caminhos de migração de pessoas queer, o mo-


vimento migratório tem sido associado tradicionalmente à decisão e ao
processo de sair do armário (por exemplo, BINNIE, 2004; BROWN, 2000;
FORTIER, 2001). Na verdade, como afirma Lewis:

[...] migração queer muitas vezes torna-se sinônimo de deixar um


lugar inseguro ou não sustentador para revelar a sua verdadeira, já
formada, identidade queer de uma maneira mais adequada, em um
lugar mais inclusivo caracterizado por uma grande comunidade gay
com normas sexuais e culturais menos restritivas. Sair do armário
tem sido frequentemente enquadrado como um locus em torno do
qual essas migrações presumivelmente lineares ocorrem. (LEWIS,
2012, p. 212).

Esta associação estreita entre a migração e o processo queer


de saída do armário levou então a uma construção rígida das trajetórias

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consideradas; a destinação foi presumida como sendo um lugar de


exteriorização, anonimato e liberdade, como tem acontecido historicamente
na formação das comunidades gays e lésbicas por cidades do Hemisfério
Norte (por exemplo, ADLER e BRENNER, 1992; CHAUNCEY, 1995;
D’EMILIO, 1983; HENNESSY, 2000). Migração queer, então, resulta, como
sempre, no envolvimento de um movimento intranacional em direção
a uma região metropolitana por causa de seu anonimato e múltiplas
possibilidades de encontros (por exemplo, CHAUNCEY, 1995; HIGGS,
1999; HUBBARD, 2012), ou, em nível transnacional, em direção a países
modernos e protetores de direitos do Hemisfério Norte (por exemplo,
PUAR, 2002), ainda que a maioria das leis nacionais de imigração
permaneça profundamente heteronormativa (por exemplo, LUIBHÉID,
2008; MANALANSAN IV, 2006).
Isto levou à reificação de certas narrativas tendenciosas que carac-
terizam cidades como locais de liberação sexual, possibilidades e exteriori-
zação, enquanto áreas rurais e cidades pequenas se encontram representa-
das como enrustidas, atrasadas. Este modelo dominante retrata o migrante
queer como um ator que migra de uma região de maior coerção, em termos
de como se expressar e vivenciar a sexualidade, para uma área de maior
abertura (aqui a área urbana é entendida como um espaço utópico relacio-
nado a certo tipo de futuridade queer, prometendo aos sujeitos queer uma
interpretação da vida sexual no território anônimo e, ao mesmo tempo,
diverso da cidade grande) e liberdade sexual representada pela metrópole.
Como ressalta Gorman-Murray (por exemplo, 2007, 2009), esta perspec-
tiva é baseada em uma determinada teleologia que corrige identidades e
classifica os movimentos de uma forma que vai além das práticas concretas
vividas pelos sujeitos queer na cidade grande. Além disso, se rural e urbano
assumirem uma forma em relação à sexualidade por si só, o rural (inde-
pendentemente do lugar específico de que estamos a falar, uma vez que esta
dicotomia tem uma função teleológica) será o local de aprisionamento de
dissidentes sexuais que têm de lidar com várias restrições sociais. Pelas in-
clinações do processo de migração, o urbano aparece, assim, como local de
abertura, que confere aos sujeitos queer uma capacidade de assumir uma
identidade queer cosmopolita, global e mais próxima da cultura dominante
que impulsiona as rurais e ainda não emancipadas identidades sexuais para
fora do armário, a fim de consolidar identidades sexuais urbanas, talvez
anônimas, mas sempre já emancipadas. Estes relatos de migração queer
como jornada de saída do armário têm sido frequentemente associados à
ideia de casa (por exemplo, FORTIER, 2001; GORMAN-MURRAY, 2009).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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CONSIDERAÇÃO O PAPEL DOS REGIMES DE BEM-ESTAR SOCIAL

Por exemplo, Anne-Marie Fortier mostrou como a evocação de casa como


familiaridade muitas vezes apresenta as autonarrativas de migrantes queer
na construção de um horizonte diaspórico, definido como “a projeção de
pertencimento e cultura (queer) dentro de um horizonte espaço-temporal
definido em termos de multilocalidade, diversidade cultural, dispersão e
conflito” (2001, p. 407).
Uma perspectiva semelhante ligando movimento/deslocamento
de sair do armário foi desenvolvida por Larry Knopp em sua conceituação
da “busca de identidade” (queer), concebida como:

[...] jornadas pessoais (e, às vezes, coletivas, como no caso dos nacio-
nalismos) através do espaço e do tempo – material, psíquica, e em
uma variedade de escalas – que são construídas internamente como
sendo sobre a busca de um todo integrado na qualidade de seres hu-
manos individuais vivendo em algum tipo de comunidade (se não
sociedade). [...] Especificamente, é um esforço para criar ordem a
partir do caos que é a identidade fraturada combinada com estrutu-
ras de poder que disciplinam (e, muitas vezes, para inúmeros de nós,
oprimem) a identidade. (KNOPP, 2004, p. 122-123).

De acordo com o geógrafo norte-americano, no caso de sujeitos


queer isso ocorre geralmente através do distanciamento de famílias e con-
textos de origem a fim de sair do armário. Este processo envolve não só
a criação de novas comunidades e relacionamentos, mas uma espécie de
descoberta de autopossibilidades. De fato, “é também sobre testar, explorar
e experimentar modos alternativos de ser, em contextos que estão livres
das expectativas da família unida, parentesco ou relações comunitárias”
(KNOPP, 2004, p. 123). Estas posições associando a migração queer à jor-
nada de sair do armário ou a uma busca de identidade receberam recen-
temente várias críticas, notadamente por Gorman-Murray (2007, 2009) e
Lewis (2012, 2013). Gorman-Murray (2007) denunciou como essas narra-
tivas tornaram-se quase arquetípicas, levando não apenas a subestimar ou-
tras trajetórias de migração, mas também a analisá-las como “fundamen-
talmente similar” à rural-urbana (p. 108-109). Neste aspecto, ele carrega
uma crítica profundamente geográfica a essa bibliografia em torno da esca-
la considerada para analisar a migração queer. Em vez de se concentrar em
trajetórias de zonas rurais para zonas urbanas ou na escala (trans)nacional,
as análises sobre a migração queer devem se concentrar nas “motivações
dos migrantes individuais e o movimento do próprio corpo queer através

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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CESARE DI FELICIANTONIO

do espaço” (p. 111). Assim, o esforço teórico deve ser dirigido no sentido
de uma redução da escala dos fluxos migratórios em direção ao corpo, visto
que isso oferece a possibilidade “de reconhecer diversos caminhos de mi-
gração sem privilegiar uma trajetória à custa de outras” (p. 111). Isso remo-
dela a migração queer como “uma pesquisa corporificada por identidade
sexual – uma busca individual que pode ser materializada em diferentes,
múltiplas escalas e caminhos de realocação” (p. 111). Em termos geográfi-
cos, isso põe em questão a necessidade de reconhecer o corpo como uma
escala fundamental de análise, conforme já destacado por “geografias queer”
(por exemplo, LONGHURST, 1997; SILVA et al., 2013). Em um artigo se-
guinte (2009), Gorman-Murray estendeu a discussão sobre o corpo como
o principal vetor de deslocamento enfatizando o papel desempenhado por
(corporificados) afetos, desejo e acessórios íntimos na formação da migra-
ção queer.
Mais recentemente, Nathaniel Lewis (2012) promoveu este de-
safio à ideia da jornada de sair do armário como linear e como sempre
conduzindo a uma comunidade urbana, enfatizando quão central é a rela-
ção entre subjetividades interseccionais e contextos sociais para entender o
caminho migratório. Por exemplo, ele mostrou como homens gays negros
que entrevistou não sentiram qualquer concepção de emancipação urbana
ou exteriorização de sua sexualidade quando se deslocaram para as novas
cidades norte-americanas investigadas. Dessa maneira, “as supostas áreas
urbanas nas quais as jornadas de saída do armário poderiam ser normal-
mente imaginadas para serem enfim reveladas como respostas incompletas
a procuras por colocação” (LEWIS, 2012, p. 225]. De fato, Lewis aponta o
caráter relacional e contextual da migração queer: “a natureza segmentada,
descontínua da migração de ‘saída do armário’, então, é atribuível às nego-
ciações dos homens para as dinâmicas sociais encontradas em vários luga-
res – em oposição a trajetórias unilaterais em relação a ‘sair do armário’” (p.
226). Em um artigo seguinte (2013), enfocando as narrativas de migração
de 24 homens autodeclarados gays que vivem em Ottawa (Canadá), Lewis
promoveu a sua investigação sobre como a relação entre migração queer e
dinâmicas sociais enquanto laços relacionais embutidos no lugar desempe-
nharam um papel fundamental para os homens entrevistados ao decidirem
se mudar. Seu estudo então desafia uma visão monolítica dos fatores presu-
midos como influência às escolhas de migração (por exemplo, homofobia
ou intolerância), enquanto enfatiza o papel da dinâmica complexa de nego-
ciações dentro das redes e instituições. Conforme ele explica:

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POR UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL (E MATERIALISTA) DA MIGRAÇÃO QUEER: LEVANDO EM
CONSIDERAÇÃO O PAPEL DOS REGIMES DE BEM-ESTAR SOCIAL

Mudar-se para Ottawa foi, portanto, menos um meio de escapar do


que um meio de obtenção de uma rede de segurança social duran-
te o imprevisível processo de ‘sair do armário’. Ao escolherem sair,
os homens atenuam os medos de serem deslocados ou rejeitados,
estabelecidas novas redes, e dão a si mesmos a liberdade de sair do
armário em seu próprio cronograma. (LEWIS, 2013, p. 324).

Apesar de compartilhar da mesma ontologia de não linearidade


e multidirecionalidade de migração queer, o capítulo atual tenta ampliar a
perspectiva desenvolvida por esses estudiosos através da investigação dos
fatores materiais que conduzem a migração queer como resultante da con-
figuração dos regimes (nacionais) de bem-estar social. Na verdade, tanto
a contextualização corporificada (enfatizada por Gorman-Murray) quan-
to a relacional (Lewis) da migração queer não podem ser separadas das
condições materiais que medeiam nossos corpos, afetos, desejos e relações.
Podem os regimes de bem-estar social influenciar a decisão de migrar em
tempos de austeridade e crise, quando os sentimentos de falta de opor-
tunidades para os jovens parecem prevalecer? A fim de entender o papel
desempenhado pelo regime de bem-estar social, no caso dos imigrantes
queer italianos, é preciso considerar como o sistema de assistência social
funciona na Itália, sendo este o objeto da próxima seção.

(SITUANDO) O SISTEMA DE
BEM-ESTAR SOCIAL ITALIANO

Uma reconsideração da migração queer como um movimen-


to corporificado e/ou relacional deve levar em conta que as possibilida-
des materiais (ou restrições) são oferecidas pelos contextos em que esses
movimentos ocorrem, tanto em termos de partida quanto de destino. Na
Europa Ocidental, as décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial viram
uma melhoria profunda das condições de vida de milhões de pessoas da
classe trabalhadora, graças à adoção de políticas de grande redistribuição de
renda, marcando o estabelecimento de sólidos regimes estatais de bem-estar
social. De acordo com a classificação de marco de Esping-Andersen (1989),
os estados de bem-estar social podem ser agrupados em três categorias: libe-
ral, conservador/corporativista e social-democrático. Dentro deste quadro, o

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
CESARE DI FELICIANTONIO

Estado social italiano está situado na categoria conservador/corporativista,


juntamente com países como a França e a Alemanha. Estes grupos são ca-
racterizados pelo seguro social, em vez de assistência social, e um grande
papel é atribuído ao sistema familiar e às instituições religiosas; em geral,
o Estado é visto como para intervir quando as capacidades das famílias
em servir seus membros não podem ser atingidas. Apesar de reconhecer a
importância da classificação de Esping-Andersen, várias contribuições mo-
bilizaram uma crítica severa, abordando especialmente a necessidade de se
reconhecer as especificidades de um modelo Mediterrâneo/Sul da Europa
de estado de bem-estar social, já que estes países (notadamente Portugal,
Espanha, Itália e Grécia) desafiam esta classificação (por exemplo, CAS-
TLES, 1995; CASTLES e FERRERA, 1996; FERRERA, 2000; FLAQUER,
2000; TRIFILETTI, 1999). O que todos os analistas mencionam como a
principal especificidade do modelo do estado de bem-estar do Sul da Euro-
pa é o papel central das famílias em todos os aspectos de produção e repro-
dução social, notavelmente de renda e serviços. Como a (heteronormativa)
família é a principal responsável pela reprodução e acesso aos serviços, o
papel das mulheres resulta fundamental, levando-as então a serem as úni-
cas responsáveis pelo trabalho doméstico, conforme provado por baixas ta-
xas de participação no mercado de trabalho formal (DI FELICIANTONIO
e SALVATI, 2014). Segundo alguns estudiosos, esses países são caracteriza-
dos por uma convicção “familiarística” para a qual a família é capaz de pres-
tar melhores serviços e cuidados do que o Estado (por exemplo, GUILLÉN,
1997). Nisso resulta que a maior parte da assistência prestada pelo Estado
em caso de necessidade é dirigida a famílias (legalmente casadas, portanto,
heterossexuais) em vez de indivíduos.
De qualquer maneira, este sistema baseia-se no papel das chama-
das “supermulheres”: na verdade, o crescimento da participação feminina
no mercado de trabalho formal não foi acompanhado por uma diminuição
em suas tarefas dentro da família (por exemplo, MORENO, 2006; TRIFI-
LETTI, 1999). Em termos de serviços prestados pelo Estado, os países do
sul da Europa são caracterizados por um suprimento total nos setores de
educação e saúde, enquanto a habitação social tem sido tradicionalmente
bastante fraca (por exemplo, ALLEN et al., 2004; CASTLES e FERRERA,
1996). Todas essas descrições se encaixam muito bem no caso italiano,
onde a falta de habitação social, combinada com um aumento da taxa de
desemprego, especialmente para as pessoas com idade inferior a 30, e a
ausência de formas de distribuição de renda fizeram com que a situação
se tornasse extremamente difícil nos tempos atuais de crise e de medidas

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CONSIDERAÇÃO O PAPEL DOS REGIMES DE BEM-ESTAR SOCIAL

de austeridade adotadas por governos e instituições para enfrentar a crise.


Desta forma, os jovens se sentem obrigados a contar com a assistência e
ajuda familiar, especialmente em termos de renda e habitação, tornando a
decisão de migrar para outra cidade dentro do país mais difícil, mesmo que
para realizar estudos universitários.
Esta situação pode se tornar particularmente problemática para
pessoas queer, visto que a Itália continua a ser um país fortemente hetero-
normativo e homofóbico (por exemplo, GASPARINI et al., 2012). Na ver-
dade, em termos legislativos, em nível nacional, não houve reconhecimento
no que diz respeito a direitos (por exemplo, uniões civis ou casamento),
tendo até uma lei que introduziria a homofobia como um agravante no
Código Penal sido rejeitada pelo Parlamento em 2009 (ROSS, 2008). Con-
forme mostrado por Charlotte Ross (2009), os últimos anos dos governos
Berlusconi foram marcados por um difusivo discurso homofóbico, como
estratégia para atrair tanto as instituições quanto os eleitores católicos. No
entanto, os governos de Berlusconi não representaram uma anomalia no
que diz respeito a questões LGBT, dado que “as experiências da população
LGBT, sob Berlusconi, caíram em um ‘contínuo legislativo’ já que os seus
direitos permaneceram sem proteção antes, durante e após esse período”
(ROSS, 2009, p. 204). Pelo contrário, as condições de vida das pessoas queer
parecem ter melhorado em termos culturais e sociais, com maior visibilida-
de e sensação de legitimação/aceitação percebida especialmente em áreas
metropolitanas (por exemplo, ROSS, 2008, 2013; TRAPPOLIN, 2004).
Esta breve consideração situa materialmente as escolhas de deslo-
camento de jovens queer italianos dentro de contextos e condições específi-
cas, visto que a decisão de migrar não pode ser separada das oportunidades
de regime de bem-estar oferecidas tanto por uma destinação (transnacio-
nal) à capital gay (como Berlim) como por uma pequena cidade nacional,
conforme vamos ver nas próximas seções.

MUDANDO-SE PARA A CIDADE


‘POBRE, MAS GAY’

Quando começamos o projeto de pesquisa The Queer Sound of


Berlin [O Som Queer de Berlim], em 2012, buscávamos interrogar as diversas

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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razões pelas quais tantas pessoas queer se mudavam para uma das cidades
mais pobres da Alemanha (DE ROSA et al., 2013). Embora Berlim incor-
pore várias imagens e posições possíveis dentro das redes urbanas transna-
cionais ligadas à globalização – por exemplo, uma cidade wannabe global,
cada vez mais coração da Europa continental, uma “cidade alpha da mídia
mundial”, uma “cidade de talentos”, uma cidade comum (BADER e SCHA-
RENBERG, 2010; COCHRANE e JONAS, 1999; KRÄTKE, 2004; WARD,
2004) –, é uma das áreas metropolitanas mais problemáticas da Alemanha
em termos de renda per capita e desemprego (KRÄTKE, 2011). No entanto,
continua a ser um dos destinos mais atraentes para pessoas queer transna-
cionalmente, por causa de sua fama como uma cidade transgressora, de
contracultura e vida noturna. Italianos seguem este caminho, conforme
mostrado pela proliferação de festas queer italianas na cidade. O que atrai
tantos queer italianos aqui? Qual é o papel desempenhado pelo desejo e
pela imagem na decisão de se mudar para cá? Foi tudo por causa da possi-
bilidade de encontros sexuais fáceis e por assumir-se? Esta última questão
parece particularmente problemática, pois, embora o contexto italiano seja
homofóbico, as principais cidades italianas (onde todos os nossos coparti-
cipantes da pesquisa viviam antes de se mudarem para Berlim) oferecem
múltiplas possibilidades para pessoas queer.
Entre as 15 que entrevistamos, apenas uma fez associação direta
entre a decisão de mudar-se para Berlim e o processo de assumir-se (gay,
neste caso específico). Nenhum dos outros sequer mencionou este aspecto,
pois todos eles já haviam se assumido de alguma maneira. Pelo contrário,
conforme destacado por Gorman-Murray e Lewis, que fizeram referência
a uma variedade de fatores que impulsionam a decisão de migrar: imagem,
desejo, aluguéis baratos, a possibilidade de trabalhar facilmente no setor
artístico e assim por diante. Para todos eles, Berlim expressa o símbolo de
um futuro pessoal possível à abertura de oportunidades que não pode nem
ser imaginado no âmbito italiano. Podemos considerar, por exemplo, o se-
guinte relato de Marco, 34 anos, pintor e joalheiro:

Quando decidi deixar Roma, escolhi Berlim porque, para mim, era
como se esta fosse a cidade onde eu tinha que estar se eu quises-
se, mesmo que sozinho, pensar em ter alguma chance! Em Roma,
pagava 800€ pelo aluguel, e o escritório onde desenhava era muito
pequeno, tinha que fazer um monte de trabalhos precários só para
conseguir pagar pelo escritório, mas não tinha tempo ou energia
para pintar! Na Itália, é impossível até mesmo pensar em ser capaz

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de viver de arte, a não ser que você tenha, antes de começar, uma
família ou amizades ou redes conhecidas que assistam e ajudem. Em
Berlim, pago 600€ por mês por um escritório que é muito confortá-
vel e grande o suficiente para viver! Ainda que eu precise trabalhar
nos mercados por um par de dias por semana, e é isso, todo o res-
to do meu tempo eu dedico à minha arte. Na verdade, em Berlim,
tenho redescoberto minha criatividade e vontade de produzir; em
princípio, foi um processo de descoberta, novas pessoas, novos luga-
res e muitas festas, muito sexo, mas já sabia que Berlim é uma cidade
onde existem infinitas possibilidades de encontros. A ideia que tinha
de Berlim? A cidade de oportunidades, sob qualquer holofote você
olha e a vê, e eu tenho que dizer que isto foi feito realmente para
mim. (Entrevista pessoal).

Bem como outras narrativas investigadas, o ponto principal é a


complexidade dos fatores materiais e imateriais que guiam a escolha do
deslocamento espacial. No entanto, em sua narrativa não havia qualquer
referência à homofobia italiana ou à necessidade de mudar-se para Berlim
a fim de assumir-se. Pelo contrário, o que parecia unir as trajetórias pesso-
ais é certa referência ao sistema alemão (e berlinense) de bem-estar social.
Embora ninguém tenha citado primariamente o sistema de bem-estar so-
cial alemão quando perguntado sobre as razões para deixar a Itália, muitos
deles citaram a falta de serviços e oportunidades oferecidas pelo Estado e
outras instituições na Itália – isto foi lembrado depois, quando do aprofun-
damento da história de seus processos de realocação.
De fato, o regime de bem-estar social em Berlim oferece mais
serviços e oportunidades do que o italiano, especialmente para jovens (de-
sempregados ou em busca de um emprego), notadamente a) no setor da
habitação, através de subsídios monetários e b) ao proporcionar formas es-
pecíficas de renda básica universal. A este respeito, o sistema de bem-estar
social parece ter dado a eles não só a possibilidade de seguir suas aspira-
ções, mas também de sentir uma ligação imediata e forte com a cidade. Isto
se observa claramente no seguinte relato de F., de 35 anos, DJ, produtor e
garçom:

Chegando em Berlim eu percebi que não era fácil encontrar um


emprego, mesmo porque não falava alemão; em princípio, trabalhei
um pouco, todo o trabalho sujo e precário, graças a italianos que
conhecia ali, depois de algumas semanas fui informado sobre umas

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ajudas públicas, acostumado a conhecer o sistema italiano eu nun-


ca tinha me fixado a este tópico! Graças ao dinheiro que recebia,
pude começar a perceber o que estava acontecendo ao meu redor
e apreciar o que eu tinha que fazer, as chances que tinha, e, claro, o
estado social ainda te ajuda mesmo a te divertires (risos). Berlim é
sempre assim, pessoas que têm como único objetivo as festas, o sexo
e as drogas e não devem ser curadas porque recebem ajuda pública.
É claro que eu também, quando cheguei, descobri e experimentei,
porque tu não vais a Berlim se queres fazer as mesmas coisas que
fazias em Bolonha ou em Roma, tu vens a Berlim porque sabes que
tudo pode acontecer, que não podes imaginar as experiências que
terás. Se é isso que me conecta a Berlim? Tenho que dizer a verdade,
este cenário hipersexualizado acaba sendo a reprodução de um pa-
drão diferente, no meu caso, as possibilidades que meu status social
me deu me levaram a reconhecer esta cidade como um lugar con-
fortável, onde tens a oportunidade de construir um novo caminho e
uma nova vida. (Entrevista pessoal).

Este breve relato destaca o que apareceu em todas as entrevistas


que realizamos: vários fatores conduzem a decisão das pessoas de migra-
rem para a nova ‘capital europeia queer transgressiva’, notadamente a fal-
ta de oportunidades oferecidas pelo sistema de bem-estar social italiano.
Apesar de ‘pobre, mas sexy’, Berlim acolhe e mantém migrantes (queer)
por meio do sistema de bem-estar social, vivenciado enquanto estratégia
material de sobrevivência para que a pessoa possa despender seu tempo
com o que preferir.

REALOCAÇÃO NA CIDADE PEQUENA

Apesar de relevante, o papel dos regimes de bem-estar social na


condução da migração a partir de diferentes cidades italianas em direção a
Berlim é mediado por uma variedade de outros fatores (materiais e imate-
riais), visto que Berlim evoca uma forte imagem como ‘cidade de talentos’ e
‘cidade gay’. Ao contrário, se levarmos em conta as trajetórias nacionais de
realocações das duas principais cidades italianas (Roma e Milão) em dire-
ção a cidades pequenas, o papel assumido pelo regime de bem-estar social

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italiano voltado para a família torna-se proeminente. Como lidar com um


jovem gay em uma dessas duas cidades com o custo extremamente elevado
de vida (especialmente habitação) e a concomitante falta de possibilidades
de um (decente) emprego? O que acontece quando a rede familiar na qual
você confia o empurra para se realocar em outra cidade (menor e mais co-
mum), onde você pode encontrar mais assistência e oportunidades?
Podemos considerar a história de G., um rapaz de 29 anos que se
realocou em uma pequena cidade na região de Marche (uma área da Itália
Central) em 2013, depois de ter vivido por quase oito anos em Roma e um
par de anos em Milão. G. vem de uma família de classe média da Toscana
e mudou-se para Roma quando tinha 19 anos e ingressava na universida-
de, graduando-se em Ciências da Comunicação. Militante gay ligado a um
partido político, ele permaneceu em Roma um ano mais após terminar seus
estudos, enquanto tentava procurar um trabalho (fixo) no setor de mídia,
mas encontrou apenas contratações precárias e curtas, não dando a ele a
possibilidade de se sustentar. Dessa maneira, ele continuou a contar com
o apoio financeiro de seus pais. Para ser mais independente, acabou por
fazer mais de um trabalho ao mesmo tempo, mas ainda assim ele não tinha
condições de cobrir todas as despesas de subsistência. Como forma de ten-
tar ter mais oportunidades de emprego, mudou-se para Milão no começo
de 2011, mas, mesmo lá, não pôde encontrar muito mais do que contratos
semelhantes aos de estágios, de modo que, mais uma vez, ele não podia
pagar todas as despesas. Assim como em Roma, ele era muito atuante na
vida gay em Milão (festas, reuniões, associações, etc.), descrevendo-a como
“emocionante” e “intrigante” (entrevista pessoal). No entanto, após alguns
anos, foi-lhe dada por alguns familiares a possibilidade de ter um emprego
bem remunerado como recepcionista em um hotel perto da praia na região
de Marche. Ele aceitou mudar-se para lá, deixando assim a possibilidade de
exteriorização das áreas metropolitanas como Milão e Roma para se esta-
belecer em uma cidade pequena. Quando eu o interroguei sobre os fatores
que o impulsionaram a mudar-se para lá, sua explicação foi absolutamente
relacional (como no estudo de Lewis apresentado na segunda seção deste
ensaio), mas embutida na materialidade do regime italiano de bem-estar
social com base no privado familiar. Ele afirmou:

Olha, não é uma coisa forçada ou que te leva a escolher isto, mas
é uma escolha essencial toda tua, tua família te ajudou e manteve
por anos, também te oferece a possibilidade de ter um emprego bem

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remunerado, não muito árduo, onde se pode tirar férias e que te dá


uma série de benefícios que não se encontra sempre. Por isso penses:
tenho que ficar na minha cidade, continuar a viver com duas ou três
pessoas para dividir o aluguel, e receber sempre ajuda dos meus pais
para conseguir? Não demos muita volta no assunto, sem a minha
família não podia fazer nada, porque, neste estado, como indivíduo
não se tem direito a nada, nenhuma ajuda financeira quando se pro-
cura trabalho, com contratos de trabalho precários que tinha não
havia direito ao seguro-desemprego, quando estás na faculdade e es-
tudas, bolsas de estudo são inexistentes, tudo é tratado pela família,
certamente, conheço pessoas que viviam afogadas em suas famílias e
que se demitiram, mas me relaciono muito bem com a minha famí-
lia, que sempre me sustentou, por que deveria romper com ela e por
que teria que deixar a minha rede familiar se, neste país, tudo passa
por ela? (Entrevista pessoal).

E sobre a sua vida sexual? Será que ele percebe este percurso
como um retorno ao armário limitado por condições materiais? Qual é o
impacto de uma trajetória de migração em direção a uma metrópole para
a criação de possibilidades de encontros ou dirigida a uma pequena cida-
de de vida sexual comum? Mais uma vez, o sistema de bem-estar social é
descrito como oferecendo novas possibilidades, e, a este respeito, deu a ele
a oportunidade de descobrir novos mundos, comunidades e sociabilidades
sexuais:

Nenhuma volta à invisibilidade! Qual invisibilidade? Apenas o fato


de que é uma cidade pequena, a comunidade gay e lésbica é menor,
mas eu nunca pensei em me esconder! Você pode descobrir novos
lugares, mão a mão você entra na rede de amigos que saem juntos,
crias novas relações e contatos, a afetividade chega a ser mais forte.
Tenho que dizer que redescobri muito o sentido de estar junto, o
feito de ter uma comunidade mais reduzida te dá a oportunidade
de apreciar mais a gente que está ao seu redor e descobrir situações
diferentes das que há em lugares como Milão e Roma [...]. Claro
que estes permanecem como pontos de referência, pode te ocorrer
de ir à cidade para o fim de semana, saio com os amigos, vou festar
com eles [...]. Estamos tentando organizar uma atmosfera de festa
em uma discoteca nas proximidades. Se a província é mais homo-
fóbica que as cidades? Se tenho que descrever as coisas como são,
acho que o nível de homofobia é o mesmo em todo o país, claro que
tem tamanhos diferentes, a metrópole tem uma variedade social que

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não se pode encontrar em uma pequena cidade, no entanto, as situ-


ações desagradáveis bem como encontros excitantes e estimulantes,
podem acontecer em qualquer lugar, apesar das medidas da cidade.

Histórias como a relatada por G. revelam a contextualização ma-


terial e a inserção dos caminhos de migração de sujeitos queer dentro de
um sistema específico de bem-estar social: fatores materiais podem levar as
pessoas a optarem por trajetórias não convencionais, para além dos ‘paraí-
sos gays’ metropolitanos. No entanto, essas pequenas cidades não se encon-
tram desconectadas das áreas metropolitanas e seu estilo de vida, oferecen-
do a possibilidade de viver novas e afetuosas experiências não confinadas
ao armário presumido das cidades comuns.

CONCLUSÕES: COMPREENDENDO
A RELEVÂNCIA DA MIGRAÇÃO QUEER

A migração queer tornou-se um tema de destaque dentro (na lín-


gua inglesa) das geografias de sexualidades, visto que (rural/urbana ou, em
linhas gerais, do armário para o se assumir) foi conectada a processos de
sair do armário e busca de identidade queer. Seguindo as críticas recente-
mente levantadas por geógrafos como Gorman-Murray e Lewis, a migração
queer foi reconceitualizada como um movimento corporificado, situado e
relacional envolvendo uma variedade de trajetórias e fatores impulsiona-
dores complexos. Neste capítulo, tentei ampliar essa perspectiva focando
na contextualização material da migração queer, conforme representada
pelo sistema de bem-estar social em que o movimento ocorre. Na verda-
de, regimes de bem-estar social desempenham um papel fundamental na
orientação de vida da população, inclusive dos sujeitos queer, e esse papel
tem sido profundamente negligenciado na bibliografia internacional sobre
migração queer. Esta falta de interesse torna-se particularmente surpreen-
dente em contextos como o do sul da Europa, onde a influência das ligações
familiares na vida das pessoas e suas escolhas e possibilidades permanece
central. Um sistema de bem-estar social mais diversificado e abrangente
pode assim tornar-se um atrativo escondido para uma cidade estrangei-
ra ‘pobre, mas sexy e transgressora’ como Berlim; no entanto, o seu papel

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não se encontra reduzido quando se consideram trajetórias intranacionais


não convencionais como a de Roma ou Milão para cidades pequenas. O
contexto italiano é caracterizado pela completa falta de habitação social
para jovens solteiros e pelas muito restritas formas de distribuição de renda
oferecidas pelo Estado social. Assim, a migração queer, como uma jornada
de sair do armário ou busca de identidade, deve ser analisada a partir das
condições materiais que moldam o contexto em que isso ocorre. Condi-
ções materiais – determinadas tanto por status de classe quanto por formas
de sistemas de bem-estar social – tornam assim complexas as trajetórias
migratórias vividas por sujeitos queer, desafiando a hegemonia do rural/
urbano, fora/dentro do armário. A fase atual de crise, as severas medidas de
austeridade e o aumento da precarização na Europa tornam mais urgente a
compreensão dos efeitos desses processos na vida queer. De que maneira,
sujeitos queer respondem ao desmantelamento de regimes de bem-estar,
enquanto isso está realmente acontecendo na Europa Ocidental? Qual é o
impacto sobre os laços familiares e as relações? Quais tensões são geradas
pelo aumento da precariedade, da pobreza e do desemprego? Como estes
processos socioeconômicos remodelam escolhas de vida queer e possibili-
dades? Em quais laços as pessoas queer podem confiar? A fim de responder
a essas questões em aberto, pesquisas futuras deveriam ter uma base mais
materialista, não como uma forma de reducionismo econômico ao olhar
para formas sociais meramente como resultantes de processos econômicos.
Pelo contrário, a investigação deve enfatizar de que forma os grupos sociais
(como pessoas queer em suas escolhas de realocação) transformam e se
reapropriam das possibilidades oferecidas por um sistema de regulamenta-
ção específico, representado pelo regime de bem-estar social. Neste senti-
do, afetos, desejos, imagens, expectativas, amizades e muitos outros fatores
imateriais desempenham um papel crucial na formação da vida social: só
através da exploração de todos esses aspectos como inter-relacionais e in-
corporados nas condições materiais da vida seremos capazes de explicar
totalmente a complexidade dos caminhos (queer) migratórios.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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POR UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL (E MATERIALISTA) DA MIGRAÇÃO QUEER: LEVANDO EM
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INTERSECÇÕES DE PODER E
CIDADANIA QUEER NA BAIXADA
FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO
Jan Simon Hutta

***

Este ensaio assume uma visão espacial e historicizada de relações


de poder interseccionais. Ele discute a relação entre interseccionalidade
e periferização, argumentando que a periferização espacial tanto produz
quanto é constituída por regimes heterogêneos de governo que historica-
mente emergem de relações de poder interseccionais. A questão de ‘regi-
mes de governo’, ou ‘governamentalidade’, aborda tecnologias heterogê-
neas, liberais e não liberais, que constituem as relações entre os agentes
de governo e os governados, oferecendo assim um ângulo específico no
desdobramento das relações sociais. No entanto, esta questão precisa ser
contextualizada levando em conta formas capitalistas e coloniais de poder
que se interseccionam com formações de gênero, sexualidade, e racismo.
Uma abordagem histórica de tecnologias governamentais associadas a rela-
ções de poder interseccionais, defendo eu, permite uma compreensão mais
ampla de contestados processos de periferização. Vou me concentrar na
Baixada Fluminense, uma região do estado do Rio de Janeiro que tem um
histórico de periferização abrangendo quase cem anos e que tem suas raízes
na história imperial e colonial do Brasil.
O pano de fundo para a minha discussão são as políticas de ci-
dadania com as quais o movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais (LGBT) se engajou. Essas políticas têm crescido ao longo dos
últimos 30 anos, cada vez mais enquadradas em torno de um modo liberal
de governamentalidade à maneira de Foucault (2007, 2008). Esta políti-
ca tem ressoado e mostrado efeitos concretos principalmente em centros
metropolitanos em melhor situação, onde alguns sujeitos queer come-
çaram a mobilizar a si próprios como cidadãos reivindicadores de direi-
tos do Estado liberal, por exemplo, ao participar de reivindicações sobre
como a polícia é uma instituição que deveria protegê-los (HUTTA, 2010).
Enquanto isso, ativistas LGBT de regiões de periferização têm apontado
INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

para a limitada relevância e aplicabilidade das atuais políticas de cidada-


nia LGBT em seus contextos (por exemplo, HUTTA e BALZER, 2013). Os
sujeitos queer dessas regiões são frequentemente confrontados com esqua-
drões da morte, grupos de traficantes, políticos corruptos e grupos parami-
litares que usam a violência para controlar as normas sociais hegemônicas.
Porém, esses grupos e agentes não são submetidos aos processos de res-
ponsabilização característicos de governos liberais. O acesso dessas pessoas
à saúde e a outros serviços pode depender de práticas informais e ilegais,
bem como formas clientelistas de dependência; e suas práticas sexuais e de
gênero não necessariamente seguem na direção da luta pela subjetividade
assumida e autorrealizadora promovida pela política de cidadania LGBT.
Em termos gerais, isso se relaciona com o argumento de Chatterjee (2004)
de que, na maior parte do mundo contemporâneo, o acesso a uma subjeti-
vidade que insufla a cidadania liberal é, na melhor das hipóteses, fragmen-
tado – o que implica práticas políticas que se desdobram nas margens do
liberalismo e além dele.
No entanto, longe de considerar as regiões periferizadas como lu-
gares “caóticos” ou “desordenados” de privação e violência, marcados pela
mera ausência de soberania estatal, tais regimes periféricos de governo têm
as suas próprias lógicas e, historicamente, evoluíram em interdependência
com regimes metropolitanos. Além disso, os vários processos de periferiza-
ção que criam subordinação e dependência em relação a espaços metropo-
litanos fornecem, simultaneamente, condições sociais, materiais e afetivas
para uma infinidade de desejos e de agency que desafiam as relações de
poder vigentes, bem como a própria estrutura governamental liberal. Na
conversa a seguir, que é tomada a partir de uma oficina organizada por
mim na Baixada Fluminense, como parte de minha pesquisa, quatro par-
ticipantes gays1 – Evaldo, Josué, Anderson e Nando – refletem sobre sua
relação com esta região, onde vivem. Evaldo enfatiza o “lado provinciano”
de Nova Iguaçu, a capital de um dos municípios da Baixada Fluminense:

Evaldo: Nova Iguaçu tem esse lado meio que provinciano ainda, de
que todos se conhecem. Mesmo que você não tenha [... não inteligível
...] você conhece aquela pessoa há muitos anos de vista. Então tem

1
Gravação da oficina em grupo em Nova Iguaçu, 16 de julho de 2008. Os nomes dos
participantes da pesquisa foram alterados para preservar anonimato. Quando a fala de uma
pessoa é interrompida, vê-se o sinal “=”. Quando duas ou mais pessoas falam ao mesmo
tempo, a conversa dos respectivos falantes é marcada com “[]”.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

essa coisa provinciana de que você conhece a mãe, o pai, entendeu?


Josué: A Baixada em geral é muito melhor do que qualquer lugar.
Edson: A Baixada é aconchegante, né, gente?
Nando: Eu também acho.
Anderson: Com todos os problemas que nós temos, nós temos =
Evaldo: De infraestrutura, né?
[...]
Josué: Eu acho assim. E o Estado e a polícia, que deveria ser a nossa
segurança, cara. Os policias [estão matando. É.]
Evaldo: [é nosso vilão.] Aquela já é o nosso vilão.

Essa conversa coloca em evidência algumas das dinâmicas sobre


periferização, agency e afetividade que quero abordar. Os mencionados
problemas com a polícia e de infraestrutura falam de uma falha percebi-
da na suposta administração, pelo Estado, da população e suas demandas,
uma questão que tem sido notória nos debates públicos pela Baixada Flu-
minense (ALVES, 2003; ENNE, 2002). A segurança que o Estado deveria
garantir a seus cidadãos não parece ser fornecida para Josué ou Evaldo,
que veem a polícia como “vilão”. A polícia é conhecida não só por cometer
violência arbitrária, mas também por estar associada a grupos paramilita-
res e a esquadrões da morte. O que é particularmente impressionante, no
entanto, é que, para Josué, a Baixada é ainda “muito melhor do que qual-
quer lugar”. Evaldo menciona relações de familiaridade que têm crescido ao
longo dos anos e que evocam um sentimento de provincianismo. Anderson
chama o lugar de “aconchegante”, e Nando concorda. Parece ser a condição
periférica da Baixada que cria condições afetivas para os participantes da
pesquisa declararem suas relações positivas com este espaço e dentro dele
(ver também BARRETO, 2006).
O ponto aqui não é contrastar o anonimato e a indiferença da me-
trópole com o estilo aconchegante, provinciano das relações comunitárias
da periferia, pois isso seria postular o último como “atrasado” e, de alguma
forma, intocado pelos males da modernização. Muitas das regiões de pe-
riferias do Rio de Janeiro de hoje não são caracterizadas por relações den-
samente unificadas de comunidade, de homogeneidade e de solidariedade
às quais costumavam ser associadas (e até temidas) na metade do século
XX (PERLMAN, 2005). Conforme veremos, criar redes de solidariedade e
de relações afetivas positivas pode, sim, ser visto como um processo dura-
mente conquistado e precário que leva a uma multiplicidade de formas e é
dependente de práticas e posições subjetivas e coletivas. A questão, então, é

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

rastrear os intrincados e contestados processos por meio dos quais as for-


mações específicas de cidadania surgem em um contexto de periferização,
desafiando substancialmente as próprias condições de periferização.
Para começar, vou discutir o longo processo de periferização
da Baixada Fluminense e de como esse processo foi constituído por – e é
simultaneamente constitutivo de – regimes específicos não liberais, bem
como regimes de governo racializados e generificados. Vou então usar um
exemplo de minha pesquisa empírica para explorar algumas possibilidades
e limitações práticas de cidadania que se manifestaram em relação a deter-
minados, não liberais, regimes de governo.

PERIFERIZAÇÃO, GOVERNAMENTALIDADE
E RELAÇÕES DE PODER INTERSECCIONAIS
NA BAIXADA FLUMINENSE

A periferia da Baixada tornou-se objeto de atenção do público e


do meio acadêmico, especialmente na década de 1970. Foi quando ela foi
incorporada à Região Metropolitana do Rio de Janeiro, formada em 1974
(ver ABREU, 1988). No decorrer do século XX, a expansão urbana ao redor
de linhas de trem e rodovias tomou forma na direção da cidade do Rio até
a Baixada, bem como ocorreu nos estados de São Paulo, Minas Gerais e
Espírito Santo, criando paisagens infraestruturais contíguas cercadas por
localidades rurais e agrícolas. Até o final do século XX, a ligação econômica
e infraestrutural entre o Rio e São Paulo ganhou importância, posicionan-
do a Baixada dentro do que tem sido o chamado Complexo Metropolitano
Expandido Rio-São Paulo (TOLOSA, 2003; DAVIS, 2007). É importante
ressaltar, entretanto, que esse crescimento não significou aumento da pros-
peridade, mas que ele, sim, andou junto com as crescentes desigualdades
(RIBEIRO e TELLES, 2000; TOLOSA, 1996). Entretanto, a história da peri-
ferização da Baixada remonta a tempos coloniais e imperiais. Para entender
essa história, é preciso considerar as relações socioeconômicas de depen-
dência, especialmente com relação à cidade do Rio de Janeiro, que têm sido
apoiadas por regimes de governo sociais e políticos idiossincráticos dentro
da Baixada.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

Já na segunda metade do século XVI, os colonizadores portu-


gueses invadiram as terras habitadas pelos índios Jacutinga e obrigaram as
populações indígenas e africanas escravizadas a levantarem canaviais e en-
genhos, utilizando a madeira das florestas exuberantes para sua construção
e também como combustível (ALVES, 2003, p. 31-3). No final do século
XVII, a região adquiriu importância estratégica como área de passagem,
tanto para as elites locais como para as da Coroa, com o ouro de Minas
Gerais sendo enviado sobre os vários rios até o porto do Rio de Janeiro, fre-
quentemente mudando de mãos ou sendo armazenado ao longo do cami-
nho. Acordos comerciais e favores mútuos entre a realeza e os comerciantes
estabeleceram laços peculiares entre estes grupos. Açúcar, aguardente, mi-
lho, arroz e feijão também foram produzidos, tanto para exportação quanto
para subsistência. Até o final do século XVIII, escravos majoritariamente
africanos – cortadores de madeiras, construtores de vias marítimas e em-
pregados nas fazendas – contabilizavam mais de metade da população (AL-
VES, 2003, p. 31). Em 1822, ano da independência do Brasil, a Estrada Real
do Comércio foi oficializada para o transporte do café do Vale do Paraíba,
perto de São Paulo e Rio de Janeiro. A região da Baixada agora se tornava
ainda mais fortemente marcada por seu papel de intermediário em relação
ao Rio – que havia se tornado a capital imperial – e seu interior. Vários
assentamentos foram construídos nos pontos de contato entre a terra e as
rotas marítimas. Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, ou ‘Piedade’, locali-
zada em uma das extremidades da nova rota, beneficiou-se especialmente
de sua construção. Além de ganhar um novo impulso econômico, tornou-
se a sede de cinco freguesias (ALVES, 2003, p. 34).
Conforme Alves (2003, p. 34-6) argumenta, a maneira como Pie-
dade (hoje cidade de Nova Iguaçu) foi estabelecida, como sede das fregue-
sias, indica as raízes das relações de poder político, tanto dentro da região
quanto em relação ao Rio de Janeiro, que iriam se perpetuar ao longo da
história da Baixada (ver também BARRETO, 2006, p. 32-3). As famílias de
comerciantes e o maior proprietário de terra da região dividiram entre si
cargos políticos de influência, sendo apoiados pela realeza, especialmente
pelo presidente da Província do Rio de Janeiro, com quem mantinham re-
lações econômicas. Um arranjo de coronelismo2 tomou assim forma, con-
solidando um sistema de favores mútuos entre a Coroa e os proprietários

2
A noção de coronelismo designa a situação em que os proprietários de terra são dotados
com hierarquia militar honorária, em troca de favores, permitindo que eles também
possuam (ou atribuam) os principais cargos políticos (ver BARRETO, 2006, p. 32).

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

de terra que já estava em vigor. Até o final do século XIX, os mecanismos


democráticos que tinham sido introduzidos, como a eleição de juízes por
vereadores, foram regularmente enfraquecidos por formas ritualizadas de
corrupção e fraude. Os resultados das eleições públicas, por exemplo, fo-
ram distorcidos pela contagem dos “votos” de analfabetos, prisioneiros e
até mesmo finados. Onde a hegemonia dos grupos dominantes foi ameaça-
da, fez-se o uso de violência bruta para manter o status quo.
A introdução de tecnologias liberais de governo na transição
dos períodos coloniais para os períodos imperiais e republicanos se entre-
laçou, desde o início, com formas paralegais de favoritismo, corrupção e
violência, perpetuando variações do coronelismo como parte dos regimes
predominantes de governo. Esses regimes foram também aquilo que con-
solidou a dependência da Baixada em relação ao Rio, isto é, a sua contínua
periferização, uma vez que, para além dos proprietários de terra e os co-
merciantes, a elite real e mais tarde republicana do Rio de Janeiro estava
entre os principais beneficiados. Periferização, desta maneira, significou a
exploração econômica e política e a privação de direitos da população ati-
va, especialmente dos escravos africanos e seus descendentes, enquanto a
riqueza e o poder foram concentrados nas mãos das elites. A formação da
Baixada Fluminense como um componente periférico da paisagem urba-
na do Rio de Janeiro resultou assim do que Doreen Massey (1993) chama
de geometria do poder, a constituição de relações interseccionais de poder
social ao longo do espaço e através dele. O regime de governo constitutivo
dessa geometria do poder, no entanto, também encontrou resistência, em
especial no fato de que muitos escravos, no século XIX, escaparam de seus
mestres a se estabeleceram em quilombos (ALVES, 2003). Os quilombolas
viviam da agricultura de subsistência, mas também do corte de madeira e
sua negociação mais barata, tornando-se, portanto, mais uma vez, funcio-
nal às elites. Mesmo após a abolição da escravatura em 1888, as posições de
exploração ou beneficiamento continuaram a ser distribuídas em torno de
linhas racistas de diferenciação (NASCIMENTO, 2007).
Relações de gênero e sexualidade também foram vitais para o co-
ronelismo, que, na verdade, era uma forma de machismo. Relações familia-
res respeitáveis tinham lugar de destaque e só podiam ser defendidas por
homens, especialmente pelo chefe da família, que ocupava uma posição
simbólica de dominação e atividade perante as mulheres (BARMAN, 2002).
Embora esse arranjo patriarcal tivesse implicações para a constituição de
uma esfera privada selada da responsabilidade pública, dando assim origem

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

ao exercício do poder e da violência dentro dele, isso também se estendeu


para a vida pública, em que praticamente todos os postos foram reserva-
dos aos homens. Por toda a América Latina, posições sexuais simbólicas
de dominação/atividade masculina e subordinação/passividade feminina
circularam amplamente e foram constituídas por meio de associadas per-
formances sexuais de penetração versus penetrabilidade (ver GIRMAN,
2004; GREEN, 1999, p. 6).
Aqueles que desafiavam essas posições de atividade e passividade
por meio da expressão de gênero ou práticas sexuais (especialmente quando
isso se tornou público) eram vistos como praticando comportamento imo-
ral, e precisavam ser controlados e punidos. Embora o machismo existisse
em diferentes versões por todo o Brasil, ele teve um significado especial em
espaços como a Baixada Fluminense, onde era constitutivo de regimes de
governo que se delineavam em torno do coronelismo. Sendo assim, a peri-
ferização da Baixada não pode ser dissociada de regimes idiossincráticos de
governo que perpetuaram uma dependência em relação ao Rio de Janeiro.
Embora esses regimes tenham envolvido práticas não liberais de favori-
tismo, corrupção, fraude e uso da violência, eles foram, ao mesmo tempo,
constituídos por meio de relações de poder raciais, sexuais e de gênero.
No ápice da produção de laranja na década de 1930 e 1940, quan-
do milhões de caixas da fruta foram enviadas à Europa, a população de
Nova Iguaçu cresceu drasticamente, o preço dos terrenos aumentou e novos
subúrbios se desenvolveram. No entanto, com as interrupções do transporte
marítimo por empresas internacionais, a atividade da laranja diminuiu. A
Baixada viu, nesta época, uma transformação espacial profunda, com an-
tigas fazendas e pomares de laranja submetidos a loteamento, a subdivisão
em lotes que seriam usados para cortiços e indústrias (ALVES, 2003. p. 62-8;
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lismo da era Vargas, os regimes predominantes de governo também muda-
ram, dando origem a um novo nível de violentas e paralegais tecnologias de
poder. O pano de fundo para essa transformação espacial foi o enorme cres-
cimento populacional da Baixada, de 140 mil habitantes em 1940 para 360
mil em 1950 e quase um milhão em 1960, algo facilitado pelas medidas to-
madas pelo governo federal, situado no Rio, para exportar a crescente popu-
lação trabalhadora. Na Baixada, novo saneamento público foi estabelecido,
bilhete unificado para o trem foi introduzido, e a rodovia Presidente Dutra
foi construída, em 1951, o que simultaneamente estabeleceu uma nova liga-
ção com São Paulo. Além disso, ocupações clandestinas ou “piratas” eram

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

toleradas e submetidas a formalizações genéricas em intervalos maiores.


Ao mesmo tempo, no entanto, as condições de vida na Baixada permanece-
ram miseráveis, e a maioria das famílias ficou sem abastecimento de água,
especialmente no município de Duque de Caxias. Ao redor do loteamento
de crescimento desenfreado, um novo sistema de relações de poder parale-
gal ganhou corpo. Grileiros utilizavam documentos falsos para expulsar os
agricultores e, quando encontravam resistência, usavam seus laços com o
poder judiciário, ou então recorriam à ação violenta da polícia e de capan-
gas. Proprietários de terra e agricultores, por sua vez, após tentativas ini-
ciais para resistirem à perda de terra devido às ocupações, mobilizaram um
amplo movimento social, e, a partir do final dos anos 1950, recorreram à
desapropriação, à resistência armada e à vigilância (ALVES, 2003; SIMÕES,
2007).
Ao mesmo tempo em que novos movimentos sociais surgiram,
o uso da violência se generalizou: indo de uma tecnologia usada pela oli-
garquia local nos tempos coloniais e imperiais a um elemento da luta entre
diferentes segmentos sociais. Enquanto isso, uma democrática redistribui-
ção de terra não ocorreu. Em vez disso, dadas as mudanças políticas em
nível nacional, que envolveram uma importância crescente do voto popu-
lar, o coronelismo foi reativado em uma roupagem populista e clientelista,
atrelando chefes locais – que orquestraram votos por meio de projetos de
caridade – ao poder político e à força policial do Estado, que, mais uma vez,
apoiou os líderes da região em prol de seus benefícios econômicos (ALVES,
2003, p. 75-92). E a estrutura moral das famílias respeitáveis, baseada em
relações particulares de sexualidade e gênero, foi sendo simultaneamente
transferida à população – esta cada vez mais segregada entre os sujeitos
ordeiros, respeitáveis e trabalhadores contra os sujeitos e grupos desordei-
ros, imorais e marginais. A famosa declaração do influente proprietário de
terra, vereador e deputado estadual e federal Tenório Cavalcanti, de Duque
de Caxias, revela esta estrutura moral, bem como assegura a legitimidade
que a violência bruta adquiriu. Invocando “um marginal que urina perante
moças”, proclamou: “Eu então dou um tiro na perna do marginal, para ver
se ele reage, para depois atirar no peito. […] Tem que matar o agressor
injusto, que é injusto não só contra você, mas contra toda a coletividade”
(BELOCH, 1986, p. 70 apud BARRETO, 2006, p. 34; ver também ALVES,
2003, p. 82-99). As “moças” inocentes, que Cavalcanti provavelmente ima-
ginou como de pele clara (e certamente como heterossexuais), incorporam
a subjetividade majoritária dos honrados, que precisam ser protegidos do

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

“marginal” perigoso, que genericamente se refere a criminosos e perver-


tidos, bem como ao negro, ao pobre, ao sem-teto e ao favelado. Embora
novos regimes governamentais direcionados à população e ao eleitorado –
dirigidos ao benefício de “uma coletividade” – tenham emergido, podemos
claramente ver a estrutura decididamente não liberal e baseada na justiça
pelas próprias mãos à qual estes regimes simultaneamente se mesclaram.
Apoiado pelos EUA, o golpe militar de 1964 permitiu uma per-
petuação da política elitista que favorecia grandes disparidades de renda
e de posse de terra por meio da repressão violenta aos dissidentes, o que
coincidiu com um policiamento cada vez mais rigoroso de normas sexuais
e de gênero, além de outras que funcionavam sob o rótulo de “moral da
família brasileira”. O regime militar interveio diretamente na distribuição
de cargos políticos na Baixada e deixou atuarem livremente ali os grupos
de extermínio que eram frequentemente ligados ao que veio a ser a polícia
militar; eles majoritariamente desfrutaram da impunidade, e cometeram
execuções sumárias de “marginais” ou de qualquer um que representasse
uma ameaça aos atores políticos e econômicos dominantes (ALVES, 2003,
p. 101-35). A importância desses grupos de extermínio na reprodução do
poder local caracterizaria regimes de governo na Baixada até os dias atu-
ais. Eles ficaram conhecidos, em particular, por seus laços com empresas
locais, bem como pelas redes de jogo do bicho cada vez mais influentes.
Como consequência, especialmente a partir de meados dos anos 1970,
quando os números de homicídios não resolvidos subiram para várias cen-
tenas por ano, a imprensa passou a apresentar a Baixada como a vizinha
violenta, feia e socialmente desfavorecida que ameaça a imagem e a cultura
da cidade como um câncer. A imprensa até chamou a Baixada de “o lugar
mais violento do mundo” (ENNE, 2002, p. 101). Tal reputação é atrelada
à região até os dias atuais, homogeneizando simultaneamente a imagem
do lugar. Esta inquietação foi certamente estimulada por uma consciência
das íntimas interdependências socioeconômicas entre o Rio e a Baixada,
tornadas visíveis através das massas de passageiros oscilando entre esses
espaços todos os dias.
Com a transição para o sistema democrático liberal na década de
1980, a prevalência de violência arbitrária e assassinatos não desapareceu.
Pelo contrário, o número de homicídios registrados estabilizou entre 65 e
95 por grupo de 100 mil habitantes – mil ou dois mil todo ano –, diminuindo
apenas durante os primeiros anos do governo estadual de Leonel Brizola
(1983-1986) (ALVES, 2003, p. 123, 149-60). Torturas, decapitações e

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

massacres em larga escala também se tornaram frequentes, e os grupos de


extermínio, que já haviam atuado principalmente em Nova Iguaçu e Belford
Roxo, áreas periferizadas, assim como também apareceram em Duque de
Caxias ou em Queimados. Em face de maiores debates públicos em torno
de grupos de extermínio e do envolvimento do Estado na questão, policiais
tendiam a assumir o papel de agentes ou recrutadores de assassinos,
continuando, no entanto, a desfrutar da impunidade. O ressurgimento do
populismo e do clientelismo – conforme o regime militar se enfraquecia –
permitiu que os herdeiros do coronelismo consolidassem sua hegemonia
dentro de uma cada vez mais ampla, complexa e policêntrica geometria de
poder.
Enquanto isso, as novas mobilizações sociais que surgiram no
final de 1970, na ocasião do período de Abertura, também se fizeram pre-
sentes. O primeiro grupo político gay do estado do Rio de Janeiro, o GAAG
(Grupo de Atuação e Afirmação Gay), surgiu na Baixada em 1979, com,
principalmente, jovens estudantes lésbicas e trabalhadores, muitos deles
negros, em reuniões realizadas em Duque de Caxias e São João de Meriti
(COLAÇO, 2009; MICCOLIS, 1984, p. 99). A pressão social sobre lésbicas,
gays e pessoas trans na época era intensa, como um dos informantes de
Colaço (2009) aponta: “Ninguém se assumia a não ser dentro do grupo, e
olhava, se certificava bem pra ver se as portas estavam fechadas, e se os vi-
zinhos não estavam a escutar a reunião do grupo”. Nessa época, o primeiro
transformista da região, o ator, diretor e produtor Jorge Alves de Souza /
Geórgia Bengston, encenou espetáculos de sucesso em São João de Meriti
e diferentes lugares (COLAÇO, 2011), indicando a posição altamente para-
doxal que em especial as pessoas trans ocupam, recebendo admiração em
determinados contextos, mas ainda estando sujeitas à violência, à exclusão
e à opressão em tantos outros (ver também HUTTA e BALZER, 2013).
A partir dos anos 1990, a atividade dos grupos de extermínio na
Baixada continuou e as taxas de homicídios permaneceram em um nível
elevado, ainda que os discursos midiáticos sobre a violência tenham se
deslocado para favelas do Rio e quadrilhas de traficantes (ALVES, 2003,
p. 162-72). Os esforços malsucedidos de vários políticos, desde a década
de 1980, para reduzir as taxas de homicídios e definir o fim da violência
policial arbitrária e a corrupção acabaram testemunhando quão extensos
e entrincheirados os regimes de governo não liberais, clientelistas e neo-
coronelistas haviam se tornado no decorrer das décadas e dos séculos.
Em 2005, o que ficou conhecido como chacina da Baixada entrou para
a história do Rio de Janeiro como o maior massacre de todos os tempos

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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JAN SIMON HUTTA

no estado – ainda que outros casos de brutalidade em larga escala tenham


sido ignorados (ANSEL, 2011, p. 29) –, pessoas foram mortas, e uma ferida,
por policiais militares que dirigiram por Nova Iguaçu e Queimados atiran-
do nos pedestres. Entre os mortos, havia oito crianças, sete adolescentes
e duas travestis profissionais do sexo. Quanto aos motivos dos policiais,
houve apenas especulações; a maioria, no entanto, circulando em torno da
tentativa dos policiais de defenderem seu poder dentro da instituição ou
seu domínio territorial em relação a outros grupos de extermínio. Como
o diretor ativista Vagner de Almeida (s.d.) consideravelmente observou,
apesar da atenção da mídia mundial recebida pelo massacre e do pedido
do presidente Lula da Silva para uma rápida solução dos assassinatos, uma
das travestis foi a última pessoa a ser enterrada, sem nem sequer passar por
uma autópsia. Em seus filmes Borboletas da Vida, de 2004, e Basta Um Dia,
de 2006, Almeida documentou alguns dos problemas agudos da violência
que especialmente travestis e gays femininos (‘monas’, ‘bichas’, homossexu-
ais, gays) sofrem na Baixada Fluminense. Muitas travestis têm medo de sair
de casa e precisam realizar seu trabalho sexual na rodovia Presidente Du-
tra, que liga Rio com São Paulo, onde estão expostas a insultos, ataques vio-
lentos e estupros. Um sinal positivo, no entanto, é que, desde meados da dé-
cada de 1990, têm aumentado as mobilizações políticas dos ativistas LGBT
na Baixada, que formaram grupos de apoio, protestaram contra a violência,
realizaram campanhas de prevenção e organizaram paradas LGBT.
Uma mais nova dinâmica tem se seguido ao discurso, a nível es-
tadual, de melhoria, progresso e desenvolvimento, guiado pela onda neoli-
beral de privatização e desregulamentação do mercado. Shopping centers,
novas indústrias e projetos de prestígio foram estabelecidos, assim como
condomínios para a classe média que procurava alternativas à cada vez mais
cara Zona Sul do Rio de Janeiro. Novas formas de policentricidade assim
surgiram, como, por exemplo, partes de Nova Iguaçu e Duque de Caxias
que não só mostram níveis de urbanização e infraestrutura comparáveis ao
Centro do Rio, mas também repetem relações econômicas de dependência
entre centros e periferias (ALVES, 2003; SIMÕES, 2007). Hoje, cerca de
quatro milhões de pessoas, ou um quarto da população do estado do Rio
de Janeiro, vivem na região da Baixada Fluminense – que produz uma parte
significativa do produto interno bruto do estado. Ao mesmo tempo, taxas
de homicídios e outros índices sociais sugerem que o discurso do desenvol-
vimento é funcional no mascaramento da perpetuação da desigualdade e
das profundas estruturas não democráticas de poder.

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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

Os intricados regimes de governo que se formaram nos séculos


XVIII e XIX adquiriram assim uma nova dinâmica no século XX, espe-
cialmente com o surgimento da política populista de a partir da década de
1930, além de sob a ditadura militar dos anos 1960 aos 1980, bem como
devido às políticas neoliberais da década de 1990. O que tem caracterizado
a história de governamentalidade da Baixada desde o começo é uma preva-
lência de regimes não liberais e paralegais que emergem das interseccionais
e contestadas relações de poder e que incluem medidas coercivas de vio-
lência física e assassinatos, articuladas de maneira complexa com formas
de populismo, clientelismo e governamentalidade liberal. Esses regimes de
governo têm sido constitutivos da periferização contínua da região em re-
lação à cidade do Rio de Janeiro, visto que eles apoiaram as relações locais,
inter-regionais e até globais de exploração e dependência. Possibilidades
para reivindicações de cidadania foram radicalmente limitadas, e os movi-
mentos sociais têm, em parte, sido cooptados por interesses hegemônicos.
Na sequência, vou usar um exemplo de minha pesquisa para destacar as
precárias condições das pessoas queer para reivindicar participação por
meio de uma presença legítima no espaço social, o que tem implicações
para se pensar tanto a cidadania quanto a periferização.

PRÁTICAS HETEROGÊNEAS DE
CIDADANIA NA BAIXADA

Vou usar um exemplo da pesquisa que conduzi no estado do Rio


de Janeiro ao longo de nove meses, entre 2007 e 2009 (HUTTA, 2010, p.
235-47). Central foram duas séries de oficinas participativas realizadas com
pessoas queer no centro do Rio e em Nova Iguaçu. As atividades também
compreendiam uma visita3 à ativista trans e gay Sasha, que eu visitei jun-
tamente com dois participantes da pesquisa. Sasha vive em uma pequena
cidade na área urbana de Nova Iguaçu, que eu chamo de “bairro B”. El@4

3
A visita e as gravações a que me reporto aqui ocorreram em 2 de agosto de 2008, na
Baixada Fluminense.
4
Estou usando “el@”, “nel@” e “del@” para dar conta da simultaneidade de masculino,
feminino e outras, ou indetermináveis, identificações.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

está em seus 40 anos, cresceu na cidade de Maceió, e veio para o bairro B no


início de 1990, depois de passar vários anos em outras partes da cidade do
Rio de Janeiro. Foi durante seus tempos no Rio que Sasha – anteriormente
identificad@ como ‘boy’ ou ‘bicha boy’ – veio a desenvolver uma identida-
de travesti. No momento da nossa conversa, no entanto, a identificação de
Sasha é mais acentuadamente masculina outra vez, o que el@ relaciona à
pressão em seu ambiente de trabalho. Sasha relata um incidente que acon-
teceu quando um amigo, Jorge, que mora no centro de Nova Iguaçu, veio
para uma visita. Jorge é atuante em um núcleo LGBT, o Grupo 28 de Junho,
em Nova Iguaçu; ele, portanto, um ativista gay, que inclusive participou do
grupo da minha oficina.
O relato de Sasha envolve dois ativistas que responderam de for-
ma bastante diferente a uma ameaça. Isso indica como práticas de cidada-
nia podem variar de acordo com o regime de governo nos quais os sujei-
tos estão inseridos. Sasha relata como, quando el@ e Jorge estavam em um
lugar perto do bairro B, dois homens jovens ameaçaram atirar pedras em
Jorge. Apesar de Sasha não ser muito explícit@, este comportamento pro-
vavelmente está relacionado ao fato de Jorge ser gay. Assim que os rapazes
ameaçam atirar as pedras, Sasha narra, Jorge começa a correr, gritando: “Eu
vou no DPO!”. No momento em que Jorge se retira, ele próprio expressa
um senso de direito de mobilizar a segurança do Estado, além de predis-
posição para enfrentar a questão da homossexualidade em uma instituição
pública. Esta resposta dele parece estar relacionada a experiências anterio-
res no sentido de mobilizar, em seu ativismo, a polícia em favor das pessoas
LGBT. Em uma conversa na oficina, Jorge mencionou seus bons contatos
com o secretário de segurança pública e como ele considera isso crucial
para denunciar comportamento homofóbico às autoridades.5 Ele também
mencionou que participou de várias reuniões de “conselhos comunitários”,
articulando as demandas da população LGBT para políticas de segurança.
A reação de Jorge pode ser lida como uma mobilização de cidada-
nia que tem como premissa uma estrutura governamental liberal, onde os
cidadãos articulam suas demandas de segurança, serviços públicos, e assim
por diante, em relação ao Estado. O ativismo LGBT na área de seguran-
ça pública assumiu, ao longo da última década, um papel particularmente
proeminente. À reforma da polícia tem sido atribuído um papel central no
combate à homofobia e à transfobia – devido tanto à participação notável

5
Gravação de 30 de julho de 2008, Nova Iguaçu.

INTERSECCIONALIDADES,
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INTERSECÇÕES DE PODER E CIDADANIA QUEER NA BAIXADA FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO

da instituição na prática de crimes quanto à sua potencial capacidade de


agir sobre os crimes e contra eles (HUTTA, 2010). Práticas de cidadania
que operam no âmbito governamental liberal têm o efeito de posicionar
as pessoas queer como “população LGBT”, com demandas específicas e, ao
mesmo tempo, como sujeitos vulneráveis. Isso se vê de forma muito con-
creta e corporificada na reação de Jorge, que, enquanto proclama a si mes-
mo como sujeito de direitos, posiciona-se como uma vítima que necessita
da proteção do Estado.
A contingência da reação de Jorge se torna mais clara quando a
justapomos à resposta de Sasha. Contando o incidente, Sasha surpreenden-
temente menciona que se juntou aos meninos para rir de Jorge:

Aí os garotos começou a querer jogar pedra [… não inteligível …]. Aí


os garotos começou a rir, mas ele estava correndo e eu comecei a rir.
Porque eu vi que não era nada disso [… não inteligível …] ‘Eu vou no
DPO’. Eu falei: ‘Jorge, para com isso!’.

A risada de Sasha, enquanto o amigo está sendo ameaçado com


pedras, pode parecer grotesca. No entanto, para Sasha, “não era nada disso”,
nada grave que exigisse tal reação. Quando perguntei se el@ não achava que
os meninos queriam machucar Jorge, Sasha afirma a íntima relação com
os sujeitos envolvidos: “Não, não. É aquela coisa, porque eu morava lá. Eu
conhecia todos os garotos, inclusive eu namorei com esse que estava que-
rendo fazer uma abusadinha, é que morei com ele”. Deixe-me destrinchar o
tipo de relacionamento aqui evocado.
Na declaração de Sasha, o espaço público das ruas, onde um ho-
mem gay é ameaçado por meninos aparentemente homofóbicos, cruza-se
com um espaço mais privado de relações íntimas e sexuais (“namorei com
esse”/”morei com ele”). Sasha narra vários episódios sobre homens de atu-
ação pública heterossexual com quem el@ e outras ‘bichas’ têm relações
sexuais, também citando que, por vezes, os homens gays recompensam
ou pagam os “héteros” com presentes ou então ao deixá-los viver em suas
casas. Tais relações erótico-econômicas entre travestis ou ‘bichas’ femini-
nas e ‘bofes’ masculinos não são incomuns no Brasil (ver KULICK, 1998;
PARKER, 1999). Eles formam o pano de fundo da alegação de Sasha sobre
ter namorado e vivido com um dos rapazes, e do fato de el@ achar que pode
contar com a ligação pessoal e íntima que possui com os encrenqueiros
quando avalia riscos atuais. Tal familiaridade, no entanto, não garante por

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

completo o julgamento de Sasha sobre a situação como inofensiva, uma vez


que el@ também fala sobre roubos e até assassinatos de ‘bichas’ que acon-
teceram em circunstâncias assim íntimas de relacionamento no bairro B.
Nem mesmo o ato de atirar pedras parece totalmente inofensivo. Assim, as
relações íntimas também tornam pessoas como Sasha vulneráveis ao abuso
e à violência. Esse risco, no entanto, é respondido por uma declaração de
familiaridade, não só com o encrenqueiro principal, mas com o lugar em
que el@ vive, o que já é indicado pela formulação afirmativa “porque eu
morava lá”.
Isso é, antes de tudo, uma afirmação de familiaridade com o lu-
gar, e, ao mesmo tempo, de presença legítima como gay ou trans, o que
permite a Sasha responder à ameaça de uma forma totalmente diferente em
comparação a Jorge. Em vez de correr para a polícia, Sasha evoca a possibi-
lidade de revidar ou até mesmo de educar os meninos:

Sempre tem um meio abusadinho. Mas o abusado, se você der dois


gritos, ele cala a boca. Entendeu? Você não vai gritar num lugar lon-
ge e escuro, mas de dia você vai gritar assim com ele e acabou, en-
tendeu?

O ato de “gritar com ele” é direcionado não apenas ao garoto,


mas é sim colocado como uma contestação pública legítima, que está con-
dicionada ao fato de el@ estar publicamente visível e presente, em vez de
“num lugar longe e escuro”. Um “público”, na forma da comunidade local,
é, portanto, invocado e esperado para exercer pressão sobre o agressor e
reconhecer tal contestação como legítima. Sasha é, assim, capaz de contar
com visibilidade e respeito como genderqueer no bairro.6 Isso também me
arrebatou durante minha visita. Sentad@ na varanda em frente a sua casa,
Sasha falou abertamente não só sobre as aventuras eróticas e tais contesta-
ções públicas, mas também sobre ativismo político, o que incluía uma pa-
rada LGBT local que el@ havia organizado, e que havia descrito como um
grande sucesso, apesar dos temores quanto a violentas reações que haviam
sido expressas de antemão.
Sasha pode ser vist@ aqui como que praticando cidadania de
uma forma muito específica. Não é uma prática da cidadania no sentido
liberal do “direito de ter (ou reivindicar) direitos”, visto que el@ não pode

6
Esta questão é ainda mais elaborada em Hutta e Balzer (2013) e em Hutta (2010).

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confiar em regimes governamentais que poderiam ser responsabilizados


pela garantia de tal direito.7 É uma prática da cidadania no sentido de mo-
bilizar e reivindicar uma presença legítima e alegre nos espaços em que
habita, o que constitui uma base para novas afirmações e reivindicações
sociais e políticas, em interações diárias, ativismo político ou contestações
públicas. Esta prática ultrapassa, assim, o âmbito da governamentalidade
liberal, ainda podendo ter efeitos sobre arranjos governamentais liberais
e não liberais. Curiosamente, esta prática é constituída por um conjunto
de dinâmicas afetivas de respeito, familiaridade e erotismo que se tornam
evidentes não só na colocação de Sasha sobre o incidente dos rapazes que
queriam atirar pedras, mas já na própria situação da entrevista. Também
sentindo essas afetividades intensas, Nando e Josué, os dois participantes
da oficina que tinham me acompanhado até a casa de Sasha, mencionaram
que, para eles, o bairro B era um lugar de aconchego. Eles, assim, fazem
um comentário semelhante ao que Anderson fez a respeito da Baixada em
conversa citada anteriormente.
As práticas de cidadania de Sasha e o sentimento de aconchego
pelos quais elas se constituem parecem particularmente surpreendentes quan-
do vistos no âmbito mais amplo da violência e da exclusão de pessoas gays e
trans no Brasil e, mais especificamente, na Baixada Fluminense. Entre o
movimento trans do Rio de Janeiro, a Baixada foi considerada a região com
menos avanços na área de segurança e reconhecimento8 público em uma
avaliação facilmente influenciada pelo estigma da Baixada como violenta.
O fato de Sasha ter enfrentado discriminação já é óbvio a partir da consta-
tação de el@ ter se voltado a uma expressão masculina de gênero a fim de
ser capaz de avançar profissionalmente. No decorrer da nossa conversa,
el@ explica que ganhar respeito na comunidade local tem sido uma “luta”
que levou muitos anos. Ganhar respeito envolve, por exemplo, a realiza-
ção de trabalhos na área de prestação de serviço ao cuidar de crianças
e ajudar os locais a obterem assistência médica, algo a que Sasha teve
acesso privilegiado devido ao treinamento como enfermeir@. Neste sen-
tido, familiaridade, respeito e aconchego não são dados; eles dependem

7
Dialogo aqui com a noção de Isin (2008) de “atos de cidadania” (ver HUTTA, 2010, p. 30-1,
166-7). Isin ressalta que a formulação clássica de Arendt da cidadania como “direito a ter
direitos” pode ser utilmente reformulada como um “direito de reivindicar direitos”, o que
coloca um foco sobre atos e contestações que são constitutivos da cidadania.
8
Refiro-me, em particular, a uma entrevista com o ativista Roxane (Rio de Janeiro, 11 de
novembro de 2007).

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JAN SIMON HUTTA

do desempenho contínuo e público de Sasha. El@ pode até ser vist@ como
alguém que precisa afirmar uma sensação de familiaridade e respeitabili-
dade, pois isso é o que torna possível para el@ “rir para que desapareçam”
ameaças potenciais, e o que impede os outros de virem nel@ alguém que
poderia ser atacad@ ou reprimid@. Enquanto a reação del@ no incidente
narrado é ativada por relações de familiaridade, respeito e aconchego com
a comunidade, ela é ao mesmo tempo dependente deles. As práticas de ci-
dadania de Sasha são, desta maneira, complexas e precárias.
Além disso, enquanto Jorge parece ter tido algumas experiências
positivas relacionadas a seu ativismo em segurança pública, Sasha mostra
uma desconfiança geral em relação à polícia, o que parece estar ligado a
uma diferença entre o bairro B, de periferia, em comparação a Nova Igua-
çu, mais metropolitana. Sasha tem pouca esperança na real democratização
ou humanização da polícia, mesmo que através de ativismo explícito e de
campanhas: “Você conta nos dedos quem dali [da polícia] respeita a gen-
te”, el@ diz, “porque, na madrugada, se eles podem fazer, eles fazem”. Por
“eles fazem”, eu interpreto Sasha falando do “abuso de pessoas queer”. Na
penumbra entre a noite e o dia, a polícia pode fazer o que quiser. Como
uma sinédoque, este momento da madrugada poderia se referir a toda uma
gama de situações entre as que escapam da responsabilidade oficial, indi-
cando arranjos paralegais que estão em marcha mesmo dentro das institui-
ções do Estado.
Não só parece difícil confiar na responsabilidade do Estado para
com o direito de se reivindicar direitos, bem como o “direito” concreto que
alguém pode ser capaz de reivindicar – ou que já tenha reivindicado –, em
nível formal, não se efetiva na prática. A mobilização da polícia poderia até
ser vista como problematizadora das relações comunitárias locais na me-
dida em que estas são baseadas precisamente em manter uma distância do
governo estadual (ver CHATTERJEE, 2004, p. 10). Em particular, quando
regimes de governo não legais ou paralegais estão ativos, alguém que re-
corre a regimes estatais formais de responsabilização e de intervenção para
lidar com questões “locais” pode ser visto como cometendo um ato de sub-
versão ou mesmo de traição (ver ALVES, 2003). Assim, não só as pessoas
queer na Baixada têm boas razões para estarem cansadas do contato com
a polícia, cujo papel histórico tem sido levar a cabo formas heteronormati-
vas e racistas de repressão. O problema é, aliás, que a própria soberania do
Estado está sendo desafiada por regimes paralegais de governo nos quais
a própria polícia está emaranhada. Como resultado, muitas pessoas queer

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têm medo de fazer qualquer tipo de articulação pública em relação à exclu-


são e à violência. No filme mencionado de Almeida, Basta Um Dia, a coor-
denadora de um centro de referência para vítimas LGBT da violência, no
centro do Rio, Yone Lindgren, afirma que as pessoas trans que, na Baixada,
se tornaram vítimas de violência nem sequer informam isso ao centro de
referência, por medo de vingança. É sobre esse pano de fundo de relações
de poder estabelecidas, e de uma cultura do silêncio, que as alegres práticas
de cidadania de Sasha podem servir como fonte de esperança e inspiração.
Ao mesmo tempo, a reação de Jorge sugere que, mesmo na Baixada, os ati-
vistas queer já estão fazendo reivindicações à estatalidade liberal.

CONCLUSÃO: IMAGINAR A CIDADANIA


EM UM CONTEXTO DE PERIFERIA

Políticas de cidadania tendem a ser enquadradas em torno de cer-


ta espacialidade, implicitamente assumida: em que o Estado soberano pre-
vê a ordem, a segurança e a regulamentação necessária para as populações
e os mercados prosperarem livremente e sem riscos. Esta é a espacialidade
da governamentalidade liberal que Michel Foucault (2007) analisou (ver
ELDEN, 2007; HUXLEY, 2008). Foucault focou em centros metropolitanos
no Ocidente (LEGG, 2007), também onde políticas liberais de cidadania
tiveram sua maior influência. Suas limitações, no entanto, tornaram-se
mais evidentes onde a hegemonia da estatalidade liberal é mais contestada
(CHATTERJEE, 2004). Voltando à política LGBT de cidadania na qual a
reação de Jorge ressoa, o movimento LGBT tem, desde o final da década
de 1990, progressivamente se apropriado de espaços governamentais libe-
rais, associando a luta pela cidadania biopolítica, baseada em direitos, a um
processo de maturação – de tornar-se moderno e torna-se democrático.
Mobilizar a cidadania significa aqui reivindicar o direito a espaços onde a
regulação liberal de processos biopolíticos já é genérica. Isso é algo possível,
ademais, só para sujeitos reconhecidos como legítimos reivindicadores de
cidadania. Esses prerrequisitos são problemáticos para alguém como Sasha,
que, como resultado da periferização e das relações de poder interseccionais,
vive em um contexto em que os regimes de governo não liberais, baseados
na violência, são predominantes.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
JAN SIMON HUTTA

Para sujeitos queer que lutam contra a violência e a exclusão, os


regimes de governo da Baixada introduziram grandes desafios. Na fala de
Sasha, a presença de autoridades não liberais é raramente confrontada dire-
tamente, mas pode, contudo, ser intensamente sentida quando, por exem-
plo, el@ menciona o comportamento arbitrário da polícia ou o assassinato
de ‘bichas’. É característico dos regimes paralegais da Baixada e das favelas
serem, ao mesmo tempo, claros e opacos – algo amplamente conhecido,
mas raramente confrontado. Uma travesti de uma pequena cidade na Bai-
xada que participou de uma das minhas oficinas não apareceu uma pró-
xima vez. Conforme seus amigos me contaram, ela teve que fugir da área
depois de um homem armado ter aparecido em sua casa; mais explicações
não foram dadas. O maior potencial nas políticas LGBT de cidadania pode
residir não tanto na desestabilização das relações de poder e formas de ma-
chismo historicamente delineadas e institucionalizadas, mas, sim, na mul-
tiplicação de subjetividades que se julguem sujeitos potenciais de direitos.
No entanto, como as possibilidades para mobilizar um quadro de direitos
a serem garantidos pelo Estado liberal são altamente contingenciais, é ne-
cessário expandir a imaginação política para além do âmbito da cidadania
liberal e desafiar o status quo de dentro de regimes não liberais de governo.
Espero que a minha discussão das práticas cotidianas de alcance de respei-
to, pertencimento e aconchego possam fornecer alguma inspiração para as-
sim vislumbrarmos a cidadania para além da cidade governamentalizada.
Também pode ter indicado, no entanto, que novas formas de mobilização
política são necessárias. Se a periferização está ligada não só aos processos
econômicos do capital em fuga, mas a relações sociais que se desdobram
através de regimes de governo e formas interseccionais associadas de po-
der, tal mobilização poderia desafiar simultaneamente as próprias condi-
ções de periferização.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
OPOSIÇÕES E
COMPLEMENTARIDADES NAS
PRÁTICAS HOMOAFETIVAS DE
MICROTERRITORIALIZAÇÃO:
INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’
E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
EM SANTARÉM - PA
Benhur Pinós da Costa
Jasson Iran Monteiro da Cruz
Josevaldo Sousa de França

***

INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo analisar as práticas de interação ho-


moafetivas no processo de microterritorialização da Praia do Osso, locali-
zada na periferia da cidade de Santarém (PA).1 Tal denominação tem como
origem um matadouro que se localizava em suas redondezas; os restos das
carcaças dos animais abatidos eram depositados no encontro das águas dos
rios Amazonas e Tapajós, e a força da correnteza os devolvia para a praia.
A área atualmente é ocupada por moradores de baixos rendimentos, e é
conhecida por ser um local de interações homoeróticas.
As interações homoeróticas2 no local se dão entre ‘bichas’ e ‘bofes’.
A divisão dos grupos de homens no processo de interação homoerótica na

1
Esta reflexão é parte da pesquisa “Cidades brasileiras, espaço público e diversidades
culturais: o caso das microterritorializações de expressões homoeróticas e/ou homoafetivas”,
financiada pelo CNPq.
2
O homoerotismo diz respeito à atração erótica entre pessoas do mesmo sexo.
OPOSIÇÕES E COMPLEMENTARIDADES NAS PRÁTICAS HOMOAFETIVAS DE
MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
EM SANTARÉM - PA

Praia do Osso está relacionada com variadas performances que os diferen-


tes grupos desempenham no processo de interação. Os sujeitos conhecidos
como bichas se autodefinem como sendo declaradamente homossexuais e
desempenham papel passivo na relação sexual. Já os bofes são entendidos
como sujeitos que realizam o ato de penetração na relação sexual e po-
dem declarar-se como heterossexuais, mesmo tendo relacionamentos eró-
ticos com outros homens. Embora definidos de forma oposicional, bichas
e bofes existem um em relação ao outro e, assim, são contraditoriamente
complementares. A denominação dos grupos de homens foco da pesquisa
adotada neste texto está baseada na forma de expressão cotidiana que se
estabelece entre os sujeitos que compõem os grupos investigados.3
As práticas da interação entre bichas e bofes institui processos de
microterritorialização que envolvem a ética e a estética, bem como nego-
ciações de interesses entre eles. São os diferentes interesses e práticas de-
senvolvidas no cotidiano destes sujeitos em interação contraditória e com-
plementar que constituem o caminho de desenvolvimento dos argumentos
deste texto.
A busca por contatos na cidade de Santarém a fim de obter da-
dos e informações para a pesquisa ensejou o encontro com participantes
do Grupo Homoafetivo de Santarém (GHS).4 Tal encontro possibilitou a
superação de várias limitações comuns a um pesquisador que chega a uma
nova localidade, como a dificuldade de acesso a locais-chave e ao grupo
de interesse de investigação. Além disso, a relação com os componentes
do GHS criou também laços e identificações que resultaram em um apro-
fundamento de análise das relações na Praia do Osso e na elaboração deste
texto conjunto.5 Assim, foi possível conseguir onze entrevistas em profun-
didade com homens declaradamente homossexuais que frequentam aquela
localidade com o objetivo de encontros eróticos.
O texto está estruturado em duas seções. Na primeira parte é
discutida a instituição da Praia do Osso em Santarém como um espaço
de resistência ao poder heteronormativo da sociedade, e na segunda parte

3
Esses termos são de uso corriqueiro dos sujeitos investigados. Alguns deles preferem o
uso do termo “gaya”, ou “a gay”, para dar uma ênfase à feminilização do termo “gay”. Isto
funciona com um recurso linguístico de valorização do que é pejorativo e discriminatório.
4
Coletivo de sujeitos LGBT de luta pelo reconhecimento das diversidades sexuais na cidade
de Santarém, sem formalização de uma ONG.
5
Trata-se dos dois coautores deste texto.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
BENHUR PINÓS DA COSTA, JASSON IRAN MONTEIRO DA CRUZ E JOSEVALDO SOUSA DE FRANÇA

são evidenciadas as práticas cotidianas entre homens que fazem sexo com
outros homens, criando ali uma possibilidade de expressão legítima de sua
sexualidade.

PRAIA DO OSSO: ESPAÇO DE RESISTÊNCIA


À CIDADE HETERONORMATIVA

A heteronormatividade é um conjunto de práticas, códigos e nor-


mas sociais que naturalizam a heterossexualidade como padrão da sexua-
lidade humana e a forma de viver os desejos polarizados na relação entre
sexos opostos. A naturalização da heteronormatividade cria indivíduos
considerados ‘fora da norma’, ou aqueles que não obedecem ao padrão he-
terossexual. Estes sujeitos sofrem uma série de restrições para viver plena-
mente seus direitos cidadãos, e são submetidos a situações de preconceito,
discriminação e vários outros tipos de violência. Conforme Miskolci (2009,
p. 157),

[...] a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que funda-


menta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles
que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não
se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma
denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexua-
lidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem heteros-
sexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente
coerente, superior e ‘natural’ da heterossexualidade.

Uma sociedade heteronormativa se realiza pela produção simul-


tânea de um espaço heteronormativo que viabiliza a manutenção das nor-
mas e padrões. Assim, a Praia do Osso em Santarém é um espaço de contes-
tação à cidade heteronormativa, em que as pessoas que não se enquadram
na norma hegemônica podem expressar sua sexualidade e seus prazeres.
Richard Parker (2002) nos dá exemplos muito elucidativos sobre as vivên-
cias homoeróticas nas cidades do Rio de Janeiro e Fortaleza. O espaço ur-
bano é definitivamente heterossexualizado, pois a regra sobre a sexualidade
é a das relações entre sexos opostos (isto não está contido somente nos atos

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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OPOSIÇÕES E COMPLEMENTARIDADES NAS PRÁTICAS HOMOAFETIVAS DE
MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
EM SANTARÉM - PA

sexuais, mas na estruturação de todas as relações sociais: familiares, de tra-


balho, de consumo e de lazer).
Nesse sentido, os sujeitos que fogem às regras vigentes vivenciam
cotidianamente as limitações de sua sexualidade e acabam por instituir
espaços de interações específicas. Na Praia do Osso facilmente se podem
identificar formas éticas (modos de agir) e estéticas (formas de se mostrar
e expressar) de interações entre as pessoas que ali se relacionam e que ins-
tituem os diferentes grupos sociais que dialogam e negociam seus desejos
e interesses.
Assim, na Praia do Osso se estabelece uma normativa ética das
formas de relações cotidianas que organiza formas de ser e estar das pes-
soas bem como valora e hierarquiza as posições dos sujeitos envolvidos na
relação erótica e do desejo.
O fato de Santarém não contar com um espaço reservado de op-
ção de lazer exclusivamente para o público homossexual, conforme aponta
a pesquisa de Cruz (2002), faz com que a Praia do Osso se apresente como
um importante local em que ocorrem trocas de interesses como desejo e
recursos materiais e simbólicos. As relações que se estruturam na Praia do
Osso transitam por outros fragmentos espaciais cotidianos, conforme ar-
gumenta Pais (2001), pois as trocas de informações, falas e diálogos em
torno dos acontecimentos da Praia do Osso fazem parte de outras dimen-
sões da vida dos grupos que a frequentam. O conjunto de ações sutis ou
táticas, como nos diz Certeau (1994), desempenhadas na Praia do Osso
pode ser compreendido como ações sorrateiras do cotidiano que trabalham
no campo hegemônico das estruturas e institucionalizações sociais, e por
isso se apresenta como improvisos, como perturbações mínimas, como que
escondidas nas próprias normalidades da vida social. Assim, todo espaço,
a princípio heteronormativo, pode ser também homoerotizado a partir de
práticas e interações desenvolvidas entre as pessoas. Desse modo, as ações
dos sujeitos desejantes se mesclam e também fazem parte de uma estrutura
de poder heteronormativo, gerando conflitos e complementaridades.
Goffman (1996) argumenta que a sociedade não se estrutura,
mas se forma e se transforma em interações localizadas, cujos parâmetros
de comportamentos, ações e expressões se dão em contextos singulares de
relações entre os sujeitos. Assim, o espaço não se constitui apenas como
contexto ou como a localização da interação entre sujeitos, mas ele é funda-
mental nas negociações, códigos e acordos que se estabelecem no processo
de interação. Tedesco (2003) chama a atenção para o conjunto de regras

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NA ANÁLISE ESPACIAL
BENHUR PINÓS DA COSTA, JASSON IRAN MONTEIRO DA CRUZ E JOSEVALDO SOUSA DE FRANÇA

que são tecidas no contexto e nas atividades do “estar-junto”, e ele chama


este processo de “interacionismo simbólico”.
É neste estar-junto que, segundo Goffman (1996), se organizam
os papéis e que se estruturam as respostas dos outros frente à representação
do papel estabelecido por determinado sujeito. Nos contextos diferencia-
dos de interação, os papéis são negociados, mas aqueles que almejam estar
em interação promovem esforços individuais de representar bem determi-
nado papel para poder se manter em comunhão. É o espaço relacional que
define os papéis a serem executados, e estes devem ser apreendidos pelos
sujeitos que interagem, para melhor serem executados.
Nesse sentido, cada espaço se define pelas relações que se estabele-
cem entre sujeitos ou grupos que possuem determinados valores e compar-
tilham significados culturais. O sentido de cultura urbana já foi amplamen-
te discutido por diversos autores (OLIVEN, 1987; CLARK, 1985; GOMES,
2002). Entretanto, para o argumento central do presente texto, é importante
deixar clara a pluralidade de significações culturais que estabelecem diálogos
entre diversos grupos, assim como pensa Duncan (2003), sendo que a relação
que se estabelece é mediada pelo poder, como enfatiza Foucault (1993).
Geertz (1989) traz a ideia de multiplicidade, evidenciando que há de
forma simultânea várias culturas urbanas coexistentes, tal qual Featherstone
(1995) e Canclini (1998). Assim, a cidade é também a simultaneidade da
aceitação e da negação das diferenças entre grupos sociais que se identi-
ficam e se estranham ao mesmo tempo, conforme argumentam Fortuna
e Silva (2002). As relações de intersubjetividade que se estabelecem entre
pessoas e grupos objetivam-se em determinados espaços específicos, ou
elas são microterritorializadas, como propõe Bonnemaison (2003).
É nos processos de interação humana plurais, pautados por proces-
sos de interação e estranhamento, que se dão as apropriações espaciais que
podem ser definidas como microterritorializações urbanas (COSTA 2011).
As microterritorializações são instituídas por relações sociais singulares, fru-
tos autênticos das relações localizadas, mas também convergentes de inúme-
ros parâmetros institucionais que fundam os sujeitos sociais em interação.
Os regramentos e os desregramentos sociais são constituídos pe-
las atividades interacionais dos sujeitos. O produto das interações é a mi-
croterritorialização, que caracteriza e é caracterizada pelas especificidades
das relações estabelecidas. Por outro lado, as relações estabelecidas fundam
e são fundadas pelos sujeitos em interação, ou seja, são frutos da intersub-
jetividade. Dessa forma, para entender as subjetividades dos sujeitos que

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OPOSIÇÕES E COMPLEMENTARIDADES NAS PRÁTICAS HOMOAFETIVAS DE
MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
EM SANTARÉM - PA

pretendemos estudar, assim como as suas relações com os parâmetros ins-


titucionais sociais, temos que imergir nas relações que fundam e são funda-
das pela microterritorialização em questão.
A ideia da microterritorialização compreende os sujeitos e suas
relações, assim como as relações institucionais e extralocais, que também
são elementos dos processos de socialização dos sujeitos. Assim, a micro-
territorialização implica uma relação entre culturas, como proposto por
Garcés (2009), que promovem intercâmbios culturais em nível de relações
de cotidianidade em microespaços de trocas de informações e novos apren-
dizados simbólicos e materiais entre diferentes culturas. Garcés (2009) cha-
ma este processo de interculturalidade, para construir uma noção de rela-
ção entre grupos culturais diferentes em que não haja a hegemonia de um
sobre os outros.
A noção de interculturalidade, aliada à de microterritorialidade,
deve ainda incorporar a ideia de poder, tal qual a crítica pós-colonialista tem
apontado, afirmando que o processo intercultural não se dá sem que haja
conflitos e hierarquizações (FORNET-BETANCOURT, 2009; CLAROS e
VIAÑA, 2009). Assim, a interculturalidade se dá em meio às fissuras das
estruturas coloniais fortemente estabelecidas no tempo e no espaço. Silva
e Ornat (2012) evidenciam em seu trabalho que as fissuras das estruturas
hegemônicas podem ser reconhecidas por grupos subalternizados e que
estes agem no sentido interferir na ordem dominante e possibilitar sua
existência social.
É nesse sentido que a próxima seção analisará as interações entre
bichas e bofes, motivadas pela troca de interesses entre os dois grupos, por
meio de processos de interculturalidade que instituem microterritorializa-
ções específicas na Praia do Osso.

OPOSIÇÕES E COMPLEMENTARIDADES
NAS INTERAÇÕES ENTRE BICHAS E BOFES E A
INSTITUIÇÃO DE TENSIONAMENTOS
À CIDADE HETERONORMATIVA

A primeira constatação feita no grupo de entrevistados é uma


clara afirmação de uma identidade gay, inclusive a plena aceitação de um

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
BENHUR PINÓS DA COSTA, JASSON IRAN MONTEIRO DA CRUZ E JOSEVALDO SOUSA DE FRANÇA

termo que, muitas vezes, é usado de forma pejorativa, implicando discri-


minação: o termo ‘bicha’. É interessante notar, entre os grupos de entrevis-
tados (quase todos se conhecem, são amigos e participam mais ou menos
efetivamente das atividades6 do Grupo Homoafetivo de Santarém, GHS), a
necessidade cultural de se acentuar o caráter de feminilidade e transgressão
de gênero, principalmente com o uso do termo ‘gaya’, ou ‘a gay’, enfatizando
com a letra ‘a’ o caráter feminino e de transgressão de gênero. Mas o que nos
chamou mais atenção, principalmente como constatações críticas estabele-
cidas em entrevistas, é a tendência de os homossexuais da cidade buscarem
relações sexuais com sujeitos que não se consideram homossexuais. Para
Cruz (2002, p. 28), essa prática sexual sustenta uma espécie de cultura em
Santarém, de que as relações homoeróticas têm que apresentar uma “troca”
material ou econômica, e uma relação entre dois seres homoafetivos não é
bem-vista e nem compreendida pelos próprios homossexuais. É comum a
aproximação a um sujeito dito heterossexual que mantém relações afetivo-
sexuais com mulheres, mas que esporadicamente mantém relações sexuais
com as gay, ou gayas. Isto se constitui como um parâmetro de manutenção
de uma imagem positiva de um sujeito gay (uma gay, uma gaya ou uma
bicha, valendo-se destes termos como auto-imagem de valorização, con-
forme é usada pelos próprios elementos do grupo) frente a outros amigos,
ou seja, a possibilidade de manter contatos afetivo-sexuais com um bofe
(segundo eles, um rapaz ou um homem másculo, que assume o papel ati-
vo na relação sexual e que não se configura como gay, mantendo relações
afetivo-sexuais também com mulheres, seja casado efetivamente ou man-
tendo uma namorada) se torna um atributo de bom posicionamento cul-
tural frente ao grupo de amigos, sendo, inclusive, um atributo que produz
a inveja dos outros.
Neste sentido, observamos neste grupo de conhecidos em San-
tarém uma oposição de papéis identitários e sexuais que configura duas
figuras componentes do universo homoerótico da cidade: a bicha e o bofe.
Esta seria a marca típica das relações homoeróticas brasileiras de acordo
com Fry (1982), no sentido de as bichas assumirem marcadamente um pa-
pel feminino nas relações afetivo-sexuais e os bofes, um papel masculino
dominante. Esta relação seria uma transposição das relações de cunho pa-
triarcal que definiriam uma rigidez estrutural nas relações afetivo-sexuais
entre mulheres e homens no Brasil, construídas como base das estruturas

6
Sobretudo a Gaymada, versão homoesportiva da queimada, realizada apenas por times
de gays.

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OPOSIÇÕES E COMPLEMENTARIDADES NAS PRÁTICAS HOMOAFETIVAS DE
MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
EM SANTARÉM - PA

aristocráticas agrárias do Brasil, da colônia à modernidade. A definição rí-


gida dos papéis de homens dominantes e fortes e mulheres subalternas e
frágeis é, assim, transposta para as relações homossexuais. É isto que ob-
servamos nos discursos dos sujeitos orientados sexualmente para o mesmo
sexo em Santarém, os quais, inclusive, utilizam um termo discriminatório
para valorizar sua condição de feminilidade e passividade (ser penetrado
e assumir o papel feminino) nas relações sexuais. Segundo Cruz (2002,
p. 28), a relação afetivo-sexual entre dois homossexuais masculinos não
é bem-vista e nem compreendida como legítima, e quando duas gayas se
apresentam como namorados, os outros dizem que eles estão “quebrando a
louça”. A valorização deste termo segue como atributo cultural de autoesti-
ma deste grupo, bem nos moldes explicados por Bourdieu (1989) quando
certos atributos pejorativos de grupos subalternizados são utilizados pelo
próprio grupo como elemento de valorização e alta autoestima.
As construções das relações de feminilidade se observam na con-
figuração do corpo e nas performances relativas ao ato sexual. É intuito
da bicha gerar certas performances de atributos femininos (de gênero fe-
minino) em um corpo biologicamente masculino. Não necessariamente a
bicha se transforma em uma mulher, como é característico das travestis
(podem muitas vezes fazer performances femininas e se “montar”, ou seja,
se vestir como mulheres, mas isto em casos especiais, como em festivida-
des, geralmente em reuniões de círculos de amizade com outras bichas). As
performances se estabelecem pela mistura de características de gênero em
um corpo marcadamente masculino, acentuando a delicadeza dos gestos
e a postura feminilizada. Isto tende a ser acentuado no encontro com ou-
tras bichas, em conversas descontraídas e também nas relações com amigos
héteros e com os bofes. Nas relações afetivo-sexuais com os bofes, o papel
de passivo nas atividades sexuais é tido como regra. Observamos que es-
tas alterações no agir (uma ética) e na forma de se mostrar (uma estética)
representam uma construção do sujeito bicha ou gaya. Especialmente um
sujeito entrevistado nos contou esta transição ocorrida, conforme ajuda e
pressão de seu grupo de amizade imediata. Esse sujeito, em sua adolescên-
cia, tinha certo receio de ter relações sexuais com outros homens, porque,
conforme o aprendizado tido em grupos de amizade, esse tipo de relação
só poderia ser estabelecido se ele fosse penetrado (pelo bofe). Para ter a
relação sexual, nosso colaborador afirmou ter demorado cerca de um ano,
com medo de ter dor e sangramento ao ser consumado o ato sexual. Depois
de um tempo, finalmente sua relação, na qualidade de passivo, com outro

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BENHUR PINÓS DA COSTA, JASSON IRAN MONTEIRO DA CRUZ E JOSEVALDO SOUSA DE FRANÇA

homem foi divulgada e comemorada com seus amigos e ele adquiriu um


status positivo frente ao grupo.
Em outras entrevistas, alguns sujeitos homoafetivos criticavam
justamente este determinante nas relações afetivo-sexuais entre bichas e
bofes na cidade de Santarém. Grande parte dos sujeitos gays não quer se
relacionar com outro sujeito gay que apresente um gosto sobre a versatili-
dade e o improviso em relação às definições dos atos sexuais (tanto passivo
como ativo). A preferência buscada é sempre o bofe ativo que se apresente
como heterossexual e que possa assumir somente um papel ativo na relação
sexual. Alguns colaboradores afirmam que eles mesmos ou outros amigos
negaram a continuidade das relações sexuais com determinados bofes que
em certo momento quiseram manipular seu pênis ou que propuseram que
os tocassem nas nádegas ou os penetrassem. Para tais bichas, isto configu-
ra uma afronta à rigidez das regras sexuais. Muitos bofes que deslizam de
seus papéis rígidos de masculinidade e de atividade nas relações sexuais são
discriminados pelas próprias bichas, que espalham que sua função sexual
mudou, denotando negatividade quanto à personalidade de bofe da pessoa
em questão.
Por outro lado, também foi observado nas entrevistas que este
tipo de relação demanda certo interesse financeiro e troca de favores das bi-
chas em relação aos bofes. Muitas delas pagam ou sustentam em determina-
das circunstancias as necessidades de consumo dos bofes. Marcadamente,
os códigos de aproximação apresentam-se frequentemente com uma frase:
“paga uma cerveja para mim?” (CRUZ, 2002, p. 27). Isto já indica que o
bofe está disponível sexualmente em troca de alguns favores e pagamentos
das bichas. Não necessariamente as bichas são ricas, mas apresentam uma
estabilidade financeira marcante, sendo profissionais liberais e funcioná-
rios públicos, principalmente cabeleireiros, profissionais da saúde e educa-
ção. Foi constatado que os profissionais cabeleireiros apresentam um bom
nível de rendimentos, mas gastam muito em festas, bebidas e presentes para
seus bofes. Não tivemos a oportunidade de entrevistar ou então observar
as identificações entre grupos de bofes, mas podemos ter uma ideia de que
as suas perspectivas são de assumir uma ética e uma estética bem masculi-
nizada, de se identificar como heterossexual, de sair com mulheres (ser até
mesmo casado ou estar namorando) e manter relações com as bichas com
certo interesse de consumo e financeiro. Não conseguiríamos nos apro-
fundar em outros aspectos relativos às afetividades construídas entre esses
sujeitos, mas soubemos que este tipo de relação pode durar algum tempo,

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MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
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até mesmo anos, sempre envolvendo mais recursos financeiros quando a


relação dura mais tempo. Em muitos casos a bicha assume um papel de
‘segunda esposa’, mas que provê financeiramente o bofe.
Pudemos perceber que ocorre a construção de oposições cultu-
rais que se caracterizam como formas de agir (éticas) e de se mostrar (es-
téticas), mas que só existem pela possibilidade de encontro entre as duas,
configurando uma complementaridade cultural. As bichas e os bofes são
figuras em paradoxo, que só existem pela complementaridade de suas re-
lações. Ambos se autovalorizam e se estimulam, em virtude de suas dife-
renças comportamentais e físicas, que remetem a um paralelismo da figura
do masculino dominante e forte e do feminino delicado e frágil. O cimento
dessa complementaridade se sobressai pelas trocas utilitaristas monetárias
de possibilidade de consumo, embora, com certeza, pelo tempo elevado
de algumas relações, existam sentimentos outros que denotem afetividade.
Mesmo mantendo a afetividade, principalmente para os bofes, a relação é
justificada perante outros como importante em termos de ganhos e de pos-
sibilidades de diversão que extraem disto.
Existe uma rigidez de papel para a manutenção destas relações,
mas elas envolvem um esforço performático de ambos os lados, ou seja, a
performance de masculinidade, que se constituiria como menos hegemô-
nica, porque tende a aproximar-se de estéticas e formas corporais de se
apresentar femininos, assim como de assumir um papel de passividade ou
de ‘ser penetrado’ nas relações sexuais – o da bicha –, e outra performance
de masculinidade comprometida a reproduzir um padrão rígido distante
de pressupostos de delicadeza nas formas de se apresentar e gestuar tidos
como femininos – a forma rude –, popularmente entendida como do ma-
chão, que caracterizariam os bofes, os quais assumem um papel ativo ou
de penetrador nas relações sexuais. Ambas se apresentam como formas de
masculinidades; no entanto, uma tende a se afastar de um padrão ‘senso
comum’ das condições estéticas dos corpos masculinos, aproximando-se
de padrões estéticos de corpos femininos, e a outra tende a tornar rígi-
dos esses padrões. A diferença das relações patriarcais heterossexuais é que
aqui o papel de mentor que subsidia materialmente a relação está no polo
feminino da relação. Outras performances podem ocorrer, que a princípio
podem romper a rigidez dos papéis estabelecidos, como a tendência de cer-
tos bofes do passado aos poucos se interessarem pela estabilização do de-
sejo homoerótico e aos poucos tornarem-se versáteis nas relações sexuais
e, até mesmo, assumirem-se posteriormente como bichas, desenvolvendo

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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o papel contrário anteriormente adquirido. Também muitas bichas podem,


efetivamente, se abster dessas dicotomias afetivo-sexuais e procurar outras
para se relacionar, muito embora isto seja citado por alguns entrevistados
como muito mais raro na cidade de Santarém.
Não necessariamente o papel ativo (sujeito penetrador) ou pas-
sivo (sujeito penetrado) nas relações homoeróticas apresenta uma perfor-
mance estético-corporal mais voltada à feminilidade ou mais à masculini-
dade padrão heterossexual, que determina a dicotomia delicadeza-rudeza.
Trabalhos de Braz (2006) apresentam performances de homens gays de São
Paulo comprometidos a manter um padrão estético rígido de masculini-
dade rude, longe de uma ideia padrão de delicadeza feminina, mas que
geram atividades sexuais tanto ativas como passivas. No universo pesqui-
sado no trabalho de Braz (2006), os papéis nas atividades sexuais estão ri-
gidamente em oposição, mas determinam performances estético-corporais
que não devem se assemelhar a nenhum atributo que lembre a delicadeza
tida como feminina. No caso do universo pesquisado em Santarém, existe
um paralelismo entre performances estético-corporais de delicadeza que
tendem a acentuar uma ideia de feminilidade hegemônica entre as bichas
e a valorização de um papel passivo nas atividades sexuais entre os bofes,
e vice-versa.
Temos então dois sistemas culturais cujos atributos são subsi-
diados e reforçados por grupos fechados de amigos da mesma polarização
identitária. Porém, a manutenção da identidade é dada pelo outro, que se
apresenta como contrário às definições primeiras. Os bofes são como re-
flexos pelo avesso das bichas; separam-se rigidamente quanto às suas for-
mas de agir e de se mostrar, mas essas oposições são reforçadas justamente
porque se relacionam em determinação de papéis e posturas diferenciadas.
Podemos dizer que são duas culturas construídas ao mesmo tempo pela
diferença e pelo encontro. Sem o encontro afetivo-sexual e movimentado
por interesses utilitaristas, essas duas identidades culturais não mais existi-
riam. Podemos pensar que este é um movimento cotidiano intercultural na
cidade de Santarém, ou seja, dois sistemas culturais em oposição, mas que
só se realizam pelo encontro. Esta conexão de formas tão diferentes de agir
e de se mostrar só existe porque uma tem a outra como elemento contrá-
rio, mas complementar. É claro que muitos fatores discriminatórios estão
em jogo, mas muitos outros reconfiguram uma história de subalternidade
e hegemonia. As bichas se reconfiguram como, muitas vezes, donas da
situação, uma vez que adquirem certo controle na relação em virtude do

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MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
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poder monetário. Isto as empodera e muda uma possível situação de subal-


ternidade em virtude do preconceito contra homossexuais construído pela
sociedade heteronormativa. Os bofes podem sim discriminar as bichas no
cotidiano comum, mas eles dependem dessas relações para questões mate-
riais ou, até mesmo, para subliminar certos desejos homoeróticos que pos-
suem. Os dois lados apresentam maneiras de empoderamento que denotam
capacidades de convencimento diferenciais entre grupos de iguais amigos
e grupos complementares opostos (as diferenças entre bichas e bofes). Am-
bos se utilizam um do outro para se posicionarem melhor frente a seus
iguais: as bichas se gabam de ter consigo um bofe, os bofes se gabam por
estarem se divertindo mais e consumindo mais que outros porque têm as
bichas que os sustentam (se consideram espertos). Dessa forma, ao mesmo
tempo em que existe um sistema de discriminações e preconceito implícito
nessas relações, ambos tornam suas performances convincentes como se
fossem parâmetros de esperteza para se posicionarem melhor frente aos
amigos imediatos dentro do grupo cultural. Os sistemas de complementa-
ridades existem e reforçam os sistemas culturais opostos.
A Praia do Osso funciona como uma microterritorialização cujos
sistemas culturais em complementaridade e oposição se encontram. As bi-
chas se deslocam aos finais de semana justamente para encontrar os bofes,
assim como muitos bofes são atraídos ao lugar para se tornarem espertos
e se aproveitarem de sua masculinidade em excesso e, assim, para obter
alguma vantagem com as bichas. O sistema de encontro é configurado pela
necessidade de adquirir vantagens de ambos os lados, e os parâmetros de
sucesso quanto à capacidade e esperteza pessoal são avaliados pelos inte-
grantes dos grupos em dicotomia. O interessante nesse encontro também
são as assimetrias econômicas. A Praia do Osso se localiza em um bairro de
classe baixa da cidade de Santarém, com casas produzidas e comercializa-
das com benefícios estatais para classes populares. Grande parte dos bofes
habita essa periferia pobre, vendo nas bichas pelo menos uma possibilidade
de diversão nos finais de semana, regada a bebidas e comida em abundân-
cia. Isto representa um eixo de poder das bichas, tornando-as capazes de
assumir um controle da situação entre os bofes, distinguindo-se também
entre si (as bichas mais ‘endinheiradas’ se destacam das outras por conse-
guirem atrair os bofes, o que gera atenção das outras, em forma de inveja).
As trocas se estabelecem em favores sexuais, sendo que muitos assumem
uma postura de não se envolver diretamente na relação sexual, nem tocar
nem beijar a bicha, mas deixá-la praticar felação (sexo oral) ou então ser
penetrada (para as bichas, bofe que é bofe nem as toca, somente as penetra

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e as deixa “chupar”, ou praticar felação; e para os bofes, isto também é uma


postura a se manter, pois carinho e uma performance sexual mais produ-
zida são somente para se ter com uma mulher). As bichas têm uma forte
atração pelos bofes pobres, uma vez que certos atributos de masculinidade
lembram a forma rude de ser. Os bofes, por sua vez, sentem-se atraídos
pela capacidade de consumo das bichas e pela possibilidade de explorar
esta vantagem, mantendo relações com elas. Tece-se assim uma relação de
complementaridade, de que, todavia, não estão excluídos certos conflitos.
Muitas vezes, quando os conflitos acontecem (principalmente quando um
papel ou outro não é bem desempenhado, como a eventual dificuldade de
a bicha efetivamente conseguir pagar ou dar oportunidades de consumo ao
bofe), os sistemas de homofobia podem ser acionados. Tais atos homofóbi-
cos ocorrem quando a complementaridade de interesses não se estabelece
ou o pacto é quebrado, e não propriamente pela negação da homossexua-
lidade em si.
Durante a passagem na praia, tivemos a oportunidade de conhe-
cer um sujeito, professor da cidade, bem sucedido, a princípio, que estava
na praia em busca de relações sexuais com os bofes (como complemento
das caracterizações, muitos bofes são sujeitos jovens, e muitas bichas são
mais maduras, de forma que existe também marcadamente uma relação
intergeracional). Sua fala foi bastante clara e elucidativa. Sua preferência é
ter sexo facilitado, o que implica ter pobreza envolvida. Segundo esse nosso
colaborador, a pobreza facilita os contatos sexuais, em troca de muito pou-
co. Assim o sexo fácil envolve pobreza e pouco nível intelectual. Com garo-
tos com esse perfil, ou seja, com bofes pobres, as coisas são muito simples,
e o sexo acontece sem muita conversa, e sem problemas, de forma objetiva,
prática e destinada a saciar o prazer e a vontade sexual. Essa configuração
de idade dos bofes, segundo ele, é vantajosa porque a energia sexual e a
vontade de experimentar permitem transpor certas barreiras discrimina-
tórias, e a vontade de penetrar se sobressai à necessidade da definição do
sujeito penetrado. Além disso, a desigualdade de renda favorece a pratici-
dade e a utilidade do sexo. Dessa forma, observamos que nesse circulo de
complementaridade cultural existem muitas outras questões interseccionais
envolvidas, e muitas configurações sobre identidade, discriminação e valo-
res de si são reconfiguradas.

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MICROTERRITORIALIZAÇÃO: INTERAÇÕES ENTRE ‘BICHAS’ E ‘BOFES’ NA PRAIA DO OSSO
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos, assim, que os processos interculturais estabelecidos


entre bichas e bofes na cidade de Santarém implicam uma complexidade
de questões em jogo. Primeiramente, na microterritorialização da Praia do
Osso, sistemas de identificação sobre predisposições éticas e estéticas afeti-
vo-sexuais são reproduzidas pelo encontro entre contrários, pautando uma
reconfiguração dos rígidos papéis de gênero construídos historicamente
no Brasil. Ocorre uma reconfiguração heteronormativa entre masculini-
dades e o papel cultural estabelecido nas práticas afetivo-sexuais, gerando
uma singularidade de relações relativas ao papel a ser desempenhado na
interação, principalmente na interação sexual. Os papéis em oposição são
compostos pelo encontro microterritorial (na Praia do Osso), mas eles são
construídos em oposição em outros fragmentos espaciais que são caracte-
rizados pelas convivências específicas de grupos de amigos bichas e grupos
de amigos bofes. Esses dois sistemas culturais formam grupos urbanos em
oposição, mas em complementaridade, em que identidades diferenciais de-
pendem de suas oposições para se constituírem. Tanto as espacializações
das relações culturais específicas das bichas como dos bofes remetem a um
retrabalhar simbólico sobre o corpo e o ser (sobre as estéticas e as éticas),
que se dão nas especificidades das interações e remetem a uma reconfigura-
ção das predisposições e das regras socioinstitucionais totalizantes de uma
sociedade eminentemente heteronormativa.
Este trabalho de reconfiguração se processa na continuidade da
singularidade das relações estabelecidas na Praia do Osso, cujo encontro
entre bichas e bofes ao mesmo tempo confirma e transforma papéis rígidos
de gênero e de sexualidade da sociedade heteronormativa atual. Finalmen-
te, as ideias sobre as construções sociais definidas nos grupos de interação
imediata são muito úteis para este tipo de entendimentos sobre as relações
que se dão na Praia do Osso, na cidade de Santarém. Também são úteis os
subsídios sobre diálogos e conflitos de culturas, principalmente suas críti-
cas às questões normativas construídas historicamente, que aqui envolvem
questões sobre as sexualidades brasileiras, assim como a sua relativização
sobre o fechamento do conceito de cultura, que trata não somente de uma
visão sobre o interior da cultura, mas de como as culturas se constroem na
interação com o outro.

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NA ANÁLISE ESPACIAL
BENHUR PINÓS DA COSTA, JASSON IRAN MONTEIRO DA CRUZ E JOSEVALDO SOUSA DE FRANÇA

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS
EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS
NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 1

Miguel Ângelo Ribeiro


Rafael da Silva Oliveira

***

“Uma sauna de boys significa basicamente a entrada


num mercado de sexo aberto, sem tabu, livre,
descontraído, com enormes poderes de escolha
e com opções de prazer sexual ao seu alcance.”
(Cliente entrevistado, abril de 2014)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A prostituição masculina na cidade do Rio de Janeiro, conforme


apontam Mattos e Ribeiro (1995) e Ribeiro, Oliveira e Maia (2011), atual-
mente se manifesta em recintos fechados, como private clubs ou saunas,
onde as relações homocomerciais configuram microterritórios (SOUZA,
2013). Esta modalidade de prostituição também é oferecida pela internet,
por meio de sites especializados.
Neste contexto, este ensaio se propõe a discutir as relações entre
boys (rapazes de programa ou michês) e clientes (frequentadores) a partir
da organização interna (espacialidade) de um clube privé selecionado por
nós, e como essas relações se manifestam.

1
Gostaríamos de agradecer ao mestrando Daniel Augusto de Oliveira Cavalcanti pela
digitalização do texto, além das discussões, críticas e sugestões, e a Maria Elaine Andreoti pelas
sugestões e revisão final. As ideias expressas são de exclusiva responsabilidade dos autores.
AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

A justificativa para abordar a temática em tela, bem como o re-


corte espacial selecionado, é que a prostituição masculina fechada já existe
há mais de trinta anos, recebendo público não somente da cidade do Rio de
Janeiro, mas também de outros estados brasileiros e do exterior – público
exclusivamente gay (RIBEIRO, OLIVEIRA e MAIA, 2011).
Os espaços fechados se configuram como microterritórios, onde
regras, normas e códigos de conduta são respeitados e praticados por seus
proprietários ou responsáveis pelo estabelecimento e também pelos boys e
clientes, apresentando uma dinâmica extremamente singular, na qual re-
lações de poder se configuram num espaço físico composto de elementos
socioespaciais, produto de ação humana e apropriado por atores sociais
(MAIA, 2007).
Para Ribeiro, Oliveira e Maia (2011), de forma sintética, a territo-
rialidade só se manifesta através do domínio e do controle social do espaço,
e as relações empreendidas nesse microterritório possuem uma repercus-
são espacial por meio da qual se manifestam segundo a materialidade local
e da construção, apropriação e valorização simbólica dessas relações.
A apropriação material e simbólica deste microterritório é exerci-
da pela prática social dos atores, que o influenciam a partir da troca de pa-
péis e centralidade dos sujeitos envolvidos – boys e clientes (ORNAT, 2008).
A prática social da prostituição masculina incorpora as duas faces
do mesmo processo: a expressão física e materializada no espaço, a par-
tir dos diferentes ambientes; e a expressão simbólica, que se concretiza se-
gundo códigos que identificam esse microterritório. O mesmo se encontra
embebido em relações sociais pelo poder de afirmação e de representação
do “macho”. Neste contexto, por meio de ações dos corpos, produzem mer-
cadorias (SILVA et al., 2013) como fonte de prazer pelos boys, explorando
“como eles são constituídos e usados, tendo como preocupação a inscrição
do poder e a capacidade de resistência dos corpos envolvendo as questões
de performatividade” (p. 89).
A performatividade tem por objetivo as normas socialmente
construídas e impostas pelos garotos de programa diante dos clientes, que
as incorporam em atos repetitivos ao frequentar o clube, utilizando-se do
corpo como objeto de desejo e prazer.
Diante da problematização e do objetivo apresentados, duas ques-
tões emergem para indagação do fenômeno: 1. quais relações são estabeleci-
das entre boys e clientes para configurar territorialidades? 2. quais ambientes
são identificados no referido clube e quais relações se manifestam em cada
um? Para cumprir o objetivo e responder aos questionamentos propostos, a
metodologia de pesquisa utilizada foi de trabalho de campo, com diferentes

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

visitas ao clube selecionado, além de entrevistas informais a boys e clientes,


valendo-se da etnografia móvel (mobile ethnography) e levando em conside-
ração os aspectos da observação participante e da análise das práticas discur-
sivas, procurando dar conta do recorte espacial selecionado.
Oliveira (2014) aponta que a etnografia móvel consiste em atribuir
importância e, de certa forma, priorizar a pesquisa de campo a partir das
micromobilidades. Aqui foi elaborado um esquema com o material coletado
– que será exposto e detalhado na segunda parte deste ensaio –, que procura
retratar os diferentes ambientes onde as relações sociais se manifestam e se
concretizam entre clientes e boys. São nesses distintos ambientes que transi-
tam principalmente os rapazes de programa (boys) e clientes, além de funcio-
nários, estabelecendo relações de contato e configurando territorialidades.
A propósito da organização, o ensaio foi dividido em duas seções.
Na primeira discute-se a base teórico-conceitual adotada, enfatizando os
conceitos de microterritório (nanoterritório), motilidade, balé do lugar,
centro e margem, arranjo interno e redes sociais, em escala micro. Na se-
gunda seção descrevem-se os diferentes ambientes internos, em que, por
meio de um esquema tridimensional, são analisados os papéis dos boys e
dos clientes, configurando as diversas relações entre esses sujeitos.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS
EM UM MICROTERRITÓRIO DE
PROSTITUIÇÃO MASCULINA

A questão do território deve ser necessariamente abordada quan-


do nos propomos a aprofundar o tema da prostituição masculina em um
clube privé na cidade do Rio de Janeiro, pois entendemos que prostituição e
território estão intimamente atrelados. Partimos então do conceito de terri-
tório, entendido como um espaço constituído a partir de relações de poder
(MATTOS e RIBEIRO, 1995; SOUZA, 1995, 2013).
Quando falamos em território, o conceito nos remete à ideia de
mediação entre as relações humanas. A geografia, na condição de ciência
social, passa a ser responsável pela articulação entre o território e as duas
bases que o delimitam: o espaço e o poder.
Marcelo Lopes de Souza (2013), ao rediscutir o conceito de terri-
tório, diz que “é, fundamentalmente, um espaço definido e delimitado por

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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

e a partir de relações de poder” (p. 78), onde relações sociais são realizadas,
no caso desta análise, entre boys/clientes/boys, além das teias de significa-
dos simbólicos. O território é definido por “campos de força, só existindo
enquanto durarem as relações sociais das quais eles são projeções especia-
lizadas” (SOUZA, 1995, p. 97).
Para Souza (1995, p. 87), os territórios são “no fundo, antes ralações
sociais projetadas no espaço, que espaços concretos”. Na verdade, estas rela-
ções de poder são espacialmente delimitadas e se realizam sobre um espaço
concreto que serve de referência, e, no caso em tela – representado pelo clube
de boys e seus diferentes ambientes –, travam-se relações que ora colocam o
cliente na margem, ora no centro (ORNAT, 2008) em relação ao boy, travan-
do um “campo de força” no qual as relações homocomerciais se manifestam.
A dimensão das relações sociais ocorre através do poder, espacial-
mente materializada no território, manifestando um processo de territoria-
lização em uma escala muito reduzida, mas plena de significados, que Souza
(2013, p. 105) denomina “nanoterritórios”, nos quais “as ‘fronteiras’ englobam
uma rua ou um trecho de rua, um prédio ocupado por sem-teto, uma prisão,
parcela das arquibancadas de um estádio de futebol” (p. 105), entre outros.
Esse nanoterritório é flexível, pois se desfaz e refaz regularmente
(SOUZA, 2013, p. 107) durante o período de funcionamento, dependendo dos
agentes que condicionarão a sua dinâmica social. Aqui temos como recorte um
nanoterritório fechado, privado, no qual o arranjo interno, ou seja, a disposição
de seus ambientes, está sujeito a um processo de territorialização a partir da
atuação e das relações de poder manifestadas pelos boys e seus clientes.
No processo de territorialização e na escala do nanoterritório,
não podemos deixar de abordar a motilidade discutida por Kaufmann
(2002), de boys e clientes nesse microespaço. Como aponta Oliveira (2014),
de acordo com aquele autor, a motilidade é entendida como o modo pelo
qual um indivíduo se apropria do que é possível no domínio da mobilidade
e coloca esse potencial para usar em favor de suas atividades. Assim, a mo-
tilidade abarca três elementos indissociáveis e interrelacionados: acessos,
habilidades e apropriações.
Transpondo esses três elementos que configuram a motilidade
para o nanoterritório analisado, podemos afirmar que os acessos corres-
pondem às diferentes formas e graus de deslocamentos potencialmente dis-
poníveis. Em nosso recorte espacial, o elemento físico é importante, prin-
cipalmente por conta da utilização do corpo através das performances, nos
diferentes recintos (Figura 1). Outro elemento importante corresponde à
rede social existente de amigos, colegas, entre outros, possuindo potencial
para a promoção do encontro, tanto no interior do clube, como no espaço

INTERSECCIONALIDADES,
120 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

da rua. Já as habilidades estão atreladas à capacidade dos boys e clientes


para reconhecerem e fazerem uso dos acessos existentes no estabelecimen-
to, representado pelos diversos ambientes.
Estamos considerando que esse elemento da motilidade é cons-
tituído por habilidades físicas (como se deslocar de um recinto para o ou-
tro, ou percorrer os diversos ambientes, caminhar), habilidades adquiridas
(saber abordar, “caçar” o cliente, ou vice-versa, a partir das diferentes per-
formances) e habilidades organizacionais (planejar e sincronizar ativida-
des, por exemplo). Por fim, as apropriações são entendidas como escolhas
particulares (até mesmo a não ação), estando associadas às interpretações
e ações diante do contato das habilidades com as possibilidades de acesso
(reais, percebidas e imaginadas) apreendidas e reconhecidas no processo
de territorialização. Desse modo, acessos, habilidades e apropriações cons-
tituem juntos a motilidade que auxilia nas práticas que ocasionam, por
exemplo, as territorializações de boys e/ou clientes, no decorrer da perma-
nência desses atores no estabelecimento.
Outro aporte conceitual importante para discutir as relações de
boys e clientes diz respeito ao balé do lugar, conceito proposto por Seamon
(1980), e que Oliveira (2002) utilizou em artigo sobre a territorialidade de
travestis na área central de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense
localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro. Neste estudo, o autor
procurou “analisar a dinâmica das interações sociais e as coreografias do
cotidiano por meio das quais se geram centralidades, abordando os fixos e a
convergência para diversas direções, os fluxos” (OLIVEIRA, 2002, p. 149).
Para Seamon (1980), o balé do lugar é composto pelo tempo-es-
paço rotineiro e o balé do corpo. No exemplo que estamos trabalhando
como recorte espacial, o clube privé, o tempo-espaço rotineiro, ou seja, as
atividades rotineiras são aquelas empreendidas pelos boys e clientes ao se
vestir ou se despir, chegar ao clube, voltar para casa, entre outras, consti-
tuindo a coreografia daquele cotidiano vivido, enquanto o balé do corpo
corresponde aos movimentos como gestos, passos, performances dos clien-
tes e dos boys, configurando a territorialização, de forma que o balé do cor-
po está intrinsecamente ligado ao tempo-espaço. Podemos afirmar que o
balé do corpo, o tempo-espaço rotineiro e o balé do lugar unem pessoas ao
espaço, lugar e tempo (OLIVEIRA, 2002). Nesse balé do corpo, empreendido
pelos boys e clientes, são estabelecidas relações de poder.
Apropriando as ideias de Ornat (2013) para discutir o grupo das
travestis, podemos afirmar que os boys, lutando pela sobrevivência naquele
nanoterritório, muitas vezes se posicionam de forma central nas relações de
poder ao impor, entre outros, o preço do programa, o tipo de programa a ser

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

feito (penetração, felação, posição de passivo/ativo) e o tempo de duração


da atividade a ser realizada. Ao mesmo tempo, de forma paradoxal, podem
se deslocar para as margens das relações de poder, passando a depender
dos proprietários ou responsáveis pelo estabelecimento e dos clientes, que
muitas vezes questionam o tipo de programa a ser realizado, impondo suas
regras aos boys – ainda que caiba a estes aceitá-las ou não, mas sem esque-
cer que em geral eles não têm alternativa senão ceder para não perderem o
programa, sendo coagidos pelas condições sociais e se posicionando, desse
modo, à margem da relação.
Após estas breves considerações, passaremos à análise empírica a
partir da pesquisa de campo, procurando associar os diferentes ambientes
internos e as territorializações existentes nesses espaços em que se travam
as relações de poder.

RELAÇÃO ENTRE AMBIENTES


E TERRITORIALIZAÇÃO HOMOCOMERCIAIS
NO CLUBE SELECIONADO 2

A escolha do referido recorte espacial para análise empírica de-


corre da importância e ressonância que este representa no contexto des-
te tipo de estabelecimento na oferta de serviços sexuais direcionados ao
grupo gay na cidade do Rio de Janeiro (RIBEIRO, OLIVEIRA e MAIA,
2011) e sua repercussão nacional e internacional, veiculada em revistas es-
pecializadas e em sites, tornando-se pertinente a radiografia e análise desse
nanoterritório na urbe carioca.
O estabelecimento localiza-se no bairro da Glória, próximo à área
central da cidade do Rio de Janeiro, em um casarão do início do século XX,
antiga residência que mudou sua configuração interna para atender essa nova
atividade. Como apontou sua proprietária/empresária (SILVA, 2014) em re-
portagem na Revista S!, quanto à abertura do empreendimento em 1998,

[...] fui ousada diante desse mundo machista, mas tinha que ajudar
as pessoas a terem seu local de liberdade e trânsito livre. [...] Assim

2
Os autores preferiram preservar em sigilo o nome e o endereço do clube.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

me sinto independente de ser a única mulher no ramo no Rio de


Janeiro ou no Brasil. Minha atitude 16 anos atrás foi bem aceita no
ramo dominado por homens, como você mesmo diz. Estou feliz. Ser
mulher ou homem foi o que menos me importou. (p. 3).

Um cliente residente no exterior, em entrevista realizada por Ri-


beiro (2014), aponta o que significa o clube: “Você está pagando pelo michê
e por isso pode escolher o que você gosta, o que você tem tesão (é como
num sonho) [...]”. “Todos sabem que você vai lá para trepar, e tratam o sexo
com naturalidade, abertamente”. E, por fim, o entrevistado aponta: “é como
eu sempre digo: é como levar uma criança a uma loja de doces. Ela fica
atônita no início, mas depois se esbalda.”
Isto posto, identificamos no clube os seguintes recintos, com seus
distintos ambientes, distribuídos em três andares, conforme representado
na Figura 1. O primeiro, correspondendo ao segundo andar, localizado no
nível da rua, é constituído por:
– Hall de entrada, que estabelece, a partir da porta principal, a
separação entre o espaço da rua (externo – o público) e o espaço do clube
(interno – o privado).
É interessante observar a chegada dos boys e dos clientes, muitas
vezes tentando driblar as pessoas que passam pelo local, ainda que estas este-
jam alheias ao que representa aquele imóvel. Alguns clientes entram apressa-
dos, enquanto os boys procuram chegar de forma discreta. Os contatos entre
boys e clientes na rua são evitados. Na entrada, seguranças dão apoio ao esta-
belecimento, e taxistas fazem ponto, servindo aos frequentadores.
– A recepção, onde um balcão separa os frequentadores dos fun-
cionários (os recepcionistas) que cadastram clientes e boys após a apresen-
tação do documento de identidade. Também aí são fornecidas as chaves dos
armários onde são guardadas as roupas e os pertences dos usuários e boys e
são realizadas as reservas de suítes para práticas sexuais mais “íntimas”, que
não podem ser consumadas nos demais ambientes – apesar de alguns, por
vezes, burlarem as normas estabelecidas.
Neste ambiente também é realizado o pagamento final dos ser-
viços utilizados pelos clientes e boys quando deixam o estabelecimento.
Geralmente o boy, quando acerta o programa na cabine, se encarrega de
solicitar o material para a relação sexual (gel, preservativos), que será pago
pelo cliente juntamente com a cabine. A chave do cliente é levada para re-
gistro. Dependendo do dia e da hora, muitas vezes há lista de espera para
o recebimento da suíte (cabe mencionar aqui que o estabelecimento não

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

funciona às segundas-feiras). O pagamento do cliente ao boy é separado


daqueles que serão feitos ao clube na saída, em que estão incluídos o con-
sumo, a utilização das cabines e a massagem, quando realizados.

Figura 1: Recintos, ambientes e relações no nanoterritório.

Fonte: Elaborado por Ribeiro e organizado por Oliveira,


a partir de pesquisas de campo. 2011 a 2014.

O cliente pode frequentar o clube exclusivamente para encontrar


amigos e/ou assistir às atrações que são oferecidas, conforme anúncio pu-
blicado na Revista S!, de março de 2014, indicadas no Quadro 1, a seguir.
Além das atrações indicadas no quadro, o clube promove festas
para comemorações especiais, tais como carnaval, aleluia, shows especiais,
entre outros, permitindo estabelecer relações sociais diversas.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

Cumpre mencionar que, nesse ambiente, as relações entre boys e


clientes já se iniciam, com troca de olhares, e algumas vezes conversas são
travadas, iniciando os primeiros contatos.

Quadro 1: Atrações do clube durante os dias da semana.

Dias da Atrações
semana

Terças Show especial

Bingo especial com apresentação de um stripper boy


Quartas (sempre uma novidade a cada semana)

Sempre uma apresentadora diferenciada


Quintas com gogos em cena

Karina Karão junto com Fabyolla Nitchelly intercala


com Magaly Penélope junto com Lord Talent, com convidadas
Sextas
Bingo com prêmios

Sábados Especiais

Karina Karão junto com Fabyolla Nitchelly intercala


com Samara Rios e Lord Talent
Domingos
Bingo com prêmios

Fonte: Elaborado por Ribeiro (2014) a partir de anúncio


na Revista S!, ano XII, n. 139, p. 12.

– Sala e corredor de passagem para banheiro, sala de massagem,


sala de refeições e salas de televisão. No ambiente da pequena sala de
entrada, tem-se o acesso por escada ao terceiro recinto, correspondente
ao segundo andar, onde estão localizadas as suítes, restritas aos clientes
e boys que vão desfrutá-las para as atividades sexuais mais íntimas, e a
escada que dá acesso ao segundo recinto, correspondente ao subsolo. A
partir desta sala, atinge-se o corredor no qual em uma extremidade en-
contramos o banheiro, a sala de massagem e a sala para refeição dos boys,
enquanto na outra extremidade estão as salas de TV e a porta que conduz
à boate e ao bar.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Na sala e no corredor, onde os clientes se deslocam de um recinto


para o outro, alguns boys de toalha ou totalmente nus ficam conversando e
“mirando” a clientela, e alguns se utilizam de códigos de postura, materiali-
zando uma microterritorialização, dentre eles apresentando seus dotes, tais
como o membro endurecido, acariciando por vezes os clientes e dialogando
com eles na procura de um programa.
Em determinadas ocasiões, essas conversas entre boys e clientes,
constituídas por “toques”, que resultam na combinação de preço e tipo de
relação, se concretizam nas suítes, travando uma maior intimidade entre
os sujeitos.
No espaço reservado às salas de TV, no primeiro ambiente com
sofá, programas televisivos de canais abertos são transmitidos. Alguns boys
e clientes, dependendo da programação, assistem a jogos de futebol e pro-
gramas de entretenimento.
Adentrando outro ambiente, com sofás e fila de cadeiras, os fil-
mes pornôs são a atração – chama a atenção o fato de estes serem exclusi-
vamente heterossexuais. Nesse espaço os boys se utilizam de códigos cor-
porais para atrair os clientes, dentre os quais também o membro exposto,
frequentemente masturbando-se. O máximo de contato que pode haver
entre o boy e o cliente é o ato da felação, além da mão nas partes íntimas.
Este local geralmente é controlado de forma discreta por funcionários, que
podem chamar atenção, principalmente dos boys, quando estes se excedem
na conduta ou norma permitida.
Conforme mencionado, a partir dos olhares que se manifestam,
criando assim uma cumplicidade entre os envolvidos, muitos se aproxi-
mam e travam relações rápidas, para futuro encontro mais velado nas cabi-
nes, a partir da combinação do preço e do que será realizado. Por vezes, há
nesse ambiente uma grande aglomeração de boys e clientes, configurando
uma microterritorialidade; outras vezes, somente os boys aproveitam o re-
ferido espaço, até mesmo para descanso.
Alguns clientes apenas se aproveitam dos boys e não concretizam
o programa, para não pagar pela suíte e ao boy. Os que ficam marcados
por serem recorrentes nesta estratégia acabam preteridos pelos boys. O ba-
nheiro eventualmente é utilizado por boys e clientes para rápidas transa-
ções, burlando as regras estabelecidas, pois é exclusivo para a satisfação das
necessidades fisiológicas. A sala de massagem também é exclusiva para a
referida atividade, com um massagista credenciado.
– A boate/bar é outro ambiente de entretenimento, onde são
realizadas as atrações indicadas no Quadro 1. Realmente se reproduz

INTERSECCIONALIDADES,
126 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

nesse espaço uma boate em dimensões reduzidas, constituída por palco


para shows, mesas, sofás e o bar com assentos. Neste recinto, clientes e
boys conversam, dançam, jogam, paqueram, “namoram”, criando grupos
de amigos. Com música ambiente, há divertimento, mas não há transações
sexuais.
Alguns clientes vão exclusivamente para encontrar amigos, fa-
zendo do clube um local de sociabilidade, e não utilizando os serviços de
sauna. De acordo com um cliente, o local é protegido e seguro. Ninguém
vai roubar ou botar narcótico na sua bebida. Seus bens estão num locker.
Outros vão exclusivamente à procura de boys, não permanecendo
no ambiente da boate, e afirmam que “todos sabem que você vai lá para trepar”.
– O corredor de passagem com camarim é um ambiente entre a
boate e o lounge externo. Nele está situado o camarim, no qual os artistas
(transformistas, gogo boys) trocam de roupa (se montam) para os shows. É
exclusivo para funcionários e artistas, não havendo envolvimento das rela-
ções entre boys e clientes.
– Lounge externo. Este ambiente, localizado na parte externa do
clube, é constituído por sofás, mesas, camas para descanso e um bar. Um
televisor de LED apresenta, de modo geral, clipes de shows nacionais e in-
ternacionais, além de jogos de diferentes modalidades esportivas. É o único
ambiente onde se permite fumar. Os grupos de clientes e boys trocam con-
versas, carícias e combinam programas nas cabines. Algumas performan-
ces são executadas pelos rapazes de programa, como a ereção do pênis;
outros transitam nus, com o membro ereto, a fim de seduzir a clientela.
Neste ambiente são consumidas bebidas, petiscos e refeições rápidas.
Alguns boys aproveitam o contato com os clientes para se alimentar e beber.
O segundo recinto corresponde ao subsolo, localizado abaixo do
nível da rua, chegando-se a este local por meio de uma escada localizada,
como já mencionamos, no primeiro recinto. É constituído por:
– Sala dos clientes e banheiro. Constituída por armários (lockers),
bancos, bancada com pia e espelho. Exclusivamente para os clientes troca-
rem suas roupas e guardar seus pertences. É atendido por um funcionário,
que fornece toalha ou roupão e chinelo. Perto estão o banheiro e o mictório,
para uso também dos boys.
Nestes dois ambientes, os boys transitam em direção a outros
locais do referido recinto. Muitos aproveitam para abordar os frequenta-
dores, travando diálogo e primeiros contatos, enquanto outros utilizam o
local para receber o pagamento do programa realizado.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

– Os armários dos boys são localizados na parte de um corredor,


ocupando um pequeno espaço. Eles trocam de roupa e colocam as toalhas e
chinelos fornecidos pelo clube. Alguns permanecem de sunga, não se despin-
do totalmente, fazendo de certa forma mistério de seus atributos físicos. Nes-
se corredor estão dispostos bancos, nos quais, em alguns momentos, obser-
vam-se clientes que aproveitam para “olhar a mercadoria” que será oferecida.
Alguns desses frequentadores já têm suas preferências e conhe-
cem alguns boys, antecipando a ida ao clube para o programa previamente
combinado; do mesmo modo, alguns boys já criaram uma rede de relacio-
namento com alguns clientes, mantendo uma clientela fixa que contribui
para o seu sustento. Outros, durante sua permanência no clube, terão que
batalhar para conseguir realizar o programa, pois ficam à mercê do gosto
do cliente.
Relacionamentos são mantidos por alguns boys e clientes fora das
dependências do clube, sendo que alguns mantêm relacionamentos está-
veis, estabelecendo diferentes graus de “amizade”.
Este corredor serve ainda de passagem para boys e clientes que
se deslocam para a sala de karaokê e bar, onde pequenas performances são
realizadas por transformistas. Acreditamos que, devido à localização, este
espaço é muito pouco utilizado.
Em outro corredor, com acesso por este que descrevemos, são
encontradas algumas suítes.
No ambiente onde estão os armários dos clientes, outro espaço
é ocupado por um roupeiro, atendido por um funcionário, e há também
mais duas suítes.
– As saunas seca, a vapor e os chuveiros estão localizados em um
corredor que liga a sala dos armários dos clientes e dos boys, em situação
oposta. Antes de descrevê-los, cumpre apontar que alguns boys ficam para-
dos neste corredor, procurando travar contato com os passantes e fazendo
performances, como mostrar ou segurar seu membro.
Na sauna seca, boys e clientes aproveitam para relaxar e manter
contato, mas esta é menos frequentada do que a sauna a vapor, onde, por
vezes, há um excesso de frequentadores.
Muitos se dirigem a esses dois ambientes exclusivamente para re-
laxar, não travando diálogo ou relações com os boys que fazem suas perfor-
mances. Outros travam diálogo e “namoros” com os frequentadores, ten-
tando seduzi-los para um programa nas suítes. Dependendo do momento e

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

horário, esses ambientes ficam reduzidos a poucos frequentadores, poden-


do ocorrer algum tipo de relacionamento sexual entre eles, com pagamento
inferior ao que se realiza na suíte.
Entre esses dois ambientes estão localizados os chuveiros, utiliza-
dos para banhos na chegada e saída de boys e clientes, ou nos intervalos de
uso das saunas.
Por fim, no terceiro recinto, localizado no segundo andar do clu-
be, estão localizadas as suítes, distribuídas por um corredor. Neste local há
um funcionário que executa a limpeza após o término do programa. Este
espaço só é frequentado por aqueles que se dirigem às suítes, por meio da
escada que vem do térreo. Essas suítes são consideradas as mais confortá-
veis, com banheiro privativo, cama de casal e televisão.
A permanência na suíte tem duração de uma hora, estabelecida
pelas normas do clube. O cliente aluga a cabine e paga ao estabelecimento
por sua utilização. O preço do programa, como dissemos, é combinado
diretamente com o boy. Ao término dessa hora, a chave deve ser entregue
na portaria; caso contrário, será cobrada uma hora extra.
Cumpre mencionar ainda que o cliente pode se dirigir à suíte com
mais de um boy, dependendo do que foi estabelecido quanto ao preço entre eles.

ARREMATES

Como pudemos observar, o ambiente em um clube gay, em seu


movimento diário, é muito denso de significados, e, nesse contexto, dife-
rentes atores se manifestam em um processo de territorialização em escala
micro, no qual o corpo ganha papel de destaque, por meio das mais distin-
tas performances realizadas pelos boys.
Portanto, podemos afirmar que o processo de territorialização só
se manifesta através do domínio e do controle social do espaço, represen-
tado e exemplificado neste ensaio pelo clube em análise, e, neste contexto,
“o ato de observar é, ele mesmo, parte do espetáculo” (GOMES, 2013), no
qual principalmente boys e clientes, através da motilidade, se apropriam do
que é possível no domínio da mobilidade em favor de suas atividades, em
que os acessos, as habilidades e as apropriações por parte desses atores são
importantes para configurar a microterritorialidade.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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AS RELAÇÕES HOMOCOMERCIAIS EM UM MICROTERRITÓRIO:
O EXEMPLO DE UM CLUBE DE BOYS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Posto isto, podemos afirmar que a prostituição masculina fecha-


da, representada neste artigo por um clube privé, configura um nanoterri-
tório, com suas territorialidades, imprimindo em cada recinto feições que
identificam e demarcam uma centralidade, exercendo papel importante na
sua organização interna e provocando uma interação entre rapazes de pro-
grama e clientes.
Como apontou um cliente, o clube representa “um lugar que ex-
pressa uma pseudoliberdade para os homossexuais, que procuram a satis-
fação sexual sem compromissos, segura e variada, já que há uma diversida-
de de homens disponíveis para o sexo pago”.
Na verdade, podemos afirmar que a atividade da prostituição para
muitos não deixa de representar, como apontam Silva, Ornat e Chimin Ju-
nior (2013), geografias malditas. Nesse contexto, essas temáticas envolvendo
corpos, sexualidades e prostituição continuam sendo, no Brasil, “significati-
vamente pouco estudadas e marginais no âmbito das geografias de gênero e
sexualidades” (p. 9), vistas sob um viés moralista e preconceituoso por parte
da comunidade geográfica e também pela sociedade. No entanto, não pode-
mos menosprezá-las, pois elas, como aponta Gomes (2013), representam na
verdade espelhos da sociedade em que vivemos, queiram ou não, pois mui-
tos desses sujeitos sobrevivem deste tipo de trabalho, e outros trabalham por
vontade. Portanto, poderíamos questionar: quem trabalha por necessidade
deveria ser alvo de políticas que garantissem a inserção em outros tipos de
trabalhos? Quem trabalha por vontade deveria ter uma legislação trabalhista
que lhe garantisse direitos que outros trabalhadores já conquistaram?

REFERÊNCIAS

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visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
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INTERSECCIONALIDADES,
130 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MIGUEL ÂNGELO RIBEIRO E RAFAEL DA SILVA OLIVEIRA

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INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 131
PARTE IICONHECIMENTO,
CORPO, ESPAÇO E
INTERSECCIONALIDADES
CONTESTANDO O PRIVILÉGIO
ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS
DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS
Katherine Browne

***

INTRODUÇÃO

Quando recebi o convite para falar na conferência, que resul-


tou neste texto que faz parte deste livro, me senti honrada e incrivelmente
emocionada. Mas também, muito, muito nervosa! Pensei em apresentar
algumas pesquisas recentes que tenho realizado, a fim de ‘disseminar’ um
conhecimento já produzido. Isso cumpriria com o dever para retribuir os
subsídios de pesquisa que eu recebo e, ao mesmo tempo, me sentiria mais
segura. Contudo, falando com Joseli Maria Silva, sabia que, embora essa
perspectiva fosse aceitável, eu precisava desafiar e me forçar a sair de minha
zona de conforto. Realizar este evento é uma ocasião histórica na geografia
brasileira, e espero que seja tratado como um momento importante e que
seus organizadores sejam reconhecidos pela coragem de tornar este semi-
nário uma realidade. Esta ocasião tem todas essas características porque é,
de certa forma, nova no Brasil, e as identidades de gênero e sexualidades1
ainda não são legitimadas e não fazem parte do cânone geográfico no âm-
bito brasileiro, como argumenta Silva (2011). Essa situação é estranha e,
talvez, indesejada.
Eu faço parte desta subdisciplina há mais de dez anos. Então, o que
poderia oferecer a esta importante conferência? Eu gostaria muito de criar

1
Embora desajeitada, esta expressão engloba identidades, ativismos e exclusões trans
e genderqueer que foram importantes para esta área no Hemisfério Norte. Onde eu uso
Geografias das Sexualidades, refiro-me especificamente ao estudo das sexualidades.
CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

um espaço, ou, pelo menos, participar da criação de um espaço de resis-


tência. O que certamente espero não fazer é me colocar como uma sabe-
tudo, expert branca, anglo-saxã e mulher cis2. Por esta razão, também levo
em conta a mim mesma neste trabalho, interrogando criticamente minha
posição de privilégio, na mesma perspectiva que me serviu de inspiração
na palestra proferida por Joseli Maria Silva na I Conferência Europeia das
Geografias das Sexualidades, em 2011, ocorrida em Bruxelas.
Na hegemonia anglo-americana/anglo-saxã, geografias das sexua-
lidades – embora ainda marginalizadas e muitas vezes indesejadas – foram
parte da escrita, da pesquisa e do ensino acadêmicos por aproximadamente
quarenta anos. Duas organizações-chave, o Sexualities and Space Special-
ty Group, como parte da Association of American Geographers (AAG), e
o Space, Sexualities and Queer Research Group (SSQRG), como parte da
Royal Geographical Society/Institute of British Geographers (RGS/IBG),
apontam para uma aceitação das sexualidades como parte do conteúdo
científico da Geografia. Mas, ainda hoje, quando a real geografia cotidiana
entra em questão, como nos debates, por exemplo, em torno do retorno das
práticas de expedições, foco de discussões dentro do RGS/IBG, as sexuali-
dades (sem contar com as identidades de gênero) são apontadas como algo
extremo para serem consideradas.
O estudo das sexualidades é enaltecido como sendo um exemplo
de como a ‘geografia perdeu seu caminho’3. Este trocadilho aqui é proposi-
tal. Mas, pessoalmente, ao discutir o meu trabalho, é raro não receber uma
reação de surpresa de pessoas que ouvem que sexualidades e identidades
de gênero são também abordagens da Geografia. No entanto, neste artigo,
em vez de explorar as contínuas heteronormalizações de epistemologias,
ontologias e/ou metodologias da disciplina, vou olhar para a relação privi-
legiada que os acadêmicos anglo-americanos têm neste campo, frente aos
que estão fora dessa hegemonia. Pode haver algum questionamento, pois
trabalhos do sul global estão agora em circulação dentro das geografias das
sexualidades (por exemplo, KULPA e MIZIELINSKA, 2011), mas a hege-
monia anglófona continua a dominar esta área do conhecimento.

2
Denominação que se refere a pessoas que têm identificação com o gênero atribuído
socialmente.
3
‘Perder o caminho’ neste contexto significa que os estudos das sexualidades modificaram
a rota até então estabelecida, de uma ciência objetiva e de pressupostos universalizantes. A
influência das sexualidades foi considerada positiva para a Geografia, mas para algumas
pessoas trouxe prejuízos, pelo fato de a Geografia não ter um único caminho a ser seguido.

INTERSECCIONALIDADES,
136 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

A hegemonia anglo-americana tem sido explorada por autores,


muitas vezes do sul global ou falantes não nativos do inglês, como, por
exemplo, Aalbers (2004), Aalbers e Rossi (2006), García-Ramón (2003,
2004); García-Ramón et al. (2006), Paasi (2005) e Vaiou (2004). Aqueles
pesquisadores que são marginalizados percebem suas exclusões e a repro-
dução sistemática de normas anglófonas hegemônicas. Não apenas pela
linguagem, mas também pela natureza das perguntas feitas a eles e pelo
questionamento em torno de várias abordagens acadêmicas. A questão da
hegemonia não deve, conforme García-Ramón et al. (2006) observam, ser
abordada de modo binário, posicionando de forma simples os anglo-ame-
ricanos de um lado e os ‘outros’ de outro. Isso porque há feministas e geó-
grafos(as) das sexualidades de outras partes do mundo que participaram e
são solidários(as) a estas críticas, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos
de Johnston e Longhurst (2008) e Kulpa e Mizielinska (2011). Como Vaiou
(2004) discute, a questão da hegemonia anglófona é uma das geometrias do
poder que (re)constituem as disciplinas acadêmicas.
A questão que se coloca então é como contestar esse sistema,
como ‘lidar’ com ele (HASSINK, 2007). O que é menos frequentemente
explorado são críticas de privilégio de ‘dentro’ da hegemonia anglo-ameri-
cana e sugestões para sua contestação (notável exceção é KITCHIN, 2005).
Isto não é para sugerir soluções, mas, de forma respeitosa e comprometida,
abrir diálogos a partir dessa discussão. Meu argumento é que, para fazer
isso, precisamos explorar reflexivamente as maneiras pelas quais geome-
trias do poder pessoais e profissionais operam por meio de privilégios, as-
sim como o processo de constituição do ‘outro’.
Este texto explora os privilégios locacionais de duas maneiras.
Primeiramente, examina como as geografias das sexualidades e identida-
des de gênero têm discutido o privilégio através de hétero e homonorma-
tividades, terminando com uma discussão sobre privilégios locacionais e a
forma como foram contestados. Nesse sentido, o texto terá uma abordagem
pessoal e reflexiva, para interrogar criticamente meu privilégio enquanto
lésbica, branca e acadêmica que trabalha na Inglaterra (um país do norte
global). O trabalho argumenta que, ao explorar os privilégios do norte glo-
bal, precisamos reformular não só quem fala por quem, mas também um
pouco do que entendemos serem as bases das geografias das sexualidades
e identidades de gênero em si. As múltiplas maneiras em que isso pode
ocorrer precisam ser desenvolvidas de alguma forma que abra espaços de
diálogo.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 137
CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

PRIVILÉGIO EM GEOGRAFIAS
DAS SEXUALIDADES

Começo esta seção com uma discussão do privilégio, a fim de


oferecer algumas percepções sobre como geografias anglo-saxônicas das
sexualidades e identidades de gênero têm se engajado, e estão atualmen-
te se engajando, com a abordagem de hétero e homonormatividades. Nas
geografias das sexualidades, o privilégio é muitas vezes criado por meio de
heteronormatividades. Heteronormatividade é mais do que heterossexuali-
dade. Heteronormatividade é compreendida como heterossexualidades he-
gemônicas, mas dependentes de, e aderidas a, outras normas sociais, tais
como raça, classe e gênero (ver BROWNE, 2004; TAYLOR, 2007; TAYLOR
et al., 2010). Nem todas as heterossexualidades são normativas, hegemô-
nicas ou valorizadas. Por exemplo, os(as) profissionais do sexo são muitas
vezes desprezados(as), policiados(as) e perseguidos(as) pelo uso ‘inapro-
priado’ do espaço (ver, por exemplo, HUBBARD, 2000, 2011; HUBBARD
e WHOWELL, 2008).
A produção heteronormativa do espaço é tornada invisível atra-
vés da repetição, reiterando normas até o ponto em que elas são assumidas
como naturais, fixas e imutáveis (BELL et al., 1994; BELL e VALENTINE,
1995; BINNIE, 1997). Essas normas são entendidas como sexuais, de tal
forma que as sexualidades se associaram a outros corpos, relações e iden-
tidades (VALENTINE, 1996). Heterossexualidades não são apenas natu-
ralizadas em espaços cotidianos, tais como a casa, o trabalho e a rua (ver,
por exemplo, BELL e VALENTINE, 1995; BROWNE et al., 2007; BROWNE,
2007; VALENTINE, 1993a, 1993b, 1996). Mas as heterossexualidades são
suportadas pelas ações de Estado, através da exclusão explícita de ‘outras
sexualidades’. Essas ações também normalizam e procuram naturalizar
identidades, práticas e relacionamentos sexuais particulares por meio de
várias formas, como o acesso ao casamento e benefícios ao parceiro, acesso
ao serviço militar, ausência de legislação que proíba a discriminação com
base na sexualidade, e assim por diante (BELL, 1994; BELL e BINNIE,
2000; BINNIE, 2004; COOPER, 1994, 1995, 2004; HUBBARD, 2000; RI-
CHARDSON, 1998).
A heterossexualidade também é o cerne de engajamentos geográ-
ficos em abordagens da reprodução, populações, gêneros, educação, política,

INTERSECCIONALIDADES,
138 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

economia, e assim por diante. Mesmo dentro da pesquisa geográfica, hete-


rossexualidades são muitas vezes presumidas e outras sexualidades/práticas
sexuais são policiadas na produção de ‘conhecimento geográfico verdadei-
ro’ (BINNIE, 1997, 2007). O exame desses privilégios tem sido predomi-
nantemente voltado para aqueles que vivem fora da heteronormatividade,
na maioria lésbicas e gays (brancos), na abordagem de fissuras de espaços
heteronormativos, como as Paradas Gays, para ilustrar a fluidez do espaço
(ver, por exemplo, BELL e VALENTINE 1995; BROWNE, 2007; BROWNE
et al., 2007; JOHNSTON, 1998, 2005, 2007; VALENTINE, 1993a, 1993b).
No entanto, mais recentemente as críticas sobre as construções de heteros-
sexualidades normativas vieram à tona, mostrando como elas são fluidas e
em permanente reconstrução (MORRISON, 2012a, 2012b). A contestação
das heterossexualidades uniformes não nega as críticas já realizadas às he-
teronormatividades. Em vez disso, ela desnaturaliza a heterossexualidade,
recusando assim deixá-la como a norma contra a qual outras experiências,
identidades e comportamentos são definidos.
Contemporaneamente, análises mais amplas de estudos queer e
das sexualidades sobre as homonormatividades questionaram as formas
pelas quais o privilégio é oferecido a certas identidades e subjetividades que
antes eram sexualmente desviantes e que agora são consideradas aceitáveis
dentro de formas particulares de normalização neoliberal em que são clas-
sificadas, racializadas e generificadas, e como estas, por sua vez, criam no-
vos ‘outros’ (DOAN, 2007, 2010; DUGGAN, 2002; BRYANT, 2008; NASH,
2010; PUAR, 2006; RICHARDSON, 2004, 2005; RICHARDSON e MON-
RO, 2012; TAYLOR et al., 2010).
As homonormatividades, que são privilegiadas por meio de
igualdade no casamento, também podem hierarquizar o casal monogâmi-
co, vendo nisso o auge de parentescos/laços íntimos (WILKINSON, 2013).
É importante ressaltar que um foco na política homonormativa e frequen-
temente baseado no casamento pode deixar de abordar questões prementes
para quem o casamento pode ainda oprimir e reduzir o acesso a tratamento
de saúde e a direitos de imigração (ver SPADE, 2011).
Assim, tendo já destacado as principais críticas desenvolvidas nas
geografias das sexualidades e identidades de gênero, passo agora para um
explícito foco no ‘privilégio locacional’ e nas formas como as presunções de
universalidade podem ser usadas para desenvolver percepções e inferên-
cias teóricas a partir do norte global. O objetivo é destacar a forma com que
processos identificados em outras áreas, como a das geografias feministas,

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

operam nas geografias das sexualidades. Mais do que isso, ver a questão
através das lentes do privilégio, em vez de produzir o ‘outro’, oferece uma
perspectiva diferente desses debates.

LOCALIZAÇÃO, LOCALIZAÇÃO,
LOCALIZAÇÃO: ONDE IMPORTA

O lugar importa, e não podemos entender as diversidades, di-


ferenças, desejos e exclusões sexuais e de gênero sem nos envolvermos
com os contextos sociais, econômicos, culturais e políticos. Não apenas os
contextos em que os fenômenos estão inseridos, mas aqueles que recriam
os próprios fenômenos. É por isso que a pesquisa de sexualidades/gênero
precisa se envolver com considerações geográficas, não só como objeto de
estudo, mas também através de considerações sobre como estudamos e so-
bre quem pode falar nesta subdisciplina e através dela.
As categorias de identidade que predominam nas geografias das
sexualidades e identidades de gênero são lésbicas e homens gays, e, secun-
dariamente, pessoas bissexuais e trans. As limitações de identidades se fa-
zem em ambos os sentidos. Tanto em termos de ‘quem’ é incluído e também
‘onde’ essas inclusões se localizam. Não há uma identidade, cultura, comu-
nidade ou nação LGBT global unificada, apesar das afirmações contrárias
(BOELLSTORFF, 2005; JACKSON, 2009; PATTON e SÁNCHEZ-EPPLER,
2000). Estas são categorizações do norte global, ligadas a entendimentos
específicos de formas familiares, estruturas econômicas, laços emocionais
e desejos sexuais que não são uniformes mundialmente. Têm suas pró-
prias histórias e significados, que não necessariamente se traduzem para
outros locais (KOLLMAN e WAITES, 2009). O trabalho que problematiza
a universalização das identidades, direitos e movimentos LGBT pode de-
safiar reivindicações LGBT por direitos humanos em locais onde as iden-
tidades LGBT do norte global não se aplicam em determinados contex-
tos (BROWN, G. et al., 2010; CRUZ-MALAVÉ e MANALANSAN, 2002;
GREWAL e KAPLAN, 2001).
Geógrafos(as) têm criticado as maneiras pelas quais certas discus-
sões de homonormatividades podem falhar no processo de compreensão

INTERSECCIONALIDADES,
140 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

e reconhecimento locais e apontam para a necessidade de compromissos


espaciais que contemplem as complexidades do privilégio homonormativo
(OSWIN, 2005, 2008; BROWN, G., 2009, 2012; NOBLE, 2012)4. Embora
a complexidade e a nuança possam encerrar críticas de privilégio, outras
formas de poder (americano) na regulação da produção de conhecimento,
em discussões sobre homonormatividades, são destacadas. Gavin Brown
(2012) afirma que as discussões sobre homonormatividades podem repro-
duzir outras formas de privilégio de localização. O autor argumenta que as
teorias de homonormatividade não são apenas espacialmente específicas,
mas produzidas nos lugares em que são estudadas, e através deles (norte
global, principalmente em cidades dos Estados Unidos):

O desenvolvimento de teorias de homonormatividade ocorreu pri-


mariamente na mesma extensão limitada de cidades globais que a
própria teoria estuda – o pensamento crítico sobre homonormativi-
dade é em grande parte o produto de exatamente os mesmos espaços
e redes sociais que critica. (BROWN, G., 2012, p. 1067).

A ironia que Gavin Brown (2012) identifica nas conceitualizações


de homonormatividade nas geografias das sexualidades tem sido cada vez
mais reconhecida, já que tal conceito foi focado em um número limitado de
cidades/países. Embora esta situação esteja mudando, é claro que as cida-
des do norte global se constituem na base da formação do pensamento so-
bre as sexualidades, e as críticas provenientes de estudos mais amplos sobre
as sexualidades podem ser negligenciadas. Especialmente quando se escre-
ve a partir de cidades particulares no e a partir do norte global (BROWN,
G., 2012). Halberstam (2005) desafiou os pressupostos que colocam algu-
mas cidades do norte como sendo o auge de qualidade para a vida gay (e
permitindo, de fato, as possibilidades de toda existência LGBT), que ele
chama de ‘metronormatividade’. Cidades como Londres e São Francisco
podem ser usadas para definir ‘o grau supremo’ das liberdades sexuais e
de gênero. Esta lente do norte é, então, usada para julgar outras regiões e

4
Dentro desta linha de pensamento, podemos também incluir discussões de Puar
sobre homonacionalismos que mostraram como certos homens gays e mulheres lésbicas
americanas foram trazidos para a construção da nação de uma forma que demoniza os
outros ‘estrangeiros’. Por exemplo, a justificação para a guerra por motivos de ‘direitos
humanos’ pode enxergar o Hemisfério Norte como disposto a ‘salvar’ os homens gays e as
mulheres lésbicas que são ‘perseguidos’ em outros lugares. (PUAR, 2007).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
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CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

países (ver BINNIE, 2004; ROBINSON, 2002, 2005). Tais suposições me-
tronormativas negligenciam as maneiras com que as áreas rurais, vilas e
cidades não metropolitanas e não gays podem permitir práticas sexuais
para além das normas heterossexuais (ver KRAMER, 1995). Halberstam
(2005) argumenta que histórias urbanas, particularmente de migração das
zonas rurais para as urbanas, e do Hemisfério Sul para o chamado ‘mundo
desenvolvido’, fazem suposições sobre as utópicas vidas urbanas euro-ame-
ricanas que contrastam com ‘vidas rurais, atrasadas e enrustidas’ de países
‘em desenvolvimento’.
A espacialização das teorias, desta forma, construiu a ideia de que
lugares do sul global podem se tornar fixos e que as teorias desenvolvidas
ali podem ser consideradas como específicas para essa região. Como Kulpa
(2014) observou, estudiosos no e do sul global são convidados a discutir o
lugar, a oferecer uma compreensão de suas ‘diferenças’ e sempre são identi-
ficados para discutir as especificidades de seus lugares em vez de serem ca-
pazes de desenvolver e discutir perspectivas teóricas de forma mais ampla
(ver também KITCHIN, 2005). Em contraste, no norte global estudiosos
falam em termos universais, gerando o pensamento que se presume ser
de aplicação universal, como a teoria do ‘homonormativo’ da qual Gavin
Brown discorda:

[Como] essa análise ganhou popularidade, homonormatividade (e,


pior ainda, o homonormativo) tem cada vez mais vindo a ser repre-
sentado tanto nos escritos acadêmicos quanto nos de ativistas como
uma entidade homogênea, externalizada globalmente que existe
fora de todos nós e exerce seu poder aterrorizante, normativo em
vidas gays em todos os lugares. (BROWN, G., 2012, p. 1066).

Sexualidades e teorias (queer) não se deslocam intactas e, embora


possamos ser capazes de identificar as tendências que aparecem por deter-
minadas cidades do mundo, como o declínio dos bairros gays (BROWN,
M., 2014; NASH, 2013), a perspectiva a partir de ‘nenhum lugar’ deve ser
sempre questionada (HARAWAY, 1991). Na obra Descentrando Sexualida-
des Ocidentais, Kulpa e Mizielinska (2011) criticam as afirmações assumi-
das a partir da visão ocidental de oposição binária do progresso/atraso e
desafiam o repensar das geotemporalidades e a considerar como as reali-
dades espaçotemporais importam quando pensamos sobre sexualidades.
Ao criticar a aceitação unidirecional e inquestionável das se-
xualidades e identidades de gênero do norte global, é preciso considerar

INTERSECCIONALIDADES,
142 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

o trabalho que tem sido escrito sob o domínio anglo-americano em uma


variedade de áreas das geografias e aplicar isso a geografias das sexualida-
des, como Joseli Maria Silva fez de forma tão eloquente em 2011. Isso per-
mite um envolvimento não só com o privilégio das identidades sexuais e
de gênero do norte global nos discursos de direitos humanos, mas também
permite a crítica de pessoas e sistemas acadêmicos que estabelecem agen-
das e parâmetros de pesquisa que são medidos e avaliados sob as normas
definidas pelo Norte.

NÃO É (APENAS) SOBRE VOCÊ:


REFLETINDO SOBRE PRIVILÉGIO

Nesta seção procuro oferecer algumas percepções sobre a hege-


monia anglo-americana a partir da perspectiva de alguém que faz parte do
cânone. Ao fazê-lo, ofereço uma crítica do privilégio como uma forma de
desenvolver percepções sobre como essa hegemonia pode ser tanto infiltra-
da como desafiada.
Embora eu seja irlandesa de nascimento, infância e identidade,
trabalhei na Inglaterra por mais de 10 anos, onde também realizei minha
pesquisa de doutorado. Durante esse tempo, pesquisei e escrevi sobre expe-
riências inglesas e americanas de sexualidades, gênero e espaço. Em minhas
aulas, concentro-me na pesquisa do Reino Unido/EUA para incentivar os
alunos a considerarem suas sexualidades, a evitarem a exotização das se-
xualidades e dos gêneros do ‘outro’, bem como a recusar suposições de que
desigualdades existem apenas em ‘outro lugar’. Isso me coloca em situação
difícil para discutir a realidade do sul global, tanto em termos das minhas
experiências quanto do meu foco acadêmico. Isso faz com que eu ensine
e pesquise uma geografia de gênero e sexualidades ‘anglo-saxã’, como no-
meou María Dolors García-Ramón (2004).
Já foi argumentado que as masculinidades normativas (ver, por
exemplo, BERG, 2002; BUTZ e BERG, 2002) e as heterossexualidades (ver,
por exemplo, BINNIE, 1997, 2007) criam formas de privilégio sistemático
que podem passar despercebidas. Também argumentei, noutro lugar, que
mulheres e outros que ocupam funções privilegiadas na academia precisam

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

tanto admitir quanto tratar seu privilégio, reconhecendo que as discussões


de opressão e constituição do ‘outro’ não devem nos cegar para as relações
de poder entre ‘nós’ (ver BROWNE, 2008). Embora isso tenha sido fácil di-
zer, enquanto acadêmica, no início de carreira, que trabalhou em questões
LGBT, estou cada vez mais tendo consciência da necessidade de atenção
reflexiva dos privilégios que partilho com colegas do norte, e isso é algo
sobre o que preciso tanto refletir quanto abordar.
Aqui meus privilégios (pelo menos os que eu posso citar, reco-
nhecendo que há muitos outros que eu nem mesmo percebo) pertencem à
minha posição como branca, mulher cis, professora/pesquisadora com em-
prego permanente no norte global, com acesso total à maioria dos periódicos
da minha área. Tenho mais de 70 publicações, ocupo várias posições em
comissões editoriais de revistas científicas e regularmente recebo pedidos
para revisar artigos de periódicos nas áreas das geografias das sexualida-
des e de gênero. Cada vez mais, também estou sendo convidada a analisar
propostas de concessão de recursos a pesquisadores no Reino Unido e de
organismos internacionais de financiamento. Esses papéis e ‘conquistas’
muitas vezes me colocam em posições de poder para decidir quem terá um
trabalho publicado e quem receberá um financiamento.
Também me encarrego da edição de livros-chave e, com colegas,
sou encarregada de definir alguns dos parâmetros do campo das geografias
das sexualidades e identidades de gênero. Sou convidada para conferên-
cias como esta, onde as minhas despesas são pagas. Tenho o privilégio de
passar livremente por controles de fronteira, com a preocupação principal
relacionada ao tamanho da fila e se minha filha vai colaborar. Assim, em
muitos aspectos carrego aquilo a que McIntosh (1988) se refere como uma
‘mochila’ de privilégios:

Um pacote invisível de imerecidos recursos com os quais posso contar,


faturar a cada dia... Privilégio é como uma leve e invisível mochila de
suprimentos especiais, mapas, passaportes, livros de códigos, vistos,
roupas, ferramentas e cheques em branco. (McINTOSH, 1988, p. 3-4).
[Ou] circunstâncias especiais... que experiencio, mas não ganho,
mas que me foram feitas para sentir que são minhas por nascimento,
por nacionalidade, e em virtude de ser uma ‘pessoa normal’. (McIN-
TOSH, 1988, p. 7).

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

Os privilégios que carrego são todos privilégios que mereci ape-


nas parcialmente, que me foram igualmente dados através de ‘circunstância
especial’. Neste caso, não através do nascimento, mas através do direito de
docentes/pesquisadores, em momentos que me fazem sentir muito afor-
tunada. O privilégio do curso de mestrado (por meio do pagamento da
segunda hipoteca feita pelos meus pais) e de apoio familiar durante o dou-
torado. Sou privilegiada por trabalhar atualmente em um departamento
que dá apoio, que não questiona (ou não se atreve a questionar) meu foco
de pesquisa e em uma universidade que está localizada na cidade que é tida
como a ‘que lidera o caminho’ de conquistas de igualdades de Lésbicas,
Gays, Bi e Trans (LGBT) (BROWNE e BAKSHI, 2013).
Todos estes privilégios são muitas vezes invisíveis para mim. Eu
temo que eu os tenha usado de maneira a reiterar meu poder como uma
acadêmica anglófona. Joseli Silva, em 2011, trouxe isso à tona para mim.
Em seu discurso na I Conferência Europeia das Geografias das Sexualida-
des, ela citou uma crítica que recebeu de pareceristas de uma revista angló-
fona sobre um artigo por ela submetido:
1) “Em primeiro lugar, não é bem ligada à literatura (em inglês)
sobre a geografia feminista e queer.”
2) “Como tal, o documento apresenta trabalho empírico impor-
tante e interessante, mas não está posicionado dentro da literatura atual que
um artigo buscando uma publicação na [nome da revista] normalmente
teria como alvo.”
Assim que ouvi estas citações, meu privilégio foi verificado. Eu
poderia ter escrito este comentário. Esta frase era algo que eu teria dito,
tentando ser solidária, mas mantendo os ‘padrões acadêmicos’. No entanto,
como Joseli Silva aponta, tais padrões científicos e acadêmicos são cons-
truções de poder, e eles podem barrar um caminho de diálogo importan-
te e significativo. Este papel de policiamento pode silenciar aqueles cujos
caminhos para publicação já são limitados; no caso de Joseli Silva, através
das barreiras que ainda são impostas para publicações sobre sexualidades
em revistas brasileiras de geografia. Silva (2011) não só observou a criação
de formas específicas de saberes, mas também as formas com as quais isso
se relaciona com revistas anglófonas (de preço elevado, do norte global).
Além disso, ela também aponta para a ironia desta avaliação, uma vez que
questiona alguns dos pressupostos das geografias feministas e queer:

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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CONTESTANDO O PRIVILÉGIO ANGLO-AMERICANO NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

Toda produção científica é resultado de espaço-tempo, dependente


de contextos técnicos, econômicos e políticos que não são conside-
rados pelos críticos que tomam a teoria produzida em seu contexto
como um parâmetro para o ajuste. A posição adotada pelos revisores
parece um pouco contraditória na avaliação de artigos provenientes
de países não anglófonos, uma vez que os pesquisadores de geogra-
fias feministas e queer consideram essencial a adoção de perspecti-
vas de posicionalidade e reflexividade.5

A produção de conhecimento é de fato criada, nas palavras de


Joseli Silva, ‘a partir de diferentes contextos espaciais da produção cientí-
fica’. García-Ramón (2004) observa que há uma infinidade de maneiras de
fazer as geografias generificadas e que os contextos regionais importam na
definição das agendas de pesquisa e na forma como os temas são escolhidos
e abordados. A mesma observação pode ser feita com relação à sexualida-
de. Na verdade, mesmo as agendas que tenho descrito na seção acima são
focadas em interesses anglo-americanos; cito predominantemente autores
anglo-saxões e, como sou monolíngue, apenas aqueles que escrevem em
inglês. Estou exercendo meu privilégio, e a linguagem é importante para
além da abordagem do tema das traduções6:

[...] linguagem... representa uma forma de pensar... carrega uma


complexa teia de relações de poder... [que] afeta... nossas tradições
acadêmicas, com suas formas distintas de abordar o sujeito, suas ló-
gicas e suas preferências e valores. (García-Ramón, 2004, p. 369).

Essas relações de poder mantêm hierarquias específicas que en-


tão reproduzem e são reproduzidas em contextos específicos. Não apenas o
que a sexualidade ‘é’ em termos de identidades, categorias LGBT globaliza-
doras ou transnacionalismos queer, mas também como as sexualidades são
estudadas, moldadas e consideradas. Como tem sido discutido em outros
contextos, tópicos de pesquisa são escolhidos de modo a refletir as preocu-

5
Trecho da palestra de Joseli Maria Silva proferida em 2011 em Bruxelas, na I Conference
on Geography and Sexualities.
6
Embora seja importante que as revistas publiquem em outras línguas e que os resumos
estejam traduzidos em várias línguas (ver KITCHIN, 2005), isso não necessariamente
contempla as relações de poder discutidas aqui.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

pações dominantes nas geografias anglo-americanas (GARCÍA-RAMÓN,


2003, 2004; HASSINK, 2007; PASSI, 2005).
O que as palavras de García-Ramón (2003, 2004) e de Silva (2011)
me levam a constatar é que os parâmetros de conhecimento ‘bom o sufi-
ciente’ não são objetivamente definidos, mas subjetivamente produzidos
através do meu privilégio, e do de outras pessoas:

Padrões são definidos por poucos, ou pior, por aqueles que têm o
poder de ditar os parâmetros que devem ser considerados para per-
mitir que aqueles que podem participar do seleto mundo da geogra-
fia sejam considerados como de ‘qualidade internacional’.7

Estes padrões, como performances de privilégio, são tornados in-


visíveis, naturalizados e considerados aceitáveis. Eles estão contidos dentro
de muitas ‘mochilas de privilégio’ de pessoas anglo-americanas; eles não
são obtidos, são herdados por tradições acadêmicas, passados através de
gerações de acadêmicos que são, então, solicitados a manter a ‘qualidade’,
certificar ‘rigor’ e, desta forma, preservar a disciplina.
Aqueles que não possuem tais privilégios devem trabalhar para
fazer parte dessas discussões, para fazer parte das geografias das sexualida-
des e identidades de gênero. Conforme Silva (2011) afirma:

Em um mundo no qual os processos sociais são globais, a falta de


diálogo entre pesquisadores de diferentes culturas pode produzir
ainda mais exclusão e silenciamento.

Nós muitas vezes exploramos essas lacunas por meio de quem


é excluído, mas mesmo aqueles que têm o privilégio também precisam de
questionamento crítico. As formas como esses processos reproduzem pri-
vilégios e poder são invisíveis e tidas como certas, não questionáveis; são
consideradas apenas ‘parte do trabalho’ que deve ser feito.

7
Trecho da palestra de Joseli Maria Silva proferida em 2011, em Bruxelas, na I Conference
on Geography and Sexualities.

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DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

MAS VOCÊ É UNIVERSAL...

Esses questionamentos críticos de privilégio são de responsabili-


dade de acadêmicos que trabalham no norte global. A reflexão crítica deve
ser uma parte fundamental de nossos esforços acadêmicos. E, no entanto,
mesmo quando situamos o nosso trabalho, reconhecendo o ‘contexto es-
pacial’ da produção científica, hipóteses sistemáticas a respeito do norte
global podem desafiar os nossos esforços, conforme vou discutir agora.
Trabalho em um sistema onde a minha pesquisa em Brighton e
em outras áreas da Inglaterra e dos EUA sugere que eu tenho algo ‘uni-
versal’ para dizer. Na verdade, quando Leela Bakshi (uma pesquisadora
ativista) e eu quisemos argumentar que as questões de lugar interessam,
em nosso livro Ordinary in Brighton, queríamos afirmar que, embora fos-
sem temas interessantes que poderiam ser aplicáveis a outros contextos, as
especificidades da situação econômica, social e política eram cruciais no
que respeita a como ‘igualdades’ foram e são experienciadas. Queríamos
levar as discussões de lugar e geografias a sério, para questionar o ‘milagre
divino’ de ver tudo, saber de tudo. Desta forma, buscou-se seguir Robinson
(2002, 2005) no questionamento do paroquialismo dos saberes ocidentais
que podem fingir universalidade, ao tornar o nosso conhecimento tão lo-
calizado e específico. Queríamos desafiar os pressupostos de que Brighton
/ Reino Unido / Norte global ‘lidera o caminho’ pelo qual os outros espaços
devem seguir.
Para alguns, o nosso livro foi visto como não comercializável, em
contraste com Rodríguez-Pose (2006), que afirma que as pesquisas que tra-
tam de questões semelhantes no norte global são mais propensas a serem
publicadas do que aquelas que lidam com as mesmas questões no sul. Era
muito específico, muito localizado e muito normal para ser um objeto de
fascinação, alimentando uma curiosidade intelectual de ‘outros lugares’.
Afinal de contas, Brighton já é ‘conhecida’.
Hassink (2007) argumenta que falantes não nativos tendem a in-
cluir mais contextualização e menos posições de conhecimentos assumidos
como parte de suas apresentações, em comparação com falantes nativos.
Nós fomos criticados quando buscamos justamente contestar nossa posi-
ção privilegiada. Nós demos a entender em nosso trabalho que todos os
estudos/teorias são fundamentados e criados, em parte, a partir de onde

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

são concebidos e praticados. A crítica ocorreu justamente porque não con-


seguimos representar o nosso privilégio de forma adequada, generalizar a
partir de Brighton de maneira a supor universalidade.
A situação relatada levanta questões sobre quais são os conhe-
cimentos considerados globais e universalmente aplicáveis, e como a he-
gemonia anglo-americana reproduz privilégios não apenas silenciando e
excluindo pesquisadores do sul, mas também policiando autores do norte
global. Isso enfatiza que uma mudança sistemática é necessária, ao lado de
contestações individuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto foi escrito a partir do posicionamento de uma mulher


lésbica, branca, que faz parte do cânone das geografias das sexualidades e dos
gêneros. O objetivo era fazer algumas críticas da hegemonia anglo-americana,
de modo que, ao lado do trabalho de outros, tais como Silva (2011), se abra
espaço para seus trabalhos. Ao fazer isso, incluí um engajamento crítico ao
meu privilégio nesta arena, sem procurar semelhança na diferença/exclusão
que eu também experiencio por causa do meu gênero, minha expertise em
sexualidades (sobre as dúvidas se isso é ‘realmente’ geografia) ou outras
formas pelas quais eu poderia criar conexões com vocês.
Para ser clara, eu não estou me aproximando de vocês para me
sentir melhor, para aliviar meu desconforto, para criar conexões. Muitas
vezes, as discussões sobre privilégio anglo-americano são recuperadas em
discussões de agendas comuns, mas há momentos em que o privilégio pre-
cisa ser nomeado, para ‘nos’ tornar não bem-vindos, porque nesses mo-
mentos o ‘nós’ não é considerado ‘vocês’.
Eu digo tudo isso para incentivá-los a me desafiar, e também as
pessoas como eu. Para pensar sobre como vocês podem construir a partir
do nosso trabalho, que abriu alguns espaços na Geografia, e exigir mais e
melhor da academia anglo-americana, assim como dos países e das discipli-
nas dos quais vocês vêm. Isso significa que estou empenhada na continuação
do meu trabalho de exploração das intersecções de gênero, sexualidades e
espaços. Mas, a que isso se parece e a quem isso serve é o que cabe a todos

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DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNEROS

nós decidir, nos anos a seguir. Isto significa que eu e outros precisamos
estar preparados para ter o nosso privilégio bradado, notado e nossas vozes
silenciadas.
No entanto, também fico muito preocupada com a possível cria-
ção de um binário, norteado pelos ‘novos conhecimentos’ do sul global, que
descarte conhecimentos desenvolvidos no âmbito das geografias das sexua-
lidades no norte. A forma como ‘suas’ epistemologias, ontologias e meto-
dologias podem retrabalhar geografias das sexualidades não pode e não
deve ser proibida, nem deve ser uniforme. Por vezes, talvez seja oportuno
ignorar o trabalho do norte e, em outras vezes, trabalhar juntos, criticando
e desenvolvendo o pensamento nesta área pode ser necessário. Há perdas e
ganhos nos diversos caminhos que podem ser tomados.
Não vejo isso como uma agenda do tipo ‘adicione o sul e mexa’,
tomando conhecimentos sobre outros lugares e tornando-os nossos pró-
prios (ver KITCHIN, 2005). De fato, o que espero ter deixado claro é que os
‘detentores’ das geografias das sexualidades têm que mudar, e a necessidade
dessa mudança surge do próprio posicionamento histórico e geográfico-
temporal da subdisciplina. Trata-se de reconhecer, e usar, o privilégio an-
glo-americano para reformular o sistema, para apoiar aqueles que são co-
locados em posicionamentos marginais e na condição de ‘outro’, para levar
em consideração nosso privilégio onde ele serve para promover outros e
inúmeras outras formas de desafiar o ‘centro’. Acredito que, como acadêmi-
cos desta área, todos nós tomamos parte, na verdade, da responsabilidade
de compreender e usar a pesquisa para trabalhar na direção de diversas e
múltiplas formas de libertações sexuais e generificadas.
Ao reconhecer meu privilégio e criticá-lo, quero terminar este
trabalho voltando aos que estão desempoderados e desfavorecidos por
causa do meu privilégio. Procuro seguir Silva (2011) na criação de diálo-
gos, para não falar sobre o ‘outro’, mas espero, em vez disso, que este traba-
lho promova ainda mais resistências, mais críticas e mais discussões. Por
fim, enquanto privilegiada do norte global, quero me remover do centro,
não para reescrever as histórias/pesquisas de vocês, mas para criar espaços
onde elas possam ser ouvidas/publicadas. Por essa razão, deixo-os com as
palavras de bell hooks:

Estou esperando por eles para parar de falar sobre o “Outro”, para pa-
rar até mesmo de descrever quão importante é ser capaz de falar sobre
a diferença. Não é importante apenas aquilo sobre que falamos, mas

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
KATHERINE BROWNE

como e por que falamos... Muitas vezes, esse discurso sobre o “Ou-
tro” aniquila, apaga: não há necessidade de ouvir a sua voz quando
eu posso falar de você melhor do que você pode falar de si mesmo.
Não há necessidade de ouvir sua voz. Só me conte sobre a sua dor.
Quero saber a sua história. E então vou dizê-la a você de volta de
uma maneira nova. Contá-la de volta para você de tal forma que
isso se tornou meu, meu próprio. Reescrevendo você, eu me escrevo
de novo. Eu ainda sou autor, autoridade. Ainda sou o colonizador,
o sujeito falante, e agora você está no centro da minha conversa.
Pare. Nós que habitamos um espaço marginal que não é um sítio de
dominação, mas um lugar de resistência. Entre nesse espaço. (hooks,
1990, p. 151-152).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
UMA ABORDAGEM DE GÊNERO
A PARTIR DO MICROCOSMO
INDÍGENA PAITER SURUÍ
Almir Narayamoga Suruí
Gasodá Suruí
Adnilson de Almeida Silva

***

Ao sermos convidados para o II Seminário Latino-Americano


de Geografia, Gênero e Sexualidades, na mesa-redonda Conhecimento,
Corpo e Interseccionalidades, algumas de nossas preocupações tomaram
dimensões para as quais talvez não tenhamos respostas concretas, isto
porque em nossa cultura o tema começou a ganhar corpo recentemente,
devido às necessidades e à realidade que são colocadas como desafios, e
seus desdobramentos não nos parecem muito claros ainda. Ou melhor, a
compreensão de seus sentidos e significados escapa de tudo aquilo de que
tínhamos conhecimento antes do contato com a sociedade envolvente.1
Gênero é um conceito ocidental e branco, fruto de uma discussão científica
ainda pouco refletida em nossa cultura.
Contudo, em face do aumento das relações entre nós indígenas
e a sociedade brasileira envolvente, as questões de gênero tem sido incor-
poradas, mesmo que de forma lenta e gradual. Este texto, nesse sentido, é
também um desafio para criar laços culturais necessários para dialogar em
torno de diferentes formas de significar a existência de oy (homens) e waled
(mulheres) em contextos específicos.
Nossa postura aqui tem como meta criar possibilidades de diálo-
go entre o universo indígena e pressupostos científicos, como é o conceito
de gênero. No entanto, vamos desenvolver essa tarefa privilegiando nossa
concepção de mundo em um primeiro momento do texto, que explora al-
guns dos elementos que sustentam a cultura dos Paiterey. Na segunda parte
do texto descrevemos as representações dos papéis de gênero constituídos

1
Iaraei – não indígena (branco).
UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

por oy e waled nesta cultura. Na terceira parte, daremos especial atenção às


transformações e tensões dos papéis femininos e masculinos em um con-
texto de intensa conexão com a sociedade envolvente.

CULTURA, GÊNERO
E TERRITORIALIDADE

Na cosmovisão dos Paiter Suruí, de língua Tupi Mondé, o uni-


verso se realiza como um conjunto indissociável, ou seja, cada coisa, cada
objeto é interdependente do outro e nenhum deles possui maior valoração
que o outro. É na diversidade que os elementos e fenômenos se juntam
para formar o todo. Cada ser no Planeta está interconectado ao contexto do
outro e a falta de um deles provoca desequilíbrio e morte do seu conjunto.
Assim, para falarmos sobre gênero, não podemos deixar em se-
gundo plano nossa cultura, nossa territorialidade, nosso modo de vida e
como compreendemos o mundo. Vemos e sentimos que todas as coisas são
espiritualizadas, mesmo aquelas que não podemos tocar.
Nesse sentido, a waled e o oy só possuem sentido, significado e
representação como inerentes um ao outro – não como um complemento,
mas como interligação ao outro, e com isso dando o sentido da própria
existência.
Desse modo, para compreender a questão do gênero, temos que
relacioná-lo ao parentesco, que, no nosso caso, se compõe de duas metades
exogâmicas: “os da floresta” (metare) e “os da roça ou da comida” (iway). Com
isso, a linhagem corresponde à patrilinearidade exogâmica, isto é, vincula-se
ao casamento cruzado entre os clãs que possuem representações próprias dos
elementos da floresta – o marimbondo preto (Gameb), o marimbondo ama-
relo (Gãbgir), a frutinha azeda (Kaban) e a taboca (Makor) –, de modo que os
clãs qualificam as territorialidades dos Paiterey. Sobre a unidade identitária,
abordaremos esta questão em seção específica deste artigo.
Com esses esclarecimentos, nos debruçaremos agora sobre alguns
conceitos que entendemos como pertinentes à nossa discussão. O primeiro
deles diz respeito à cosmogonia (κοσμογονία; κόσμος “universo” e – γονία
“nascimento”), definida por Little (2002, p. 4) como:

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

[...] os saberes ambientais, ideologias e identidades – coletivamen-


te criados e historicamente situados – que um grupo social utiliza
para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo
inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém
com seu território específico, a história da sua ocupação guardada
na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas
de defesa dele.

Embora Bourdieu (2005, p. 150) não trate especificamente sobre


o conceito de cosmografia, oferece interessante contribuição para a com-
preensão da realidade de povos detentores de modos de vida específicos.
Segundo ele:

En las sociedades altamente diferenciadas, el cosmos social está con-


formado por varios de estos microcosmos sociales relativamente au-
tónomos, es decir, espacios de relaciones objetivas que son el sitio de
una lógica y una necesidad específicas e irreductibles a aquellas que
regulan otros campos. Por ejemplo, el campo artístico, el religioso o
el económico siguen todos lógicas específicas: mientras que el cam-
po artístico se ha constituido a sí mismo rechazando o revirtiendo la
ley del provecho material.

Assim, a interpretação do lugar como parte de um espaço sim-


bólico é qualificado pelos sentidos, signos e representações que os seres
humanos criam e vivenciam, e ela se caracteriza como um dos aspectos
fundamentais para a compreensão da cultura. Essa vivência pode ser consi-
derada em nível das gerações familiares, o aprendizado transmitido e con-
solidado por gerações ou mesmo por séculos de outras experiências – in-
clusive imemorial; logo, um lugar é um espaço de aprendizado, um espaço
cultural, conforme afirma Claval (2007, p. 210):

A cultura é um dado fundamental na compreensão dos lugares. Ela


permite perceber os laços que os indivíduos tecem entre si, sobre a
maneira como instituem a sociedade, como a organizam e como a
identificam ao território no qual vivem ou com o qual sonham.

O autor com isso caracteriza a cultura como relacionada aos lu-


gares, porque o ser humano atribui valores aos lugares como resultado de suas
experiências de vida. Essa reflexão nos transporta ao conceito de representações

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UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

simbólicas (CASSIRER, 1992, p. 239 [1925]; 1968, p. 42-116 [1944]), visto


que se situa como modo simbólico definido com o ambiente conhecido ou
experimentado pela familiarização (apresentação) e o conhecimento abs-
trato (representação), cujas atribuições constituem o espaço de ação (CAS-
SIRER, 1968, p. 40-50 [1944]).
É dessa qualificação atribuída ao espaço que chegamos ao con-
texto da territorialidade, a qual engloba os aspectos/fenômenos culturais,
o que para os povos indígenas apresenta-se como ideia coletiva permeada
de representações simbólicas e representações sociais, ainda que passem a
obter outros sentidos e significados a partir do contato interétnico com a
sociedade envolvente. Essas apreensões devem ser consideradas pelas mais
distintas áreas do conhecimento, sendo as relações sociais de gênero uma
das perspectivas de abordagem dentro do campo científico e das experiên-
cias indígenas.
Em tal contexto, a realização humana ocorre com a territorialida-
de (como integrante da identidade), a qual pode ser compreendida a partir
de duas dimensões fundamentais que podem ocorrer concomitantemente.
Segundo Costa (2004, p. 42):

[...] uma dimensão simbólica, cultural, por meio de uma identidade


territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de controle
simbólico sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto,
uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de cará-
ter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como
forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.

Por esse viés, e em direção análoga, Almeida Silva (2010) considera


os “marcadores territoriais” como uma possibilidade de se entender a terri-
torialidade das populações tradicionais, considerando que eles se vinculam
também à ideia de identidade e/ou pertencimento identitário, realizando-se:

[...] a partir dos símbolos que ocorrem enquanto espaço de ação,


definem territorialidades vinculadas à cosmogonia e experiências so-
cioespaciais e possibilitam a formação das identidades culturais e do
pertencimento identitário [...] são experiências, vivências, sentidos,
sentimentos, percepções, espiritualidade, significados, formas, repre-
sentações simbólicas e presentificações que permitem a qualificação
do espaço e do território como dimensão das relações do espaço

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ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

de ação, imbricados de conteúdos geográficos. (ALMEIDA SILVA,


2010, p. 106).

As experiências e vivências dos povos indígenas como represen-


tações tanto simbólicas quanto sociais são fenômenos da cultura humana
que transcendem o seu aspecto material, ou seja, não são um fim em si
mesmo, mas um meio inicial de compreensão da dimensão espacial e de
como as culturas interpretam o seu mundo por meio das experiências.
O foco da relação que os povos indígenas estabelecem com as suas
representações sociais, culturais, cosmogônicas, políticas, socioambientais
e territoriais constitui um contributo teórico-metodológico na organização
de mundo, tendo em vista que seus “marcadores territoriais”:

[...] são experiências, vivências, sentidos, sentimentos, percepções,


espiritualidade, significados, formas, representações simbólicas e
presentificações que permitem a qualificação do espaço e do terri-
tório como dimensão das relações do espaço de ação, imbricados
de conteúdos geográficos. [...] As representações dos “marcadores
territoriais” se originam a partir do registro dos fatos e dados que
ocorrem subjetivamente no indivíduo, posteriormente são selecio-
nados, organizados e interpretados derivando informação, seguin-
do-se de uma sintetização como modelo de conhecimento que es-
trutura a informação. [...] são oriundos dos aspectos relacionados
à espiritualidade, ao mito, à linguagem, à lembrança, à reverência
aos mortos, à memória dos antepassados, à materialidade, às for-
mas e às representações simbólicas que organizam o espaço de ação
de determinado coletivo. [...] referem-se não somente aos aspectos
meramente físicos ou naturais em si mesmos, mas remetem a um
conjunto de relações simbólicas que ligam o indivíduo aos seres e
não seres, comportando ações que possibilitam distinguir diferentes
modos de vida. (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 105; 110; 120-121).

Desse modo, verifica-se que as relações humanas são realizadas


no binômio tempo/espaço e resultam do “papel das representações, crenças
e sistemas de ideias na formação das paisagens e na organização do espaço”
(CLAVAL, 2007, p. 135). Nessa perspectiva, o espaço possibilita uma visão de
análise no campo do subjetivo quando consideramos as representações simbó-
licas e sociais de determinado povo ou etnia como participantes de sua forma-
ção e de sua organização, ou seja, do compartilhamento de visão de mundo.

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UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

Compreender o espaço a partir do subjetivo e das experiências


vividas possibilita entendê-lo como representação simbólica e social, em
que o ser humano (re)cria os símbolos que favorecem sua relação com os
demais seres, com a espiritualidade e com o lugar.
A existência não é homogênea para todos os sujeitos que parti-
lham uma determinada cultura, já que os corpos são também referentes
importantes de processos de identificação. Corpos masculinos e femini-
nos na cultura Paiter Suruí são simbolizados e possuem papéis culturais
próprios. Silva (2009) argumenta que os corpos em si ganham significação
a partir de determinada cultura, espaço e tempo. Nesse sentido, os signifi-
cados atribuídos aos corpos femininos e masculinos não estão dados, mas
dependem da cultura que lhes dá significado e das condições de existência.
Ornat (2009) também alerta para o fato de que as análises de gênero vão
além da materialidade corpórea, devendo ser compreendidas a partir de
sua própria cultura.
Essas considerações de que o gênero está atrelado às culturas es-
pecíficas permitem algumas reflexões em torno da cultura Paiterey. Nesse
sentido, propomos a ideia conceitual de endogênero, que estaria relaciona-
do diretamente a como um povo ou uma etnia percebe o gênero a partir de
sua estrutura de organização de mundo, de modo que estaria no plano dos
conceitos êmicos (LETT, 1996 apud ROSA e OREY, 2012, p. 870) ou da cul-
tura vernacular (FLORIANI, 2011, p. 128-129) – compreendida também
como etnoconhecimento.
No caso, o endogênero seria uma configuração dos arranjos inter-
nos de um determinado grupo, povo ou etnia, e estaria relacionado a uma
normatividade de valores, atributos, comportamentos, representações, en-
tre outros, inerente a seus componentes, em razão dos sentidos, códigos,
signos e significados que são apropriados e vivenciados como identidade.
O outro contexto é o exogênero, que diz respeito aos atributos
concebidos externamente ao grupo, ao povo ou etnia, que são incorpora-
dos à cultura indígena no processo de relações sociais. A redefinição dos
papéis de gênero dentro da tribo está sujeita a um processo de redefinição
que ao mesmo tempo mantém vários elementos das tradições da cultura
indígena que se mesclam como elementos da sociedade ambiente. Isso gera
uma série de transformações nas estruturas sociopolíticas de comunidades
indígenas, que também podem levar a reivindicações de direitos de cida-
dania.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

Esses dois contextos, o endogênero (ponto de vista tradicional) e


o exogênero (o novo, o do pós-contato), serão exemplificados na próxima
seção, até porque os Paiterey se encontram na fronteira entre a permanên-
cia e a mudança (SAHLINS, 1997a, 1997b, 2003 [1985]), ou no processo de
presença e ausência (LEFEBVRE, 1983).

A COSMOGONIA PAITEREY
E O GÊNERO

O entendimento do universo indígena apresenta enorme comple-


xidade, e as questões de gênero constituem relações que não são facilmente
compreendidas pelas sociedades externas ao seu modo de vida. Um dos
possíveis caminhos para a compreensão do gênero entre as etnias indígenas
advém da interpretação que realizamos sobre as cosmogonias, construções
nas quais as representações simbólicas, as espiritualidades e os fenômenos
sociais e culturais se integram.
A explicação para a existência espiritual e física encontra-se ins-
crita nos fenômenos de representação e nas formas simbólicas, ou seja, no
surgimento e/ou criação de plantas, animais, rios, montanhas, seres huma-
nos, espíritos protetores e espíritos opressores, relações de vizinhança e dis-
tanciamento, decisões cotidianas, enfim, a própria construção estruturante
de seus mundos a partir do discernimento cosmogônico.
Na construção ininterrupta das formas e representações simbóli-
cas, os Paiter Suruí organizam-se por vontade de um ou mais “heróis míti-
cos criadores e civilizadores”, que constituem as coisas e os orientam para a
continuidade da trajetória como protagonistas de suas vidas.
O contexto organizativo de seu universo apresenta uma extensa
gama de seres espirituais: Palop (demiurgo ou herói mítico criador), Hoeya-
teim, Goanei e Goraei. Também realizam rituais espiritualizados e festivos,
como o Mapimaih (criação do mundo), Ngamangaré (roça nova), Weyxo-
maré (pintura), Hoeyateim (para o xamã controlar os espíritos da aldeia),
Lawaãwewa (construção de casa nova), Ytxaga (pesca com timbó), e a Fes-
ta da Menina Moça.

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UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

Em cada um desses rituais, oy, waled, jovens e crianças têm res-


ponsabilidades específicas. No ritual festivo Mapimaih, por exemplo, a waled
do anfitrião é quem conduz uma tocha de fogo, representando simbolicamente
a chama da vida. A tocha que eventualmente se apagar prenuncia mau agou-
ro (doença, morte, entre outros), já que, então, Palop deixa de proteger as
pessoas e o território.
Em se tratando de responsabilidade, dentro do contexto cosmo-
gônico Paiterey os papéis desempenhados pelo gênero atendem aos desíg-
nios dos demiurgos e, assim, não podem sofrer modificações, porque isso
significa o enfraquecimento espiritual e protetivo do povo, além de gerar
mau agouro, na forma de doença, mortes, conflitos internos e externos.
Deste modo, as atividades de caça e pesca, durante os rituais, são atribui-
ções masculinas, enquanto outras ações são exclusivas das waled.
Essa complexidade na cosmogonia Paiterey envolve uma série de
narrativas que nos ajudam a compreender como o universo se constitui,
conforme demonstram Mindlin et al. (2007), que há de duas décadas tra-
balham com este povo, com a coleta de narrativas, das quais selecionamos
três, para analisar em nosso artigo. A primeira é intitulada “O começo do
mundo e a morte”:

Os primeiros seres nasceram de si mesmos – do nada. Brotaram. Ou


brotaram do inhame gopodjoga, ou brotaram como o inhame brota
da terra. É verdade que não existia nada, mas surgiu um pedaço de
terra, para os primeiros seres brotarem. Ninguém fez esse pedaço de
terra – apareceu.
Nasceram primeiro, de si mesmos, Lakapoy, Tamoati, Palop, Mora-
dati, Gerepti, Gerpati. São Garbaiwai, donos-do-dia, senhores com
força para fazerem acontecimentos no mundo. Garbaiwai, ainda hoje,
são os que dominam ou controlam processos, dotados de poder.
Os primeiros seres fizeram tudo. Já havia um pedaço de terra; Palop,
Nosso Pai, fez muito mais, fez a terra toda. Foi perguntando a cada
um dos outros o que iriam fazer [...] Lakapoy fez as rochas, as mon-
tanhas, o mato. Palop fez seu irmão, Palop Leregu, fez também os
homens. [...] Palop fez sua mulher e engravidou-a sem namorar, só
pelo espírito. Ela não tinha vagina, manim, era lisinha mesmo, como
um pedaço do peito. Já estava grávida quando ele cortou um manim
para ela, com a mão mesmo, para o nenê sair. Por isso as mulheres
até hoje têm manim. Palop fez em sua mulher tudo que é preciso
para namorar e ter filhos: a vagina, os grandes e pequenos lábios,
o útero, os ovários, as trompas. Só depois que a mulher de Palop

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

ficou grávida é que começou a nascer gente, pois antes não nascia
ninguém [...]. (MINDLIN et al., 2007, p. 122-125) (Grifos nossos).

A narrativa evidencia o criador que designa papéis diferentes de


homens (oy) e mulheres (waled), atribuindo aos homens a capacidade de
criação da corporalidade feminina e às mulheres a capacidade de criar a vida.
Em nossa análise buscando a compreensão do endogênero, veri-
ficamos que uma narrativa se entrecruza a outras, permitindo a conjunção
de um mosaico que complementa a argumentação sobre a lógica da pre-
sença humana no universo Paiterey, como pode ser observado na narrativa
intitulada “As primeiras mulheres”:

Antigamente, ainda não havia mulheres no mundo. Só havia um ho-


mem, chamado Iapeab, sozinho.
Havia uma árvore rachada, que Iapeab costumava namorar. Tanto
namorou, tanto namorou, que a árvore engravidou.
Iapeab teve que viajar [...] Pouco depois, à noite, a árvore explodiu e
uma criança começou a chorar. Passou um tempinho, ouviu-se novo
estouro, e mais uma criança chorando [...] Foi buscar as duas crian-
ças, que eram meninas, e passou a cuidar delas [...] a mãe de vocês
era árvore, não era gente. Vocês nasceram num sonho. (MINDLIN
et al., 2007, p. 114-120) (Grifos nossos).

Esse aspecto importante de concepção, longe de ser algo pueril,


conduz à reflexão de Jung (2003, p. 350-353) de que a árvore é um símbo-
lo que está relacionado ao crescimento e desenvolvimento, com conexões
interpretativas sobre o aspecto do inconsciente no corpo, tendo como re-
ferência não somente a natureza, já que também expressa o dinamismo
matriarcal de consciência (JUNG, 1993, p. 64-65).
Dessa constatação, Almeida (2009, p. 31-32) compreende que
simbolicamente essa representação está diretamente ligada à Terra e a tudo
que é vivo, ou seja, na certeza nas próprias raízes instintivas, capaz de ex-
perienciar a vida e o encontro com o acolhimento intrapsíquico, fértil e
harmonioso. Com isso se tem “uma conexão rica e forte com o próprio
impulso vital (a fonte interna geradora de vida)” (p. 32).
Parece-nos evidente que a terceira narrativa está relacionada a
mudanças de sentidos, significados e percepções que os Paiterey atribuíram
às questões de gênero, ao mesmo tempo em que apontam para valores que

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UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

são dificilmente compreendidos pela cultura e pelo pensamento ocidental.


A transição da corporalidade entre homens e mulheres está presente na
narrativa que segue, em que, por exemplo, a menstruação era masculina:

Há muito, muito tempo, quando viviam nossos primeiros antepas-


sados, conta-se que os homens, e não as mulheres, é que ficavam
menstruados.
Havia um homem menstruado e uma menina, curiosa, foi lá espiar,
onde ele ficava em reclusão por causa da menstruação, numa maloca
pequenina, separada das outras.
Vendo a mocinha, ele molhou a mão no sangue que saía do seu pê-
nis2 e chamou-a:
- Vem aqui ver o que eu estou fazendo! – e quando ela se aproximou,
ele passou o sangue na boca da xoxota dela.
Ela teve que sentar no lugar dele. E ele foi embora.
Desde então, os homens não ficaram mais menstruados, e sim as
mulheres. (MINDLIN et al., 2007, p. 63).

Essa questão aponta para o estabelecimento de “marcadores ter-


ritoriais” por parte dos Paiterey. A reclusão do corpo menstruado em uma
maloca afastada das outras e a transição da menstruação da corporalidade
masculina para a feminina evidenciam a ideia de mudança permanente do
universo e, por sua vez, das identidades forjadas naquela cultura.
Tais narrativas são relevantes porque se concretiza que o ser hu-
mano é integrante do todo e que as “coisas” existentes no seu microcosmo
são concebidas e entendidas como uma só “coisa”, o que aproxima os huma-
nos dos demais seres, materializados ou não, ou seja, apresenta a consciên-
cia de permanência de que nem o corpo e nem a cultura morrem; antes, são
aprimorados, como na “fabricação do corpo” (VIVEIROS DE CASTRO,
1987, p. 31), ou adquirem novos sentidos e significados.
A fabricação do corpo no microcosmo dos Paiterey está funda-
mentada em rituais da comunidade indígena, permeados por narrativas
repletas de significação espiritual.
Outro fenômeno/elemento que decorre do endogênero e se rela-
ciona à territorialidade é composto pelas representações simbólicas, sociais
e ambientais, como a flora, fauna, montanhas, cachoeiras, rochas, entre
outras, que são difundidas entre as metades exogâmicas e os quatro clãs

2
Mamoa (pênis); manim (vagina).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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Paiter Suruí, sendo consideradas dádivas cosmogônicas dos espíritos e dos


“heróis míticos criadores”, identificadas através da cor de cada clã.
Essas dádivas cosmogônicas são mais bem percebidas quando da
realização de rituais como o Mapimaih, para se precaverem das intempéries
e de seus efeitos, e de doenças, para organizarem atividades no espaço de
ação, como plantação, caça e pesca, e para promover a proteção territorial
e a integridade física dos clãs, qualificando-se em “marcadores territoriais”
associados à vontade dos espíritos.
Neste sentido, o estudo realizado por Cardozo (2013) demons-
tra que o ritual Mapimaih é uma representação que se materializa e tem o
sentido de unificar o povo, e que nele se consolida a identidade e a unidade
Paiterey, isto porque pelo ritual são proporcionados diferentes processos
que envolvem a espiritualidade, a economia, a política, a cultura, o espaço,
o tempo, a troca de conhecimento, o fortalecimento das relações de pa-
rentesco, e o fortalecimento do papel e da responsabilidade de oy, waled,
jovens e crianças.
Ainda para a autora, ao estudar o Iway e a Metare, é possível ob-
servar que na geografia dos Paiterey a territorialidade e a espacialidade se
juntam, formando uma espacialidade única. Essa junção é o que expressa
mais qualitativamente o que no início caracterizamos como endogênero:

Os clãs separados com suas representações dos elementos da flores-


ta – o marimbondo preto (Gameb), marimbondo amarelo (Gãbgir),
frutinha azeda (Kaban) e taboca (Makor), durante o Mapimaih se
direcionam para um centro, que quando se forma unifica o povo,
de maneira que a identidade Paiter Suruí se mostra em uma maior
expressão, dando sentido à unidade do povo.
Os clãs sozinhos não existem, embora se organizem de forma sepa-
rada, se juntam e dão a ideia de unicidade do povo.
No Iway os Paiter Suruí são um único povo, neste momento a auto-
denominação se faz presente “Gente de Verdade, nós mesmos, povo
verdadeiro”, a identidade única se faz presente nas formas simbólicas
desenhadas nos corpos de homens e mulheres, que são apresentadas
no centro do Iway, que trazem desenhos que simbolizam mamíferos
e pássaros, que os identificam e os fortalecem. (CARDOZO, 2013, p.
76). (Grifos nossos).

Com essas inferências sobre as experiências cosmogônicas dos


Paiterey relacionadas à cosmovisão do gênero no interior da organização

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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social, cultural, política, ambiental e espiritual do povo, a abordagem se-


guinte é sobre o exogênero, ou seja, sobre os novos sentidos, as novas repre-
sentações de gênero adquiridas no pós-contato.

PAPÉIS DE GÊNERO MASCULINOS


E FEMININOS NA REPRESENTAÇÃO
PAITER SURUÍ

As crianças nascem e crescem conforme estabelece a cultura


ancestral Paiterey, pois desde cedo já começam a receber os cuidados e
os acompanhamentos dos pais, seja menino ou menina. Primeiramente,
quando nasce a criança, os pais devem seguir e respeitar várias regras, que
não podem ser desobedecidas de maneira alguma para que a criança tenha
um bom desenvolvimento no processo de crescimento. Como, por exem-
plo: os pais devem seguir uma rigorosa dieta alimentar e regime de relações
sexuais, bem como realizar determinadas práticas de pesca e caça, até que a
criança complete certo tempo de vida.
Geralmente, quando a criança é menino, cabe ao pai a maior
responsabilidade de cuidá-lo, de orientá-lo e ensiná-lo, de modo geral, os
conhecimentos das práticas da cultura tradicional do seu povo. Se for uma
menina, a mãe tem o mesmo direito e dever.
Existem nesse processo de ensinamento certas coisas específicas
que somente o pai ou a mãe podem e devem ensinar, entre as quais se
incluem atividades práticas. Os meninos acompanham o pai na caçada,
pescaria, roçada e confecção de arcos e flechas, e as meninas acompanham
a mãe no dia a dia da aldeia, na confecção de artesanatos, nas idas para
a roça para buscar mantimentos, e no preparo das comidas e da chicha3
(makaloba), entre outros.
Esse momento de aprendizado é muito importante para o futuro
das crianças Paiterey e, conforme elas crescem, aprendem e adquirem as

3
Conhecida também como caissuma ou cauim, é uma bebida fermentada, de moderado teor
alcoólico, feita geralmente de raízes de mandioca (aipim ou macaxeira), cará, inhame, milho
ou pupunha – dependendo da etnia – e apreciada em ritos espirituais como o Mapimaih.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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práticas dos ensinamentos transmitidos por seus pais. Assim, quando es-
tiverem na adolescência, poderão realizar as atividades de forma indepen-
dente, preparando-se para, na fase adulta, casar e constituir suas famílias
com consciência de suas responsabilidades.
Um momento muito significativo na vida dos Paiterey é a fase
em que os filhos atingem a idade de 10 para 11 anos, quando precisam ser
vigiados, orientados e acompanhados bem de perto.
Para as meninas essa fase é a época da primeira menstruação. É
preciso que elas sejam isoladas dos demais membros da família e da aldeia
por um determinado período de tempo, numa oca, onde só recebem a visi-
ta da família, principalmente do pai e da mãe. Durante esse tempo é preci-
so seguir vários preceitos, como, por exemplo: dieta alimentar controlada,
manter-se em silêncio, tomar banho várias vezes ao dia com água morna,
sentar-se na posição certa, etc.
Também são preparados artesanatos e tecidos de algodão, para
enfeite, para quando a menina for sair da maloca. Tudo isso para passar por
uma transformação e adquirir forma de waled e estar pronta para mostrar
os ensinamentos que foram passados durante a fase de infância. É a “fabri-
cação de corpo”. Quando chega a hora de sair da maloca, os pais chamam o
tio materno, que faz a pintura corporal nela e que a ajuda a sair da maloca
para ser entregue ao oy – para casamento – caso ela tenha seu prometido.
A saída da menina sempre tem recepção calorosa por parte dos
familiares, com bastante festa, e ela recebe presentes de seus familiares e
dos parentes de parte do seu agora marido, o que se caracteriza como uma
troca simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1970, 1973, 1978).
Com relação aos meninos Paiter Suruí, quando eles chegam a
essa idade, os pais lhes dão atenção especial, porque, geralmente, quando
sua voz engrossa, é sinal de que estão passando da fase de adolescência para
se tornar oy. Nessa ocasião, eles têm que cumprir várias normas e também
ficam isolados por algum tempo. Nesse período, eles precisam se concen-
trar para a passagem do processo de transformação, para depois poderem
se sentir livres, independentes e preparados para encarar quaisquer obstá-
culos da vida, como, por exemplo, sustentar uma família, liderar e serem
os guerreiros do seu povo ou do clã a que pertencem. Quando é chegado o
dia da saída, os pais vão recepcioná-los, dando-lhes boas-vindas, para que
então possam se envolver nas lutas do dia a dia e sentir-se oy para buscar o
que almejam na vida.

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Essas condições para waled e oy se caracterizam como rituais de


passagem que, de forma representativa, significam a morte de uma fase e o
surgimento de outra, ou seja, o renascimento e/ou o rememorar espiritual
e cultural, cujo aporte teórico é exposto por Van Gennep e Turner (1974) e
Van Gennep (1978).
Nesse quesito, a cultura Paiterey apresenta-se como permanência,
em que a questão de seguir e respeitar os vários valores culturais e espirituais
é válida para oy e waled, pois se trata de uma forma de manter e preservar
o que foi designado por Palop, fazendo com que estejam sempre atentos e
preparados para quaisquer obstáculos e dificuldades que venham a atingir
o povo no seu cotidiano.

O PÓS-CONTATO E OS NOVOS
SENTIDOS PARA O GÊNERO

As relações “tradicionais” de gênero estão presentes em muitos


povos indígenas; ao mesmo tempo, é certo que esses padrões estão sendo
constantemente modificados, em maior ou menor grau, como resultado do
contato com a sociedade envolvente (não indígena).
Essa pressuposição leva em conta que as ações das políticas de de-
senvolvimento de organismos estatais e não governamentais, a mobilidade
indígena aos centros urbanos, aliadas às novas experiências organizativas
resultantes da estratégia assumida pelos povos indígenas no contexto inte-
rétnico, complexificam o tema de gênero no que tange a esses povos.
Um dos desafios que se colocam neste campo é o de abordar o pon-
to de vista das mulheres indígenas quando assumem novas representações
diante das múltiplas relações que seus povos estabelecem com o Estado, a
sociedade e o mundo em geral. Assim, é pertinente a abordagem sobre como
as mulheres indígenas constroem e se apropriam de estratégias de perma-
nências e mudanças nos espaços territoriais, buscando garantir não apenas a
sobrevivência física, cultural, mas também ampliar uma série de proposições
relacionadas às políticas públicas e, consequentemente, à melhoria da quali-
dade de vida, em virtude de novas demandas que serão motivadas no pós-
contato, conforme pontuam Sacchi e Gramkow (2012, p. 20-21):

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ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

[...] a agenda de gênero das indígenas, portanto, parte de um coletivo


em que os direitos das mulheres não podem se desligar dos recla-
mos de autodeterminação de seus povos. E, nesse sentido, reside a
contradição de sua posição, pois sua presença no mundo político
enquanto mulher pode ser diversa da que tinha no âmbito da co-
munidade [...]. Na contramão do discurso feminista pela igualdade
universal de gênero, as mulheres indígenas propõem a valorização
de tradições culturais diversas. O que não significa que repudiem os
valores ocidentais, pois elas se inserem no universo indígena quan-
do utilizam recursos e estratégias próprios a este sistema de valores
e buscam maior informação e capacitação em diversas áreas para
poderem dialogar em outras esferas, lutar pelo reconhecimento e
conquistar suas demandas. Assim, não buscam nem uma dissolução
da “tradição” cultural de seus povos nem uma rejeição aos valores
“modernos”. [...] As próprias mulheres indígenas fazem menção e
têm como suporte de suas demandas às transformações ocorridas
nos vários aspectos da organização social de seus povos, entre es-
tas, a das relações de gênero [...]. Há também as representações das
mulheres indígenas contidas nos mitos, narrativas e relatos acerca dos
povos indígenas, as quais demonstram a associação da feminilidade
à alteridade e correspondem à visão que se tem do mundo indígena
como selvagem e inferior. (Grifos nossos).

Com relação à abordagem desse tema na visão e no contexto do


universo indígena Paiter Suruí, podemos lembrar que o contato com a so-
ciedade não indígena trouxe muitas transformações na vida social e orga-
nizacional dos Paiterey, tanto é que os impactos estão acontecendo ainda
nos dias de hoje.
Por isso, ainda no processo de reorganização de pós-contato, o re-
posicionamento dos gêneros em diversos contextos – como, por exemplo,
a realização de casamentos interétnicos, a entrada no movimento indígena
e no associativismo feminino, a participação nos projetos de desenvolvi-
mento, a mobilidade aos centros urbanos e a busca pelo reconhecimento
de políticas específicas de gênero e étnicas – traz temas que sempre estão
em debate.
Neste sentido, é pertinente discutir, no contexto das representa-
ções socioculturais, o papel exercido pelas mulheres indígenas, conforme
evocam Souza e Cemin (2012, p. 181):

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UMA ABORDAGEM DE GÊNERO A PARTIR DO MICROCOSMO INDÍGENA PAITER SURUÍ

Daí se insere nesta discussão a importância da participação política


nas organizações indígenas e o conhecimento sobre os processos de
subjetivação das mulheres indígenas [...]. Paulatinamente, iniciam-
se os debates no campo dos estudos de gênero, articulando políticas
de desenvolvimento social e de identidade com políticas públicas
para as mulheres indígenas [...]. Esse processo é simultaneamente
político e acadêmico, visto que a identidade na sociedade moderna é
matéria política orientada pelo Estado, que é também o formulador
e o gestor dos sistemas educativos. Coloca-se, então, a pertinência
teórica de compreender o gênero como parte da subjetividade so-
cialmente situada em suas coordenadas de classe, de etnia, e mesmo
de orientação sexual.

Um desses olhares diz respeito ao processo de ressignificação dos


povos indígenas no pós-contato, evidenciando a participação das mulhe-
res, que, mesmo de forma incipiente na organização dos movimentos in-
dígenas, demonstram expressividade local em defesa dos territórios e das
culturas, conforme destaca Matos (2012, p. 159):

Diferentemente do processo do movimento indígena ampliado, cuja


trajetória histórica se configurou em espiral, o movimento das mu-
lheres se institucionalizou criando organizações locais e regionais,
sem conseguir inicialmente efetivar uma articulação nacional, devi-
do à própria dinâmica das relações políticas do movimento e à falta
de apoio de entidades parceiras.

Portanto, a participação da waled Paiter Suruí no processo de


construção da vida social e organizacional do seu povo é muito importante,
e ela está muito ligada à vida tradicional. Hoje essa participação tem sido
ampliada, devido às necessidades advindas do contato com a sociedade en-
volvente, que, por sua vez, tem produzido problemas na vida sociopolítica,
econômica, cultural e territorial, com o surgimento de novas demandas de
lutas que precisam ser reconhecidas para garantir uma perspectiva melhor
de vida para o povo indígena de modo geral.
Com isso, colocam-se enormes desafios para os Paiterey no sen-
tido de defender seu território e ao mesmo tempo manter seus valores cul-
turais, espirituais e sociais, bem como apreender as mudanças que trazem
consigo novos sentidos e representações sociais, políticas, econômicas e
ambientais, influenciando diretamente os papéis de gênero no interior da

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NA ANÁLISE ESPACIAL
ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

organização dos Paiter Suruí, o que de certo modo confirma as questões


estudadas por Souza e Cemin (2012, p. 176):

Tratando das relações entre sexo e gênero, Rosaldo e Lamphere


(1979) concluíram que a diferenciação entre os sexos evidencia a
universalização dicotômica numa estrutura social em que mulhe-
res e homens invocam os símbolos respectivos – natureza/cultura,
espaço público/privado. Essas dicotomias reafirmam a restrição da
mulher às atividades relacionadas ao materno e ao doméstico. As
atividades femininas são inferiorizadas ante a valorização das ati-
vidades consideradas masculinas como a cultura, a política e a eco-
nomia. Em estudo histórico comparativo de escala mundial, Stearns
(2007) compreende que, para as mulheres indígenas, a subordinação
feminina se intensifica a partir do contato interétnico. Conclui que
o patriarcado é mais forte na sociedade ocidental, pois mesmo que
se admita haver desigualdade e não apenas divisão complementar
de trabalho entre homens e mulheres nas sociedades indígenas, a
sociedade ocidental seria menos igualitária no que diz respeito às
relações sociais de gênero. (SOUZA e CEMIN, 2012, p. 176).

E essa busca de autoconhecimento e conquistas de espaços tem


que ser transmitida como cotidiano cultural, ou seja, do dia a dia, e mais o
aspecto da ancestralidade, que é o diferencial mais importante para o forta-
lecimento da cultura tradicional Paiter Suruí.
O papel exercido pelas waled Paiterey é de uma vasta responsa-
bilidade e de grande importância frente à família e ao povo indígena, em
virtude do processo cosmogônico ancestralmente construído, de modo que
seus valores são plenamente justificados. Seu caráter é ampliado, devido às
várias transformações ocorridas após o contato com a sociedade envolven-
te.
Sua importância é mais do que uma mera continuidade repro-
dutiva; representa a ideia de coesão da família e do povo indígena como
multiplicadora da educação, da cultura, dos valores do povo a seus filhos,
sendo ainda o sustentáculo imprescindível ao oy, através do trabalho que
ajuda a garantir a renda familiar e a qualidade de vida.
Destarte, as waled Paiterey são protagonistas que imprimem “mar-
cas” e “marcadores” territoriais exclusivos no interior da etnia, contribuin-
do, com isso, para a organização social que opera o modo de vida e as rela-
ções socioespaciais, ou seja, o pertencimento identitário, cujo fundamento

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consiste nos “deveres a cumprir perante o mundo, decorrentes do lugar


particular que ocupa no todo cósmico” (GROENTHUYSEN, 1998, p. 183-
184 [1953]).
Percebe-se na questão de gênero, na atualidade, que os Paiterey
decifram códigos, definem estratégias e dão sentido a suas lutas por direitos
fundamentais para sua sobrevivência física, cultural, espiritual, territorial e
do estabelecimento de relações que possibilitem reivindicar o exercício de
suas cidadanias dentro da sociedade envolvente (ALMEIDA SILVA, 2010).
Embora pareça um paradoxo para muitos estudiosos, verifica-se
que os Paiterey aderem às tecnologias (mudanças) e ao mesmo tempo estão
ancorados à terra, à floresta, à natureza, à espiritualidade, à cultura e aos
rios (permanência). Isto lhes possibilita, no contexto das dificuldades e dos
desafios, traçar estratégias bem definidas (inclusive o papel de gênero), en-
corajando-os à luta em defesa de seus valores mais expressivos.
Entre essas estratégias figura o Plano de Gestão Etnoambiental
da Terra Indígena Sete de Setembro ou Paiterey Garah (também chama-
do de Plano 50 anos Paiter Suruí), que foi construído de forma coletiva
e participativa por oy, waled, jovens e crianças, com o objetivo de formar
uma consciência de economia ambientalmente sustentável, contribuindo
globalmente com ações que possam minimizar o impacto no e do clima.
A elaboração e a sistematização do Plano foram apoiadas pelas entidades
indígenas Paiterey e indigenistas, bem como por órgãos oficiais.
Este Plano que está em desenvolvimento contempla as demandas
das waled Paiterey, tendo como paradigma a perspectiva de gênero e a valo-
rização da participação da waled como agente modificador da realidade am-
biental, de modo que busca privilegiar sua atuação como um procedimento
não somente em relação ao ambiente, mas, sobretudo, na unidade de produ-
ção, na cultura, na política e formas organizativas de empoderamento.
Para tanto, o Plano apresenta dez metas específicas, interligadas
entre si, e almeja o envolvimento e a participação de oy, waled, crianças e
idosos. Destacamos cinco dessas metas, que tratam diretamente das pers-
pectivas de formação educacional, um dos mais cruciais elementos para
a aquisição da cidadania: a) Desenvolvimento de projetos alternativos de
produção de alimentos, farmácia viva, habitação sustentável e geração de
excedentes comercializáveis; b) Promoção da cultura Paiterey, com a cria-
ção do Centro de Formação e Pesquisa Indígena para divulgação da cultura
na sociedade regional, nacional e internacional; c) Implantação da Escola
Agroambiental Paiterey como instrumento para repasse de conhecimentos

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ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, GASODÁ SURUÍ E ADNILSON DE ALMEIDA SILVA

ambientais sobre o uso dos recursos naturais; d) Implantação da Universi-


dade Indígena Paiterey; e) Implantação do Centro de Cultura e Tecnologia
Paiter, em que serão apoiados indígenas para realizarem junto com pesqui-
sadores não indígenas pesquisas culturais e científicas, via parcerias com
instituições e institutos de pesquisa, faculdades, ONGs e empresas.
Outra questão que se verifica entre os Paiterey e que é de grande
relevância para o aprofundamento das relações sociais entre oy, waled, jo-
vens e crianças tem sido a prática de esportes, como futebol e voleibol, em
que todos indistintamente participam, evidenciando a permanência coleti-
va do povo, mesmo com a ocorrência de uma série de outras atribuições e
demandas oriundas da sociedade envolvente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
NÃO CONCLUSIVAS

É fato que os povos indígenas estão passando por profundas mu-


danças em seus modos de vida. Isso produz novos sentidos e significados,
que são negociados constantemente, ainda que várias questões permane-
çam como “inegociáveis”.
Essas percepções também são sentidas quando se trata de ques-
tões de gênero, podendo ser pontuadas como uma das causas do aprofun-
damento da dependência econômica e das relações políticas. Isto decorre
de outras lógicas mais complexificadas, porque se refere à ressignificação
de escalas de valores no tempo e no espaço, exigindo a adaptação ou defi-
nição de estratégias dos indígenas, o que é diferente para os Paiter Suruí.
Tal questão, de certo modo, pode ser compreendida através da
tendência de apropriação e produção do espaço de forma individualizada,
com um caráter “privado” – até mesmo em razão de políticas públicas ado-
tadas –, em contraposição às antigas formas de cooperação e coletividade.
Verifica-se ainda que na cultura Paiterey, oy e waled têm papéis
representativos com grandes valores simbólicos e materiais para o povo, o
que retrata os conhecimentos, as vivências e as experiências, as quais podem
ser sintetizadas em dois momentos: 1) anterior ao contato (endogênero,
que permanecem na cultura); 2) pós-contato (exogênero, com as mudanças
adquiridas, consequentemente com novos sentidos representativos).

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No caso do endogênero, podemos enumerar algumas questões


relativas aos papéis em destaque desempenhados pelas waled Paiterey como
permanência: a) são guardiãs do legado cultural-espiritual étnico, visto que
dedicam a maior parte de seu tempo às crianças e jovens, o que lhes confere
o sentido de educadoras; b) exercem o cacicado, que é uma representação
simbólica e política de grande expressividade e responsabilidade, com a
competência de traçar estratégias de sobrevivência e de guerra, e inclusive
alimentar, com uma série de outras atividades que direcionam o destino de
seus membros; ao conciliar os interesses e conflitos internos do povo, trata-
se de um papel de liderança perante as outras waled Paiterey; c) exercem a
pajelança, o que implica liderança, representando a sabedoria para a cura
de inúmeros males, e estabelecem o contato direto com os espíritos.
No exogênero foram incorporadas questões da sociedade envol-
vente, dentre as quais destacamos: a) lideram as organizações de waled in-
dígenas, as quais se encontram em fase inicial de arranjos institucionais; b)
influenciam seus maridos em tomadas de decisões nas atividades cotidia-
nas, bem como em assembleias e reuniões quando as questões se tornam
complexas e os oy não conseguem encontrar respostas; c) exercem ativi-
dades que exigem formação profissional, como professoras, enfermeiras e
agentes de saúde, entre outras.
Enfim, verifica-se que as questões relacionadas ao gênero são bem
definidas entre os Paiterey, isto porque eles as entendem como algo estra-
tégico que permite garantir a sobrevivência étnica e a proteção territorial.
Isso decorre do processo de novos conteúdos que se encontram fundados,
incorporados e assimilados pelos indígenas – ainda que não tão facilmente
– em decorrência do permanente ajustamento simbólico e social.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
A SAÚDE DA MULHER NEGRA
SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO
MODELO DE COMPREENSÃO
Sônia Beatriz dos Santos

***

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca refletir sobre a concepção da linha de


saúde da mulher negra como um campo de conhecimento e ação, e sobre
a importância desta para o enfrentamento das desigualdades que afetam a
saúde das mulheres negras no Brasil. Esta linha se delineia a partir de dois
contextos: o da luta pelo direito à saúde da mulher levado a cabo pelos
movimentos de mulheres, sobretudo o feminista, e aquele constituído pelas
reivindicações da população negra pelo direito à saúde. O conceito de saú-
de da população negra enquanto conceito e ação foi forjado no processo de
luta dos movimentos negros, em particular das ativistas e feministas e de
profissionais de saúde, destacadamente mulheres negras.
Segundo Fátima Oliveira (1998):

Os estudos sobre saúde da população negra no Brasil até meados da


década de 60 do século XX, assim como em outras partes do mundo,
fazem parte da perspectiva eugenista. Ou seja, integram o ideário da
existência de ‘raças puras e superiores’. As ‘raças impuras e inferiores’
foram ‘estudadas’ tão-somente para que pudessem ser encontradas
‘comparações científicas’ de suas ‘impurezas’ e inferioridades. (p. 94).

No entanto, paralelamente a este movimento eugenista as mu-


lheres negras buscaram construir seus próprios caminhos para enfrentar
a desigualdade que vivenciavam na área da saúde. Sua luta por direitos,
dentre eles a saúde, se intensifica nas décadas de 1970 e 1980, já dentro do
A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

movimento de mulheres, herdando desse modo as influências sociohistó-


ricas de grandes eventos do passado, como o surgimento do movimento
de mulheres em várias partes do mundo a partir do período da Revolução
Francesa (1789-1799). São deflagradas, assim, a Primeira Onda Feminista,
e, em seguida, a Segunda Onda Feminista, caracterizada pelas reivindica-
ções a respeito da participação feminina nos processos de decisão política,
demandando o direito ao voto, e marcada pelas mobilizações das operárias
feministas, com a organização dos sindicatos femininos, no século XIX, e,
finalmente, a Terceira Onda Feminista, que se inicia com a chamada Revo-
lução Sexual, com a invenção da pílula anticoncepcional nos anos de 1960.
E deste período em diante se sucederam o Movimento de Libertação da
Mulher, os esforços de elaboração do conceito de patriarcado, as Conferên-
cias Mundiais com foco na Mulher, a institucionalização de uma parcela do
movimento feminista, “e a elaboração do conceito e da teoria de gênero”
(ver OLIVEIRA, 1998, p. 22).
Nas décadas de 1970, 1980, e 1990 se configurou o Movimento
Internacional Mulher e Saúde (MIMS), construído por uma série de mo-
vimentos importantes: a Terceira Onda feminista, que se difundia pelo
mundo através das Conferências da ONU sobre a Mulher (1975 a 1995),
os Encontros Feministas Latino-Americanos e do Caribe (1981 a 1999),
os Encontros Feministas Brasileiros (1982-1997), e os nove encontros do
MIMS (1977 a 2000) (ver OLIVEIRA, 1998, p. 22-23). A luta feminista pela
saúde da mulher no Brasil carrega, assim, todas estas influências históricas,
e tal herança vai se materializar em algumas ações concretas e fundamen-
tais que marcaram este campo de luta como uma das principais bandeiras
do movimento de mulheres em geral, e em particular das negras.
Dentre estas ações fundamentais se destacam: (1) a criação do
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, elaborado em 1983 e
adotado pelo governo brasileiro em 1985; (2) a instituição da saúde como
direito estabelecido pela Constituição Brasileira de 1988; (3) e a criação
do Sistema Único de Saúde, que propiciou a possibilidade de a população
negra ter acesso aos serviços de saúde, visto que antes era completamente
excluída. Estas três ações foram subsídios fundamentais para a criação da
linha de saúde da mulher negra, bem como do conceito de saúde da popu-
lação negra de um modo mais amplo.
Segundo Werneck (s.d.), o conceito de saúde da população negra
se configurava como uma “operação estratégica de desocultamento de um
campo vital para a sobrevivência de uma parcela numericamente importante

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

da população brasileira” (p. 7). Lopes e Werneck (s.d.) compreendem “a


saúde da população negra como um campo de ativismo, conhecimento,
saberes e práticas, estratégias de gestão e controle social” (p. 15). Werneck
(s.d.) afirma que sua criação incorporava:

Elementos de diversas áreas do conhecimento, ampliando para além


da biologia e da medicina as possibilidades de leitura da gênese dos
processos de saúde-doença junto à população negra e toda a popu-
lação brasileira. Assim, o racismo e suas consequências; os significa-
dos de cultura (e cultura negra); análises das desigualdades sociais
e seus efeitos, entre outros, são parte essencial da construção de um
significado adequado às necessidades deste grupo populacional em
particular. (p. 7).

Assim, o conceito de saúde da população negra foi construído pelo


próprio segmento populacional negro, que ansiava pela melhoria das con-
dições de vida da população; reivindicando a implementação de ações que
significassem mudanças substanciais em termos estruturais, e que influen-
ciassem na elaboração, implementação e monitoramento das políticas pú-
blicas, em especial aquelas direcionadas à saúde (ver WERNECK, s.d., p. 7).
A linha de saúde da mulher negra é sem dúvida gestada na con-
fluência de todos esses eventos e experiências relatados anteriormente, em
que mulheres negras de distintos segmentos vão trazer o foco para suas
necessidades específicas em saúde, valendo-se de suas experiências, pro-
fundamente marcadas pela intersecção de formas de opressão que incidem
sobre suas condições de vida e bem-estar, como: sexismo, racismo, pobreza
e lesbofobia1. Para refletir sobre a temática proposta, o artigo está dividido
em duas partes complementares. Na primeira, expomos os contextos histó-
ricos que envolvem a emergência da linha de saúde da mulher negra, muito
caracterizada pelas circunstâncias que delineiam as lutas tanto do movi-
mento de mulheres por saúde, como do movimento da população negra,
em especial das mulheres, por melhores condições de saúde e acesso aos
serviços públicos. Na segunda parte, desenvolvemos reflexões a respeito da
linha de saúde da mulher negra, como um novo modelo de compreensão
da temática. E concluímos com uma reflexão sobre os efeitos simbólicos
e materiais das discriminações raciais e de gênero na saúde das mulheres
negras no Brasil.

1
O termo ‘lesbofobia’ se refere ao preconceito contra mulheres lésbicas.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

UM CONTEXTO DE LUTAS HISTÓRICAS


O movimento de mulheres pela saúde

As mulheres negras sempre tiveram participação expressiva e


decisiva nos movimentos de mulheres, somando com o conjunto e simul-
taneamente também procurando estabelecer seus próprios caminhos no
enfrentamento da discriminação e das desigualdades na área da saúde. A
despeito de suas condições desprivilegiadas, observamos a presença de ati-
vistas e feministas negras nas reivindicações por direitos à saúde ao longo
da história nacional e internacional.
Ao contemplar o processo de constituição da sociedade moderna,
notamos que as reivindicações femininas por direitos em distintas partes do
mundo se destacaram desde a época da Revolução Francesa (1789-1799).
Naquele momento emergia o que se convencionou chamar de Primeira
Onda Feminista, que dizia respeito às atividades feministas que ocorreram
entre o século XIX e o início do século XX no Reino Unido e nos Estados
Unidos. O foco principal deste movimento consistia em promover a igual-
dade de direitos em termos de direitos contratuais e de propriedade para
homens e mulheres, em oposição aos casamentos arranjados, e no trata-
mento de mulheres casadas e seus filhos como propriedades dos maridos.
Todavia, ao final do século XIX, outras questões, como o poder político
através do direito ao sufrágio das mulheres, passaram a integrar a agenda
de conquistas do movimento.
Em seguida surge o movimento da Segunda Onda Feminista, que
compreende o período do século XX entre a década de 1960 e o fim da déca-
da de 1980. De acordo com estudiosas, esta segunda fase representaria uma
continuação da Primeira Onda, e ela teria como principal objeto de luta
questões relacionadas à igualdade e à erradicação da discriminação. Um
dos slogans que se tornou a marca deste grupo foi “O pessoal é político”. Es-
tas feministas denunciavam a vinculação existente entre as desigualdades
culturais e políticas das mulheres, além de insistirem na conscientização
destas para que compreendessem que os aspectos de suas vidas pessoais são
fortemente politizados, buscando assim refletir também sobre as estruturas
de poder sexistas existentes na sociedade. É neste período que surgem os
movimentos de liberação das mulheres, a crítica e desmistificação da ideia
conceituada no livro A Mística Feminina (1963), de Betty Friedan, de que
as mulheres poderiam encontrar satisfação exclusivamente na criação dos

INTERSECCIONALIDADES,
182 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

filhos e na realização das atividades domésticas; e ainda onde se constituem


os esforços nos anos 70 em desenvolver a ideia sobre a existência de uma
religião matriarcal e de um período na história da humanidade cuja estru-
tura social se assentava no matriarcado.
E, por fim, a Terceira Onda, que se constituiu no início dos anos
90 e sustentava fortes críticas ao movimento da Segunda Onda. Este mo-
vimento critica definições essencialistas da feminilidade introduzidas pelo
grupo anterior e também o foco privilegiado que dispensavam as experiên-
cias das mulheres brancas de classe média alta. As representantes da Tercei-
ra Onda vão enfocar também a conceituação do gênero e da sexualidade.
É neste movimento que emerge uma nova vertente feminista pautada pela
diferença e diversidade, em que se passa a considerar não somente o gêne-
ro, mas também a raça, a classe, a sexualidade e a orientação sexual como
fatores determinantes da condição e status das mulheres. É aqui também
que surge a ideia do feminismo da diferença, que indica a existência de
diferenças inerentes entre homens e mulheres.
O período compreendido entre os anos 70, 80, e 90 foi palco de
uma série de ações em saúde lideradas por mulheres oriundas de distintos
segmentos sociais e pertencimento étnico/racial. Iniciamos por destacar o
protagonismo do Movimento Internacional Mulher e Saúde (MIMS), que
se constituía num conjunto de eventos fundamentais. Foram eles:
Conferências da ONU sobre a Mulher: México, 1975 (Ano Inter-
nacional da Mulher; Década da Mulher: 1976 a 1985); Copenhague, 1980
– incorporou três subtemas à agenda: educação, emprego e saúde; Nairóbi,
1985; Pequim, 1995; Fóruns Paralelos de ONGs realizados em todas as con-
ferências. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 22).
Encontros Feministas Latino-Americanos e do Caribe: Bogotá,
Colômbia 1981; Lima, Peru, 1983; Bertioga, Brasil 1985; Taxco, México,
1987; San Bernardo, Argentina, 1990; Costa do Sol/San Diego, Costa Rica,
1993; Cartagena, Chile, 1996; República Dominicana, 1999. (ver OLIVEI-
RA, 1998, p. 22).
Encontros Feministas Brasileiros: Fortaleza/Ceará, 1979; Rio de
Janeiro/RJ, 1980; Salvador/Bahia, 1981; Campinas/SP, 1982; Campinas/SP,
1983; São Paulo/SP, 1984; Belo Horizonte/MG, 1985; Nogueira/RJ, 1986;
Garanhuns/PE, 1987; Bertioga/SP, 1989; Caldas Novas/GO, 1991; Salva-
dor/BA, 1997. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 22-23).
Os nove encontros do Movimento Internacional Mulher e Saúde
(MIMS): Roma, Itália, 1977; Hannover, Alemanha, 1980; Genebra, Suíça, 1981;

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Amsterdam, Holanda, 1984; São José, Costa Rica, 1987; Manila, Filipinas,
1990; Uganda, 1993; Rio de Janeiro, Brasil, 1997. (ver OLIVEIRA, 1998, p.
23).
Finalmente, faz-se necessário compreender que, apesar de as mu-
lheres negras terem herdado os princípios do movimento feminista, e do
movimento de mulheres num sentido mais amplo, estas também os critica-
vam severamente por suas limitações em reconhecer a diversidade entre as
mulheres dentro do próprio movimento. Elas enfatizavam que esta realida-
de demandava um olhar para as necessidades específicas dentro da agenda
política estabelecida no interior do movimento; ou seja, elas denunciavam
a existência de um processo interno de discriminação e marginalização.
Assim, denunciava-se que questões que envolviam as mulheres negras e
indígenas, trabalhadoras rurais, trabalhadoras domésticas, mulheres lésbi-
cas, dentre outras, eram invisibilizadas. Esta situação levará ao surgimento
de vários grupos dissidentes, na busca de constituir uma agenda própria
que incorporasse as necessidades e especificidades de suas participantes.
Podemos tomar como exemplos a emergência de grupos e organizações de
mulheres negras e de mulheres lésbicas.
Esta postura crítica ao modelo tradicional de organização do mo-
vimento de mulheres pode ser observada mais substancialmente a partir do
surgimento da Terceira Onda Feminista, quando se intensificam as parti-
cipações de grupos de mulheres não brancas, trabalhadoras das classes po-
pulares, trabalhadoras rurais, mulheres lésbicas, dentre outros segmentos
marginalizados e atingidos pela exclusão social.
A luta feminista pela saúde da mulher no Brasil carrega, assim,
todas estas influências sociais e históricas, e tal herança vai se materializar
em algumas ações concretas e fundamentais que marcaram este campo de
luta como uma das principais bandeiras do movimento de mulheres em
geral, e em particular das negras. A seguir destacamos algumas das ações
fundamentais protagonizadas no país.
Em primeiro, a criação do Programa de Assistência Integral à
Saúde da Mulher (PAISM), elaborado em 1983 e adotado pelo governo bra-
sileiro em 1985, cuja proposta se constituía no atendimento às mulheres de
modo integral, levando-se em consideração todas as fases de sua vida: in-
fância, adolescência, idade adulta e terceira idade. O programa significou a
reorganização da assistência à mulher no país e permitiu uma conceituação
crítica da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos (ver OLIVEIRA, 1998,
p. 30-31). Entretanto, como revela Oliveira (1998), o PAISM ficou na “boa

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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intenção”, e não foi de fato implementado em sua totalidade no sistema de


saúde, situação que perdura até os dias atuais (p. 43).
Uma segunda ação fundamental foi a criação da Rede Nacional
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, em 1991, que reunia grupos
de mulheres que atuavam e/ou trabalhavam na área de saúde e direitos re-
produtivos e sexuais, objetivando apoiar e dar visibilidade política à luta
das mulheres pela saúde sob o ponto de vista feminista, e ainda promover
a “participação de mulheres e organizações feministas” na elaboração de
políticas públicas e sociais em saúde. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 33).
Em terceiro, a fundação da Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR), em 1991. Uma instituição multidisciplinar em defesa do exercício
do direito individual em termos da reprodução humana, de acordo com as
declarações da ONU, em especial da Convenção pela Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 35).
E em quarto, a criação do Programa Saúde Reprodutiva da Mu-
lher Negra (CEBRAP), em 1992, que congregava atividades na área de Po-
pulação e Sociedade, do Cebrap, e oferecia formação em pesquisa na área
de saúde da população negra. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 36).
E, finalmente, os investimentos no fortalecimento e na proteção
aos direitos sexuais e reprodutivos entre os anos de 1970, 1980 e 1990 expu-
seram o problema das altas taxas de mortalidade materna no país, revelan-
do que os segmentos vitimados se constituíam de mulheres jovens, pobres,
de origem nordestina e do norte do país, e mulheres negras e indígenas.
Diagnósticos produzidos nestes períodos revelavam também que a maioria
das mortes era evitável, pois eram provocadas por:

Hipertensão arterial durante a gravidez, infecções, hemorragias, de-


satenção e/ou atenção inadequada à mulher em situação de aborto,
por descumprimento do direito ao aborto previsto em lei nos casos
de estupro e risco a vida da gestante, pela criminalização do aborto,
por cesarianas desnecessárias, dentre outros abusos. (ver OLIVEI-
RA, 1998, p. 40-41).

Esta realidade assustadora relativa à situação da saúde e dos di-


reitos reprodutivos destes segmentos femininos desencadeou uma série de
ações por parte do movimento de ativistas negras, buscando prevenir e rever-
ter esse quadro de adoecimento e mortalidade. O movimento passou a exigir
a intervenção mais forte dos Comitês de Prevenção à Mortalidade Materna

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

nas Secretarias de Saúde, para combater esta situação caracterizada como


genocídio, na implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), e do Progra-
ma de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), e a implantação do
serviço de aborto legal. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 41).
Várias redes de saúde da mulher foram criadas entre o final
da década de 1970 e 1980. Dentre elas, a Rede Global de Mulheres pelos
Direitos Reprodutivos (WGNRR) ou Rede Mundial de Mulheres pelos
Direitos Reprodutivos (RMMDR), em 1978, a Rede de Saúde das Mulheres
Latino-Americanas e do Caribe, em 1984, e a Rede Nacional Feminista de
Saúde e Direitos Reprodutivos, em 1991. (ver OLIVEIRA, 1998, p. 42).
Portanto, todas essas ações e eventos no âmbito do movimento de
mulheres se constituíram em subsídios fundamentais para a organização
das mulheres negras em torno de estratégias que garantissem seus direitos
em saúde, a exemplo da criação da linha de saúde da mulher negra, bem
como do conceito de saúde da população negra de um modo mais amplo.

A LUTA DA POPULAÇÃO NEGRA


PELO DIREITO À SAÚDE

Primeiramente, como enfatizado anteriormente, é fundamental


compreendermos que a luta da população negra, em particular das mulhe-
res negras, por melhores condições de saúde é antiga no Brasil. Ela se ca-
racteriza, por um lado, na busca pelo reconhecimento de saberes seculares
ancorados nas perspectivas africanas e afro-brasileiras de pensar e cuidar
da saúde e na busca pela identificação de necessidades específicas da po-
pulação negra no que se refere ao processo saúde/doença, e, por outro, vai
também caracterizar-se por um histórico de lutas junto ao estabelecimento
do sistema de saúde pública no país, que excluía as negras e os negros.
Segundo Lopes e Werneck (s.d.), “o histórico de constituição de
sistemas de atenção à saúde da população brasileira pode ser percebido
como o percurso das lutas empreendidas pela população excluída, onde
sempre esteve a população negra, por atenção e participação” (p. 7). As
autoras demonstram que este segmento populacional esteve sempre à mar-
gem da participação nos serviços, políticas e programas de saúde estabele-
cidos pelo governo brasileiro, tais como:

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Santas Casas de Misericórdia (a partir de 1582);


Caixas de Aposentadorias e Pensões/CAPs (1923);
Institutos de Aposentadoria e Pensões/IAPs (1926);
Serviço de Assistência Médica Domiciliar/SAMDU (1949);
Instituto Nacional de Previdência Social/INPS (1966);
Plano de Pronta Ação/PPA (1968);
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social/
INAMPS (1974) / Sistema Nacional de Saúde (1975);
Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento/PIASS
(1976);
Programa de Desenvolvimento de Sistemas Unificados e Descentra-
lizados de Saúde nos Estados/SUDS (1987).

Ao apontar para esta realidade, Lopes e Werneck (s.d.) revelam


a existência de estratégias de exclusão da população negra na organização
dos vários modelos de atenção à saúde adotados pelo Estado Brasileiro ao
longo da história. As evidências levantadas pelas autoras demonstram que,
por um lado, antes de 1988 somente quem possuía vínculos formais de tra-
balho – carteira assinada, um registro formal – tinha acesso ao sistema de
saúde brasileiro, e, neste caso, apenas uma parcela muito pequena de negras
e negros se encontrava nesta situação. E, por outro lado, os serviços de saú-
de eram quase que inexistentes nas regiões de concentração de moradia da
população negra. (ver LOPES e WERNECK, s.d., p. 7).
O século XX se caracteriza por intensos debates e grande mobi-
lização social de distintos setores da sociedade civil em defesa de direitos
fundamentais, entre os quais figuram os esforços e estratégias adotadas por
negras e negros para enfrentar o racismo. Desse modo, e mesmo durante o
período da ditadura (1964-1985), ativistas negros e negras organizavam-se
para “eliminar a discriminação racial, garantir igualdade de oportunidades
no acesso aos bens potencialmente disponíveis, e para demandar a garantia
do respeito à diversidade em todas as esferas da vida pública e privada”
(LOPES e WERNECK, s.d., p. 9). E, com o fim do regime militar, o movi-
mento ficou ainda mais fortalecido, garantindo uma atuação fundamental
e protagonista no movimento social em defesa da saúde para todos/as os/as
brasileiros/as. Mais especificamente, referimo-nos à atuação do movimen-
to de ativistas negros e negras que se somaram aos esforços de profissionais
de saúde para elaborar uma nova concepção de saúde na Constituição Bra-
sileira de 1988, em que, pela primeira vez na história do país, a saúde passa
a ser instituída como direito universal:

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido me-


diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A Constituição não só foi propositiva em termos de avanços em


áreas como saúde, como também estabeleceu instrumentos legais para coi-
bir o preconceito de qualquer natureza – de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988, art. 3º, inc.IV).
Esta nova orientação social, que se pautava pela promoção do bem-estar de
todas as pessoas, fundamentou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
que se constituía como uma “política de Estado para garantir a saúde como
um direito efetivo para todas e todos”. (ver LOPES e WERNECK, s.d., p. 9).
Como não poderia deixar de ser, os movimentos de ativistas ne-
gras e negros vão se aproveitar deste momento histórico de mudança na
concepção de saúde e de acesso a ela para assegurar os direitos da popula-
ção negra, chamando atenção para a gravidade de suas condições de mor-
bidade e mortalidade.
Assim, é no processo de constituição de uma nova perspectiva
de saúde na sociedade brasileira que a noção de saúde da população negra
passou a ser utilizada nos anos 80 pelo movimento negro. E nos anos 90 ela
é aprimorada pelo movimento de mulheres negras. Lopes e Werneck (s.d.,
p. 8-9) enfatizam que “esta noção está orientada pela análise sistemática das
desigualdades raciais em saúde e no julgamento de que sua manutenção, ao
longo dos séculos, é determinada pelo racismo e outras formas de inferio-
rização social a ele associadas.”
O conceito de saúde da população negra é forjado, portanto, a
partir do momento em que ativistas, pesquisadores/as, profissionais de saú-
de, gestores/as negros/as (em sua maioria mulheres) e outros atores políti-
cos dirigiram suas ações para a busca por equidade, e tomando, sobretudo,
o racismo e a discriminação racial como fatores determinantes das condi-
ções de saúde. (ver LOPES e WERNECK, s.d., p. 9).
Assim sendo, Lopes e Werneck (s.d.) definem a saúde da popula-
ção negra como um “campo de produção de conhecimento e saberes, atitu-
des, práticas e estratégias de gestão” (p. 9).

É construído e aprimorado a partir da necessidade de compreender


e intervir nos impactos do racismo sobre a saúde das pessoas, em

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particular de negras e negros, de confrontá-los e superá-los como


pressuposto para a consecução de uma sociedade efetivamente de-
mocrática, menos desigual e injusta. (p. 9).

Lopes e Werneck (s.d., p. 10-14) afirmam que até 1990 o movi-


mento de mulheres negras protagonizou marcos importantes para o direito
à saúde no país – o direito à vida e os direitos sexuais e reprodutivos sob
a perspectiva do racismo e do sexismo. As autoras destacam as seguintes
conquistas:
1990: A Campanha Não Matem Nossas Crianças (13 de junho
de 1990) denunciava o extermínio de crianças e jovens negros por grupos
paramilitares ou por policiais nos centros urbanos do país;
1990: Campanha Nacional contra a Esterilização em Massa de
Mulheres Negras, sob liderança do CEAP, no Rio de Janeiro (slogan: “Es-
terilização das Mulheres Negras: Do Controle da Natalidade ao Genocídio
do Povo Negro”);
1991: Grupos religiosos de matrizes africanas se organizam para
o enfrentamento da epidemia de HIV/Aids. Desencadeado pelo Projeto
Odô Yá, coordenado pelo Grupo de Apoio Religiosos contra a Aids/ARCA
do ISER;
1995: Durante a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo,
pela Cidadania e pela Vida, grupos de homens e mulheres negras apresen-
taram várias demandas ao governo federal. Em resposta, em 1996, o que-
sito cor foi incluído nas declarações de nascidos vivos e de óbito e passou
a constar nos sistemas de informação sobre mortalidade (SIM) e nascidos
vivos (SINASC); e introdução do quesito cor nos dados de identificação dos
sujeitos das pesquisas (resolução n. 196/96, que versa sobre as Normas de
Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos);
2000/2001: Participação significativa dos movimentos de mulhe-
res negras, e negros em geral, na III Conferência Mundial de Combate ao
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (África
do Sul, Durban, 2001), ampliando o debate público sobre a questão racial e
o combate ao racismo e às desigualdades;
2001: Investimento na área da saúde pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento/PNUD, da Organização Pan-Americana
de Saúde/OPAS e Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimen-
to Internacional/DFID;

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

2001: Desenvolvimento do documento “Política Nacional de Saúde


da População Negra: uma questão de equidade”, que se estrutura em quatro
componentes: Produção de conhecimento científico, Capacitação dos pro-
fissionais de Saúde, Informação da população, Atenção à saúde;
2001: Programa de Combate ao Racismo Institucional/PCRI:
seu objetivo era fortalecer a capacidade do setor público na identificação,
abordagem e prevenção do racismo institucional e a participação das orga-
nizações da sociedade civil na formulação e no monitoramento das políti-
cas públicas, enfim, no exercício do controle social, em busca da equidade.
(LOPES e QUITILIANO, 2007);
2001: O Ministério da Saúde publicou o Manual de Doenças Mais
Importantes por Razões Étnicas na População Brasileira Afro-Descendente
(dois mil exemplares);
2003: Criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial SEPPIR, que firmou termo de compromisso com o Minis-
tério da Saúde;
2003: Grupos de mulheres e homens negros participam da 12ª.
Conferência Nacional de Saúde e garantem a aprovação de mais de 70 de-
liberações que contemplam a perspectiva racial, de gênero, e geração; além
de apoiarem os princípios da não discriminação em relação à orientação
sexual, filiação religiosa, estado ou condição de saúde, porte de alguma de-
ficiência;
2004: Instituição do Comitê Técnico de Saúde da População Ne-
gra/CTSPN;
2004: O Seminário Nacional de Saúde da População Negra e a
Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica (onde se deliberou pelo
acolhimento das demandas relacionadas ao tratamento de pessoas com
doença falciforme e pelo reconhecimento dos saberes, tradições e práticas
da medicina tradicional e da fitoterapia empreendidas por sacerdotes e
sacerdotisas das religiões afro-brasileiras);
2005: I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(destaca avanços importantes em saúde, para a melhoria da qualidade de
vida da população negra);
2005: Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia (subagenda
Saúde da População Negra, para investimentos e pesquisas). Membros do
CTSPN contribuem para o reconhecimento do racismo e das desigualda-
des sociais como catalisadores do processo de vulnerabilização da população

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negra às DSTs-HIV/Aids; para a inserção da perspectiva racial no Plano


Nacional de Saúde; para a elaboração do estudo sobre diferenciais raciais
em saúde, publicado no Atlas Saúde 2005, dentre outros;
2005: Ocorreram, ainda: a aprovação de uma linha orçamentária
específica para saúde da população negra, para financiar a criação e/ou
consolidação de redes, com especial destaque para a Rede de Religiões Afro-
Brasileiras e Saúde; a ampliação da participação de negras e negros nos
espaços formais de controle social, e a criação de comitês técnicos de saúde
da população negra nos estados e em algumas capitais; a regulamentação da
Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme;
a elaboração da Carta de Direitos dos Usuários da Saúde; a elaboração de
materiais educativos para sensibilização de profissionais de saúde quanto
ao combate ao racismo, a homofobia e as intolerâncias; a garantia de uma
vaga para o movimento social negro no segmento usuários do Conselho
Nacional de Saúde/CNS. O Ministro da Saúde, Agenor Álvares, reconheceu
pública e nacionalmente a existência de racismo institucional no SUS,
durante o II Seminário Nacional de Saúde da População Negra no RJ. O
estabelecimento do dia 27 de outubro como o Dia Nacional de Mobilização
Pró-Saúde da População Negra. A eleição da AMNB (suplentes CONEN e
CNAB), em que foi eleita representante do movimento negro no Conselho
Nacional de Saúde para o período 2006/2009. O Conselho Nacional de
Saúde aprova a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra/PNSIPN;
2007: Realização da 13ª. Conferência Nacional de Saúde; solidifi-
ca-se a compreensão da Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra/PNSIPN como um dos instrumentos de consolidação da unicidade
do sistema e da consecução dos princípios de integralidade e equidade na
promoção e na atenção à saúde;
2008: Instalação, no Conselho Nacional de Saúde, da Comissão
Intersetorial de Saúde da População Negra (Resolução n. 393, de 22 de fe-
vereiro de 2008), formada por gestores das três esferas de gestão – Ministé-
rio da Saúde (MS), CONASS (Conselho Nacional de Secretários de Saúde)
e CONASEMS (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde),
profissionais de saúde e ativistas do movimento de mulheres negras, mo-
vimento negro, LGBT, de portadores de patologias. Esta comissão tem por
função assessorar o CNS no monitoramento da PNSIPN.
Adicionalmente, destacamos em 2003 a criação da Rede Nacional
de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, em São Luís do Maranhão, durante o

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

II Seminário Nacional Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. E, ainda, em 2009


a publicação, no Diário Oficial, da Portaria 992 do Ministério da Saúde, que
oficializa a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra/PN-
SIPN (CRIOLA, 2010, p. 17). E, em 2010, dois episódios também marca-
ram a luta dos movimentos negros por saúde e melhores condições de vida:

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde/CONA-


SEMS afirma publicamente seu compromisso com a equidade em
saúde e divulga a Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra/PNSIPN no seu XXVI Congresso Nacional. (CRIOLA, 2010,
p. 17).
O Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288), que inclui em seu texto
a PNSIPN, é aprovado. (CRIOLA, 2010, p. 17).

Finalmente, podemos concluir observando que a cronologia da


luta contemporânea das mulheres negras pela saúde apresentada acima –
seja no contexto de luta dos movimentos de mulheres, seja dos movimentos
negros – nos permite vislumbrar as bases para a emergência da linha de
saúde da mulher negra.
Nos últimos anos, as mobilizações políticas para a consolidação
do campo de saúde da população negra contribuíram para o fortalecimento
do trabalho em rede. Várias articulações nacionais e locais têm se dedicado
especificamente ao avanço dessas discussões e ao controle social das políti-
cas públicas de saúde, como o foco no enfrentamento do racismo e promo-
ção da equidade. Algumas das principais redes são: Rede Lai Lai Apejo –
Aids e População Negra (2002), Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras
e Saúde (2003), Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População
Negra (2007), e Sapatá – Rede Nacional de Promoção e Controle Social de
Saúde das Lésbicas Negras (2008).
Assim, a articulação, em rede, de diferentes e variados grupos so-
ciais e organizações da sociedade civil tem sido uma das mais importantes
estratégias para o acesso à saúde pela população negra. Também o advocacy
continua sendo uma outra estratégia fundamental de garantia do acesso à
saúde por esta população.

INTERSECCIONALIDADES,
192 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

A SAÚDE DA MULHER NEGRA:


CONCEITUANDO UM NOVO
MODELO DE COMPREENSÃO

Nas reflexões anteriores, vimos que o surgimento da linha de saú-


de da mulher negra já encontra um caminho propício ao seu florescimento,
fornecido tanto pelo movimento de mulheres pela saúde e outros direitos,
quanto pelo desenvolvimento da ideia de saúde da população negra enquan-
to instrumento e ação política e conceito. Estas experiências anteriores vão
permitir que o movimento de mulheres negras qualifique melhor os indica-
dores em saúde das mulheres negras, bem como os efeitos da discriminação
racial e de gênero sobre a saúde e as condições de vida dessas mulheres.
Fátima Oliveira (1998) enfatiza que a proposta de saúde da mu-
lher negra buscava um novo enfoque de compreensão. A autora revela que
as mulheres negras latino-americanas e caribenhas que participaram do
painel organizado pela ONG de mulheres Geledés sobre a situação das mu-
lheres negras em Mar del Plata estavam mobilizadas para discutir na ONU,
em Pequim, a saúde da mulher negra sob a perspectiva do recorte racial,
apontando para os efeitos deste na produção de enfermidades, e construin-
do uma reflexão sobre o racismo e as doenças raciais/étnicas. As ativistas
passaram a adotar esta mesma postura política junto às reuniões estaduais
e municipais brasileiras preparatórias para os encontros mundiais.
No entanto, segundo Oliveira (1998), a discussão sobre a saúde
da mulher negra já existia durante a elaboração do PAISM, mas se apre-
sentava como “uma discussão tímida e incipiente no Movimento Feminista
[...], e as mulheres negras ainda não possuíam uma discussão mais elabora-
da” (p. 43). Sobre este período embrionário da criação de uma concepção
de saúde voltada para as mulheres e a população negra em geral, a autora
relatava (quando da elaboração de seu livro no final da década de 90):

Ainda não atingimos a compreensão da dimensão das diferenças e


diferenciais raciais/étnicos, da opressão de gênero e do racismo na
manutenção, recuperação e perda da saúde, em uma sociedade clas-
sista. As controvérsias são tantas e tamanhas, que o quesito cor – a
identificação racial – é um problema/desafio nos meios científicos,
entre profissionais, serviços, formuladores e implementadores das
políticas de saúde. (p. 43).

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 193
A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

E ela continua:

Em meio a estas polêmicas os dados sobre a saúde da mulher ne-


gra brasileira são incipientes e a maioria das nossas “especificidades”
(condições biológicas e doenças) são conhecidas por nós através dos
dados de outros países. Indicadores de saúde que consideram cor ou
raça/etnia são absolutamente necessários para que possamos avaliar
a qualidade de vida dos grupos populacionais raciais ou étnicos; de
que adoecem, como adoecem e de que morrem. Ou seja, nos forne-
cem dados mais confiáveis e reais da morbidade e da mortalidade.
(p. 43-44).

Oliveira (1998) demonstra alguns exemplos acerca da importân-


cia e da necessidade em considerarmos o recorte racial em saúde, tais como
a comprovada alta de incidência de miomas entre as mulheres negras, a
existência da anemia falciforme, que é a doença genética mais comum entre
os descendentes de africanos, e a hipertensão arterial, que é a causa direta
ou indireta de muitos óbitos no Brasil e tem uma prevalência muito alta en-
tre a população negra, sobretudo entre as mulheres. Deste modo, a autora
defende uma postura mais colaborativa e preventiva por parte do campo
médico neste processo. Ela afirma:

Nos interessa que a epidemiologia e a medicina como um todo tri-


lhem o caminho da tentativa e do esforço, de buscar incorporar ao
seu arsenal de análise as diferenças biológicas e as desigualdades so-
ciais, oriundas da opressão de gênero, da opressão racial/étnica e
da inserção nas classes sociais. Como dizem Mary Basset e Nancy
Krieger: “[...] está bastante evidente que precisamos de novos enfo-
ques para compreender a interpenetração do racismo, das relações
de classe e saúde.” (p. 44).

Portanto, a autora nos apresenta grandes contribuições para com-


preendermos a constituição do campo da saúde da mulher negra. Utilizan-
do mais uma vez suas próprias palavras, sua proposta fomentava a ideia de
que as mulheres negras deveriam combater a discriminação e os controles
médicos abusivos sobre a saúde da população negra e das mulheres, ali-
mentados pelas novas teorizações e reciclagens do racismo científico e do
determinismo biológico que emergem no século XX, “fazendo política e
fazendo ciência” (p. 45).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

Segundo Werneck (s.d.), a saúde da mulher negra:

É uma numa linha de conhecimento e ação que se origina no reco-


nhecimento da multiplicidade de fatores que agem sobre os proces-
sos de saúde/doença, como também da multiplicidade de situações
favoráveis e desfavoráveis que são vividas pelas mulheres negras bra-
sileiras. (p. 14).

Werneck enfatiza ainda que esta linha se delineia a partir:

Do cruzamento de relações e dilemas sociais, junto a aspectos cul-


turais, econômicos, conjunturais ou estruturais. [...] Incorporando
saberes oriundos de diversas áreas de conhecimento, ao lado de tra-
dições e culturas diversas que influenciam a definição do que uma
pessoa é, seus papéis sociais, seu grau de aceitação e de poder de
agenciamento das várias realidades. (p. 14).

O conceito de interseccionalidade, definido como o “cruzamento


dinâmico de múltiplos fatores”, representa um elemento-chave no deline-
amento da linha de saúde da mulher negra, pois irá nos permitir “deter-
minar o grau de vulnerabilidade de mulheres e homens, negros ou não,
na sociedade brasileira” (p. 14). Deste modo, a linha se fundamenta nas
informações e no conhecimento da biologia, da medicina e da sociologia,
bem como das tradições afro-brasileiras, como fontes que auxiliam na “ela-
boração de práticas que visem as necessidades de mulheres negras” (p. 14).
Concluindo, podemos afirmar que o amadurecimento da ação
política das mulheres negras na área da saúde permitiu a criação e o de-
senvolvimento dos campos de conhecimento da saúde da população negra
e das mulheres negras, em especial a partir das décadas de 80 e 90. Este
movimento em âmbito nacional e internacional trouxe para o centro das
discussões do governo e da sociedade civil a necessidade de se pensar a saú-
de para além da dimensão biológica, agregando as influências de problemá-
ticas sociais, como as desigualdades raciais/étnicas e de gênero no processo
saúde-doença e cura. O ativismo destas mulheres protagonizou também uma
série de ações com importante recorte racial na área de saúde, dentre elas: a
criação do Projeto Nacional de Saúde da Mulher Negra (PNSMN)/Grupos de
Autoajuda, Atlanta, Geórgia, EUA, fundado em 1981, que “objetivava educar
e informar sobre os problemas de saúde e as necessidades da mulher negra”

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

(OLIVEIRA, 1998, p. 45); o I Congresso Nacional sobre Questões de Saúde


da Mulher Negra, organizado pelo PNSMN no Spelman College, Atlanta,
Geórgia, em 1983; no Brasil houve a organização da Campanha contra a
Esterilização em Massa de Mulheres, em 1991, desencadeada por setores
do Movimento Negro, que denunciava que um dos grupos mais vitimados
era o de mulheres negras; a elaboração da Declaração de Itapecirica da Ser-
ra das Mulheres Negras Brasileiras, resultante do Seminário Nacional Polí-
ticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras, organizado pela ONG
feminina negra Geledés, em preparação para a Conferência Internacional
de População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994 (OLIVEIRA, 1998, p.
48); e as ações em saúde das diversas ONGs feministas negras e de outros
setores do movimento negro que se multiplicaram pelo país.
Assim, podemos compreender que a promoção da saúde da mu-
lher negra tem revelado dimensões da discriminação racial e de gênero que
eram invisíveis aos modelos de análise e produção de conhecimento no
campo da saúde existentes até então. E esta tarefa fundamental de desvelar
as iniquidades em saúde se configura como uma das principais ações do
movimento de mulheres negras até os dias atuais, tanto no plano da ação
política quando do ponto de vista da produção de conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
OS EFEITOS SIMBÓLICOS E MATERIAIS
DAS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS
E DE GÊNERO NA SAÚDE
DAS MULHERES NEGRAS

A conceituação da saúde das mulheres negras tem nos permitido,


portanto, compreender e identificar que este segmento é atingido por
graus diferenciados de violência e preconceito, resultantes da presença do
racismo, do sexismo e da pobreza, que agem de forma associada. As mulheres
negras identificaram ainda que, em conjunto com o racismo, o sexismo e a
lesbofobia têm prejudicado seu exercício de direitos de cidadania e o acesso
às políticas públicas. Entre esses prejuízos figura o enfrentamento do racismo

INTERSECCIONALIDADES,
196 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

institucional2 e do sexismo3 difundido pelas instituições. Tomaremos como


exemplo a situação de discriminação racial e de gênero enfrentada pelas
mulheres negras no campo da saúde sexual e reprodutiva.
Ao estudar a saúde da mulher negra, percebemos que tem se di-
fundido no imaginário das instituições de saúde e de outras, como a escola
e a mídia, um conjunto de discursos e estereótipos racistas e sexistas acerca
desse grupo de mulheres, cujos efeitos são muito prejudiciais e podem levar
ao adoecimento e/ou à morte. Um dos efeitos mais contundentes e perver-
sos deste processo tem sido a produção de imagens estereotipadas das mu-
lheres negras, o que pode ser exemplificada na charge apresentada a seguir,
a qual foi veiculada em 16/02/2007 pelo jornal Correio Lageano, em Lages,
município do planalto serrano de Santa Catarina.4 O autor do desenho que-
ria expressar sua opinião no contexto de intensos debates sobre a pretensão
de se reduzir a maioridade penal no país. Ele demonstra visivelmente que
mulheres negras seriam as responsáveis pelo aumento da criminalidade,
porque dão à luz crianças potencialmente delinquentes. Como podemos
notar, a imagem revela ainda a existência de um determinismo biológico,
uma crença compartilhada por muitos na sociedade brasileira que sustenta
a ideia de que os meninos negros são criminosos desde seu nascimento.
Esta crença tem causado severos danos à vida e à saúde dessas mulheres,
porque incita a violência contra elas e incentiva a sociedade a elaborar me-
canismos de controle sobre a sua liberdade sexual e reprodutiva.

2
“A incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado ou
profissional às pessoas devido à sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou
detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação
através de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que
prejudicam minorias étnicas.” (Commission for Racial Equality. The Stephen Lawrence
Inquiry. Implications for Racial Equality, 1999, p. 2).
3
“O sexismo é a ideologia que estrutura o patriarcado. Através dele, atitudes e políticas têm
sido elaboradas de modo a conferir o privilégio masculino tanto na condução da vida pública
quanto da vida privada. Às mulheres restariam as posições mais inferiores, traduzidas em
menor poder tanto na condução de sua vida sexual e afetiva, quanto no acesso a posições
de liderança e de reconhecimento no mercado de trabalho e na esfera política. Ainda hoje,
apesar das décadas de lutas das mulheres, o sexismo mantém sua força e ainda limita a
liberdade da maioria das mulheres.” (WERNECK, Jurema; DACACH, Solange. Cadernos
Criola 2: saúde da mulher negra: para gestores e profissionais de saúde, 2004.)
4
O responsável pela charge e o jornal foram acusados de Crime de Racismo (ARTIGO 20,
§ 2º, DA LEI N. 7.716/89) e levados a julgamento. Ver detalhes em: http://www.espacovital.
com.br/consulta/noticia_complemento_ler.php?id=2777&noticia_id=29655.

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 197
A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Frequentemente a mídia brasileira nomeia as mulheres negras e


suas famílias como as raízes do problema do crescimento da violência, da
pobreza, do subdesenvolvimento, de doenças epidêmicas, dentre outros
problemas de ordem social e econômica (RAMOS, 2002). Esses discursos
sugerem ao governo brasileiro que crie programa e políticas de controle
para prevenir que mulheres pobres, em particular as não brancas, tenham
muitos filhos, de modo que o país apresenta uma longa história de viola-
ção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras, valendo-se
de políticas e programas de saúde para cercear a autonomia das mulheres
no que se refere aos seus corpos e à sexualidade, a exemplo dos progra-
mas de planejamento familiar e os incentivos a médicos para que prati-
quem a esterilização feminina em massa. Assim, as tentativas de contro-
lar a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres negras se configuram
como um dos elementos que favorecem o surgimento do movimento de
mulheres negras, com destaque para as organizações não governamentais
e as ONGs.
O controle das escolhas reprodutivas das mulheres negras ocorre
desde o período da escravidão, mas no Brasil esta questão se intensifica e se
transforma em debate público entre os anos 1960 e 1980. Durante este período,

INTERSECCIONALIDADES,
198 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

o Estado Brasileiro intensificou seus esforços de controle da natalidade sobre


as mulheres, sobretudo as não brancas e pobres, alegando a necessidade de se
conter o crescimento da população por causa da preocupação mundial com
o “boom” demográfico, e devido também à pressão de países desenvolvidos
para frear o crescimento populacional.
Assim, uma série de imagens estereotipadas de mulheres negras
continua até os dias atuais a ser utilizada para classificá-las. Para refletir
sobre os efeitos dessas imagens, utilizamos um conceito da autora Patricia
Collins (2000), denominado “imagens de controle” (controlling images). A
autora define como imagens de controle as representações de mulheres ne-
gras socialmente construídas e que foram criadas por ideologias dominan-
tes (a exemplo do período da escravidão) para perpetuar a subordinação e
exploração delas. Assim, as mulheres negras são vistas como sexualmente
incontroláveis e promíscuas (frequentemente associadas à figura da prosti-
tuta), e como mães ruins, negligentes e preguiçosas,
Estas formas dominantes de representação das mulheres negras
brasileiras como mães ruins, negligentes e preguiçosas se intersectam com
as concepções de sexualidade e reprodução.
É importante percebermos aqui que a sexualidade e a reprodu-
ção são categorias que se constituem em ‘sites’ (espaços) para compreender
a intersecção de racismo, sexismo, classismo e heterossexismo, o que nos
permite também analisar a situação de subordinação e exploração das mu-
lheres negras imposta pelo poder estatal e pelas instituições capitalistas.
Os estereótipos das mulheres negras como sexualmente incon-
troláveis e promíscuas e como mães ruins, negligentes e preguiçosas
têm se alimentado e se propagado através dos discursos, das práticas e
das representações construídas a partir das concepções de sexualidade
e reprodução vigentes na sociedade brasileira, as quais se fundamentam
num modelo pautado nos valores do branco europeu, da cultura capita-
lista, de classe média, do masculino, da heterossexualidade e da família
nuclear.
A influência dessas representações negativas deve ser avaliada
com cuidado e atenção, já que se constituem como sérios e críticos impac-
tos no que se refere ao bem-estar de mulheres negras, em particular das
mães negras, antes, durante e depois do período da gravidez, a exemplo dos
casos apresentados a seguir, denunciados por jornais de circulação nacio-
nal.

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NA ANÁLISE ESPACIAL
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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Caso 1: “DEPOIS DE QUATRO FILHOS, Adriene decidiu parar:


fez laqueadura para evitar novos filhos na violenta rotina do Alemão”.

(Fonte: O Globo, 11/04/2007, p. 13).

INTERSECCIONALIDADES,
200 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

Caso 2: “Do ‘marrom-canela’ ao ‘pêlo duro’:


ofensas e maus-tratos”.

(Fonte: Jornal do Brasil, 26/08/2001).

Tabela organizada com base na publicação de Werneck (2003). Desigualdade Racial em


Números 2: Coletânea de Indicadores das Desigualdades Raciais e de Gênero no Brasil. Ed.
Criola. Apoio: Fundação Heinrich Boll, 2003.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Caso 3: “Até na hora do parto negra é discriminada”

(Fonte: Folha de S. Paulo, 26/05/2002).

Podemos notar, a partir destes casos, os efeitos materiais e sim-


bólicos da discriminação racial e de gênero na vida das mulheres negras.
Percebemos também que esta situação se torna ainda mais crítica quando
se trata da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos deste segmento femi-
nino. No imaginário cultural e social brasileiro, as mulheres negras grávi-
das têm sido com frequência associadas à ideia de que elas são sexualmente
imorais e negligentes com a maternidade. Esse imaginário coloca as mulhe-
res negras em situação de vulnerabilidade.
Além dos casos apresentados, exemplos dessas intersecções e re-
sultados negativos relativos à vida dessas mulheres podem ser observados
nas altas taxas de mortalidade e adoecimento da população feminina negra
(caso emblemático da mortalidade materna), nas abusivas ações de esteri-
lização e práticas de cesárias e histerectomia (procedimento de retirada do
útero em caso de mioma uterino) em mulheres negras, e na negligência na

INTERSECCIONALIDADES,
202 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

Tabela organizada com base na publicação de Werneck (2003). Desigualdade Racial em


Números 2: Coletânea de Indicadores das Desigualdades Raciais e de Gênero no Brasil. Ed.
Criola. Apoio: Fundação Heinrich Boll, 2003.

tomada de decisões e ações diante da rápida e avassaladora propagação tan-


to do câncer de mama quanto da epidemia de HIV/Aids entre este grupo de
mulheres, dentre outras situações dramáticas.
Outro aspecto importante deste processo complexo de discri-
minação que produz vulnerabilidades para a saúde das mulheres negras
diz respeito à não inclusão de suas imagens em campanhas de prevenção e
educação em saúde. Cartazes como os apresentados a seguir são ainda rari-
dades, e eles foram produzidos por força da pressão e do envolvimento dos
movimentos negros em políticas e programas públicos na área da saúde.

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Cartaz produzido pelo Ministério da Saúde para conscientizar


a população negra brasileira sobre a epidemia de HIV/Aids.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

Campanha contra a violência doméstica e de gênero no estado


do Rio de Janeiro. Lei Maria da Penha, criada em agosto de 2008.

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A SAÚDE DA MULHER NEGRA SOB A PERSPECTIVA DE UM NOVO MODELO DE COMPREENSÃO

Deste modo, as circunstâncias apresentadas aqui demonstram


que os estereótipos raciais e de gênero, separados e em conjunto, contri-
buem para a desumanização das mulheres negras e, em consequência, au-
mentam potencialmente a vulnerabilidade delas a inúmeros problemas de
saúde, à intolerância, à discriminação e à violência psicológica e física nos
serviços de saúde, na escola, na mídia e no interior da sociedade como um
todo. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras no
Brasil têm sido objeto de controle desde a escravidão. As políticas de con-
trole, apesar de terem sido denunciadas pelos movimentos negros, ainda
persistem nas ações e instituições públicas, em especial na área da saúde.
A aliança entre os campos médico e jurídico para regulamentar a saúde da
população negra faz parte da história da organização social e política do
país, constituindo também os principais planos de desenvolvimento socio-
econômico nacionais. Assim, os discursos e estereótipos que perduram até
os dias atuais e alimentam a discriminação racial e de gênero contra as mu-
lheres negras na área da saúde foram construídos social e culturalmente,
atualizando-se a cada período histórico novo, e não permitindo que essas
mulheres deixem de ser vistas como objetos da repressão estatal. Como de-
monstrado anteriormente, já conhecemos os efeitos deste processo. A po-
pulação negra tem sido um dos segmentos sociais brasileiros mais afetados
pelas desigualdades na área da saúde, ficando exposta a uma série de fatores
de risco social cujos resultados podem levar ao adoecimento e/ou à morte.
Esta realidade pode ser evidenciada quando examinamos as situações de
desvantagens socioeconômicas, políticas e culturais enfrentadas por este
grupo, as quais produzem um conjunto de circunstâncias desfavoráveis em
termos de acesso a direitos sociais, tais como saúde, alimentação, moradia,
lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e
assistência em situação de desamparo.
Neste artigo, buscamos refletir sobre a concepção da linha de saú-
de da mulher negra como um campo de conhecimento e ação política, e a
respeito da relevância desta para as lutas do movimento de mulheres ne-
gras no enfrentamento das desigualdades em saúde no Brasil. Procuramos
inicialmente contextualizar este processo de construção, demonstrando as
influências do movimento de mulheres e dos movimentos negros, em es-
pecial das ativistas e feministas. Em seguida, discutimos a linha de saúde
da mulher negra enquanto um novo modelo de compreensão dos efeitos
das discriminações raciais e de gênero em saúde. E, por fim, apresentamos
alguns exemplos dos efeitos simbólicos e materiais que as discriminações

INTERSECCIONALIDADES,
206 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SÔNIA BEATRIZ DOS SANTOS

raciais e de gênero têm acarretado para a saúde das mulheres negras no


Brasil. Concluímos esta reflexão enfatizando que a saúde da mulher negra,
em particular a saúde sexual e reprodutiva, tem se constituído em ‘sites’ de
produção de conhecimento teórico-metodológico e de ação política. Esta
linha de pensamento e ação representa um dos maiores legados do movi-
mento de mulheres negras para a sociedade brasileira, e para o mundo.

REFERÊNCIAS

COLLINS, Patricia H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the


politics of empowerment. New York: Routledge, 2000.
CRIOLA. Saúde da população negra: passo a passo - defesa, monitoramento e
avaliação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Criola e Fundação Heinrich Böll,
2010.
LOPES, Fernanda; WERNECK, Jurema. Mulheres negras: um olhar sobre as lutas
sociais e as políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Criola e Fundação Heinrich
Böll, [s.d.].
OLIVEIRA, Fátima. Oficinas: mulher negra e saúde. Belo Horizonte: Mazza, 1998.
RAMOS, Silvia. Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
ROBERTS, Dorothy. Killing the black body: race, reproduction, and the meaning of
liberty. New York: Pantheon, 1997.
SANTOS, Sônia B. Brazilian black women’s NGOs and their struggles in the areas
of sexual and reproductive health. University of Texas at Austin, PhD dissertation,
2008.
WERNECK, Jurema. Desigualdade Racial em Números 2: Coletânea de Indicadores
das Desigualdades Raciais e de Gênero no Brasil. Ed. Criola. Apoio: Fundação
Heinrich Boll, 2003.
WERNECK, Jurema; DACACH, Solange. Cadernos Criola 2: saúde da mulher
negra: para gestores e profissionais de saúde, 2004.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 207
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS
SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA DE REVISTAS
ESPANHOLAS
Xosé Manuel Santos-Solla

***

INTRODUÇÃO

A geografia espanhola da segunda metade do século XX esteve


muito condicionada pelas consequências derivadas da guerra civil (1936-
1939) e a posterior ditadura que se prolongou até o ano de 1975. O conflito
bélico freou os avanços disciplinares de tal maneira que muitos dos renova-
dores da geografia morreram, foram para o exílio ou tiveram que se adaptar
a uma nova situação muito pouco estimulante para a inovação. No âmbito
acadêmico universitário, a geografia procura refúgio no marco do regiona-
lismo francês, seguindo uma tradição rapidamente superada pelos novos
enfoques que desde os anos 1960 enriqueceram a geografia anglo-saxã. Em
todo caso, a formação dos estudantes ancorava-se fundamentalmente na
preparação de docentes para o ensino secundário.
Ganhar o tempo perdido uma vez que se recuperam as liberda-
des não é nunca uma missão fácil. As rígidas estruturas dos departamentos
nas universidades são frequentemente o primeiro dos problemas, e a re-
novação do professorado segue algumas linhas hierárquicas preestabeleci-
das. Contudo, o crescimento demográfico espanhol, a abertura política e a
emergência das classes médias favorecem um forte aumento do número de
estudantes que chegam à universidade. Esta instituição recebe novo aluna-
do que tanto está influenciado em grande medida pelo ambiente cultural e
político da transição espanhola, como também pelos movimentos sociais
que agitam o mundo ocidental, como é o feminismo, o ecologismo ou o
pacifismo. Portanto, na década de 1970, ainda com a força das inércias é
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

possível encontrar importantes brechas pelas quais entram novos ventos na


geografia espanhola.
Neste contexto, a geografia do gênero, que já tinha um caminho
traçado no mundo anglo-saxão desde a década de 1970, acompanhando
os postulados renovadores da disciplina, começará a aparecer timidamente
na Espanha uns anos mais tarde. García-Ramón (1989) destaca a geógrafa
madrilense García-Ballesteros como a pioneira neste campo, com um ar-
tigo aparecido no ano de 1982. Nos anos seguintes, outras autoras, desig-
nadamente de Madri e Barcelona, vão fazendo novos achegamentos, mas a
um ritmo muito baixo. Vão-se marcando já linhas de pesquisa, assim como
autoras e universidades que concentraram boa parte das futuras investiga-
ções nesta área.
Ortega-Valcárcel (2000) destaca que a geografia feminista na Es-
panha tem três características relevantes: é objeto de um reduzido número
de profissionais; é desenvolvida fundamentalmente por mulheres; e cen-
tra-se sobretudo nos âmbitos rural e agrário. Também fala este autor do
seu dinamismo, assim como da sua produção teórico-metodológica, marca
diferencial a respeito do conjunto da geografia espanhola.
Por sua parte, a geografia das sexualidades tem um desenvolvi-
mento que demora mais no tempo, quer no âmbito anglo-saxão, quer no
espanhol. As primeiras referências são as de Lauria e Knopp (1985), que
depois irão se multiplicando na década de 1990. Na Espanha, a primeira
achega foi no ano 2000, ainda que encontremos alguma publicação em re-
vistas ou livros de caráter mais local (SANTOS-SOLLA, 1996, 1998). De
qualquer maneira, vemos como foi notória a ausência da sexualidade na
investigação geográfica espanhola.

PANORÂMICA DA GEOGRAFIA DO GÊNERO


E DAS SEXUALIDADES NA ESPANHA

Nesta seção queremos traçar uma breve panorâmica da situação


em que se encontra a geografia do gênero e das sexualidades na Espanha.
Já adiantamos que, relativamente a esta última, pouco podemos afirmar
por enquanto; encontramo-nos praticamente ante um ermo, de modo que

INTERSECCIONALIDADES,
210 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

é muito difícil fazer qualquer análise, por causa da alarmante ausência de


informações. Quais são as razões para explicar este vazio? Muito provavel-
mente misturam-se motivações diferentes, de caráter pessoal e acadêmico:
o medo de as pessoas serem identificadas na sua orientação sexual pelo
simples fato de escreverem sobre certas sexualidades; a crença de que se
trata de uma pesquisa pouco séria e irrelevante; ou o desconhecimento e
falta de formação.
Seja como for, é difícil falar do desenvolvimento de uma geografia
das sexualidades na Espanha. Deixando de lado as revistas, que analisare-
mos numa seção própria, pouco é o que se pode falar. Sabemos da existên-
cia de trabalhos de pesquisa em universidades de Madrid, Saragoça, Las
Palmas ou Santiago de Compostela, entre outras que estão a ser desenvolvi-
das ou já foram terminadas. Correspondem fundamentalmente a investiga-
ções por parte de pessoas que acabam de concluir os estudos: dissertações
de mestrado ou trabalhos de conclusão de curso, mas que muitas vezes não
dão continuidade à sua carreira acadêmica.
Também localizamos um ou outro geógrafo escrevendo sobre
geografia e sexualidades em revistas não estritamente geográficas, mas
próximas a áreas de pesquisa muito transversais, como é o turismo. Seria
o caso de Dóniz-Páez (2013). Do mesmo modo, alguns manuais e livros
de geografia incorporam timidamente a perspectiva da sexualidade, com
destaque para a obra coordenada por Nogué e Romero (2006)1, cuja parte IV
é dedicada a “O Corpo”, com três capítulos (Bru, Prats e Santos), nos quais,
de um jeito ou outro, a sexualidade está presente. Também a perspectiva
geográfica é refletida de forma muito minoritária em livros que tratam da
questão das sexualidades (SANTOS-SOLLA, 2006). Finalmente, podemos
fazer referência aos congressos europeus de geografia das sexualidades,
com duas edições, uma na Bélgica e a outra em Portugal. No caso de Lisboa
(2013), a vizinhança com a Espanha em princípio é favorável a uma maior
assistência de pesquisadores espanhóis. A revisão do livro de trabalhos
apresentados permite confirmar uma presença mais ou menos destacada
de pessoas vinculadas com universidades espanholas. Além de um geógrafo
na comissão científica, encontramos outras 11 pessoas com participação
ativa. Ainda que no citado livro não figure a formação acadêmica de cada
uma delas, uma procura na internet, assim como o conhecimento pessoal,

1
É bem representativo o título do livro, Las Otras Geografías, como referência àqueles
temas não presentes na geografia acadêmica.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 211
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

permite afirmar que tão somente uma era geógrafa2, evidenciando mais
uma vez o escasso peso que o estudo das sexualidades tem na geografia.
Relativamente ao gênero, o seu protagonismo é maior na geogra-
fia espanhola. De fato, não é preciso fazer uma procura como no caso da
sexualidade. Entre outros autores, Ortega-Valcárcel (2000), em sua obra de
referência Los Horizontes de la Geografía, dedica um capítulo ao assunto, e
assinala que, sendo certo que se desenvolveu em datas remotas, esse desen-
volvimento foi limitado. Todavia, a sua visibilidade fez com que, no infor-
me La Investigación Geográfica en España (1990-2012) (LASANTA-MAR-
TÍNEZ e MARTÍN-VIDE, 2013), a geografia do gênero apareça como uma
das subdisciplinas da geografia. Como este último estudo coincide com as
datas temporais do nosso trabalho, utilizaremos os seus dados para a con-
textualização que vamos fazer.
Mas primeiro gostaríamos de incorporar os trabalhos pioneiros
anteriores ao ano de 1990. É na década de 1980 que encontramos as pri-
meiras referências à geografia do gênero na Espanha. Costuma-se dizer que
a obra inicial foi de García- Ballesteros (1982), professora da Universidade
Complutense de Madri; a ela se seguiram outras, como Sabaté-Martínez
(1984a, 1984b) e García-Ramón (1985a, 1985b), que abriram o caminho.
Estes trabalhos serviram não apenas para evidenciar o papel da mulher
relativamente à geografia, mas também para abrir as janelas aos novos ven-
tos chegados do mundo anglo-saxão. É relevante destacar o papel desem-
penhado por revistas de grande importância no âmbito acadêmico, como
Documents d’Anàlisi Geogràfica e Anales de Geografía de la Universidad
Complutense.
Também desta primeira etapa cabe salientar a obra dirigida por
García-Ramón (1985b), Teoría y Método en la Geografía Humana Anglosa-
jona, que tem uma ampla difusão na geografia espanhola e que incorpora
algum capítulo de geografia do gênero, contribuindo para a sua visibilida-
de. Igualmente, esta mesma autora, junto com Castañer e Centelles, fez em
1988 uma projeção exterior ao publicar na prestigiosa revista Professional
Geographer um artigo intitulado “Women and Geography in Spanish Uni-
versities”.

2
Foram consideradas todas as pessoas adscritas a uma universidade espanhola, ainda
que elas tivessem outra nacionalidade. Identificaram-se quase que todos os nomes, com a
exceção de dois.

INTERSECCIONALIDADES,
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*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

Chegamos finalmente ao ano de 1989, que é quando pela primei-


ra vez uma revista de geografia vai editar um volume temático sobre a ques-
tão do gênero. É o número 14 de Documents d’Anàlisi Geogràfica (DAG),
publicação dependente então do Departamento de Geografia da Univer-
sidade Autônoma de Barcelona, e que, como veremos, seguirá a ser a refe-
rência dos estudos de gênero na geografia espanhola. Na realidade, o citado
volume tem a sua origem no seminário Agricultura, Gênero e Espaço, or-
ganizado dois anos antes. Portanto, o conteúdo é marcadamente agrário e
rural, dando início, assim, a uma orientação de gênero muito desenvolvida
na geografia espanhola. Mas também há achegamentos teóricos relevantes,
como os de Bowlby et al. (1982)3 e Monk e Hanson (1989).
A partir do ano 1990, o informe produzido pela Asociación de
Geógrafos Españoles elaborou uma interessante síntese evolutiva dos tra-
balhos na área de gênero e, além disso, trouxe informações amplas a partir
de diferentes bases de dados de pesquisas. Assim, analisa, por exemplo, os
projetos de I+D. Obter as informações resulta complexo, porque são mui-
tos os âmbitos que financiam projetos de pesquisa, ainda que estes sejam
apenas competitivos; são as comunidades autônomas, a União Europeia,
diferentes ministérios, etc. Por isso, o estudo limita-se ao chamado Plano
Nacional, que é o mais clássico dos programas financeiros de I+D. O autor
deste informe, Esparcia (2013), diz que a geografia do gênero ocupa uma
posição quase que residual e muito vinculada com a Universidade Autôno-
ma de Barcelona; de fato, dos 272 projetos analisados, apenas três, ou seja,
1,1%, estariam relacionados com a geografia social e do gênero. O autor
chama atenção para o escasso peso da temática, considerando a relativa
força que, segundo ele, tem a geografia do gênero na Espanha.
No capítulo dedicado aos grupos de investigação, os seus autores
(OLCINA-CANTOS e LOIS-GONZÁLEZ, 2013), quando detalham as te-
máticas desenvolvidas, citam apenas dois grupos relativos aos estudos de
gênero, mostrando, pois, uma enorme debilidade.4 À medida que o informe
vai incorporando novos aspectos da investigação, torna-se mais evidente o
escasso peso que tem a geografia do gênero. Por exemplo, nas monografias,
são citadas apenas 11, cifra muito baixa em relação ao volume de livros

3
O artigo de Bowlby et al. (1982) foi posteriormente traduzido e apareceu no livro de
García-Ramón (1985b) Teoría y Método en la Geografía Anglosajona. Isto acontece com
outros artigos que na realidade são traduções de originais em inglês.
4
Todavia, merece destaque que o primeiro já foi criado no ano de 1987, segundo relata
Cànoves-Valiente (1999).

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 213
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

publicados. Esse reduzido protagonismo vai se repetir em teses de doutora-


mento, em capítulos de livros ou em comunicações a congressos gerais de
geografia, não chegando a 1%.
Definitivamente, a investigação espanhola em geografia do gêne-
ro é bastante pobre em termos quantitativos, apesar de ter sido introduzida
no âmbito acadêmico já há bastante tempo, ou seja, no princípio da década
de 1980. Em seguida, vamos nos concentrar mais neste aspecto, fazendo
uma análise bibliométrica a partir das revistas geográficas editadas na Es-
panha. Nosso objetivo é avaliar a importância que os estudos de gênero e
sexualidade têm nessas publicações periódicas. Escolhemos as revistas por-
que elas parecem constituir o meio de difusão de pesquisa mais valorado
e mais popular. De fato, nos últimos anos, o sistema de sexênios5 passou
a outorgar às revistas um protagonismo muito relevante, deixando os con-
gressos e mesmo os livros em lugar secundário.

METODOLOGIA

Como indica o título deste trabalho, o objetivo é analisar a pes-


quisa sobre geografia do gênero e das sexualidades nas revistas de geografia
da Espanha entre os anos 1990 e 2013. A escolha das revistas já foi apontada
no segmento anterior. Entendemos que elas constituem o meio de difusão
mais valorado, popular e versátil dentre todos os que existem na atualidade,
além de serem mais acessíveis, e com uma periodicidade regular, diferentes
de outros veículos como teses, dissertações e livros.
Relativamente, os livros apresentam uma série de limitações. O
número de obras editadas é muito menor. Lembremos que o informe ela-
borado pela Asociación de Geógrafos Españoles (LASANTA-MARTÍNEZ
e MARTÍN-VIDE, 2013) faz referência, para o período 1990-2012, a ape-
nas 11 com a temática de gênero. A isto agregamos mais dois problemas: as

5
Os sexênios constituem um sistema de avaliação da qualidade dos pesquisadores
espanhóis que se efetua a cada seis anos, a partir das cinco publicações que são consideradas
as mais relevantes. Nos critérios utilizados, as revistas têm um grande valor, especialmente
as de melhor indexação. Os sexênios, além do seu valor econômico, têm valor acadêmico,
se calhar mais importante.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

editoras de maior difusão costumam estar reservadas exclusivamente para


autores/as com certo nível de reconhecimento acadêmico, razão pela qual
excluem uma parte importante de jovens pesquisadores/as. Por outro lado,
também encontramos uma relativa abundância de editoras locais, às vezes
vinculadas com instituições públicas, a que resulta muito difícil chegar, de-
vido a graves deficiências na distribuição.
Os congressos, seminários e reuniões científicas geralmente apre-
sentam ainda uma outra problemática, diferente. O elemento positivo é que
costumam ser foros de debate abertos a toda a comunidade geográfica, re-
sultando atrativos para a participação, designadamente para pessoas mais
jovens. Mas também há limitações importantes. Destaco: o elevado núme-
ro existente e a dispersão de organizadores e organizações envolvidas, o que
torna muito complicado fazer um acompanhamento. Aliás, com frequência
as temáticas são fechadas, o que exclui a possibilidade de apresentar traba-
lhos concretos sobre um tema.
Com relação às teses, há uma base de dados institucional, chama-
da Teseo6, mantida pelo Ministério da Educação, Cultura e Esporte. Entre-
tanto, o número total de trabalhos armazenados é relativamente reduzido
e, nesse sentido, esta fonte é ineficiente para produzir as informações ne-
cessárias sobre a produção científica em torno de gêneros e sexualidades na
Geografia espanhola.
Por último, cabe fazer referência aos projetos de pesquisa. Aqui as
dificuldades para um acompanhamento efetivo são mais marcantes. Teríamos
de nos limitar unicamente ao financiamento público em editais concorrenciais.
Porém, neste âmbito encontramos novos problemas: no caso espanhol, isso
envolveria, além das iniciativas do ministério, também as das 17 comuni-
dades autônomas e de outras instituições, como as europeias, em que par-
ticipam equipes espanholas que nem sempre são visíveis nas buscas em
meios eletrônicos. Uma questão que se vincula a isso é que, com frequên-
cia, os resultados desses projetos são parcialmente publicados em formato
de livro e, principalmente, como artigos em revistas.
As revistas são, portanto, o meio com mais virtudes para este tra-
balho. O seu acompanhamento é mais fácil, o conteúdo, mais versátil, e o
seu número, significativamente alto. Em primeiro lugar, é fácil acessar as

6
Disponível em: <https://www.educacion.gob.es/teseo/irGestionarConsulta. do; jsessionid
=BAED4585D32DD72FE87EEBE78BCB88AD>.

INTERSECCIONALIDADES,
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NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 215
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

revistas geográficas espanholas, já que elas sempre se encontram nas biblio-


tecas de todas as universidades, em formato impresso e digital. Isto facilita
muito o seu repasse e análise. Em segundo lugar, a maioria das revistas não
tem uma temática fechada (só no caso dos volumes temáticos), o que lhes
permite receber trabalhos de diversas categorias. Também temos que con-
siderar que o número de revistas é bastante grande e que a sua edição em
formato digital elimina as restrições orçamentárias do papel, o que favorece
a sua capacidade para admitir muitos artigos. Finalmente, a relevância que
as revistas têm para a obtenção dos sexênios faz com que elas sejam atraen-
tes para todas as pessoas que desenvolvem pesquisas na área de geografia,
bem como, naturalmente, para outras disciplinas.
Uma vez justificada a escolha das revistas, cabe fazer o mesmo
com relação ao período temporal. Além de 1990 ser um ano redondo que
marca o início de uma década, também há motivações de natureza mais
acadêmica. Foi no ano de 1989 que a revista DAG publicou o primeiro vo-
lume temático dedicado ao gênero. Assim, e a partir de então, esse tema
deixou de ser uma anedota de algumas geógrafas que escrevem alguns arti-
gos, para converter-se numa linha de pesquisa com visibilidade e relevân-
cia.
Para a escolha das revistas, foi utilizado o “Índice H das revis-
tas espanholas de geografia” para o ano 2012, que elabora o grupo de pes-
quisa EC3 da Universidade de Granada (http://ec3.ugr.es/publicaciones/
indiceh_ciencias_sociales.pdf). Na realidade, não nos interessava o posi-
cionamento de cada uma das revistas, simplesmente a sua listagem. Já co-
nhecíamos praticamente a totalidade delas, mas achamos necessário dispor
de uma relação completa. No total, o índice recolhe 47 revistas, embora
não consideremos todas. Ficaram excluídas aquelas que tinham uma série
muito reduzida, apenas uns números, e que já desapareceram. Também
aquelas editadas por algumas faculdades ou instituições em que a geografia
tem um peso muito secundário. Finalmente, também não consideramos as
que estão orientadas a uma temática muito específica. Assim, por exem-
plo, não analisamos revistas como: Xeográfica, Revista de Estudios Andalu-
ces, Cuadernos de Turismo, Ciudad y Territorio, etc. Ao final, esse número
de 47 revistas foi reduzido a 18+1.7 A maioria das revistas está vinculada

7
O número é 18+1 porque, após comprovar a listagem, no nosso entender faltava uma revista
importante, Polígonos, que é editada pelos departamentos de Geografia das universidades
de León, Valladolid e Salamanca. As outras 18 revistas analisadas foram: Scripta Nova
(Geocrítica), Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles, Investigaciones Geográficas,

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

a diferentes departamentos de geografia das universidades espanholas, e


também a outros organismos e instituições como o Conselho Superior de
Investigações Científicas (CSIC), a Associação de Geógrafos Espanhóis
(AGE) ou a Real Sociedade Geográfica (RSG).
Dezenove revistas, algumas com mais de um volume por núme-
ro e 24 anos, fazem com que o trabalho com aproximadamente 5 mil arti-
gos8 seja uma tarefa longa.9 Obviamente, não foram lidos todos os artigos.
Basicamente, havia duas maneiras alternativas para conhecer o seu conte-
údo. A primeira era através de uma procura de palavras-chave, alternativa
que muitas das revistas digitalizadas oferece. Este método não foi utili-
zado, após comprovarmos que o uso de conceitos como gênero, mulher,
feminismo, sexualidade, etc. em muitas ocasiões não correspondia com os
conteúdos relativos ao gênero ou às sexualidades, sendo estes temas muito
colaterais, embora figurem naquelas palavras-chave. A segunda maneira
que foi adotada consistiu na observação dos títulos dos artigos, pois en-
tendíamos que eles podem e devem dar orientações a respeito do seu con-
teúdo. No caso de dúvidas, uma olhada no artigo resultou o mais eficaz.
É provável que, assim, algum artigo tenha ficado fora da nossa listagem,
mas achamos que o seu número é reduzido e que pouco pode mudar os
resultados.

Ería, Papeles de Geografía, Anales de Geografía de la Universidad Complutense, Documents


d’Anàlisi Geogràfica, Cuadernos Geográficos de la Universidad de Granada, Estudios
Geográficos, Treballs de la Societat Catalana de Geografia, Cuadernos de Investigación
Geográfica, Cuadernos de Geografía de la Universidad de Valencia, Lurralde, Boletín de la
Real Sociedad Geográfica, Didáctica Geográfica, Serie Geográfica y Espacio, Geographicalia,
Tiempo y Forma (Geografía).
8
Trata-se de um número aproximado. As revistas têm tamanhos muito diferentes, que, aliás,
mudaram com o tempo. Por exemplo, o Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles,
no princípio da década de 1990, era semestral e incluía entre 10 e 15 artigos por ano; na
atualidade, é quadrimestral, com uns 50 artigos por ano. Coisa parecida acontece com
Scripta Nova, com perto de 40 artigos por ano; na década de 1990, com o nome Geocrítica, o
volume era significativamente menor. Em geral, a substituição do papel pelo formato digital
favoreceu a multiplicação de artigos.
9
A maior parte das revistas foi consultada por meio da internet, já que a grande maioria
delas está digitalizada. Contudo, nem sempre foi assim, e algumas foram consultadas em
papel. Na série de 23 anos há também vazios e matizes. Por exemplo, algum número perdido
que foi impossível localizar, revistas que iniciaram sua publicação depois do ano de 1990,
ou outras que cessaram a sua atividade antes de 2013, ou, simplesmente, cujas edições estão
atrasadas, de modo que o número relativo a 2013 ainda não saiu. Em qualquer caso, são
exceções muito pontuais.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

Os dados que analisamos dizem respeito às seguintes variáveis:


nome da revista, ano de publicação, autoria segundo sexo, universidade
ou instituição e nome do autor ou autora. Também tentamos organizar
os trabalhos em função da sua temática, embora esta seja uma tarefa bem
complexa, assim como delimitar o âmbito territorial da pesquisa. Fazemos
alguma referência à nacionalidade e menos ao âmbito disciplinar dos/as
pesquisadoras/es: a maioria dos artigos corresponde a pessoas espanholas
formadas em geografia. De todo modo, estes dois dados, além de pouco
importantes, frequentemente não são fáceis de identificar. Por exemplo,
nem sempre aparece a vinculação disciplinar do/a autor/a, simplesmente
o organismo ou instituição a que pertence. Relativamente à nacionalidade,
é difícil saber pelo nome, no caso de uma origem latino-americana; mas
mesmo quando os traços não são hispanos, pode ser uma pessoa com ca-
deira numa universidade espanhola ou um estrangeiro que faz um estágio
na Espanha e adota este lugar como referência institucional. Também pode
acontecer o contrário. Seja como for, faremos algumas referências secundá-
rias a estes aspectos, assim como à língua.
Lembremos que o objetivo deste trabalho é analisar a presença
dos estudos de gênero e sexualidade nas revistas geográficas espanholas e,
portanto, a nacionalidade e a formação acadêmica são aspectos secundá-
rios. Somos conscientes de que existem artigos de geógrafas/os espanhóis
em revistas não geográficas e também em publicações estrangeiras, mas
essa é outra história.10

RESULTADOS

No banco de dados que elaboramos, temos registrados 181 ar-


tigos de investigação; não incluímos, portanto, as notas, resenhas ou co-
mentários, pois os temas de gênero e sexualidade representam em torno de
3,6% do total de artigos identificados nas revistas espanholas de geografia

10
A título de exemplo, podemos citar García-Ramón e Luna-García (2007), com um artigo
na prestigiosa revista Gender, Place & Culture, ou García-Ramón, Simonsen e Vaiou (2006),
como editoras convidadas da mesma revista.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

no período que vai de 1990 a 2013.11 Desse número, nove correspondem a


pesquisas sobre sexualidade e 172, a gênero. Isto evidencia a escassa impor-
tância que tem a geografia das sexualidades.
Como o seu número é muito reduzido, queremos fazer primeiro
uma análise desses nove para, na continuação, aprofundar os artigos cen-
trados em aspectos relacionados com o gênero. Resulta inútil fazer tabelas
e gráficos representativos, tendo em conta o escasso volume de publicações
em torno da sexualidade. Como era de se esperar, a sua aparição demora
bastante, até o ano 1999, e a partir desse momento vão surgindo outros, aos
poucos.

Tabela 1: Os estudos de sexualidade nas revistas geográficas espanholas.

Ano 2007 (44,4%)


Revista DAG (44,4%), Anais (22,2)
Autor/a Homens (77,7)
Temática Homossexualidade (66,6)

Fonte: Revistas de Geografia da Espanha.

Duas revistas se destacam na publicação do tema das sexualida-


des, sendo que duas características são significativas. Uma delas é a alta
concentração da homossexualidade como interesse de investigação e a outra
diz respeito ao predomínio de autores homens. Apenas encontramos dois au-
tores com a mesma origem na universidade Complutense de Madri, embora
um deles seja de filologia. Também cabe destacar que três dos nove artigos
têm autoria vinculada com centros estrangeiros (Brasil, Chile e Canadá).
Frente a esta irrelevância da geografia das sexualidades, o tema
do gênero oferece um panorama muito mais otimista, como teremos opor-
tunidade de comprovar nas linhas a seguir. Todavia, se a comparação for

11
Não fazemos comparação com o estudo realizado pela AGE sobre a investigação
geográfica na Espanha (1990-2012) (LASANTA-MARTÍNEZ e MARTÍN-VIDE, 2013),
porque a metodologia utilizada é diferente e, portanto, os resultados também o são. Ver
o capítulo desse informe elaborado por: Martín-Lou, Bodega-Fernández, Cebrián-de-
Miguel e Jiménez-Royo: “Las publicaciones de geógrafos españoles en revistas de geografía
españolas”, p. 235-248.

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A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

feita com outros ramos da geografia, os resultados são bem desestimulan-


tes. Como dissemos, estamos nos referindo a um total de 172 artigos, que,
divididos entre 24 anos, dão uma média de 7,16 artigos/ano. Mas vamos
analisar mais detalhadamente esses dados.

Gráfico 1: Artigos sobre gênero publicados nas revistas de geografia espanholas.

Fonte: Revistas de Geografia da Espanha.

Se observarmos o gráfico de artigos por ano, as evidências são


muito claras: temos quatro picos (na verdade, cinco), e nos demais anos os
valores são modestos, com pouca variação, movendo-se entre dois e sete
artigos. Esses picos correspondem com os volumes temáticos12 editados, o
que faz com que em determinados anos haja um volume muito mais ele-
vado de artigos. Se eliminarmos esses volumes extraordinários, a linha se
torna muito mais regular, reduzindo-se a desvio padrão.

12
A revista DAG tem volumes temáticos nos anos de 1995, 1999 e 2007; Cuadernos de
Geografía de la Universidad de Valencia, em 1998; finalmente, no ano de 2002 a Scripta Nova
publicou em número extraordinário os anais do IV Colóquio Internacional de Geocrítica,
com oito trabalhos na área temática de Trabalho e Gênero.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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De qualquer maneira, o que se destaca é um maior dinamismo


na primeira década, a de 1990, incluindo quatro volumes temáticos. Na
década seguinte há dois números extraordinários, mas de tamanho mais
reduzido. Contudo, eliminando a distorção que esses números produzem,
a média é um pouco mais elevada que a do decênio anterior. Finalmente,
nos quatro anos entre 2000 e 2013, observamos uma tendência regressiva,
embora seja muito cedo para avaliar o período completo.
Se considerarmos agora a variável nome da revista, os resultados
são bastante surpreendentes. Para começar, 26,3% das revistas não têm ar-
tigo algum sobre a temática gênero, mesmo se tratando, em alguns casos,
de revistas com longa trajetória e com bastante prestígio no âmbito discipli-
nar espanhol. Por outro lado, temos uma extrema concentração em muito
poucas publicações: DAG acumula 42,4%; Cuadernos de Geografía de la
Universidad de Valencia, 14,5%; Scripta Nova, 8,7%; e Treballs de la Societat
Catalana de Geografia, 6,9%. Estas quatro reúnem nada menos que 72,5%,
de modo que, em comparação, os artigos que aparecem nas outras revistas
são quase uma piada.
Avançando um pouco mais, e eliminando a distorção dos vo-
lumes temáticos, temos um novo dado interessante. A única revista que
apresenta uma certa continuidade no tempo é a DAG, que, considerando a
série de 24 anos analisada, apenas em dois não tem nada publicado sobre
gênero. Em seguida vêm Treballs e Cuadernos de Valencia, com artigos em
dez e nove anos, respectivamente. Por outro lado, chama a atenção a Scripta
Nova, que não tem publicação representativa além do volume temático.
Merece destaque a escassa importância que tem a temática do
gênero na revista mais representativa da geografia espanhola, o Boletín de
la Asociación de Geógrafos Españoles. No total, encontramos sete artigos,
todos eles bastante recentes: o primeiro aparece no ano 1996, e os outros
seis distribuem-se entre 2006 e 2013. Este último dado pode fazer supor
um crescente interesse pelo gênero, mas achamos que não é assim. Nos
anos mais recentes, o Boletín passou de uma periodicidade semestral, que
se encerrou em 2006, a uma periodicidade quadrimestral, incorporando
também um número maior de artigos. Entre 2006 e 2013, foram publicados
um pouco mais de 350 artigos, o que significa que o gênero representou
apenas 1,7%, mostrando um panorama bastante desolador para o que se
poderia esperar desta revista.
É de se salientar, também, que todas as revistas nas quais o gêne-
ro tem uma certa relevância são editadas na Catalunha, ou, num sentido

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A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

mais amplo, nos Países Catalães13, ao se incorporar a revista Cuadernos de


Geografía de Valência. Isto permite explicar a relevância que tem o idioma
catalão. De fato, pouco mais da metade de toda a produção bibliográfica,
54,6%, está em castelhano, perto de 40% em catalão, e o resto em inglês
ou português. Portanto, é possível concluir que a geografia do gênero nas
revistas espanholas tem uma componente escrita em idioma não espanhol
que é muito significativa.
A importância da Catalunha, quer no idioma, quer nas pró-
prias revistas, manifesta-se também na autoria dos artigos. É complexo
fazermos uma síntese que recolha as muitas pessoas que têm trabalha-
do neste âmbito. Há uma grande dispersão de nomes, mas os que apare-
cem com mais frequência são: Baylina, García-Ramón e Ortiz, todas da
Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), junto com Domingo, da
Universidade de Valência e Sabaté-Martínez da Complutense de Madri.
A presença dos homens é reduzida, no total, considerando a masculini-
zação da academia. O referido informe sobre a pesquisa geográfica na
Espanha (1990-2012) indica, no capítulo elaborado por Sánchez-Aguilera
(2013), que as mulheres representam, em 2012, 33,79% do pessoal docen-
te e pesquisador (PDI) das universidades espanholas, por certo quatro
pontos a menos que em 1992. Neste contexto, é significativo que apenas
11,6% dos artigos são assinados por homens, e que 12,7% são assinados
conjuntamente por homem e mulher. No todo, os homens são total ou
parcialmente responsáveis por menos de 25% dos artigos. Destacam-se os
professores Feo (Autônoma de Madri) e Viruela (Valência), com quatro
contribuições cada um.
Continuando com a linha traçada no parágrafo anterior, é muito
relevante o peso que tem a UAB: 27,9% dos artigos são obra de autoras
vinculadas com essa universidade. Também a universidade de Valência
tem bastante protagonismo, mas em porcentagem desce a 11%, e a 6,9% a
Complutense de Madri. Resultam berrantes os poucos artigos, ou às vezes
mesmo nenhum, assinados por pessoas vinculadas com grandes universi-
dades e importantes departamentos de geografia; é o caso da Universidade
de Barcelona, a Autônoma de Madri ou a UNED, entre outras. Igualmente,
é quase que insignificante a presença do Conselho Superior de Investiga-
ções Científicas (CSIC), com dois artigos.

Este conceito abrange os territórios de fala catalã, além da Catalunha, como o País Valencià
13

ou as Ilhas Baleares.

INTERSECCIONALIDADES,
222 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

Outro aspecto que cumpre destacar é a importância que têm os


artigos cuja autoria é vinculada a pessoas que trabalham em centros es-
trangeiros. São perto de 30% os artigos nos quais pelo menos um/a dos
assinantes marca um endereço não espanhol, valor que ao nosso juízo é
bem significativo. Mas cabe matizar esse dado, que esconde desequilíbrios
muito relevantes. Praticamente a totalidade dos mesmos concentra-se em
apenas três revistas. Em números absolutos, 63% estão na DAG. Mas, em
termos relativos, na Scripta Nova 2/3 dos artigos sobre gênero são de auto-
ras/es de fora da Espanha, 58,3% em Treballs, e 43% na DAG. Contudo, o
perfil nestas três publicações é bem diferente.
No caso de Treballs, pouco menos da metade dos artigos tem as-
sinatura de Beneria, autora da Catalunha que trabalha na Universidade de
Cornell (EUA). Na Scripta Nova, a totalidade das publicações tem a sua ori-
gem na América Latina, designadamente no Brasil, continente e país muito
vinculados com essa revista. Finalmente, a DAG apresenta uma situação
mais diversificada entre a Europa, as Américas e mesmo a África. Desta-
camos desta última revista o volume temático 49 (2007), “Uma olhada in-
ternacional à geografia do gênero”, que é um título bem significativo dessa
intenção de se abrir para fora.
Relativamente aos âmbitos territoriais, não há uma preferência
muito marcada. Uma parte importante dos artigos não especifica no título
o lugar de estudo. É certo que há casos muito teóricos, em que as referên-
cias espaciais concretas desaparecem, mas não é o caso dominante. Entre os
artigos que, sim, limitam a pesquisa a uma área, observamos uma lógica es-
calar. Em primeiro lugar, os estudos de caráter internacional referidos a um
ou a vários países, sendo que em alguns artigos aparecem lugares concretos
como referência. Em segundo, posto o âmbito local que vai desde vilarejos,
cidades, comarcas ou províncias. Finalmente, as comunidades autônomas e
a Espanha, em seu conjunto, têm um menor número de artigos
Agora vamos analisar os conteúdos dos artigos, tarefa bem com-
plicada, por causa da temática transversal de muitos deles. Ainda que os
títulos tenham sido o nosso guia para fazer a classificação, muitas vezes
tivemos que recorrer aos resumos e até mesmo a ler o texto completo para
poder concretizar melhor. Após o esforço de síntese, limitamos os temas a
oito itens, incluindo um denominado ‘outros’.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 223
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

Tabela 2. Principais temas de estudo.

Tema Valores em %
Teoria/metodologia 16,27
Demografia 9,88
Mercado de trabalho 22,09
Rural 23,25
Urbano 11,62
Educação 3,48
Meio ambiente 5,81
Outros 7,55

Fonte: Revistas de Geografia da Espanha.

Insistimos mais uma vez na dificuldade desta classificação. De


qualquer maneira, há três pontos que queremos destacar. Em primeiro
lugar, a importância das contribuições teóricas e metodológicas, quando
na Espanha há uma carência evidente com relação à geografia em geral.
Ortega-Valcárcel (2000), apoiando-se em Sabaté-Martínez, afirma que as
questões teóricas foram tratadas pela geografia do gênero de uma manei-
ra limitada e tardia. Esta afirmação faz sentido apenas se considerarmos a
data em que foi feita, na década de 1990.
Um segundo ponto diz respeito à grande relevância que têm as
temáticas rural e laboral. Já Ortega-Valcárcel (2000) destacava a multiplica-
ção de artigos referentes a questões rurais e agrárias. Na maioria dos artigos
analisados dentro desta área de interesse, cerca da metade está centrada na
dinâmica laboral.
O terceiro ponto a considerar é a escassa importância dos estu-
dos urbanos, e mesmo populacionais, em que ganha terreno o papel das
mulheres imigrantes. Elas são protagonistas de uma grande quantidade
de pesquisas, sejam referidas aos aspectos demográficos, sejam ligadas ao
mercado laboral, sejam, ainda, vinculadas aos mundos rural e urbano.
Destaca Ortega-Valcárcel (2000) que é muito difícil fazer uma
valoração da geografia do gênero, tendo em vista que coexistem formula-
ções teóricas e metodológicas muito dispersas. Desde as que se vinculam ao
pensamento crítico contemporâneo influenciado pelos feminismos – mas
também por outras correntes –, até outros posicionamentos que se limitam

INTERSECCIONALIDADES,
224 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

a dar visibilidade à mulher a partir de um ponto de vista muito descritivo


e continuista. Apesar de termos identificado alguns artigos que vão nesta
direção, torna-se extremamente complexo, a partir dos títulos dos artigos,
fazer uma exclusão daqueles trabalhos que dificilmente entrariam na cate-
goria de geografia do gênero.

CONCLUSÕES

A geografia do gênero e das sexualidades tem uma importância


muito secundária nas revistas geográficas espanholas. Como demonstra-
mos ao longo desta pesquisa, apesar de encontrarmos alguns trabalhos já
desde datas bastante remotas, a decolagem dessa geografia nunca acon-
teceu, marcadamente na temática das sexualidades. Além disso, e confir-
mando parcialmente as afirmações de Ortega-Valcárcel (2000), as mulhe-
res, designadamente um reduzido número delas, e os âmbitos laborais e
rurais são o foco de uma parte importante dos artigos. Outras caracterís-
ticas são: grande destaque da revista DAG e da Universidade Autônoma
de Barcelona, ou em todo caso da Catalunha e mesmo do idioma catalão;
salientável presença de autoras estrangeiras e também de reflexões teóricas
e metodológicas – se não fosse pelos volumes temáticos das revistas, muito
especialmente dos três da DAG, a evolução não permitiria observar gran-
des flutuações, que se movem entre o mínimo de dois e o máximo de sete
artigos por ano; é possível intuir uma queda na produção científica a partir
do ano 2009.
Neste ponto, cabe refletir sobre as causas que explicam esta situa-
ção de precariedade, sintetizadas abaixo:
1. Temática pouco relevante (inclusive pouco séria) e mesmo pe-
rigosa. No atual discurso político dominante, o feminismo aparece já in-
tegrado ao sistema. Assim, qualquer voz alertando sobre as desigualdades
existentes é estigmatizada como sendo radical e antissistema. Muito pro-
vavelmente, esta ideia é assumida como certa e, portanto, não existe a ne-
cessidade de singularizar o gênero. Relativamente à sexualidade, talvez os
medos pessoais contribuam para a ausência de pesquisa. Além disso, mui-
tas vezes a pesquisa em si é apenas descritiva e escassamente transgressora.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 225
A GEOGRAFIA DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
DE REVISTAS ESPANHOLAS

2. Caráter conservador da geografia espanhola. A nossa discipli-


na na Espanha não se destacou pela inovação. Os anos da ditadura e as
sinergias posteriores lastraram parte do futuro. Na atualidade, a obsessão
pela utilidade social dá um protagonismo talvez exagerado ao uso de ferra-
mentas tecnológicas frente à reflexão e à análise socioterritorial. O debate
teórico, quase que sempre ausente, margeia uma temática que parte como
uma alternativa teórica e epistemológica (ORTEGA-VALCÁRCEL, 2000).
3. O próprio sistema da academia não favorece estas geografias.
Por um lado, os projetos de pesquisa concorrênciais14, financiados pelas
administrações públicas, não dão preferência a estas temáticas, como se
extrai dos dados do informe sobre a investigação geográfica na Espanha
(LASANTA-MARTÍNEZ e MARTÍN-VIDE, 2013). Mas, por outro lado, o
modelo de sexênios deu um protagonismo bastante grande às revistas, em
especial às mais bem avaliadas. No caso espanhol, as duas incorporadas ao
JCR são o Boletim da AGE e a Scripta Nova. A forte pressão por publicar
nas mesmas está levando a um aumento exagerado do seu volume, para
dar acesso a muitas pessoas que precisam de publicações para justificar o
sexênio.15
4. Finalmente, a atual crise econômica fecha oportunidades para
as pessoas jovens, mais abertas em geral à inovação: menos dinheiro para
bolsas, menos projetos de pesquisa e, portanto, reduzidas possibilidades
para realizarem, por exemplo, a tese doutoral. Isto impacta diretamente
nas publicações em revistas, onde, como foi dito, a concorrência é muito
forte.

14
Estes projetos são muitas vezes a base para a elaboração de artigos de revistas.
15
As publicações em revistas JCR são a maneira mais segura para obter um sexênio. Fora
das duas citadas, as demais têm valor menor. A outra alternativa é recorrer a revistas
internacionais, designadamente em inglês, incluídas no JCR, em que os processos de seleção,
além de outros problemas como o idioma, costumam ser muito rigorosos.

INTERSECCIONALIDADES,
226 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
XOSÉ MANUEL SANTOS-SOLLA

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INTERSECCIONALIDADES,
228 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MULHERES INDÍGENAS E SUAS
DEMANDAS DE GÊNERO
Ângela Célia Sacchi

***

GÊNERO E POVOS INDÍGENAS

O gênero é uma variável social que atravessa os demais fatores de


influência, referindo-se às diferenças construídas socialmente nas relações
entre homens e mulheres, que variam por contexto e situação. A análise de
gênero enfoca sua interação com outras variáveis importantes, como idade,
estado civil, papéis socioeconômicos, entre outras. E, além de afirmações
sobre “mulheres” e “homens”, é necessário o entendimento de fatores histó-
ricos, demográficos, institucionais, culturais e socioeconômicos que afetam
as relações entre homens e mulheres em diferentes grupos.
Gênero, como termo apropriado do Ocidente, validado nas es-
feras dos organismos internacionais e aplicado nas políticas públicas ou
estratégias de governos, não tem equivalência nas línguas indígenas, ao
menos no mesmo sentido e significado. A concepção ocidental de gênero
não corresponde necessariamente à dos grupos indígenas, em que outras
noções podem atuar. E há uma variabilidade de relações de gênero, depen-
dendo do grupo a que se refere, que pode ser percebida de várias maneiras,
e mesmo como uma imposição de fora, mas com um entendimento próprio
dentro das culturas em relação aos papéis de homens e mulheres.
Se gênero é uma construção histórica, social e cultural que va-
ria contextualmente, há a necessidade de uma aproximação sensível a cada
realidade, distanciando-se das interpretações de gênero apreendidas no
mundo não indígena, para verificar como opera a lógica dos povos indí-
genas, percebendo sua dinâmica e o conhecimento dos espaços femininos
e masculinos. A visão de gênero deve se desenvolver a partir das dinâmicas
cotidianas das comunidades indígenas, as quais se desenvolvem de acordo
com uma divisão de espaços, tarefas e conhecimentos específicos de homens
e de mulheres.
MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

A relação homem/mulher como a definição de seus papéis e


responsabilidades em nível do grupo familiar, da família ampliada ou da
comunidade, tem sido estabelecida historicamente por leis e valores in-
dígenas, com uma construção cultural própria acerca do comportamento
culturalmente adequado a cada gênero. E tais valores têm sido modificados
pela influência do meio mais amplo. Se em muitas sociedades indígenas a
diferenciação entre os gêneros é bastante marcada – em termos de diferen-
ça dos papéis, vestimentas, tarefas e atividades definidas como masculinas
e femininas –, também se pode afirmar que as transformações em suas so-
ciedades modificaram e modificam constantemente as relações de gênero.
Isto coloca a necessidade de entender gênero dentro de um processo mais
amplo de mudanças políticas, econômicas e sociais, com implicações na
divisão do trabalho e nas configurações alocadas a cada gênero.
As distintas formas de ser mulher no mundo indígena variam de
acordo com as construções particulares de gênero dos povos a que perten-
cem, com suas diversas realidades socioculturais e territoriais, que também
implicam relacionamentos diversos com a sociedade não indígena. Não
apresenta um grupo homogêneo, mas diverso em situações, necessidades
e demandas. A análise de gênero torna visível o papel feminino nos dife-
rentes âmbitos, dentro e fora de suas sociedades, considerando as particu-
laridades em termos de necessidades, interesses e aspirações, e assinalando
um conjunto de conhecimentos e saberes especializados de homens e mu-
lheres, correlacionados aos diferentes papéis sociais e funções exercidas no
dia a dia.
Incluir o enfoque de gênero nas análises significa incorporar ati-
vidades em que conhecimentos, capacidades, necessidades e expectativas
tanto de homens quanto de mulheres sejam incluídas, dissolvendo estere-
ótipos que negligenciam ou invisibilizam os papéis das mulheres em suas
comunidades. Tornar o trabalho feminino visível implica considerar a va-
riabilidade de tarefas executadas pelas mulheres, desconstruindo sua vi-
são apenas como provedoras da alimentação e cuidadoras dos filhos, para
definir também seus papéis como gerentes diárias dos recursos naturais,
possuidoras de conhecimentos sobre o uso e manejo da biodiversidade e
seus aportes nos sistemas de saúde. E o exercício de seus direitos é propor-
cionado pela visibilidade de suas propostas políticas e estratégias de enfren-
tamento das inúmeras problemáticas que as atingem, como demonstrado
a seguir.

INTERSECCIONALIDADES,
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*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

AS DEMANDAS DAS MULHERES INDÍGENAS:


TERRA E SUSTENTABILIDADE, VIOLAÇÕES
DE DIREITOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Um dos aspectos centrais das relações de gênero é o trabalho que


mulheres e homens realizam para a manutenção de seus lugares e comu-
nidades. E as sociedades assinalam diferentes papéis, responsabilidades e
atividades aos homens e às mulheres. Há uma diferenciação entre homens
e mulheres na gestão dos territórios, no uso dos recursos naturais, na ocu-
pação de espaços comerciais ou não de produção, na participação política e
na luta por reconhecimento dos direitos. No mundo indígena, a divisão do
trabalho é específica a cada sociedade e pode variar de acordo com o mo-
mento histórico, as diversas transformações ocorridas em função de novas
necessidades, o ingresso e procura de recursos de fora, os impactos de pro-
gramas e projetos, a participação em processos formativos e profissionais,
entre outros fatores.
O território indígena é um espaço que congrega um conjunto
de conhecimentos, crenças e história; trata-se do suporte da vida social de
cada povo. Todos/as os/as membros/as da sociedade têm um papel a cum-
prir no processo de gestão territorial e ambiental para a manutenção do
equilíbrio ecológico, condição necessária à sobrevivência física e cultural
das gerações presentes e futuras. E as mulheres desempenham um papel
importante na definição da ocupação do território, do melhor local para
a construção da aldeia, das casas e das roças, considerando a qualidade da
terra e a distância em relação à água. E, como produtoras de artesanato,
acompanham a gestão ambiental e o manejo da biodiversidade para garan-
tia da matéria-prima.
Os direitos territoriais e a sustentabilidade são reivindicações
fundamentais como forma de garantir os demais direitos. A necessidade de
se dar andamento à regularização das terras indígenas e de se ampliar aque-
las que são insuficientes para o tamanho populacional é parte constitutiva
de um programa de apoio à produção indígena, preservação e conservação
da biodiversidade, recuperação ambiental dos territórios e preservação da
cultura indígena. Conforme explicita Navarro (2002, p. 142-143), há uma
ligação entre diversidade biológica, diversidade cultural e direitos dos po-
vos indígenas, uma trilogia óbvia, mas nem sempre evidente aos defensores

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 231
MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

do meio ambiente, indigenistas ou feministas. Os conhecimentos indígenas


não têm relação somente com a biodiversidade, mas abarcam desde for-
mas cotidianas de resolver os problemas de sobrevivência até assuntos mais
complexos de ordem mágico-religiosa. Devido à relação estreita entre con-
servação dos conhecimentos indígenas e respeito aos direitos indígenas, a
forma de proteger a biodiversidade (em termos de recursos e conhecimen-
tos) é mediante seus direitos territoriais.
Um dos motivos principais da criação das organizações de mu-
lheres indígenas diz respeito à busca de alternativas produtivas e sustentá-
veis, por meio do aumento da capacidade produtiva e da geração de renda,
principalmente por meio do artesanato e do trabalho agrícola feminino. E
as mulheres detêm importante papel na sustentabilidade econômica dos
povos indígenas, responsáveis que são por grande parte do trabalho agrí-
cola, da criação de animais e da produção artesanal. E elas tendem a estar
ativamente envolvidas na economia familiar, como encarregadas da pre-
paração e distribuição dos alimentos. Deste modo, possuem informações
acerca dos padrões de consumo, da diversidade e qualidade dos meios de
sustento e da segurança alimentar, bem como da coleta, preservação de
sementes e uso de plantas para diversos fins – na medicina, no artesanato,
na alimentação e como ferramentas.
As mudanças econômicas, políticas e sociais resultaram na perda
do controle da economia pelos povos indígenas, modificando os papéis de
homens e mulheres e as funções desempenhadas. Os impactos das ações no
entorno ambiental e nos territórios indígenas afetam diretamente a realização
das atividades cotidianas. E as mulheres podem enfrentar um menor
nível de produção, associado aos exíguos espaços de terra para cultivo,
ao esgotamento dos solos derivado do desmatamento, à contaminação do
meio ambiente e à escassez de água. Fatores que provocam uma sobrecarga
ao trabalho feminino, pois a falta de recursos disponíveis aumenta as
distâncias a serem percorridas para buscar água e lenha para cozinhar
os alimentos, assim como para conseguir matéria-prima para o trabalho
artesanal. E as mudanças ocorridas no meio ambiente e na organização
social indígena também repercutem na saúde e na segurança alimentar. A
busca é pela saúde diferenciada, pelo reconhecimento das parteiras e dos
saberes indígenas, pelo apoio ao plantio e ao uso de plantas medicinais,
e pela viabilização de parcerias, com a capacitação dos agentes para
poderem atuar. A melhoria na saúde passa ainda pela resolução de outras
problemáticas, como o alcoolismo e a violência contra as mulheres.

INTERSECCIONALIDADES,
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*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

A questão das violações aos direitos humanos tem sido uma im-
portante reivindicação feminina. A violência tem aumentado, adquirindo
novas formas na atualidade, notadamente pela intensificação das relações
sociais, econômicas e políticas entre povos indígenas e a sociedade ambiente.
As violações são perpetradas pelo relacionamento com pessoas ocupantes de
áreas vizinhas, grupos não indígenas e também pelo próprio Estado, quando
implanta determinados programas de desenvolvimento que não contemplam
as especificidades dos povos indígenas. Além de violações de caráter externo,
elas também ocorrem nas relações internas dos grupos indígenas.
A instalação de grandes empreendimentos tem sistematicamen-
te resultado em violações às mulheres indígenas, particularmente expostas
a situações de violência moral e sexual quando homens não indígenas se
instalam dentro ou no entorno de seus territórios. A falta de meios de sub-
sistência para as aldeias estimula os processos de migração, principalmente
masculina, em busca de recursos econômicos. Isto faz com que a vulnera-
bilidade das mulheres seja dinamizada, já que elas se tornam as principais
responsáveis pelas famílias e comunidades, e nem sempre elas podem con-
tar com recursos para se contrapor a esse processo.
A falta de terra, de recursos naturais e de infraestrutura aos afa-
zeres cotidianos são fatores que expõem as mulheres a circunstâncias de
vulnerabilidade com relação a seus direitos e possibilidades de decidir com
autonomia. É diante das adversidades atuais que elas reivindicam o direito
à terra, o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas e a
valorização das lideranças tradicionais e de aspectos da organização social,
como formas particulares de controle social e justiça, lutando também pela
implementação de políticas públicas que contemplem as especificidades de
gênero e étnicas.
Para o enfrentamento dessas violações, é fundamental que as mu-
lheres obtenham capacitação em direitos humanos, principalmente os das pró-
prias mulheres, e interação com a legislação indigenista, envolvendo a violência
em suas comunidades e os desafios em relação à juventude e aos homens.
As transformações das sociedades indígenas também têm pos-
sibilitado às mulheres a ocupação de novos espaços políticos, com a ins-
tituição de associações próprias. As mulheres indígenas têm discutido
problemas e demandas específicas que afetam a elas e a seu povo. As reivin-
dicações femininas estão relacionadas às necessidades cotidianas, como as
condições de trabalho e o acesso aos meios de produção, a comercialização
dos produtos e a participação da juventude na reprodução e fortalecimento
da cultura. Por meio das novas formas de inserção no mundo da política, elas

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 233
MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

discutem e analisam outros problemas que as afetam, como é o caso da ocor-


rência de violência e sua correlação com o uso abusivo de álcool, as condições
de atendimento à saúde de seu povo e a necessidade de gerenciamento de
projetos de sustentabilidade que buscam a segurança alimentar e nutricional
da população indígena. Deste modo, ao mesmo tempo em que as mulheres
indígenas reivindicam a melhoria das condições da vida cotidiana, elas tam-
bém lutam para a promoção da qualidade de vida comunitária.
A busca de solução para os problemas que as mulheres indíge-
nas enfrentam está relacionada tanto com a escala intercomunitária como
com escalas mais amplas, que envolvem as relações com agentes externos
à comunidade. Considerar os impactos das ações e empreendimentos que
afetam de maneira diversa ambos os gêneros, bem como os saberes de ho-
mens e de mulheres produzidos dessas diversas experiências, possibilita a
construção de análises mais ricas e complexas sobre a realidade indígena.
Esta parte do texto procurou demonstrar os posicionamentos
que as mulheres indígenas ocupam em suas sociedades enquanto mães e
educadoras, e sua atuação como líderes políticas e trabalhadoras. Elas são
produtoras e gerenciadoras diárias de recursos naturais, já que participam
ativamente do cultivo, na coleta e no processamento de tais recursos, tendo
conhecimentos especializados acerca desses processos. Assim, elas detêm
responsabilidades nas atividades produtivas, além das de reprodução, e am-
bas são diretamente afetadas pelas mudanças do contexto mais amplo.
Além das funções produtivas que as mulheres indígenas desem-
penham nas comunidades e de sua participação política em processos que
atingem seus povos, de modo geral elas têm uma forte atuação em papéis
domésticos e na transmissão e socialização da cultura para seus filhos. Os
homens indígenas, por sua vez, têm desempenhado ações e representações
políticas em escalas mais amplas, nas relações com agentes externos à co-
munidade indígena e seus territórios.
Para Segato (2012, p. 118-120), foi a colonial/modernidade1 que trou-
xe a perda do poder político das mulheres, pois os colonizadores negociaram

1
De acordo com Segato (2012, p. 126), na modernidade há a transformação do dualismo,
como variante do múltiplo, em binarismo do Um (universal, canônico, neutral) e seu
outro (resto, anomalia, margem), que passa a clausurar a disponibilidade de circulação das
posições, colonizadas pela lógica binária, o gênero de maneira ocidental. Para a autora, é
necessário entender o esquema binário da colonial/modernidade, para encontrar brechas e
inserir lutas próprias deste mundo moderno, como a busca por direitos e políticas públicas
inclusivas e de promoção da igualdade.

INTERSECCIONALIDADES,
234 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

com as estruturas masculinas que inventaram para obter aliados. Se a polí-


tica atravessava os espaços (público e doméstico), agora existe o monopó-
lio da política pelo espaço público, e a superinflação do papel dos homens
como mediadores com o mundo exterior às comunidades. O contato com a
sociedade não indígena implicou não somente a valorização do papel mas-
culino de interlocução com o mundo de fora, como também trouxe a des-
valorização do espaço doméstico e do papel político das mulheres. É neste
sentido que as mulheres indígenas argumentam que não se trata somente
de fomentar o acesso a recursos e tecnologias, mas também de constituir
autonomia e espaços próprios, bem como buscar o (re)estabelecimento do
equilíbrio entre os gêneros, colocando em prática os princípios de recipro-
cidade e complementaridade entre homens e mulheres.

ESPECIFICIDADES DAS DEMANDAS


POLÍTICAS DAS MULHERES INDÍGENAS

As mulheres indígenas, ao se inserirem em espaços políticos, bus-


cam inovar e transformar tais contextos, tanto na escala local, através de
seus trabalhos comunitários, como pela participação ampliada em orga-
nizações específicas e no movimento indígena. A busca por direitos para a
superação de carências se dá pela posição que elas ocupam na esfera comu-
nitária, como mães e responsáveis pelo bem-estar dos parentes próximos.
A participação das mulheres em processos organizativos e no movimento
indígena também é resultado de transformações das relações de gênero, do
contato com diferentes grupos, das migrações aos centros urbanos e tam-
bém do processo de profissionalização.
As mulheres atuam a partir da experiência cotidiana na inferên-
cia de políticas, e esta prática política coletiva pode provocar processos de
alteração de consciência por parte delas, como a necessidade de redefinir
temas tradicionais e complicados no interior de suas comunidades e cultu-
ras. Elas não somente avaliam o novo contexto, como sabem também da ne-
cessidade de influenciar os homens acerca da relevância de suas demandas
específicas. Temas gerais e particulares aparecem inter-relacionados, pois
não adianta lutar por políticas gerais se não se resolvem os limites de cará-
ter local, como os relacionamentos familiares, as violências, o alcoolismo,

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

e a educação de crianças e jovens. Assim, elas desenvolvem lutas aliadas às


demandas de seus povos, ao mesmo tempo em que exigem direitos especí-
ficos enquanto mulheres.
O desempenho político das mulheres indígenas se dá em meio a
uma série de conflitos, já que elas vivenciam a intersecção de identidades
de gênero e etnia, o que as coloca em posição de constante tensionamento
com movimentos sociais, sejam eles de caráter indígena ou ainda feminista.
Elas desenvolvem estratégias de resistência que incluem o espaço
comunitário e a agência feminina indígena. Nos movimentos etnopolíticos,
elas lutam por espaço de representação, já que o ‘nós indígenas’ não é ho-
mogêneo, havendo as diferenciações e especificidades de experiências entre
homens e mulheres. Nos movimentos feministas ou de mulheres, as indí-
genas lutam para superar seu silenciamento e pelo reconhecimento de suas
particularidades ético-raciais, já que o ‘nós mulheres’ também não pode
desconsiderar que elas possuem feminilidades específicas.
Como referido por Hernández-Castillo (2001), as indígenas vi-
venciam uma situação difícil entre o “essencialismo étnico” dos movimen-
tos indígenas que desconsidera as diferenças de gênero e o “etnocentrismo
feminista” que desconsidera as particularidades etnorraciais. Uma possível
articulação entre as diferentes lutas somente pode ser vislumbrada se hou-
ver um efetivo reconhecimento das diferenças internas de ambos os movi-
mentos sociais.
O posicionamento político das mulheres indígenas demonstra
particularidades ao acentuar como elemento central o reconhecimento de
seus direitos coletivos, mas também o avanço de seus direitos como mulhe-
res. Essa posição implica uma reflexão interna, com distintas interpretações
e posicionamentos sobre as relações de gênero no mundo indígena. Por-
tanto, elas reconhecem que a luta contra a discriminação de gênero deve
estar articulada com a luta de seu povo, e, sendo assim, elas abrem várias e
simultâneas frentes de batalha.
Manuela Picq (2009, p. 139-141) analisa como opostas as lógicas
do feminismo, que busca a equidade contestando a exclusão e discrimina-
ção de gênero, e da minoria indígena, que reivindica a diferenciação étnica
e direitos que legitimem a diferença. Um “feminismo étnico” comporta de
forma simultânea a dimensão de gênero e a dimensão étnica. Contudo, as
mulheres indígenas têm conseguido se beneficiar de maneira marginal por
meio dos avanços políticos e institucionais dos movimentos sociais, sendo

INTERSECCIONALIDADES,
236 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

que os esforços de colaboração entre os movimentos étnico e feminista têm


sido limitados, sendo poucas as alianças estratégicas entre eles. O contexto
atual de altos índices de violência significa a ausência de um feminismo
étnico, que somente pode acabar com a consolidação da voz das mulheres
indígenas no cenário político.
O enfrentamento da violência contra a mulher e a conquista dos
direitos reprodutivos são pautas de reivindicações recorrentes do movi-
mento feminista em geral. Contudo, a realidade vivida pelas mulheres in-
dígenas implica considerar a diversidade de suas experiências, mesmo que
haja a possibilidade de compartilhar demandas entre mulheres indígenas e
não indígenas. Para as mulheres não indígenas, os direitos reprodutivos gi-
ram em torno de temas sobre o controle sobre o próprio corpo, sexualidade
e procriação. Para mulheres de outros grupos étnicos, os direitos reproduti-
vos podem estar pautados na constituição da família e da cultura, inexistin-
do a sexualidade como realidade autônoma. Com relação à violência contra
as mulheres, os avanços da legislação na punição dos homens agressores
também deve considerar as diferentes realidades, indígenas e não indíge-
nas. Isso envolve compreender a divisão de trabalho entre homens e mu-
lheres nas comunidades indígenas, que, no caso da prisão do agressor, gera
consequências na organização familiar e comunitária.
Kimberlé Crenshaw (2002) chama atenção para as ‘diferenças que
fazem diferenças’, considerando a forma como diversos grupos de mulhe-
res vivenciam a discriminação, apontando para a invisibilidade das expe-
riências de mulheres marginalizadas. Há especificidades de experiências
que criam vulnerabilidades e estabelecem vários subgrupos de mulheres,
de forma desproporcional. O gênero feminino não é vivenciado de forma
igual por todas as mulheres; pelo contrário, ele é permeado por outras ca-
racterísticas que são fundamentais para compreender as diferenças entre as
mulheres.
A intersecção de gênero com outras facetas identitárias, como é
o caso da classe e da etnia, constitui uma situação específica para o grupo
de mulheres indígenas. Na sociedade brasileira, pode-se afirmar que essas
mulheres, em função de sua vivência interseccional, são mais vulneráveis
do que outras mulheres a sofrer várias formas de abuso e violação de direi-
tos humanos. Os estereótipos étnicos e raciais contribuem para a concepção
social das mulheres indígenas como sexualmente indisciplinadas e inaptas
para o desempenho intelectual e para a conquista de bons postos de trabalho.
O fato de as mulheres de comunidades “racial, cultural ou economicamente

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 237
MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

marginalizadas” estarem se organizando faz com que elas enfrentem obs-


táculos que são específicos desta condição (CRENSHAW, 2002, p. 118). A
solidariedade e o compromisso racial e étnico colocam as mulheres indíge-
nas em situação de compreender e lutar de forma simultânea pela melhoria
das condições de suas vidas como mulheres e membros de grupos raciais/
étnicos desfavorecidos. Certamente, esta é uma situação difícil, que abran-
ge diferentes vias de conquista emancipatória.

GÊNERO E ETNICIDADE: MULHERES INDÍGENAS


ANTE A NAÇÃO, MOVIMENTOS DE MULHERES/
FEMINISTAS E POVOS INDÍGENAS

A agência das mulheres indígenas está situada no diálogo entre


múltiplos discursos. Desde o discurso dos direitos humanos, das mulheres
não indígenas, do movimento indígena, dos organismos governamentais e
não governamentais e, até mesmo, o discurso da academia. A inserção de
demandas das mulheres indígenas na intersecção entre gênero e etnia pro-
duz tensões entre os direitos universais/individuais e os direitos culturais/
coletivos, entre o feminismo hegemônico e os movimentos de mulheres de
diferenças étnicas. Assim, por exemplo, frente ao Estado é necessário o re-
conhecimento das diferenças étnicas, e no interior do movimento indígena
é fundamental a revisão dos costumes e traços culturais para a conquista
do equilíbrio das relações de gênero. A articulação de gênero e etnicidade
é que permite compreender processos de constituição de desigualdades e
discriminações, de tensões entre as desigualdades de gênero e étnicas e en-
tre o mundo da aldeia/local e o exterior/global.
As teorias pós-coloniais explicitam que a articulação da discri-
minação étnica com o feminismo somente é possível com a inclusão de
condições históricas específicas, da necessidade de teorias da diferença
étnica, conhecimentos situados e localizados. As feministas pós-coloniais
têm criticado o universalismo da categoria gênero e a invisibilidade das
opressões e violências específicas vivenciadas por determinadas mulheres.
O combate à opressão de gênero deve, neste sentido, partir de diferentes
lugares, corpos e histórias, fazendo com que o gênero seja atravessado e

INTERSECCIONALIDADES,
238 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

articulado com o racismo, o classicismo, o colonialismo e a heterossexua-


lidade obrigatória.
A tarefa de considerar as diferenças entre as mulheres e suas es-
pecificidades não é fácil, mas necessária para a promoção da visibilidade de
sujeitos que foram desconsiderados como produtores de conhecimentos,
como é o caso das indígenas. Costa (2012, p. 55) nos diz que só é possível
construir tal visibilidade com a superação de qualquer noção de essencia-
lismo, unicidade e binarismos, confrontando “radicalmente as práticas ra-
cistas, sexistas e homofóbicas que insistem em emudecer nossas mestiças,
índias, negras, lésbicas e queers nos seus vários lugares de enunciação, po-
rém particularmente na academia”.
Ao lado da crítica aos universalismos e categorias homogenei-
zantes dos estudos feministas pós-coloniais, conforme Hernández-Castillo
(2008, p. 27), tem-se igualmente reconhecido que a preocupação com a
diferença pode levar a essencialismos culturais. As representações a-histó-
ricas das culturas, como unidades homogêneas de valores e costumes com-
partilhados, podem inferir em fundamentalismos culturais que veem os
intentos das mulheres em transformar práticas que afetam suas vidas como
uma ameaça à identidade coletiva do grupo. A historização das práticas
culturais permite demonstrar que muitas práticas ‘tradicionais’ que afetam
e violentam as mulheres – as quais muitas vezes têm origem em contextos
coloniais – têm se transformado, e sua modificação ou desaparecimento
não afeta a continuidade do grupo. Existe a necessidade não somente de se
reconhecer as diferenças, como também a historicidade dessas diferenças e
suas particularidades em nível local na interconexão com o global.
Os interesses das mulheres indígenas, ao se articularem de mui-
tas maneiras, demonstram o caráter contingente da agência feminina que
questiona noções universalizantes e se articula por diferentes vias, com o
reconhecimento de múltiplos vetores de discriminação. Millán (2006, p.
40) explica que pensar as indígenas como contemporâneas dissolve os sedi-
mentos evolucionistas presentes no indigenismo nacional, nos feminismos
e nos discursos exotizantes de indígenas produzidos pela nação. Para isto,
é necessário a historização e contextualização de gênero para evitar univer-
salismos. É preciso o reconhecimento da maneira como as lutas locais estão
inseridas em processos globais de dominação capitalista e de colonização
de representações, bem como considerar a cultura como processo históri-
co, terreno de conflitos e de relações de poder, a fim de evitar o essencialis-
mo cultural.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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MULHERES INDÍGENAS E SUAS DEMANDAS DE GÊNERO

A agência das mulheres indígenas deve se dar através da vi-


sibilidade de suas distintas estratégias de resistência e de enfrentamento
às violências. Para isso, são necessárias novas concepções de direitos das
mulheres e de equidade de gênero, que transcendam o individualismo e o
universalismo. De acordo com Hernández-Castillo e Suárez-Navaz (2008,
p. 11), as mulheres de diferentes grupos étnicos estão lutando por relações
mais justas entre homens e mulheres, a partir da transcendência do indi-
vidualismo ocidental, de concepções de uma vida digna além do direito à
propriedade, e concepções de equidade que incluam não somente a com-
plementaridade entre os gêneros, senão também entre humanos e natureza.
A luta das mulheres indígenas por reconhecimento dos direitos
coletivos de seus povos e de seus próprios direitos de gênero deve ser desen-
volvida em espaços políticos onde o gênero e a cultura não tenham caráter
essencialista e a partir de práticas políticas feministas plurais que ultrapassem
a noção universal dos feminismos acadêmicos urbanos e dos movimentos
indígenas homogeneizantes (HERNÁNDEZ-CASTILLO, 2001, 2008).
Além disso, é necessário incorporar as definições indígenas acer-
ca de violências e direitos, de distintas configurações de feminilidade e seus
posicionamentos no interior dos povos indígenas – como mães, líderes po-
líticas e responsáveis pela (re)produção das sociedades indígenas. A auto-
nomia e o agenciamento da mulher indígena para enfrentar os problemas
que a afetam perpassa o reconhecimento de suas particularidades. Somente
quando forem consideradas suas agendas específicas e historicamente situadas
se efetivará o diálogo entre vários movimentos sociais, e será possível refle-
tir sobre como a conquista de seus direitos étnicos pode também fortalecer
seus direitos enquanto mulheres, e vice-versa.
As mulheres indígenas se organizam não apenas cruzando fron-
teiras dentro dos Estados-nação, mas também ultrapassando diferenças
sociais, culturais e estruturais internas. Seus discursos e reivindicações
remetem a perspectivas de gênero cultural e historicamente situadas, na
interface com a questão da etnicidade. Não se pode propor uma ‘igualdade
de gênero’ despolitizada de temas centrais que as indígenas reivindicam a
partir dos direitos de seus povos e das denúncias sobre os efeitos nocivos
dos projetos políticos e econômicos neoliberais. Gênero é ‘culturalmente
situado’ e, assim, é necessário constituir um ‘feminismo das diferenças étni-
cas’ que inclua, ao mesmo tempo, direitos das mulheres e reconhecimento
étnico. Não é um discurso de gênero universal, mas aquele que contempla
outras vozes e visões alternativas, ampliando a noção de agência como re-
sistência à dominação, em processos de autonomia.

INTERSECCIONALIDADES,
240 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ÂNGELA CÉLIA SACCHI

REFERÊNCIAS

COSTA, Claudia de Lima. Feminismo e tradução cultural: sobre a colonialidade do


gênero e a descolonização do saber. Disponível em: http://www2.let.uu.nl/solis/
psc/p/PVOLUMEFOUR/PVOLUMEFOURPAPERS/P4DELIMACOSTA.pdf.>.
2012. p. 41-65.
CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o encontro de especialistas em
aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v.
10, n. 1, p. 171-188, 2002.
HERNÁNDEZ-CASTILLO, Rosalva A. Entre el etnocentrismo feminista y el
esencialismo étnico: las mujeres indígenas y sus demandas de género. Debate
Feminista, año 12, v. 24, p. 206-230, 2001.
______. Re-pensar el multiculturalismo desde el género: las luchas por el
reconocimiento cultural y los feminismos de la diversidad. La Ventana - Revista de
Estudios de Género, n. 18, p. 9-39, 2008.
HERNÁNDEZ-CASTILLO, Rosalva A.; SUÁREZ-NAVAZ, Liliana. Introducción.
In: ______; ______ (Eds.). Descolonizando el feminismo: teorías y prácticas desde
los márgenes. Madrid: Editorial Cátedra, 2008. p. 6-23.
MILLÁN, Márgara. Participación política de mujeres indígenas en América Latina:
el movimiento zapatista en México. República Dominicana: Instituto Internacional
de Investigaciones y Capacitación de las Naciones Unidas para la Promoción de la
Mujer (INSTRAW), 2006. 52 p.
NAVARRO, Sandra H. Saberes con rostro de mujer: mujeres indígenas,
conocimientos y derechos. La Ventana - Revista de Estudios de Género, n. 15, p.
119-148, 2002.
PICQ, Manuela L. La violencia como factor de exclusión política: mujeres indígenas
en Chimborazo. In: PEQUEÑO, Andrea (Org.). Participación y políticas de mujeres
indígenas en contextos latino-americanos recientes. Quito-Ecuador: FLACSO,
Ministério de Cultura del Ecuador, 2009. p. 125-143.
SEGATO, Rita L. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um
vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES [Online], v. 18, p. 106-131,
2012. Disponível em: <http://eces.revues.org/1533>.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 241
PARTE III
GÊNEROS EM MOVIMENTO:
ESPAÇO, RAÇA, IDADE
E CLASSE
NARRATIVAS DE VIAGEM,
ENCONTRO COLONIAL E ALTERIDADE:
UM OLHAR A PARTIR DA
GEOGRAFIA FEMINISTA
María Dolors García-Ramón

***

Nesta conferência eu pretendo recuperar para o pensamento


geográfico algumas tradições que foram consideradas pouco ‘científicas’
em seu momento, como os livros de exploração e viagens. Esses livros e as
narrativas de viagem constituem um rico material para a compreensão da
apropriação intelectual que a Europa fez do ‘Oriente’, tanto como parte inte-
grante, como produto de um vasto processo conhecido como colonialismo,
no qual a geografia esteve profundamente envolvida. Em particular, quero
resgatar do esquecimento as narrativas escritas por mulheres viajantes e
exploradoras, que também estão na base da formação de nossa disciplina.
A conferência está dividida em três partes. Na primeira delas rea-
liza uma revisão da percepção crítica das proposições de Edward Said sobre
o ‘orientalismo’ e a ‘alteridade’, uma das referências intelectuais da geogra-
fia pós-colonial, e examina as recentes análises nos campos da geografia e
do feminismo. O estudo das narrativas de mulheres viajantes a partir de
uma perspectiva feminista e pós-colonialista tem desempenhado um papel
muito importante nesta análise crítica das proposições de Said e da história
das explorações. A segunda parte está centrada nas experiências de duas
mulheres viajantes europeias ao mundo árabe no princípio do século XX,
Gertrude Bell e Isabelle Eberhardt. A escolha dessas duas mulheres se deve
à razão de que ambas encarnam maneiras muito diferentes no enfrenta-
mento da alteridade que o mundo do islã supunha para a Europa em seu
tempo. Finalmente, na terceira seção, esboçarei algumas conclusões.
NARRATIVAS DE VIAGEM, ENCONTRO COLONIAL E ALTERIDADE: UM OLHAR A PARTIR DA
GEOGRAFIA FEMINISTA

AS CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS


PÓS-COLONIAIS AO ESTUDO DA
ALTERIDADE E DAS NARRATIVAS DE VIAGENS

A partir da década de 1990, a geografia tem reconsiderado as


noções de conhecimento, de objetividade e das linguagens herdadas das
descrições e ilustrações hegemônicas. A geografia tem nos convidado a re-
construir sua própria história, considerando a pluralidade e a as diferentes
formas de compreendê-la (DRIVER, 2001; LIVINGSTONE, 2003; NOGUÉ
e ROMERO, 2006; PIMENTA et. al., 2006; JAZEEL e McFARLANE, 2010).
Com esta proposição se pode estudar a contribuição dos livros
de viagem e de exploração na constituição das bases de nossa disciplina,
sobretudo no período do final do século XIX e princípio do século XX
(HERODOTE, 1978; GODLEWSKA e SMITH, 1994; PHILLIPS 2006;
GARCÍA-RAMÓN et al., 2007; ZUSMAN et. al., 2007; SIDAWAY, 2012).
De fato, os homens e mulheres viajantes/exploradores se constituíram em
legitimadores da autoridade científica e sua atividade não apenas faz parte
da exploração colonial europeia, como também simboliza uma visão de
mundo em que as ações europeias são tidas como ‘fundamentalmente ci-
vilizadoras’.
Há poucos anos começou-se a utilizar o termo ‘pós-colonial’, mas
o êxito e a extensão do seu uso têm sido surpreendentes. Em 1993, Homi K.
Bhabha, um de seus propagadores, argumentava que o termo era utilizado
cada vez mais para se referir àquela forma de crítica social que decifra os
processos desiguais de representação com os quais a experiência históri-
ca do Terceiro Mundo colonizado chega a conceitualizar-se no Ocidente.
Assim, a aparição dos estudos pós-coloniais está relacionada com a che-
gada, acesso e consolidação no mundo acadêmico ocidental de estudiosos
originários do Terceiro Mundo e, assim, compreende-se que este enfoque
contenha uma forte crítica ao eurocentrismo e, em geral, ao etnocentrismo.
As críticas ao termo ‘pós-colonial’ não foram poucas (DIKEÇ, 2010). Con-
tudo, a realidade é que o termo se consolidou e se impôs de forma profunda
nas ciências sociais, incluindo a geografia. Os próprios críticos do termo
já não propõem sua supressão. Uma peça-chave nos estudos pós-coloniais
tem sido a análise da obra de Edward Said (1978), que, apoiando-se em
Foucault e Gramsci, propõe que o Oriente não existe realmente, mas que:

INTERSECCIONALIDADES,
246 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARÍA DOLORS GARCÍA-RAMÓN

[...] o Oriente é uma construção europeia, um produto intelectual


europeu, uma imagem do Outro, que permite, ao definir o Outro,
identificar-se a si mesmo como europeu, como ocidental [e portanto
como superior]. (SAID, 1978, p. 5).

A metáfora de Said é especialmente sugestiva para a geografia por


duas razões. Em primeiro lugar porque na construção da alteridade, a espa-
cialidade tem um papel importante. O ‘outro’ é concebido como uma entida-
de externa, contra a qual ‘nós’ e ‘nossa identidade’ se mobiliza e reage. Nota-
damente no encontro colonial o ‘outro’ vive além, em outro lugar e, assim, a
própria noção tem, portanto, uma intrínseca dimensão espacial. A segunda
razão de que Said interessa para a geografia é porque o período de consoli-
dação e institucionalização do ‘orientalismo’ coincide com o período de má-
xima expansão colonial europeia e com o auge do momento da criação das
sociedades geográficas europeias e da expansão da geografia como ciência.
Nesta mesma linha, a história da geografia coloca uma ênfase es-
pecial na análise dos contextos institucionais, intelectuais e sociais em que
as práticas da exploração estiveram presentes. É básico, assim, estudar o pa-
pel que os exploradores e exploradoras desempenharam na popularização
de mitos e fantasias sobre o mundo europeu, já que a exploração geográfica
não apenas superava distâncias físicas, mas também proporcionava dife-
rentes visões do ‘outro’ e ajudava a criar aquilo que se denominava ‘geogra-
fias imaginativas’ (GREGORY, 2000).
Os relatos de viagem foram o veículo por meio do qual o conhe-
cimento popular e também o científico foram transmitidos a um público
mais amplo (por exemplo, a classificação das espécies). Com certeza, as
proposições de Said foram cruciais para os estudos pós-coloniais, mas o seu
esquema de oposição binária entre ocidente/oriente e entre colonizadores/
colonizados é um tanto simplista e deixa pouco espaço para a reflexão de
posturas fluidas e ambivalentes (DOMOSH, 1991; McCLINTOCK, 1995;
YEGENOGLU, 1998; MILLS, 2005; DELL’AGNESE e RUSPINI, 2005).
Além disso, Said desconsidera o papel desempenhado pelas mu-
lheres no encontro colonial. Necessitamos lembrar a multidão de esposas
dos funcionários ou de oficiais, missionárias, enfermeiras, professoras, in-
clusive turistas, etc. Não se pode desconsiderar que a aparente trivialidade
da vida da maioria das mulheres europeias nas colônias ocultava prova-
velmente um papel nada desprezível em um sistema imperial que era, em
princípio, bastante androcêntrico (KABBANI, 1986; PRATT, 1992; LEWIS,
2004; ROSSI, 2005).

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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NARRATIVAS DE VIAGEM, ENCONTRO COLONIAL E ALTERIDADE: UM OLHAR A PARTIR DA
GEOGRAFIA FEMINISTA

Por esta razão, as proposições de Said foram amplamente criticadas


pelos estudos feministas e pós-coloniais (BLUNT e ROSE, 1994; McEWAN,
2000; CERAROLS, 2008). Certamente que a posição peculiar das mulheres,
entre o discurso do colonialismo e o da feminilidade, podia apontar alguns
elementos de contradição no encontro colonial. Em última instância, a po-
sição das mulheres, em geral subalternizadas em uma sociedade patriarcal,
poderia gerar por parte delas um olhar crítico da condição colonial.
A ideia que subjaz a uma boa parte desta revisão feminista pós-
colonialista é a esperança de que as mulheres, também colonizadas pelo seu
gênero em seu próprio país, possam, quem sabe, reconhecer e opor-se mais
abertamente à colonização baseada sobretudo na diferença racial. Esta pos-
sível ruptura interior permite explicar certa ambivalência ou ambiguidade
como o projeto colonial que frequentemente se observa nas narrativas de
mulheres. Isso, quem sabe, permite que o olhar orientalista e colonialis-
ta seja menos avassalador e mais complexo e, portanto, não tão simplista
como propõe Edward Said.
Mas as práticas coloniais eram ambivalentes, e a situação e a po-
sição da mulher eram com frequência contraditórias. As mulheres podiam
compartilhar os recursos do poder colonial nas colônias, mas não nas me-
trópoles, e esta dualidade tem sua origem nos discursos patriarcais e colo-
niais da diferença.
Uma mulher ocidental era marginalizada no contexto patriarcal
em seu país de origem, onde seu papel social a concebia primeiramente em
termos de inferioridade de gênero. Entretanto, nas colônias a percepção da
superioridade racial podia ser mais forte que a inferioridade de gênero. O
que é evidente nas narrativas de viagens das mulheres viajantes é que elas
eram muito mais específicas, porque tinham como pressuposto a vivência
feminina. (BLAKE 1992; MILLS 2005).
Tais narrativas exibem uma série de características específicas
que, na maior parte, têm origem no processo de socialização particular
das mulheres, assim como da natureza do tipo de viagem que as mulheres
costumavam realizar. Efetivamente, poucas mulheres viajavam em missão
oficial e, assim, suas descrições não necessitavam satisfazer a um oficial su-
perior e nem tampouco tinham que reforçar sua reputação profissional. Por
isso, os textos dessas narrativas femininas podiam expressar maior liberda-
de e não estavam sujeitos a considerações ditadas por estratégias profissio-
nais ou políticas. Além disso, os textos femininos têm um maior interesse
etnográfico e antropológico e são uma fonte inestimável para conhecer as
populações nativas e a vida cotidiana dos países visitados.

INTERSECCIONALIDADES,
248 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARÍA DOLORS GARCÍA-RAMÓN

Já foi considerado aqui que a categoria de gênero não pode ser


isolada das demais categorias de nação, raça e classe e que a análise deve in-
cluir a interação entre todos estes componentes. Isso quer dizer que devem
ser analisados do ponto de vista da interseccionalidade (McCLINTOCK,
1995; RODÓ-DE-ZÁRATE, 2014). Em todo caso, as mulheres e homens
viajantes eram ‘forasteiras/os’, pertencentes a outra raça, outra nação e ou-
tra cultura. Algo que nem sempre se teve em conta tão explicitamente como
é necessário. De toda forma, o estudo das narrativas de viagem não prestou
atenção suficientemente merecida à classe social (SECOR, 1999) tal como
se mostra no estudo comparativo das mulheres viajantes, foco deste estudo.

GERTRUDE BELL (1868-1926):


A RAINHA SEM COROA DA MESOPOTÂMIA
Uma vida de exploração e aventura

No momento de sua morte, em 1926, Gertrude Bell era uma len-


da. Não é de se estranhar que dois dias depois o periódico The Times de 13
de julho de 1926 tenha publicado uma declaração da Câmara dos Comuns
nestes termos:

Senhora Gertrude Bell, cuja morte anunciamos com grande pesar,


é quem sabe, a mulher mais distinta de nosso tempo no campo da
literatura, arqueologia e a exploração do oriente.

Contudo, sua fama foi logo obscurecida pela de seu excêntrico


amigo e aliado T. E. Lawrence, mais conhecido como Lawrence das Arábias
(GORDON, 1994; WALLACH, 1996; HOWELL, 2008). Curiosamente, não
foi até a Guerra do Iraque, em 2003, que voltaram a aparecer referências
sobre Gertrude Bell nos meios de comunicação, já que ela teve muito que
ver com o nascimento do Iraque moderno e com a determinação de suas
fronteiras meridionais. (GARCÍA-RAMÓN, 2002; LUKITZ, 2006).
Gertrude Bell nasceu no condado de Durham, no Reino Unido,
próximo de Newcastle. Sua família possuía uma das maiores fortunas in-
dustriais da Grã-Bretanha. Ela foi uma das primeiras mulheres a licenciar-
se em História Moderna em Oxford. Era conhecedora de várias línguas,

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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NARRATIVAS DE VIAGEM, ENCONTRO COLONIAL E ALTERIDADE: UM OLHAR A PARTIR DA
GEOGRAFIA FEMINISTA

falava francês, alemão e italiano, e mais tarde aprendeu persa, árabe e turco.
Sua primeira viagem ao Oriente foi em 1892, quando visitou seu tio, em-
baixador britânico em Teerã. Ela teve várias relações amorosas durante sua
vida, mas nunca se casou e, assim, desfrutou de grande liberdade para suas
viagens.
Gertrude Bell publicou vários livros, escreveu inumeráveis cartas
dirigidas à sua família e a amigos (BELL, 1987), bem como um diário que
não foi publicado. Também redigiu vários informes políticos confidenciais
para as autoridades britânicas sobre a situação na Mesopotâmia. Todo este
material pode ser consultado no Fundo Gertrude Bell da Universidade de
Newcastle.
Em 1893, Gertrude realizou uma viagem para Há’il, atualmente
norte da Arábia Saudita, partindo de Damasco e passando por Palmira e
Bagdá, entrando em Nefud e regressando a Damasco pelo sul, através do
atual deserto jordaniano.
Esta viagem conferiu muita notoriedade a Gertrude Bell, porque
durante a Primeira Guerra Mundial o Arab Bureau do Serviço Britânico de
Inteligência Militar no Cairo lhe propôs que colaborasse com esta agência.
Posteriormente, foi nomeada Secretária para Assuntos Orientais do Alto
Comissariado Britânico no Cairo, Bassora e, finalmente, em Bagdá. Mas
seu posto era semioficial, e com um salário simbólico. Sua posição social
e econômica na Inglaterra e as suas conexões familiares lhe ajudaram a al-
cançar estes postos, como se deduz de uma carta de recomendação de 1915,
de Lord Cromer, um dos homens mais influentes em tudo o que se referia
ao Oriente Médio:

Senhora Gertrude Bell, que é uma grande amiga minha, viajará ao


Egito. É filha do Senhor Hugh Bell, muito conhecido na política in-
glesa e dono de uma importante siderúrgica de Middlesborough.
Faz anos que eu a conheço e posso afirmar que sabe mais dos árabes
do que qualquer inglês ou inglesa na atualidade. Eu recomendo mui-
to especialmente a Senhora Bell, no caso de que haja uma ocasião de
encontrar-se com ela. (SAD, 135/6/12).

Gertrude Bell fez parte das negociações sobre a Mesopotâmia ocu-


pada pelos britânicos e apoiou também os planos de T. E. Lawrence de colo-
car o Emir Faisal para chefiar o novo reino do Iraque. Este era da família de
Hachemita, da Meca, e havia dirigido, juntamente com Lawrence, as forças

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árabes contra os turcos durante a famosa marcha sobre Damasco. Em 1921,


Bell fez parte da Conferência do Cairo em que Faisal foi proclamado rei.
Gertrude Bell no princípio teve grande influência sobre o novo
rei, razão pela qual foi denominada ‘a rainha sem coroa da Mesopotâmia’.
Bagdá se converteu em sua residência permanente, mas sua influência co-
meçou a enfraquecer pouco depois da proclamação de Faisal como rei.
Como não era propriamente uma funcionária do Colonial Office e nem
tampouco uma diplomata oficial, Gertrude deixou de ser útil para a política
de Londres no Oriente Médio. Por esta razão, sua saúde foi deteriorando e,
em 11 de julho de 1926, foi encontrada morta na cama, provavelmente por
causa de uma dose fatal de barbitúricos.

AVENTURA E EXPLORAÇÃO
NOS TERRITÓRIOS DO ORIENTE MÉDIO

Gertrude Bell manteve uma constante relação com a Royal Geo-


graphical Society (RGS). Ali fez vários cursos sobre projeções cartográficas.
Em suas viagens, costumava levar seu teodolito para fazer medições de la-
titudes, que logo enviava à RGS. Em 1913, foi eleita membro desta orga-
nização, sendo uma das primeiras mulheres aceitas como membro, após a
decisão da instituição em admitir mulheres como participantes.
Em 1918, foi homenageada com uma medalha de ouro da RGS
pelo reconhecimento de suas explorações no deserto da Arábia. Bell publi-
cou dois artigos sobre suas viagens na revista desta instituição (BELL, 1910,
1914). A RGS também prestou uma homenagem póstuma a Gertrude Bell,
na qual o seu presidente destacou a importância das contribuições dela
para o conhecimento de territórios quase desconhecidos pelos ocidentais
até aquele momento (HOGARTH, 1927).
Sua contribuição mais significativa à exploração geográfica foi a
mencionada viagem em 1913-1914 ao oásis de Há’il, situado estrategica-
mente sobre a rota principal de Bagdá até a Meca, que era praticamente
desconhecida para os ocidentais. Viajou com vinte camelos, dois guias, um
cozinheiro e três condutores de camelos.
Após numerosas dificuldades, alcançou Há’il, que era governa-
da pela ‘casa de Ibn Rashid’, grande rival da ‘casa de Ibn Saud’, atual casa

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reinante da Arábia Saudita. Poucos europeus haviam estado ali, e as infor-


mações que Gertrude Bell obteve sobre Ibn Rashid e suas relações com a
‘casa dos Saud’ foram de grande importância durante a Primeira Guerra
Mundial.
Bell cartografou uma importante linha de poços no ângulo do
Deserto de Nefud, na Arábia, e o maior resultado estratégico de sua expe-
dição foram os dados que coletou sobre os grupos tribais que se encontra-
vam entre a linha férrea de Heyaz, por um lado, e o Sirham e o Nefud, por
outro. As explicações detalhadas de Bell foram de particular utilidade para
Lawrence durante a famosa campanha árabe, denominada marcha sobre
Damasco, em 1917 e 1918. A propósito disso, o Alto Comissariado Britâ-
nico em Bagdá comentou o seguinte na mencionada sessão necrológica de
Gertrude Bell que ocorreu na RGS:

[...] todos ouviram sobre os êxitos extraordinários do Coronel


Lawrence, que certamente o foram [...] Mas não sempre se é cons-
ciente de que para fazê-los possíveis foi necessária uma longa pre-
paração prévia, e eu atribuo grande parte do êxito das empresas do
Coronel Lawrence às informações e aos estudos em que a Senhora
Bell teve uma participação destacada. (COX, 1927, p. 19).

GERTRUDE BELL: CÚMPLICE DA


CAUSA E DOS OBJETIVOS IMPERIAIS?

Nos relatórios confidenciais ao governo britânico, Gertrude des-


tacava as dificuldades de estabelecer um governo nacional sobre os diversos
grupos que viviam dentro das fronteiras do Iraque, sobretudo os xiitas e os
sunitas, um tema ainda de grande importância no Iraque atual.
Gertrude aconselhava o governo britânico que se pronunciasse a
favor da minoria sunita, já que era a mais preparada, em sua opinião:

Ainda que os xiitas sejam a maioria no Iraque, os sunitas estão in-


discutivelmente mais avançados como grupo do que seus rivais, cujo
reduzido grupo de homens está submergido em um oceano de gente
incivilizada e nada maleável. Enquanto as classes que predominam

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entre os sunitas são proprietários de linhagem nobre, eclesiásticos,


políticos, funcionários, profissionais, comerciantes e artesãos, um
sólido corpo de pessoas mais ou menos educada e sensível ao pro-
gresso. (SAD, 150/7/83-86).

Entre xiitas e sunitas existia e ainda existe no Iraque uma dife-


rença real de classe social, já que os primeiros eram sobretudo a popula-
ção rural mais pobre da Baixa Mesopotâmia, e os poderes coloniais sempre
souberam que teriam muitas vantagens se jogassem com o enfrentamen-
to das diversas minorias ou grupos. É importante destacar que os relatórios
confidenciais de Bell mostram uma mescla característica de valores pessoais
e psicológicos, ao lado de juízos políticos. Assim, por exemplo, todos os
preconceitos do ‘olhar orientalista’ sobre os governantes não ocidentais se
revelam no retrato que Bell faz de Abdelaziz Ibn Saud, fundador do Estado
Saudita e pai de todos os reis sauditas até agora:

[...] apesar de ser muito alto e de costas largas, transmite a impressão


tão comum no deserto, de um cansaço indefinido, que não é indivi-
dual, mas racial. A fadiga secular de um povo antigo e autocontido
[...] seus movimentos estudados, seu sorriso lento e doce e o olhar
contemplativo de seus olhos com as pálpebras caídas, ainda que re-
forcem sua dignidade, não se ajustam à concepção ocidental do que
seja uma personalidade vigorosa. (BELL, Relatório Confidencial so-
bre a Mesopotâmia, p. 30-31).

É um retrato com os elementos orientalistas e de maneira sutil


transmite a mensagem de que os europeus são superiores. Em 1917, o rei
Jorge V lhe concedeu e nomeou como Comandante do Império Britânico.
Isso não é de se entranhar, já que Bell empregou sempre os seus conheci-
mentos em suas viagens para favorecer a causa do Império Britânico. Em
seus escritos fica muito claro que ela nunca imaginou que sua lealdade ao
império poderia ser prejudicial ou nem sequer coincidia com os interesses
dos árabes, a quem, com frequência, se referia, em um tom paternal, como
essa “criança muito velha” (BELL, 1987). Esta metáfora da ‘criança velha’
para se referir aos orientais ou árabes tem conotações muito características
do ‘orientalismo’.

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IDENTIDADE E GÊNERO NA
PERSONALIDADE DE BELL

Gertrude sentiu-se prisioneira por causa das limitações que a


vida social lhe impunha devido ao seu gênero. Em numerosas ocasiões la-
mentou-se disso em seus escritos. Mas, como mulher, era consciente de que
tinha também certas vantagens. Era mais fácil para ela estabelecer contatos
com a população local, abrindo mais oportunidades de conseguir informa-
ções valiosas. Por exemplo, durante seu breve encarceramento ou detenção
em um luxuoso harém em Há’il, onde só podia ser visitada por mulheres,
obteve informação crucial de uma circassiana que havia sido concubina
do último emir e com quem estabeleceu certa amizade. Em parte, porque
era mulher, e uma mulher no serviço exterior era uma novidade; assim, os
árabes a consideravam como ‘semioficial’, o que explica que chegassem a
ela muitas notícias de que os funcionários britânicos não tinham conhe-
cimento, as quais frequentemente eram muito reveladoras a partir de uma
perspectiva política.
Gertrude também aproveitou as suas qualidades femininas como
anfitriã para organizar jantares em sua casa em Bagdá, nas quais os xeiques
locais e os membros da administração colonial eram convidados para que
pudessem discutir questões políticas de maneira informal e menos rígida.
Mas Gertrude chegou a ser famosa no Oriente Médio pelo que seus con-
temporâneos chamavam de qualidades masculinas. O presidente da RGS,
no ato póstumo naquela instituição, disse:

A Senhora Bell é, todavia, tão bem conhecida ao longo do grande


mundo árabe [...] Não creio que nenhuma mulher europeia tenha
alcançado tanta reputação. Tinha todo o encanto de uma mulher
combinado com muitas qualidades que atribuímos aos homens. No
Oriente a conheciam pelas suas qualidades masculinas. (HOGARTH,
1927, p. 21).

Em suas viagens, Gertrude Bell se comportava sempre como uma


dama e vestia longos e incômodos trajes vitorianos. Enquanto viajava pelo
deserto, levava consigo um baú com finas lingeries e com vestidos elegan-
tes que sempre vestia, inclusive quando estava só, para jantar. Certamente

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era uma norma entre os funcionários e militares britânicos nas colônias,


inclusive durante suas viagens, vestir-se de maneira muito formal em de-
terminados momentos. Gertrude tinha muita clareza, igualmente como os
funcionários britânicos, de que esses rituais serviam para manter um sen-
tido de identidade cultural frente ao ‘outro’ e para perpetuar a ideologia do
governo imperial. É curioso constatar que Bell seguia com muito interesse
a última moda de Paris e de Londres, e ela pedia à sua mãe adotiva ajuda
em suas compras:

Permita-me que lhe peça quatro blusas, por favor, de Crepe da Chi-
na. Se possível, duas de cor marfim e duas de cor rosada. Envio com
esta uns anúncios da Harrods que são elegantes, especialmente as
que assinalei. Agradeceria também muito se pudesse encontrar e en-
viar a mim uma jaqueta verde de seda com botões prata […]. (BELL,
1987, p. 340).

Nesta carta é possível identificar facilmente seu estrato social e


sua identificação de classe. Não foi em vão que uma das necrologias pu-
blicadas por ocasião de sua morte no periódico The Times era intitulada
“Moda de Paris e modos de Mayfair nos desertos da Arábia”.

ISABELLE EBERHARDT (1877-1904):


A ‘NÔMADA APAIXONADA’
Retrato de uma lenda

Isabelle nasceu em Genebra, Suíça, em 1877. Sua mãe, casada


com um general pertencente à aristocracia russa, fugiu para a Suíça, em
1872, com o tutor de seus filhos, um anarquista russo que havia sido um
sacerdote ortodoxo. Este homem foi o pai de Isabelle, e ele dirigiu sua edu-
cação e transmitiu o inconformismo que marcaria toda a sua vida. Também
a encorajou a usar roupas masculinas, ensinou-a a cavalgar e lhe deu aulas
de árabe. Ávida leitora de Pierre Loti, sentiu-se atraída pelo Oriente. Em
1897, ela e sua mãe partiram para a cidade argelina de Bône (atualmente
Annaba), onde ambas se converteram ao Islam.

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GEOGRAFIA FEMINISTA

Isabelle logo se sentiu próxima dos muçulmanos e começou a es-


crever uma série de relatos breves para a revista L’Athénée, mostrando ima-
gens da vida local (BEHDAD, 1994). Sua mãe morreu depois de seis meses
da sua chegada, e este fato marcou o início da vida nômade de Isabelle.
Vestida como um homem árabe e usando um novo nome, Si Mahmoud,
adquiriu um cavalo e dirigiu-se ao Saara. Por diversas razões legais, Isa-
belle perdeu sua herança, vivendo o restante de sua vida na mais absoluta
pobreza.
Em 1900, no El Oued, casou-se com um jovem militar argelino
que era membro de uma ordem sufi, a Qadriya, na qual Isabelle também
foi iniciada. As autoridades coloniais consideravam a presença de Isabelle
como perigosa para a lei e ordem locais. Por isso, ela foi expulsa da Argélia
várias vezes, mesmo que tenha conseguido voltar. Em Argel, encontrou-se
com Barrucand, o diretor de uma revista bilíngue favorável a uma política
colonial ‘suave’, El Akkar. Isabelle começou a colaborar com esse periódico,
e Barrucand a apresentou ao general Lyautey, que realizava uma penetração
pacífica naquele território, mais do que uma conquista militar.
O general logo compreendeu que o domínio que Isabelle tinha do
árabe vernáculo e seu amplo conhecimento das tribos locais e da cultura
islâmica faziam dela um valioso recurso para a obtenção de informações
para o aparato colonial francês. Paralelamente, seu casamento com um
muçulmano afrancesado e seu pertencimento à Qadriya lhe dava acesso a
lugares que nenhum outro europeu ousaria penetrar. Assim, o general pro-
pôs que ela se dirigisse ao deserto no sul de Oran para obter informações a
respeito daqueles territórios desconhecidos e sobre as tribos ali radicadas
e suas atividades.
Esta proposta coincidiu com seu desejo de liberdade e de cavalgar
pelo deserto. Enquanto seu marido ficava no norte, ela foi para o sul, com
a permissão do exército francês, que lhe conferia plena liberdade de mo-
vimentos naquela zona. Em 1904, morreu repentinamente, durante uma
tormenta do deserto no Oásis de Aïn Sefra (CLANCY-SMITH, 1992; GAR-
CÍA-RAMÓN e ALBET, 1998).
Isabelle sempre teve o desejo de se fazer um importante nome no
mundo da literatura, e ela publicou diversos livros, com diferentes pseudô-
nimos (muitos deles editados postumamente por Barrucand). O conteúdo
de seus escritos é muito intimista, e neles ela reflete sobre a vida tradicional
do deserto, algo que estava desaparecendo diante de seus olhos; imputava
esse desaparecimento ao domínio colonial.

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RESISTÊNCIA E/OU CUMPLICIDADE


FRENTE ÀS POLÍTICAS COLONIAIS?

Isabelle foi bastante conhecida por suas afinidades e simpatias


com os muçulmanos e criticou abertamente as políticas antiárabes da ad-
ministração francesa. Por exemplo, em Boné, em 1899, quando os estudan-
tes muçulmanos se revoltaram contra as autoridades coloniais francesas,
Isabelle estava entre eles, e escrevia:

Se a luta se converte em inevitável, não duvidarei nem um só ins-


tante [...] quem sabe lutarei pelos muçulmanos revolucionários tal
como fiz pelos anarquistas russos [...] ainda que com mais convicção e
com um autêntico maior ódio contra a opressão. Me sinto agora mais
muçulmana que então me sentia anarquista. (citado de seu Diário por
KOBACK, 1989, p. 63).

É sabido que as simpatias de Isabelle pelos muçulmanos e suas


atividades na irmandade de Qadriya, fórum nativo de oposição política,
não foram do agrado dos franceses, tendo sido cuidadosamente registradas
em diversos relatórios policiais na Argélia. De fato, em um momento em
que a teoria da assimilação era um mito operativo, as tentativas extrava-
gantes de Isabelle para manter um ‘comportamento nativo’ (going native)
questionaram seriamente aquela teoria, sugerindo que a cultura nativa ti-
nha seus próprios méritos e virtudes. Evidentemente, isso não podia ser to-
lerado pelos colonizadores franceses. Mas apesar de as simpatias de Isabelle
estarem sempre com os mais desvalidos, e em que pese ela ter confiado
romanticamente na justiça e na igualdade, nunca participou de nenhum
movimento político. Sua revolução sempre foi claramente de evasão. Mas
Isabelle sempre esteve convencida de alguns dos benefícios da adminis-
tração francesa. Pertenceu a uma geração de livres pensadores eslavos que
consideravam a França como a fonte do liberalismo. Assim, quando a acu-
saram de atividades antifrancesas, ela escreveu:

[...] sempre que posso lhes explico [...] a meus amigos nativos que a
dominação francesa é muito melhor de ter do que a dos Turcos ou a
de qualquer outro poder estrangeiro [...]. (EBERHARDT, 1988, p. 87).

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Esta ambivalência pode nos ajudar a entender algumas de suas


atividades e espacialmente aquelas levadas a cabo durante o último ano no
deserto do sul. Os relatos que ela escreveu traduzem a vida em Tafilalet, no
Saara fronteiriço com o Marrocos. Descreve os soldados com que viajou e
com os quais se identificava. Também apresenta a vida dos oásis da região e
os costumes das tribos nômades, lamentando-se de algumas formas de vida
que estavam desaparecendo. Mas também pensa que algumas das políticas
coloniais poderiam trazer desenvolvimento para as áreas depauperadas:

[...] para justificar nossa presença no sudeste de Oran, a França tem


o imperativo dever de assegurar uma paz benevolente na zona e uti-
lizar todo tipo de iniciativas econômicas para melhorar a situação do
país [...] Sem isso, a conquista desta zona [...] será uma empreitada
inútil que qualquer pessoa sensível não duvidará em condenar seve-
ramente. (EBERHARDT, 1996).

De fato, pouco a pouco Isabelle foi adquirindo uma posição mais


comprometida em relação às políticas de Lyautey, e ela acabou identifican-
do-se parcialmente com elas. Finalmente, parece que Isabelle identificou
nos planos de Lyautey um lado ‘humano’ do colonialismo, que deveria
trazer paz e desenvolvimento. É certo que a viagem ao deserto do sul lhe
proporcionou o estilo de vida que desejava e que lhe havia sido negado
pelos colonizadores do norte, mas ela pagou por isso um preço muito alto,
perdendo sua voz independente. A morte prematura de Isabelle evitou, ao
menos, a dor de constatar que a política colonial de Lyautey, que ela tanto
elogiou, culminou como outras políticas coloniais para as quais a paz signi-
fica simplesmente a intimidação.
Mas novas gerações de escritores do Magreb independente con-
sideram que os escritos de Isabelle foram os primeiros a denunciar a alie-
nação cultural dos colonizadores, e para muitos argelinos ela representa a
defesa dos valores nacionais no momento culminante da época colonial,
e eles a consideram uma precursora dos escritores magrebes francófonos:

A obra de Isabelle é notavelmente proto-posmoderna e pós-colonial:


seu enfoque sobre a realidade do Magreb é percebido por muitos
leitores atuais magrebes como uma tentativa pioneira [...] da revisão
do orientalismo. (ABDEL-JAOUAD, 1993, p. 101).

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TRAVESTISMO E O ENCONTRO COLONIAL

Robyn Longhurst (2007) constatou que o privilégio do conceitual


sobre o corpóreo tem sido um dos pressupostos do conhecimento geográ-
fico. Judith Butler (1990) já afirmava que o corpo é um elemento-chave na
investigação feminista, pós-colonial e pós-moderna. No caso de Isabelle
Eberhardt, este enfoque é bastante frutífero. De fato, Eberhardt parece en-
trar e sair de seu gênero da mesma forma que suas simpatias iam e vinham
dos colonizadores aos colonizados.
A adoção de um nome muçulmano para suas viagens e seus es-
critos revela as múltiplas dimensões das transgressões de Isabelle. Escolheu
um nome masculino, Si Mahmoud Saadi, simulando um jovem estudioso
árabe em busca do conhecimento corânico (RICE, 1994). Esta escolha de
um sexo diferente do seu pode ser interpretada como uma transgressão de-
liberada ou como uma rejeição ao papel de gênero imposto? Ou, ainda, por
acaso, era apenas um meio para ser admitida nos âmbitos proibidos para as
mulheres, inclusive as muçulmanas? Em parte, isto está sugerido em suas
próprias explicações:

Posso passar completamente despercebida por qualquer lugar. Uma


excelente posição para a observação. Se as mulheres não podem fazer
isso é porque sua vestimenta chama a atenção. As mulheres sempre
foram feitas para serem olhadas e, todavia, não parecem muito pre-
ocupadas com isso. Creio que esta atitude dá aos homens vantagens
demasiadas. (EBERHARDT, 1996, p. 38).

Mas seu travestismo tem raízes em sua infância, quando foi fo-
mentado por Trophimowsky, e já se disse também que era fruto das necessi-
dades de sua vida nômade, o que complica ainda mais a questão. Eberhardt
não apenas se vestia como um homem, mas também como árabe, subver-
tendo outra forma de hegemonia e transpassando assim uma fronteira cul-
tural: um homem europeu podia ocasionalmente vestir-se como um árabe,
mas não uma mulher europeia. O travestismo de gênero e de cultura de
Isabelle provocava aberta hostilidade dos colonizadores franceses. Entre os
árabes essas transgressões eram recebidas com indiferença, já que ela era
europeia, e este era o único fato fundamental do ponto de vista dos nativos.

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Mas Isabelle era muito consciente da diferença entre sua identi-


dade feminina europeia e o papel de homem jovem árabe que ela adotou.
Ela escreve com frequência: “ninguém conhece minha verdadeira identi-
dade”, reconhecendo a separação entre sua identidade real e sua identidade
adotada e, portanto, aceitando o gênero como categoria construída.
Em sua busca de uma identidade, tanto como em sua fuga da-
quela identidade que a aborrecia, Isabelle tomou para si diversos nomes
exóticos masculinos e femininos, sempre árabes ou russos, ainda que em
seus últimos anos tenha quase sempre utilizado o nome de Si Mahmoud
Saadi, tanto nos seus escritos como em sua vida diária. Esta transgressão
das fronteiras de gênero e de cultura perturbava profundamente as imagens
estereotipadas do Oriente e do ‘outro’ e, definitivamente, da identidade co-
lonial, baseada na diferenciação e discriminação racial.

REFLEXÕES FINAIS

O estudo das vidas e dos escritos de Gertrude Bell e de Isabelle


Eberhardt nos oferece elementos importantes para a criação de uma ima-
gem de alteridade, situada em um espaço remoto e exótico, e também nos
revela a complexidade da experiência do encontro colonial. Isabelle e Ger-
trude desempenharam papéis significativos nas suas respectivas áreas colo-
niais do mundo árabe, embora se tenha detectado a ambivalência da sim-
ples noção de alteridade, tal e como é apresentada na obra de Edward Said.
O estudo destas duas mulheres coloca, além disso, o destaque da
centralidade da categoria de gênero, que, combinada com as categorias de
raça, nacionalidade, identidade e classe social, constitui um instrumento
analítico muito útil para examinar as narrativas de mulheres viajantes no
encontro colonial. De fato, não se pode afirmar, tal como faz uma boa parte
da literatura feminista pós-colonial, que as mulheres viajantes ou explora-
doras, pela sua condição feminina, tenham uma atitude menos racista ou
mais crítica em relação ao projeto colonial. A análise interseccional eviden-
cia um panorama muito mais complexo.
Para Bell, a viagem ao Oriente significava a liberdade; quer dizer,
a mesma conceitualização do Oriente significava a possibilidade de aven-
tura, da fuga que permitia transcender a domesticidade tradicional, neste

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caso para escapar das estreitas margens da vida de uma jovem de alta classe
na Inglaterra em seu tempo. Mas essa liberdade foi apenas a de converter-
se em uma versão singular do Englisman imperial. Gertrude aproveitou do
império para desfrutar de forma especial o poder que não havia podido
ter na Inglaterra, e ela o fez sem questionar nenhuma superioridade im-
perial na Grã-Bretanha. Em contraste com sua atividade ‘masculina’ no
Oriente, em seu país Bell se manteve dentro das barreiras de gênero mais
convencionais. Contudo, e, ao mesmo tempo, aproveitou-se dessas mesmas
feminilidades para estabelecer uma aproximação pessoal com muitos dos
árabes com quem trabalhou, e deu uma publicidade entusiasta para sua his-
tória passada. Sua atitude e seu comportamento, que podemos ler em seus
textos, são muito diferentes dos que são observados nos relatórios mais
objetivos de funcionários coloniais, estes preocupados com suas carreiras
administrativas e/ou políticas.
Para Isabelle Eberhardt, o Oriente (em seu caso, a África do Nor-
te) foi também um lugar de emancipação pessoal e um meio de fugir das
convenções rígidas da sociedade europeia. E não apenas fugir do papel de
gênero, mas também de seu particular problema de sobreposição de identi-
dades e nacionalidades (era russa, francesa, suíça ou magrebe?).
Ao contrário do caso de Bell, o discurso de Eberhardt constante-
mente distorce as fronteiras entre o colonizador e o colonizado. Ela é uma
dissidente frente ao estereótipo colonial predominante. Contudo, sua vida e
seus escritos mostram que uma mulher que havia sido indesejável pela admi-
nistração colonial francesa podia chegar a ser instrumentalizada para efetivar
a penetração colonial. Eberhardt transgrediu as normas europeias de gênero
e identidade e, em geral, seus valores culturais, mas a autoexploração íntima
que em realidade constitui suas viagens pelo deserto só foi possível sob
condições coloniais. Ao cruzar e voltar a cruzar fronteiras, entre gêneros,
idiomas, religiões e culturas, atesta sua capacidade para desafiar posturas
patriarcais, feministas, coloniais ou pós-coloniais. Mas os últimos escritos
de Eberhardt e suas atividades no deserto do sul argelino sugerem que sua
nunca satisfeita realização pessoal no espaço colonial a levou a posturas
cada vez mais ambíguas até se identificar com um dos aspectos do proje-
to colonial, aquele que encarnava o General Lyautey com seus planos de
penetração pacífica no Saara. Suas origens nacionais e de classe, tão com-
plicadas, devem ser levadas em conta para a compreensão de suas ansieda-
des, e elas explicam muitos traços de sua postura diante do conflito entre
colonizadores e colonizados, um conflito em que ela era tanto testemunha
como agente.

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Em conclusão, a vida e os escritos de Isabelle e de Gertrude são


claramente distintos, inclusive contraditórios, mas lançam muita luz sobre
a fluidez das noções de gênero, raça, nação e classe, demonstrando a com-
plexidade dos papéis políticos e ideológicos que exerceram as mulheres
na colônia. Além disso, seus textos apresentam uma visão ambivalente e
fluida do encontro colonial no Oriente em vésperas de ser colonizado. Em
todo caso, trata-se de uma visão da alteridade mais matizada do que aquela
que nos sugere Said, destacada nas narrativas masculinas. Finalmente, o
estudo das narrativas de viagem por mundos pouco conhecidos proporcio-
na aportações de grande interesse para a história da disciplina geográfica,
ainda que com demasiada frequência se tenham evitado as aportações das
mulheres exploradoras viajantes. É certo que nem Bell e nem Eberhardt
são geógrafas, mas, por suas explorações e conhecimentos sobre o Oriente
Médio e o Magrebe, provavelmente merecem ocupar um lugar na história
das explorações na geografia, sobretudo se entendermos esta disciplina a
partir de uma perspectiva pluralista e não excludente.

REFERÊNCIAS

ABDEL-JAOUAD, Heidi. Isabelle Eberhardt: portrait of the artist as a young


nomad. Yale French Studies, v. 83, n. 2, p. 93-117, 1993.
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DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA
VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE
PREVENCIÓN Y ERRADICACIÓN
DE ÉSTA
María Verónica Ibarra-García

***

INTRODUCIÓN

En este artículo se busca recuperar una propuesta analítica de-


sarrollada por la geógrafa argentina Diana Lan, y a la que ha denomina-
do circuito espacial de la violencia debido a que ésta contribuye a la mejor
identificación de la responsabilidad del Estado en la violencia feminicida,
ya sea por omisión, desconocimiento, incapacidad, o todas ellas, así como
salvaguardar a las mujeres en condiciones de seguridad y respeto a sus de-
rechos humanos. A modo de contraste se evaluaran también los intentos de
actores locales, servidores públicos de dependencias municipales y estatales
que enfrentan la violencia feminicida, los recursos con los que cuentan y los
problemas que tienen en la atención a las mujeres víctimas de violencia. Esto
con base en el hallazgo de una RED local que tiene por objetivo prevenir y
erradicar la violencia feminicida en el municipio de Irapuato, Guanajuato.
El análisis se realiza desde la geografía feminista. El artículo está organizado
de la siguiente manera, y con base en metodología cualitativa. Inicia con los
antecedentes, seguidamente se plantea la metodología a emplear, después se
analiza a la RED y por último se plantean las reflexiones finales.

ANTECEDENTES

En 2011, durante el primer encuentro de Geografía de Género


en América Latina, nos pudimos visibilizar algunas de las y los geógrafos
DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE PREVENCIÓN
Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

que intentábamos en ese momento establecer una geografía feminista o del


género en nuestros respectivos lugares de trabajo. Fueron muchas las te-
máticas nuevas a considerar, así como los aprendizajes y las experiencias a
compartir, y los retos a vencer.
Entre las propuestas novedosas se presentó el circuito espacial de
la violencia de la geógrafa argentina Diana Lan. Por tratarse de una geógra-
fa feminista que vive en un país con muy altos índices de violencia femini-
cida, me pareció que dicho concepto era sugerente por varias razones. En
primer lugar, se trabaja una escala local que permite identificar de manera
más precisa en donde se encuentra la problemática en los casos de mujeres
víctimas de violencia que han decidido salir de ella, y para ello acuden a las
dependencias del “gobierno” para su protección. A partir de esto se da visi-
bilidad a instituciones del gobierno que deben operar a favor de las mujeres
víctimas de violencia y esto permite una evaluación a dichas instituciones
en tanto que responsables de la seguridad de la ciudadanía. Es en este punto
en donde de manera clara y contundente deja de ser un problema “privado”,
“íntimo” o “familiar”, y pasa a ser un problema público. De esta manera, el
espacio doméstico reescala, trasciende a éste, y se coloca como un proble-
ma social y en el caso de México, municipal. El municipio es la estructura
básica de poder del Estado Mexicano, es la escala local en donde confluyen,
como decía Milton Santos, todas las escalas. Así, las mujeres una vez que
han decidido acudir a demandar protección al Estado en la estructura de
poder local, están a su vez ejerciendo un derecho ciudadano, el derecho a
la seguridad. Con esa misma acción están demandando la responsabilidad
que el Estado tiene de la seguridad de la ciudadana. Si esto no se cumple, la
falta de responsabilidad y compromiso que tiene es aún más evidente la falta
de responsabilidad y compromiso que tiene ese Estado para con las mujeres.
Ahora bien, en México la violencia feminicida ha sido amplia-
mente analizada por todas las ciencias sociales y las humanidades. Desde la
medicina hasta el medicina, todo el saber se ha volcado en identificar las
causas y las consecuencias, sociales, éticas, económicas, los cambios jurídi-
cos, entre otros. Asimismo se han elaborado protocolos de atención, se han
dictado leyes y reglamentos, y se han diseñado mapas a todas las escalas
(nacional, estatal y municipal). Sin embargo, pocas veces se han realizado
estudios a escala municipal, con excepción de Ciudad Juárez, que se ha con-
vertido en el caso paradigmático. Esta problemática de violencia feminicida
se dio a conocer por la escala municipal de Ciudad Juárez, un municipio
del estado de Chihuahua en la frontera con Estados Unidos, pasó a la es-
cala nacional, en donde se elaboraron las leyes que posteriormente fueron

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

aprobadas y publicadas en el Diario Oficial de la Federación. Enseguida fue


necesario pasar a la escala estatal, a cada una de las 32 entidades federativas
que integran México, y una vez en esa escala nuevamente se debió avanzar
hacia la escala municipal, porque ese es el lugar en donde se concretiza la
violencia hacia las mujeres, y en donde se debe reconstruir un espacio libre
de violencia para ellas.
Esta trayectoria espacial se puede rastrear por la cantidad de es-
tudios e investigaciones que se han desarrollado en México en los últimos
diez años. No obstante lo que resulta realmente novedoso es encontrar una
categoría de análisis que pueda ser aplicada en la escala local, y que permita
evidenciar e identificar, de manera palmaria, y rebasando la visión poli-
ciaca de la seguridad en quién radica la responsabilidad por los elementos
de violencia feminicida. Para ello se irá más allá de la responsabilidad de
los cuerpos policiacos, por el contrario, se hará referencia a la estructura
de poder local que no previno desde lo jurídico, lo social, la salud y las
políticas públicas, entre otras, la violencia contra las mujeres. Este análisis
constituye una parte de los objetivos que tiene el presente trabajo, se busca
trabajar la escala local desde una lectura estructural.
En consecuencia en este trabajo se recupera el régimen de género.
Con éste se busca mostrar cómo se inscribe la propuesta del circuito espa-
cial de la violencia en una totalidad que ilustra el recorrido que hacen mu-
chas mujeres de los municipios de la república mexicana, en su intento por
salir de la violencia en que viven y de las estructuras del régimen de género
que le dificultan e impiden, en muchas ocasiones, encontrar la salida a esa
situación. El estudio de caso es un hecho verídico acontecido en el estado
de Guanajuato, en el municipio de Irapuato, ubicado en la región conocida
como El Bajío.

METODOLOGÍA

En este apartado tomaremos lo que se define como el régimen de


género, en el cual los hombres dominan y explotan a las mujeres con base
en seis estructuras que pueden ser analíticamente delimitables, a la vez que
están integradas en dicha totalidad. Las seis estructuras: la unidad domésti-
ca, donde los hombres se apropian del trabajo doméstico sin remuneración

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DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE PREVENCIÓN
Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

a las mujeres; las relaciones laborales, en donde las mujeres son sometidas
a los peores trabajos y las desigualdades son desfavorables para ellas; las
relaciones políticas, en donde los hombres dominan las instituciones polí-
ticas y dictan las leyes de manera desventajosa para las mujeres; la violen-
cia machista, en donde la violencia hacia las mujeres se ha naturalizado;
la sexualidad, en donde los hombres controlan la sexualidad y el cuerpo
de las mujeres; en la esfera cultural, a través del dominio de los medios, las
representaciones y la educación que estos ofrecen de las mujeres (WALBY,
2000).
Esta categoría del régimen patriarcal permite analizar de manera
integral la violencia feminicida, a diferencia de como generalmente se la
observa o se pretende que sea vista, como un problema personal de com-
portamiento individual. Por tanto, para oponerse a esta visión, es necesario
recuperar el circuito espacial de la violencia. Aquí es pertinente subrayar la
mirada estructural de la violencia.
Hablamos de violencia estructural hacia las mujeres justamente
porque

[...] todo el orden social está orientado para operar oprimiendo a las
mujeres y reproduciendo regularmente esta opresión […] hablamos
entonces de violencia estructural hacia las mujeres porque en todos
y cada uno de los ámbitos de la sociedad se ejerce y se reproduce la
dominación sobre ellas, y porque el origen de las diversas formas
concretas de violencia (física, sexual, emocional, patrimonial, entre
otras) contra ellas se puede rastrear hasta el nivel de realidad). (RIS-
MAN, 2004 apud CASTRO, 2012).

“En otras palabras la noción de violencia estructural hace refe-


rencia a un principio fundante, a una lógica que produce y reproduce la
violencia y que es constitutiva de la propia estructura social” (CASTRO,
2012, p. 19). Sin embargo, el mismo Castro plantea la amplitud del con-
cepto, lo que conduce a delimitar de manera más concreta el problema.
Para ello, propongo entonces observar el circuito espacial de la violencia
feminicida, en donde se focaliza a las instituciones de un Estado que por in-
capacidad o negligencia contribuyen en esa violencia estructural, teniendo
en ese caso responsabilidad junto con el agresor concreto en la realización
de las agresiones a las mujeres, y sin olvidar que ésta responde a un proceso
estructural.

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MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

De esta manera el régimen de género, y en consecuencia la violen-


cia estructural, son quienes configuran las múltiples causas de la manifesta-
ción espacial de la violencia feminicida, que a su vez refuerza a ambos. Sin
embargo tanto el régimen de género como la violencia feminicida, en tanto
procesos estructurales, son producciones sociales y por lo tanto suscepti-
bles de transformación, no de manera sencilla, ni inmediata pero es factible
que sean disminuidos y erradicados.
Como ya se estableció, el concepto del circuito espacial de la vio-
lencia doméstica es tomado de Diana Lan, quien lo define:

Es el entramado de lugares públicos o privados, por donde circulan


las personas en busca de ayuda para encontrar respuesta a sus pade-
cimientos. En general es un recorrido que coincide espacialmente
con el punto de partida y de llegada, porque la víctima al no encon-
trar respuestas válidas, regresa a su anclaje inicial que es estar junto
a su victimario. Un recorrido que la víctima de violencia comienza
en el momento mismo en que deciden buscar ayuda, pero dadas las
respuestas institucionales que reciben y las dificultades que encuen-
tran para llevar adelante la decisión, el ciclo de la violencia vuelve a
ponerse en marcha. (LAN, 2010, p. 76).

En esta conceptualización coincido con la autora en el recorrido


que hacen las víctimas, en espacios públicos o privados, sin embargo ma-
tizaría en la afirmación de que las mujeres retornan con el victimario, ya
que en ocasiones ya se ha separado del agresor, o incluso han terminado la
relación y viven en lugares diferentes, no obstante siguen siendo víctimas
de la violencia, ante un Estado que no brinda la protección necesaria. Este
circuito espacial de la violencia está conforma por dependencias de gobier-
no de escala municipal y estatal localizadas en el territorio del municipio
determinado.
En consecuencia cuando identificamos el circuito espacial de la
violencia, nos estamos refiriendo a las diversas dependencias que integran
una red de lugares adonde acuden las mujeres. La invisibilidad de este cir-
cuito se da por omisión o incapacidad de visibilizarlo. Si lo que predomina
es un régimen de género con una sólida consistencia de elementos cultu-
rales que impiden su identificación y enunciación, puesto que ya existe una
Ley de Prevención a toda forma de violencia contra las mujeres, lo que nos
plantea el objetivo de indagar en dónde es que se está incumpliendo con

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Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

la normatividad establecida como consecuencia de las leyes federales y las


leyes estatales, mismas que deben ser traducidas en normatividad y en po-
líticas públicas del municipio.
De esta forma el circuito espacial de la violencia puede ser una
herramienta para analizar el recorrido que hacen las mujeres en su bús-
queda de apoyo para salir de la violencia feminicida, y se convierte en un
indicador del incumplimiento de una ley por parte del Estado. En cada
visita que estas mujeres hacen a dependencias de gobierno, con base en la
ayuda que ellas demandan con base en sus derechos, se vuelven la eviden-
cia flagrante en donde está fallando el sistema de protección a las mujeres
víctimas de violencia. Por otro lado se pone de evidencia la falta de coordi-
nación entre dependencia que deberían estar relacionadas y sometidas a los
mismos principios, para prevenir y erradicar la violencia feminicida (si en
realidad su objetivo es erradicarla) misma que debe ser atendida, en todos
los lugares, según su especificidad, de manera simultánea.
Para esto se requiere que los servidores públicos sepan de qué se
trata la perspectiva de género y en qué consiste atender a mujeres víctimas
de violencia. Es evidente que no se puede atender a una mujer si no se en-
tiende qué es la violencia feminicida, ni se carece de los instrumentos jurí-
dicos, económicos, profesionales y espaciales. No es una cuestión de buena
voluntad o de información, sino de formación, conocimiento, capacidad,
recursos económicos, profesionales y jurídicos, entre otros.
Por ello, es fundamental analizar a los servidores públicos que
atienden o deberían atender a las mujeres víctimas de violencia, ya que si
los cuestionáramos al respecto, sobre todo a los que se ubican en las jerar-
quías superiores, ellos responderían que en términos se está cumpliendo
con el objetivo, y que se están llevando a cabo los protocolos de atención.
Sin embargo, la realidad es que las mujeres siguen siendo víctimas de vio-
lencia feminicida.
Debido a lo anterior, este trabajo se basó en métodos cualitativos,
se realizaron entrevistas a servidores públicos que han estado en la RED
desde el inicio de su organización, y se realizaron búsquedas en fuentes
primarias y secundarias. En primer lugar, se consultaron los expedientes
clínicos y jurídicos de mujeres en situación de violencia, asimismo se re-
alizó una búsqueda en diarios locales, regionales y nacionales que dieran
cuenta de los casos que se tratan en este trabajo.
Otra parte fundamental de este trabajo tiene su base en un foro-
taller organizado a través de la RED, y tuvo como objetivo dar información

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MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

a los servidores públicos que se ocupan de atender a mujeres víctimas de


violencia en el municipio de Irapuato. Con base en exposiciones de espe-
cialistas en el tema, organizadas en tres temáticas: el sector salud, la base
jurídica y los medios de comunicación.
El foro-taller fue organizado en tres sesiones de dos partes cada
una. Primero se realizaron exposiciones de especialistas en planteamientos
feministas y sector salud. El primer día se trató el tema de la perspectiva
de género en la atención médica, el segundo el de las bases jurídicas, y el
tercero se abordó la perspectiva de género en los medios de comunicación.
Después de las exposiciones, se reunió a diez servidores públicos
de diferentes dependencias de gobierno: con el objetivo de que ellas y ellos
se dieron cuenta de que forman parte de una estructura que debe estar
relacionada, y deben tener la misma base de conocimientos, los mismos
objetivos y estar coordinados. Dicho evento se realizó del 29 al 31 de agosto
de 2013, en el municipio de Irapuato.
Los servidores públicos pertenecían a diversas dependencias del
gobierno municipal y estatal, y como ya se mencionó, también llegaron mi-
litares de la décima segunda región militar. Esta región militar que tiene su
sede en el municipio de Irapuato, tiene bajo su mando cuatro zonas milita-
res, las cuales abarcan tres estados de la República: Querétaro, Guanajuato
y Michoacán.

ESTUDIO DE CASO

Ante el alto índice de feminicidios en el país, y por la movilizaci-


ón de feministas, activistas, académicas, promotores de derechos humanos
y una sociedad civil preocupada por esta situación, se logró la aprobación
de La Ley General de Acceso a una vida libre de violencia en la LIX legisla-
tura en 2006. Esta Ley General fue publicada en 2007, estableció las bases
legales para atender dicha problemática desde la escala federal, pero debía
ser aplicada a la siguiente escala: la estatal.
En consecuencia las entidades federativas iniciaron la aprobación
de la ley para cada uno de sus estados, sin embargo el estado de Guanajuato
fue la última entidad federativa en aprobar dicha Ley. Lo hizo hasta 2010. No

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obstante, esto mismo le permitió incorporar a la violencia gineco-obstétrica,


que en seguida debía operar en la subsecuente escala de gobierno: el
municipio.
Así llegamos a Irapuato, un municipio del estado de Guanajuato.
De acuerdo con el Instituto Nacional de Geografía e Informática (INEGI),
Irapuato tiene una población de 529,440 habitantes (según datos del censo
de 2010), de ésta un 51.85% de la población son mujeres. El municipio
cuenta con 549 localidades, de los cuales 80 son ejidos, es decir, núcleos
agrarios con propiedad social de la tierra, esto habla de un importante sec-
tor dedicado a las actividades primarias.
Este municipio tiene una tradición agrícola, que está siendo cam-
biada por la llegada de empresas ensambladoras de automóviles de origen
japonés. La causa de esta llegada es la centralidad del municipio del ter-
ritorio nacional y su gran inversión en infraestructura carretera, mismas
que la han hecho una entidad con excelentes vialidades para la movilidad
de mercancías, y que han impulsado una creciente industrialización. Estos
procesos están transformando rápidamente a Irapuato en un municipio in-
dustrial, con una dinámica de veloz crecimiento poblacional.
Al mismo tiempo, Irapuato es un municipio de gran tradición ca-
tólica-conservadora, pues forma parte de Guanajuato, una entidad gober-
nada desde 1991 por gobiernos panistas de derecha. Guanajuato es también
la entidad que gobernó quién después se convirtió en el primer presidente
no priísta de México, Vicente Fox, quien gobernó el estado de 1995 a 1999
y la República Mexicana de 2000 a 2006.
De acuerdo con el estudio realizado por Damián (2014), el muni-
cipio de Irapuato se ubica entre los de rango medio en violencia feminicida
dentro del estado de Guanajuato, siendo superado por León, el municipio
más industrializado del Estado. Pese a que León es el que presenta mayor
índice de violencia feminicida que Irapuato, en este último también son
constantes las evidencias de violencia feminicida. Tal fue el caso de una
niña que en marzo de 2013 fue asesinada, y por lo cual fui convocada para
hablar de feminismo en el municipio referido.
Al conversar con las encargadas de las oficinas de atención a las
mujeres en el municipio tanto del Instituto Municipal de la Mujer Irapua-
tense (INMIRA) como del Hospital General de Irapuato dependiente de
la Secretaría de Salud del gobierno del estado, se me refirió la existencia
de una RED Municipal de Prevención a todo tipo de violencia contra las
mujeres.

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MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

Esta RED municipal fue el resultado de un caso de feminicidio en


el Municipio en 2009. Una mujer, a la que llamaremos Rocío, de 29 años
de edad, madre de dos hijos: un adolescente y una niña, acudió al Hospital
General, referida por una Organización no Gubernamental, y al solicitar
atención narró su historia de violencia física, sexual y psicológica por parte
de su expareja, así como su peregrinar por las instituciones municipales a
las que había acudido para poner fin a dicha situación. Rocío fue atendida
de colitis y cefalea tensional (un tipo de dolor de cabeza), como secuelas de
la violencia, además presentaba un marcado proceso depresivo. De acuerdo
con el protocolo del Centro Especializado para la atención de la Violencia
Familiar, Sexual y de Género (CEAVIF), su próxima fecha de consulta fue
establecida para el 25 de mayo de ese año (2009). Sin embargo, Rocío nunca
llego a su cita al CEAVIF, ella fue asesinada el día anterior.
Un periódico local dio cuenta del asesinato como resultado de
habérsela encontrado siéndole infiel a su pareja. En consecuencia, según el
diario, su pareja la mató por celos. De esta forma, este periódico sin contar
con ningún elemento de investigación refrendó un lugar común, resultado
de la hegemonía cultural que forma parte del régimen de género a través de
los medios de comunicación.
Lo que el diario no sabía en aquel momento, era que Rocío había
realizado un recorrido por diferentes dependencias de gobierno buscando
ayuda para salir de la violencia de la que era objeto por parte de antigua
pareja, de quien se había separado meses atrás, pero que seguía violentando
conforme a una violencia feminicida que es también violencia estructural,
el periódico daba por hecho una situación que era a todas luces errónea.
De acuerdo con la reconstrucción que se realizó de este caso se
encuentra que el circuito espacial de la violencia involucró a las siguientes
dependencias: Instituto Municipal de la Mujer, DIF Municipal, Hospital
General y Ministerio Público dependiente de la Procuraduría General de
Justicia del estado de Guanajuato.
Este caso es semejante a muchos otros que hemos escuchado, leí-
do, que sabemos que existen. Sin embargo, a diferencia de muchos de ellos
dejo una secuela en las mismas mujeres y hombres que conforman ese con-
glomerado que llamamos gobierno, es decir, en aquellas y aquellos médicas
y médicos que la atendieron, las enfermeras y los servidores públicos que
iniciaron conversaciones para tratar de evitar en la medida de lo posible
esta situación. Esto tuvo como resultado que dos años después, el 1° de
abril de 2011, se constituyera la RED de prevención y atención de la violencia
familiar, sexual y contra las mujeres en el municipio de Irapuato.

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DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE PREVENCIÓN
Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

Esta RED tiene como objetivo “establecer estrategias de colabora-


ción entre las diferentes instituciones gubernamentales y no gubernamen-
tales, que tienen como finalidad la prevención y/o la atención de la violen-
cia familiar, sexual y contra las mujeres en el municipio de Irapuato” (Acta
Constitutiva de la RED, Archivo Personal).
La RED está integrada por:

[...] el Hospital de Irapuato (dependiente del gobierno del estado de


Guanajuato), la dirección del INMIRA, la encargada del CEAVIF,
el Departamento de Trabajo Social, la Coordinación de violencia
y prevención del suicidio Jurisdicción Sanitaria VI, Coordinación
Operativa de la Agencia de Asistencia Psicológica, Social y Jurídica
de Irapuato (SAIE), Agencias del Ministerio Público Especializadas
en Delitos Sexuales y Violencia Familiar, y Subprocuraduría de Jus-
ticia de la Región B, Subprocuraduría de Derechos Humanos de la
Región B, Centro Multidisciplinario para la Atención Integral de la
Violencia (CEMAIV), Coordinación de Democracia Familiar, Di-
rección de Salud Pública (municipal) Casa Asistencial para Mujer
de “Todo Corazón”, Redes de Amor, Directora General de la Villa
Infantil, y la Presidenta de la Red Guanajuatense de Prevención de
Discapacidad (Regupred). (Idem). (Acta Constitutiva de la RED, Ar-
chivo Personal).

Esta RED es una novedad en el contexto de los municipios en Mé-


xico, pues pese a que existen otros municipios con mayor presupuesto, mayor
tradición industrial, niveles educativos más elevados y con menor presencia
de una sociedad religiosa y conservadora fue en este municipio en donde se
logró integrar una RED de prevención a la violencia hacia las mujeres.
Es por ello que, una vez enterada del origen de la RED, recordé la
propuesta metodológica de Diana Lan del circuito espacial de la violencia, ya
que la RED representaba una contrapropuesta pues si bien se trataba de una
institución gubernamental que concernía a los servidores públicos que aten-
dían a las víctimas, esta iniciativa partió desde mujeres y hombres, servidores
públicos e integrantes del gobierno, sensibles a la problemática, los cuales
además se organizaron para tratar de erradicar dicha violencia feminicida.
Así pues, ya se contaba con una organización local para prevenir
la violencia, era necesario evaluar el trabajo de la RED, a la vez que aprove-
charla para organizar un foro-taller en el que fueran convocados los servi-
dores públicos que atienden a mujeres víctimas de violencia.

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NA ANÁLISE ESPACIAL
MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

Ellos y ellas son los trabajadores que deben poner en acción toda
la reglamentación elaborada en el poder legislativo federal y local, así como
las políticas públicas elaboradas desde el gobierno de la entidad y del mu-
nicipio con perspectiva de género. Se trata de abogadas y abogados que
trabajan en los ministerios públicos, enfermeras, médicos y médicas, psi-
cólogas, administradores, policías, camilleros, entre otros; es decir se tra-
bajó con personal con nivel educativo medio superior y diversos perfiles
profesionales.
Al analizar la constitución de la RED, se puede notar que predo-
minan las instituciones médicas. De hecho la institución oficial que lleva la
presidencia de la RED es el Hospital General de Irapuato bajo la dirección
de la Secretaria de Salud del estado de Guanajuato. También la integran los
ministerios públicos, el DIF, el Desarrollo Social, Trabajo Social y el Direc-
tor de Salud Pública, en consecuencia se puede observar que entre la visión
preventiva y la correctiva, predomina esta última, en ese sentido destaca la
ausencia del sector educativo.
Esta conformación de la RED demuestra cómo se observa la vio-
lencia, y por lo tanto cómo se atiende. Predomina una visión médica y po-
liciaca, que es reactiva a la problemática, pero no se observa un trabajo de
prevención de la violencia feminicida además la RED carece de una visión
estructural social y de aquello que para lo que resulta necesario transfor-
mar en la sociedad misma la cual replica a la violencia de las estructuras de
poder sobre las que se sustenta el Estado. Por ejemplo los ámbitos de la eco-
nomía (los poderes fácticos), la educación y los medios de comunicación,
forman parte de la violencia estructural que se debe atender, si se la quiere
erradicar. Ya que una verdadera prevención pasa por una desnaturalización
de la violencia hacia las mujeres, así como por una mejor remuneración en
su trabajo y un cambio en los usos y costumbres que promueven la discri-
minación hacia las mujeres en todos los ámbitos de la sociedad
Hay que pensar incluso en transformar aquellas dependencias
que operan con lineamientos acorde con el régimen de género. Otro ejem-
plo para el caso mexicano, es aquel que tiene lugar dentro del municipio y
en el que se inicia el circuito espacial de la violencia con una institución de
origen tradicional. Se trata de la Oficina del Desarrollo Integral de la Fami-
lia (DIF) que tiene un claro origen familiarista, y que con gran frecuencia
propone la conciliación entre víctima y victimario, y es que generalmente
es al primer lugar que acuden las mujeres para buscar orientación en casos
de violencia feminicida.

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DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE PREVENCIÓN
Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

HALLAZGOS DEL FORO-TALLER

El foro-taller tuvo lugar del 29 al 31 de agosto de 2013, por día


asistieron en promedio 200 servidores públicos, provenientes de diez muni-
cipios de Guanajuato: Celaya, Dolores Hidalgo, Guanajuato, León, Manuel
Doblado, Pénjamo, Romita, Salvatierra, Silao, San Francisco del Rincón y
Valle de Santiago. El mayor número de servidores públicos que asistieron
eran los erradicados en el municipio de Irapuato, para quienes estaba desti-
nado el foro-taller en un principio, Sin embargo, como ya se mencionó, se
presentaron también de otros municipios del estado.
Un elemento fundamental sobre el que se trabajó fue el origen
feminista de las leyes aprobadas en la escala federal. El objetivo fue colocar
claramente los planteamientos feministas en un lugar en donde sabemos
que no predomina la idea de los derechos de las mujeres e incluso son vistos
con alto recelo dada la fuerte presencia de una religiosidad católica. Así fue
necesario sensibilizar y dar a conocer algunos elementos fundamentales
del feminismo. Después de esta primera exposición se recuperaron opi-
niones como la siguiente: Aprendí que el feminismo es preocuparse más por
las mujeres, el concepto de feminismo que tenía no era el correcto, gracias al
feminismo ahora hay más igualdad entre mujeres y hombres, ahora se que el
concepto que tenía del feminismo no era el correcto.
Otra servidora pública sostuvo: Me di cuenta de que soy ignorante
respecto al tema, me dejo influenciar [y que] las tradiciones sociales nos han
atrapado en una conducta discriminatoria con las mujeres.
Habiendo avanzado sobre la temática de la ley Federal para erra-
dicar todas las formas de violencia contra las mujeres y la Ley de Guanaju-
ato, las y los servidores públicos llegaron a identificar con gran frecuencia:
la falta de coordinación interinstitucional, ya que solo se remite a la canali-
zación de acuerdo a sus competencias legales y administrativas [pero] que no
se evidencia una política pública transversal con propósitos comunes y con
perspectiva de equidad de género.
Los mismos servidores públicos fueron cada vez más autocríticos
con sus instituciones. Por ejemplo se destacó en el escrito:
La necesidad de tomar conciencia como actores sociales y tomado-
res de decisiones. No existe la transversalidad en la práctica, a veces es cuesti-
ón de las autoridades de mayor nivel. No hay una verdadera función pública
“no es mi función” se dice, es necesario traer a los jefes.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

Como se puede observar existe una crítica reiterada hacia la es-


tructura superior del gobierno:
Que los altos mandos bajen la información de los acuerdos para po-
derse llevar a la práctica, que las instituciones capacitadas en el área tengan
más acercamientos a las diferentes instituciones para instruir.
En la misma mesa se manifestó que: es necesario contar con los
medios para avisar al ministerio público, no hay ni teléfono en el ISSTE para
avisar,… [y continua]… Que los representantes de las diferentes instituciones
se queden a los eventos para que adquieran sensibilidad en las problemáticas.
Como se puede observar en estas declaraciones, no existen con-
diciones reales de formación y capacitación por parte de los servidores pú-
blicos que atienden a las personas víctimas de violencia. También se iden-
tificó la responsabilidad de los mandos medios y altos, quienes desconocen
con gran frecuencia la temática, y sin embargo, acuden a las inauguraciones
de los eventos de capacitación e información, mismos a los que no asisten.
Este tipo de simulaciones muestran la verdadera importancia que se le da
a la problemática.
Asimismo, sugirieron: generar vínculos de colaboración entre los
servidores públicos para canalizar a las personas afectadas. La importancia
del trabajo interinstitucional y la homologación de los procedimientos son
necesarios.
En este mismo sentido, se solicitó: incrementar la vinculación en-
tre los servicios de salud y gobernantes a fin de elevar el énfasis que estos
otorguen al tema.
Otro elemento que identificaron fue la insuficiencia del apoyo
psicológico para las víctimas, así como la carencia de contención de los
servidores públicos que deben atender estos casos.
Sin lugar a dudas una de las sugerencias más frecuentes fue in-
volucrar al sector educativo. Se presentaron propuestas para educar con
perspectiva de género desde el nivel preescolar.
Otro elemento muy particular del municipio, es que cada semana
se da atención ciudadana, por parte del gobierno municipal, es por ello
que todos los funcionarios públicos salen de sus oficinas y atienden a la
ciudadanía en la plaza pública. Es por ello que en varias mesas se consi-
deró que, hubiera un espacio, en el día de atención a la ciudadanía, para la
atención jurídica, médica y de orientación en trámites a mujeres víctimas
de violencia.

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DEL CIRCUITO ESPACIAL DE LA VIOLENCIA FEMINICIDA A LA RED DE PREVENCIÓN
Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

Entre los asistentes muchos registraron una gran cantidad de


planteamientos que muestran el total desconocimiento de los marcos ju-
rídicos y normativos elaborados para erradicar la violencia feminicida, y
muchos desconocían la existencia de la RED, y en consecuencia no sabían a
donde canalizar a las mujeres que acudían a solicitar ayuda.
Un planteamiento señalado con gran frecuencia, fue la necesidad
de que la familia sea en donde se inicie la transformación, ya que ésta ocupa
un papel fundamental en este cambio. Sin embargo, sin negar la importan-
cia que tiene este núcleo social, conlleva el riesgo de observar la problemá-
tica como un asunto de comportamiento y de mala educación, y no como
un problema social y estructural. En este aspecto, se plantea una problemá-
tica que debe ser trabajada con mayor profundidad.

REFLEXIONES FINALES

En esta perspectiva social-estructural de la violencia feminicida


se encuentra que el circuito espacial es un concepto que tiene un conside-
rable potencial ya que permite identificar la violencia feminicida, así como
evidenciar la responsabilidad del Estado en su prevención y erradicación.
Este circuito también permite ubicar las instituciones a las que
acuden las mujeres, en ese sentido muestra dónde se debe fortalecer la for-
mación de personal con perspectiva de género, así como evaluar las condi-
ciones materiales, jurídicas y sociales con las que dichas instituciones cuen-
tan para enfrentar un problema tan complejo.
El circuito espacial de la violencia permite analizar con mayor de-
talle a las instituciones involucradas en la prevención y erradicación de la
violencia, a través de sus integrantes, mujeres y hombres que deben atender
a las mujeres en tanto que sujetos concretos de la estructura del régimen
patriarcal. Ya que pese a haberse legislado en la escala federal, ésta debió ser
aterrizada en la escala de la entidad federativa. Asimismo, en el municipio
a través del Ayuntamiento, involucrar al Cabildo que es la estructura de po-
der municipal, integrada por el presidente municipal, los y las síndicos, los y
las regidoras. A partir de ahí las diferentes dependencias del Ayuntamiento,
como por ejemplo, la Policía Municipal, la Oficina del Desarrollo Integral de
la Familia (DIF), Educación Pública, Sector Salud, Economía. Ya que entre
otras dependencias, deben elaborar políticas públicas con perspectiva de

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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MARÍA VERÓNICA IBARRA-GARCÍA

género. Ya que acorde con lo mandatado por la Constitución se ha estable-


cido en el papel, pero dista de ser una realidad en los espacios locales.
Un elemento fundamental que hay que considerar, es el elemen-
to cultural pues si bien se han realizado cambios legislativos y jurídicos,
los elementos culturales y educativos han carecido de igual atención. En
consecuencia se debe incorporar al sector educativo, desde los niveles esco-
lares básicos, evitar los contenidos sexistas, misóginos y discriminatorios,
así como los estereotipos de género. En resumen, es necesario, realizar un
análisis cuidadoso y detallado del currículum oculto para evitar promover
los principios patriarcales, misóginos y discriminatorios. De la misma ma-
nera hay que sancionar a aquellos profesores y profesoras que ejercen acoso
y violencia sexual.
El otro elemento fundamental que hay que tener en observación,
son los medios de comunicación, tanto los escritos, televisivos y de radio-
difusión, ya que desde esta esfera, lo ideológico y cultural generan espacios
de misoginia, discriminación y violencia hacia las mujeres. Sin un cambio
en los patrones culturales hegemónicos, muchos esfuerzos serán en vano.
Sin perder de vista al sector económico en donde a las mujeres
son despedidas por ingravidez, se les paga menos que a los hombres, o en
el caso del sector rural en donde las mujeres han sido históricamente mar-
ginadas, del usufructo de la tierra, y con ello detener las condiciones eco-
nómicas que les posibiliten mejores condiciones de vida e independencia
frente a los hombres. En un municipio con ochenta núcleos agrarios no
visibilizar esta especificidad es una gran omisión que contribuye a la vio-
lencia estructural.
En síntesis, le corresponde al Estado dirigir esta transformación
espacial, no sólo en la estructura organizativa que le permite atender a víc-
timas de la violencia, sino que al mismo tiempo debe ser el árbitro de toda
la estructura social. De ser necesario, evaluar y sancionar, a los poderes
fácticos que promueven la discriminación y la violencia de todo tipo contra
las mujeres, para ello debe actuar de manera contundente para garantizar
la observancia de la ley en las empresas, los medios de comunicación y las
iglesias.
Simultáneamente, debe ser reconocido el trabajo que se viene re-
alizando desde las escalas locales y regionales, por mujeres y hombres que a
pesar del contexto conservador y religioso en que desarrollan sus acciones,
se han organizado y reman contra marea. Que vaya para ellas y ellos un
reconocimiento.

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Y ERRADICACIÓN DE ÉSTA

REFERENCIAS

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género: controversias y debates a tomar en cuenta. In: BACA, Norma; VÉLEZ,
Graciela (Coord.). Violencia, género y la persistencia de la desigualdad en el Estado
de México. Buenos Aires: Editorial MNEMOSYNE, 2012. p. 17-38.
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Argentina. Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 1, n.
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modernity restructure inequality. Contemporary Sociology, v. 29, n. 6, p. 813-818,
2000.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
HOMENS JOVENS EM CONFLITO
COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS
URBANOS
Rodrigo Rossi

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Conectando-se às linguagens de jovens das periferias pobres, os


estudos desenvolvidos no Grupo de Estudos Territoriais (GETE) que inci-
dem sobre a relação entre juventude, gênero e espaços de vulnerabilidade
e violência figuram como discurso científico de resistência no campo da
geografia humana. Os elementos que justificam a necessidade desse dis-
curso encontram lastro nas vivências espaciais de homens jovens pobres,
usuários de drogas e em conflito com a lei.
Chimin Junior (2011), Rossi (2011), Rocha (2014) e Gomes e Sil-
va (2014) demonstram que há interconexão entre masculinidades, pobreza
e espaços de vulnerabilidade e violência. As escalas de análise do fenômeno
da violência adotadas nessas experiências de pesquisa não estão vinculadas
ao sujeito e seu lugar de tipificação, mas aos diferentes modos em que o
espaço está implicado na constituição e condução de sua vida cotidiana, o
que inclui a ocasional realização de práticas ilícitas. Deste modo, proble-
matizar a relação entre juventude e espaços de violência tem significado
ao conjunto de nossas pesquisas conectar-se à espacialidade do fenômeno.
O presente texto se debruça sobre as principais maneiras em que
os territórios urbanos estão implicados no complexo desenrolar da vida co-
tidiana de homens jovens em conflito com a lei. A pesquisa que o subsidia
é resultante da observação participante e entrevistas em profundidade com
13 homens jovens em conflito com a lei, realizadas durante convivência
com quatro grupos que habitam quatro diferentes áreas da periferia pobre
do espaço urbano de Ponta Grossa, uma cidade média com significativo
interfluxo regional, localizada no estado do Paraná.
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

Classificados socialmente como seres em condição de desajuste


constitucional com o sistema jurídico, o grupo estudado não contempla o
imaginário que permeia o ideal do ser homem no mundo. Este imaginário
pressupõe um feixe complexo de identidades sociais e eixos de desigualda-
de, tais como classe, raça, idade, religião, sexualidade, e assim por diante.
Porém, no mundo moderno ocidental a ficção do homem ideal figura mais
próxima do branco, adulto, heterossexual, dotado de satisfatória remunera-
ção e assertividade nas relações de produção e reprodução social.
A observação do cotidiano do grupo investigado pôde evidenciar
a elaboração de estratégias que são socialmente reconhecidas como trans-
gressoras, já que se voltam, entre outras coisas, ao consumo de drogas e à
realização de furtos e roubos. Com a reiteração dessas práticas ilícitas, o
discurso hegemônico que os classifica como jovens malvados e cruéis é le-
gitimado, o que fortalece o significado de marginalização atribuído. Assim,
as experiências na ilegalidade tornam-se fundamentais na instituição de
diferentes territórios urbanos.
O texto que segue está estruturado em duas seções. A primeira
apresenta o diálogo sobre a relação entre juventude, masculinidade e práti-
cas ilícitas nas periferias pobres. Na segunda, é revisitada a experiência de
pesquisa com homens jovens em conflito com a lei, atendo-se aos territó-
rios urbanos como componentes de sua complexa existência espacial.

GEOGRAFIAS DA JUVENTUDE, DAS


MASCULINIDADES E PRÁTICAS ILÍCITAS

As linhas desta seção apresentam uma reflexão teórica sobre o


peculiar universo empírico que é o espaço urbano da juventude pobre em
conflito com a lei. Este universo também mostra possibilidades de diálogo
com estudos das geografias das crianças e da juventude, e possíveis conexões
com investigações geográficas realizadas a partir do contexto brasileiro.
Valentine (2003), Hopkins (2007) e Weller (2006) apontam que
o fluido e ambíguo período de transição da infância à vida adulta tem sido
relativamente negligenciado pela geografia, apesar de haver trabalhos insti-
gantes que têm aberto este percurso investigativo. Segundo Weller (2006),

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

as experiências de pesquisas com jovens envolvem a experimentação de


vários métodos que desafiam as desiguais relações de poder estabelecidas
entre cientistas e jovens pesquisado(a)s. Além disso, a autora nota a poten-
cialidade de o subcampo contribuir para a desconstrução de estereótipos
atribuídos a crianças e jovens, influenciando novas formas de relações in-
tergeracionais sob o paradigma da diversidade.
Valentine (2003) assinala a dificuldade de se definir o período de
transição entre a infância e a condição de pessoa adulta e afirma a impos-
sibilidade de definir um período estável que marca a juventude, sendo esta
um processo vivenciado de maneiras distintas, de acordo com o tempo e
o espaço. Ela chama a atenção para os espaços implícitos que compõem
essa transição, assim como suas respectivas conexões. A geógrafa afirma as
limitações de modelos normativos da juventude, que negligenciam o cruza-
mento com as diferenças de gênero, classe e sexualidade. O texto de Valen-
tine (2003) contribui de forma especial para a interpretação geográfica das
juventudes, além de trazer várias sugestões de temas e estudos vinculados
ao universo juvenil.
Hopkins (2007) também observa que a idade é uma construção
espacialmente variável, destacando que esse aspecto é pouco considerado
pelo conhecimento hegemônico da geografia, que constantemente invisibi-
liza ou silencia crianças e adolescentes em seu campo de análise. Comparti-
lhando as ideias de Wyn e Branco (1997 apud HOPKINS, 2007), demonstra
que a idade se constitui como um conceito ligado a uma realidade biológi-
ca, mas cujos significados são atribuídos através de processos histórico-cul-
turais. Em tais processos, existem referências espaciais importantíssimas,
pois as pessoas podem ativamente criar ou resistir de modo particular às re-
presentações da idade através da utilização do espaço e do lugar (HOPKINS,
2007). Este geógrafo também compartilha a abordagem interseccional no
estudo de homens jovens, explorando as diferenças vinculadas a masculi-
nidade, religiosidade e raça.
Evans (2006) explora a diversidade de formas de negociação de
identidades entre jovens na Tanzânia a partir da intersecção entre etnicida-
de, gênero e idade. Seu trabalho utiliza etnometodologias no contexto das
crianças moradoras de rua. Ela propõe o conceito de ‘carreira de rua’ para
compreender o cruzamento entre os marcadores de etnia, gênero e idade,
o tempo e espaço vividos nas ruas pelas crianças e adolescentes. Um cruza-
mento que evidencia estratégias de ocupação de espaços públicos, subsis-
tência e preservação da religiosidade e rituais. A autora sugere pensar que

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HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

a ‘carreira de rua’ institui identidades complexas, em que as performances


são ativas na reorientação das normas de gênero e de ocupação de espaços
públicos.
De acordo com Anderson e Jones (2009), o lugar é de fundamen-
tal importância para a eclética utilização de metodologias de análise com
potencial de superar a incapacidade da geografia cultural e social em re-
presentar práticas sociais cotidianas. Se é o contexto espacial que constrói
socialmente a juventude, as metodologias também podem ser contextu-
alizadas, afirmam. Esta posição teórico-metodológica não apenas mostra
a diferença que faz o método na pesquisa, mas, sobretudo, tenta superar
abordagens configuradas na transposição de metodologias aplicadas ao
contexto de investigação de pessoas adultas na compreensão de espaciali-
dades jovens. Nessa perspectiva, há grande difusão de pesquisas pela revis-
ta Children’s Geographies, compondo uma nova agenda política e acadêmi-
ca que procura desedificar a perspectiva ‘adultocêntrica’ da geografia.
Assumindo essa posição, Cahill (2007) apresenta a pesquisa-ação
participante como uma das maneiras de se realizar pesquisas com jovens.
Ela enfatiza que a adoção de uma abordagem baseada na práxis coletiva,
além de incidir sobre a partilha de poder no processo de pesquisa, contri-
bui para o projeto de desafiar a exclusão social e desenvolver capacidades
dos jovens para a análise e, consequentemente, para a transformação de
suas vidas. Cahill (2007) reflete sobre sua experiência de pesquisa como
catalisadora em processos de análise coletiva de dados que possibilitam
uma riqueza de informações, que frequentemente são obtidas com relativa
dificuldade a partir de metodologias convencionais. No mesmo sentido,
Drummond (2007) apresenta como alternativa a utilização de metodolo-
gia pautada na capacidade artística de jovens na imaginação do futuro no
espaço urbano.
Mais próximo do universo empírico aqui explorado, o texto de
Herrera et al. (2009) articula as noções de estigma (GOFFMAN, 1980) com
a ideia de performatividade (BUTLER, 2003), para compreender a identi-
ficação dos corpos e o controle dos mesmos pelos jovens. O texto explora
suas performances corporais num contexto de infâncias e adolescências
dolorosas, com atividades de lazer perigosas e viciantes, além de uma série
de restrições ao afeto e subsistência de jovens que ocasionalmente traba-
lham nas ruas do centro da cidade de Puebla, no México. A violência é
enfatizada pelo grupo entrevistado quando toca em experiências passadas
no contexto intrafamiliar e nos momentos em que comunicam a resolução

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

de crimes e brigas cotidianas. No entanto, os jovens mexicanos apontam


que a violência é geralmente contida devido ao cuidado dos jovens em não
alertar o aparato policial. As estratégias de invisibilidade que são entrelaça-
das às performances dos jovens de rua mexicanos também são acionadas
em espaços em que eventualmente há reuniões ligadas ao uso e tráfico de
drogas. O estudo também inclui o confinamento de jovens, em sua maior
parte do sexo masculino, como gerador de efeitos ao corpo jovem, desde
a exposição ao tempo seco e ao sol, até tatuagens ou marcas de eventuais
agressões. As performances, neste sentido, são fundamentais na compreen-
são das experiências dos jovens nas ruas e suas distintas posicionalidades
num espaço entendido como regulado.
Outro trabalho que explora a conexão entre juventude, mascu-
linidades e práticas ilícitas é o de Winton (2005), sobre a mobilidade da
juventude e as gangues de áreas pobres da cidade de Guatemala. A geógrafa
analisa um conjunto de limites à mobilidade de jovens pobres na cidade
como eixos da vulnerabilidade a conflitos entre gangues e demais práticas
violentas. Winton enumera as principais maneiras como homens e mulhe-
res jovens se relacionam com a violência no espaço urbano e realiza um
mapeamento participativo de espaços seguros e perigosos. Seu estudo de-
monstra que a violência cometida por homens jovens membros de gangues
reforça a identificação que eles têm com as mesmas e com espaços institu-
ídos a partir da exclusão das redes de acesso a outras atividades na cidade.
Como se observa, há um conjunto de estudos das geografias da
infância e juventude que se relacionam com o tema aqui problematizado.
No entanto, a ponderação sobre a impossibilidade de definição da juventu-
de como período estável vivido a partir de modelos normativos, como bem
nota Valentine (2003), mobiliza a seguinte questão: como estudar grupos
de adolescentes que estão em vias de constituir-se enquanto homens adul-
tos que assumem comportamentos socialmente reconhecidos como trans-
gressores? Se a juventude como fase de transição fluida não contempla um
modelo normativo de masculinidade adulta, este pode ser desconstruído.
Nossas experiências de pesquisa têm evidenciado que não se deve
simplesmente culpabilizar jovens em conflito com a lei, tampouco tratá-los
como vítimas. Pois é a impossibilidade de contemplar o modelo normativo
de uma masculinidade hegemônica que também orienta, além da precária
socioeducação, a estigmatização do grupo estudado. Nossa sociedade, com
frequência, tem facilidade em condenar sujeitos cuja masculinidade foge
ao padrão dominante. Frequentemente é o homem criminoso a coisa a ser

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

renegada e condenada (FOUCAULT, 1978), e não se condena ou se reage


contra os eixos de desigualdade e relações de poder que instituem a vulne-
rabilidade à violência em seus espaços de vivência cotidiana.
A partir desta reflexão, adotou-se neste texto a estratégia de denomi-
nar os adolescentes do sexo masculino como homens jovens, devido ao modo
como constroem suas identidades a partir de referenciais da masculinidade
adulta, articulando o desejo de consumo, o vício e práticas ilícitas reconhecidas
hegemonicamente como perigosas ou danosas ao futuro (ROSSI, 2010).
Aitken (2012) problematiza as teorias geográficas do afeto e sua
validade política face à dinâmica de constante retorno de homens jovens
aos espaços de violência e adicção. O geógrafo realiza uma interessante co-
nexão com a construção de masculinidades a partir do conceito de homos-
socialidade proposto por Sedgwick (1985) e voltado a compreender o dese-
jo de vínculo entre homens heterossexuais, isto é, uma relação envolvendo
estritamente ‘machos’.
A homossocialidade também é problematizada por Evers (2009),
em um estudo sobre a masculinidade e a cultura surf australiana. Este geó-
grafo observa que a homossocialidade desenvolve um sistema cultural em
que os desejos individuais são processados na triangulação de desejos de
outros homens, e isso envolve dois elementos principais: objetos e objeti-
vos. No que se refere aos objetos na homossocialidade, podem ser repre-
sentados através do partilhado desejo de se obter algo material, tal como
uma arma, um carro, uma bicicleta, uma quantidade de droga, e assim por
diante. Os objetivos correspondem a realizar um feito ou conquistar valor e
posição privilegiada, de que são exemplos os momentos em que os homens
ganham no jogo de futebol ou quaisquer disputas, recebem promoção no
local de trabalho, adquirem alguma vantagem, entre outros.
Na reconfiguração do conceito de masculinidade hegemônica,
Connell e Messerschmidt (2013) afirmam a continuidade de sua principal
característica, que é a combinação entre pluralidade e hierarquia de mascu-
linidades. Esse modelo de análise pressupõe a existência da subordinação
de masculinidades não hegemônicas. Contudo, os eixos de reconfiguração
do conceito incluem “a natureza das hierarquias de gênero, a geografia das
configurações de masculinidade, o peso do social no processo de encorpo-
ração da masculinidade e a dinâmica das masculinidades” (2013, p. 264).
Especificamente sobre o eixo das geografias das masculinidades,
estes autores apontam que o mesmo pode ser orientado a partir de três di-
ferentes escalas: local, regional e global.

INTERSECCIONALIDADES,
288 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

1. Local: construídas nas arenas da interação face a face das famílias,


organizações e comunidades imediatas, conforme acontece comu-
mente nas pesquisas etnográficas de histórias de vida;
2. Regional: construídas no nível da cultura ou do estado-nação,
como ocorre com as pesquisas discursivas, políticas e demográficas;
3. Global: construídas nas arenas transnacionais das políticas mun-
diais, da mídia e do comércio transnacionais, como ocorre com os
estudos emergentes sobre masculinidades e globalização. (CON-
NELL e MESSERSCHMIDT, 2013, p. 267).

Os autores atestam a articulação entre as três escalas na constitui-


ção de uma pluralidade de masculinidades e sua contribuição às políticas
de gênero. Todavia, na geografia das masculinidades proposta por eles a
análise escalar é substituída pela definição de níveis, desconsiderando, por
exemplo, reflexões sobre o espaço e masculinidades.
Neste sentido, as reflexões elaboradas sobre as geografias das
masculinidades, presentes em McDowell (2000), Hopkins (2007), Aitken
(2012) e Noble (2009), apontam não só a importância dos modos em que
espaço e lugar estão implicados na construção de masculinidades plurais,
mas também a intersecção das hierarquias de gênero com outros elementos
identitários como etnicidade, raça, classe, sexualidade e religiosidade. Os
estudos contemporâneos sobre espaços e masculinidades têm se debruça-
do sobre os atributos de movimento e abertura ligados a performances de
masculinidade e diferentes eixos de intersecção.
De uma perspectiva interseccional, tanto as masculinidades he-
gemônicas quanto as masculinidades periféricas (ROSSI, 2011; CHIMIN
JUNIOR, 2011) constituem o emaranhado de eixos de opressão e relações
de subordinação e desigualdade. Este aspecto da crítica ao conceito de mas-
culinidade hegemônica é de extrema importância se consideramos a es-
pacialidade como interação complexa. Nela, os elementos identitários que
posicionam os homens em espaços de homossocialidade podem ser enten-
didos como interseccionados e passíveis de mutação através da performa-
tividade. Rossi (2011) apresenta algumas das conexões entre a vivência da
interseccionalidade e territórios instituídos por adolescentes em conflito
com a lei, a partir do diálogo entre o trabalho de campo e estudos sobre lu-
gares, masculinidades e interseccionalidade presentes em Hopkins e Noble
(2009), Hopkins (2007), Noble (2009) e McDowell (2000, 2003).
Um aspecto importante desse diálogo e que precisa ser destacado
no presente texto é que a pluralidade de vivências espaciais extrapola qualquer

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 289
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

tentativa de tipificação ou hierarquização sistemática (VALENTINE, 2007).


As experiências de pesquisa no contexto das periferias pobres brasileiras
podem indicar outros elementos que compõem a construção de masculini-
dades pelos jovens pobres em conflito com a lei, explorando várias facetas
identitárias e o modo como influenciam a vivência simultânea entre dife-
rentes eixos de opressão, ligados a raça, sexualidade, renda e idade, entre
outros. Contudo, as linhas aqui apresentadas se restringem ao dialogo entre
as geografias da juventude, das masculinidades e das práticas ilícitas na ins-
tituição de territórios urbanos.
Os dados da última década sobre a violência cometida por ado-
lescentes no Brasil têm demonstrado algumas características gerais que
relacionam a juventude masculina às periferias. A incidência dessas prá-
ticas ilícitas manifesta uma proporção de 96% de autoria masculina e 4%
de feminina, conforme relatório do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE) divulgado em 2006. No Paraná, a proporção é
de 93,5% para 6,5%, tal como apresentado no Levantamento Nacional de
Atendimento Socioeducativo, em 2008. Na cidade de Ponta Grossa, o ce-
nário se mantém, com 85% dos atendidos pelo sistema socioeducativo re-
presentados pelo sexo masculino, e 15% do sexo feminino, como evidencia
levantamento realizado pelo GETE sobre os atos infracionais registrados
na Delegacia do Adolescente e Antitóxicos da cidade, referente ao período
entre 2005 e 2007.
O Levantamento Estatístico da Subsecretaria de Promoção dos
Direitos da Criança e do Adolescente1, apresentado no Caderno do SINASE
de 20062, mostra que, entre os adolescentes do sexo masculino que cum-
priam medida socioeducativa no Brasil, 78,7% eram oriundos de famílias
sem renda ou de até dois salários mínimos. O mesmo documento categori-
za 85,6% como usuários de drogas.
O documento da Secretaria Especial de Direitos Humanos3 des-
taca o relato da subsecretária Carmen Oliveira: “[...] a maioria dos internos

1
Esta subsecretaria pertence à Secretaria Especial de Direitos Humanos, que apresentou
informações do levantamento Murad, 2004.
2
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) é apresentado em um
caderno publicado pelo Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes
(CONANDA), com o apoio da UNICEF. O caderno revela dados importantes sobre os
adolescentes em conflito com a lei no Brasil, referentes ao início do século XXI.
3
Este documento, acessado por meio do buscador Google, é nomeado com os seguintes
caracteres: [PDF] 090122 levantamento 2008.

INTERSECCIONALIDADES,
290 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

é proveniente de famílias com baixa renda, o que evidencia a tendência à


criminalização da miséria, ao invés de maiores investimentos nas políticas
públicas voltadas à adolescência.” (2008, p. 2). Sobre a escala estadual, al-
guns dados podem ser obtidos a partir nos Cadernos do Instituto de Ação
Social do Paraná (IASP). Tal como o publicado em 2006, que registra que,
no conjunto de adolescentes que cumpriam medidas de internação, o sexo
masculino representava aproximadamente 90% dos envolvidos no estado.
O texto do IASP também ressalta que o envolvimento mais comum está
entre adolescentes de famílias de baixa renda e moradores de periferias ur-
banas.
Ponta Grossa está localizada no segundo planalto paranaense, na
região conhecida como Campos Gerais, e o processo de urbanização ge-
rou a formação de periferias pobres em torno dos espigões de seu relevo.
A fragmentação do tecido social e o nível de qualidade de vida de áreas
distantes do centro ou nos fundos de vale que estão próximos dele formam
alguns dos elementos espaciais que instituem a vulnerabilidade para os atos
infracionais entre os adolescentes do sexo masculino, tal como expõe Chi-
min Junior (2011).
Os Censos de 2000 e 2010 registram grande concentração de
crianças e adolescentes nas áreas periféricas da cidade, e essas áreas apre-
sentam inúmeras carências em infraestrutura e serviços no espaço urbano.
As periferias de Ponta Grossa registram a maior concentração da popula-
ção com renda até dois salários mínimos, o que indica a existência de níveis
de pobreza mais elevados do que nas áreas centrais ou de alta valorização
fundiária. Coincidindo com as periferias pobres de Ponta Grossa, estão as
moradias de grande parte dos adolescentes em conflito com a lei, como fora
observado em Rossi e Chimin Junior (2009).
Levantamento realizado pelo Programa Municipal de Medidas
Socioeducativas em Meio Aberto (PEMSE) de Ponta Grossa registra que
82% dos adolescentes atendidos são moradores das periferias pobres da
cidade, sendo que 30% deles reincidem no ato infracional, o que indica
maior vulnerabilidade presente nestas áreas. Outro aspecto destacado
pelo PEMSE é que 90% desses adolescentes pertencem ao sexo mascu-
lino.
Os registros da Delegacia do Adolescente e Antitóxicos de
Ponta Grossa revelam o mesmo aspecto dos contextos nacional e estadu-
al, em que 97,13% dos envolvidos são moradores de áreas precárias em

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 291
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

serviço e infraestrutura, com baixos índices de renda. A análise dos re-


gistros da referida delegacia também revela que atos infracionais como
furto simples, furto qualificado4, roubo5, assalto, ato libidinoso, estupro
e perturbação da tranquilidade ocorreram com maior frequência nas áreas
de moradia e de vizinhança dos adolescentes. Por outro lado, atos infracio-
nais do tipo agressão, vias de fato, lesão corporal e tráfico de substâncias
entorpecentes ou tóxicas ocorreram, em sua maioria, nas áreas centrais da
cidade.
De acordo com as principais informações obtidas em levanta-
mentos de dados, há três elementos fundantes do grupo social investigado,
foco deste texto: a maioria dos jovens em conflito com a lei habita periferias
pobres da cidade; são do sexo masculino; a maior parte das práticas ilícitas
é cometida em grupo.
Chimin Junior (2011) apresenta a tese de que o espaço compõe
a vulnerabilidade de adolescentes do sexo masculino para a execução de
práticas ilícitas. Seu estudo realiza um importante mapeamento da rede de
apoio e proteção às crianças e adolescentes e identifica uma baixa articula-
ção entre seus ‘nós’ para o planejamento e a implantação de políticas públi-
cas que contemplem direitos à educação, diversão, arte e ao cumprimento
de medidas socioeducativas. O trabalho deste geógrafo inspira pensar que
na cidade os dispositivos de controle social e segurança pública operam
dispositivos disciplinares que possibilitam a reiteração de práticas ilícitas.
Uma dessas práticas é enfatizada por Rocha (2014) em seu estudo
sobre as espacialidades do uso de crack em Ponta Grossa, no qual destaca
as principais escalas de experiências de jovens com a substância química,

4
De acordo com o Art. 155, § 4º e incisos do Código Penal Brasileiro, o furto qualificado é
aquele em que ocorre uma, ou mais, das seguintes situações: 1) destruição ou rompimento
de obstáculo para a subtração do objeto; 2) emprego de chave falsa; 3) mediante concurso
de duas ou mais pessoas. O furto qualificado envolve contextos em que o agente utiliza
métodos astuciosos para a execução do delito. Portanto, é o método que qualifica o furto.
Por conseguinte, o furto simples não ocorre em nenhuma das situações. (http://www.dji.
com.br/codigos/ 1940_dl_002848_cp/cp157a160.htm). Acesso em: 12 fev. 2009.
5
De acordo com o que estabelece o Art. 157 do Código Penal Brasileiro, roubo significa
subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a
pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de qualquer
resistência. (http://www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_cp/cp157a160.htm). Acesso
em: 12 fev. 2009.

INTERSECCIONALIDADES,
292 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

articulando-se como ‘espaços espiados’6. Rocha também nota na relação


entre vício e espaço que o corpo é um importante elo de mediação e posi-
cionalidade em diferentes espacialidades e relações de poder.
Outra conexão estabelecida pelo geógrafo é entre crack, violência
e morte. Este aspecto levantado por Rocha (2014) e também por Gomes
(2013) e Gomes e Silva (2014) instiga a problematização das drogas num
contexto urbano recheado pela vulnerabilidade nas periferias.
Em Gomes (2013) e Gomes e Silva (2014), as assemblages violen-
tas são analisadas a partir do envolvimento de adolescentes homens com o
uso de drogas, com os fluxos econômicos do tráfico e com a morte. A coe-
são identitária e a imersão nas espacialidades da adicção são interpretadas
considerando a intersecção de elementos que (re)posicionam os sujeitos
em espaços de violência. Ao tratar da morte por homicídio, Gomes (2013)
a apresenta como interconectada às espacialidades da adicção e violência.
Portanto, demonstra alguns efeitos de uma política que dispõe sobre os
modos de vida e morte de homens jovens usuários de drogas.
Essa escala de análise convida a refletir sobre as possibilidades
de articulação do universo empírico estudado pelo Grupo de Estudos Ter-
ritoriais com a proposição pós-colonial da necropolítica. Achille Mbembe
(2003), teórico pós-colonial sul-africano, desenvolveu este conceito, afir-
mando que a “máxima expressão da soberania reside no poder de ditar
quem pode viver e quem deve morrer” (p. 11). Logo, sobre o modo de viver
e morrer de alguns grupos.
A ideia de soberania presente no texto de Mbembe se distancia
das reflexões em torno do poder do estado-nação, conexões supranacionais
ou ligadas a instituições estatais. Ela conecta questões de biopoder e guerra
para compreender o ‘governo da morte’. Para o autor, a necropolítica supera
o conceito de biopolítica desenvolvido por Foucault (1988), e a soberania
estabelecida em campos de concentração, estados de exceção, de sítio e de
emergência gera efeitos materiais e intersubjetivos nas populações envol-
vidas. Ele explora a experiência de populações coloniais com sistemas de
poder como a plantation e apartheid, e sugere pensar a biopolítica e necro-
política como interatuantes.

6
O ‘espaço espiado’, segundo Rocha (2014), se faz por meio de imaginações e
comportamentos desenvolvidos pelos sujeitos sob o efeito do crack. A expressão surgiu dos
relatos dos usuários de drogas que colaboraram com a pesquisa.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 293
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

Mbembe enfatiza que para a soberania dos sistemas de poder em


ocupações coloniais moderno-tardias e espaços pós-coloniais há o governo
da vida e da morte dos subalternos ou (pós)colonizados. Os espaços de vul-
nerabilidade, adicção e morte de jovens pobres podem ser representados
como uma pequena fração do terror da morte como formação de poder.
A conjuntura vinculada aos espaços de vivência de homens jo-
vens pobres de uma cidade brasileira é marcada por um cotidiano com-
plexo que envolve violência e a partilha de sentimentos de estigmatização
e marginalização. Esta parece ligada à disfuncionalidade do espaço urbano
em sua relação com a juventude pobre. E é sentida tanto por quem vive o
crime, suporta o tráfico, quanto por quem vive alguma experiência corpo-
ral química/entorpecente e viciante reconhecida como ilícita. Não há como
culpabilizar somente o jovem criminoso, mas a inerte política de prevenção
da vulnerabilidade e a condução dos fluxos da adicção e mortes violentas.
Diante dessa estrutura espacial e social complexa, algumas das reações dos
homens jovens que podem exercitar o conflito com a lei têm sido a institui-
ção de territórios urbanos.

OS TERRITÓRIOS DA ‘VIDA DA LOUCA’,


DO CONTROLE DA ‘CORRERIA’ E
DAS ‘RODAS DE CRACK’

A vida dos homens jovens estudados é permeada por diversos ti-


pos de deslocamentos diários e tensões provocadas em múltiplas espaciali-
dades. Nela há um reposicionamento constante dos sujeitos em diferentes
configurações de relações de poder espacialmente situadas. Nesta seção serão
apresentados os territórios que compõem a vivência de homens jovens po-
bres em conflito com a lei e as principais estratégias mobilizadas pelo grupo.
Com base nas ideias de Rose (1993) e Silva (2009) sobre a posi-
cionalidade e a reflexibilidade no processo de pesquisa, foi realizada uma
análise dos territórios urbanos dos homens jovens em questão a partir
dos contextos que caracterizam os sujeitos, suas práticas e as relações so-
ciais mediadas pelo espaço. Sendo os principais modos de apropriação
espacial identificados, estão conectados ao uso compartilhado de drogas,

INTERSECCIONALIDADES,
294 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

às estratégias de controle relacionadas ao seu deslocamento para obtê-las e


à dependência de crack.
Foi observado que as experiências comuns de exclusão e estigma-
tização são fundamentais na persistência do fenômeno da infração entre
adolescentes do sexo masculino que habitam as periferias pobres (ROSSI,
2010). Então, as práticas cotidianas do grupo, ao mesmo tempo em que ins-
tituem o ser homem jovem em conflito com a lei, são instituídas através da
mobilização de facetas identitárias ligadas ao imaginário construído sobre
o que é ser homem na condição de marginalizado.
A construção das masculinidades periféricas é problematizada
por Rossi (2010, 2011) e Chimin Junior (2011) como dispositivo de co-
nexão entre o conceito de masculinidade hegemônica e a perspectiva de
espaço paradoxal, desenvolvida por Rose (1993). As masculinidades são
constituídas como periféricas e ao mesmo tempo hegemônicas nos terri-
tórios urbanos de homens jovens em conflito com a lei. Nos territórios,
os homens jovens combinam aspectos do modelo hegemônico de mascu-
linidade com performances que não os contemplam (ROSSI, 2010). Ao
mesmo tempo e espaço, os homens jovens estudados têm sua performa-
tividade caracterizada pelo “corpo rígido” (ATHERTON, 2009; AITKEN,
2012), pela demonstração de poder de causar dano (NOLASCO, 2001), e pela
lealdade (‘ter palavra’) e coragem. A admirada performance no contexto de
seu grupo de pares é de longe reprovada pelos vizinhos que observam a
cena. Logo, a masculinidade periférica é permeada de ambiguidades e não
simplesmente de hierarquias. Além disso, pode ser interpretada enquanto
coconstituída das relações de poder que compõem dada espacialidade ou
território instituído pelos homens.
É neste sentido que não há como conceber a existência espacial
do grupo investigado a partir de contextos isolados ou da tipologia de atos
infracionais descritos nos autos. Pois deve ser revelado que entre a cons-
trução social dos homens jovens pobres em conflito com a lei e suas vivên-
cias espaciais há o hiato representado por um universo de possibilidades
de contato entre eles e a esfera institucional articulada no espaço urbano.
O modo como performativamente constroem sua posição en-
quanto homens jovens em dados territórios pode influenciar comporta-
mentos agressivos, bem como de subordinação. A imersão neste universo
possibilitou o contato com um sistema relacional particular, bem como
com as expectativas do grupo, suas imaginações sociais e espaciais e suas
motivações para desenvolver práticas ilícitas.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 295
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

Os homens jovens investigados são ativos no processo de ins-


tituição de territórios. Não obstante, através de suas práticas territoriais,
reconstroem permanentemente suas masculinidades por meio das correla-
ções de força vinculadas à sua convivência em grupo, à idade e à trajetória
na realização de práticas ilícitas (ROSSI, 2011).
Rose (1993) se posiciona contrariamente às concepções de es-
paço enquanto delimitação espacial de legítimo controle e poder obtidos
apenas através da violência, da proteção e, consequentemente, da exclusão
dos ‘outros’ da relação. Na geografia brasileira, Silva (2009) e Ornat (2009)
difundem a perspectiva de espaço paradoxal elaborada por Rose (1993),
para compreender os territórios complexos da prostituição feminina e tra-
vesti, bem como relações entre gênero e espaço. O desenvolvimento dessa
problemática tem se evidenciado como uma das maneiras de desestabilizar
a oposição bipolar que tem orientado reflexões sobre o espaço e território
que pressupõem noções de separação e fechamento e existência de um gru-
po insider e outro outsider.
O território é constituído por diferenciações internas, e nele have-
rá sempre a presença dos outros em relação aos grupos que mantêm centra-
lidade na configuração das relações de poder, e que, apesar de oprimidos,
podem elaborar táticas que desconstroem, desestabilizam ou subvertem a
ordem territorial instituída. As noções de centro e margem, problematiza-
das por Rose (1993), são fundamentais à compreensão da posicionalidade
diferencial dos sujeitos em seus territórios. Isto é, fruem das interações no-
vas possibilidades de rearticulação dos feixes de relações de poder, estra-
tégias de resistência e reposicionamentos dos sujeitos que instituem um
território. Possibilidades que, de acordo com a geógrafa, são apreendidas a
partir do jogo tenso entre centro e margem e das características de multidi-
mensionalidade e plurilocalidade da vivência espacial cotidiana.
A problematização sobre o conceito de território a partir da pers-
pectiva das geografias feministas configura-se como um importante eixo
de reflexão do GETE no contexto da geografia brasileira, que apresenta um
conteúdo crítico da noção de espaço paradoxal e que envolve a adoção de
metodologias alternativas de aproximação com os grupos estudados. Silva
(2009), Ornat (2009) e Rossi (2010) expõem algumas formas de contrapor
a produção das geografias feministas de países centrais ao contexto reflexi-
vo de nossas ações investigativas a partir da realidade brasileira.
As diferentes escalas que envolvem as experiências cotidianas
do grupo refletem objetos e objetivos que são experimentados nas ruas,

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

esquinas, praças, margens de linhas férreas, debaixo das pontes, nas vilas
vizinhas e, com menor frequência, em vilas distantes e no centro da cidade,
entre outras inúmeras áreas do espaço urbano.
Na sanha de frequentar cotidianamente espaços de encontro com
quem compartilha do mesmo sentimento de exclusão, os homens jovens
em conflito com a lei demonstraram embarcar quase rotineiramente na
chamada ‘vida louca’, caracterizada pelo uso cotidiano do álcool e outras
drogas.

Tipo nós não samo daqueles que andam com os cara que não conhe-
ce muito bem, maioria dos cara aqui que andam com nós aqui, é nós
aqui, os piá, que a gente conhece de anos já [...] nós sabemo qual que
é quando os cara fazem alguma, conhecemo já da correria os cara.
E é difícil rolar treta entre nós, se bem que às vezes rola umas, umas
desavença assim, mas nada a ver, depois a gente sempre se acerta.
Nunca tamo ali ‘de cara’, nunca tamo ali sem usar uma droga, nunca
sem tomar um gole, nunca sem fumar um cigarro, nunca sem usar
nada. Sempre na vida loca! Gorpo.7

Há dois elementos de coesão dos grupos e que são essenciais


na apropriação espacial que promovem nos espaços de vizinhança ou em
quaisquer locais de referência aos encontros. Um desses elementos está re-
lacionado ao tempo de convívio e ao estabelecimento de confiança e laços
afetivos. O outro tem a ver com o uso compartilhado de substâncias ilícitas
no espaço apropriado. Elementos que aparecem como interdependentes e
que têm centralidade no exercício coletivo de apropriação espacial. A coe-
são é o critério de união do grupo em torno da subversão do espaço públi-
co, já que este é concebido hegemonicamente ao exercício de outras práti-
cas de lazer. Sobre a presença de homens jovens da ‘vida louca’ nos espaços
públicos, os entrevistados descrevem suas práticas de apropriação espacial
por meio de atitudes agressivas e de inibição do acesso de outros grupos a
determinados locais da cidade.
A instituição dos territórios da ‘vida louca’ envolve estratégias de
adesão em comprar bebidas alcoólicas ou demais substâncias ilícitas que im-
plicam deslocamento, dos territórios da ‘vida louca’ até o mercado ou ca-
nais em que se vende maconha, crack ou cocaína. O processo de convivência

7
As citações de entrevistas preservam a linguagem coloquial do grupo, e os entrevistados
são identificados por meio de pseudônimos.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 297
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

combinada de espaços de encontro comum dos jovens de sua área e espaços


de relação direta com o narcotráfico permite que alguns homens jovens
instituam os territórios de controle da ‘correria’. Espaços apropriados por
jovens para abordar e intimidar outros jovens que ali estão de passagem. Os
termos ‘correria’, ‘corre’, ‘corres’ e ’corréra’ têm sido utilizados pelos entre-
vistados para descrever qualquer deslocamento com o objetivo de comprar
bebidas alcoólicas ou substâncias ilícitas. Ele pode ser também referente a
outros objetivos, ligados não somente à compra, mas ao trabalho realizado
para poder consumir algo, aos objetivos de vida, etc.
Nos territórios de controle da ‘correria’ foram consideradas as
experiências de deslocamento até os canais de venda de substâncias como
maconha, cocaína e crack, em que uma série de acontecimentos é possível,
pois nem sempre estão próximos ou são de fácil acesso. O controle da ‘cor-
reria’ é observado nas descrições de ‘pedágio’ e ‘multa’.

Os cara sempre chegam pedindo uma ‘intéra’8, sempre rola, onde


você for das outra quebrada é assim. Aqui também ó, aqui nós faze-
mo assim ó: os cara vêm fazer um corres aqui, daí a gente já tá ligado,
já sabe quando os cara procuram o bagulho, qual que é o contexto,
daí chega multando, tá ligado? Botamo uma pressão pros cara apre-
sentar pra nós, dá uma ‘intéra’, tá ligado? Oh maluco, bota pa nós o
bagulho aí! Tem louco aqui, num lugar mais cabuloso, que já chega
passando os cara, né mano! Nós aqui, sempre damo uma alugada,
leva uma ideia. De vez em quando, quando a gente tá nóia memo,
daí é diferente! O bagulho é louco memo! É difícil de rolar muito
dessas aqui, que nós aqui, os cara já flagram nós e nós já flagra os
cara [...] É só saber entrar nas quebrada, pra você sair de boa. Se os
cara vem te alugando, você leva uma ideia na humildade, tá ligado?
Se ele vem te alugar9, você também aluga o cara! [...] Só que o negó-
cio memo é respeitar pra não dar treta [...]. Dedinho.

É possível observar que, enquanto alguns adotam este tipo de es-


tratégia para obter vantagens, outros mobilizam táticas para não sofrer com
as eventuais perdas nesse deslocamento. Além disso, podem adotar ambas
no decorrer de suas experiências com diferentes espacialidades. Isto é, os
mesmos jovens que ‘multam’ outros em seus espaços de moradia utilizam

8
Quando cada um entra com certa quantidade de dinheiro para fazer uma compra coletiva.
9
Na linguagem dos adolescentes, ‘alugar’ significa ‘convencer’, ‘ludibriar’.

INTERSECCIONALIDADES,
298 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

táticas em outras espacialidades, tais como andar rápido, quase nunca parar
e, a mais importante, dialogar para não se saírem lesados. Este processo
institui o saber/poder dos adolescentes em entrar e sair ‘de boa’ em várias
‘quebradas’ do espaço urbano. Ao mesmo tempo, constituem-se como ma-
trizes fundamentais para a instituição de territórios.
Muitos dos que buscam na ‘correria’ um sentido para a ‘vida lou-
ca’ destacam a presença da inibição de uns grupos diante de outros pelo
espaço público. Isso se deve ao fato de que entrevistados que partilham das
mesmas ‘rodas de crack’ se encontram num estágio mais avançado em rela-
ção ao sentido da ‘vida louca’, mais ardiloso e destrutivo. Nesses espaços, os
elementos de coesão são muito flexíveis e giram principalmente em torno
do desejo de consumo repetitivo e ao custo, não apenas da simples ‘corre-
ria’, mas de variados riscos que envolvem a adoção de estratégias de furtos,
roubos e comércio e troca ilícita de objetos.
A coesão instituída nos territórios das ‘rodas de crack’ envolve,
obviamente, o uso compartilhado de crack nas ‘cracolândias’10 e, em menor
escala, nas ‘rodas de crack’. Tais espaços de adicção são rodas de convívio
que geralmente se encontram em locais de difícil acesso e longe de vigilân-
cias, tais como os fundos de vale, alguns capões de mata, linhas férreas, bai-
xadas próximas de rodovias, casa, garagem, cômodo, esquinas, praças, pon-
tos de ônibus, ao lado de lixeiras de condomínios, campinhos de futebol,
escolas durante a noite ou em finais de semana, etc. Geralmente em locais
não muito longínquos ao ‘canal’ em que há venda da substância, esses terri-
tórios assumem caráter nômade e podem localizar-se furtivamente. Trata-

10
As ‘cracolândias’, como espaços apropriados por usuários de crack, vêm ganhando destaque
no cenário nacional midiático nos últimos anos. Em telejornais e programas televisivos de
rede aberta, é comum aparecerem cenas e reportagens feitas nesses espaços, mostrando
crianças e mulheres grávidas usuárias, em estágio avançado de degeneração devido ao
contato com a substância tóxica, muitas vezes prostituindo-se para consumir, entre outros.
Atualmente, não há uma definição de proporção em relação ao que pode ser considerado
‘cracolândia’; contudo, a palavra sugere a aglomeração em torno do uso de crack, próxima
aos locais de sua venda. Em 20/05/2010, em matéria veiculada pelo site R7 Notícias, 58
pessoas foram detidas numa das linhas de trem da cidade do Rio de Janeiro, ocasião em que
nove quilos da droga foram apreendidos. In: http://noticias.r7.com/rio-e-cidades/noticias/
operacao-policial-no-rj-apreende-drogas-na-cracolandia-da-linha-do-trem-20100520.
html. Acesso em: 20/5/10. O site de notícias da G1, em 08/04/09, destaca uma ação no
Rio de Janeiro que deteve 47 menores de idade na Favela do Jacarezinho, local que já teria
recebido a denominação ‘cracolândia’. Acesso em: 8 jul. 2010: http://g1.globo.com/Noticias/
Rio/0,MUL10785145606,00OPERACAO+NA+CRACOLANDIA+APREENDE+MENORES+
DE+IDADE.html.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

se de ‘espaços espiados’, tal como propõe Rocha (2014), e que são constituídos
a partir de eixos de desigualdade vinculados à renda ou à posse de objeto que
permite uma troca satisfatória por dada quantidade de crack. Participar por
um longo tempo dessas rodas ou submeter-se ao uso prolongado do crack são
significados pelos entrevistados como ‘internar-se na pedra’.

Quando nós descemo ali, fica uma galera, um monte de ‘nóia’ uma
vez de cada, pra ir buscar o bagulho! Não faz mais nada da vida e
ninguém inventa de aparecer ali! Ah, nem são louco de aparecer,
quem flagra já não aparece. Teve uma vez que tava um pai de um
piazinho, assim, tava andando com o piazinho, ali de boa, e nós tava
tudo na nóia! Fazia dias já, coitado do hóme. Nós levamo tudo dele,
e o piazinho ficou chorando do lado, o cara dizia pra não encostar a
mão no piá. Sorte que ninguém meteu o dedo nele, mas o pai dele,
nós que tava ali vimo, o cara ficou sem nada, de cueca assim. Só que
nós também tivemo que sair dali, né? [...] Que nem, de rolar de pas-
sar alguém quase num tem, mas se é desconhecido, é direto, ali no
nosso mocó: vai pra fita. Zeca.
[...] o cara era daqueles que comprava de mim quando eu vendia
o bagulho, né cara? E fumava comigo, assim, e os chegado. Nós se
internava na pedra, né mano? Se internava memo! Violento o bagu-
lho! De ficar dias só internadão, sem comer, não dormia, nós tava só
na função do bagulho! Só que o cara ficou me devendo, né mano!
E era umas quinze grama, tá ligado? E eu fiquei com rancor! Tava
bem louco, trincado de gole, eu tinha fumado altas, altas memo! Mas
sabe que me deu assim, tipo, eu vi que tava sem o bagulho [...] E o
cara, tipo, tava me devendo uma pedra, assim [...] Foi me dando um
‘sangue ruim’ memo cara! Saí bem louco na quebrada e nessa, o cara
me atravessou a rua, né mano! Já era! Eu puxei o cano memo! Tentei
fazer o ‘cara’. [...] Pegou dois, mas nem consegui. O cara tá guarda-
do, lá no Cadeião, mas por causa de outra ‘patifaria’. Tô jurado pelo
cara11, tá ligado? Dedinho.

Quando se trata de um território complexo, como o das ‘rodas de


crack’, os conflitos e tensões emergem do contexto de uso e dos efeitos sen-
tidos por ele ou na falta dele, e da posição diferenciada dos homens jovens
nesses territórios. Geralmente os conflitos numa ‘roda de crack’ se estabele-
cem a partir de desavenças entre um e outro, ocasionadas pelo sentimento

11
Significa que o adolescente foi jurado de morte.

INTERSECCIONALIDADES,
300 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

de perda em relação ao que fora consumido. A relação de proporção entre


a quantidade de dinheiro compartilhada no grupo em dada ‘intéra’ e a que
fora consumida por um de seus membros demonstra que, no contexto do
uso, podem ocorrer reposicionamentos pela interação desarmoniosa entre
aqueles que acusam ter mais ou menos ‘direitos’ sobre a droga. Numa rede
de investimentos, nem sempre todos os nós parecem satisfeitos.
O sentimento de perda, aliado ao torpe efeito da substância, pode
eclodir, dessa maneira, em tentativas ou até na efetivação de homicídios.
Em relação ao que pode ser compreendido como apropriação espacial por
meio das ‘rodas de crack’, existem estratégias grupais que também podem
eclodir deste mesmo sentimento relacionado aos efeitos da droga. Tentati-
vas de roubo, que podem resultar em agressão, constituem formas de apro-
priação espacial a partir de estratégias grupais de homens jovens de uma
mesma ‘roda de crack’. A apropriação espacial de jovens que experienciam
os efeitos de substâncias tóxicas é efêmera e depende do controle de situ-
ações inesperadas que podem ocorrer devido à ‘correria’ de outros jovens
que frequentam a mesma área.
A coesão do grupo em levar a cabo a estratégia de controle so-
bre a presença de outras pessoas nas proximidades ou no próprio local de
referência para o encontro de pessoas que compartilham o uso de crack
mostra-se como flexível e eclode a qualquer momento em que os efeitos
da droga ou da abstinência dela são sentidos. Geralmente, alguns mem-
bros deste tipo de roda social apresentam uma estratégia como viável e,
assim, executam-na em grupo. Entre os entrevistados, foi comum observar
que essas estratégias são diversas. As principais são chamadas por eles de
155 e 157, que correspondem ao furto simples ou qualificado e ao roubo à
mão armada. Outro aspecto desses territórios é a constituição de redes de
relações territorializadas que, em menor escala, podem ser resumidas na
presença de outros agentes, tais como vítima, receptador de objeto furtado
e traficante, que estão conectados à instituição de territórios urbanos das
‘rodas de crack’ e ‘cracolândias’.
Dentre os entrevistados, todos já tiveram ou ainda têm seus mo-
mentos de ‘internar-se na pedra’ e nas ‘rodas de crack’, e até mesmo fazem
eventuais assaltos à mão armada. Destarte, ocupam diferentes posições em
territórios urbanos situados em tempo, espaço e grupos específicos. A va-
riação de posicionalidade envolve diferentes escalas de observação sobre
as experiências do grupo, desde os espaços apropriados à reprodução da
‘vida louca’, as ‘rodas de crack’ e os espaços apropriados pela estratégia de
controle da ‘correria’.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 301
HOMENS JOVENS EM CONFLITO COM A LEI E SEUS TERRITÓRIOS URBANOS

Os deslocamentos cotidianos dos homens jovens têm a ver com


idas e voltas à adicção, a estratégia do furto que se dirige ao consumo dese-
jado. Seus outros espaços de vida podem ser entendidos como interstícios
de um complexo espiral. Todavia, esses interstícios são representados pelos
entrevistados como espaços de estigmatização e marginalização. Enfim, os
territórios, além de representar uma reação, incidem significativamente na
construção das masculinidades e da juventude pobre das periferias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto argumentou sobre a necessidade de aproximação com


as geografias da juventude masculina e marginalizada pelo espaço urbano
brasileiro. O conceito de território, operado sob a perspectiva paradoxal e
interseccional, foi reconhecido como importante dispositivo na compre-
ensão de como os grupos se instituem socialmente através de suas ações
e dos sistemas relacionais a elas, em diversas espacialidades. Portanto, os
territórios urbanos de homens jovens em conflito com a lei podem se cons-
tituir como suportes ou referências espaciais; influenciam ações e, assim, as
maneiras pelas quais suas vivências espaciais são interpretadas, legitimadas
ou contestadas.
Os homens jovens em conflito com a lei são muitas vezes alvos
da retórica da penalidade e da moralidade e, neste processo, as dúvidas em
relação à liberdade e questões de alteridade são poucas vezes interpretadas.
Este texto representa um esforço científico coletivo que busca preencher
esta lacuna e afirmar que o conhecimento destes sujeitos pode ser utilizado
como estratégia de resistência ao discurso hegemônico que frequentemente
oprime e estigmatiza. Seus conhecimentos podem ser relevados na reflexão
sobre políticas públicas alternativas de socioeducação e para a transforma-
ção de espaços de violência e vulnerabilidade. Logo, não há lugar conve-
niente e coerente para a redução da maioridade penal no Brasil, mas sim
ao diálogo sobre as possibilidades de transformar os espaços de vida de
crianças e jovens pobres em situação de vulnerabilidade.

INTERSECCIONALIDADES,
302 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
RODRIGO ROSSI

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INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 305
TOPOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA
E AS PERFORMANCES DE
MASCULINIDADE DE JOVENS DO
SEXO MASCULINO COM
ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS
EM PONTA GROSSA - PR
Fernando Bertani Gomes

***

A violência é performativa e seu desempenho está mergulhado


na dimensão estética de um grupo e de sua espacialidade. Esta afirmação,
baseada em Thrift (2006), põe à mesa de debates o desafio geográfico na
compreensão da violência. As práticas de violência são espacialmente cons-
truídas, e assumir essa premissa significa romper com a ideia da existência
de uma realidade que pressupõe a violência como fazendo parte da condi-
ção humana.
As ‘topografias da violência’ referem-se a uma realidade horizon-
tal profundamente interrelacionada e com agenciamentos concretos, mas
os acontecimentos sociais não são passíveis de ‘mapeamentos’ duros, ma-
nifestando-se sempre através de uma esfera de multiplicidade. As ‘topogra-
fias’ aqui tomadas não querem ser mapas representativos de uma realidade,
ou cartografias de um espaço isonômico e preenchido de significados/sig-
nificantes mapeáveis. São antes uma expressão das junções teórico-meto-
dológicas dessa pesquisa, congregando três referências importantes: Mas-
sey (2008) e suas geometrias do poder; Anderson et al. (2012) e o conceito
de assemblage; e, por fim, a noção de diagrama presente em Deleuze (2008).
Mais importante que apresentar o pano de fundo dessa pesquisa
é explicitar sua questão central, que tem como objetivo compreender a re-
lação das práticas de violências e as espacialidades vivenciadas por jovens
do sexo masculino com envolvimento com as drogas e moradores de vilas
periféricas pobres da cidade de Ponta Grossa, Paraná - BR.
TOPOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA E AS PERFORMANCES DE MASCULINIDADE DE JOVENS DO SEXO
MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

Por meio de um levantamento e análise de casos de homicídio


doloso realizado por Gomes (2013)1, foi evidenciado que, além de os mais
vitimados serem jovens do sexo masculino, grande parte dos crimes tinha
relação com a espacialidade das drogas, especificamente seus dispositivos
informais de cobrança e conflitos entre territorialidades urbanas do narco-
tráfico local e regional.
A partir do conhecimento do perfil de pessoa vulnerável a se
constituir em uma vítima de homicídio, buscaram-se pessoas que partici-
pavam das mesmas dinâmicas de vida observadas na análise dos inquéritos
policiais. Nesse sentido, a pesquisa teve como referencial empírico a Co-
munidade Terapêutica Marcos Fernandes Pinheiro, vinculada à Prefeitura
Municipal de Ponta Grossa, única entidade na cidade que recebe adoles-
centes dependentes químicos para tratamento. O local funciona como uma
casa de recuperação de adolescentes do sexo masculino, obrigatoriamente
menores de 18 anos, dependentes químicos. A entidade recebe adolescen-
tes em cumprimento de medidas judiciais da Vara da Infância e da Juven-
tude de Ponta Grossa e do Conselho Tutelar, e também atende demandas
feitas diretamente pela população. De acordo com levantamento realizado
por Rocha (2013), a maioria dos adolescentes tem entre 15 e 18 anos e mora
em vilas periféricas pobres da cidade. Não houve registro de nenhum resi-
dente na área central da cidade.
O acesso a esse ambiente institucional de tratamento de depen-
dência química permitiu traçar o perfil dos sujeitos mais vitimados por ho-
micídio e, assim, elaborar as entrevistas que serviram de base para a análise
das espacialidades vivenciadas por eles e da composição da sua vulnerabi-
lidade à morte violenta. Foram realizadas seis entrevistas semiestruturadas
com jovens entre 15 e 17 anos, todos de alguma maneira envolvidos com as
espacialidades das drogas.2

1
A pesquisa de Gomes (2013) elabora uma análise das vítimas e as características dos
homicídios ocorridos entre 2010 e 2011 em Ponta Grossa - PR. O levantamento se deu por
meio da 13a Subdivisão Policial de Ponta Grossa e pelas Varas Criminais Federais de Ponta
Grossa, onde foram analisados 79 inquéritos policiais.
2
Para preservar a identidade dos entrevistados, criamos os seguintes nomes fictícios: 1.
Polaco Bala, 16 anos, usuário de cigarro, álcool, maconha, cocaína e crack; 2. Palhaço Zóio,
16 anos, usuário de maconha, cocaína e crack; 3. Bola Magrão, 15 anos, usuário de cigarro,
álcool, maconha, cocaína e crack; 4. Severino Espiado, 15 anos, usuário de cigarro, álcool,
cocaína, crack e oxi; 5. Ribeiro Loco, 17 anos, usuário de cigarro, álcool, maconha e crack; 6.
Jason Rim, 17 anos, usuário de maconha e crack.

INTERSECCIONALIDADES,
308 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
FERNANDO BERTANI GOMES

A sistematização dos dados atende a uma adaptação da metodo-


logia que vem sendo elaborada por meio de outras pesquisas do Grupo de
Estudos Territoriais (GETE/UEPG), denominada ‘evocação’, que envolve
três questões-chave: i) baseada nas concepções de análise de conteúdo
de Bardin (1977), a evocação não toma o significado estrutural de um
discurso; antes, considera que num discurso existem diversas evocações,
como momentos semânticos da fala de um sujeito; ii) cada evocação pode
e/ou está sempre situada em uma determinada espacialidade, e a partir
das evocações é possível produzir um ‘mapa’, criando um ‘diagrama evo-
cativo’ das espacialidades vivenciadas pelos sujeitos entrevistados; iii) por
meio de um banco de dados, é possível potencializar a sistematização dos
dados, o que permite organizar as espacialidades presentes e delimitar as
evocações a respeito de cada espacialidade, estipulando, através do nú-
mero de evocações, o que é central e o que é periférico na vida cotidiana
dos sujeitos.
Os sujeitos vivenciam diferentes espacialidades, por meio das
quais elaboram discursos sobre ‘si’, sobre ‘nós’, sobre o ‘outro’ e sobre os
‘lugares’. Assim, as construções discursivas dos sujeitos permitem estipular
alguns componentes presentes em cada relação do sujeito com a espaciali-
dade vivenciada.
A formação de um sujeito requer interações constantes, e ela é
produzida simultaneamente com essas interações. Não se trata, portanto,
de um sujeito-substância, mas de um “processo de subjetivação”, construí-
do por continuidades ou descontinuidades de normas regulatórias presen-
tes na sociedade, sempre aberto a novos encontros e agenciamentos com a
realidade.
Conforme afirmam Butler (1990) e Foucault (1988), o sujeito é
coextensivo ao seu espaço de ação. A partir das concepções pós-estrutura-
listas, todo corpo é visto como uma composição, tomando forma cadencia-
da pelos agenciamentos estabelecidos e pelos que seguem se estabelecen-
do. Nesse sentido, dinâmicas sociais tornam-se acontecimentos enquanto
resultados de um encontro de trajetórias em conflito. Segundo Whitehead
(2004), a violência é, antes de tudo, performativa, e Nigel Thrift (2006) sus-
tenta que ela possui uma dimensão estética, “a maior parte da violência
vem carregada com vários tipos de maior ou menor carga cuidadosamente
construída” (THRIFT, 2006, p. 287).
Em grande parte, performances masculinas violentas precisam ser
compreendidas através de suas conexões e tensões locais e suas trajetórias

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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TOPOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA E AS PERFORMANCES DE MASCULINIDADE DE JOVENS DO SEXO
MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

cotidianas. Nesse sentido, o conceito de assemblage3, da Geografia,


constitui uma importante contribuição conceitual das dinâmicas espaciais
da violência urbana. De maneira geral, assemblage pode ser considerado
um conjunto de relações, sem fundar um todo. Trata-se de uma composição
temporária, modelada ao longo de sua realização, e montada como
acontecimento. Contudo, assemblage opera não apenas como um conceito
objetivo para compreender como surge um conjunto de relações, já que
possui um ethos político para pensar as relações entre a continuidade
e a transformação de uma espacialidade. A chave central do conceito de
assemblage, segundo Anderson et al. (2012), está em compreender como os
agenciamentos elaborados ao acaso excedem os aspectos ‘determinísticos’
de uma espacialidade. Assim, lembrar a incerteza nos agenciamentos
de uma assemblage, através das práticas cotidianas espaciais, é ressaltar
o potencial para ser de outra forma. Greenhough (2012), em seu artigo
“On the agencement of the academic geographer”, faz uma inserção com
o conceito de agenciamento, como possibilidade de descrever diferentes
agentes e suas conexões, compreendendo, desse modo, suas capacidades e
recursos de ação.
Para Anderson et al. (2012), utilizar o conceito de assemblage
é atentar para os componentes e os tipos de relações que compõem uma
formação socioespacial provisória, relações que se dividem entre aquelas
que são capazes de dar continuidade/estabilidade a uma disposição espa-
cial e as que produzem abertura/mudança. Por meio de laços precários,
um indivíduo pode se aproximar ou se distanciar da execução de um as-
sassinato.
Nesse sentido, o conceito de espaço performático, criado pela geógrafa
feminista Gillian Rose (1999), se aproxima dessa pesquisa pela sua pers-
pectiva antiessencialista. Para a autora, o espaço é produzido através de
performances, de maneira “relacional”, que não é dada entre dois atores
pré-existentes, mas, sim, é “performada, constituída através de interações,
ao invés de através das essências” (ROSE, 1999, p. 248). O espaço, assim, é
“praticado”, “interativo”; ele funciona como “estratégia de poder”, “matriz
do jogo”, e é por intermédio dele que as relações de poder acontecem. Rose

3
Existem alguns trabalhos específicos sobre os limites e as contribuições do conceito
de assemblage, como: Delanda (2006), Marcus e Saka (2006), McFarlane (2009, 2011),
Anderson et al. (2012) e Greenhough (2012).

INTERSECCIONALIDADES,
310 **
*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
FERNANDO BERTANI GOMES

(1999) auxilia a compreensão das performances espaciais a partir da tríade:


desejo, fantasia e corpo. Os sujeitos se instituem através das relações socio-
espaciais, simultaneamente ao discurso e suas normas regulatórias, mas,
além disso, há o ‘desejo’, não de ser o outro, mas de ser frente ao outro. E
a ‘fantasia’ pode ser caracterizada como a mise-en-scène do desejo, espaço
fantasia onde o desejo é colocado em cena, arranjado e disposto espacial-
mente. Teremos então um espaço corporalizado, não sob as formas sólidas,
mas sob o governo contínuo de produção de fixidez de si e dos outros.

AS ESPACIALIDADES DOS JOVENS


DO SEXO MASCULINO
ENVOLVIDOS COM DROGAS

Com a sistematização das entrevistas, foram categorizadas 402


evocações, todas elas vinculadas a uma espacialidade. Serão trabalhadas
aqui as espacialidade mais frequentes e que atendem à questão central da
pesquisa4: Rua, Vila, Casa, Mocó e Tráfico.
A espacialidade Rua (22,4%) é a mais evocada nos discursos dos
jovens entrevistados. A figura que segue evidencia os elementos constituti-
vos da espacialidade da rua.

4
As espacialidades vivenciadas pelos entrevistados foram organizadas da seguinte maneira:
Rua (22,4%); Vila (17,7%); Casa (16%); Instituição de tratamento (14,8%); Rua-Instituição
de tratamento (7,2%); Mocó (6,7%); Tráfico (6,7%); Centro (3,2%); Escola (2,5%); Outros
(2,8%). As espacialidades Instituição de tratamento e Rua-Instituição de tratamento,
respectivamente quarta e quinta evocações mais frequentes, não serão analisadas de maneira
específica. A espacialidade Instituição de tratamento diz respeito a evocações referentes à
Comunidade Terapêutica Marcos Fernandes Pinheiro, e a espacialidade Rua-Instituição
de tratamento representa evocações em que os meninos ressignificam a rua, posicionados
dentro da comunidade terapêutica. É a rua, mas com a intersecção com a instituição de
tratamento.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 311
TOPOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA E AS PERFORMANCES DE MASCULINIDADE DE JOVENS DO SEXO
MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

Figura 1: Diagrama da Rua.

Fonte: Elaborado pelo autor.

A espacialidade da rua está mais frequentemente vinculada ao


‘uso de drogas’, seguido de experiências com a ‘morte’ e práticas de ‘vio-
lência’. Ela está presente na construção discursiva dos meninos usuários de
crack, expressando movimento e transitoriedade; aberta a diferentes agen-
ciamentos; ações em devir de encontros casuais; lugar de eventualidade de
encontros e desencontros. Mas também a rua se comporta como um duplo
de sujeição-espaço, lugar de repetição, de normas condutoras, dos saberes,
da conexão entre modos de dizer e se fazer entender, dos modos de fazer e
se fazer sujeito “homem” como os “outros-homens”.
Uma espacialidade distante de fundamentos da sociedade como a
família e a casa ou a escola. Lugar de práticas ilícitas como o roubo e o uso
e venda de drogas, as quais contribuem para a sociabilidade desses jovens,
criando alianças e instituindo os ‘camaradas’. Também nessa composição esca-
lar estão presentes as expressões de masculinidades de periferias pobres, atra-
vés de práticas de encontro com as ‘muiés’ e conflitos com outros meninos.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
FERNANDO BERTANI GOMES

É na rua onde eles fazem ‘uso de drogas’, como bebidas alcoólicas,


maconha, cocaína e crack, e esse tipo de prática agenciada à espacialidade
da rua tem relação próxima com a ‘violência’ e a ‘morte’, devido a uma série
de elementos presentes no mercado informal da droga, que cria dispositi-
vos de cobranças vinculadas a essas práticas.
Como mostra a Figura 1, o ‘acesso à droga’, representando o pri-
meiro uso e as práticas de inserção na droga, aparece como a quarta evo-
cação mais frequente, e sobre ela estão tramadas inúmeras interrelações,
como o período de vida em que eles fazem o primeiro uso do crack. Seve-
rino Espiado diz que “a primeira vez cara, eu tava com onze, eu tava quase
completando já, foi com doze”. Considerando os recortes etários formais,
isso aconteceu então ainda no período da infância, ou seja, com idade in-
ferior a doze anos.
Outro elemento são as pessoas presentes nesse encontro da crian-
ça-adolescente com a droga, como é o caso dos ‘camaradas’ e suas práticas
de entretenimento e a ‘família’, representando uma dificuldade na qual a
droga veio a ser uma linha de fuga:

[...] cara, tipo assim, tem uns camarada que falam: ói, a minha mãe,
se eu tivesse ela, olhe cara, não ia fazer isso, e não sei o quê, tem mui-
tos cara que é por causa da mãe morta, né? Tem uns aí, uns dois cara
que eu conheço, foi por causa da mãe. [Por causa da mãe?] Perdeu a
mãe e... É tipo assim, cabeça, né cara? (Severino Espiado)

A rua pode ser vivenciada de diferentes maneiras e, ao afirmar


que ela é um lugar de movimento, não quero dizer deslocamento ou cami-
nho de passagem de um lugar para outro. O movimento da espacialidade
em questão acontece como um ritmo rizomático, no sentido simples de
rizoma, como um ‘sistema aberto’ (DELEUZE, 1992), uma espacialidade
que se funda na interação casual, repudiando causalidades lineares.
Sobre a rua, há um tipo de noção hegemônica clássica de que ela
representaria uma linha conectora entre pontos transcendentes da cidade,
como o ‘lar’, a ‘escola’, a ‘biblioteca’, a ‘igreja’, todos estes espaços disciplina-
dores (FOUCAULT, 2003), mas, além disso, são espaços responsáveis por
‘desterritorializar’ as formas de subjetividades flutuantes e agenciá-las, ter-
ritorializando-as aos ditames transcendentes do Estado, e por meio dele
conduzir o indivíduo aos conceitos essencialistas de ‘família’, ‘verdade’, ‘co-
nhecimento’ ou ‘liberdade’ (DELEUZE e GUATTARI, 1976).

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MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

Jovens, como afirma Bola Magrão, estabelecem alianças com um


sujeito que eles denominam ‘mendigo’, que já é caracterizado como um su-
jeito que não faz da rua somente um lugar de acesso aos espaços ideais da
cidade. Na verdade, ser ‘mendigo’, pode-se dizer que já não seja uma forma
de subjetividade ideal para uma cidade, expressando-se como um sujeito
descodificado das noções de cidadania, por exemplo.
Mesmo que estabeleçam esses laços e façam da rua uma moradia
temporária, como mostram 4,4% das evocações (Figura 1), é marcante a
forma como esses jovens administram suas vidas, muitas vezes tensionan-
do os papéis exercidos por outros sujeitos com a mesma idade. Através das
práticas de ‘uso de drogas’ como a mais frequente na rua, esses meninos
precisam se vincular a práticas como o roubo, formas de negociação de
produtos, de administração da renda que conseguem pelo ‘tráfico de dro-
gas’. O que faz deles corpos que se aproximam de práticas caracterizadas
geralmente na fase adulta, como afirma Pain (2001), as pessoas podem “ati-
vamente criar e resistir às identidades etárias através do uso do espaço e
lugar” (PAIN et al., 2001, p. 151 apud HOPKINS, 2011, p. 197), como de-
monstra essa fala sobre os ‘corres’5 para o uso e compra:

Daí eu comecei a fazer meus corre sozinho, comecei eu mesmo a


vender minhas coisa, eu mesmo fazer meus corre. E daí um tempo
depois nóis briguemo com esse piazão, porque ele falava: É, você não
vai mais lá em casa. Ir na tua casa o quê, cara, ir na tua casa pra ter
que rachar a cena ali, as pedra, tá ligado? [...] Fumava sozinho mes-
mo, eu tinha cachimbo pra tudo quanto era parte. Cada mato que
não tinha dono, assim, tinha um cachimbo mocado. [Você fumava
na rua ou escondido?] Na rua, no mato. (Bola Magrão)

Através da administração de uma boa quantia de dinheiro, da


decisão e dos excessos nos gastos, e combinando com essas expressões de
masculinidade administradora e dos excessos, está também o desejo, na
pessoa da “muié”:

[Dava muito dinheiro?] Dava, só que também gastava tudo. [Gastava


com o quê?] Ih, gastava com tudo, cara, só de vender tudo as pedra

5
Termo utilizado pelos jovens entrevistados para designar trajetórias espaciais que se
destinam à compra de drogas, como maconha, cocaína e crack. Essas trajetórias estão
sempre ligadas a práticas de furto e roubo, ou práticas alternativas, na busca de recursos
para o uso de drogas e para a quitação de dívidas de drogas.

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FERNANDO BERTANI GOMES

já entrava ali zero, no Fórum, e gastava tudo, com gole e curtição


com as muié. [Qual foi a venda de dinheiro maior que você ficou na
mão?] Foi mil e duzentos, por aí. [Mas era teu?] Meu, mil e duzentos,
e dois revorve. (Palhaço Zóio)

Assim como o uso de drogas vincula esses meninos a práticas


que tensionam aspectos de idade, de uso da rua e de vínculos sociais, essa
prática também os aproxima de elementos de ‘violência’. Essa ‘violência’ de
maneira geral é ligada tanto às práticas econômicas da droga como à pró-
pria combinação da masculinidade marginalizada com o efeito da droga.
Entre os usuários de crack é presente o termo “espiado”, que de-
signa a condição do efeito do crack, juntamente com as relações sociais
estabelecidas nas práticas de uso da droga. Essa condição foi performada
por Palhaço Zóio no momento da entrevista e consiste na circunstância
em que o batimento cardíaco acelera, a pupila dilata, os olhos ficam bem
abertos, os ombros se frisam, tudo parece suspeito, imagens aparecem e
qualquer movimento é ameaçador. Muitos usuários se reúnem em terrenos
baldios, matos, na proximidade de arroios, rios, ou fazem uso da droga
sozinhos. Conflitos momentâneos são estabelecidos nessas ocasiões, traje-
tórias ‘espiadas’ na busca de mais entorpecente são responsáveis por violên-
cias eventuais, de agressão e ameaça.
Esses elementos constituem o que podemos denominar ‘espacia-
lidade espiada’, uma trajetória-condição sob efeito da droga que os aproxi-
ma de brigas, como afirma Jason Rim: “tipo já briguei altas vezes por droga
com os caras assim, mas tipo eu procurava ficar mais de lado entendeu, dos
caras assim. Não curtia ficar junto, bem junto assim, se queima, né cara”.
A ‘rua’ também dá lugar às práticas de roubo, diretamente vincula-
das ao uso de droga, como demonstra Severino Espiado quando diz que “se
eu não usasse eu ficava louco, cara eu roubava mesmo pra pegar dinheiro”.
Através de assalto a transeuntes da zona central da cidade ou de outras vilas,
roubos de estabelecimentos de comércio como pequenos mercados da vila de
moradia e furtos de residências da própria vila e casa de familiares.
O par relacional meninos-rua está repleto de elementos e
combinações que possibilitam a relação dos jovens do sexo masculino,
moradores de periferia pobre, usuários de crack com a morte por homicídio.
E quando citamos as ‘brigas’, é preciso lembrar que na maioria das vezes
elas não acontecem pela via da agressão, mas no uso de armas, faca ou arma

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MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

de fogo, como conta Jason Rim: “Eu vendia umas pedra pra esse cara lá, o
cara que me deu um tiro”.
Um conceito que podemos aproximar dessa espacialidade é o de
“parresía”, trabalhado por Michel Foucault (2011). O filósofo francês, ao
analisar formas de dizer-a-verdade nas sociedades greco-romanas clássi-
cas, identifica na parresía cínica uma forma de coragem da verdade. Um
‘parresiasta’ é aquele deslocado, de linguagem áspera, de ataques verbais
virulentos, preleções violentas. A parresía, como comenta Portocarrero
(2011, p. 427), é uma “atitude de franqueza e não de persuasão; de verdade
e não de falsidade; [...] de crítica ou julgamento de alguém mais poderoso e
não de lisonja” e, sobretudo, uma atitude de coragem e risco de vida, como
exemplifica Foucault (2011) ao analisar as últimas palavras de Sócrates. São
todas essas características presentes nos entrevistados.
Os meninos participam da espacialidade das drogas, compõem
‘espacialidades espiadas’ e expressam-se através de uma masculinidade
agressiva, em que as formas de dizer-a-verdade acontecem por meio da
prova e da disputa de coragem. Lembrando as noções de espaço perfor-
mático (ROSE, 1999), o sujeito é composto somente na interação, não de
essências, mas de performances. Para Rose (1999), podemos compreender
o espaço na tríade desejo, fantasia e corpo.
Através das relações socioespaciais se instituem os sujeitos simul-
taneamente ao discurso e suas normas regulatórias presentes na sociedade,
mas, além disso, há o ‘desejo’, não de ser o outro, mas de ser frente ao outro,
e a ‘fantasia’ pode ser caracterizada como a mise-en-scène do desejo, espaço
fantasia onde o desejo é colocado em cena, arranjado e disposto espacial-
mente. Teremos então um espaço corporalizado não sob as formas sólidas,
com limites e fixidez, com atributos e finalidades de si e dos outros.
É no corpo “que os processos de afirmação ou transgressão das
normas regulatórias se realizam e se expressam” (LOURO, 1999, p. 83), e
se há transgressão, é porque a imanência dos acontecimentos no mundo é
para a diferença (DELEUZE, 2000). Dessa forma, as regras que codificam,
as normas que regulam, os saberes que ‘transcendem’ são realizados por
meio de práticas repetitivas de poderes disciplinadores e normalizadores,
como afirma Michel Foucault (1987), e também em suas discussões sobre
“biopoder” (1988), “governamentabilidade” (2008) e “dispositivo” (1988).
Mas Foucault (1988) também lembra que o poder, antes de ser repressivo,
é produtivo, “as relações de poder emanam de um mundo de forças em

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afrontamento, de contrastes e quiçá de combate entre campos de intensi-


dade diferentes” (BRANCO, 2011, p. 139); ele está aqui e acolá, em cima e
embaixo.
Tomado isso, exemplifico, com as falas de Severino Espiado, os
agenciamentos, por meio da droga, que os meninos realizam no desejo de ser
mediante o outro, performando assim a forma de subjetividade em questão:

[...] eu passei, assim, tinha uns cara sentado lá no Boa Vista lá, atra-
vessando a linha. Cheguei, perguntei: qual que é a dos negócio aí?
Eles viram que eu tava com bicicleta, roupa, assim, celular, dinheiro.
Não, é bom cara, quer fumar? (Severino Espiado)

Cada espacialidade possui um ritmo e intensidade diferente nas


relações estabelecidas por esses sujeitos. O espaço tanto é performático que
o simples deslocamento dos meninos para uma instituição de tratamen-
to demanda novas interações e comportamentos. Atributos de violência,
agressividade e descaso à vida de outrem são frequentemente conferidos
como desvios psicológicos por outros campos do saber, como a psiquiatria.
Isso não quer dizer que os meninos em tratamento do crack não
deem continuidade a algumas práticas de violência frequentes na rua; con-
tudo, o simples fato de acrescentarem novos discursos e novas práticas de-
monstra que há um jogo. Uma nova disposição espacial demanda e emana
novas relações de poder, e assim segue continuamente ao receber novos
elementos outsiders da assemblage vivenciada.
A aproximação do conceito de parresía e as práticas espaciais dos
jovens do sexo masculino, moradores da periferia e usuários de drogas,
foram tomadas como analogias e complexificação do cotidiano desses su-
jeitos. Contudo, é necessário esclarecer que a conceituação dos meninos
como seres parresiastas não se fecha se considerada toda a discussão que
Foucault (2011) elabora. Um ato parresiástico se faz, sobretudo, como um
ato político, um governo autônomo de si, uma prática ético-estética de re-
sistência às formas de sujeição presentes na sociedade. Dessa forma, no
terceiro capítulo, sob a ótica da morte e da coragem perante a morte, estão
presentes argumentos contestando a noção de que esses jovens subvertem
uma forma obediente e cidadã de ser no mundo, matando e vivendo uma
‘vida loka’. Se assim o fazem, não é pela via do governo autônomo de si. As-
sim, o que erroneamente pode ser considerado como uma vida parresiasta
é uma expressão de sujeição e continuidade das práticas que os rodeiam.

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Ressaltar essas questões impossibilita críticas que afirmam que a insujeição


e a não continuidade dos valores essenciais da nossa sociedade são respon-
sáveis por criar sujeitos ‘bárbaros’.
A ‘vila’ é a conceituação da relação entre a ‘casa’ e a ‘rua’. Isso não
quer dizer que de imediato o termo ‘vila’ esteja situado em aportes teóricos
entre espaço privado e espaço público, apenas que nela estão presentes ele-
mentos da ‘rua’ e da ‘casa’. Antes de ancorar a ‘vila’ ao bairro, como propõem
Certeau et al. (1996), a rua ao espaço público e a casa ao espaço privado,
mais pertinente é afixar as singularidades propostas em cada assemblage.
Na ‘vila’ estão presentes as seguintes evocações:

Figura 2: Diagrama da Vila.

Fonte: Elaborado pelo autor.

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O tráfico de substâncias ilícitas nas cidades brasileiras apresenta


um comportamento reticular, conectando fluxos econômicos de diferentes
locais do país e fora dele. Entretanto, é em zonas pobres do espaço urbano
que predomina o estabelecimento da territorialidade do tráfico, um terri-
tório descontínuo (SOUZA, 2000) ou território rede (HAESBAERT, 2006).
Os bairros, vilas e favelas com grupos de baixa renda abrigam os agentes
locais de distribuição e venda das drogas.
Na espacialidade da ‘vila’ está bastante presente o tráfico de dro-
gas, pois ambos apresentam uma relativa fixidez nos agenciamentos elabo-
rados, corroborando para uma continuidade de práxis. O tráfico apresenta
comportamentos relativamente bem determinados, por meio das formas
de venda e distribuição que designam práticas e pessoas que confirmam
o que deve ser feito para atender uma demanda econômica. Essas carac-
terísticas co-existem à ‘vila’, lugar de práticas de negociação e contestação
cotidiana das identidades constituintes.
Um dos componentes do tráfico é a ‘boca’, que são estabelecimen-
tos com a função de receber a droga, distribuir e vendê-la. Frequentemente
é usada também como local de consumo. As ‘bocas’ geralmente estão evo-
cadas por meio da ‘vila’, como demonstram a fala a seguir:

Onde que eu moro é muito cara, e fuga geográfica não adianta, en-
tendeu? Porque onde você for você vai ter droga, né, cara, indepen-
dente de onde você for. Se for lá nos cafundó do Juda, vai ter droga,
né, cara. Então, eu acho que esse que é o verdadeiro tratamento que
você tem que viver, né, cara. (Ribeiro Loco)

Esta citação torna-se marcante pela explícita ordem geográfica


em que está inserido o fenômeno das drogas. Ribeiro Loco, ao se referir ao
tratamento das drogas a que vinha sendo submetido, afirma que seu local
de moradia está cercado da presença da droga e, quase em tom ‘determinís-
tico’, afirma que é muito difícil se desvincular da espacialidade da droga,
que consiste não só no uso, como nos ‘corres’, na venda, enfim, naquilo que
foi trabalhado no uso da droga na ‘rua’.
A droga parece ser um elemento onipresente nas trajetórias in-
terseccionadas na ‘vila’. A profundidade de um agenciamento bem coeso,
como o desses meninos com a droga, se expressa pela temporalidade, como
exemplifica a evocação de Ribeiro Loco ao rememorar sua infância: “Eu
vim morar com quatro, entendeu, lá. Mas eu já via, eu cresci no meio assim,
tinha os cara que apavoravam e tal”.

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MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

Contudo, quero chamar a atenção para a profundidade espacial


desse agenciamento. Lembrando as premissas levantadas sobre cada espa-
cialidade, aqui trabalhadas, estamos falando de assemblages, ou seja, dia-
gramas de relações de forças6, com múltiplas trajetórias e estórias-até-aqui.
Visto que os agenciamentos compreendem um categorial de acaso, como
Massey (2008) afirma sobre as políticas sobre os lugares, são necessárias
negociações constantes para a continuidade de uma trajetória.
Um sujeito é composto em atos relacionais e interações de per-
formances, como lembra Rose (1999), sendo uma intersecção de diferentes
trajetórias identitárias. Dessa forma, a ‘profundidade espacial’ responsá-
vel por dar continuidade no agenciamento dos meninos com a droga se
faz por meio da excessiva presença da mesma no cotidiano desses jovens.
Essa demasiada presença, mediante o desejo de o sujeito ser frente ao outro
(ROSE, 1999), produz formas de subjetividade em conformidade com os
ditames da territorialidade do tráfico.
A ‘vila’ é a espacialidade onde coabitam evocações sobre o ‘tráfico
de drogas’ e o local de moradia, como ilustrado na fala de Ribeiro Loco: “ali
onde eu moro assim, nossa, é bem cabuloso, droga, droga, droga mesmo”.
O ‘lugar’ de moradia nessas evocações estabelece um vínculo não através de
um “pertencimento visceral, mas através da prática do lugar, da negociação
das trajetórias que se intersectam, lugar como uma arena onde a negocia-
ção nos é imposta” (MASSEY, 2008, p. 220).
As intersecções de trajetórias constantemente negociadas de ma-
neira paradoxal se comportam também como um grupo identitário bem
coerente. Isso ocorre quando se extrapolam os limites dessa assemblage e a
conectamos com outras, como nas frequentes evocações de conflitos com
outras vilas. A terceira evocação mais frequente na ‘vila’ é a ‘violência’, que
se distribui nas evocações sobre o ‘tráfico de drogas’ que está trabalhado
mais de perto na espacialidade do ‘tráfico’, e de maneira especial a violên-
cia na ‘vila’ toma forma por meio desses conflitos entre outras vilas. Rossi
(2010), trabalhando os conflitos entre territorialidades urbanas, posiciona
a espacialidade da ‘vila’ como um elemento interseccional na composição
das formas identitárias de masculinidades marginalizadas, como demons-
tra a fala a seguir:

6
Os diagramas da obra de Deleuze (2008) sobre Michel Foucault estão trabalhados no
terceiro capítulo.

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Ah, trocar tiro com os cara, nós vinha na vila dos cara dar tiro, de-
pois o carinha lá já vinha dar tiro. [Qual que era a vila que dava
mais problema?] Tinha parque, tinha um monte de vila, uns cara do
Mezomo, daí depois os cara tava andando com nós. (Palhaço Zóio)

Confirmando os trabalhos de Chimin Junior (2009) e Rossi


(2010), a área central da cidade se organiza como zona de encontro para
o entretenimento e a busca de serviços urbanos ausentes na vila, palco de
atos infracionais como os ‘corres’, que se definem geralmente como assaltos
de transeuntes das ruas centrais da cidade. Além de ser o lugar de confli-
tos entre diferentes territorialidades de jovens do sexo masculino, a ‘vila’
expressa o vínculo dos sujeitos à memória das práticas espaciais de ‘corres’,
por meio de furtos na casa de vizinhos e familiares. E dos conhecidos da
rua, evocados como ‘os caras lá da vila’, que frequentemente são evocados
interseccionados a práticas de violência, como conta Ribeiro Loco, sobre a
estória de um ‘cara lá da vila’:

Teve um cara que hoje... Hoje ele tá na Igreja e tal, até desde quando
eu saí e tal. Ele já levou 17 facada e não morreu, cara. Sério mesmo.
Ainda ele levou 17 facada assim na valeta. Caído na valeta. Ele levou
17 facada do cara, ele levantou assim e o cara chegou e deu um chu-
tão na cara dele ainda. Pow! O cara caiu assim, doideira mesmo. Daí
ele... Pá, não morreu, tá ligado? (Ribeiro Loco)

Por meio desse espaço paradoxal (ROSE, 1993) e performático


(ROSE, 1999), os meninos jovens, moradores de áreas periféricas pobres da
cidade, interagem com esse platô das geometrias do poder. A vila se expres-
sa como “uma miríade de práticas de negociações e contestações cotidia-
nas, práticas, além do mais, através das quais as ‘identidades’ constituintes
são, também, elas mesmas, continuamente moldadas” (MASSEY, 2008, p.
219).
A ‘casa’ é a espacialidade das evocações sobre ‘família’, ‘uso de dro-
ga’, ‘roubo’, da ‘morte’ e ‘violência’. Esses elementos estão dispostos de maneira
interrelacional. Por exemplo, na ‘família’ estão interseccionados aspectos de
‘drogas’ e ‘violência’. O platô da casa está organizado com o objetivo de frisar
a linearidade de família-droga-violência, singularidade esta pouco presente
nos moldes da família ideal – hétero, branca, trabalhadora. A própria ‘família’
presente nas evocações destoa do padrão nuclear patriarcal.

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Figura 3: Diagrama da Casa.

Fonte: Elaborado pelo autor.

As figuras do cunhado e do padrasto como aqueles que adentram


o ambiente consanguíneo estão bem presentes na espacialidade da ‘casa’, o
que posiciona a noção de família mais próximo do “rizoma” que da “árvo-
re-raiz” genealógica.
A família hegemônica brasileira evoca sempre aspectos de ‘raiz’,
através dos seus eixos de ancestralidade, por meio de sobrenomes e seus re-
nomes, sublinhando as linhas de descendências étnicas e ressaltando as as-
cendências sociais. Vê-se na espacialidade da ‘casa’ um sistema aberto com
múltiplos fatores, como um ‘rizoma’. Pouquíssimas vezes foram evocadas
figuras como ‘avô’ e ‘avó’, ou seus sobrenomes e descendentes; na verdade,
suas evocações sobre família iniciam na ‘vila’ e na ‘casa’ onde os meninos
moram. Diferentes atores, como o cunhado e o padrasto, vão entrando
conforme eles vão vivendo a ‘família’. Os papéis e funções das figuras-base
de uma família são sempre subvertidos, como jovens que são criados pela
irmã, padrasto, ou vivem na rua.

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Nas entrevistas, temos casos extremos, como o de Severino Espia-


do, que morou um bom tempo na rua, tensionando as noções de moradia.
Como também temos um menino entrevistado que afirmou morar numa
casa com o pai, a mãe e seus irmãos. E de imediato supomos que isso traria
um distanciamento das drogas ou da violência, mas, ao contrário, o mesmo
menino, no caso o Palhaço Zóio, que afirmou isso, também foi responsável
por explicitar a presença de uma espacialidade que categorizei como ‘mocó’.
Mesmo que figuras como a da mãe, ou, menos frequente, de um
irmão-irmã, se expressem para os meninos como um elemento tensiona-
dor da sua relação com as drogas, estas ainda são evocadas de maneira
frequente na espacialidade da ‘casa’, em intersecção com a ‘família’, como
mostra a evocação a seguir:

Só que daí chegou a mão, que ela tinha pegado acho que cigarro e
tal, meu, na mochila, assim, daí eu apanhei. Nossa, apanhei na boca,
assim, com chinelo, tá ligado? Foi bem paia, só que, tipo assim, depois
que tinha acontecido, não precisava mais bater, né cara? Já era. Daí
foi uma revolta maior, né? Falei: é que... E tipo, minha mãe não tinha
muito o que falar, porque ela usava álcool dentro de casa, meu padras-
to também e tal. Bebiam e brigavam e tal, tá ligado? (Ribeiro Loco)

A ‘casa’ é a espacialidade onde se expressa a presença da ‘família’,


mas equívoco seria relacioná-la ao conceito de Família, com F maiúsculo,
hegemônica. A Família como discurso entre outros presentes na sociedade,
nos moldes que Foucault (2003) evoca, “são efetivamente acontecimentos,
os discursos têm uma materialidade” (p. 141), eles são normas regulatórias,
como Butler (1999) propõe nas discussões sobre gênero, que se manifesta
como uma espécie de poder produtivo, ao demarcar e diferenciar, e com o
decorrer do tempo atinge sua materialidade. Sobre isso, autores como Chi-
min Junior (2009) e Lima (2009), ao trabalhar com o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), demonstram as incongruências deste para com
outras formas, que não ideais, de subjetividade. Segundo Lima (2009), o
ECA serve como:

[...] modelo de vida e ponto de referência a ser almejado pelos ado-


lescentes excluídos, insubmissos e brutalizados. Supõe-se que os
jovens infratores que, por ora, estão do lado do crime e, por isso,
constituem objetos para a produção de saber e relações de poder,

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possam, em breve, ser resgatados, ressocializados e rehumanizados.


(LIMA, 2009, p. 21).

De maneira que, como demonstra Chimin Junior (2009), a Famí-


lia ideal, que não a ‘família’ como singularidade expressa na espacialidade
da ‘casa’, também está presente nesse discurso oficial (ECA) usado para le-
gitimar uma prática judicial que responde aos ditames de um Estado capi-
talista. A forma que podemos pensar sobre a ‘família’ dessa espacialidade
é na sua intersecção com as drogas, práticas violentas e atos infracionais.
A espacialidade do ‘mocó’ surgiu simultaneamente à sistematiza-
ção das entrevistas. Na medida em que surgiam evocações em que estavam
ausentes elementos da ‘vila’ e que se aproximavam da ‘rua’, com uma dife-
rença, ao invés da fluidez e os outros elementos já tratados, as evocações
apresentavam um comportamento pontual, ou uma fixidez temporária.
Dessa forma, o ‘mocó’ é um espaço reticular entre a ‘rua’ e a ‘casa’,
interseccionando-se com a espacialidade do ‘tráfico’:

Figura 4: Diagrama do Mocó.

Fonte: Elaborado pelo autor.

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FERNANDO BERTANI GOMES

O termo mocó, utilizado para dar nome a essa espacialidade, é


utilizado pelos entrevistados para significar uma residência, ou, melhor,
um barraco destinado à venda e uso de drogas na vila. A assemblage ‘mocó’
é um conjunto de intensidades, ou uma geometria de poder que estabelece
negociações constantes com outros platôs. Na verdade, pode-se dizer que
ele toma sua funcionalidade somente através do seu agenciamento com a
territorialidade do tráfico de drogas. A própria evocação sobre ‘tráfico de
drogas’ aparece de maneira central, rodeada por figuras como ‘consumidor’
e ‘patrão’.
O ‘mocó’ é composto por relações de alianças, e, para participar
de ‘cenas loucas’7 os meninos fazem uso de drogas e partilham suas práticas
com seus ‘camaradas’. Existem três componentes interseccionais que esta-
belecem uma trajetória singular na espacialidade do ‘mocó’: i) a conexão
que o ‘mocó’ estabelece com a ‘casa’; ii) a figura do ‘camarada’; iii) o ‘mocó’
como um enunciado-visibilidade do tráfico de drogas na vila. Todos esses
componentes se portam de maneira interseccional e coextensiva.
Sobre as duas primeiras características, Palhaço Zóio explica qual
era o uso dos barracos:

Os cara tinham alugado um barraco lá, e daí morava eu, o Baiano,


o Furada, tudo lá no barraco, assim, sabe? Eu só ia de dia, né? Eu
dormia na casa da mãe, né? Mas nós ia de dia lá, nós tinha um trinta
e oito, daí sumiu o trinta e oito, tá ligado? Só que era um cara que
tava morando com nós, só que nós fiquemo sabendo esses dias na
rua, os cara foram atrás do cara, acharam o cara meio caído no mocó
lá. (Palhaço Zóio)

Utilizavam o recinto para o uso e a venda de drogas e para a par-


tilha da ‘moradia’ com outros ‘caras’. Na caracterização de Palhaço Zóio: “os
cara, pá, que eu faço as correria, tão tudo preso, Baiano, o Jason, o Maringá,
Codorna, os cara tão tudo preso e os cara são firmeza, só que os cara são
louco, né, cara”. Eis onde essas formas de subjetividade presentes na es-
pacialidade do ‘mocó’ estabelecem relações de cooperação e sociabilidade.
Elevando os elementos de apoio dos ‘camaradas’ e ressaltando as tensões
que estabelecem com a ‘família’.

7
Esta expressão diz respeito à execução de roubos e assaltos, à cobrança de dívidas, a
assassinatos, enfim, a atitudes-limite.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

Seguindo com as três características interseccionadas, além des-


sas sociabilidades estabelecidas pelos jovens na espacialidade do ‘mocó’,
temos o agenciamento com o tráfico de drogas, circundando a rede de rela-
cionamentos e amizades dos meninos.
Não se pode deixar de lembrar que a ‘morte’ é a segunda evoca-
ção mais frequente no ‘mocó’, e nele estão presentes elementos de violência
mediante práticas de ameaças e morte elaboradas pela dinâmica de venda e
cobrança do tráfico, como também por meio de conflitos entre os usuários,
compondo “espacialidades espiadas”, como descreve Bola Magrão:

[E rola muita briga assim?] Rola um monte de briga. Os cara às vez,


nóis ia fumar na barraquinha, levava mulher lá. Fumava na barra-
quinha umas cinco cabeça. De repente, nóis só escutemo na entrada:
Pow! [Entre eles mesmo?] Entre eles mesmo. Eu tava de pé no canto.
Porque um fica lá esperando o cachimbo, daí o cara que tem o ca-
chimbo quer o bingo e a pedra, daí só vai fumar, né? Daí o outro: é
rache, rache, rache. Daí eu: não vou rachar, vá fazer teu corre, né? Só
fica aí esperando, né, pedra na tua mão. Daí eu olhei, se arrebenta-
ram tudo na bordoada. Daí já fica espiado também. (Bola Magrão)

Outro elemento peculiar que aparece de maneira mais central


dentre as espacialidades é a figura da ‘polícia’. Essa espacialidade não está
vinculada à proteção ou prevenção da ordem; ao contrário, está inter-rela-
cionada com a violência.
A espacialidade do ‘tráfico’ emergiu em meio a evocações que di-
ziam respeito à categorização de outras espacialidades. Mesmo havendo a
evocação do ‘tráfico de drogas’, algumas delas não continham trajetórias
relacionais com níveis de intensidade ou agenciamentos semelhantes às
espacialidades já elaboradas. Ou, para melhor definir, surgia em meio às
evocações um eixo de singularidade capaz de propor uma assemblage.
Eis que o ‘tráfico’ remete a uma espacialidade em si reticular, sem
ancoragens locacionais muito delimitadas, agenciada aos fluxos econômi-
cos da territorialidade descontínua do tráfico de drogas que atende a di-
ferentes níveis de escalas, desde relações internacionais de importação de
substâncias ilegais até a comercialização local trabalhada na espacialidade
da ‘vila’ e do ‘mocó’.
Uma condição econômica tem a potencialidade de fazer surgir
novas formas de subjetividade. Entretanto, aproprio-me das críticas de

INTERSECCIONALIDADES,
326 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
FERNANDO BERTANI GOMES

Foucault (2003), que ressalta que um dos defeitos graves daquilo que ele
denomina marxismo acadêmico é compreender que as condições econô-
micas de existência encontram na consciência dos homens o seu reflexo e
expressão. Contrário a isso, Foucault (2003) afirma que um tipo de saber
não se impõe, nem se imprime de maneira definitiva a ele; contudo, um do-
mínio de saber faz aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas
e novas formas de subjetividade.
O tráfico de drogas faz produzir formas e técnicas de comerciali-
zação e dispositivos econômicos. Através disso, regula e disciplina determi-
nado conjunto das relações de poder. Dessa forma, o platô do ‘tráfico’ está
agenciado à territorialidade do tráfico de drogas. Sobre essa espacialidade,
estão dispostas as seguintes evocações:

Figura 5: Diagrama do Tráfico.

Fonte: Elaborado pelo autor.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

O diagrama expressa de maneira explícita o funcionamento da


prática da espacialidade em questão. O ‘tráfico de drogas’ é permeado pela
‘morte’, através das práticas de cobranças e conflitos entre os territórios do
tráfico. A ‘violência’ surge como um elemento de cobrança ou simplesmen-
te conflito entre os corpos que compõem as formas de subjetividade pre-
sentes no ‘tráfico’. O ‘futuro’ aparece na forma do agenciamento dos jovens
do sexo masculino, moradores de periferia pobre, às práticas econômicas
do tráfico de drogas. E o ‘roubo’, como uma prática de administração das
finanças, atendendo às demandas do lucro do produto ilegal, de maneira
geral, maconha, cocaína e seus derivados.
Sobre essa espacialidade, podem-se ressaltar duas continuidades/
linearidades existentes: i) entre as práticas do ‘tráfico de drogas’ e a ‘morte’
e a ‘violência’; ii) e, paradoxalmente, o mesmo ‘tráfico de drogas’ está agen-
ciado ao ‘futuro’. Os dois agenciamentos são inter-relacionados, entre um
jogo de serviço e recompensa singular à prática econômica do tráfico de
drogas. Alguns dispositivos necessitam ser elaborados, uma vez que se trata
de um mercado não só informal como ilegal pelas linhas da lei do Estado
democrático capitalista brasileiro.
Caracterizando-o como ilegal, o tráfico se afigura desterritoria-
lizado das formas-processos despóticos do Estado. Entretanto, como pro-
põem Deleuze e Guattari (1995), desterritorializar é um ato criativo, si-
multaneamente territorializante, sem, contudo, compor um espaço alheio,
apenas um espaço-outro, mas ainda de certa forma conectado. Nesse caso,
podemos afirmar que o tráfico de drogas está desterritorializado do Estado,
mas ele permanece parcialmente conectado, pois ambos estão agenciados
em práticas econômicas capitalistas.
As práticas econômicas do tráfico elaboram dispositivos econô-
micos singulares. Severino Espiado apresenta alguns conselhos de como
deve se portar um “flanela”, ou seja, um participante do tráfico. Podemos
considerar esses conselhos como uma prática disciplinadora que dá conti-
nuidade à territorialidade do tráfico. Através de uma microfísica do poder,
os poderes disciplinares vindos de baixo governam e conectam-se às de-
mais estratificações do tráfico de drogas:

Tipo assim, eu nunca fiquei devendo pra ninguém, cara. Eu sabia,


primeira coisa que o patrão meu falou é: oh, nunca fique devendo
pra ninguém. Se ficar devendo pra alguém, o cara vai te matar. Se
não matar você, matam tua família. Aí eu fui aprendendo, nunca

INTERSECCIONALIDADES,
328 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
FERNANDO BERTANI GOMES

fiquei devendo pra ninguém, pegava uma ali e já pagava na hora.


(Severino Espiado)

Eis o poder disciplinador vindo de baixo, conduzindo trajetórias


na espacialidade do ‘tráfico’ aqui trabalhado, sem deixar de estar conectado
às políticas econômicas de outros estratos da territorialidade do tráfico.
As práticas de governo do tráfico agenciadas ao ‘futuro’, como
afirmado anteriormente, apresentam um forte componente etário, como
demonstram os relatos a seguir sobre a expectativa de o que os entrevista-
dos esperavam se tornar no futuro:

Com quinze anos, eu era bem dizer o flanela que diziam, até esperar
o povo eu cortava droga, ia e buscava. Fui crescendo, aí os cara fala-
ram: ó, quando você tiver com uns dezoito, o Comando Vermelho já
tá pronto pra te aceitar. Beleza, ali eu já fui crescendo, querendo ser
mais. (Severino Espiado)

Outro componente presente é a masculinidade, que se expressa


através da conquista do respeito dos entrevistados perante outras pessoas do
sexo masculino. Essa conquista está ancorada nas relações de poder loca-
cionais, por meio das práticas cotidianas. Os meninos posicionam e viven-
ciam a centralidade ou a marginalidade nas relações de poder. A centrali-
dade, na espacialidade do ‘tráfico’, está expressa no vínculo com o ‘tráfico
de drogas’ e nas práticas violentas entre os corpos masculinos e suas expres-
sões de masculinidade agressiva.
A ‘violência’ e o ‘tráfico de drogas’ estão interseccionados através
do arranjo das práticas de cobrança da economia local do tráfico, o qual exige
que quem participa dele esteja disposto a portar-se de maneira violenta.
As práticas econômicas do tráfico, ao reelaborar outros dispositi-
vos de troca e cobrança, não podem recorrer ao Estado para ampará-lo na
etapa final da rede de ‘mercado’ de substância ilegal. O Estado é um agente
conflitante na etapa final do tráfico de drogas, e a territorialidade descontí-
nua deste situa-se de maneira quase integral nas zonas pobres das cidades
brasileiras. Contudo, de maneira paradoxal o Estado se expressa como um
agente de negociação e continuidade nas etapas, digamos, mais fluidas do
tráfico, por meio de financiamento e incentivos ilegais da sua produção.
Lembrando, é claro, que esse último caso acontece na face soberana corrup-
tível do aparelho estatal, não deixando ainda de ser conflitante ao discurso

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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TOPOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA E AS PERFORMANCES DE MASCULINIDADE DE JOVENS DO SEXO
MASCULINO COM ENVOLVIMENTO COM AS DROGAS EM PONTA GROSSA - PR

jurídico legal, que, podemos dizer, ainda permanece assim a fim de justa-


mente legitimar ações de controle e disciplina nas mesmas zonas pobres do
espaço urbano. Zonas onde a ‘polícia’ figura ‘violência’ e o ‘tráfico’ figura
‘futuro’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo foi organizado de forma a expressar as trajetórias de sub-


jetividades violentas que se manifestam na forma de alianças e conflitos
cotidianos. Cada espacialidade foi trabalhada acentuando a dimensão pro-
visória das trajetórias que, se são perpetuadas enquanto acontecem, são re-
petidas por meio de microrrelações de poder, posicionando os sujeitos nos
múltiplos estratos do saber que compõem as espacialidades investigadas.
Os jovens do sexo masculino compõem suas performances de
masculinidade agenciadas a dispositivos econômicos do tráfico de drogas
e a redes de amizade locais. Através dessas intersecções espaciais, atos vio-
lentos se apresentam como uma prática de poder e como governo de so-
brevivência.

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332 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO:
UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA
DE MULHERES NEGRAS 1

Alex Ratts

***

O mito de origem da nação brasileira relativo às “três raças” pode


ser visto tanto numa abordagem antropológica quanto geográfica. No to-
cante à questão de gênero, interseccionada com a dimensão racial e espa-
cial, retomo, de um lado, a imagem da desumanização e da hipersexualiza-
ção de mulheres negras (GOMES, 2008; CASTRO, 2011), o que reitera, de
um lado, um ideário de ausência ou subalternidade no espaço, e, de outro,
a trajetória e a formação de territórios por mulheres negras.
A formação cultural brasileira é marcada pelos encontros/con-
frontos entre grupos sociais étnico-raciais diferenciados e distintos em
uma longa construção em contínuo processo. A intersecção entre raça, gê-
nero e espaço conforma uma perspectiva de abordagem das relações so-
ciais brasileiras. O fio condutor dessa proposta de interpretação se delineia,
portanto, a partir dos deslocamentos socioespaciais de mulheres negras,
ou seja, comporta os seus trajetos entre espaços públicos e privados que
correspondem a um trânsito por âmbitos sociorraciais diferenciados, o que
abrange territórios negros rurais e urbanos.
A matéria-prima desse artigo se compõe de levantamentos e es-
tudos historiográficos, antropológicos e sociológicos que abordam, inteira
ou parcialmente e direta ou indiretamente, estas correlações. Focalizo o re-
corte temporal entre 1870 e 1930, período que compreende os anos finais
do Império e do período escravista até a chamada República Velha. Tomo
por referência a antiga diferenciação regional brasileira entre Norte e Sul,
compreendendo estudos voltados para cidades como Rio de Janeiro, São
Paulo, São Luís, Salvador e Fortaleza.

1
Este ensaio se origina da comunicação Gênero, raça e espaço: trajetórias de mulheres negras,
apresentada no GT Relações Raciais e Etnicidade, no XXVII Encontro Anual da ANPOCS,
em 2003, que reapresentei no I Simpósio Latino-Americano de Geografia e Gênero (Rio de
Janeiro, PUC-Rio, 2011) e revisei para este livro.
GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

Retomo fontes como anúncios de escravizadas em jornais. Res-


salto a perspectiva de interlocução com o pensamento feminista, especial-
mente aquele produzido por mulheres negras (GONZALEZ, 1988; hooks,
1995; BAIRROS, 1995; GONÇALVES E SILVA, 1998; CARNEIRO, 2003).
Dentre os pressupostos do trabalho, considero que as relações
raciais e de gênero têm uma nítida dimensão espacial, ou seja, que elas
são construídas em âmbitos espaciais explícita ou implicitamente distin-
tos. Dizendo de outra maneira, os espaços privados e públicos são vividos
diferenciada e desigualmente por homens e mulheres, qualificando uns de
masculinos e outros de femininos, e por negros e brancos. Na sociedade
brasileira algumas dessas distinções não são exclusivas, o que não quer di-
zer que não existam.
Para uma abordagem das trajetórias de mulheres negras (o que
valeria também para os homens negros), proponho, portanto, a intersecção
dessas três variáveis – gênero, raça e espaço –, que têm conceituações e
derivações historicamente diferenciadas no pensamento científico. Desta
forma, penso que é possível tratar da construção de representação de ne-
gro(a), mulher negra, homem negro, e identificar os espaços qualificados
pela presença de indivíduos e, sobretudo, de grupos negros.

RAÇA, GÊNERO, ESPAÇO E


SUBALTERNIZAÇÃO NA
SOCIEDADE BRASILEIRA

Deslocando-se entre espaços privados e públicos, a figura da mu-


lher negra é constantemente associada à imagem da mulata, da empregada
doméstica e da babá, recriações diferenciadas das escravas, das mucamas,
criadas, amas-de-leite e mães pretas (GONZALEZ, 1983), figuras que re-
presentam limites, barreiras, móveis e mutantes, porém não inexistentes.
Esta situação tem um contraponto na observação de que, como outros su-
jeitos sociais subalternizados, mulheres negras constroem sua margem de
existência e de superação dos dilemas que enfrentam.
No caso em foco, uma reiteração merece ser refletida: conside-
rando as variadas interpretações do processo de miscigenação e do corpo

INTERSECCIONALIDADES,
334 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

feminino negro, a mulher negra está, em geral, em situação de inferiorida-


de nas sociedades da diáspora africana e da brasileira em particular (IPEA,
2011).2
Devo ressaltar que as categorias de gênero, raça e espaço, como
nenhuma outra do pensamento científico, não são autoevidentes. É neces-
sário afirmar que essas categorias são construções sociais, e a intersecção
entre elas se reconstitui em diferentes processos históricos.
O espaço somente se constituiu como objeto e categoria de aná-
lise geográfica nos anos 1970. À semelhança da Antropologia, a Geografia
acadêmica se constitui no final do século XIX e início do XX, tendo como
expoentes figuras como Friedrich Ratzel na Alemanha e Paul Vidal de La
Blache e Elisée Reclus na França, dentre outros. Centrando-se na questão
da relação “homem X meio”, e abordando mobilidade espacial, território,
paisagem e gênero de vida, a preocupação com as categorias acadêmicas é
observada com mais nitidez na geografia contemporânea em suas “vira-
das” crítica e cultural, ocorridas, em geral, nos anos 1970, com variações
em cada país. Neste sentido, o espaço – visto como geográfico, advindo
da relação sociedade/natureza – é definido como o objeto de estudo desta
ciência e como sua categoria central de análise. Nesta concepção, o foco é
a dimensão espacial das relações sociais, e o espaço não é tratado somente
como suporte – espaço físico –, e sim como construção social, que porta
elementos simbólicos e que pode ser observada ou tratada em conjunto
com categorias geográficas como paisagem, lugar, região ou território.3
Seguindo as proposições de Santos (1997), o espaço é um conjunto
de fixos e fluxos, a combinação entre a “configuração territorial” e as “relações

2
“Houve um crescimento expressivo no número de mulheres chefiando domicílios. A
proporção foi maior entre as mulheres negras, principalmente no caso de arranjos com
filhos residentes. No entanto, o aumento foi mais expressivo entre as brancas. Esses fatores
provocaram algumas mudanças nas características dos domicílios brasileiros, alterando as
relações tradicionais de gênero: mulher cuidadora e homem provedor, mas, também, de
forma diferenciada. Por exemplo, a contribuição das mulheres brancas no total da renda das
famílias foi de 36,1% e a das negras, de 28,5%. As mulheres negras se envolviam mais nas
atividades domésticas, mesmo na condição de ocupadas, do que as brancas, o que sugere
uma relação de gênero mais desigual entre as negras. Isto se verifica quando se considera
tanto a proporção de mulheres ocupadas que se dedicavam a afazeres quanto o número
médio de horas trabalhadas nesses afazeres.” (p. 18).
3
Foucault (2004), em entrevista à revista geográfica francesa Herodote, aponta que várias
destas noções advêm de outros campos anteriores à formação disciplinar desta ciência: do
pictórico (paisagem), administrativo-militar (região) ou jurídico-político (território).

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 335
GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

sociais”, ou, ainda, dito de outra maneira pelo mesmo autor, um conjunto
de “sistema de objetos” e “sistema de ações”, cada vez mais artificiais. No
campo das relações sociais, do sistema de ações, Santos, lembrando a limi-
tada margem de escolha humana no capitalismo, aponta que “é sempre pela
corporeidade que o homem participa do processo de ação” (p. 65).4
O espaço é adjetivado como público ou privado, distinção que
permeia as relações sociais no Brasil, expressas em termos de oposição e
complementação entre a casa e a rua (DAMATTA, 2000). É sabido o quan-
to as mulheres ainda são consideradas como mais afeitas ao espaço domés-
tico que ao público.
A raça, pedra de toque da formação sociocultural e socioespacial
brasileira, foi vista por diversos cientistas sociais com horizontes acadêmi-
cos e políticos distintos. Para além das teorias raciais e, sobretudo, racistas
do período entre 1870 e 1930 (SCHWARCZ, 1987), a raça tem seu estatuto
revisto entre intelectuais como Gilberto Freyre, sendo associada ao sexo, à
classe e à espacialidade. No segundo pós-guerra do século XX, a raça este-
ve quase ausente das reflexões de geógrafos(as), urbanistas, arquitetos(as)
e outros(as) espaciólogos(as), e, praticamente, foi posta em último plano
pelos(as) antropólogos(as). No entanto, ela ficou presente na Sociologia
das relações raciais devidamente contextualizada e conceptualizada. Na
contemporaneidade, a raça se mantém ou reaparece como questão para os
cientistas sociais, devido à continuidade (móvel e mutante) do racismo que
porta e exige uma referência a algo que se chame de “raça” e no seu duplo, o
antirracismo que engloba o pensamento de intelectuais ativistas negros(as)
e brancos(as).
Sem almejar fazer uma longa narrativa desta noção, corroboro o
viés que desnaturaliza a raça e a define como “um conceito que denota tão-
somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa
frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de
natureza, como algo endodeterminado” (GUIMARÃES, 1999, p. 9).
No Brasil, no campo das relações raciais, predomina o preconcei-
to de marca (aparência) em relação ao de origem (descendência), dirigido
para uma leitura dos traços físicos das pessoas. É necessário pontuar os
marcadores da diferença como a cor da pele, a textura do cabelo e outros

4
O autor chama atenção para o crescimento deste tema nas ciências humanas e o retoma
em artigos e entrevistas (SANTOS, 1999). Para uma abordagem da corporeidade na obra e
na trajetória deste geógrafo, consultar: CIRQUEIRA, 2010.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

elementos corpóreos aos quais são atribuídos sentidos e hierarquizações.


Aqui a cor nos remete à raça (GUIMARÃES, 1999), sendo vista num conti-
nuum que vai da pele escura à clara. Cor e cabelo formam um par constan-
temente acionado nas distinções raciais.
Raça pode ser vinculada ao conceito de etnia, em contextos que
não cabe apresentar aqui, a exemplo de grupos quilombolas. Porém, é na
intersecção com a noção de gênero que o par raça/etnia nos interessa di-
retamente. Um artigo fundamental de Verena Stolcke (1991) explora essa
correlação. A raça enquanto estatuto biológico foi negada, como disse, por
muitos cientistas sociais. A noção de etnia, mesmo que tenha sido acio-
nada para suplantar a de raça vinculada a ideias biologizantes, não a faz
desaparecer. Por outro lado, a noção de gênero transcende o “reducionismo
biológico” contido na ideia de sexo, mas esta igualmente não se desfaz no
que tange às diferenças entre homens e mulheres:

Quando usados como indicadores dos limites de grupo, as caracte-


rísticas raciais, não menos que as étnicas, são formações simbólicas.
Já entre os seres humanos, que constituem uma espécie bissexual,
as diferenças biológicas existem de fato. (STOLCKE, 1991, p. 110).

Desnaturalizadas, as noções de raça e sexo não podem ser sim-


plesmente substituídas por etnia e gênero, mas mantêm correlações, sobre-
tudo em sociedades de classes. Segundo a autora:

Assim, quero propor que, ao menos na sociedade de classes, essa


homologia de fato se sustenta. De forma correlata, que procurarei
explicar, as diferenças de sexo, não menos que as de raça, foram e
continuam a ser ideologicamente identificadas como fatos biológi-
cos socialmente significativos na sociedade de classes e são constru-
ídas e legitimadas por se basearem nos supostos fatos biológicos das
diferenças de raça e de sexo. A característica decisiva da sociedade
de classes a esse respeito é uma tendência geral a naturalizar a desi-
gualdade social. (STOLCKE, 1991, p. 110).

Raça, gênero e espaço estão relacionados aos fenômenos do racis-


mo, do sexismo e da segregação espacial, que também podem ser vistos como
combinados, por vezes com a proeminência de um deles. Racismo e sexismo
atingem sobremaneira as mulheres negras, tratadas com desqualificação em

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

espaços privados e públicos (GONZALEZ, 1983). Locais de coesão gru-


pal com predomínio de mulheres ou pessoas negras, tratados mais adiante,
constituem tanto consequências como reações aos fenômenos referidos.
Na sociedade brasileira, de passado escravista, a correlação entre
gênero e raça provocou o que Sueli Carneiro (2004) denomina “subalterni-
zação do gênero segundo a raça”:

As imagens de gênero que se estabelecem a partir do trabalho enru-


decedor, da degradação da sexualidade e da marginalização social,
irão reproduzir até os dias de hoje a desvalorização social, estética e
cultural das mulheres negras e a supervalorização no imaginário so-
cial das mulheres brancas, bem como a desvalorização dos homens
negros em relação aos homens brancos. Isso resulta na concepção de
mulheres e homens negros enquanto gêneros subalternizados, onde
nem a marca biológica feminina é capaz de promover a mulher ne-
gra à condição plena de mulher e tampouco a condição biológica
masculina se mostra suficiente para alçar os homens negros à plena
condição masculina, tal como instituída pela cultura hegemônica.
(CARNEIRO, 2003).

Nesse ponto, ao acompanhar o percurso de Carneiro, vemos que


a autora se referencia em Leite, M. (1984), Silva (1988) e, sobretudo, em
Giacomini (1988):

[...] ao reduzir o escravo à condição de ‘coisa’ e negar-lhe toda e qual-


quer subjetividade, a escravidão constrói-se sobre a base da indife-
renciação dos indivíduos a ela submetidos. A disposição fisiológica
que capacita a mulher a desempenhar o papel central na procriação,
por sua vez, vistas as características de um regime que não reprodu-
zia sua população escrava, não parece ter-se transformado, como em
outras sociedades, em base material de funções sociais particulares.
Em outras palavras, tudo indicaria a inexistência de uma “condição
da mulher escrava”, particularizada seja frente à “condição do es-
cravo em geral”, em um nível, seja frente à condição da mulher em
geral, em outro nível. (p. 87).

Ainda que considere a possível existência de variações locais, re-


gionais e transnacionais da condição social das mulheres negras, adoto o
pressuposto de Carneiro para a escala nacional. Neste sentido, entendo que,

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

no Brasil, essa subalternização do gênero implica a seguinte hierarquia: em


primeiro lugar situa-se o homem branco; em segundo, a mulher branca;
em terceiro, o homem negro; e, por último, a mulher negra. No entanto, há
contextos em que o quadro se refaz. Por exemplo: nas duas décadas iniciais
do século XXI, mulheres têm mais anos de escolarização que homens, tanto
brancas, quanto negras.

GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO


NA VIRADA DO SÉCULO XX
(1870-1930)

Para a discussão em pauta, Gilberto Freyre deve ser referido como


um dos formuladores da interrelação entre raça, sexo, classe e espaço (além
de outras variáveis), em Casa Grande & Senzala (1933), mas, sobretudo, em
Sobrados e Mocambos (1998/1936), quando propõe o espaço habitacional/
privado (sem obliterar o espaço público) como foco central de sua análise:

O centro de interesse para o nosso estudo de choques entre raças,


entre culturas, entre idades, entre cores, entre os dois sexos, não é
nenhum campo sensacional de batalha – Palmares, Canudos, Pedra
Bonita – onde os antagonismos de raça e, principalmente, os de cul-
tura, tomaram, por vezes, formas as mais dramáticas em nosso país
[...]. O centro de interesse de nosso estudo desses antagonismos e
das acomodações que lhe atenuaram as durezas, continuam a ser a
casa – a casa maior em relação com a menor, as duas em relação com
a praça, com a terra, com o solo, com o mato, com o próprio mar.
(FREYRE, 1998/1936, p. XLI).

Afeito a ressaltar as intersecções e a suposta docilidade na forma-


ção cultural brasileira, Freyre igualmente aponta oposições de raça, sexo,
classe e sua dimensão espacial, situando-as no período posterior ao colonial:

Quando a paisagem social começou a se alterar, entre nós, no sentido


das casas-grandes se urbanizarem em sobrados, mais requintadamente

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

europeus, com as senzalas reduzidas quase a quartos de criado, as


moças namorando das janelas para as ruas, as aldeias de mucambos,
os quadros, os cortiços crescendo ao lado dos sobrados, mas quase
sem se comunicarem com eles [...] aquela acomodação quebrou-se
e novas relações de subordinação, novas distâncias sociais, começa-
ram a desenvolver-se entre o rico e o pobre, entre o branco e a gente
de cor, entre a casa grande e a casa pequena. Uma nova relação de
poder que continua, entretanto a ser, principalmente o dos senhores,
o dos brancos, o dos homens. (p. XLI).

Sexo, para o autor, pressupõe uma base biológica, mas ele argu-
menta que era o “regime social” (p. 95) que moldava os corpos e a relação
entre homens e mulheres, o que permite entrever em seu pensamento acer-
ca desse tema certa desnaturalização das diferenças. Em um dos capítulos
centrais de sua referida obra, Gilberto Freyre relaciona a influência diferen-
ciada da casa sobre os sexos, recaindo sobre a mulher a marca de ser mais
“caseira” que o homem:

A casa, o tipo de habitação, sabe-se que é uma das influências sociais


que atuam mais poderosamente sobre o homem. Sobre o homem
em geral; mas, em particular, sobre a mulher, quase sempre mais
sedentária ou caseira. Especificamente dentro do sistema patriarcal,
inimigo da rua e até da estrada, sempre que se trate de contato da
mulher com o estranho. (FREYRE, 1998/1936, p. 152).

Freyre distingue as casas de engenho e de sítio dos sobrados, des-


creve o entorno e os personagens de cada cenário, ressaltando a raça, o sexo
e a faixa etária de alguns deles:

As casas de engenho e de sítio dando para a frente para estradas qua-


se intransitáveis; outras para os rios; os sobrados para as ruas sujas,
ladeiras imundas, por onde quase só passavam a pé negros de ganho,
muleques a empinarem seus papagaios, mulheres públicas. Menino
de sobrado que brincava na rua corria o risco de degradar-se em
muleque; iaiá que saísse sozinha de casa, rua afora, ficava suspeita de
mulher pública. O lugar do menino brincar era o sítio ou o quintal,
a rua, do muleque. O lugar de iaiá, a camarinha; quando muito a
janela, a varanda, o palanque. (FREYRE, 1998/1936, p. 152).5

5
É possível inferir que “menino de sobrado” pode corresponder a “menino branco” e

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

O autor tem em mente a passagem para o final do século XIX,


entrevendo no processo de urbanização a transformação das senzalas para
“quartos para criados” – as dependências6 – e indicando a constituição dos
conjuntos de mocambos segregados: “enquanto as senzalas diminuíam de
tamanho, engrossavam as aldeias de mocambos e palhoças, perto dos so-
brados e das chácaras. Engrossavam, espalhando-se pelas zonas mais des-
prezadas das cidades” (FREYRE, 1998/1936, p. 152).
Atribuindo o caráter de entidade ao lócus habitacional, quase
reificado, Freyre correlaciona a existência dos espaços segregados com o
estigma que recebem. Por outro lado, o autor indica um processo de ascen-
são social para homens negros e mulheres negras que não pode ser gene-
ralizado:

Os ex-escravos bem sucedidos é que aos poucos iam melhorando de


vida. As negras e mulatas, amigadas com portugueses ou italianos,
repita-se que chegaram às vezes até aos sobrados; algumas torna-
ram-se senhoras de escravos. E os negros e mulatos marceneiros,
ferreiros, funileiros, chegaram às vezes à pequena burguesia. A mo-
radores de casa térrea de porta e janela. (FREYRE, 1998/1936, p.
179).

Essa suposta ascensão teria ocorrido pela via do trabalho para


homens, que passariam a ter “casas”, e por meio do sexo e da miscigenação,
para as mulheres negras, que conquistariam os “sobrados”. É justamente
esse aspecto de sua obra que me interessa retomar no debate que recobre
diversas áreas das Humanidades, incluindo aí a Arquitetura e o Urbanismo,
no que diz respeito à intersecção entre raça, gênero e espaço. Arrisco-me a
dizer, em termos contemporâneos, que Gilberto Freyre racializa o espaço
e lhe atribui caráter de gênero, sem deixar, ainda, de operar com a ideia de

“muleque” a “menino negro”. Nossos dicionários contemporâneos guardam o sentido


racializado do termo, associado a um aspecto comportamental negativo: 1. Rapaz preto,
negrinho. 2. Menino travesso. 3. Indivíduo sem gravidade ou sem palavra. 4. Canalha.
(Dicionário Michaelis). 1. Negrinho. 2. Bras. Indivíduo sem palavra, ou sem gravidade. 3.
Bras. Canalha, patife, velhaco. (Dicionário Aurélio). Este último afirma a origem quimbundo
do termo “mu’leke”. O feminino “moleca” recebe as mesmas acepções. Os termos “menino”
e “menina” ganham, por sua vez, acepções positivas, marcadas por uma afetividade.
6
Neste trecho do livro, Freyre abre uma nota em que cita anúncios de jornais fluminenses
ainda da primeira metade do século XIX que chamavam a atenção para sobrados como
“casas para pretos” ou “quartos para creados ou escravos”.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

classe, fazendo-o, no entanto, numa perspectiva conservadora e até mes-


mo reificadora de uma interpretação destas relações que são assimétricas e
conflitantes. Ao tomar como uma das referências essa obra composta por
inúmeras e variadas fontes, não procuro simplesmente objetá-la ou a ela
aderir. Outros/as lhe revisitaram, outros/as lhe criticaram, outros lhe es-
queceram.7
Roberto DaMatta (2000), no ensaio Espaço - casa, rua & outro
mundo: o caso do Brasil, enuncia que o espaço se confunde com a ordem
social. Tratando tempo e espaço como construções sociais e históricas, o
autor, referenciado mormente em Gilberto Freyre, elege como unidades de
análise a casa e a rua, par dialético fundamental da sociedade brasileira,
elementos simbólicos “que operam em todos os níveis da sociedade” (p.
45). Em relação ao seu eleito antecessor, DaMatta acrescenta pontos funda-
mentais no que diz respeito à dimensão espacial. No entanto, à diferença de
Freyre, dá pouca ênfase ao sexo, minimizando-o em sua análise. DaMatta
enfatiza ainda que “o mundo diário pode marcar a mulher como o centro
de todas as rotinas familiares, mas os ritos políticos do poder ressaltam
apenas os homens” (p. 39). As relações raciais, praticamente ausentes de
sua interpretação das relações sociais no Brasil no mencionado ensaio, rea-
parecem em outros estudos seus:

Realmente, estou convencido de que a sociedade brasileira ainda


não se viu como sistema altamente hierarquizado, onde a posição
de negros, índios e brancos está tragicamente de acordo com a hie-
rarquia das raças. Numa sociedade onde não há igualdade entre as
pessoas, o preconceito velado é forma muito mais eficiente de discri-
minar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e “saibam”
qual ele é. (p. 46).

Estudos realizados acerca da trajetória dos(as) escravizados(as)


e libertos(as), ou mesmo das mulheres negras e da construção da corpo-
reidade feminina, corroboram e ampliam a compreensão do diferencial de
gênero e raça no tocante aos espaços públicos ou privados no Brasil do final
do século XIX, e seu prolongamento até a década de 1930.

7
É necessário afirmar que corroboro as críticas feitas a Freyre de uma análise do passado
brasileiro, sobretudo da escravidão, fechada em si e idealizadora (IANNI, 1978, p. 83-100).
Destaco também os laivos de racismo e sexismo perpetrados por sua escrita.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

Ilka Boaventura Leite infere dos relatos de viajantes que passaram


por Minas em todo o século XIX a ideia de que a mulher negra era “a traba-
lhadora e a reprodutora” e que “o tipo de atividade exercido irá legitimando
a noção de ‘mulher negra’”. No trabalho doméstico a autora lista: “limpar,
cozinhar, lavar, cuidar das crianças, dos animais domésticos e das plan-
tas, costurar, bordar, fazer rendas e artefatos domésticos, servir de dama de
companhia”. Como trabalho extradoméstico, destacavam-se as vendedoras
(LEITE, I., 1996, p. 132).
Miriam Moreira Leite encontrara um quadro semelhante para o
Rio de Janeiro:

[...] a mulher negra está presente em praticamente todos os tipos de


trabalhos descritos pelos viajantes: na mineração, na agricultura, no
trabalho doméstico, na manufatura e no comércio. Isso demonstra
o seu grau de importância enquanto trabalhadora, desde o período
colonial. Ela foi a primeira e, por muito tempo, a única trabalhadora.
(LEITE, M., 1984, p. 44).

Todo esse processo, que remete à corporeidade negra feminina


em movimento, aparência e comportamento, deve ser compreendido como
uma complexa representação (e construção, ou em construção) da mulher
negra e, por que não dizer, do gênero feminino e do grupo racial negro.
Além disso, é possível agregar a dimensão espacial – sobretudo na revisão
do âmbito privado/doméstico – para focalizar a mulher negra e entrevê-la
nessas representações em des/re/construção.
Considerando-se a ideia de construção do gênero, é necessário
fazer alusão às marcas distintivas corporais das mulheres negras, vistas nos
espaços públicos, sobretudo nas ruas, como o uso de turbantes e panos
da costa, escarificações, tatuagens no rosto e em outras partes do corpo,
retratadas por pintores como Rugendas, Debret e Marc Ferrez e fotógra-
fos como Albert Henschel e Christiano Jr., dentre outros (ARAÚJO, 2000;
KOSSOY e CARNEIRO, 1994), e também observadas em anúncios de es-
cravos (FREYRE, 1979).
Debruçando-se sobre anúncios de jornais da cidade de São Paulo
do final do século XIX, Lilia Schwarcz destaca que “as mulheres em geral
eram descritas a partir de sua ‘boa aparência’, seu caráter meigo ou servi-
çal, indicando inclusive a existência de uma proximidade mais íntima entre

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

senhores e cativas (semelhante à que notamos nos anúncios classificados)”


(SCHWARCZ, 1987, p. 134). A autora ressalta que “as descrições das cati-
vas que fugiam eram diversas das referentes aos homens, conquanto não
se costumavam mencionar sinais de tortura e ou castigo” (SCHWARCZ,
1987, p. 135). No entanto, a partir de fontes jornalísticas de outras cidades
(FREYRE, 1979; CAMPOS, 1984), é possível observar que o corpo negro
feminino escravizado foi alvo de violência física (mãos, pés, pernas, costas
e nádegas) (DEL PRIORE, 2000, p. 43-44).
Anúncios de venda e aluguel de mulheres escravizadas, destaca-
das como boas cozinheiras e engomadeiras, aliavam a cor, a idade, o vestu-
ário, atributos profissionais e comportamentais, como exemplificam alguns
jornais cearenses e paulistas:

Vende-se uma escrava creolla, bem prendada, a saber, boa cozinhei-


ra, entendendo de marcas, costuras, engomados, etc., com 28 an-
nos de idade. Quem a pretender dirija-se ao abaixo assinado. João
Domingos Torres. (O Cearense, 16/05/1866. In: CAMPOS, 1984, p.
112).
Aluga-se uma escrava boa cozinheira, quem pretender dirija-se a
Ludgero Braulio Garcia. (Pedro II, 27/10/1867. In: CAMPOS, 1984,
p. 115).
Rua Amelia Nº 85 compra-se ou toma-se de aluguel uma escrava
que saiba cosinhar e engomar, e de idade de 16 a 20 annos, preferin-
do-se preta ou mulata. (Pedro II, 27/10/1867. In: CAMPOS, 1984,
p. 128-129).
Jacob Cahn - Compra escravos de 13 a 30 annos de idade como
também mulatas especiaes, de 15 a 18 annos; paga bem. (Pedro II,
27/10/1867. In: CAMPOS, 1984, p. 115).
Vende-se uma escrava criola de 23 annos de idade, boa figura, en-
gomadeira, cozinheira de bons costumes e não tem filhos. Vende-se
a pessoa desta capital que a queira para seu serviço, a tratar na rua
Amélia No. 111, esquina. (A Constituição, 18/08/1874. In: CAM-
POS, 1984, p. 131).
Vende-se uma ellegante e bonita mucama recolhida de casa parti-
cular que tem muitos préstimos com 18 annos de edade, sadia, sabe
ainda engommar, fazer tuyote, costurar e tocar figurino. O motivo
da venda não desagradará o comprador. (A Província de São Paulo,
25/09/1877. In: SCHWARCZ, 1987, p. 130).
No Arouche rua do Paraíso nº. 39, vende-se ou aluga-se uma preta
de 24 annos de edade, perfeita costureira e com todos os préstimos

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

para a casa de família, servindo também para ama-de-leite por estar


próxima a dar a luz, é sadia, sem vícios e bem educada. (A Província
de São Paulo, 23/02/1879. In: SCHWARCZ, 1987, p. 130-131).
Ama de leite - inspecionada e affiançada por médicos, quem precisar
e puder pagar bem, pode-se dirigir à praça do mercado. (Correio
Paulistano, 15/07/1880. In: SCHWARCZ, 1987, p. 131).
Da casa nº. 2 da rua das Flores nesta capital, fugiu a escrava Maria,
com o signaes seguintes: alta, magra, de nação, 40 a 50 annos de
idade, trajando vestido e chale cor de Havana, levando um tabuleiro
de doces, visto ser quitandeira. Foi vista conversando, tomando a
direção de Juquery ou a do Ó. (Correio Paulistano, 4/09/1879. In:
SCHWARCZ, 1987, p. 134-135).

As elaborações da imagem de mulher negra nesse tipo de fonte,


dirigida ao espaço privado/doméstico, mas veiculada no âmbito público,
oscilam entre supostas condições objetivas de cor, faixa etária e habilidades
– “bem prendada”, “boa cozinheira” – e subjetividades como “bem educa-
da”, “mulata especial”, “boa figura”. Nem é necessário ressaltar que essa últi-
ma expressão antecede a ideia de “boa aparência” tão comum nos anúncios
de serviço doméstico no século XX. Vê-se a variedade de ocupações: cozi-
nheira, engomadeira, costureira, ama de leite e quitandeira. Observa-se nos
anúncios a mulher negra sendo nomeada de preta, crioula, mulata, dentre
outros termos, nos quais o último alçará importante lugar ulteriormente.
Introduzo neste ponto da reflexão o componente da arquitetura
residencial que notoriamente se modificou, como alude Freyre. Tratando-
se de um levantamento bibliográfico, detenho-me nos estudos do historia-
dor da arquitetura Carlos A. C. Lemos, para a residência paulista e paulis-
tana, mas, quando for possível, acrescentarei elementos obtidos para outras
cidades e regiões brasileiras. Para a segunda metade do século XIX, o autor
relata o confinamento ao espaço doméstico das “fazendeiras ricas” no mun-
do rural (LEMOS, 1976, p. 102). Lemos descreve e exemplifica com as plan-
tas das casas e sobrados urbanos o lugar social/espacial de negros e negras:

A criadagem dormia aqui e ali, nos porões semi-habitáveis, pois dessa


época em diante os soalhos exigiam barrotes e dormentes bem eleva-
dos do chão e daí os degraus dos corredores de entrada. Nos casos de
porões muito baixos, as negrinhas do serviço doméstico dormiam nas
despensas e até nas próprias cozinhas, conforme depoimentos vários
de pessoas idosas crescidas nessas casas de classe média do interior,

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

casas ainda nos alinhamentos e algumas já com passagem lateral para


animais ou carros de lenha. (LEMOS, 1976, p. 122).

Nas casas paulistas do período pós-Abolição o autor remete-se


com “licença poética” a uma certa “tristeza” da habitação sem a presença
das mucamas e dos moleques:

Casas tristes, porque vazias – desapareceram os moleques de recado,


agora morando nos cortiços. Sumiram as mucamas. As engomadei-
ras. Só restou a cozinheira lamuriosa, que também lava e passa, além
de arrumar a casa, sempre reclamando contra a patroa que só sabe
mandar, como se fosse no tempo do cativeiro. (p. 122).

O autor continua relatando os deslocamentos espaciais e sociais


da situação das empregadas domésticas, indicando a entrada em cena de
uma nova personagem – a empregada doméstica branca imigrante:

Nas casas classe média as empregadas foram para os porões ditos ha-
bitáveis, como já observamos. Praticamente todas as casas novas ti-
nham porões. Foram raros os quartos de empregada nos quintais, só
mesmo nas velhas moradas. Nas moradias abastadas, os arquitetos,
principalmente os estrangeiros, projetavam quartos de criada dentro
de casa com comunicação interna, como se elas fossem, na verdade
agregadas à família, e não simples serviçais de convívio muito limi-
tado, e para alguns até desagradável. É que as famílias ricas tinham
já empregadas de fora, sempre brancas. (p. 140).8

Por fim, o referido arquiteto expõe o surgimento da edícula (casa


pequena, construída nos fundos da casa principal) contemporânea ao pro-
cesso de higienização das habitações no período pós-Abolição e destinada
às empregadas. No entanto, o autor reconhece a variedade de projetos (ar-
quitetônicos) no que diz respeito às acomodações para a “criadagem”: “[...]
alguns não prevendo acomodações de qualquer espécie, outros localizando
nos embasamentos habitáveis pequenos cubículos e outros, ainda, imagi-
nando ótimas dependências para criadagem de trato, talvez europeia, vinda
em substituição às negras da terra” (LEMOS, 1976, p. 142).

8
Lemos registra quartos de criada com mais espaços que os habituais em residências
projetadas por arquitetos estrangeiros, mas também brasileiros. (LEMOS, 1976, p. 140).

INTERSECCIONALIDADES,
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*
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

Carlos Lemos referencia e ilustra suas obras – Cozinhas, etc.


(1976) e Alvenaria Burguesa (1989) – com muitas plantas das residências
em que aparecem os quartos de criada (nomeação que explicita a relação
entre gênero e espaço, passível de ser vinculada à raça). Seus trabalhos,
pelo destaque para o segmento escravizado e/ou negro9, contribuem para
abordar a dimensão espacial das relações que são o tema deste artigo. Des-
taca-se o engenhoso exemplo da subalternização do gênero segundo a raça,
no caso da substituição das empregas brasileiras, geralmente negras, por
estrangeiras, “sempre brancas”. Os quartos com o termo “criada” escrito nas
plantas indicam a marcação diferenciada do gênero, o que, pelo que foi
apresentado, pode ter uma contrapartida racializada.

DESLOCAMENTOS SOCIOESPACIAIS
DE MULHERES NEGRAS
(1870-1930)

A historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, debruçando-se


sobre a situação das mulheres na cidade de São Paulo, alude que “as fontes
escritas mal permitem vislumbres dos elos de solidariedade entre escravos
e forros” (DIAS, 1995, p. 68). A autora destaca o papel central das “qui-
tandeiras remediadas, vendedoras escravas e forras” que “participavam do
pequeno comércio local, de modo que sobrepunham a este comércio de
vinténs toda a urdidura de medições sociais, que reproduziam em seus es-
calões inferiores a grande cadeia dos seres da hierarquia social da escravi-
dão” (p. 169). Dias narra o caso em que, em 1873, Luís Gama tomou a causa
de quitandeiras forras que haviam sido proibidas de vender no centro da
cidade.
A também historiadora Maria Cristina Wissenbach (1998), par-
tindo de processos jurídicos de violência envolvendo “escravos e forros”
no Estado de São Paulo, encontrou, no centro e nos arredores da capital,
“espaços de vivência negra”. A autora retrata uma cidade segregada, com

9
Constam na bibliografia de Lemos várias obras que abordam as relações raciais, de autores
como Gilberto Freyre, Roger Bastide e Florestan Fernandes.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
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* 347
GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

nítida preferência da população negra em residir agregada e “casar entre


os seus iguais”. Wissenbach destaca a continuidade das formas de trabalho
para as mulheres forras que “continuavam sendo lavadeiras e quitandeiras,
essas últimas em sua maioria africanas” (p. 139).
A autora discorre longamente acerca dos trajetos dessas mulheres
forras, mas detém-se na relação daquelas que residiam em casas próprias e
recusavam a reclusão exigida pelos seus maridos, posto que elas haviam ad-
quirido mobilidade ainda nos tempos do cativeiro (p. 143-146). Wissenbach
(1998) indaga:

[...] como exigir dessas mulheres o confinamento no interior do lar


quando a mobilidade e o servir nas ruas eram autorizados na oca-
sião da tutela absoluta e os movimentos autônomos conquistados
em detrimento da escravização? (p. 146).

Não considero que no período posterior à abolição mulheres ne-


gras e homens negros tenham simplesmente herdado os efeitos nefastos do
período escravista na construção associada de gênero e raça. A entrada de
imigrantes repõe em outro plano a desigualdade: em São Paulo, no ano de
1893, os(as) estrangeiros(as) eram 58,3% dos(as) ocupados(as) em serviço
doméstico, contra 41,6% dos(as) nacionais. No caso do comércio, setor em
que atuavam negros(as), os(as) estrangeiros(as) compunham naquele ano
71,6% e os(as) nacionais 28,3% (ROLNIK, 1997, p. 74).
Nas entrevistas conduzidas por Teresinha Bernardo (1998), a ci-
dade de São Paulo das décadas 1920 e 1930 aparece diferenciada na varia-
ção combinada de raça, gênero e classe nas rememorações das mulheres
brancas ítalo-brasileiras, em que uma parte trabalhou, sobretudo em fábri-
cas, e outra se ateve ao espaço doméstico. Nas décadas referidas, segundo a
autora, “o processo de ascensão da colônia italiana começa a se fazer notar”
e prescinde “do trabalho do menor e da mulher” (p. 104). Bernardo (1998)
prossegue:

As lembranças dessas velhas parecem revelar que o espaço ocupa-


do por elas se restringia ao bairro onde moravam, ao percurso que
faziam quando trabalhavam ou a certos locais de lazer que freqüen-
tavam. De qualquer forma, pressente-se que o espaço ocupado era
bastante restrito, impossibilitando, assim, lembranças mais públicas.
(p. 76).

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

No caso das mulheres negras, destacam-se as famílias chefiadas


por mulheres (p. 61-63), as lembranças amargas dos cortiços (sem paz e
sem privacidade, com ressalvas para o companheirismo de outras mulheres), as
festas – o baile das cozinheiras, o carnaval, os rituais religiosos afro-brasileiros
(p. 51) e o lazer – a exemplo do footing na Rua Direita segregado racialmente (p.
47).10
Raquel Rolnik, em trechos de entrevistas, refaz o quadro da resi-
dência nos porões, da dificuldade de pessoas negras para conseguir alugar
casas (1997, p. 75). Territórios negros segregados na capital paulistana do
período republicano emergem da pesquisa desta arquiteta, que espacializa
seus dados e destaca o papel das mulheres em seus deslocamentos por esses
agrupamentos:

As mulheres, trabalhando e morando nas edículas das casas burgue-


sas, tinham ligações com os bairros populares diretamente adjacen-
tes, onde residiam seus parentes em cortiços. O padrão seria então
– aos pés das zonas ricas e exclusivas localizarem-se as zonas negras
na cidade – o lugar de ajudantes gerais –, delineando uma linha de
extremos. (p. 76).

Algumas autoras negras feministas abordaram esta temática.


Merece destaque o pioneirismo da antropóloga Lélia Gonzalez, sobretudo
o artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” (GONZALEZ, 1984).
Este texto, além de um libelo arguto e profundo contra os fenômenos que
estão no título, constitui-se num argumento para a discussão aqui delineada.
Segundo a autora, a “doméstica” e a “mulata” são figuras ori-
ginárias da “mucama”. A primeira, sendo a “mucama permitida”, ao que
acrescento: a que é moldada e reservada para o espaço privado/doméstico,
ainda que transite por espaços públicos (de seus círculos preferenciais). A
segunda é o lado exaltação da mesma figura, destinada ao desejo público,
ainda que mal (ou não) realizado em espaços privados e tratadas e dirigidas
com ou sem sutilezas para as “entradas de serviço”, em seus deslocamentos,
sobretudo nos espaços domésticos que lhe são aparentemente “estranhos”,
e ainda que estejamos falando de mulheres que exercem outra profissão.

Esse fato foi indicado numa entrevista com uma senhora negra que finaliza os depoimentos
10

do livro Memória e sociedade: lembrança de velhos, de Ecléa Bosi (1997, p. 378), notado na
pesquisa de Raquel Rolnik (1997).

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

É também nesse período que estudiosos das religiões afro-bra-


sileiras e/ou das relações raciais encontram territórios negros femininos
em algumas das mais importantes cidades brasileiras para a discussão em
pauta. Nunes Pereira, em sua etnografia da Casa das Minas em São Luís
do Maranhão, dedica todo um capitulo para tratar d’A Casa e sua dona,
ressaltando ser aquele um espaço feminino: “A Casa é das Minas, sim, de
uma sociedade africana transplantada para o Brasil, mas o patrimônio que
ela representa está confiado a uma verdadeira Mãe: autoritária, quando é
mister; boníssima, sempre” (NUNES PEREIRA, 1979, p. 22).11
Atento ao desenho espacial da casa, Nunes Pereira retrata o que
podemos denominar um território negro feminino que se destina à morada
das noviches e também à presença ritual dos voduns (femininos e masculi-
nos) (NUNES PEREIRA, 1979, p. 22, fig. 4). Por meio de um pesquisador
que o sucede quase quarenta anos depois, ficamos sabendo que a casa, no
local em que está, data de 1847 (FERRETI, 1996, p. 57). Composta na verda-
de por uma habitação maior, um quintal e por um conjunto de habitações,
a Casa das Minas foi recentemente tombada pelo IPHAN. O antropólogo
Sérgio Ferreti, em sua etnografia, corrobora a imagem de um território ne-
gro feminino mais que centenário, evidenciando a liderança das mulheres.
Em São Luís do Maranhão, onde, no início de um levantamento
de fontes para esta pesquisa, ouvi observações genéricas de que os lugares
de referência da presença negra no século XIX eram, além da Casa das
Minas e da Casa de Nagô, outros terreiros de Mina, o antigo mercado de
pólvora, depois “mercado de escravos” (atual Centro de Cultura Negra), a
Cafua das Mercês, além dos subúrbios que estão a merecer mais estudos.

EM DIREÇÃO A UMA CONCLUSÃO:


OS TERRITÓRIOS NEGROS FEMININOS

Saindo do período e do contexto observados, identifico para es-


tudos posteriores duas trajetórias de mulheres negras. A primeira está nos

11
Há uma correlação iconográfica entre essas descrições e as fotografias de mães-de-santo
que chefiavam terreiros em São Luís e Salvador, compostas hegemonicamente por mulheres
ou não. (PIERSON, 1971; NUNES PEREIRA, 1979).

INTERSECCIONALIDADES,
350 **
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
ALEX RATTS

deslocamentos espaciais de moradoras do campo para a cidade em direção


ao emprego doméstico e das empregadas domésticas negras entre suas resi-
dências e os locais de trabalho que configuram igualmente espaços raciais e
sociais diferenciados, apesar de possíveis superposições.
Mulheres negras urbanas em seu trânsito entre espaços privados
e públicos são remetidas reiteradamente à figura da empregada doméstica,
ainda que tenham se tornado, por exemplo, cantoras, atrizes, professoras,
escritoras ou intelectuais (THEODORO, 1996; BAIRROS, 1999). Pesquisas
realizadas por mim e por orientandos(as) em agrupamentos negros rurais
e urbanos no Ceará e em Goiás indicam a recorrente passagem de “quilom-
bola” a empregada doméstica (RATTS, 2001; PAULA, 2003). O mundo das
empregadas domésticas apresenta-se binário na oposição entre elas, predo-
minantemente mulheres negras, e suas patroas, na maior parte mulheres
brancas (BERNARDINO, 2002), mas ele se coloca para além desse quadro.
A dimensão espacial compõe este quadro em que o doméstico produz fe-
minilidades diferenciadas (KOFES, 2001).
A segunda trajetória identificada contempla as buscas socioes-
paciais de mulheres negras que incluem espaços religiosos, políticos, aca-
dêmicos e afetivos de hegemonia ou maioria feminina, a exemplo de casas
de culto afro-brasileiro, irmandades religiosas católicas, organizações não
governamentais e residências familiares.
Nas curtas reconstituições e breves rememorações aludidas neste
texto, arrisco-me a apontar que a combinação de sexismo, racismo e se-
gregação espacial confina historicamente as mulheres brancas a um lugar
vazio, um território “insípido, incolor e inodoro”, que algumas conseguem
romper. Para as mulheres negras, reserva-se um território “temperado, co-
lorido e perfumado”, do qual algumas conseguiram se distanciar ou ao qual
imprimiram as marcas que queriam, num processo de busca espacial e não
somente fuga, como postulava Beatriz Nascimento (RATTS, 2007).
Como se pode ver, a subalternização do gênero segundo a raça
apresenta uma dimensão espacial. Dizendo de outra forma, o espaço é ge-
nerificado e racializado em sociedades como a brasileira, que passaram e
passam por processos transnacionais como a expansão capitalista, a am-
pliação do patriarcado e do cristianismo, e o escravismo indígena e afri-
cano, acrescidos da reformulação do sexismo, do racismo e da segregação.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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GÊNERO, RAÇA E ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DA TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SOBRE AS AUTORIAS
Adnilson de Almeida Silva (adnilsonn@gmail.com)
Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná. Atua
nos programas de pós-graduação Mestrado em Geografia e Mestrado e
Doutorado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente da Universi-
dade Federal de Rondônia. É vice-coordenador do grupo de pesquisa GEP-
CULTURA/UNIR e atua como colaborador na ‘Kanindé’ Associação de
Defesa Etno-Ambiental, bem como no Centro de Estudos da Cultura e do
Meio Ambiente da Amazônia - Rioterra.

Alex Ratts (alex.ratts@uol.com.br)


Professor da Universidade Federal de Goiás, nos cursos de gra-
duação e pós-graduação em Geografia e mestrado em Antropologia. Coor-
denador do Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espaciali-
dades do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de
Goiás (LaGENTE/IESA/UFG).

Almir Narayamoga Suruí (almirsurui@gmail.com)


Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Geogra-
fia/UNIR. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Geografia pela
Universidade Federal de Rondônia. Trabalha como consultor da Associa-
ção de Defesa Etnoambiental, com ênfase em estudos sobre terras indíge-
nas, paiter suruí e gestão território.

Ângela Célia Sacchi (acsacchi@yahoo.com.br)


Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropolo-
gia da Universidade Federal de Goiás. Tem explorado temas sobre etnolo-
gia indígena e antropologia de gênero, especificamente sobre a organização
política e direitos das mulheres indígenas, violência contra mulheres indí-
genas, políticas públicas e povos indígenas.

Benhur Pinós da Costa (benpinos@gmail.com)


Professor do Departamento de Geociências e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da UFSM. Membro da Rede de Estudos
SOBRE AS AUTORIAS

Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina. Membro da rede


de discussão sobre Geografia e microterritorialidades nas cidades e do
Núcleo de Estudos em Espaço e Representações (NEER). Seus interesses
de pesquisa são: Geografia, pluralidades culturais e sexualidades; estudos
do cotidiano; territórios e territorialidades; homossexualidades e espaço
geográfico.

Cesare Di Feliciantonio (cesare.difeliciantonio@uniroma1.it)


Pesquisador, realizando seu doutoramento no Programa de Pós-
Graduação em Geografia Econômica da Universidade de Roma. É ativista
engajado nas políticas LGBTQ em Roma e tem desenvolvido pesquisas nas
áreas de geografia social e econômica, com ênfase em sexualidades.

Fernando Bertani Gomes (ferbg28@gmail.com)


Geógrafo e pesquisador do Grupo de Estudos Territoriais, atual-
mente realiza doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Suas áreas de atuação de pes-
quisa incluem geografia cultural, gênero e masculinidades.

Gasodá Suruí (gasodasurui@hotmail.com)


Bacharel em Turismo pela Faculdade São Lucas. Coordenador
de Cultura Indígena Paiter Suruí e pesquisador indígena, presta assessoria
técnica ao Movimento Indígena Paiter Suruí pela Associação Metareilá do
Povo Indígena Suruí.

Jan Simon Hutta (hutta@gmx.net)


PhD em Geografia Humana pela Universidade The Open, Mil-
ton Keynes, no Reino Unido. Seu projeto de doutorado investigou políticas
LGBT de antiviolência e cidadania no Brasil. Antes disso, estudou Psicolo-
gia e Estudos Culturais na Universidade Livre de Berlim e na Universidade
da Califórnia, Santa Cruz. De 2010 a 2012, trabalhou como pesquisador no
projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), para a TGEU.
Também ensina Antropologia Cultural e Estudos de Gênero, na Universi-
dade Humboldt, em Berlim. Seus trabalhos têm sido publicados em diver-
sos jornais e antologias. Envolveu-se no ativismo queer, coorganizou con-
ferências políticas e acadêmicas e é membro-fundador da Sub\urban, uma
revista interdisciplinar alemã sobre pesquisa em crítica urbana.

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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SOBRE AS AUTORIAS

Jasson Iran Monteiro da Cruz (irandacruz@gmail.com)


Educador SEDUC Pará e Sistema Modular de Ensino (SOME),
bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFPA), especialista em Pla-
nejamento Urbano e Gestão Local (UFPA) e Planejamento e Gestão do
Desenvolvimento Regional (UFPA). Membro do Grupo Homossexual de
Santarém (GHS). Atua em antropologia urbana, educação indígena, plane-
jamento urbano e regional, estudos de gênero e sexualidade.

Joseli Maria Silva (joseli.genero@gmail.com)


Geógrafa, coordenadora do Grupo de Estudos Territoriais, é
docente da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde atua no
Programa de Pós-Graduação em Geografia. É editora da Revista Latino-
Americana de Geografia e Gênero.

Josevaldo Sousa de França (ajosevaldo@gmail.com)


Graduado em Filosofia pela UFPA, atua em estudos sobre corpo e
contemporaneidade e é membro do Grupo Homossexual de Santarém (GHS).

Katherine Browne (k.a.browne@brighton.ac.uk)


Geógrafa, professora na Human Geography School of Environ-
ment & Technology, na Universidade de Brighton. Pesquisadora na área de
geografia, gênero e sexualidades, além de metodologias de pesquisa quali-
tativa, atua como ativista em instituições LGBT na Inglaterra. Também é
editora da ACME: International Journal for Critical Geographers, além de
outros.

Lynda Johnston (lyndaj@waikato.ac.nz)


Geógrafa, professora doutora da Universidade de Waikato, na
Nova Zelândia. É editora da Revista Gender, Place & Culture desde 2011
e membro do Conselho Editorial da revista Social and Cultural Geography
desde 2009.

Maria das Graças Silva Nascimento Silva (gracinhageo@hotmail.com)


Geógrafa, Professora Adjunta do Departamento de Geografia da
Universidade Federal de Rondônia. É também docente do Programa de

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GÊNERO E SEXUALIDADES
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* 357
SOBRE AS AUTORIAS

Pós-Graduação do Mestrado em Geografia. Pesquisa principalmente po-


pulações rurais e ribeirinhas da Amazônia, com ênfase em políticas públi-
cas, e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e
Relações Sociais de Gênero.

María Dolors García-Ramón (mariadolors.garcia.ramon@uab.es)


Professora Catedrática do Departamento de Geografia da Univer-
sidade Autônoma de Barcelona e pesquisadora da área de gênero e geografia.

Maria Rodó-de-Zárate (maria.rodo.zarate@gmail.com)


Ativista feminista de Barcelona. Estudou Ciências Políticas e
realizou seu mestrado e doutorado em estudos de gênero. Em 2014, obteve
o título de PhD em Geografia na Universidade Autônoma de Barcelona
(UAB), enfocando em sua pesquisa o tema da interseccionalidade,
juventude, lésbicas e direito ao acesso à cidade. Atualmente é pesquisadora
de pós-doutorado no Grupo de Pesquisa Geografia e Gênero da UAB.

María Verónica Ibarra-García (maveroibar@gmail.com)


Geógrafa, professora da Universidade Nacional Autônoma do
México. Tem atuado principalmente em geografias feministas e geografia
política. É responsável pelo Projeto de Pesquisa ‘Sesenta años de las mu-
jeres en el poder Legislativo en México, 1953-2013. Una mirada desde la
geografía feminista’.

Miguel Ângelo Ribeiro (mamikisi@gmail.com)


Geógrafo, professor do Programa de Pós-Graduação em Geo-
grafia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sua atuação é voltada
para a Geografia Humana. Trabalha principalmente com o Estado do Rio
de Janeiro, tendo vários estudos sobre territórios da prostituição e práticas
comerciais sexuais, com foco na homossexualidade masculina.

Rafael da Silva Oliveira (rafasolufrr@gmail.com)


Geógrafo, Professor Adjunto do Departamento de Geografia da
Universidade Federal de Roraima (UFRR). Sua atuação está voltada para a
área de Geografia Humana, em que explora as territorialidades do trabalho
sexual na Pan-Amazônia e no Caribe.

INTERSECCIONALIDADES,
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GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
SOBRE AS AUTORIAS

Rodrigo Rossi (mimdigo@gmail.com)


Pesquisador do Grupo de Estudos Territoriais da Universidade
Estadual de Ponta Grossa, está realizando seu doutoramento no Programa
de Pós-Graduação em Geografia da mesma instituição. Sua linha de in-
vestigação está voltada para o cotidiano de grupos sociais marginalizados,
explorando as relações de gênero, mais especificamente o estudo das mas-
culinidades.

Sônia Beatriz dos Santos (soniabsantos@yahoo.com)


Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
integra o Colegiado de Docentes e Pesquisadores Permanentes do Progra-
ma de Pós-Graduação em Relações Etnicorraciais, CEFET/RJ. Atua ainda
na ONG Criola, além de colaborar em vários outros cursos voltados para
relações étnico-raciais e de gênero.

Xosé Manuel Santos-Solla (xosemanuel.santos@usc.es)


Professor de Geografia Humana e diretor do Centro de Estudos
Turísticos da Universidade de Santiago de Compostela. Atua em projetos
de investigação cujo foco é o turismo e tem interesse no campo de geografia
e sexualidades.

INTERSECCIONALIDADES,
GÊNERO E SEXUALIDADES
NA ANÁLISE ESPACIAL
**
* 359
Interseccionalidades, gênero e sexualidades na análise espacial foi
organizado por Maria das Graças Silva Nascimento Silva e
Joseli Maria Silva e editado por
TODAPALAVRA Editora, em Ponta Grossa, Paraná,
no ano de 2014.

Dados técnicos
ISBN: 978-85-62450-37-2
Formato fechado: 160 x 230 mm
Fontes utilizadas: Minion Pro, Britannic Bold
Revisão por Hein Leonard Bowles
Capa, projeto gráfico e diagramação por Dyego Marçal
Impressão por Pallotti Gráfica e Editora
Distribuição: Todapalavra Editora
Tiragem: 500 exemplares
Miolo: com 360 páginas em papel ofsete 90 g/m²
Impressão 1x1 em cor preta
Capa: cartão supremo 240 g/m²
Acabamento: costurado, laminação fosca

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