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Sem uma inovação crítica, uma aplicação direta é igualmente impossível para aqueles
enquadramentos [framework] teóricos a partir dos quais eu irei basear o que se segue,
tais como a teoria crítica de Theodor Adorno, ainda que suas investigações tenham
nos fornecido uma importante base para uma teoria crítica do patriarcado no
presente. Os debates feministas dos últimos vinte anos que foram baseados na teoria
crítica, assim como em Adorno, podem nos servir de inspiração, mas eles também
devem ser modificados. Eu não posso elaborar isto aqui[i]. Ao invés disso, eu gostaria
de apresentar desde já umas poucas facetas da minha teoria das relações de gênero,
ou teoria do valor-dissociação, a qual eu tenho desenvolvido por meio do
engajamento com algumas das teorias acima aludidas.
Como irei mostrar, relações de gênero assimétricas hoje não podem mais ser
entendidas no mesmo sentido que as “clássicas” relações de gênero modernas;
contudo, é essencial fundamentar suas origens na história da modernização. De
forma similar, se deve considerar os processos pós-modernos de diferenciação e a
relevância de níveis simbólicos culturais que emergiram desde os anos de 1980. A
ordem cultural-simbólica deveria ser entendida aqui como uma dimensão autônoma
da teoria.
Todavia, esta dimensão autônoma é para ser pensada simultaneamente com o valor-
dissociação como um princípio social básico para além de um entendimento da teoria
marxiana como puramente materialista. Tal teoria é muito melhor equipada para
apreender a totalidade na medida em que os níveis cultural-simbólicos, assim como
os sócio-psicológicos, estão incluídos no contexto de um todo social. Economia e
cultura não são, portanto, nem idênticas (como “lógica identitária” que
violentamente busca subjugar diferenças ao mesmo denominador comum), nem
tampouco podem ser separadas uma da outra em um sentido dualista. Ao contrário,
sua identidade e não-identidade devem ser concebidas como a incompatibilidade
conflituosa que dá forma ao patriarcado produtor de mercadorias como tal: o
princípio básico autocontraditório da forma social do valor-dissociação.
De acordo com esta nova abordagem da crítica do valor, não é o mais-valor – ou seja,
não é exclusivamente a exploração do trabalho pelo capital, externamente
determinada, enquanto relações legais de propriedade – que permanece no centro da
crítica. Ao contrário, a crítica se inicia num momento anterior, nomeadamente com o
caráter social do sistema produtor de mercadorias e, portanto, com a forma de
atividade particular do trabalho abstrato. O trabalho como abstração se desenvolve
pela primeira vez sob o capitalismo ao lado da generalização da produção de
mercadorias e, portanto, não deve ser ontologizado.
Oposta a esta posição, nas sociedades pré-modernas os bens eram produzidos sob
diferentes relações de dominação (pessoais em oposição a relações reificadas pela
forma-mercadoria). Os bens eram produzidos no campo e nas oficinas
primordialmente para seu uso, determinadas por leis específicas das guildas que
impediam a busca pelo lucro abstrato. A muito limitada troca pré-moderna de bens
não era realizada em mercados e relações de competição em sentido moderno. Não
era possível, portanto, nesse ponto da história, falar de uma totalidade social na qual
dinheiro e valor se tornaram fins abstratos em si mesmos.
Tais relações constituem uma faceta das sociedades capitalistas que não podem ser
capturadas pelo aparato conceitual de Marx. Esta faceta é um aspecto necessário do
valor, embora ela ainda exista fora dele e seja (por essa mesma razão) sua
precondição. Neste contexto eu tomo emprestada de Frigga Haug a noção de uma
“lógica de economia de tempo” que determina um lado da modernidade que é
geralmente associado com a esfera da produção, aquilo que Robert Kurz chama de
“lógica e utilização (Vernutzung) da administração de negócios” e uma “lógica de
dispêndio de tempo” que corresponde ao campo da reprodução. Valor e dissociação,
portanto, estão em uma relação dialética entre eles. Um não pode ser simplesmente
derivado do outro. Ao contrário, ambos emergem um do outro simultaneamente.
Estas categorias não devem ser mal interpretadas como imediatas ou naturais, não
obstante o fato de comer, beber e amar não serem somente conectados à
simbolização (como o construtivismo vulgar poderia reivindicar). As categorias
tradicionais disponíveis para a crítica da economia política, entretanto, estão em
falta também em outro aspecto. O valor-dissociação implica uma relação sócio-
psicológica particular. Certas qualidades desvalorizadas (sensibilidade, emotividade,
deficiências de pensamento e caráter e daí por diante) são associadas com a
feminilidade e estão dissociadas do sujeito moderno masculino. Estes atributos
específicos de gênero são uma característica fundamental da ordem simbólica do
patriarcado produtor de mercadorias.
Tais relações assimétricas de gênero deveriam, acredito, no que diz respeito à teoria,
serem examinadas focalizando apenas a modernidade e a pós-modernidade. Isto não
quer dizer que essas relações não tenham uma história pré-moderna, mas para
insistir que sua universalização as dotou de uma qualidade inteiramente nova. A
universalização de tais relações de gênero no início da modernidade significou que as
mulheres se tornaram então responsáveis pelos menos valorizados (em oposição ao
masculino, produtor de capital) campos da reprodução, os quais não poderiam ser
representados em termos monetários.
O que devemos trazer para o primeiro plano nisso tudo é que o trabalho abstrato e o
trabalho doméstico, junto com os conhecidos padrões culturais de masculinidade e
feminilidade, determinam um ao outro simultaneamente. A velha questão “o ovo ou
a galinha” não tem sentido nesse contexto. Ainda assim, tal abordagem não-dialética
é característica de críticos desconstrutivistas que insistem que a masculinidade e a
feminilidade devem, inicialmente, ser produzidas culturalmente antes que uma
distribuição das atividades por gênero possa acontecer[ix]. Frigga Haug também
parte do pressuposto ontologizante de que o significado cultural se amarra ao longo
da história a uma divisão do trabalho previamente definida em termos de gênero.[x]
O que é requerido é uma esfera para a qual ações de cuidado e amor possam ser
deportadas e que esteja em posição oposta às lógicas do valor, de poupar tempo e da
sua moralidade (competição, lucro, desempenho). Esta relação entre esfera privada e
o setor público também explica a existência de alianças e instituições masculinas que
se fundaram, por meio de uma divisão afetiva, contra tudo o que é feminino. Como
consequência, a própria base do Estado e da política modernas, bem como os
princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, repousam sobre a fundação de
alianças masculinas desde o século dezoito.
Isto não quer dizer, entretanto, que o patriarcado reside nas esferas criadas por esse
processo de dissociação. Por exemplo, as mulheres sempre foram ativas, em alguma
medida, na esfera da acumulação. Ainda assim, a dissociação se torna aparente
também aqui já que, apesar do sucesso de Angela Merkel e outras, a existência de
mulheres na esfera pública é geralmente desvalorizada e as mulheres permanecem
amplamente impedidas de uma mobilidade ascendente. Tudo isto indica que o valor-
dissociação é um princípio social formal universal que é localizado em um alto nível
de abstração correspondente e que não pode ser mecanicamente separado em
diferentes esferas. Isto significa que os efeitos do valor-dissociação penetram todas
as esferas, incluindo todos os níveis da esfera pública.
Foi somente no século XVIII que aquilo que Carol Hagermann-White chama de
moderno “sistema dual de gênero” emergiu, o qual levou àquilo que Karen Hausen
chama de “polarização das características de gênero”. Antes disso mulheres eram
amplamente consideradas como apenas outra variante de homem, que é uma das
razões pelas quais as ciências históricas e sociais sublinharam ao longo dos últimos
quinze anos a universalidade do modelo de gênero único sobre o qual as sociedades
pré-burguesas eram baseadas. Mesmo a vagina era, no contexto deste modelo,
frequentemente entendida como um pênis, invertido e empurrado para a parte
inferior do corpo[xii].
Desde a década de 1950 um número cada vez maior de mulheres foi integrado ao
trabalho abstrato e ao processo de acumulação, acompanhado por uma gama de
processos de racionalização da vida doméstica, mais opções para o controle de
natalidade, e a equalização gradual do acesso à educação[xvii]. Consequentemente, a
dupla socialização das mulheres também passou por mudanças, e agora reside em
um nível mais alto da hierarquia social e, analogamente, gera níveis mais altos de
autovalorização para as mulheres. Mesmo que atualmente uma grande porcentagem
das mulheres tenha sido integrada à sociedade oficial elas ainda são responsáveis
pela vida doméstica e pelas crianças, precisam lutar mais que os homens para
ascender na hierarquia profissional e os seus salários são, em média,
significativamente menores que os dos homens.
As tradicionais relações de gênero burguesas não são mais apropriadas para o atual
“turbo-capitalismo” e a sua rigorosa demanda por flexibilidade. Uma gama de
identidades flexíveis compulsórias emerge, mas essas são, no entanto, ainda
representadas como diferenciadas por gênero[xix]. A velha imagem da mulher se
tornou obsoleta e a mulher duplamente socializada se tornou o papel dominante.
Além disso, análises recentes sobre globalização e relações de gênero sugerem que,
após um certo período no qual parecia que as mulheres seriam finalmente capazes de
gozar de maiores liberdades imanentes ao sistema, nós também testemunhamos um
crescente asselvajamento do patriarcado.
É claro que, também neste caso, devemos considerar a variedade de diferenças
sociais e culturais que correspondem a uma variedade de regiões globais. Da mesma
forma, devemos observar a posição diferentemente situada das mulheres em um
contexto em que a lógica de vencedores e vencidos ainda domina, mesmo que os
vencedores estejam sob ameaça de desaparecer no abismo aberto pela atual
destruição da classe média[xx]. Como mulheres bem situadas são capazes de pagar
pelos serviços de trabalhadoras imigrantes mal remuneradas, nós estamos
testemunhando uma redistribuição de, por exemplo, cuidado pessoal, de idosos e
crianças dentro do plano de existência feminino.
Em relação a estes últimos, devemos ainda notar que não é somente o Islã
fundamentalista que tenta reconstruir “autênticas” relações de gênero religiosas
patriarcais. De fato, é o modelo de civilização patriarcal ocidental que deve ser o foco
da nossa crítica. Simultaneamente, nós também somos confrontados com uma
transição em nível psicológico. Na pós-modernidade emerge um “código afetivo de
gênero” que corresponde ao tradicional código afetivo masculino[xxii]. Ainda assim,
velhas estruturas afetivas necessariamente continuam também a ter um papel
importante já que elas garantem que, mesmo nos tempos das relações pós-modernas
de gênero único, as mulheres continuem a assumir responsabilidades dissociadas,
possibilitando a universalidade da mulher com diversas crianças que ainda dá um
jeito de ser doutora, cientista, política e muito mais. Isso pode ocorrer na forma de
um retorno a papéis e ideais femininos tradicionais, particularmente em tempos de
grande crise e instabilidade.
Tal crítica, no entanto, não pode mais ser levada a cabo na sua forma tradicional
focada em uma metodologia androcêntrica-universalista que faça uma ontologia do
trabalho, mas, ao contrário, deve incluir uma virada em direção à teoria radical do
valor-dissociação e as suas consequências epistemológicas.
Conclusão
Ao contrário, ela lida com a tensão entre conceito e diferenciação (sem dissolver o
conceito dentro do indistinto, do infinito) e está, portanto, apta a falar do processo
atual de homogeneização e diferenciação de maneiras que podem também endereçar
conflitos relacionados, incluindo a violência masculina.
Notas
[i] Ver, por exemplo, SCHOLZ, Roswitha. Das Geschlecht des Kapitalismus.
Feministische Theorie und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats. Unkel:
Horlemann, 2000, pp. 61 e seguintes, 107 e seguintes, 184 e seguintes*, e SCHOLZ,
Roswitha. “Die Theorie der geschlechtlichen Abspaltung und die Kritische Theorie
Adornos”. In: KURZ, Robert, SCHOLZ, Roswitha e ULRICH, Jörg (eds.) Der Alptraum
der Freiheit. Perspektiven radikaler Gesellschaftskritik. Blaubeuren: Verlag Ulmer
Manuskripte, 2005.
Nota dos tradutores: cf. tradução de excertos para o português. SCHOLZ, Roswitha. O
sexo do capitalismo [excertos]. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz6.htm.
[ii] KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; KURZ,
Robert. Kapitalismus: ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Frankfurt: Eichborn Verlag,
1999; POSTONE, Moishe. “Anti-semitismo e nacional-socialismo”. Sinal de Menos,
ano 4, número 8, 2012, pp. 14-28; POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação
social. São Paulo: Boitempo editorial, 2014.
[iii] Nota dos editores: Ver MARX, Karl. “A fórmula geral do capital”. In: MARX, Karl.
O Capital, v. 1, t. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
[iv] Nota dos tradutores: sugerimos a substituição desta expressão por outra, qual
seja, “modernização retardatária”, já adotada quando da publicação d’O colapso da
modernização de Robert Kurz (1993) no Brasil, de modo a reiterar a ideia de que tais
esforços modernizadores nunca lograram alcançar os níveis de produtividade do
capital dos países centrais, mantendo-se sempre numa posição irremediavelmente
retardatária com relação àqueles.
[v] HAUG, Frigga. Frauen-Politiken. Berlim: Argument, 1996, pp. 229 e seguintes.
[vi] Nota dos tradutores: registramos aqui nosso incômodo com a ausência de
qualquer menção ao processo de racialização imanente à imposição do patriarcado
como modelo civilizacional, entendida aquela também como forma de manifestação
da dissociação, como a própria autora afirma na conclusão deste artigo e em outros
de seus ensaios. Está em aberto, por outro lado, o tratamento crítico a este problema
à luz do argumento da autora que nos convida a considerar a crise que o moderno
patriarcado produtor de mercadorias vem desencadeando no padrão de reprodução
das práticas e características historicamente atribuídas a homens e mulheres, o que
igualmente se manifesta nos processos de racialização. Embora Achille Mbembe fale
de um “devir-negro do mundo” (2018), tese que confirma o caráter processual da
racialização e sua modificação na crise, não parece haver dúvidas de que negros e
brancos experimentam aquela última de formas diferentes.
[vii] Ibid
[xv] BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[xvii] BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 147 e seguintes.
[xix] Comparar com SCHULTZ, Irmgard. Der erregende Mythos vom Geld. Die neue
Verbindung von Zeit, Geld und Geschlecht im Ökologiezeitalter. Frankfurt: Campus
Verlag, 1994, pp. 198 e seguintes e WICHTERICH, Christa. Die globalisierte Frau.
Berichte aus der Zukunft der Ungleichheit. Reinbeck: Rowohlt, 1998.
[xx] Comparar com KURZ, Robert. “O último estádio da classe média”, Folha de São
Paulo, 19 de setembro de 2004. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/rkurz173.htm.
[xxiv] Nota dos editores: Mulheres que ajudaram a limpar os destroços após a
Segunda Guerra Mundial – literalmente: “mulheres dos escombros”. Ver também:
THÜRMER-ROHR, Christina. “Feminisierung der Gesellschaft. Weiblichkeit als
Putz- und Entseuchungsmittel”. In: THÜRMER-ROHR, Christina (ed.)
Vagabundinnen. Feministische Essays. Berlim: Orlanda Frauenverlag, 1987.
[xxv] Cf. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001 e
SCHOLZ, Differenzen der Krise — Krise der Differenzen, pp. 247 e seguintes.
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