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Patriarcado

Select Language e sociedade da mercadoria

Por ROSWITHA SCHOLZ*

Um novo enquadramento teórico marxista-feminista

Nos anos de 1980, após o colapso do Bloco Oriental, culturalismo e teorias da


diferença se tornaram especialmente proeminentes nos cursos de estudos femininos,
uma disciplina desde então largamente transformada em estudos de gênero. O
feminismo marxista, que até o fim de 1980 havia determinado os debates neste
campo, foi sendo deixado em segundo plano. Recentemente, entretanto, a
deslegitimação crescente do neoliberalismo, conectada com a atual crise econômica,
produziu uma ressurgência e crescente popularidade de um conjunto diverso de
marxismos.

Até a presente data [2009], entretanto, estes desenvolvimentos mal tiveram um


impacto nos campos da teoria feminista ou dos estudos de gênero – além de alguns
debates críticos sobre a globalização e estudos especializados interrogando temas
como trabalho e dinheiro. A desconstrução é ainda vocalista principal no coro do
feminismo universal, especialmente em teoria de gênero. Enquanto isso, afirmações
quanto à necessidade de um novo feminismo (em particular um feminismo que uma
vez mais inclua um plano materialista de análise) se tornou um lugar comum. O
popular argumento dos anos de 1980 e 1990 que reivindica que estamos confrontados
como uma “confusão dos sexos” está sendo rapidamente esvaziado. Ao contrário,
está se tornando claro que nem a tão professada equalização de gêneros nem o jogo
desconstrutivista renderam resultados convincentes.

A “redescoberta” da teoria marxista, de um lado, e o insight de que o feminismo não é


de forma alguma anacrônico ou supérfluo, de outro, mesmo se ele não pode mais ser
continuado naquelas formas que se tornaram características das décadas passadas,
me levam a considerar um novo enquadramento [framework] teórico marxista-
feminista capaz de considerar os recentes desenvolvimentos desde o fim do
socialismo realmente existente e o início da atual crise econômica global. Deveria
estar claro que não se pode conectar perfeitamente conceitos e análises marxistas
tradicionais com problemáticas do século XXI.

Sem uma inovação crítica, uma aplicação direta é igualmente impossível para aqueles
enquadramentos [framework] teóricos a partir dos quais eu irei basear o que se segue,
tais como a teoria crítica de Theodor Adorno, ainda que suas investigações tenham
nos fornecido uma importante base para uma teoria crítica do patriarcado no
presente. Os debates feministas dos últimos vinte anos que foram baseados na teoria
crítica, assim como em Adorno, podem nos servir de inspiração, mas eles também
devem ser modificados. Eu não posso elaborar isto aqui[i]. Ao invés disso, eu gostaria
de apresentar desde já umas poucas facetas da minha teoria das relações de gênero,
ou teoria do valor-dissociação, a qual eu tenho desenvolvido por meio do
engajamento com algumas das teorias acima aludidas.

Como irei mostrar, relações de gênero assimétricas hoje não podem mais ser
entendidas no mesmo sentido que as “clássicas” relações de gênero modernas;
contudo, é essencial fundamentar suas origens na história da modernização. De
forma similar, se deve considerar os processos pós-modernos de diferenciação e a
relevância de níveis simbólicos culturais que emergiram desde os anos de 1980. A
ordem cultural-simbólica deveria ser entendida aqui como uma dimensão autônoma
da teoria.

Todavia, esta dimensão autônoma é para ser pensada simultaneamente com o valor-
dissociação como um princípio social básico para além de um entendimento da teoria
marxiana como puramente materialista. Tal teoria é muito melhor equipada para
apreender a totalidade na medida em que os níveis cultural-simbólicos, assim como
os sócio-psicológicos, estão incluídos no contexto de um todo social. Economia e
cultura não são, portanto, nem idênticas (como “lógica identitária” que
violentamente busca subjugar diferenças ao mesmo denominador comum), nem
tampouco podem ser separadas uma da outra em um sentido dualista. Ao contrário,
sua identidade e não-identidade devem ser concebidas como a incompatibilidade
conflituosa que dá forma ao patriarcado produtor de mercadorias como tal: o
princípio básico autocontraditório da forma social do valor-dissociação.

Valor como um princípio social básico

Além da acima mencionada teoria crítica de Adorno, as referências teóricas primárias


são uma nova teoria crítica fundamental do “valor” e do “trabalho abstrato” como
aperfeiçoamentos da crítica marxista da economia política, de quem os mais
proeminentes teóricos das últimas décadas são Robert Kurz e Moishe Postone.[ii]
Pretendo dar a seus textos uma torção feminista.

De acordo com esta nova abordagem da crítica do valor, não é o mais-valor – ou seja,
não é exclusivamente a exploração do trabalho pelo capital, externamente
determinada, enquanto relações legais de propriedade – que permanece no centro da
crítica. Ao contrário, a crítica se inicia num momento anterior, nomeadamente com o
caráter social do sistema produtor de mercadorias e, portanto, com a forma de
atividade particular do trabalho abstrato. O trabalho como abstração se desenvolve
pela primeira vez sob o capitalismo ao lado da generalização da produção de
mercadorias e, portanto, não deve ser ontologizado.

A produção generalizada de mercadorias é caracterizada por uma contradição-chave:


sob o imperativo da valorização do valor os indivíduos dos empreendimentos
capitalistas estão altamente integrados em uma rede e, apesar disto, paradoxalmente
engajados em uma produção não-social, enquanto a socialização propriamente é
apenas estabelecida via mercado e troca. Como mercadorias os produtos representam
trabalho abstrato passado e, portanto, valor. Em outras palavras, mercadorias
representam uma específica quantidade de gasto de energia humana, reconhecida
pelo mercado como socialmente válida.

Esta representação é, por sua vez, expressa em dinheiro, o mediador universal e


simultaneamente um fim em si mesmo da forma do capital. Deste modo as pessoas
aparecem como associais e a sociedade aparece como sendo constituída através das
coisas, as quais são mediadas pela quantidade abstrata de valor. O resultado é a
alienação dos membros da sociedade, enquanto sua própria sociabilidade é apenas
concedida a eles pelas mercadorias, coisas mortas, portanto esvaziando inteiramente
a sociabilidade em sua forma social de representação do seu conteúdo sensível e
concreto. Esta relação pode, por ora, ser expressa pelo conceito de fetichismo, tendo
em mente que este conceito, ele mesmo, está ainda incompleto.

Oposta a esta posição, nas sociedades pré-modernas os bens eram produzidos sob
diferentes relações de dominação (pessoais em oposição a relações reificadas pela
forma-mercadoria). Os bens eram produzidos no campo e nas oficinas
primordialmente para seu uso, determinadas por leis específicas das guildas que
impediam a busca pelo lucro abstrato. A muito limitada troca pré-moderna de bens
não era realizada em mercados e relações de competição em sentido moderno. Não
era possível, portanto, nesse ponto da história, falar de uma totalidade social na qual
dinheiro e valor se tornaram fins abstratos em si mesmos.

A Modernidade é consequentemente caracterizada pela busca de mais-valor, pela


tentativa de gerar mais dinheiro a partir do dinheiro, não como uma questão de
enriquecimento subjetivo, mas, ao contrário, como um sistema tautológico
determinado pela relação do valor consigo mesmo. É nesse contexto que Marx fala de
um “sujeito automático”.[iii] As necessidades humanas se tornam negligenciáveis e
a força de trabalho, em si mesma, é transformada em uma mercadoria. Isto significa
que a capacidade humana para a produção se tornou externamente determinada –
não no sentido de uma dominação pessoal, mas no sentido de mecanismos anônimos
e cegos. E é somente por essa razão que as atividades produtivas na modernidade
foram forçadas a assumir a forma do trabalho abstrato.

Por fim, o desenvolvimento do capitalismo marca a vida globalmente por meio do


automovimento do dinheiro e do trabalho abstrato, os quais emergem apenas sob o
capitalismo e aparecem transhistoricamente [ahistorically] como um princípio
ontológico. O marxismo tradicional apenas problematizou uma parte do sistema de
correlações, nomeadamente a apropriação legal do mais-valor pela burguesia,
portanto focalizando a desigual distribuição ao invés do fetichismo da mercadoria.
Sua crítica ao capitalismo e a imaginação de sociedades pós-capitalistas estão
consequentemente limitadas ao objetivo de uma distribuição uniforme [do mais-
valor] dentro do sistema produtor de mercadorias em suas formas não-superadas.
Tais críticas falham em ver que o sofrimento resultante do capitalismo emerge das
suas próprias relações formais, das quais a propriedade privada é apenas um de
muitos resultados.
Consequentemente, os marxismos dos movimentos de trabalhadores estavam
limitados a uma ideologia de legitimação dos aperfeiçoamentos e desenvolvimentos
imanentes ao sistema. Hoje, esta forma de pensamento é inadequada para uma
crítica renovada do capitalismo, na medida em que absorveu (e se apropriou de)
todos os princípios básicos da socialização capitalista, em particular as categorias de
valor e trabalho abstrato, compreendendo equivocadamente estas categorias como
condições transhistóricas da humanidade.

Neste contexto, uma posição radicalmente crítica do valor considera os exemplos


passados do socialismo realmente existente como sistemas de produção de valor de
modernizações recuperadoras[iv] determinados burocraticamente pelo Estado no
Leste e Sul global, os quais, mediados pelos processos econômicos globais e a corrida
pelo desenvolvimento de forças produtivas contra o Oeste, teve que colapsar no
estágio pós-fordista do desenvolvimento capitalista no fim da década de 1980. Desde
então o Ocidente se engajou no processo de retirada das reformas sociais no contexto
de crises e globalização.

Valor-dissociação como princípio social básico

Os conceitos de valor e trabalho abstrato, eu argumento, não conseguem dar conta da


forma básica do capitalismo como uma relação fundamentalmente fetichista. Nós
temos também que levar em conta que sob o capitalismo surgem atividades
reprodutivas que são principalmente realizadas por mulheres. Consequentemente, o
valor-dissociação significa que o capitalismo contém um núcleo de atividades
reprodutivas e afetos femininamente determinados, características e atitudes
(emotividade, sensualidade e cuidado feminino ou maternal) que são dissociados do
valor e do trabalho abstrato. Relações femininas de existência – isto é, atividades
reprodutivas femininas sob o capitalismo – são, portanto, de um caráter diferente
daquele do trabalho abstrato e é por isso que não podem ser francamente subsumidas
sob o conceito de trabalho.

Tais relações constituem uma faceta das sociedades capitalistas que não podem ser
capturadas pelo aparato conceitual de Marx. Esta faceta é um aspecto necessário do
valor, embora ela ainda exista fora dele e seja (por essa mesma razão) sua
precondição. Neste contexto eu tomo emprestada de Frigga Haug a noção de uma
“lógica de economia de tempo” que determina um lado da modernidade que é
geralmente associado com a esfera da produção, aquilo que Robert Kurz chama de
“lógica e utilização (Vernutzung) da administração de negócios” e uma “lógica de
dispêndio de tempo” que corresponde ao campo da reprodução. Valor e dissociação,
portanto, estão em uma relação dialética entre eles. Um não pode ser simplesmente
derivado do outro. Ao contrário, ambos emergem um do outro simultaneamente.

Neste sentido, o valor-dissociação pode ser entendido como uma macroestrutura


teórica dentro da qual as categorias da forma-valor funcionam microteoricamente,
nos permitindo examinar a socialização fetichista em sua totalidade, ao invés de
apenas o valor. Deve-se sublinhar aqui, entretanto, que a sensibilidade que é
usualmente percebida, de modo falso, como um a priori imediato nos campos da
reprodução, do consumo, e das suas atividades correspondentes, assim como
necessidades que precisam ser satisfeitas nesse contexto, emergiram historicamente
diante do pano de fundo do valor-dissociação como um processo total.

Estas categorias não devem ser mal interpretadas como imediatas ou naturais, não
obstante o fato de comer, beber e amar não serem somente conectados à
simbolização (como o construtivismo vulgar poderia reivindicar). As categorias
tradicionais disponíveis para a crítica da economia política, entretanto, estão em
falta também em outro aspecto. O valor-dissociação implica uma relação sócio-
psicológica particular. Certas qualidades desvalorizadas (sensibilidade, emotividade,
deficiências de pensamento e caráter e daí por diante) são associadas com a
feminilidade e estão dissociadas do sujeito moderno masculino. Estes atributos
específicos de gênero são uma característica fundamental da ordem simbólica do
patriarcado produtor de mercadorias.

Tais relações assimétricas de gênero deveriam, acredito, no que diz respeito à teoria,
serem examinadas focalizando apenas a modernidade e a pós-modernidade. Isto não
quer dizer que essas relações não tenham uma história pré-moderna, mas para
insistir que sua universalização as dotou de uma qualidade inteiramente nova. A
universalização de tais relações de gênero no início da modernidade significou que as
mulheres se tornaram então responsáveis pelos menos valorizados (em oposição ao
masculino, produtor de capital) campos da reprodução, os quais não poderiam ser
representados em termos monetários.

Nós devemos rejeitar o entendimento de relações de gênero sob o capitalismo como


um resíduo pré-capitalista. O pequeno núcleo familiar tal como o conhecemos, por
exemplo, apenas emergiu no século dezoito, assim como as esferas públicas e
privadas tal como as entendemos hoje apenas emergiram na modernidade. O que eu
reivindico aqui, portanto, é que o início da modernidade não apenas marcou o
nascimento da produção capitalista de mercadorias, mas que ele também viu a
emergência de um dinamismo social que repousa sobre a base de relações do valor-
dissociação.

Patriarcado produtor de mercadorias como modelo civilizatório

Seguindo Frigga Haug, eu parto do pressuposto de que a noção de um patriarcado


produtor de mercadorias deve ser considerado um modelo civilizatório; porém, eu
gostaria de modificar as afirmações de Haug levando em conta a teoria do valor-
dissociação.[v] Como bem se sabe, a ordem simbólica do patriarcado produtor de
mercadorias é caracterizada pelos seguintes pressupostos: política e economia são
associadas com a masculinidade; a sexualidade masculina, por exemplo, é
geralmente descrita como individualizada, agressiva ou violenta, enquanto as
mulheres frequentemente operam como meros corpos.

O homem é, portanto, considerado humano, homem de intelecto e transcendente ao


corpo, enquanto as mulheres são reduzidas a um status não-humano, puramente ao
corpo. A guerra carrega uma conotação masculina, enquanto mulheres são vistas
como pacíficas, passivas, desprovidas de vontade e espírito. Homens devem aspirar
por honra, coragem e ações imortalizantes. Homens são pensados como heróis e
capazes de grandes feitos, o que requer deles subjugar produtivamente a natureza.
Homens estão o tempo todo em competição uns com os outros. Mulheres são
responsáveis pelo cuidado de indivíduos bem como da humanidade em si. Porém, as
suas ações permanecem socialmente desvalorizadas e esquecidas no processo de
desenvolvimento teórico, enquanto a sexualização das mulheres é a fonte da sua
subordinação aos homens e garante a sua marginalização social.[vi]

Esta noção também determina a ideia de ordem subjacente às sociedades modernas


como um todo. Mais que isso, a habilidade e a disposição para produzir e o dispêndio
de tempo racional, econômico e efetivo também determinam o modelo civilizacional
nas suas estruturas objetivas como uma totalidade de relações – tanto seus
mecanismos e história quanto as máximas da agência individual. Uma formulação
provocativa poderia sugerir que o gênero masculino deve ser entendido como o
gênero do capitalismo, tendo em mente que tal entendimento dualista de gênero é,
claro, a concepção dominante de gênero na modernidade. O modelo civilizacional
produtor de mercadorias que isto requer tem a sua fundação na opressão e na
marginalização de mulheres e no simultâneo descaso com a natureza e o social.
Sujeito e objeto, dominação e subjugação, homem e mulher são, assim, dicotomias
típicas, contrapartes antagônicas internas ao patriarcado produtor de
mercadorias[vii].

Porém, é importante evitar mal-entendidos a esse respeito. Valor-dissociação é,


nesse sentido, algo a ser entendido como um metaconceito, já que estamos
preocupados com a exegese teórica em um alto nível de abstração. Isto significa, para
unidades ou sujeitos empíricos singulares, que estes não são capazes nem de escapar
a padrões socioculturais e nem de se tornar parte destes padrões. Além disso, como
veremos, modelos de gênero estão sujeitos a mudanças históricas. Portanto, é
importante evitar interpretações simplificadas da teoria do valor-dissociação que se
assemelhem, por exemplo, à ideia de “nova feminilidade” associada ao feminismo da
diferença dos anos 1980 ou mesmo ao “princípio de Eva”, atualmente sendo
propagado por conservadores alemães[viii].

O que devemos trazer para o primeiro plano nisso tudo é que o trabalho abstrato e o
trabalho doméstico, junto com os conhecidos padrões culturais de masculinidade e
feminilidade, determinam um ao outro simultaneamente. A velha questão “o ovo ou
a galinha” não tem sentido nesse contexto. Ainda assim, tal abordagem não-dialética
é característica de críticos desconstrutivistas que insistem que a masculinidade e a
feminilidade devem, inicialmente, ser produzidas culturalmente antes que uma
distribuição das atividades por gênero possa acontecer[ix]. Frigga Haug também
parte do pressuposto ontologizante de que o significado cultural se amarra ao longo
da história a uma divisão do trabalho previamente definida em termos de gênero.[x]

Dentro do moderno patriarcado produtor de mercadorias se desenvolvem,


novamente, uma esfera pública, que em si mesma reúne um número de esferas
(economia, política, ciência e daí por diante) e uma esfera privada. A esfera privada é
principalmente atribuída às mulheres. Estas diferentes esferas são, por um lado,
relativamente autônomas e, por outro, mutuamente determinadas – isto é, estão em
relação dialética uma com a outra. É importante, então, que a esfera privada não seja
mal-entendida como uma emanação do valor, mas, antes, como uma esfera
dissociada.

O que é requerido é uma esfera para a qual ações de cuidado e amor possam ser
deportadas e que esteja em posição oposta às lógicas do valor, de poupar tempo e da
sua moralidade (competição, lucro, desempenho). Esta relação entre esfera privada e
o setor público também explica a existência de alianças e instituições masculinas que
se fundaram, por meio de uma divisão afetiva, contra tudo o que é feminino. Como
consequência, a própria base do Estado e da política modernas, bem como os
princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, repousam sobre a fundação de
alianças masculinas desde o século dezoito.

Isto não quer dizer, entretanto, que o patriarcado reside nas esferas criadas por esse
processo de dissociação. Por exemplo, as mulheres sempre foram ativas, em alguma
medida, na esfera da acumulação. Ainda assim, a dissociação se torna aparente
também aqui já que, apesar do sucesso de Angela Merkel e outras, a existência de
mulheres na esfera pública é geralmente desvalorizada e as mulheres permanecem
amplamente impedidas de uma mobilidade ascendente. Tudo isto indica que o valor-
dissociação é um princípio social formal universal que é localizado em um alto nível
de abstração correspondente e que não pode ser mecanicamente separado em
diferentes esferas. Isto significa que os efeitos do valor-dissociação penetram todas
as esferas, incluindo todos os níveis da esfera pública.

Valor dissociação como princípio social básico e a crítica da lógica


identitária

O valor-dissociação como prática crítica impede abordagens de crítica identitária.


Isto é, não permite abordagens que reduzam a análise ao nível de estruturas e
conceitos que subsumam todas as contradições e não-identidades, tanto em relação
à atribuição de mecanismos, estruturas e características do patriarcado produtor de
mercadorias a sociedades que não produzem mercadorias, quanto à homogeneização
de diferentes esferas e setores dentro do próprio patriarcado produtor de
mercadorias, ignorando diferenças qualitativas.

O ponto de partida necessário não é somente o valor, mas a relação do valor-


dissociação como estrutura social fundamental que corresponde ao pensamento
androcêntrico universalista. Afinal, o que é importante aqui não é somente que a
média de tempo de trabalho ou o trabalho abstrato determinem o dinheiro como
forma equivalente. Mais importante é a observação de que o próprio valor precisa
definir como menos valioso e dissociar o trabalho doméstico, o não-conceitual, e
tudo relacionado à não-identidade, ao sensível, ao afetivo e ao emocional.

Entretanto, a dissociação não é congruente com o não-idêntico em Adorno. Mais


precisamente, o dissociado representa o lado oculto do próprio valor. Aqui, a
dissociação deve ser entendida como uma pré-condição que garante que o
contingente, o irregular, o não analítico, aquilo que não pode ser compreendido pela
ciência, permaneça escondido e não iluminado, perpetuando um pensamento
classificatório que não é capaz de registrar e manter qualidades particulares,
diferenças inerentes, rupturas, ambivalências e assincronias.

Inversamente, isto significa para a “sociedade socializada” do capitalismo, para


tomar emprestado uma expressão de Adorno, que estes níveis e setores não podem
ser entendidos em relação uns com os outros como elementos irredutíveis do real,
mas que eles também devem ser examinados, em primeiro lugar, nas suas relações
objetivas internas correspondentes à noção de valor-dissociação como princípio
formal da totalidade social que constitui uma determinada sociedade ao nível da
ontologia e da aparência. Porém, em todos os momentos o valor-dissociação também
reconhece as suas próprias limitações como teoria.

A auto-interrogação da teoria do valor-dissociação aqui deve ir longe o bastante para


evitar se posicionar como um princípio absoluto da forma social. Aquilo que
corresponde ao seu conceito não pode, afinal, ser elevado ao status de contradição
principal, e a teoria do valor-dissociação pode, como a teoria do valor, não ser
entendida como uma teoria da lógica unitária [logic of the one]. Na sua crítica da
lógica identitária, portanto, a teoria do valor-dissociação permanece fiel a si mesma
e pode persistir somente na medida em que ela se relativiza e, em certos momentos,
se desautoriza. Isso também significa que a teoria do valor-dissociação deve abrir o
mesmo espaço para outras formas de disparidade social (incluindo disparidade
econômica, racismo e antisemitismo).[xi]

Valor-dissociação como processo histórico

De acordo com as premissas epistemológicas da formação da teoria do valor-


dissociação, nós não podemos recorrer a modelos analíticos lineares ao examinamos
os desenvolvimentos em uma variedade de regiões globais. Desenvolvimentos
geralmente determinados pela forma-mercadoria e a forma associada do patriarcado
não se realizam da mesma maneira e sob as mesmas circunstâncias em todas as
sociedades (especialmente em sociedades que foram anteriormente caracterizadas
por relações de gênero simétricas e as quais não adotaram inteiramente relações de
gênero da modernidade até os dias de hoje).

Além disso, nós devemos colocar em primeiro plano relações e estruturas


paternalistas alternativas que, embora amplamente sobrepostas pelo patriarcado
ocidental no contexto dos desenvolvimentos econômicos globais, não perderam
totalmente as suas idiossincrasias. Além do mais, nós devemos considerar o fato de
que ao longo da própria história da modernidade ocidental ideias de masculinidade e
feminilidade variaram. Tanto a concepção moderna de trabalho quanto o
entendimento dualista de gênero são produtos e andam de mãos dadas com os
desenvolvimentos específicos que levam à dominação do capitalismo.

Foi somente no século XVIII que aquilo que Carol Hagermann-White chama de
moderno “sistema dual de gênero” emergiu, o qual levou àquilo que Karen Hausen
chama de “polarização das características de gênero”. Antes disso mulheres eram
amplamente consideradas como apenas outra variante de homem, que é uma das
razões pelas quais as ciências históricas e sociais sublinharam ao longo dos últimos
quinze anos a universalidade do modelo de gênero único sobre o qual as sociedades
pré-burguesas eram baseadas. Mesmo a vagina era, no contexto deste modelo,
frequentemente entendida como um pênis, invertido e empurrado para a parte
inferior do corpo[xii].

Apesar do fato de que as mulheres eram amplamente consideradas como inferiores,


antes do desenvolvimento de uma esfera pública moderna de larga escala ainda
existia para elas uma variedade de possibilidades para ganhar influência social. Em
sociedades pré-modernas e no início da modernidade o homem ocupou uma posição
amplamente simbólica de hegemonia. As mulheres não estavam ainda
exclusivamente confinadas à vida doméstica e à maternidade, como tem acontecido
desde o século dezoito. As contribuições das mulheres para a reprodução material em
sociedades agrárias eram consideradas como igualmente importantes às
contribuições dos homens[xiii].

Embora as modernas relações de gênero e as polarizações características dos papéis


de gênero se encontrassem inicialmente restringidas à burguesia, elas rapidamente
se espalharam a todas as esferas sociais com a universalização da família nuclear no
contexto de ascensão do fordismo até seu predomínio na década de 1950.

O valor-dissociação não é, portanto, uma estrutura estática, como uma série de


modelos estruturalistas sociológicos reivindicam, mas deveria, pelo contrário, ser
compreendido como um processo. Na pós-modernidade, por exemplo, o valor-
dissociação adquire uma nova valência. Mulheres são agora amplamente
consideradas como aquilo que Regina Becker-Schmidt chama de “duplamente
socializadas”, o que significa que elas são igualmente responsáveis pela família e
pela profissão[xiv]. O que é novo sobre isto, entretanto, não é este fato em si.
Afinal de contas, mulheres têm sido ativas em uma variedade de profissões e
negócios. A característica particular da pós-modernidade a respeito disto é que a
dupla socialização das mulheres ao longo dos últimos anos iluminou as contradições
estruturais que acompanham este desenvolvimento. Como indicado acima, uma
análise deste desenvolvimento deve se iniciar com um entendimento dialético do
relacionamento entre indivíduo e sociedade. Isto significa que o indivíduo não está
em nenhum momento inteiramente subsumido dentro de padrões culturais e
estruturais objetivos, nem podemos assumir que estas estruturas se encontrem em
uma relação puramente externa com relação ao indivíduo. Deste modo nós estamos
aptos a ver claramente as contradições da dupla socialização que estão conectadas à
crescente diferenciação do papel das mulheres na pós-modernidade, a qual emerge
ao lado das tendências em direção à individualização característica da pós-
modernidade. Análises atuais de filmes, publicidade e literatura também indicam que
as mulheres não mais são vistas principalmente como mães e donas de casa.

Consequentemente, não é apenas desnecessário, mas, de fato, altamente suspeito,


sugerir que nós devemos desconstruir o moderno dualismo de gênero, como
reivindicam a teoria queer e sua voz principal, Judith Butler. Esta vertente da teoria
enxerga a subversão interna do dualismo de gênero burguês por meio de repetidas
práticas de paródia que podem ser encontradas nas subculturas gay e lésbica como
uma tentativa de revelar a “incredulidade radical” da identidade moderna de
gênero[xv]. O problema com tal abordagem, entretanto, é que aqueles elementos que
deveriam ser parodiados e subvertidos já se tornaram obsoletos em sentido
capitalista. Já há algum tempo nós temos testemunhado a desconstrução realmente
existente, que se torna visível na dupla socialização das mulheres, mas também
quando examinamos a moda e os hábitos transformados de homens e mulheres.

Contudo, isto tem acontecido sem erradicar fundamentalmente a hierarquia de


gênero. Ao invés de criticar tanto o imaginário de gênero classicamente moderno
quanto o pós-moderno e flexível, Butler, em última análise, meramente afirma a
realidade (de gênero) pós-moderna. A abordagem puramente culturalista de Butler
não pode oferecer respostas para as questões atuais, e na verdade nos apresenta o
próprio problema das relações hierárquicas de gênero na pós-modernidade em um
disfarce progressista como uma solução.

A dialética da essência e aparência e o asselvajamento[xvi] do patriarcado


produtor de mercadorias na era da globalização
Na tentativa de analisar relações de gênero pós-modernas é importante insistir na
dialética entre essência e aparência. Isto significa que mudanças nas relações de
gênero devem ser entendidas em relação aos mecanismos e estruturas do valor-
dissociação, que determinam o princípio formal de todos os planos sociais. Aqui
torna-se aparente que, em particular, o desenvolvimento das forças produtivas e da
dinâmica de mercado, ambos dependendo do valor-dissociação, minam a sua própria
pré-condição na medida em que encorajam o desenvolvimento das mulheres para
além do seu papel tradicional.

Desde a década de 1950 um número cada vez maior de mulheres foi integrado ao
trabalho abstrato e ao processo de acumulação, acompanhado por uma gama de
processos de racionalização da vida doméstica, mais opções para o controle de
natalidade, e a equalização gradual do acesso à educação[xvii]. Consequentemente, a
dupla socialização das mulheres também passou por mudanças, e agora reside em
um nível mais alto da hierarquia social e, analogamente, gera níveis mais altos de
autovalorização para as mulheres. Mesmo que atualmente uma grande porcentagem
das mulheres tenha sido integrada à sociedade oficial elas ainda são responsáveis
pela vida doméstica e pelas crianças, precisam lutar mais que os homens para
ascender na hierarquia profissional e os seus salários são, em média,
significativamente menores que os dos homens.

Portanto, a estrutura do valor-dissociação mudou, mas o princípio continua bastante


vivo. Neste contexto, pode não ser surpreendente sugerir que nós aparentamos
experimentar um retorno a um modelo de gênero único, porém com o mesmo
conteúdo familiar: as mulheres são homens, só que diferentes. Porém, como este
modelo também passou pelo clássico processo moderno do valor-dissociação ele se
manifesta de forma diferente do que em tempos pré-modernos[xviii].

As tradicionais relações de gênero burguesas não são mais apropriadas para o atual
“turbo-capitalismo” e a sua rigorosa demanda por flexibilidade. Uma gama de
identidades flexíveis compulsórias emerge, mas essas são, no entanto, ainda
representadas como diferenciadas por gênero[xix]. A velha imagem da mulher se
tornou obsoleta e a mulher duplamente socializada se tornou o papel dominante.
Além disso, análises recentes sobre globalização e relações de gênero sugerem que,
após um certo período no qual parecia que as mulheres seriam finalmente capazes de
gozar de maiores liberdades imanentes ao sistema, nós também testemunhamos um
crescente asselvajamento do patriarcado.
É claro que, também neste caso, devemos considerar a variedade de diferenças
sociais e culturais que correspondem a uma variedade de regiões globais. Da mesma
forma, devemos observar a posição diferentemente situada das mulheres em um
contexto em que a lógica de vencedores e vencidos ainda domina, mesmo que os
vencedores estejam sob ameaça de desaparecer no abismo aberto pela atual
destruição da classe média[xx]. Como mulheres bem situadas são capazes de pagar
pelos serviços de trabalhadoras imigrantes mal remuneradas, nós estamos
testemunhando uma redistribuição de, por exemplo, cuidado pessoal, de idosos e
crianças dentro do plano de existência feminino.

Para uma grande parte da população o asselvajamento do patriarcado significa que


podemos esperar condições similares às dos guetos negros dos Estados Unidos ou
das favelas de países do Terceiro Mundo: mulheres serão, da mesma forma,
responsáveis pelo dinheiro e pela sobrevivência. As mulheres serão crescentemente
integradas ao mercado mundial sem ter a oportunidade de assegurar a própria
existência. Elas educam crianças com a ajuda de mulheres da família e vizinhas
(outro exemplo de redistribuição de cuidado pessoal e áreas de trabalho correlatas),
enquanto os homens vêm e vão, se movem de um emprego para outro e de uma
mulher para outra, que periodicamente tem de sustentá-los.

O homem não mais ocupa a posição de provedor dada a crescente precariedade de


relações de emprego e a erosão de tradicionais estruturas familiares[xxi]. A crescente
individualização e atomização das relações sociais procede ante o pano de fundo de
formas de existência sem garantias, e continua mesmo em tempos de grave crise
econômica sem principalmente erradicar a tradicional hierarquia de gênero,
paralelamente a uma ampla erradicação do Estado de Bem-estar Social e das medidas
compulsórias de administração da crise.

O valor-dissociação como princípio social formal, consequentemente, meramente se


retira das restrições estáticas e institucionais da modernidade (em particular, a
família e o trabalho). O patriarcado produtor de mercadorias, portanto, experimenta
um crescente asselvajamento sem abandonar as relações existentes entre valor (ou
melhor, trabalho abstrato) e os elementos dissociados da reprodução. Aqui também
precisamos ressaltar que estamos, atualmente, experimentando um correspondente
acirramento da violência masculina, variando da violência doméstica a homens-
bomba.

Em relação a estes últimos, devemos ainda notar que não é somente o Islã
fundamentalista que tenta reconstruir “autênticas” relações de gênero religiosas
patriarcais. De fato, é o modelo de civilização patriarcal ocidental que deve ser o foco
da nossa crítica. Simultaneamente, nós também somos confrontados com uma
transição em nível psicológico. Na pós-modernidade emerge um “código afetivo de
gênero” que corresponde ao tradicional código afetivo masculino[xxii]. Ainda assim,
velhas estruturas afetivas necessariamente continuam também a ter um papel
importante já que elas garantem que, mesmo nos tempos das relações pós-modernas
de gênero único, as mulheres continuem a assumir responsabilidades dissociadas,
possibilitando a universalidade da mulher com diversas crianças que ainda dá um
jeito de ser doutora, cientista, política e muito mais. Isso pode ocorrer na forma de
um retorno a papéis e ideais femininos tradicionais, particularmente em tempos de
grande crise e instabilidade.

Embora o turbo-capitalismo demande identidades flexíveis específicas de gênero,


não podemos presumir que os modelos de gênero pós-modernos correspondentes,
como o modelo da mulher duplamente socializada, sejam permanentemente capazes
de estabilizar a reprodução no contexto da crise capitalista de hoje. Afinal de contas,
o atual estágio do capitalismo é caracterizado pelo “colapso da modernização” e uma
inversão associada do racionalismo em irracionalismo[xxiii]. A dupla socialização da
mulher individualizada deve neste contexto (aparentemente de forma paradoxal) ser
entendida como servindo um papel importante e funcional ao patriarcado produtor
de mercadorias, mesmo que este último esteja lentamente se desintegrando.

Organizações dedicadas à administração da crise em países do Terceiro Mundo, por


exemplo, são frequentemente lideradas por mulheres (embora deva-se também
reconhecer que as atividades de reprodução no geral têm crescentemente
desempenhado um papel subordinado). Exemplar do desenvolvimento no Ocidente
neste aspecto é Frank Schirrmacher [jornalista conservador e co-editor do
Frankfurter Allgemeine Zeitung]. No seu livro de 2006 Minimum ele descreve “a queda
e o renascimento da nossa sociedade”, contexto no qual Schirrmacher quer atribuir
às mulheres o papel de administradoras da crise, acreditando que elas desempenham
uma importante função como mulheres dos escombros [Trummerfrauen] e como
pessoal de limpeza e descontaminação.[xxiv] Como forma de justificar tais
afirmações Schirrmacher mobiliza linhas de argumentação biológicas e
antropológicas rasas para explicar o colapso generalizado das relações sociais e de
gênero e para oferecer pretensas soluções a serem carregadas nas costas das
mulheres.

Como forma de evitar pseudo-soluções é necessário analisar as crises sociais atuais


em relação com os seus contextos sociais e históricos, como a teoria do valor-
dissociação enfatiza. Partindo desta base, também é possível perguntar quais
conclusões teóricas e práticas importantes devem ser derivadas dos dilemas da
socialização de um valor-dissociação que hoje cada vez mais reduz o homem e a
natureza aos níveis mais básicos da existência e que não pode mais ser endereçado
com programas reformistas da velha esquerda ou keynesianos.

No mesmo sentido, abordagens desconstrutivistas e pós-coloniais, que por exemplo


interpretam o racismo de forma puramente cultural, são incapazes de lidar com a
crise atual, assim como abordagens pós-operaístas que se recusam integralmente a
lidar com o problema geral da socialização do valor-dissociação e, ao contrário,
buscam refúgio em noções religiosas de multidão e agem como se este conceito
incluísse respostas ao racismo e ao sexismo[xxv]. O que é requerido aqui, portanto, é
uma nova virada em direção à crítica da economia política.

Tal crítica, no entanto, não pode mais ser levada a cabo na sua forma tradicional
focada em uma metodologia androcêntrica-universalista que faça uma ontologia do
trabalho, mas, ao contrário, deve incluir uma virada em direção à teoria radical do
valor-dissociação e as suas consequências epistemológicas.

Conclusão

O que tentei demonstrar esquematicamente neste ensaio é a necessidade de pensar


economia e cultura em sua identidade contraditória e não-identitária a partir da (ela
mesma contraditória) perspectiva do valor-dissociação como um princípio social
básico. Valor-dissociação, então, deve também ser entendido não como uma
estrutura estática, mas, ao invés disso, como um processo historicamente dinâmico.
Esta abordagem recusa a tentação da crítica identitária de forçosamente subsumir o
particular dentro do geral.

Ao contrário, ela lida com a tensão entre conceito e diferenciação (sem dissolver o
conceito dentro do indistinto, do infinito) e está, portanto, apta a falar do processo
atual de homogeneização e diferenciação de maneiras que podem também endereçar
conflitos relacionados, incluindo a violência masculina.

É importante notar que a teoria do valor-dissociação, na medida em que o último


constitui um princípio social básico (e, portanto, não está unicamente preocupado
com relações de gênero em um sentido estrito) deve às vezes negar a si mesma, na
medida em que ela deve abrir espaço igual, ao lado do sexismo, para análises do
racismo, antissemitismo, e disparidades econômicas, evitando qualquer
reivindicação em direção à universalidade. Apenas relativizando sua própria posição
e papel desta maneira a teoria do valor-dissociação será capaz de existir em primeiro
lugar.

*Roswitha Scholz é téorica marxista, vinculada ao grupo que edita a


revista Exit!. Autora, entre outros livros, de Homo sacer e os ciganos (Antígona).

Tradução: Daniel Manzione Giavarotti & Clara Lemme Ribeiro.

Revisão: Ana Carolina Gonçalves Leite.

Publicado originalmente no livro Marxism and critique of value

Notas

[i] Ver, por exemplo, SCHOLZ, Roswitha. Das Geschlecht des Kapitalismus.
Feministische Theorie und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats. Unkel:
Horlemann, 2000, pp. 61 e seguintes, 107 e seguintes, 184 e seguintes*, e SCHOLZ,
Roswitha. “Die Theorie der geschlechtlichen Abspaltung und die Kritische Theorie
Adornos”. In: KURZ, Robert, SCHOLZ, Roswitha e ULRICH, Jörg (eds.) Der Alptraum
der Freiheit. Perspektiven radikaler Gesellschaftskritik. Blaubeuren: Verlag Ulmer
Manuskripte, 2005.

Nota dos tradutores: cf. tradução de excertos para o português. SCHOLZ, Roswitha. O
sexo do capitalismo [excertos]. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz6.htm.

[ii] KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; KURZ,
Robert. Kapitalismus: ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Frankfurt: Eichborn Verlag,
1999; POSTONE, Moishe. “Anti-semitismo e nacional-socialismo”. Sinal de Menos,
ano 4, número 8, 2012, pp. 14-28; POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação
social. São Paulo: Boitempo editorial, 2014.

[iii] Nota dos editores: Ver MARX, Karl. “A fórmula geral do capital”. In: MARX, Karl.
O Capital, v. 1, t. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

[iv] Nota dos tradutores: sugerimos a substituição desta expressão por outra, qual
seja, “modernização retardatária”, já adotada quando da publicação d’O colapso da
modernização de Robert Kurz (1993) no Brasil, de modo a reiterar a ideia de que tais
esforços modernizadores nunca lograram alcançar os níveis de produtividade do
capital dos países centrais, mantendo-se sempre numa posição irremediavelmente
retardatária com relação àqueles.

[v] HAUG, Frigga. Frauen-Politiken. Berlim: Argument, 1996, pp. 229 e seguintes.

[vi] Nota dos tradutores: registramos aqui nosso incômodo com a ausência de
qualquer menção ao processo de racialização imanente à imposição do patriarcado
como modelo civilizacional, entendida aquela também como forma de manifestação
da dissociação, como a própria autora afirma na conclusão deste artigo e em outros
de seus ensaios. Está em aberto, por outro lado, o tratamento crítico a este problema
à luz do argumento da autora que nos convida a considerar a crise que o moderno
patriarcado produtor de mercadorias vem desencadeando no padrão de reprodução
das práticas e características historicamente atribuídas a homens e mulheres, o que
igualmente se manifesta nos processos de racialização. Embora Achille Mbembe fale
de um “devir-negro do mundo” (2018), tese que confirma o caráter processual da
racialização e sua modificação na crise, não parece haver dúvidas de que negros e
brancos experimentam aquela última de formas diferentes.

[vii] Ibid

[viii] HERMAN, Eva. Das Eva-Prinzip. Munique: Pendo, 2006.

[ix] GILDMEISTER, Regine e WATTERER, Angelika. “Wie Geschlechter gemacht


werden. Die soziale Konstruktion der Zwei-Geschlechtlichkeit und ihre Reifizierung
in der Frauenforschung”. In: Traditionen Brüche. Entwicklungen feministischer Theorie.
Friburgo: Kore, 1992, pp. 214 e seguintes.

[x] HAUG, Frigga. Frauen-Politiken, pp. 127 e seguintes.

[xi] Já que o foco da investigação que temos em mãos é as relações de gênero


modernas, não sou capaz de discutir essas outras formas de disparidade social em
detalhe. Para uma análise mais substancial, ver SCHOLZ, Roswitha. Differenzen der
Krise — Krise der Differenzen. Die neue Gesellschaftskritik im globalen Zeitalter und der
Zusammenhang von “Rasse”, Klasse, Geschlecht und postmoderner Individualisierung.
Unkel: Horlemann, 2005. Nota dos tradutores: cf. tradução do índice em
http://www.obeco-online.org/livro_crise_diferenca.html e artigo de síntese do
argumento do livro em http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz3.htm.
[xii] LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1990.

[xiii] HEINTZ, Bettina e HONEGGER, Claudia. “Zum Strukturwander weiblicher


Widerstandsformen”. In: HEINTZ, Bettina e HONEGGER, Claudia (eds.) Listen der
Ohnmacht. Zur Sozialgeschichte weiblicher Widerstandsformen. Frankfurt: Europäische
Verlagsanstalt, 1981, p. 15.

[xiv] Nota dos tradutores: em países de modernização retardatária como o Brasil a


mulher duplamente socializada foi uma figura constante na reprodução das famílias
trabalhadoras urbanas embora, seguindo o raciocínio de Roswitha Scholz, tal não
tenha significado uma superação do valor-dissociação como princípio formal básico
da experiência social.

[xv] BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[xvi] Nota dos tradutores: a ideia de um asselvajamento do patriarcado não nos


parece adequada, dado que reitera uma concepção iluminista do processo
civilizatório em oposição a um estado de natureza selvagem e, portanto, violento.
Preferimos pensar como um processo de recrudescimento do patriarcado provocada
pela crise do capital e o trabalho.

[xvii] BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 147 e seguintes.

[xviii] HAUSER, Kornelia. “Die Kulturisierung der Politik. ‘Anti-Political-


Correctness’ als Deutungskämpfe gegen den Feminismus”. In: Bundeszentrale für
politische Bildung: Aus Politik und Zeitgeschichte. Bonn: Beilage zur Wochenzeitung das
Parlament, 1996, p. 21.

[xix] Comparar com SCHULTZ, Irmgard. Der erregende Mythos vom Geld. Die neue
Verbindung von Zeit, Geld und Geschlecht im Ökologiezeitalter. Frankfurt: Campus
Verlag, 1994, pp. 198 e seguintes e WICHTERICH, Christa. Die globalisierte Frau.
Berichte aus der Zukunft der Ungleichheit. Reinbeck: Rowohlt, 1998.

[xx] Comparar com KURZ, Robert. “O último estádio da classe média”, Folha de São
Paulo, 19 de setembro de 2004. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/rkurz173.htm.

[xxi] Comparar com SCHULTZ, Mythos, pp. 198 e seguintes.

[xxii] Comparar com HAUSER, “Kulturisierung”, p. 21.


[xxiii] Para uma análise mais detalhada do estágio atual do capitalismo e o seu
afastamento das formas clássicas da modernidade, bem como as origens do termo
“colapso da modernização”, ver KURZ, O colapso da modernização. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1992.

[xxiv] Nota dos editores: Mulheres que ajudaram a limpar os destroços após a
Segunda Guerra Mundial – literalmente: “mulheres dos escombros”. Ver também:
THÜRMER-ROHR, Christina. “Feminisierung der Gesellschaft. Weiblichkeit als
Putz- und Entseuchungsmittel”. In: THÜRMER-ROHR, Christina (ed.)
Vagabundinnen. Feministische Essays. Berlim: Orlanda Frauenverlag, 1987.

[xxv] Cf. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001 e
SCHOLZ, Differenzen der Krise — Krise der Differenzen, pp. 247 e seguintes.

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