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Capitalismo artista e mitologia da felicidade

Não só a ideia de crítica artista não explica as forças reais que acarretaram as metamorfoses
transestéticas do capitalismo, como Luc Boltanski e Ève Chiapello superestimam o papel desta
nas transformações do “espírito” do capitalismo. Sabemos desde Max Weber que o capitalismo
necessita de um conjunto de crenças, de um “espírito” que contribua para justificar sua ordem,
motivar os homens, favorecer a interiorização das coerções e a adesão ao sistema. Em sua forma
original, o espírito do capitalismo coincidiu com a criação de uma nova relação com a atividade
profissional, que deveria ser exercida como uma “vocação”, um dever, uma finalidade em si da
existência. O espírito primeiro do capitalismo se afirma na forma de deveres que prescrevem
uma conduta racional no próprio interior do trabalho, de uma ética puritana que condena a
fruição da riqueza e dos prazeres que a existência pode proporcionar. Assim, o espírito do
capitalismo não nasceu do interior de si mesmo, a partir de uma lógica utilitarista: a conduta
racional prescrita deita suas raízes em crenças e práticas religiosas, no espírito do ascetismo
cristão.113 Evidentemente, o mesmo já não acontece com o novo espírito do capitalismo, que se
define por um sistema de legitimidade diametralmente oposto, centrado na valorização das
fruições materiais, no hedonismo do bemestar, do divertimento e do lazer. Neste caso, a
justificação fundamental do capitalismo artista é a elevação perpétua do nível de vida, o bem-
estar para todos, as satisfações incessantemente renovadas, a perspectiva de uma vida bela e
excitante. Assim, um sistema de justificação moral foi substituído por uma legitimação de tipo
estético, pois valoriza as sensações, as fruições do presente, o corpo de prazer, a leveza da vida
consumista. Notemos que essa ordem de valores não encontra suas raízes últimas na “crítica
artista” radical, e sim, muito mais profundamente, na ideologia individualista dos direitos
humanos que afirma a universalidade dos direitos à igualdade e à felicidade. A ideologia do bem-
estar consumista não foi construída em resposta às rejeições à modernidade desumanizante do
capitalismo, mas pelo desenvolvimento de um modelo individualista, materialista e mercantil do
ideal democrático da felicidade. Ao mesmo tempo, não são mais argumentações morais que
constroem no dia a dia a legitimidade do capitalismo, mas imagens, estimulações, uma
ambiência, uma espécie de utopia estética fabricada pelas mídias, pelos objetos, vitrines,
publicidade, cinema, turismo. É preciso se convencer de que o capitalismo artista não é apenas
produtor de bens e de serviços mercantis, ele é ao mesmo tempo “o lugar principal da produção
simbólica”,114 o criador de um imaginário social, de uma ideologia, de mitologias significantes.
A sociedade de consumo “é o próprio mito dela mesma”, escrevia com razão Baudrillard, um
mito sem grandeza, sem exterioridade nem transcendência, mas que constitui “um discurso
pleno, autoprofético, que a sociedade faz sobre si mesma, um sistema de interpretação
global”,115 uma constelação inédita de valores capaz de fazer as massas sonharem. Assim, o
éthos do capitalismo artista se constitui muito menos incorporando a contestação radical dos
valores do capitalismo do que inventando, sob a pressão do jogo da concorrência, dos
imperativos de inovação e de conquista dos mercados, uma cultura materialista, hedonista e
individualista da felicidade que deita suas raízes nos valores democráticos oriundos das Luzes. O
papel histórico atribuído à crítica artista é superestimado: foi principalmente o próprio
funcionamento da economia moderna e de seus mecanismos concorrenciais que engendrou o
conjunto de fins, de valores, de mitologias, em outras palavras, “as significações sociais
imaginárias” (Castoriadis) típicas do novo espírito capitalista. Não se deve reduzir este às ideias-
valores que são a base da empresa em rede e das operações de apropriação das exigências de
liberdade e de autenticidade, pois ele é constituído, em seu cerne, pelos ideais hedonistas e pela
“fun morality”: uma ideologia que se generalizou, desde os anos 1950, antes mesmo dos golpes
da contracultura. E esse sistema de justificação “estética” decorre mais da dinâmica da ideologia
individualista e da busca de novas possibilidades de lucro e de mercado do que da crítica artista
que estigmatiza a ordem mercantil liberal. É preciso ver no novo espírito do capitalismo muito
menos uma apropriação desta última do que uma invenção do próprio mercado, gerador de
razões culturais e de significações simbólicas. É por isso que não se pode subscrever a ideia de
que “o operador principal de criação e de transformação do espírito do capitalismo é a
crítica”.116 Foi o capitalismo que possibilitou difundir em todas as camadas sociais as normas
hedonistas da realização pessoal. Se tomarmos certa distância em relação ao ponto de vista dos
atores da época, a crítica artista dos anos 1960-70 apenas fez uma lógica estética já encetada, de
sua parte, pelo próprio capitalismo de consumo dar mais um passo à frente, embora radical. Não
é exato ver na crítica do inautêntico o elemento-chave que possibilitou a virada do
neocapitalismo. Para além de suas antinomias evidentes, o capitalismo de consumo e as correntes
da crítica artista trabalharam juntos para o mesmo descrédito do antigo sistema de legitimação da
modernidade disciplinar. A análise de Boltanski e Chiapello subestima o poder que tem o
capitalismo de abalar as configurações ideológicas tradicionais e inventar seu sistema de
legitimidade. Se os ideais da contracultura foram capazes de transformar os costumes e os
valores e de se impor no corpo social, é que o capitalismo de consumo já havia, de sua parte,
dissolvido a cultura disciplinarautoritária à moda antiga. Desse ponto de vista, a obra própria do
capitalismo, sob a pressão permanente da concorrência, sem dúvida foi mais significativa do que
os valores em nome dos quais ele foi radicalmente criticado e contestado.

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