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A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E SUA

FENOMENOLOGIA HISTÓRICA
Giovanni Alves

A crise estrutural do capital que emergiu em meados da década de 1970,


inaugurou uma nova temporalidade histórica do desenvolvimento
civilizatório, caracterizada por um conjunto de fenômenos sociais
qualitativamente novos que compõem a fenomenologia do capitalismo
global com seus “trinta anos perversos” (1980-2010).

Primeiro, nos últimos trinta anos tivemos uma época histórica de reestruturações
capitalistas nas mais diversas instâncias da vida social. O sistema mundial do capital
como sistema social global reestruturou-se efetivamente numa dimensão inédita. Por
exemplo, a nova reestruturação produtiva do capital impulsionou um complexo de
inovações organizacionais, tecnológicas e sociometabolicas nas grandes empresas e na
sociedade em geral sob a direção moral-intelectual do “espírito do toyotismo”. A
manipulação reflexiva ou a “captura” da subjetividade tornou-se efetivamente o modo
de operar do controle sociometabolico do capital. A luta de classes e as derrotas das
forças políticas do trabalho na década de 1970 conduziram a reestruturação política do
capital, constituindo o Estado neoliberal e as políticas de liberalização comercial e
desregulamentação financeira; e o pós-modernismo e o neopositivismo permearam a
reestruturação cultural. Nos “trinta anos perversos”, o capitalismo financeirizado,
toyotista, neoliberal e pós-moderno levou a cabo uma das maiores revoluções culturais
da história.

Portanto, capitalismo global tornou-se a nova etapa de desenvolvimento do capitalismo


histórico, um largo processo histórico que percorreu pouco mais de trinta anos e nos
projetou noutra dimensão espaço-temporal hoje mais clara do que nunca. Ele surgiu
com a grande crise da década de 1970 e implicou outra natureza da dinâmica social
capitalista que se distingue radicalmente de outras épocas historicas. A década de 70
significou, no plano histórico-mundial, a inauguração de um “corte histórico” no
processo civilizatório do capital. Por isso, surgiram novos fenômenos sociais
radicalmente novos que merecem ser investigados numa perspectiva rigorosamente
dialética. Enfim, alterou-se o timing da luta de classes e da dinâmica sócio-reprodutiva
do sistema do capitalismo mundial.

Por exemplo, a precarização do trabalho que caracteriza o capitalismo histórico assumiu


uma dimensão estrutural e fez emergir a precarização do homem-que-trabalha. Trata-se
de uma nova dimensão da precarização do trabalho que não se reduz a precarização
salarial. A precarização do homem-que-trabalha não se trata da mera afirmação do
trabalho estranhado, mas sim a sua radicalidade qualitativamente nova capaz de
desefetivar o ser genérico do homem em largas camadas sociais do proletariado hoje,
com impactos na saúde dos homens e das mulheres que trabalham. A amplitude e
intensidade do fenômeno do estranhamento hoje alterou o significado político da
precarização do homem-que-trabalha. O tema da saúde do trabalhador numa perspectiva
radical tornou-se muito importante para se deixar a cargo apenas de médicos e
profissionais de saúde propriamente dita. 

A condição de proletariedade que caracteriza a forma de ser da “classe-que-vive-do-


trabalho” ampliou-se, tornando-se uma condição universal que explicita, principalmente
nos países capitalistas mais desenvolvidos, uma nova camada social do proletariado que
contém, em si e para si, as contradições candentes da nova ordem social do capitalismo
global: o precariado. Como salientamos alhures, o precariado não é uma nova classe
social, mas sim uma nova camada da classe social do proletariado que expõem, em si, a
insustentabilidade civilizatória do capital.

Entretanto, o sistema mundial do capital sob a fenomenologia da sua crise estrutural, é


um sistema complexo cujo desenvolvimento desigual e combinado é composto por
múltiplas territorialidades e subtemporalidades historicas que merecem ser
discriminadas. É o que faremos a seguir. Como observou David Harvey no livro O
enigma do capital, o desenvolvimento geográfico desigual e contraditório do
capitalismo tornou-se fundamental para sua reprodução. Disse ele: “Nos últimos trinta
anos viu-se uma reconfiguração dramática da geografia da produção e da localização do
poder político-econômico”. Na verdade, a nova dinâmica da crise estrutural do capital
implicou a constituição de novas geografias de acumulação do capital que caracterizam
a destruição criativa do velho, que é uma boa forma de lidar, segundo Harvey, com o
problema permanente da absorção excedente de capital (o maior exemplo é a inserção
da China no mercado mundial, um dos fenômenos históricos mais importantes da
história da civilização humana). A “destruição criativa do velho” salientada por Harvey 
é tão somente o modo de operação, no plano territorial, da lógica da modernização do
capital onde “tudo que é sólido se desmancha no ar” (como diria Marx e Engels
no Manifesto Comunista de 1848).

O capitalismo global é o movimento da heterogeneidade e não a obtenção de


homogeneidade. A ideologia da globalização impôs a visão impressionista de “um
mundo só”. Entretanto, ao invés de constituir o globo como “um mundo só”, a
mundialização do capital constituiu múltiplas territorialidades críticas. A dinâmica da
economia global implicou a constituição da “totalidade concreta” efetiva do sistema
mundial de produção do capital, onde o concreto significa unidade na diversidade de
territorialidades que operam deslocamentos de contradições estruturais da ordem global
do capital.

Portanto, o movimento do capital é concretamente heterogêneo no plano territorial. É


por isso que hoje, por exemplo, enquanto no núcleo orgânico do sistema – EUA, União
Europeia e Japão – temos a presença da crise numa proporção inédita, com o PIB nestas
regiões apresentando quedas ou crescimento medíocre, o centro dinâmico da
acumulação de capital e crescimento da economia capitalista mundial desloca-se para a
China e para os países ditos “emergentes”, onde a percepção da crise torna-se
relativamente tênue (a própria crise europeia hoje, por exemplo, manifesta-se de modo
diferenciado nos países do Sul da Europa – Grécia, Itália, Espanha e Portugal- e nos
países do Norte, como Alemanha e Dinamarca). 

As múltiplas territorialidades da crise contribuem para operar contradições


geoeconômicas e geopolíticas do sistema que ocultam a percepção clara da
insustentabilidade da ordem planetária do capital. Na verdade, a concretização da
heterogeneidade no plano geográfico é um modo de manipulação da percepção
ideológica da própria dinâmica capitalista.

Ao lado de territorialidades diversas do sistema mundial do capital, podemos


discriminar também nos trinta anos perversos (1980-2010), o desenvolvimento de
subtemporalidades ou subconjunturas historicas que aparecem como verdadeiras
narrativas de deslocamentos de contradições do sistema mundial do capital afetado pela
crise estrutural de valorização. Trata-se do movimento contraditório do capital que
desloca territorialmente as linhas de força das contradições ou as eleva temporalmente
para um patamar superior, permitindo deste modo realizar o telos obsessivo do valor: a
sua auto-valorização.

Por um lado, a crise do capitalismo global que se desenrola nos “trinta anos perversos”,
o modo efetivo de desenvolvimento da crise estrutural do capital, é crise de valorização
no sentido de crise de produção/realização do valor. É crise de produção de valor sob
pressão da lei tendencial da queda da taxa média de lucros por conta do crescimento da
composição orgânica do capital. Nos últimos trinta anos de capitalismo global, a
reorganização e reconfiguração territorial e produtiva do sistema tornou-se o modo de
operação das tendências e contra-tendências à lei geral da acumulação capitalista no
plano histórico-mundial.

Por outro lado, a crise do capitalismo global é crise de realização do valor sob a
dinâmica do subconsumo e a procura alucinada pela absorção de excedentes. A
dificuldade de vender num cenário de superprodução/sobreacumulação expõe a
necessidade candente da destruição criativa e produção destrutiva capazes de preservar
o processo de valorização mesmo que em forma fictícia. Um autor como Istan Meszáros
em sua obra clássica Para Além do Capital, expôs com maestria as performances
críticas do valor diante das suas dificuldades de auto-valorização ao tratar, por exemplo,
da produção destrutiva e da taxa de utilização decrescente do valor de uso, recurso de
administração da crise e autorreprodução destrutiva do capital. Nos últimos trinta anos
de capitalismo global, tornaram-se mais do que evidentes as constatações meszarianas
feitas nos primórdios de desenvolvimento do capitalismo global. 

É importante salientar que a vigência da financeirização da riqueza capitalista no


capitalismo global tornou-se um modo de preservar o movimento de auto-valorização
do valor numa situação de crise estrutural. A financeirização que constitui hoje o em e o
para si da dinâmica capitalista global é uma “saída” crucial para o sistema afirmar e
reiterar o sacrossanto princípio da valorização do valor – numa dimensão fictícia.
Portanto, o paradoxo do capitalismo global é que, a “saída” ou via de resolução (fictícia)
da financeirização do capital, que imprime hoje sua marca na dinâmica do sistema
mundial, é tão incerta quanto precária; diríamos mais, literalmente fictícia, quanto a
própria reprodução hermafrodita da riqueza abstrata. Com a financeirização, o capital
encantou-se com seu próprio fetichismo. É o capital narcísico. O valor, como o
“monstro animado que começa a ´trabalhar’ como se tivesse amor no corpo”, como diria
Marx n’O Capital, apaixona-se por si mesmo, deleitando-se com o mundo do dinheiro
criado á sua imagem e semelhança.

Por isso, a saída da “crise” tem implicado hoje numa “fuga para a frente”, elevando num
patamar superior as contradições insanas da ordem de produção/realização do valor.
Ora, “fuga para a frente” significa a produção de pletoras de liquidez e novas bolhas
especulativas capazes de criar a ilusão de que ocorre efetivamente o processo de
valorização. Ao invés de intervenções muito mais radicais, os administradores das
crises, imersos na temporalidade de curto prazo, adotam políticas de menor resistência e
reiteram a lógica da financeirização.    

Na verdade, sob a crise estrutural do capital, a produção de valor descolou-se do


processo de valorização efetivo. Num cenário de
superprodução/sobreacumulação/subconsumo, a dinâmica capitalista não consegue
operar efetivamente a produção de valor (D-M-D’), mantendo, deste modo, o processo
de valorização sob a forma fictícia.

É claro que ocorrem investimentos produtivos e expande-se a produção de mercadorias


mais do que nunca. Entretanto, mesmo com a reestruturação produtiva do capital e a
precarização estrutural do trabalho, o retorno da massa de capital-dinheiro investido está
aquém das necessidades de valorização do capital acumulado. Como observou Marx
nos Grundrisse – e voltamos a salientar esta passagem de seus rascunhos -  “se o capital
aumenta de 100 para 1000, então 1000 é agora o ponto de partida, do qual o aumento
tem que começar; sua decuplicação para 1000 não conta para nada; o lucro e a renda
eles próprios tornam-se capital por sua vez. O que apareceu como mais-valia agora
aparece como uma simples pressuposição etc., como incluída na sua simples
pressuposição”. 

Deste modo, o novo patamar de valorização efetiva – a sua pressuposição – por conta do
acúmulo inédito da massa de capital-dinheiro elevou-se num patamar insano. A crise de
valorização do capital ocorre porque, como observam Marx e Engels no Manifesto
Comunista, “as condições da sociedade burguesa são estreitas demais para abranger
toda a riqueza criou”. Contraditoriamente, a massa de riqueza criada pela sociedade
burguesa diz respeito não apenas a riqueza concreta das forças produtivas do trabalho
social, mas também a riqueza abstrata da massa de capital-dinheiro que o capital não
consegue valorizar efetivamente.  

De modo visionário, Marx e Engels se interrogam no Manifesto Comunista de 1848: “E


como faz a burguesia para vencer esta crise?”. E eles respondem: “Por um lado,
reforçando a destruição da massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de
novos mercados e por uma exploração mais completa dos antigos”.

A percepção genial de Marx e Engels é a síntese ontológica das vias de resolução que o
capital constrói para a sua crise estrutural – hoje, numa dimensão ampliada, isto é, num
plano efetivamente histórico-mundial.

Por exemplo, a destruição da massa de forças produtivas é visível com o crescimento do


desemprego em massa e a precarização estrutural do trabalho. Assim, o capital destrói a
massa de riqueza humana acumulada por conta da formação profissional e expectativas
de realização pessoal (o fenômeno social do precariado é um exemplo da destruição de
forças produtivas, trabalho vivo e força de trabalho altamente escolarizada sem futuro
digno na sociedade burguesa). A conquista de novos mercados e uma exploração mais
completa dos antigos é perceptível com a dita “globalização”, a inserção da China no
mercado mundial, a intensificação da obsolescência planejada das mercadorias, etc.

Talvez, como via de resolução (fictícia) da crise, Marx e Engels não tenham salientado a
financeirização da riqueza capitalista. Ao promover a valorização fictícia, o capital
“investe” na reprodução estéril da massa de capital-dinheiro ou riqueza abstrata
acumulada de modo insano por conta do desenvolvimento inédito da produtividade do
trabalho no século XX. Portanto, o valor é afetado de negação no interior do próprio
sistema do valor. Eis a contradição crucial do sistema mundial produtor de mercadorias.

Podemos dizer que a era do capitalismo global é o espaço-tempo de construção política


das “saídas” ou vias de resolução das contradições acumuladas pelo sistema. O modo de
produção capitalista é, como salientamos alhures, não apenas modo de produção de
mercadorias, mas modo de acumulação de contradições na perspectiva da sua
objetividade teleológica particular: a auto-valorização do valor.

No plano da conjuntura histórica, vamos distinguir na era do capitalismo global, a nova


temporalidade histórica, com alguns períodos que iremos discriminar em linhas gerais:

Primeiro, de 1973 a 1981, temos o período da crise e contrarrevolução neoliberal.


Impulsionou-se o processo de reestruturação capitalista nas mais diversas instâncias da
vida social. A década de 1970 é uma década de luta de classes no cenário de crise geral.
É claro que desde fins da década de 1960, a luta social, sindical e política visava dar
resposta a crise geral do sistema (por exemplo, o maio de 1968 é sintoma do
apodrecimento do capitalismo fordista (The dream is over!). Na verdade, o período de
1946-1973 caracterizado pela singularidade histórica do fordismo, significou o acúmulo
de candentes contradições da ordem burguesa mundial – principalmente no plano da
economia e da política. O sistema de contradições oriundos do capitalismo fordista-
keynesiano iriam ter a resolução política na década de 1970 com a derrota das forças
sociais do trabalho e a vitória das forças políticas do neoconservadorismo neoliberal. O
complexo de reestruturações capitalistas salientados acima é expressão da luta de
classes nas mais diversas instancias da vida social. A derrota das forças sociais, políticas
e ideológicas do trabalho conduziu a nova temporalidade histórica do capital: o
capitalismo global sob dominância financeira e direção política neoliberal.   

De 1981 a 1991, o período da financeirização e barbárie social. É o período histórico de


expansão da nova ordem burguesa. O processo de reestruturação capitalista aprofunda-
se com a derrota das forças sociais do trabalho na década de 1970 no bojo da crise e
ofensiva neoliberal. O capital recupera as margens de lucratividade. As corporações
transnacionais acumulam uma imensa massa de capital-dinheiro que propicia a liquidez
que impulsiona a lógica da financeirização da riqueza capitalista. Nesta década de 1980
se constrói os pilares do sistema político-institucional da mundialização financeira. O
capitalismo global torna-se efetivamente capitalismo predominantemente financeirizado
– a dominância política das frações de classe da burguesa financeira ocorre na medida
em que se desenvolve a crise do modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento
capitalista. O excesso de liquidez e o boom financeiro acusam dificuldades no processo
de valorização apesar da retomada da lucratividade. Na verdade, uma parcela da massa
de capital-dinheiro acumulado encontra retorno adequado no investimento especulativo
que aproveita as inovações financeiras que surgem na década de 1980. A
desregulamentação das finanças nos núcleos mais dinâmicos da economia mundial
oferece para os investidores a oportunidade fabulosa de realização de lucros fictícios. 

Foi na década de 1980, a década das finanças, que se aprofundou o desequilíbrio de


forças entre as classes sociais. O desequilíbrio entre as forças de classe na década de
1980 se contrasta, por exemplo, com o período de 1946-1973, quando se instaurou um
equilíbrio entre capitalistas e trabalhadores assalariados que deu origem ao dito
“compromisso fordista” (Estado keynesiano/Sindicatos Fordistas/Empresas
Multinacionais). Naquela época, foi importante a presença da força política do trabalho
organizado, o acordo de Bretton Woods e a “guerra fria” entre URSS e EUA. Eis a
singularidade histórica do fordismo, desmontada pouco a pouco a partir da crise de
1973. Na década de 1980, instaurou-se o desequilíbrio entre as classes com a
reestruturação produtiva do pós-fordismo e toyotismo promovendo uma ofensiva do
capital na produção que enfraqueceu as forças sociais e políticas do trabalho. A ofensiva
política do capital caracterizou-se pela disseminação do neoliberalismo sob a vigência
do poder do capital financeiro. O poder ideológico neoliberal dissemina-se inclusive
entre as forças sociais-democratas e socialistas, gestores da ordem sistêmica do capital.
O capital conseguiu quebrar as forças do trabalho – material e ideologicamente. Ao
mesmo tempo, põe-se na década de 1980, a ofensiva ideológica do capital, com o pós-
modernismo e o neopositivismo.

Portanto, a década de 1980, que começa com os governos de Margaret Thatcher e


Ronald Reagan, no Reino Unido e EUA, respectivamente, inauguram uma das décadas
mais reacionárias do século XX, inaugurando-se efetivamente a era da barbárie social
(por conta de particularidades históricas, o Brasil ainda está na década de 1980 em
dissintonia com a dinâmica capitalista global).
 Na década de 1990, temos o prosseguimento da lógica da financeirização e a
constituição de novo patamar de barbárie social (a barbárie da espoliação que se
dissemina com o “capitalismo das bolhas financeiras”). O desequilíbrio de forças entre
o capital e o trabalho aprofunda-se com a queda do Muro de Berlim e a debacle da
URSS, a direitização irremediável da social-democracia e o surgimento do novo
imperialismo norte-americano.

A década de 1980 foi a década de expansão da globalização, enquanto a década de 1990


é a década de integração hegemônica do capital concentrado. É a década das políticas de
integrações regionais conduzidas pelos interesses do capital financeiro (por exemplo, o
Nafta e a União Europeia, a mais ousada experiência histórica de integração regional).
Ao mesmo tempo, com a entrada da China no mercado mundial na década de 1990,
acirra-se a concorrência intercapitalista num cenário de capital concentrado. A presença
da China transfigura a dinâmica da acumulação de valor, embora não altere
essencialmente a objetividade contraditória do capitalismo global, com a crise estrutural
do capital aparecendo cada vez mais como crise de desmedida de poder e acúmulo de
massa de capital-dinheiro que não consegue se valorizar efetivamente.

As décadas de 1990 e 2000 são décadas marcadas por crises financeiras (1987, 1996,
2001 e 2008) que explicitam a lógica do “capitalismo das bolhas”, forma originaria do
sistema institucional-político da mundialização financeira. As crises financeiras
traduzem no plano da objetividade contraditória do sistema, a fenomenologia da crise
estrutural do capital. A financeirização expõe as novas manifestações da precarização
estrutural do trabalho e da dinâmica social da proletariedade.

Vejamos o seguinte: o primeiro momento histórico da crise estrutural do capital,


ocorrida em meados da década de 1970, impulsionou a “globalização” como
mundialização do capital e a afirmação da precarização estrutural do trabalho, vias de
resolução que contribuíram para a reposição da lucratividade em fins da década de
1980. ,

Entretanto, as “saídas” ou vias de resolução da 1ª fase da crise estrutural do capital não


impediram que a crise voltasse a se manifestar mais adiante, com as novas contradições
da mundialização financeira. Pelo contrário, as vias de resolução contribuíram,
contraditoriamente para o desenvolvimento ampliado da crise por conta da própria
desmedida do capital. Por isso, a partir da década de 1990, ocorreram com maior
amplitude e intensidade crises financeiras que caracterizam a 2ª. fase de crise do
capitalismo global.

Portanto, com a “acumulação flexível”, foram postas vias da resolução da crise


capitalista de meados dos anos 1970; mais tarde, com a “acumulação por espoliação”,
colocaram-se as vias da resolução (fictícia) para a crise das bolhas financeiras
(utilizamos dois importantes conceitos de David Harvey – “acumulação flexível” e
“acumulação por espoliação” – para caracterizar os dois momentos do desenvolvimento
da crise capitalista, onde a forma de ser da acumulação diz respeito a vias de resolução
– meramente contingente – da própria crise). Na verdade, a forma predominante de
acumulação implica novos patamares da barbárie social que se desenvolvem nos “trinta
anos perversos” do capitalismo global.

Eis, deste modo, a fenomenologia da crise estrutural do capital, caracterizada pelo


movimento contraditório do valor em sua ânsia de auto-valorização. A crise de 2008 e
sua vias de resolução (fictícia) afirmam o movimento recorrente da espoliação
financeira, onde o fundo publico fica a mercê da lógica da valorização fictícia. Não se
destroem os pilares político-institucionais da mundialização financeira, mas sim,
reforça-se sua dominância social e política via políticas de austeridade (a crise europeia,
como sempre, é paradigmática).

A radicalidade das contradições impõe a radicalidade do pensamento crítico capaz de ir


além das sombras que se movem na superfície do sistema. O capitalismo manipulatório
é o capitalismo fictício onde o processo de valorização encontra-se afetado de negação
embora prossiga como processo de produção de produção de mercadorias. Nos
primórdios do século XXI, a destruição criativa do capital articula-se cada vez mais com
a produção destrutiva das condições da reprodução social. A crítica radical do
capitalismo torna-se hoje, mais do que nunca, necessidade do pensamento.

A década de 2001-2011 foi a década do terceiro ciclo da financeirização e barbárie


social, elementos compositivos do metabolismo social do capitalismo global. A
condição de proletariedade amplia-se como fenômeno universal e o precariato aparece
como “persona viva” das contradições viscerais da ordem burguesa hipertardia. Ao
mesmo que se afirma, financeirização e barbárie social são contestadas, numa
perspectiva contingente, cada vez mais, pelos sujeitos-agentes históricos. Como diria
Lukács, “o homem é um ser que dá respostas”. Como contradição viva, o capital
impulsiona o desenvolvimento da consciência social, quiçá, consciência contingente de
classe. A história aparece cada vez mais como história da luta de classes que, como
realidade efetiva, se impõe àqueles que clamaram pelo fim das classes e a vigência da
democracia e conciliação entre capitalismo e bem-estar. Na verdade, o desenrolar da
cena do mundo burguês sob a barbárie social explicita cada vez a insustentabilidade
civilizatória da ordem burguesa. O que não significa que hajam, de imediato, sujeitos
históricos de classe capazes de operar a “negação da negação”, tendo em vista que a
crise de formação de valor é, ao mesmo tempo, crise de deformação do sujeito histórico
de classe por conta da precarização do homem–que-trabalha. Hic Rhodus, hic salta!

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia


e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-
produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do
Projeto Tela Crítica.

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